capa

eBookLibris

A Luta Pelo Direito

Rudolf von Ihering
Tradução de Tavares Bastos
Prefácio de Clovis Bevilacqua

www.eBooksBrasil.org

 

capa da primeira edição eBooksBrasil, setembro 1999

 

A Luta pelo Direito [1872]
R. von Ihering [1818-1892]
Tradução de José Tavares Bastos
Juiz no Estado do Rio e Redator dos Arquivos da Sociedade de Legislação Brasileira no mesmo Estado
Prefaciada pelo Dr. Clovis Bevilaqua, lente na Faculdade de Direito do Recife

Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Digitalizado da Primeira Edição — 1909
Copyright:
Domínio Público


 

ÍNDICE

Prefácio de Clovis Bevilaqua
Advertência do tradutor espanhol
Prefácio do tradutor português
Prefácio da tradução espanhola
I — Introdução
II — O interesse na luta pelo direito
III — A luta pelo direito na esfera individual
IV — A luta pelo direito na esfera social
V — O direito alemão e a luta pelo direito


 

Prefácio

 

Der Kampf um’s Recht é um livro admirável, que fala à razão e ao sentimento, convencendo e comovendo; onde as idéias originais cintilam deslumbrando e as frases felizes dão ao pensamento a expressão que ele reclama; um livro feito de eloqüência e saber, que não somente instrui e educa, mas ainda mostra o direito na sua realidade palpitante, ressumando da vida social, enrodilhando-se nela, impulsando-a, adaptando-a a certos fins, dirigindo-a, e, ao mesmo tempo, amoldando-se a ela e sendo, afinal, uma de suas expressões mais elevadas.

Não admira que um tal livro tenha tido número tão considerável de traduções. Os japoneses, como os franceses, os espanhóis, os italianos e os gregos, leram-no, ficaram encantados e nacionalizam-no. A nós também nos impressionou fortemente o opúsculo vibrante do grande mestre, e não tardamos em traduzi-lo. JOÃO VIEIRA, o adiantado espírito ao qual está intimamente ligado o movimento progressivo do direito penal entre nós, deu-nos a primeira tradução portuguesa da Luta pelo direito, e, agora, o inteligente e operoso cultor das letras jurídicas, o sr. dr. José TAVARES BASTOS, empreende a segunda, o que mostra, bem claramente, o interesse que, entre os juristas pátrios, soube despertar a curiosa conferência que IHERING realizou em Viena, no ano de 1872.

Trinta e sete anos já passaram, depois que o pensamento do egrégio jurisconsulto revestiu a forma que admiramos na Luta pelo direito, mas, apesar das agitações intelectuais dos últimos tempos, que não respeitaram os princípios mais solidamente estabelecidos da filosofia e das ciências, como os conceitos da matéria e da conservação e transformação da força, aquelas frases lapidares encontram a mesma repercussão simpática nas inteligências, porque continuam a ser a tradução feliz de um dos aspectos da idéia do direito.

Comparai a obra dissolvente de Jean Cruet, A vida do direito e a inutilidade das leis, em que a finura de espírito de um advogado, descrente do prestígio da lei torturada pela chicana e abalada pelas interpretações acomodatícias não deixa ver as grandes linhas do quadro da vida jurídica, perdendo-se nos meandros sutis das particularidades, e o opúsculo imortal em que se destaca, luminosa e profunda, a idéia do direito, movendo-se pelo esforço, realizando-se pela luta e caminhando para firmar a paz, como alvo final na vida do indivíduo ou na vida dos povos, e reconhecereis que a Vida do direito é apenas um livro de somenos interesse, agradando mais pela feição literária do que pela sinceridade das observações, ao passo que a Luta pelo direito é um opúsculo imortal, porque revela uma verdade científica, e incita as almas para a conquista de um nobre ideal de paz e de justiça.

FOUILLÉE diz que “a França não cessou de sustentar contra a Alemanha e a Inglaterra, a primazia do direito sobre a força, da fraternidade sobre o ódio, da associação sobre a concorrência vital”, e LAGORGETTE acha que o citado FOUILLÉE, GUYAU, TARDE, ESPINAS, GIDE, DURKHEIM, e WORMS contribuíram para a exclusão do darwinismo social, combatendo a purificação pela carnificina.

Sem dúvida há na Luta pelo direito a aplicação de uma idéia que é mola essencial da concepção darwínica, e Rudolf von IHERING assinala o papel da força na formação e desenvolvimento do direito, mas seria dar prova de invencível obstinação, depois da leitura das obras do grande jurista filósofo, afirmar que ele advoga a organização social pela violência, e desconhecer que a luta que ele mostra efetuando a realização do direito, é um aspecto dessa mesma energia que elabora o polimorfismo dos seres e a perfeição da humanidade, impelindo-a da barbárie para a cultura.

A nós não nos turbam felizmente a razão preconceitos de nacionalidade.

Podemos, por isso, ver a majestade do pensamento científico em todo o seu esplendor, sem tentar fugir à sua benéfica influência, porque ele primeiro brilhou num ponto do globo e não em outro.

E, assim, a bela tradução do empolgante opúsculo de IHERING, há de, certamente, encontrar, entre nós, o acolhimento de que são dignas as obras-primas da inteligência humana.

Rio, 26 de Março de 1909.
CLOVIS BEVILAQUA.


 

ADVERTÊNCIA DO TRADUTOR ESPANHOL

 

Atendendo aos diversos assuntos que são tratados no seguimento do trabalho cuja tradução damos à publicidade, fizemos uma divisão que nos pareceu conveniente em capítulos, sem entretanto termos alterado absolutamente em coisa alguma a ordem seguida pelo autor no original.


 

PREFÁCIO DO TRADUTOR PORTUGUÊS

 

Cursávamos o primeiro ano da Faculdade de Direito quando, pela primeira vez, manuseamos a preciosa obra de R. von Ihering, — A luta pelo direito, traduzida pelo douto João Vieira de Araujo.

A impressão que tivemos calou, mas profundamente, no nosso espírito, então jovem e bastante.

As proposições sugestivas de Ihering atraíram a nossa atenção.

Mais tarde, tivemos a satisfação de ler a versão espanhola de Adolfo Posada y Biesca.

O prólogo de Leopoldo Alas despertara-nos ainda mais o entusiasmo que nutríamos pelo trabalho a que nos referimos.

Promotor Público de várias comarcas do Estado do Rio, tivemos, por inúmeras vezes, de reproduzir os elegantes períodos que se lêm nas páginas quentes do professor de Direito da Universidade de Viena.

Magistrado, temos, a cada momento, reconhecido o que seja o direito, como evoluiu, e o que há de ser.

É neste cargo que folheamos múltiplas vezes o opúsculo de Ihering, vendo como ressalta das suas páginas a alta importância que assume a luta do indivíduo pelo seu direito, quando ele mesmo diz — é o direito todo inteiro que se tem lesado e negado em meu direito pessoal, é ele que vou defender e restabelecer.

Sem dúvida que temos compreendido e visto nas proposições ardorosas de Ihering, que é a energia da natureza moral que protesta contra o atentado do direito, testemunho mais belo e mais elevado que o sentimento legal pode dar de si mesmo, verdadeiro fenômeno moral tão interessante e tão instrutivo para o estudo do filosófo como para a imaginação do poeta.

É neste posto árduo de magistrado que temos, de perto, reconhecido as palavras do mestre que — resistir à injustiça é um dever do indivíduo para consigo mesmo, porque é um preceito da existência moral, é um dever para com a sociedade, porque essa resistência não pode ser coroada pelo sucesso, senão quando ela se torna geral.

Sim, dizemos como o douto Ihering, — aquele cujo direito é atacado deve resistir; é um dever para consigo mesmo: — o homem sem direito desce ao nível dos brutos.

Neste opúsculo acha-se escrito, com eloqüência de forma e como verdadeiro estímulo ao distribuidor da justiça numa circunscricão, que aquele que é encarregado de guardar e proteger a lei e se faz assassino dela, é como o médico que envenena seu doente, o tutor que faz perecer seu pupilo.

Que sirvam, pois, de incentivo aos magistrados, as palavras acima transcritas.

Todo leitor convidamos ao estudo do prólogo de Leopoldo Alas, pela sua douta exposição e calor que dera à tradução espanhola.

Nestas páginas em que ele prefacia A Luta pelo direito, encontrar-se-á o mesmo entusiasmo de exposição e arroubo de eloqüência com que se depara em cada capítulo do precioso opúsculo do sábio professor de Viena.

Não nos arrependemos, pois, de furtar algumas horas aos nossos trabalhos para vertê-lo para o vernáculo.

Da sua utilidade o leitor se certificará.

É suficiente, para isso provar, a leitura do Prefácio do douto autor do Projeto do Código Civil, o imortal Clovis Bevilaqua, robusto talento, possuidor de invejável erudição e de incansável operosidade e respeitado por todos que cultivam a ciência do Direito.

José TAVARES BASTOS.


 

PREFÁCIO
DA
TRADUÇÃO ESPANHOLA

 

Somente a vontade pode dar ao direito o que constitui sua essência, — a realidade.
Por mais elevadas que sejam as qualidades intelectuais de um povo, se faltam a força moral, a energia e a perseverança nesse povo, jamais poderá o direito prosperar.
(IHERING, — Espírito do Direito Romano, t. I, § 24).

 

O opúsculo, a cuja tradução espanhola servem estas páginas de prefácio, atrairia sempre, e dignamente, a atenção dos leitores pelo seu mérito intrínseco e pelo nome ilustre do autor; mas entre nós, hoje mais que nunca, torna-se oportuna essa leitura, porque pode servir de estímulo aos espíritos enfraquecidos e corrigir muitas perniciosas aberrações da vontade e da inteligência.

Esta obra é de tal valor que suas lições são úteis a todos, porquanto podem entendê-las e aproveitá-las ainda mesmo aqueles que se tenham por filósofos e jurisconsultos, ou o sejam na realidade, e para a maioria dos leitores que, por ser alheia aos estudos técnicos do direito, se inclina a julgar que é incapaz de utilizar-se desta doutrina.

Sem proceder como tantos outros que para vulgarizar a ciência a profanam e adulteram, Ihering, senhor de si mesmo, expõe originais e profundas reflexões científicas, de modo que qualquer inteligência medianamente educada pode acompanhá-lo em todos os seus luminosos raciocínios.

E, graças a isto, tem cabimento utilizar-se este livro como de propaganda, cujo conteúdo se refere a assuntos que na atualidade interessam não só aos políticos como aos jurisconsultos, tanto aos filósofos como ao povo.

Não importa, ou melhor, convém que a forma da Luta pelo direito seja naturalmente muito diferente da que se costuma usar, sobretudo em França e Espanha, quando se deseja que um opúsculo ocupe a atenção pública.

Ihering, alheio às lutas dos partidos e preocupado, como artista do direito, com os interesses deste, sob o ponto de vista científico, coisa alguma escrevera em sua importante obra que destoasse da serenidade e prudência próprias dos trabalhos científicos.

Entretanto, nem por isso deixa de servir, e servir melhor, o intento de contrariar correntes de influência doentia que, por desgraça, dominam em muitas das inteligências chamadas a procurar o progresso efetivo da liberdade e do direito.

Quaisquer que sejam as opiniões de Ihering em assunto da política atual, e apesar de certas tendências em excesso conservadoras que tem às vezes manifestado, A luta pelo direito é, em rigor, uma obra de conseqüências revolucionárias, emprestando-se a este adjetivo o sentido menos alarmante possível.

Ainda que o autor aplique os princípios que, com nobre coragem, estabelece à esfera do direito privado, não oculta que análogas considerações possam convir a outras matérias jurídicas, pois o essencial são os próprios princípios.

Sem violentar a doutrina deste valorosíssimo trabalho, sem pretender misturar suas puras e elevadas indagações com os elementos da atualidade política em que vivemos, pode-se, e julgo conveniente, apontar as relações de subordinação e coordenação que existem entre as verdades deduzidas por Ihering e outras cujo conhecimento julgo de grande importância e oportunidade em a nossa época e nosso povo.

Nossos partidos liberais que, com justo título, se apresentam como representantes das modernas teorias e aplicações do direito, ressentem-se de dois conceitos, nestes infelizes dias que atravessamos: pecam pela maneira abstrata de entender a idéia jurídica e as distintas instituições capitais do direito, defeito já antigo; e, de alguns anos para cá, também pecam pela tristíssima fraqueza com que se deixam levar por estes sofismas enervantes da inércia e da paralização, inventados pelos covardes e indolentes, sofismas que são conhecidos com denominações mais ou menos ocas ou bárbaras; sofismas que tomam sua aparência dos argumentos de onde provêm, ora das ciências naturais, recebendo então a denominação de — evolução; ora de mal interpretados positivismos e experimentalismos, e neste caso falam do possível, do oportuno, do prático e do histórico.

Existe íntima relação entre uma e outra enfermidade do nosso espírito liberal e por isso, do primeiro mal, do — formalismo, de que se pode dizer que quase todos, já há tempos, estão infeccionados, não será estranho que da nova lepra, que se chama — possibilismo — ou que poder-se-ia chamar quietismo, — cheguem a padecer aqueles liberais que hoje não têm a fortuna de conhecê-la.

É evidente que um mal provém de outro; pouco importa que os adeptos da passividade política, do indiferentismo disfarçado de hipócritas aparências de misticismo político se digam inspirados pela ciência, pela moderna idéia, pelo progresso dos estudos históricos e naturais; de tudo isto tomam a cor, mas como enfermidade o quietismo — (que também poder-se-ia dizer — jobismo — já que agradam os nomes novos), deriva necessariamente da influência formalística de que, por vício secular, sofre o conceito do direito mais vulgarizado.

Quando o direito é alheio em realidade à vida do povo, enquanto pode sê-lo, isto é — enquanto o povo dele não tem noção clara, nem com decidida vontade, como vocação especial, o procura; quando o direito se cultiva principalmente como idéia, segundo a representação subjetiva de cada um ou das coletividades, sejam escolas ou partidos, sem atenção à unidade e solidariedade de suas diferentes esferas e instituições; quando o direito é para uns uma metafísica em cuja existência se crê, com essa fé vaga e nunca muito eficaz com que se crê no indeterminado ideal; quando o direito se não nos representa como realidade imediata que abrange toda vida e que se obtém em luta perene com a injustiça, como o pão quotidiano no combate do trabalho, — que admira que o espírito liberal caia nessa atonia que hoje se exalta como o único remédio para os males dos que sofrem pela ausência do direito?

Para consolar-nos da ausência de uma abstração, é suficiente uma outra abstração.

Por meio de uma vã teoria se diz ao povo que deve esperar pelo reinado do direito: — Natura non facit saltum.

A antiga revolução substituiu-se com o dogma pela moderníssima evolução: tudo se desenvolve por evolução, os animais, as plantas, a vida da sociedade, enfim tudo.

Seria um absurdo pretender-se alterar essa marcha das coisas, é uma rebelião contra as leis da natureza.

O direito, como todas as coisas, evolucionou paulatinamente.

É inútil que o homem se canse; não terá mais direito que o correspondente ao estado do desenvolvimento social em que vive, e este progresso depende das leis universais, alheias à vontade humana: — depende do determinismo universal.

Assim como não se pode alterar o curso das estações, não se pode inverter a ordem dos governos, e, o que se fizer neste sentido, dará lugar a uma perturbação acidental, cujo efeito se encarrega de desfazer uma ação violenta e o curso natural volta a ser restabelecido; e nada adianta, nem um dia, a impaciência irracional dos homens.

Não se negará que seja esta a linguagem que sempre se emprega, e nem sempre com tais aparências de lógica, para dissuadirmos de toda pretensão revolucionária.

Pois bem: semelhante teoria de aplicação para a conduta se funda no conceito falso por abstrato e deficiente do direito e por conseguinte das leis de sua vida.

Diga-se o que se quiser do grande progresso de nossos tempos na vida jurídica, o direito não chegará a ser compreendido e sentido em sua unidade, nem tão pouco praticado com consciência da solidariedade necessária e sistemática de suas diferentes esferas e instituições.

Demais, desconhece-se na realidade a influência deste fim da vida em todos os outros; e ainda que nos livros de filosofia de direito e nas enciclopédias jurídicas se fale desta influência, os povos não a sentem tal como é, e a justiça defende-se com fraqueza, como alguma coisa de abstrato, à semelhança dos dogmas religiosos.

Por este ou aquele direito concreto, histórico, se travam combates e se derrama abundante sangue, chega-se ao heroísmo.

Uns defendem aqui sua independência, outros ali uma estipulação, acolá foros antigos, por toda a parte um conjunto de direitos.

Por tudo isso se prova que na sociedade existe, por felicidade, a força necessária para conseguir uma digna vida jurídica, e que não é o medo que detém os povos, sim a ignorância do que o direito é na realidade, a falta do sentido comum jurídico em sua unidade e em sua totalidade.

O próprio Ihering nos proporciona exemplos destas defesas parciais do direito, defesas que poderíamos chamar empíricas, porque se originam em fatos isolados em que cada um só luta contra a injustiça que imediatamente o fere naqueles interesses que ele, com atenção e vocação especial, cultiva; fala-nos do aldeão para quem o direito de propriedade é tudo, que nem sequer sente a dor da sua dignidade ferida, enquanto que a menor injustiça, sua ou alheia, no direito de propriedade a reputa tão grave que por ela sacrifica repouso, fortuna, tudo enfim, até obter reparação, sem que estranhe igual proceder nos demais.

Falará Ihering do militar em que se observa um sentimento jurídico contrário, sendo para ele as ofensas da honra as mais graves.

Este diferente sentimento do direito em cada profissão tem, assim, alguma coisa do direito absoluto; por quanto a injustiça cada um, sobre o ponto que a encara, a reputa como abso1uta, não sendo questão de quantidade certa, de utilidade subjetivamente apreciada, mas como necessidade de reparação, custe o que custar.

Entretanto nem por isto o sentido jurídico deixa do ser parcial, relativo, enquanto nasce, não da consciência do direito, primeiramente por si, e depois para toda a vida, mas sim da ocasião; do mesmo modo que a injustiça ferindo no calcanhar de Aquiles, na parte sensível e vulnerável, varia em cada indivíduo segundo o rumo que dá a sua atividade.

Na nossa época não temos outro modo de sentir o direito, condição necessária para que a vontade se mova a aceitá-lo, como não só suporta o frio sentimento que em alguns homens de estudo possa engendrar o cultivo intelectual de uma filosofia do direito quase inteiramente abstrata, subjetiva, feita a priori e fundada, as mais das vezes, em sistemas metafísicos já criados, sem atenção ao direito e que, desde a elevação ideal em que os imagina, ditam suas leis a essa pobre filosofia jurídica.1

Esta filosofia assim em tudo erra, porque baseia seus princípios em sistemas estranhos à sua essência, e na multiplicidade das suas dissertações especiais marcha cegamente através de instituições históricas das quais nada sabe, e a que pretende dar um caráter de filosófica necessidade sem lhes aplicar o harmonioso nome de — “direito natural”.

O sentimento do direito, que em tão pobre fonte se inspira, pouca energia pode adquirir, e ainda que esta fonte produzisse, e os sábios tivessem a consciência do direito real, em toda a sua transcendência, com unidade e perfeito conhecimento da importância de suas relações, tudo isso seria muito pouco para o fim de que se trata.

Enquanto os povos, pelas condições de sua natureza e pelo seu próprio esforço, não estiverem senhores dessa consciência do direito, como se exige para sua eficácia, quase nada poderão conseguir no progresso da justiça; entretanto haverá generosas aspirações, luta de parcial eficácia, algum avanço na doutrina, mas somente isto.

Quando tal sucede tomam incremento os vaticínios dos diletantes da democracia, dos parti­dários de agora, como dizia o inolvidável Fígaro que adivinhou muitas coisas e, entre elas o — pos­sibilismo!

Observe-se essa tática dos inimigos da liberdade e da justiça social que consiste em afastar os povos da causa generosa da democracia, fa­zendo-lhes ver que derramam seu sangue por vãs teorias inaplicáveis, infecundas e inteiramente alheias aos interesses reais da sua vida.

Como sabem que o fazem?! Como sabem que facilmente se enfraquece uma fé que se nutre de abstrações?!

Como sabem que uma intuição poderosa diz ao operário, ao camponês, ao povo inteiro: — o teu direito é alguma coisa mais que tudo isto que te oferecem; não te contentes só de gozar essas garantias de sábio cidadão e perfeito, que te deleitam como um supremo bem?!

Por isso se vê tanta decepção nos dias de pro­va e no futuro anos de infortúnio.

Por um lado fala ao povo a voz do interesse no dia em que disfruta o materialismo con­servador.

Trabalha, lhe diz, em teu ofício; este é o teu dever, esta é a tua conveniência; — que pão te dariam os direitos? — Pensa em tua pessoa, pen­sa em teus filhos, e eu te direi como tu andas, como tu esqueces das tuas aspirações, das obras públicas em que trabalhas, das oficinas nacionais; eu farei prosperar a riqueza: isto é o positivo; não penses em aventuras.

Por outro lado, outra voz mais sedutora diz ao povo: “abandona a política e todo o propósito ideal; são eles quimeras que não entendes, inventadas por aqueles que te exploram; o mundo é da força e a força é a tua pessoa; tens sobeja­mente sofrido e sobejamente tens trabalhado para que outros gozem; levanta-te, subleva-te, procla­ma que te chegou a hora do poder, isto é — de gozar os bens terrestres, porque assim o queres, — quia nominor leo.

Isto é o que é prático, o positivo; o mais, — engano, farsa retórica que não entendes.”

E, além destas vozes que enchem o espírito de dúvidas e o atormentam e aumentam com peso enorme de fadiga o peso das fadigas diárias, ouve o povo a voz da negligência mais suave, mais as­tuciosa: — “O dia do direito chegará, o progresso é necessário, mas lento, virá por si; tu não te al­teres; — a paz é a maior riqueza; — todo esforço é inútil: descansa e espera.”

E como o que espera o povo desse direito que lhe predizem, segundo o entendem os que o anunciam e o próprio povo, à força de ouvi-los, nada é que satisfaça esses instintos que pretendem acariciar a seu modo o materialismo conser­vador e o materialismo dos demagogos, senão vantagens em sua maior parte ideais, que o pobre povo não apreende bem, a inércia domi­na-o e lhe vão conquistando o ânimo os adeptos da política estática, da preguiça hábil, que pretendem ganhar a partida, esperando a santa exaltação de uma deidade fantástica, de uma dama de seus pensamentos, a que chamam a liberdade e que existe não sabe em que Toboso.

Tudo o que se disse até aqui se reduz a vã declamação se não se fizesse ver a legitimidade da luta pelo direito, a necessidade do esforço enérgico e constante até o sacrifício para conquis­tar o reino da justiça que não chega por si só.

Neste assunto a demonstração de Ihering é convincente e completa, e não me animo a tratar superficialmente desta matéria que tão magistral­mente vão encontrar os leitores nessa obra.

A argumentação do ilustre romanista contra as teorias de Savigny é poderosa o concludente.

Parece-me oportuno prestar certos esclareci­mentos a uma objeção que poderia fazer-se, fun­dando-se no próprio conceito do direito.

Entretanto não é somente isto a que me pro­ponho; demorar-me-ei em dizer que, por causa da concepção abstrata do direito, da ausência de sua acepção profunda e total, hoje carece da energia eficaz que pode tornar efetivo o impé­rio da justiça e dar a um povo, a uma civilização títulos suficientes para que se reconheça sua espe­cial vocação para vida jurídica; isto igualmente necessitará de demonstração que procurarei expor, uma vez tratada a primeira tese.

Já Ihering falara da antinomia aparente da luta e do direito e, como verá o leitor, a resolve sem dificuldade, segundo os limites em que a ex­põe, porém a objeção fundada em dizer-se con­traditórios os conceitos relacionados pode reaparecer sob outra forma, e impressionar grande­mente os que encaram o direito como uma relação puramente espiritual, tão estranho à matérialidade dos assuntos a que se refere como a própria moralidade.

Certamente que este conceito não predomina, tirando-se as demais teorias pelo lado da ab­stração, sem entretanto abandonar certo gros­seiro materialismo que escraviza o direito e o deixa para sempre em infecunda servidão, preso ao terreno da fatalidade natural a que é estranho.

Não se deve, entretanto, ter em consideração, para que seja a argumentação magnífica e sincera, o conceito defeituoso, adornado de materialismo, porque não poderia objetar a nossa afirmativa mais do que o que Ihering tão facilmente derrocara.

Deve considerar-se o conceito do direito se­gundo este se verifica, exigindo-se em todo o caso que a vontade de um ser livre, e com consciência, preste as condições que dele depende, como meio, para o fim racional dos seres capazes de finalidade jurídica. 2

Pois bem, afirmar-se-á, se para todo o di­reito se exige o livre arbítrio, o favor voluntário da condição por parte de um indivíduo uma vez que não se trate do direito imanente, é estranho ao poder de coação, porquanto não se ignora que não se obriga a vontade por meios coercitivos; e assim sendo, — para que a luta?

Esta será ineficaz.

Se, para existir o direito, é suficiente que se ofereça a condição, seja qual for, com coação ou sem ela, concorra ou não a boa intenção do responsável, então compreende-se a luta, a força.

A força e a luta servirão para tornar efe­tiva a prestação do meio que atinge o fim.

Mas eu digo que o direito para mim não é isso; se não concorre a intenção do agente, do res­ponsável, sua boa vontade livremente prestada, o direito, por seu lado não se cumpre: tão injusto é depois, como antes da prestação.

Isto mesmo revela o senso comum, que não chama varão justo àquele que por medo ou en­gano executa o mandato da lei.

Como, pois, resolver a antinomia?

Como se concilia esse conceito do direito pu­ramente espiritual que, só pela razão do meio, atinge às vezes, nem sempre, a natureza, no exte­rior e coercível, com o outro termo desta relação, a luta, que supõe coação e esforço exterior efe­tivo? Será porque se trata de uma luta meta­fórica que se limitará aos esforços da eloqüência que por meio da persuasão podem obrigar o res­ponsável a prestar voluntariamente o que deve?

Também não.

Trata-se de uma luta efetiva, real, dema­siadamente material, por infelicidade, muitas vezes.

Entretanto parece, dir-se-á, que quem assim o escreve se deleita em tornar irresolúvel a contra­dição que se apresenta.

Não há tal coisa.

Com uma distinção que não é sutileza, mas que exige um espírito isento de certas preocupa­ções muito comuns, tudo se explica satisfatoria­mente.

Oxalá que tivesse a arte de dar às minhas pa­lavras a clareza e precisão com que facilmente se concebe o que de seguro vou, sem elegância e em frase forçada, exprimir.

É verdade que o direito não se deve encarar, como é costume, pelo lado do indivíduo para quem se aplica em um dado caso, mas em relação ao assunto que sirva aos fins, o que Ihering denomina com impropriedade de palavra, na minha humilde opinião, — direito subjetivo.

Alguns julgarão que me refiro a toda a matéria, entretanto não é senão a consideração parcial de um limite daqueles que entram na relação.

Mas, ainda que o direito esteja nessa relação, não é ao fim a que se deve atender, nem ao modo de existir desse fim; não é na essência da presta­ção ou objeto responsável, nem ao meio ou ma­téria da prestação, por ser de fácil compreensão que, sendo o mesmo o indivíduo para quem é o direito, a mesma a matéria ou o meio (que parece dar nome ao direito), pode acontecer que, sem realizar-se o direito de que se trata em relação ao ser responsável, a prestação do mesmo meio se efetue como a que deve ser cumprida por outro in­divíduo.

De sorte que aquilo que vulgarmente se en­tende por direito, — o direito subjetivo de Ihering, — fica realizado e, não obstante, não se apre­senta na primeira relação, a que supúnhamos, com um primeiro indivíduo que voluntariamente não presta a condição embora a preste.

Para aquelas pessoas pouco habituadas a es­tas palavras — meio, fim, sujeito, prestação, etc., — na acepção rigorosa que aqui são tomadas, para esclarecê-las, um exemplo basta.

Todo escravo tem direito à liberdade; o se­nhor tem obrigação de lha dar, voluntariamente, porém não lha concede; intervém a lei, e apesar dos esforços daquele que comete a injustiça para mantê-la, o Estado restabelece o direito, — liberta o escravo.

Sempre aqui se trata do mesmo assunto, do mesmo meio: do direito da liberdade, como todos nós dizemos; a liberdade consegue-se e, em lin­guagem corrente, se diz que o direito se realizou; mas no conceito do direito, que damos por per­feito e a cuja virtude se opõe a objeção que combato, temos que distinguir: — o direito da pri­meira relação não está realizado; o senhor que a lei obriga a alforriar, como não o fez voluntariamente, não deixa de ser injusto, não cumpre o direito; mas o Estado, que no momento em que tivesse consciência da injustiça e que pudesse desfazê-la, estaria obrigado, com relação ao escravo, a procurar-lhe a liberdade pelo meio coercitivo, nessa outra relação de direito teria cabalmente cumprido a sua realização. A este res­peito, ainda no sentido mais restrito, pode-se afirmar que o direito se realizou.

Há duas relações distintas em que o meio e a natureza do fim têm sido o mesmo, e a essência da prestação mudou.

A obrigação do primeiro era a concessão voluntária da liberdade; a do segundo é a voluntária intervenção coercitiva para conseguir, como quer que seja, a liberdade do escravo.

Como o direito se define geralmente, ainda que com impropriedade de termos, em considera­ção do sujeito para quem é, e como a matéria desse direito ou meio é o que costuma dar-lhe o nome, daí o dizer-se em linguagem usual que o direito está realizado, quando somente o está em uma das relações.

Neste mesmo exemplo vemos desfeita a anti­nomia: — Os povos têm lutado com esforço ge­neroso e eficaz pela liberdade dos escravos.

Lembrêmo-nos pelo menos da tremenda guer­ra dos Estados Unidos.

Os esclavagistas opunham-se com todo o vi­gor a esta justa reparação.

É claro que, de suas vontades, nada se podia esperar; entretanto nem por isso deixava de ser eficaz a luta, porque havia princípios de direito que podiam dar a liberdade contra a decisão con­trária dos senhores: e para que os coagidos neste sentido empregassem os esforços necessários para a consecução daquele fim, a liberdade servia a luta pelo direito, que não é outra coisa que a luta que o indivíduo emprega para conseguir o que procura no que lhe pertence.

Se por exemplo, os escravos conseguissem ca­sualmente sua liberdade, sem intervenção de von­tade alguma, pela morte dos senhores, ninguém diria que tivessem conquistado o direito de li­berdade.

Neste ou outro qualquer exemplo não se trata do direito, senão enquanto supomos a existência de agentes jurídicos, de cuja livre atividade de­pende esse fim, como podendo perturbar ou não oferecer a condição necessária para que se reali­ze aquilo que estão obrigados.

Não, não há contradição alguma, a luta pelo direito existe para o agricultor que defende suas terras contra o que pretende perturbar-lhe a posse; ele luta pelo direito, porque se não pode con­seguir que voluntariamente ceda em seu desejo o adversário, consegue que o Estado intervenha e preste a sua intervenção para o direito que defende, a coação, que sanciona em último caso a declaração explícita a que também o Estado está obrigado, pelos títulos legítimos que possui o pro­prietário.

Invoquemos outro exemplo, mesmo do di­reito econômico: na miserável condição em que existia o trabalho na antiguidade, quando era des­prezível e servil, até a presente situação em que disputa ao capital o predomínio na distribuição do produto, aspirando levar as leis à sanção de suas pretensões: existe aí uma enorme distância que supõe uma larga história de lutas em prol do direito.

Como e em que consistiu esta luta?

Em cada caso particular, por certo o capital não teria sido cedido voluntariamente, consistindo aqui a luta em obrigar o Estado a interpor sua força.

Muitas vezes nem o Estado, nem o que gozava o privilégio de explorar o operário teriam cedido de bom grado; mas então a luta pelo direito não consistia em vencer esta oposição; aqui era a lu­ta pelo fato; o direito existia naqueles que se emancipavam e que tinham a obrigação, depois de adquirida a consciência da injustiça que su­portavam, de pelejar até o sacrifício pelo fato da emancipação do trabalho.

Isto era lutar pelo direito: — unir as forças, ampliar a convicção da justiça que assistia ao tra­balho, contrariar com esforços constantes o pri­vilégio que resistia a suas legitimas pretensões.

Até aqui já dissemos alguma coisa a que Ihering chama a luta pelo — direito objetivo.

Repitamos as suas palavras: “O direito con­tém uma dupla idéia: — a idéia objetiva, que nos oferece o conjunto dos princípios do direito em vigor, — a ordem legal da vida; — e a idéia subjetiva, que é, por assim dizer-se, o precipitado da regra abstrata no direito concreto da pessoa.”

Pois bem, a luta pelo direito tem também esta trincheira imensa da regra positiva jurídica, a qual não é só a lei promulgada por um poder público, mas também o uso, e ainda mais: numa acepção geral predominante, o sentimento do di­reito e as idéias recebidas pela generalidade como adequadas ao justo.

Apresenta-se aqui, lutando contra o poder, contra a ignorância, contra o vício e muitas ve­zes contra o crime.

Neste ponto, a objeção que antes combatía­mos já não seria a propósito, porque não se trata do direito puramente dito, mas dessa acepção metafórica em que se usa da palavra para significar a regra de direito.

É sobre este aspecto da questão que menos insiste Ihering, quando trata especialmente do que chama direito subjetivo, na esfera do direito privado; é onde reside a força da argumentação contra o quietismo jurídico que combatemos.

As ilusões da escola histórica que criara uma cosmogonia particular para o mundo jurídico, des­fá-las o nosso escritor, como já dissemos, com ra­ciocínio poderoso por ocasião de atacar as teorias de Savigny e de Puchta.

Entretanto, convém aqui insistir neste aspecto da luta pelo direito, porque a negação de mo­dernas escolas, ora jurídicas, ora políticas, refe­re-se a este ponto particularmente.

A partir deste conceito de um direito ideo-­natural, que existe na consciência como arquétipo criado de uma vez e para sempre, pela mesma razão, — ab eterno, (conceito cuja generalização histórica nos indica com grande perspicácia o in­sígne escritor inglês Sumner Maine)3, chegou-se a desconhecer o processo biológico da regra jurídica, dando ao futuro, ou como queiram cha­mar-lhe, uma preponderância tal na formação histórica das instituições jurídicas, que pouco ou nada se deixa nesta criação à iniciativa humana e ao trabalho penoso dos povos e legisladores.

E a antiga escola que justamente se afigurava ser chamada a desfazer esses erros, e a combater os excessos da idealidade do filosofismo, deu novo incremento à aberração com suas teorias do direito nacional onde se defende uma espécie de geração espontânea do direito.

Com semelhante doutrina impossível é crer-se na eficácia e necessidade da luta pela regra jurídica, e toda política ativa, real, no sentido de medir as forças para obter o triunfo, per­manece em absoluto condenada, e deixa sacrifi­cado o espírito que se chamará aventureiro, se­gundo a forma científica do direito, e o juris­consulto será como o inglês, eminentemente fa­nático pela tradição,4 como o romano, atrevido e reformista. 5

Mas o direito como regra, o direito objetivo segundo lhe chamam Ihering e tantos outros au­tores, não surge nem vive como afirma essa abstração histórica, que antes parece um conto fantástico que uma história; é obra humana, produto das gerações e, antes de tudo, produto de sua energia, de seu sangue, se assim nos podemos exprimir, referindo-se a grande parte da história conhecida.

Primeiramente o direito conquista-se na consciência, ainda que às vezes seja simultânea a idéia de um direito com a intenção de conseguí-lo, de estabelecê-lo, graças à força da necessidade que serviu de sugestão ao pensamento e de estímulo à vontade.

Mas os povos não começam formando um ideal sistemático duma constituição e suas par­tes, porém só de modo empírico, como vemos ainda hoje em cada um ao defender seu direito.

A necessidade é que desperta o direito que se mostra isolado, desejado pelo interesse imediato, de inegável realidade jurídica, mas sem rela­ção com outras instituições análogas, nem mesmo com fatos análogos, sem relação alguma.

Assim nasceram as Themistas ou — as senten­ças, — primitiva forma do direito grego, como adverte Sumner Maine.

Estas manifestações primárias do direito não são leis, são julgamentos; o legislador neles não se funda nem nos antecedentes nem em leis esta­belecidas, nem em usos conservados.

As Themistas são sentenças isoladas que para cada caso são proferidas, como que por inspira­ção divina, fundando-se, na realidade, no que o critério dita ao juiz e ao sacerdote.

“Zeus, diz Grote em sua História da Grécia, não é um legislador, — é um juiz.6 — O costume, em que se queria ver a origem do direito nele inato, confundido com ele (tendo-se deste modo uma clara explicação das origens); o costume é posterior, é a acumulação lenta dessas Themistas ou sentenças, mas não inconsciente e ditada ao povo pela voz oculta do próprio caráter nacional.

O nosso autor, em a sua obra monumental — o Espírito do Direito Romano, concorda com este pensar de Sumner Maine quanto às origens das instituições jurídicas, até o ponto de dar ao direito processual (em quanto se lhe puder apli­car este nome tratando daqueles tempos) uma grande importância, como fonte de direito, impor­tância que os demais romanistas em sua maior parte desconhecem.

O direito7 aparece com a ocasião, afirma Ihering; o trabalho dos primeiros jurisconsultos, daqueles que, por serem atualmente menos apre­ciados e conhecidos, não deixam de ter sido os principais autores daquele direito,8 consistia prin­cipalmente em descobrir as relações jurídicas, sua conexão e divisão na prática, na vida do direito, nos casos verdadeiramente concretos.

O motivo porque é impossível estudar com proveito a história jurídica de Roma, especialmente na época do direito estrito, sem aten­der muito especialmente ao processo, para cujas necessidades se criaram tantos meios engenhosos que foram determinando o progresso daquele direito que chegaria a chamar-se, senão com pro­priedade, com justo entusiasmo, — a razão es­crita.

E que revela isto?

Que o direito, como lei do Estado, como convicção do povo, costume, e produção artística da jurisprudência, é obra do trabalho humano, e obra que exige esforços e luta constante com muitos obstáculos de espécie diversa.

Porque não é somente a luta com a ignorân­cia, com a inexperiência que se tem a considerar.

Também se luta com os interesses que o di­reito necessita contrariar, pois não se trata de uma álgebra jurídica cujos termos são por sua natureza indiferentes.

O direito marcha como o carro da deidade índica, sobre as entranhas da vítima que é ne­cessário sacrificar, caminha sobre as injustiças da terra que são para os tiranos, para os explorado­res do gênero humano, como as próprias entra­nhas.

O cinzel do legislador ou do jurisconsulto tra­balha em carne viva; todo o direito que se des­fruta tira a vida a alguma coisa que deve morrer, mas que alguém defende até o último alento: — aquele que vive do injusto.

É já a tristíssima necessidade de lutar às vezes até derramar sangue: já não são apenas os metafóricos combates de que se falara.

E que nos oferece a história pragmática, que acompanha a história do direito, senão o espetá­culo quase sempre sanguinolento, dessa luta que há de sancionar a evolução da lei?

Ainda é menos triste o quadro, quando por um lado, ao menos, combate o direito!

Em quantas guerras, que a história registra, não se depara mais que o choque de duas in­justiças!

E, quando assim é o mundo, a realidade, para o bem ou para o mal, — é que se prega a inação, o marasmo, e o sofrimento! — é que se defende a paz a todo o custo, ainda que enfraqueça, ainda que destrua o caráter, ainda que favoreça a in­justiça, fortalecendo o seu reinado!

Que fanatismo moderno é este que se pro­paga?

Nestes povos europeus que conquistaram o pouco que gozam da vida da liberdade e do di­reito, com hercúleos esforços e supremas dores, prega-se o — nirvana político; não com caráter do pessimismo como seria mais lógico, mas em nome de um otimismo superficial, excessivo, abstrato, absurdo, otimismo que é materialista quando nega à ação humana uma influência capaz de destruir os efeitos do determinismo natural na regeneração do espírito e que, por outro lado, é ingenuamente providencialista e quase idólatra, quando espera do alto uma misteriosa e salvadora força invisível, que vá realizando o ideal da jus­tiça, em cada momento, a bel prazer, por um pro­cesso invariável, mas seguro, alheio à vontade do homem.

Que diria, se tudo isso ouvisse, aquela plebe romana que nasceu sem direito, e chegou a ditar leis ao mundo; que, em sua própria cidade nada podia no começo, nada era, e chegou a encher os anais de sua história com seus cônsu1es, cen­sores, pretores, tribunos e pontífices?

Oh! Não foi certamente um possibilismo o que inventou a plebe romana para vencer a nobreza, para deixar eterno exemplo que imitar à plebe de todos os povos futuros.

Em muitos livros, alguns de valor, fala-se com entusiasmo da especial vocação do nosso século (e em geral da época moderna) pelo direito, a cujo fim, afirma-se, se consagram as mais vivas forças da sociedade.

Esta crença, muito generalizada, contraria o que acima se deixa afirmado.

Mas é verdadeira essa vocação?

No direito público, enquanto direito das relações entre os poderes, e destes com o indivíduo, não resta dúvida que existe grande atividade em nossos dias; mas não é eficaz como podia ser, se fosse presidida por mais claro conhecimento de toda a vida jurídica, cujo conceito de unidade e cujo sentimento faltam em absoluto ou são mui­tos deficientes.

Verdade é que, em direito político, tem-se feito grandes conquistas, mas têm sido sobre o domínio da tirania do privilégio odioso.

Tem-se derrocado o poder absoluto em umas partes por completo, em outras por meio de transações, de garantias mútuas, inventando-se para isso o sistema monárquico-constitucional que deixa subsistente uma não escassa porção do poder pessoal arbitrário.9

Mas este trabalho de destruição se é de magno valor, não nos deu um direito público, que seja real garantia da liberdade, nem que preste as condições necessárias para perfeição de nossos fins, nem muito menos este conhecia a eficaz relação com o direito inteiro, em princípio na sua unidade e depois na sua rica variedade.

Nada disto possuímos: sendo por este motivo que os espíritos que se chamam — positivos — se têm afastado das lutas políticas desenganados de seu proveito.

Não se pode sofrer o poder arbitrário, que se destrói, o que já é muito: todavia enganam-se aqueles que crêem que isto basta para que o di­reito tenha na vida a salutar influência para que é invocado.

E, não obstante, há partidos políticos liberais que não prometem outra coisa: direitos indivi­duais (isto é — as condições absolutamente ne­cessárias para que ao menos se possa falar de um Estado e de um direito público), liberdade para todas as atividades cuja concorrência social de modo algum tem sido regulada, e afinal — des­centralização administrativa.

Esta última frase — descentralização admi­nistrativa, empregada sinceramente, demonstra o que dizemos: — que os nossos progressos políticos pouco têm feito em prol do direito em si, pois nos tem deixado nas divisões abstratas.

E enquanto nos julgamos soberanos, graças a certos indícios exteriores, somos escravos, como sempre, naquelas relações de direito que de mais próximo importam à realidade da existência.

Quanto se fala do positivismo e realismo em nossa época! E ninguém se alinha com o positivismo jurídico que consistiria em arremessar as cascas e permanecer imóvel com as nozes!

Divide-se o direito em político e administra­tivo e em público e privado, — isto, que é muito bom para que melhor os estudantes aprendam, é de conseqüências deploráveis na realidade da vida, porque se toma a divisão escolástica em um sen­tido em que não deve ser tomada.

Também a alma se divide em mais ou menos faculdades, segundo os diferentes autores e, não obstante, vivemos bem longe de proceder segundo essas divisões.

O direito administrativo é tão político como o próprio político: se, como subdivisão interior deste se pode admitir a distinção, isto não impede que seja absurda essa separação de sua essência que supõe proclamar legítima a descen­tralização administrativa, enquanto que se consi­dera abominável a política, que se ornamenta com nomes tenebrosos e de tristíssima história.

Este erro provém, como muitos outros, de que reina a abstração do direito escolástico, em vez de vencer o sentido do direito real.

Tem razão Ihering: são fatais ao direito moderno a — publicidade e plasticidade10 do direito romano antigo, e por este motivo se confunde com os outros elementos da vida.

Em nossos negócios continuamente se trata de relações jurídicas sem que o suspeitemos sequer, e sofremos males que têm remédio jurídico, sem que invoquemos tal remédio, e toleramos lesões que por intermédio do direito podiam ser reparadas, sem que nos fosse preciso pedir semelhante reparação.

Somente no que se chama por antonomásia direito político11 existe certa publicidade, enga­nadora em grande parte, pois o principal do di­reito público é ser secreto, ou pelo menos florescer entre poucos.

Mas nas outras esferas jurídicas apenas o povo forma uma vaga idéia do que se passa.

O direito tem-se tornado demasiadamente es­colástico e demasiadamente curialesco para que se possa sonhar com uma vida jurídica popular de real e eficaz efetividade.

Convém reproduzir algumas palavras do autor deste opúsculo que, com profundeza e elegân­cia, disse sobre este assunto:

— “Esta indivisibilidade dos movimentos e das operações do direito atual, esta natureza neo-plás­tica que o caracteriza estende-se ao direito do processo.

“Recentes reformas têm dado outro aspecto exterior, é verdade, ao processo criminal, mas ainda há pouco não tinha, como o civil, mais existência que no papel.

“Começando e concluindo-se sobre o papel, nem um nem outro ofereciam momento algum dramático, nem se manifestavam mais que em suas conseqüências.

“Poder-se-ia dar como lema à justiça uma pena em vez de uma espada, porque as penas lhe são necessárias como aos pássaros.

“Mas ao contrário destes a sua rapidez está na razão inversa das penas que emprega.”12

Esta falta do elemento dramático em nossa vida jurídica origina-se de que o direito não chega a ser assimilado pelo cidadão atual a ponto de formar parte do seu caráter, a correr em glóbulos no seu sangue.

Muitas vezes está seriamente abalado o nosso direito e não o conhecemos, não sentimos a dor de uma injustiça que positivamente se nos faz.13

Observa-se em o nosso povo como passam fa­cilmente, sem protesto mesmo, os maiores atentados jurídicos na ordem econômica; como um ministro da Fazenda, sob pretexto de se tratar de um tecnismo financeiro que nem todos entendem, sob pretexto de que tem um plano, corta e aumenta na Fazenda Pública, isto é — na fazenda de todos, dando lugar a incômodos irritantes com a cobrança, faltando ou deixando que os subalternos faltem a todos os direitos possíveis, até aos direitos individuais, empreendendo direi­tos ruinosos, comprometendo o futuro da riqueza e tudo sem que aparentemente transgrida a Cons­tituição nem as leis orgânicas.

Invoquemos outro exemplo e outra prova nas relações do direito privado e direito público.

Como se elaboram hoje as chamadas leis civis? Não se trata agora da legitimidade da fonte donde provém, ainda que muito se pudesse dizer, nem tão pouco dos sistemas em uso para legislar nestas matérias, sobre que muito havia a apon­tar;14 mas trata-se da influência do povo na formação dessas leis, influência em rigor nula em nosso tempo e nestes países.

É de causar pasmo a facilidade com que umas Cortes podem, sem mais nem menos, transformar bem ou mal, leis referentes aos mais importantes interesses da família e da propriedade, a todo o direito civil em fim.

A faculdade constitucional não lhes falta; e como o voto dos eleitores é coisa tão alheia a toda a previsão das conseqüências que pode trazer ao direito o resultado dos sufrágios, pode encon­trar-se o país com umas Câmaras, que efetiva­mente não elegeu, mas que consentiu que eleges­sem uns certos, e que transformam o seu direito, ofendem o que é mais querido e sagrado.

E, devido ao descuido, derrogam e sub-rogam leis e aprovam outras, sem que seja em rigor esta obra mais do que de uns poucos de senhores advogados, e às vezes leigos, que têm tomado a si a honra de ser membros da comissão. Ou­tras vezes é um ministro que teve a iniciativa e que leu ou não leu muitos livros franceses, italia­nos, ingleses ou alemães, pouco importando o grau de sua erudição; este ministro acha tudo mau e desfaz o que está feito e afinal se engana, e, não obstante, no Parlamento, a sua obra, sua ponderosíssima obra passa por perfeita; todos a aceitam e, aqueles que não hipotecam o seu voto é por­que estão atarefados com os interesses diários, com a política corrente; mas a lei passa, daí resultando, às vezes, que todos os casados do país estão mal casados, pelo menos muitos, ou que a reforma estudada com pouca atenção sobre a alienação, é uma medida comunista, pelo que tem de ser revogada.

Por fim, é necessário organizar o direito e tra­zê-lo à colação para que uns poucos de senhores escrevam um Código que sirva para todos, ainda para aqueles para quem não serve na realidade.

Compor e destruir constantemente!

E tudo isso sem que o país se importe com coi­sa alguma, até que, um a um, os cidadãos vão sentindo por sua vez as conseqüências desatrosas da­quelas leis ou decretos, porém quando já é tarde e quando o protesto de cada um é já de inútil oposi­ção. A lei e o decreto! outro exemplo que revela que vivemos de aparências e que a base do direito nos escapa.

O decreto é alguma coisa menos solene que a lei, porque não cria direito em matéria grave, mas procura a reta aplicação das decisões das leis promulgadas; por esse motivo o decreto é do poder executivo; divisão sábia, explicação satis­fatória... e acontece às vezes que os decretos in­teressam mais que a lei porque quaisquer que sejam a facilitam ou dificultam, a anulam ou adulteram; e como deles depende a aplicação, não sendo parte da lei, convém admitir-se no país mais decretos do que leis; mas se nestas o país não tem grande parte, naqueles nenhuma.

Os decretos! Ainda não se sabe até que ponto poderia danificar um governante, sem sair da Constituição, só publicando decretos; é o que a­firmam os povos por experiência desta matéria.

A polícia, os delegados, as juntas, são os ten­táculos do poder de cuja legitimidade não se permitirá que pessoa alguma duvide, sob pena de merecer o apodo de anarquista.

Assim imagine o leitor a soma de incô­modos, arbitrariedades, atentados à segurança do cidadão que constitui a história da polícia, dos delegados e das juntas.

Em mãos destes pequenos deuses do Estado encontra-se quase sempre, a cada momento, o di­reito de cada habitante, e, não obstante, os pró­prios que declamam contra a tirania, contra o déspota que fulmina decretos, sofrem milhares de empecilhos que a ignorância e a maledicência das autoridades locais sem piedade lhes flagelam.

Aquila non capit muscas.

Em todas as esferas do direito se encontram abundantes provas de que a vida moderna tem reivindicado o direito expresso, sendo este em parte exíguo, mas sem ao menos ter procurado libertar-se de muitas injustiças de que so­fre, por que não vê como direito o que é de direito, e julga incômodos necessários e azares do acaso o que um povo, que tivesse consciência perspicaz da realidade jurídica, procuraria reme­diar lutando pelo direito.

Omitirei, porque não é possível outra coisa, infinidades de relações que nos convidam com a clareza evidente de seu exemplo; deter-me-ei so­mente na consideração do direito do que chamarei, para me servir de palavra muito usual — a auto­nomia.

É este aspecto do direito importantíssimo, tanto por seu valor intrínseco, como porque não se poder escolher indício mais evidente da ausên­cia da vocação jurídica que o abandono em que jaz por parte dos povos e legisladores esta ga­rantia capital, principalmente de todo o direito de­finitivo, real, digno de tal nome.

Por outra parte, a consagração da autonomia é o único meio para despertar este sentimento e essa vontade que podem habituar os povos à lu­ta pelo direito e ao racional aproveitamento da vitória.

A teoria do contrato social é, como expli­cação hipotética das origens da sociedade, a mais inverossímil de quantas se tem idealizado (no interior da ciência compreende-se, por­quanto na legenda paradisíaca há maior inverosi­milhança); mas hoje reconhece-se, passado já o prurido da reação contra a doutrina de Rous­seau, que tanta influência teve na Europa, que foi de grande utilidade para a conquista da liber­dade individual semelhante hipótese, que su­punha nos princípios da vida humana um estado de independência natural em que o homem gozava, sem quebra para o Estado, de todas as suas fa­culdades originais, sem entraves e sem limites.

Muito fácil tem sido para a arqueologia jurídica demonstrar que todos os vestígios que, servindo de indícios, falam de tão remotos tempos, afir­mam o contrário do que supõe o contrato so­cial,15 que a vida humana começou sendo cole­tiva, sem que pudessem subsistir os homens de outro modo, naqueles terríveis tempos de luta constante com a natureza.

Mas é outra coisa apresentar como do di­reito natural a teoria da origem familiar das sociedades.

Assim nasceram, é verdade, e pode dizer-se que está demonstrado que do direito patriarcal se originou o direito público, propriamente dito; que os primeiros povos não foram mais que naturais agregações de diferentes famílias sob o poder de seus respectivos chefes ou patriarcas, famílias provavelmente unidas por afastados la­ços de parentesco que tendiam a unir-se à com­unidade presumível, se não averiguada, de origem.

Mas esta origem histórica que, pode dizer-se, pertence à história natural do homem, age mais pela sugestão das circunstâncias naturais do que pela livre escolha e não obriga a considerar como contrária ao direito a formação de socie­dades adultas em que o contrato, ou melhor, o pacto, são a base, o fundamento histórico do Estado.

E com efeito assim tem sucedido, forman­do-se povos tão poderosos como os romanos que, segundo observação profunda do autor deste opús­culo, deve em grande parte seu eminente espírito jurídico e seu poderoso caráter a ser o produto da união artificial de três povos;16 assim se formaram em nossos tempos os Estados Unidos, de cuja prosperidade não se duvida.

Não obstante, se o pacto pôde ser fundamento da criação de um Estado, não se compreende como o direito nasça naquela sociedade com o pacto, erro que, como Rousseau, compartilharam muitos e de que, ainda hoje, talvez infermem al­guns dos defensores do pacto.

O célebre pensador das Antinomias, gênio fe­cundo em robustas criações, brilhante em excesso (se pode haver excesso no brilho), apaixonado ar­gumentador, se necessário fosse, amigo da antítese e ainda do paradoxo, igualmente recorreu ao pa­cto, esquecendo também que o direito é anterior ne­cessariamente a todos os pactos possíveis e que a força jurídica de toda a convenção sempre nasce de direitos preexistentes, não sendo mais o pacto, por fim, que a determinação das relações do di­reito que existem entre as partes que convêm ou tratam, na forma e até o limite que livremente escolhem.

De sorte que o pacto jamais criará direito, sempre o determinará; porém jamais determinará todo o direito possível entre os contratantes, por­quanto a determinação é uma limitação, e na confinação necessária de todo o pacto não cabe a infi­nidade possível do direito.

Ainda que o ilustre e sábio estadista Pi y Margall17 procure demonstrar que não se pode atribuir os erros da doutrina de Rousseau à de Proudhon, é verdade que no ponto a que me re­firo tanto erra o Princípio federativo como o Con­trato social.

Proudhon, descobrindo contradições em tudo, deparou uma entre a autoridade e a liberdade18 e, como engenhoso meio de reduzir seus efeitos, não para resolvê-la, discorreu, diminuindo o poder da autoridade dissolvendo-a, reduzindo-a a uma divisão quase atônica; para esse fim se ser­viu do pacto da federação.

Esta origem tem entre nós a facção que procura, a todo custo, a autonomia, como única ga­rantia certa do direito.

Para os outros, com efeito, o indivíduo é senhor de todo o seu direito, de toda sua rela­ção jurídica; cada obrigação que com os estra­nhos estabelece é como alguma coisa que perde de sua liberdade.

O Estado, como qualquer outro contratante, não tem para com o indivíduo mais direitos que os contratados.

Se as necessidades da vida pedem outra con­cessão, outra diminuição da liberdade individual, seja concedida, porém mediante modificação do contrato, para que conste que aquela nova prerrogativa do Estado fora contratada e que só atinja até o ponto determinado.

Finalmente, que o cabedal do direito esteja no indivíduo e, com este cabedal, gaste em suas relações com o Estado só o que for preciso para manter garantidas as seguranças que o Estado lhe oferece.

Assim entendem muitos daqueles que procla­mam a autonomia, e assim a entendendo é for­çoso confessar que se torna impossível toda a sociedade jurídica.

Prosiga-se nesta ligeira exposição crítica, por­quanto de outro modo seria extemporânea, por­que me interessa que não se confunda o que aqui se chama o direito da autonomia, cujo valor anda embaraçado nas doutrinas correntes com que por causa do nome poderia confundir-se.

O grande equívoco desse autonomismo que acabo de louvar, consiste em não ver mais autonomia que a individual, caindo assim em muitos dos lamentáveis erros do individualismo antiquado que todos combatem, sem notar que existe contradição entre certas salutares tendências das que se chamam socialistas (para aterrorizar aos conservadores que estão na aurora da existência a este respeito) e essa autonomia individual ex­clusiva.

Não, a autonomia não diz em geral senão isto: — lei de si mesmo, isto é — o poder jurídico em cada pessoa do próprio direito; não diz que essa pessoa seja individual, e refere-se a toda a personalidade jurídica que possa ter um Estado

Assim o indivíduo poderá dizer com justiça: o meu Estado sou eu..., e também o pode dizer — o Estado.

Na autonomia individual como única do di­reito, como única não instituída, necessária, se encontra o pacto social ou a autonomia artificiosa e falsa de Proudhon.

Somente reconhecendo em cada Estado uma autonomia, isto é, em cada pessoa do direito um estado, se pode fundar com justiça esta doutrina do direito autonômico, sem que em coisa alguma ofenda o direito individual.

O mesmo que se pretende defender com o au­tonomismo individual, a saber: a acão própria de cada um em toda a relação do direito em que o indivíduo participa, obrigando-se ou obrigado, se defende sustentando a autonomia dos outros Es­tados, — o municipal, o provincial, o nacional, etc., etc.,19 porque todo o direito nestas esferas é igualmente direito do indivíduo, não como indivíduo, mas como membro desse Estado superior; e, na última realidade do direito, a que se encontra em todos os Estados pertence ao homem.

Assim, procurar a autonomia nacional, a au­tonomia provincial, a autonomia municipal não é menos trabalhar pela realidade do direito, que quando se atende à integridade dos direitos do indivíduo em seu próprio Estado.

Em Espanha existe um numeroso partido cujo ideal político característico é a autonomia provincial; a este chamam agora — federais, por motivos transitórios, relacionados com o que eu disse acerca da procedência das teorias que mui­tos destes autonomistas defendem.

Em França o partido federal é caracterizado pela aspiração à autonomia do município; mas nem uns nem outros entendem que trabalham se­não em favor da autonomia em todos seus graus, não só pelo indivíduo como pelo município e Nação.

Todo o desequilíbrio nesta matéria é absor­vente ou dissolvente; se à autonomia individual se sacrificam as demais, há anarquia; se predomina a municipal, a Nação dissolve-se e o indivíduo não sofre menos, é vexado por um ti­rano local, como poderia ser por um imperador do Sacro Império ou de todas as Rússias.

Se a autonomia nacional é que antes de tudo se procura, com desprezo dos círculos interiores, — ha absorção, há a centralização, sendo esta a situação da maioria das Nações.20

Assim compreendida a autonomia, denomi­nação de que, como tenho dito, me sirvo por que é das usuais a que mais se aproxima do conceito de que trato, compreende-se que nela se veja a pedra de toque de todos os direitos e que o es­tudo de sua situação atual nos sirva para obser­var se, com efeito, se acertava ao dizer-se que o direito não é atualmente apreciado em sua uni­dade com clara compreensão, e sentido com toda a eficácia possível.

Pois bem: — em que Nações está reconhecida a existência real e necessária dessas pessoas do direito?

Verifico por mim a descentra1ização administrativa que nos oferecem muitos liberais como grande satisfação às reclamações da autonomia.

Não se julgue que nos mesmos países em que existe a federação, esta implique uma garantia segura ao direito autonômico; começa por não estar o direito individual na federação austro-hún­gara, nem na federação dos Estados Unidos, onde existem certas leis contraditórias que com satisfação os escritores ultramontanos citam.

É porque a federação pode ser um meio entre outros21 para assegurar a autonomia de cada cír­culo jurídico do Estado próprio, mas um meio que pode ser ineficaz como os outros.

Entretanto, ainda mais triste (e melhor pro­va do que afirmo) que a ausência de leis que dêem ao direito da autonomia tudo o que na jus­tiça lhe pertence, muito mais triste é a ausência da idéia jurídica da autonomia dos povos.

Quase ninguém se queixa, nestes países sobre tudo, da espécie de empalmação do próprio direito que, com duvidosa habilidade, mas com des­façatez admirável, nos oferecem os poderes constitucionais no espetáculo contínuo, que equilibra­dos bem ou mal entre si, conspiram com perfeita harmonia com o fim de tornar ilusória a sobera­nia popular.

É o povo um soberano - in-partibus infidelium.

E, não obstante, partidos liberais inteiros que oferecem mil felicidades, nem sequer, ávidos pelo direito, nos dão um meio para impedir este jogo em que o povo sempre perde.

É que estes partidos liberais não sentem a necessidade de converter em realidade essa sobe­rania tão decantada para crer na qual é neces­sária uma fé não menos ardente que para crer na eficácia das relações que a Igreja mantém com o céu.

Se com sufrágios se alcança a glória, com sufrágios se conquista essa soberania.

A verdade é que não está demonstrada nem uma nem outra.

O que se faz primeiro ao povo com a sua soberania é pô-la onde não a veja; como — voto, — o cidadão é tão soberano como qualquer outro; mas como homem, nem sequer é senhor de si mesmo.22

Recordemos aqui o predomínio da abstração que caracteriza o conceito do direito em nossos dias; se no processo civil o direito consiste em papel e pena, no direito público o processo não é mais plástico, nem menos invisível; toda a soberania se reduz a uma chapa em que o cidadão escreve o nome de um representante.

E direi já que essa soberania, esse direito do indivíduo em intervir na ação do Estado e em todos os Estados interiores, é de impossível realização, enquanto existir a centralização política, que se funda em um conceito abstrato da Nação e depois simboliza esta em um como protótipo de cidade: — a capital.

Esquece-se por completo a relação do direito no espaço, e que esta exige que se deduza o meio de cada um, se há de ser autônomo e soberano, ou seja, antes de tudo, onde o seu direito tenha as mais imediatas necessidades no espaço em que vive, em seu lar ou no seu povo.

Faltando este primeiro momento da soberania, do restante se faz vã abstração que jamais dará aos povos a verdadeira noção do direito e a idéia de sua importância.

É preciso que o cidadão intervenha direta­mente ali onde pode diretamente intervir na ação do direito público.

Demais, é preciso também que tenha meios para levar seu concurso à obra da transformação do direito privado, para que a história deste lhe dê por fim um caráter original,23 que diga claramente ser produto da energia nacional, obra da vontade popular, sem que importe que se revista ou não de uma cor local, porquanto isto não se opõe à tendência da universalidade, que vai adquirindo o direito como uma totalidade.

Muito pouco se pensou nesta relação entre o espaço e o direito,24 e por esse motivo muitos par­tidários sinceros da liberdade e da vida jurídica real e total dos povos, expõem doutrinas defi­cientes para o cumprimento deste ideal.

Não resta dúvida que os meios são de difí­cil estudo, que a habilidade jurídica tem muito que fazer para acertar com o modo de tornar efetiva as distintas autonomias, sem que em cada uma falte a intervenção dos subordinados, que afinal são a sua essência.

Neste prólogo, embora se pudesse, não seria oportuno tratar este assunto com mais pru­dência; mas o que importa é observar que, difícil ou não, não há outro meio de dar realidade, unidade, calor natural à vida do direito que o que faz respeitar esta relação de espaço, não procurando o impossível: que o cidadão seja autônomo por completo, tendo o seu poder simbolizado em uma abstração representativa e os mais caros interesses sem a garantia do próprio poder do direito, sem defesa na justiça.

Já o vimos em síntese, embora fiquem mui­tos assuntos por tratar: — a vida jurídica atual carece dessa base de eficaz energia que somente gera o sentimento vigoroso e constante do direito, o qual só aparece onde a justiça é uma realidade que tudo fecunda, que chega a todos os atos como deve e em tudo revela sua salutar influência.

Nem na forma do direito, nem nas relações de suas instituições, nem no conteúdo destas, tal como hoje existem, se depara indício do trabalho enérgico de um povo que tem a vocação do di­reito.

Na falta de irritabilidade ao contato de tanta e tanta injustiça que passa sem ser sentida, há nova prova de que este esforço, de que tanto se gabam alguns escritores, feito por nossa época em defesa do direito público, é muito pouca coisa em comparação do que racionalmente devemos ambicionar.

Sigam-se as tendências de livros como A luta pelo direito, combata-se a política e as doutri­nas do fatalismo perigoso e enervante,25 e alguma coisa se terá avançado no caminho do renasci­mento do Direito.

Poder-se-ia bem chamar de renascimento essa era feliz, se aparecesse; porque já a história nos fala de um povo em que o direito, com toda sua realidade e eficácia, tal como então podia ser, se cultivou como vocação especial em todas as condi­ções, que em rápida análise que antecede des­crevemos.

Sim: foi o povo romano; o povo que, antes de conquistar a mundo, lutou por tornar-se senhor de si mesmo.

Ihering investiga as causas que fizeram de Roma a Nação do direito, e encontra como principal característico — o egoísmo; um egoísmo nobre porque não é o torpe egoísmo individual; um egoísmo que em rigor não o é, mas o sentimento da própria dignidade e da justiça que se lhe deve, sentimento que em seguida se estende a toda a pátria e chega a fazer do direito do Estado uma religião.

Mas, como nascera esse Estado?

Tinha sido o produto da vontade, da intenção e do trabalho, da luta pelo direito; o povo ro­mano foi a resultado das transações que três povos vizinhos, mas irmãos, tiveram que fazer para poderem suportar sua vida repleta de aza­res e perigos; ali começou a convenção (o di­reito) sendo algum tanto reflexivo, imposto pela necessidade.

O próprio Hegel reconhece, nas origens de Roma, este caráter de convenção e de luta que tanto influiu em sua vocação definitiva; — a necessidade impôs-lhe a luta por tarefa, a luta a fez aguerrida, deu-lhe vigor; com a coragem veio a energia da vontade, com esta o gênio criador do direito.

O direito público não nasceu em Roma de abstrações, mas foi uma expansão natural do direito privado; a guerra impeliu a formar o exército; a instituição militar criou o Estado político que não era mais que a união das — gen­tes in procinctu; dos castras nasceram os — comi­tia e o Estado, que principiou sendo as — gentes armadas para a guerra, subsistiu na paz; fez-se Estado civil, mas sem que perdesse jamais nem o vigor de milícia disciplinada, nem os vestígios de sua origem familiar e gentílica.

Assim, nunca desapareceu naquele direito público o sentido da realidade que em sua essência deve existir; sempre se acreditou na solidariedade dos interesses, dos direitos, sem recorrer a teo­rias abstratas e poéticas de patriotismo; apren­deu-se na tradição e por experiência que todos eram do Estado e o Estado de todos... de todos os que tivessem assistido à sua criação lenta ou de futuro conquistaram o direito de cidadãos com todas as prerrogativas.

Os plebeus o conquistaram. E, como ali tudo nascera da mesma realidade, da carne viva das — gentes, — direito público e direito privado, a plebe em suas conquistas sucessivas, modelo eterno de coragem, arte e constância, não aspirava a direitos ou garantias da ordem política somente, mas atendia ao mesmo tempo ao direito pri­vado; havia o plebeu tribuno, censor, cônsul, pon­tífice, e mais ainda pedia o connubium com os patrícios e queria a igualdade no direito familiar como no direito das honras.

Todos sabem a eficácia daqueles processos da plebe romana; tinham consciência de sua coragem, de que se tornavam precisos a Roma e tinham a consciência da importância do que exi­giam, porque ali se encarava o direito como ele é, como uma condição indispensável para a feli­cidade que se deve alcançar nesta vida.

Se hoje o direito parece ao vulgo alguma coi­sa que está no papel selado, para o plebeu de Roma o direito era alguma coisa com que se fazia o pão, tão necessário como a farinha.

Eram ali as lutas jurídicas guerras de vizi­nhanças, tão ferozes e sanguinolentas, às vezes, como estas soem ser; mas havia a vantagem de que o romano sempre conhecia o bem que lhe trazia o defender a sua causa: — esta consciência de seu valor dava-lhe muito alento para por ele combater.

Um dia reclamava terra para lavrar, outro o perdão de dívidas contraídas por bem da Re­pública, outro uma dignidade, um ofício público, outro um código de leis para todos iguais; e ora a monarquia era derrubada por um ataque à honra de um só romano, ora caía o poder ditatorial dos decênviros só para vingar o ultrage de Virgínia.

Compreendiam aqueles homens o direito, porque o possuíam em casa, porque Roma, o Es­tado, começava e acabava em Roma.

Lutava-se pela cidade como hoje se luta pela própria vida e pelo domicílio.

O direito não estava nos livros nem nas tá­buas do édito somente.

Andava nas ruas, ao ar livre, movia-se, e via-­se ir e vir da consulta ao foro, estava na praça e nos comícios...

O rumor que de longe se ouvia ao chegar a Ra­ma era a voz do direito, era a estiputatio, era a de­claração escrita nos comícios, era a fórmula solene da mancipatio, coro majestoso; era o monólogo da in jure cessio, era o elegante falar do sábio prudens, conciso e severo, era a loquaz re­tórica do hábil e ardoroso orator.

E o rumor crescia, o tribuno arengava aos seus, desabava a tempestade, o estrondo era horrisono, a plebe caminhava; não se ouvia a sua justa pretensão e saía..., saía para voltar com a justiça.

Também aqueles ruídos formidáveis de mo­tim e da revolução eram a voz do direito!

Janeiro, 1881.
LEOPOLDO ALAS.


 

A Luta pelo Direito

 

CAPÍTULO I
Introdução

 

O direito é uma idéia prática, isto é, designa um fim, e, como toda a idéia de tendência, é es­sencialmente dupla, porque contém em si uma antítese, o fim e o meio.

Não é suficiente investigar o fim, deve-se também saber o caminho que a ele conduz.

Eis duas questões para as quais o direito deve sempre procurar uma solução, podendo-se dizer que o direito não é, no seu conjunto e em cada uma das suas divisões, mais que uma resposta constante a essa dupla questão.

Não há um só titulo, por exemplo o da proprie­dade ou o das obrigações, em que a definição não seja im­pres­cin­di­vel­men­te dupla e nos diga o fim que propõe e os meios para atingi-lo. Mas o meio, por mais variado que seja, reduz-se sempre à luta contra a injustiça.

A idéia do direito encerra uma antítese que se origina nesta idéia, da qual jamais se pode, absolutamente, separar: a luta e a paz; a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo.

Poder-se-á objetar que a luta e a discórdia são precisamente o que o direito se propõe evi­tar, porquanto semelhante estado de coisas im­plica uma perturbação, uma negação da ordem le­gal, e não uma condição necessária da sua existência.

A objeção seria procedente se se tratasse da luta da injustiça contra o direito; ao contrário, trata-se aqui da luta do direito contra a injustiça. Se, neste caso, o direito não lutasse, isto é, se não resistisse vigorosamente contra ela, renegar-se-ia a si mesmo.

Esta luta perdurará tanto como o mundo, porque o direito terá de precaver-se sempre contra os ataques da injustiça.

A luta não é, pois, um elemento estranho ao direito, mas sim uma parte integrante de sua natureza e uma condição de sua idéia.

Todo direito no mundo foi adquirido pela luta; esses princípios de direito que estão hoje em vigor foi indispensável impô-los pela luta àqueles que não os aceitavam; assim, todo o di­reito, tanto o de um povo, como o de um indiví­duo, pressupõe que estão o indivíduo e o povo dis­postos a defendê-lo.

O direito não é uma idéia lógica, porém idéia de força; é a razão porque a justiça, que sustenta em uma das mãos a balança em que pesa o direito, empunha na outra a espada que serve para fazê-lo valer.

A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é o direito impotente; com­pletam-se mutuamente: e, na realidade, o direito só reina quando a força dispendida pela justiça para empunhar a espada corresponde à habilidade que emprega em manejar a balança.

O direito é o trabalho sem tréguas, e não so­mente o trabalho dos poderes públicos, mas sim o de todo o povo. Se passarmos um golpe de vista em toda a sua história, esta nos apresenta nada menos que o espetáculo de uma nação inteira despendendo ininterruptamente para defender o seu direito penosos esforços, como os que ela emprega para o desenvolvimento de sua atividade na es­fera da produção econômica e intelectual.

Todo aquele que tem em si a obrigação de manter o seu direito, participa neste trabalho na­cional e contribui na medida de suas forças para a realização do direito sobre a terra.

Sem dúvida, este dever não se impõe a todos na mesma proporção. Milhares de homens passam sua vida de modo feliz e sem luta, dentro dos limites fixados pelo direito, e, se lhes fôssemos di­zer, falando-lhes da luta pelo direito, — que o direito é a luta, não nos compreenderiam, por­que o direito foi sempre para eles o reino da paz e da ordem.

Sob o ponto de vista de sua experiência pes­soal, têm toda a razão; procedem como todos os que, tendo herdado ou tendo conseguido sem es­forço o fruto do trabalho dos outros, negam esta proposição: — a propriedade é o trabalho.

O motivo desta ilusão está nos dois sentidos em que encaramos a propriedade e o direito, po­dendo decompor-se subjetivamente de tal modo que o gozo e a paz estejam de um lado, a luta e o trabalho noutro.

Se interpelássemos aqueles que o encaram sob este último aspecto, certamente nos dariam uma resposta em contrário.

O direito e a propriedade são semelhantes à cabeça de Jano, têm duas caras; uns não podem ver senão um dos lados, outros só podem ver o outro, daí resultando o diferente juízo que formam do assunto.

O que temos dito do direito, aplica-se não somente aos indivíduos, mas sim às gerações in­teiras.

A paz é a vida de umas, a guerra a de outras, e os povos como os indivíduos estão, em conse­qüência desse modo de ser subjetivo, expostos ao mesmo erro; e, embalados em um belo sonho de uma longa paz, cremos na paz perpétua, até o dia em que troe o primeiro tiro de canhão, vindo dissipar nossas esperanças, ocasionando com tal mudança o aparecimento duma geração, poste­rior à que vivera em deliciosa paz, que se agitará em constantes guerras, não desfrutando um só dia sem tremendas lutas e rudes trabalhos.

No direito como na propriedade, assim se par­tilham o trabalho e o gozo sem que sofra entre­tanto a sua correlação o menor prejuízo.

Se viveis na paz e na abundância, deveis pon­derar que outros têm lutado e trabalhado por vós.

Se se quiser falar da paz sem a luta, do gozo sem o trabalho, torna-se mister pensar nos tempos do Paraíso, porque nada se conhece na história que não seja o resultado de penosos e contínuos esforços.

Mais além desenvolveremos o pensamento de que a luta está para o direito, como o trabalho para a propriedade; e que, atendendo-se à sua necessidade prática e à sua dignidade moral, deve ser colocado inteiramente na mesma linha.

Vimos assim retificar uma lacuna da qual com razão se acusa a nossa teoria, e não so­mente a nossa filosofia do direito, como também a nossa jurisprudência positiva.

Observa-se facilmente que a nossa teoria se ocupa muito mais com a balança do que com a espada da justiça.

A estreiteza do ponto de vista puramente científico com que se encara o direito e que é onde se ostenta menos o seu lado real, como idéia de força, do que pelo seu lado racional, como um conjunto de princípios abstratos, tem dado, jul­gamos, a todo esse modo de encarar a questão, uma feição que não está muito em harmonia com a amarga realidade. A defesa da nossa tese o provará.

O direito contém, como é sabido, um duplo sentido; — o sentido objetivo que nos oferece o conjunto de princípios de direito em vigor; a ordem legal da vida, e o sentido subjetivo, que é, por assim dizer, — o precipitado da regra abstra­ta no direito concreto da pessoa.

Nessas duas direções o direito depara com uma resistência que deve vencer, e, em ambos os casos, deve triunfar ou manter a luta.

Por mais que nos tenhamos proposto tomar di­retamente como objeto de estudo o segundo des­ses dois pontos de vista, não devemos deixar de es­tabelecer, em consideração ao primeiro, que a luta, como dissemos anteriormente, é da própria essência do direito.

Para o Estado que quer manter o domínio do direito é este um assunto que não exige prova al­guma.

O Estado não pode conseguir manter a or­dem legal, sem lutar continuamente contra a anarquia que o ataca.

Entretanto a questão muda de aspecto se se trata da origem do direito e se estuda: ou a sua origem sob o ponto de vista histórico, ou a cons­tante e contínua renovação que nele se opera todos os dias sob as nossas vistas, tal como a supressão de títulos em vigor, a anulação de arti­gos de leis que também estão em vigor, em uma palavra o progresso e o direito.

Com efeito, se sustentamos que o direito está subordinado a uma mesma lei, ainda que se trate de sua origem ou de toda a sua história, estabe­lecemos uma teoria diferente da geralmente aceita em nossa ciência do Direito Romano.

Conforme esta doutrina, que denominaremos com o nome de seus principais representantes, de Savigny e Puchta, sobre a origem do direito, este desenvolve-se insensivelmente sem dificuldade, como a linguagem.

Segundo afirma essa doutrina, não é necessá­rio lutar; até mesmo é inútil a investigação, por­que essa força da verdade que ocultamente age na vida, avança com passo lento, porém firme e sem violentos esforços, e o poder da persuasão vai produzindo pouco a pouco a luz nos cora­ções que, operando sob sua influência, o reves­tem de uma forma legal.

Surge, portanto, um preceito de direito tão singelamente como uma regra gramatical, e para explicar de acordo com esta teoria como o antigo Direito Romano chegou a permitir ao cre­dor vender ao devedor insolvente ou a autorizar o proprietário de um objeto roubado a reivindicar a coisa em qualquer ponto em que a encontrasse, basta dizer que se assemelha ao modo como foi introduzida na velha Roma a regra do cum regen­do o ablativo.

Esta é a idéia que eu tinha sobre a origem do direito quando deixara a Universidade e sobre cuja influência permaneci por muitos anos.

Será ela verdadeira?

O direito, necessário é reconhecê-lo, desenvolve-se sem necessidade de investigações, incon­scientemente, empregando-se a palavra que se in­troduziu, organicamente, intrinsecamente, como a linguagem.

E é deste desenvolvimento interno que se de­rivam todos os princípios de direito, que os ares­tos análogos e igualmente motivados interpõem pouco a pouco nas relações jurídicas, como as abstrações, os corolários, as regras que a ciência aufere do direito existente, por meio do racio­cínio, e põe logo em evidência.

Porém, o poder destes dois agentes, as rela­ções e a ciência, é limitado; pode dirigir o mo­vimento nos limites fixados pelo direito existen­te, impeli-lo, mas não lhes é dado romper os diques que impedem as águas de tomar um novo curso.

Somente a lei, isto é, a ação voluntária e determinada do poder público, é que tem esta for­ça, e não por acaso, mas em virtude de uma neces­sidade, que está na natureza íntima do direito, porquanto todas as reformas introduzidas no pro­cesso e no direito positivo se originam das leis.

Certo que pode acontecer que uma modifica­ção feita pela lei no direito existente, seja pura­mente abstrata, que sua influência esteja limitada a esse mesmo direito, sem se notar no domínio das relações concretas se foram estabelecidas so­bre a base do direito até então em vigor; neste caso, o fato é como uma reparação puramente mecânica, que consiste em substituir um para­fuso ou uma roda qualquer usada por outra me­lhor. Muitas vezes acontece que uma modifica­cão não se pode operar sem ferir ou lesar profun­damente direitos existentes e interesses privados: porque os interesses de milhares de indivíduos e de classes inteiras estão de tal modo identificados com o direito no curso dos tempos, que não é possível modificar aquele sem sentirem vivamente tais interesses.

Se colocarmos então o princípio do direito ao lado do privilégio, declara-se por esse fato só a guerra a todos os interesses, tenta-se extirpar um pólipo que agarra com todos os seus tentáculos.

Está no instinto da conservação pessoal que os interesses ameaçados a mais violenta resistência oponham a toda a tentativa de tal natureza, dando vida a uma luta que, como qualquer ou­tra, não será resolvida pelos raciocínios, mas pelas forças nela empenhadas, produzindo fre­qüentemente o mesmo resultado que o paralelo­grama das forças: o desvio das linhas retas componentes em uma diagonal.

Este é o único meio de explicar como as ins­tituições, durante tanto tempo condenadas em princípio, perduram por muitos séculos, não sendo a vis inertiae que as mantém, mas a oposição, a resistência que fazem aos interesses violados.

Quando o direito existente é assim defendido pelos interesses oriundos da sua atividade, o do futuro não pode vencer sem ter sustentado uma luta que tenha persistido muitas vezes por mais dum século; e mais ainda quando os interesses se tenham revestido do caráter de direitos adqui­ridos.

Então há dois partidos em presença um do outro, inscrevendo cada um, como lema, em sua bandeira — santidade do direito.

Um invoca a santidade do direito histórico, do direito do passado; e outro a santidade do di­reito que se desenvolve e se renova continuamen­te, do direito primordial e etemo da humanidade em constante mutação.

Existe um conflito da própria idéia do di­reito consigo mesma; e para os indivíduos que, depois de se haverem sacrificado pela defesa de suas convicções, com todas as suas forças, e toda a sua existência, sucumbem em fim perante o juízo supremo da história — é, sem dúvida, um conflito que tem alguma coisa de trágico.

Todas essas grandes conquistas que se podem registrar na história do direito: — a abolição da escravidão, a eliminação dos servos, a livre dis­posição da propriedade territorial, a liberdade da indústria, a liberdade da consciência, não têm sido adquiridas sem uma luta das mais encarniçadas e que freqüentemente tem durado vários sé­culos, e quase sempre banhadas em ondas de san­gue. O direito é como Saturno devorando seus próprios filhos; renovação alguma lhe é possível sem romper com o passado.

Um direito concreto que invoca a sua existência para pretender uma duração ilimitada, a imor­talidade, faz lembrar o filho que ergue o braço contra sua mãe; despreza a idéia do direito, sobre a qual se apoia, porque o direito será eternamente o porvir; assim o que existe deve dar lugar à no­va evolução, como nos diz o célebre autor do “Fausto”:

...Tudo o que nasce
deve voltar ao nada.

O direito considerado em seu desenvolvimento histórico, apresenta-nos, portanto, a imagem da investigação e da luta, em uma palavra — dos mais penosos esforços. O espírito humano que forma inconscientemente a linguagem, não de­para violenta resistência, e a arte não tem outro inimigo a vencer que o seu passado, isto é — o gosto existente.

Entretanto não sucede assim com o direito encarado sob o aspecto de — fim.

Colocado no meio destes complicados meca­nismos onde se agitam todos os diversos interesses humanos, o direito deve estudar e inves­tigar, sem interrupção alguma, o verdadeiro ca­minho, e encontrando-o, abater todos os obstá­culos que se lhe opõem e o impedem de avançar.

Se está fora de dúvida que esta marcha é re­gular e tão interna como a da arte e da linguagem, não é menos certo que se opera por modo muito diferente, e neste sentido é preciso corrigir ousadamente o paralelo, tão rápida e geralmente aceito, que Savigny estabelecera entre o direito de um lado e do outro a linguagem e a arte.

Falsa em teoria, porém não perigosa, essa doutrina como máxima política — é um dos erros mais fatais que se pode imaginar, porquanto vem aconselhar ao homem que espere quando deve agir com todas as suas forças e com pleno co­nhecimento de causa.

Incita-o a esperar, como se lhe dissesse que as coisas caminham por si mesmas, e que o melhor a fazer é cruzar os braços, e esperar confiadamente o que cair pouco a pouco da fonte primitiva do direito, que se chama opinião pública em matéria de legislação.

Daí se origina a aversão de Savigny e de toda a sua escola contra a iniciativa do poder le­gislativo, e que Puchta tenha desconhecido com­pletamente em sua teoria do direito consuetudiná­rio a verdadeira significação do costume.

O costume não é, para Puchta, senão um meio de descobrir a persuasão legal, mas esse grande talento esquecera-se completamente de notar que essa persuasão começa a formar-se somente quan­do age, e que é esta própria ação que lhe dá o poder e a força de dominar; em uma palavra quer no direito costumeiro, quer em qualquer outro, pode-se dizer: — o direito é uma idéia de força.

Em verdade, Puchta não fazia mais que pa­gar o seu tributo à época em que vivia.

Dominava o período romântico da nossa poe­sia, e se não repugnasse aplicar esta idéia à ju­risprudência, tendo-se o trabalho de comparar as direções seguidas neste duplo terreno, não nos admiraríamos da idéia de poder denominar esta escola — a escola romântica do direito.

É na verdade uma idéia romântica representar-­se o passado sob um falso ideal e figurar-se o di­reito surgindo sem trabalho, sem esforço algum, sem ação, como as plantas nascem nos campos.

A triste realidade, entretanto, convence-nos do contrário!

Se a contemplarmos um pouco, mostra-nos os povos que não alcançaram estabelecer o seu direito, sem o preço de grandes esforços, e a estas questões tão graves que se suscitam tumultuaria­niente, podemos acrescentar todo o testemunho do passado, qualquer que seja a época em que façamos essas investigações.

Não ficam para a teoria de Savigny senão os tempos pré-históricos, a respeito dos quais não possuímos dados alguns.

Permita-se-nos, porém, uma hipótese: — oporemos à doutrina de Savigny, que nos repre­senta o direito surgindo simplesmente da per­suasão popular, a nossa teoria que é diametral­mente oposta; e será preciso reconhecer-se que tem ao menos, com a época pré-histórica, perfeita analogia em relação ao desenvolvimento histórico do direito e que julgamos ter a vantagem da maior verossimilhança psicológica.

A época primitiva!

Foi um tempo que a moda resolveu adornar com todas as mais belas qualidades, e assim dela se fez uma idade que não conheceu senão a verda­de, a franqueza, a fidelidade, a simplicidade e a fé religiosa.

Certamente o direito ter-se-ia desenvolvido em um terreno semelhante, sem necessitar de outra força senão do poder da persuasão legal, — o braço não teria sido mais necessário que a espada.

Hoje, entretanto, está averiguado que essa piedosa época, ainda que tivesse todas essas vir­tudes, não poderia estabelecer o seu direito mais facilmente que as gerações posteriores.

Estamos convictos que o direito não se for­mou senão após um trabalho mais penoso ainda que os dos outros períodos e julgamos também os princípios do direito Romano tão sensíveis como estes: — o poder dado ao proprietário de reivindicar sua coisa de qualquer possuidor, a faculdade dada ao credor de vender como escravo seu devedor insolvente, não entraram em vigor, senão após uma luta das mais encarniçadas.

Como quer que seja, deixando o passado ao testemunho autêntico da história, será isto sufi­ciente para se poder afirmar que o nascimento do direito é sempre como o do homem, — um parto doloroso e difícil.

Devemos, pois, lamentar que isto assim se passe?

Certamente que não, porque esta circunstância por força da qual os povos não chegam ao direito sem penosos esforços, sem inúmeros trabalhos, sem lutas contínuas, e até derramando seu pró­prio sangue, é justamente a que origina entre os povos e o seu direito um laço íntimo, que no começo da vida, no nascimento, se estabelece entre a mãe e o recém-nascido.

Pode dizer-se de um direito obtido sem es­forço o que se diz dos filhos da cegonha, — a ra­posa ou o abutre pode perfeitamente roubar-lhos, porém — quem arrancará facilmente o filho dos braços de sua mãe?

Quem despojara um povo de suas instituições e de seus direitos obtidos à custa do seu sangue?

Forçoso é reconhecer-se que a energia e o amor com que um povo defende suas leis e seus di­reitos estão em relação proporcional com os es­forços e trabalhos empregados em alcançá-los.

Não é o costume unicamente que dá vida aos laços que ligam os povos com o seu direito, mas sim o sacrifício é que os une de modo mais duradouro, e, quando Deus quer a prosperidade de um povo, não lha dá por meios fáceis, porém por caminhos mais difíceis e penosos.

Neste sentido não vacilamos em proclamar que a luta, que exige o direito para se tornar prá­tico, não é uma maldição mas a graça.


 

CAPÍTULO II
O interesse na luta pelo direito

 

A luta pelo direito concreto de que nos vamos ocupar nesta segunda parte tem, como causa, uma lesão ou uma subtração deste direito.

Direito algum, tanto o dos indivíduos como o dos povos, está isento daquela permutação e des­vio, resultando daí que essa luta pode travar-se em todas as esferas do direito, desde as inferio­res regiões do direito privado até as alturas do di­reito público e do direito das gentes.

Não obstante a diferença do objeto em li­tígio, das formas e dimensões da luta, a guerra e as revoluções, a lei de Linch, o cartel na Idade Média e a sua última expressão no duelo mo­derno — que são? Que são, enfim, a defesa obri­gatória e essa luta dos processos, senão cenas de um mesmo drama — a luta pelo direito?

Para tratar deste assunto de magna impor­tância, escolhemos a menos ideal de todas as suas formas, — a luta legal pelo direito privado, por­quanto é justamente neste caso que a verdadeira causa do pleito pode, a maior parte das vezes, es­capar, não só à penetração do público, como também até aos próprios homens de lei; enquan­to o móvel aparece em todas as outras formas do direito, sem obscuridade, e o espírito mais acanhado compreende que os bens em questão me­reçam grandes sacrifícios, ninguém dirá: — por­que lutar; não será melhor ceder?

O majestoso espetáculo que oferece o des­cnvolvimento das maiores forças humanas, aliado aos mais árduos sacrifícios, arrastam irresistivelmente o homem e elevam-no a altura de um ideal.

O contrário sucede quando se trata da luta pelo direito privado; pelo escasso círculo de in­teresses relativamente fúteis, no qual se move, por quanto sempre a questão do meu e do teu, com seu prosaísmo inseparável, parece desterra-lo ex­clusivamente a essa região onde se não calcula mais que as vantagens materiais e práticas; ainda que as formalidades a que sua ação está submetida tornam difícil seu emprego, a impossibili­dade também que tem o indivíduo de agir livre e energicamente não concorre para diminuir uma impressão já desfavorável.

Outrora, em que questões semelhantes se de­cidiam na liça, nesse eterno problema do meu e do teu, fazia-se claramente sobresair a verdadeira significação da luta.

Quando a espada era invocada a pôr termo às querelas do meu e do teu, quando o cavaleiro da Idade Média enviava o cartel de desafio, aqueles que presenciavam a luta podiam pressentir perfei­tamente que não se lutava somente pela coisa em seu valor material, para evitar uma perda pecuniária, porém se defendia alguma coisa mais, defendia-se o direito de cada um, sua honra e sua própria pessoa.

Mas, para que evocar tão velhas lembranças para dar uma explicação que a história do presente, ainda que diferente na forma, porém exa­tamente semelhante no fundo, pode ministrar-nos tão bem como o passado?

Lancemos, com efeito, um olhar sobre os fenômenos da vida atual; façamos algumas inves­tigações psicológicas sobre nós mesmos e chegaremos às mesmas conclusões.

Quando um indivíduo é lesado em seu direito, faz-se irremissivelmente esta consideração, nascida da questão que em sua consciência se apresenta, e que pode resolver como bem lhe aprouver: — se deve resistir ao adversário ou se deve ceder.

Qualquer que seja a solução, deverá fazer sempre um sacrifício; — ou sacrificará o direito à paz ou a paz ao direito.

A questão assim apresentada parece limitar-se a saber qual dos dois sacrifícios é o menos oneroso.

O rico, por exemplo, poderá, em uma dada ocasião, dar, para não ferir a paz de sua vida, uma quantia para si insignificante, enquanto o pobre sacrificará a paz, porque será para si a mes­ma soma de relativa importância.

A luta pelo direito não seria então mais que uma pura regra de cálculo, na qual se aferiria de um lado os lucros, e do outro as perdas, nascendo desta espécie de balanço — a decisão.

Entretanto sabe-se que na realidade não é as­sim o que se passa.

Diariamente a experiência nos apresenta de­mandas nas quais o valor do objeto do litígio não tem relação alguma com o sacrifício provável, os esforços e os gastos pecuniários que será mister despender.

Aquele que tiver perdido um cruzado não gas­tará certamente dois para tornar a encontrá-lo, e a questão de saber quanto dará não será em rea­lidade mais que uma operação de cálculo.

E porque não sucede assim numa demanda? Não se venha dizer que se espera ganha-la e que as custas recaem sobre o adversário, porque mui­tos têm a certeza de pagar caro o triunfo, não sendo isso bastante para que não intentem uma ação em juízo.

Quantas vezes o magistrado, ao fazer ver os enormes gastos do litígio a uma parte, tenm como resposta: — “Quero intenta-lo, custe o que cus­tar!” Bem conhecida é a resposta que ordinaria­mente se dá, dizendo-se: — é a mania de litigar, o puro amor à chicana, o desejo ardente e irresistível de fazer mal ao adversário.

Deixemos, porém, esta espécie, e em lugar de dois indivíduos, suponhamos dois povos. Um apoderou-se ilegalmente de uma légua quadrada de terreno inculto e sem valor que é do outro; que fará este último? Deve declarar a guerra?

Consideremos a questão sob o ponto de vista em que se coloca essa teoria — da mania de de­mandar, como se se tratasse de julgar a conduta do camponês cujo vizinho se apoderou de alguns palmos de terreno que àquele pertênciam e a quem, por tanto, se tem prejudicado em sua propriedade.

O que vale uma légua quadrada de terreno es­téril, em comparação a uma guerra que custará a vida a milhares de indivíduos, que semeará a dor e a ruína do pobre e do rico, que destruirá cabanas e palácios, que devorará milhões do tesouro público e ameaçará talvez a existência do Estado?

Empregar tantos sacrifícios por semelhante causa, não será o caminho da loucura? Certo que seria tal esse juízo, se fosse possível medir com a mesma bitola — o camponês e o povo.

Todos, porém, abster-se-ão bem de dar ao se­gundo o mesmo conselho que ao primeiro. Não há pessoa alguma que deixe de afirmar que um povo que não resistisse ante semelhante violação do seu direito confirmaria por si mesmo a sua condenação à morte.

A um povo que tolerasse que se lhe ocupasse e usurpasse impunemente uma légua quadrada de seu terreno, pouco a pouco se iria ocupando todas as demais até que não lhe restasse coisa alguma, deixando de existir como Estado; não merece­na em verdade mais digna morte, nem melhor destino.

Se, conseguintemente, o povo deve recorrer às armas quando se trata de uma légua quadrada, sem se preocupar de seu valor, — porque é que o camponês de que temos falado não o deverá fazer?

Será preciso detê-lo com este decreto ou sen­tença: — quod licet Jovi non licet bovi?

E assim como não é somente para defender um pedaço de terra, mas sim sobretudo a sua existên­cia, sua independência e honra — que um povo lança mão das armas; de modo semelhante nas ações e nos pleitos judiciais, em que existe uma grande desproporção entre o valor do objeto e os sacrifícios de qualquer natureza que neles é mister despender, não se vai demandar, não se litiga pelo valor insignificante talvez do objeto, mas sim por um motivo ideal, a defesa da pessoa e do seu sen­timento pelo direito.

Quando o que litiga se propõe semelhante fim e vai guiado por tais sentimentos, não há sacrifício nem esforço que tenha para si peso algum, porquanto vê no fim que quer atingir a recom­pensa de todos os meios que emprega.

Não é o interesse material vulnerado, que im­pele o indivíduo que sofre tal lesão a exigir uma satisfação, mas sim a dor moral que lhe causa a injustiça de que é vitima.

A grande questão para ele não é a restituição do objeto que muitas vezes é doado a uma insti­tuição de beneficência, a que o pode impelir a litigar; o que mais deseja é que se lhe reconheça o seu direito.

Uma voz interior lhe brada que não lhe é per­mitido retirar-se da luta, que não é só o objeto que não tem valor algum, mas sim a sua persona­lidade, seu sentimento pelo direito e a estima que ele deve a si mesmo, que estão em jogo; em uma palavra, a demanda é antes uma questão de interesse que uma questão de caráter.

A experiência, porém, nos ensina também que outros indivíduos colocados em semelhante situação tomam uma decisão inteiramente contrária; — preferem a paz a um direito conquistado tão tra­balhosa e penosamente.

Como julgamo-los?

Bastará dizer-se: — é uma questão de gosto c de temperamento; este ama a paz, aquele o combate, e, sob o ponto de vista do direito, ambos são respeitáveis, porque todo o interessado pode esco­lher ou abandonar o seu direito ou fazê-lo valer.

Consideramos este modo de ver que se encontra muitas vezes na vida, como perfeitamente condenável e contrário à própria essência do di­reito.

Se fosse possível supor que chegasse alguma vez a prevalecer, destruir-se-ia o próprio direito, porque defende a fuga diante da injustiça, enquanto o direito não existe sem lutar contra ela.

Por nossa parte opomos o duplo princípio que vamos agora submeter à atenção do leitor:

Resistir à injustiça é um dever do indivíduo para consigo mesino, porque é um preceito da existência moral; — é um dever para com a so­ciedade, porque esta resistência não pode ser co­roada com o triunfo, senão quando for geral.


 

CAPÍTULO III
A luta pelo direito na esfera individual

 

Aquele que for atacado em seu direito deve resistir; — é um dever para consigo mesmo.

A conservacão da existência é a suprema lei da criação animada, por quanto ela se manifesta instintivamente em todas as criaturas; porém a vida material não constitui toda a vida do homem; tem ainda que defender sua existência moral que tem por condição necessária o direito: é, pois, a condição de tal existência que ele possui e de­fende com o direito.

O homem sem direito desce ao nível dos bru­tos,26 assim os Romanos não faziam mais do que deduzir uma lógica conseqüência desta idéia, quan­do colocavam os escravos, considerados sob o pon­to de vista do direito abstrato, ao nível do animal.

Temos, pois, o dever de defender nosso direito, porque nossa existência moral está direta e essencialmente ligada à sua conservação; desistir completamente da defesa, o que atualmente não é muito prático, porém que poderia ter lugar, equi­valeria a um suicídio moral.

Do que vem de ser dito se depreende que o direito não é mais que o conjunto dos diferentes tratados ou títulos que o compõem e, em cada um deles se reflete uma condição particular da exis­tência moral; na propriedade, como no matrimô­nio, no contrato como nas questões de honra, em tudo isto, é legalmente impossível renunciar a uma só dessas condições sem renunciar a todo o direito.

Entretanto pode acontecer que não sejamos atacados em uma ou em outra dessas esferas, e este ataque é o que somos obrigados a repelir, por­que não basta colocar estas condições vitais sob a proteção de um direito representado pelos princípios abstratos, — é mister ainda que o indivíduo desça ao domínio da prática para defende-las, e a ocasião é evidente quando a arbitrariedade ousa atacá-las.

Toda a injustiça não é, portanto, mais que uma ação arbitrária, isto é — um ataque contra a idéia do direito.

O possuidor de uma coisa minha e que se con­sidera seu proprietário, não nega em minha pes­soa a idéia da propriedade, apenas invoca um di­reito ao lado do meu, reduzindo-se toda a questão a saber qual é o proprietário. Mas o ladrão, o salteador colocam-se fora do domínio legal da propriedade; negam por seu turno a idéia da propriedade, condição portanto essencial à existência da minha pessoa; e generali­zando-se assim o seu modo de proceder, a propriedade desaparecerá na teoria e na prática.

Assim não atacam apenas os meus bens, porém sim a minha personalidade, e, se tenho o direito e o dever de me defender quando sou atacado, neste caso, só o conflito deste dever com o interesse superior da minha vida pode, às vezes, motivar uma outra decisão; por exemplo, um salteador, tolhendo-me qualquer movimento, põe-me na alternativa de entregar-lhe a bolsa ou a vida.

Entretanto o meu dever é, nos outros casos, combater, por todos os meios de que disponha, toda a violação ao direito da minha personalidade; sofrê-la seria consentir e suportar um momento de injustiça em minha vida, o que jamais deveria ser permitido.

Completamente diferente é a minha posição diante de um possuidor de boa fé.

Neste caso não é ao meu sentimento do direi­to, ao meu caráter ou a minha personalidade, porém aos meus interesses, que pertence ditar a nor­ma a seguir, porquanto toda a questão se reduz ao valor que o objeto possa ter.

Posso, pois, perfeitamente calcular, no caso figurado, as vantagens, e, em vista delas, intentar a demanda ou transigir. As transações entre as partes onde se expõem e se ajuízam os cálculos mais ou menos verdadeiros sobre o litígio é o me­lhor meio de proceder nestes casos.

Pode, entretanto, chegar-se a um ponto em que o acordo das partes, ou qualquer outra cir­cunstância, dificulte o ajuste, que os cálculos se dividam favoravelmente para cada uma das par­tes, chegando cada um dos litigantes a supor a existência de má fé no outro: começa então a questão, embora desenvolvendo-se judiciariamente sob a forma de uma injustiça objetiva — reivin­dicatio — revestindo psicologicamente para a parte o caráter de que falamos no caso prece­dente de uma lesão premeditada e a tenacidade com que o indivíduo defende seu direito, é partindo desse ponto de vista, tão motivada e justi­ficada como a pode e deve usar-se no referido caso do ladrão.

Procurar em semelhante caso intimidar a parte, fazendo-lhe prever os dispêndios que resulta­rão, as más conseqüências que acarretará para si a demanda, não será mais que perder tempo, por quanto não se age então pelo interesse material; a questão vem degenerar numa questão de com­petência e, a única esperança que pode nutrir-se é a de chegar a fazer desaparecer a suposição da existência de uma intenção no adversário que faz agir.

E se ainda assim resiste, para eliminar de algum modo essa resistência, pode alterar-se no­vamente a demanda, sob o ponto de vista do inte­resse e obter, por esta forma, a transação.

É bem verdadeiro que essa resistência siste­mática, por assim dizer, essa prevenção e des­confiança de algumas partes não nascem mui­tas vezes do caráter e maneira de ser do indivíduo, mas sim da sua educação e profissão.

No camponês é que mais difícil se torna vencer essa desconfiança.

A mania dos demandistas que se colocam nes­te caso, não é mais que o produto de dois fatores que o impelem especialmente a obrar; — o sentimento da avareza ou amor profundo à pro­priedade, — e a desconfiança.

Ninguém conhece melhor os seus interesses que ele, nem os defende tão ardentemente, e não há pessoa alguma que tudo sacrifique a uma de­manda tão facilmente.

Isto que parece uma contradição, não o é entretanto na realidade.

É justamente porque o seu sentimento e amor pelo direito são tão excessivos e tão profundos, estão tão desenvolvidos, que qualquer lesão é para ele muito sensível, tornando-se portanto a reação muito violenta.

Essa mania de demandas é um vício, uma exageração, que derivam da sua desconfiança e do seu amor à propriedade, assemelhando-se ao que o ciúme produz no amor, dirigindo suas ar­mas contra si mesmo, fazendo perder justamente o que se queria conservar.

O Direito romano antigo oferece uma interes­sante prova do que acabamos de dizer; exprimiu precisamente sob a forma de princípios legais essa desconfiança do camponês que supõe, em todo o conflito, que o seu adversário age de ma fé; con­siderava toda a injustiça objetiva: como conseqüência derivada de uma injustiça subjetiva, aplicando — uma pena ao vencido.

Não era para o indivíduo em que se tinha irri­tado, ou melhor, exagerado o sentimento do di­reito, uma satisfação suficiente a de restabelecer a perturbação sofrida em seu direito; ainda exi­gia uma reivindicação especial da ofensa que o seu adversário, ou não, lhe havia feito.

Hoje, como outrora, seria entre nós assim se os camponeses tivessem de ditar as leis.

Esta desconfiança desapareceu em face dos mesmos princípios do Direito romano, motivada pelo progresso que fez distinguir duas espécies de injustiça: — a injustiça culpável ou não culpável, ou subjetiva e objetiva (ingênua, como dizia Hegel).

Esta distinção é, todavia, de uma importân­cia secundária para a questão que nos ocupa, a saber: — que conduta deve seguir um indivíduo lesado em seu direito ante a injustiça.

Tal distinção exprime bem sob que ponto de vista o direito encara a questão; fixa as conseqüências que a injustiça acarreta, mas nada nos diz do indivíduo, e nem explica como a injustiça exalta o sentimento do direito, que não se regula segundo as idéias de um sistema.

Um fato particular pode produzir-se em cir­cunstâncias tais que a lei considere o caso como uma lesão do direito objetivo e o indivíduo possa com fundamento supor má fé, injustiça notória por parte de seu adversário, e é perfeitamente equi­tativo que seja seu próprio juízo quem lhe dite a conduta que deve seguir.

O direito pode dar-me contra o herdeiro do meu credor, que não conhece a dívida e toma o pagamento dependente da minha prova, a mesma conditio ex mutuo que me dá contra o devedor que nega impunemente o empréstimo que eu lhe fiz ou que recusa sem causa o reembolso. Entretanto não poderia eu considerar de modo diferente a maneira de proceder de um e de outro.

Comparo o devedor ao ladrão que procura apo­derar-se de alguma coisa pertencente à minha pes­soa, com pleno conhecimento de causa; como o ladrão ele viola o direito, com a única diferença apenas de que pode cobrir-se com o manto da le­galidade.

Ao contrário, comparo o herdeiro do devedor com um possuidor de boa fé, por quanto não nega que o devedor deva pagar, mas combate ape­nas a minha pretensão.

Como devedor, posso aplicar-lhe tudo quanto disse daquele a quem o comparo; posso com ele transigir: — basta desistir; mas devo sempre demandar o devedor de má fé e devo fazê-lo, custe o que custar, porque é um dever; e não o cum­prindo sacrificaria, com este direito, todo o direito.

Dir-se-á, entretanto: — o povo sabe por acaso que o direito de propriedade e o de obrigações são condições da existência moral?

Sem dúvida que não.

Mas não o sente?

É esta uma questão que esperamos resolver prontamente e pela afirmativa.

Que sabe o povo acerca dos rins, do fígado, dos pulmões, como condições da existência fí­sica?

Entretanto ninguém há que sentindo um dano qualquer no pulmão, uma dor nos rins, no fígado, não tome as precauções necessárias para combater o mal desta espécie.

A dor física anuncia-nos uma perturbação no organismo, a presença de uma influência fu­nesta; abre-nos os olhos ao perigo que nos ameaça e nos obriga a remediar a tempo.

Do mesmo modo é a dor moral que nos causa a injustiça voluntária; sua intensidade varia como a da dor física e depende (mais além discorre­remos sobre este ponto) da sensibilidade subje­tiva, da forma e do objeto da lesão, porém anuncia-se, entretanto, em todo o indivíduo que não esteja completamente habituado à ilegalidade.

Esta dor moral força a combater a causa de onde se origina, não tanto para faze-la cessar, como para manter a saúde, que se acharia com­prometida se a sofresse passivamente sem reagir contra ela; e lhe recorda, em uma palavra, o dever que tem de defender a existência moral, como a emoção produzida pela dor corporal recorda o de­ver de defender a existência física.

Para exemplificar, tomemos um caso qualquer, seja o menos duvidoso dum ataque à honra, e na classe em que o sentimento da honra é mais desenvolvido, a classe militar. Um oficial que suportou pacientemente uma afronta à sua honra, inabilita-se.

E por que?

A defesa da honra não é um dever puramente pessoal?

Por que o corpo ou a classe militar lhe dá uma importância muito especial?

É que considera, com razão, que sua posição depende necessariamente da coragem que revelam seus membros na defesa da personalidade, e que uma classe, que é por sua natureza a que re­presenta a bravura pessoal, não pode sofrer a covardia de um dos seus, sem sacrificar-se e desacre­ditar-se toda inteira.

Suponhamos agora um camponês que defen­de com toda a tenacidade possível a sua proprieda­de; porque não procede assim quando se trata da sua honra?

É que tem o verdadeiro sentimento das con­dições particulares da sua existência.

Não é chamado a provar a sua valentia mas a trabalhar.

A sua propriedade não é senão a forma visí­vel do trabalho que tem feito durante a vida.

Um camponês indolente que não cultiva seus campos ou que dissipa rapidamente suas rendas é tão desprezado pelos outros, como o militar que barateia a sua honra o é pelos seus companheiros de armas.

Assim, um homem rústico não exprobará a ou­tro por não haver iniciado um processo por injú­rias, nem um capitão censurará ao seu companheiro por ter sido um mal administrador.

A terra que cultiva e o rebanho que cria são para o camponês a base da sua existência e a pai­xão excessiva com que persegue o visinho que lhe usurpara uns palmos de terra, ou o mercador que não lhe pagou o preço estipulado pelas cabeças de gado que lhe vendera, não é mais que um modo peculiar de lutar pelo direito, analogamente como o que o tem o militar por meio da espada à qual confia a defesa da sua honra.

Sacrificando-se ambos sem temer e sem aten­derem as conseqüências, não fazem senão o seu dever.

Agindo assim, não têm mais que obedecer a lei particular da sua conservação moral.

Mandai-os sentar nos bancos dos jurados; sub­metei primeiramente aos militares um delito, e aos camponêses uma questão de honra; em se­guida invertei os papéis e vereis qual a diferença existente entre os vereditos.

Está averiguado que não há juízes mais severos nas demandas de propriedade que os camponeses; e, ainda que não possamos falar por experiência própria, ousamos assegurar que, se um camponês por acaso intentasse uma ação sobre reparação das injúrias, o juiz poderia com mais facilidade fazê-lo transigir do que se tratasse de uma questão acerca de propriedade.

O camponês no antigo direito romano conten­tava-se com a indenização de 25 azes por uma bofetada e, se lhe varassem um olho, podia o au­tor entender-se com ele para não usar da pena de talião como lhe permitia a lei.

Mas, quando se tratava de um ladrão, exigia da lei e esta concedia-lhe, que se o prendesse em flagrante delito, o reduzisse à escravidão e até o pudesse matar, se resistisse.

Seja-nos lícito acrescentar um terceiro exem­plo: — o do comerciante.

O crédito é para ele o que a honra é para o militar e a propriedade é para o camponês; deve mantê-lo porque é a sua condição vital.

Aquele que o acusasse de não ter cumprido todas as suas obrigações e compromissos, feri-lo-ia mais sensivelmente do que se o atacasse na sua pessoa ou na sua propriedade, e todavia o militar rir-se-ia de tal acusação e o camponês senti-la-ia muito pouco.

É por isso tão particular a situação do co­merciante que faz que nas leis atuais, especialís­simas em certos casos, sejam exclusivos e peculiares certos delitos aos comerciantes, como a bancarrota simples e o crime da falência culposa.

Com o que temos exposto, não procuramos so­mente provar que a irritabilidade do sentimento do direito se apresenta sobre esta ou aquela forma, variando segundo as classes e as condições, porque o indivíduo bitola o caráter de uma lesão pelo interesse que pode a sua classe ter em suportá-la ou não.

A demonstração deste fato serviria para es­tabelecer claramente uma verdade de ordem su­perior, isto é — que todo o indivíduo atacado de­fende no seu direito as condições da sua existência moral.

É justamente nestas qualidades em que temos reconhecido as condições essenciais da existência destas classes, onde o sentimento do direito se manifesta em seu mais alto grau de sensibilidade; e disto se depreende facilmente que a reação do sentimento legal não se origina exclusivamente como uma paixão ordinária, segundo a natureza especial do temperamento e caráter do indivíduo, sem que uma causa moral haja nela, sendo esta o sentimento de que tal ou qual título ou seção do direito seja precisamente de uma necessidade abso­luta para o fim particular da vida desta classe ou deste indivíduo.

O grau de energia com que o sentimento reage contra as lesões, segundo o nosso modo de ver, é uma regra certa para conhecer até que ponto um indivíduo, uma classe ou um povo sentem a neces­sidade do direito, tanto do direito em geral como de uma das suas partes, atento o fim especial da sua existência.

Para nós este princípio é uma verdade perfei­tamente aplicável, tanto ao direito público como ao direito privado.27

Se os encargos especiais de uma classe e de uma profissão podem dar a certa csfera do di­reito uma importância mais elevada e aumentar por conseguinte a sensibilidade do sentimento legal da pessoa que se vê atacada no que é essencial ao seu especial modo de vida, também pode enfra­quecê-lo.

É impossível que os lacaios e serventes apre­ciem e desenvolvam o sentimento da honra como as demais classes, porque há certas humilhações ligadas, por assim dizer, a seu ofício e posição a que debalde o indivíduo tentara subtrair-se, pois que a classe inteira as suporta.

Quando o sentimento da honra se subleva em um homem submetido a esta condição, não lhe resta outro caminho senão o de acalmar-se ou mu­dar de ocupação.

Se alguma vez tal sensibilidade se fizer sentir na massa social, então nada mais existe para o indivíduo, senão a esperança de não consumir suas forças numa resistência inútil.

Poderá reuni-las às dos homens cujo coração pulsa como o seu, empregando-as utilmente, es­timulando em seus semelhantes o sentimento da honra, assegurando-lhes a mais alta consideração ate o ponto de alcançá-la da parte das demais clas­ses sociais e das mesmas leis.

A história do desenvolvimento social nos últimos cinqüenta anos pôde registrar, sobre este ponto, um imenso progresso, e o que acabo de dizer, pode-se aplicar dentro destes cinqüenta anos a quase todas as classes.

O sentimento da honra tem-se nelas apurado, sendo isto o resultado e a expressão da posição legal que têm sabido conquistar.

O sentimento da honra e o da propriedade podem ser postos, pelo que toca ao seu apreço, no mesmo paralelo.

É possível que o verdadeiro sentimento da pro­priedade, — porque não entendemos, sob esta expressão, o amor do lucro, a procura do dinheiro e da fortuna, mas o nobre sentimento do proprietário, cujo modelo temos apresentado no camponês que defende seus bens não tanto pelo seu valor, como porque são seus, é bem possível, repeti­mos, que este sentimento se enfraqueça sob as influências deletérias de causas e situações desfavo­ráveis, do qual a cidade em que vivemos oferece a melhor prova.

O que existe de comum entre a minha pro­priedade e a minha pessoa? muitos perguntarão.

Os meus bens não são mais que os meios de prover a minha existência, de proporcionar-me dinheiro, prazeres, e do mesmo modo que não tenho o dever moral de enriquecer-me, não pode haver quem me exija ou aconselhe intentar uma demanda por uma bagatela que não merece enfado e nada vale.

O único motivo que me pode determinar a correr aos meios judiciais não pode ser outro que aquele que me guia na aquisição ou no emprego da minha fortuna e do meu bem estar.

Uma questão sobre o direito de propriedade é uma questão de interesse, um negócio como um outro qualquer.

Aqueles que assim raciocionam, parece-nos, têm perdido o verdadeiro sentimento da proprie­dade e t6em deslocado a sua base natural.

Não é na riqueza nem no luxo que está o perigo para o sentimento do direito no povo; não são responsáveis por estas doutrinas, mas a i­moralidade da cobiça.

A origem histórica e a justificação moral da propriedade é o trabalho, não só o material e o braçal, mas ainda o da inteligência e do talento, e não reconhecemos somente ao operário, porém igualmente ao seu herdeiro, um direito ao produto do trabalho, isto é achamos no direito da sucessão uma conseqüência necessária e indispensável do princípio da propriedade.

Assim sustentamos que deve ser tão permiti­do ao operário conservar o que ganhar como bem lhe aprouver, como deixa-lo a quem quer na sua vida ou para depois de sua morte.

Esta constante relação com o trabalho é que faz manter a propriedade sem mancha; e é nessa fonte que sempre deve refrescar-se, fazendo ver o que em realidade é para o homem, aparecendo clara e transparente inteiramente.

E, quanto mais se afasta de tal fonte para perder-se e adulterar-se, para assim nos exprimir­mos, provindo de lucros fáceis e sem esforço al­gum, tanto mais perde o seu caráter e natureza até se converter em jogos de bolsa e em agiotagem. fraudulenta.

Quando as coisas chegaram a tal extremo, quando a propriedade perdeu o seu último vestígio de idéia moral, é evidente que não se pode falar no dever moral para a defender; não há já aqui o sentimento da propriedade, tal qual existe no ho­mem que tem que ganhar o pão com o suor do seu rosto.

O que há de mais grave em tudo isto é que essas doutrinas e os hábitos que engendram se alargam paulatinamente até um círculo em que não poderão desenvolver-se espontaneamente e sem contato.28

Até a cabana do pobre se ressente da influência que exercem os milhões ganhos nos jogos da bolsa, e indivíduos que suportariam em outras circuns­tâncias alegremente o trabalho, não o suportam e suam sob o peso que os enerva com o viver numa atmosfera tão viciada.

O comunismo não poderia proliferar senão naquelas partes em que está inteiramente esque­cida ou abastardada a idéia da propriedade, não se encontrando porém onde haja a idéia da sua verdadeira origem.

Aquela influência pode ser certificada exami­nando-se o que sucede entre os camponeses, em que a maneira como as classes elevadas conside­ram a propriedade tanto influi.

O que vive em suas terras, tendo alguma relação com o camponês, involuntariamente adqui­rirá, ainda que o seu caráter e posição não o ar­rastem a isso, algum sentimento da propriedade e da economia que distingue o homem rústico; e um mesmo indivíduo poderá ser econômico quando vive entre os camponeses, e pródigo e gastador quando vive em uma cidade como Viena, se ele se achar entre milionários.

Qualquer que seja a causa dessa atenuação de caráter pela qual o amor a comodidade induz a fugir da luta pelo direito, uma vez que o valor do objeto não seja de tal natureza que aconselhe à resistência, devemos caracterizá-la como ela é.

O que é que a filosofia prática da vida prediz com isso, senão a política da covardia?

O covarde que abandona o campo da batalha, salva o que os outros oferecem em sacrifício, a vida, porém salva-a à custa da sua honra.

A resistência que os outros continuam fazen­do é que o coloca, bem como à sociedade, ao abrigo das conseqüências que forçosamente apareceriam se todos, pensando como ele, de modo idêntico procedessem.

O mesmo se pode dizer daquele que abandona seu direito, porém isto, como ato isolado, não tem conseqüência; entretanto se se tornasse em máxima de conduta — o que seria do direito?

Ainda neste caso a luta pelo direito contra a injustiça não sofreria em seu conjunto mais que uma defeção isolada, porquanto os indivíduos são, na verdade, os únicos chamados a participar desta luta.

Quando um Estado está organizado, a opinião pública participa enormemente, influindo sobre os tribunies em todos os ataques graves feitos ao direito de uma pessoa, à sua vida ou à sua pro­priedade, achando-se assim os particulares desembaraçados da parte mais penosa do trabalho.

Entretanto não é isto o bastante.

A polícia e o ministério público ainda velam para que o direito jamais seja sacrificado, quando se trata de lesões abandonadas à ação individual, porque nem todos seguem a política do covarde, e este mesmo luta quando reconhece que o valor do objeto merece os seus incômodos.

Suponhamos um estado de coisas em que o indivíduo não tenha a proteção que asseguram a polícia e uma boa administração da justiça; re­montemo-nos aos tempos primitivos, como em Ro­ma, em que o procedirnento contra o ladrão e o bandido era exclusivamente entregue ao que fora lesado.

Quem não vê até onde poderia chegar esse covarde abandono do direito?

Não seria isto um incitamento aos ladrões e salteadores?

Pode, sem dúvida, ser isto aplicado perfei­tamente à vida das Nações.

Nenhum povo pode, em caso algum, abando­nar a defesa de seu direito; recordemos o exem­plo da légua quadrada que supunhamos roubada por um povo a outro povo, e poder-se-á imaginar que conseqüências traria para a vida dos povos o ter como norma a teoria pela qual a defesa do direito depende do valor do objeto movel da demanda.

Uma máxima que é inadmissível, que causa a ruina do direito a que se aplica, não se legi­tima, ainda quando chegue a praticar-se, gracas a certas e excepcionais circunstâncias.

Mais além teremos ocasião de dernonstrar quanto prejudicial ainda ela é num caso relativa­mente favorável.

Afastemos, pois, essa moral que jamais in­cutirá no povo ou no indivíduo sentimento algum pelo direito, e que é apenas sinal e produto do sentimento legal paralisado e enfermo, resultado do grosseiro materialismo dominando o direito, materialismo que tem neste domínio sua razão de ser.

Aproveitar-se do direito e dele se servir e fa­zê-lo valer, não são, quando se trata de uma injus­tiça objetiva, mais que verdadeiras questões de interesses, e o direito não é, segundo a definição que damos em outro lugar29 mais que — um inte­resse protegido pela 1ei.

Perante a arbitrariedade que ataca e que não respeita o direito, estas considerações perdem todo o seu valor, por que neste caso aquele que ataca arbitrariamente não pode atacar nem lesar meu di­reito, sem atacar ao mesmo tempo a minha pessoa.

Pouco importa que o meu direito tenha por objeto tal ou tal coisa.

Se o acaso me coloca na posse de uma coisa, eu poderia justamente ser despojado dela sem haver lesão de direito em minha pessoa; porém não foi o acaso, mas sim a minha vontade que estabeleceu o laço entre mim e este objeto, e, se a tenho, devido ao trabalho que me tem custado ou que custara a outro que ma dera, a questão varia de aspecto.

Apropriando-me da coisa, imprimo-lhe o cunho da minha personalidade, e qualquer ataque dirigido a esse objeto me atacará, porque a minha propriedade sou eu: a propriedade não é mais que a periferia da personalidade estendida a uma coisa.

Esta conexão do direito com a pessoa con­fere a todos os direitos, de qualquer natureza que sejam, o valor incomensurável que temos chamado ideal, em oposição ao valor puramente real que tem: sob o ponto de vista do interesse, sendo essa relação íntima a que faz nascer na defesa do direito esta abnegação e energia de que acima já nos ocupamos.

Esta concepção ideal não está reservada às na­turezas privilegiadas; a todos é possível, tanto ao homem mais grosseiro, como ao mais ilustrado, não só ao rico, como ao pobre, tanto aos povos sel­vagens como aos mais civilizados.

É precisamente isso que nos mostra que seme­lhante ponto de vista ideal tem sua origem na na­tureza íntima do direito, e que, por outra parte, não faz, na verdade, mais que demonstrar o bom estado do sentimento legal.

O direito que parece, por um lado, degradar homem à região do egoísmo e do interesse, eleva-o por outro a uma altura ideal, onde esquece todas as suas subtilezas, todos os cálculos e essa medida de interesse que se habituara a aplicar por toda a parte, e esquece-se para sacrificar-se pura e sim­plesmente por uma idéia.

O direito, que é, por um lado, a prosa, torna-se, na luta por uma idéia, em poesia, porque o combate pelo direito é, em verdade — a poesia do caráter.

E, como se opera este prodígio?

Não é nem pelo saber nem pela educação, mas pelo simples sentimento da dor.

A dor que é o grito de augústia, de socorro da natureza ameaçada, verdade esta aplicável, como notamos, não só ao organismo físico, como também ao ser moral.

A patologia do sentimento legal é para o le­gista e para o filósofo do direito — ou, melhor, devia sê-lo, porque seria inexato afirmar que seja realmente assim — o que a patologia do corpo humano é para os médicos: revela inquestionavel­mente o segredo de todo o direito.

A dor que o homem experimenta quando é le­sado, é a declaração espontânea, instintiva, violentamente arrancada do que o direito é para ele, a princípio em sua personalidade e logo como indivíduo de uma classe.

A verdadeira natureza e a real importância do direito revelam-se mais completamente em tal momento, sob a firma de afeção moral, do que durante um século de gozo tranqüilo.

Aqueles que não tiveram ocasião de medir pessoalmente esta dor não sabem o que é o direito, ainda que tenham em sua cabeça todo o Corpus júris; e isto por que não é a razão, mas o senti­mento que pode resolver esta questão.

Também a linguagem tem indicado, e bem, a origem primitiva e psicológica de todo o direito, apelidando-o de sentimento legal.

Consciência do direito, pensuasão legal, são ou­tras tantas abstrações da ciência que o povo não compreende.

A força do direito descança como a do amor no sentimento, e a razão não o pode substituir quando aquele impera.

Assim como há momentos em que se ignora a. existência do amor, e, num instante, ele se re­vela inteiramente, assim também sucede com o sentimento do direito: em quanto se não foi lesado não se conhece de quanto é capaz, mas a injus­tiça obriga-o a manifestar-se, pondo a verdade à luz e revelando as forças em toda a sua intensidade.

Já dissemos em que consiste essa verdade; direito é a condição da existência moral da pes­soa, e mantê-lo é defender a sua própria existência moral.

Não é símente a dor, mas também, em muitos casos, a violência, ou tenacidade, com a qual o sen­timento do direito reage a uma lesão, que é a pedra de toque de sua saúde.

Por esse motivo o grau de dor que experi­menta a pessoa lesada é o indício do valor em que tem o objeto da lesão.

Experirnentar a dor e permanecer indiferente, suportá-la com paciência sem defender-se, constitui uma negação do sentimento do direito que as circunstâncias podem desculpar em dado caso, porém que em geral não deixariam de acarretar graves conseqüências para o sentimento do mesmo.

Com efeito, a ação é da mesma natureza do sentimento legal, que não pode existir senão sob condição de agir.

Se ela não age, desaparece gradualmente; ex­tingue-se pouco a pouco até ficar anulada por completo a facudade sensível.

A irritabilidade e a ação, isto é, a faculdade de sentir a dor causada por uma lesão em nosso direito e a coragem aliada à resolução de repelir o ataque, são o duplo critério mediante o qual se pode reconhecer se o sentimento do direito é são.

É mister renunciarmos a desenvolver aqui, com mais extensão, este assunto tão interessante e instrutivo da patologia do sentimento legal; permitam-nos, porém, ainda algumas reflexões. Sabe-se que ação tão diferente exerce uma mes­ma lesão sobre pessoas pertencentes a classes di­versas.

Já procuramos explicar este fenômeno.

E a conclusão que disso tiramos é que o senti­mento do direito não é igualmente lesado por todos os ataques, por quanto enfraquece ou aumenta segundo os indivíduos e os povos vêem na lesão que se faz ao seu direito uma ofensa mais ou menos grave à condição de sua existência moral.

Quem quisesse continuar a questão, sob este ponto de vista, seria fartamente recompensado em seus esforços.

Desejaríamos juntar aos exemplos da honra e da propriedade, um capítulo que recomenda­rnos especialmente — o matrimônio.

Quantas reflexões poderiam fazer-se do modo diverso como os indivíduos, os povos e as legisla­ções consideram o adultério!

A segunda condição do sentimento legal, isto é — a força de ação, é uma pura questão de caráter. A atitude de um homem ou de um povo em presença de um atentado cometido contra o seu direito é a pedra de toque mais segura para julgá-lo.

Se compreendermos por caráter a personali­dade plena e inteira, não há, sem dúvida, melhor ocasião de exibir esta nobre qualidade que em presença do que arbitrariamente lesa, ao mesmo tempo, o direito e a pessoa.

As formas pelas quais se produz a reação causada por um atentado ao sentimento do di­reito e da personalidade que se traduzem, sob a influência da dor, em vias de fato, apaixonadas e selvagens, ou que se manifestam por uma grande e tenaz resistência, de modo algum podem servir para deterrninar a força do sentimento legal.

Seria, pois, um erro e dos mais grosseiros supor em uma Nação selvagem, e em um homem da plebe, um sentimento mais ardente que o de um homem educado, porque aqueles tornam o primei­ro partido e estes o segundo.

As formas são quase sempre devidas à educa­ção e ao temperamento, pnincipalmente quando uma resistência firme e tenaz não cede em impor­tância a uma reação violenta e apaixonada.

Seria deplorável que isso fosse de outromodo, pois seria o mesmo que dizer que o sentimento do direito se extingue nos indivíduos e nos povos em proporção e medida do progresso que fazem no seu desenvolvimento intelectual.

Um olhar lançado sobre a história e sobre o que se passa na vida é suficiente para nos convencer do contrário.

Não é igualmente na antítese da pobreza e da riqueza qne poderemos achar a solução, por quan­to, por mais diferente que seja a medida econômica, conforme a qual o rico e o pobre julgam um mesmo objeto, quando se trata dc um ata­que à propriedade, como já fizemos observar, não tem aplicação alguma, porque não se trata neste caso do preço material desse objeto, mas do valor ideal do direito e, por conseqüência, da ener­gia do sentimento legal relativamente à proprie­dade; não é a quantidade mais ou menos conside­rável da riqneza que decide, mas a força do sentimento legal.

E a melhor prova que se pode considerar é a que o povo inglês nos oferece.

Jamais a sua riqueza alterou o sentimento do direito; pelo contrário, temos muitas vezes sobre o continente ocasião de julgar e nos pensuadir­mos da energia com que este sentimento se ma­nifesta nas mais simples questões de propriedade.

É conhecida por todos essa figura do viajante inglês que, para não ser vítima das trapaças das hospedarias, hoteleiros, cocheiros, etc., opõe uma resistência tal que dir-se-ia que se tratava de de­fender o direito da velha Inglaterra; detém-se na viagem se for mister, chegando a dispender o décuplo do valor do objeto, antes de ceder.

O povo ridiculariza-o sem o compreender... Valeria muito mais porém que o compreendesse!

Naquela pequena quantidade de dinheiro, ele defende a Inglaterra e prova, com este proceder, que não é homem que abandone a sua pátria.

Não é nossa intenção ofender nem causar o menor pesar a alguém, mas a questão é tão im­portante que somos forçados a estabelecer um pa­ralelo.

Suponhamos um austríaco gozando da mes­ma posição social e colocado nas mesmas cir­cunstâncias que um inglês; como procederia ele em igual caso?

Se tivéssemos de responder com a nossa ex­peiência, diríamos — não chegarão a dez por cen­to os que imitam o inglês, porque eles recuam diante dos desgostos oriundos de uma contenda, temem os resultados de uma interpretação má, o que não teme o inglês; em uma palavra, eles pagam.

Mas no dinheiro que o inglês recusa e o aus­tríaco paga, há alguma coisa de característico da Inglatenra e da Áustria: há a história secular do seu respectivo desenvolvimento político e da sua vida social.

Este pensamento oferece-nos uma transição fácil, mas permita-se-nos, antes de terminar esta parte, repetir o princípio que estabelecemos no co­meço:

A defesa do direito é um ato da conserva­ção pessoal e, por conseguinte, um dever daquele que foi lesado para consigo mesmo.


 

CAPÍTULO IV
A luta pelo direito na esfera social

 

Trataremos de provar agora que a defesa do direito é um dever que temos para com a socie­dade. Para fazê-lo, devemos pnimeiramente mos­trar a relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo.

Mas qual será ela?

Segundo o nosso modo de ver, é o contrário do que nos diz a teoria hoje mais aceita em afirmar que o primeiro supõe o segundo.

Um direito concreto não pode originar-se se­não da reunião das condições que o princípio do direito abstrato liga à sua existência.

Eis aqui tudo quanto nos diz a teoria dorni­nante das suas relações; e, como se vê, é apenas um lado da questão.

Tal teoria faz exclusivamente sobresair a dependência do direito concreto com relação ao direito abstrato e não diz absolutamente coisa alguma dessa relação que existe também em sen­tido inverso.

O direito concreto restitui ao direito abstrato a vida e a força que recebe; e como está na na­tureza do direito que se realisa praticamente, um princípio legal que jamais esteve em vigor, ou que perdeu a sua força, não merece tal nome, é uma roda gasta que para coisa alguma serve no mecanismo do direito e que se pode destruir sen em nada alterar a marcha geral.

Esta verdade aplica-se sem restrição a todas as partes do direito, tanto ao direito público, como ao privado e ao criminal.

A legislação romana sancionou explicitamen­te esta doutrina, fazendo da — desuetudo uma causa da revogação das leis; a perda dos direitos concretos pelo não uso prolongado (non-usus) também significa exatamente a mesma coisa.

Enquanto a realização prática do direito público e do penal está assegurada, porque está imposta como um dever aos funcionários públi­cos, a do direito privado apresenta-se aos particulares sob a forma de direito, isto é, por completo ahandonada a sua prática à sua livre iniciativa e à sua própria atividade.

O direito não será letra morta e realisar-se-á no primeiro caso se as autoridades e os funcionarios do Estado cumprirem com o seu dever, no segundo, se os indivíduos fizerem valer os seus di­reitos.

Mas, se por qualquer circunstância, por comodidade, por ignorância ou por medo, estes últimos ficarem longo tempo inativos, o princípio legal perderá por esse fato o seu valor.

As disposições do direito privado podemos, pois, dizer, não existem na realidade e não têm força prática, senão na medida em que se fazem va­ler os direitos concretos; e, se é certo que estes de­vem sua existência à lei, não é menos certo que por outra parte eles lha restituem.

A relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo ou abstrato e concreto assemelha-se à circulação do sangue, que partindo do coração aí de novo volta.

A questão da existência de todos os princípios do direito público repousa sobre a fidelidade dos empregados no cumprimento dos seus deveres; a dos princípios do direito privado sobre a eficácia destes motivos, que levam o lesado a defender o seu direito: — o interesse e o sentimento.

Se estes móveis não são suficientes, se o sen­timento se extingue, se o interesse não é bastante poderoso para sobrepujar o amor da comodida­de, vencer a aversão contra a disputa e a luta, para dominar o recuo de um processo, será o nes­mo que se o princípio legal não vigorasse.

Mas dir-se-á: — que importa?

O lesado não está só em causa?

Ele recolherá os maus frutos.

Relembrêmo-nos do exemplo de um indivíduo que foge do campo da batalha.

Se mil soldados entram em ação, pode per­feitamente suceder que não se note a falta de um só; porém, se cem deles abandonam a sua ban­deira, a posição dos que permanecem fiéis será mais crítica, porque todo o peso da luta cairá sobre eles.

Esta imagem, parece-nos, reproduz bem o es­tado da questão.

Em verdade, trata-se no terreno do direito pri­vado de uma luta do direito contra a injustiça, de um combate comum de toda a Nação na qual todos devem achar-se estreitamente unidos.

Desertar em semelhante caso, é também trair a causa comum, porque é engrossar as forças do inimigo, aumentando a sua ousadia e audácia.

Quando a arbitrariedade, a ilegalidade ousam levantar descomedida e impudentemente a cabe­ça, pode sempre reconhecer-se por este sinal que aqueles que eram charnados a defender a lei não cumpriram o seu dever.

Portanto, cada um está encarregado na sua posição de defender a lei, quando se trata do di­reito privado, porque todo o homem está encar­regado, dentro da sua esfera, de guardar e de fazer executar as disposições legais.

O direito concreto que possui não é mais que uma autorização que recebe do Estado para com­bater pela lei nas ocasiões que lhe interessam e de entrar na liça para resistir à injustiça, é uma auto­risação especial e limitada, ao passo que a do funcionário público é absoluta e geral.

O homem luta, pois, pelo direito inteiro, de­fendendo o seu direito pessoal no estreito espaço em que ele se exerce.

O interesse e as demais conseqüências de sua ação se estendem pelo mesrno fato muito além de sua personalidade.

A vantagern geral que disto resulta não so­mente o interesse ideal de que a autoridade e a majestade da lei sejam protegidos, mas um bene­fício real, perfeitamente prático, compreendido e apreciado por todos como que defendendo e as­segurando a ordem estabelecida nas relações sociais.

Suponhamos que o amo não repreende mais os seus criados pelo mal cumprimento de seus deveres, que a credor não pretende molestar seus devedores, que o público não tem nas compras e vendas uma minuciosa vigilância dos pesos e medidas, — por ventura só a autoridade da lei será danificada?

Seria isto o mesmo que sacrificar em uma certa direção a ordem da vida civil, sendo difícil cal­cular quais seriam as funestas conseqüências destes deploráveis fatos. O crédito, por exemplo, seria lesado de um modo muito sensível...

Todos faríamos o possível por não entreter negócios com aqueles que nos obrigassem a discutir e a lutar quando o direito é evidente; colocaría­mos, sem dúvida, os nossos capitais em outras praças e importaríamos as mercadorias de tais lugares.

Quando um tal estado de coisas existe, a sorte daqueles que têm a coragem de fazer observar a lei é um verdadefro martírio; o seu sentimento firme e enérgico do direito faz justamente a sua desgraça.

Abandonados por todos os que deveriam ser seus naturais aliados, permanecem completamente sós na presença da arbitrariedade que a apatia e a pusilanimidade dos demais convertem na maior audácia e ousadia; e se conseguem enfim com­prar, a preço de grandes sacrificios, a satisfação de permanecer fiéis quanto ao seu modo de agir e de pensar, não recolhem mais que zombaria e ridículo.

Aqueles que transgridem a lei não são os que principalmente assumem a responsabilidade em tais casos, mas sim os que não têm coragem de defendê-la.

Não acusamos a injustiça de suplantar o di­reito, mas este por que se deixa suplantar, porque se chegássemos a classificar, segundo a importância, estas duas máximas: — “não cometas uma injustiça” — e “não sofras nenhuma” — se deveria dar como primeira regra — “não sofras injustiça alguma” — e, como segunda — “não cometas nenhuma.”

Se considerarmos o homem tal qual ele é, não há dúvida de que a certeza de encontrar uma resistência firme e resoluta, seria melhor meio para fazer que não cometesse uma injustiça, do que uma simples proibição, cuja força prática não é, em realidade, mais que um preceito da lei moral.

Dir-se-á agora que vamos demasiadamente longe, pretendendo que a defesa de um direito concreto não é somente um dever do indivíduo que é atacado para consigo mesrno, mas também um dever para com a sociedade?

Se o que temos dito é verdade, se está estabe­lecido que defendendo o indivíduo o seu direito de­fende a lei, e na lei a ordem estabelecida como in­dispensável para o bem público, — quem ousará afirmar que ele não cumpre ao mesmo tempo um dever para com a sociedade?

Se o Estado tem o direito de chama-lo para lutar contra o estrangeiro, e se pode obriga-lo a sacrificar-se e a dar sua vida pela salvação pública, — porque não terá o mesmo direito quando é ata­cado pelo inimigo interno que não ameaça menos a sua existência que os outros?

Se a covarde fuga é, no primeiro caso, uma traição à causa comum, — poder-se-á dizer que não se dá o mesrno no segundo?

Não, não basta para que o direito e a justiça floresçam em um país, que o juiz esteja disposto sempre a cingir sua toga, e que a polícia esteja disposta a fazer funcionar os seus agentes; é mister ainda que cada um contribua por sua parte para essa grande obra, porque todo o homem tem o dever de esmagar, quando chega a ocasião, essa hidra que se chama a arbitrariedade e a ilegalidade.

Inútil é fazer notar quanto enobrece, sob este ponto de vista, a obrigação em que cada um se acha de fazer valer o seu dever.

A teoria atual não nos fala mais que de uma atitude exclusivamente passiva em relação à lei; e a nossa doutrina apresenta, às vezes, um estado de reciprocidade no qual o combatente retribui à lei o serviço que dela recebe, reconhecendo-lhe assim a missão de cooperar para uma grande obra nacional.

Demais, pouco importa que a questão apareça sob este ou outro aspecto, porque o que existe de grande e elevado na lei moral é precisamente que ela não conta só com os serviços daqueles que a compreendem, mas que dispõe de bastantes meios de todo o gênero para fazer obrigar aqueles que não respeitam os seus preceitos.

Assim é que, para obrigar a homem ao matrimônio, faz agir em uns o mais nobre dos senti­mentos humanos, em outros a paixão grosseira dos sentidos põe em rnovimento o amor, em um terceiro os gozos e, por fim, a avareza em outros; mas qualquer que seja o meio, todos procuram a união conjugal.

Isto também sucede na luta pelo direito, seja o interesse ou a dor que causa a lesão legal, ou a idéia do direito, quem impele os homens a en­trar em luta, todos concorrem para trabalhar na obra comum: — a proteção do direito contra a arbitrariedade. Atingimos a ponto ideal da nossa luta pelo direito.

Partindo do baixo motivo do interesse, elevâmo-nos ao ponto de vista da defesa moral da pes­soa, para chegar por último a esse comum tra­balho de onde deve sair a realização total da idéia do direito.

Que alta importância assume a luta do indi­víduo pelo seu direito, quando ele diz:— o di­reito inteiro, que foi lesado e negado em meu direito pessoal, é que eu vou defender e resta­belecer!

Quanto está longe desta altura ideal onde a eleva tal pensamento, essa baixa região do puro individualismo, dos interesses pessoais, dos desí­gnios egoístas e das paixões que um homem pouco cultivado torna como verdadeiro domínio do di­reito!

Dir-se-á, talvez, que é uma idéia tão elevada que só a filosofia do direito pode penetra-la; não ela é de aplicação prática, porque ninguém intenta uma ação somente pela idéia do direito.

Bastar-nos-ia, para refutar essa objeção, re­cordar a instituição das ações populares30 no Di­reito romano que são uma prova evidente do contrário; mas não fariamos justiça ao nosso povo, nem a nós mesmos, se negássemos este sentimento ideal.

Todo homem que se indigna e experimenta profunda cólera, vendo o direito oprimido pela arbitrariedade, possui-o sem dúvida alguma.

Por mais que um motivo egoísta se misture com o sentimento penoso, que provoca uma lesão pessoal, esta dor tem, ao contrário, sua causa única no poder da idéia moral sobre o coração humano.

Esta energia da natureza moral, que protesta contra o atentado dirigido ao direito, é o testemunho mais belo e o mais elevado que se pode dar ao sentimento legal; é um fenômeno moral tão interessante e instintivo para a observação do filósofo como para a imaginação do poeta.

Não há, que saibamos, afecção alguma que possa operar tão subitamente no homem uma trans­formação tão radical, porque está provado que tem o poder de elevar as naturezas, mesmo as mais dóceis e mais conciliáveis, a um estado de paixão que lhes é completamente estranho, o que mostra que elas têm sido feridas na parte mais nobre do seu ser e que se lhes tem tocado na fibra mais de­licada do seu coração.

É semelhante ao fenômeno da tempestade no mundo moral. Grande e majestoso em suas formas pela rapidez, pelo imprevisto e potência da explosão, pelo poder desta força moral que é se­melhante ao desencadeamento de todos as elemen­tos furiosos que derrubam tudo que se acha diante, para logo vir a calma benfeitora e produzir no indivíduo, como em todos, uma purificação moral do ar que a alma respira.

Mas se a força limitada do indivíduo vai que­brar-se contra as instituições que dispensam à ar­bitrariedade uma proteção que negam ao direito, é evidente que a tempestade descarregará suas iras sabre o autor e, então de duas uma : — ou o sentimento legal irritado cometerá um desses crimes de que falaremos mais adiante, ou nos oferecerá o espetáculo não menos trágico de um homem que trazendo constantemente em seu cora­ção o aguilhão da injustiça, contra a qual é impo­tente, chegará a perder, pouco a pouco, o senti­mento da vida moral e toda crença no direito.

Não desconhecemos que esse sentimento ideal do direito que possui o homem, para quem um ataque, on uma lesão da idéia legal é mais sensível que um atentado contra sua pessoa, e para o que se se sacrifica, sem interesse algum, à defeaa do direito oprimido, como se se tratasse do seu pró­prio, — é um privilégio de naturezas escolhidas.

O homem positivo, realista, despojado de toda a aspiração ideal, que não vê na injustiça senão dano feito a seu próprio interesse, compreende, en­tretanto, perfeitamente essa relação que estabele­ci entre o direito concreto e a lei, e que pode as­sim resumir-se: — o meu direito é o direito intei­ro; defendendo-me, defendo todo o direito que foi lesado ao ser lesado a meu direito.

Pode isto parecer um paradoxo, e entretanto é muito justo considerar este modo oposto às crenças dos legistas.

A lei, segundo a idéia que dela temos, não en­tra absolutamente em nada na luta pelo direito, e não se trata nesta luta da lei abstrata, mas da sua forma material, de um daguerreotipo qual­quer, na qual ela não tem feito mais que fixar-se, sem que seja possível feri-la nela própria imediatamente.

Não desconhecemos a necessidade técnica deste modo de ver, mas ela não deve impedir-nos de reconhecer a justeza da apinião oposta, que, colocando a lei e o direito em uma mesma linha, vê como conseqüência de uma lesão do segundo um ataque feito à primeira.

Esta opinião, talvez, para algum espírito des­prevenido seja muito mais exata que nossa teoria jurídica.

A melhor prova do que afirmamos é a própria expressão de que se serve o alemão e que se em­pregava no latim.

Entre nós — o autor chama os outros a juízo, e os romanos chamavam à acusação — “legis actio”.

É, pois, nos dois casos a lei que está em ques­tão, é ela que se vai discutir em um caso particu­lar, e este ponto de vista é da mais alta impor­tância, especialmente para a inteligência do pro­cesso no direito antigo dos romanos.

A luta pelo direito é, pois, ao mesrno tempo uma luta pela lei; não se trata somente de um interesse pessoal, de um fato isolado em que ela toma corpo de daguerreotipo, como já disse­mos, no qual se fixa na passagem de um de seus luminosos raios, que se pode dividir e quebrar sem a atingir a ela mesma; mas trata-se da lei que se tem desprezado e calcado e que deve ser defendida sob pena de torná-la uma frase vazia de sentido.

O direito pessoal não pode ser sacrificado, sem que a lei o seja também.

Este modo de encarar, que chamaremos, em duas palavras — a solidariedade da lei e o direito concreto, é, como já acima dissemos, a expressão real da sua relação no mais íntimo da sua natureza e que não está tão profundamente oculta, que até o egoísta, incapaz de toda idéia superior, talvez C’ campreenda como em nenhum outro caso, porque o seu interesse é associar o Estado à luta.

É por este meio que ele sem saber, nem querer, contra o seu direito e contra si msmo, se levanta até à altura ideal de onde se sente representando a lei.

A verdade é sempre verdade, ainda que, con­tra ela, o indivíduo não a reconheça e não a de­fenda mais que no estreito ponto de vista do seu interesse pessoal.

É o espírito de vingança e o ódio que impelem Shylock a pedir ao tribunal a autorização de cortar a sua libra de came nas entranhas de An­tônio; mas as palavras que o poeta põe em seus lábios são tão verdadeiras como em quaisquer ou­tros. É a linguagem que o sentimento do direito lesado falará sempre.

É a potência dessa persuasão inquebrantável de que o direito deve ser sempre direito.

É o entusiasmo apaixonado de um homem que tem consciência de que não luta só por sua pessoa, mas também por uma idéia.

A libra de carne que eu reclamo, — lhe faz dizer Shakespeare:

Eu a paguei caro, ela é minha e eu a quero.

Se vós ma recusais, onde vossa justiça?

O direito de Veneza ficará sem força alguma.

...Essa é a lei que eu represento.

...Eu me apoio sobre meu título.

O poeta, nestas quatro palavras: — “eu repre­sento a lei” — determinou a verdadeira relação do direito sob o ponto de vista objetivo e subjetivo, e a significação da luta pela sua defesa me­lhor do que poderia fazê-lo qualquer filósofo.

Estas palavras convertem por completo a pre­tensão de Shylock em uma questão, cujo objeto é o próprio direito de Veneza.

Que atitude verdadeiramente corajosa não é a deste homem em sua fraqueza quando pronuncia estas palavras!

Não é o judeu que reclama a sua libra de car­ne, mas a própria lei veneziana que assoma à barra do tribunal, porque o seu direito e o direito de Ve­neza são apenas um; o primeiro não pode perecer sem perecer o segundo.

Se finalmente sucumbe sob a peso da sen­tença do juiz, que anula o seu direito por uma indecorosa zombaria,31 se o vemos esmagado pela dor mais cruel, coberto pelo ridículo e com­pletamente abatido, afastar-se vacilando, podemos então afirmar nesse sentimento que o direito de Veneza está humilhado em sua pessoa, que não é o judeu Shylock que se afasta com dificuldade, mas um homern que representa o des­graçado judeu da Idade Média, esse pária da so­ciedade que em vão grita:

Justiça!

Esta opressão do direito de que ele é vítima não é, contudo, o lado mais trágico nem mais comovedor da sua sorte; o que há de mais horrível é que esse homem, que esse infeliz judeu da Idade Média crê no direito, podendo-se dizer mesmo que como um cristão.

A sua fé é tão inquebrantável e firme como uma rocha; nada a faz abalar; o próprio juiz a alimenta até o momento em que se resolve a ca­tástrofe e o fulmina como um raio.

Então contempla a sua desgraça e vê que só é um mísero judeu da Idade Média a quem se nega a justiça, iludindo-o.

Este tipo de Shylock faz-nos lembrar outro que não é menos histórico, nem menos interessante e poético: — o de Miguel Kohlhaas que, na no­vela com este nome, Henrique Kleist nos repre­senta com tanto acerto.

Shylock retira-se completamente despedaçado pela dor; as suas forças esgotam-se e não luta mais; sofre sem resistência os resultados do juízo.

Com Miguel Kohlhaas a coisa é, porém, outra.

Quando ele esgotou todos os meios para fa­zer valer o seu direito tão indignamente despreza­do, quando um ato injusto exercido pelo gabinete do princípe lhe fechou todo o caminho legal, e vê que até a autonidade no seu mais alto representan­te, o soberano, faz causa comum com a injustiça, a dor inexprimível que causa senelhante ultraje encoloriza-o e insurreiciona-o.

— “Mais vale ser cão do que ser homem e ver-­se calcar aos pés” — vocifera ele, e imediatamente toma uma suprema resolução.

— “Aquele que me recusa a proteção das leis, — acrescenta ele — degrada-me entre os sel­vagens do deserto e põe em minhas mãos a clava com que devo defender-me.”

Arranca a essa justiça venal a espada deson­rada que ela traz e maneja-a de tal modo que o espanto e o terror se espalham pelo país; a sua ação é tal que este estado apodrecido é abalado até os seus fundamentos e o príncipe treme sobre seu trono.

Não é o sentimento selvagem da vingança que o anima, ele não se faz salteador e assassino como Carlos Moon que queria — “fazer resoar em toda a natureza o grito da revolução, para levar ao combate contra a raça das hienas, o ar, a terra, o mar” — e que declara a guerra a toda a humani­dade porque foi violado no seu direito; não, ele age ao contrário sob a influência desta idéia moral: — “que tem para com o mundo o dever de consagrar todas suas forças para conseguir repa­ração e pôr os seus concidadãos ao abrigo de seme­lhantes injustiças.”

Esta é a idéia a que ele tudo sacrifica, a comodidade de sua família, a honra do seu nome, todos os seus haveres, o seu sangue e a sua vida; não destrói por destruir; tem um fim: — o de vin­gar-se do culpado e de todos que fazem causa comum com ele.

Quando vê surgir a esperança de poder obter justiça, voluntariamente depõe as suas armas; porém, como fora escolhido para nos mostrar até que ponto a ignomínia, a ilegalidade e a baixeza de caráter ousam descer nessa época, vê que falta a promessa que se lhe havia dado, que se viola o salvo conduto que lhe fora entregue e termina os seus dias na praça onde eram executados os criminosos.

E, entretanto, antes de morrer faz-se-lhe jus­tiça e este pensamento de não ter combatido em vão, de ter mantido a sua dignidade humana, sus­tentando o justo, eleva o seu coração acima dos horrores da morte, e assirm, reconciliado comsigo mesmo, com o mundo e com Deus, abandona-se resolutamente e de boa vontade ao carrasco.

Quantas reflexões não nos deve sugerir este drama legal!

Nele temos um homem honrado, escrupulosamente amigo do direito, cheio de amor por sua família e de sentimento religioso que, de um modo impetuoso, se converte em um Átila, espalhando o luto e a desolação em todos os povos por onde passa. Mas, de onde vern essa transformação?

Nasce precisamente dessas qualidades em que se origina, por assim dizer, vem dessa grandeza moral que o torna superior a todos os seus inimigos; ela vem desse alto respeito pelo direito, da crença em sua santidade, da força de ação que possui o seu sentimento moral que é in­teiramente justo e são.

Na sorte trágica deste homem, o que ha de pro­fundamente comovedor é que as qualidades que constituem e distinguem a nobreza da sua natu­reza, isto é, este sentimento ardente e ideal do di­reito, esse sacríficio heróico em defesa de uma idéia, em contato com o mundo miserável de en­tão, onde a arrogância dos poderosos apenas era igualada pela venalidade e covardia dos juízes, concorrem precisamente à perda dele.

Os crimes que cometeu recaem com um duplo ou tríplice peso sobre o príncipe, seus funcionários e juízes, que o impeliram da via legal para a da ilegalidade.

Qualquer que seja a injustiça que possamos sofrer, por mais violenta que seja, não há para o homem alguma que possa ser comparada à que pratica a autoridade estabelecida por Deus, quan­do ela viola a lei.

O assassinato judiciário, como o chama per­feitamente a nossa lingua alemã, é o verdadeiro pecado mortal do direito.

Aquele que, estando encarregado da adminis­tração da justiça, se faz assassino, é como o médico que envenena o doente, como o tutor que faz pe­recer seu pupilo.

O juiz que se deixava corromper era, nos pri­meiros tempos de Rorna, punido com a pena de morte.

Para a autoridade judiciária que tem violado o direito não há acusador mais terrível que a fi­gura sombria e continuamente ameaçadora do ho­mem, que a lesão do sentimento legal tornou crimi­noso; é a sua própria sombra sob traços bem sanguinolentos.

Aquele que foi vítima de uma injustiça, cor­rompida e parcial, acha-se violentamente lançado fora da via legal, faz-se vingador e executor do seu direito, e não é raro que, arremessado pelo de­clive, fora de seu fim direto, se torne inimigo da sociedade, salteador e homicida.

Se a sua natureza for nobre e moralizada, como a de Miguel Kohlhaas, poderá sobrepîr-se a essas tendências, mas chegará a ser criminoso e sofrerá por isso a pena correspondente à sua falta, martir do seu sentimento do direito.

Diz-se que o sangue dos mártires não corre em vão, e isto pode ser aqui uma grande verdade.

É provável que o seu espectro suplicante subsista largo tempo, porque uma opressão do direito, semelhante à de que fora vítima, per­manece sobejamente impressa para ser olvidada.

Evocando esta sombra, queremos mostrar, por um exernplo frisante, até onde se pode chegar, se o sentimento do direito for enérgico e ideal, quan­do a imperfeição das instituições legais negam uma satisfação legítima.

A luta pela lei converte-se em uma luta con­tra ela.

O sentimento do direito abandonado pelo poder que devia protegê-lo, livre e senhor de si mesmo, procura os meios para obter a satisfação que a imprudência, a má vontade e a impotência recusam.

Não é somente nas naturezas isoladas, especialmente cheias de vida e inclinadas à violência, que o sentimento nacional do direito, se me pos­so assim exprimir, se eleva e protesta contra semelhantes instituições legais.

Estas acusações e estes protestos reproduzem­-se, por vezes, pelo povo inteiro em certos fatos que, segundo o seu fim ou o modo como o próprio povo ou uma classe determinada os consideram ou aplicam, podem ser encarados como simplesmen­te acessórios, com que a Nação concorre para as instituições do Estado.

Tais eram na Idade Média, entre outros, o cartel de desafio, que prova a impotência ou a par­cialidade dos tribunais correcionais de então e a fraqueza do poder público.

Em nossos dias a existência do duelo ates­ta-nos, sob uma forma sensível, que as penas que o Estado aplica a um ataque à honra, não satisfa­zem o sentimento delicado de certas classes da so­ciedade.

Isto nos dá a entender ainda a vingança do corso, e essa justiça popular aplicada na América do Norte que se chama a lei de Lynch.

Tudo anuncia muito claramente que as insti­tuições legais não estão em harmonia com o sen­timento legal do povo ou de uma classe e, em todos os casos, obriga o Estado a reconhecê-las como necessárias ou ao menos a suportá-las.

Quando a lei as tem proscrito, sem poder conseguir faze-las desaparecer, podem dar ori­gem a um grave conflito para o indivíduo.

O corso que prefere antes obedecer a lei que recorrer a vingança, é desprezado pelos seus; aquele que, ao contrário, acedendo à influência nacio­nal a emprega, está sujeito a cair sob o braco da justiça.

Assim acontece com o nosso duelo — aquel­e que o recusa, quando o dever o impõe, é desprezado; aquele que o aceita recebe a punição, e, neste caso, a posição é igualmente penosa para o indivíduo como para o juiz.

Procurar-se-ia debalde tratar de descobrir fatos semelhantes na história primitiva de Roma, porque as instituições do Estado estavam então em harmonia completa com o sentimento nacional.

Assim que apareceu o cristianisrno, foi que os cristãos se afastaram dos tribunais seculares para levar suas causas diante do bispo, como os judeus na Idade Média que fugiam dos tribunais católicos, apelando para a decisão de seus Rab­inos.

Nada mais temos a dizer sobre a luta do indi­víduo pelo seu direito.

Estudâmo-lo na gradação dos seus motivos, considerando-o primeiramente como um puro cálculo de interesse, elevando-nos logo desse grau a esta consideração ideal: — a manutenção da personalidade, a defesa das condições da existência moral, para atingir enfim um ponto de vista que é a sua maior altura e de onde uma falta pode precipitar o homem que foi lesado no abis­mo da ilegalidade: — tal é a realização da idéia do direito.

O interesse desta luta, longe de reduzir-se ao direito privado ou à vida pnivada, estende-se, ao contrário, muito mais além.

Uma Nação não é, em suma, mais que o con­junto de indivíduos que a compõem; ela sente, pensa e age, como seus membros isolados sen­tem, pensam e agem.

Se o sentimento do direito no indivíduo está embotado, é covarde e apático quando se trata do direito privado; se os obstáculos que opõem as leis injustas ou as más instituições não lhe permitem mover-se e desenvolver-se livremente em toda a sua pujanca, se ele é perseguido quando deveria ser protegido e encorajado; se em sua virtude se acostuma a sofrer a injustiça, a considera-la como um estado de coisas que não se pode mudar; — quem poderá crer que um homem, cujo sen­timento legal está tão enfraquecido, tão apático e paralizado, possa despertar tão subitamente, sen­tir tão violentamente e agir com tanta energia quando se pratica uma lesão legal que não atinge o indivíduo, mas todo o povo, quando se trata de um atentado à sua liberdade política, de des­truir ou alterar a sua constituição ou de um ataque estrangeiro?

Como é possível, pois, que aquele que não está acostumado a defender corajosamente o seu direi­to pessoal, se sinta impelido a sacrificar volun­tariamente os seus haveres e a sua vida pela sal­vação pública?

Como esperar do homem que, renunciando ao seu direito por inclinação aos gozos, não viu o dano moral feito em sua pessoa e em sua honra, daquele que não conheceu até então no direito ou­tra medida que a de seu interesse material, tenha outro modo de julgar quando se trata do direito e da honra nacional?

De onde surgiria expontaneamente esse senti­mento legal até então desmentido?

Não, isto não pode ter lugar!

Aqueles que defendem o direito privado são os únicos que podem lutar pelo direito público e pelo direito das gentes; eles empregarão nessa luta as qualidades já reveladas na outra e elas decidirão a questão.

Pode-se, pois, afirmar que no direito público e no das gentes recolher-se-ão os frutos, cuja semente foi semeada e cultivada pela Nação no direito privado.

Nas profundezas desse direito, nos menores detalhes da vida é onde se deve acumular lenta­mente a força que entesoura esse capital mo­ral que o Estado necessita para poder atingir o seu fim.

A verdadeira escola da educação política não é para o povo o direito público, mas o direito pri­vado; e, se quirermos saber como uma Nação de­fenderá em um dado caso os seus direitos políticos e a sua posição internacional, basta saber-se como o indivíduo defende o direito pessoal na vida pri­vada.

Não podemos esquecer-nos do que dissemos do inglês, sempre pronto a lutar; no dinheiro que defende este homern com tanta tenacidade, está a história do desenvolvimento político da In­glaterra.

Pessoa alguma ousará arrancar a um povo, do qual cada membro tenha por costume defender va­lentemente o seu direito, até nos menores detalhes, o bem que lhe é mais precioso.

Não foi também por acaso que o povo da an­tiguidade, que teve no interior o mais alto desen­volyimento político, teve também o maior de­senvolvimento de forças no exterior, por quanto o povo romano possuía também, ao mesmo tempo, o mais aperfeiçoado direito privado.

O direito é o ideal (por mais paradoxal que isto possa parecer) não o ideal fantástico, mas o do caráter, isto é — o do homem que se reco­nhece como sendo o seu próprio fim, e que liga pouca importância a tudo que existe, quando é atacado nesse domínio íntimo e sagrado.

Demais, que importa donde vem o ataque feito contra seu direito?

Que venha de um indivíduo, do governo ou de um povo estrangeiro, é-lhe indiferente.

Não é, em verdade, a pessoa do agressor que decidirá da resistência que deve haver, mas a ener­gia do seu sentimento legal e a força moral que emprega para a sua conservação pessoal.

Será, pois, uma verdade a afirmação de que a força moral de um povo determina o grau da sua posição política quer no interior como no exterior.

O Império Chinês com o seu bambú que serve de verga para os adultos e as suas centenas de mi­lhöes de habitantes, jamais alcançará aos olhos das Nações estrangeiras o posto honroso que ocupa a pequena república da Suíça no concerto dos povos.

O temperamento dos suíços não é somente ar­tístico, de poesia e ideal; é positivo e prático como o dos romanos, mas no sentido em que tomamos esta palavra; falando-se do seu direito, pode aplicar-se o que dissemos dos ingleses.

O homem que tem o são sentimento do direito, minará a base sobre a qual este sentimento se apoia, se apenas se contenta e satisfaz com a sua defesa, sem contribuir para a manutenção do direi­to e da ordem; porquanto ele sabe que, comba­tendo pelo seu direito, defende o direito na sua to­talidade; sabe também que, defendendo o direito em geral, luta pelo seu direito pessoal. Quando este modo de ver, quando este sentimento pela le­galidade estrita reina em um lugar, em vão se tentaria descobrir esses fenômenos aflitivos que aparecem em outros pontos tantas vezes.

É assim que o povo não tomará o partido do criminoso ou do transgressor da lei a quem a au­toridade quer perseguir, em outros termos, não verá nos poderes públicos o inimigo nato dos povos.

Cada qual não ignora que a causa do direito é a sua própria causa e só o criminoso simpa­tisará com o crirninoso; o homem honrado, ao contrário, de boa vontade ajudará a polícia e as autoridades em suias pesquisas.

Tiraremos, entretanto, a conseqüência de tudo que temos dito. Esta resume-se em uma frase bem simples: — não existe para o Estado, que quer ser considerado forte e inquebrantável no ex­terior, bem mais digno de conservação e de estima que o sentimento do direito na Nação.

É este um dos deveres mais elevados e mais importantes da pedagogia política.

O bom estado e a energia do sentimento legal do indivíduo constituem a fonte mais fecunda do poder e a garantia mais segura da existência de um país, tanto em sua vida exterior como na interior.

O sentimento do direito é como a raiz da árvore; se a raiz se danifica, se se alimenta em ter­reno árido ou se se estende por entre rochas, a árvore será raquítica, os frutos ilusórios, bastando uma pequena borrasca para faze-la rolar pelo chão; mas o que se vê é apenas a copa e o tronco, enquanto que a raiz se oculta na terra dos olhares do observador frívolo.

E aí, onde muitos políticos não acham digno descer, é que age a influência destruidora das leis viciadas e injustas e as más instituições do direito exercem influência sobre a força moral do povo.

Aqueles que se contentam com observar as coisas superficialmente e que não querern ver se­não a beleza da copa, não podem ter a menor idéia do veneno que sobe desde a raiz à ramagem superior.

É por isso que o despotismo sabe bem onde deve descarregar o seu mortífero machado para derrubar a árvore; antes de cortar a copa procura destruir a raiz, dirigindo assim certeiros gol­pes contra o direito privado, desconhecendo e atropelando o direito do indivíduo, — é assim que tem começado todo o despotismo.

E, quando se terminar esta obra, a árvore cai mirrada e sem seiva.

Eis aí porqne se deve tratar sempre, nessa es­fera, de opor grande resistência à injustiça.

Os romanos andavam sabiamente quando, por um atentado ao pudor e à honra de uma mulher, acabaram de uma vez com a monarquia e mais tarde com o decenvirato.

Destruir no camponês a liberdade pessoal, esmagando-o com impostos e vexames, colocar o habitante das cidades sob a tutela da polícia, não lhe perrnitindo fazer uma viagem sem o obrigar a apresentar a cada passo o passaporte, encadear o pensamento do escritor por meio de leis injus­tas, repartir os impostos arbitrariamente e obede­cendo ao favoritismo e à influência, são princí­pios tais que um Machiavel não poderia inventar melhores meios para matar num povo todo o sen­timento civil, toda a força moral e assegurar ao despotismo uma tranqüila conquista.

Cumpre considerar que a porta por onde en­tram o despotismo e a arbitrariedade serve também para favorecer as irrupções do inirnigo es­trangeiro; e, em último caso, talvez demasiada­mente tarde, todos os sábios reconhecerão que o meio mais vigoroso para proteger a nação contra a invasão estrangeira é a força moral unida ao sentimento do direito despertado no povo.

Na época feudal, em que o camponês e o habi­thnte das cidades eram submetidos à arbitrarie­dade e ao absolutismo dos senhores, foi quando o império alemão perdeu a Alsácia e Lorena; -como poderiam estas províncias experimentar um sentimento pelo Império se o não tinham para si mesmas?

Somos unicamente nós os culpados; se nos aproveitamos tardiarnente das lições da história, nada tem ela que ver com que não a tivessemos em tempo compreendido, porque ela nô-las dá sem­pre de modo que possamos aproveitá-las.

A força de um povo corresponde à do seu sentimento do direito; é, pois, velar pela seguranca e força do Estado o cultivar o sentimento legal da Nação não só no que se refere à escola e ensi­no, como também no que toca à aplicação prá­tica da justiça em todas as situações e momentos da vida.

Não é suficiente, portanto, ocupar-se do me­canismo exterior do direito, porque pode estar de tal modo organizado e dirigido que impere a mais perfeita ordem e que o princípio que consi­deramos como o mais elevado deva ser comple­tamente desprezado.

A servidão, o direito de proteção que pagava o judeu e tantos outros princípios e instituições de épocas passadas, eram, em verdade, às vezes, conformes à lei e à ordem.

Não é menos verdade, entretanto, que essas instituições estavam em profunda contradição com as exigências de um sentimento legal, digno e ele­vado e que prejudicavam talvez mesmo mais o Estado que o camponês, o habitante das cidades, o judeu sobre que recaía o peso da injustiça.

Determinando de uma maneira clara e precisa o direito positivo, desviando de todas as esferas do direito, não só do civil como das leis de polícia e da legislação administrativa e financeira, tudo o que pode implicar com o sentimento do direito são e digno do homem; proclamando a independência dos tribunais e reformando o processo, — chegar-­se-á seguramente a aumentar a força do Estado, muito melhor que votando o mais elevado dos or­çamentos militares.

Toda a disposição arbitrária ou injusta, emanada do poder público, é um atentado contra o sen­timento legal da Nação e, por conseqüência, contra a sua própria força.

É um erro contra a idéia do direito qne recai sobre o Estado, que há de pagá-lo com excesso e usura, podendo até por diversas circunstâncias chegar a custar-lhe a perda de uma província.

E, tanto assim é, que deve estar obrigado o Es­tado a não colocar-se, nem por essas razões de conveniências, ao abrigo de tais erros; porquanto cremos que, ao contrário, o mais sagrado dever do Estado é cuidar e trabalhar para a realização desta idéia por ela mesma.

Entretanto pode haver aí uma ilusão de dou­trinário e não censuraremos o homem de Estado prático que responda a semelhante questão, enco­lhendo os ombros.

Por outro lado, é por isso também que temos suscitado a face prática da questão, porque a idéia do direito e a do interesse do Estado se dão aqui as mãos.

Não há sentimento legal, por firme e são que seja, que possa resistir à prolongada influência de um mau direito, porque se embota e se extingue devido à essência do direito, que, como já disse­mos por múltiplas vezes, consiste na ação.

A liberdade de ação é para o sentimento legal o que o ar é para a chama; se a diminuís ou pa­ralisaís, acabareis com tal sentimento.


 

CAPÍTULO V
O direito alemão e a luta pelo direito

 

Poderíamos dar por concluída aqui a nossa tarefa, mas permita-se-nos, entretanto, tratar de uma questão que está intimamente relacionada com a matéria de que temos falado; e esta é a de saber em que proporção o nosso direito atual, ou melhor, o nosso atual direito romano, tal qual está introduzido na Alemanha e do qual ousamos unicamente ocupar-nos, corresponde às condições que temos até aqui desenvolvido.

Não vacilamos em afirmar categoricamente que não corresponde de modo algum e que está muito longe das pretenções legítimas de um ho­mem em que o sentimento legal está perfeitamente são.

Não somente porque, em muitos casos que a prática oferece, não tenha encontrado solução, mas porque reina em seu conjuncto um modo de ver completamente contrário a esse idealismo, que acima representamos, como constituindo a nature­za e o bom estado do sentimento legal.

O nosso direito civil não é o que menos repro­duz essa consideração ideal que nos mostra em uma lesão não só um ataque contra a proprieda­de, mas também contra a própria pessoa.

Não tem para todas as violações do direito, salvo o ataque à honra, outra medida que a do valor material, pelo que não é mais que a expres­são de um grosseiro e puro materialismo.

Mas dir-se-á: — o que deve garantir o direito do que for violado em sua propriedade, senão o objeto em litígio ou o seu valor?32

Admitindo-se a justiça desta objeção, impe­rioso se tornava chegar à conclusão de que não poderia ou não devia ser castigado o ladrão que tivesse restituído o objeto roubado.

Mas, replicar-se-á ainda, o ladrão não ataca somente a pessoa lesada, mas também as leis do Estado, a ordem legal e a lei moral.

Queremos que se nos diga se não acontece o mesmo com o devedor que nega de má fé o em­préstimo que se lhe fez, o mandatário que abusa indignamente valendo-se da confiança em si de­positada.

É reparar-se a lesão que se fez ao nosso sentimento legal, o não conceder-nos, depois de longo pleito, senão o que desde o princípio nos pertencia?

Mas, afora esse desejo tão motivado de se ob­tém satisfação, — não é irritante o desequilíbrio na­tural qne existe entre as partes?

O perigo que a ameaça de perder a demanda consiste para um em perder o bem que era seu e para o outro na entrega do objeto que injusta­mente conservava; no caso contrário, um teria a vantagem de nada haver perdido, e o outro de se haver enriquecido à custa do seu adversário.

Não é isto provocar a maior das falsidades e conceder um prêmio à deslealdade?

Em verdade, não fazemos senão caracterizar o nosso direito, e mais além teremos ocasão de mencionar fatos em nosso apoio; porém crêmos que facilitará a prova, o considerar desde já o ponto de vista sob que se encarava esta questão no direito romano.

A este respeito distinguimos três graus no seu desenvolvimento.

O sentimento do direito é no primeiro periodo de uma violência desmesurada, e se posso assim exprimir-me, direi que se não conseguiu dominar: — é o antigo direito; no segundo, reina ostentan­do uma grande força de moderação: — é o direito intermediário; no terceiro enfraquece-se e estiola-­se: — é o fim do império, e particularmente — o direito de Justiniano.

Em poucas palavras resumiremos o resultado das investigações que fizemos e publicamos em outra obra, sob a forma como esta questão apare­ce, no primeiro grau do seu desenvolvimento.

A irritabilidade do sentimento do direito nesta época era tal, que toda a lesão, todo o ataque ao direito pessoal se considerava como uma injustiça subjetiva, sem se tomar em consideração a ino­cência ou o grito de culpabilidade do agressor.

Assim o querelante exigia, pelo próprio fato da ofensa, daquele que era formalmente culpado como daquele que somente o era materialmente, — uma satisfação.

Aquele que negava uma dívida provada, evi­dente (nexum) e o que houvesse causado um dano em alguma coisa do seu adversário, paga­va, se perdia, o duplo.

Do mesmo modo o que em ação de reinvindi­cação retirasse os frutos como se fîsse o proprietário, se fosse condenado devia restituir o dobro e por haver perdido o litígio era ainda obrigado a sacrificar a soma caucionada como fiança ou multa (sacramentum).

Não só o querelante como o demandista ven­cido estava sujeito à mesma pena, e isto porque re­clamava coisa que não lhe pertencia.

Se se excedia um pouco na avaliação da quantia que reclamava em juízo, ainda quando fosse de dívida certa, retirava-se e anulava-se a demanda.

Para o direito novo passou alguma coisa des­sas instituições e princípios do antigo, mas tudo o que é próprio do direito intermediário tem um espírito completamente diferente que pode ser assim caraterizado: — é a aplicação e o emprego de uma grande moderação, em todos os casos em que se trata de lesões ao direito privado.

Distingue-se rigorosamente a injustiça objetiva da subjetiva: a primeira supõe apenas a restituição do objeto, a segunda acarreta mais uma punição que consiste ou em multa ou em in­fâmia, sendo esta aplicação proporcional das pe­nas precisamente um dos pensamentos mais puros do direito romano deste período.

Os romanos tinham um sentimento do direito demasiadamente justo para permitir ao depositário que tivesse a perfídia de negar ou de deter injus­tamente o depósito, ao mandatário ou ao tutor que houvesse abusado de sua posição de confiança para servir os seus interesses, ou que abandonasse pro­positalmente o cumprimento de seus deveres, que pudessem salvar a sua responsabilidade restituindo o objeto, segundo a hipótese, ou pagar os danos e prejuízos.

Exigiam ainda que o culpado fôsse punido, primeiramente como satisfação pessoal, e depois como meio de intimidação.

Entre as penas mais em uso estava a infâmia, pena gravíssima, porque acarretava não só a perda dos direitos do cidadão, como também a morte política.

Aplicava-se principalmente quando a lesão re­vestia o caráter de uma deslealdade especial. Também havia a pena pecuniária, da qual se fazia um uso muito mais freqüente.

Havia-se estabelecido um completo arsenal de tais meios de intimidação para aquele que inten­tasse um processo ou uma causa injusta.

Estas penas consistiam a princípio em frações do objeto em litigio, 1/10, 1/5, 1/3, 1/2, elevan­do-se logo até muitas vezes abranger o seu valor, e se perdiam, em certos casos, ao infinito, não sendo possível formar um juízo da obstinação do adver­sário; isto é — o que perdia, devia pagar tudo o que o adversário exigisse, sob juramento, como satisfação suficiente.

Havia em particular duas formas de processo: — “Os interditos proibitórios do pretor e as ações arbitrárias” — que tinham por fim colocar o acusado na necessidade de desistir ou aguardar até a ser reconhecido como culpado de ter violado a lei, com deliberado propósito e, como tal, ser tratado.

Obrigavam-no, quando persistia em sua resistência, ou em seu ataque, a não limitar a sua ação contra a pessoa do acusador, mas também a agir contra a autoridade, daí resultando que não era do direito do demandista que se tratava, mas da própria lei, que, por seus representantes, se achava em questão.

O fim que se propunha, aplicando tais penas, não era outro senão a que se queria alcançar em matéria criminal: — por um lado, o fim pura­mente prático de colocar os interesses da vida pri­vada ao abrigo desses atentados não compreen­didos sob o nome de crimes; por outro lado o fim ideal de fazer solidárias a honra e a autoridade da lei, dando satisfação ao sentimento do direito que tinha sido lesado, não só na pessoa que foi direta­mente atacada, como também nas de todos que dele tivessem conhecimento.

O dinheiro não era, pois, o fim que se tinha em vista, mas um meio para atingi-lo.33

Este modo de encarar a questão, que o direito romano intermediário tinha, é, a nosso ver, mara­vilhoso.

Afastando-se por igual dos dois extrernos, do velho direito que colocava a injustiça objetiva no mesmo plano que a subjetiva, e do nosso direito atual que, avançando em direção contrária, re­baixara esta ao nível daquela, satisfazia por completo as legítimas pretenções que pudesse ter o sentimento do direito mais justo, porque não se con­tentava em separar as duas espécies de injustiças, mas sabia discernir e reproduzir, com minuciosi­dade e inteligência, a forma, a maneira, a gravidade e todos os diversos aspectos da injustiça subjetiva.

Ao chegar ao terceiro período ou grau do desenvolvimento do direito romano, tal qual foi fixado nos Institutos de Justiniano, não podemos deixar de recordar e admirar a influência e impor­tância do direito de sucessão na vida dos povos, como na dos indivíduos.

Qual seria, realmente, o direito nesta época se ela devesse estabelecê-lo por suas próprias forças?

Do mesmo modo que certos herdeiros, que são incapazes de procurar-se o que lhes é estritamente necessário, vivem à custa das riquezas acumuladas pelo testador, assim também uma geração decrépita e débil encontra no capital intelectual acumulado pela idade vigorosa, que a precedera, com que subsistir por largo lapso de tempo.

Não pretendemos dizer que goza tal geração, sem esforco algum, do trabalho das outras, mas fazemos notar que está na natureza das obras, das instituições do passado, influir durante certo tem­po e fazer reinar na vida o espírito que presidira ao seu nascimento; contêm, em uma palavra, certa força latente que o contrato e a familiaridade muda em força ativa.

É neste sentido que o direito privado da Re­pública onde se havia refletido este sentimento enérgico e vigoroso que, para o direito, havia pos­suído o antigo povo de Roma, pode servir ao Império, durante algum tempo, de fonte vivifica­dora; e nesse grande deserto da última época era o único oásis por onde corria, entretanto, um regato de água fresca e cristalina.

Mas o despotismo assemelha-se a essa rajada ardente que não permite a planta alguma desen­volver-se; e o direito privado, não podendo por si só fazer prevalecer e manter um espírito, que por todos era desprezado, também devia ceder, do mesmo modo que todos os demais ramos do di­reito, ao novo espírito do tempo.

E este espírito da nova época ostenta-se com traços verdadeiramente estranhos!

Não se revelam nele os verdadeiros sinais do despotismo, a severidade e a dureza; pelo can­trário, oferece outros caracteres que exprimem a doçura e a humanidade.

Entretanto essa própria doçura é despótica, isto é — o que ela dá a um, tira-o de outro: -é a doçura do arbítrio e do capricho e não a da humanidade, — é a desordem da crueldade.

Não exibiremos aqui as provas sobre as quais poderíamos apoiar esta opinião;34 é suficiente fazer sobresair um traço muito particular e significativo desse caráter e que encerra um opulento manancial histórico: tal é o esforço feito para me­lhorar a posição do devedor à custa do credor.35

Podemos avançar esta opinião como geral.

Simpatizar com o devedor é o sinal mais patente pelo qual se pode reconhecer que uma época está abatida; e ela entretanto chama a essa sim­patia — humanidade.

Em uma idade de pleno vigor, trata-se, antes de tudo, de que seja feita justiça ao credor.

O direito de hipoteca privilegiada que Jus­tiniano concedeu à esposa, vem igualmente dessa humanidade de seu coração, de que ele não podia prescindir e que o enchia às vezes de um assom­bro indescritível sempre que decretava uma nova disposição; mas essa humanidade era semelhante à de S. Chrispim furtando o couro dos ricos para fazer calçado para os pobres.

Voltemos agora ao nosso direito romano atual.

E, após tudo o que temos dito, somos obrigados a formar um juízo sem poder fundá-lo aqui como desejaríamos, mas ao menos apresentaremos o que pensamos acerca da questão. Em poucas palavras resumiremos o nosso pensamento dizendo que en­contramos, no conjunto da história e em toda a aplicação do direito romano moderno, uma notável preponderância, por mais que as circunstâncias a tenham tornado até certo ponto necessária, de erudição pura sobre o sentimento legal do nacional, e sobre a prática e a legislação que contri­buem ordinariamente de um modo exclusivo a formar e a desenvolver o direito.

É semelhante erudição, um direito estrangei­ro, escrito na língua estranha, introduzido pelos sábios, que são os únicos que podem perfeitamente compreende-lo, e exposto sempre à influência contrária dos dois interesses opostos que lutam freqüentemente: o interesse da ciência pura e simplesmente histórica, e o da aplicação prática, junto ao desenvolvimento do direito.

A prática, por outro lado, não tem força suficiente para dominar campletamente o espírito do assunto; ela está, partanto, condenada a uma dependência perpétua, a uma eterna tutela da teoria, dai se originando o fato de vencer o particularismo tanto na legislação como na admi­nistração da justiça, tornando débeis os ensaios que se faziam para se chegar à centralização.

Deveríamos admirar-nos de que semelhante di­reito estivesse em profundo desacordo com o sen­timento da Nação e que o direito não estivesse mais ao alcance do povo nem o povo ao alcance do direito?

Detestamos as instituições e os princípios que os habitantes de Roma explicavam perfeitamente, porque não têm eles entre nós a mesma razão de ser, e jamais haverá no mundo um modo de distri­buir justiça que tenha mais poder do que este, para diminuir no povo toda a confiança no direito e toda a crença em sua existência.

Com efeito, que deve pensar o homem do povo cujo juízo é simples e reto, se o juiz diante do qual se apresenta com um título, provando que seu adversário reconhece dever-lhe cem talheres, declara que o signatário não está abrigado, por­que nisso há uma cautio indiscreta?

Que pode ainda pensar, quando um título no qual se estabelece textualmente que a dívida teve por origem um empréstimo anterior, não possui força probante senão depois de dois anos?

Não terminaríamos, se quiséssemos citar fatos isolados.

Preferimos concretizar, assinalando o que não pademos chamar de outro modo senão desvarios da nossa jurisprudência no direito civil, tão fun­damentais que são um verdadeiro manancial de injustiças.

O primeiro consiste em que a nossa nioderna jurisprudência jamais admitiu o pensamento tão simples que temos desenvolvido e que se resume dizendo: — não se trata em uma lesão do direito de um valor material, mas de uma satisfação ao sentimento legal do que foi lesado.

O nosso direito não conhece outra medida que a do materialismo mais baixo e grosseiro, nãa en­cara a questão senão no ponto de vista do inte­resse pecuniário.

Lembramo-nos de ter ouvido falar de um juiz que, para desembaraçar-se das chicanas do juízo sobre coisa de pouca importância, ofereceu-se para pagar do seu bolso ao demandista a importância do litígio e se irritara bastante quando não fora aceita a sua proposta.

Este sábio magistrado não podia compreender como o litigante não tinha em vista uma quan­tia em dinheiro, mas o seu direito.

Entretanto ele não era, em realidade, muito culpado, porque poderia lançar sobre a ciência a censura que se lhe houvesse dirigido.

A condenação pecuniária, que foi para o ma­gistrado romano o meio mais poderoso de admi­nistrar justiça ao sentimento ideal que havia sido lesado,36 sob a influência da nossa teoria das pro­vas, tarnou-se um dos expedientes e recursos mais tristes de que a autoridade tem podido servir-se para tentar e prevenir a injustiça.

Exige-se que o acusador prove até ao último cêntimo o interesse pecuniário que o pracesso tem para si.

Julguem, pois, no que se converte a prática do direito quando um interesse desta natureza não está em jogo.

Um locador recusa a um locatário a entrada de um jardirn que este reservou por contrato para seu gozo; perguntamos agora: — como cansegui­rá dizer o primeiro o valor em dinheiro de a1gumas haras passadas pelo segundo tomando fresco dentro desse jardim?

Um proprietário arrenda a uma autra pessoa um alojamento que já havia alugado, mas que não havia sido ainda ocupado, e o primeiro arrenda­tário deve-se contentar durante seis meses com um aposento miserável, antes de achar outro con­veniente; que se avalie esse dano em dinheiro, ou melhor, que se atenda à indenização que o tribunal concede.

Em França seriam exigidos mil francos; na Alemanha, absolutamente nada, porque a juiz ale­mão responderá que os incômodos, por mais gra­ves que sejam, não podem ser apreciados em monetário.

Suponhamos ainda um professor que está em­pregado em um colégio particular, porém que encontra mais tarde melhor colocação, quebra a contrato, sem que se lhe possa achar de momento um sucessor; — como se podera avaliar em di­nheiro o dano causado aos discípulos, por ha­verem sido privados durante algumas semanas, ou mesmo meses, das lições de francês ou de desenho?

E ainda mais: — como se compensaria a perda material que o diretor do estabelecimento sofrera?

Supanhamos enfim um cozinheiro que deixa sem razão o seu serviço e que pela impossibilidade de o substituir põe seus patrões em grandes dificuldades; como avaliar este prejuízo em dinheiro?

O nosso direito não concede em todos estes ca­sos proteção alguma, porque o que ele dá tem tanto valor como uma noz para quem já não tem dentes.

Este é, pois, o reinado da ilegalidade; e, o que há em todo ele de mais penoso é vexatório não é a imperfeição em que se encontra, mas o semtimento amargo de que o bom direito pode ser calcado aos pés sem que haja meios de remediá-lo.

Não se deve acusar desta falta de coação o direito rornano, porque, por mais que tenha reco­nhecido, como constante princípio, que o juízo de­finitivo contivesse somente uma pena pecuniária, tem sabido aplicá-la de modo que satisfaça muito especialmente não só os interesses materiais, como também todos os mais interesses legítimos.

A condenação a pagar uma importância em dinheiro era o meio caercitivo que o juiz empre­gava nos negócios civis para assegurar a execu­ção de suas prescricões.

O réu que recusava fazer o que o juiz lhe im­punha, não se libertava satisfazendo o valor pecu­niária da abrigação a que estava sujeito, mas essa obrigação convertia-se para ele em uma pena, e é precisamente este resultado do processo o que assegurava àquele que tinha sido lesado uma satisfação, a qual ele estimava muito mais que a soma em dinheiro.

O nosso direito jamais concede esta satisfacão e não a compreende, porque não vê além do in­teresse material.

Na prática também existem as penas que em Roma se aplicavam em matéria de direito pri­vado, originando-se isto da insensibilidade da nossa legislação atual pelo interesse ideal que é atingido em uma lesão do direito.

Hoje a infâmia já não está ligada à infideli­dade do mandatário ou do depositário. O maior tratante vive em nossos dias completamente livre e impune, com tanto que seja bastante sagaz para evitar tudo o que poderia fazê-lo cair sobre a sanção do código criminal.

Verdade é que, em campensação, encontra-se ainda nos nossos livros de direito que a mentira frívola pode ser castigada, mas isto na prática é raramente aplicado.

O que é isto, em uma palavra, senão que a injustiça subjetiva está colocada entre nós no mesmo nível da injustiça objetiva?

O nosso direito não estabelece diferença alguma entre o devedor que nega de má fé uma dívida e o herdeiro que de boa fé a nega, entre o manda­tária que nos enganou e o que faltou não volunta­riamente, enfim, entre a lesão premeditada do meu direito e a ignorância ou incapacidade. O processo move-se sempre na esfera do interesse material.

Os nossos legistas atuais acham-se tão longe de crer que a balança de Themis deve, no direito privado como no direito penal, pesar a injustiça e não somente o interesse pecuniário, que fazendo esta advertência devemos contar com a objeção daqueles que afirmam que está aí precisamente a diferença que existe entre o direito penal e o direito privado.

Desgraçadamente será isto uma verdade para o direito atual. Mas será também uma verdade para o direito em si? — é o que negamos.

Antes de tudo, seria preciso provar que há uma parte do direito na qual a idéia da justiça não deve realisar-se em toda a sua extensão; ora, quem diz justiça, diz realização da idéia de cul­pabilidade.

O segundo desses erros, verdadeiramente fu­nestos em nossa moderna jurisprudência, consiste na teoria da prova que ela tem estabelecido.

Estamos inclinados a crer que não foi desco­berta senão para aniquilar o direito. Se todos os devedores do mundo se tivessem conjurado para eliminar e frustrar o direito dos credores, não ha­veriam deparado melhor meio que esse sistema de provas; debalde se procuraria uma matemá­tica que oferecesse outra mais exata.

É especialmente nas demandas de perdas e danos que se chega ao supremo grau do incom­preensível.

Recentemente tem-se pintado em alguns escritos e de um modo tão surpreendente a desor­dem odiosa, que para empregar a expressão de um legista romano diremos,37 — “reina aqui no direito, sob o nome de direito,” — e o contraste que oferece o modo inteligente de obrar dos tribunais franceses, que não temos necessidade de acrescen­tar uma palavra; entretarto, não podemos deixar de exclamar: — desgraça para a acusador e cora­gem no acusado!

Resumindo, pode afirmar-se que esta excla­mação é a palavra de ordem da nossa jurispru­dência teórica e prática.

Tem-se avançado muito neste caminho que ini­ciara Justiniano.

Não é o credor, mas o devedor quem excita a sua simpatia e prefere sacrificar o direito de cem credores a expor-se a tratar com demasiada seve­ridade um devedor.

Quem não for versado no direito, apenas poderá crer que tenha sido possível todavia aumentar esta parcial ilegalidade que nos oferece a fal­sa teoria dos legistas, que se ocupam do direito civil e do processo.

Entretanto os criminalistas anteriores são os que se têm extraviado até o ponto de cometer o que se pode chamar um atentado contra a idéia do direito, e a culpa mais grosseira de que a ciência se tem tornado capaz contra o sentimento legal.

Queremos falar desta vergonhosa paraliza­ção do direito de defesa legítima, desse direito primordial do homem que é, como disse Cícero, uma lei que a própria natureza lhe impôs e que os legisladores romanos julgavam não poder ser desconhecida por legislação alguma (Vim vi re­pellere omnes leges omniaque jura permittunt).

Como poderiam nos últimos séculos e em nossos dias os jurisconsultos persuadir-se do con­trário!

Verdade é que os novos sábios reconhecem esse direito em princípio, mas cheios dessa simpa­tia pelo criminoso que os legistas do direito civil e do processo tinham pelo devedor, procuram limita-lo e enfraquecê-lo na prática e de tal arte que o criminoso é, na maior parte dos casos, prote­gido com detrimento do atacado que fica sem de­fesa.

Em que abismo profundo não vai perder-se o sentimento da personalidade, quando se desce na literatura a esta doutrina! Que esquecimento da dignidade humana!

Que desprezo, que perturbação do sentimento simples e justo do direito!

O homem que é ameaçado em sua pessoa ou em sua honra, deve, pois, retirar-se e fugir;38 o direito deve dar lugar a injustiça; esses sábios só estão em desacordo quanto à questão de saber -se os militares, os nobres e outras pessoas de alta condição devem também retirar-se e fugir.

Um pobre soldado que para obedecer a esta ordem se havia retirado duas vezes, mas que, per­seguido pelo seu adversário, havia feito resistência e o havia morto, — “era, para dar-lhe uma li­ção eficaz e para oferecer aos outros um salutar exemplo” — simp1esmente condenado à morte.

Concede-se, entretanto, às pessoas de uma posição elevada ou de alto nascimento, o direito que se dava aos militares de empregar para sua defesa uma resistência legítima; mas, acrescenta um destes autores, não deveriam chegar até o ponto de matar o seu adversário, se apenas se tratasse de uma injúria verbal.

A outras pessoas, como aos funcionários do Estado e da justiça civil, contenta-se apenas em dizer-lhes : — “que não são, apesar de tudo, e a despeito das suas pretensões, mais que os homens da lei, não tendo outro direito que as leis comuns do paiz.”

Ainda consideram pior os comerciantes.

“Os comerciantes, dizem, os mais ricos, não fazem exceção à regra, a sua honra consiste no seu crédito; podem, pois, perfeitamente, sem per­der a sua honra ou a sua reputação, sofrer que se lhes dirija algumas injúrias, e, se pertencem à últirna classe, que lhe se lhes aplique uma bo­fetada...”

Se o transgressor da lei for um camponês ou um judeu, deve-se-lhes impor a pena que existe contra os que recorrem à defesa pessoal, contanto que os outros devam ser castigados do modo “mais ligeiro que possível fôr.”

O modo que se considera adequado para ex­cluir o direito de defesa, quando se trata de uma questão de propriedade, é ainda mais edificante.

A perda da propriedade, dizem uns, é exatamente como a da honra, — uma perda reparável, ora pela reivindicação, ora pela ação — injuria­rum.

Mas, se o ladrão fugiu e é tão conhecido como o seu domidilio ? — Que importa, respon­dem os sábios, se há sempre a reivindicação e é somente devido a circunstâncias “fortuitas e inteiramente independentes da natureza do direito de propriedade que a acusação não chega sempre até o fim que se propõe.”

O homem que deve entregar sem resistência toda a sua fortuna, que leva em papel, pode, pois, consolar-se; tem sempre a propriedade e o direito de reivindicação; o ladrão não goza senão da posse real!

Outros permitem, quando se trata de uma soma considerável, empregar a força, mas somente como coisa extrema e não dizem que o atacado deve também neste caso, apesar de sua dor vivíssi­ma, calcular escrupulosamente a força que deve empregar para repelir a agressão.

Se inutilmente chegasse a quebrar o crânio ao seu adversário, enquanto, se houvesse estudado a dureza do osso, teria aplicado ao ladrão um gol­pe menos violento, mas suficiente para atemo­risá-lo, seria responsável por isso.

Se um homem, ao contrário, não está exposto a perder senão objetos de pequeno valor, um re­lógio de ouro, por exemplo, ou uma bolsa que só contém alguns tálers, deve de todo abster-se de fazer o menor dano ao que o ataca.

Com efeito, o que é um relógio em compara­ção ao corpo, à vida e os membros sagrados de um homem?

Um é um bem que se pode facilmente substituir; do outro é inteiramente irreparável a sua perda.

Verdade essa que ninguém negará, entretanto esquecem-se de que o relógio é meu e que os mem­bros pertencem ao ladrão. Estes bens têm, sem dúvida, para ele um valor inestimável, mas para mim absolutamente nenhum, restando-me sempre o direito de pedir que me restituam o meu relógio.

Eis aqui vários desvarios e extravagâncias da ciência!

Que profunda humilhação não devemos sentir vendo que esse sentimento sirnples, tão conforme e justo com o verdadeiro sentimento do direito, que vê em todo ataque (não fôsse o seu objeto mais que um relógio) um atentado a todo o direito da personalidade e a própria personalidade, tenha des­aparecido de tal modo da ciência que pôde con­sentir o sacrifício do direito, levantando a injustiça à altura de um dever!

Admirar-nos-á que a covardia e o sofrimen­to da injustiça fôssem o caráter da nossa história nacional, em uma epóca em que a ciência ousava emitir semelhantes doutrinas?

Rejubilêmo-nos por viver em uma época bem diferente.

Tais teorias são hoje impossíveis; não podem medrar mais, senão nos charcos em que se arrasta uma Nação que esteja igualmente apodrecida, quer sob o ponto de vista político, quer sob o ponto de vista do direito.

Esta doutrina da covardia, da obrigação de sa­crificar o ouro que se nos quer arrancar, é o ponto da ciência mais oposto à teoria que temos de­fendido e que faz, ao contrário, da ardente luta pelo direito, um estrito dever.

Um filósofo de nossos dias, Herbart, emitiu acerca da base do direito uma opinião que não é tão falsa, mas que se encontra bem longe dessa altura ideal a que se eleva o homem, cujo sen­timento do direito é completamente são.

Herbart descobre o fundamento do direito nesta causa estética: — o desprazer da luta.

Temos demonstrado aqui quanto é insustentável esta tese, e felicitâmos-nos por nos podermos referir aos escritos de um dos nossos mais apre­ciados amigos.39

Mas, se nos fôsse dado apreciar o direito sobre este ponto de vista, não sabemos na verdade se em vez de fazer consistir o que o direito nos oferece de estético na exclusão da luta o colocaríamos precisamente em sua existência.

Tenhamos a coragem de emitir uma opinião completamente oposta aos princípios desse filó­sofo, reconhecendo-nos francamente culpado de amar a luta.

Certamente que não admitimos uma luta sem motivo, mas sim esse nobre combate no qual o indi­víduo se sacrifica, com todas as suas forças, pela defesa do seu direito ou da Nação.

Aqueles que criticam neste sentido o amor à luta, têm que romper com toda a nossa nobre literatura e toda a história das artes, desde a Ilíada de Homero e as famosas esculturas dos Gregos até os nossos dias.

Não haverá talvez matéria que tenha atraido mais a literatura e as belas artes de que a luta e a guerra; não será preciso investigar agora onde o sentimento estético está mais satisfeito, vendo esse desenvolvimento supremo da humana potência que a escultura e a poesia têm glorificado nu­ma e noutra.

Nem sempre é a estética, mas a moral que nos deve dizer o que seja a natureza do direito; e longe de repelir a luta pelo direito, a moral pro­clama-a como um dever.

Este elemento de luta e de combate que Herbart quer eliminar da sua idéia, é, pois, uma parte integrante e inseparável da sua natureza.

A luta é o trabalho eterno do direito.

Se é uma verdade dizer: — Comerás o teu pão com o suor da tua fronte, — não o é menos acres­centar também: — É somente lutando que obterás o teu direito.

Desde o momento em que o direito não está disposto a lutar sacrifica-se, e assim podemos apli­car-lhe a sentença do poeta:

É a última palavra da sabedoria
Que só merece a liberdade e vida
Aquele que cada dia sabe ganhá-las.

FIM


 

NOTAS

 

[1] São notáveis, neste assunto, as observações que o nosso autor aponta em seu Espírito do Direito Romano, t. III, § 42 e t. IV, § 69. Ali se explica a deficiência com que aqueles que, sendo filósofos e não jurisconsultos, tratam dos problemas jurídicos, a razão de suas abstrações nos princípios e pobreza de seus detalhes quando chegam à parte especial das diferentes instituições jurídicas.

O próprio Kant, sem excecão, abraça com ardente fé, neste ponto, as pegadas do Direito romano, e todo o seu trabalho, acrescenta Ihering, se reduz a invocar as ra­zões filosóficas para explicar em princípio as institui­ções do Direito, relações e classificações que assim foram tidas por motivos históricos.

Em relação ao vicioso estudo da filosofia do direito, partindo de princípios metafísicos já conhecidos, fora da filosofia do próprio direito, eram luminosas as expli­cações do ilustre Giner de los Rios na sua cadeira da Central.

Atualmente o governo espanhol sancionou o tra­dicional erro que tornou impossível uma filosofia do direito digna de um jurisconsulto, decretando que para cursar esse programa necessita-se ter sido aprovado nos cursos de Metafísica na faculdade de Filosofia e Letras.

[2] Todos o são. A finalidade jurídica nega-se para os demais, segundo a natureza.

O próprio Ihering restringe o direito ao que existe en­tre os homens, mas como este assunto, pela sua impor­tância, é indiferente na questão presente, deixo de defen­dê-lo agora.

[3] O Direito antigo, cap. III.

[4] No referido livro de Sumner Maine se demonstra que, por meio do que se chama — “ficção do direito” — também a jurisprudência inglesa se vê obrigada a uma atividade jurídica que debalde pretende ocultar suas po­sitivas reformas. Vide cap. II.

[5] Não se tem atualmente por exata a caracterís­tica que se dava para distinguir os sabinianos dos procu­leianos. Em ambos os lados houve espíritos reformistas, sendo o direito pretório em rigor obra dos jurisconsultos.

Sobre o assunto, vide Mayas, Curso de Direito Romano, 4a ed., t. I. — Introdução histórica.

Estranhará aquele que se deixar levar por lugares co­muns, aceitos sem reflexão, que se atribua ao jurisconsulto romano o caráter de reformista. Entretanto toda a história do estrito direito e sua transformação demonstram o que acabo de afirmar.

O romano era sabiamente reformista.

[6] Sumner Maine, ob. cit., cap. I.

[7] Deve-se recordar que no conceito explicado, o di­reito é aqui o preceito do próprio direito.

[8] Esp. del Dir. Rom., t. II, § 26 e t. xv, § 60.

[9] Diz-se que um rei constitucional pode pouco; o fato de ser incompátivel com uma democracia real de­monstra o contrário. A iniciativa que tem na escolha de ministros responsáveis, é um poder muito lato, manejado por hábil mão e vontade poderosa; — a inviolabilidade é a sanção desse poder de iniciativa.

[10] Obr. cit., t. II, § 27.

[11] Pois há muito mais direito político do que aquele que assim é considerado e julgado como tal.

[12] Obra cit., loc. cit. em uma nota.

[13] Sirva um exemplo vulgar, quase cômico, e não ob­stante de grande ensinamento.

Não só quando o governo se encarrega de nomear alcaides para os povos, mas quando estes os elegem, acon­tece recair o cargo em pessoas que o devem a uma influência estranha aos interesses jurídicos de que se trata. Os abusos da autoridade logo se ostentam; ninguém se escandaliza e nem se lembra que a eleição não fora realizada com a previsão necessária para evitar estes abusos. E, não obstante, um alcaide pode ser um tirano; medidas draconianas de que não se tem memória nos anais do im­pério as repetem todavia muitos senhores alcaides.

[14] Observemos o que somente sucede com o nosso célebre projeto do Código Civil.

Há uma comissão de muitos poucos senhores advo­gados, todos residentes em Madri, ou quase todos, para não afirmar o que não sei ao certo, a qual apresentará em algum dia um projeto de legislação geral em matéria de direito civil, conforme um sistema preferido por esses poucos senhores de Madri.

As Cortes discutirão esse projeto, como se discutem os orçamentos, a lei hipotecária, até o Código Penal, e mesmo a Constituição de 1878, isto é — sem discussão; aprovar-se-á o projeto com umas pequenas modificações, oriundas de lutas de interesses, e por fim a Espanha terá seu Código de Napoleão correspondente.

Ninguém se queixará, nem mesmo os advogados mais liberais. Esta é a vocação pelo direito em nossa época.

[15] Vejam-se, entre muitos outros autores, Foustel de Coulange, — La cité antique; Pepere, Storia del diritto; Azcarate: Historia del derecho de propriedad.

[16] Espírito do Dirt. Romano, t. I, § 24

[17] Tradução espanhola da obra de Proudhon sobre o Princípio federativo, notas.

[18] Certo jovem escritor espanhol segue este desas­troso caminho de ver antinomias, onde se depara apenas com união; o que é preciso é dar autoridade à liberdade.

[19] Estas outras pessoas do direito são tão reais como o indivíduo e tão necessárias como ele e não está menos realmente com elas do que consigo mesmo.

Sempre se ouve dizer que o estado dessas outras pes­soas é o que domina. Mas quantas vezes o indivíduo está tão fora de si que não age, como próprio dono de suas ações sobre as relações jurídicas!

Enquanto o número e os limites materiais dessas pes­soas superiores do direito dependem da variável determinação histórica.

O município, com este ou outro nome, se determina com mais constante igualdade, por fáceis razões de com­preensão.

[20] Este predomínio da autonomia nacional supõe, entretanto, que no poder da Nação intervém o legítimo poder do Estado; no caso contrário, existe a absorção, a centralização, mas não é a autonomia nacional.

[21] Entre outros. É o que muitos não compreendem.

[22] Como se vê, no que expus, não pode haver alusão à Espanha; aqui a soberania nacional nem sequer tem voto.

[23] Não se cuida de defender a teoria mais sentimen­tal que outra coisa, da variedade pitoresca, estética dos — direitos naturais; quando esta variedade for natural produto da história, respeita-se; mas não se tem que pro­curá-la, contrariando, por vontade de artista, a tendência do direito a ser semelhante em todos os países civilizados.

O que se sustenta é que esse direito, semelhante ou diferente, deva ser obra própria de cada povo e criado ao lado de sua própria história. Roma fez todo direito para si, nasceu todo ele da medula de sua vida e de sua ener­gia e reflexiva vontade e consciência; e, não obstante, o direito romano chegou a ser o direito comum, quase o único, por muito tempo, na Europa.

[24] Encantadoras passagens de profunda verdade Se lêem na obra do ilustre Pi y Margal, Las Nacionalidades, sobre este assunto.

É sobre tudo recomendável toda aquela em que se fala do sentimento e faz ver o amor singular que se pro­fessa à pátria real, ao povo, amor que é ideal e material, que não necessita esforços de abstração para sua existência.

Neste livro notável se indicam vários dos fundamentos reais do direito que existem como argumentos em prol do sistema autonômico.

[25] Nestas censuras, leais, francas do oportunismo, não aludo a pessoas determinadas, nem mesmo cuido de molestar a quem por professar sinceramente tais dou­trinas merece maior respeito.

[26] Em a novela de Henrique Kleist, intitulada Miguel Kolhaas e da qual falaremos mais adiante, o autor faz o seu herói dizer: — mais vale ser um cão que um homem e ser calcado aos pés.

[27] Não nos alongaremos aqui acerca da utilidade da primeira parte desta idéia, mas permitimo-nos ao menos fazer algumas ligeiras reflexões.

A indignação que as diversas classes manifestam quan­do são atacadas em um dos direitos que formam a base da sua existência, reproduz-se também nos Estados quando se atacam as instituições que representam, o princípio espe­cial que as faz viver; o termômetro da sua irritabilidade, e, por conseguinte, a medida do apreço que dão às instituições — é o Código Penal.

O contraste manifesto que existe sobre este ponto entre as diversas legislações explica-se em sua grande parte pela consideração diferente que há entre as condições da exis­tência de cada povo.

Todo o Estado punirá com a máxima severidade os ataques dirigidos ao seu princípio vital, enquanto não aplicará geralmente mais que o mínimo da pena nos outros casos.

Com pena de morte pune um Estado teocrático o blasfemo, o idolatra, ainda que se contente talvez com aplicar a pena de roubo àquele que tiver arrancado os marcos que servem de limite entre as propriedades, en­quanto um Estado agrícola fará o contrário.

A legislação de um país mercantil reservará as maiores penalidades ao moedeiro falso e ao falsário em geral; um país militar à insubordinação e à deserção.

Um governo absoluto punirá o crime de lesa-majestade; um republicano toda a tentativa de restabelecer o poder real; e todos os Estados mostrarão assim um rigor que comparado com o usado nos demais casos produzirá um estranho contraste.

Em uma palavra, quando os povos são atacados em uma das condições especiais de sua existência, o sentimento legal revela-se com mais violência.

Sabemos que estas são as considerações que Montesquieu teve o mérito imortal de ser o primeiro a desenvolver em seu Espírito das Leis.

[28] As nossas pequenas cidades da Alemanha, que são a sede de uma Universidade e que os estudantes fazem viver, por assim dizer, oferecem uma interessante prova, o modo como estes gastam e empregam o dinheiro comunica-se à população.

[29] Vide meu Espírito do Direito Romano, III § 60.

[30] Faremos notar, para aqueles dos nosso leitores que não estudaram o Direito, que as ações populares ofere­ciam a quem queria a ocasião de se fazer representante da lei, e perseguir o culpado que a violasse.

Estas acões não se limitavam aos casos em que se tra­tasse do interesse público, mas também se podiam usar todas as vezes que um indivíduo, contra o qual se havia cometido uma injustiça, não fosse capaz de defender-se por si só; assim, por exemplo, no caso em que se hou­vesse lesado um menor em uma venda ou em que um tutor fosse infiel a seu pupilo, e outros que se podem ver em o meu Espírito do Direito Romano, tomo 2°, 2a. ed., pag. III

Estas ações, como se vê, são um vestígio desse senti­mento ideal, que defende o direito pelo próprio direito, sem encarar o interesse pessoal.

Algumas vezes apresenta-se como móvel ordinário a avareza, fazendo esperar o acusador a multa que se impunha ao acusado, sendo isto o que dava vida a essa ocupação mercantil dos denunciadores, que aguardam a re­compensa pela denúncia que fazem; mas se afirmarmos que as acusacões dessa segunda categoria desapareceram, em boa hora, no Direito romano, e que a primeira quase não existe no Direito atual na maior parte dos povos, o leitor saberá tirar a conclusão disto.

[31] O interesse. perfeitamente trágico que nos oferece Shylock está para nós em que se lhe não faz justiça, e esta é sem dúvida a conclusão que mais sobresai para o legista.

Pode a poeta evidentemente fazer uma jurisprudência a seu gosto, e não temos que lamentar que Shakespeare tenha falado de tal modo ou antes — que ele nada haja mudado na velha fábula.

O legista que estuda a questão estará obrigado a dizer que o título era sem valor, porque continha alguma cláusula imoral e que o juiz, apoiado nesta única razão, teria po­dido negar o pedido pelo querelante.

Se não o fazia, se o — “sábio Daniel” a deixava valer mesmo, era empregar um subterfúgio, uma miserável astúcia, um embuste indigno, autorizar um homem a cortar uma libra de carne, proibindo-se-lhe terminantemente de fazer correr o sangue necessário em tal operação.

Um juiz poderia conceder também ao proprietário de uma servidão o direito de passagem, proibinda-lhe dei­xar vestígios, porque não fora isto estipulado na concessão.

Acreditar-se-ia talvez que a história de Shylock se pas­sou nos tempos primitivos de Roma, quando os autores das Doze Tábuas julgaram necessário fazer especial menção de que o credor a quem se entregava o corpo do deve­dor (in partes secare), podia dividi-lo em pedaços do ta­manho que bem lhe aprouvesse (Si plus minusve secuerint sine fraude esto!)

[A passagem mencionada por Ihering é de "O Mercador de Veneza" — edição em português da Ridendo Castigat Mores disponível na eBooksBrasil.com — NE]

[32] Assim me exprimia em minha obra intitulada -“Ueber das Schuldmoment im römischen Privatrecht” — (Sobre o momento da culpa no direito privado dos Roma­nos) Giessen, em 1867, pag. 61

Formei a opinião que hoje emito, depois de longos estudos sobre o assunto.

[33] Encontra-se nas actiones vindictam spirantes uma prova muito particular do que acabamos de dizer; elas fazem sobresair esse ponto de vista ideal e mostram do modo mais frisante que não tem por objeto alcançar uma soma de dinheiro ou a restituição de uma coisa, mas a reparação de um atentado feito ao sentimento do direito e da personalidade — (magis vindictae quam pecunia habet rationem).

É por isso que não passavam aos herdeiros e nem podia ser cedido o seu uso a terceiras pessoas.

Os credores não podiam intenta-las em caso de cessão de bens; extinguiam-se, passado certo lapso de tempo rela­tivamente curto, e não tinham lugar se o lesado não demons­trasse o seu ressentimento — “ad aninum suum non revoca­verit— DE INJURIIS, 47, 10.

[34] Nesta época os caracteres estavam tão debilitados que não podiam suportar a justa severidade do antigo di­reito.

Assim, por exemplo, suprimiram-se essas penas tão rigorosas que no antigo processo haviam sido aplicadas.

[35] É fácil achar numerosas provas nas disposições de Justiniano.

Por um lado, concede aos fiadores o benefício de dis­cussão, por outro, aos co-devedores o de divisão.

Fixa para a venda do penhor o irrisório prazo da dois anos; depois que a propriedade foi adjudicada, concede todavia ao devedor dois anos, como prazo para remi-la; e, passado esse tempo, reconhece-lhe melhor di­reito que ao credor que vendera o objeto penhorado.

Ainda pode acrescentar-se: a extensão do direito de compensação àqueles que não eram cidadãos; a datio in solutum, a desmedida extensão da defesa usurae supra alte­rum tantum; a limitação do prêmio de seguro no foenus nauticum restringindo-o a 12 por cento; a posição exce­pcional e suficiente que dão ao herdeiro, deixando-lhe o benefício de inventário, etc., etc.

Justiniano tornou possível a obtenção dum lapso de tempo para pagamento quando nisso concordassem a maior parte dos credores, não passando de uma imitação das morató­rias de Constantino.

A seus predecessores deve-se também a ação non numeratae pecuniae, a cautio indiscreta e a iei Anastasiana, bem como a glória de ter sido o primeiro em reconhecer, desde o trono, a fealdade do castigo corporal, e de o haver abolido em nome da humanidade pertence a Napoleão III. Este soberano não se vexava mais por ter feito funcionar a guilhotina em Caiena do que se incomodavam os últimos imperadores romanos em fazer de inocentes crianças criminosos de lesa-majestade, uma espécie que eles mes­mos caracterizavam, dizendo — Ut his perpetua ejestate sor­dentibus sit et mors solatium et vita supplicium, — (L. 5, Cod. ad. leg. Jul. maj. q. 8), mas a humanidade para com o devedor não sobresaia mais por esse modo; — que importa o mais! Realmente, não há melhor modo de se acomo­dar com a humanidade que enriquecer-se à custa alheia!

[36] Podem apresentar-se como provas desta opinião que se afasta da doutrina geralmente admitida: L. 7, de ansa (33.I); L. 9 § 3o; L. II § I, de servo corr. (II.3); L. 16 §I, quod vi (43, 24); L. 6 § I; L. 7, de serv. exp. (18, 7); L. I § 2, de tut. rat. (27, 3); L. 54 pre, Mand. (17, I); L. 71, i. f. de evict. (21, 2); L. 44 de man. (40, 4). É a apli­cação das penas pecuniárias com que tanto se distinguem os tribunais franceses atualmente.

[37] Paulo, na L. 91, § 3o de v. o. (41.1)... in quo genere plerumque sub autoritate juris scientiae perniciose erratur; mas o jurisconsulto neste caso considera outro erro diferente.

[38] Toda esta doutrina se encontra exposta na obra de K. Levita — Das Recht der Nothwehr, — Giersen, 1866, p. 158, etc.

[39] Jules Glaser — Gesammte Kleinere Schriften über Strafrecht, Civil und Straf -process — Viena, 1868. — Glaser é atualmente ministro de Justiça na Áustria.


Versão para eBook
eBooksBrasil.com

__________________
Setembro 2000


©2016 — Rudolf von Ihering

Versão para eBook – 2ª edição
eBooksBrasil.org
__________________
Fevereiro 2016

eBookLibris © 2016 eBooksBrasil.org

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org