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MICRÔMEGAS

Voltaire

Ridendo Castigat Mores


 

Micrômegas (1752)
Voltaire (1694-1778)
Edição
Ridendo Castigat Mores
Versão para eBook
eBooksBrasil.org
Fonte Digital
www.jahr.org
Copyright:
Domínio Público


ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
BIOGRAFIA DO AUTOR
CAPÍTULO I
Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno
CAPÍTULO II
Conversação do habitante de Sírio com o de Saturno
CAPÍTULO III
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno
CAPÍTULO IV
Do que lhes sucede sobre a face da terra
CAPÍTULO V
Experiências e raciocínios dos dois viajantes
CAPÍTULO VI
Do que lhes aconteceu com o homens
CAPÍTULO VII
Conversação com os homens


MICRÔMEGAS

História filosófica

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VOLTAIRE


 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

“Micrômegas” foi escrito por influência de “As aventuras de Gulliver”, de Swift que Voltaire leu em Londres. Revela também traços de a “Pluralidade dos mundos”, das palestras de Fontenelle e da mecânica de Newton, que Voltaire estudara com cuidado.

O resultado é uma obra agradável que induz à meditação sobre o homem, suas crenças, costumes e intituições.

Voltaire continua a ser brilhante em suas críticas e ironias.

A respeito da afoiteza em compreender o universo baseado na observação superficial, diz o seguinte:

“O anão, que às vezes raciocinava muito apressadamente, concluiu a princípio que não havia habitantes na terra. Seu primeiro argumento era de que não vira ninguém. Micrômegas, polidamente, fez-lhe sentir que ele não raciocinava muito bem:

— Como não distingues com os teus pequenos olhos, certas estrelas de qüinquagésima grandeza que eu percebo distintamente; concluiu daí que essas estrelas não existem?

— Mas – replicou o anão eu apalpei bem.

— Mas sentiste mal – respondeu o outro.”

A insignificância física do homem na face da terra mereceu esta observação:

“Não pretendo chocar a vaidade de ninguém, mas sou obrigado a pedir às pessoas importantes que façam uma pequena observação comigo: é que, considerando a homens de cerca de cinco pés de altura, não fazemos, à face da terra, maior figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a seiscentésima milésima parte de uma polegada.”

Mais adiante Voltaire insiste em demonstrar sua desconfiança para com os sistemas filosóficos:

“Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos, os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava.”

A grandeza aparente do mundo físico, em comparação com o espiritual, recebe uma crítica incisiva:

“Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci”.

A obra não é grande, mas seu conteúdo é enorme, merece uma leitura atenta.


 

BIOGRAFIA DO AUTOR

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FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do OEdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia OEdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).

Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L’Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l’Homme, etc.

Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.

Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.

Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.


 

MICRÔMEGAS
VOLTAIRE

CAPÍTULO PRIMEIRO

Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno

 

Num desses planetas que giram em torno da estrela chamada Sírio, havia um jovem de muito espírito a quem tive a honra de conhecer durante a última viagem que fez a este nosso pequeno formigueiro: chamava-se Micrômegas, nome bastante adequado a todos os grandes. Tinha oito léguas de altura: entendo, por oito léguas, vinte e quatro mil passos geométricos de cinco pés cada um.

Alguns algebristas, gente sempre útil ao público, tomarão logo da pena e, tendo em vista que o senhor Micrômegas, habitante do país de Sírio, tem da cabeça aos pés vinte e quatro mil passos, ou sejam vinte mil pés, e que nós outros, cidadãos da terra, não medimos mais que cinco pés de altura e o nosso globo nove mil léguas de circunferência, esses algebristas, dizia, eu, calcularão que é preciso, absolutamente, que o globo que o produziu seja exatamente vinte e um milhões e seiscentas mil vezes maior que a nossa minúscula terra. Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os Estados de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, cuja volta se pode fazer em meia hora, comparados ao império da Turquia, de Moscóvia ou da China, não são mais que uma débil imagem das prodigiosas diferenças que a natureza colocou em todos os seres.

Sendo Sua Excelência da altura que eu disse, todo, os nossos escultores e pintores convirão sem dificuldade em que a sua cintura pode medir cinqüenta mil pés, o que constitui uma bela proporção.

Quanto a seu espírito, é um dos mais cultivados que existem; sabe muitas coisas e inventou algumas outras: não tinha ainda duzentos e cinqüenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio dos jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pela força de seu espírito, mais de cinqüenta proposições de Euclides – isto é, dezoito mais que Blaise Pascal, o qual depois de ter adivinhado trinta e duas, por brincadeira, pelo que diz a sua irmã, tornou-se mais tarde um geômetra bastante medíocre e um péssimo metafísico. Lá pelos seus quatrocentos e cinqüenta anos, ao sair da infância, dissecou muitos desses pequenos insetos que têm apenas cem pés de diâmetro e que se furtam aos microscópios ordinários; compôs sobre a matéria um livro bastante curioso, mas que lhe valeu algumas contrariedades. O mufti de seu país, sujeito esmiuçador e ignorantíssimo, achou no seu livro proposições suspeitas, malsoantes, temerárias heréticas, que cheiravam a heresia, e o perseguiu sem tréguas: tratava-se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a mesma que a dos caracóis. Micrômegas defendeu-se com espírito; pôs as mulheres a seu favor; o processo durou duzentos e vinte anos. Afinal o mufti fez com que o livro fosse condenado por jurisconsultos que não o haviam lido, e o autor teve ordem de não aparecer na Corte durante oitocentos anos.

Pouco se afligiu ele de ser banido de uma Corte onde só havia intrigas e mesquinharias. Compôs uma canção muito divertida contra o mufti, a que este não deu importância; e pôs-se a viajar de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e berlinda ficarão decerto espantados com as equipagens de lá; pois nós, em nossa pequena bola de lama, nada concebemos além de nossos usos. O nosso viajante conhecia às maravilhas as leis da gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas. Utilizava-as tão a propósito que, ou por intermédio de um raio de sol, ou graças à comodidade de um cometa, ia de globo em globo, ele e os seus, como um pássaro voeja de ramo em ramo. Em pouco percorreu a Via Láctea; e sou obrigado a confessar que nunca viu, em meio às estrelas de que é semeada, esse belo céu empíreo que o ilustre vigário Derham se gaba de ter enxergado na ponta de sua luneta. Não que eu pretenda alegar que o senhor Derham tenha visto mal, Deus me livre! mas Micrômegas esteve no local, é um bom observador, e eu não quero contradizer ninguém. Micrômegas depois da muitas voltas chegou ao globo de Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver coisas novas, não pôde, ante a pequenez do globo e de seus habitantes, evitar esse sorriso de superioridade que às vezes escapa aos mais sábios. Pois afinal Saturno não é mais que novecentas vezes maior que a terra, e os seus cidadãos não passam de anões que têm apenas umas mil toesas de altura. A principio, zombou ele um pouco com a sua gente, mais ou menos como um músico italiano se põe a rir de música de Lulli, quando chega em França. Mas o siriano, que tinha o espírito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem não ser ridícula só por ter seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos, depois de os haver espantado. Ligou-se de estreita amizade com o secretário da Academia de Saturno, homem de muito espírito, que na verdade nada inventara, mas prestava excelente conta das invenções doe outros, e fazia passavelmente pequenos versos e grandes cálculos. Transcreverei aqui, para satisfação dos leitores, uma singular conversação que Micrômegas teve um dia com o senhor secretário.


 

CAPÍTULO SEGUNDO

Conversação do habitante do Sírio com o de Saturno

 

Depois que sua Excelência se deitou o secretário aproximou-se de seu rosto:

— Tem-se de confessar – disse Micrômegas – que a natureza é bastante variada.

— Sim – disse o saturniano – a natureza é como um canteiro cujas flores...

—.Ah! – exclama o outro. – Deixe o canteiro em paz.

— Ela é – tornou o secretário – como uma assembléia de loiras e morenas cujos adornos...

— Que tenho eu a ver com as suas morenas?

— É então como uma galeria de pinturas cujos traços.

— Ora! – atalha o viajante. – De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que buscar-lhe comparações?

— Para ser agradável ao senhor – respondeu o secretário.

— Eu não quero que me agradem – retrucou o viajante.

Quero que me instruam. Comece por me dizer quantos sentidos têm os homens do seu globo.

— Temos setenta e dois – disse o acadêmico. – E todos os dias nos queixamos de tão pouco. A nossa imaginação vai além de nossas necessidades; achamos que, com os nossos setenta e dois sentidos, o nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, apesar de toda a nossa curiosidade e do considerável número de paixões que resultam dos nossos setenta e dois sentidos, ainda temos tempo de sobra para nos aborrecermos.

— Não duvido – disse Micrômegas, – pois no nosso globo temos cerca de mil sentidos, e resta-nos ainda não sei que vago desejo, não sei que inquietação, que incessantemente nos adverte do pouco que nós somos e de que existem seres muito mais perfeitos. Tenho viajado um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi-os muito superiores; mas a nenhum vi que não tivesse mais desejos que verdadeiras necessidades, e mais necessidades que satisfação. Talvez chegue um dia ao país onde não falta nada; mas desse pais até agora ninguém me deu notícias.

O saturniano e o siriano alongaram-se então em conjeturas; mas, depois de muitos raciocínios tão engenhosos quão incertos foi preciso voltar aos fatos.

— Quanto tempo vivem vocês? – Indagou o siriano.

— Ah! pouquíssimo – replicou o homenzinho de Saturno.

— Exatamente como entre nós – disse o siriano, vivemos sempre a nos queixar do pouco. Deve ser uma lei universal da natureza.

— Ai! – suspirou o saturniano. – Vivemos apenas quinhentas grandes revoluções do sol. (O que, pela nossa maneira de contar, dá aproximadamente uns quinze mil anos). Bem vê que é quase o mesmo que morrer no momento em que se nasce; a nossa existência é um ponte, a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Apenas começa a gente a instruir-se um pouco, quando chega a morte, antes que se tenha adquirido experiência. Quanto a mim, não ouso fazer projeto algum; sou como uma gota d’água em um oceano imenso. sinto-me envergonhado, principalmente diante do senhor, da figura ridícula que faço neste mundo.

— Se o amigo não fosse filósofo – respondeu Micrômegas, – eu temeria afligi-lo dizendo-lhe que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a, sua. Mas bem sabe que, quando nos cumpre devolver o corpo aos elementos e reanimar a natureza sob outra forma (que é o que se chama morrer), quando é chegado esse instante de metamorfose, ter vivido eternidade, ou um dia, é precisamente a mesma coisa. Estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo do que no meu, e vi que ainda se queixavam. Mas há por toda parte gente de bom senso, que sabe tomar o seu partido e agradecer ao autor da natureza. Expandiu Ele por este universo uma profusão infinita de variedades, com uma admirável espécie de uniformidade. Por exemplo, todos os seres pensantes são diferentes, e todos se assemelham no fundo, pelo dom do pensamento e dos desejos. A matéria está por toda parte, mas tem em cada globo propriedades diversas. Quantas dessas propriedades contam os senhores na sua matéria?

— Se se refere – disse o saturniano – a essas propriedades sem as quais julgamos que este globo não poderia subsistir tal como é, contamos trezentas, como a extensão, a penetrabilidade, a mobilidade, a gravitação, a divisibilidade, e o resto.

— Aparentemente – replicou o viajante – basta esse pequeno número para os objetivos do Criador quanto à vossa pequena habitação. Em tudo admiro a sua sabedoria; vejo por toda parte diferenças; mas também proporções por toda parte. Pequeno é o vosso globo, vossos habitantes também o são; tendes poucas sensações; vossa matéria tem poucas propriedades: tudo isto é obra da Providência. De que cor é verdadeiramente o vosso sol?

— De um branco bastante amarelado – disse o saturniano. – E quando dividimos um de seus raios, vemos que contém sete cores.

— O nosso sol tende para o vermelho – disse o siriano e temos trinta e nove cores primitivas. Dentre os sóis de que me aproximei, não há dois que se assemelhem, como não há entre vós um rosto que não seja diferente de todos os outros.

Após várias perguntas dessa natureza, indagou quantas substâncias essencialmente diferentes se contavam em Saturno. Soube que não havia mais que umas trinta, como Deus, o espaço, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que não têm extensão, os que se penetram, os que não se penetram, e o resto. O siriano, em cuja pátria se contavam trezentas, e que descobrira três mil outras em suas viagens, deixou o filósofo de Saturno prodigiosamente espantado. Afinal, depois de haverem comunicado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de haverem trocado idéias durante uma revolução do sol, resolveram fazer juntos uma pequena viagem filosófica.


 

CAPÍTULO TERCEIRO

Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno.

 

Estavam os nossos dois filósofos prestes a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma bela provisão de instrumentos matemáticos, quando a amante do saturniano, ao saber disso, veio queixar-se em pranto. Era uma linda moreninha que tinha apenas seiscentas toesas, mas que compensava com vários encantos a pequenez de seu talhe.

— Ah, cruel! – clamava ela. – Depois de te haver resistido durante mil e quinhentos anos, quando enfim começava a render-me, quando apenas passei cem anos em teus braços, tu me deixas para ir viajar com um gigante de um outro mundo! Vai, não passas de um curioso, nunca tiveste amor; se fosses um verdadeiro saturniano, serias fiel. Por onde vais correr? Que queres? As nossas cinco luas são menos errantes que tu, o nosso anel é menos mutável. Pronto! Nunca mais amarei a ninguém.

O filósofo, por mais que o fosse, beijou-a, chorou com ela, e a dama, depois de haver desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país.

Os nossos dois curiosos partiram; saltaram primeiro sobre o anel, que acharam bastante chato, como bem o adivinhou um ilustre habitante do nosso pequeno globo; seguiram, depois, de lua em lua. Como um cometa viesse a passar muito próximo da última, lançaram-se sobre ele, com todos os seus criados e instrumentos. Depois de terem coberto cerca de cento e cinqüenta milhões de léguas, toparam com os satélites de Júpiter. Nesse planeta demoraram-se um ano inteiro, durante o qual descobriram belos segredos, que estariam agora em vias de publicação se não fossem os senhores inquisidores, que acharam algumas proposições um pouco fortes. Mas li o manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de ***, que me deixou examinar seus livros, com uma generosidade e benevolência nunca assaz louvada.

Mas voltemos aos nossos viajantes. Deixando Júpiter, atravessaram um espaço de cerca de cem milhões de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco vezes menor que o nosso pequeno globo; viram as duas luas que servem a esse planeta e que escaparam às vistas de nossos astrônomos. Bem sei que o padre Castel escreverá, e até com muito espírito, contra a existência dessas duas luas; mas reporto-me àqueles que raciocinam por analogia. Sabem esses bons filósofos o quanto seria difícil ao planeta Marte, que fica tão longe do sol, não dispor ao menos de um par de luas. Seja como for, o caso é que os nossos camaradas o acharam tão pequeno, que recearam não encontrar pousada, e seguiram adiante, como dois viajantes que desdenham um mau albergue de aldeia e prosseguem até a cidade vizinha. Mas o siriano e o companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito tempo, sem encontrar coisa alguma. Afinal divisaram um pequeno clarão; era a terra; coisa de causar piedade a gente que vinha de Júpiter. No entanto, com medo de se arrependerem segunda vez, resolveram desembarcar aqui mesmo. Passaram para a cauda do cometa e, achando uma aurora boreal adrede, nela se meteram, e chegaram à terra pelo norte do mar Báltico, a 5 de julho de 1737.


 

CAPÍTULO QUARTO

Do que lhes sucede sobre a face da terra

 

Depois de terem repousado um pouco, almoçaram duas montanhas, que os criados lhes prepararam a capricho. Desejaram em seguida fazer um reconhecimento pelo pequeno país onde se achavam. Caminharam a princípio de norte a sul. Os passos ordinários do siriano e do seu pessoal eram de trinta mil pés aproximadamente; o anão de Saturno seguia de longe, arquejando; ora, era preciso que ele corresse uns dose passos enquanto o outro dava uma pernada: imaginai (se é permitido tal comparação) um pequeno cãozinho fraldiqueiro que acompanhasse um capitão da guarda do rei da Prússia.

Como os dois estrangeiros andassem muito depressa, deram a volta ao mundo em trinta e seis horas; o sol, na verdade, ou antes, a terra, faz igual viagem num dia; mas cumpre levar em conta que é mais cômodo girar sobre o próprio eixo do que andar com um pé depois do outro. Ei-los pois de volta ao ponto de partida, depois de terem visto esse pântano, quase imperceptível para eles, que se chama o Mediterrâneo, e esse outro pequeno charco que, sob o nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A água nunca passara além das canelas do anão, ao passo que o outro apenas molhara os calcanhares. Fizeram tudo o que puderam, andando em todas as direções, para descobrir se este globo era habitado ou não. Agacharam-se, deitaram-se, apalparam por toda parte; mas, como os seus olhos e mãos não eram proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arrastam, não receberam a mínima sensação que lhes fizesse suspeitar que nós, e os nossos demais confrades habitantes deste globo, tivéssemos a honra de existir.

O anão, que as vezes raciocinava muito apressadamente, concluiu a princípio que não havia habitantes na terra. Seu primeiro argumento era de que não vira, ninguém. Micrômegas, polidamente, fez-lhe sentir que ele não raciocinava muito bem:

— Como não distingues com os teus pequenos olhos, certas estrelas de qüinquagésima grandeza que eu percebo distintamente; concluiu daí que essas estrelas não existem?

— Mas – replicou o anão eu apalpei bem.

— Mas sentiste mal – respondeu o outro.

— Mas este globo é tão mal construído – objetou o anão, – é tudo tão irregular e de uma forma que me parece tão ridícula! Tudo parece aqui um pleno caos: não vês estes pequenos arroios que jamais correm em linha reta, esses charcos que não são nem redondos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; e todos esses grãozinhos pontiagudos de que está eriçado este globo e que me arranharam os pés? (Queria referir-se às montanhas). Repara ainda a forma de todo o globo, como é achatado nos pólos, e a sua maneira inadequada de girar em torno do sol, de modo que a região dos pólos fica necessariamente estéril? Em verdade, o que me faz pensar que não haja aqui ninguém, é que gente de bom senso não moraria em um lugar como este.

— Pois bem – disse Micrômegas, – talvez os que o habitam não sejam gente de bom senso. Mas há probabilidades de que isto não tenha sido feito inutilmente. Tudo aqui te parece irregular porque em Saturno e Júpiter é tudo feito a régua e compasso. Exatamente por esse motivo é que há aqui um pouco de confusão. Não te disse eu que nas minhas viagens sempre encontrei variedade?

O saturniano replicou a todas essas razões. E a questão jamais terminaria se, por felicidade, Micrômegas no calor da discussão, não tivesse rompido o seu colar de diamantes. Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, tendo as mais volumosas quatrocentas libras de peso, e as menores cinqüenta. O anão apanhou algumas; ao aproximá-las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, constituíam excelentes microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de cento e sessenta pés de diâmetro que aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelentes; mas no princípio. nada perceberam com o seu auxílio: era preciso adaptarem-se. Afinal o habitante de Saturno viu qualquer coisa quase imperceptível que se movia à superfície do mar Báltico: era uma baleia. Pegou-a habilmente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que se pôs a rir da excessiva pequenez dos habitantes do nosso globo. O saturniano, convencido de que o nosso mundo é habitado, imaginou logo que só o era por baleias; e, como era um grande logicista, quis logo adivinhar de onde um átomo tão pequeno tirava o seu movimento, e se tinha idéias, vontade, e liberdade. Micrômegas sentiu-se muito embaraçado: examinou o animal com infinita paciência, e o resultado da análise foi que era impossível acreditar que ali se alojasse uma alma. Estavam, pois, os dois viajantes inclinados a pensar que não há espírito em nosso mundo, quando, com o auxílio do microscópio, perceberam algo de mais grosso que uma baleia e que flutuava sobre as águas. Sabe-se que, por aquela época, um bando de filósofos regressava do círculo polar, onde tinham ido fazer observações que a ninguém ocorreram até então. Disseram as gazetas que o seu navio naufragou nas costas de Botnia e que tiveram grande dificuldade em salvar-se; mas neste mundo nunca se sabe o reverso das cartas. Vou contar ingenuamente como se passaram as coisas, sem nada acrescentar por conta própria, o que não é pequeno esforço para um historiador.


 

CAPÍTULO QUINTO

Experiências e raciocínios dos dois viajantes

 

Micrômegas estendeu cuidadosamente a mão para o local onde se achava o objeto e, avançando dois dedos e retirando-os por medo de enganar-se e depois abrindo-os e fechando-os, apanhou com todo o jeito o navio que carregava os tais senhores, e colocou-o sobre a unha, sem o apertar muito, para não esmagá-lo. “Eis um animal bem diferente do primeiro” – observou o anão de Saturno; o siriano pôs o pretenso animal na palma da mão. Os passageiros e o pessoal da equipagem, que se supunham erguidos por um furacão, e que. se julgavam sobre uma espécie de rochedo, põem-se todos em movimento; os marinheiros apanham pipas de vinho, lançam-nas sobre a mão de Micrômegas, e precipitam-se em seguida. Apanham os geômetras seus esquadros seus sectores, e nativas da Lapônia, e saltam para os dedos de Micrômegas. Tanto fizerem, que este sentiu enfim mover-se qualquer coisa que lhe comichava os dedos: era um bastão ferrado que lhe fincavam no índice; julgou, por aquilo, que saíra qualquer coisa do pequeno animal que ele segurava. Mas não desconfiou de mais nada. O microscópio, que mal fazia discernir uma baleia e um navio, não alcançava seres tão imperceptíveis como os homens. Não pretendo chocar a vaidade de ninguém, mas sou obrigado a pedir às pessoas importantes que façam uma pequena observação comigo: é que, considerando a homens de cerca de cinco pés de altura, não fazemos, à face da terra, maior figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a seiscentésima milésima parte de uma polegada. Imaginai uma substância que pudesse sustentar a terra na mão, e que tivesse órgãos em proporção com os nossos; e bem pode acontecer que haja grande número dessas substâncias: concebei, então, o que não haveriam de pensar dessas batalhas que nos valeram duas aldeias que foi preciso restituir.

Se algum capitão de granadeiros ler algum dia esta obra, não duvido que mande aumentar, pelo menos dois pés, os capacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais que faça, nunca passarão, ele e os seus, de infinitamente pequenos.

Que maravilhosa habilidade não foi preciso ao nosso filósofo de Sírio para perceber os átomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou julgaram ver, a semente de que nos formamos, não fizeram tão espantosa descoberta. Que prazer não sentiu Micrômegas ao ver moverem-se aquelas pequenas máquinas, examinando-lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operações! Que de exclamações! Com que alegria pôs um de seus microscópios nas mãos do companheiro de viagem! “Vejo-os! – diziam ambos ao mesmo tempo. – Repara como carregam fardos, como se erguem, como se abaixam!” Assim falando, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de ver objetos tão novos e pelo receio de os perder. O saturniano, passando de um excesso de desconfiança a um excesso de credulidade, julgou perceber que eles trabalhavam na propagação da espécie. Ah! – dizia ele, – peguei a natureza em flagrante. – Mas enganava-se pelas aparências, o que muita vez sucede, quer a gente se sirva ou não de microscópios.


 

CAPÍTULO SEXTO

Do que lhes aconteceu com os homens.

 

Micrômegas, melhor observador que o anão, viu claramente que os átomos se falavam; e fê-lo notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano quanto à geração, não quis acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Tinha o dom das línguas, como o siriano; não ouvia os nossos átomos falarem, e supunha que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas criaturas imperceptíveis possuir os órgãos da voz, e que teriam a dizer-se? Para falar, é preciso pensar, ou quase; mas, se pensavam, tinham então o equivalente de uma alma. Ora, atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas, parecia-lhe absurdo.

— Mas – observou Micrômegas – ainda há pouco supunhas que eles praticavam o amor. Será que julgas que se possa praticar o amor sem pensar e sem preferir alguma palavra, ou pelo menos sem fazer-se compreender? Acha, aliás, que seja mais difícil fazer um raciocínio. que fazer um filho? Quanto a mim, um e outro me parecem grandes mistérios.

— Já não ouso nem crer nem negar – disse o homúnculo, – não tenho mais opinião. Tratemos primeiro de examinar esses insetos, arrazoaremos depois.

— Muito bem dito – retrucou Micrômegas. Em seguida tirou do bolso uma tesourinha, com que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar fabricou uma espécie de trompa acústica, que era como um vasto funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o navio e a toda a equipagem. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de modo que, graças à sua indústria, pôde o filósofo lá do alto ouvir perfeitamente o zumbido dos insetos cá de baixo. Em poucas horas, conseguiu distinguir as palavras, e afinal compreender o francês. O anão fez o mesmo, embora com mais dificuldade. O pasmo dos viajantes redobrava a cada momento. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse capricho da natureza afigurava-se-lhes inexplicável Bem podeis imaginar como Micrômegas e o seu anão ardiam de impaciência por travar conversa com os átomos.

Temiam que a sua voz de trovão, e sobretudo a de Micrômegas, ensurdecesse os insetos, sem ser ouvida. Cumpria diminuir-lhe a força. Puseram na boca umas espécies de palitos cujas pontas afiladas vinham dar perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os joelhos, e o navio com a equipagem sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho. Afinal, por meio destas e de outras precauções, começou assim o seu discurso:

“Insetos invisíveis, que a mão do Criador se comprouve em fazer brotar no abismo do infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me segredos que pareciam impenetráveis. Na minha Corte, talvez não se dignem olhar-vos; mas eu não desprezo ninguém, e ofereço-vos a minha proteção”.

Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos, os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava. O anão de Saturno, que tinha a voz mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam tratando. Contou-lhes a partida de. Saturno, disse-lhes quem era o senhor Micrômegas, e, depois de os ter lamentado por serem tão pequenos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela miserável condição tão vizinha do aniquilamento, o que faziam num globo que parecia pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham uma alma, e mil outras questões dessa natureza.

Um sábio do grupo, mais audaz que os outros e chocado de que duvidassem da sua alma, observou o interlocutor por intermédio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez duas miras e, na terceira, assim lhe falou:

— Julga então, senhor, só porque tem mil toesas da cabeça aos pés, que é um...

— Mil toesas! – exclamou o anão. – Meu Deus! Como pode ele saber a minha altura? Mil toesas! Não se engana por uma polegada. Como! Esse átomo mediu-me! É geômetra, conhece as minhas dimensões; e eu, que o vejo através de um microscópio, ainda não conheço as suas.

— Sim, medi-o – disse o físico – e medirei também o seu grande companheiro.

Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se se pusesse de pé, ficaria com a cabeça muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-lhe uma grande árvore num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que me guardo de chamar pelo nome, devido a meu grande respeito ás damas. Depois, por uma seqüência de triângulos, concluíram que aquilo que eles viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de altura.

Micrômegas pronunciou então estas palavras:

“Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci”.

Respondeu-lhe um dos filósofos que ele poderia com toda a segurança acreditar que há de fato seres inteligentes muito menores que o homem. Contou-lhe, não tudo o que Virgílio diz de fabuloso sobre as abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur dissecou. Disse-lhe, enfim, – que há animais que estão para as abelhas como as abelhas estão para os homens, e como Micrômegas estava para aqueles imensos animais a que se referira, e como aqueles estão para outras substâncias, diante das quais não passam de átomos. Pouco a pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou.


 

CAPÍTULO SÉTIMO

Conversação com os homens.

 

— Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se comprazeu em manifestar seu engenho e poderio, deveis sem dúvida gozar das mais puras alegrias sobre o vosso globo; pois, tende tão pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, que é o que constitui a verdadeira vida dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte nenhuma, com certeza é aqui que existe.

A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco que os outros, confessou de boa fé que, excetuando um pequeno número de habitantes muito pouco considerados, o resto é tudo uma assembléia de loucos, de maus e de infelizes.

— Nós temos mais matéria do que é necessário – disse ele – para fazer muito mal, se o mal vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito. Não sabeis, por exemplo que, no instante em que vos falo, há cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados por estes e que, quase por toda a terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais?

O siriano estremeceu e perguntou qual poderia ser o motivo dessas terríveis querelas entre tão mesquinhos animais.

— Trata-se – disse o filósofo – de uma porção de lama do tamanho de vosso calcanhar. Não que algum desses milhões de homens que se exterminam pretenda um palmo que seja dessa lama. Trata-se apenas de saber se pertencerá a certo homem a que chamam Sultão, ou a outro homem a que chamam César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, ou jamais verá, o pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam já viu algum dia o animal pelo qual se degolam.

— Infelizes! – exclamou o siriano indignado. – Pode-se acaso conceber mais furiosa loucura? Vem-me até vontade de dar três passos e esmagar com três patadas esse formigueiro de ridículos assassinos.

— Não vos deis a esse incômodo; eles já trabalham bastante para a sua própria ruína. Ficai sabendo que, passados dez anos, já não resta nem a centésima parte desses miseráveis, e, mesmo que não tivessem puxado da espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam ,a quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.

O viajante sentia-se apiedado da pequena raça humana, na qual descobria tão espantosos contrastes.

— Já que pertenceis ao pequeno número dos sábios – disse-lhes ele – e aparentemente não matais a ninguém por dinheiro, dizei-me em que vos ocupam então.

— Dissecamos moscas – respondeu o filósofo, – medimos linhas, encordoamos números, pomo-nos de acordo acerca de dois ou três pontos que entendemos, e disputamos sobre dois ou três mil que não entendemos.

Ocorreu então ao siriano e ao companheiro a fantasia de interrogar aqueles átomos pensantes sobre coisas que ambos conheciam.

— Quanto contais – Indagou Micrômegas – da estrela da Canícula à grande estrela dos Gêmeos?

— Trinta e dois graus e meio – responderam todos ao mesmo tempo.

— Quanto contais daqui até a lua?

— Sessenta semidiâmetros da terra, em números redondos.

— Quanto pesa o vosso ar?

Supunha confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que igual volume d’água e dezenove mil vezes menos que o ouro.

O anãozinho, de Saturno, atônito das suas respostas, sentiu-se tentado a tomar como feiticeiros àqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Afinal lhes disse Micrômegas:

— Já que sabeis tão bem o que se acha fora de vós, decerto sabeis ainda melhor o que tendes por dentro. Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as vossas idéias. Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes, mas foram de diferentes opiniões. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o de Leibnitz, aqueloutros o de Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a segurança: A alma é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre: “entelequia esti” etc.

Não entendo muito bem o grego – disse o gigante.

Nem eu tampouco – replicou o inseto filosófico.

— Por que então – tornou o siriano – citais um certo Aristóteles em grego?

É que – replicou o sábio – cumpre citar aquilo de que não se compreende nada na língua que menos se entende.

O cartesiano tomou a palavra e disse:

— A alma é um espírito puro, que recebeu no ventre da mãe todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia é que não mais saberá!

— Então não valia a pena – retrucou o animal de oito léguas – que a tua alma fosse tão sábia no ventre de tua mãe, para ser tão ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que entendes por espírito?

— Bela pergunta! – exclamou o raciocinante. – Não tenho disso a mínima idéia: dizem que não é matéria.

— Mas sabes ao menos o que é a matéria?

— Perfeitamente – respondeu o homem. – Por exemplo, esta pedra é cinzenta, e de determinada forma, tem as suas – três dimensões, é pesada e divisível.

— Pois bem – disse o siriano – e essa coisa que te parece divisível, pesada e cinzenta, saberás dizer-me exatamente o que seja? Tu lhe vês alguns atributos; mas o fundo da coisa, acaso o conheces?

— Não – disse o outro.

— Não sabes, pois, o que é a matéria.

Então o senhor Micrômegas, dirigindo a palavra a outro sábio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.

— Absolutamente nada – respondeu o filósofo malebranchiste, – é Deus que faz tudo por mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.

— É o mesmo que se não existisses – tornou o sábio de Sírio. – E tu, meu amigo – disse a um leibnitziano que ali – se achava, – que vem a ser a tua alma?

— É – respondeu o leibnitziano – um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilhão; ou, se quiserdes, é ela quem carrilhona, enquanto o meu corpo marca a hora; ou então, é minh’alma o espelho do universo, e meu corpo a moldura do espelho: isso é bem claro.

Um minúsculo partidário de Locke achava-se ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a palavra:

— Eu não sei como é que penso – respondeu, – mas sei que nunca pude pensar senão com o auxilio de meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, eu não duvido; mas também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno, não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do que se pensa.

O animal de Sírio sorriu: não achou que fosse aquele o menos sábio; e o anão de Saturno teria abraçado o sectário de Locke, se não fora a extrema desproporção entre ambos. Mas, por desgraça, havia ali um animalículo de capelo que cortou a palavra a todos os animalículos filosofantes: disse que sabia o segredo de tudo, o qual se achava na Suma de Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; sustentou-lhes que as suas pessoas, os seus mundos, sois e estrelas, tudo era feito unicamente para o homem. A isto, os nossos dois viajantes tombaram um nos braços do outro, sufocados de riso, esse riso inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se e, nessas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso das calças do saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; afinal encontraram e reajustaram tudo convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita bondade, embora no íntimo se achasse um tanto agastado de ver que os infinitamente pequenos tivessem um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que redigiria um belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco. – Ah! bem que eu desconfiava... – disse ele.


 

©2001 — Ridendo Castigat Mores

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Julho 2001

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