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A MULTIDÃO CRIMINOSA

Ensaio de Psicologia Coletiva

Scipio Sighele

www.ebooksbrasil.org


A Multidão Criminosa — Ensaio de Psicologia Coletiva
Scipio Sighele (1868-1913)

Tradução
Adolfo Lima

Edição
eBooksBrasil

Fonte digital: digitalização da edição em papel
Organização Simões
Rio 1954
Os negritos foram eliminados, as itálicas foram mantidas, a ortografia atualizada, os nomes conservados em sua grafia original.

A tradução da fonte digitalizada foi compulsada, para dirimir dúvidas, com Scipio Sighele, La foulle criminelle - Essay de psychologie criminelle, traduit de l’Italien par Paul Vigny.
Disponível em: Les classiques des sciences sociales
classiques.uqac.ca/classiques
“Note: Cette édition numérique a été réalisée grâce à Mme Maristela Bleggi Tomasini, avocate, de Porto Alegre - Rio Grande do Sul, au Brésil, qui a eu la gentillesse de nous prêter gracieusement ce livre provenant de sa propre bibliothèque.”
—Recomenda-se ao leitor a leitura da tradução francesa.
Há discrepâncias relevantes entre a presente edição e aquela.—
Capa
[imagem}
Aufgebrachte Arbeiter werfen den Betriebsingenieur Watrin aus dem Fenster der Grubenverwaltung, Décazeville 1884.
Holzstich in: L’Illustration, 6. Februar 1886
Fonte:
DHM - Deutsches Historisches Museum
www.dhm.de

Copyright
©2006 Scipio Sighele


Índice

O Autor e a Obra
A MULTIDÃO CRIMINOSA
APÊNDICE
INTRODUÇÃO
A SOCIOLOGIA E A PSICOLOGIA COLETIVA

CAPÍTULO I
A PSICO-FISIOLOGIA DA MULTIDÃO

CAPÍTULO II
AS MULTIDÕES CRIMINOSAS

CAPÍTULO III
CONCLUSÕES JURÍDICAS

APÊNDICE
O despotismo da maioria e a psicologia coletiva

Notas


O Autor e a Obra

 

Scipio Sighele, natural de Brescia, nasceu em uma grande família de juristas italianos. Seu pai, magistrado, foi procurador do rei em Palermo nos anos seguintes á Unificação Italiana. Após os estudos secundários, prosseguiu, com o criminalista Enrico Ferri, estudos de direito em companhia de futuros membros da corrente lombrosiana: Guglielmo Ferrero e também Adolfo Zerboglio. Consagrou sua tese de láurea ao fenômeno da cumplicidade.

Mas foi por dois artigos sobre a multidão criminosa publicados em 1891, na revista de Lombroso, o Archivio di Psichiatria, que se tornou conhecido. Estes dois artigos reunidos formaram o núcleo de sua obra maior, La Folla delinquente, publicada a seguir e que se tornou logo best-seller mundial à época. O livro teve em seguida uma tradução francesa, sob o título de La Foule criminelle. A obra trata dos fenômenos da associação, do contágio e desmonta os mecanismo em jogo no seio de uma multidão.

Sighele demonstra o irremediável pendor criminal das associações coletivas. Gustave Le Bon inspirou-se em grande medida nestas idéias, sem mencioná-las, para seus próprios trabalhos. Sighele, já célebre, ampliou suas pesquisas no domínio da psicologia coletiva. Na França, Zola, Durkheim e Nordau utilizaram suas descobertas nos domínios das letras, da sociologia e da política. Sighele publicou na França La psychologie des sectes (1895) e novas edições de La Foule Criminelle em que tentou emendar sua leitura negativa da multidão.

Lecionou nas universidades de Bruxelas, Roma e Pisa.

Na virada do século, tornou-se militante ativo no Trentino, sua região de origem, então sob dominação austríaca. Pouco a pouco, foi deixando de lado os trabalhos sociológicos para se dedicar integralmente ao jornalismo e aos estudos políticos. Seus últimos trabalhos versaram sobre a questão nacional e o Irridentismo, do qual foi um dos teóricos. Expulso pelos austríacos do Trentino, em razão de seu ativismo, faleceu em Florença em 1913.

O presente título, há muito esgotado, disponível como “livro raro” em alguns sebos online, parece ter sido traduzido de uma das primeiras edições em italiano. Uma edição mais completa, e mais acurada, em francês, está disponível na web no site Les classiques des sciences sociales [classiques.uqac.ca].

Não é uma reprodução integral da edição digitalizada. Evidentes erros tipográficos e alguns outros foram corrigidos ou indicados. Serve como um primeiro contato com esta obra essencial, mas, para referências bibliográficas e uso acadêmico, é altamente recomendável a leitura da tradução francesa, disponível online no endereço acima. Muitos textos que aqui aparecem como notas foram incorporadas pelo autor ao corpo do livro.

Teotonio Simões
Outono de 2006


SCIPIO SIGHELE

A MULTIDÃO CRIMINOSA

Ensaio de Psicologia Coletiva


APÊNDICE

 

O estudo dos crimes da multidão é interessantíssimo, principalmente numa época em que — desde as greves dos operários até aos motins públicos, — as violências coletivas da plebe não faltam. Parece que quer de tempos a tempos aliviar-se, por um crime, de todos os ressentimentos que as dores e injúrias sofridas acumularam nela.

Acrescentemos que o assunto, ainda que de grande importância social e jurídica, é todavia, novo. A ciência, como os tribunais, nunca pensaram que, às vezes, em lugar de um só indivíduo, o criminoso pudesse ser uma multidão. Quando vemos aparecer perante os tribunais alguns indivíduos, que pôde prender no meio de um tumulto, os juízes crêem ter diante de si homens que, por si próprios, voluntariamente, vieram assentar-se nesses bancos infames; ao passo que não são mais do que alguns náufragos lançados ali pela tempestade psicológica, que os arrastara sem o saberem.

É portanto ainda mais necessário do que interessante estudar o problema da multidão criminosa.

Tentei fazê-lo, embora imperfeitamente. A psicologia coletiva é uma ciência ainda infantil; a psicologia da multidão de que ela é parte e representa o seu grau mais agudo, mal nasceu agora.

Preenchi, nesta edição, muitas lacunas e corrigi vários erros da primeira edição italiana. Sei, no entanto, que apenas lancei os fundamentos de um estudo longo e difícil. Mas ficarei satisfeito com a minha obra, se ela despertar em outros o desejo de fazer melhor e mais do que fiz; — feliz, principalmente, se as conclusões jurídicas, a que chego, forem acolhidas nos Tribunais.

S. S.


INTRODUÇÃO
A SOCIOLOGIA E A PSICOLOGIA COLETIVA

 

Nos fatos psicológicos, a reunião dos indivíduos não dá um resultado igual à soma de cada um deles.
ENRICO FERRI.

 

I

“Dêem a um pedreiro — escreve H. Spencer — tijolos bem cozidos, duros, de arestas vivas, e ele poderá construir sem argamassa uma parede bastante sólida, de grande altura. Se, pelo contrário, os tijolos são feitos de má argila, se a sua cozedura foi irregular, se são toscos, fendidos, quebrados, ser-lhe-á impossível construir sem argamassa uma parede igual à primeira em altura e estabilidade. Quando um operário trabalha num arsenal a empilhar balas de artilharia, essas massas esféricas não se acondicionam como se acondicionam tijolos. Há para as pilhas de balas formas definidas: o tetraedro, a pirâmide de base quadrada e o sólido de base retangular terminado por uma aresta. Cada uma destas formas permite obter a simetria e a estabilidade que são incompatíveis com todas as formas de faces verticais ou muito inclinadas. Se, ainda, em vez de balas esféricas do mesmo volume se tratasse de empilhar calhaus irregulares, meio arredondados e de diferente grossura, força seria renunciar às formas geométricas definidas. O operário só poderá obter um amontoado instável, sem ângulos e sem superfícies regulares.

Aproximando estes fatos e procurando deduzir deles uma verdade geral, vemos que o caráter do agregado está determinado pelos caracteres das unidades que o compõem.

Se passamos destas unidades visíveis e tangíveis às que consideram os físicos e os químicos e que constituem as massas materiais, nós verificamos o mesmo principio. Para cada um destes pseudo elementos, para cada um dos seus compostos, para cada nova combinação destes compostos, existe uma forma particular de cristalização. Ainda que estes cristais difiram de grandeza, ainda que possamos modificar desbastando os seus ângulos e as suas arestas. o seu tipo de estrutura fica constante, como a clivagem é a prova. Todas as espécies de moléculas têm formas cristalinas particulares, conforme as quais elas agregam. A relação entre a natureza das moléculas e o seu modo de cristalização é de tal modo constante, que, sendo dadas duas espécies de moléculas próximas uma da outra pelas suas reações químicas, podemos prever com certeza que os seus sistemas de cristalização serão muito aproximados. Em suma, estamos no direito de afirmar sem hesitação, como um resultado demonstrado pela física e pela química, que em todos os fenômenos que apresenta a matéria orgânica, a natureza dos elementos determina certos caracteres nos agregados.

Este princípio verifica-se igualmente nos agregados que encontramos na matéria viva. Na substância de cada espécie de planta ou de animal, há uma tendência para a estrutura dessa planta ou desse animal, tendência constatada até à evidência em que todos os casos em que as condições da persistência da vida são suficientemente simples, e em que os tecidos não têm adquirido uma estrutura muito delicada para se prestar a uma nova acomodação. Nos animais, o exemplo tanta vez citado do pólipo faz ressaltar a verdade. Quando o cortamos em pedaços, cada fragmento é um pólipo dotado da mesma organização e das mesmas faculdades que o animal inteiro. Nas plantas, o exemplo da begônia é também frisante: metendo em terra um pedaço de folha, vemos desenvolver-se uma planta completa.

A mesma verdade se manifesta nas sociedades mais ou menos definidas que formam os seres inferiores. Quer essas sociedades não se componham senão de uma reunião confusa, quer constituam uma espécie de organização com divisão de trabalho entre os seus membros, — casos que se dão freqüentemente — as propriedades dos elementos são ainda determinantes. Sendo dada a estrutura dos indivíduos com instintos que dela resultam, a comunidade formada por esses indivíduos apresentará forçosamente certas características e nenhuma comunidade que apresente as mesmas características poderá ser formada por indivíduos dotados doutra estrutura e de instintos diferentes(1).”

Ora, todo aquele que sacudiu o jugo dos preconceitos da teologia e da metafísica e que sabe só existir uma lei para a humanidade como para o universo; todo aquele que conhece, mesmo de um modo muito superficial, a teoria da evolução, não experimentará nenhuma dificuldade, para compreender os agregados de homens na fórmula de Spencer.

Dizer que as qualidades das partes determinam as qualidades do todo, é, com efeito, enunciar uma verdade que se aplica tanto à sociedade como ao mais. Foi sobre esta verdade que Spencer fundou a sua concepção da sociologia, pondo como axioma científico que os caracteres principais da sociedade humana correspondem aos caracteres principais do homem(2).

Ratificou assim a idéia de Augusto Comte, que resumindo o mesmo pensamento, disse: “que a sociedade humana deve ser considerada como um só homem que tenha existido sempre(3).

Schopenhauer também chegou à mesma conclusão: “Desde os tempos mais remotos, tem-se sempre considerado o homem como um microcosmo; inverti a proposição e provei que o mundo é um macantropo, neste sentido: que a vontade e a representação dão a definição da substância do mundo tão completa como a do homem”(4).

A concepção de Schopenhauer parte de um princípio inteiramente diferente daquele em que se fundam a concepção de Comte e a de Spencer. Com efeito, a filosofia de Schopenhauer, posto que encerre páginas esplêndidas, ditadas por um método positivo, é todavia teórica e a priori; ao passo que as de Spencer e Comte são baseadas na observação e na experiência. O ponto de partida é, portanto, diferente, mas o fim atingido é o mesmo. Schopenhauer afirma que o mundo é um macantropo, e por esta única palavra, derivada do grego, exprime o mesmo pensamento que Comte e Spencer.

E, pondo inteiramente de lado, por agora, a questão da analogia entre o homem e a sociedade humana, que pode levar ao ponto de fazer da sociedade um verdadeiro organismo(5) é possível negar que haja em toda a sociedade, fenômenos que são o resultado natural dos fenômenos dados pelos membros da dita sociedade; que, noutros termos, o agregado apresenta uma série de propriedades determinada pela série das propriedades das suas partes? Basta pensar o que aconteceria se o homem tivesse preferência por aquele que lhe tivesse feito mal, para compreender que as relações sociais seriam completamente opostas (se isso fosse possível) às relações sociais atuais, estabelecidas na tendência inerente ao homem de preferir quem lhe dá mais prazer. Basta pensar o que sucederia se, em vez de procurar os meios mais fáceis de alcançar um fim determinado, os homens procurassem os meios mais difíceis de chegar a esse fim, para compreender que a sociedade (admitindo que pudesse existir uma em tais condições) não se pareceria nada com a que conhecemos.

Esta analogia de estrutura e, por conseguinte, de funções que se mostra evidente e incontestável entre o homem e a sociedade, encontramo-la de novo, não só nos caracteres gerais mas também nalguns caracteres particulares, entre os indivíduos pertencentes a uma determinada classe e esta mesma classe considerada como um ser coletivo.

Sabemos que a sociedade não é um todo homogêneo e igual em cada uma das suas partes, mas antes uma rocha de barro, formada lentamente de despojos transportados por uma série infinita de seres(6), um organismo que tem, como o corpo animal, tecidos de diferente estrutura e de diferente sensibilidade. Ora. estes tecidos, ou camadas, ou grupos sociais, que se formaram pouco a pouco com o tempo, pela passagem contínua e progressiva do simples ao composto, do homogêneo ao heterogêneo, — no que consiste a lei de evolução(7), — estes tecidos têm, como os diversos tecidos das plantas e dos animais, caracteres orgânicos e psíquicos, próprios de cada um deles, e que reproduzem os caracteres especiais dos indivíduos que fazem parte de tais grupos.

A mais vulgar observação prova-nos isso largamente. Se lançamos um olhar pela história, vemos que as antigas separações entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos, entre nobres e plebeus, não eram somente divisões políticas e econômicas, mas também designavam realmente mundos diferentes. Educação, linguagem, costumes, trajos, maneiras de ser, tudo tinha uma caráter especial, regulado por severíssimos hábitos e, até, por fórmulas tradicionais escritas, às quais não era permitido a ninguém subtrair-se(8).

E quem não sabe que a aristocracia, — do talento, do dinheiro e do movimento — a magistratura, o clero, a milícia, o povo, enfim todas as classes sociais que representam na atualidade sob uma forma eletiva e espontânea, as antigas castas determinadas unicamente pela relação hereditária, traduzem exatamente no seu espírito e nas suas manifestações coletivas, não só os caracteres gerais do homem, mas também os caracteres do aristocrata, do magistrado, do padre, do soldado? Quem não sabe que os hábitos, as idéias, os sentimentos, as tendências, numa palavra, as funções próprias de cada uma destas classes, são diferentes das de todas as outras?(9).

Portanto, o axioma que — os caracteres do agregado são determinados pelos caracteres das unidades que o compõem — deve aplicar-se não só ao organismo coletivo da sociedade mas também aos organismos parciais que a compõem.

E não podia ser doutro modo, visto que, se na sociedade humana, que não é mais do que um fragmento do universo, ou, para melhor dizer, um episódio da evolução universal, se verificam necessariamente todas as leis naturais que dirigem o mundo orgânico — com mais forte razão, as leis gerais da sociedade devem verificar-se nos organismos parciais que a compõem, como — feliz e justa expressão de Enrico Ferri — os caracteres mineralógicos de um cristal se reproduzem inevitavelmente nos seus fragmentos.

Considerada sob este ponto de vista, a sociologia é uma reprodução fiel nas suas grandes linhas, mas imensamente mais complexa e mais vasta, da psicologia. — A psicologia estuda o homem, e a sociologia estuda o corpo social; mas sabemos que os caracteres de um podem ser determinados pelos caracteres do outro; é que as funções do organismo social são análogas às do organismo humano.

A individualidade social — dizia Espinas — é paralela à individualidade humana; a Sociologia não é, portanto, senão uma Psicologia aumentada, na qual as leis principais da psicologia individual se refletem desenvolvidas e completadas; é, como disse esplendidamente Tarde, “o microscópio solar da psicologia(10)”.

II

Mas até onde chega essa analogia entre as qualidades do agregado e as das unidades que o compõem? Essa relação entre as leis psicológicas que governam o indivíduo e as que governam um grupo de indivíduos é sempre constante? É sempre verdade que uma reunião de homens possui caracteres próprios, que resultam dos caracteres dos homens todos, separadamente? Numa palavra, não há nunca exceções ao princípio enunciado atrás?

Antes de responder a esta pergunta, quero lembrar aqui alguns fenômenos psicológicos muito comuns; ajudar-nos-ão a achar a resposta, ou melhor, serão eles próprios a resposta.

Ninguém ignora os erros que bastante freqüentemente cometem os jurados. Muitas vezes provêem da sua incapacidade individual ou da dificuldade particular das questões que lhes são submetidas; mas às vezes a decisão absurda e fora de propósito é dada por pessoas inteligentes e em questões que apenas requerem um pouco de bom senso para serem resolvidas.

Vi, por exemplo, absolver três rapazes confessos de terem praticado os mais vis ultrajes numa jovem e de terem-na, depois, martirizado da forma mais ignominiosa, deitando-lhe cal virgem nas partes mais delicadas, produzindo-lhe gra­ví­ssi­mas quei­ma­du­ras. Con­si­de­ra­do se­pa­ra­da­mente cada um, esses jurados teriam absolvido tais criminosos? É para duvidar.

Garofalo conta um ensaio realizado com um grupo de seis médicos distintos, entre os quais estavam professores ilustres, que, solicitados a dar a sua decisão acerca de um homem acusado de roubo, o declararam inocente, apesar das provas evidentes de culpabilidade, e reconheceram depois terem-se enganado(11).

O júri da Alta-Viena absolveu ultimamente três camponeses: o pai, Jean Pouzy, sua mulher e filho, que respondiam pelo crime de assassinato de um pobre rapaz, Pedro Grasset, seu antigo criado, estrangulado e espancado — “em família” — em repugnantes condições de ferocidade. Os pormenores do crime são horrorosos. Depois de ter asfixiado com o seu peso a vítima, Jean Pouzy, diz troçando: — “Creio bem que está morto!” — “Talvez, que não” — redargue a mulher, — e para mais segurança esmigalha-lhe o crânio com mais duas fortes pancadas do seu pesado bordão. “Desta vez, — prossegue o marido — creio que esticou! O lindo coelho que tínhamos para ali!”(12).

Quem podia acreditar que a covardia de toda essa família encarniçada sobre um homem sem defesa, viria a encontrar o perdão de um júri?

Pois bem, que provam todos estes fatos e tantos outros semelhantes que cada qual pode observar por si próprio?(13). Provam simplesmente isto: que doze homens de bom senso e inteligentes podem dar uma sentença estúpida e absurda. Uma reunião de indivíduos pode portanto dar uma resultante oposta à que teria dado cada um deles.

Verifica-se um fenômeno semelhante, em numerosas comissões — artísticas, científicas ou industriais, — que são uma das chagas mais dolorosas do nosso sistema de administração. Sucede muitas vezes que as suas decisões surpreendem, atordoam o público pela sua extravagância. Como é possível, diz-se, que tais homens que pertenciam à comissão, chegassem a semelhante conclusão? Como é fácil que dez ou vinte artistas, dez ou vinte homens de ciência, reunidos, dêem uma sentença que não é conforme nem com os princípios da arte, nem com os da ciência?

Aristides Gabelli tentou analisar as causas deste fenômeno.

“Diz-se, escreveu ele, que as comissões, os conselhos, numa palavra, todos aqueles que exercem conjuntamente um poder, são uma garantia contra os abusos. Mas devemos ver antes de tudo se são um auxílio aos usos. Com efeito, dá-se o poder para que se sirvam dele. Quando as garantias são tais que impedem o uso, é inútil dá-las. Ora, o número é justamente uma garantia deste gênero, pelo espírito de partido, pelas discórdias que dão origem ao interesse, às opiniões e aos estados diversos e porque um vem, outro não vem, um está doente, outro viajando; e freqüentemente tudo deve ser reposto com inestimável perda de tempo, e muitas vezes de oportunidade e de eficácia; porque, se é difícil encontrar talento em todos, é ainda bem mais difícil encontrar em todos resolução e firmeza; porque não tendo responsabilidade pessoal, cada qual procura abster-se; porque aquele que tem o poder, e não o exerce, é um obstáculo àquele que deveria exercê-lo; porque enfim — as forças dos homens reunidos suprimem-se e não se somam. — Isto é tão verdadeiro que muitas vezes saem de uma assembléia coisas medíocres que cada um dos que a compõe teria podido fazer melhor sozinho. “Os homens, disse Galileu, não são como os cavalos atrelados a um carro, que puxam todos ao mesmo tempo, mas como cavalos livres que correm e um dos quais ganha o prêmio”(14).

Este último pensamento — que as forças dos homens unidos suprimem-se e não se somam — que Gabelli enuncia apenas nalgumas palavras e que é para mim o mais profundo e o mais importante, foi desenvolvido largamente e com precisão e evidência matemática por Max Nordau, um homem de ciência que, na minha opinião, merece mais fama do que tem tido. — “Reunam-se vinte ou trinta Goëthe, Kant, Helmholtz, Shakespeare, Newton, etc. escreve ele, e submetam ao seu juízo e sufrágio as questões práticas: do momento. Os seus discursos serão talvez inteiramente diferentes dos que poderiam ser pronunciados por qualquer assembléia (se bem que eu não responda por isso); mas quanto às suas decisões estou certo que se não diferenciarão em coisa alguma das de uma assembléia qualquer. E isto, por que? Porque cada um dos vinte ou trinta eleitos, além da sua própria originalidade, que faz dele um excelente indivíduo, possui também o patrimônio de qualidades herdadas da espécie que o tornam semelhante não só ao seu vizinho na reunião, mas também a todos os indivíduos desconhecidos que passam na rua. Podemos dizer que todos os homens, no estado normal, têm certas qualidades que constituem um valor comum, idêntico, suponhamos igual a x — valor que é aumentado nos indivíduos superiores com outro valor diferente para cada indivíduo e que por isso deverá ser chamado diferentemente para cada um deles; seja, por exemplo, igual a b, c, d, etc. Admitido isto resulta daqui que numa reunião de vinte homens — todos, gênios do mais alto grau — ter-se-iam 20 x e somente 1b, 1c, 1d, etc. e necessariamente os 20x venceriam os b, c, d isolados; isto é, a essência humana venceria a personalidade individual e o boné do operário cobriria completamente o chapéu do médico e do filósofo(15)”.

Depois destas palavras, que constituem, na minha opinião, mais um axioma intuitivo do que uma demonstração, é fácil compreender como, não só o júri e as comissões, mas também as assembléias políticas praticam às vezes ato que contrastam de um modo absoluto com as opiniões e as tendências individuais da maior parte dos membros que as compõem. Para nos convencermos disso, basta que se ponha no exemplo dado por Nordau, o número cem ou duzentos no lugar de vinte. O bom senso público teve já, aliás, a intuição da observação patenteada pelo filósofo alemão. Um antigo provérbio dizia: — Senatores boni viri, senatus autem mala bestia. — E atualmente, o povo repete essa observação e confirma-a quando diz a propósito de certos grupos sociais, que, tomados separadamente, os indivíduos que os compõem são pessoas honestas, mas, no conjunto, são uns patifes(16).

Se, partindo destas reuniões, nas quais há, pelo menos, uma certa escolha dos indivíduos, descemos a outras reuniões formadas ao acaso, como por exemplo; o auditório de uma assembléia, os espectadores de um teatro, o povo nas aglomerações imprevistas que se formam nas praças e nas vias públicas, veremos que o fenômeno que nos ocupa se manifesta de novo e mais claramente. Estas reuniões de homens não reproduzem certamente, — todos nós o sabemos e é inútil prová-lo — a psicologia dos indivíduos que as compõem.

Não podemos, portanto, pôr em dúvida que muitíssimas vezes o resultado total, dado por uma reunião de homens, é bem diferente daquele que deveria resultar da simples soma de cada um deles, como seria lógico. Isto é, não há dúvida que muitas vezes vemos desmentir, em grande parte, o princípio de Spencer “que os caracteres do agregado são determinados pelo caráter das unidades que o compõem”.

Henrique Ferri sentiu esta verdade quando escreveu: “A reunião de pessoas capazes não é sempre garantia segura da capacidade total e definida: da reunião de indivíduos de bom senso pode obter-se uma assembléia que não tenha senso comum; como, na química, da união de dois gases se pode obter um líquido(17)”.

Foi por isso que ele notou que, entre a Psicologia, que estuda o indivíduo, e a Sociologia, que estuda uma sociedade inteira, há lugar para outro ramo de ciência, que se poderia chamar Psicologia coletiva. Esta deveria ocupar-se exclusivamente dessas reuniões de indivíduos — como os júris, as assembléias, os comícios, os teatros, etc., — que nas suas manifestações se afastam das leis da psicologia individual assim como das da Sociologia(18).

Mas qual é, portanto, independentemente do motivo já notado por Max Nordau, — a razão por que essas reuniões de homens são resultados que desmentem o axioma de Spencer? Os motivos são numerosos, porque as causas de um fenômeno são sempre numerosas; todavia, neste caso, poder-se-á resumi-los a duas causas principais, a saber: que essas reuniões não são homogêneas e são inorgânicas.

É evidente, e quase nem é necessário fazê-lo notar, que a analogia entre os caracteres do agregado e os das unidades que o compõem, só é possível quando essas unidades são iguais, ou, para falar mais exatamente, são muito semelhantes entre si. A reunião de unidades diferentes umas das outras, não só não poderá dar um agregado que reproduza os diversos caracteres dessas unidades, mas também não poderá dar um agregado qualquer. Um homem, um cavalo, um peixe e um inseto não podem formar entre si nenhum agregado.

Verifica-se nisto o que sucede em aritmética, onde para se poder fazer uma soma é necessário que as partes que as compõem sejam todas da mesma espécie. Não podemos adicionar livros com cadeiras, ou moedas com animais. Se mesmo quisessem fazê-los somar materialmente, o resultado seria um número sem significação.

Ora, se a analogia entre os caracteres das unidades e os do agregado só é possível quando essas unidades têm, pelo menos, um certo grau de semelhança entre si (seja, por exemplo, homens) é bem fácil tirar-lhe a conseqüência lógica, que tal analogia aumentará ou diminuirá, conforme aumenta ou diminui a semelhança, a homogeneidade, entre as unidades que compõem o agregado.

Uma reunião cosmopolita não pode evidentemente refletir no seu conjunto os diversos caracteres dos indivíduos que a compõem, com a mesma exatidão que uma reunião de indivíduos todos italianos, ou todos alemães, refletiria no seu conjunto os caracteres particulares desses italianos ou desses alemães. O mesmo se poderá dizer de um júri, no qual o acaso cego colocou um tendeiro junto de um homem de ciência, em comparação com uma assembléia de peritos. O mesmo se poderá dizer de um teatro, no qual há indivíduos de todas as condições e de todos os graus de cultura. O mesmo se poderá dizer de todas as numerosas e variadas reuniões de homens, comparadas com as que fossem compostas de uma só classe, de uma só categoria de pessoas. A heterogeneidade dos elementos psicológicos (idéias, interesses, gostos, hábitos) torna impossível, num caso, a relação entre os caracteres do agregado e os das unidades, relação que a homogeneidade dos elementos psicológicos torna possível, noutro caso.

Mas não basta que as unidades sejam muito semelhantes entre si, para estabelecer analogia entre os seus caracteres e os do agregado que compõem; é necessário ainda que essas unidades estejam unidas entre si por uma relação permanente e orgânica.

Spencer observou, no exemplo dado no princípio desta obra, como prova, que as qualidades de um todo são determinadas pelas qualidades das partes que o compõem, que com tijolos duros, bem cozidos e realmente retangulares, podemos construir sem argamassa uma parede de uma assaz elevada altura; ao passo que é impossível obter esse resultado com pedras irregulares.

Mas compreende-se facilmente que a possibilidade de construir a parede, dada no primeiro caso, não depende somente de nos servirmos de tijolos iguais, em vez de pedras informes, mas também e sobretudo do fato de que esses tijolos estão postos uns juntos dos outros e uns por cima dos outros, numa determinada ordem; isto é, estão unidos solidamente entre si. É claro, com efeito, que se eu amontoasse esses tijolos sem ordem, à toa, o agregado, que daí resultaria, diferençar-se-ia bem pouco ou quase nada daquele que eu poderia obter amontoando pedras de diferentes formas e tamanhos.

Transportemos esta observação para o campo sociológico e tiraremos dela a conclusão que as reuniões adventícias e inorgânicas de indivíduos, como as que temos num júri, num teatro, numa multidão — não podem reproduzir nas suas manifestações os caracteres das unidades que as compõem, do mesmo modo que o ajuntamento confuso e desordenado de uma determinada quantidade de tijolos não pode reproduzir a forma retangular de um só desses tijolos. Por conseguinte neste último caso, é necessário a disposição regular de todos os tijolos, para construir uma parede do mesmo modo, no primeiro caso, para que um agregado dê as qualidades dos indivíduos que o compõem, é necessário que esses indivíduos estejam unidos entre si por meio de relações permanentes e orgânicas, como, por exemplo, os membros de uma mesma família, os indivíduos que pertencem à mesma classe da sociedade(19).

Portanto, não só a homogeneidade, mas também a união orgânica é necessária entre as unidades, para que o agregado que formam reproduza os seus caracteres.

III

A conclusão simples e lógica que ressalta das observações que fizemos, pode resumir-se assim: O princípio de Spencer — que os caracteres do agregado são determinados pelos caracteres das unidades que o compõem — é perfeitamente exato e pode aplicar-se em toda a extensão, quando se trata de agregados compostos de unidades homogêneas e unidas organicamente entre si. Mas deixa de ser perfeitamente exato e não pode aplicar-se senão de um modo restrito, quando se trata de unidades pouco homogêneas e pouco orgânicas.

Enfim, torna-se absolutamente falso e inaplicável quando os agregados são formados de unidades heterogêneas e inorgânicas.

Esta evolução na aplicação do princípio de Spencer aos agregados de homens(20) nos indica claramente que onde esses agregados são homogêneos e orgânicos, estão sujeitos às leis da sociologia — que dissemos ser mais extensas, mas paralelas às da psicologia individual, — ao passo que, à medida que os agregados são menos homogêneos e menos orgânicos, a possibilidade de lhes aplicar as leis da sociologia, é sempre menor e as leis da psicologia coletiva as substituem — leis que dissemos ser em inteiramente diferentes das leis da psicologia individual.

A psicologia coletiva tem, pois, um campo diferente e segue no seu desenvolvimento um caminho diametralmente oposto ao da sociologia; estende-se onde esta se afasta, e as suas leis reinam onde as da sociologia perdem o seu império.

Quanto mais uma reunião de indivíduos é passageira, acidental, inorgânica, tanto mais se afasta do axioma de Spencer e na esfera de observação da psicologia coletiva.

Ora, se não nos enganamos, entre os agregados de homens mais ou menos heterogêneos e inorgânicos que indicamos, tais como o júri, os comícios, os teatros, os ajuntamentos passageiros que qualquer gênero que seja, aquele que mais do que os outros deve subtrair-se às leis da sociologia e ser submetido às leis da psicologia coletiva é, sem dúvida alguma, a multidão.

A multidão é, com efeito, um agregado de homens heterogêneo por excelência, visto que é composto de indivíduos de todas as idades, dos dois sexos, de todas as classes e de todas as condições sociais, de todos os graus de moralidade e de cultura; e inorgânico por excelência, visto que se forma sem acordo antecedente, repentinamente, de improviso.

O estudo da psicologia da multidão será portanto o estudo da psicologia coletiva no fenômeno que, mais do que outros, fará conhecer as leis e patenteará a sua maneira de atuar.

É o que nos propomos executar modestamente nesta obra, para podermos fazer uma idéia exata da natureza e do perigo social dos crimes cometidos pela multidão.


CAPÍTULO I
A PSICO-FISIOLOGIA DA MULTIDÃO

 

A questão da responsabilidade penal é relativamente simples, quando uma só pessoa é o autor do crime. É mais complicada, quando muitas pessoas tomam parte num mesmo crime, porquanto então devemos examinar a parte que cada uma delas teve na ação criminosa. Mas o problema torna-se de uma solução muito difícil, quando os autores do crime não são nem poucos nem muitos, mas em grandíssimo número, tal que nem se pode precisar; numa palavra, quando o crime é a obra de uma multidão.

A representação jurídica, fácil no primeiro caso, mais difícil no segundo, toma no último caso a aparência de uma impossibilidade quase absoluta, porquanto não sabemos como encontrar os verdadeiros culpados e não podemos puní-los.

Como proceder então?

Quer seguindo a estúpida lei militar da dizimação, isto é, ferindo alguns indivíduos que os agentes da força pública conseguem, muitas vezes sem razão, prender no meio do tumulto e do medo; quer seguindo o exemplo de Tarquínio — sentença mais lógica é verdade, mas todavia longe de ser perfeitamente justa, — e julgando, como ele, vencer os inimigos, abatendo as cabeças das mais altas papoilas, isto é, no nosso caso, os instigadores que nunca faltam numa multidão.

Colocados entre essas duas soluções ilógicas e insuficientes, acontece muitas vezes que os juízes populares põem todos em liberdade, aprovando assim as palavras de Tácito que “onde há muitos criminosos não se castiga ninguém”. E é isso um dos casos em que se chega à impunidade por meio de raciocínios absurdos, como diria Pellegrino Rossi.

Mas a impunidade é justa? E se o é, por que razão? Se não o é, qual será portanto o meio de reagir contra os crimes cometidos por uma multidão?

O fim desta obra é responder a estas perguntas.

I

A escola penal clássica nunca pensou se o crime de uma multidão devia ser punido do mesmo modo que o crime do indivíduo que procede só. É natural. Bastava-lhe estudar o crime como ser jurídico; o criminoso estava no segundo plano; era um X que não queria e que não sabia decifrar. Importava-lhe pouco que um criminoso tivesse nascido de pais epilépticos ou alcoólicos, em vez de seres sãos; que tivesse nascido de uma raça ou doutra, num clima tórrido ou um clima frio; que tivesse tido anteriormente uma boa ou má conduta. Devia importar-lhe portanto muito pouco conhecer em que condições o crime fora cometido. Que o argüido tivesse procedido só ou no meio de uma multidão que o excitava e o embriagava com os seus gritos, era sempre o seu livre arbítrio que o impelira ao crime. Nos dois casos, sendo a causa a mesma, a punição era também a mesma.

Admitido o princípio, o raciocínio não podia ser mais lógico; mas não admitindo já o princípio devia cair necessariamente por si próprio. Foi o que sucedeu.

A escola positivista provou que o livre arbítrio é uma ilusão da consciência, desvendou o mundo, desconhecido até então, dos fatores antropológicos físicos e sociais do crime, e elevou a princípio jurídico a idéia que já fora sentida inconscientemente por todos, mas que não podia encontrar cabimento nas fórmulas rígidas dos juristas, isto é, a idéia de que o crime cometido por uma multidão deve ser julgado diferentemente, e isto porque, num ou noutro caso, a parte que tomam o fator antropológico e o fator social é bem diferente.

Pugliese foi o primeiro a expor numa brochura(21) a doutrina da responsabilidade penal no crime coletivo. Concluía sustentando a semi-responsabilidade para todos aqueles que cometem um crime, arrastados pela corrente de uma multidão: “Quando é uma multidão, um povo que se insurge, escrevia, o indivíduo não atua como indivíduo, mas é como a gota de água de uma corrente que transborda, e o braço que lhe serve para ferir é apenas um instrumento inconsciente”(22).

Completei o pensamento de Pugliese tentando dar, por comparação, o motivo antropológico da sua teoria; comparei nas conseqüências(23), os crimes cometidos na impetuosidade de uma multidão, com o crime cometido por um indivíduo cego pela paixão.

Pugliese chamou crime coletivo a esse fenômeno estranho e complexo de uma multidão que comete um crime, quer arrastada pela palavra encantadora de um demagogo, quer exasperada por um fato que é ou que lhe parece ser, uma injustiça ou um insulto a ela. Preferi chamá-lo simplesmente crimes da multidão, porque, na minha opinião, há duas formas de crimes coletivos e é necessário distinguí-los hem: há o crime por tendência co-natural da coletividade, no qual entram o bandidismo, a camorra, a máfia, e há o crime por paixão da coletividade, representado perfeitamente pelos crimes cometidos por uma multidão.

Aquele é análogo ao crime premeditado; o segundo, nunca. No primeiro, o fator antropológico tem a primazia; no segundo, é o fator social que domina. Um excita contra os seus autores um receio constante e muito grave; o outro um receio passageiro e ligeiro.

A semi-responsabilidade, invocada por Pugliese, para os crimes cometidos pela multidão, era portanto justa, se não em si própria, seguramente como meio de chegar ao fim que se propunha.

Com o nosso Código(24) e num caso particular (tal como o que deu ocasião a Pugliese de formular a sua teoria)(25), não se pode chegar melhor ao fim desejado, de fazer punir os crimes de uma multidão com mais indulgência do que os de simples indivíduos, senão invocando a semi-responsabilidade.

Mas cientificamente falando, a semi-responsabilidade é um absurdo, particularmente para nós positivistas, que sustentamos que o homem é sempre inteiramente responsável por todas as suas ações(26).

A teoria positiva deve ser baseada diferentemente.

Não devemos procurar se os autores de um crime, cometido no furor de uma multidão, são responsáveis ou semi-responsáveis, — velhas fórmulas que exprimem idéias falsas; — devemos somente investigar qual é a maneira mais adaptada de reagir contra eles.

É esse o problema que devemos resolver.

II

É necessário fazer a diagnose de uma doença antes de poder defini-la bem e propor os seus remédios. Portanto, antes de discutir o que é o crime de uma multidão e de indicar os meios de reprimi-los, é necessário estudá-lo nas suas manifestações.

Examinaremos, portanto, antes de tudo, quais são os sentimentos que impelem uma multidão a atuar; em seguida tentaremos dar a explicação da sua estranha psicologia.

“Uma multidão — escreve Tarde — é um amontoado de elementos heterogêneos, desconhecidos uns dos outros; no entanto, logo que uma faísca de paixão cintila de um deles, eletriza essa amálgama, produz-se-lhe uma espécie de organização súbita, de geração espontânea. Essa incoerência torna-se coesão, esse ruído torna-se voz e esse milhar de homens apertados uns contra os outros não forma, em breve, senão um só e único animal, uma fera anônima e monstruosa, que caminha para o seu objetivo com uma irresistível finalidade.

“A maioria acorreu por pura curiosidade, mas a febre de alguns apoderou-se rapidamente dos corações de todos e em todos sobe ao delírio.

“Aquele que acorrera precisamente para se opor ao assassínio de um inocente é dos primeiros empolgados pelo contágio homicida, e, o que é mais, nem pensa em admirar-se por isso”(27).

O que há de incompreensível na multidão é a sua organização repentina. Não há nela a preexistência requerida de um objetivo comum: não é, portanto, possível — como faz observar um anônimo no jornal The Lancet — que tenha realmente uma vontade coletiva determinada pelas faculdades elementares mais elevadas de todos os cérebros que fazem parte dela. E no entanto vemos uma especialidade de ação e de objetivo na variedade infinita dos seus movimentos e não percebemos uma só nota, apesar da dissonância das suas mil vozes(28). O próprio nome coletivo de multidão indica que as personalidades particulares dos indivíduos que fazem parte dela, concentram-se e identificam-se numa só personalidade: devemos, portanto, reconhecer forçosamente na multidão, — ainda que não possamos verificá-lo — a ação de qualquer coisa que serve provisoriamente de pensamento comum. “Esta qualquer coisa não é a ostentação das mais baixas forças mentais, e não pode pretender a categoria de verdadeira faculdade intelectual: não podemos, portanto, encontrar outro nome para defini-la senão: alma da multidão (29)”.

Mas donde vem a alma da multidão? Surge por milagre? É um fenômeno de que devemos renunciar descobrir a causa? Ou é fundada nalguma faculdade primitiva do homem? Como se explica que um sinal, uma voz, um grito — lançado por um só indivíduo — arras­tem in­cons­cien­te­men­te um povo inteiro, muitas vezes, até aos mais horríveis excessos?

“É a faculdade da imitação — responde Bordier — que como a difusão num meio gasoso, tende a equilibrar o meio social em todas as suas partes, a destruir a originalidade, a uniformizar os caracteres de uma época, de um país, de uma cidade, de um pequeno grêmio de amigos. Todo o homem está individualmente disposto para a imitação, mas essa faculdade atinge o seu máximo nos homens reunidos; as salas de espetáculo e as reuniões públicas onde o menor bater de palmas, o menor assobio, bastam para erguer a assistência num ou noutro sentido, dão a prova disso(30)”.

E é verdade incontestável e incontestada que a tendência que tem o homem de imitar é uma das tendências mais fortes da sua natureza(31). Basta lançar um olhar em volta de nós para ver que o mundo social não passa de um tecido de similitudes; similitudes que são produzidas pela imitação sob todas as formas, imitação-moda ou imitação-hábito, imitação-simpatia ou imitação-obediência, imitação-instrução ou imitação-educação, imitação-espontânea ou imitação-reflexa(32).

A sociedade, sob um certo ponto de vista, poderá ser comparada a um lago tranqüilo no qual se lança de quando em quando uma pedra; as ondas dilatam-se, propagam-se sempre do ponto onde a pedra cai até à margem. Dá-se o mesmo com o gênio das sociedades: lança uma idéia no meio da calma estagnante das inteligências medíocres, e essa idéia, pouco apreciada a princípio e pouco seguida, alastra-se depois como a onda do lago.

Os homens, disse Tarde, são um rebanho de ovelhas, nas quais se vê às vezes aparecer uma ovelha louca — o gênio — que, pela força única do exemplo, constrange as demais a segui-la(33).

Com efeito, tudo que existe e que é a obra do homem — desde os objetos materiais até às idéias — nada é senão a imitação ou a repetição mais ou menos modificada de uma idéia outrora inventada por uma individualidade superior. Como todas as palavras do nosso vocabulário — que hoje são muito comuns — eram antigamente neologismo; — do mesmo modo que tudo que é vulgar era outrora único e original.

A originalidade — disse com muito espírito Max Nordau(34) — não é outra coisa que a primeira, representação da vulgaridade. Se essa originalidade não tem em si mesma as condições de vida, os imitadores faltam e perece no olvido, como recai no nada uma comédia assobiada na primeira audição; se, pelo contrário, possui um só germe bom e útil, os imitadores aumentam infinitamente, como as representações de um drama vital.

O fundo das idéias que hoje desprezamos como demasiado comuns, porque correm em todas as bocas, é, pois, formado das intuições — outrora miraculosas e agora envelhecidas — dos filósofos da antiguidade; e os lugares comuns dos discursos mais vulgares começaram a sua carreira com brilhantes centelhas de originalidade(35).

É o mesmo na história das coisas grandes e duradouras; é o mesmo na crônica das coisas pequenas da vida diária e modesta. Toda a gente, tanto as pessoas graves como as mais frívolas, tanto as mais idosas como as mais novas, tanto as mais instruídas como as ignorantes, ainda que num grau diferente, estão sujeitas ao instinto que lhes faz imitar o que vêem, o que ouvem, o que aprendem. As correntes de opinião pública — na política como nos negócios — são sempre determinadas por um instinto. — “Hoje encontramos a gente da bolsa, toda audácia, toda entusiasmo, cheia de vigor, pronta a comprar, pronta a dar ordens, uma semana depois veremos quase todo o bando abatido, inquieto, com dores de barriga. Se procuramos as razões desse ardor, dessa frouxidão, dessa mudança, mal as poderemos encontrar, e se somos capazes de as descobrir, só têm pouco valor. Na realidade, não é a razão, é o instinto de imitação que produziu essas correntes de opinião. Sucede não sei que, que parece bastante feliz; então, homens de espírito ardente, vaidosos, falam bem alto, e a multidão, na sua pegada, toma o mesmo tom. Alguns dias depois, quando começa a fatigar-se de falar nesse tom, alguma coisa sucede então que, desta vez, parece um pouco menos feliz; logo as pessoas de natureza triste, inquieta, põem-se a discorrer e o que diziam, todos os outros o repetiam(36).

E o que sucede na política e nos negócios, sucede em todas as formas da atividade humana. Da forma do fato à forma do governo, das ações honestas aos crimes, do suicídio à loucura, todas as manifestações da vida, — tanto as menores como as maiores em importância, tanto as mais dolorosas como as mais alegres, — são um produto da imitação(37).

É, portanto, bastante natural que essa faculdade — que é inata no homem(38) — não só aumente a sua eficácia, a duplique, mas também a torne cem vezes maior no meio de uma multidão, onde todas as imaginações são excitadas, e onde a unidade de tempo e de lugar apressa de um modo extraordinário, e quase fulminante, a alteração das impressões e dos sentimentos.

Mas dizer o homem imita é uma explicação insuficiente para o nosso caso. É necessário saber porque o homem imita; isto é, precisamos de uma explicação que não se detenha na causa superficial, mas que descubra a causa primária do fenômeno.

Muitos escritores, tendo observado que a imitação toma algumas vezes formas agudas, tanto pela intensidade como pela extensão que toma ao propagar-se, e vendo além disso que é menos voluntária que inconsciente em alguns casos, tentaram explicá-la, recorrendo à hipótese do contágio moral.

“Há nos fenômenos de imitação — disse o doutor Ebrard — alguma coisa de misterioso que só se pode comparar a esse instinto irrefletido e onipotente que nos inicia, quase sem querermos, a repetir os atos de que fomos testemunhas e que atuaram vivamente sobre os nossos sentidos e sobre a nossa imaginação. Esta ação é tão geral e tão verdadeira, que todos nós, mais ou menos sofremos o seu jugo. Há uma espécie de fascinação de que certos espíritos fracos não podem defender-se(39).

Jolly escreveu ainda mais claramente: “A imitação é um verdadeiro contágio que tem o seu princípio no exemplo, como a varíola tem o seu contágio no vírus que a transmite; e do mesmo modo que existem na nossa organização doenças que só esperam para se desenvolverem a mais ligeira causa, assim também há em nós paixões que permanecem mudas no exercício da razão e que podem despertar unicamente por efeito da imitação”(40).

Despine, Moureau de Tours, e posteriormente muitos outros vieram juntar-se a Ebrard e a Jolly(41) e todos concordemente afirmam que o contágio moral é tão certo como o de algumas doenças físicas.

“Do mesmo modo, — disse Despine — que a ressonância de uma nota musical faz vibrar a mesma nota em todas as tabelas de harmonia, que sendo suscetíveis de dar essa nota, se encontram sob a influência do som emitido, — assim também, a manifestação de um sentimento, de uma paixão excita o mesmo elemento instintivo, põe-no em atividade, fá-lo vibrar — por assim dizer — em todo o indivíduo suscetível pela sua constituição moral de experimentar mais ou menos vivamente esse mesmo elemento instintivo”(42).

Por esta metáfora — bem achada, senão profunda — e que esclarece a hipótese do contágio moral, um grande número de escritores julgou poder explicar não só os casos mais comuns, naturais e constantes da imitação, mas também e sobretudo os casos mais raros e os mais estranhos, essas verdadeiras epidemias que se propagam de quando em quando, a propósito de um ou de outro fenômeno.

É assim que atribuíam ao contágio moral, as epidemias de suicídio, que seguiam um suicídio célebre que interessara vivamente e comovera a opinião pública(43); — é assim que julgavam devidos ao contágio moral todos os crimes que seguiam um crime atroz, — de que todos os jornais falaram(44), e assim julgavam devidas ao contágio moral, essas epidemias políticas e religiosas que arrastam de repente os povos atrás da palavra inflamada de um tribuno entusiasta ou de um demagogo.

Não podemos portanto — e por maioria de razão — atribuir ao contágio geral as manifestações imprevistas e, ao primeiro aspecto, incompreensíveis, da multidão.

Mas esta explicação satisfaz-nos? O contágio moral difere da imitação verbal?

Vê-se facilmente que para tornar esta explicação suficiente é necessário saber como e por que meio esse contágio moral se propaga. Doutro modo não passaríamos do mesmo ponto.

Tarde compreendeu esta necessidade e aventou a hipótese, então nova e audaciosíssima, de que o contágio moral tem a sua causa no fenômeno da sugestão.

“Qualquer que seja a função celular que provoque o pensamento, — escreve ele — não pode duvidar-se que se reproduz, que se multiplica no interior do cérebro a cada instante da nossa vida mental, e que a cada percepção distinta, corresponde uma função celular distinta. É a continuação indefinida, perene, dessas irradiações entrecruzadas que constitui, ora a memória somente, ora o hábito, conforme a repetição multiplicadora de que se trata, continua encerrada no sistema nervoso, ou, excessiva, alcança o sistema muscular.

A memória é, se assim o querem, um hábito puramente nervoso: o hábito uma memória muscular”(45).

Ora, resumo aqui a teoria de Tarde, visto que cada idéia ou imagem, de que se tem recordação, foi depositada primitivamente no nosso cérebro por uma conversa ou por uma leitura; visto que cada ação habitual tira a sua origem da vista ou do conhecimento de uma ação análoga feita por outrem — é evidente que essa memória e esse hábito, antes de ser uma imitação involuntária de si próprio em si próprio, foi uma imitação mais ou menos voluntária do mundo exterior.

Portanto, considerada sob o ponto de vista psicológico, toda a vida intelectual é apenas uma sugestão de célula para célula no cérebro; considerada mais a fundo na sua causa primária, e sob o ponto de vista social é apenas uma sugestão de pessoa para pessoa.

Esta teoria, que recebeu a aprovação de um grande número de ilustres filósofos(46), e que me parece admirável na sua profunda simplicidade — não pôde fazer imediatamente muitos discípulos para a divulgarem; mas teve a honra de ver surgir após algum tempo, aqui e ali, outras teorias que a reproduzem na substância, ainda que os seus autores não a tenham certamente conhecido.

É o que se dá, por exemplo, com a teoria de Sergi que, no seu pequeno livro intitulado: Psicosi epidemica desenvolve espontaneamente idéias semelhantes às de Tarde, que lhe eram desconhecidas.

Sergi, reproduzindo Tarde por completo, tem, todavia, o mérito de não se ter limitado às generalidades e à indecisão do filósofo francês; expõe mais claramente e de uma maneira mais precisa o que se poderá chamar a base física da sugestão; é por isso que julgo útil apresentar aqui as suas próprias palavras.

“A Psique — diz Sergi — é uma maneira geral de atividade orgânica, sem nenhuma exceção. Quem tem algum conhecimento desse gênero de atividade sabe que cada tecido orgânico atua por meio de estimulantes; quando é aguilhoado por qualquer agente exterior, atua de um modo correspondente à natureza e à energia do aguilhão.

O tecido muscular pode fornecer-nos um exemplo: com efeito, vemos que os músculos só se contraem quando uma excitação exterior vem revelar a sua aptidão. É o que se dá com a psique, nos seus órgãos: não tem nada de espontâneo, nada de autônomo; entra em atividade quando é excitada e manifesta-se exteriormente conforme a natureza desse estimulante.

“Chamo receptividade à aptidão de receber as impressões do exterior; chamo reflexão à aptidão de manifestar a atividade excitada conforme as impressões recebidas. As duas condições podem compreender-se numa lei fundamental, receptividade reflexiva da psique.

“Os alienistas ocupam-se muito, há algum tempo, do fenômeno da sugestão no hipnotismo, e, em geral, julgam que este fato não se verifica senão no estado hipnótico dos seus pacientes. Não perceberam que a sua sugestão é um fenômeno mais agudo da condição fundamental da psique, a receptividade, conforme o que sucede no estado mórbido, no qual os fenômenos tomam uma forma exagerada, e tornam-se mais evidentes do que no estado normal. A sugestão hipnótica não manifesta senão a disposição, conforme as quais atua. A sugestão diz respeito à receptividade descrita, que diz respeito, por sua vez, à lei geral do organismo que não entra espontaneamente em atividade, mas conforme os estímulos recebidos”.

Portanto, segundo Sergi, como segundo Tarde, cada idéia, como cada comoção do indivíduo, é apenas um reflexo — por assim dizer — do impulso externo que sofreu. Por conseguinte, ninguém mexe, atua, pensa, senão graças a uma sugestão que pode vir da vista de um objeto ou de uma palavra ou de um som entendidos, de um movimento qualquer que se realiza fora do nosso organismo. E esta sugestão pode estender-se a um só indivíduo, a vários, a um grande número; pode propagar-se ao longe como verdadeira epidemia no mundo, deixando uns inteiramente isentos, outros atacados benignamente, e ainda outros atacados violentamente. Neste último caso, os fenômenos que faz nascer, tão estranhos e terríveis que sejam, são apenas o derradeiro grau, a expressão mais aguda do simples fenômeno despercebido da sugestão que é a causa primária de cada manifestação psicológica, qualquer que seja. Só a intensidade varia; a natureza do fenômeno permanece sempre a mesma.

Por esta feliz intuição, Tarde e Sergi consideram a imitação de um grande número de indivíduos um fenômeno igual, ainda que mais agudo, ao da imitação de um indivíduo, ligam a imitação epidêmica à imitação esporádica e explicam-na ambas pela sugestão, cujas causas e condições revelam.

E vemos essa teoria confirmada por todas as formas, por todas as espécies da atividade humana.

Quem poderá negar a concordância que se dá entre o mestre e o discípulo e a imitação de um pelo outro — imitação que vem da simpatia e da admiração involuntárias e instintivas — o caráter de uma verdadeira sugestão? E quem poderá negar que essa concordância, estabelecida primeiro entre duas pessoas, é a forma primitiva, o embrião — se me é lícito dizê-lo — dessa sugestão que se estabelece mais tarde entre um indivíduo e um grandíssimo número; entre o chefe de uma escola científica, ou política, ou religiosa e os seus discípulos, os seus adeptos, os seus correligionários? Quem não compreende que essa sugestão epidêmica é o mais alto grau da primeira sugestão isolada?

E quem não quererá confessar que essa sugestão epidêmica pode crescer em extensão e em intensidade, se é favorecida por condições particulares de lugar e pelos caracteres particulares daquele ou daqueles que a excitam e a fazem agir?

As seitas políticas e religiosas chegam às vezes ao ponto de se converterem em verdadeiras loucuras epidêmicas: — os derviches árabes e índios nas demonomanias da idade-média, de que se encontram, ultimamente na Itália, os derradeiros rebentos(47); — os gritadores, os perfeicionistas, os sacudidores, da América do Norte(48), nos stundistas, nos chulaputas e nos scopzios da Rússia(49) — multidões guiadas por Judas, o gaulonita e por Teuda que precederam a revolução de Cristo(50) — as que impelidas por um estranho e doentio feiticismo por Klopstok precederam a Renascença na Alemanha(51); temos uma variedade infinita de epidemias morais, de psicoses epidêmicas, que, à primeira vista, nos surpreendem pelas atrocidades e pelas infâmias que cometeram mas que, bem examinadas, são apenas, no fundo, a exageração patológica do fenômeno da sugestão, que é a lei mais universal do mundo social.

E, como ao falar da vida normal, podemos subir da sugestão de um só indivíduo sobre outro, de um mestre sobre um discípulo, de um forte sobre um fraco, à sugestão de um só sobre um grande número, de um gênio do pensamento ou do sentimento sobre todos os seus contemporâneos, de um chefe de seita sobre os seus filiados; assim, ao falar da patologia, podemos subir da sugestão de um só louco sobre um outro louco, à sugestão de um louco sobre todos os que o rodeiam.

Isto é uma prova, não só de que a patologia segue as mesmas leis que a fisiologia, mas também de que o fenômeno da sugestão é universal.

Legrand du Saulle descreveu maravilhosamente o delírio de dois(52), essa forma estranha de loucura que provém do ascendente que um louco tem sobre outro indivíduo predisposto naturalmente ao contágio, o qual pouco a pouco perde a razão e toma o mesmo gênero de loucura que o seu instigador.

Estabelece-se então um vínculo de dependência entre os dois seres: um domina o outro; este é apenas o eco do primeiro; faz o que faz o outro; e a força imitadora é tal que sucede às vezes fazer compartilhar um das mesmas alucinações do outro(53).

Partindo desta loucura de dois (que representa, na patologia, a sugestão do mestre ao discípulo, do amante à amante, que se realiza no campo normal), sobe-se à loucura de três, de quatro, de cinco(54), que se realiza do mesmo modo que a loucura de dois. É sempre um louco que influi sobre os seus pais, sobre os que vivem habitualmente com ele, e que, pelo seu exemplo, comunica a esses indivíduos as suas idéias doentias assim como a perturbação dos sentidos; faz com que a consciência se obscureça pouco a pouco e deixa o campo livre à loucura que se reproduz exatamente sob a mesma forma que a sua ou de um modo mais ligeiro, mais pálido(55).

E, além destes verdadeiros casos de loucura múltipla e simultânea produzidos pela sugestão, todos os alienistas, conformes, atribuem ao louco uma força de sugestão — menos intensa, mas mais geral — sobre todos os que o rodeiam. — “Vivendo habitualmente com pessoas que pensam erradamente, que raciocinam mal, que procedem também mal, o nosso cérebro recebendo sem cessar a repercussão desregrada dos deles, tende a deixar-se ir nesse mesmo movimento, que, pela sua influência sobre as nossas faculdades intelectuais, nos arrasta a proceder como eles(56).

O próprio aspeto do doente, escreve Seppilli, as idéias que manifesta, suscitam no cérebro dos que o rodeiam as mesmas imagens psicológicas, sensoriais e motoras que podem transformar mais ou menos os indivíduos, conforme a sua intensidade e a sua duração”(57).

Antes deles, Maudsley escrevera a propósito da vida em comum com os loucos, o seguinte: “Ninguém pode contrair o hábito de ser inconseqüente nos seus pensamentos, no sentimento, na ação, sem que a sinceridade e a integridade da sua natureza não sejam atingidas e sem que a lucidez e a força da sua inteligência não tenham diminuído”(58).

Enfim, além do contágio geral, mas lento, sem que nos acautelemos, pouco intenso, há o contágio imediato, fulminante, entre os loucos, especialmente entre os epiléticos. É um fenômeno diferente dos que contei até aqui, mas a origem e a causa são as mesmas: a sugestão.

San Swieten observa que os movimentos convulsivos, que certas crianças manifestam, são reproduzidos por todos aqueles que têm a infelicidade de ser suas testemunhas(59); e ninguém ignora o fato do hospital de Harlem, em que uma rapariga atacada de epilepsia sugestionou instantaneamente a mesma doença a todas as outras doentes.

Este desenvolvimento paralelo do fenômeno da sugestão, — de uma para uma, de uma para várias, de uma para um grande número de pessoas — que vimos na loucura, verifica-se também no suicídio e no crime.

Quanto ao suicídio há o par suicida, — dois amantes, dos quais um persuade, sugestiona o outro para morrer com ele; — forma que se tornou muito freqüente na nossa época(60). Há o suicídio de três, de quatro, de cinco — famílias inteiras que, quase sempre, por causa da miséria a que estão reduzidas, se decidem a acabar com a sua vida. É ordinariamente o pai que tem a idéia do suicídio; comunica-a e fá-la aceitar pela mulher e pelos filhos. Posso citar dois exemplos típicos desta sugestão de suicídio múltiplo: o da família Hayem (pai, mãe e quatro filhos) que se suicidou com carvão aceso, no inverno de 1790, em Paris; e o da família Paul (pai, mãe e três filhos) que se suicidou em 1885, na Bretanha, atirando-se ao mar(61). — Há, finalmente, o suicídio epidêmico do qual poderemos citar bastantes exemplos; segundo Ebrard, as mulheres de Lião, desgostosas da vida, atiravam-se ao Ródano às duas e às três. Em Marselha, as jovens uniam-se para se suicidarem por amor(62).

Quanto ao crime, podemos repetir exatamente o que dissemos para o suicídio: há o par criminoso — o delinqüente-nato que sugestiona e corrompe o delinqüente de ocasião, tornando-o seu escravo, (íncubo e sucubo) (63); há a associação criminosa em que o chefe arrasta ao crime os novéis delinqüentes de ocasião, só pela força dá sua vontade e pelo império moral que exerce sobre eles; — é o caso de Lacenaire com Avril e com todos os demais do bando(64). Há, finalmente, a epidemia criminosa que se desenvolve principalmente entre os bandos numerosos dos criminosos, e nos crimes contra o pudor(65). Quando uma pobre moça é vítima de vários malfeitores, esses infames não se limitam a violá-la; basta que um deles tenha a idéia de algum terrível ultraje para que todos os seus companheiros o imitem logo, tomados de um verdadeiro delírio.

Foi o que sucedeu a uma pobre mulher que, depois de ter sido seqüestrada e violada por um bando de quinze tarados, teve ainda de suportar as mais obscenas facécias. Introduziram-lhe nas partes genitais fósforos acesos e enterraram-lhe alfinetes por todo o corpo. Um só desses criminosos dera o exemplo; os outros imitaram-no, logo, à porfia, cantando e dançando em torno da desgraçada(66).

E, sem procurar outros exemplos, julgo poder concluir que o quadro que fizemos das formas sugestivas da loucura, do suicídio e do crime, corresponde exatamente ao quadro das formas de sugestão no estado normal. Em todos esses estados de degeneração, como no estado normal, a sugestão começa de imitação, e pouco a pouco se desenvolve e se estende e chega às formas coletivas e epidêmicas, às formas de verdadeiro delírio, nas quais os atos são involuntários, realizados — direi quase — por uma força irresistível.

Ora, não é, portanto, evidente que essa sugestão que quisemos descrever, talvez demasiadamente, para mostrarmos a sua universalidade — deve ser também a causa das manifestações da multidão? Não é evidente que mesmo no seio de uma multidão, o grito de um único indivíduo, a palavra de um orador, o ato de algum audacioso, exerce uma sugestão sobre todos os que ouviram esse grito ou essa palavra, ou que viram esse ato; e leva-os — qual rebanho dócil — até às más ações? Não é evidente que é na multidão que a sugestão há de produzir o seu efeito mais poderoso, e passará instantaneamente da forma de dois à forma epidêmica, visto que, na multidão, a unidade de tempo e de lugar e a relação imediata entre os indivíduos levam aos últimos limites do possível a velocidade do contágio das comoções?

Espero que ninguém me responderá negativamente a esta pergunta; todavia, para fazer compreender melhor como a sugestão atua na multidão, isto é, de que modo uma qualquer comoção de medo ou de cólera, manifestada por um só indivíduo, se propaga numa multidão, quero referir-me aqui a algumas páginas esplêndidas de Alfred Espinas.

Encontraremos nelas — de um modo claro e precioso — a explicação fisiológica da psicologia da multidão.

O ilustre naturalista francês, falando das sociedades domésticas maternais, e, em particular, da sociedade das vespas, conta que, nestes animais, a divisão do trabalho faz-se de um modo perfeito e que há mesmo vespas exclusivamente encarregadas de velar pela segurança comum. O ninho é, com efeito, guardado por sentinelas que vigiam as circunvizinhanças, entram por ocasião de perigo e advertem as outras vespas, que saem encolerizadas e picam os seus agressores. — “Mas — escreve Espinas — como as sentinelas podem advertir os seus companheiros da presença de um inimigo? Dispõem, então, de uma linguagem bastante precisa para fazer comunicações? Não se vêem as vespas servirem-se das suas antenas para comunicar as suas impressões de uma maneira tão delicada como as formigas; mas no caso presente, toda a linguagem é-lhes, como vamos ver, inútil. Basta, para explicação do fato, que concebamos como uma comoção de alarme e de cólera se comunica de um indivíduo para outro. Cada indivíduo, apaixonado de súbito por essa rápida impressão, se lançará para fora e seguirá o entusiasmo geral; precipitar-se-á sobre a primeira pessoa que aparecer, de preferência sobre a que foge. Todos os animais são arrastados pelo aspecto do movimento. Resta, portanto, apenas dizer como as comoções se comunicam a toda a massa. Só pelo aspecto de um indivíduo irritado — respondemos. É uma lei universal em todo o domínio da vida inteligente, que a representação de um estado emocional provoca o nascimento deste mesmo estado naquele que é sua testemunha(67). Abaixo das regiões em que começa a inteligência, é necessário que as circunstâncias exteriores atuem isoladamente sobre cada indivíduo de uma maneira simultânea, para que haja acordo nas impressões sentidas; mas desde que a representação é possível, basta que um só seja excitado pelas circunstâncias externas para que todos o sejam igualmente quase em seguida. Com efeito, o indivíduo alarmado manifesta exteriormente o seu estado de consciência de uma maneira enérgica; a vespa, por exemplo, zumbe de um modo significativo, correspondendo nela a um estado de cólera e de inquietação; as outras vespas percebem-no e comparecem a este ruído; mas não podem comparecer sem que as fibras nervosas que nelas o produzem ordinariamente não estejam mais ou menos excitadas. É um fato psicológico fácil de observar nos animais superiores que toda a representação de um ato arrasta um começo de execução desse ato; a cabra a quem se apresenta uma porção de açúcar, o cão a quem se apresenta um pedaço de carne, lambem os beiços e salivam tão abundantemente como se os tivesse na boca. A criança e o selvagem mimam a cena que contam. E Chevreul mostrou que no estado de repouso perfeito basta que um homem adulto, um sábio, de espírito sereno, tenha a idéia de um movimento possível do seu braço para que esse movimento comece a efetuar-se mesmo contra a vontade. Não pensamos somente com o nosso cérebro, mas com todo o nosso sistema nervoso, e a imagem, invasora ao mesmo tempo, com o sentido que percebe, os órgãos que correspondem de ordinário à percepção, provoca-lhe inevitavelmente movimentos apropriados que só uma contra-ordem enérgica pode conseguir suspender(68). Quanto mais a concentração do pensamento é fraca, tanto mais os movimentos, nascidos deste modo, seguem impetuosamente o seu curso. As nossas vespas, vendo uma das suas entrar no ninho, e depois sair com vôo rápido, serão também atraídas para o exterior e pelo ruído produzido por ela, o seu zumbido corresponderá ao acordo. Daí uma efervescência geral de todos os membros da sociedade(69)”.

Esta descrição magistral de Alfred Espinas, explica-nos suficientemente — julgo — a psicologia da multidão.

Como nas vespas, como nas aves, de que um bando — ao menor bater das asas — é tomado de um pânico invencível, também nos homens uma comoção se espalha sugestivamente, por meio da vista e do ouvido, antes mesmo que os motivos sejam conhecidos; e o impulso vem da própria representação do fato imitado, do mesmo modo que, não podemos lançar um olhar para o fundo de um precipício sem ter a vertigem que nos atrai(70).

III

Mas, dirão, que tudo que tenho escrito até ao presente, basta para dar a explicação de certos movimentos, de certos atos de uma multidão, não, porém, de todos. Isso explica-nos porque se um aplaude, todos aplaudem; se um foge, todos fogem; porque uma comoção de cólera, sentida por um só indivíduo, reflete-se imediatamente sobre todos os rostos. Mas isso não nos explica porque essa cólera arrasta à ação má, ao homicídio; não basta para explicar como uma multidão chega aos extremos do assassinato e do massacre, às atrocidades sem nome de que temos, talvez, o mais terrível exemplo na revolução francesa. Em semelhantes casos, a teoria — que uma comoção se transmite por sugestão a uma multidão inteira, só pela vista desta comoção num indivíduo e que o impulso só resulta da representação do ato imitado, — é insuficiente. Não podem pretender que se mate uma pessoa unicamente porque se vê alguém matá-la ou fazer menção de matá-la; é necessário mais alguma coisa para fazer de um homem, um assassino.

Esta objeção, (que contém um fundo de verdade e prová-lo-emos) ofereceu-se já espontaneamente ao espírito dos autores que tentaram analisar as causas dos crimes cometidos por uma multidão. Sentiam confusamente que um ato de crueldade e de ferocidade não pode ser apenas produzido por circunstâncias, mas que deve ter a sua causa na constituição particular do organismo daquele que o comete.

“Que se passa no coração dos homens quando são assim coletivamente arrastados para o assassínio, para a efusão de sangue? Donde nasce esse poder imitativo que os subjuga e que os leva a destruírem-se assim, uns aos outros? O ponto culminante da investigação atém-se a uma disposição homicida primordial, a uma espécie de furor instintivo, funestos atributos da humanidade, que acha um poderoso auxiliar na tendência imitativa. Circunstâncias externas de toda a casta, atuando sobre essas potências virtuais, põem-nas em movimento e fazem-nas surgir na sociedade.

“Umas vezes, é a vista do sangue que faz nascer a idéia de o derramar; outras, é o proselitismo, o espírito de corporação, o espírito de partido, que chamam para seu serviço as paixões malignas de todo o gênero, e que armam a mão do homem para derramar o sangue; outras ainda, é uma imaginação continuamente excitada pelas solicitações de um temperamento irritável, que se perturba com a narrativa dalgum acontecimento sinistro, que se enfurece quando a publicidade se esforça por persegui-lo e que transforma num instante o homem mais tímido num verdadeiro animal feroz”(71).

E mesmo antes de Barbaste, Lauvergue recorrera a essa disposição homicida primordial para explicar os crimes da multidão. — “O órgão da imitação, — escreveu ele — é um dos que se apresentam em primeiro plano com os da combatividade e da crueldade. Em épocas de desordem e de revolução, todos os crimes que se cometem são obra desse três pontos de cérebro que matam, como senhores, na razão e na inteligência que lhes estão subordinadas. Então o homem que nasceu cruel arregaça as mangas e faz-se fornecedor da guilhotina. Terá por imitadores a multidão daqueles que queriam um modelo, um ato de audácia de que se sentiam capazes de executar. As vítimas serão os homens fracos e os carneiros, aqueles que os bons modelos, os bons exemplos de prudência e de razão, tornaram humanos e piedosos, nos quais os órgãos da crueldade e da imitação, se existiram neles fortes e preponderantes, cederam ao labor improbus da inteligência e do sentimento”(72).

É certo que o que dizem Barbaste e Lauvergne é verdadeiro, profundamente verdadeiro. Precursores longínquos da nova ciência da antropologia criminal dão à constituição fisiológica do indivíduo uma parte das causas dos fenômenos humanos, em vez de darem todas, sem distinção, à sociedade como querem ainda alguns.

Mas, antes de ter recorrido ao fator antropológico, julgo conveniente dar atenção a algumas outras considerações que explicam, se não por si só, pelo menos, principalmente, de que modo uma multidão pode ser arrastada a atos de ferocidade e de crueldade.

Devemos notar antes de tudo que a multidão está em geral mais disposta para o mal do que para o bem.

O heroísmo, a virtude, a bondade podem ser as qualidades de um só indivíduo; mas não são nunca, ou quase nunca, as qualidades de uma grande reunião de indivíduos. A observação mais vulgar ensina-nos isso: receia-se sempre de uma multidão de indivíduos, bastante raramente se tem confiança nela. Toda a gente sente e sabe por experiência que o exemplo de um homem perverso ou de um louco pode arrastar a multidão ao crime; bem poucos julgam e o que, com efeito, sucede raramente, que a voz de um homem de bem ou de um homem corajoso pode persuadir a multidão a estar calma.

A psicologia coletiva, como dissemos na introdução, é fértil em surpresas: cem, mil homens reunidos podem cometer ações que nenhum dos cem ou dos mil teria cometido estando só, mas estas surpresas são quase sempre dolorosas. De uma reunião de homens bons, não se obterá quase nunca um resultado excelente; obter-se-á muitas vezes um resultado medíocre, algumas vezes, até, um resultado muito mau.

A multidão é um terreno em que o micróbio do mal se desenvolve facilmente, ao passo que o micróbio do bem morre quase sempre, à mingua de encontrar condições de vida.

E isto por que?

Sem falar aqui dos diferentes elementos que compõem uma multidão, em que, junto de homens de coração vêem-se indiferentes e cruéis, e junto das pessoas honestas, vêem-se, na maioria das vezes, vagabundos e criminosos, li­mi­tan­do-nos sim­ples­mente, por agora, a uma observação geral, poderíamos responder à pergunta que nos foi feita, dizendo que numa multidão as boas qualidades particulares, em vez de se unirem, se suprimem.

Suprimem-se, principalmente, por uma necessidade natural, e direi até, aritmética. Como a média de muitos números não pode evidentemente ser igual ao mais elevado desses números, do mesmo modo um agregado de homens não pode refletir nas suas manifestações as faculdades mais elevadas, próprias de alguns desses homens; refletirá apenas as faculdades que se encontram em todos ou no maior número dos indivíduos. As últimas e melhores estratificações do caráter, diria Sergi, as que a civilização e a educação conseguiram formar nalguns indivíduos privilegiados estão eclipsadas pelas estratificações médias que são o patrimônio de todos: na soma total estas prevalecem e as outras desaparecem.

Sucede, na multidão, no ponto de vista moral, o que já notamos suceder em todas as numerosas reuniões, no ponto de vista intelectual. A companhia enfraquece — em relação ao resultado total — tanto a força do talento como os sentimentos caritativos.

Não queremos dizer com isto que a multidão seja incapaz de qualquer manifestação nobre e grande, quer do lado do pensamento, quer do do sentimento(73). Numerosos fatos aí estão para nos desmentirem, principalmente todos os que têm a sua origem no amor da pátria e que — desde os 300 das Termópilas até aos últimos mártires da independência italiana — formam, por assim dizer, na história, uma via sacra que prova por si própria que uma multidão pode, como um indivíduo, subir às alturas sublimes da abnegação e do heroísmo.

Quis somente frisar que a multidão é predisposta por uma lei fatal de aritmética psicológica, mais para o mal do que para o bem — do mesmo modo que uma qualquer reunião de homens é predisposta a dar um resultado intelectual inferior ao que deveria dar a soma das suas componentes. Há na multidão uma tendência oculta para a ferocidade, que constitui — posso dizer assim — o fato orgânico, complexo das suas futuras manifestações; e esse fator (como o fator antropológico no indivíduo) pode seguir uma direção boa ou má, conforme a ocasião e conforme a sugestão que lhe é imposta pelas condições externas.

Do mesmo modo que uma assembléia, que representa um conjunto intelectualmente medíocre, pode chegar, em certos casos, a compreender uma idéia de gênio ou um sentimento nobre, se alguém o sabe expor(74), também uma multidão que representa um conjunto moralmente medíocre e mesmo baixo, pode chegar em certos casos a cometer ações heróicas se encontra o apóstolo ou o capitão que a saiba conduzir. A vulgaridade, no primeiro caso, e a crueldade, no segundo, podem, portanto, transformar-se em pensamentos e sentimentos melhores ou até excelentes, pela ação do orador ou do chefe — daquele enfim que é o árbitro do que fizer a multidão.

Esta condição da massa foi exposta por Pugliese numa magnífica comparação: “Uma multidão está excitada, mas a força que a agita qual mar revolto, não recebeu ainda o impulso do movimento; — uma caldeira está sob a pressão, mas não se abriu ainda a válvula que deve deixar passar o vapor; — uma porção de pólvora está exposta ao sol, mas ninguém lhe largou fogo para a fazer explodir. Surge um homem, manifesta-se uma idéia, dá-se um grito: — vamos matar fulano, inimigo do povo, ou: vamos libertar cicrano, amigo dos pobres — e o movimento fez-se, a válvula abriu-se, a pólvora explodiu. É a multidão”.

Spencer tem também uma frase em que podemos ver, se a aplicamos à multidão, a mesma idéia da comparação de Pugliese: “As palavras, diz o filósofo inglês, têm com o abalo moral que excitam, uma relação que se assemelha muito à que a pressão do gatilho de uma arma de fogo mantém com a explosão que a segue: não produzem a força, põem-na em liberdade”(75).

Portanto, na multidão — como no indivíduo — toda a manifestação é devida às duas ordens de fatores, antropológicos e social(76); — a multidão pode ser em potência, o que quiserem, mas é a ocasião, que há de fazer nascer tal ou tal acontecimento. Há todavia a seguinte particularidade: que a ocasião isto é, a palavra ou o grito de um homem, tem, perante a multidão, uma importância infinitamente superior à que ela tem perante um só homem. O indivíduo isolado — na sociedade, no estado normal — é sempre, mais ou menos, uma matéria pouco inflamável; aproximem dele uma mecha; arderá mais ou menos lentamente e talvez se extinga(77). A multidão, pelo contrário, está sempre como a pólvora seca: se aproximam a mecha, a explosão não pode deixar de dar-se. A ocasião tem, portanto, na multidão, o terrível do irreparável(78).

Após todas estas considerações, poder-se-á julgar prejudicado o princípio já exposto — que a multidão é um terreno no qual o micróbio do bem morre muitas vezes, e no qual, pelo contrário, o micróbio do mal brota facilmente. Visto que dirão, tudo depende da ocasião, e que ela pode ser boa ou má, as probabilidades para os resultados opostos são iguais.

Não é porém assim.

Se é verdade que tudo depende da ocasião, não é menos verdade que a ocasião é na maioria das vezes mais má do que boa.

E isto por esta grande razão: sendo dado na multidão um número igual de pessoas que quer conduzir-se para o bem, e outro que quer arrastar-se para o mal, as deste último terão, na maioria dos casos, a primazia. A perversidade é uma qualidade mais ativa do que a bondade; porquanto a classe dos maus é composta daqueles que querem fazer mal aos outros, ao passo que a classe dos bons é composta daqueles que não farão nunca mal a ninguém, (os passivos) e daqueles que não só não farão mal, mas que querem fazer bem e que o fazem. Ora, é fácil compreender que os bons passivos não podem influenciar uma multidão e dirigi-la; as suas qualidades negativas tornam-nos instrumentos cegos de quem souber tomar a primazia.

Quanto aos bons ativos (permitam-me estas expressões que tornam exato o meu pensamento) o seu poder encontra bastantes dificuldades porque se tentam impor-se, reagir contra os conselhos dos maus, se procuram restabelecer o sossego, verão muitas vezes as suas palavras mal interpretadas, e serão acusados de pusilanimidade e doutras coisas piores. É por isso que, se se atrevem a reagir uma primeira vez, não tentarão a segunda, e a sugestão daqueles que querem fazer nascer alguma coisa de sério, de grave, não encontrará mais nenhum obstáculo. Quantos não há que numa sublevação popular gritam viva ou morra, porque receiam que, se se calarem, os seus vizinhos os acusem de covardes e espiões! E quantos, pelas mesmas razões, passam dos gritos a atos! É necessário uma força de caráter pouco comum para reagir contra os excessos que comete a multidão de que fazemos parte; e bem poucos possuem esta força. A maior parte dos indivíduos compreende que procede mal, mas fá-lo porque a multidão impele e coage a isso. Sabem que se não seguirem a corrente chamá-los-ão vis e serão vítimas da cólera doutrem. E o medo material de ser maltratados ou feridos une-se ao medo moral de ser tratados por covardes.

Alexandre Manzoni, nos Noivos, tem uma esplêndida página que descreve essa impossibilidade moral e física, a que se acham reduzidos os bons na multidão, de reagir contra a maioria que corre loucamente a cometer ações criminosas:

”... era um movimento contínuo, impelia-nos, atraía-nos, havia como que uma sociedade, uma incerteza, uma irresolução, um zumbido contínuo de contraste e de conselhos. De repente, uma voz sai do meio da multidão, uma maldita voz que grita: “Há aqui perto a casa do vigário; vamos fazer justiça e saquear”. Pareceu que se reavivava de súbito a lembrança de uma convenção já feita, em vez da aceitação de uma proposta do momento. — “A casa do vigário, a casa do vigário”; não se ouvia outro grito. A multidão põe-se a caminho como um só homem e dirige-se à casa indicada numa tão má ocasião. — “Ao vigário! ao tirano! Queremo-lo vivo ou morto!” Renzo encontrava-se no centro do tumulto. Mal ouviu esta proposta sanguinária apoderou-se dele o terror; quanto à pilhagem não poderia dizer se era boa ou má neste caso, mas o pensamento do homicídio causava-lhe verdadeiro horror. E posto que por essa funesta docilidade dos espíritos apaixonados perante a paixão de um grande número, ficasse mais que persuadido que o vigário era a causa principal da fome, o inimigo dos pobres, todavia, tendo ouvido, por acaso, pouco antes na multidão, algumas palavras que indicavam o desejo de se fazer tudo que se pudesse para o salvar, prometera logo a si próprio ajudar a uma tal obra... Um velho, arregalando os olhos encovados e chamejantes, brandia no ar um martelo, uma corda e quatro grandes pregos, com que, dizia ele, queria pendurar o vigário à sua porta, logo que estivesse morto. — “Que ignomínia!” exclama Renzo aterrado por essas palavras e pelo aspecto de um certo número de votos que pareciam aprová-las, e animado por outros que se calavam, deixando simplesmente perceber o mesmo terror que ele tinha. — “Que ignomínia! queres então que nos tornemos carrascos? Assassinar um cristão! Como querem que Deus nos dê pão se cometemos destes horrores? Despedirá raios em vez de pão!” — “Ah cão! ah traidor da pátria!” exclamou, voltando-se para Renzo como um possesso, um dos que puderam ouvir, apesar do barulho, essas boas palavras. — “Olha! olha! É um servo do vigário mascarado de camponês; é um espião; agarrem-no!” Cem vozes prorrompem em torno dele: “Que é? Onde está? Quem é? Um servo do vigário. Um espião. O vigário mascarado de camponês, que foge. Onde está? Agarrem-no e cheguem-lhe!” Renzo cala-se, encolhe-se, bem quer desaparecer; alguns dos que o rodeiam escondem-no no grupo, e procuram confundir as vozes inimigas e homicidas com outros gritos mais fortes. Mas o que o salvou foi um “arreda! arreda!” que bradam perto dele...”

Há uma infinidade de pessoas que se encontram no caso de Renzo. E, se a comparação não parecesse um pouco ousada, diria que a maioria das pessoas honestas que se encontram no meio de uma multidão furibunda, deve quase fatalmente por uma lei de mimetismo psíquico, conduzir-se como os que a rodeiam.

Assim como há animais que para se apagarem aos olhos dos inimigos e melhor defenderem-se deles tomam a cor do meio em que vivem(79), assim também os homens que se encontram numa multidão, para evitar que os insultem e que lhes batam, tomam a cor moral daqueles que os rodeiam, isto é, gritam tudo que os outros querem e fingem seguir a corrente.

Se é realmente assim, não é difícil compreender porque as paixões más têm primazia na multidão e as boas intenções do menor número.

Mas, além das considerações que já vimos, há uma que explica melhor ainda a vitória dos instintos brutais.

Demonstramos, assim o julgo pelo menos, o modo por que uma comoção qualquer sentida e manifestada, por um só indivíduo, se propaga imediatamente a um grande número. Suponhamos que essa comoção é de furor ou de cólera; num instante, o rosto e as maneiras de cada indivíduo tomarão uma expressão de cólera que terá alguma coisa de intenso e de trágico.

Não devemos julgar que esta expressão é só aparente: a comoção real segue sempre os atos que a exprimem, mesmo quando esses atos não são, no começo, senão demonstrações aparentes. Não podemos fingir, somente por nossa vontade, uma comoção que não experimentamos; mas não podemos ficar indiferentes perante uma comoção que simulamos externamente.

Visto que todo o estado intelectual é acompanhado por manifestações físicas determinadas, que não são apenas os seus efeitos e os seus sinais, mas — como diz Ribot — as condições necessárias e os elementos constitutivos, e por conseqüência, entre um estado intelectual e as suas manifestações externas, neste sentido, que um não pode nascer sem produzir imediatamente os outros e vice-versa.

— “Quando de olhos fechados, diz Lange, pensamos num lápis, fazemos primeiro um pequeno movimento de olhos que corresponde à linha reta, e muitas vezes sentimos uma leve alteração nos movimentos da mão, como se tocássemos num lápis”(80).

__ “Para as expressões abstratas, Stricker demonstrou de um modo seguro a existência da palavra interior; e cada qual pode sentir ao examinar-se com atenção, que quando pensa nalguma coisa abstrata, pronuncia silenciosamente, para si própria, a palavra que a representa ou, pelo menos, sente-se levado a pronunciá-la”(81). — Bain dizia, de fato, resumindo numa só frase a idéia exposta por Lange e por Stricker que — pensar quer dizer parar de falar e de proceder(82).

Além disso, mais de mil experiências provam que o movimento é inerente à imagem. — “As pessoas que se deitam a um abismo, com medo de cair; as que se cortam com a navalha de barba com receio de cortar-se, e a célebre leitura dos pensamentos — que não é outra coisa senão a leitura de estados musculares, — parecem estranhas ao público, porque ignora este fenômeno psicológico elementar: — que cada imagem encerra uma tendência para movimento”(83).

Reciprocamente, cada movimento encerra uma tendência para uma imagem qualquer. Foi dito que o pensamento não é senão uma ação abortada. Julgo poder dizer analogamente que — o ato externo é um pensamento que nasce.

A especial ação muscular — diz esplendidamente Maudsley — não é somente o expoente da paixão, mas muito principalmente uma parte essencial de si própria. Exprimam pela fisionomia uma determinada comoção — a da cólera, do espanto, da malvadez — e a comoção assim imitada não deixará de despertar-se; e enquanto as feições do rosto exprimem uma determinada paixão, é inútil e vão procurar experimentar outra qualquer(84).

Espinas escreveu de um modo análogo: “Da mesma maneira que o homem que empunha um florete num assalto amigável se anima com o jogo e experimenta parte dos sentimentos que teria numa verdadeira luta, da mesma maneira o sujeito magnetizado passa por todos os estados correspondentes às posturas que o obrigam a tomar, ensoberbecendo-se quando o fazem erguer-se, humilhando-se quando o fazem baixar, assim também os animais experimentam rapidamente as comoções, cujos sinais externos reproduzem. O macaco, o gato, o cão, simulando-lhes à sua vista um combate, tornam-se, logo, verdadeiramente coléricos — tanto maior conexão há entre os atos e as atitudes que exprimem geralmente um estado de consciência, e esse próprio estado de consciência, quanto essas duas metades de um só e mesmo fenômeno se engendram facilmente uma pela outra”(85).

Ora, é claro que uma multidão, na qual se produz uma comoção de cólera ou de furor, será num instante, não só excitada externamente, mas também realmente irritada(86). É bem fácil compreender então como, antes mesmo de ter recorrido ao fator antropológico, pode chegar ao crime.

Todos os indivíduos, que fazem parte de uma multidão, estão numa condição psicológica análoga à de um indivíduo provocado e ofendido pessoalmente. É por isso que o crime que cometerem não será um ato selvagem incompreensível, mas antes uma reação (justa ou injusta, mas em todo o caso natural e humana) contra a causa, ou o que julgam ser a causa, dessa provocação que sentiram por contágio.

O fator antropológico terá certamente a sua parte nesse crime, mas o motivo principal não será menos o estado real de cólera e de irritação da multidão. Este estado de cólera torna os crimes da multidão semelhantes em tudo, aos dos delinqüentes de ocasião, que — como se sabe — não chegam ao crime senão quando são impelidos a isso pelas circunstâncias ou pelas provocações externas.

Levantamos, portanto, o primeiro véu do mistério dos crimes imprevistos da multidão: entrevemos agora as razões por que elas os cometem. Uma derradeira consideração nos ajudará a explicar ainda melhor esse fenômeno.

É uma lei psicológica de uma verdade incontestada que a intensidade de uma comoção cresce na proporção direta do número das pessoas que a compartilham no mesmo lugar e ao mesmo tempo.

É esse o motivo do alto grau de frenesi a que sobe às vezes o entusiasmo ou a desaprovação, num teatro ou numa assembléia.

Ter-se-á um exemplo e uma prova do que afirmamos, se quisermos examinar o que sucede numa sala em que fala um orador. — “Suponhamos que a comoção sentida por esse orador pode ser representada pelo número 10, e que às primeiras palavras, ao primeiro rasgo da sua eloqüência, comunica, pelo menos, a metade de cada um dos seus ouvintes, que serão 300, por exemplo. Cada qual reagirá por aplausos ou por redobramento de atenção; e isto produzirá o que se chama nas notícias um movimento (sensação). Mas esse movimento será sentido por todos ao mesmo tempo, porquanto o ouvinte não está menos preocupado com o auditório do que o orador, e a sua imaginação é repentinamente invadida pelo espetáculo dessas trezentas pessoas emocionadas, espetáculo que não pode deixar de produzir nele, segundo a lei enunciada há pouco, uma comoção, e vejamos o resultado. O choque sentido por ele será representado, não por 5, mas pela metade de 5 multiplicada por 300, isto é, 750. Se aplicarmos a mesma lei ao que está de pé e que fala no meio dessa multidão silenciosa, não será já o número 750 que exprimirá a sua agitação interior, mas 300 vezes 750 visto que é o foco em que todos esses indivíduos profundamente comovidos emitem as impressões que lhes comunica”(87).

É certo que, numa multidão, a comunicação das comoções não se realiza de todos para um só; não apresenta portanto esse caráter de concentração orgânica.

O concurso é tumultuoso e uma grande parte das comoções — devemos convir — não podendo ser sentidas por todos, não têm eco. A intensidade da comoção não oferece já então uma relação igual ao número dos indivíduos e a aceleração dos movimentos apaixonados é muito menos rápida. Mas a lei geral não é menos verdadeira.

Manifesta-se de um modo menos determinado, menos claro, mais incerto; mas esta incerteza mesmo, e essa confusão terão o seu efeito. Cada grito, cada murmuração, cada ato, justamente porque não é nem ouvido, nem interpretado exatamente, produzirá um efeito mais grave que talvez não deveria realmente produzir(88). Cada indivíduo sentirá exaltar-se a sua imaginação, tornar-se-á mais dócil a qualquer sugestão, e passará da idéia à ação com rapidez que é deveras para surpreender.

“Quanto mais superfície sobre que se estende uma influência se torna heterogênea — escreveu Spencer — tanto mais o número e a espécie dos resultados são multiplicados por um fator elevado”(89).

Estamos então na presença do fenômeno que Enrico Ferri chama fermentação psicológica: os fermentos de todas as paixões subirão das profundidades da alma; e, como reações químicas entre várias substâncias, obtêm-se substâncias novas e diferentes; assim, pois, das reações psicológicas, entre muitos sentimentos diferentes, nascerão comoções novas e terríveis, desconhecidas até então à alma humana(90).

Sendo impossível em semelhantes casos, não só raciocinar, mas ver e ouvir exatamente, os fatos mínimos tomam proporções enormes, e a menor provocação leva ao crime. É em tais casos que o inocente é condenado à morte pela multidão sem mesmo ser escutado, porque — como diz Maxime du Camp — “a suspeita basta, todo o protesto é inútil, a convicção é profunda(91).

É pois, natural concluir que a irritação e a cólera da multidão, — que demonstramos serem não só aparentes, mas sentidas realmente, — tornar-se-ão num curto espaço de tempo, só pela influência do número, um verdadeiro furor. Não se ficará, depois disto, admirado por ver a multidão cometer os crimes mais horríveis.

Esta terrível influência do número que é, julgo, intuitiva para todos(92) e que tentamos explicar, é sustentada pelas observações de todos os naturalistas. É uma coisa conhecida que a coragem de um animal aumenta na razão direta da quantidade de companheiros que sabe ter perto dele; e diminui na razão direta do isolamento maior ou menor em que encontra(93).

A sanção mais clara da lei — que a coragem dos combatentes é proporcional ao seu número — foi dada por Forel com uma experiência feita e contada por ele na sua magnífica obra sobre as formigas. Apartou sete indivíduos dos dois exércitos de formigas pratenses envolvidas em combate, das quais quatro eram de um campo e três doutro; pô-las em seguida numa mesma vasilha. As sete formigas, dantes irritadas e que combatiam umas contra as outras, tornaram-se amigas.

Que maior prova de que é o número que faz brotar na multidão os instintos de crueldade e de prazer pelo combate?


CAPÍTULO II
AS MULTIDÕES CRIMINOSAS

 

I

As observações gerais que até aqui temos feito eram necessárias para fazer compreender bem, que estranha e terrível força íntima tem uma multidão dentro de si.

Devemos examinar agora, segundo os fatos, não só como essa força íntima se manifesta, mas também se entram outros fatores na produção dos crimes de uma multidão, e quais são. É só depois desta pergunta que fizemos no começo desta obra, isto é: qual a forma de reação social que melhor convém a estes crimes?

Devemos, antes de tudo, abandonar por um instante o estudo psicológico da multidão que, reunida e fremente, só espera a faísca que deve fazer eclodir todas as energias que contêm em estado potencial. Devemos elevar-nos a consideração de natureza diferente e que pertencem mais à sociologia do que à ciência mais ligada à psicologia coletiva. Devemos examinar qual é, no presente, a condição normal do povo, quais são os seus sentimentos, as suas idéias, as suas necessidades. Do mesmo modo que se não pode julgar um criminoso, examinando somente a sua conduta em relação ao crime cometido, mas é necessário investigar quais eram as suas disposições de espírito, o seu caráter e as suas condições econômicas, — assim também não pode julgar-se o crime de uma multidão, se não se conhecem as aspirações e as tendências, numa palavra, o estado material e moral do povo, de que essa multidão é apenas uma parte.

É certo que esta análise, relativamente fácil de fazer sobre um indivíduo, oferece grandes dificuldades quando se trata de uma sociedade inteira. Há, entre os dois casos, a mesma diferença que entre escrever uma biografia ou uma história. Compreende-se bem que não se trata aqui de fazer um estudo minucioso e completo (e não teríamos, aliás, nem os conhecimentos nem o talento necessário para o conseguir), mas lançar um relance de olhos sobre os principais caracteres da época, para se fazer uma idéia, tão exata quanto possível, da condição psicológica permanente desse povo que amanhã, talvez, por um acaso qualquer, — reunir-se-á em multidão para cometer crimes.

O observador menos perspicaz não pode negar que há no presente como que um frêmito de revolta no povo. A consciência contemporânea dos operários, e aqui e ali, nos camponeses proletários, sente que surgiu uma nova classe; e visto que as liberdades políticas da época deram o poder absoluto ao número, substituindo o direito divino dos reis pelo da maioria(94), esta classe, vendo-se a mais numerosa, pede, com uma lógica que as outras classes lhe ensinaram, muito mais direitos e privilégios do que tem tido até ao presente(95).

É neste pedido, simples e humano — que foi na história a origem de todos os progressos e que correspondem socialmente ao instinto de conservação de todo o organismo individual, — que está a fonte primária, e mesmo única, de todas essas idéias políticas, mais ou menos exageradas, que se propagam cada vez mais e se insinuam na consciência e no cérebro dos camponeses e dos operários, os quais ignoravam até aqui os seus direitos, graças aos despotismos igualmente terríveis da religião e dos governos absolutos.

Um grande número de escritores atribue o descontentamento e a agitação do povo a essas idéias, — que vão por graus indistintos do radicalismo à anarquia — e julga que se não houvesse indivíduos que se fizeram e se fazem os apóstolos e os clamadores dessas idéias, o povo do campo e as classes operárias das cidades viveriam ainda tranqüilas e contentes da sua condição, sem pensarem numa melhor.

Não nego que estas idéias tenham feito crescer os seus desejos; nada é mais perigoso do que um grande pensamento num pequeno cérebro, disse Taine, e é certo que a grandeza das aspirações socialistas. pode ter contribuído para fazer perder o equilíbrio intelectual e moral a muitos daqueles que, tendo mui poucos conhecimentos ou nenhuns, e muita miséria, aceitam por necessidade com entusiasmo qualquer teoria que lhes promete mais do que outras, o bem-estar material(96). Admito também, ainda que muito relativamente, que essas idéias fizeram adquirir a alguns — como disse um conservador italiano — mais presunção do que convicção, mais tentações do que calma, mais cobiça do que fé(97).

Mas julgo que é um erro, e dos mais fatais, considerar que essas idéias são a causa única da fermentação que agita as classes inferiores. Depende de causas bem mais afastadas e profundas, e infelizmente, bem mais difíceis de destruir do que as teorias de um partido político ou de outro; depende da crise social que nos oprime e que é tanto mais dolorosa quanto a nossa sensibilidade é maior e quanto o progresso nos deu mais necessidades.

Falar contra o perigo de certas doutrinas políticas, atribuindo-lhes o suscitar no povo queixas que não teria feito, é a mesma coisa que falar contra a imoralidade de certas doutrinas científicas, acusando-as de perverter o público, ou contra a imoralidade da arte naturalista, acusando-a de tornar os costumes piores(98). Estas três formas de atividade intelectual não têm outro fim senão representar a verdade; mas visto que certas classes da sociedade egoísta e hipócrita não querem reconhecer a verdade, elas acusam aqueles que a revelam de a pintarem feia, em vez de admitirem que ela é tal na realidade. — “Ah! senhor, — dizia, em 1850, Beyle, que se ocupava deste mesmo assunto, no ponto de vista literário, — um livro é um espelho que se coloca diante de uma grande estrada. Ora reflete o azul do céu, ora a imundície do lodaçal da estrada. E o homem que traz o espelho no seu cesto poderá ser acusado de imoral? O seu espelho mostra a imundice e acusam a este de imoral? Acusem antes a estrada onde está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa estagnar a água e formar-se o lodaçal”(99).

Não repitamos, portanto, a tola acusação que se faz àqueles que levantam o véu das numerosas injustiças sociais; eles não fazem senão constatar a verdade; e se é dolorosa, quem tem culpa? Sthendal disse-o claramente: “Acusem a estrada e mais ainda o inspetor das estradas”.

É necessário, todavia, convir que não se limitam sempre a demonstrar o mal que existe e a propor corrigi-lo de uma maneira justa e gradual. Há indivíduos que aconselham os remédios violentos e criminosos e são esses, dizem, que excitam os proletários contra os ricos.

Evolucionista por alma, não posso aprovar os que querem fazer triunfar uma idéia pela violência: — a violência e a verdade, disse Pascal, são duas forças que não têm nenhum poder uma sobre a outra: a verdade não pode dirigir a violência, e esta nunca serviu ultimamente a verdade(100). “Julgo, todavia, que se exagera a influência de certas teorias perigosas, quando as expõem apenas em teoria(101). Podem escrever em todos os jornais do mundo que é necessário tirar o supérfluo àquele que o possui, mas essa palavras não convencerão senão o operário que estiver já antropologicamente disposto para o roubo; não exercerão nenhuma influência no homem honesto, porquanto “o homem atua conforme o que sente e não conforme o que pensa”(102).

Portanto, todas as teorias, mesmo as mais ferozes, valem bem pouca coisa na nossa dinâmica moral(103); o que vale alguma coisa, é o nosso sentimento. E é o sentimento que diz, não só aos proletários, mas a todos os homens, que sofremos todos, por causa de um ou de outro ou da fatalidade, das injustiças morais e materiais. Essas injustiças, é verdade, são maiores de indivíduos, mas se são diferentes objetivamente não são sempre subjetivamente. A delicadeza de sentimento varia conforme as classes de indivíduos; em geral, os indivíduos e as classes que têm a suportar males ligeiros, na realidade, têm uma sensibilidade muito mais sutil.

As dificuldades econômicas ferem tanto os ricos como os proletários; e com o mal-estar econômico surgem bastantes sofrimentos, bastantes desgraças que não poupam ninguém e dão a todos o direito de se queixarem.

Ora, se tudo isto é verdadeiro (e julgo não ser possível negá-lo), se são realmente os sofrimentos e as injustiças que descontentam o povo — e não as teorias deste ou daquele, que poderão, quando muito, irritá-lo — não deveremos ter um pouco de indulgência para as súbitas expansões do povo?

As plebes reclamantes, como as apelidou Ellero em pleno Senado, formam uma grande parte da multidão criminosa; e os seus sofrimentos são uma causa remota, mas que não devemos esquecer, dos excessos a que ela se entrega.

Sucede com as sublevações e tumultos o que sucede entre amigos, quando um deles habitualmente tranqüilo e silencioso faz uma cena por uma qualquer futilidade. — Mas por que se zanga? Não tinha realmente nenhum motivo para isso! — exclamam alguns. — Ah! não sabem! Tem tantos desgostos lá por casa! — respondem os mais íntimos.

O povo há de também sofrer muito em suas casas, e quando a ocasião se apresenta, o seu descontentamento estala.

Entre as causas que determinam os crimes de uma multidão, não devemos, portanto, esquecer essa predisposição permanente do povo, que desculpa pelo menos a intenção das suas expansões imprevistas.

II

Dissemos, no fim do capítulo precedente, que o número aumenta a intensidade de uma comoção, e, segundo Espinas, demos a prova matemática desse fenômeno, que é, aliás, intuitivo(104). Devemos acrescentar agora que o número não tem somente este efeito aritmético, mas que é, além disso, por si próprio, a fonte de novas comoções. O número dá, de fato, a todos os membros de uma multidão onipotência. Sabem que podem fazer valer a sua onipotência sem obstáculos, que se não poderá nem julgá-la, nem puni-la; e esta segurança anima-os a cometer as ações que eles próprios condenam, sentindo-as injustas.

Toda a ditadura deve ne­ces­sa­ria­mente chegar ao arbítrio e à injustiça, porquanto é uma lei psicológica que quem pode tudo a tudo se atreve(105).

Poter mal far, grande é al mal fare invito“, disse Alfieri.

É pois natural que cem mil, dois mil indivíduos reunidos por acaso, que conheçam a sua forca, que se vêem de repente senhores de uma situação, julguem ter o direito de serem juízes e, às vezes até, carrascos. “A onipotência súbita e a licença de matar — escreve Taine — são um vinho muito forte para a natureza humana; a vertigem aparece, o homem vê vermelho e o seu delírio acaba pela ferocidade”(106).

Em semelhantes momentos, as paixões mais brutais e mais ferozes tomam novas expansões; vê-se aparecer de repente o selvagem, sob as aparências do homem civilizado e para explicar este fenômeno, é-nos necessário recorrer quase forçadamente à hipótese já indicada por Barbaste e Lauvergne, de um despertar súbito desse instinto homicida primordial como o fogo assolapado sob a cinza, e que só espera a faísca para rebentar(107).

É certamente a isto, fora as outras cousas externas já assinaladas, que devemos atribuir os crimes de uma multidão. Porquanto, se a descrição do caráter, como fez Sergi(108), é positivamente verdadeira e não só uma bela comparação, é também lógico e natural supor que as camadas mais baixas do caráter saltem repentinamente, quando uma tempestade psicológica põe o nosso organismo fora dos eixos”(109).

“Não é todavia impunemente que um homem, sobretudo um homem do povo a que longos séculos de civilização ensinaram a compaixão, se torna de repente soberano e ao mesmo tempo carrasco. Por mais que seja impelido ao crime pelo seu instinto selvagem que despertou nele; por mais que se exalte contra as suas vítimas enchendo-as de ultrajes e de injúrias; sente, no entanto, vagamente, que comete uma enorme ação e a sua alma, como a de Macbeth, “está cheia de escorpiões”.

“Mas então, por uma terrível contradição ergue-se contra a humanidade hereditária que estremece nele; resiste, exaspera-se, e para abafá-la, não tem outros meios senão “saciar-se de horrores” acumulando os assassinatos. Porquanto o assassinato, sobretudo tal como o pratica, isto é, à arma branca em pessoas desarmadas, introduz na sua máquina animal e moral duas comoções extraordinárias e desproporcionadas que a alvoroçam, — de um lado a sensação da onipotência exercida sem exame, obstáculo ou perigo sobre a vida humana e sobre a carne sensível — de outro lado, a sensação da morte sangrenta e variada, como o seu acompanhamento sempre novo de contorsões e de gritos”(110).

É assim que escreve Taine, mas não é sempre verdade que o homem queira e sobretudo possa revoltar-se contra a voz interior que o aconselha a ser humano e compassivo; não é sempre verdade que o ceda ao instinto homicida.

Se é verdade que a multidão comete algumas vezes as atrocidades que a imaginação mais exaltada nunca pensou ou sonhou, é verdade também que às vezes não comete os crimes monstruosos que poderia cometer.

Junto da multidão cega, brutal, indomável, que perdeu o sentimento do justo e do injusto e que está possuída de loucura furiosa, há também a multidão que não passa de certos limites, que se arrepende depois de ter cometido um crime e que segue os conselhos daquele que a torna calma.

A história de todas as revoluções, pequenas ou grandes, políticas ou religiosas ou econômicas, dá-nos disso a prova. E essa diversidade de manifestações demonstra-nos implícita e claramente que os crimes de uma multidão não têm só por causas a sugestão, a influência do número e a embriaguez moral (tão magistralmente descrita por Taine) que resulta da vitória instantânea do ativismo sobre a obra lenta de uma educação secular.

Há outras causas e resultam da constituição particular das diferentes multidões; do caráter diferente dos indivíduos que as compõem, às vezes, profundamente honestos, outros arrastados pela sua própria natureza, ao crime.

É destas causas, da sua importância e da sua eficácia, que vamos ocupar-nos, examinando as diferentes manifestações criminosas que se dão na multidão, em diversos casos.

III

Falaremos antes de tudo da multidão, que com rapidez espantosa chega a cometer os mais atrozes atos da ferocidade e de crueldade. Exemplo algum há melhor do que os que dão alguns episódios da Revolução francesa.

O povo era então um animal feroz, insaciável, na sua sede de rapina e de sangue. Pessoa alguma, nada podia pôr um freio ao seu furor; depois de ter aliviado o seu instinto sanguinário e feroz, desencadeava-se mais terrível e mais horroroso do que nunca.

Mas era realmente só a influência do número e o despertar repentino do instituto homicida que o impeliam aos extremos, a ponto de fazer-lhe cometer semelhantes excessos? Era realmente um povo de operários e de camponeses honestos que se tornava repentinamente um monstro de perversidade? Ou não se teriam misturado nele, para o corromper, todos os indivíduos que constituem as baixas camadas sociais — o terceiro sub-solo, diria Victor Hugo — e que a cada sublevação e a cada revolta saem das tabernas e dos maus lugares onde se ocultam habitualmente, do mesmo modo que, quando se agita a água de um tanque, toda a lama que está no fundo sobe à superfície?

“Nas épocas de tranqüilidade, quando as paixões políticas apaziguadas não dão todos os dias assalto ao poder, a administração da política exerce sobre os rufiões, os vadios, os vagabundos, sobre toda essa gente ignóbil um império moral que os retém um pouco. Só vivem ocultando-se, a aproximação dos agentes fá-los fugir. Mas se sobrevém um despertar da opinião, se a imprensa quotidiana se torna agressiva contra a autoridade, se empreender uma campanha contra a legalidade dos atos do chefe de polícia, imediatamente essa gente torna-se-á arrogante e levantará a cabeça. Resistirá aos agentes e lutará contra eles; tomará parte em todas as sedições, e se a atinge uma nova lei, considerar-se-ão todos umas vítimas políticas. Sobrevém uma revolução, eles e as amantes que arrastam consigo tornar-se-ão os agentes mais cruéis e mais terríveis”(111).

— “A classe das pessoas sem profissão — acrescenta Gisquet — (classe numerosa, composta de homens quase sem asilo, cujas tendências viciosas sacudiram o peso das leis e da moral; numa palavra, o que Guizot chama com razão o caput mortuum da sociedade), — não apresenta, relativamente ao número, senão uma mínima fração da população; mas tendo em conta as predisposições que, principalmente, a mandrice e a miséria engendram, calculando as más paixões que elas fermentam, é nisso que jaz a força brutal que ameaça destruir tudo. Esta massa de indivíduos de má reputação recruta-se incessantemente e aumenta nas épocas de perturbações com aventureiros, homens tarados, perdidos de dívidas e de reputação nos departamentos e que vêm procurar um refúgio em Paris. Podemos ainda acrescentar, sem injustiça, alguns freqüentadores de tabagies, de maus lugares, numa palavra, os maus indivíduos de toda a casta; e quando a turba impura for posta em movimento pelas paixões políticas, vêm reunir-se-lhe os homens de imaginação desordenada, que sentem a necessidade de comoções fortes, e que as encontram nos dramas da rua, nas agitações populares”(112).

Todos sabem por experiência quanto isto é verdadeiro. Quando se vê alguma tempestade política despontar no horizonte, e uma animação extraordinária se manifestar nas ruas por ajuntamentos e rixas, surgem logo aqui e ali figuras sinistras que ninguém nunca viu. Todos fazem a mesma pergunta: donde saem então esses indivíduos? E todos pensam instintivamente nesses animais imundos que saem da sua caverna quando farejam de longe o cheiro de cadáver(113).

Em Paris, nos terríveis dias de 1793, todos esses indivíduos foram a alma dos crimes que se cometeram.

Uma testemunha ocular conta que “um grande número de vagabundos estrangeiros na cidade de Paris e que se tinham estabelecido logo depois dos primeiros sinais da revolução, percorriam os bairros da cidade e engrossavam o seu número unindo-se aos operários que saíam das oficinas. Tinham-se apoderado, ao acaso, de toda a espécie de armas e lançavam gritos de revolta. Os habitantes fugiam à aproximação desses grupos, todas as casas se fechavam, e onde não se encontravam essas hordas frenéticas, as ruas pareciam desertas e inabitadas. Quando cheguei a minha casa, no bairro Saint-Denis, um dos mais populosos de Paris, muitos desses bandidos deram tiros para o ar, para lançar o terror na população”(114).

Esses abomináveis seres não se limitavam a um pequeno número porquanto Droz(115) elevava o número a 40.000 indivíduos, os quais Bailly(116) e muitos outros depois julgaram alistados não se sabe por quem. Entravam nas casas particulares, nas repartições públicas e roubavam tudo que podiam levar consigo; devastavam o resto, muitas vezes lançavam-lhe fogo. A autoridade tentara dar trabalho a vinte mil desses indivíduos na colina de Montmartre; mas a maioria unia-se aos contrabandistas e percorria a cidade.

— “Entram no convento de Saint-Lazare — escreve Taine — e pilham-no. Penetram nos depósitos e devastam-nos. Vêem-se sair pessoas andrajosas, das quais, umas vinham cobertas de armaduras antigas, outras traziam armas preciosas pela sua riqueza ou pelas recordações históricas; um deles trazia a espada de Henrique IV”(117).

— E são estes criminosos por hábito — diz justamente Joly — os autores dos massacres; são os que constituem o cortejo da guilhotina, e que disputam a honra dos fuzilamentos“(118). E as suas mulheres não tardam a misturarem-se-lhes; porquanto os que sob um outro nome, vivem da prostituição, dispõem sempre de um grande número de indivíduos sempre prontos a pactuarem com a devassidão, o roubo e o assassinato.

Neste caso as mulheres não se contentam em acompanhar os homens, impelem-nos ao mal e animam-nos a isso, e muitas vezes ultrapassam em atrevimento e crueldade. “Em mais de um caso, exclama Maxime du Camp, a vítima teria podido ser salva, se a mulher não tivesse intervido, não tivesse dito aos homens hesitantes: São uns covardes! e muitas vezes não tivesse dado o primeiro golpe”(119).

Entre os degenerados, os criminosos não foram os únicos que tomaram parte na revolução; viram-se também os loucos. Saídos dos hospitais, — de que a multidão revolucionária lhes abria as portas — puderam melhor entregar-se livremente ao seu delírio nas praças e nas ruas, do que na célula solitária. Grande número desses desgraçados percorreram Paris, levando a toda a parte a desordem e o terror.

“O filho de uma louca — conta Tebaldi(120) — que alternava ha­bi­tual­mente a sua residência entre o hospital dos loucos e a prisão, foi um dos autores, mais desapiedados das buscas, dos massacres, dos incêndios. E a mais célebre entre todas foi Lambertine Theroigne, essa heroína do sangue, que guiou a multidão no assalto aos Inválidos e na tomada da Bastilha — e que morreu na Salpétrière, arrastando-se nua, de joelhos, e de gatas, esgravatando as imundícies do chão(121).

Criminosos, loucos, filhos de loucos, vítimas do álcool(122), a lama social, desprovida de todo o senso moral, habituada ao crime, — compunha pois a maior parte dos revoltados e dos revolucionários.

Misturem na multidão irrefletida, e, por sua natureza, dócil a todo o impulso, esses indivíduos; comunicar-lhe-ão a sua crueldade e a sua loucura. Como havemos de nos admirar então que os atos dessa multidão sejam cruéis?

Onde, por causa da confusão, ninguém ordena e ninguém obedece, as paixões selvagens são livres como as paixões generosas, e infelizmente, os heróis — que não faltam — são impotentes para reter os assassinos. Estes atuam; a maioria, composta de autômatos que se deixam arrastar, assiste sem saber e sem poder reagir.

Para aumentar a crueldade dos verdadeiros criminosos e a irritação de todos, além da embriaguez moral que dá o próprio número, acrescentem a embriaguez física, o vinho bebido em profusão, a orgia sobre os cadáveres e de repente “da criatura desnaturada ver-se-á sair o demônio de Dante, misto bestial e refinado, não só destruidor, mas ainda carrasco inventor e calculista, glorioso e alegre pelas dores que faz sofrer”(123).

“Durante as longas horas de fuzilaria — escreve Taine — o instinto homicida desperta-se, e a vontade de matar, mudada em idéia fixa, espalha-se ao longe na multidão que não atua. Só o seu clamor basta para persuadi-la; presentemente é suficiente para ela um grito de indignação; desde que um bate, todos querem bater. Os que não tinham armas — diz um oficial — atiravam pedras contra mim: as mulheres rangiam os dentes e ameaçavam-me com os seus punhos. Dois dos meus soldados já tinham sido assassinados... Cheguei enfim, debaixo de um clamor geral para ser enforcado, a algumas centenas de passos da Câmara Municipal, quando me apresentaram uma cabeça espetada numa lança, para eu ver, dizendo-me que era a de Launay, do governador. Este ao sair recebera uma espadeirada no ombro direito; chegado à rua Saint-Antoine, toda a gente lhe arrancava os cabelos e lhe dava pancadas. Na arcada de Saint-Jean, estava já muito ferido. Em volta dele, uns diziam: — cortem-lhe o pescoço; — outros: — enforquem-no! — outros: — prendam-no à cauda de um cavalo. — Então, desesperado, e querendo abreviar o seu suplício, exclama: matem-me! — e debatendo-se, dá um pontapé no baixo ventre de um dos homens que o agarravam. Num ápice, é furado pelas baionetas, arrastam-no para o rio, batem no cadáver, bradando: — É um sarnoso e um monstro que nos traiu! — A nação pede a sua cabeça para mostrá-la ao público e convida-se quem recebeu o pontapé a cortar-lha. Este, um cozinheiro desempregado, meio pateta, que fora até à Bastilha para ver o que se passava, julga, dada a generalidade de opinião, que a ação é patriótica, e crê, até, merecer uma medalha ao destruir um monstro. Com um sabre que lhe emprestam, bate no pescoço, nu; mas o sabre mal afiado não corta; tira então da sua algibeira uma pequena faca de cabo preto e — como na sua qualidade de cozinheiro sabe haver-se com carnes — termina facilmente a operação. Depois, espetando a cabeça num forcado tridente e acompanhado de mais duzentas pessoas armadas, fora a populaça, põe-se a caminho, e, na rua Saint-Honoré, manda pregar na cabeça duas inscrições para indicar bem de quem fora. — Aparecem os gracejos: depois de ter desfilado pelo Palais-Royal, o cortejo chega à Pont-Neuf; diante da estátua de Henrique IV, inclinam três vezes a cabeça, dizendo-lhe : — Cumprimenta o teu dono! — Foi a chalaça final. Há disto em todo o triunfo e, sob o magarefe, vê-se surgir o garoto”(124).

Quando a multidão chega a este estado em que não lhe basta já matar, mas quer que a morte seja acompanhada dos mais atrozes suplícios e dos mais terríveis ultrajes; quando o instinto sanguinário chegou a um tal ponto de frenesi, os instintos de luxúria não tardam também a despertar-se nela. Crueldade e luxúria ligam-se e uma aumenta o vigor da outra. Como o indivíduo degenerado que entristece a poesia do amor pelos tormentos e pelo sangue(125), a multidão aumenta a covardia do assassinato pelas ofensas contra o pudor, e essa loucura obscena de luxúria e de sangue encontra às vezes no canibalismo o último grau de abjeção.

— “Todos os monstros que rastejam acorrentados aos últimos recônditos do coração saem ao mesmo tempo da caverna humana, não só os instintos rancorosos com os seus dentes, mas também os instintos imundos com a sua baba, e as duas revoltas reunidas encarniçam-se contra as mulheres que a sua celebridade infame ou gloriosa pôs em evidência, contra a Lamballe, amiga da rainha, contra a Desrues, viúva do famoso envenenador, contra uma florista do Palais-Royal, que dois anos antes, num acesso de ciúmes, mutilara o amante, um guarda francês. Aqui a ferocidade junta-se à lubricidade para introduzir a profanação na tortura e para acometer contra a vida por atentados contra o pudor. Com a Lamballe, morta muito depressa, os magarefes libidinosos não podem ultrajar senão um cadáver; mas com a Desrues(126), e sobretudo com a florista, reproduzem, com uma imaginação própria de Nero, o suplício do fogo dos iroqueses. Do iroquês ao canibal a distancia é curta e alguns transpõem-na. Na Abadia, um antigo soldado, chamado Damiens, enterra o sabre no corpo do general ajudante de Laleu, mete a mão na abertura, arranca-lhe o coração — e leva-o à boca como para o devorar. — O sangue — diz uma testemunha ocular — borbotava da boca e desenhava-lhe uma espécie de bigode. À força, esquartejam a Lamballe; o que fez o cabeleireiro Charlot que trazia a cabeça dela, não posso escrevê-lo: direi apenas que outro, na rua Saint-Antoine, trazia “o seu coração” e mordia-o.”(127).

Pode repetir-se aqui o que disse Maxime Du Camp, a propósito de um fato análogo: “que eram loucos, e que o seu lugar está marcado em Charenton, na divisão dos excitados”.(128).

Não se trata aqui somente da loucura moral do criminoso-nato, que não prejudica a faculdade intelectiva; trata-se de um verdadeiro delírio que separa de todos os seus semelhantes aquele que comete essas ações infames. E que a multidão está possuída de loucura real, temos nós a prova, não só pela enormidade dos crimes que comete, mas também pela pouca reflexão que faz antes de executá-los. A multidão prefere matar os seus amigos (pelo menos, os que julga como tais), com os seus inimigos, em vez de esperar que eles se tenham afastado dela. “Durante a fuzilaria dos reféns, um comunista atirou com a espingarda ao chão, agarrou cada um dos padres pelo tronco, e, por entre os aplausos da multidão, ergue-os e atirou-os para o outro lado da muralha. O último padre opôs alguma resistência, e caiu arrastando consigo o federado. Os assassinos impacientes não quiseram esperar: fizeram fogo e... mataram o seu companheiro assim como o padre”(129).

É absolutamente o crime louco, sem causa e sem fim; é o frenesi, que não raciocina e que não compreende, natural conseqüência da embriaguez produzida pelo sangue e pela fuzilaria, pelos gritos e pelo vinho; é a loucura da pólvora, diziam os árabes, que se produz depois do combate; é a loucura, dizemos nós, que faz regressar o homem aos seus instintos atávicos, porquanto se mostra a mesma nos animais mais inferiores após a luta. “Sucede muitas vezes que no fim do combate — conta Forel — as formigas-amazonas são possuídas por furor tal que mordem tudo que as rodeia, as larvas, as suas companheiras, e até os seus escravos, que procuram acalmá-las, tentando segurá-las pelas patas enquanto dura a sua cólera”(130).

A multidão também chega a este grau e é a última fase da sua corrupção intelectual e moral.

IV

A par desta turba que não conhece limites e que desce com rapidez vertiginosa até ao último grau da brutalidade mais covarde, queremos evocar aqui a recordação doutras turbas que resistiram a estranhas e poderosas influências que as impeliram para o crime.

Esta comparação não será sem utilidade.

“No mês de maio de 1750, vem na Histoire du dix-huitième siècle, a polícia procedia, com muita violência, a uma dessas rusgas periódicas a mendigos, como era costume fazer-se. Algumas crianças, sem que se pudesse saber o motivo de uma tal barbaria, foram arrancadas aos carinhos das mães; estas encheram as praças públicas com gritos de desespero. Amotinaram-se, excitaram-se; por toda a parte apareceram mães angustiosas. Umas contavam que agentes de polícia pediam dinheiro para restituírem os seus filhos; outras embrenhavam-se em conjecturas acerca da sorte que lhes estava reservada.

Uma odiosa fábula circulava pelo povo: fez-se de Luís XV outro Herodes, que ia renovar o massacre dos inocentes. Alguns médicos, dizia-se, tinham-lhe aconselhado que tomasse banhos de sangue humano, para restabelecimento da sua saúde gasta pela libertinagem. A população pôs-se então em guerra aberta contra os chefes da polícia. Um deles foi morto; muitos outros maltratados. Berryer (chefe de polícia) foi cercado no seu palácio; evadiu-se pelos jardins. O furor dos assaltantes chegara ao cúmulo, falava-se em escalar os muros, quando um subalterno da polícia, mais intrépido do que o chefe, mandou abrir repentinamente as portas. Ao ver isso, o povo deteve-se e respeitou essa casa franqueada; recuou e dentro em breve viram-no fugir na direção do boulevard e da praça Vendôme”(131).

Esta conduta — acrescenta Lacretelle — é muito explicável, se pensarmos que, como os lobos que fogem, fazendo-se lume, as comoções que têm por causa e por fim alguma crueldade ou alguma loucura, cedem à primeira manifestação de calma e de energia.

É verdade que esta conduta é muito explicável, mas não da maneira como a explica Lacretelle.

Vimos bem, nas páginas precedentes, se as comoções cruéis cedem sempre a uma manifestação de calma e de energia! Infelizmente isto sucede bem raramente, e quando sucede a causa não é geralmente devida a uma influência externa que vence e doma a turba repentinamente, mas às próprias faculdades da multidão.

Na grande revolução de 1793 e na pequena revolta de 1750, o motivo por que a turba estava revoltada não era o mesmo, mas podemos considerá-lo equivalente, sob a relação psicológica.

Julgo mesmo que o pensamento do povo — que os seus filhos eram-lhe roubados e que serviam para um capricho selvagem do rei, — o impelia mais facilmente à revolta, do que o pensamento abstrato de uma reforma política, por muito desejada que fosse. O coeficiente externo, que impelia as duas multidões ao crime, era, portanto o mesmo nos dois casos; mas os acontecimentos não foram os mesmos. E isto, por quê? Porque as duas turbas eram antropologicamente diferentes. É isto a única razão que se pode dar logicamente.

Os ajuntamentos que obstruíam as ruas de Paris em 1793, na sua maioria, compostos de malfeitores, prontos a entregarem-se de todos os modos aos seus instintos perversos, eram também compostos de loucos e de degenerados de toda a casta, facilmente excitáveis e que, mercê da sua fraqueza psíquica, se deixam facilmente arrastar a todos os excessos. Ao passo que a multidão dos revoltados em 1750 era só composta de pessoas do povo, de operários, de pais e de mães de família que tremiam pela vida dos seus filhos...

Esta multidão, que um motivo sagrado fizera rebelde, levada aos extremos, poderia talvez, por influência do número, chegar ao crime(132). Acalmou-se de repente, perante o ato de confiança e de coragem do oficial, e teve horror ao ato infame que ia cometer.

Esta conduta reflete, na sua forma coletiva, o que sucede às vezes individualmente a um criminoso por paixão. A sua cólera desfaz-se e deixa cair a sua arma, se apresentam perante ele sem defesa ou se conseguem doutra qualquer maneira acalmá-lo e repô-lo no seu estado normal. E isto, porque o crime que ia cometer era a conseqüência de uma loucura momentânea; tendo terminado esta, não tem já coragem para cometer o crime; não pode já cometê-lo.

Esta renúncia voluntária que não é possível a um delinqüente-nato, não é também possível a uma multidão que encerra verdadeiros delinqüentes e que já subiu a um alto grau de paroxismo. Julgar que podemos domá-la pela calma e pela energia, é exatamente a mesma coisa que julgar que podemos domar pela calma e pela energia o assassino que ataca de noite, em plena estrada, ou o louco furioso que ameaça. Os degoladores de setembro de 1793, de Paris, “não podiam já deter-se” diz um historiador, e a conduta heroicamente serena das vítimas não impunha respeito à sua sede de sangue. Era, indubitavelmente, a embriaguez desses momentos horríveis que os reduzira a esse estado; mas era também a sua organização fisiológica e psicológica que os impelia a fazerem-se carrascos.

Lembro-me de dois acon­teci­men­tos que podem servir-nos como prova indiscutível do que acabo de dizer até aqui: dois casos semelhantes, quanto às causas, mas diferentes quanto aos resultados: o que se efetuou pela greve de Décazeville em 1886 e o dos acontecimentos de 8 de fevereiro, de 1889, em Roma,

Em 26 de janeiro de 1886 os operários das pedreiras de Décazeville decidiram-se a abandonar o trabalho.

Levados por Bedel, antigo trabalhador despedido, vão procurar o engenheiro Watrin, diretor-gerente das pedreiras, obrigam-no a abandonar o seu escritório e arrastam-no por entre gritos à mairie. Aí, os operários expõem o programa das suas reivindicações.

A primeira condição é a demissão imediata de Watrin. Este recusa porque o seu dever é ficar no seu posto. Quando sai da mairie, 1800 operários em greve recebem-no aos gritos de morte. Watrin foge para uma casa próxima e sobe ao primeiro andar. A multidão furiosa atira pedras aos vidros; põem uma escada à parede, e vários operários trepam por ela. Os outros, depois de terem arrombado a porta, precipitam-se na casa como uma torrente impetuosa que rompe os diques. Um operário guia-os, armado de um arrocho. Watrin ouve a multidão que sobe, e corajosamente, com o sangue-frio que nunca o abandonou nesse supremo dia, abre a porta do quarto e apresenta-se só, diante dos assaltantes.

Esse ato de calma e de energia deveria vencer a multidão, segundo Lacretelle; infelizmente, nesse caso, a multidão não era daquelas que se arrependem e que dispersam.

Bedel fere Watrin com uma paulada e põe-lhe a nu o osso frontal; o engenheiro Chabaud tenta em vão defender Watrin; outro operário, Bassinet, atira-lhe à cabeça a porta do quarto. O maire de Décazeville suplica a Watrin para ceder e dar a sua demissão. Este quase com os sentidos perdidos e cego pelo sangue, deixa-se arrastar a uma mesa, onde ele se prepara para escrever. O maire corre à janela, na esperança de acalmar a turba, anunciando-lhes que Watrin dá a sua demissão.

Um clamor furioso é a resposta:

“Não é a sua demissão que nós precisamos, é a sua pele.“

Watrin, é agarrado por três miseráveis que o trazem à janela e o atiram para a rua, de cabeça para baixo. Watrin despedaça o crânio na calçada, fica sem movimento e agoniza. A multidão infame rodeia-o logo, pisa-o, esfrangalha-lhe a roupa, arranca-lhe o cabelo... enfim chegam a tirar das mãos desses animais ferozes o moribundo que conduzem ao hospital(133).

À meia noite estava morto.

Quem foram os assassinos? Foram operários honestos que tinham levado até então uma vida exemplar e que a anônima e poderosa influência da multidão transformara repentinamente em ferozes malfeitores?

Os assassinos foram os seguintes: Granier, operário de muito má reputação: “uma cabeça de coruja, um rapagão mau que moía a mulher com pancadas”; Chapsal, condenado já três vezes por ofensas corporais e uma vez por ladrão; Blanc, chamado o Caçoleta, condenado também por ofensas corporais, “cabeça achatada, queixos de animal feroz”, e Luiz Bedel, condenado por ladrão e duas vezes por ofensas corporais. Oferecia-se “para matar qualquer pessoa por 50 francos”; queria formar um bando “para roubar no campo”; e mal perpetrou o crime foi jogar as cartas num café(134).

Todos os indivíduos tinham em si próprios a causa dos excessos cometidos, e aos quais a excitação da multidão não fizera outra coisa senão oferecer a ocasião de revelar a sua natureza.

A conduta dos operários de Roma em 1889 foi bem diferente da dos operários de Décazeville.

Estavam exasperados por uma crise econômica que durava havia muito tempo e que parecia não querer acabar. Exaltados e sugestionados pelos discursos que lhes tinham feito os chefes nos Prati di Castello, excitando-os a pedir pela força o que não tinham podido obter manifestando com brandura os seus desejos e as suas necessidades, — na tarde de 8 de fevereiro de 1889, armados de paus, de ferramentas e de pedras, atravessaram Roma, da ponte de Ripetta à praça de Espanha, facilmente vencedores da fraca resistência de alguns agentes de polícia que tinham tentado detê-los, do outro lado da ponte. Não eram em grande número, mas como não encontraram obstáculos, receavam-nos seriamente.

À sua passagem fecharam-se as portas e as janelas: quem se encontrava nas ruas refugiava-se nas casas, deixando os operários livres para cometerem qualquer excesso. O medo que manifestavam os habitantes fazia aumentar naturalmente a audácia dos operários, que atiravam pedras contra os candeeiros e quebravam os vidros dos armazéns.

Subiram da praça de Espanha à rua das Quatro Fontes, dirigindo-se à praça Victor Emanuel, com o ruído surdo de uma multidão que só espera ocasião para fazer estalar todos os ressentimentos que ela acalentava há muito tempo. Chegados à galeria Margarida, entraram ameaçadores, com a idéia de penetrar no café do Grande Orfeu e de o destruir. Um oficial, que, por acaso, se encontrava à porta, desembainhou o sabre e intimou a multidão a retirar-se. Os operários eram mais de mil e traziam armas na mão; todavia nem uma só pedra foi arremessada; não houve tentativa alguma de rebelião; afastaram-se todos, prosseguindo o seu caminho; e pouco depois dispersaram.

Neste caso, como no que conta Lacretelle, a calma coragem de um só basta para fazer compreender a essa multidão os excessos que ia cometer; e, como um homem embriagado a quem se deita água no rosto, ela readquiriu os seus sentimentos normais, direi quase, individuais.

Instaurou-se um processo por devastação e destruição contra 32 desses operários, que eram realmente autores desses delitos; mas os antecedentes dos 32 argüidos eram excelentes. Foi isto, julgo, a razão que fez com que, embora quebrassem alguns candeeiros ou algum mostruário num momento de furor, todavia não se deixaram arrastar ao assassinato, como os operários de Décazeville(135).

Parece-me, pois, evidente que a composição antropológica da multidão tem uma certa influência nas ações que a multidão comete; uma multidão de boas pessoas poderá perverter-se, mas nunca atingirá o grau de perversidade de uma multidão, de que uma parte é formada por maus.

E em relação à composição antropológica da multidão, devemos acrescentar que, não só a presença de verdadeiros criminosos na multidão é talvez funesta, mas também a presença dos que posto que honestos, não têm, pela sua constituição orgânica, senão uma fraca repugnância ao sangue e não se impressionam ao vê-lo derramado. Muitos deles, num meio honesto e pacífico dão um legítimo alívio à sua tendência, escolhendo certos ofícios ou certas profissões, que pareceriam cruéis a um indivíduo muito sensível e compassivo, como por exemplo: o magarefe, o soldado, o cirurgião. Se se encontram, por acaso, numa multidão, é evidente que lhes será menos difícil do que a outros cometer algum crime(136).

“Sabe-se, escreve Proal, que, durante as diversas revoluções que ensangüentaram a França, os magarefes principalmente, mostraram uma crueldade excepcional; e que no reinado de Carlos VI, por exemplo, sob o nome de Cabochiens fizeram derramar o sangue a torrentes.

Um dos mais fogosos revolucionários de 1793 foi o magarefe Legendre, a quem Lanjuinais respondeu: — “Antes de me bateres, faze decretar que sou um boi”(137).

E mesmo entre os atrozes crimes individuais, há uma importante percentagem para os que exercem profissões ou ofícios cruéis. — “Entre os mais recentes esquartejadores de mulheres, escreve Corre, devemos citar Avinhain, um magarefe, Billoir, um antigo soldado, Libiez, ex-estudante de medicina. Guy Patin, numa das suas cartas a Spon, conta um roubo audacioso cometido em casa da duquesa de Orleans e seguido do desaparecimento de um criado de quarto da casa: encontrou-se o corpo do criado numa sentina, mas cortado aos bocados: os assassinos ladrões foram dois lacaios, antigos cirurgiões(138).

Eugene Sue tem, no tipo de Chourineur(139), admiravelmente bem descrita, essa terrível influência do ofício cruel do magarefe, nos sentimentos do homem. É, aliás, uma observação já feita muitas vezes, que, em geral, todas as profissões que pressupõem o desprezo da vida, (própria ou alheia, do homem ou doutros animais) fazem nascer, ou para dizer melhor, desenvolvem os instintos sanguinários. Tem-se a prova disso no ofício do soldado. Quantos valentes e heróis não são a substância de criminosos! Ricardo Coração de Leão não comia a carne dos sarracenos e não a achava tenra e agradável?

Mas calculando mesmo o valor de todas essas disposições mais ou menos fortes para o crime, não é menos verdadeiro que é a própria alma da multidão que faz com que os bons se estraguem, e com que os maus ou cruéis latentes venham de fato a sê-lo. Ainda não temos, portanto, resolvido o problema jurídico: qual é a res­pon­sa­bi­li­da­de dos crimes cometidos pela mul­tidão em furor?

Vamos tentar resolvê-lo no capítulo seguinte.


CAPÍTULO III
CONCLUSÕES JURÍDICAS

 

I

Napoleão, numa frase célebre que lhe sugeriram os seus estudos sobre a Convenção, disse: “os crimes coletivos não obrigam ninguém”.

Era a verificação de um grande fato; não era e não podia ser uma doutrina científica.

A ciência sente que a irresponsabilidade, pelos crimes cometidos por uma multidão, não pode ser proclamada; porque a ciência sabe que o organismo social — como qualquer outro organismo — reage sempre, neste caso como nos demais, contra aquele que atenta contra as suas condições de vida.

Sofrer esta reação quer dizer ser responsável: se, portanto, a reação é fatal e necessária, a responsabilidade será também fatal e necessária.

Mas, quem será responsável?

O bom senso — por um dos seus juízos sumários que são muitas vezes errôneos, mas que são também às vezes muito exatos, refletindo pre­ven­tiva­mente por intuição o que o exame positivo dos fatos provará mais tarde — responde: Toda a multidão deve ser responsável. E a ciência, depois de ter tentado esclarecer muitas causas que determinam os crimes cometidos por uma multidão e depois de ter visto que essas causas estão entremeadas e confundidas entre si de um modo tal, que não se pode dizer o seu valor particular, é obrigada, para ser justa e sincera, a responder também, como o bom senso: toda a multidão deve ser responsável.

É a esse nome coletivo de multidão, a esse ser vago e indeterminado que respeita a responsabilidade, porquanto só na multidão se encontram todos os fatores de ordem antropológica e de ordem social, que cooperam na produção dos crimes cometidos pelos seus membros. Sente-se que atribuir a responsabilidade a um ser mais determinado e mais preciso — ao indivíduo — é um erro; porquanto no indivíduo, todos os fatores desses crimes não existem; não é senão uma só das causas, em vez da união de todas as causas.

Mas é possível que a multidão seja responsável? Essa responsabilidade coletiva é então possível, hoje?

Antigamente a responsabilidade coletiva era a única forma de responsabilidade. Mesmo quando se sabia que um crime fora cometido por um só indivíduo, não devia responder só, mas, com ele, a sua família, o seu clan, a sua tribo. As leis antigas estendiam à mulher, aos filhos, aos irmãos, às vezes, até, a todos os parentes do delinqüente, o suplício ou a pena a que fora condenado(140).

Nessas épocas primitivas, cada grupo de formação natural, como a tribo e a família, constituía um ser indivisível e indissolúvel. O indivíduo era mais uma parte do que um todo; não o consideravam como um organismo, mas como um órgão. Puni-lo a ele só era considerado como um absurdo, como consideráramos castigar uma só parte do homem.

Com o tempo, com o progresso da civilização, a responsabilidade foi sempre individualizando-se. Até ao fim do século XVIII, subsistiram alguns vestígios da antiga doutrina, principalmente em relação a certos crimes políticos e religiosos(141), mas agora já não existem desses vestígios(142). Na nossa época, as famílias dos condenados não são já banidas; os filhos de um criminoso não trazem na testa uma marca de infâmia: só o hábito faz com que se conserve uma certa má prevenção contra os que nascem de uma família de criminosos. É talvez uma voz interior, que tem a intuição da força da lei de hereditariedade? Não o sabemos; é certo, todavia, que não há somente um preconceito social nesta prevenção.

A lei, portanto, na atualidade, individualizou a responsabilidade(143). Já não se pode dizer, como antigamente, perante um crime: foi tal família que perpetrou, punamo-la; mas é necessário dizer: foi tal indivíduo, punamo-lo a ele só.

Todavia, se a antiga idéia absurda da responsabilidade coletiva desapareceu, outra tomou o seu lugar, análoga à primeira numa certa relação e certamente muito mais científica: quero referir-me à idéia da responsabilidade do meio social.

Sabemos que cada crime, como cada ação humana, é o resultado dessas duas forças: o caráter individual e o meio social.

Fazemos recair sempre a responsabilidade de um crime, posto que, em proporções diferentes, sobre este caráter e sobre esse meio; há portanto ainda na nossa época uma responsabilidade coletiva. Na origem do direito penal, dizia-se: o indivíduo que cometeu o crime é culpado e toda a família ou toda a sua tribo com ele. Hoje que o direito pessoal atingiu a mais alta fase do seu desenvolvimento, diz-se: o individuo que cometeu o crime é culpado e todo o meio que lhe forneceu a ocasião de o cometer é culpado com ele.

Os termos mudaram, posto que menos profundamente do que parece; mudaram principalmente os motivos das duas conclusões, mas vão dar ao mesmo ponto; a uma responsabilidade coletiva.

Há apenas uma grande diferença prática entre as conseqüências dessas duas conclusões.

Nos tempos antigos, consideravam-se responsáveis o indivíduo e a família, e a reação fazia-se sobre uma e sobre a outra igualmente(144). Na nossa época consideram-se como responsáveis o indivíduo e o meio que o envolve; mas a reação, a pena, para me servir dessa velha palavra, só se aplica ao indivíduo. Antigamente, a responsabilidade do indivíduo e da família era solidária e efetiva (no sentido de que o indivíduo e a sua família sofriam a mesma pena). Atualmente, a responsabilidade do meio em que vive o indivíduo é ilusória (no sentido de que o meio não sofre nunca a reação, nunca é punido), e, em vez de ser solidário com a do indivíduo, está precisamente na razão inversa; porquanto, tanto mais a responsabilidade do meio é grande, quanto mais a do indivíduo é pequena; e vice-versa, quanto mais o meio é culpado por um crime, tanto menos é a reação social contra o indivíduo...(145).

O homicídio, perpetrado para roubar, tem todas as suas causas, ou quase todas, no indivíduo que o comete; é porque a reação social é muito forte, nesse caso, contra o delinqüente. O homicídio cometido por paixão — pelo contrário — tem a maior parte das suas causas no meio que o rodeia e a menor parte no indivíduo que o comete; é porque, nesse caso, a reação social é menor contra o indivíduo que perpetrou o crime.

Se se chegasse a provar que as causas de um crime estão todas no meio que o envolve, que nesse meio está toda a responsabilidade, não se poderia infligir nenhuma reação social ao indivíduo, seria penalmente irresponsável. É o caso da legítima defesa.

Se um ladrão de estrada me ataca de noite e eu o mato, defendo-me, sou irresponsável (isto é, não devo sofrer reação social por ter cometido esse homicídio) porque as causas — isto é, a responsabilidade — estão todas no meio, no ataque injusto do ladrão.

Partindo destas considerações gerais, podemos resumi-las assim: quando dissemos que toda a multidão deve ser responsável pelos crimes cometidos pelos seus membros, apenas fizemos aplicação, a um caso especial, e mais evidente do que os outros, da teoria moderna da responsabilidade coletiva que vê e reconhece não só no indivíduo, mas também no meio, as causas de cada crime. Simplesmente, como o meio não pode, em geral, sofrer nenhuma reação, pela individualização atual da responsabilidade — do mesmo modo, nesse caso particular, a multidão não poderá também sofrê-la. O indivíduo será, portanto, o único efetivamente responsável; mas visto que a sua responsabilidade está na razão inversa da multidão (do meio) será necessário examinar se a responsabilidade do crime é toda devida à multidão, porquanto, nesse caso, o indivíduo seria irresponsável; ou que parte de responsabilidade tem a multidão, para que a reação social contra o indivíduo recaia sobre ela.

É finalmente a temibilidade (temibilità) do criminoso que devemos procurar neste caso, como em todos; temibilidade que, segundo a escola positivista(146) é maior ou menor, em razão inversa do número e da intensidade das circunstâncias externas, na etiologia de um crime.

II

A questão deve pois ser posta assim: aquele que cometeu um crime no meio de uma multidão, é para recear? e se o é, em que grau o é? Noutros termos: esse homem colocado fora do meio exaltado e irritado em que estava, libertado das mil sugestões que o impeliam ao crime, e reposto no seu estado normal, apresentará ainda algum perigo para a sociedade? É possível que um indivíduo honesto se deixe arrastar pela multidão a praticar o mal, como num acesso de loucura momentânea, a qual, uma vez passada, não pode dar nenhum direito à reação penal?(147).

Para poder responder como convém, é necessário saber, não só em teoria, mas em cada caso particular, qual é a força de sugestão da turba, qual é o seu poder de corrupção sobre o indivíduo. É necessário saber se possui realmente essa fascinação terrível e estranha, capaz de mudar um homem profundamente honesto em assassino.

A multidão pode fazer este milagre?

Vimos, no primeiro capítulo, que a influência que a multidão exerce nos indivíduos que a compõem, é um fenômeno de sugestão. Podemos, portanto, responder à pergunta que formulamos, examinando qual é o efeito da sugestão no indivíduo e até onde ela vai. Infelizmente não podemos fazer essa investigação quanto à sugestão no estado de vigília porque a têm estudado muito pouco até aqui(148), mas fá-la-emos em relação à sugestão hipnótica que nos oferece um vasto campo de experiências e de observações.

Isto nada alterará a eficácia do nosso exame, porquanto, embora a sugestão da multidão seja uma sugestão que se sofre acordado, toda a gente sabe que essa sugestão não é senão o primeiro grau da sugestão hipnótica. O raciocínio que se faz para uma, vale portanto também para outra. A única diferença é que a sugestão no sono magnético é mais poderoso que no estado normal.

“A sugestão hipnótica, disse Ladame, não atua doutro modo nos cérebros doentes e adormecidos do que a sugestão ordinária, a que toda a gente conhece e pratica, afirmando aos outros as coisas de que esperamos convencê-los. A sugestão hipnótica é da mesma natureza que a persuasão no estado de vigília. Simplesmente, reforça consideravelmente o poder de persuasão que possuímos sobre outrem, suprimindo as resistências que existem no estado de vigília.“(149).

Podemos, pois, na sugestão hipnótica, fazer cometer a um homem o crime que queremos? Podemos abolir nele completamente a sua personalidade e arrastá-lo a cometer atos que nunca teria cometido estando acordado e capaz de raciocinar?

Se dermos crédito à escola de Nancy, forçoso é responder afir­ma­tiva­mente.

Liébault, escreve: “O hipnotizador pode desenvolver todas as coisas no espírito dos sonâmbulos e obrigá-los a pô-las em execução não só no estado de sono, mas ainda depois deles terem saído desse estado(150)”. Na opinião dele, o sonâmbulo obedece cegamente à sugestão: “Caminha para o alvo com a fatalidade de uma pedra que cai(151)”. E muitos fatos podem provar na aparência a verdade absoluta desta tese.

Richet(152) e Liegeois(153) narraram exemplos que provam que, pela sugestão, chega-se a forçar os princípios ativos do indivíduo; é levado a esquecer os sentimentos mais sagrados, a abdicar os preceitos mais elementares da moral. Uma jovem dócil e virtuosa, hipnotizada, dá um tiro de pistola na mãe. Um rapaz honesto tenta envenenar uma tia, de quem gostava profundamente; uma moça mata um médico porque cuida mal dela; outra envenena um indivíduo que lhe é desconhecido.(154).

Mas estes resultados foram obtidos facilmente, sem custo algum, que foi dada a ordem por aquele que exerce a sugestão? Não, com certeza. Foi necessário lutar muito tempo contra a vontade do hipnotizado, que reagiu ainda. “É somente, diz Campili, por uma sugestão seguida e gradual que o indivíduo é impelido a essas sugestões perigosas e arriscadas. Todas as vezes que faz uma objeção, ou que recusa obedecer terminantemente, reaplica-se a sugestão, acrescentando-lhe pormenores que a tornem mais expressiva e aceitável; isto é, acaba-se o conteúdo da sugestão do ato, por uma série racional de sugestões retroativas positivas ou negativas. Às primeiras palavras o sonâmbulo revolta-se muitas vezes, mas se repetirmos a afirmação com insistência, o seu espírito, assim como o seu aspecto, perturba-se, torna-se pensativo, parece evocar uma lembrança que lhe escapa; enfim abatido pelas incessantes e enfadonhas sugestões, cede auto­mati­ca­mente”.(155).

Obedece automaticamente, não, porém, sem repugnância, e não sem cair em seguida num ataque de histeria que prova quanto lhe custou obedecer à ordem recebida. É a denegação-póstuma, se assim posso dizer, de um organismo que realizou invo­lun­ta­ria­mente um ato contra o qual se revolta e que lhe causa horror.(156).

Se é pois verdade às vezes, que mesmo quando o sujet resiste, podemos fazê-lo executar a ordem desejada, insistindo e acentuando a sugestão, é falso, no entanto, que “o automatismo seja absoluto, como diz Beaunis, que o sujet não conserva da sua espontaneidade e da sua vontade senão o que lhe deixa aquele que o hipnotiza; que realiza, no sentido estreito da palavra, o ideal célebre: ser como o bordão nas mãos do viajante”.(157).

O sonâmbulo fica sempre alguém(158) visto que manifesta a sua vontade pelo esforço que faz para resistir às sugestões. E se às vezes cede, prova isso apenas a sua franqueza individual e não a onipotência da sugestão, porquanto comete os crimes imaginários com repugnância e depois nunca mais torna a cair neles.(159).

Demais, os casos em que o sujet cede a uma sugestão que ofende o senso moral, são raríssimos, em comparação com aqueles em que tem força para resistir. São esses casos, observados sobretudo pela escola Salpêtrière, que provam ser falsa a opinião da escola de Nancy. Contra as afirmativas de Liébault, de Liegeois e de Beaunis, vemos as de Charcot, de Gilles de la Tourette, de Brouardel, de Féré, de Pitres, de Laurente, de Delboeuf. “O sonâmbulo, diz Gilles de la Tourette, não é uma máquina que se pode fazer girar ao sabor dos ventos; possui uma personalidade reduzida, é verdade, nos seus termos gerais, mas que persiste ainda inteira nalguns casos”(160). — “O sonâmbulo, diz Féré, pode resistir a uma sugestão determinada, que se encontra em oposição com um sentimento profundo”(161), e, acrescenta Brouardel “só realiza as sugestões agradáveis ou indiferentes”(162). Finalmente, Pitres afirma que a irresponsabilidade dos sujets hipnotizados não é nunca absoluta.”(163)

O eu normal sobrevive sempre ao eu anormal criado pelo hipnotizador. Se tentarem fazer cometer a esse eu anormal uma ação que repugna profunda e organicamente ao eu normal, nada conseguirão. Numerosos exemplos dão-nos a prova disso.

Escolhemos alguns.

“Tínhamos sob o nosso tratamento, diz Pitres, uma moça muito fácil de hipnotizar e sobre a qual se podia produzir, sem nenhuma dificuldade, os movimentos de imitação, as ilusões e as alucinações. Mas era impossível obter dela que batesse em alguém. Se lho ordenavam energicamente, erguia os braços, e caía imediatamente em letargia”.(164).

Féré conta um fato análogo: “Uma das nossas doentes, diz ele, estava apaixonada por um rapaz, sofrera muito por causa dele, mas amava-o ainda. Se lhe evocavam a presença desse homem, mostrava-se aflitíssima: a sua vontade seria fugir. Mas era impossível obrigá-la a cometer um ato qualquer que pudesse ser nocivo àquele de quem fora vítima. Quanto ao mais obedecia a todas as outras ordens, automaticamente”.(165).

Nos dois casos precedentes, é o sentimento da piedade que impede realizar a sugestão.

Verifica-se fenômeno idêntico, quando a idéia sugerida se choca contra outro qualquer sentimento, contanto que seja vivo e profundo no indivíduo hipnotizado.

Pitres conta a experiência a que acabo de me referir, como prova de resistência que podem fazer o sujet aos atos sugeridos: “Adormeço o meu sujet (uma moça) e depois de ter colocado uma moeda de prata em cima da mesa, digo-lhe: quando estiveres acordada hás de ir buscar acima da mesa essa moeda de prata de que alguém se esqueceu; ninguém te verá; meterás a moeda na algibeira, e será um pequeno roubo sem nenhuma conseqüência funesta.

Depois, acordei o paciente.

Dirigiu-se à mesa, procurou a moeda e meteu-a na algibeira, hesitando. Mas, logo depois, tirou-a da algibeira e deu-ma, dizendo que esse dinheiro não lhe pertencia, e era preciso procurar a pessoa que o esquecera em cima da mesa. — Não quero guardar essa moeda, disse ela; seria um roubo, e eu não sou uma ladra.”(166).

Gilles de La Tourette narra um fato inteiramente semelhante a este.

“Um dia, escreve ele, disse a W. que fazia muito calor. Imediatamente limpa a testa como se transpirasse e declara que o calor é insuportável.

— Vá, toma um banho.

— Como! contigo?

— Por que não? Bem sabes que no mar os homens e as mulheres tomam banhos juntos, sem escrúpulos.

Não parece muito convencida.

— Coragem, despe-te.

Hesita; por fim despenteia-se e descalça-se; depois, detém-se.

— Então, ordeno-te que te dispas toda!

Corou, pareceu refletir com grande custo; enfim, confusa, despe o vestido.

— Mais! mais!

A esta ordem brutal, perturba-se e parece sofrer cruelmente; prepara-se para obedecer, mas a sua vontade reage; o seu pudor é mais forte que a sugestão; o seu corpo entesa-se e mal tenho tempo para intervir a fim de impedir um acesso de histeria”.(167).

Gilles de la Tourette, acrescenta: W. é bastante pudica.

“Evidentemente, foi por este motivo que patenteou uma revolta quase inconsciente, dando o resultado que sabemos; porquanto, em circunstâncias análogas, Sara R. não hesita absolutamente nada em despojar-se das suas roupas e de tomar um banho imaginário”.

Neste caso, é, pois, o sentimento do pudor que é fortíssimo em W. e que impede que se realize a sugestão; ao passo que sendo mais fraco em Sara R. permite-lhe obedecer à ordem sugerida. Podemos dizer outro tanto para outros casos. São os sentimentos de piedade ou de probidade que, conforme são mais ou menos fortes, se revoltam contra as sugestões ou permitem que se lhes obedeça, após maiores ou menores tentativas. Em última análise, é uma predisposição orgânica, oculta, fraca, e indistinta, se assim o querem, que permite a realização da sugestão ou a não permite. Quando um indivíduo é absolutamente rebelde a uma idéia, é absolutamente impossível que essa idéia, mesmo sugerida no estado hipnótico, se transforme em ação. É a conclusão que tiram quase todos os mais ilustres cultores do hipnotismo e, que Janet exprimiu na célebre frase: “Idéia desconhecida não sugere nada(168)”. As sugestões, diz Campili, devem estar de harmonia com o meio interior do sujet; nem todas são executadas, por esse motivo; mas somente as que o indivíduo poderá realizar, sob essas condições, nalgum momento da sua vida”.(169).

A sugestão pode, pois, alterar a personalidade, diminuir a vontade ao ponto que quase se não pode afirmar se existe ou não; mas essa personalidade e essa vontade farão ver que não estão inteiramente mortas, resistindo com tenacidade a certas sugestões que lhes repugnam, ou, se as realizam, reagindo depois com fenômenos que representam o arrependimento do organismo de ter perpetrado atos contrários à sua natureza normal.

Assim como já hoje não é verdade que o contágio seja “um ato pelo qual uma determinada doença se comunica de um indivíduo afetado a outro que está são”, mas sim “um ato pelo qual uma doença determinada se comunica de um indivíduo afetado a outro que está mais ou menos predisposto a ela(170); assim também é falso que a sugestão possa fazer com que o indivíduo realize uma qualquer ação; só pode fazer realizar as ações a que está mais ou menos predisposto.

É certo que a predisposição não precisa de ser, neste caso, tão acentuada como no primeiro; bastará que exista, ainda que em pequeníssimas proporções, mas será sempre necessária.

Sucede, no estado de hipnotismo, pelo império da vontade do hipnotizador, o que sucede por outros motivos no sonho, no sonambulismo, e na embriaguez; isto é, o homem comete ações que nunca teria cometido no estado normal: e todavia o seu eu, a sua personalidade, por muito pervertida que seja patologicamente, sobrevive sempre. É alterada e não suprimida.(171).

Colajanni dizia muito bem, quando afirmava a respeito do álcool, que “tira ou diminui, conforme a intensidade e a duração da sua ação, a força moral de inibição, que nos é transmitida por herança ou que se desenvolve em nós por educação e que nos impede de auxiliar todas as nossas tendências que poderiam levar a atos criminosos ou simplesmente inconvenientes.”(172).

Podemos falar analogamente da sugestão, acrescentando-lhe o que diz Ribot: “que no estado hipnótico, a passagem da idéia à ação é tanto mais rápida, quanto não encontra obstáculos; nada tem o poder de a reter, porquanto a idéia sugerida reina única na consciência adormecida.”(173).

É, pois, mais fácil na sugestão, do que em qualquer outro estado patológico, fazer cometer ao indivíduo ações que lhe repugnam. Todavia em indivíduo, ainda que no sonho, no sonambulismo, na embriaguez, revelará sempre — posto que mais fracamente — a sua personalidade.

Se não podemos dizer da sugestão o que se diz do sonambulismo espontâneo, do sonho e da embriaguez — o que reflete como num espelho a imagem da sua individualidade — podemos dizer, pelo menos, que o homem indica quais as ações que lhe repugnam natural e organicamente.

III

Parece-me que a conclusão do que dissemos até aqui se apresenta evidente e espontânea. Se, na sugestão hipnótica, que é a mais poderosa de todas as sugestões, não podemos chegar a destruir completamente a personalidade humana, mas apenas a diminuí-la, — por maioria de razão essa personalidade sobreviverá na sugestão em estado de vigília, mesmo quando essa sugestão atinge o seu mais alto grau, como é na multidão.

O crime perpetrado por um indivíduo no furor da multidão terá sempre, portanto, uma parte (por muito pequena que seja) das suas causas na constituição fisiológica e psicológica do seu autor. Este será, por conseguinte, sempre legitimamente responsável.

Aquele que é realmente honesto, do mesmo modo que não cede à ordem do hipnotizador, não se dobrará também diante desse turbilhão de comoções em que a multidão o arrasta. “Quando a natureza constituiu fortemente esse organismo do espírito, diz Tommasi, seremos sacudidos pelos acontecimentos, mas ficamos de pé”.(174).

Deveremos, por isso, concluir que aqueles que cometem algum crime no furor de uma multidão são indistintamente todos verdadeiros criminosos?

Seria um grande erro. Há muitos natos nas multidões, mas não podemos dizer que todos os que cometem um crime na multidão sejam assim(175). Diremos apenas que são fracos.

Cada qual recebe da natureza um caráter determinado que dá um cunho, uma fisionomia à sua conduta e que é o impulso íntimo — se assim posso expressar-me — conforme o qual o homem atua na vida. Quanto mais esse impulso íntimo é forte, tanto mais o caráter é sólido e íntegro, tanto mais o indivíduo atuará conforme ele sem sofrer influências externas; do mesmo modo que um projétil é tanto menos facilmente desviado pelos obstáculos que encontra no seu caminho, quanto maior for a velocidade inicial com que for lançado.(176).

Infelizmente, as naturezas robustas, que resistem vitoriosamente a todas as tentações e que evitam todos os descarrilhamentos, são bastante raras. Se existem, como disse Balzac, homens-carvalhos e homens-arbustos, os segundos formam certamente a maioria. Para a maior parte, a vida não é senão uma teia de transações, porquanto, não tendo o poder de constranger o meio a adaptar-se a eles, vêm-se obrigados a adaptarem-se eles próprios ao meio.

Nessa vasta classe de pessoas fracas — das que Benedikt chamou neurastênicas, que não opõem resistência aos impulsos externos, aos que Sergi(177) distinguia pelo nome de servis que se submetem à vontade alheia por baixeza e se voltam, por interesse, para o lado donde corre o vento favorável, — seres bons mas tímidos e crédulos, que aceitam qualquer idéia que lhes impõem, aos indivíduos que mudam por inconstância e por irritabilidade do seu temperamento, — as gradações são infinitas.

A vontade — escreve Ribot — tem, como a inteligência, os seus idiotas e os seus gênios, como todos os possíveis cambiantes, de um a outro extremo.(178).

Mas, seja ela mais ou menos desprezível, mais ou menos profunda, a fraqueza de caráter tem esse resultado infalível para todos: tornar o indivíduo dócil ou muito dócil, conforme os casos e os graus, às sugestões do meio.

Assim como diz Ribot(179), a propósito das fraquezas da vontade — em que cada ato realizado por quem tem um princípio de abolia, a parte do caráter individual é um minimum, ao passo que a parte das circunstâncias externas é um maximum, — assim também podemos afirmar por analogia, que nas ações perpetradas por todos esses indivíduos fracos aos quais falta uma tendência co-natural e distinta para um gênero determinado de vida, a parte do caráter individual é um minimum e a que é deixada às circunstâncias e às sugestões externas, é um maximum.

Coloquem esses indivíduos num meio razoável, sob a influência das boas sugestões e permanecerão honestos, pelo menos perante o código(180), coloquem-nos pelo contrário, num meio desfavorável, entre más sugestões, e tornar-se-ão criminosos de ocasião ou por paixão.

A fraqueza do seu caráter faz-lhes facilmente absorver tudo o que os rodeia: tanto o mal como o bem as circunstâncias externas voltam-nos mais para um gênero de vida do que para outro.(181).

Ora pois, se isto sucede na vida calma, regular, normal, que acontecerá numa multidão em que num momento se concentra uma tal força de sugestão que em caso algum há parecida? Não é evidente que todos esses indivíduos cederão e que cometerão o crime, mesmo aqueles que são honestos mas fracos e que terão talvez amanhã um transporte magnífico de altruísmo, por uma razão análoga àquela pela qual se deixam arrastar hoje por uma corrente de ódio?(182).

“Lembro-me de ter visto em 1870 — conta Joly — uma multidão perseguir a carruagem de um general ao qual queriam arrancar a todo o custo uma declaração política. Havia, na turbamulta, um rapaz que eu conhecia bem, rapaz entusiasta, mas dócil e morigerado, trabalhador e bom, perfeitamente honesto. De repente pôs-se a reclamar um revólver para disparar sobre e general recalcitrante. Se tivesse a arma à mão não calculo o que teria acontecido.(183).

Quantos há que se encontram nas mesmas condições que esse rapaz? E quantos, infelizmente, têm a arma entre as mãos e se servem dela! São perversos, por isso?

Não, repetimos; são simplesmente caracteres fracos. Há neles os sentimentos de piedade e de probidade, mas superficialmente.

As camadas mais recentes do caráter, que constituem a base física desses sentimentos não puderam organizar-se e cobrir inteiramente as antigas camadas, as que representam os restos das gerações mais remotas. Um qualquer acidente, uma ocasião que perturbe profundamente esses indivíduos, basta então para desorganizar o seu caráter. As camadas deste misturam-se sem nenhuma ordem e as mais baixas, subindo de repente à superfície, permitem manifestações selvagens e cruéis.(184).

Acontece na multidão por revolução o que acontece na vida ordinária por evolução. A desorganização do caráter que começa primeiro lentamente pela influência dos maus exemplos, ou pelas solicitações de um companheiro já pervertido, e que, depois de o ter feito cair uma vez no vício, e de ter aberto um caminho no qual não pode já parar, alarga-se sempre mais até mudar totalmente um indivíduo, até destruir o seu caráter — tudo isto sucede na multidão em muito poucos instantes.

Em vez da dissolução gradual e lenta, que faz do homem ainda honesto um criminoso de ocasião, e mais tarde um criminoso habitual, há, na multidão, a dissolução instantânea que torna o homem ainda honesto, um criminoso por paixão.

É assim, na minha opinião, que uma grande parte dos indivíduos que se encontram na multidão, chegam ao crime.

E se assim é, qual será a reação social que lhes convirá?

Antes de poder responder a esta pergunta, é forçoso ocupar-nos doutro fator dos crimes da multidão; o mais importante no ponto de vista psicológico, quero dizer, o motivo pelo qual o crime foi perpetrado.

No princípio do segundo capítulo falamos já, resumidamente, do estado de espírito permanente da multidão, fazendo observar que as injustiças e as dores que sofre constituem uma predisposição longínqua e indeterminada que não devemos desprezar, para os crimes que a multidão pode cometer. Devemos estudar aqui, de mais perto, as razões que determinam os crimes coletivos.

Uma multidão não se forma sem razão. Os indivíduos não se reúnem sem um objetivo. Esse objetivo, todavia, se existe sempre, é sempre de poucos indivíduos; a maior parte aglomera-se em torno do primeiro grupo, pela força da sugestão.

Nunca tentaram parar em plena rua, fixando uma janela, um ponto qualquer ou apoiar-se ao parapeito de uma ponte para ver a água que corre? Em poucos instantes um pequeno agrupamento se forma em volta e ouvir-se-á dizer aos recém-chegados: — Está ali!... onde?... acolá, no fundo... desaparece...

A sugestão é tão forte que às vezes se julga ver um objetivo que não existe.(185).

Ora, quando o objetivo de um ajuntamento é importante e sério, sucede o mesmo fenômeno.

Uma manifestação é sempre organizada por um número de indivíduos muito menor do que o que vem a tomar parte efetiva nela. Nesse caso, a sugestão imitativa exerce o seu poder, não só diretamente — no sentido de que ao primeiro grupo de manifestantes virão unir-se por curiosidade os das ruas; mas também imediatamente — no sentido de que, tendo sabido pelos jornais ou por outros meios que uma demonstração deve realizar-se em tal dia e a tal hora, um grande número dirá: — Quero ir ver! — e vão realmente.

Em todas as multidões há, pois, bem poucos indivíduos que conhecem realmente o objetivo; o maior número vai lá — como eles mesmo dizem — para ver.

É essa a condição psicológica dos primeiros instantes, quando a multidão se forma; mas não devemos crer que isto dure assim. Pouco a pouco, à medida que a manifestação aumenta e que se ergue algum grito; ou quando se trata de um comício, à medida que os discursos dos oradores aquecem o auditório, manifesta-se um fenômeno estranho nesse agregado heterogêneo que é a multidão: a heterogeneidade é substituída por uma homogeneidade quase absoluta. Os mais tímidos, vendo que o caso se torna grave, vão-se embora, se podem. Os que ficam elevam-se todos, quer queiram, quer não queiram, ao mesmo diapasão de comoção: o motivo que reuniu o pequeno número dos primeiros indivíduos, é conhecido por todos, penetra no espírito de cada qual, e a multidão não é então realmente senão uma única alma.

Ora, quaisquer que sejam os atos que cometerão, com o tempo, os membros dessa multidão tão compacta daí em diante, que se poderia dizer cimentada por uma única idéia — compreender-se-á facilmente que, para poder medir a reação social que é necessário infligir-lhes, deve-se antes de tudo ter em consideração o motivo pelo qual atuaram. Se o povo reunido em Paris, em 1750, diante do edifício da polícia, para protestar contra a monstruosa crueldade que se atribuía a Luiz XIV, tivesse morto algum agente, — não teria perpetrado um homicídio muito mais desculpável que todos os que uma incompreensível sede de sangue fez cometer durante a revolução francesa? Proceder contra uma injustiça ou uma infâmia, e chegar, mesmo, ao crime, é coisa bem diferente de roubar ou matar por um motivo fútil ou com um fim imoral.

Portanto: para o crime coletivo, como para o crime individual, o motivo que faz cometer o crime é um dos pontos mais importantes para medir a responsabilidade. E tanto mais, que o motivo — existindo já nalguns antes da excitação da multidão e propagando-se pouco a pouco a todos, antes mesmo que a sugestão tenha atingido o seu mais alto grau, — é o sentimento que se pode com mais justiça imputar ao indivíduo e pelo qual deve responder quase inteiramente.

O que dizemos para os crimes imprevistos da multidão deve aplicar-se, por maioria de razão, aos crimes da multidão que se poderão chamar premeditados.

O povo nem sempre se reúne para pedir alguma coisa ou para protestar contra alguém; o crime não é sempre determinado instantaneamente por uma provocação, ou pelo efeito da fermentação psicológica de que falamos mais atrás. Sucede às vezes que alguns indivíduos se reúnem com a idéia bem arreigada de originar um tumulto na multidão e de perpetrar crimes.

O comício de operários sem trabalho, em Roma, no 1.° de maio de 1891, fornece-nos um exemplo desse gênero. Não há dúvida que alguns anarquistas apareceram armados na praça de Saint-Croix de Jerusalém, e com a intenção de usar suas armas. Um agente da polícia foi morto com uma punhalada nos rins; e várias pessoas ficaram feridas. Devemos admitir certamente que a influência do número, os discursos violentíssimos que foram pronunciados e todas as demais circunstâncias que aumentam a intensidade das comoções numa multidão, puderam arrastar os criminosos além da sua intenção e levá-los a excessos que eles mesmos não teriam querido; mas é claro que em semelhantes casos, a reação social deverá ser muito mais severa do que nos outros, porquanto não se trata aqui de crimes imprevistos; a multidão não produziu o crime, ela apenas ofereceu a ocasião de cometê-lo(186).

O mesmo raciocínio poderá fazer-se para uma forma de crime coletivo felizmente desconhecido na Europa, mas que é muito freqüente em várias regiões da América: refiro-me à lei de Lynch. Os linchadores sabem, antes de cometer o crime, que o vão perpetrar; unem-se mesmo expressamente para isso. Importa pouco, portanto, se depois, pelo fenômeno de psicologia coletiva que temos tantas vezes feito notar, eles ultrapassem a sua intenção: quiseram e tornaram a querer, senão nos pormenores, pelo menos na substância o crime que cometeram. Não poderá haver, portanto, senão uma fraquíssima desculpa em seu favor.

No entanto, repito-o, mesmo nos casos em que o crime é premeditado não devemos esquecer o motivo. A lei de Lynch para com a qual não tenho todo o horror que muitos mostram ter*, posto que seja o primeiro a reconhecer que é uma forma bárbara de justiça sumária, sem nenhuma garantia(187), a lei de Lynch, dizia eu, pode ser ocasionada por uma explosão de indignação por um crime atroz(188); nesse caso, ainda que condenável, tem muitas atenuantes. É justamente proibido pelas leis, na nossa época, fazer justiça pelas próprias mãos; mas em certos casos, a lei condena e a consciência absolve. Um filho que mata aquele que ultrajou a mãe, é um homem que a lei pode punir, mas a quem toda a gente aperta a mão.

É verdade que não há desculpa tão forte nem provocação tão direta para a lei de Lynch; mas não podemos negar que muitas vezes o sentimento donde partem os linchadores é altamente moral; não tem de bárbara senão a forma.

De outra parte, há linchamentos bárbaros tanto no sentimento como na forma; e a lei deve ser severa contra estes.

Mas ponhamos de lado essas formas de crimes coletivos premeditados (que mereceriam um longo estudo, mas que não entram no nosso tema) e voltemos aos crimes repentinos da multidão. Vejamos qual será a pena ou melhor a reação social para reprimir esses crimes, não esquecendo ter em consideração acima de tudo o motivo pelo qual a multidão os cometeu.

A escola positivista não pode, parece-me, dar, a isto uma resposta decisiva; ainda muito menos, dar uma fórmula que valha para todos os casos.

Pode haver na multidão, como já vimos, criminosos natos e criminosos ocasionais; pouco importa que tenham cometido os mesmos crimes. A pena deverá ser aplicada, na minha opinião, medindo-a não só conforme a gravidade objetiva do crime perpetrado, mas também conforme a temibilidade de quem o cometeu; e não se poderá medir essa temibilidade senão caso por caso.

Acrescentemos que, para o crime coletivo não é sempre possível tomar por guia algumas regras gerais que podemos fixar para o crime individual, conforme a maneira como o crime foi executado.

O criminoso isolado, por exemplo, que mata várias pessoas sem motivo aparente — por bruta maldade, conforme a frase clássica — deverá ser sempre punido com o maximum da pena, porque podemos afirmar a priori que se manifestou, pelo seu crime, criminoso-nato ou louco.

Se quiséssemos estabelecer o mesmo princípio para o crime coletivo, seríamos, às vezes, inexato.

Um homem pode cometer muitos homicídios numa multidão, sem ser por isso um criminoso-nato. A embriaguez moral de que é vítima pode arrastá-lo a tais excessos; e é só depois de tê-los cometido que compreende — como saindo de um sonho — a que enormidades se deixou arrastar. Tem o arrependimento sincero e o remorso, desconhecidos no delinqüente por tendência co-natural.

Taine conta que, durante a revolução de 1793, certo indivíduo, muito honesto, matou cinco padres num só dia; e depois morreu cheio de remorsos e de vergonha.

Assim como a crise nervosa, na qual cai o sugestionado depois de ter cometido um crime imaginário no estado hipnótico, é uma prova da sua repulsão orgânica contra o ato consumado, do mesmo modo esse remorso e esse arrependimento depois de um crime real provam que o homem não era inteiramente mau. A pena de morte seria uma pequena injustiça para ele(189).

Não podemos, portanto, prescrever abstratamente nenhuma regra absoluta.

É necessário, nisto mais do que noutra qualquer coisa, cingirmo-nos ao princípio supremo da nossa escola, indicar a forma e a medida da reação conforme o caráter particular de cada delinqüente.

A escola positivista vê, reconhece, examina pacientemente as infinitas causas dos crimes de uma multidão; — tudo isso lhe serve para julgar com a maior competência — mas não tem a pretensão de querer tirar do estudo dessas causas uma conclusão tão exata, que possa valer para todos os casos.(190)

Quanto ao estado atual, achando-se a escola clássica ainda em pleno império, é necessário dar uma regra geral.

“Esta regra, disse eu na minha primeira edição, não pode ser senão a que Pugliese propôs: fixar que os crimes perpetrados por uma multidão devem ser sempre considerados como realizados por indivíduos semi-responsáveis”. — Eu próprio reconheci o absurdo dessa desculpa do vício parcial do espírito, por causa da falta de justeza da fórmula adotada(191). E sobretudo porque essa fórmula serviria não só ao delinqüente ocasional (para o qual teria sido justa nos seus efeitos) mas também ao delinqüente-nato, para quem teria sido uma injustiça e um dos numerosos favoritismos que lhe vêm da lei. No entanto, não pude encontrar uma melhor fórmula.

Garofalo, ocupando-se da minha obra(192), encontrou muito habilmente o meio de harmonizar as idéias da escola positivista com as disposições dos códigos.

“Creio, escreveu ele, que precisamente na matéria de que se trata, a nossa legislação presta-se de uma certa maneira praticamente, à distinção que Sighele quer fazer (e que só admito em certos casos) entre o criminoso-nato e o criminoso ocasional, autores de um crime idêntico perpetrado numa multidão. Com efeito, se é possvel esta distinção por que não aplicar a pena com todo o seu vigor ao críminoso-nato, ao passo que a aplicariam atenuada por vício parcial de espírito, ou por outras desculpas, ao criminoso passional?

“Por que quereria Sighele fazer declarar semi-responsáveis os que atiraram Watrin pela janela quando se tinha a prova de que eram criminosos natos?

“É certo que a legislação atual não conhece as categorias dos criminosos sugeridas pela nossa escola. Mas aplicando certas atenuantes ou certas desculpas, posto que pouco cientificas, praticamente (e os juízes, magistrados ou jurados, fazem-no todos os dias) a tratar diferentemente os autores de um mesmo crime, conforme o caráter particular de cada um deles”.

Não posso senão aprovar, estas palavras.(193)

Contentemo-nos, portanto, por agora, em esperar que o bom senso dos juízes aplique as nossas idéias aos crimes de multidão. Essas idéias penetrarão mais tarde nos códigos. Entretanto, ter estudado o fenômeno do crime coletivo, quer dizer ter preparado o terreno para as reformas legislativas. E o fim e o dever do escritor — disse Filangieri — é precisamente fornecer os materiais úteis aos que governam.


APÊNDICE
O despotismo da maioria e a psicologia coletiva

 

Espero que o leitor (se teve a paciência de chegar até aqui) não terá esquecido a teoria da imitação-sugestão desenvolvida, sobre os princípios de Tarde, no primeiro capítulo desta obra. Julgo que essa teoria, quando aplicada ao direito constitucional, pode esclarecer o princípio da supremacia das maiorias, que é hoje a base da nossa vida política.

É por isso que acrescento, em suplemento, estas breves considerações, mal querendo tocar num tema que mereceria, na minha opinião, ser tratado amplamente.

* * *

Contra o despotismo das maiorias combatem valentemente, ainda que sob diferentes pontos de vista, dois batalhões de pensadores: um, mais numeroso talvez e certamente mais ativo, é o dos individualistas — o outro é o que chamarei por agora dos aristocratas, reservando-me para mais tarde explicar melhor o sentido da palavra.

Os individualistas, que descendem de Stuart Mill e de Spencer, têm, como indica o seu nome, este único objetivo — inteiramente justo, e na minha opinião inatacável: — de fazer valer os direitos do indivíduo contra os do Estado, e os quais tomam todos os dias uma maior amplidão. — “A função do liberalismo no passado, escreve Spencer, foi pôr um limite ao poder dos reis; a função do verdadeiro liberalismo no futuro será limitar o poder dos parlamentos”.(194)

Antes dele, Stuart Mill ditara estas palavras, que posto que se refiram a outra coisa, exprimem todavia um pensamento análogo ao de Spencer: — “Quando toda a espécie humana, menos um só homem fosse de opinião contrária, a humanidade não teria o direito de impor silêncio a essa pessoa, como essa pessoa não teria, se pudesse, o de impor silêncio à humanidade.”(195)

Spencer e Stuart Mill querem, pois, que se respeite a maioria, no que me parece ninguém o pode contradizer. Pode discutir-se sobre a natureza dos limites que devem pôr-se ao direito dos demais; mas que se lhes devem pôr limites ninguém se atreverá a negá-lo.

Os dois autores que citei, e com eles naturalmente também os seus discípulos, não ofendem em coisa alguma o princípio aritmético que sustenta toda a política; admitem que o número deve ser o único juiz em todas as decisões que um Estado, e, por ele, um Parlamento, tem o direito de tomar; simplesmente queriam diminuir tanto quanto possível as funções atribuídas ao Estado, e, por conseguinte, as decisões que deverá tomar, — para deixar mais liberdade e facilidade ao indivíduo.

Os que chamei de aristocratas (e é da opinião destes que devemos ocupar-nos) sustentam, pelo contrário, que o despotismo da maioria é absurdo. Eis a razão: A maioria, dizem eles, não é e não pode ser senão vulgar e intelectualmente medíocre; deixar-se dirigir por ela será, portanto, a mesma coisa do que dar o cetro à mediocridade. A lógica requer que os mais inteligentes, que estão em menor número, dirijam o mundo; em vez de deixá-lo dirigir pelos menos inteligentes que estão em maior número. É uma asneira que a voz de cem camponeses ou de cem operários tenha o mesmo valor que a voz de cem homens cultos.

Como se vê, estes, seguindo o exemplo de Carlyle, têm feiticismo pelo gênio e desprezo desdenhoso pelo filisteu (e foi por isto que lhes chamei aristocratas) e recusaram a este todo o direito, atribuindo ao primeiro a prerrogativa de governar os homens.

Stendhal disse: — “Prefiro prestar as minhas homenagens a Guizot do que ao meu porteiro”, — resumindo de um modo mordaz, conforme o seu costume, esse aparente paradoxo que, pondo a origem do poder nas baixas camadas, parece sujeitar a inteligência ao número.(196)

Para falar francamente, quando se reflete bem sem idéias políticas preconcebidas, no sufrágio universal, tem-se vontade de perguntar: Mas para que, por que motivo oculto um porteiro ou um amolador têm um voto que vale tanto como — suponhamos — o de Herbert Spencer? E, levada a estes termos a questão não pode, parece-me, ser resolvida senão de uma só maneira, isto é, admitindo a falta de lógica da lei que, contrariamente, ao que sucede na natureza, põe no mesmo nível dois seres desiguais.

Mas quando consideramos as coisas um pouco mais profundamente, a primeira impressão muda e muito.

Com efeito: é positivamente verdadeiro, que, quando a maioria tem a supremacia, é sempre a maneira de ver, a opinião dos indivíduos medíocres de inteligência, e fortes apenas em número que têm primazia? ou não é mais verdadeiro que é a idéia que soube atrair sobre si própria o maior número de sufrágios, isto é, idéia que tinha em si própria a maior força de atração, e que devia ter nascido, por conseguinte, da cabeça de um homem superior?

Não sei se as minhas palavras conseguem traduzir exatamente o meu pensamento, mas parece-me que, desde este momento, podemos entrever onde eu quero chegar; e qual é a conseqüência que podemos tirar da aplicação da psicologia-coletiva ao direito constitucional.

* * *

Lancemos um olhar pela história.

Nas antigas eras, quando imperava a força material, quem era o chefe da tribo ou do clã? Era um fraco?

Mais tarde, quando a força material se une à força de inteligência, eram os tolos que governavam os povos?

E era, portanto, unicamente pelo terror ou pela impostura que os homens fortes e enérgicos imperavam sobre as multidões? — “Não, essa explicação — escreve Tarde — é manifestamente insuficiente. Imperaram pelo seu prestígio. O exemplo do magnetizador faz-nos, por si só, compreender o sentido profundo desta palavra. O magnetizador não tem necessidade de mentir para ser acreditado cegamente pelo magnetizado; não carece de aterrorizar para ser passivamente obedecido. É prestigioso, isto diz tudo. Isto significa, na minha opinião, que há no magnetizado uma certa força potencial de crença e de desejo imobilizado em recordações de todo o gênero, adormecidas, não porém mortas, que essa força aspira a atualizar como a água do tanque a correr, e como só por conseqüência de circunstâncias singulares, o magnetizador está em condições de lhe abrir essa saída necessária. Salvo o grau, todo o prestigio é parecido. Quantos grandes homens, de Ramsés a Alexandre, de Alexandre a Maomé, de Maomé a Napoleão, popularizaram a alma do seu povo! Quantas vezes a fixação prolongada deste ponto brilhante, a glória, ou o gênio de um homem fez cair um povo inteiro em catalepsia“.(197).

Ora, se concebemos a história desta maneira e se pensamos que o que diz Tarde pode generalizar-se e aplicar-se a todos os homens, guerreiros, pensadores, artistas que imperaram e que imperam sobre as multidões, podemos dizer que a maioria ergueu ela mesma, espontaneamente, esses homens sobre um pedestal de glória? É assim que se diz; mas a verdade é que esses homens se impuseram à maioria, que os seguiu inconscientemente como o hipnotizado segue aquele que o hipnotiza.

Partindo destes exemplos, que não contêm senão algumas exceções, perguntamos se o que sucede para os gênios não sucede também, mais ou menos, para todos os homens que se sobressaem num determinado ponto. Por que razão perderia neste caso todo o seu poder a lei de sugestão?

Compreendem que não haveria razão alguma para justificar essa singularidade, e sabem — pelos fatos que sucedem todos os dias — que a sugestão conserva um poder incontestado sobre todas as formas da atividade humana.

O regime da idade média, que admitia que aquele que tinha o braço mais forte e o coração mais audacioso construísse o seu ninho de falcão no cimo da montanha, ao passo que em volta dele, os mais humildes se ajuntavam nas choças e se submetiam ao poder, existe ainda hoje, posto que os costumes não sejam os mesmos. Hoje ainda, o que tem mais espírito, coragem, habilidade e sabe inspirar mais confiança nos outros, esse eleva-se acima de todos, e arrasta após si a turba inconsciente.

Na religião e na ciência, na política e nos negócios, em qualquer manifestação de espírito humano, vemos formar-se um grupo de certo número de indivíduos em volta de poucos ou de um só. Constituem então uma igreja, uma escola, uma classe, um partido — e combatem como soldados em batalha, sob a sugestão de um capitão, que personifica, melhor que os outros, um sentimento, um interesse, ou uma idéia.

Quando se diz, portanto, numa questão qualquer: a maioria é de tal opinião — exprime-se um fenômeno que deveria ser expresso assim, para se falar inteiramente a verdade: a opinião de X sugestionou a maioria; isto é, a opinião de um determinado individuo, hoje um orador, amanhã, talvez, um jornalista, tinha em si própria tanta eficácia que ela se impôs à multidão melhor e mais depressa do que qualquer outra.

“Não ter senão idéias sugeridas e julgá-las espontâneas, é, diz Tarde, a ilusão própria do sonâmbulo como do homem social.”(198)

Voltando agora à pergunta que formulamos mais atrás, podemos responder aos aristocratas, dizendo: que se enganam, se julgam que o despotismo da maioria significa a vitória do vulgo; que não é verdade que a sociedade seja dirigida pelos menos inteligentes que existem em maior número; mas que, pelo contrário, são aqueles que existem em menor número, isto é, os mais inteligentes que arrastam o público atrás de si e lhe impõem a sua vontade.

O supremo direito da maioria parece, ao observador superficial, a vitória do número, ao passo que é, apenas, no fundo, a homenagem inconsciente dos homens medíocres aos homens superiores.(199)

* * *

Prevejo uma objeção muito natural. Não é verdade, dirão, que a maioria se inclina logo diante dos homens superiores, na política, na arte, na ciência. Os homens de talento ficam quase sempre isolados durante a sua vida, porque devem lutar contra o misoneísmo do público.

Isto é inteiramente verdade.

Mas que significa?

Significa que na sociedade as idéias medíocres triunfam, justamente porque o maior número, isto é, os que mandam, na aparência, são os medíocres? A história de toda a sociedade está aí para nos provar que só as idéias úteis sobreviveram, noutros termos: foram acolhidas pela maioria e foram perpetuadas. Mas, nós próprios, não admitimos que as idéias que são hoje o patrimônio exclusivo de alguns pensadores serão aceitas amanhã por muitos, e, mais tarde, por todos? Mas, nós próprios, não admitimos que se uma idéia saída do cérebro de um homem não se insinua em todas as cabeças, isso significa que era digna de morrer logo à nascença?

Não convertamos um princípio geral numa mesquinha questão de tempo. Há sugestão imediata — própria sobretudo dos sentimentos — e há sugestão mediata, — própria sobretudo das idéias. O fenômeno não muda, no segundo caso, porque se realiza mais lentamente.

Devemos encarar o mundo sob um ponto de vista mais elevado.

Ver-se-á então que a opinião da turba, quer seja formada instantaneamente ou a pouco e pouco, com tempo, deriva sempre da opinião de um só homem ou de poucos. Ver-se-á propagar-se a sugestão com a rapidez do raio ou de um modo lento e regular e ser-se-á obrigado a convir que a vontade da maioria não é nunca a soma das vontades daqueles qua a compõem (o que daria um resultado medíocre) mas antes o reflexo, e, por assim dizer, a reprodução inconsciente da vontade de um só indivíduo.

Se alguém censurasse a maioria pela lentidão com que às vezes se efetua nela o fenômeno da sugestão, mostraria não compreender, na minha opinião, quanto é benéfica a lei que deu à maioria, em vez de ao pequeno número, o direito de fazer prevalecer acima de tudo a sua opinião.

Se seguíssemos o modo de ver dos aristocratas e se um Estado fosse governado despoticamente por alguns homens superiores, aconteceria certamente que muitas das reformas úteis se fariam, antes da maioria o ter permitido. Mas este ganho de tempo transformar-se-ia muitas vezes numa grande perda de tempo e de esforços, porquanto não estando ainda a maioria preparada para essas reformas, ela não as esqueceria. Redundaria numa inutilidade.

O pequeno número inicia as reformas quando ainda estão prematuras; e nada, compreende-se muito bem, causaria mais dano do que essa precipitação. Se em vez disso, deixássemos que a idéia fizesse o seu caminho e que só se efetuasse quando tivesse terminado a sua obra de sugestão sobre a multidão, estamos certos que essa idéia não seria aplicada senão quando essa aplicação fosse oportuna e por conseqüência eficaz.

O despotismo da maioria, visto à luz da psicologia coletiva, não é, pois, como dizem alguns observadores superficiais, o império do vulgo.

Não se justificam, também, como querem outros, pelo princípio — muito aritmético, para ser verdadeiro em sociologia — que o número é tudo.

Visto que a opinião do maior número não é, no fundo, afinal, senão a opinião dos homens superiores penetrada lentamente na multidão, o despotismo da maioria reduz-se portanto ao despotismo das idéias geniais, quando a sua aplicação é oportuna e amadurecida.

 

FIM


Notas

(1) Spencer, Introduction à la science social — Chap. III.

(2) Obra cit. pag. 55.

(3) Comte, Système de politique positive — pag. 329 e seguintes.

(4) Schopenhauer, Il mondo come volontá e come rappresentazione — Liv. IV.

(5) Gobba, Intorno ad alcuni più generali problemi della scienza sociale; Gumplowicz, Grundis der sociologie; De Greef, Introduction à la sociologie; Letourneau, L’évolution du mariage et de la famille — para só citar os principais — chamaram pura metáfora à conformidade do organismo animal com o organismo social. Ferri, nos Nuovi Orizsonti, responde-lhes muito bem, assim como Sergi, no artigo La sociologia e l’organismo delle società umane (inserido no volume de 1889 da Antropologia e scienze antropologiche). — Que a sociedade é um verdadeiro organismo, foi aliás provado esplendidamente, não só por Comte e por Spencer, mas também por Schaeffle na sua obra Baü und Leben des socialen Korpers, por Espinas na introdução histórica do seu volume Des Sociétes anímales, e por Cazeles na Introduzione ai primi principii. — Spencer insiste, em todas as suas obras, na afirmativa que a sociedade é um organismo. No seu livro Social statics, a páginas 481, escreve: “como o desenvolvimento pode definir-se uma tendência a tornar-se alguma coisa.” Há portanto, outro caráter, o da individuação, que é tão comum à sociedade como a todo o organismo.

(6) G. Sergi, Antropologia e scienze antropologiche — pag, 128.

(7) V. Spencer, Les premiers principes, cap. XIV, e Artigo, Opere filosofiche, vol. II, La formazione naturale nel fatto del sistema solare.

(8) V. Fulvio Cazzaniga, L’ambiente — cap. II e XV.

(9) Esta verdade — evidente por si própria — é afirmada por todos os escritores indistintamente. — A. Vaccaro, Genesi e funzione delle leggi penali, cap. I. — Tocqueville disse: “As classes que compõem a sociedade formam outras tantas nações diferentes”. (La Démocratie en Amérique, tomo I, cap. VI). — Consulte-se também Bagehot, Lois soientifiques du développement des nations, e Spencer, Introduction à la science sociale, cap. X, Les prejugés de classe.

(10) G. Tarde — La philosophie penal — pag. 118.

(11) R. Garofalo — Un giuri di persone colte, no Archivio di psichiatria, scienze penali e antrologia criminale, vol. II. fasc. 3.° pag. 374.

(12) Bataille — Causes criminelles et mondaines, pag. 283.

(13) Contam-se aos milhares os veredictos absurdos do júri. Vejam-se alguns mencionados por Lombroso, Sull’incremento del dilitto in Italia, pag. 49 e seguintes — Carelli, Verdetti di giuratti, no Archivio di psich., scienze penali et antrop. crimin. vol. VII, liv. 6° — Olivieri, Un verdetto negativo in tema di furto qualificato, nos mesmos Archives, vol. IX, 1° — e Garofalo, Una quindicina alle Assise, em La Scuola positiva, année I, N. 7.

(14) A. Gabelli, L’instruction en Italíe, 1a. parte, pag. 257, 258.

Noutra página do mesmo volume, Gabelli aplica a um caso especial as idéias gerais a que me referi acima e as suas palavras valem a pena ser lembradas: “Para a eleição de um reitor — escreve ele a propósito das Universidades — acontece algumas vezes como noutras eleições uma coisa um pouco estranha a princípio, mas que não é tão difícil de explicar como parece. Noutras eleições não é raro que os votos se acumulem sobre a pessoa de que cada qual, no próprio ato de a tornar superior a si próprio, dando-lhe o seu voto, tem todavia a convicção íntima de valer mais. Sucede outro tanto, às vezes, na escolha do reitor. Escolhe-se aquele que fere menos o amor próprio, o que faz menos sombra, o mais insignificante. Muitas vezes procura-se também o mais tolerante, o mais indulgente, enfim o homem que tem menos energia e vontade e que menos poderá impor-se. Daqui resulta que o eleito não tem a confiança daqueles que lhe foram contrários, mas não tem também a daqueles que lhe foram favoráveis; cada um deles sabe perfeitamente a razão por que lhe deu o seu voto. Sucede mesmo, às vezes, que, depois da eleição, aqueles que eram favoráveis ao pleito, pendem menos a seu favor do que os adversários”.

(15) Max Nordau. Paradoxes, cap. III. Voltaremos a esta sutil explicação, que tem, como se vê, um substratum biológico de grande importância.

(16) E. Ferri, Nouveaux Horizons — pag. 484.

(17) Ob. cit. pag. 483.

(18) V. Ferri, ob. cit. pag. 351, nota I.

(19) Bentham, falando das assembléias políticas e do júri inglês, fazia notar a grande diferença que há entre as manifestações dos corpos políticos que têm uma existência permanente, e as manifestações dos corpos políticos que têm uma existência da ocasião e passageira, e dizia que os primeiros dão mais facilmente que os segundos, resultados que correspondem aos verdadeiros interesses e às verdadeiras tendências dos seus membros. — V. Tactique des Assemblées politiques délíberantes, extratos dos manuscritos de J. Bentham, por Et. Dumont.

(20) O próprio Spencer o reconheceu: “Recordaremos aqui, escreveu no capítulo III da Introduction à la science sociale, que os agregados sociais apresentarão evidentemente tantas mais propriedades comuns, quantas mais propriedades comuns há em todos os seres humanos considerados como unidades sociais.”

(21) Del delitto collectivo.

(22) Obra cit.

(23) V. La complicítá no Archivo di psichiatric, scienze panali ed antropologia criminale — vol. XI — fasc. 3-4.

(24) Refiro-me ao Código penal italiano, mas o meu raciocínio pode aplicar-se também ao Código penal francês.

(25) Há uma sentença no tribunal de Bari, que julgou, a requerimento do advogado Pugliese, a semi-responsabilidade dos acusados de crimes cometidos na fúria da multidão.

(26) V. Ferri, Nuovi orizzontí, pag. 128 e seguintes: Os positivistas franceses (e particularmente Tarde) só admitem que “o homem seja sempre responsável por toda a ação antijurídica que comete, e sustentam que há casos de irresponsabilidade.” — Veremos no capitulo III o valor desta teoria.

(27) G. Tarde, La philosophie penal, pag. 320 — Flaubert, o profundo psicólogo, tem também esplêndidas páginas acerca da multidão.

(28) “Uma multidão tem o poder simples e profundo de um vasto uníssono” G. Tarde, obr. cit. pag. 351.

(29) Tirado de uma obra do jornal de medicina: The Lancet. V. Contribuzion alla dottrina della responsabilita penale nel delltto collectivo, de Pugliese, na Revista di giurisprudenza.

(30) A. Bordier, La vie des sociétés, pag. 76.

(31) V. G. Tarde, Les lois de l’imitation.

(32) V. G. Tarde, obr. cit., cap. I.

(33) G. Tarde. Obr. cit.

(34) Max Nordau, Paradoxes, pag. 75.

(35) V. Nordau e também J. Stuart Mill, La libertá, pag. 95 e seguintes.

(36) V. Bagehot, obr. cit. pag. 104 e seguintes.

(37) Parece-me que sustentar a universalidade do instinto de imitação, é sustentar implicitamente a existência do Misoneísmo na natureza humana. Tarde, que pintou tão bem as leis da imitação, julga, pelo contrário, que elas não admitem o misoneísmo; porque, diz ele, se se imita tudo e sempre, deve imitar-se não só o que é velho, mas também que é novo. Ora, não nego que uma parte das nossas imitações seja determinada pelo amor do que é novo, mas nego que a existência de um filoneísmo deva excluir a do misoneísmo. A maioria é misoneísta para uma inovação de pouca ou nenhuma importância. Os dois fenômenos procedem separadamente e paralelamente; não é, pois, possível confundi-los. E não carecia de acrescentar outra coisa, se não tivesse de refutar uma observação — na aparência muito sutil — que Tarde fez a Lombroso (Le delit. politique, na Revue scientifique).

“Como exemplo do misoneísmo nacional — escreve Tarde — Lombroso cita o povo francês que, desde Estrabão, permanece o mesmo, não belicoso, apaixonado por novidades. A contradição a este respeito é de tal modo saliente que devemos atribuí-la a um lapsus calami”.

Pelo contrário, não há nenhuma contradição, se quisermos refletir bem na distinção feita mais atrás. Uma nação pode ser misoneísta e apaixonada por novidades ao mesmo tempo, como uma senhora que gosta de mudar de vestidos conforme a moda, e fica incrédula diante das descobertas da ciência e mostra-se ofendida por lhe dizerem que a religião não passa de um amontoado de preconceitos.

(38) Devemos acrescentar, também nos animais.

“Na Évolution mentale chez les animaux, por Romanes, há um capítulo interessantíssimo consagrado à influência da imitação sobre a formação e o desenvolvimento dos instintos. Esta influência é maior e está mais espalhada do que se supõe. Não só os indivíduos da mesma espécie, parentes, ou, até não parentes se imitam, — muitas aves canoras precisam que as suas mães ou seus camaradas lhes ensinem a cantar, — mas ainda indivíduos de espécie diferente se apoderam das suas pariticularídades úteis ou insignificantes. Revela-se nisto a necessidade profunda de imitar por imitar, fonte primeira das nossas artes. Darwin julgou observar que as abelhas tinham tirado a um vespão a idéia engenhosa de sugar determinadas flores, perfurando-as pelo lado. Há aves, insetos, e alguns animais de gênio, e o gênio, mesmo no mundo animal, pode contar com algumas vitórias — simplesmente, à mingua de linguagem, esses esboços sociais abortam”. — V. Tarde, obs. cit.

(39) Ebrard, Le suicide considéré au point de vue medicai, philosophique, etc., cap. VII.

(40) Jolly, De l’imitation na Union medicale, T. VIII, pag. 369.

(41) O dr. Prosper Despine nas suas duas obras: De la contagion morale e De l’imitation considéré au point de vue des différents qui la determinent; Moreau de Tours, no volume: De la contagion du suicide à propos de l’êpidemie actuelle, e na comunicação: Um mot sur la contagion du crime et sa prophylaxie, na Union medicale, tom. XXII, n° 88. — Antes deles, La Rochefoucauld (Maximes) já fizera alusão ao fenômeno do contágio moral; Brierre de Boismont, ao fenômeno do contágio do suicídio, no seu livro: Du suicide et de la folie suicide, pag. 258 e seguintes; — Calmeil e Prosper Lucas falaram do contágio da loucura, o primeiro na sua obra, ainda hoje nova: De la folie considérée sous le point de vue pathologique, philosophique, etc., — e Prosper Lucas na brochura: De l’imitation contagieuse ou de la propagation sympathique des névroses et des monomanies.

Recordo aqui, como curiosidade, que em 1866, Emile Augier fez representar uma comédia intitulada: La contagion. Presentemente, a idéia do contágio moral tornou-se uma idéia comum, e talvez, até, se tenha abusado dela. Basta citar Caro na suas Mélanges et portraits, pag. 247, e ainda Aubry, no seu belo livro: La contagion du meurtre.

(42) Despine, De la contagion morale, pag. 13.

(43) A força do contágio no suicídio é mais evidente talvez do que nos outros fenômenos. Há o fato dos 15 inválidos que se enforcaram sucessivamente, num curtíssimo espaço de tempo, num gancho que havia num corredor escuríssimo do edifício. É também sabido que depois de um lorde, farto da vida, se ter lançado na cratera do Vesúvio, muitos ingleses seguiram o exemplo. Poderíamos narrar numerosos fatos semelhantes. Vid. as obras cit. de Ebrard e de Brierre Boismont, e a de Morselli, Le Suicide.

(44) Quanto à epidemia dos crimes, não julgo que seja preciso dar exemplos. Todos nós devemos tê-lo notado muitas vezes. Vejam-se, a este respeito, além doutros autores modernos conhecidos: Despine, Psychologie naturelle, vol. III, pag. 386 e seguintes. — Bastará recordar aqui as duas epidemias análogas de homicídios cometidos com revólver e com vitríolo por mulheres contra os amantes; epidemias que houve em França, sobretudo depois que Maria Bière, em 1880, matou com três tiros de revolver o seu sedutor que a abandonara; e depois que Clotilde Andral, também em 1880, desfigurou o amante com vitríolo. Vejam a coleção das Causas criminais e mundanas de A. Bataille. — Lembro-me a este respeito que, segundo o professor Brouardel, o ponto de partida da série de crimes a vitríolo foi o romance de A. Karr, no qual se lê a história de um marido traído que se vinga desfigurando a esposa, com vitríolo.

(45) Na Revue philosophique, artigo: Qu’est-ce qu’une société?

(46) Citamos, entre outros, Taine, Ribot, Espinas. Taine escreveu a Tarde, dizendo que a sua teoria era a chave que abria quase todas as gavetas. — Vide a propósito do livro de Tarde, Les lois de l’imitation, uma polêmica entre o autor e Jules Fioretti na Scuola positiva.

(47) Faço aqui alusão à epidemia convulsiva de que foram atacadas em 1878 as mulheres da comuna de Verzenis, no Frinli, excitadas pelos sermões de um energúmeno e pelas práticas de religião. Vid. Franzolini, La epidemia di demonopatia in Verzenis, na Revista sperimentale di freniatria e di medicina legale. — Poderíamos citar uma infinidade de epidemias semelhantes, como a de Lazzaretti, etc.

(48) C. Lombroso e R. Laschi, Delitto politico, pag. 130. [Refere-se aos shakers, grupo milenarista fundado em 1772.]

(49) São seitas de indivíduos mais ou menos exaltados e doentes que acompanham o movimento niilista na Rússia. Os stundistas querem que tudo seja comum; os cholaputas são os adoradores extáticos dos espíritos satânicos; os scopzios fazem-se castrar. — Vid. Tsakni, La Russie sectaire.

(50) Renan, Les apôtres.

(51) Lombroso e Laschi, ob. cit. — É interessante notar aqui que esse tempo de loucura que preludiou a Renascença, na Alemanha, tomou o nome de Sturmisch, ou período da Tempestade. A língua alemã confirma, até nisto, a sua reputação de língua filosófica.

(52) Legrand du Saulle, Le délire des persécutions.

(53) Euphrasie Mercier, uma louca assassina, tinha este poder sobre a sua amiga Eloide Menetret, que mais tarde foi sua vítima. — Vide, o processo intentado contra ela nas Causes criminelles, de Bataille, pag. 54.

Tebaldi dá um exemplo típico do delírio de dois. “Eis uma forma de dois, escreve ele, na qual a imitação — diríamos antes a sugestão — é a causa insidiosa: havia numa pequena aldeia da província de Veneza, um casal de dois seres, nascidos sob a mesma má estrela, que compartilhavam das mesmas necessidades e lutavam contra a mesma miséria. O marido e a mulher foram atacados da mesma doença e a preocupação das desgraças impeliu-os a atribuir a causa às injustiças do Município, que distribuíra mal, na opinião deles, os socorros dos pobres. Exaltaram-se ambos, e decidiram ir imediatamente gritar-lhe imprecações e ameaçar as autoridades. A mesma carruagem os levou ao hospital; despediram-se com o entusiasmo de quem deveria tornar a ver-se num Éden, e sob a mesma forma delirante nas respectivas salas” — V. Ragione e follia, pag. 143.

(54) Roscioli conta um caso de loucura de quatro (no Manicomio): Marido e mulher, honestos e laboriosos aldeões, têm três filhas. A mais nova, de 18 anos, é atacada de repente, na igreja, de um forte acesso de loucura e é trazida para casa. Ao vê-la, o pai fica tão profundamente comovido que, após oito dias, apenas, se apodera dele um estado ansioso de panofobia. Pouco depois à mãe sucede o mesmo; finalmente quinze dias depois a filha mais velha é atacada de exaltação mental.

Muitos outros casos semelhantes podem ler-se nas obras de Jorger, Tuque, Martinenq e Verner, citados por Seppilli (La pazzia indotta, na Rivista sperimentale di frenatria.)

(55) Sobre estas formas de loucura — principalmente sobre a loucura de dois — depois da comunicação feita por Lasègue e Falret na Academia de medicina (La folie à deux, nos Ann. méd. psych.) não têm faltado obras assim como discussões sobre o nome clínico que deve dar-se-lhe. Uns queriam chamá-la loucura comunicada, outros loucura imposta, outros simultânea (V. Regis, La folie à deux; ou folie simultanée) e atribuem-lhe também causas diferentes. Venturi apresentou a primeira hipótese de sugestão (em seguida adotada por Sergi) na sua obra: L’allucinazíone a due e la pazzia a due, no Manicomio — V. a obr. cit. de Seppilli.

(56) J. Rambosson, Phénomènes nerveux, intellectuels et moraux, leur transmission par contagion — pag. 230.

(57) Ob. cit.

(58) Le crime et la folie, pag. 214. A mesma observação fora feita em relação à Loucura por Leuret, Du traitement de la folie; Flourens, Psychologie comparée, e Vigna, II contagio nella pazzia.

(59) V. Dictionnaire des sciences médicales, citado por Rambosson, obr. cit.

(60) Chpolianski, Des analogies entre la folie à deux et le suicide à deux; Garnier, Le suicide à deux, nos Annales. d’hygiène. publique: e a minha brochura: L’evoluzione dal suicídio all’omicidio nei drammi d’amore, no Arch. de psych. sciences pen. et anthrop. crimin.

(61) Para este último caso, consultem Bataille, Causes criminelles et mondaines de 1885, pag. 22; — Anfosso, Di alcuni fattori del suicidio, em que se refere ao suicídio de três das irmãs Romaco. Arch. di psichiatria, pag. 176.

(62) Ebrard — obr. cit.

(63) V. a minha obra: La coppia criminale.

(64) V. H. Joly, Le crime, no cap. L’association criminelle.

(65) V. Aubry, ob. cit. III parte, cap. II.

(66) Henry Fouquier, Les moeurs brutales, no Figaro.

Ocupar-nos-emos mais intensamente das diferentes formas da associação criminosa, devidas à sugestão.

(67) Esta lei, que Espinas, como os mais ilustres psicólogos modernos contribuíram para pôr às claras, foi já formulada por Cabanis no começo deste século — “pelo único poder dos seus sinais, escrevia, as impressões podem comunicar-se de um ser sensível para outros seres que, para compartilhá-las, parecem então identificar-se com ele. — V. Cabanis, Oeuvres complètes, tomo III. Prefácio pag. 14 — De resto, a intenção desta lei remonta ainda mais atrás. Horácio, na Art poétique, disse: — Como o riso faz nascer o riso, da mesma maneira as lágrimas fazem chorar; são os nossos rostos que se compreendem; se queres que eu chore, chora tu.

(68) Spencer escreveu também (Premiers principes, VIII: — Há uma correlação e uma equivalência entre as sensações e as forças físicas, que, sob a forma de ações do corpo, são os seus resultados.

(69) A. Espinas, Des sociétés animales — pag. 358 e seguintes.

(70) Rambosson, na sua obra, Phénomènes nerveux intellectuels et moraux, leur transmíssion par contagion, aplicou aos fenômenos nervosos e intelectuais que se transmitem por contágio, a lei da transmissão e da transformação do movimento expressivo. Admita (resumo aqui a sua teoria) que a cada estado psicológico corresponde um movimento cerebral que se manifesta exteriormente por modificações da fisionomia, da posição, dos gestos, coordenados de um modo particular. Este movimento não se detém, mas espalha-se no espaço e comunica-se a outro cérebro, sem se modificar e repetindo o mesmo fenômeno. O riso, o bocejo, a dor, transmitem-se segundo essa lei. A propagação do movimento cerebral a distância é a causa da difusão de todos os fenômenos, dos mais simples aos mais compostos de cada esfera da atividade nervosa.

Como se pode ver, esta teoria é a mesma, no fundo, que a de Espinas que em poucas páginas a desenvolveu mais claramente do que fez Rambosson num volume.

(71) Barbaste, De L’homocide et de l’antropophagie, pag. 97.

(72) Lauvergne, Les forçats, considérés sous le rapport physiologique, moral et intellectuel, pag. 206; Attomir, Theorie der Verbrechen auf Grundsätze der Phrenologie basirt.

Schopenhauer disse que é nas sublevações do povo que se vê revelar-se o egoísmo e a crueldade que são as qualidades fundamentais do homem. — “Quando uma multidão enfurecida rompe todo o vínculo com a lei ou com a ordem, manifesta-se abertamente esse bellum omnium contra omnes, de que Hobbes fez o admirável quadro no primeiro capítulo, De Cive. Vê-se, então, cada qual não só arrebatar aos outros o que deseja, mas também aniquilar a felicidade e a existência dos seus semelhantes, com o único fim de obter um suplemento demasiado mesquinho de bem-estar”. — II mondo come volontá e come reppresentazione — Liv. IV, pag. 83.

Lombroso e Laschi (Delitto político, pag. 140) escreviam analogicamente a Barbaste, a Lauvergne e a Schopenhauer. “Os fermentos primitivos do roubo, do homicídio, da luxúria que cada indivíduo acalenta em estado de embrião, enquanto vive só, principalmente se são moderados pela educação, aumentam de repente como gigantes ao contacto doutrem e tornam-se virulentos nas multidões excitadas.

(73) Na primeira edição desta obra falei, numa nota, do caso em que um indivíduo seria arrastado pela sugestão da multidão a fazer bem, em vez de fazer mal. Escrevi então que nas revoluções políticas pode suceder que um homem arrastado pelo entusiasmo e pela excitação da multidão, se torna um herói e um mártir, ao passo que em época normal teria sido simplesmente um bom cidadão, ou mesmo um mau cidadão, se tivesse vivido num meio corrompido. E citei a este propósito, as palavras pelas quais Moreau descreveu o tipo clássico do garoto de Paris que “em tempo de paz, se torna aos dezesseis anos rufião, ladrão, assassino, e, logo aos dezoito anos entra na Grande Roquette, onde toma o seu bilhete para a Nova Caledônia; em tempo de barricada, esse garoto morre como um herói.” (V. Le monde des prisons — M. G. Albano notou também este fenômeno — Vide Archivio giuridico. Vol. XLVII, fasc. V.

(74) “Num belo transporte de entusiasmo — por exemplo durante a noite de 4 de agosto, — as reuniões podem desenvolver uma generosidade coletiva, de que quase todos os membros, senão todos, são incapazes isoladamente”. — V. Tarde, na critica à primeira edição desta obra (Revue philosophique de novembro de 1891).

(75) Spencer, Les Premiers principes, pag. 194.

(76) Achamos apenas necessário fazer notar que ao falar dos dois únicos fatores, o antropológico e o social, não quisemos excluir o fator físico. Falamos dos dois primeiros e não do terceiro, porque só eles interessavam ao nosso argumento.

Lombroso e Laschi (no Crime politique) ocupam-se da influência do clima nas revoluções e nos motins. Fazendo a estatística das rebeliões, por meses e por estação, na antiguidade, idade média e século passado (XVIII), chegam aos seguintes resultados: que é no verão que o número das revoltas foi sempre mais elevado, e no inverno o mais baixo; que esse número atinge o máximo durante o mês que seguiu o inicio dos maiores calores, julho; que atinge, pelo contrário, o mínimo que segue o início dos frios, novembro.

(77) Isto é, em geral; sabemos também que às vezes a ocasião produz o mesmo efeito fulminante sobre o indivíduo isolado como sobre a multidão; por ex: uma provocação muito grave feita a um criminoso passional.

(78) Esta verdade pode provar-se também em outros casos como os que respeitam aos crimes de uma multidão; por exemplo, nas eleições políticas populares. Um nome, que se soube lançar habilmente a tempo no meio de uma multidão, tem a adesão de todos, involuntariamente, só pelo fato de ter sido pronunciado. Se tivessem pronunciado outro nome, o efeito teria sido o mesmo. Podiam contar-se mil exemplos; um só bastará: “Quando Osman, Imperador dos turcos, foi deposto, nenhum daqueles que cometeram esse atentado pensava em cometê-lo. Eles pediam somente, como suplicantes, que lhe fizessem justiça nalguma das queixas; uma voz que ninguém conhecia, saiu da multidão por acaso: o nome de Mustafá foi pronunciado, e de repente Mustafá foi imperador”. — Montesquieu, Lettres persanes.

(79) Sobre este fenômeno, que deriva do Instinto de conservação, consultem Weissmann, Studien zur Descendenz-Theorie; Girard, La nature; Darwin, Origine delle specie; e Canestrini, La teoria di Darwin.

(80) Lange, Beiträge zur Theorie der sinnlichen Aufmerksamkeit und der activen Apperception.

(81) A. Mosso, La Fatica.

(82) Setschenoff dizia se­me­lhan­te­men­te: “o pensamento ê um reflexo reduzido aos seus dois primeiros terços”. — Citado por Ribot, ob. cit. pag. 89.

(83) Ribot, ob. cit. pag. 79 — Vejam-se: Darwin, Expression des emotions; Preyer, L’âme de l’enfant; Féré, Sensation et mouvement; Mantegazza, La Physionomie; Riccardi, Saggio di studi e di osservazioni intorno all’attenzione nell’uomo e negli animali; e Tissié, Les Rêves.

(84) E. Maudsley, Corpo e mente, pag. 33.

(85) A. Espinas, ob. cit. pag. 360. — Spencer escreveu a este propósito: “Se, pela conexão com um grupo de impressões e de fenômenos de movimento nascentes que dali resultam, se experimenta habitualmente qualquer outra impressão ou fenômeno de movimento, esta, com o andar do tempo, tornar-se-á tão bem ligada ao grupo, que ela nascerá também quando o grupo nascer, ou fará nascer o grupo quando ela própria for produzida. Se, com o ato de se precipitar sobre uma presa ou de agarrá-la, foi sempre experimentado um certo cheiro, a presença deste cheiro fará nascer os fenômenos de movimento e as impressões que acompanham o ato de se precipitar e de agarrar uma presa. Se os fenômenos de movimento e as impressões que acompanham o ato de apanhar uma presa, foram habitualmente seguidos das dentadas, combates e rosnaduras, que acompanham a destruição da presa, então, quando os primeiros se produzirem no estado nascente, farão nascer, por sua vez, os estados psíquicos que implicam as dentadas, os combates, as rosnaduras. E se estes foram também seguidos pelos estados psíquicos implicados no ato de comer, então estes últimos, por sua vez, produzir-se-ão no estado nascente. Assim a simples sensação do cheiro fará nascer esses estados de consciência, numerosos e variados, que acompanham os atos de se precipitar, apanhar, matar e devorar a presa. As sensações da vista, do ouvido, do tato, do olfato do gosto, dos músculos, que acompanham constantemente as fases sucessivas dessas ações, serão todas parcialmente excitadas ao mesmo tempo, constituirão pela sua reunião os desejos de agarrar, matar e devorar, e formarão o impulso para o movimento que porá os membros em perseguição da presa”. — V. Príncipes de psychologie: T. I, 4a. parte, cap. VIII, § 214.

Este trecho de Spencer encerra a lei de psico-fisiologia que Charcot reduziu assim: “Cada movimento que os nossos músculos recebem do exterior, cada força nervosa, que se desenvolve no organismo excitado por uma causa estranha e não espontaneamente, determina uma série de estados cerebrais e de modificações mentais capazes de ser traduzidas pela postura e pelos movimentos expressivos que o acompanham”.

V. G. Campili, Il grande ipnotismo, pag. 43. Janet fundou sobre a mesma lei a Teoria sugestiva — Paul Janet, Revue politique et litteraire.

(86) Joly teve a intuição desse fenômeno fisiológico, quando dizia, ao falar do indivíduo que está numa multidão e que se deixa arrastar por ela: “Não é já a vontade que nele produz o ato, é o ato que põe em movimento a parte imaginativa e talvez mais ainda a parte física da vontade”. — Vid. La France criminelle — cap. XV, pag. 406.

(87) Espinas, ob. cit. pag. 361.

(88) Por exemplo, o discurso de um orador, que tenta acalmar uma multidão já exasperada, pode ter um resultado oposto ao que tem em vista; pois que os que estão afastados não ouvem as palavras e vêem somente os gestos do orador, a que dão — por um natural fenômeno psicológico — a interpretação que preferem. — É assim, se não me engano, que deve ter sucedido na reunião operária do 1.° de maio de 1891, em Roma, com o discurso de Amilcar Cipriani.

(89) Spencer. Premiers principes — cap. XX pag. 408.

(90) Schützenberger escreve no seu tratado sobre fermentações: “Quanto mais um organismo é simples, menos contém ordens especiais de células, tanto mais as reações químicas que se dão nelas são simples também e fáceis de desembaraçar, de isolar pela experiência. Quanto mais, pelo contrário, a constituição histológica é variada e heterogênea, tanto mais também vemos aparecer compostos distintos como produtos dos fenômenos químicos múltiplos que se dão nos diversos tecidos” (Les fermentations).

Podemos deduzir facilmente disto que — no organismo humano — que é de todos os organismos o que tem a constituição mais variada e mais heterogênea — as reações psicológicas atingirão o máximo da variedade e da heterogeneidade.

(91) M. Du Camp, Les convulsions de Paris. — Tom. IV — pag. 185.

(92) Há no próprio número uma influência sutil e poderosa, que agita as paixões, e força, por assim dizer, o indivíduo a imitar o seu próximo“. — Do jornal The Lancet.

(93) A mesma formiga que se deixará matar dez vezes, quando rodeada dos seus companheiros, mostrar-se-á extremamente tímida e evitará o menor perigo, quando estiver isolada a vinte metros do ninho. — Vid. Forel, Les Fourmis.

É, aliás, um fato bem conhecido que só a presença de um dos nossos semelhantes basta para aumentar ligeiramente em nós a força das comoções. Este fenômeno pode observar-se facilmente nalguns casos de loucura. O Dr. Regis na sua obra Les neurasthénies psychiques, cita o fato de um doente, atacado de loucura da dúvida ou da indecisão, que não podia, estando só, abrir uma porta ou abotoar o seu fato; logo que alguém entrava o acesso terminava.

(94) H. Spencer, L’individu contre L’État — pag. 116.

(95) É supérfluo, para apoiar a nossa asserção, recordar aqui as manifestações dos operários, do 1.° de maio. — V. F. S. Nitti. Il primo maggio, Estudo de sociologia (Na Revue, La Scuola positiva) e os autores que aí se citam.

(96) E. Ferri, Socialismo e criminalitá — pag. 10.

(97) P. Turiello, Governo e governati in Italia, vol. I. pag. 22.

(98) Jules Vallés, no seu volume, Les refractaires, tem um capítulo intitulado Les victimes du livre, onde demonstra a grande influência que pode ter a literatura sobre o desenvolvimento dos sentimentos e sobre as ações dos indivíduos. Certamente, não queremos negar essa influência, mas julgamos que é mais restrita do que se supõe. — “Quando num diabético se produz uma ligeira ferida — escreve Bourget — morre. Não é essa ferida que o mata. Ela manifesta simplesmente um estado geral que outro incidente tornou funesto. Os livros mais perigosos atuam da mesma forma”.

(99) Le Rouge et le Noir — Cap. XLIX.

(100) Afirmo isto em teoria, como o ideal para que tende e tenderá sem dúvida a humanidade. Na prática, e no presente, a violência política, isto é, as revoluções e as revoltas (que só representam um movimento acelerado da evolução) são ainda infelizmente necessárias e podem ser úteis. Para prová-lo, basta lançar um relance de olhos sobre a história de Itália, na segunda parte do século XIX; sem as revoluções, não seríamos hoje uma nação livre. Historicamente as palavras de Pascal, “a violência nunca serviu utilmente à verdade” são portanto errôneas; mas seria um crime sustentar o contrário em teoria, porquanto devemos fazer todo o possível para ajudar o progresso em tudo, sem vítimas humanas.

(101) Digo: quando apenas são expostas em teoria, por um motivo bem fácil de compreender e que nos explica Stuart Mill por estas palavras: — A idéia, escreveu ele, que o comerciante de farinha faz morrer os pobres de fome ou que a propriedade particular é um roubo, não deve incomodar enquanto a escrevem ou a publicam nos jornais; mas pode ser legitimamente punida quando se manifesta verbalmente numa multidão agitada perante um comerciante de farinha ou quando se propaga expressamente diante de uma aglomeração de povo, sob a forma de cartazes.

(102) Vid. Ferri, Socialismo e criminalitá, pag. 11.

(103) Não quero dar aqui as provas desta afirmativa: Ferri deu-as já e muito convincentes, no seu volume já citado; Colajanni, também na sua Sociologia criminale, em contrário da opinião de Züno, de De Johannes e doutros.

(104) O Cardeal De Retz disse: “Quem reúne os homens, agita-os”. Vid. Proal, Le crime et la peine.

(105) Jacoby descreveu o grau de embriaguez mental, de alcoolismo intelectual, que produz a onipotência nos que atingiram o supremo poder.

(106) H. Taine. Les origines de la France contemporaine, pag. 58, tom. I — “No déspota — dizia Turiello — os instintos de Nero e de Marat encontram-se”.

(107) Carlyle disse não sei onde: — “A civilidade é uma casca sob a qual pode arder vivaz, no seu fogo infernal, a paixão selvagem do homem”.

(108) Sergi, La stratifícazione del carattere e la delinquenza.

(109) Assinalamos somente aqui essa hipótese da stratifícazione do caráter porquanto ocupar-nos-emos disso no capítulo seguinte.

(110) H. Taine, ob. cit. vol. II, pag. 301-302.

(111) Carlier, Les deux prostituitions, pag. 239.

(112) Memórias de Gisquet escritas por ele mesmo, tom. I, pag. 205. V. também o livro de Marcé, Le service de la sûreté, cap. IX e XVIII.

(113) V. Joly, La France criminelle.

(114) Mathieu — Dumas, Souvenirs, tom. I, pag. 431 — Meisner, ao falar dos vagabundos da revolução francesa, dizia que eram verdadeiras associações organizadas para cometerem sem castigo toda a espécie de assassinatos, de rapina e de banditismo.

(115) Droz, Histoire du règne de Louis XVI, vol. II, pag. 230.

(116) Bailly, Mémoires, tom. I, passim.

(117) Taine, La Révolution, — I, pag. 18.

(118) H. Joly La France criminelle, pag. 407.

Du Camp, exagerando esta idéia verdadeira de Joly, escrevia a propósito das atrocidades cometidas pelos comunistas de 1870: “Não eram senão malfeitores que invocaram pretextos porque não tinham boas razões para dar: os assassinos disseram que feriam os inimigos do povo e mataram as pessoas mais honestas do país; os ladrões disseram que reaviam os bens da nação e pilharam os cofres públicos, desguarneceram as casas particulares, esvaziaram os cofres municipais; os incendiários disseram que erguiam os obstáculos contra o exército monárquico, e lançaram fogo por toda a parte; só os bêbedos estiveram de boa fé: disseram que tinham sede, e esvaziaram os tonéis. Uns e outros obedeceram aos impulsos da sua perversidade: mas a questão política era a sua última preocupação. — Les convulsions de Paris, vol. I, pag. XII.

(119) V. Les convulsions de Paris, tom. VI, pag. 152. — O mesmo autor conta o seguinte episódio da comuna: ... as sentinelas avistaram um homem que caminhava depressa: Alto! Interrogam-no, examinam-no. Usava bigode, portanto era um gendarme. A multidão grita: Fuzilem-no! é um gendarme! É chegar a roupa ao pêlo! — Neste bando distinguia-se uma mulher pelas suas vociferações; tinha na mão uma espingarda e à cintura uma cartucheira; chamava-se Marcelina Epilly. É supérfluo dizer que o homem foi condenado à morte por unanimidade. Foi levado para a rua da Vacquerie e colocado junto a uma parede. Era enérgico, lançou-se sobre os seus assassinos e deitou alguns por terra à força de cabeçadas. Com um cambapé, lançam-no ao chão, e disparam sobre ele. Ensangüentado e com o braço esquerdo quebrado, reergueu-se. Marcelina grita: Deixem-no comigo! Aplicou o cano da espingarda ao peito do pobre homem e fez fogo. Ele caiu, e como mexesse ainda, deu-lhe o derradeiro golpe.”

V. Michelet, Les femmes dans la Révolution française.

A observação de que a mulher perversa é pior do que o homem perverso já foi feita (entre outros por Lombroso) a propósito do crime individual. Podemos dizer outro tanto a propósito do crime coletivo. Se a mulher é tomada pela vertigem do sangue, torna-se uma hiena, e não conhece nem limites nem freio. — Vid. G. Ferro, La crueltà e la pietà nella femmina.

É justo acrescentar que, se a mulher é cruel, é também corajosa, o que, aliás, é bem natural, porquanto a crueldade e a coragem têm muitos pontos de contacto e a mesma origem. Na revolução francesa, há um só exemplo de covardia feminina: a Dubarry. Na comuna, um historiador escreveu que “nos últimos dias as mulheres mantiveram-se por mais tempo por detrás das barricadas do que os homens”.

(120) Tebaldi, Ragione e pazzia, pag. 87.

(121) V. Esquirol. Des maladies mentales. Na quarta folha do álbum está o retrato da Theroigne. — Para mais pormenores sobre a influência dos loucos nas revoluções e sobre o assunto que nos respeita, vejam-se as obras de Jules Clerc, Les hommes de la Commune, biografia completa de todos os seus membros; de J. V. Laborde, Les hommes de la Commune, ou l’insurrection de Paris devant la psychologie morbide; e de M. Du Camp, La Commune à l’Hotel de Ville.

(122) Devemos notar que o número de loucos é sempre grande nas revoluções e nas revoltas, não somente porque os loucos tomam parte nelas se podem, mas também porque as grandes comoções públicas, políticas ou religiosas, tornam loucos os que eram somente predispostos à loucura, ainda que ligeiramente. Isto foi provado estatisticamente, pela primeira vez, creio, no fim do século passado por Pinel, o fundador da Psiquiatria moderna. Depois dele, Belhomme na sua obra: Influences des commotions politiqnes, faz notar a recrudescência dos loucos devida às revoluções de 1831, 1832 e de 1848. Bergeret assinalou o mesmo fenômeno (La politique et la folieGazette des hôpitaux) na revolução de 1848. Lunier no volume: “Influences des évènements et des commotions politiques sur le développement de la folie, dizia que os tristes acontecimentos de 1870-1871 foram a causa de 1700 a 1800 casos de loucura, do 1.° de julho de 1870 a 31 de dezembro de 1871; Ramos-Meya (Las nevrosis de los hombres celebres en la historia Argentina) apresentou semelhante opinião, quanto aos efeitos das revoluções sucedidas em Buenos Aires, depois de 1816. Vid. Legrand du Saulle, Le délire des persécutions.

(123) H. Taine, Les origines de la France contemporaine.

(124) H. Taine, ob. cit. vol. I, pag. 58-60.

(125) Lombroso (Delitti di libidine e di amore, nos Arch. de psych. Vol. IV, no Uomo delinquente, vol. I) estudou a união da luxúria e do instinto homicida, demonstrando como o homicida acompanha às vezes a violação, às vezes o substitui, excitando no seu autor os mesmos prazeres. “Um indivíduo que as prostitutas chamavam o carrasco, fazia preceder cada junção, com o martírio ou a morte de muitas galinhas, ou pombos ou patos. Outro feriu gravemente quinze raparigas em pouco mais de um mês. batendo com uma faca na vulva, porque satisfazia assim os seus apetites sexuais, como ele próprio confessou. “Este prazer sensual de fazer correr sangue, de ferir, de espicaçar antes do coito é, conforme diz Lombroso, inteiramente atávico, da época em que o amor se alcançava pela luta e pelo sangue. Ora, pois, como sucede a alguns criminosos natos, esse instinto renasce do mesmo modo na multidão, mostrando assim outra analogia entre a psicologia criminal individual e a psicologia criminal coletiva.

Parini canta as matronas romanas, embriagadas pelo sangue no circo:

Cosi, poi che dagli animi
Ogni pudor disciolse,
Vigor dalla libidine
La crudeltà raccolse;

V. Tebaldi, ob. cit. pag. 71.

Descreveu, com a intuição de um poeta, essa união da ferocidade e da luxúria, que os homens de ciência explicam hoje como uma deformação mórbida do sentimento. — Vid. Krafft Ebing, Le psicopatie sessuali.

(126) “Ela dava gritos horríveis enquanto os bandidos se divertiam a fazer-lhes indignidades. O seu corpo não foi poupado por eles depois da sua morte. — Vid. Rétif de la Bretonne, Les nuits de Paris, pag. 338.

Acrescendo, segundo diz Goncourt (Histoire de la socièté française) que as mulheres condenadas em 1791, se masturbavam enquanto estavam na prisão. O fenômeno, posto que não seja inteiramente o mesmo nas causas, que os do texto, é todavia análogo.

(127) H. Taine, Les origines de la France contemporaine, II, pag. 303-304.

(128) M. Du Camp. Les convulslons de Paris, IV, pag. 151.

(129) M. Du Camp. ob. cit. — Desjardins no seu estudo: Le droit des gens et la loi de Lynch aux États-Unis, conta um fato análogo: “Na aldeia de Salina, no Colorado, prendera-se um ladrão, que matara quem o apanhara em flagrante. A multidão tira-o da prisão, arrasta-o até ao caminho de ferro e dependura-a numa estaca. Nesse momento passou o comboio que vinha de Marshall; a multidão irritada atirou muitos tiros que feriram muitos viajantes que olhavam pelas portinholas”.

(130) Forel, Les foumis, cit. por Ferri — Evoluzione nell’omicidio, no Arch. de psych. Vol. III, pag. 219.

(131) Ch. Lacretelle, Histoire du dix-huitième siècle. — Vid. as Mémoires tires des Archives de la Police de Paris, por F. Pleuchet, T. II, pag. 129.

Gisquet (Mémoires, já cit. vol. II, pag. 129) conta um fato semelhante, acontecido em Paris em 1832 quando a cólera devastava a cidade: — “...os dois imprudentes fugiam, perseguidos por milhares de furiosos, que os acusavam de terem dado às crianças bolos envenenados. Os dois homens refugiam-se à pressa numa casa da guarda; mas o posto é num ápice cercado, ameaçado, e ninguém poderia nesse momento impedir o massacre desses indivíduos, se o comissário de polícia, Jacquenin e o antigo oficial de paz Henriccy, que se encontravam nesse lugar, não tivessem tido a feliz idéia de dividirem e de comerem os bolos diante da multidão. Esta presença de espírito fez logo suceder a hilaridade ao furor, tão pouca coisa necessária, algumas vezes para levar até ao paroxismo a raiva do povo ou para a acalmar”.

(132) Manzoni, na seguinte página dos Noivos — (cap. XIII) descreve admiravelmente bem a composição de uma multidão e demonstra quais são os motivos pelos quais a multidão chega às vezes ao crime, ao passo que outras vezes se acalma e se dispersa: — “Nos tumultos populares há sempre certo número de homens que, ou por um assomo de paixão, ou por uma persuasão fanática, ou por um desejo perverso, ou por um gosto maldito de destruição fazem tudo por levarem as coisas para pior; propõem e incitam os mais desapiedados conselhos; ateiam o fogo todas as vezes que principia a amortecer; para eles nunca há excessos; não querem que o túmulo tenha fim, nem medida. Mas em compensação há sempre também um certo número de homens que, com igual ardor e instância, se esforçam por produzir o efeito contrário; alguns movidos pela amizade, ou pela parcialidade para com as pessoas ameaçadas; outros, só pelo impulso de um piedoso e espontâneo horror ao sangue e a atos atrozes. Em cada um destes dois partidos opostos, ainda quando se não tenham combinado antecipadamente, a uniformidade de vontades cria uma combinação instantânea nas ações. O que forma, portanto, a massa e quase a matéria do tumulto, é uma amálgama acidental de homens que, mais ou menos, por infinitas gradaçoes, vão de um ao outro extremo: um é arrebatado, outro ardiloso, outro inclinado a alguma justiça, como intendem os seus, outro ainda, desejoso de não ver alguma borrasca, prontos à crueldade e à misericórdia, a detestar e a adorar conforme se apresenta a ocasião de provar com segurança um e outro sentimento; ávidos a todo o momento de saber, de crer nalguma grande coisa, necessitando de gritar, de aplaudir alguém, ou de berrar atrás de alguém. Viva! e morra! são as palavras qua pronunciam com mais prazer, e quem consegue persuadí-los que alguém não merece ser esquartejado, não precisa de gastar mais palavras para convencê-los que é digno de ser levado em triunfo; atores, espectadores, instrumentos, obstáculos, conforme as circunstâncias; prontos também a estarem calados quando não sentem a voz pública a repetir, a pôr-lhe termo quando faltam os instigadores, a entregar-se quando muitas vozes concordes e não contraditadas tenham dito: Vamos, — e a voltar para casa, perguntando uns aos outros: Como foi isto? — Assim como, porém, esta massa, tendo a maior força, pode dá-la a quem quer, assim também cada um dos dois partidos ativos emprega toda a arte para atraí-la a si: são quase duas almas inimigas, que combatem para penetrar nesse corpo e fazê-lo mover. Trabalha por quem souber dizer expressões mais aptas a excitar as paixões, a dirigir os movimentos a favor de um ou outro intento; por quem souber achar mais a propósito as novas palavras que reacendem os despeites, ou os enfraquecem, despertam as esperanças ou os terrores; por quem souber encontrar o grito, que, repetido cada vez mais e com mais força, exprima, contraste e crie, ao mesmo tempo, o voto da maioria por um ou pelo outro partido”.

(133) Emile Zola, no Germinal, descreve um maravilhoso quadro dessa perversão patológica da multidão que, não contente de ter morto aquele que odiava, comete as infâmias mais cruéis no seu cadáver:

“... Saltaram os miolos. Estava morto. No primeiro momento foi um assombro. Os gritos cessaram, fazia-se largo silêncio na escuridade em aumento. Mas logo em seguida começaram as chufas. Eram as mulheres que se precipitavam, com a embriaguez do sangue. Rodeavam o cadáver ainda quente, insultavam-no com risadas, chamando caraça porca à sua cabeça despedaçada, uivando à face da morte o longo rancor da sua vida sem pão. — “Devia-te sessenta francos, estás pago, ladrão! disse a mulher do Matheu. Espera! espera! que eu te engordo mais!” Cavou a terra com as unhas, apanhou duas mancheias, e meteu-lhas na boca, à força. — “Anda! come!...” As injúrias redobravam. Mas as mulheres tinham a tirar dele outras vinganças. Farejavam em volta dele, como lobas. Todas procuravam um ultraje, uma selvageria que as consolasse. Ouviu-se a voz da Chamuscada: — “É preciso capá-lo como quem capa um gato” — “Sim! sim! toca a capá-lo!...” Já a filha do Mouque o desabotoava e lhe deitava as calças a baixo, enquanto a do Levaque lhe levantava as pernas. E a Chamuscada, com as suas mãos mirradas de velha, abriu-lhe as coxas nuas, empunhou aquela virilidade morta. Agarrava tudo, puxando num esforço que lhe retesava a magra espinha e fazia ranger os seus grandes braços. As peles moles resistiam, teve que tornar a puxar, acabou por arrancar um pedaço de carne peluda e sangrenta, que agitou com um rir de triunfo! — “Cá está! cá está!” Vozes agudas saudaram com imprecações o abominável troféu. — As mulheres mostravam umas às outras o pedaço de carne sangrenta, como um bicho mau que todas tinham tido de suportar, e que enfim acabavam de esmagar, que ali viam inerte, em seu poder. Cuspiam-lhe em cima, refilavam-lhe o dente, repetindo, numa furiosa explosão de desprezo: — Já não tem potência! Já não tem potência!... Isto nem já é um homem que vai para debaixo da terra! A Chamuscada então, espetou tudo na ponta do seu varapau; e, levantando-o ao ar, passeando-o como em bandeira, meteu-se a caminho, seguida pelas outras em debandada ululante. Choviam gotas da sangue; aquela carne lamentável pendia, como uns restos de vianda do balcão de um talho...”

(134) Para pormenores deste processo consultem-se: A. Bataille, Causes criminelles et mondaines de 1886, — La gréve de Décazeville, pag. 136. Podem ver-se semelhantes episódios, descritos nos processos dos anarquistas de Lião, de 1883. (Vid. Bataille, Causes crim. et mond. 1883Les procès anarchistes) e nas greves de Monteau-les-Mines (Bataille, 1882). É destas últimas que Zola tomou não só a idéia do Germinal, mas também varias cenas que conta nalguns capítulos.

(135) Se quiséssemos narrar aqui todas as greves, em que os operários, depois de terem começado pelo violência, não cometeram outros crimes contra a propriedade (justamente porque eram honestos e podiam bem cometer algumas faltas leves, não, porém, crimes graves), poderíamos encher algumas páginas. Narrarei aqui apenas um fato, contado por Gisquet, obr. cit., II, pag. 22. — “Em novembro de 1831, os operários que trabalhavam em Lião, nas grandes fábricas de sedas, pediram um aumento de salário, que não lhes foi concedido. Fizeram greve e sublevaram-se contra a polícia, que cometeu o erro de se envolver nisso. Por um fato estranho, ficaram senhores da cidade, e obrigaram as tropas a retirarem-se para Macon. Tinham levantado barricadas e bateram-se com os soldados; a cidade estava sob o terror. Mal se tornaram os senhores, acalmaram-se como por encanto; nenhum armazém foi destruído, não se tocou em casa alguma, e quando alguns dias mais tarde, as tropas entraram na cidade, com o duque de Orleans e o marechal Soult à frente, encontraram a cidade muito tranqüila; e os próprios operários, arrependidos, por assim dizer, do que tinham feito, não opuseram nenhuma resistência e deixaram a autoridade estabelecer-se nos locais de onde eles a tinham expulsado”.

(136) V. Andral, Pathologie interne, Vol. III, pag. 59.

(137) Proal, Le crime et la peine, pag. 225.

(138) Corre, Les criminels, pag. 179. — Lembro-me a este propósito de um processo que se julgou no Tribunal criminal de Roma, contra Achilles e Salvatore Orazí, dois irmãos magarefes que mataram um dos seus amigos com as facas dos seus ofícios.

(139) V. Les Mystères de Paris.

(140) Os Estados semi-civilizados do antigo Oriente infligiam a todos, à mulher e aos filhos do condenado, a mesma pena do que a ele. No Egito, toda a família de um conspirador era condenada à morte — V. Thonisson, Droit criminel des anciens peuples de l’Orient, I tom. e Letourneau, Évolution de la morale.

(141) Sabe-se que até ao século XVIII, em quase todos os Estados, as famílias dos criminosos políticos eram exiladas.

(142) Tarde julga encontrar um vestígio atual da responsabilidade coletiva dos antigos, na imunidade parlamentar, em virtude da qual um deputado ou um senador não pode ser réu ou condenado nos tribunais, sem autorização da assembléia de que faz parte, como se esta se considerasse responsável com ele — V. La philosophie penale.

Além desse, há, julgo, atualmente outros vestígios da velha teoria da responsabilidade coletiva, sobretudo nos preconceitos. Sabe-se que outrora cada indivíduo membro de uma tribo julgava que as suas ações ou as doutrem, quando eram das que traziam boa ou má sorte, deviam ter a sua eficácia favorável ou funesta não só sobre o autor, mas sobre toda a tribo. Pois bem, crê-se ainda hoje no povo — e também nas classes cultivadas — que certas ações trazem boa ou má sorte, não somente aos que as praticam, mas também aos que estão presentes, como, por exemplo, entornar vinho ou sal na mesa.

“Há pessoas, escreve Bagehot a este respeito — que não permitem que estejam treze à mesa. Não é que esperem sofrer um dano pessoal se lhe permitissem ou se fizessm parte dessa sociedade de treze pessoas; mas não podem libertar-se da idéia que uma ou algumas pessoas que compõem o grupo experimentarão nesse caso alguma desgraça. É o que Taylor chama restos de barbaria que se perpetuam numa época cultivada. Essa fraqueza da crença na responsabilidade comum dessas treze pessoas é um simples resto, um vestígio prestes a apagar-se desse grande princípio de responsabilidade comum relativamente à boa ou má fortuna, que teve na sociedade um lugar enorme — V. ob. cit, pag. 152.

(143) Tarde acrescenta: Especifica-la-á cada vez mais, auxiliada pela antropologia criminal, que permitirá distinguir na associação que se chama indivíduo, os elementos diversos, senão separáveis, de que se compõe, de pô-los à parte e de lhes aplicar o tratamento especial dos remédios que lhes convém (ob cit., pag. 147).

Certamente julgo também que a ciência do futuro especificará melhor do que hoje, as causas das ações humanas, mas não creio por isso que a responsabilidade se poderá transportar do indivíduo para o seu cérebro ou para uma certa circunvolução do seu cérebro. A responsabilidade patológica, se assim posso dizer, poderá reduzir-se a uma parte do homem ou a outra, mas a responsabilidade social ficará sempre ao homem completo, porquanto o indivíduo — conforme a bela expressão de Schäffle — é o átomo do organismo social: e assim como em química não é possível dividir-se o átomo, do mesmo modo em sociologia não é possível dividir-se o homem.

(144) Ao começo, escreve Tarde, a responsabilidade coletiva foi sempre entendida neste sentido: que todos os parentes deviam ser punidos ao mesmo tempo. Mais tarde, graças à suavização dos costumes, entendeu-se no sentido mais humano: que uma pessoa qualquer da família deve ser castigada”.

(145) Albano, no seu artigo de crítica à primeira edição deste estudo, escreveu: “Não me parece possível comparar a idéia da responsabilidade coletiva dos antigos, com a outra de que fala o autor; não compreendo mesmo uma responsabilidade assim concebida. Nos primeiros alvores do direito penal, a responsabilidade coletiva abrangia alguns indivíduos; era, como diz o próprio autor, uma responsabilidade real e efetiva. Hoje, quando se fala de responsabilidade do meio, não se quer falar da responsabilidade jurídica, o que seria um absurdo, mas entende-se: a causa, a origem, a relação entre os dois fenômenos. A responsabilidade dos antigos era viva e ativa todos os dias; a outra é uma palavra que empregam os sociólogos para pôr em evidência os fatores do crime que lhe são estranhos e que todavia atuam sobre ele”. — V. o Archivio giuridico, vol. 47, f. 4-5. — Estou neste ponto perfeitamente de acordo com Albano, mas não disse eu, por outras palavras, o que ele próprio diz nessas poucas linhas? Não fui o primeiro a admitir que responsabilidade do meio é ilusória?

(146) É observar que, se a escola positivista introduziu abertamente como base de repressão jurídica, a temibilidade do criminoso, essa idéia de temibilidade já existia, posto que velada em fórmulas mais ou menos obscuras, na doutrina dos criminalistas clássicos. (V. Carrara, Programma, parte esp. §§ 2085, 2111, 2115; Pessina, Elementi di diritto penale, II livro; Rossi, Trattato di diritto penale, tom. II cap IV). E se não me engano, essa idéia de temibilidade está também oculta e as teorias dos positivistas, que chamarei dissidentes, que fundaram a responsabilidade em princípios diferentes daqueles em que a baseia a escola positivista italiana. Faço aqui alusão à teoria da identidade, de que fala Tarde. Com efeito: a identidade pessoal, que Tarde exige para que um indivíduo seja responsável, é uma condição que só pode ser justa quando significa que se um indivíduo se tornou completamente diferente do que era quando cometeu o crime, isto é, não mais perigoso do perigoso que era, deve ser declarado irresponsável. — Tarde pretende, por exemplo, que deveria haver curtas prescrições para os crimes cometidos pelos impúberes e legitima a sua opinião, dizendo: que, quando um indivíduo se tornou adulto, não é o mesmo quando era criança. Se punem, diz ele, um homem de vinte anos por um crime quo cometeu quando tinha dez anos, castigam uma pessoa que não ê o autor desse crime, porquanto, no homem de vinte anos, não resta nada ou quase nada da criança de dez. Neste caso falta a identidade pessoal.

Ora, parece-me que essa prescrição, em vez de ser legitimada pelo princípio da não identidade pessoal, deve ser legitimada pela não temibilidade que oferece um adulto que cresceu normal e honesto, e que quando era criança (quando somos todos um pouco delinqüentes) cometeu um crime. Diz-se o mesmo, por hipótese, (infelizmente bem rara) de um louco que se cura depois de ter cometido um crime, durante o seu delírio. Uma vez curado, uma vez que já não tem que recear, a sociedade não tem direito a puní-lo.

Como se vê, a identidade pessoal de Tarde, entendida nesse sentido, não é outra coisa do que um nome diferente dado à teoria da temibilidade. — Tomada, pelo contrário, no sentido mais vasto que lhe atribui Tarde, isto é, no sentido que o louco deve sempre ser irresponsável, mesmo quando fica louco depois do seu crime — e isto somente porque a loucura cria nele um ser anormal diferente do ser normal que existia antes, — a teoria da identidade pessoal parece-me um erro e um absurdo, nas suas conseqüências. É um absurdo, no ponto de vista determinista, porquanto o determinismo não admite, por motivo algum, que haja indivíduos irresponsáveis. É um erro, no ponto de vista social, porquanto a sociedade reage sempre contra as ofensas feitas à sua existência, quer sejam a obra de um criminoso, quer de um louco. — V. também a crítica feita a esta teoria de Tarde por Ferri (Sociologia oriminale, pag. 530 e seguintes).

(147) Digo reação penal simplesmente, porque a pena não tem já razão de ser, quando o perigo ocasionado pelo crime desapareceu; mas a reparação civil dos danos, tem sempre a sua razão de ser, mesmo quando o autor do crime não é já para recear. A pena é infligida unicamente ne peccatur, a reparação é infligida ne peccetur e sobretudo quia peccatum.

(148) Ventra publicou um estudo sobre este argumento, muito importante. La suggestione non ipnotica nelle persone sane e nella psicoterapia, no Manicomio.

(149) Cit. por Laurent, Les suggestions criminelles, nos Archives de l’antropologie crim. et des sciences pen.

(150) Liébault, Du sommeil et des états analogues, pag. 519.

Ibid.

(152) Richet, L’homme d’intelligence.

(152) Liegeois, De la suggestion hipnotique, dans ses rapports avec le droit civil et le droit criminel.

(154) Estes dois últimos casos são contados por Gilles de La Tourette na sua obra L’hypnotisme et les états analogues, pag. 130 e 133.

(155) G. Campili, El grande ipnotismo e la suggestione ipnotica nei rapporti col diritto penale e civile, pag. 18 e 19.

(156) V. os casos de ataques de histeria que seguem a realização de uma sugestão que repugna ao paciente, na obra já citada da Gilles de La Tourette, cap. IV.

(157) Beaunis, Du somnambulisme provoqué. Études physiologiques et psychologiques, pag. 181.

(158) Gilles de La Tourette, ob. cit. pag. 137.

(159) Vid. Lombroso, Studi sull’ipnotismo e Lombroso e Ottolenghi, Nuovi studi sull’ipnotismo e la credulità.

(160) Ob. cit. pag. 136.

(161) Ch. Féré, Les hypnotiques hystériques considérés comme sujets d’expérience en médicine mentale. Nota comunicada à Sociedade médico-psicológica.

(162) Brouardel, Gazette des hôpitaux.

(163) Pitres, Les suggestions hypnotiques.

Chegam também a conclusões idênticas às dos autores citados: Bianchi, La responsabilitá nell’isterlsmo (Rév. sper. di fren. e di med. leg. Vol. XVI, fase. III); Laurent, Les suggestions criminelles (Arch. de l’anthrop. crim. et des sciences pén.); Delboeuf, L’hynotisme et la liberté des répresentations publiques; e Richer, Études cliniques sur la grande hystéro-épilepsie.

(164) Pitres — ob. cit. pag. 55.

(165) Féré, Les hypnotiques hystériques considérés comme sujets d’experience en médicine mentale.

(166) Pitres, ob cit. pag. 54.

(167) Gilles de La Tourette, ob cit. pag. 40 — Pitres narra uma experiência semelhante: “Um dia, escreve ele, ordenei a uma das nossas doentes hipnotizadas que beijasse, depois do seu despertar, um dos estudantes internos. Acordada, aproximou-se do estudante indicado, pegou-lhe na mão, depois hesitou, olhou em torno de si, pareceu contrariada com a atenção com que a olhavam. Permaneceu alguns instantes nessa posição, aspecto ansioso, possuída por uma angústia vivíssima. Apertada com perguntas, acabou por confessar, corando, que tinha vontade de dar um beijo no estudante, mas que nunca cometeria semelhante inconveniência.

(168) Paul Janet — Revue politique et litteraire.

(169) Campili, ob. cit.

(170) V. a velha definição do contágio, dada por Gallard, no Dictionnaire de médecine et de chirurgie pratiques, e a crítica que lhe fez Aubry, no volume: La contagion du meurtre.

(171) Esta comparação, que faço entre o estado hipnótico e os estados de sonho, de sonambulismo e de embriaguez, poderá parecer inexata. Poderemos observar, com efeito, que, no estado de hipnotismo, as ações são realizadas pela interposição da vontade de uma terceira pessoa, que altera, sem dúvida alguma, pela sua intervenção, as relações que fazem com que a ação dependa dos caracteres morais do indivíduo (Campili). Ao passo que, nos estados de sonho, de sonambulismo e de embriaguez não há intervenção de uma vontade estranha, e o homem físico, por muito alterado que esteja patologicamente, está sempre em plena e direta correlação com o homem normal. Tudo isto constitui, é verdade, uma diferença essencial entre as causas que produzem esses estados diversos; mas isso nada respeita à analogia que existe entre as conseqüências desses estados. E a analogia (abreviadamente no texto) consiste nisto: que na sugestão, como no sonho, no sonambulismo, na embriaguez, as condições anormais do organismo não conseguem abolir a personalidade. Diminuem-na apenas, e isto certamente muito mais na sugestão do que nos outros estados patológicos. Nestes poder-se-á quase dizer que em vez de diminuírem-na, alteram-na e acentuam-na. De fato, no sonho, refletem-se os caracteres mais frisantes do indivíduo; e o hábito que é a diretriz da atividade psíquica, faz com que a personalidade do sonhador se reproduza inteiramente como num quadro, posto que um pouco apagado e confuso no meio das mais complicadas mutações cenográficas. — É por isso que Bouillier (na Revue philosophique) admitia uma forma de sociedade particular, para os crimes cometidos durante o sonho. — Podemos dizer a mesma coisa relativamente aos sonambulismo e à embriaguez. Ninguém ignora o velho e verdadeiro provérbio, in vino, veritas, e toda a escola positivista (V. Ferri, Nuovi Orizzonti, cap. III; Lombroso, Uomo deliquente, vol. II; Garofalo, Criminologia; Marro, I caratteri dei deliquenti e Rivista delle discipl. carcer.; Albano, Ubbriachezza e responsabilità nel progetto di Codice penale Zanardellí) está de acordo com Colajanni, e assegura que “as bebidas alcoólicas tornam os sentimentos do homem mais enérgicos e mais vivos, e diminuem somente a reflexão circuladora, que faz ordinariamente com que nos abstenhamos de cometer uma ação por diferentes motivos” — L’alcoolismo, pag. 125.

(172) Ob. cit., pag. 127.

(173) Ribot, Les maladies de la volonté, pag. 137.

(174) Citado por Virgilio, Sulla natura morbosa del delitto. Garofalo refere-se também às palavras de Tommasi e acrescenta para generalizar e apoiar a conclusão a que cheguei: “O crime não é portanto nunca o efeito direto e imediato das circunstâncias externas; pertence sempre ao indivíduo; é sempre a manifestação de uma natureza degenerada, quaisquer que sejam as causas antigas ou recentes, dessa degenerescência. Nesse sentido, portanto, o delinqüente fortuito não existe”. Criminologia.

(175) Benedikt, no 1.° congresso de antropologia criminal, sustentou que todos os criminosos são criminosos natos e tinha razão nesse sentido: que entra sempre, em cada crime, o fator antropológico (como nós sustentamos). Mas tem-se, todavia, o costume de chamar criminosos natos somente àqueles, no crime dos quais o fator antropológico representa a maior parte e a mais importante das causas. Aos outros criminosos chamam habituais, ocasionais, passionais; e não querem por isso excluir o fator antropológico, individual; mas querem apenas indicar que é secundário na etiologia do crime. Tal é o sentido que deu Enrico Ferri à sua classificação dos criminosos, e que me permite dizer, que todos aqueles que a criticaram — e em primeiro lugar Benedikt — provaram que não lhe compreendiam nem a significação, nem o fim.

(176) Isto é verdade, não só para o homem honesto no sentido mais absoluto da palavra, mas também para o delinqüente com tendência co-natural. E até, sob esta relação, podemos estabelecer uma identidade entre o verdadeiro homem honesto e o delinqüente-nato, porque se encontram ambos iguais perante as influências modificadoras do meio social; porquanto não há, parece-me, senão raríssimas circunstâncias para não dizer nenhuma, que possam constranger um ou outro a desviar-se do seu caminho.

(177) G. Sergi, Le degenerazioni umane.

(178) Les maladies de la volonté.

(179) Ribot, obr. cit.

(180) Assim como há o criminoso de ocasião, também há o tipo inverso de que sendo um delinqüente potencial não se mostra tal porque lhe falta a ocasião, ou porque a riqueza lhe dá o meio de satisfazer os seus instintos, sem inflingir o código. Conheci três que a sua posição social salvou da prisão. Um deles confessava: “Se não fosse rico roubava”. Lombroso, Uomo delinquente, pag. 432.

(181) Esta facilidade de se adaptar ao meio, qualquer que seja, bom ou mau, manifesta-se num grau realmente excepcional nos histéricos. Esta página de Laurent vale a pena ser reproduzida: “Metam uma histérica num convento, essa histérica, ainda que uma libertina, uma prostituta, mal chegue a respirar o odor do incenso, transformar-se-á completamente; dentro dalguns dias, terá abandonado com uma facilidade surpreendente os antigos hábitos, e terá tomado os hábitos e os usos da casa; gostará da oração, como gostava da libertinagem; numa palavra, conforme a frase de um doutor da Igreja, ela despirá a velha mulher. E não será uma devota ordinária; não será religiosa sem ostentação: rezará com espalhafato, como pecou, com escândalo; a sua religião será um misticismo cheio de exaltação. Tais foram Maria Madalena, Maria, a egípcia, e tantas outras cuja lenda não chegou até nós. Agarrem na mesma mulher e coloquem-na num lupanar entre libertinas e prostitutas. Nova metamorfose. Em menos de uma semana, porá uma nova máscara no seu rosto. Dir-se-ia que as paredes do lupanar destilaram sobre ela, de tal sorte foi súbita e completa a transformação. Dentro dalgus dias terá adquirido a linguagem, os usos, os hábitos da casa. Conheci em Troys, há alguns anos, uma espécie de histérica que causava a edificação de uma comunidade religiosa inteira. Um belo dia, arrastada pela irmã, fugiu do convento para o lupanar da cidade. Como fora no convento um modelo de piedade e de virtude, foi uma pérola, no lupanar, a mais libertina, e por conseguinte a mais procurada e mais acarinhada”. — V. Les suggestions criminelles.

(182) Vid. cap. I, pag. 64.

(183) H. Joly, La Franoe criminelle, pag. 406, nota I.

(184) V. Sergi, La stratificazione del carattere e la delinquenza. — As camadas novas do caráter serão facilmente abafadas pelas antigas, porque tudo que está no organismo de mais recente formação desaparecerá e dissolve-se antes do que é de formação mais antiga. “As últimas funções nascidas, diz Ribot, são as primeiras a degenerar”.

(185) V. Aubry, La contagion du meurtre, pag. 12.

(186) Bem entendido que estas circunstâncias jurídicas só serão aplicadas àqueles que tiveram a idéia do crime antes de tumulto; quanto aos outros que não tinham desígnio tomado, valem para eles as considerações já feitas em relação ao crime coletivo não premeditado.

(*) — Na tradução francesa, lê-se: “La loi de Lynch qui ne m’inspire pas toute l’horreur que beaucoup affectent de ressentir”. O sentido´é o oposto da fonte digitalizada, onde se lia “A lei de Lynch (para com a qual tenho todo o horror que muitos mostram ter”. Pela importância da afirmação, pelo sentido do que se segue, foi feita alteração, seguindo a tradução francesa. [N.E.]

(187) Alguns escritores, como Hepwort Dixon (Nouvelle Amérique) e James Bryce (The American Commonwealth) explicaram e desculparam a lei de Lynch pelas dificuldades que há de constituir jurisdições regulares, pela suspeita legítima da venalidade dos juízes, etc.

V. Desjardins, Pierantoni, I fatti di Nuova Orléans e il conflito italo-americano (na Nuova Antologia).

(188) Desjardins (estudo já citado) cita grande número de exemplos.

(189) Quando se trata dos crimes de uma multidão, devemos ter presentes as palavras de Holtzendorff: “Não podemos nunca dizer, no ponto de vista moral que em tal circunstância um crime é mais grave do que noutra”. — Vid. L’assassinio e la pena di morte, trad. de R. Garofalo, pag. 173.

(190) Devemos também, nos crimes de uma multidão, ter em conta o sexo e a idade, porquanto sabe-se que as mulheres, as crianças e mesmo os adolescentes são mais dóceis à sugestão do que os adultos. “A infância, escreve Rambosson (ob. cit. pag. 249) é o metal em fusão que se deita no molde e que toma todas as formas... Todos os temperamentos que se aproximam do da criança, tal como o da mulher e do adolescente, são os mais próprios para receber as impressões do exterior e para participar de todos os contágios”. — Lauvergne (Des forçais, etc, pag. 216) definiu as crianças: Esponjas educáveis, frase exatíssima que poderia aplicar-se também, em parte, às mulheres.

(191) Sabe-se que a psiquiatria moderna demonstrou falsa a opinião da velha psiquiatria, que julgava que um homem podia ser mais ou menos louco e são de espírito ao mesmo tempo; louco, relativamente a certos sentimentos ou a certas idéias; são, relativamente a outros sentimentos e a outras idéias. Hoje, estão todos de acordo com Maudsley em reconhecer que: quando um indivíduo está louco está até às pontas dos dedos. — Vid. Corpo e mente.

(192) Em La Tribuna giudiziaria de 12 de outubro de 1891 — V. as observações muito profundas de Fioretti na Scuola positiva pag. 197 n.° 4.

(193) Só tenho uma observação a fazer: é que a proposta de Garofalo encontrará alguma dificuldade. A atenuante que deriva do fato de ser cometido o crime sendo geral o furor da multidão, o juiz não compreenderá, talvez, sempre a razão que faz com que ele deva aplicá-la a um (criminoso ocasional) e não ao outro (criminoso-nato.) — Se um patife e um homem honrado são igualmente provocados, e respondem à provocação por um mesmo crime, — nós positivistas poderemos fazer uma diferença na pena (porquanto olhamos ao criminoso e não ao crime), mas certos juízes que olham somente ao crime, julgarão, para fazer homenagem à lógica, não dever aplicar senão uma pena idêntica.

(194) H. Spencer, L’individu contre l’État, cap. IV La grande superstition politique, pag. 158.

(195) Stuart Mill, La libertá, cap. I pag. 26.

(196) V. Bourget, Sensations d’Italie.

(197) G. Tarde, Qu’est-ce qu’une société?, na Revue philosophique.

(198) Ob. cit. — Com esta idéia fundamental de Tarde, concordou também recentemente Ardigó. — Vid. o artigo: Senso comune e suggestione (na Critica social) commentado por Filippo Turati.

(199) Stuart Mill escreve: — “O governo da mediocridade não pode ser senão um governo medíocre. Nenhum Estado governado pela democracia ou por uma numerosa aristocracia, nunca pôde erguer-se acima da mediocridade, nem na sua conduta política, nem nas suas opiniões e nos seus costumes, senão onde o povo soberano se tenha deixado guiar pelos conselhos e pela influência de um ou de vários homens de talento superior e mais instruídos que a generalidade. — Se quiséssemos tomar estas palavras à letra, poderia dizer-se que o que S. Mill considera como exceção, é a regra, porquanto o povo, se deixa sempre guiar pelos homens de talento superior e mais instruídos que a generalidade. — Se interpretarmos essas palavras conforme o espírito que as ditou, estamos de acordo com S. Mill (e quem não estará) porque deve necessariamente admitir-se que quando o que guia um povo é um homem de gênio, a vida desse povo é mais brilhante do que seria sob a direção de um homem de talento simplesmente.


 

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