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Joseph E. Brant

SEGREDOS DA GUERRA PSICOLÓGICA

Reminiscências da Segunda Guerra Mundial

—Ridendo Castigat Mores—


 

SEGREDOS DA GUERRA PSICOLÓGICA
Reminiscências da Segunda Guerra Mundial
Joseph E. Brant
Edição
Ridendo Castigat Mores
Versão para eBook
eBooksBrasil.org
Fonte Digital
www.jahr.org
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
— Nélson Jahr Garcia (1947-2002)—


Copyright:© 2001 William K. Brant


SEGREDOS DA GUERRA PSICOLÓGICA
Reminiscências da Segunda Guerra Mundial

[imagem]

Joseph E. Brant


ÍNDICE

O Autor
Apresentação pelo autor

SEGREDOS DA GUERRA PSICOLÓGICA
Capítulo I
Como nasceu a Operação "Annie"
Capítulo II
ABSIE – Uma emissora "branca" em Londres.
Capítulo III
Revelações surpreendentes.
Capítulo IV
Contribuímos para a rendição de soldados da Wehrmacht.
Capítulo V
V-1, V-2 e... Ânimo.
Capítulo VI
Fatos alemães mais fortes que nossas palavras
Capítulo VII
Rumo ao Luxemburgo
Capítulo VIII
Da "Rádio Lux" para a estação secreta.
Capítulo IX
Avenida Brasseur N.° 16.
Capítulo X
12-12 irradia... 12-12 irradia.
Capítulo XI
Para a frente em busca de material.
Capítulo XII
Alemanha, Zero Hora menos 5.
Capítulo XIII
A última fase da 12-12.
Capítulo XIV
Movimentada visita ao Setor Soviético.
Capítulo XV
Os campos de morte de Hitler.


O autor

 

Joseph Errol Brant nasceu em Riga, capital da Letônia, em 10 de agosto de 1912. Naturalizou-se norte-americano quando servia nas fileiras das Forças Armadas dos EUA. Jornalista de profissão, recebeu uma educação internacional, iniciada em escola e colégio alemães de Riga. Posteriormente formou-se em Direito pela Universidade de Montpellier, França, e em Jornalismo pela Graduate School of Journalism da Universidade de Columbia, Nova York.

Iniciou a carreira jornalística colaborando em vários jornais da Europa e da América Latina, entre os quais L'Intransigeant, de Paris; Die Weltwoche, Zuriche o Diario de la Marina, Havana.

Em 1942 ingressou no OWI (Office of War Information, porta-voz da propaganda oficial dos EUA durante a II Guerra Mundial) onde, com exceção de alguns meses passados no exército, serviu até julho de 1945.

Enviado a Londres pelo OWI, foi incumbido da organização e chefia da seção noticiosa do Departamento Alemão da American Broadcasting Station in Europe (ABSIE — emissora norte-americana que funcionou durante a II Guerra Mundial na capital britânica). Em fins de 1944 incorporou-se ao PWD (Psychological Warfare Department, especificamente encarregado das atividades de Guerra Psicológica das Forças Armadas norte-americanas). Transferido para Luxemburgo, participou ativamente das peripécias da Rádio 12-12, primeira emissora secreta na História Militar dos Estados Unidos. Logo após o término das hostilidades exerceu na Alemanha as funções de oficial de ligação do setor de pessoas deslocadas, do XII Grupo de Exércitos.

Após a guerra fixou residência no Brasil onde se casou com brasileira, dedicando-se durante vários anos à agricultura. De 1961 a 1966 ocupou o cargo de redator-chefe e correspondente estrangeiro da United Press International em São Paulo.


APRESENTAÇÃO PELO AUTOR

 

A guerra psicológica consiste essencialmente no manejo da palavra falada e escrita com o propósito de abalar o moral do inimigo e abreviar as operações bélicas. Levada a cabo com destreza poderá poupar muitas vidas. Caso contrário, repercutirá negativamente sobre o adversário, irritando-o e robustecendo a sua capacidade de resistência.

Em tempo de paz, o emprego criterioso de métodos e conceitos de guerra psicológica é de suma importância para impedir a eclosão de um conflito armado. Usados com fins escusos ou sem a devida cautela agravarão sobremaneira as latentes tensões internacionais, pondo em risco a coexistência pacífica entre os povos.

O autor deste livro participou, durante a Segunda Guerra Mundial, em atividades de guerra psicológica, ligadas ao setor da radiopropaganda. Ainda que sujeitas a falhas e imperfeições, inerentes a qualquer empreendimento humano, as reminiscências aqui registradas representam o reflexo fiel dos diários de guerra do autor, assim como de outros documentos da época por ele conservados ou consultados.

J.E.B.


Capítulo I
COMO NASCEU A OPERAÇÃO "ANNIE"

Problemas aparentemente insolúveis enfrentam os idealizadores de uma estação militar secreta — Certas altas patentes acham "indigno da tradição militar norte-americana" a criação de uma emissora "negra" — O General Eisenhower é finalmente convencido — Por que Luxemburgo?

 

A Segunda Guerra Mundial entrará na História não somente como precursora da guerra automatizada e da destruição maciça de centros urbanos populosos, senão também como pioneira da guerra psicológica em grande escala. Não é demais afirmar que o advento da radiofonia exerceu uma profunda influência e provocou grande transformação em certos aspectos da tática e da estratégia, principalmente pelas possibilidades quase ilimitadas de seu uso como arma de subversão e desmoralização de nações e exércitos. Com efeito, nunca as nações dispuseram, anteriormente, de uma arma tão sutilmente destrutiva, como se pode tornar, em certas circunstâncias, a palavra propagada através do espaço. Tão fantásticos e tão incrivelmente vastos foram os horizontes abertos pelas possibilidades do uso da radiofonia no campo psicológico-militar, que os chefes do Estado-maior norte-americano se viram inicialmente um tanto desnorteados. É verdade que não demoraram a se compenetrar das indiscutíveis vantagens práticas do rádio como auxiliar imprescindível nas comunicações puramente tático-militares, instalando com grande proveito aparelhos receptores-transmissores no interior de jipes, caminhões, tanques e outros veículos, e até mesmo nas costas dos soldados. No entanto, mostraram-se um tanto hesitantes com referência ao aproveitamento da arma radiofônica naquele campo infinitamente mais vasto — porém de certo modo intangível — que é o da propaganda subversiva exercida por uma emissora secreta, denominada "negra", na gíria da guerra psicológica

Em tempo de guerra, tanto as chamadas emissoras "negras" como as "brancas" podem ser empregadas com a finalidade de tentar desmoralizar a nação ou o exército inimigos, a fim de acelerar o seu desmoronamento. Diferem, no entanto, diametralmente, quanto aos métodos empregados. Salvo raras exceções — como é o caso da "American Broadcasting Station in Europe", da qual falaremos detalhadamente nos capítulos seguintes e que se achava localizada em Londres, — as demais estações "brancas" norte-americanas nada mais eram do que emissoras já existentes, que haviam posto suas instalações à disposição do esforço bélico do país. Operavam abertamente, sem esconder a sua identidade, principalmente como veículos noticiosos. Já as emissoras "negras", não somente funcionam em segredo, como não hesitam em empregar a mentira, a fraude, a subversão ou qualquer outro "golpe baixo" a fim de atingir o inimigo.

Não houve, por parte do Estado-maior norte-americano resistência alguma quanto ao emprego da rádio-propaganda "branca". Tanto assim, que as autoridades militares ianques não somente aprovaram, como encorajaram francamente a instalação da "American Broadcasting Station in Europe" (ABSIE) em solo londrino. Porém, a qualquer insinuação para que o exército patrocinasse uma emissora "negra", isto era energicamente repelido. Tal processo, afirmavam algumas altas patentes, era absolutamente indigno da farda norte-americana, que não poderia em hipótese alguma recorrer a um meio tão vil e tão traiçoeiro. Quanto à possibilidade de vencer uma batalha com a ajuda das emissoras "negras", ou substancialmente essa ajuda acelerar o fim de uma guerra, era considerada ridiculamente remota pela maioria das altas patentes norte-americanas.

Enfim, já na fase final da Segunda Guerra Mundial surgiu um pequeno grupo de oficiais, dotados de visão e imaginação fora do comum, entre os quais o Gen. William ("Wild Bill") Donavan, chefe do OSS(1). 0 fato é que por detrás dessa inocente designação de "Departamento de Serviços Estratégicos", escondia-se uma organização dedicada às mais ousadas e variadas tarefas de subversão. Esses oficiais conseguiram convencer o seu comandante supremo, o Gen. Dwight D. Eisenhower, da utilidade de uma execução prática do plano radiofônico militar subversivo por eles concebido, e posteriormente designado em código, por "Operation Annie".

Uma das razões concretas que contribuíram para a aceitação, pelos militares ianques, da idéia da criação de uma emissora secreta, foi a observação feita pelo "Intelligence Service" norte-americano, segundo a qual, nos casos de comunicações interrompidas, os comandantes alemães costumavam basear suas decisões estratégicas nos campos de batalha, nos programas militares da BJ3C de Londres. Uma vez patente esse interesse, essencialmente prático, de parte dos oficiais alemães por notícias de cunho militar divulgadas por uma emissora aliada, ficou também evidente a enorme utilidade em potencial que poderia ter uma estação norte-americana, especializada não somente na divulgação de notícias militares, como criada com a finalidade expressa de tirar o máximo proveito de tal situação.

Foi neste sentido que o Gen. Eisenhower, chefe do Quartel General Supremo da Força Expedicionária Aliada aprovou em princípio o esquema, visando a criação de uma emissora militar secreta ianque, cujo objetivo deveria ser "enganar os nazistas", semeando o máximo de confusão em suas tropas e povoações. O plano era ambicioso e de realização extremamente delicada, tanto mais que deveria ser concretizado por meio de uma burla. Com efeito, a projetada emissora secreta far-se-ia passar por uma estação de rádio alemã. Se a instalação da "branca" ABSIE, que apesar de sua missão bélica era uma emissora de rádio do tipo convencional já apresentava uma série de problemas e dificuldades, estas cresceriam em dimensões incalculáveis, no caso de uma emissora "negra". Assim, qualquer erro na inflexão da voz ou no sotaque do locutor, que na ABSIE significaria apenas o afastamento temporário de um certo número de ouvintes irritados, no caso de uma emissora secreta pretendendo passar por alemã, tais incidentes trairiam imediatamente a estação e poderiam conduzir ao fim de sua existência útil. Isto, sem falar do sem-número de outros detalhes, de cuja observação minuciosa e constante deveria depender não somente o grau de eficiência, mas a própria vida da estação, tais como o uso correto das peculiaridades idiomáticas e fraseológicas do partido nazista (representando em si um vocabulário inteiramente novo), assim como o emprego impecável da terminologia militar das Forças Armadas do Reich, com toda uma infinidade de termos técnicos e idiossincrasias inerentes a cada uma das três Armas e, finalmente, o uso escrupuloso de certas expressões regionais usadas no território onde a emissora secreta teria de operar.

Para se conseguir tal grau de perfeição não só almejado, mas absolutamente indispensável para sobrevivência da referida emissora secreta, era necessária uma série de elementos básicos. Em primeiro lugar, homens capazes de tão delicada missão, como redatores especializados na língua alemã, encarregados de preparar o texto dos programas, e locutores de descendência alemã, cuja tarefa consistiria em transmiti-los pelo microfone. Seriam indispensáveis também, para o perfeito funcionamento de tal estação, além de técnicos-engenheiros de alto tirocínio, um certo número de especialistas em serviços de informações, cartografia aérea e comunicações.

Tornava-se imperativo, outrossim, devido ao sigilo que deveria cercar o funcionamento de uma emissora desse tipo, que desde o início fosse reduzido ao mínimo o número de seus componentes humanos. Mas havia dois problemas fundamentais que, antes de tudo, tinham de ser resolvidos pelos chefes do Departamento de Guerra Psicológica do Exército norte-americano.

Em primeiro lugar, determinar com exatidão qual seria o cunho particular da estação secreta. Deveria ela ser uma emissora pertencente ao partido nacional-socialista alemão, ou revestir-se de uma fachada mais acentuadamente militar? Em segundo lugar havia o problema, não menos vital, do ponto onde deveria funcionar.

Quanto ao primeiro item, ou seja, a orientação geral dos programas da futura emissora "negra", ficou estabelecido que ela adotaria o disfarce de uma estação radiofônica militar alemã. Destacar-se-ia por uma atitude rigorosamente patriótica, demonstrando porém, algumas tendências independentes, determinadas por sua localização territorial.

Com efeito, era plano do Alto Comando norte-americano, que a futura emissora irradiasse supostamente os seus programas, da região da Renânia, demarcada no mapa alemão pelas cidades de Trier, Coblença, Düsseldorf e Aachen e formando na margem esquerda do Reno um paralelogramo de uns 27.000 km quadrados. Na prática, porém, a designação "Rheinland" vai além dessa delimitação geográfica, estendendo-se pela margem esquerda do Reno até à altura de Mogúncia.

Pela sua formação histórica e religiosa, a população essencialmente católica da Renânia nutre um forte e arraigado preconceito contra os "prussianos". Tanto assim, que houve várias tentativas visando a separação mais ou menos completa daquela região, do resto da Alemanha. O falecido chanceler Konrad Adenauer esteve envolvido, em 1919, num movimento visando a criação de um Estado Federal da Alemanha Ocidental, que devia incluir as regiões da Renânia e do Ruhr. Apesar do malogro da tentativa, Adenauer custou a desfazer-se da acusação de "separatista", que desde aquele tempo o perseguia. O esforço mais concreto no sentido da criação de um Estado independente do "Rheinland" foi realizado em 1923 sob a liderança do Dr. Hans Dorten, culminando em 21 de outubro daquele ano, com a proclamação de uma efemeríssima "República da Renânia".

Embora nem esta, nem tentativas semelhantes, jamais tenham surtido resultados apreciáveis, o espírito "independencialista" dos habitantes da Renânia pode ser considerado uma realidade. Assemelham-se eles, nesse sentido, um pouco aos texanos nos Estados Unidos e aos paulistas no Brasil. Destarte, adotando o disfarce "renano", a imaginada emissora "negra" do Exército norte-americano poderia, inclusive, fazer discretas críticas aos governantes do Reich hitlerista, sem com isso despertar suspeitas exageradas no seio dos seus futuros ouvintes. Claro, deveria abster-se — pelo menos no início da sua existência — de adotar uma atitude marcantemente antinazista, isto devido à indiscutível popularidade do partido do Führer, cujo sucesso nas urnas eleitorais daquela região da Alemanha deve ser interpretado como uma espécie de protesto coletivo contra os onze anos de ocupação da Renânia por tropas aliadas, iniciada logo após o término da Primeira Guerra Mundial e que findou em 1930.

Uma vez traçados, em linhas gerais, os propósitos, a orientação política e o raio de ação da futura emissora, a escolha de Luxemburgo como centro ideal para a execução dos seus objetivos se apresentava, por assim dizer e por várias razões, como uma decisão inevitável. Em primeiro lugar, por se achar praticamente "encravado nas costas" da Renânia-Palatinado, este país-mirim que então contava com cerca de 300.000 habitantes, é geograficamente tão ligado àquela região, que uma estação operando em seu solo facilmente poderia ser confundida com uma emissora de origem alemã. Outra vantagem apreciável que prevalecia em favor da escolha de Luxemburgo como sede da 12-12, (como ia ser denominada a estação secreta), era a possibilidade do eventual aproveitamento dos transmissores da "Rádio Luxemburgo", então dotada de 50 kw de potência e considerada uma das mais possantes estações da Europa.

Quanto ao ponto de vista militar, o Grand-Duché de Luxembourg parecia oferecer ótimas garantias, pois achava-se desde 10 de setembro de 1944, livre do domínio alemão, mantido durante mais de quatro anos consecutivos e derrubado por iniciativa das tropas norte-americanas. Assim mesmo, tanto no início das atividades da 12-12, como no decorrer dos meses subseqüentes — e especialmente durante a desesperada contra-ofensiva das Ardenas — o espectro da reconquista do Luxemburgo pelos alemães era uma contingência que merecia séria consideração. Porém, tal eventualidade era aceita pela chefia militar norte-americana e fazia parte de suas previsões.

Desde já quero adiantar que não se devem esperar em tempo de guerra, resultados "milagrosos" provenientes da atuação de qualquer de tais emissoras — mesmo daquelas espetacularmente denominadas "secretas". Estas últimas, por mais fascinantes e intrigantes que possam ser, jamais realizarão as proezas fantásticas de um James Bond ou de outros personagens igualmente imaginários. Levadas a cabo com a devida seriedade, as atividades de uma emissora secreta são um trabalho como qualquer outro, distinguindo-se apenas pelo excepcionalmente alto grau de responsabilidade que exigem. Com estas limitações, parece-me valer a pena contar o nascimento e o fim da 12-12, analisando tanto os seus êxitos como as suas frustrações; ainda mais por se tratar da primeira experiência deste gênero nos anais da História Militar dos Estados Unidos.

Antes de entrar nos pormenores da Operação "Annie", peço ao leitor que me acompanhe inicialmente para a cidade de Londres, onde durante quase um ano trabalhei numa estação "branca"; fato este que possui a vantagem suplementar de permitir a divulgação também daquele lado da guerra psicológica — talvez menos espetacular mas não menos importante — contribuindo assim para uma melhor compreensão do conjunto.


Capítulo II
ABSIE — UMA EMISSORA "BRANCA" EM LONDRES

A BBC ganha uma aliada... e concorrente — Voluntários civis norte-americanos em serviço de guerra no além-mar — Diretrizes gerais e especiais traçam o rumo psicológico dos programas — A verdade é a melhor propaganda...

 

A "American Broadcasting Station in Europe" (com a abreviatura ABSIE, e traduzida para o português como "Emissora Norte-americana na Europa"), que me serviu de trampolim para aquelas futuras atividades secretas no continente europeu, nasceu como resultado direto das necessidades da guerra. Ao desenvolver-se o esforço propagandístico ianque, dirigido ao povo alemão, ficou logo patente a ineficácia da irradiação de programas através de emissoras localizadas nos Estados Unidos, sujeitas ao "fading", interferências atmosféricas e outras falhas. Tornou-se evidente também que o recurso mais eficiente para resolver tal situação seria a montagem de uma emissora norte-americana em solo europeu, preferivelmente em Londres, pois as Ilhas Britânicas eram o único reduto aliado livre do domínio nazista. Por razões óbvias a concretização deste plano, um tanto arrojado, dependia antes de tudo da boa vontade dos ingleses. Com efeito, nenhuma nação do mundo veria com bons olhos uma possante estação de rádio estrangeira operando, não somente no seu solo, mas bem no centro de sua capital. Para a orgulhosa e tradicionalmente conservadora Grã-Bretanha, tal infração à sua soberania talvez fosse uma das mais amargas pílulas que essa nação teve de engolir durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, devo apressar-me em afirmar que, honrando também seu tradicional espírito esportivo, nunca os britânicos demonstraram, nem por atos nem por palavras, o desgosto que deveriam sentir com a implantação de uma emissora de rádio estrangeira em Londres. O de que eles se queixavam era o fato de nossos aviadores conquistarem seus "sweethearts" com "dólares e chocolate", mas nunca — pelo menos abertamente — atacavam a ABSIE. Talvez racionassem eles que a circunstância de tolerarem em Londres aquela emissora norte-americana era desprovida de qualquer elemento degradante, representando apenas mais um aspecto da cooperação entre os aliados. Para o Governo norte-americano, por outro lado, o fato de poder martelar os alemães a curta distância por meio da propaganda, afirmava-se de valor inestimável. Tanto mais que "a sede de notícias do exterior" da população alemã aumentava proporcionalmente com as derrotas sofridas pelos seus exércitos, já naquele tempo sob fortíssima pressão das forças aliadas, em franco avanço nas várias frentes.

Eis a razão da minha especial satisfação quando fui nomeado para o posto de redator-chefe da seção de notícias do departamento alemão da ABSIE. Notícias usadas inteligentemente, porém sempre baseadas na verdade, constituem a melhor arma propandística, tanto durante uma guerra "quente" como na chamada guerra fria. Ficou amplamente comprovado que elas superam qualquer comentário seja ele o mais espiritual ou o mais mordaz do mundo Lidar com noticiário durante uma guerra é o mesmo que ser responsável pela distribuição de alimentos: todo mundo é freguês. O noticiário. se torna, no pleno significado da palavra, de consumo forçado

Como os demais funcionários norte-americanos da "American Broadcasting Station in Europe", eu tinha chegado à capital britânica procedente dos Estados Unidos. E como a grande maioria dos meus colegas, tinha sido originalmente contratado pelo "Office of War Information" em Nova York.

A missão de servir fora dos limites territoriais dos Estados Unidos, num setor de guerra, não nos era imposta. Constituía uma decisão puramente voluntária. Uma vez expressa a intenção ou o desejo de servir além-mar, os candidatos eram submetidos, durante o prazo de um mês aproximadamente, a uma investigação sigilosa adicional por parte do FBI. Passado este rigorosíssimo "security-check" (exame de segurança), tivemos ainda que conquistar o diploma do chamado "OWI(2) Technical Center". Por detrás desta inocente designação de "Centro Técnico", escondia-se de fato uma escola de propaganda subversiva, situada numa feudal mansão em Lloyd Neck, nas vizinhanças de Nova York. Lá, vivendo num regime de internato, foram ministrados aos candidatos ao serviço de além-mar, numa forma de ensino intensificado, os rudimentos da técnica de subversão e de guerra psicológica. Aprendi logo, entre outros truques, a maneira de arrumar o meu quarto de modo a saber imediatamente se ele fora revistado por um espião; a maneira de transformar um simples guarda-chuva em arma mortal; a usar os dedos para arrancar os olhos de um inimigo, assim como uma série de outros meios de autodefesa de emergência não menos escabrosos, porém, segundo o jovem professor que ministrava o curso, "de eficiência cem por cento comprovada". Verdade seja dita que, nem sequer uma vez tive oportunidade de aplicar na prática aquele ramo de conhecimentos do "OWI Technical Center".

A viagem dos Estados Unidos para Londres era efetuada por avião ou via marítima, conforme o grau de importância do funcionário. A via aérea era o meio de transporte reservado aos "big shots" importantes e suas secretárias. Não pertencendo nem a uma e nem a outra daquelas categorias, realizei o percurso de Nova York a Londres, em três etapas: de trem até Halifax, no Canadá. De lá, até a costa escocesa, num cargueiro de 3.000 toneladas. E, finalmente, da Escócia até à capital britânica, no expresso Edimburgo-Londres.

O prédio onde foram instalados os nossos estúdios e salas de redação era localizado na Sheraton Street n.° 2, a alguns passos da Wardour Street. Esta rua estreita é considerada uma espécie de "Fleet Street" do ramo cinematográfico, com a diferença de que existem lá talvez mais escritórios cinematográficos do que há jornais na famosa "Fleet".

Na parte dos fundos do edifício camuflado, de verde-oliva, estendia-se um quarteirão inteiro em ruínas — resultado de um dos freqüentes bombardeios da Luftwaffe. Apesar de ter estado impedido o acesso por aquele lado, freqüentemente eu franqueava a barreira protetora, encurtando assim o caminho para o meu restaurante favorito, o "Czarda". O proprietário, um refugiado húngaro, realizava autênticos milagres, convertendo a limitada ração de víveres a que davam direito os cupons de racionamento londrinos, em refeições deliciosas. Contudo, dispondo raramente de mais do que uns vinte minutos para a tarefa obrigatória da alimentação (e assim mesmo quase sempre interrompidos por indagações e perguntas a respeito de serviços feitos, por colegas da redação que infalivelmente iam procurar-me naquele restaurante) nunca cheguei sequer uma vez a mastigar o meu "goulash" com o sossego e a compenetração que mereciam aquela especialidade do "Czarda". Sossego, aliás, foi algo totalmente desconhecido durante os dez meses da minha estada em Londres. Se a tarefa de escrever e redigir notícias radiofônicas em tempo de paz requer concentração e presteza, a guerra, com o seu calidoscópio de acontecimentos dramaticamente repentinos, força o ritmo de trabalho a atingir proporções alucinantes.

Na ABSIE o momento mais importante do dia era a reunião da manhã, durante a qual os chefes das diferentes seções (alemã, francesa, inglesa, escandinava, etc.) recebiam uma ou mais folhas datilografadas, conforme o grau de sua importância, marcadas "confidencial" ou "secreto", e que continham as diretrizes a seguir durante as próximas vinte e quatro horas. Havia, outrossim, uma "diretriz central' contendo as linhas gerais de nossa propaganda para um tempo mais prolongado e conforme os acontecimentos,sujeito a mudanças. Tanto a diretriz diária como a central representavam fielmente o modo de pensar do Governo norte-americano e, naturalmente, também o de seus aliados. Exceto em casos excepcionais, era bastante fácil seguir aquelas "guias do nosso pensamento", pois elas estavam geralmente baseadas em preceitos ditados pelo bom senso. Por exemplo, na diretriz central de 16 de maio de 1944, ou seja, logo após a invasão contra a "linha Gustavo" na Itália, a ordem de prioridade dos assuntos a tratar era recomendada da seguinte maneira: 1) Invasão; Itália; 2) Nações agressoras na defensiva; 3) Ofensiva aérea; 4) Dificuldades da economia alemã; 5) Qualidade dinâmica das Nações Unidas; 6) Guerra no Pacífico; 7) Guerra marítima. Elaborando sobre o assunto "invasão", que era a diretriz mais importante, assim se dizia: "Chegamos a um ponto dos acontecimentos militares que só poderá terminar com a derrota final das nações agressoras; seria útil citar as palavras do Gen. Alexander: 'foi desferido o primeiro golpe'. Recordar a Conferência de Teerã, pois foi lá que se chegou ao acordo de onde e quando seria desferido, por todos os lados, o ataque final. O ataque do lado sul já começou". Quanto à Itália, onde tropas polonesas se preparavam para o duro assalto final de Monte Cassino, a sugestão era tratar da invasão em conjunto com as outras operações aliadas na Europa. Recomendava-se, outrossim, dirigir apelos e instruções às forças da Resistência Italiana, como também aos demais dirigidos às forças de Resistência em outros países ainda ocupados ou parcialmente dominados pelos alemães. A diretriz proibia, porém, terminantemente, mencionarmos "o excelente moral dos soldados nazistas", sob a alegação — aliás correta — de que tal procedimento de nossa parte "não nos traria nenhum benefício e, além disso, apenas serviria para facilitar a tarefa dos propagandistas alemães". Também nos alertava a sermos vigilantes e procurarmos realçar a perfeita coordenação existente entre as forças aliadas, assim como, por exemplo, o apoio naval às operações de desembarque de nosso exército. "Nunca deixe de lembrar aos ouvintes que as nossas operações anfíbias foram sempre coroadas de êxito — que somos donos do Oceano". Igualmente nos era recomendado salientar o avanço conjunto das Nações Unidas não apenas no terreno militar, mas também no campo das idéias e conferências". "Os japoneses e os alemães — salientava a diretriz — acham-se agora contagiados pela mentalidade defensiva e são incapazes de impedir o avanço ideológico das forças aliadas, como são também incapazes de conter o seu avanço militar." Éramos aconselhados a demonstrar aos alemães as dificuldades cada vez maiores às quais estava sujeita "a máquina de terror nazista", abrindo assim possibilidades mais amplas para a sabotagem e a resistência interna. Quanto aos Estados Unidos, a linha de propaganda aconselhada em nossa diretriz central de 16 de maio de 1944 era a de dar ênfase ao desejo norte-americano de cooperar com as outras nações após o fim da guerra. Isto, a fim de desfazer suspeitas insidiosas de uma propalada atuação unilateral norte-americana no período de após-guerra, que seria decorrente de sua posição como o país mais poderoso dentre os beligerantes aliados. Devíamos mais, em nosso noticiário, demonstrar e confirmar a obrigação assumida pelos Estados Unidos, de não tomar nenhuma decisão sobre assuntos internacionais de relevante importância, sem antes consultar e chegar a um acordo com os seus aliados.

Em última análise, aquela diretriz central da ABSIE continha os três pontos-chaves que caracterizavam a propaganda aliada desde a Conferência de Teerã até o fim da Segunda Guerra Mundial: 1) Coordenação da estratégia aliada em obediência às decisões tomadas naquela reunião; 2) Total unidade e fraternidade de todas as armas das forças aliadas; 3) Domínio absoluto dos Aliados no ar e no mar, decorrente de uma superabundância de recursos humanos e materiais, permitindo livre escolha sobre quando e onde desferir o próximo golpe.

Apesar de serem as diretrizes centrais uma espécie de Bíblia para o pessoal encarregado das notícias e dos comentários da ABSIE, as outras, as "especiais", não eram menos importantes, possuindo além disso a vantagem adicional de atender melhor às necessidades práticas do momento, pois eram confeccionadas com a ajuda ativa de todos os chefes das diferentes seções de nossa emissora. Nas duas hipóteses, porém, tanto na composição das diretrizes centrais como na das especiais, a alta chefia da ABSIE solicitava sugestões e recomendações dos redatores-chefes departamentais, principalmente aquelas baseadas na experiência. Foi com este intuito que realizei, em fins de março de 1944, ou seja, uns 70 dias antes do início da invasão da França, uma visita de quatro dias a algumas bases aéreas norte-americanas localizadas na Inglaterra. Em caráter confidencial, cheguei a conhecer assim, especificamente, as bases aéreas operacionais dos grupos de caça 4, 375 e 55, compostos respectivamente de aviões dos tipos "Mustang", "Thunderbolt" e "Lightning". Passei dois dias e duas noites no acampamento dos aviadores pertencentes aos grupos 91 e 814 do esquadrão de bombardeios da Força Aérea norte-americana. Eu estava incumbido de sondar, em conversas informais, o estado moral das tripulações norte-americanas e, se possível, obter dados sobre o moral dos aviadores inimigos. Isto, a fim de imprimir aos programas da ABSIE o cunho mais realista possível.


Capítulo III
REVELAÇÕES SURPREENDENTES

O moral da Luftwaffe não é tão abalado como o apresentam os programas de rádio aliados — O "Messerschmitt" 109 é um caça excelente... mas o Thunderbolt" tampouco é "sopa" — Crise de moral entre os aviadores da VIII — O Gen. Doolittle, o homem mais odiado da VIII Força Aérea — "Complexo de culpa" e auto-incriminação.

 

Em fins de março de 1944 ou seja, na época de minha visita às bases aéreas norte-americanas na Inglaterra, tanto os jornais como os programas radiofônicos aliados se esforçaram por pintar um quadro dos mais negros sobre o estado de penúria material e moral da Luftwaffe, especialmente no setor dos caças. Imbuído de tal preconceito, eu esperava receber da boca dos nossos próprios pilotos, obrigados a enfrentar diariamente os seus oponentes nazistas, senão a notícia de sua derrota total, como pelo menos, a confirmação do tão propalado "baixo estado de ânimo" dos pilotos da Luftwaffe. Fiquei por isso extremamente surpreso quando, ao indagar sobre o assunto, me foi dada pelo capitão encarregado das relações públicas do Quartel General da VIII Força Aérea a seguinte resposta: "O moral dos pilotos dos aviões de caça alemães ainda é excelente". Explicou-me o oficial norte-americano que, ao invés de ter aumentado a proporção de aparelhos de caça alemães abatidos em combates aéreos, podia-se constatar, ao contrário, uma definida tendência no sentido inverso. "Já não estamos derrubando tantos caças alemães como no passado. Ficamos agora contentes com a proporção a nosso favor de dois a um ou de três a um, ao invés de cinco ou mesmo de oito ou dez a um, dos meses anteriores", disse o meu interlocutor, um tenente-coronel, portador da Medalha do Ar e da "Distinguished Flying Cross",(3) finalizando com as seguintes palavras: "Cometeríamos um erro fatal se enfrentássemos os "Messerschmitt" 109 e os "Focke-Wulf" 190 com um otimismo exagerado, baseado no teor de alguns dos nossos programas radiofônicos, segundo os quais a Luftwaffe está liqüidada e o moral dos seus pilotos destruído". Porém, tanto aquele oficial como numerosos outros por mim interrogados estavam de acordo em apontar também uma certa instabilidade na atuação dos pilotos alemães. Conforme o dia, demonstravam eles uma falta de entusiasmo que se aproximava da relutância em travar combate com os caças norte-americanos ou, ao contrário, atacavam com uma ferocidade incrível. Estava patente, outrossim, uma carência cada vez mais acentuada de pilotos experientes. Tanto assim, que muitas formações de caças alemães eram freqüentemente lideradas por pilotos de exímia perícia, porém, compostas de aviões pilotados por homens flagrantemente "verdes" ou seja, que careciam de treinamento suficiente. Estes últimos, ao seguir cegamente os movimentos do líder da formação, não somente atrapalhavam ao invés de ajudarem o seu guia-mestre na realização da tarefa bélica, como também se tornavam fáceis vítimas de nossos aviões de caça. Fato deveras surpreendente porém, de vez em quando notado pelos tripulantes dos aviões norte-americanos, era o de pilotos alemães abandonarem seus aparelhos por meio de pára-quedas, antes mesmo de terem disparado um só tiro. Os oficiais norte-americanos eram os primeiros a afirmar que tal atuação não se devia à covardia dos aviadores alemães mas, sim, ao seu extremo cansaço, provocado pela sobrecarga de missões a cumprir. Apesar de todas estas falhas, os nossos aviadores insistiam em afirmar que, de modo geral, o estado dos "Jerry"(4) ainda era ótimo, tanto do ponto de vista moral dos seus pilotos de caça, quanto da qualidade de seus aparelhos. Isto parecia, primeira vista, contradizer os dados fornecidos pelo "Intelligence Service" norte-americano, segundo os quais, em conseqüência direta dos pesados danos infligidos por nossos bombardeios às fábricas de aviões do Reich, teria havido uma acentuada queda na sua produção, queda esta estimada de 800 para somente 350 aparelhos no mês de março de 1944, ou seja, mais de 50%. Como conciliar esta informação com os relatos fornecidos pelos aviadores norte-americanos no sentido de que os aeroportos militares da Alemanha estavam repletos de aviões do último tipo? Porém, uma análise mais profunda daquela aparente contradição revelava que a concentração maciça de aviões dentro dos limites territoriais da Alemanha não era uma indicação da sua força, antes, porém, um resultado negativo ditado pela necessidade imperiosa de um reagrupamento em larga escala efetuado pelo Alto Comando do Reich na distribuição de sua Força Aérea, especialmente no setor dos caças. Diante da pressão cada vez mais crescente exercida pelas forças armadas aliadas, os líderes alemães se viram na obrigação de retirar seus caças da Holanda, Bélgica e da costa francesa, a fim de concentrá-los quase exclusivamente numa faixa territorial relativamente pequena, situada principalmente no norte e nordeste da própria Alemanha, criando assim uma ilusão de força numérica.

Quanto à qualidade dos aviões alemães, os nossos pilotos eram unânimes em elogiar o aprimoramento técnico, tanto do "Messerschmitt" 109, quanto do "Focke-Wulf" 190. Referindo-se ao temível "Me-109", um major aviador usou a seguinte expressão: "É um caça notável: rápido na subida e de uma maleabilidade excelente. Sinto apenas uma coisa — que ele seja dos alemães e não nosso." Contudo, com exceção dos "Lightning", que devido à sua vulnerabilidade eram as vítimas preferidas dos caças alemães, os aviões norte-americanos se comparavam muito favoravelmente ao "Messerschmitt" 109, como também freqüentemente o superavam tanto em velocidade como em flexibilidade. Especialmente temido pelos alemães era aquele excelente caça de altitude, o "Thunderbolt". Quanto aos "Mustangs", causaram enorme surpresa aos alemães, por ocasião de seu aparecimento bem no centro do Reich. O aperfeiçoamento técnico que apresentava aquele avião leve e veloz, capaz de penetrar quase mil quilômetros dentro do território inimigo e depois de consumir grande quantidade de gasolina em combates renhidos, retornar à sua base sem necessidade de reabastecimento, era naquela época considerado não apenas revolucionário, mas quase milagroso.

Se fiquei surpreso com as revelações feitas pelos nossos pilotos sobre o relativamente bom estado moral dos seus oponentes nazistas, maior surpresa tive ao ficar sabendo do baixo estado de ânimo reinante nas fileiras das tripulações da VIII Força Aérea. Queixavam-se, em primeiro lugar, do altíssimo índice de mortalidade entre os tripulantes dos "pássaros de traseiras de ferro"(5). Em apenas três meses, a morte provocara duas mudanças completas nos ocupantes do quartel onde estavam hospedados, perecendo nesse período 448 homens, representando quase 45 tripulações completas e ficando apenas dois sobreviventes do grupo original. "Parece-nos — disse-me um major condecorado com várias medalhas — que a VIII Força Aérea está travando a guerra sozinha". Queixavam-se os meus interlocutores, além disso, de que estavam aparentemente sendo explorados por seus superiores, ao serem obrigados a realizar, durante dias seguidos, missões de longa duração e alta periculosidade. Assim, por exemplo, um deles, o Tte. D., teve de enfrentar durante três dias seguidas o inferno da defesa anti-aérea de Berlim. Afirmavam os aviadores que a ordem de "puxar" as tripulações dos bombardeiros até o último, provinha do Gen. James H. Doolittle, que por essa razão era, naquela época, "o homem mais odiado da VIII Força Aérea". Outro general, cuja atuação foi bastante criticada, foi o Tte.-Gen. Carl Spaatz, cuja declaração, amplamente publicada: "Eliminaremos a Luftwaffe dos céus da Alemanha sem nos preocuparmos com as nossas próprias perdas" — teve como resultado baixar praticamente a zero, o já bem fraco moral da VIII Força Aérea.

Outrossim, enquanto por um lado os aviadores da VIII estavam sendo impelidos além dos limites de sua resistência, sob a alegação de que era impossível a sua substituição, publicava-se com destaque nos jornais uma declaração do Alto Comando, a respeito de uma iminente transferência de 36.000 pilotos para tarefas terrestres, criando assim a impressão contraditória de que havia sobra, e não escassez de aviadores.

Outra queixa expressa pelos tripulantes das Fortalezas Voadoras referia-se ao fato, segundo eles várias vezes ocorrido, de terem sido alvo dos ataques inimigos anunciados por certas emissoras aliadas, enquanto os bombardeiros ainda se achavam em pleno vôo, rumo ao seu destino supostamente secreto. Evidentemente, a artilharia anti-aérea alemã, agindo assim sob prévio aviso, não deixaria de preparar aos nossos aviadores uma recepção "duplamente quente"

Mas o que levava a indignação dos tripulantes das Fortalezas Voadoras ao ponto culminante, era a tarefa deles exigida, de transportarem e espalharem no território alemão, volantes contendo a indagação irônica: "Wo ist die Luftwaffe?".(6) "É ridículo fazer esta pergunta — disse-me um tenente-coronel — pois nós sabemos a resposta: A Luftwaffe está nos céus da Alemanha, destruindo os nossos bombardeiros". Teria sido uma flagrante ausência de tato da minha parte, se tivesse citado ao meu interlocutor, evidentemente exaltado e excessivamente cansado, uma série de dados estatísticos comprovando que a "invencível Luftwaffe" do Mal. Hermann Göring, apesar de todas as aparências, era agora apenas uma sombra de sua antiga magnificência.

Pela mesma razão achei prudente não me expandir sobre as excelentes razões que tinham motivado a feitura do volante "Onde está a Luftwaffe?" Com efeito, a pergunta criava um dilema psicológico praticamente insolúvel para o Alto Comando da Força Aérea Alemã chefiada pelo Reichsmarschall Hermann Göring: "Se aceitassem a provocação contida na pergunta e lançassem os seus escassos aparelhos de caça em ataques maciços contra os nossos bombardeiros, estariam arriscando a sua destruição pela força aérea dos Aliados, numericamente muito superior, o que poderia significar um golpe de proporções irreparáveis para a fortemente abalada indústria aeronáutica alemã. Se, por outro lado, Göring preferisse ignorar aquela pergunta incômoda, atrairia decerto a ira da população civil alemã, que neste caso não poderia deixar de estranhar a ausência das águias protetoras da sua Luftwaffe durante as incursões a cada dia mais freqüentes, realizadas pelos bombardeiros aliados sobre o território declaradamente "invulnerável" do Reich.

Se a tarefa de transportar volantes era considerada degradante pelas tripulações das Fortalezas Voadoras, elas tinham de se sujeitar, no entanto, ao velho conceito militar de que "ordem é ordem", levando naquelas incursões uma carga média de 250.000 a 300.000 panfletos. A única vantagem — aliás concreta — no transporte de volantes era, como o reconheceu um dos oficiais, o fato de que estes, ao contrário do que podia acontecer com uma carga de bombas, não estão sujeitos a explodir em caso de serem atingidos por uma rajada de metralhadora de um caça inimigo. Contudo, mesmo a certeza da relativa segurança inerente ao seu transporte não era suficiente para eliminar o estigma dos volantes, desdenhosamente apelidados pelos nossos aviadores, de "nickels".(7)

De modo geral, nenhum dos aviadores "de primeira linha" por mim interrogados naquele fim de março de 1944 acreditava na eficiência e utilidade da guerra psicológica. Para esses heróis do ar, que enfrentavam a morte a cada fração de segundo, o único meio de ganhar a guerra e de forçar os alemães a se renderem o quanto antes, era o castigo duro e incessante por meio de bombas e mais bombas. No entanto, guando foram por mim informados do fato de que se alguém apanhasse um folheto nosso seria punido na Alemanha com a pena de morte, demonstrando assim que os nazistas temiam a sua eficiência como arma psicológica, os aviadores da VIII ficaram bastante impressionados, admitindo todos eles, que "ignoravam completamente esse detalhe tão importante".

Outro fato que me foi revelado durante a minha permanência nos acampamentos das Fortalezas Voadoras da VIII Força Aérea norte-americana na Inglaterra, foi o da existência de "choque psicológico", resultante da repulsa que sentiam certos aviadores, em bombardear centros populosos de cidades inimigas. Freqüentemente, ao serem informados, no início da missão, que o alvo do bombardeio devia ser o centro de uma grande cidade, os rapazes que não possuíam "estômago forte" requerido para tal serviço ou que simplesmente eram dotados de uma imaginação muito desenvolvida, eram vítimas de crises nervosas, que nos casos mais graves obrigavam os seus superiores a prover a sua substituição.

Eis o estado de ânimo dos tripulantes das Fortalezas Voadoras da Força Aérea norte-americana, por mim verificado durante a minha visita a algumas de suas bases em fins de março de 1944: Homens revoltados, cínicos, decepcionados, executando a sua árdua tarefa guerreira unicamente sob a ameaça implícita da onipresente Justiça Militar. Quadro bem diferente do que era apresentado pela imprensa e nos comunicados oficiais. Evidentemente, não se devem tirar conclusões exageradas de tal estado de coisas, especialmente em vista do fato de ser a existência de queixas e reclamações um fenômeno rotineiro nas posições avançadas de qualquer frente de guerra. Não há, de fato, melhor válvula de escape para as tensões emocionais de homens vivendo "a prestações" sob o temor permanente de receberem a ordem para enfrentar a morte, do que o desabafar a sua hipertensão emocional com algumas ásperas investidas contra as falhas e injustiças da vida militar. Deve-se ressaltar, outrossim, que a grande maioria dos aviadores norte-americanos da última guerra não eram soldados profissionais. Feitas estas ressalvas convém apontar, no entanto, a validez de algumas das reclamações apresentadas pelos tripulantes dos bombardeiros da VIII e que, entre outras razões, possivelmente motivaram a fuga maciça para a neutra Suíça, de 13 Fortalezas Voadoras. Os oficiais que me relataram o fato se guardaram, bem entendido, de acusar frontalmente os seus colegas de deserção, contentando-se em opinar simplesmente terem sido apresentados "defeitos mecânicos" pelos pilotos, como causa de sua "aterrissagem forçada" em território suíço, porém "não tão graves assim..." Outro detalhe merecedor de destaque é o fato de terem sido as reclamações dos oficiais da VIII dirigidas, não contra alguns "estrategistas de café", mas sim, contra generais do mais alto gabarito individual e profissional. Assim, o Gen. James H. Doolittle, por eles taxado de autoritário dentro da VIII Força Aérea", na verdade era um dos maiores heróis da aviação norte-americana de todos os tempos, portador da cobiçada Medalha de Honra do Congresso, e justamente aclamado pelo povo inteiro dos Estados Unidos, por seu brilhante reide contra o Japão, que realizou no dia 18 de abril de 1942, liderando pessoalmente 16 bombardeiros pesados contra as cidades de Tóquio, Yokohama, Osaka, Kobe e Nagoya. Quanto ao Gen. Carl A. Spaatz, era considerado então o maior aviador dos Estados Unidos. Ganhara seus primeiros louros como aviador militar durante a Primeira Guerra Mundial, da qual saiu condecorado por heroísmo. Entrando os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, foi ao Gen. Spaatz confiado o comando da VIII Força Aérea na Inglaterra, cargo em que foi substituído pelo Gen. Ira Clarence Eaker em fins de 1942. Foi este último, aliás, que desde dezembro de 1943 ocupara o lugar de Comandante das forças Aéreas Aliadas no Mediterrâneo, que foi apontado pelos meus interlocutores como o general que mais desejariam ter como "líder". Isto, talvez em vista da teoria abertamente defendida por Eaker, de que "na aviação militar, os homens são mais importantes do que as máquinas".

Tanto Doolittle como Spaatz e Eaker eram soldados profissionais e aviadores militares da "velha escola", datando os seus brevets pela Escola de Aviação Militar, respectivamente dos anos de 1917, 1916 e 1918. Quanto ao fato de ter sido o Gen. Ira Eaker o único entre os ases da aviação militar norte-americana a passar no teste de aceitação voluntária como comandante dos seus subordinados, isto não somente é indicativo do alto valor humano daquele competentíssimo oficial (responsável, entre outros feitos, pela introdução de bombardeios diurnos de alta precisão, em estreita colaboração com a RAF), mas indica também a existência de uma certa negligência quanto ao preparo psicológico de oficiais superiores norte-americanos nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial.

Convém realçar ainda que os rapazes da VIII, apenas 70 dias após a minha visita às suas bases, recuperaram gloriosamente o seu moral, quando, subcomandados pelo Gen. Carl Spaatz, fundidos com a XV Força Aérea norte-americana e o Comando de bombardeios da RAF sob a chefia do hábil Marechal do Ar, Sir Trafford Leigh-Mallory, despejaram, meia hora antes do início da invasão da Normandia, 3.000 toneladas de bombas pesadas sobre as fortificações costeiras alemãs. Desde aquele histórico 6 de junho — o célebre "Dia-D" — até à derrota final da Alemanha em maio de 1945, a VIII Força Aérea, plenamente integrada dentro das "Forças Aéreas Estratégicas Aliadas", se dedicou, com um empenho que beirava ao fanatismo, à tarefa de martelar incessantemente o território do Reich, contribuindo assim substancialmente para o colapso total da máquina de guerra nazista.

Quanto aos resultados práticos da minha viagem exploratória, foram eles uma série de recomendações, por mim endereçadas às autoridades norte-americanas competentes, sendo algumas delas posteriormente incorporadas, de uma ou de outra forma, às diretrizes da ABSIE.

Ei-las:.

—Seria útil realçar a nossa enorme superioridade numérica em aviões, destacando a capacidade quase ilimitada de produção das fábricas norte-americanas, nunca alcançadas sequer por uma só bomba inimiga. Salientar que a superioridade numérica das Forças Aéreas Aliadas já havia atingido naquela época (março e abril de 1944) a proporção de 4 x 1 isso em apenas dois anos desde que entramos na guerra. Realçar também o impacto combinado das forças aéreas anglo-norte-americanas.

—Afirmar que estávamos na guerra há muito menos tempo que os alemães e, por essa razão, nos achávamos em condições de agüentar muito mais ainda, pois não nos sentíamos tão exauridos como eles deviam estar. Salientar, por outro lado, a constante e enorme pressão exercida sobre os caças alemães, extenuados pelo esforço ininterrupto de enfrentar os nossos aviões, que dia e noite atuavam e continuariam a atuar, em número cada vez mais crescente.

—Informar aos pilotos alemães que a produção de suas fábricas acusava uma diminuição de 50 por cento. Para comprovar esta alegação em termos a eles compreensíveis, citar a irritação dos comandantes dos exércitos alemães da Frente Ocidental, expressos em inúmeros e inúteis apelos dos generais no sentido de conseguirem aviões para cobertura das ações militares terrestres. Para comprovar que a capacidade recuperativa da Luftwaffe fora bastante afetada, realçar que as indústrias aeronáuticas alemãs se viram obrigadas a desmantelar suas instalações, danificadas pelos nossos bombardeios, e organizar uma rede de pequenas fábricas satélites, espalhadas em vasta região.

—Realçar o fato de podermos mandar os nossos caças a uma distância de mais de 800 quilômetros dentro do território do Reich onde, após dar combate aos oponentes, seus tanques ainda tinham suficiente reserva de combustível para levá-los de retorno às suas bases.

—Em palavras simples, sem vanglória, explicar e ressaltar a excelência técnica de alguns dos nossos aviões.

—Dirigir-se aos pilotos alemães, de maneira direta, realista, admitindo francamente a boa qualidade de algumas de suas máquinas. Divulgar alguns dados técnicos sobre o "Messerchmitt" 109, a fim de demonstrar que nos achávamos a par de suas excelentes qualidades, fato que não deixaria de lisonjear os pilotos alemães e de atrair sua atenção para os nossos programas de rádio.

—Demonstrar aos alemães que, apesar de toda a sua arrogância, a situação do Reich era na realidade desesperadora. Mesmo no auge dos mais pesados ataques da Luftwaffe durante o "Blitz" de Londres, a RAF sempre tinha esperança de poder receber ajuda dos Estados Unidos. De onde e de quem esperavam os pilotos da Luftwaffe receber reforços em aviões e homens?


Capítulo IV
CONTRIBUÍMOS PARA A RENDIÇÃO DE SOLDADOS DA WEHRMACHT

Dificuldades em obter material humano para a ABSIE — Faço o papel de comandante de guarda SS — Conselhos à Resistência — Música sempre música — Não conseguimos "bater" a BBC, porém superamos Nova York — Duas novidades rádiopropagandísticas fazem sucesso.

 

Ainda que seja uma tarefa importante estabelecer diretrizes "centrais" "especiais" constitui apenas parte das atividades de uma estação de rádio dedicada à guerra psicológica. Ela deve, antes de tudo, "funcionar". E funcionar com o máximo de perfeição. Assim um locutor com um sotaque ou um modo de falar que não agrade aos seus ouvintes inimigos naturalmente já predispostos contra a emissora, pode arruinar qualquer programa radiofônico do mundo, por mais brilhantemente escrito que esteja. Por outro lado, não existe locutor, por mais experiente e insinuante que seja, que possa compensar falhas graves ocorridas na redação do manuscrito, como por exemplo, o emprego de expressões vernáculas errôneas, ou simplesmente estranhas aos ouvintes. E, mesmo supondo que tenha alcançado esta combinação rara, que seria um locutor perfeito munido de um manuscrito sem falhas, o programa ainda estaria sujeito ao fracasso total ou parcial, se fosse impedido de chegar ao seu destino devido a defeitos técnicos. Fica patente assim a importância vital de uma coordenação primorosa entre estas quatro vigas-mestras de um programa radiofônico: redação, locução, produção e técnica. Se as conseqüências de falhas de cooperação entre estes elementos já se podem tornar bastante desagradáveis em tempos de paz, elas podem atingir, em época de guerra, proporções desastrosas. Isto, porque, durante um conflito, mesmo pequenos erros contribuem sobremaneira para o aumento da tensão nervosa e do aborrecimento dos ouvintes, já de si irritados e mal humorados, prejudicando dessa forma e às vezes mesmo de maneira irreparável, a receptividade do inimigo às idéias expostas.

Em vista destas considerações é fácil compreender o problema que representava a tarefa da escolha de material humano para os diferentes setores da ABSIE, onde o conhecimento perfeito de uma ou mais línguas era um pré-requisito obrigatório. Enquanto a Rússia Soviética, como também os governos nazi-fascistas, já num período bem anterior eclosão da Segunda Guerra Mundial, tinham, regularmente feito uso de programas radiofônicos em línguas estrangeiras com a finalidade de ampliar sua penetração ideológica a países longínquos o governo norte-americano se limitava à concessão de licenças a emissoras cuja finalidade principal era a glorificação de produtos comerciais. Foi necessária uma guerra global com o seu alto preço em sangue e lágrimas para despertar a consciência propagandística dos Estados Unidos, indispensável para que este país pudesse se projetar com a devida eficiência pelo mundo afora como autêntico campeão defensor dos ideaís de liberdade e democracia. Eis a razão pela qual colhidos de surpresa diante da urgência de criar, em plena guerra, um organismo governamental dedicado à divulgação de seus pontos de vista, os Estados Unidos se viram confrontados por uma ausência quase total de equipes radiofônicas poliglotas. O recrutamento de radialistas civis destinados a esse serviço altamente especializado tornava-se ainda mais difícil devido à carência de homens em conseqüência do serviço militar obrigatório e pelas exigências rigorosas do "controle de segurança" impostas pelas autoridades policiais e militares a fim de evitar a infiltração em posições já bastante "delicadas", de espiões, colaboradores nazistas disfarçados ou demais elementos traiçoeiros. Porem, mesmo superadas todas estas dificuldades, assim como os obstáculos referentes à aptidão profissional e à probidade moral, o governo tinha ainda que enfrentar a melindrosa questão do voluntariado. Com efeito, nenhum cidadão civil de uma democracia, mesmo sendo funcionário do governo, pode ser transferido a qualquer lugar que seja, contra a sua livre vontade. Se bem que houvesse um número substancial de homens e mulheres prontos a enfrentar os temidos e amplamente divulgados bombardeios de Londres, houve também aqueles que, sob um ou outro pretexto, se negaram terminantemente a trocar a cômoda vida de Nova York pelas incertezas e perigos que naquele tempo predominavam na capital britânica. Mesmo assim, apesar de todos estes empecilhos, conseguiu-se — muitas vezes a "trancos e barrancos"- o recrutamento de uma pequena de vanguarda composta de radialistas especializados em línguas estrangeiras e conhecedores dos rudimentos da guerra psicológica. Foram eles os pioneiros desta autêntica instituição norte-americana que é hoje — com todas as suas falhas e imperfeições — a "Voz da América". Contudo, tão reduzido era o seu número durante a Segunda Guerra Mundial, que éramos obrigados, em Londres, por exemplo, a preencher certas vagas com funcionários estrangeiros, procedentes, na grande maioria, dos círculos de refugiados políticos da Alemanha nazista ou de seus satélites. A expressiva maioria das nossas incansáveis e eficientes secretárias pertenciam a essa categoria. Não há palavras de elogio, por mais eloqüentes, que possam compensar a dedicação e o esforço dessas moças as quais, desafiando o cansaço e o medo, logo se tornaram auxiliares indispensáveis da ABSIE. No fim do ano de 1944, ou seja, no auge de nossas operações em Londres, o número total de funcionários do OWI pertencentes tanto à ABSIE como a outros setores da guerra psicológica na Europa era cerca de seiscentos. Entre os homens em posição de chefia ou dos que direta ou indiretamente participavam das atividades da ABSIE houve um regular número de personalidades de projeção, entre os quais o comentarista de rádio Elmer Davis, o dramaturgo Robert Sherwood, C. D. Jackson (que mais tarde iria ocupar o posto de diretor do Time & Life), Pierre Lazareff, após a guerra diretor do France-Soir, o maestro Glenn Miller (tragicamente desaparecido num vôo de Londres a Paris em dezembro de 1944), o cantor Bing Crosby (que naquela época demonstrava uma invencível alergia pelos aviões, insistindo a todo custo, em atravessar o Atlântico em navio), e outros mais. Ligado ao nome de Pierre Lazareff, que naquela ocasião chefiava o Departamento francês da ABSIE está a lembrança da minha participação num programa radiofônico por ele escrito. Fui escolhido — embora não fosse locutor e sim redator — em vista do meu feliz domínio da língua alemã, para desempenhar diante do microfone o papel de um comandante dos temíveis SS nazistas, os Schutzstaffeln, guardas de elite do regime nazista, portando os amplamente conhecidos uniformes pretos, com o distintivo de uma caveira no gorro. Eis o que o manual oficial sobre a organização do partido nazista diz, a respeito dos SS: "Fidelidade, honra, obediência e coragem determinam o modo de agir do homem SS. Sua arma (punhal) ostenta a inscrição conferida pelo Führer: Meine Ehre heisst Treue(8)! Ambas as virtudes estão indissoluvelmente ligadas. Quem peca contra elas, torna-se indigno de pertencer à Schutzstaffel". Apesar desses termos tão grandiloqüentes e bonitos, eram justamente os SS os encarregados das mais cruéis tarefas de repressão, inclusive da exterminação de judeus. O manuscrito, de autoria do próprio Lazareff, reproduzia de forma dramatizada o fato verídico de um interrogatório dos carrascos do campo de concentração Lyublln, localizado no território polonês, então recém-libertado pelos exércitos soviéticos. Francamente, não apreciei o papel a mim atribuído. Conformei-me, porém, quando dei conta de que a parte do diálogo reservado a um dos meus redatores era muito pior. Este — por sinal homem de uma bondade e sensibilidade notáveis — estava representando um guarda de Lyublin, que condenara uma jovem polonesa de 29 anos — por não se ter despido com bastante pressa — a morrer queimada viva no forno do crematório daquele campo de horror.

O fato de ter sido o departamento francês o divulgador, com destaque, das atrocidades cometidas pelos nazistas, não foi fortuito, mas era decorrente do seu propósito propagandístico de tornar conhecidos os fatos dessa natureza, a fim de inflamar ainda mais o ódio das forças francesas de resistência contra os alemães. Por outro lado, nós, do departamento alemão da ABSIE, usávamos a arma das atrocidades nazistas com bastante discrição e somente em ocasiões especiais. Isto, a fim de não sublinhar demais o fato da culpabilidade do povo alemão. Adotávamos esta linha propagandística, não por razões sentimentais, mas com o intuito de evitar que o medo do justo castigo servisse de mais um motivo para os dirigentes nazistas incitarem o povo alemão a resistir "até o último", prolongando assim a guerra que as irradiações de nossa emissora se esforçavam por abreviar.

A celebridade do departamento alemão da ABSIE — bem que a altos brados talvez protestasse contra tal designação — era Golo Mann, um dos filhos do escritor alemão Thomas Mann, e hoje um dos destacados historiadores e professor universitário na República Federal Alemã.

Thomas Mann, com o advento do nazismo na Alemanha, tinha se transferido com toda a sua família para os Estados Unidos. Seu filho Golo, naturalizado norte-americano, servia nas fileiras do exército ianque onde, com imensa mágoa naquele tempo, ocupava o posto de soldado raso. Achava-se ele na ABSIE a título de "empréstimo" pelas autoridades militares norte-americanas, que haviam chegado à conclusão de que o seu indiscutível talento pela polêmica política poderia ser aproveitado com muito mais vantagem numa emissora de rádio do que num campo de batalha.

Uma amizade sincera nos unia, apesar da sua expressão facial um tanto carrancuda, mas que não lograva esconder um coração de ouro.

Durante um dos nossos freqüentes encontros num dos restaurantes da Wardour Street, enquanto saboreávamos um vinho tinto, mencionei a Golo o boato, segundo o qual seu pai (falecido em 1955) teria expressado a intenção de se candidatar a presidente na república que deveria surgir das cinzas do nazismo alemão. Golo alvitrou que, em vista das numerosas e insistentes proclamações de Thomas Mann ao povo alemão, era bem possível que este realmente alimentasse "ambições presidencialistas, seja porque achasse isto o seu dever perante o povo, seja por vaidade." Golo apressou-se a acrescentar que não podia nem desejava dar conselhos ao seu célebre pai, mas que estava definitivamente contra a idéia. "Se isso acontecer, ele terá que me mandar como attaché para a Nova Zelândia". A especialidade de Golo Man na ABSIE era escrever comentários políticos, dos quais chegou a produzir algumas centenas, todos caracterizados pelo mesmo estilo mordaz que ainda hoje o destaca como historiador. Eis, a título de exemplo, parte de um comentário escrito por ele, em julho de 1944:

"Tem-se afirmado freqüentemente que o importante nesta guerra não é tanto a conquista do terreno, mas sim a destruição dos exércitos. Uma vez vencido o exército, a conquista do país se realiza automaticamente. Quais são então as perdas alemãs desde o início da ofensiva aliada decidida em Teerã pelas Nações Unidas? Os alemães perderam: na frente Oriental, 381.000 homens entre mortos e feridos, assim como 158.000 homens em prisioneiros; um total de quase 540.000. Na frente do Mediterrâneo: 100 000 entre mortos e feridos e de 50 a 60.000 prisioneiros; um total, pelo menos, de 150.000 homens. Na frente Ocidental: 16.000 em mortos, 80.000 em feridos e 100.000 em prisioneiros; um total de 196.000 homens. Em todas as três frentes, os exércitos alemães perderam, desde o dia 12 de maio de 1944, 900.000 homens entre mortos, feridos e prisioneiros. Porém, mesmo estas perdas são apenas um começo. Com o ritmo que a guerra mecanizada está tomando no Leste e no Oeste, outros exércitos serão cercados, outras destruições e rendições se produzirão. Hoje, os exércitos vermelhos, em conjunto com as forças de resistência polonesa estão efetuando a libertação da Polônia ainda mais rapidamente do que a sua escravização pelos alemães em setembro de 1939; os americanos estão libertando a França ocidental mais depressa do que a conseguiram conquistar as colunas blindadas do Mal. Witzleben em 1940. O que os jornais alemães estão escrevendo hoje, é absolutamente certo: os americanos estão mesmo usando métodos soviéticos. Como também é correta a afirmação de usarem os russos, métodos alemães. Mas em proporção dez vezes maior. A guerra-relâmpago travada pelos nazistas em 1940 contra povos desprevenidos, está sendo retribuída agora, de todos os lados, com juros e juros de juros".

Este comentário de Golo Mann, apesar de ser dirigido especificamente aos exércitos inimigos, tinha também força psicológica penetrante, em relação ao povo alemão em geral. Mas não somente à Alemanha estava dirigida a propaganda da ABSIE. Nosso esforço também estava concentrado em constantes apelos radiofônicos às Forças de Resistência, tanto organizadas como também em potencial, nos territórios da Europa Ocidental ainda ocupados pelos alemães. Eis um destes apelos, lido em nossa emissora a 14 de junho de 1944 — ou seja, apenas cinco dias antes do início da invasão da Normandia: "... vocês não estão sós. Todos ao seu redor pensam e sentem o mesmo. É o inimigo, e não vocês, que se sente isolado. São os soldados alemães e os "Quislings" que se sentem nervosos e desorientados. Os amigos nos quais vocês podem confiar, são já seus conhecidos. Formem junto com eles pequenos grupos e debatam o melhor meio pelo qual vocês poderão ser úteis mais tarde. Fiquem de sobreaviso para, quando a hora vier, poderem prestar auxilio ativamente, onde quer que seja: apagando incêndios, prestando serviços de pronto-socorro, observando os movimentos das forças armadas inimigas ou simplesmente espalhando as notícias da nossa emissora. Tais grupos possuem grande importância. Quanto menores, melhor — por razões de segurança. Pode ser que vocês já possuam um círculo de 10 ou 12 amigos íntimos ou parentes. Se realmente os conhecem bem, tudo está em ordem. No entanto, um grupo menor, geralmente de umas 4 ou 5 pessoas, será melhor. Vocês acabaram de ouvir a 6a. instrução operacional dirigida, de acordo com os planos do Alto Comando Aliado às populações dos territórios da Europa Ocidental, ocupados pelos alemães. A 7a. instrução operacional seguirá segunda-feira 5 de junho".

Um dos mais importantes meios propagandísticos usados pela ABSIE para captar a atenção dos alemães era a música — principalmente o jazz. Deve existir nos arquivos do governo norte-americano uma série de discos gravados pelo tragicamente desaparecido Glenn Miller — então Major Glenn Miller — que regularmente foram irradiados em nossos programas. Eram ouvidos e apreciados pelos alemães, principalmente os jovens. Isto, apesar do esforço renhido da propaganda alemã, em difamar o jazz como "música de negros" indigna de um povo civillzado, Ficou amplamente demonstrado, durante a época nazi-fascista como também nos países comunistas de após-guerra, que não existe proibição, por mais severa que seja, apta a impedir a penetração do jazz dentro das cidadelas do totalitarismo. Embora caçoássemos, às vezes com ar de superioridade, do jazz e de outros ritmos da música moderna, constituíam eles, falando em termos de propaganda, um dos nossos melhores aliados na luta contra o isolacionismo totalitário. Para demonstrar a imensa força da música mesmo em plena guera, eis o extrato de uma carta escrita por uma jovem alemã em dezembro de 1944, e cujo original ainda se encontra em meu poder. Na carta datada de Munique, a moça aparentemente possuidora de elevado senso de humor escreve:

"Caro tio:

... já, já, vou agarrar-te pelos cabelos por teres chamado o meu "swing" um baile de negros. Oh! estou zangada contigo! Asseguro-te que o "swing" é lindo e o repetirei tantas vezes até que chegues a acreditá-lo. Uma valsa é "cacete" e já tem uma baaaaaaaarba tãooooooooo cooooooooomprida!!!!

TUA MARIELLE"

Isto foi escrito em plena época de bombardeios maciços das cidades do Reich pela Força Aérea norte-americana, por uma moça nascida e criada sob o chicote propagandístico do nazismo.

No exercício da minha função de redator-chefe, tive a sorte de poder desfrutar de quase total autonomia de ação, dando, por meu lado, igual liberdade aos redatores. Assim mesmo achei útil estabelecer as seguintes linhas-mestras a serem obedecidas na confecção dos noticiários:

1.) Não estamos empenhados em produzir obras-primas literárias, mas sim, programas dirigidos à Alemanha nazista onde a escuta dos mesmos é sujeita à pena de morte. É legítimo supor que, na iminência de serem descobertos por possíveis delatores, alguns dos nossos ouvintes alemães se verão na contingência de subitamente desligarem os seus receptores, talvez perdendo assim trechos importantes do programa. Torna-se imperativo, por isso, o uso constante de repetições, tanto de palavras como de sentenças.

2.) Não dramatize, não teça comentários, não acuse, não minta, não insulte.

Porém, com o correr do tempo e o avanço espetacular dos exércitos aliados depois da invasão da Normandia, decidi desobedecer em parte as minhas próprias recomendações, criando uma espécie de introdução dramatizada, como esta que precedia o noticiário de 12 de setembro de 1944:

"A errônea estratégia de Hitler vem produzindo os seus frutos — a Alemanha se transformou numa praça de guerra. Foi iniciada a marcha dos exércitos aliados em direção a Berlim. Cidades e aldeias alemãs jazem em chamas e ruínas. A guerra que partiu da Alemanha, agora alcançou a sua própria terra. Ë uma guerra perdida, pois erguidos contra a Alemanha estão o poder superior e a determinação de todo o mundo civilizado, com esta única finalidade: extirpar o nacional-socialismo, com as suas raízes, para sempre...

Em seguida, o resto do noticiário do dia, em sua forma fria e tradicional. Conforme soube depois, o contraste entre a fase dramática do início e a seqüência seca das notícias não deixou de impressionar e de atrair a atenção dos ouvintes alemães. Tanto assim que, de acordo com os dados estatísticos compilados pelo nosso "posto de escuta" em Berna, Suíça, o noticiário em língua alemã da ABSIE já havia superado naquela época a emissora do OWI em Nova York, chegando a conquistar o segundo lugar quanto à preferência dos ouvintes alemães. Entretanto, dando o seu a seu dono, devo confessar que nunca conseguimos derrubar o noticiário da nossa "concorrente" em solo londrino, a tradicional BBC, da sua merecida primazia.

Criei, outrossim, duas outras modalidades de dramatização de notícias. Se as menciono aqui não é no intuito de me vangloriar do sucesso que obtiveram, embora não possa negar que fiquei satisfeito com tal resultado, mas porque acho que podem contribuir para uma melhor compreensão das idéias e propósitos que a palavra escrita e falada inspiram, na guerra psicológica.

A primeira, por mim denominada — "Fatos são mais fortes que palavras" — explorava o erro dos líderes nazistas de se terem vangloriado demais de sua suposta invencibilidade. Desprezar o inimigo e gabar-se de sua própria força, podem ser ótimos meios de propaganda interna para ganhar adeptos quando tudo vai bem. Porém, quando as coisas "empretejam", a jactância anterior não demora a se converter num temível bumerangue. Seguem-se alguns exemplos de "Fatos são mais fortes que palavras", como foram irradiados diariamente pela ABSIE, a partir de novembro de 1944:

(Introdução musical por meio de uma forte e ressonante batida de gongo) Locutor: Hermann Göring disse no dia 13 de janeiro de 1941: Quando eu comparo o número ridículo de bombas inimigas com a quantidade cem ou mil vezes maior da que despejamos contra eles, posso afirmar que também nesse sentido não pode haver comparação entre eles e nós... Em todo o território do Reich as nossas indústrias bélicas se erguem incólumes. Não há sequer uma só das nossas indústrias, uma só das nossas fábricas, que tenha sido eliminada pelo inimigo. Assim falou Göring. Eis os fatos: Hoje não existe quase nenhuma indústria bélica dentro dos limites territoriais do Reich que não tenha sido destruída ou gravemente danificada pelos ataques aéreos aliados. Indústrias que no tempo de paz significavam riqueza e trabalho para a Alemanha, entre as quais a AEG, a IG. a Siemens und Halske, a Borsig e as Indústrias Leune." Batida do gongo...fim.

Eis outro "Fatos são mais fortes que palavras", sempre iniciado e concluído por uma sonora e impressionante batida de gongo:

"Num folheto alemão dirigido aos habitantes de Metz, lemos as palavras: O adversário necessita da cidade de Metz. Ele não é capaz de conquistar ou ultrapassar Metz. Mas os aliados já ultrapassaram Metz em ampla frente rumo ao Oeste".

Quanto à outra dramatização, como atrás referido, intitulava-se "Viva para a Alemanha". Idealizada numa fase de guerra que muitos já consideravam final, ou pelo menos precursora da derrota, seu propósito era demonstrar aos alemães a necessidade transcendental de salvarem a sua própria vida — não por covardia, mas no intuito de sobreviverem para o bem de uma Alemanha livre. Não somente se dava este conselho, mas providenciava-se um sem-número de métodos para sua realização com o mínimo de perigo, tanto do lado alemão como do nosso. Eis um exemplo de "Viva para a Alemanha":

(Introdução musical: rufar de tambores). Locutor: "Apenas na Frente Ocidental quase 750.000 soldados alemães depuseram suas armas a fim de render-se. Eles pertencem ao crescente número daqueles alemães que já chegaram à conclusão de que a guerra está perdida para a Alemanha. Recusam-se a morrer para os chefes nazistas porque desejam continuar vivendo para a Alemanha. Como puderam realizar o seu intuito? Como é possível preservar a vida para a Alemanha e o futuro da Alemanha, apesar da incessante vigilância da Gestapo? Em nossas irradiações transmitiremos regularmente informações baseadas em fatos, a respeito da gente alemã que soube encontrar meios e modos de se libertar da camisa de força da Gestapo. Apresentamos hoje a seguinte notícia (rufar de tambores): Prestem atenção para o fato de como um soldado alemão do corpo de engenheiros conseguiu isto. Um soldado alemão na frente Ocidental, que se rendeu aos americanos. Antes de se dirigir à "terra de ninguém" por onde era obrigado a passar para atingir as posições americanas, aquele militar teve a precaução de munir-se de um alicate. A uns dez metros, antes de chegar ao campo de minas terrestres, estendeu-se no chão e, debruçado, começou a apalpar o caminho. Logo os seus dedos sentiram um fio de arame. Ele sabia que de modo algum devia puxar aquele fio, e portanto, cortou-o com o alicate. Assim, o perigo de explosão da mina foi eliminado. Depois de passar por quatro minas, o soldado alemão ficou certo de que havia chegado ao limite do campo minado. Achava-se agora na "terra de ninguém". Permaneceu tão quieto o quanto possível a fim de não atrair a atenção dos guardas especiais ali postos pelos nazistas. Desfez-se das armas e, uma vez a uma distância segura, levantou os braços. Eis o que nos conta, com as suas próprias palavras: Pensei que fosse muito mais difícil a gente se render. Outrossim, tive a impressão de que as minas tinham sido colocadas não somente contra os americanos, mas também contra nós, soldados alemães. (Rufar de tambores.) Locutor: Vocês acabam de ouvir uma história verídica sobre as experiências de um soldado alemão de uma unidade do corpo de engenheiros, o que se rendeu aos americanos na Frente Ocidental, salvando assim a sua vida para a Alemanha. Fiquem atentos para notícias semelhantes em transmissões futuras".

Entre os cento e tantos "Viva para a Alemanha" que, a partir de novembro de 1944 foram divulgados pelas ondas da ABSIE, um número substancial tinha o objetivo de dar conselhos práticos de como poder escapar com o mínimo de perigos, rumo às linhas norte-americanas, conselhos estes dirigidos ao número cada vez maior de soldados da Wehrmacht separados das suas unidades.

Foi interessante a reação do nosso posto de escuta em Berna, logo após a irradiação do primeiro "Viva para a Alemanha":

"Até que enfim! Nada é mais importante, tanto do ponto de vista prático como do propagandístico, como estes conselhos aos soldados alemães! Quer dizer, conselhos práticos! Como se comportar em determinadas circunstâncias, como fugir para as linhas americanas, como ser capturado, etc. É ótimo que tais conselhos sejam dados agora; é de grande valor psicológico; de certo modo, o ouvinte fica convertido em cúmplice dos aliados! Assisti 'Viva para a Alemanha' na companhia de dois alemães. Ao ser irradiada aquela parte do programa, os dois 'endureceram' na cadeira — ansiosos de 'pegar' cada palavra pronunciada. É justamente este o efeito que deve ser produzido pela rádio-propaganda. A parte musical também contribui para o sucesso de 'Viva para a Alemanha'. O rufar inicial de tambores logo atrai a atenção dos ouvintes. Os acordes finais, entrelaçados com as últimas palavras, dão ritmo e sentido de ação. Em suma, tanto do ponto de vista do conteúdo como da produção, um programa de alto valor propagandístico".

Porém, o melhor testemunho do sucesso de "Viva para a Alemanha" — melhor do que os elogios do "posto de escuta" e da chefia, melhor mesmo do que as declarações autênticas de um grande número de prisioneiros alemães (confessando que "certas irradiações" da ABSIE e especialmente o programa "Viva para a Alemanha" tinham sido os fatores decisivos de sua rendição), melhor que tudo isto, era o reconhecimento indireto, das próprias autoridades alemãs, de que a nossa propaganda "doía". Não há nada mais revelador da ira impotente da chefia nazista, diante do número cada vez maior de desertores da Wehrmacht e da crescente variedade de "truques" por eles empregados para efetuar a fuga, do que o seguinte folheto distribuído aos milhares no território do Reich e cujo conteúdo parcial rezava:

"Alguns indivíduos miseráveis e irresponsáveis tentam, nestes dias, quando a vida e a morte de todo o povo alemão acham-se em jogo, subtrair-se ao seu dever de soldado, 'pinicando' covardemente do front. Eles se desfizeram de suas armas ou, inventando pretextos fúteis, conseguiram escapar às ordens de seus superiores e do seu dever na frente de combate... cada soldado decente que, por alguma razão acaba de ser desligado de sua unidade, sabe que é obrigado a apresentar-se no próximo posto de comando. Aqueles covardes, porém, tratam de abusar do bom coração e da ignorância da população civil a fim de, com o seu auxílio, escapar da frente de combate e assim salvar a própria pele... QUEM ACOLHER TAIS INDIVIDUOS SEM OS DENUNCIAR IMEDIATAMENTE, SERÁ INCRIMINADO DE CUMPLICIDADE E AJUDA À DESERÇÃO..."


Capítulo V
V-1, V-2 E... ÂNIMO

As chamadas "armas de represália" do Reich são bastante eficientes, tanto do ponto de vista destrutivo como do moral — A propaganda nazista vê Londres em ruínas — O "Daily Dispatch" exige o bombardeio de uma cidade alemã para cada bomba voadora que apareça sobre Londres — Terror quíntuplo produzido pelas V-1.

 

Viver um bombardeio é uma coisa. Descrever um bombardeio é outra. Descrever, depois de algum tempo um bombardeio, ou melhor, a sensação experimentada durante um ataque de bombas voadoras é algo diferente. Em suma, os bombardeios, como as doenças e outras coisas desagradáveis da vida, são esquecidos. Felizmente. Se falo aqui das bombas voadoras (V-1) e das bombas-foguete (V-2), é porque podem ser consideradas as precursoras, não somente de um tipo de arma nova, altamente destrutiva, como também de um meio de semear o terror coletivo. É verdade que no decorrer dos anos que nos separam daquele tempo, a Ciência tem "brindado" o mundo com bombas atômicas, de hidrogênio e outros engenhos semelhantes. Ainda assim, os princípios básicos de terror coletivo por meio de ataques dirigidos — sob vários pretextos mais ou menos válidos — contra centros populosos, ainda permanecem intactos, O que mudou, evidentemente, foi a proporção do efeito destrutivo das novas armas, que mais e mais se encaminham para um resultado global.

Assim, o que sentiu em 1944 o habitante de Londres, poderá acontecer hoje com o habitante, não apenas de uma cidade, mas de todo um país; e amanhã, não apenas de um país, mas do mundo inteiro. Creio que, ao inteirar-se qualquer pessoa, de certos aspectos da atuação das bombas voadoras e bombas-foguete, poderá obter "em miniatura" uma idéia do que poderá ser uma guerra total do futuro.

Mais ou menos dois anos antes da primeira V-1 fazer a sua aparição nos céus londrinos, ou seja, nos meados de 1942, os engenheiros e cientistas da Luftwaffe alemã lograram aperfeiçoar, nos seus centros de pesquisa, um "torpedo-aéreo" movido a jato. O projétil, em forma de aviãozinho, tinha duas asas de uns seis metros de envergadura, um corpo estreito de uns quinze metros de comprimento e uma hélice. Um dispositivo "contador", ligado à hélice permitia, baseado num cálculo de suas rotações, a pré-regulagem do engenho a uma certa quilometragem. Quanto ao rumo geral do seu vôo, era determinado por ocasião de seu "catapultamento" de uma plataforma de lançamento inclinada, de concreto armado.

Ao alcançar o FI-103, mais tarde denominado V-1 (Vergeltungswaffe n.° 1, ou seja, "arma de represália" n.° 1) a sua distância predeterminada, o contador de rotações, ligando uma chave de seu sistema elétrico, fazia baixar o leme daquele "aviãozinho sem tripulação" e, cortando simultaneamente o suprimento de combustível, o mandava ao solo. Apesar de ser dotada de uma carga de dinamite relativamente fraca, equivalente apenas ao de uma mina terrestre de uma tonelada, o efeito destrutivo da V-1 era considerável. Isto, devido ao efeito horizontal de sua explosão. Realmente, aquele "aviãozinho da morte" costumava voar a altitudes relativamente baixas, alcançando o seu alvo, mais ou menos planando. A explosão de sua carga de dinamite produzia-se no momento exato em que ele se chocava contra um prédio ou contra o solo. Não penetrando profundamente dentro do alvo, a explosão da V-1 se produzia praticamente na superfície do solo, acompanhada de um violentíssimo deslocamento de ar em sentido horizontal. Este fato aumentava consideravelmente o seu raio de ação, pondo em perigo não somente a área imediatamente atingida, como também prédios mais afastados. Foi em vista daquele altamente perigoso deslocamento de ar, que as autoridades da defesa aérea recomendaram à população londrina para dominar o seu instinto de conservação, e não fugir à aproximação de uma V-1, mas a pessoa devia deixar-se cair no chão, dobrar o braço direito por cima da cabeça, cobrindo com o cotovelo e a mão as duas orelhas, enquanto a mão esquerda taparia a boca e as narinas. Isto era para evitar ao máximo a penetração da forte corrente de ar da explosão e evitar um "estouro" dos pulmões e dos tímpanos.

Bem reconheço que este conselho era evidentemente útil, mas confesso que — mesmo nos momentos em que parecia estar na iminência de ser alcançado por uma V-1 — nunca cheguei a executar aquela "ginástica iogue", de movimentos autoprotetores. Não por ser dotado de sangue frio fora do comum, mas devido ao efeito congelador e paralisador que exerciam as bombas voadoras, quando chegavam "realmente perto".

A altura de 200 a 1.000 metros em que geralmente voavam as V-1, assim como o fato de sua velocidade não exceder 800 quilômetros horários, permitiram aos caças modernizados da RAF, guiados pelo radar, interceptar e derrubar grande parte daqueles projéteis. O fato de não possuírem eles canhões ou metralhadoras para se defenderem, foi outro fator favorável que facilitava a tarefa dos aviões da RAF. Porém, mesmo considerando o alto índice de perdas das V-1, das quais apenas aproximadamente uma em duas conseguia chegar ao seu destino, alguns milhares desses engenhos altamente destrutivos caíram em Londres, causando apenas durante as três primeiras semanas de sua atuação (15 de junho a 6 de julho de 1944), um total de aproximadamente umas 10.000 vítimas, das quais 2.572 mortos.

As primeiras bombas voadoras que vi, caíram no perímetro de Londres durante a noite de 15 para 16 de junho de 1944, ou seja, uns dez dias após o início da invasão aliada na Normandia. A população, intrigada pelo troar quase ininterrupto da artilharia anti-aérea e a freqüência das explosões ainda misteriosas, começou a ventilar a possibilidade de se tratar das chamadas "armas secretas" de Hitler, lançadas na batalha pelo Führer como uma espécie de contra-golpe psicológico pela derrota sofrida no Continente Europeu. As 6,15 da manhã do dia 16, ouvi um programa radiofônico em língua castelhana, procedente da Alemanha, dando uma descrição dos supostos "danos colossais" causados à capital britânica durante a primeira noite de ação das "armas secretas". A emissora alemã pintava para os seus ouvintes em todo o mundo um quadro dantesco de um presumido holocausto de destruição sem par, provocado pelas explosões de "meteoros carregados de dinamite". Dizia o locutor alemão que a capital britânica estava se cobrindo de crateras de 25 metros de profundidade, enquanto imensos incêndios "visíveis a uma distância de 200 quilômetros" ardiam nos quatro cantos da cidade. Em vista disso, afirmava a emissora nazista, teriam sido adotadas medidas urgentes, visando uma evacuação maciça da população londrina, que na espera ansiosa das últimas notícias, se aglomerava diante das bancas de jornais. "Agora sim", dizia com ar de triunfo o locutor alemão, "os ingleses, que semearam ventos, estão colhendo tempestades. Mas isto é apenas o início. Outras armas secretas, mais terríveis ainda, virão em breve, para serem lançadas contra a Inglaterra na hora oportuna."

O único detalhe correto do "colorido" relato da emissora alemã, o qual pude verificar naquele primeiro dia de ação das bombas voadoras, foram os agrupamentos de cidadãos londrinos em torno de cartazes colados nas paredes de inúmeros prédios do centro da cidade. Ostentavam estes, em letras garrafais, as palavras "THE PILOTLESS PLANE" (O Avião sem Piloto) e informavam ter sido Londres atacada durante a noite, por "aviões sem tripulação". Aconselhava-se à população conservar-se em calma e não divulgar o local das explosões. Uma anotação no meu "diário de guerra", feita dois dias depois, ou seja, no dia 18, desmente o boato espalhado pelo Ministério de Propaganda do Reich, segundo o qual a cidade de Londres estava tomada de pânico, nas seguintes palavras: "Apesar da teoria lançada por "Herr" Goebbels de que Londres é uma cidade em pânico, tudo está tão calmo quanto antes. Mesmo ao assistir hoje, de perto, a queda de uma bomba voadora, não pude constatar nem gritaria, nem outro sinal de pânico. É verdade que uma compacta massa humana — igual aos curiosos em todo o mundo — avançava em direção do local atingido, porém sem brados nem histerismo. A escavação do lugar para retirada de cadáveres e dos feridos soterrados em baixo dos escombros foi efetuada com metódica serenidade. Nas ruas vizinhas, a ininterrupta corrente humana da metrópole seguia calmamente ao encontro de suas múltiplas tarefas diárias, como se nada houvesse acontecido".

Numa outra anotação, de alguns dias mais tarde, encontro a seguinte descrição de uma das bombas voadoras por mim vista: "O engenho voava bastante alto, aproximando-se a grande velocidade. Acompanhava-o um ronco estrondoso, bastante fora de proporção ao seu tamanho relativamente reduzido; tal ruído se assemelhava a um insistente uivo, ora crescendo ora diminuindo, como se fora uma gigantesca broca de dentista. Era pintado de preto e tinha a forma de um aviãozinho estreito, sobremaneira alongado, dotado de um par de asinhas de forma retangular, algo parecido com as barbatanas de um peixe, e possuía também um leme achatado. Repentinamente, uma chama curta, porém forte, de cor avermelhada de envolta com fumaça, saltou de sua parte traseira. Logo em seguida, o estrondo ensurdecedor do engenho cessou. Planando silenciosamente uma boa distância sem perder altura, o projétil, carregado de dinamite, foi aos poucos se abaixando, finalmente desaparecendo. Logo após ouvi o estrondo da explosão. Uma coluna de fumaça cinza-amarelada se erguia lentamente do local atingido". Posso afirmar sem exagero, que o aspecto geral da capital britânica, mesmo no auge dos ataques maciços das bombas voadoras permaneceu praticamente inalterado. Porém a atuação ininterrupta dos "doodle-bugs" (besouros zumbidores) ou "buzz-bombs" (bombas zumbidoras), como foram apelidados esses engenhos, não deixou de exercer profunda influência no estado psíquico dos habitantes de Londres. Realmente, pouco a pouco, com o decorrer dos dias e das semanas, ao aumentar o número de tragédias individuais, assim como a fileira de prédios devastados, uma permanente inquietude começou a tomar conta da população. Esse estado de ânimo ficou ainda mais agravado pela sensação de desamparo provocada pelo fato de se terem praticamente silenciado, tanto as sirenas de alerta, como as baterias anti-aéreas desde o segundo dia do aparecimento das bombas voadoras. O fato é que tocar a sirena ou disparar a artilharia anti-aérea para cada bomba voadora que se aproximasse, às vezes, sem parar, nas horas mais diversas do dia ou da noite, teria significado a paralisação de todas as atividades de Londres. Querendo ou não, os homens, mulheres e crianças da capital britânica teriam que se sujeitar às visitas constantes daqueles aviõezinhos sem tripulação, pintados de um preto sinistro, e cuja descida significava impreterivelmente a morte e a destruição. Houve aqueles que não conseguiram ajustar o seu sistema nervoso à ameaça permanente da morte e, que após uma luta mais ou menos prolongada com o próprio orgulho, emigravam para o campo. Houve os que, procurando descansar pelo menos à noite, superlotavam os abrigos aéreos e os túneis do "subway". Porém, a esmagadora maioria dos londrinos permanecia na capital, voltando, após um dia de trabalho e medo, às suas moradias para enfrentar outra noite de insônia.

Do ponto de vista da guerra psicológica, as V-1 eram uma arma de atuação quíntupla, exercendo as seguintes modalidades de terror:

1. Terror auditivo, simbolizado pelo zumbir-uivar anunciando a sua aproximação.

2. Terror visual, caracterizado pela cor negra do engenho e a chama avermelhada que expelia (este último detalhe mais impressionante à noite).

3. Terror de "suspense" proporcionado pelo intervalo de silêncio angustiante entre a paralisação do motor e a descida final da bomba voadora rumo à terra.

4. Terror do susto, provocado pelo estrondo da explosão final.

5. Terror de desolação, exercido pela imagem da coluna de fumaça roliça, de cor cinza-amarela, que se erguia do local atingido.

Havia, além do mais, o nervosismo provocado pelo "black-out" e o constante receio de ser a pessoa atingida a qualquer momento, de dia ou à noite, no ônibus, em casa, no restaurante, tomando banho, assistindo cinema, no escritório ou na fábrica, por uma carga voadora de dinamite — e obtém-se assim uma pálida imagem do que viveram os londrinos durante aqueles longos meses, quando reinava suprema na capital britânica, a "morte voadora".

Por seu lado, a propaganda alemã tratava evidentemente de tirar o máximo proveito de um assunto tão espetacular como eram as bombas voadoras, do ponto de vista da guerra psicológica, tanto mais que os exércitos de Hitler estavam sendo "sovados" em todas as frentes da Europa e as grandes cidades do Reich estremeciam sob o impacto dos bombardeios maciços da Força Aérea dos Aliados. Um preferido, e aliás bastante eficiente meio propagandístico empregado pelos alemães era a divulgação, pela sua rádio e imprensa, de relatos absolutamente verídicos feitos por correspondentes norte-americanos ou outros observadores pertencentes ao lado oposto, sobre a atuação das V-1 em Londres. Assim, por exemplo, o Deutsche Zeitung in Norwegen com evidente satisfação publicou os seguintes trechos de uma reportagem escrita por um "correspondente dos Estados Unidos":

"Dia e noite o terror e o medo são os nossos companheiros inseparáveis. Não há descanso. Apenas cessa um alarme aéreo, a população já está levantando as orelhas para o próximo". Conta o correspondente que ele tinha a impressão de ter sido abandonado na Inglaterra, sozinho e despido — tal a sua sensação de completo desamparo. O autor da reportagem — continua o Deutsche Zeitung in Norwegen — dá a seguinte descrição (aliás perfeitamente correta) da aproximação de uma bomba voadora: "O zumbido cresce e converte-se num uivo prolongado. A gente está de pé, mais ou menos paralisada, ao ouvir o rugir da bomba que passa por cima. Segue-se então um silêncio repentino, e ouve-se à distância o troar da explosão. O estômago se 'revira'. Os dedos ficam gelados e as palmas das mãos umedecem. A gente tenta fumar, trabalhar e furtivamente procura encontrar um espelho a fim de certificar se o nosso rosto tem a mesma cor verde-pálido que sentimos no íntimo. A próxima bomba vem, e desta vez ela cai bem mais perto. Nada me aconteceu. Mas a poeira da explosão continua caindo nas cercanias. Minha roupa está molhada de suor. Quando se toma um banho, a gente o faz com a máxima presteza, temendo que a explosão nos surpreenda sem roupa. E, apesar de tudo, tem-se que prosseguir trabalhando... A América não sabe como é feliz, por ter sido poupada desse terror."

Quanto à imprensa londrina, embora publicasse de vez em quando uma fotografia mostrando quarteirões em ruínas e outros estragos causados pelas bombas voadoras, em geral adotava uma atitude de discrição quase completa sobre o assunto. Os jornais da capital britânica continuavam naquela atitude um tanto hipócrita — como já o tinham feito durante o "Blitz" e os outros ataques pelos aviões da Luftwaffe — e que, na minha opinião, era de pouca utilidade, tanto psicológica como militar, de propositadamente não mencionar o nome de Londres em suas breves reportagens dedicadas aos bombardeios da cidade. As bombas, segundo a imprensa londrina, (que assim agia em obediência a ordens superiores), não caíam na capital, mas sim, no "Sul da Inglaterra". Sempre achei absurda essa camuflagem exagerada. Os agentes alemães, desejosos de se inteirarem dos resultados dos bombardeios de Londres, caso tivessem de recorrer à imprensa londrina para tal efeito, deviam logo aprender a traduzir as palavras "Southern England" (Sul da Inglaterra) por "Londres." Por outro lado, parece-me que do ponto de vista do moral da população londrina, teria sido melhor e não pior, mencionar francamente o nome de Londres nas reportagens sobre os bombardeios. Em primeiro lugar, porque tentar esconder tal assunto, ao invés de converter o leitor em "cúmplice" de uma espécie de trama de espionagem, acabava provocando a sua desconfiança com relação à veracidade de outras informações ventiladas pela imprensa e o governo. Em segundo lugar, porque a vaidade inata em cada um de nós faz com que apreciemos sobremaneira a leitura, nos jornais, dos perigos e contratempos que vivemos. Apesar de não ser londrino, nunca deixei de me sentir vexado, ao ver relegado para um vago "Sul da Inglaterra" os ataques das bombas voadoras que vivi e agüentei, junto a milhões de companheiros anônimos, na capital britânica.

Que os londrinos decididamente não apreciaram as "buzz-bombs", prova o seguinte editorial publicado na primeira página do Sunday Dispatch de 2 de julho de 1944, intitulado:

"COMO ACABAR COM AS BOMBAS VOADORAS"

"Nem os próprios alemães podem alegar que a 'bomba voadora' é uma arma dirigida contra alvos militares. No seu assalto indiscriminado contra o Sul da Inglaterra, ela tem atingido hospitais, igrejas, escolas, jardins de infância e lares do nosso povo. Homem algum pode prever seu curso perigoso; homem algum pode justificar o seu uso".

Depois de insistir no fato de que os londrinos possuíam a força moral necessária a suportar tal castigo, o Daily Dispatch faz a indagação se seria justo agüentar tal desaforo e propõe em seguida a seguinte ação de represália, a ser executada pela Força Aérea Aliada:

"Digamos aos alemães que para cada bomba voadora que cair neste país, uma pequena cidade alemã será completamente arrasada".

O jornal londrino constatava que havia na Alemanha mais de 1.000 cidades com uma população variando entre 5.000 e 50.000 almas cada, calculando que estava ao alcance da Força Aliada, poder atacar umas 50 dessas localidades por dia, caso isso fosse ordenado. E prosseguia:

"Se de antemão publicarmos uma lista das cidades que tencionamos destruir, caso os alemães não cessem imediatamente seus ataques com bombas voadoras contra Londres, executaremos sem vacilar esse plano de represália, e não haverá dúvida nenhuma de que os alemães serão obrigados a se curvar diante de uma argumentação tão persuasiva".

Convém realçar que esse fantástico plano de represália em larga escala ventilado pelo Daily Dispatch, não somente foi totalmente desprezado pelas autoridades britânicas, como também sofreu ataques violentos por grande parte da própria imprensa londrina. Por outro lado, porém, a violência de suas palavras e de seu conteúdo não deixam de constituir um reflexo fiel dos sentimentos de parte da população da capital britânica diante da ação impiedosa das bombas voadoras.

Quando, em setembro de 1944, com a destruição maciça das plataformas de lançamento das V-1 pela Força Aérea Aliada a batalha das bombas voadoras estava praticamente ganha, e os londrinos (inclusive eu), estavam prontos a soltar um coletivo suspiro de alívio, os alemães, cumprindo a sua promessa, nos brindaram com a sua segunda "arma secreta": a V-2. Em contraste flagrante com a V-1, esta não costumava anunciar a sua aproximação. Aparecia. De repente. Na forma de uma estrondosa e prolongadíssima explosão que fazia estremecer a terra a distâncias imensas. A noite, tinha o aspecto de uma bola de luz cor rosa-avermelhada que, iluminando grande parte do céu de um "halo" de idêntico colorido porém mais pálido, descia em velocidade vertiginosa rumo ao solo. Ao ouvir pela primeira vez aqueles estrondos violentos e aparentemente inexplicáveis, os londrinos os atribuíram inicialmente a explosões provocadas pela ruptura de condutos de gás. Daí o seu apelido: "flying gas mains"(9).

Já em julho de 1944 o meu "diário" menciona uma fortíssima detonação, "misteriosa", não causada, definitivamente, por bombas voadoras. Só em meados de setembro, porém, ao multiplicar-se o número daqueles estrondos (ressoantes e prolongados, semelhantes a um terremoto), começaram a se concretizar os boatos de estar Londres sob a mira de outra arma secreta de Hitler. Em 15 de setembro o meu "diário" relata o seguinte: "Encontrei hoje um conhecido que me contou ter sido destruída a casa de um de seus amigos por uma bomba-foguete. É este o primeiro caso de destruição por uma bomba V-2, que chega aos meus ouvidos. Meu interlocutor afirmou ser traiçoeiramente silenciosa a aproximação do engenho. Repentinamente, de um segundo para outro, lá está. Contou que penetrara profundamente dentro do chão, literalmente levantando o prédio inteiro para o ar. Muita gente teria morrido. Os jornais conservam um silêncio absoluto sobre o assunto".

Apesar de ter sido classificada pelos alemães sob o mesmo signo "V", Vergeltungswaffen(10), a V-2 não era simplesmente uma bomba voadora modernizada, mas uma arma de concepção inteiramente nova: tratava-se, com efeito, da primeira bomba-foguete, autêntica precursora dos foguetes intercontinentais da época atual. O engenho, medindo uns 20 metros de comprimento e talvez 2 de largura, era auto-suficiente em combustível (álcool e oxigênio líquido) e levava em sua ogiva a carga de uma tonelada de TNT. Ao subir a uma altura média de 100 quilômetros, desenvolvia uma velocidade acima de 5.000 quilômetros por hora. No seu trajeto rumo à terra, caía com tamanha rapidez, que alcançava o alvo antes mesmo de poder ser ouvido o estrondo provocado pela explosão de sua carga de dinamite. Criada por uma equipe de brilhantes cientistas alemães, entre os quais o atualmente norte-americano naturalizado Wernher von Braun, que desempenhava o papel principal, a V-2 seduziu o Alto Comando do Reich principalmente pela sua mobilidade. Com efeito, enquanto as bombas voadoras necessitavam de amplas plataformas de concreto, as V-2 podiam sem lançadas livremente em qualquer direção, de plataformas móveis, motorizadas. Eram, outrossim, naquela época praticamente invulneráveis a qualquer meio de intercepção. Entretanto, apesar do seu efeito psicológico de "surpresa total", a sua eficiência como arma militar era um tanto diminuída por uma série de desvantagens, entre as quais o altíssimo custo de sua produção e a vulnerabilidade das instalações necessárias à sua fabricação. Foi devido a todos estes contratempos que os alemães nunca chegaram a efetuar um ataque maciço de bombas-foguetes V-2 contra Londres.

Embora tenham sido utilizados pelos nazistas contra Londres durante um período de tempo quase duas vezes maior que o das bombas voadoras, apenas uns mil daqueles engenhos chegaram a cair no perímetro urbano da capital britânica, e mesmo este número não pode ser plenamente confirmado. Nos quase seis meses — outubro de 1944 a março de 1945 — que durou a "época das bombas-foguete", o estrondo de suas explosões não ocorria com a freqüência necessária para produzir um trauma psicológico no seio da população. Bem entendido, esta análise fria e destacada, assim como as conclusões sobre o "relativo fracasso" da V-2 são frutos da reflexão do presente. Naquele fim de 1944, em Londres, sob o pleno efeito moral e material das bombas-foguete de Hitler, só uma toupeira escondida nas entranhas da terra poderia talvez raciocinar calmamente. Assim mesmo, durante uma "enquete" informal por mim realizada entre o pessoal do departamento alemão da ABSIE, ficou confirmada por grande maioria de votos, a inferioridade das V-2 em relação às bombas voadoras, quanto ao seu efeito desmoralizador. Com efeito, se fossem obrigados a escolher uma ou outra modalidade daqueles engenhos, votariam na V-2, pois raciocinavam que, se estavam condenados pelo destino a morrer, preferiam a morte repentina e rápida, sem o "aviso prévio" à tortura mental do zumbir horripilante das bombas voadoras. Não tenho tanta certeza porém, se os resultados da minha "enquete" na ABSIE teriam sido os mesmos, no caso de um ataque maciço e contínuo por meio dos foguetes V-2. Não resta dúvida, entretanto, de ter sido o efeito de "terror quíntuplo" audio-visual das V-1 o fator essencial de convertê-las — do ponto de vista da guerra psicológica — na mais eficiente arma daquela época. Não fosse a atuação heróica e enérgica da Força Aérea, que em prazo relativamente curto — porém com grande sacrifício em homens e máquinas — conseguiu demolir os "ninhos" dos terríveis engenhos, talvez fosse inevitável um desmoronamento catastrófico do proverbialmente inabalável moral dos londrinos. Felizmente, devido aos aperfeiçoamentos do radar e dos projéteis anti-projéteis da nossa época moderna, a propagação de "terror a prestações" diante de uma arma relativamente lenta do tipo das bombas voadoras tornou-se hoje impraticável. Não há dúvida de que temos, em compensação, a visão nefasta desta "Espada de Dâmocles", que é a possibilidade de destruição da humanidade pelos efeitos das bombas atômicas e da radiatividade. Mas, com tudo isso, permanece ainda não superado o efeito do "terror quíntuplo" a "prestações", provocado por esta curiosidade histórica que são hoje as bombas voadoras de Londres de 1944.

Com o correr dos dias e das semanas, a tradicional fleuma dos britânicos, que nada mais é do que o disfarce inconsciente de sua vontade férrea de sobreviver, começou a mostrar uma série de falhas. Nas fábricas e escritórios, por exemplo, houve um acentuado aumento de casos de atraso. O consumo de bebidas alcoólicas triplicou. As pessoas demonstravam irritação e cansaço. Houve, conforme o sistema nervoso individual, casos de total perda de apetite ou fome exagerada.

Contudo, mesmo quando o governo começou a pôr em prática a evacuação maciça das crianças de Londres, o povo continuava com as suas atividades diárias, instintivamente certo de que no holocausto que o destino os obrigava a atravessar, o trabalho era ainda o melhor dos calmantes.


Capítulo VI
FATOS ALEMÃES MAIS FORTES QUE NOSSAS PALAVRAS

Oito meses antes do término oficial das hostilidades, a alta direção da ABSIE cria o lema da "iminência do fim da guerra" — A BBC grava programas da vitória — Diário de guerra de um pára-quedista alemão — Golo Mann qualifica o nosso esforço propagandístico "um tremendo fracasso" — Erro propagandístico anglo-americano, paradoxalmente talvez contribuísse para abreviar a guerra.

 

O programa "fatos são mais fortes que palavras", irradiado pela "American Broadcasting Station in Europe" no dia 6 de dezembro de 1944 tinha o seguinte teor:

"Faz hoje exatamente seis meses, que, no dia 6 de junho de 1944, a maior armada de todos os tempos desembarcou na costa da Normandia, na França. Após romper o 'muro do Atlântico' e aniquilar o Grupo de Exército de Von Kluge, tropas americanas, britânicas e francesas progrediram num avanço relâmpago até às fronteiras do Reich. Tropas aliadas desembarcaram na Riviera. Paris foi libertada. Bruxelas foi libertada. Luxemburgo foi libertado. Hoje, seis meses depois do desembarque aliado na Normandia, cinco exércitos aliados estão firmemente implantados no solo alemão. Aachen foi conquistada. Saarlautern foi submetida. Milhares de bombardeiros pesados aliados, assim como aviões de combate médios e leves, caças-bombardeiros e caças, arremessam golpes arrasadores contra a indústria de combustíveis e de armamentos alemães. A rede de comunicações da Alemanha tem sido sistematicamente estrangulada. O último encouraçado alemão, o "Von Tierpitz", foi afundado.

Nos seis meses que decorreram desde os desembarques aliados, a "Wehrmacht" perdeu, apenas no Ocidente, 1.150.000 homens; na frente Oriental outros 1.500.000; na frente Meridional, 300.000. Em tropas "vassalas", 700.000. Ao todo, 3.650.000 homens perdidos.

Hoje, 13.000.000 de norte-americanos, 8.000.000 de britânicos, assim como muitos outros milhões de russos, franceses, poloneses, belgas, iugoslavos, brasileiros, chineses — as Nações Unidas em armas — combatem e continuarão a combater até à rendição total da Alemanha e do Japão".

Dez dias depois, ou seja, na madrugada de 16 de dezembro, perto de 300.000 soldados alemães, agrupados em umas 24 divisões, comandados pelo Mal. Karl Gerd von Rundstedt, lançaram-se violentamente num ataque maciço de surpresa contra as posições norte-americanas situadas no território das Ardenas, na Bélgica. Esta reencarnação do "Blitz" alemão de outrora por um exército supostamente derrotado, cujos detalhes foram brilhantemente planejados pelo fanático Mal. Walter von Model, do qual ainda falaremos bastante nas páginas deste livro, deixou boquiabertos, não só os generais aliados, mas também os altos dirigentes da guerra psicológica. Tanto assim, que os temíveis "Panzer" alemães, investindo furiosamente contra as posições norte-americanas, lograram, no prazo de 48 horas, talhar duas profundas brechas em direção a Antuérpia. Embora os exércitos alemães não tenham alcançado aquela estratégica cidade belga, o fato de terem conseguido — praticamente "debaixo do nariz" dos norte-americanos — reagrupar e reorganizar suas forças para desfechar um golpe de alta periculosidade, demonstrava a validez perene da velha expressão proverbial de que "nunca se deve subestimar o inimigo". Tal regra se aplica também plenamente no campo da guerra psicológica. É por terem deixado de observar esta comprovada verdade, foi que os altos chefes da ABSIE se viram temporariamente em maus lençóis. Tudo começou no dia 1o. de setembro, durante a costumeira reunião matinal, dos chefes de departamentos e seções da nossa emissora. Fomos brindados naquele dia com relatos de primeira mão, de alguns dos informantes chegados diretamente dos territórios recém-conquistados por nossas tropas. O quadro pintado por esses observadores era bastante negro — para os alemães. Na Bélgica, assim disseram eles — a Alemanha possuía apenas 2 divisões; na Holanda, apenas 2, também. Das 30 divisões estacionadas na Itália, 3 divisões blindadas tinham sido retiradas para a frente Ocidental. A linha "Siegfried", construída com material de "segunda", poderia ser facilmente rompida pelas nossas tropas. Os alemães estavam fazendo um desesperado esforço para defender Brest e o Havre com a finalidade de erguer uma linha defensora de emergência contra o ataque aliado. Porém, apenas com 600 tanques que eles seriam capazes de concentrar para este fim, as suas possibilidades de êxito pareciam praticamente nulas.

Quanto à situação militar dos Aliados, a opinião geral dos informantes era de que o seu único "pecado" teria sido talvez o de terem avançado depressa demais, ampliando assim, sobremaneira, as suas linhas de abastecimento. Não fosse o problema do abastecimento, a guerra já poderia ser considerada como praticamente ganha. Com efeito, uma vez rompida a "Westwall",(11)localizada em território francês e, conforme pensava o Führer, uma defesa insuperável contra o acesso dos Aliados no continente europeu, nossas tropas não tinham sido molestadas pela Wehrmacht no seu avanço espetacular rumo às fortificações do próprio Reich, a chamada linha "Siegfried". Não fosse esse crucial problema, o Gen. Patton poderia ter facilmente levado as suas colunas blindadas até o próprio coração da Alemanha, pondo fim à guerra e confirmando a opinião do Gen. Eisenhower, de que se o avanço aliado pudesse ser mantido naquele mesmo ritmo inicial, a guerra poderia ser ganha em três semanas após o desembarque aliado na costa da Normandia. Contudo, o problema do abastecimento frustrou esses planos, e a situação dos nossos exércitos tão precária se tornou momentaneamente, que se cogitou bastante de uma retirada em larga escala, rumo a Paris. Mas, todos estes óbices já estavam superados. A situação no momento, segundo a palavra dos nossos informantes, era de "franco otimismo". Nada podia, naquela altura, deter o avanço dos tanques aliados para Berlim. Existia até a possibilidade de terminar a guerra repentinamente, sem a conclusão de um armistício, fato que se poderia produzir com a entrada nas colunas blindadas dos Aliados no perímetro da capital alemã.

Em vista destas informações positivamente favoráveis, não é de estranhar que a alta chefia da ABSIE, impressionada com os avanços espetaculares das nossas tropas e pela inércia da Wehrmacht decidisse adotar o lema de "franco otimismo" também na orientação básica de seus programas radiofônicos. Doravante, insistiram eles, não se falaria mais do "Westwall" nas emissões da ABSIE. Tais fortificações, para nós, simplesmente não existiam mais. Outrossim, todos os chefes de departamentos, assim como os redatores-chefes das diferentes seções da estação receberam uma ordem estrita de abandonarem completamente o emprego da expressão "batalha da Alemanha". Para os fins propagandísticos, não se cogitaria mais de tal batalha, pela simples razão de não existir mais um exército alemão capaz de travar combate e de barrar a nossa entrada maciça no território do Reich. Assim sendo, o lema da diretriz central da ABSIE, do dia 1o. de setembro de 1944 (ou seja, quase oito meses antes da assinatura da "ata de rendição" pelo Mal. Alfred Gustav Jodi no dia 7 de maio de 1945 em Reims) era o seguinte: "Estamos nas vésperas do fim da guerra".

Embora a atitude adotada pela nossa emissora em Londres pareça agora, à luz dos acontecimentos posteriores, definitivamente prematura, o fato é que estávamos então em "boa companhia". Isto, porque a tradicional e por si mesma sóbria BBC não somente usava um raciocínio psicológico idêntico, como chegou a superar o otimismo que nos empolgava. Aliás, apenas seis dias após a elaboração, pela chefia da ABSIE, da diretriz central de "iminência do fim da guerra", almocei num restaurante com Walter Rilla (conhecido ator de cinema, e durante a guerra encarregado da produção de uma série de importantes programas da British Broadcasting Station). Eis a anotação do meu "diário", com referência ao encontro com Rilla:

"Walter Rilla demonstrava excelente disposição. Contou que estava ocupadíssimo com o preparo dos 'Victory Programs' para a BBC. Explicou que se tratava principalmente de declarações oficiais gravadas em discos, de importantes personalidades, homenageando o Exército, a Força Aérea, a Marinha e o 'premier' Winston Churchill. Rilla aparentava uma certa preocupação por se achar sob a pressão de executar a tarefa com a máxima urgência, pois a BBC lhe pedira para apresentar um resumo daqueles programas no dia seguinte. — "Não vejo como me será possível atender a BBC nesse sentido" — disse ele — "pois ainda não consegui elaborar sequer um único programa. Porém, concordo plenamente com os meus chefes, no sentido de que devemos estar preparados. A notícia da nossa vitória poderá chegar a qualquer momento".

Enquanto Walter Rilla, na BBC, estava preparando programas da vitória, Bob Saudek, da ABSIE, já desde os meados de agosto de 1944 estava empenhado em elaborar um detalhado projeto, visando a criação de uma "Rádio das Nações Unidas". Eis o comentário, um tanto pessimista, sobre o assunto, registrado no meu "diário", no dia 17 de agosto daquele mesmo ano:

"Tive hoje um prolongado debate com Bob Saudek, que está trabalhando na elaboração de um plano detalhado visando a criação de uma "Rádio das Nações Unidas". Eu disse a Bob que a realização de tal plano dependia essencialmente da existência de irrestrita confiança mútua entre todos os participantes, para uma tal emissora de cunho internacional. Muito — talvez tudo — dependesse da futura atitude da Rússia Soviética. Eu, pessoalmente, só acreditarei na possibilidade de uma cooperação efetiva com aquele país, no momento em que o mesmo levante todos os entraves à entrada e saída de seus cidadãos e de outras nações, que desde a sua existência como estado comunista o separam hermeticamente do resto do mundo. Só a realização de tal medida pelo governo soviético poderá fazer-me crer que realmente existe da sua parte uma sincera boa vontade no sentido da cooperação internacional".

O otimismo oficial anglo-americano não podia deixar de refletir-se também na redação da ABSIE, onde se registrava um intenso movimento de apostas. Os mais otimistas previam o fim das hostilidades para dentro de um mês, ou seja, até outubro de 1944. Os mais pessimistas (e foram eles que acertaram) previam a continuação da guerra até à primavera de 1945. Quanto a mim, adotei uma posição intermediária entre os dois campos opostos, conjeturando que a guerra deveria terminar, o mais tardar, em fevereiro de 1945. Nunca cheguei a pagar o dinheiro que perdi naquelas apostas, pois em janeiro deixei Londres, rumo ao continente europeu. Se há alguma reclamação a respeito, estou pronto a saldar meus compromissos.

Não foi, todavia, apenas a calamitosa situação dos exércitos do Reich que motivaram a nossa suposição de que a Alemanha estava "nas últimas". Houve também a fracassada tentativa de 20 de julho de 1944 contra Hitler e que parecia ser indicativo da existência de uma séria crise na própria estrutura interna do Estado nazista. Às seis da tarde daquele dia fui alertado por um redator vindo da sala dos teletipos (por meio dos quais recebíamos a "matéria-prima" dos nossos noticiários, vinda das agências noticiosas), de que teria havido um atentado contra o Führer. Logo em seguida, uma notícia divulgada pela DNB (Agência Alemã de Notícias) confirmou a informação, declarando que Hitler e alguns de seus generais tinham sido vítimas de um atentado por meio de explosivos. Alguns dos generais teriam sido gravemente feridos, outros levemente. Hitler — declarava a DNB — tinha recebido apenas algumas queimaduras e contusões. Ao inteirar-me deste fato, tão sensacionalmente auspicioso àquela altura dos acontecimentos, fui correndo consultar Golo Mann sobre a minha idéia de divulgá-lo imediatamente em todos os nossos programas, por se tratar de um assunto de vital importância para a nossa propaganda. Para minha surpresa, Golo manifestou opinião contrária. Achava que deveríamos "abafar" a notícia. Se o chefe da propaganda nazista, Goebbels — assim argumentava Golo — toma a iniciativa de divulgar um fato tão grave como um suposto atentado contra a vida do Führer, certamente ele deve visar uma determinada finalidade oculta, provavelmente mais útil aos próprios nazistas do que a nós.

Ou — assim raciocinava Golo Mann — a história do atentado contra Hitler era mais uma mentira de Goebbels ou, caso realmente tenha ocorrido, podia tratar-se de uma trama propositalmente encenada por eles, semelhante ao célebre incêndio do "Reichstag" em Berlim. Como se sabe, aquele incêndio do parlamento alemão, ocorrido em 27 de fevereiro de 1933 foi, como tudo indica, provocado pelos próprios nazistas, e serviu de pretexto para "legalizar" a ditadura de Hitler na Alemanha. "Seja como for" — opinou Golo Mann — "ao propagarmos a notícia do atentado estaremos prestando um serviço gratuito à sua propaganda." Diante da minha insistência de que — verídica ou não tal notícia — o simples fato de sua divulgação, com tamanho impacto. pela máquina de propaganda do Reich, era indício de sérias dificuldades internas, e portanto útil ao nosso próprio esforço propagandístico, Golo consentiu em fazer uma consulta telefônica a sua irmã Erika Mann, correspondente de guerra. Ela concordou comigo. A notícia do atentado, divulgada pelos próprios alemães era certamente sinal de uma grave crise interna. Por conseqüência não somente espalhamos a notícia em todos os nossos programas, como também um comentário especialmente escrito por William Hale, cujo tema central era: "verídica ou não, a notícia do atentado contra Hitler indica a existência de uma situação difícil no Reich". Algumas horas mais tarde, ou seja, exatamente aos 3 minutos para 1 hora da manhã do dia 21 de julho, o próprio Hitler, falando mais histericamente que nunca, confirmou num discurso por nós gravado em disco, a notícia do atentado. Denunciou, em termos injuriosos, uma "pequena pandilha de traidores" de ter tramado contra sua vida, com a finalidade de formar um novo governo, e prometeu impiedosa extirpação do Conde Klaus von Stauffenberg, que atirara a bomba, assim como dos seus cúmplices. Anunciou. outrossim, a nomeação de Heinrich Himmler (até então chefe supremo dos SS) ao posto de comandante da "Frente da Pátria". Como se sabe, no dia seguinte Hitler cumpriu a sua promessa — liquidando com requintes de crueldade o Conde Klaus von Stauffenberg, assim como uma multidão de outros autores e instigadores do atentado. Apesar do gesto audaciosamente espetacular do destemido conde alemão e de seus companheiros, a alta chefia da ABSIE, na minha opinião, pouco proveito soube tirar do dramático episódio. Assim mesmo, a façanha de von Stauffenberg, primeiro presságio tangível de um possível desmoronamento interno do nazismo, impressionou profundamente a todos nós e em parte também contribuiu para aumentar o otimismo reinante no recinto da AESIE em setembro de 1944. No entanto, apesar da situação calamitosa em que se achavam naquela época os exércitos do Reich, apesar do martelamento contínuo dos grandes centros alemães pela nossa Força Aérea, e apesar também das deduções sobre uma possível crise interna em vista do atentado contra Hitler, parecia-me que era prematuro e, portanto, psicologicamente errado, falar na "iminência do fim da guerra" naquele momento. Tanto o fato de Hitler ainda dispor de força suficiente para organizar a sua desesperada ofensiva nas Ardenas, em dezembro de 1944, como o prosseguimento das ações bélicas durante mais oito longos meses, após a gravação dos "programas da Vitória" da BBC, são provas eloqüentes da minha tese. O estado de ânimo real, tanto por parte dos soldados da Wehrmacht como do povo germânico, acha-se refletido nas anotações, feitas entre julho e outubro de 1944, num fragmento de diário de guerra de um "Fallschirmjäger" (pára-quedista) alemão. Aceito o seu testemunho, em primeiro lugar por ter sido escrito desprevenidamente, jamais imaginando o seu autor que as anotações por ele feitas (muitas das quais de caráter muito íntimo), poderiam um dia cair intactas nas mãos do inimigo. Em segundo lugar, por se tratar aparentemente de um moço de inteligência fora do comum, também dotado de vivo talento descritivo e de um agudo senso de observação. Isto, apesar de sua origem humilde, pois era filho de pequenos agricultores, natural de uma pequena aldeia próxima da cidade de Elbing, na Prússia oriental. Criado num ambiente rural, passou, como ele mesmo conta na parte final de seu diário, a maior parte de uma breve licença concedida pelo exército, ajudando os seus familiares a efetuar a colheita de batatas e outros afazeres manuais (por exemplo, colocar o assoalho na casa da tia Friede em Hermsdorf). Contudo, este pára-quedista camponês conta, num trecho do seu diário, escrito próximo à cidade francesa de Reims, que passara parte de seu dia de folga, 7 de agosto. na tarefa de "copiar alguns poemas". A 22 de julho gastara 400 francos do seu não muito generoso soldo, na compra, em Reims, de um livro intitulado: "Paris, França e Províncias".

Um dia antes, entre uma queixa a respeito da umidade reinante no túnel onde se achava estacionado e a referência a uma caça noturna em plena chuva, o diário destaca as seguintes palavras, devidamente sublinhadas: Atentado contra o Führer. Mas somente quatro dias mais tarde, ou seja, em 25 de julho, há outra referência sobre o assunto:

"Apenas hoje recebemos detalhes sobre o atentado contra o Führer, notícia que nos foi transmitida sexta-feira, dia 21, por alguns camaradas que chegaram de Reims. Patifes como aqueles que atentaram contra a vida do Führer são incapazes de nos abalar! Foi com alegria que recebemos a boa nova da introdução no exército, da "saudação nazista"(12)

Porém, este nazista inveterado, que nem o espetacular atentado contra Hitler conseguiu abalar, está ao ponto de perder o seu sangue frio sob os ataques incessantes realizados, freqüentemente a vôo raso, por caças e caças-bombardeiros da Força Aérea Aliada. Eis, nas suas palavras, como se dera a sua prova-de-fogo:

"Repentinamente, às 10 e 10 da noite, ressoaram as explosões. Estávamos sendo bombardeados. Atordoador, o estalar das bombas. Agarrado convulsivamente ao solo, e confiando na minha sorte de soldado, permaneço o tempo todo debaixo da chuva dos explosivos. Sete ondas de ataque. Saí ileso, porém sete dos meus camaradas foram apanhados — três gravemente e quatro levemente feridos. Houve também um morto, um dos operários franceses, um moço de uns 17 anos. Com que alívio respirei o ar impregnado do cheiro de pólvora, quando afinal terminou o ataque. Era o primeiro ataque aéreo pesado por mim vivido e como foi terrível! No dia seguinte, com um calor de estufa, participei da arrumação dos estragos causados pelo bombardeio. Ainda pairava sobre os trilhos da estrada-de-ferro uma nuvem azulada de fumaça da pólvora."

As seguintes expressões colhidas ao acaso no diário do "Fallschirmjüger" refletem as reações do seu autor, ante o terror que lhe inspiravam os bombardeios aéreos dos aliados:

"O terrível estrondo produzido pelas bombas parece dilacerar o coração. Desde as duas horas da manhã, sem cessar, continua o estalar das bombas. É horripilante. Nunca sofri coisa tão terrível. Os nervos são chicoteados, pois receamos voar pelos ares a qualquer momento. Foi a noite mais longa e mais horrível de toda a minha vida. As explosões acabam com o ânimo da gente. Além disso, cada gota de água e mesmo comida tem que ser provida com o risco da própria vida. Foi uma tarde nervosa, pois sem cessar, ficamos expostos aos ataques impiedosos dos caças, que nos metralhavam em vôos rasantes. Incessantemente os cachorros (referia-se aos nossos aviões) cantavam no céu. O pior de tudo é a sensação de desabrigo total.SE HÁ ALGO QUE NOS POSSA VENCER NESTA GUERRA, ISTO É A FORÇA AÉREA".

No dia 21 de agosto, a unidade à qual pertencia o "Fallschirmjäger" recebeu a ordem de "transferência" (na realidade era uma retirada). A viagem através da França em direção à Bélgica foi "adoçada" por várias caixas de champanha que a coluna conseguiu retirar das ruínas de Rilly, porém foi "amargada" pela ação dos terroristas (Forças da Resistência Francesa):

"A noite, às duas horas da madrugada, fomos obrigados a parar diante de uma cidadezinha. Os terroristas haviam emporcalhado toda a estrada com pregos pontudos. Que procedimento sujo! Após ter catado todos os pregos, continuamos a caminhada".

O nosso pára-quedista não está muito satisfeito com a viagem, e com nostalgia relembra o ambiente tranqüilo de outrora: "Como mudou a nossa jornada em relação ao ano passado! Então, sim, podia-se viajar tranqüilamente; agora, porém, a gente só fica esperando pelos aviões inimigos". Perseguida continuamente pelo "terrível uivar" das bombas, a coluna atravessa a fronteira belga e chega a Mons. Ao deixar a casa onde pernoitaram, os soldados alemães fazem "uma completa limpeza", levando inclusive pão, presunto e bebidas. O assalto à propriedade alheia é efetuado porém com "algum arrependimento", devido à bondade demonstrada pela dona da casa e sua filhinha Marta. Já com o carrancudo taberneiro, tais escrúpulos não existem. Este "teve que pagar a sua falta de educação com 60 lingüiças". A viagem prossegue de trem até Casterle, onde a coluna sofre seguidos ataques aéreos. Novamente, a aproximação dos "Tommies" obriga os soldados alemães a prosseguir a viagem. Com o inimigo em Gool (a uns 3 quilômetros da localidade onde se encontra a coluna dos "Fallschirmjäger"), os alemães têm apenas um caminho de salvação, ou seja, pela Holanda. A falta de condução quase os faz cair nas mãos dos "Tommies", que progrediam rapidamente. No último instante, conseguem "arrumar" bicicletas com as quais tencionam empreender a fuga, quando, para sorte deles, chega um trem que os leva rumo à fronteira holandesa e dali para a Alemanha. A chegada do grupo de pára-quedistas à pátria, que se deu a 4 de setembro de 1944, é assim descrita nas palavras do autor do diário de guerra (que caiu nas minhas mãos alguns meses mais tarde):

"Que sensação maravilhosa estar voltando para a pátria! Acabamos com uma caixa de champanha, que havíamos guardado para beber dentro da Alemanha. Atravessamos a fronteira em Kleve. Um quadro comovente que nunca na minha vida esquecerei. Na Holanda ainda há aglomerações de gente vadia e aqui, atrás das barreiras aduaneiras, um povo trabalhador, unido, lutando pela vida. Crianças e anciãos, marchando rumo ao trabalho em formações cerradas. Cantando, jubilando, trabalhando. Assim fomos recebidos. Isto nos encheu de novas esperanças, se algum de nós porventura perdera o ânimo durante a viagem. Comovente, o amor com que nos cumularam. Em toda parte nos ofereceram comida e bebida. E tudo isto, apesar das terríveis provações sofridas pela população, devido ao terror aéreo. Para mim, aquela viagem era uma só grande alegria...

Do ponto de vista da guerra psicológica, o mês de setembro de 1944 era de importância transcendental para os Aliados. Em legítima exultação pelos sucessos espetaculares obtidos nas frentes de batalha do continente europeu, a propaganda aliada apresentou como derrota generalizada um fato na realidade ainda não consumado, pois o tigre nazista, embora gravemente ferido, não estava ainda para exalar o último suspiro. Ao contrário, era ainda capaz de morder e usar as garras. Contudo, os motivos que levaram os aliados a adotar uma atitude de franco otimismo decorreram, como dissemos antes, principalmente do fato tangível da quase inacreditável seqüência de triunfos de seus exércitos.

Isto, porém, não justificou certos erros básicos de orientação geral de nosso esforço de guerra psicológica, entre os quais eu destacaria a intransigência do lema da "rendição incondicional". Estas palavras, pronunciadas pela primeira vez nos meados de janeiro de 1943 em Casablanca, pelo então presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, podem ser consideradas o "slogan" propagandístico mais célebre da Segunda Guerra Mundial.

A insistência com a qual os Aliados batiam a tecla da "rendição incondicional" dos alemães, apresentada como conditio sine qua non da cessação das hostilidades, apenas podia ter como resultado imediato o de provocar irritação e resistência redobradas no seio desse povo, que àquela altura, já estava começando a se compenetrar da inutilidade de continuar a guerra. Outrossim, serviu de excelente combustível para a já decrépita fogueira propagandística de Joseph Goebbels, fornecendo ao sinistro chefe da propaganda nazista o melhor trunfo na sua última cartada de tentar persuadir o já vacilante povo alemão, a "resistir até o fim".

Foram considerações semelhantes que motivaram Golo Mann a taxar a guerra psicológica travada pelos Aliados, de "tremendo fracasso." Este pronunciamento, um tanto violento é, na minha opinião, apenas parcialmente correto. Como discordei e discordo ainda quanto à solução proposta por Golo Mann naquela época, com a finalidade de tornar aceitável para o povo alemão a idéia da rendição, ou seja, uma promessa oficial aliada, de devolver à Alemanha o seu conteúdo territorial de 1936.

Parece-me que fazer antecipadamente, com grande alarde propagandístico, concessões concretas ao povo alemão, teria sido psicologicamente tão errado como o foi a "vulgarização" da exigência contida no termo "rendição incondicional," ou a idéia de transformar a Alemanha num estado essencialmente agrícola, ventilada pelo chamado "Plano Morgenthau".

Sou de opinião que poderíamos ter tido muito maiores êxitos em nosso esforço propagandístico de acelerar o desmoronamento da resistência alemã, se tivéssemos defendido em nossas emissoras as três seguintes teses principais:

1.— Insistir na "rendição inevitável", ao invés de incondicional.

2.— Prometer aos alemães que, quaisquer que fossem as futuras fronteiras de seu país, não haveria, em circunstância alguma, divisão do seu território.

3.— A ocupação militar da Alemanha de após-guerra seria apenas tem­po­rá­ria, e exer­cida pelas quatro potências aliadas E.U.A., U.R.S.S., Grã-Bretanha e França em conjunto.

Tal orientação teria servido, entre outras, para aliviar os dois principais temores do povo alemão caso se rendessem aos aliados: o medo de se tornar uma nação despedaçada, e o verdadeiro pavor de uma ocupação unilateral pelos russos. Estou, porém, perfeitamente certo do fato de que, só entregando "a título de garantia" Gibraltar e Alasca aos soviéticos, poderiam os anglo-americanos ter arrancado talvez o consentimento de Stalin ao estabelecimento de um plano propagandístico-político que obedecesse as linhas gerais acima expostas.

Paradoxalmente porém, um dos desacertos do esforço de propaganda aliado, ou seja, a afirmação antecipada da "iminência do fim da guerra", não deixou de produzir resultados positivos. Com efeito, devido ao otimismo exagerado que inspirava, parece ter contribuído mesmo para um possível afrouxamento dos Serviços de Inteligência aliados, permitindo assim aos nazistas burlar a vigilância exercida e concentrar praticamente "debaixo dos nossos narizes" um possante exército mecanizado para a surpreendente ofensiva das Ardenas em dezembro de 1944. As dezenas de milhares de mortos e feridos que as forças do Führer sustentaram naquele "Blitz" de desespero, evidentemente representaram um prejuízo praticamente irreparável para o já exausto e drenado exército alemão. Se estas reservas se tivessem conservado intactas, em homens e material que perderam na jogada das Ardenas, é licito presumir que os alemães talvez pudessem resistir até o fim de 1945. Assim, um erro propagandístico dos Aliados contribuiu, de certo modo, para encurtar a duração da guerra talvez de uns seis ou sete meses. O que vem demonstrar o caráter eminentemente imprevisível da guerra psicológica.


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Capítulo VII
RUMO AO LUXEMBURGO

Aceito uma proposta para mudança de ambiente — de soldado raso para "Major Assimilated Rank" do Departamento de Guerra Psicológica — "Folies Bergère" abaixo de zero ainda é ótimo espetáculo — Dois membros da Resistência Francesa contam suas aventuras — Charleville, praça de guerra.

 

No dia 10 de setembro de 1944 fui chamado para uma conversa "a portas fechadas" no escritório do chefe de nossa seção, que me esperava sorridente, entrincheirado, como de costume, atrás de uma montanha de papéis, espalhados na sua escrivaninha. Ao seu lado, também sorridente, estava sentado o chefe da "American Broadcasting Station in Europe". Após as indagações e elogios de praxe, perguntaram-me se eu estava disposto a seguir para o Luxemburgo, onde serviria dentro das fileiras do Departamento de Guerra Psicológica do exército norte-americano. Com as forças aliadas às portas do Reich, a nossa benquista ABSIE estava se tornando, senão obsoleta, pelo menos insuficiente. Era mister agir, no setor propagandístico o mais próximo possível da Alemanha. Com Luxemburgo a nossa disposição, estávamos agora adaptando a sua possante estação para irradiações do tipo "American Broadcasting Station in Europe" e também tomando as providências para que ela pudesse servir de retransmissora das estações alemãs que deveriam cair em nossas mãos. O cargo que, segundo os meus dois interlocutores me estava reservado, seria o da chefia da equipe de uns 30 redatores. Aceitaria?

Refleti alguns momentos, antes de dar a resposta, pois me sentia bastante esgotado depois da minha estada de quase um ano na ABSIE. Logo em seguida respondi: "Sim." E quando poderia partir? "O mais brevemente possível".

O médico militar perante o qual fui chamado nove dias mais tarde, ou seja, três dias após o início do contra-ataque alemão das Ardenas, ao concluir o exame de radiografia do meu joelho, disse: "Osteo-artrite. O senhor está autorizado a pedir a sua transferência para os Estados Unidos". Ao ficar ciente de que a minha intenção não era voltar para Nova York, mas ao contrário seguir para o continente europeu, ele só consentiu em fornecer o certificado de saúde, se eu assinasse uma declaração na qual me responsabilizava pelas conseqüências porventura causadas por meu joelho, que se encontrava em precárias condições. Cumprida aquela formalidade, bastava apenas aguardar a minha admissão oficial nas fileiras do PWD(13). Esta dependia de uma investigação adicional sobre a minha pessoa, a ser realizada pelo Departamento de Segurança do Exército e cujo resultado positivo chegou dois dias antes do Natal.

Meu aparecimento na redação da ABSIE, fardado de oficial, foi um autêntico sucesso, especialmente entre as secretárias, que não se cansavam de brindar-me com o meu recém-adquirido posto de "Major". Contudo, aquele grau me havia sido dado, não como autenticamente militar, mas para garantir-me os privilégios de um oficial daquela categoria, que me seriam reservados, caso fosse aprisionado pelos alemães. Eis porque, na carteira de identificação que me foi fornecida pelo Departamento de Guerra em Washington, a minha designação de "Major" era seguida por duas palavras: "Assimilated Rank" (Grau assimilado). Por isso, também a minha túnica não ostentava as folhas de carvalho douradas que são o símbolo de um major do exército. No entanto, estava adornada no ombro esquerdo com o distintivo do SHAEF(14) Quartel-General Supremo da Força Expedicionária Aliada. E, nas lapelas, com as duas flechas douradas em pé, sobre fundo preto, representativas do PWD. Assim mesmo, fiquei bastante satisfeito com a promoção que significava aquela farda de oficial, relativamente à condição de soldado raso, que apenas um ano e meio antes me era reservada no acampamento da Força Aérea de Miami Beach, na Flórida. Foi um descuido dos médicos militares, sobrecarregados e exaustos pela sua tarefa de examinar milhares de recrutas, que me abriu caminho para o exército regular dos Estados Unidos, apesar de uma anterior e grave intervenção cirúrgica no joelho, praticada em conseqüência de ferimento sofrido numa queda, durante uma partida de tênis. Após ter suportado durante três meses a tortura que significava para o meu joelho o "treinamento básico" em Miami Beach, fui, contra a minha vontade, eliminado das fileiras do exército, com o costumeiro "Honorable Discharge" (Despedida honrosa). O único benefício real que me resultou da permanência no BTC 9(15) foi certamente a perfeição com a qual tinha aprendido a prestar continência. Assim preparado, pude mais tarde evitar muitos embaraços, pois sabia responder de modo impecavelmente profissional, as inúmeras saudações dirigidas à minha farda de oficial "assimilado" por praças e sargentos insuspeitos, durante a época em que permaneci no continente europeu. Naquele fim de ano de 1944, em Londres, parecia-me que o momento da partida para o meu novo destino nunca chegaria.

Tive que enfrentar quase duas semanas mais, até finalmente receber a minha ordem de partida. Na madrugada de 10 de janeiro de 1945, levando como bagagem um capacete, uma máscara contra gás e uma mala de lona cheia de roupas e miudezas, atravessei as ruas frias, escuras e cobertas de neve de Londres, rumo à estação de Knightsbridge. Posteriormente, junto com um grande número de coronéis, majores. capitães e tenentes norte-americanos, assim como alguns oficiais e sargentos franceses, parti num ônibus amarelo para o aeroporto. Ao chegar lá, os meus pés, não obstante as grossas botas militares que os protegiam, estavam congelados, duros. Porém, o passeio obrigatório pelas fileiras dos guichês de controle de documentos logo normalizou a minha temperatura. Um café com leite fumegante, agradavelmente cheiroso e servido por uma amável senhora, em uniforme da Cruz Vermelha, completou-me a sensação de bem-estar. Outro ônibus nos levou à pista, até a "boca" do nosso avião. Era um bi-motor C-47 de transporte, de cor fosca prateada, as asas cobertas por uma leve camada de neve. Durante as duas horas (aproximadamente) de vôo até Paris, mantive uma conversa animada com o meu vizinho Roger, um sargento pára-quedista do estado-maior do Gen. Koening. Natural do sul da França, ficou contentíssimo ao saber que eu me formara em Direito pela Universidade de Montpellier, que fica perto da sua cidade natal, Nimes. Era com orgulho que ele ostentava no peito o distintivo das duas asas estendidas — prova do seu alistamento voluntário nas forças degaullistas antes de 1943. Falava com desprezo daqueles franceses que, comodamente instalados na França, tinham suportado passivamente a ocupação alemã. Entretanto, o maior desdém de Roger era dirigido contra os chamados "oportunistas" ou "novos-ricos" que, só agora, com o sucesso dos Aliados, começavam a se alistar nas forças de De Gaulle. Exibiam, assim me disse Roger, reluzentes Cruzes de Lorena e fardas novinhas em folha, imaculadamente passadas. O velho degaullista Roger, ao contrário, orgulhava-se bastante de sua farda gasta, obviamente folgada demais para ele, coroada de um béret(16) de pára-quedista em igual estado de conservação. "Je suis fière de cette ma livrée" (Estou orgulhoso desta minha farda de serviço) disse ele, separando as sílabas no seu característico sotaque meridional.

Encontrei uma Paris escura, fria, maltrapilha, mas praticamente isenta de vestígios de destruição. Os esqueletos empretejados de dois hangares no aeroporto, sinais de balas nas paredes do Ministério da Marinha na Praça da Concórdia, uma ou outra estátua desaparecida, foram algumas das poucas anormalidades que pude constatar. Para alguém amplamente familiarizado com os quarteirões inteiros em ruína, ao redor da Catedral de São Paulo em Londres, o contraste era notável. Apesar, porém, do seu aspecto exterior incólume — um tanto chocante pela ausência de luta e resistência que parecia indicar — a capital francesa não era a Paris que conheci durante as minhas viagens em 1934, 1936 e mesmo às vésperas da guerra, em 1938. Era, realmente, uma outra cidade. Enquanto na capital britânica, apesar do "Blitz" e da Luftwaffe, das bombas-voadoras e das V-2, a vida seguia um ritmo praticamente inalterado, Paris parecia uma cidade morta, ainda traumatizada pela vergonha dos quatro anos de ocupação nazista. Os quase cinco meses que tinham passado desde o dia 25 de agosto de 1944, data da libertação da cidade, não tinham sido suficientes para apagar os vestígios do choque moral da derrota sofrida. Era a intacta Paris e não a machucada Londres, que parecia uma cidade derrotada. A brancura imaculada da neve, que em camada espessa cobria as ruas da "Cité Lumière" realçava ainda mais a hediondez dos seus prédios em abandono. A única nota alegre, na aparência, daquela urbe entristecida, eram os inúmeros bandos de moças risonhas, trajando meias grossas e compridas, de cor preta ou amarela, e os mais extravagantes chapéus que eu jamais vira. O pitoresco contraste entre a simplicidade exagerada das meias tipo esporte e a elegância não menos exagerada dos chapéus multicores, acompanhados pelo comportamento ruidoso das moças, não somente contribuíram para dissipar os pensamentos melancólicos do visitante estrangeiro, mas eram os símbolos eloqüentes da vitalidade intrínseca do povo francês. Exuberantes no excesso de energia, muitas das jovens parisienses levaram a sua algazarra até à Avenida Champs Elysées, cujo ambiente outrora tão granfino se viu agradavelmente refrescado pelo ruído de inúmeras e renhidas batalhas de neve femininas, nas quais com freqüência se viram envolvidos também grupos de soldados norte-americanos. Igual a Londres, Paris também regurgitava de uniformes ianques. Certos lugares, especialmente a "Place de l'Opéra" e o quarteirão ao redor da igreja da Madeleine — pontos preferidos das mundanas parisienses, pareciam à noite, uma réplica autêntica do tumultuoso vai-e-vem de uniformes norte-americanos no campo de recrutas de Fort Dix.

Apesar do alto poder aquisitivo do dólar (custo oficial de cerca de 60 francos e no mercado negro, entre 1 200 e 1 500 francos) e dos maços de cigarros de fabricação norte-americana (100 francos, ou seja, a metade do custo de um péssimo almoço), faltavam oportunidades para compras interessantes devido à carência de mercadorias nas lojas. Já alguns meses depois, as coisas deveriam mudar. Apareceriam então, diante das lojas suntuosas de Guerlain, Channel e outros "grandes" da indústria de perfumes, as mesmas filas intermináveis de uniformes norte-americanos, que em Londres entupiam as adjacências dos distribuidores dos cachimbos Dunhill, Barling, e outros da fama mundial. Igualmente, alguns meses mais tarde, surgiriam os veículos por mim batizados "jinriquixás-bicicletas" e cuja presença efêmera nas ruas desguarnecidas de transportes mecanizados, davam a Paris um curioso "quê" de metrópole chinesa. Este meio de transporte, movido exclusivamente a força humana, consistia num carrinho estreito, em forma de barquinho, semelhante a um "sidecar" de motocicleta, cabendo dentro de sua cobertura de celofane, no máximo duas pessoas. Engatada na frente, como um cavalo, achava-se uma bicicleta, cujo dono, dotado de ótima musculatura e de um perfeito "sexto sentido" para descobrir fregueses abastados, cobrava cada pedalada a peso de ouro. Além desses chamados "velo-táxis" havia também carruagens puxadas a cavalo e equipadas com taxímetros. Durante uns dias de folga que posteriormente passei em Paris, cheguei a pagar por uma corrida de uns sete minutos efetuada num daqueles táxis de apenas 1HP, a soma de 400 francos, ou seja, o equivalente ao preço, naquela época, de um lençol de cama de solteiro ou de um quilo de café moído ou de quatro litros de querosene ou de dez copos de limonada. Apesar da ganância dos seus condutores, tanto os "velo-táxis" como os "táxis-a-cavalo" desempenhavam naquela Paris desprovida de ônibus e automóveis de aluguel, um autêntico serviço público. Felizmente para os operários e para os empregados, os trens subterrâneos estavam funcionando. Apesar dos seus carros cronicamente superlotados, cheguei a me servir freqüentemente desse meio de transporte durante os curtos períodos de licença passados em Paris. Em primeiro lugar, devido à sua rapidez. Em segundo, por serem de graça: isto porque as moças fiscais (encantadoras com seus gorros azuis) se recusavam terminantemente a furar os bilhetes de viajantes fardados.

Meu embarque para Luxemburgo — num jipão militar — estava marcado para a madrugada de 13 de janeiro de 1945. Não queria deixar Paris sem assistir a um "show" no Folies Bergère. Experiência assaz pitoresca, como quase tudo naquela época na capital francesa. A tradicional sala de espetáculos, superlotada como sempre, mostrava paredes descascadas e outros sinais evidentes da ausência total de conservação devido aos anos de guerra e ocupação. Num esforço aparentemente inútil para amenizar o frio "de rachar" reinante na sala de espetáculos, com o seu sistema de aquecimento paralisado devido à impossibilidade de obter combustível, os espectadores, entre os quais grande número de soldados, oficiais e enfermeiras norte-americanos, quase sem exceção vestiam pesadas capas de inverno. Todos os membros da orquestra tinham seus pescoços envoltos em xales de lã, e muitos deles vestiam pulôveres debaixo dos smokings de cor cinza. Com os dentes batendo e esfregando os pés, assisti com admiração e entusiasmo, ao desfile deslumbrante das moças do "nu artístico", cuja presença marcava o ponto culminante de um espetáculo riquíssimo em diálogos espirituais, sem vulgaridades, assim como vestuários suntuosos e cenários originais. Nada melhor que a atitude estoico-heróica das moças do nu artístico naquele ambiente de pólo norte do Folies Bergère ainda em guerra, para ilustrar o espírito inquebrantável da gente do teatro e a sua determinação em nunca falhar na apresentação do espetáculo, fossem quais fossem as circunstâncias. "The show must go on."

Ao iniciar viagem no dia seguinte, verifiquei que os meus companheiros, além do soldado condutor do robusto "jipão" de cor verde, com a grande estrela branca do exército no capô achatado, estavam dois sargentos norte-americanos. Outro passageiro — um capitão de infantaria — desistira no último instante, o que representava, para uma viagem de umas doze horas, uma benvinda sobra de espaço vital. Saímos com atraso, um pouco depois das 9 horas da manhã, rumo à Bélgica, com destino final em Luxemburgo. Depois de atravessar, mais roncando do que correndo, as ruas da capital francesa, embranquecidas de neve, o jipão, já desenvolvendo velocidade regular, enveredou pela estrada coberta de neve, cercada por fileiras intermináveis de árvores embranquecidas pela geada. De vez em quando passávamos volumosos caminhões do exército, cujo ronco ensurdecedor chegava a abafar momentaneamente o ruído nada desprezível do nosso veículo. Quanto mais nos afastávamos de Paris, mais automóveis tombados e enferrujados guarneciam os dois lados da estrada. A maior parte desses "carros-esqueletos" estava parcialmente submersa em baixo de uma camada de neve. Na entrada de muitas aldeias que atravessamos, erguiam-se, nas mais bizarras posições, como sentinelas sinistras, tanques alemães enferrujados, semicobertos de neve. Embora a maioria das povoações não mostrassem sinais de dano ou destruição, havia algumas repletas de ruínas embranquecidas. Parecia que a neve, com o seu manto branco de enfermeira, tentava, num gesto de misericórdia, cobrir os rastos da guerra. Rastos por sinal já um tanto antigos, pois a região de Thionville e Reims, da qual nos aproximávamos, fora conquistada pelas tropas norte-americanas quase meio ano antes. Em Thionville, o restaurante "La Girafe" nos brindou com um delicioso almoço, constituído de bifes suculentos, batatas fritas e queijo Camembert. No bar daquele estabelecimento, fiquei conhecendo o leiteiro de Thionville, um velho francês que desempenhara papel preponderante no movimento subterrâneo da Resistência FF1(17). Por meio de um receptor-transmissor, escondido na sua modesta moradia, o leiteiro agente-secreto manteve, durante a ocupação nazista, contato constante com a Inglaterra. Certas noites, em hora previamente combinada, o velho patriota francês dirigia-se a um campo vizinho, onde aguardava o piscar duplo de uma luz vermelha, anunciando a chegada iminente de um avião britânico do qual caíam pára-quedas guarnecidos cada um com 20 pistolas automáticas. Estas armas, tão vitais para as forças da Resistência, o leiteiro as recolhia, fazendo-as chegar — por meio de uma engrenagem complicada — a Paris. Outro feito do qual se vangloriava o velho leiteiro era o de ter contribuído para a morte de três soldados alemães. Ao observar a velocidade incrível que desenvolviam os veículos da Wehrmacht na sua fuga diante do avanço dos Aliados, certo dia o velho cavou um profundo buraco no calçamento de uma das principais ruas da cidade. Não demorou muito para que um carro militar alemão, em velocidade máxima, caísse na armadilha sabidamente camuflada por algumas pedras, morrendo na capotagem espetacular todos os seus três ocupantes.

Tive que usar todo o meu talento diplomático para explicar ao meu interlocutor, sem ferir a sua susceptibilidade, as razões imperiosas que me impediam de aceitar o honroso convite para visitar sua casa. E foi assim que parti de Thionville sem ver os dez pára-quedas de pura seda (valendo naquele tempo a soma apreciável de 40.000 francos cada) que o patriota guardava como lembrança-troféu — investimento de suas perigosas atividades de herói da Resistência Francesa.

Em Reims, paramos para visitar a Catedral. Não estávamos com pressa, pois, com o fim de evitar a chegada a Luxemburgo à noite, decidimos de comum acordo, pernoitar em Charleville, na Bélgica. da qual nos separavam ainda uns 90 quilômetros. A Catedral de Reims, obra-prima de estilo gótico, datando do século XIII, apresentava um aspecto assaz curioso, talvez único em toda a sua longa existência, pois estava envolta, até quase o cume de suas duas torres de cor cinza, de uma espécie de gigantesca muralha chinesa, formada por fileiras e fileiras de sacos de areia protetores. Apesar desse cuidado, houve alguns estragos. Constatei, na parte superior da fachada de pedras do edifício, a falta de algumas daquelas finamente cinzeladas figuras de santos e uma pequena ala fora consumida pelo fogo. No interior, porém, tudo estava intacto. A ausência de um dos grandes vitrôs de coloração e desenhos magníficos, devia-se (assim nos foi explicado), não ao fato de ter sido quebrado, mas porque fora, em razão de seu altíssimo valor artístico, propositalmente retirado pelas autoridades eclesiásticas. O vento infernal, que constantemente entrava pela abertura, contribuía para baixar ainda mais a temperatura reinante, já inconfortavelmente baixa no interior da Casa de Deus, onde estava sendo celebrada uma missa de sétimo dia. Entre as finas arcadas, que no cume da abóbada gótica alcançavam a altura de uns 40 metros, achava-se um pequeno número de parentes e amigos do morto anônimo, assim como meia dúzia de soldados americanos em jaqueta de campanha e capacetes de aço, reduzidos todos a uma insignificância total e absoluta.

Como a fama da cidade de Reims é devida não somente à sua Catedral, mas também à sua champanha, tentamos, bons turistas que pretendíamos ser, adquirir pelo menos algumas garrafas daquela bebida celeste. Porém, apesar de um dos nossos sargentos ter previdentemente levado consigo uma caixa inteira de garrafas de champanha vazias (para receber uma garrafa cheia era obrigatório, devido à aguda falta de vidro, entregar, além da importância em dinheiro, também outra vazia), nosso esforço foi inútil. Estávamos já na tarde de sábado e as lojas se achavam inexoravelmente fechadas. Fiquei sem a champanha, mas em compensação travei conhecimento com um capitão francês que me contou algumas das experiências que vivera durante o ano e meio em que fizera parte dos "Maquis". Moço ainda, a cor rósea do seu rosto liso contrastava com as linhas atrevidamente enérgicas de seu delgado perfil e com a desmesuradamente grande pistola que trazia dependurada na cintura. Contava — agora já sem amargura — as privações que tiveram de passar os componentes dos "Maquis" durante a sua luta subterrânea com os nazistas. No inverno haviam sofrido terrivelmente devido à falta de roupas adequadas. Havia também uma escassez crônica de armas e munições. Assim mesmo. raramente deixaram de desempenhar a sua tarefa de intimidação e represália contra aqueles elementos da população francesa que, por covardia, comodismo ou simplesmente por dinheiro, se deixaram levar à colaboração com as autoridades nazistas. Quando, por volta da meia-noite, o ruído furioso de um automóvel passando em alta velocidade despertava os habitantes de um lugarejo qualquer, eles cochichavam meio respeitosos, meio atemorizados: "Lá vão os Maquis". Só os "Maquis" e os alemães possuíam gasolina. Em geral, as expedições estavam a cargo de 4 a 5 homens armados até aos dentes. Alguns dos reides do grupo ao qual pertencia o meu interlocutor destinavam-se a efetuar a "conversão" do prefeito de uma aldeia cujo afã em colaborar com os nazistas era notório. Num desses casos, depois de ter sido o prefeito advertido duas vezes pelos "Maquis" por mensagens escritas, uma noite foram procurá-lo, de automóvel. Durante duas horas os rapazes tentaram fazê-lo mudar de opinião, ameaçando-o, caso contrário, de fuzilamento. Tudo foi debalde, pois o prefeito filo-nazista insistia na sua atitude desastrosa. Uma noite, alguns moços dos "Maquis", entre os quais se achava o meu interlocutor, irromperam na residência do prefeito recalcitrante, fuzilando-o na presença da esposa e do seu jovem filho. "Foi terrível", disse o capitão, "mas não tivemos alternativa. Tínhamos que agir rapidamente."

Quanto ao tratamento dispensado aos franceses uniformizados pertencentes às forças de ocupação nazistas, o castigo variava conforme a sua categoria: ridicularização para os gendarmes e execução sumária para os milicianos (civis uniformizados pelos nazistas e encarregados da tarefa de intimidação contra os seus patrícios). O castigo favorito para os gendarmes prisioneiros consistia em despi-los, mandando-os de volta, vestidos apenas de cuecas. Numa ocasião, 20 gendarmes apanhados pelos "Maquis" numa cidade tiveram de sofrer esse castigo degradante. "Foi uma verdadeira humilhação coletiva", disse rindo o capitão, "porém, ainda assim, bastante preferível à sorte que reservávamos aos milicianos". Ao irrompermos numa aldeia, a nossa primeira tarefa era geralmente a de "catar" os milicianos em suas casas e levá-los à praça pública, onde eram obrigados a se despirem, sendo em seguida sumariamente fuzilados. Cartazes pregados na parede da casa diante da qual tombavam continham a enumeração dos delitos por eles cometidos.

Como é comum em épocas de grandes transtornos, existia também o elemento pitoresco na atuação dos "Maquis". Assim, enquanto os agricultores pobres eram despojados apenas de algumas galinhas, os fazendeiros e comerciantes que se haviam enriquecido no mercado negro de maçãs ou demais produtos de alimentação eram obrigados, sob a mira dos revólveres, a entregar todo o seu lucro em dinheiro. Uma vez de posse do monte de notas cuja soma passava freqüentemente de meio milhão de francos, o "mercadonegrista" era convidado a acender o fogo na lareira e em seguida assistir à queima do seu dinheiro, atirado às chamas pelos rapazes dos "Maquis". "Nossa intenção era apenas castigar os que se dedicavam ao câmbio negro, e não de levar para nós o lucro daquele comércio ilícito" — explicou o capitão.

—Vocês chegaram também a fuzilar mulheres? — perguntei.

—Sim, também mulheres. No entanto, na maioria dos casos, nós nos contentávamos apenas em raspar-lhes os cabelos.

—Houve muitos casos de histerismo durante os fuzilamentos?

—Não. Quase todos souberam enfrentar a morte de maneira corajosa. Inclusive as mulheres.

O capitão teria contado muito mais de suas experiências, mas a buzina do nosso jipão me obrigou a terminar a entrevista extemporânea. Ao deixar a cidade de Reims o jipão deslizava contente através da planície coberta de neve que, impressionante na sua monotonia, parecia estender-se até o infinito. Quanto mais perto chegávamos de Charleville, maior número de automóveis de todos os tipos jaziam retorcidos e enferrujados à beira da estrada. Um tanque alemão, com a pintura um tanto apagada, mas ainda em perfeito estado de conservação, despertou meu interesse devido à posição em que se encontrava: virado para baixo, como se tivesse dado uma cambalhota. "Acontece às vezes durante ataques aéreos devido à deslocação do ar", explicou um dos sargentos. Duas vezes tivemos que parar, a fim de exibir os nossos documentos em postos rodoviários guarnecidos pela polícia militar. Um ligeiro exame, seguido de continência dirigida à minha farda de oficial, e a viagem continuava. Eram aproximadamente cinco horas da tarde, quando, passando pelos arredores de Mezières, entramos em Charleville, cidadezinha de uns 20.000 habitantes, com aspecto autêntico de praça de guerra, por se achar repleta de soldados norte-americanos, todos trajando uniformes de campanha. A alguns quilômetros desse lugarejo do norte da França, encravada no departamento das Ardenas, começava a linha avançada da frente de combate. A batalha das Ardenas, apesar de já oferecer vantagem definitiva aos Aliados, ainda estava sendo travada. Ignorávamos que, precisamente no dia da nossa chegada, ou seja, a 13 de janeiro de 1945, tropas do V Corpo do Exército norte-americano tinham iniciado um ataque contra o flanco das posições alemãs, a leste de Houffalize, ou seja, a uns 80 quilômetros de Charleville. Foi em Houffalize que, semanas mais tarde, devia ser efetuada a junção entre as tropas do I e Ill exércitos norte-americanos, comandados respectivamente pelos generais Courtney H. Hodges e George S. Patton. O conjunto destes dois exércitos constituía o XII Grupo de Exército Norte-americano, comandado pelo Gen. Omar Bradley e desempenhara papel vital em todas as fases da conquista da Alemanha.

Um tenente que pertencia ao Corpo de Pára-quedistas, que encontrei logo depois do jantar no Hotel Astor, e um pouco antes do toque de recolher das 9 horas da noite, preveniu-me com insistência contra os riscos que corríamos com o nosso veículo, se porventura não parássemos ao primeiro sinal de "alto". A ordem que tinham os soldados era de atirar primeiro e perguntar depois. Símbolo expressivo da ferocidade com a qual estava sendo travada a batalha das Ardenas, foi a confissão do tenente pára-quedista, de ter ele morto a sangue-frio, soldados alemães que, com as mãos erguidas, estavam caminhando em direção às linhas norte-americanas. "Às vezes — disse-me o tenente — deixávamos passar um ou outro ileso, para os demais criarem coragem. Quando então se formava um grupo substancial de "Krauts"(18) prontos a se entregarem, descarregávamos os nossos fuzis e não cessávamos de atirar até vê-los todos estendidos no chão. Não estávamos fazendo outra coisa senão vingar a memória de inúmeros dos nossos rapazes mortos daquela mesma forma pelos próprios alemães."

Deixamos Charleville às quatro da madrugada. Tivemos que passar por inúmeros postos de controle onde os guardas invariavelmente pediam a contra-senha. Respondíamos, conforme era verdade, que a ignorávamos, pois estávamos apenas de passagem, viajando para Luxemburgo. Depois que o motorista exibia os documentos, sempre tínhamos permissão para prosseguir. O jipão nos levava velozmente através de povoações em ruínas e cobertas de neve, por entre vastas florestas, cujos milhares de árvores davam a ilusão de estarem executando uma espécie de dança elegante, devido ao movimento de suas copas cobertas de neve num contínuo giro ilusório.

Antes de chegarmos à histórica cidade de Sedan, atravessamos, pela segunda vez naquela viagem, o rio Mosa. Em Charleville, onde o encontramos pela primeira vez, era um tanto estreito e sujo, mas em Sedan já se mostrava mais imponente no meio da desolação árida da paisagem que o cercava e que se caracterizava por pontes desmoronadas, ruínas e casas derrubadas. Naquela mesma região também se travara uma batalha das Ardenas, logo no início da Primeira Guerra Mundial e cujo ponto-chave era exatamente aquele rio de aspecto um tanto decepcionante. Foi lá que, em 27 de agosto de 1914 o Gal. De Longle de Cary, comandante do IV Exército francês, deu a ordem histórica: "Os alemães têm que ser rechaçados para dentro do rio Mosa."

Nas vizinhanças de Sedan encontramos algumas casamatas da célebre Linha Maginot; e, já na cidade, tivemos que nos submeter ao costumeiro controle de documentos pela polícia militar. O aspecto geral daquela urbe histórica era bastante entristecedor, devido ao relativamente grande número de seus prédios danificados ou em ruínas. Foi a batalha de Sedan de 1o. de setembro de 1870 que selou a sorte do Segundo Império Francês. Principalmente devido à confusão reinante entre o alto comando francês e por terem os seus generais subestimado as forças alemãs concentradas na região, foi que um poderoso exército francês de uns 100.000 homens caiu na armadilha mortal preparada pelo inimigo, levando o Imperador Napoleão III a içar ali a bandeira branca, e alguns dias mais tarde abdicar do trono da França. A uns quinze quilômetros da cidade atravessamos a fronteira belga, marcada pelas palavras "Doane... Toll" (alfândega), na parede de suas guaritas, agora totalmente vazias. Passar sem mais nem menos por este posto, normalmente guarnecido por equipes de fiscais aduaneiros, temidos pela sua implicância, era uma das poucas vantagens auferidas por uma viagem em tempo de guerra. Quanto mais nos aproximávamos de Luxemburgo, maior era o número de comboios motorizados que encontrávamos. Caminhões de cor marrom-verde repletos de soldados, em traje de combate, prensados uns contra os outros, os rostos rubros de frio e as costas abrigadas por cobertores amarelos. Nos radiadores de muitos dos caminhões, assim como dos outros veículos, tremulavam bandeirolas formadas por restos de pára-quedas de cor lilás rosada, servindo assim, de ponto de referência aos nossos aviões, a fim de evitar mal-entendidos fatais. Alguns dos jipes traziam, na frente, varas de aço verticais, cuja altura se elevava bastante acima da capota do veículo. Serviam para cortar os fios de arame que os nazistas, sabedores de que os jipes militares andavam freqüentemente com o pára-brisa abaixado, costumavam estender através das estradas. Bom número de oficiais e soldados aliados tiveram suas cabeças arrancadas por esta cilada diabólica dos alemães. A paisagem pela qual deslizamos era de uma triste monotonia, intercalada por um sem-número de povoações cuja rua principal apresentava sempre as mesmas casas de cor cinzenta ou esbranquiçada e manchadas de lama, e os invariáveis destroços de automóveis e tanques, muitos deles meio soterrados pela neve, na beira da estrada.

Afinal, pelas 8 horas da manhã, um aglomerado de pequenas torres sobressaindo à distância, da brancura da neve, nos anunciava que tínhamos alcançado a cidade de Luxemburgo.


Capítulo VIII
DA "RÁDIO LUX" PARA A ESTAÇÃO SECRETA

Meu trabalho em Luxemburgo é radicalmente diverso do que me pintaram em Londres — Luxemburgo é ainda praça de guerra — Elyena e Zoya contam suas aventuras como trabalhadoras-escravas de Hitler — Uma visita providencial.

 

Todos os que já tiveram ensejo de participar de uma guerra, certamente conheceram, pelo menos uma vez, a sensação desagradável de se encontrarem temporariamente "perdidos". A gente sai com ordens minuciosas, burocraticamente perfeitas, mas ao chegar ao lugar de destino, o oficial a quem estava endereçada a mensagem já se mudou ou desapareceu — e freqüentemente com ele, todo o seu estado-maior. Por outro lado, quando se é feliz em encontrá-lo, ele está de tal maneira preocupado com os afazeres do momento que, após ler superficialmente o documento encontra um pretexto qualquer para despistar o portador, alegando que a decisão será tomada "mais tarde". Foi justamente isto o que me respondeu o capitão ao qual entreguei as ordens que portava, destacando-me, de forma geral, para "serviços na Rádio Luxemburgo". Depois de insistir durante alguns dias, fui finalmente encaminhado aos escritórios do Coronel encarregado da chefia daquela emissora, denominada, em sua forma coloquial, "Rádio Lux". Tive logo duas desagradáveis surpresas: em primeiro lugar, ao invés dos trinta redatores prometidos pela direção da ABSIE, encontrei apenas três; em segundo lugar, aquele punhado de sargentos poliglotas que lá se achavam, encontravam-se estritamente limitados à tarefa de tradução. Em outras palavras, ao invés de, baseados em notícias fornecidas pelas agências noticiosas escreverem um "show", estavam simplesmente traduzindo do inglês para o alemão um boneco escrito naquela língua por um redator norte-americano. Assim sendo, a tarefa da qual me achava incumbido seria a de supervisionar os três rapazes do exército no seu trabalho, e zelar para que em circunstância alguma se desviassem do texto fornecido, corrigindo também quaisquer erros idiomáticos da língua alemã. Sem com isto desmerecer a nobre arte da tradução, tenho a dizer que nunca me agradou esse ramo de atividade. Sou, tanto por formação como por inclinação, muito mais propenso a expressar, com maior ou menor facilidade, os meus próprios pensamentos, do que dedicar-me à reformulação de idéias alheias. Tanto assim que, o que mais me sustentou durante a temporada das bombas V-1 e V-2 em Londres, foi precisamente o fato de desfrutar, no desempenho de minhas funções de redator-chefe da seção de notícias da ABSIE, de tamanha liberdade de expressão e de ação, que atingia praticamente uma plena autonomia.

Com a finalidade de me livrar, na medida do possível, das preocupações, dediquei cada minuto do meu tempo livre a passeios pelas ruas da cidade onde os caprichos da guerra me haviam lançado.

A cidade de Luxemburgo, capital do pequeno país do mesmo nome contava naquela época com uns 60.000 habitantes. Ela teve a sorte de, apesar de sofrer a guerra e a ocupação nazista, poder conservar praticamente intacto o seu valioso patrimônio dos edifícios históricos, enfeitados de torres medievais de aspecto pitoresco, assim como seus prédios residenciais, um pouco antiquados, mas de construção e linhas sólidas. Uma das características preponderantes do povo de Luxemburgo é um pronunciado senso de independência, o qual se reflete no tradicional lema: Mir wölle bleiwe, wat mer sin(19)

Apesar de terem encontrado alguns traidores colaboracionistas luxemburgueses recrutados essencialmente nas classes média e abastada, os alemães, mesmo depois de terem efetuado uma reforma total no sistema de ensino do Luxemburgo em moldes nazistas, nunca conseguiram conquistar o espírito, e muito menos as simpatias do povo daquela pequena nação que, em surdina, cantava: Es geht alles vorüber, es geht alles vorbei — im November, im Dezember ass ke Preise me' hei...(20). O "prussiano", no entanto, não se contentou em permanecer apenas "até o fim do ano". E, caso não tivesse sido libertado o resto do continente europeu do domínio nazista, voluntariamente ou não o Luxemburgo acabaria sendo definitivamente incorporado ao Terceiro Reich. Os nazistas, aliás, tinham elaborado grandiosos planos para o pequeno país, que oportunamente devia servir de junção para uma projetada e moderníssima auto-estrada, ligando Londres a Berlim, num triângulo de comunicações altamente importante. Quanto à cidade de Luxemburgo, iria ser completamente reconstruída e modernizada, de modo a poder agrupar dentro dos seus limites municipais uma população quatro vezes maior — ou seja, uns 250.000 habitantes. Porém, felizmente para a Europa e o mundo, a grandiosa rodovia hitlerista, cujo objetivo principal seria o transporte fácil dos conquistadores nazistas de ponta a ponta numa Europa por eles escravizada, nunca se materializou. Os pacatos e simpáticos habitantes da cidade de Luxemburgo. passeando naquele dia de janeiro de 1945 pela Avenue de La Liberté, contemplando as fotografias da então grã-duquesa Charlotte e do Príncipe Jean, expostas em todas as vitrinas, já começavam a se esquecer de que apenas alguns meses atrás aquela via principal ainda se chamava "Adolph Hitler Strasse". O que, porém, não podia ser eliminado muito facilmente era a lembrança que evocava um prédio imponente, perto do correio-geral. chamado "Vila Pauli", antigo quartel-general da temida "Gestapo". Poucos eram os cidadãos de Luxemburgo que, ao erguerem a vista para as quatro torres que guarnecem aquele prédio de aspecto sinistro, podiam evitar um arrepio. fora ali que muitos dos seus familiares e amigos tinham sido submetidos às mais cruéis torturas e vexames. Apesar de ter, com a entrada das tropas norte-americanas, se livrado do pesadelo da ocupação nazista, Luxemburgo ainda permanecia, naquele mês de janeiro de 1945, uma autêntica praça de guerra. Ao norte da cidade, perto de Echternach (cidadezinha luxemburguesa encostada à fronteira alemã, a uns 30 quilômetros da capital), contingentes norte-americanos estavam travando renhidos combates com tropas alemãs, concentradas nas proximidades do pequeno Bitburgo. Pelo lado ocidental de Luxemburgo, numa distância de apenas 47 quilômetros, o exército ianque estava empenhado numa série de combates cuja finalidade era deslocar os alemães, da cidade de Trier.

Tanto as ações bélicas ao redor de Bitburgo como de Trier eram apenas preparatórias para a futura investida maciça das tropas do Gen. Patton, cuja intensificação deveria ser aumentada de dia para dia, a fim de culminar na ruptura total das linhas inimigas rumo a Coblença. Por ocasião da minha chegada ao Luxemburgo, porém, e durante algum tempo ainda, a situação do III Exército norte-americano, lutando nas vizinhanças daquele país-mirim, permanecia ainda em pleno fluxo. Circulavam boatos de que estava sendo preparada pelos alemães uma contra-ofensiva de grandes proporções contra a cidade de Luxemburgo. Outros boatos, não menos intensos, diziam estar a cidade repleta de franco-atiradores que se teriam infiltrado através das nossas linhas com a intenção de semear o pânico tanto entre a população civil como entre a numerosa guarnição militar ianque. Confesso que, durante os primeiros dias da minha estada em Luxemburgo, experimentei uma sensação assaz desagradável — apesar do pesado capacete de aço na cabeça — com a expectativa pouco animadora de ser atingido a qualquer instante por uma bala traiçoeira vinda de uma das milhares de janelas das ruas. Sensação semelhante, mas em proporções bem mais elevadas, eu devia experimentar alguns meses depois, durante os meus freqüentes passeios a pé, através de cidades e aldeias do território alemão recém-conquistado. Nunca cheguei a ser diretamente alvejado, porém os freqüentes estalos e disparos de carabina ou de pistola, de origem ignorada, fizeram-me estremecer de susto, mais de uma vez. Havia na cidade de Luxemburgo, outrossim, uma série de outros ruídos bélicos, dos quais, talvez o mais persistente era o eco do fogo de artilharia das batalhas que estavam sendo travadas na vizinhança. Parecia um surdo e prolongado rufar de tambores, pontilhado de estrondos violentos. Em seguida, ao diminuírem aqueles latidos furiosamente roucos, ressurgiam novamente os bramidos abafados, generalizados, como um fundo musical permanente: "bbbboouuummm... bbbboouuummm"! Às vezes, quando aumentava a intensidade do fogo, as vidraças das janelas estremeciam, especialmente por ocasião de explosões mais fortes provocadas por obuses isolados, caindo dentro da própria cidade e que me lembravam por sua intensidade os estrondos das V-1 e mesmo das V-2 de Londres. Outros ruídos bélicos com os quais eu já havia travado conhecimento na capital britânica, eram as violentas rajadas das baterias anti-aéreas, especialmente à noite, e o canto-sussurro dos numerosos enxames dos nossos bombardeiros, mal visíveis a olho nu, porém intensamente reconfortantes.

Para alguém que tinha atravessado o inferno do terror de Londres, os perigos que Luxemburgo apresentava naquele tempo deveriam parecer relativamente insignificantes. Porém os meus nervos já se achavam tão abalados, que freqüentemente me sentia invadido, mesmo quando se davam explosões relativamente fracas, por um angustiante sentimento de medo, quase atingindo o pânico e que, na capital britânica jamais me havia assaltado, mesmo durante os piores bombardeios.

Foi logo após a minha chegada a Luxemburgo que tive a oportunidade de encontrar, pela primeira vez, alguns "escravos do trabalho" da máquina de guerra nazista; ou, melhor, escravas, pois eram duas moças, uma chamada Elyena e a outra, Zoya, ambas naturais da Ucrânia, com 16 e 19 anos de idade, respectivamente. Ao ouvi-las cantando, desde o amanhecer, quando iniciavam seus afazeres de arrumadeiras do nosso alojamento, era impossível imaginar que havia poucos meses ainda, elas estavam sujeitas a um rude regime de trabalho forçado. Com os meus conhecimentos da língua russa, não tive dificuldade de ganhar a confiança das duas moças, levadas à força pelos alemães, de sua cidade natal de Vorochylovgrad.

—"Por lá, entretanto, a frente de combate já passou três vezes", disse Elyena, englobando nesta frase casual, toda a sua preocupação por seus pais, um irmão e três irmãs, que fora obrigada a deixar na sua terra de origem. Quanto ao seu trabalho na Alemanha, que invariavelmente era executado debaixo de escolta policial, consistia inicialmente em transportar cimento em carrinhos de mão. Como eram mais jovens que as outras mulheres, Elyena e Zoya receberam um pequeno "abatimento" na sua quota habitual de 75 quilos de cimento por viagem, que cada trabalhadora era obrigada a empurrar. Mais tarde elas foram enviadas para uma fábrica de material bélico, onde eram forçadas a se levantar diariamente às 3 horas da madrugada e com nada mais no estômago que um Kaffee-Ersatz (café substituto), de gosto atroz, tinham que iniciar a sua árdua e prolongada tarefa diária. Dormiam vinte ou trinta delas numa barraca aquecida apenas por um único forno, ao redor do qual todas as moças se reuniam depois do trabalho. Sua vida na Alemanha se resumia nas seguintes quatro palavras: "cansaço, frio, sujeira e pancadas".

Foi no quinto dia da minha estada em Luxemburgo que Zoya e Elyena, honrando a amizade que por mim sentiam, se apresentaram vestidas com a "farda" que trajavam durante o seu tempo de trabalho forçado: sapatos grosseiros, de couro preto, chapeados de ferro, calças compridas e blusas de cor azul-marinho. Enquanto admirava as florzinhas delicadamente bordadas na blusa de Elyena, tocou a campainha. O visitante era Brewster Morgan, chefe do departamento de rádio do "Office of War Information" e fundador da ABSIE, que eu conhecia desde Londres e ao qual, durante um fortuito encontro em Luxemburgo, alguns dias atrás, revelara o meu descontentamento com o cargo de supervisor de tradutores da Rádio Luxemburgo. Brewster Morgan me havia contado, por ocasião daquele encontro, que agora ocupava o cargo de chefe de rádio-comunicações do Departamento da Guerra Psicológica do XII Grupo de Exércitos norte-americanos. Como sempre havia demonstrado um interesse quase paternal pela minha pessoa, não hesitei em expor-lhe aqueles meus problemas um tanto delicados.

Após ter fechado cuidadosamente as portas do quarto e certificar-se de que tanto Zoya como Elyena tinham voltado às suas atividades rotineiras nas dependências do prédio, Brewster, falando ainda mais baixo que de costume, indagou se eu porventura estaria interessado em "mudar de ambiente". Mais cauteloso agora, depois da decepção que tivera, devido à minha presteza manifestada em Londres em aceitar um serviço desconhecido, refreei a minha vontade de "aceitar qualquer coisa"; por isso, embora interessado em me afastar do ambiente "tradutor" da Rádio Luxemburgo, pedi ao meu interlocutor explicações detalhadas sobre o gênero de trabalho que ele tinha em mente. Apesar da minha insistência, entretanto, Brewster não se abriu totalmente. Explicou apenas que se tratava de uma emissora de rádio secreta norte-americana para irradiar em língua alemã e cuja equipe consistia de um pequeno grupo, porém altamente seleto e qualificado. À certa altura da nossa conversa, com um sorriso um tanto malicioso, Brewster Morgan pediu-me que o pusesse a par da linha propagandística adotada tanto pela ABSIE como pela Rádio Luxemburgo, em relação ao surpreendente avanço das tropas alemãs nas Ardenas. Ao ser informado de que ambas se haviam esforçado em apresentar aquela contra-ofensiva alemã como a "última cartada de Hitler", ou como um "gesto de desespero suicida" da Alemanha nazista e de afirmar que "Hitler, apesar das suas afirmações, nunca chegaria a Antuérpia", Brewster disse: Posso lhe revelar que a emissora onde você irá trabalhar, se quiser, está, pelo contrário, adotando uma posição diametralmente oposta. Não somente ela está anunciando que Hitler vai mesmo entrar em Antuérpia, como promete avançar além daquela cidade belga. Numa estação "negra", tal procedimento é chamado "armadilha propagandística". Sabemos, de fonte absolutamente segura, que Hitler não alcançará o seu objetivo. Estamos, antes de mais nada, elevando propositalmente o moral dos ouvintes alemães a um grau de esperança artificialmente exagerado, com a finalidade de provocar o seu desmoronamento mais violento, pela decepção que irão ter, ao ficar patente num futuro próximo, o fracasso definitivo da contra-ofensiva das Ardenas, ordenada pelo seu líder. Aliás, não arriscamos nada. Se, por qualquer motivo imprevisível, os exércitos nazistas lograrem, apesar de tudo, chegar a Antuérpia, nós nos sairemos muito bem, pois éramos nós que "tínhamos razão", em confiar no gênio militar do "Führer". Caso fracassassem no seu intento, ainda conservaríamos a plena confiança dos nossos ouvintes alemães, pois nenhum deles poderia suspeitar de que o nosso brado constante: "Chegaremos a Antuérpia"... "Ultrapassaremos Antuérpia", teria sido motivado por outra coisa senão pelo mais puro e legítimo patriotismo.

—Afinal de contas, Brewster — perguntei — esta sua estação é alemã ou aliada?

—Pretende ser uma estação alemã mas é uma emissora aliada, ou antes, norte-americana. De fato, é a primeira estação "negra" na História militar dos Estados Unidos e faz parte do XII Grupo de Exércitos... Mas, já falei muito, talvez demais... O resto você conhecerá de "primeira mão" logo depois de sua apresentação na... — e sussurrou ao meu ouvido — na Avenida Brasseur no. 16.


Capítulo IX
AVENIDA BRASSEUR No. 16

Palacete fidalgo serve de camuflagem para as atividades de uma estação secreta — Especulações em torno do misterioso reboque fechado da propriedade — Tentativa de sabotagem — Fotografar as empregadas despidas era o "hobby" do diplomata nazista — Características principais dos programas e do pessoal da 12-12.

 

O fato de o quartel-general de uma rádio militar secreta ser localizado num palacete, parece um contra-senso. Porém era lá, na Avenida Brasseur no. 16, situada num aristocrático subúrbio da cidade de Luxemburgo, que funcionou noite após noite, durante uns sete meses, a emissora secreta do exército norte-americano, chamada 12-12. 0 contraste entre o ambiente distinto da fidalga mansão e as atividades temerárias, até mesmo um tanto vis, dos seus ocupantes era flagrante e objeto de um sem-número de comentários e apartes irônicos. Bem entendido, comentários e apartes provenientes da própria equipe da emissora secreta, pois a população de Luxemburgo, com exceção de algumas altas autoridades, ignorava por completo a verdadeira natureza das nossas atividades, sabendo apenas tratar-se de um local ocupado por uma repartição do exército norte-americano, pois o constante vai-e-vem de gente fardada dava essa impressão. Não vou tão longe em afirmar que nenhum habitante da cidade jamais tenha desconfiado de que "alguma coisa" estava sendo tramada atrás do alto muro que cercava o parque imenso, ao redor do prédio de granito cinza-escuro, de dois andares, e que nos servia de redação, posto de escuta, laboratório, centro interpretativo de dados do Serviço de Inteligência e... para alguns dos membros da equipe da 12-12, também de hotel.

Poderiam se perguntar qual a finalidade verdadeira do misterioso reboque fechado de cor verde-oliva, cuja silhueta aparecia através dos arbustos do parque. Talvez que alguns dos vizinhos se tenham apercebido mesmo da chegada daquele veículo de aspecto despretensioso que, arrastado por um caminhão do exército, fora deixado no parque da mansão do no. 16, pouco antes do início das irradiações da 12-12. Porém, o que nem os vizinhos e nem os transeuntes podiam ver de fora e nem certamente adivinhariam, era que aquele veículo de aspecto bastante simples escondia no seu interior um completo estúdio radiofônico dotado de moderníssimo equipamento. Muito menos ainda, podiam se dar conta de que cabos subterrâneos, escondidos debaixo do reboque, o ligavam diretamente com os transmissores da Rádio Luxemburgo — naquela época uma das mais possantes emissoras de toda a Europa.

Eis assim, em breves linhas, o esboço da localização dos dois principais setores de atividades da 12-12: uma aristocrática mansão de dois andares, no interior da qual se localizava o brain-trust da emissora, ou seja, a sua redação com todas as facilidades para o preparo dos programas; e, apenas a alguns metros da entrada lateral do prédio, um reboque fechado de aparência inocente, escondendo o estúdio com a sua aparelhagem. Tudo na sombra protetora das árvores frondosas de um grande jardim e de um alto muro de pedras e gradis, que cercava a propriedade. Adivinhar a finalidade à qual se destinavam, era praticamente impossível para alguém de fora.

Quanto ao reboque, era ele, durante o dia, propositalmente evitado pela equipe da 12-12, dando a perfeita impressão de completo abandono. O pouco que se via de fora, através das grades do muro e dos arbustos do parque, nada revelava — absolutamente nada — de sua verdadeira condição de estúdio.

As irradiações eram à noite, com horário e freqüência diferentes da Rádio Luxemburgo, da qual tecnicamente dependíamos.

O horário noturno adotado pela 12-12 entrosava-se perfeitamente com o esquema geral da camuflagem e segurança indispensáveis para o perfeito funcionamento da emissora secreta. As irradiações no início de suas atividades, ou seja, no fim do mês de setembro de 1944, começaram à meia-noite. Mais tarde, esse horário foi mudado para as 2 da madrugada, sendo uma hora inteira — das 2 às 3 — reservada ao noticiário, intercalado com música popular da Renânia, e marchas e outros números musicais militares alemães, irradiados por meio de discos encontrados em localidades alemãs recentemente capturadas, ou conseguidos na própria Luxemburgo e na Bélgica. O noticiário da 12-12 não era o costumeiro e tradicional boletim informativo geralmente usado em emissoras de tipo comercial, mas antes, uma variedade de fatos apresentados de maneira bastante informal. Assim, por exemplo, as notícias de bombardeios aéreos — uma "especialidade" da 12-12, sobre a qual faremos um relato detalhado mais adiante — eram de preferência apresentadas do ponto de vista de quem se achava embaixo das bombas, ou como dadas por testemunhas oculares — ao invés da descrição "de cima" geralmente usada nos programas de tipo comercial e mesmo na ABSIE ou na BBC. Depois do prefixo musical baseado nas notas iniciais de uma canção popular da Renânia, o programa começava sempre com algumas palavras introdutórias pronunciadas na voz amável porém distintamente viril do nosso locutor principal — Benno Frank, naquele tempo sargento, e depois promovido a tenente do exército — nascido na Renânia e naturalizado norte-americano. Depois vinham as notícias das frentes ocidental e oriental, noticiário aéreo — incluindo quase sempre uma "testemunha ocular"; um prolongado noticiário local, com a menção dos últimos decretos sobre racionamento e preços de gêneros e roupas, notícias e comunicados oficiais do partido nazista, em que se incluíam as últimas promoções e uma variedade de outras notícias de interesse tanto dos militares alemães como da população — inclusive também os resultados dos últimos jogos de futebol. Tudo isto, como já o mencionamos, intercalado de alegres músicas populares renanas e de marchas marciais alemãs. Em seguida vinha uma espécie de "coluna social falada" militar, incluindo as mais recentes anedotas e piadas, a lista cada vez maior de condecorações, ordens-do-dia dos comandantes, sugestões proveitosas para os soldados em matéria de saúde, recebimento do soldo, aproveitamento das licenças e uma multidão de outras informações úteis. A parte final do programa era sempre reservada a uma espécie de comentário cujo tema principal podia ser, conforme o caso, política ou militar, como por exemplo a utilidade de certas armas ou uma interpretação e análise de alguns aspectos de estratégia. A duração total do programa da 12-12 era geralmente de duas, ou às vezes de três horas, indo portanto até às 4 horas e, nas noites escuras de inverno, até às 5 da manhã. Certas partes do noticiário principal eram repetidas no decorrer da noite por meio de gravações em discos, efetuados durante o curso do programa pelos técnicos da emissora e incluindo, conforme o caso, também notícias novas ou ampliadas.

Explicaremos detalhadamente, no capítulo seguinte, como a 12-12 recebia o material para confeccionar o seu realista e detalhado programa. Posso esclarecer, desde já, que por ordem do Alto Comando norte-americano, dezenas de soldados e oficiais das unidades principais das frentes de combate colaboravam ativamente com a emissora, enviando informações diárias baseadas em material de imprensa ou outro, encontrado em localidades recém-capturadas, por telefone militar, rádio, avião ou qualquer outro meio de comunicações.

Irradiar à noite apresentava outra apreciável vantagem para uma emissora alemã de cunho militar, como o pretendia ser a 12-12, pois a relativa calma reinante durante esse período permitia que os seus programas fossem recebidos e ouvidos ainda melhor por seus "clientes" da Wehrmacht, de vez que as tropas, durante a noite, permanecem ainda mais vigilantes. Tal vigilância era redobrada nas centenas de unidades do exército alemão, cada vez mais cercadas e isoladas em gigantescos bolsões, passando os oficiais de seus estados-maiores, noites a fio "colados" aos receptores de rádio, no afã de captar qualquer informação que lhes pudesse ser útil para aliviar a sua precária situação.

Para não atrair a atenção dos transeuntes que porventura passassem pela Avenida Brasseur naquele horário noturno, o "reboque-estúdio" era cuidadosamente vedado de ponta a ponta, a fim de que não escapasse o menor raio de luz que iluminava o seu interior durante as irradiações. Quanto às entradas e saídas do pessoal pela portinhola do veículo, podiam ser efetuadas sem o menor risco, discretamente, por meio de uma cortina dupla semelhante àquelas usadas nas portas de laboratórios fotográficos. Como era terminantemente proibido o uso de faroletes, os redatores que eram obrigados a transitar do prédio até o reboque para a entrega de manuscritos aos locutores, logo adquiriam uma espécie de "sexto sentido" que lhes permitia atravessar os dez metros (aproximadamente) da distância a percorrer, sem maiores conseqüências do que, ocasionalmente, um tornozelo torcido. As românticas noites de luar eram especialmente perigosas, exigindo do pessoal uma série de precauções suplementares para não serem vistos, assim como a máxima rapidez e silêncio nos movimentos, dignos dos mais hábeis guerreiros "peles vermelhas".

Com tudo isto, só um Sherlock Holmes talvez tivesse sido capaz de "deduzir" que aquele reboque fechado, sem finalidade aparente largado no parque que cercava a mansão da Avenida Brasseur, era na realidade o centro vital daquela possante emissora que tanto intrigava e perturbava os serviços secretos nazistas. Não tenho provas que possam documentar o grau de eficiência da rede de contra-espionagem de Hitler em Luxemburgo. Posso afirmar, porém, que durante toda a atuação da nossa emissora, houve apenas um único caso de suspeita de tentativa de sabotagem contra a 12-12. Aconteceu um pouco antes das 2 horas da madrugada, numa noite de inverno do mês de dezembro, quando um sargento, pálido e bastante alterado, voltou do reboque para a sala de redação localizada no andar térreo do prédio principal, uns vinte minutos depois de ter entregue os manuscritos aos locutores. Do seu relato, um tanto incoerente, podia-se deduzir o seguinte: Como a noite estava excepcionalmente escura, o sub-oficial, em flagrante desobediência aos regulamentos, se havia munido de um farolete, sem se preocupar, por outro lado, de levar a sua pistola automática. Ao iluminar, por uma fração de segundo, os degraus que conduziam à portinhola do veículo, percebeu com espanto, um par de pés masculinos, calçados com sapatos pretos, sobressaindo por detrás das rodas do reboque. Como estava desarmado, não pode atirar na direção do dono dos sapatos, cujo corpo o veículo escondia. Nestas circunstâncias, o sargento nada mais pode fazer do que, com um salto rápido, ganhar o interior do reboque-estúdio e alertar o tenente encarregado de supervisionar o programa que estava para "ir ao ar". Este, armado com o regulamentar Colt-45 incontinente pulou para fora. Porém já era tarde. No espaço perto das rodas do veículo, onde, segundos antes o sargento tinha visto o par de pés humanos, nada havia. Resultado negativo teve a "batida" silenciosa organizada em seguida por toda a equipe da 12-12 que, com o dedo no gatilho, vasculhou cada centímetro quadrado do vasto parque, bem como todas as suas dependências, porém sem encontrar sequer um traço de bomba-relógio, mina terrestre ou qualquer outro engenho de sabotagem, para não falar de algum agente ou agentes encarregados da execução do plano de fazer voar pelos ares a 12-12.

Demorou aproximadamente uma semana para nos desfazermos da "psicose da sabotagem". Era isso um receio agudo, latente (porém cuidadosamente oculto dos colegas), de se ver repentinamente despedaçado por uma carga de dinamite, porventura deixada de "lembrança" pelo possível anônimo sabotador-fujão, ou colocada depois por outro agente secreto nazista talvez melhor sucedido. Por medida de precaução suplementar, no dia seguinte após a malograda tentativa, dois gigantescos rapazes da polícia militar norte-americana assumiram, em caráter permanente, a guarda da entrada principal da Avenida Brasseur n.° 16.

A residência senhorial onde se desenrolaram as atividades essenciais ao preparo dos programas da emissora secreta fora durante certo tempo habitada por um famoso professor de Metalurgia alemão, membro do partido nazista e Conselheiro Secreto da Administração de Minas, como pudemos constatar por livros e anotações por ele deixados. Felizmente para sua reputação, não foi ele o último morador da mansão antes que esta caísse em nossas mãos, mas sim, um diplomata do Estado-maior do governador nazista na França. Tanta pressa teve aquele senhor, de fugir à aproximação das tropas norte-americanas, que deixou de levar consigo três malas repletas de roupas luxuosíssimas. Eram, na sua maioria, fardas, todas confeccionadas pelos melhores alfaiates de Paris e dotadas, sem exceção, de espartilhos "embutidos" para fazerem o corpo do dono parecer o mais esbelto possível. Quanto ao smoking, branco, forrado de seda natural, era, assim como o robe, em veludo azul escuro, uma autêntica obra de arte da alta costura.

Porém, o diplomata nazista deixara também uma outra "lembrança" mais pitoresca. Com efeito, foi encontrado no sótão da casa um laboratório fotográfico perfeitamente equipado. Continha, nos seus arquivos, pilhas de fotografias e negativos de nus mais ou menos artísticos, testemunhas do "hobby" favorito do digníssimo representante diplomático de Hitler, que era o de fotografar as suas numerosas empregadas e outras ajudantes femininas, em "trajes de Eva".

O andar térreo do prédio era reservado à redação e a outros setores das nossas atividades, como por exemplo, a seção de estudo e análise de fotografias aéreas, arquivo e biblioteca, sala reservada ao Serviço de Inteligência, sala de escuta radiofônica, e outras. Ali se achavam também os dormitórios ocupados por alguns dos poucos habitantes permanentes do prédio, entre os quais o nosso comandante, Cel. C. R. Powell. Este velho oficial se entusiasmara tanto com a idéia da emissora secreta, que voluntariamente abdicou do posto de general de divisão que de direito lhe pertencia, para aceitar o comando — bem inferior em posição militar, mas infinitamente superior em fascínio — da Operação "Annie", como era designada, em código militar, a 12-12. Homem calmo, ponderado, dotado de grande inteligência e de genuína compreensão dos problemas de seus subalternos, era para o pequeno grupo de componentes da nossa emissora um autêntico pai de família. Dominava, como poucos, a difícil arte de nunca descarregar a sua ira ou mágoa no próximo. Olhando para o seu rosto avermelhado, impregnado de uma bondade muito mal camuflada por uma exagerada expressão de severidade, e ouvindo suas histórias e piadas, ninguém poderia adivinhar a amargura profunda que o torturava. Havia, com efeito, perdido um de seus filhos durante as ações bélicas nas vizinhanças de Luxemburgo. Outro filho, gravemente ferido, estava condenado a ficar aleijado para o resto da vida. Apesar de não ser ele um especialista em propaganda radiofônica, sua opinião era freqüentemente solicitada, mesmo em questões alheias ao seu campo de atividades. Bastava surgir um problema de vulto, onde quer que fosse, para seu inato bom senso invariavelmente encontrar a solução adequada. Estava a seu cargo a parte puramente militar e administrativa da estação. Desnecessário afirmar que desempenhava uma variedade de tarefas contentando a todos — inclusive ao Supremo Quartel-General com o qual nos achávamos em permanente contato.

Embora fossem efetuadas as comunicações com a chefia militar por meio de mensagens radiofônicas cifradas, era também indispensável um constante contato pessoal. Esta tarefa de ligação era atribuída ao Major Patrick (Pat) Dolan. Este expansivo e jovial oficial norte-americano havia resolvido o problema de seu transporte de uma forma não somente prática, como essencialmente cômoda. Conseguira apenas com o "charme" da sua conversa, que o exército levasse o seu automóvel particular dos Estados Unidos até o Luxemburgo, onde conseguira, além da estrela branca do capô do motor, também a característica pintura verde-oliva dos veículos militares. Dotado assim de um carro luxuoso, que de veículo militar apenas tinha a cor e o distintivo, o competente e prático Major Dolan costumava enfrentar, com a maior desenvoltura, qualquer viagem, mesmo distante, bem como as estradas mais esburacadas. Isto, para grande inveja daqueles oficiais que, forçosamente limitados ao uso de veículos distribuídos pelo próprio exército, se viram na grande maioria dos casos, contemplados com um mero jipe, veículo que naquele tempo ainda constituía a grande novidade em transportes militares mas que, apesar dos muitos apetrechos utilíssimos com os quais se achava dotado, era desprovido de amortecedores.

O Major Dolan, além de suas funções de oficial de ligação, era também o substituto do Cel. Powell no comando do nosso pequeno grupo, que chegou a contar, no máximo com uns vinte homens, entre eles se destacando o Major Roy Craft, na vida profissional redator de jornal, e que na 12-12 era encarregado da feitura do delicadíssimo noticiário militar terrestre, e o Cap. (mais tarde Major) Richard (Dick) Scudder, do jornal "Newark News" da cidade de Newark em Nova Jersey, cuja responsabilidade era a de escrever o noticiário não menos delicado, da frente aérea. Ambos aqueles oficiais, dotados de inteligência fora do comum, tinham pleno e livre acesso ao War Room (sala de comando) do XII Grupo de Exércitos, recebendo diariamente plenas e detalhadíssimas informações, não somente sobre a situação militar do momento, mas também sobre planos de ataques ou avanços futuros. Desfrutavam merecidamente a total confiança do alto comando norte-americano, sendo que os noticiários por eles redigidos eram deixados ao seu livre critério, sem controle ou censura de qualquer espécie. Escreviam em inglês, o que era depois traduzido para o alemão, por redatores especializados: Al Thoombs, também jornalista profissional, encarregado da coordenação de informações; o excepcional e algo enigmático Brewster Morgan, um dos mais proeminentes diretores e produtores de rádio dos Estados Unidos, e que na 12-12 exercia as funções de orientador, inspirador, crítico, assim como uma série de outras atividades, de acordo com a sua condição de "eminência parda" da nossa emissora; um alemão autêntico, conhecido por todos nós apenas pelo seu primeiro nome, George, natural da Renânia-Palatinado e ali residente, e que era um elemento utilíssimo para imprimir o indispensável cunho de autenticidade aos nossos programas. George, após uma fuga perigosa e cheia de aventuras, das linhas alemãs, entregara-se aos soldados norte-americanos. Era um antinazista, que passara boa temporada num campo de concentração, e exercia as atividades de "conselheiro" na 12-12, voluntariamente, porquanto sua íntima convicção era de que devia fazer tudo o que fosse possível a fim de contribuir para a derrubada do regime nazista, tão detestado por ele e que considerava uma ruína para a Alemanha. No entanto, profundamente religioso e dotado de grande patriotismo, às vezes se sentia como traidor perante o povo alemão e era assaltado, nessas ocasiões, por profundas crises de melancolia. Havia também um cabo italiano, de nome Alessandro, que era o guardião incorruptível das chaves da adega e cada mês aparecia com o seu contas correntes, cobrando de cada um as refeições que, embora a preço módico, não eram de graça. Contavam-se ainda uns sete ou oito homens a mais, na maioria sargentos e cabos, jornalistas, advogados, músicos, comerciantes, distribuídos nos diversos departamentos da 12-12 onde, conforme o caso, atuavam como redatores, locutores e monitores. Eram quase todos de descendência alemã, naturalizados norte-americanos. Quanto a mim, achava-me encarregado do setor da frente Oriental, ou seja, da parte noticiosa e dos comentários do teatro de guerra russo, onde os exércitos alemães vinham sofrendo as mais sangrentas derrotas. É fácil imaginar as dificuldades com que se defronta um redator norte-americano ao preparar para uma estação "nazista", notícias, por natureza catastróficas, sem se trair por um pessimismo exagerado, ao mesmo tempo que deveria deixar transpirar uma dose de suficiente desespero, para poder servir de veneno desmoralizador no ânimo dos ouvintes alemães.

Apesar de ter sido cada um de nós enquadrado no seu campo próprio de atividades e responsabilidades, convém ressaltar o caráter bastante frouxo dessa "departamentalização". Assim sendo, por exemplo, os redatores encarregados de escrever as notícias e comentários dedicavam várias horas do dia a pesquisas e leituras e freqüentemente avançavam mesmo até o próprio "front" em busca do material para atualização do programa noticioso. Esse cansativo acúmulo de funções e serviços, muitas vezes irritante, era a decorrência natural do caráter eminentemente discreto da nossa operação. Com efeito, mesmo uma pessoa não iniciada nos mistérios do cálculo integral pode facilmente chegar a uma conclusão ditada pelo bom senso, de que, quanto menos pessoas trabalhassem numa emissora secreta, tanto melhores seriam as possibilidades de salvaguarda da sua condição incógnita. Dessa forma, não é de estranhar que a atmosfera reinante dentro do pequeno "time" da 12-12, ultrapassando a cordialidade também existente nas equipes comerciais, assemelhava-se mais a uma família feliz, dentro do lar. A existência desse espírito de união e harmonia absolutas, embora agradável para os veteranos, paradoxalmente se afigurava, ao recém-chegado, como uma barreira quase intransponível. Apesar de ter sido apresentado aos meus futuros colegas, da maneira mais cordial do que formal, pelo Cel. Powell, umas duas semanas se passaram até que eu conseguisse "quebrar o gelo". Porém, uma vez passado esse período de iniciação, pude participar, com toda a desenvoltura, das reuniões informais ao redor da lareira da sala de jantar, chegando assim a me inteirar, não somente da "biografia" detalhada de cada um dos companheiros, como também de toda a gama de seus problemas íntimos. E vice-versa.


Capítulo X
12-12 IRRADIA...12-12 IRRADIA...

Captar a confiança dos militares alemães a fim de prepará-los para acreditar em nossas mentiras — Dificuldades que um redator da 12-12 teria que enfrentar — Reveladas, com abundância de detalhes, pelo Quartel-General norte-americano, informações sobre movimentos de tropas no setor da 12-12 — Truques propagandísticos para fins subversivos...

 

O prefixo Zwölf-Zwölf sendet... Zwölf-Zwölf sendet (12-12 irradia... 12-12 irradia...) pertencia não somente a uma emissora negra, disfarçada de nazista, mas, antes de tudo, a uma estação de rádio militar norte-americana cuja principal finalidade evidentemente era a de proporcionar maiores vantagens táticas às tropas ianques. Em termos mais concretos, o objetivo final da nossa emissora secreta, traçada pelo próprio Quartel-General norte-americano, era de servir como arma auxiliar no gigantesco golpe final a ser desferido contra a Alemanha e que iria culminar com a conquista, pelos Aliados, daquele símbolo secular do poderio germânico que é o Rio Reno, venerado pelos alemães como uma espécie de mito, e glorificado em musica e versos por alguns dos seus mais célebres compositores e poetas.

O tradicional Lieb Vaterland, magst ruhig sein, jest steht und treu die Wacht am Rhein(21) era então uma das mais populares canções patrióticas da Alemanha. De fato, esse importante curso d'água de 1 326 quilômetros de comprimento e com uma superfície total atingindo 216 083 quilômetros quadrados, desempenhava posição de papel-chave na defesa das fronteiras do Reich, significando a sua travessia, por um exército estrangeiro, quase que automaticamente a queda da própria Alemanha. Assim se explica a resistência desesperadamente tenaz que encontraram as tropas aliadas nas três primeiras semanas do mês de fevereiro de 1945, durante uma série de violentos ataques preparatórios por elas realizados, que terminaram pela travessia do Reno por tropas do IX Exército norte-americano, procedentes da cidade de Düsseldorf. Ao mesmo tempo o Gen. Patton, com o seu III Exército, conquistava a cidade de Trier, enquanto a vital Colônia caía no dia 7 de março. A 1o. de abril, a travessia do Reno, em vários pontos, por tropas norte-americanas, britânicas, canadenses e francesas, estava realizada e consolidada, tornando-se inevitável a capitulação da Alemanha umas seis semanas depois.

Já na época da criação da 12-12, ou seja, em meados de 1944, os chefes militares aliados tinham chegado à conclusão de que nem os bombardeios das cidades do Reich, nem as derrotas sofridas pelas tropas da Wehrmacht nas frentes da Europa Ocidental e Oriental seriam suficientes para lograr a almejada e amplamente divulgada rendição incondicional da Alemanha. Esta, assim o diziam o bom senso e a estratégia militar, só poderia ser conseguida por meio da conquista do Reno. Assim sendo, podemos dividir a batalha final da Alemanha em duas fases principais: 1) a fase preparatória aguda, do fim de novembro de 1944 até fim de março de 1945; 2) a de assalto final contra o Reno, do fim de março até meados de abril daquele ano. Estas duas fases das operações militares na frente do Reno coincidiam aproximadamente com a estrutura geral do plano de atividades da emissora 12-12. Com efeito, durante a fase preparatória de suas irradiações, seria função da emissora, principalmente, a tarefa de captar a confiança dos ouvintes militares nazistas por meio da divulgação de notícias escrupulosamente corretas e de teor bastante atraente do ponto de vista estratégico. Ao iniciar-se a segunda fase, — a do assalto final — passaria a irradiar uma série de mentiras flagrantes. Caso fosse alcançado o primeiro objetivo, isto é, o de captar a confiança dos seus ouvintes, não haveria razão para estes desconfiarem do teor do noticiário, francamente subversivo, que seria iniciado durante a fase do assalto final contra o Reno. Consequentemente, assim raciocinavam os criadores da nossa estação secreta, os chefes militares nazistas por nós visados nesse período vital, aceitando as mentiras da 12-12 como verdades, poderiam ser induzidos a cair em ciladas ardilosamente preparadas. Raciocínio semelhante também se aplicaria aos habitantes de cidades e povoações localizadas nos territórios da Renânia-Palatinado. Esperava-se, em decorrência do sucesso das atividades preparatórias da 12-12, levadas a efeito no meio de vasta região ao alcance de seus possantes transmissores, a propagação, na fase final das suas atividades, de um estado de confusão mais ou menos generalizado, que deveria sobremaneira favorecer a execução de certas operações bélicas. Entretanto, a missão da emissora iria além disto. Seria realizado, com efeito, durante a primeira fase do seu funcionamento, concomitantemente com a irradiação de notícias dignas de fé, um trabalho altamente discreto de subversão de espírito dos componentes da Wehrmacht estacionados no território da Renânia-Palatinado. A subtileza de tal empreendimento — captar a confiança do inimigo e ao mesmo tempo corromper — é evidente. Enquadrava-se, no entanto, perfeitamente dentro do esquema dos propósitos de um ambicioso programa — talvez um pouco ambicioso demais.

Confesso que experimentei algumas dificuldades iniciais, decorrentes da reviravolta completa que representava o meu novo trabalho em relação ao que desempenhava na ABSIE. Mesmo dispondo do grau de imaginação necessária para me identificar com os sentimentos e reações do soldado comum da Wehrmacht (já assediado por legítimas dúvidas sobre o desfecho da guerra, porém disposto a sacrificar sua vida a fim de evitar a invasão da "Vaterland") era sumamente difícil encontrar a forma estilística adequada para o desempenho da tarefa exigida. Felizmente, meus colegas ajudaram. Contudo, levou algum tempo e bastante esforço para eu "pegar" a perfeição e virtuosidade estilístico-psicológica exigidas de um redator da 12-12. Houve, outrossim, uma série de dificuldades de ordem material, relativas à execução da parte preparatória dos programas. Embora as 5 horas e tanto de que oficialmente dispúnhamos entre o início do nosso horário de trabalho redacional, às 21 horas, e a irradiação do programa noticioso às 2 da manhã parecessem suficientes para a confecção de um "show" noticioso e comentários de uma hora de duração, trabalhávamos na realidade sob o chicote de uma pressão constante; Em primeiro lugar, por sofrermos muito mais ainda que na ABSIE, da insuficiência crônica de pessoal adequado. Assim, por exemplo, o eficiente Sarg. Hanosz Burger era responsável pelo noticiário sobre a frente Ocidental e eu, pela correspondente tarefa sobre a frente Oriental. Entretanto, também recaía sobre os nossos ombros, na maioria das vezes, a confecção de grande número de outras notícias, assim como de comentários político-militares. Outra circunstância que atrasava a realização do trabalho era a ausência inevitável de secretárias, mensageiros e outros auxiliares, indispensáveis a uma redação eficiente e rápida de um programa radiofônico noticioso.

Outrossim, não dispúnhamos de teletipo, recebendo em nossas instalações, por razões óbvias reduzidas ao mínimo necessário, o material informativo principalmente por telefones militares, assim como por possantes receptores de rádio sintonizados não somente com as principais estações do mundo, como também com o quartel-general do Gen. Eisenhower. Este sistema, exigindo escuta constante, transcrição ou gravação em discos — não existia ainda a gravação em fitas — e decifração das mensagens recebidas, impunha tarefas que, apesar de executadas por pessoal competente, não deixavam de significar outra onerosa perda de tempo. Porém, onde estávamos sujeitos a "apanhar" mais, era com os imprevistos que constantemente surgiam em forma de dúvidas, como por exemplo, se devíamos ou não usar tal palavra tipicamente nazista, se tal termo técnico era usual na terminologia militar alemã, ou se tal expressão era típica do território da Renânia, onde supostamente se localizava a emissora. Apesar de podermos contar com os relevantes serviços daquela verdadeira enciclopédia ambulante que era George, o fiel fugitivo dos nazistas, seus conhecimentos eram mais da esfera civil, o que nos obrigava a intermináveis discussões e demoradas consultas em nosso arquivo nunca suficientemente equipado. Em suma, chegamos logo à conclusão de que o melhor meio de ganhar o tempo indispensável para a confecção adequada do programa, era a de realizar parte dos trabalhos preparatórios também durante as horas da manhã ou da tarde, teoricamente destinadas ao nosso sono e descanso.

A tarefa de ganhar a confiança dos radio-ouvintes alemães, inicialmente outorgada pelo Alto Comando norte-americano, era realizada na primeira fase de atividades da emissora, como já mencionamos, por meio da divulgação de notícias não somente corretas, mas também extraordinariamente detalhadas. Deveriam ser tão minuciosamente corretas, que não deixassem de impressionar os oficiais alemães que as ouviriam nos seus postos avançados de combate, e isto, a tal ponto, que estes chegassem a supor que as mesmas se originavam de fontes ligadas talvez ao próprio Quartel-General nazista. Dispúnhamos, para tal finalidade, de uma série de vantagens. Com efeito, como já foi mencionado, por ordem superior a nossa emissora contava com um regular número de colaboradores nas mais diversas unidades norte-americanas que progrediam nos vários setores da frente renana. Mencionado foi também o fato de terem os dois redatores, encarregados dos noticiários militares terrestres e aéreos, livre acesso aos centros secretos de planejamento do alto comando do XII Grupo de Exércitos. Estávamos, assim, plenamente equipados para uma das nossas tarefas favoritas: a de anunciar detalhadamente os movimentos agressivos ou defensivos de pequenas unidades, chegando mesmo a citar freqüentemente os nomes individuais de soldados e oficiais alemães que lutavam em lugarejos tão insignificantes que não constavam sequer dos mapas comuns e que só podiam ser localizados, com a ajuda do material cartográfico militar. Não é de admirar que, em vista da exatidão e dos surpreendentes detalhes divulgados no noticiário, este não somente se tornasse bastante atraente para os ouvintes militares alemães, como realçava a sua qualidade a tal ponto, que praticamente excluía a possibilidade de quaisquer dúvidas sobre a sua autenticidade. Evidentemente, tal autenticidade dependia também do emprego absolutamente correto da língua alemã, assim como da ausência total de erros no sotaque dos locutores, o qual devia ser essencialmente renano. Um dos nossos maiores receios consistia na presunção de que algum dos engenheiros norte-americanos encarregados de uma variedade de tarefas técnicas no interior do reboque, acidentalmente pronunciasse alguma palavra em inglês, que chegasse a ser captada pelo microfone. Com o tempo, o pessoal técnico elaborou um complicado sistema de sinalização por meio de luzes coloridas, anunciando, sem possibilidade de falha, quando o microfone estava desligado, de modo que eles pudessem assim falar inglês. Quanto aos locutores, era proibido — sob pena de morte — pronunciar qualquer palavra em outro idioma a não ser o alemão, desde o momento em que entravam no estúdio, até sair do mesmo.

De fato, arcávamos com uma imensa responsabilidade, pois o menor erro no emprego das informações altamente confidenciais, a menor falha de coordenação, podia não somente acarretar o fracasso de certas operações militares, com a correspondente perda de vidas dos nossos soldados, mas também significar o fim da emissora. De certo modo, estávamos constantemente brincando com fogo. Talvez por isso mesmo, nunca houve o caso de um erro grave em nossas atividades. Achávamo-nos de tal modo compenetrados da nossa responsabilidade, que procedíamos com o máximo de cautela, tanto na feitura como na irradiação dos programas da 12-12.

Assim mesmo, passeando pelas ruas da pacata cidade de Luxemburgo, envolta no seu manto de neve, eu me sentia às vezes invadido por uma estranha sensação. Era um misto de receio, consciência pesada e, paradoxalmente, de íntima satisfação, o que se manifestava especialmente no centro da cidade, em meio ao vai-e-vem da multidão de cidadãos luxemburgueses, os quais, sem qualquer desconfiança ou malícia, continuavam na execução de suas tarefas diárias. Algo parecido, enfim, ao que se deve passar na mente de um conspirador um tanto novato ainda sem aquele grau de eficiência profissional que o fizesse perder a sua sentimentalidade.

O minucioso e confidencial noticiário militar terrestre não era, porém, o único anzol de que nos servíamos para conquistar a confiança dos ouvintes alemães. Outro "serviço" com o qual os brindávamos, eram relatos detalhadíssimos sôbre os resultados dos bombardeios de instalações bélicas alemãs localizadas em pequenas cidades do território da Renânia. Havia, realmente, no mesmo, assim como em toda a Alemanha, um número cada vez maior de pequenas e médias cidades que, pela descentralização forçada da indústria alemã, se viram convertidas em autênticos centros de esfôrço bélico nazista. Evidentemente, para aquele "detetive" que era o Cap. Scudder, era mais fácil obter impressionante variedade de pormenores que caracterizava o seu noticiário aéreo, de uma locadidade relativamente pequena, que de uma cidade grande. Por outro lado, com o próprio fato de divulgar detalhes dos bombardeios de tais cidades, a 12-12 não só fornecia um autêntico serviço, mas facilitava também a injeção de "veneno subversivo" nas mentes, tanto da população civil, como dos militares alemães, estacionados nas diversas frentes de combate. Com efeito, por razões óbvias, as estações alemãs preferiam divulgar apenas o estritamente necessário sobre os bombardeios aéreos cada vez mais violentos aos quais estavam sujeitas as cidades do Reich. Além disso, os lideres nazistas tinham que fazer um grande esforço para explicar a ausência cada vez mais prolongada do apoio aéreo às forças da Wehrmacht, devido à necessidade imperiosa de usar os caças na proteção das fábricas de material bélico, assim como para proteger os lares das próprias famílias dos militares. Ouvindo a descrição de tais bombardeios, fornecidas pela 12-12 com tanto realismo e abundância de detalhes, que não deixava nenhuma sombra de dúvida sobre a sua autenticidade, os soldados alemães não somente tinham que experimentar alguma dúvida sobre a eficiência da Luftwaffe em prevenir tais ataques, como também duvidar da sinceridade das outras emissoras alemãs, que praticamente escondiam tais ocorrências.

Eis como era efetuado, na prática, esse autêntico jogo de paciência e de trabalho "detetivesco", que era o preparo de notícias sobre bombardeios aéreos na 12-12:

Ao receber a informação de que alguma cidade da Renânia ia ser bombardeada pela Força Aérea norte-americana, o chefe da bem equipada seção do Serviço de Inteligência dispunha pelo menos de algumas horas para efetuar uma série de pesquisas sobre a mesma. Isto era feito principalmente no arquivo daquela seção, sempre renovado e reabastecido, para onde era canalizado pelas Forças Armadas norte-americanas um fluxo constante de plantas de cidades alemãs, mapas, livros, folhetos, correspondência oficial nazista, cartas da população em geral, fotografias, boletins informativos e, sobretudo, listas telefônicas.

Ao levantarem vôo rumo à cidade a ser bombardeada os aviões norte-americanos, já os seus comandantes se achavam munidos de um pedido rotineiro da 12-12 solicitando fotografias aéreas, incluindo fotos de reconhecimento da área a ser bombardeada, antes, durante e depois da ação ser levada a efeito. Grandes ampliações daquelas fotografias eram fornecidas à 12-12, no mínimo de tempo após o bombardeio — às vezes, mesmo no prazo de uma hora ou pouco mais. Comparando as fotos com o material informativo previamente compilado, e analisando cada centímetro quadrado das ampliações com a ajuda de uma lupa, o Cap. Scudder estava capacitado a determinar com exatidão quase absoluta não somente os nomes das ruas e praças porventura alcançadas pelas bombas, como também o número e o tipo de prédios atingidos, assim como os nomes de seus habitantes. O resultado de todo aquele minucioso trabalho de pesquisa e coordenação era o texto redacional do programa noturno, com uma notícia do teor mais ou menos como o que segue:

"Gangsters do ar, norte-americanos, efetuaram ontem, às 2,16 da tarde, um ataque terrorista contra a cidade de... As bombas, evidentemente arremessadas com o intuito visível de desmoralizar a população civil, caíram principalmente na Horst Wessel Strasse. Sob os escombros dos prédios de numeração 18, 20 e 22, ficaram soterradas oito famílias, ou seja, a do guarda-livros Hans Wichner, a do açougueiro Rudolf Schneider, a do alfaiate Karl-Heinz Licht, a do carteiro Franz Liebig, a do médico oculista Karl Baum, a do dentista Heinrich Schumacher e a da viúva Maria Stahl. No prédio 24 da mesma rua, apenas ruiu a parte onde se localizava a loja de ótica pertencente a Paul Steierbeck. Tanto o Sr. Steierbeck como sua família, que se encontravam no porão durante o ataque, estão sãos e salvos. Os locatários do 2o. andar, Sr. Franz Frieden e a Srta. Anna Spitz, foram feridos por estilhaços de vidros, porém sem gravidade. As operações de salvamento e de limpeza estão em curso. Foram derrubadas pela nossa artilharia anti-aérea pelo menos duas máquinas terroristas norte-americanas."

Tal notícia era quase sempre completada por um relato de "testemunha ocular", baseado em dados verídicos fornecidos por prisioneiros alemães originários da cidade bombardeada, que puderam observar a ação pelas janelas de um trem militar, pouco antes de serem capturados pelas forças norte-americanas. A 12-12 tinha alta prioridade em tais depoimentos e costumava recebê-los por telefone ou pelo rádio, em tempo mínimo após o pedido ao Alto Comando.

Como se vê, tal reportagem falada era impregnada de um realismo impressionante, porém tinha os seus riscos, como seja o de que uma ou mais famílias ou mesmo pessoas por nós mencionadas, já se tivessem mudado para outro local ou não se achassem em casa na hora do bombardeio. Porém, tais equívocos, de modo geral, não eram de natureza a nos desacreditar perante os nossos ouvintes. Afinal de contas, ninguém pode esperar de uma emissora de rádio, operando no ambiente incerto e flutuante de uma guerra, um noticiário integralmente perfeito.

Assim mesmo, apesar do inevitável coeficiente de erros e enganos fortuitos, demonstrávamos em geral uma espantosa exatidão. Tão espantosa, tão impressionante, que não podia deixar de se converter, com o tempo, no melhor veículo propagandístico em favor da 12-12, que era o de captar a confiança e a atenção dos ouvintes alemães por ela visados. Aliás, isto foi confirmado por prisioneiros em seus relatos e, portanto, ninguém poderia acreditar que as notícias por nós veiculadas de maneira detalhada fossem principalmente um "trabalho de redação".

Não posso negar que havia em tudo isto, algo de lugubremente "anti-moral". Mas, a verdade é que, tanto de um como de outro numa guerra. Dans la guerre c'est comme dans la guerre, c'est comme dans la guerre, c'est comme dans la guerre — poderia ter dito a escritora Gertrude Stein.

A impregnação das notícias e comentários de um cunho subversivo, era uma das maiores dificuldades com que se defrontavam os redatores da 12-12. Pretendíamos ser, com efeito, uma estação emissora da Renânia, de caráter militarista. Por isso mesmo, as críticas que tencionávamos dirigir ao alto comando alemão, e principalmente aos chefes do partido nazista responsáveis pelo prosseguimento de uma guerra já praticamente perdida para a Alemanha, nunca poderiam ser feitas de maneira frontal. Um dos meios favoritos empregados pela 12-12 neste sentido, era o de irradiar declarações dos próprios chefes do exército alemão, que com freqüência — e evidentemente sem querer — continham material incriminatório. Para este propósito, um dos mais preciosos colaboradores — involuntários — da 12-12 era o Mal. Walter von Model, brilhante militar, dedicado ao seu chefe supremo Adolph Hitler até o fanatismo. A folha de serviço daquele alto oficial incluía destacada atuação em todas as frentes de combate, inclusive na Rússia, de onde fora transferido, em julho de 1944, para a frente Ocidental em obediência a um pedido expresso do próprio Hitler, já então em grandes apuros e com carência cada vez mais pronunciada de chefes militares "dignos de confiança" e onde lhe fora outorgado o comando do importante Grupo de Exércitos "B".

Apesar de suas altas qualificações militares e do seu fanatismo nazista — ou talvez devido a este último — o Mal. Model, então com 55 anos de idade, carecia quase totalmente daquele bom senso inato, tão indispensável à redação de instruções escritas para o uso imediato de seus subalternos. Insistia, ao contrário, em usar uma linguagem cuja simplicidade freqüentemente atingia o picaresco e mesmo a infantilidade, como por exemplo aquele trecho de uma "ordem do dia" por ele determinada alguns dias antes do início do contra-ataque das Ardenas:

"Cada oportunidade para obter descanso e sono deve ser plenamente utilizada... Cabe aos comandantes de cada unidade considerar, do ponto de vista tático, a melhor oportunidade de sono para os seus homens. O próprio soldado encontrará em seguida a melhor técnica para dormir".

Do bolsão do Ruhr onde ora se achava entrincheirado, o Mal. Model continuava a fornecer-nos farta munição para o papel subversivo da nossa ofensiva psicológica. Esse notável chefe militar alemão, que se suicidou no dia 17 de abril de 1945, preferindo a morte à captura, foi portanto um dos nossos "colaboradores". Bastava simplesmente ler ao microfone algumas das suas pitorescas "ordens do dia".

Certa ocasião, por exemplo, quando a munição de suas tropas se achava praticamente esgotada, e estavam elas sendo castigadas por ataques severíssimos da Força Aérea Aliada, o Mal. Model expediu uma ordem do dia, ensinando aos seus soldados "como lavar a roupa de baixo, de lã, sem sabão". De outra vez, deu uma receita de "como fazer um gostoso ensopado com serragem de madeira e cascas de batatas". Líamos tais ordens do dia ao microfone, sem acompanhá-las do mais leve comentário.

Com o agravamento cada vez mais pronunciado da situação militar do Reich, a normalmente impecável disciplina interna das tropas da Wehrmacht estava se deteriorando dia a dia. Possuíamos, nesse sentido, dados concretos fornecidos pelo Serviço de Inteligência. Entretanto, mesmo de posse de todo esse material informativo irrefutável, nunca nos ocorreu, sequer por um instante, afirmar diante dos microfones da 12-12: "Vai mal. A disciplina das nossas tropas se acha em franco desmoronamento. Devemos tomar medidas urgentes". Não. Tal método direto estava óbvia e definitivamente fora de cogitação. Poderíamos simplesmente ler e reler durante algumas noites seguidas a seguinte ordem do dia publicada em forma de folheto pelo nosso "aliado", Mal. Model:

"Combatentes da Eifel e de Aachen: — Vocês têm comprovado nestes dias difíceis, que são rudes combatentes e bons companheiros. As nossas tarefas presentes não permitem burocracia. A frente de combate não é um quintal de quartel. Somos todos forjados numa união marcial, ligados uns aos outros pelo respeito mútuo, amizade, presteza em obedecer — pela luta, pelo sacrifício, em qualquer tempo e circunstâncias, na neve, na lama ou no sol. Este sentimento de solidariedade que nos une, deve, no entanto, ser demonstrado também de maneira ostensiva, visível.

"Em vista disso, declaro que considero a atitude de pouco caso e negligência durante encontros casuais com os companheiros, uma conduta indigna do espírito guerreiro e do comportamento impecável esperado dos combatentes da frente Ocidental.

"Da maneira como ele executa a continência, assim é o homem! Da maneira como corresponde à sua saudação, assim é o seu companheiro! Precisamente agora, nesse tempo de sofrimentos, vocês têm a obrigação de demonstrar a todos, sem sombra de dúvida, o seguinte: que todos os soldados do meu grupo de exércitos — do granadeiro até o marechal formam um só, indivisível conjunto, desejosos de alcançar a vitória para assegurar o futuro da Alemanha".

Model,

General-Feldlmarschall

Quartel-General, fevereiro de 1945"

Pelo simples fato de repetirmos durante noites seguidas essas exortações do Mal. Model às suas tropas, devia ficar patente aos ouvintes militares alemães e aos civis, que nem tudo estava como devia, no campo da disciplina interna dos seus exércitos. Desse fato, para os seus pensamentos tomarem um rumo ainda mais pessimista, era apenas um passo. Com efeito, ninguém melhor do que os alemães, para deduzir que a falta de disciplina era o primeiro sinal da desintegração de um exército, pois muitos deles ainda se podiam lembrar do quadro confuso que apresentavam as tropas alemãs, na véspera da derrota final na Primeira Grande Guerra.

Em certas circunstâncias, o mero fato da outorga de uma condecoração a um oficial alemão se convertia, para nós, num barril repleto de munição de propaganda subversiva. Assim, certa noite, saiu pelas ondas da 12-12 a seguinte notícia, lida com aquele tom seco e um tanto arrogante que caracterizava a nossa emissora: "Recebeu as insígnias da Cruz de Cavaleiro, com folhagens de carvalho e espada, o capitão dos "Panzergrenadiere" Werner Bohler. O Cap. Bohiler fez jus à alta distinção por ter, em pleno dia, conseguido retirar sua companhia, ameaçada de envolvimento em algum lugar do território do Palatinado. O Cap. Bohler, usando as mais avançadas técnicas de camuflagem, pôde com êxito despistar a vigilância do inimigo, realizando a sua operação com o mínimo de perdas".

Apesar do teor aparentemente franco e direto, e de relatar um fato verídico (até certo ponto), continha esta notícia, na realidade, duas ciladas psicológico-subversivas, uma para os oficiais e outra para os soldados alemães. Na verdade, por ter de maneira temerária efetuado à plena luz do dia a retirada de suas forças, recebera o Cap. Bohler a tão cobiçada condecoração de guerra, a "Ritterkreuz" com folhagens de carvalho e espadas. Porém, estávamos informados, através do nosso Serviço de Inteligência, terem atingido as perdas sofridas, naquela operação, 40 por cento do seu efetivo. Escondemos propositalmente o fato gravíssimo, não por delicadeza, mas para induzir outros oficiais a caírem na traiçoeira cilada oculta naquela notícia — aparentemente de mera rotina. De fato, ao inteirar-se da relativa facilidade com que o Cap. Bohler conseguira obter aquela alta condecoração (o sonho dourado de todo oficial da Wehrmacht era obter a "Ritterkreuz", o equivalente nazista ao não menos cobiçado "Pour le Mérite" do tempo do Kaiser), seus colegas de outras unidades também criariam ânimo e se abalançariam a imitar o exemplo — levando muitos dos seus subordinados à morte certa. Quanto aos soldados que porventura ouvissem a notícia, só podiam ficar indignados, por saberem que um oficial da Wehrmacht tinha sido condecorado daquela forma ao executar uma retirada de suas tropas durante o dia. Era — sobre isso também estávamos seguramente informados — um dos principais motivos de ódio dos soldados alemães, o saber que suas vidas estavam sendo freqüentemente e de maneira temerária postas em risco, com a única finalidade de proporcionar uma alta condecoração aos seus ambiciosos superiores.

O mesmo sistema — relato de incidentes escolhidos — usávamos, para realçar e estimular o seguinte cortejo de queixas, reclamações e rancores que se manifestavam em ritmo cada vez maior em todos os setores da Wehrmacht, à medida que se acumulavam os reveses sofridos nas frentes de batalha: — erros cometidos pelos oficiais que, seja por nervosismo, seja por desespero, ou por incompetência, mandavam seus subordinados executar ações agressivas ou outras, sem a mínima utilidade; carência de tecidos, provocando interrupção na distribuição de uniformes novos, obrigando os soldados a recorrer ao vergonhoso expediente dos remendos; transferência de pára-quedistas para a infantaria, fato que era inevitável devido à falta cada vez mais pronunciada de aviões e também por razões tático-estratégicas, mas que irritava sobremaneira os orgulhosos "Fallschirmjager"; carência de cobertura por parte da artilharia (a fim de economizar ao máximo a munição cada vez mais escassa, o fogo protetor da artilharia era utilizado apenas à noite, deixando, durante o dia, as tropas "a descoberto"); deficiências gravíssimas no sistema de abastecimento, responsáveis por um estado de "fome permanente" em certas unidades mais avançadas do exército alemão (quando, finalmente, a comida chegava, era invariavelmente fria); deficiências no sistema de transportes:assim, por exemplo, um contingente alemão que chegou de trem até o Reno, teve que percorrer a pé uma distância de mais de cem quilômetros que o separava do seu setor de combate; insuficiência flagrante de cobertura aérea durante os ataques executados por tropas mecanizadas ou de infantaria; cisão entre austríacos e alemães — casos onde componentes de tropas da montanha (Gebirgsjäger) austríacas foram insultuosamente taxados, por oficiais prussianos, como "Ostmärkische Schweine" (porcos da Comarca Oriental — designação esta dada à Áustria por Hitler logo após a sua anexação ao Reich); em seguida, os "Gebirgsjäger" foram mandados para a frente de combate enquanto as tropas da SS da infantaria alemã puderam ficar comodamente na retaguarda; a grosseria de certos oficiais... além de outras.

Para realçar ao máximo toda essa gama de queixas e reclamações, usávamos não somente a divulgação de certas ordens do dia apropriadas, como também inventamos por conta própria, discursos e comentários atribuídos a altos dignatários nazistas.

Assim, por exemplo, para destacar o assunto da comida fria, dizia a 12-12:

"O Cel. Wollersdorf, numa ordem do dia endereçada ao seu regimento, teve o seguinte a dizer a estes (felizmente poucos) soldados, que recentemente têm manifestado em altas vozes o seu descontentamento por não lhes ter sido servida a sua comida tão gostosamente quente como estavam acostumados a recebê-la na casa da mamãe: "O fato de alguns poucos chamados soldados alemães, numa hora em que se decidem a sobrevivência e o destino de sua pátria acharem necessário queixar-se abertamente do fato de serem obrigados a engolir comida fria não merece comentários, mas sim, o desprezo absoluto que lhes é demonstrado por seus companheiros de armas e os superiores".

Contra as manifestações de descontentamento cujo volume sempre maior nos era transmitido fielmente pelo Serviço de Inteligência, tanto o alto comando alemão como o chefe todo poderoso da propaganda nazista, Joseph Goebbels, eram impotentes para reagir com eficiência. A chefia da Wehrmacht, já se achava, a esta altura dos acontecimentos, praticamente impossibilitada de exercer uma fiscalização eficiente quanto à execução efetiva do número elevado de diretrizes distribuídas a todos os comandantes com o intuito de manter o "Wehrgeist" (espírito combativo) de suas tropas. Cito aqui o seguinte parágrafo típico contido num folheto intitulado:

"Linhas mestras para a educação ideológica — É inconcebível imaginar a transformação de qualquer soldado em guerreiro decidido e agressivo, sem que receba paralelamente ao seu treino militar, uma expressiva educação nacional-socialista. Muito mais do que qualquer outro cidadão, é mister que o soldado, portador de armas que é, seja um nacional-socialista convicto. Por isso mesmo deve ele estar capacitado para julgar e conhecer as exigências politico-militares em relação ao futuro arcabouço da Grande Alemanha e o seu espaço vital. Com esta finalidade, deve ser-lhe explicada a razão desta guerra. Cada soldado deve saber porque ela está sendo travada. Deve ter a certeza absoluta de que esta guerra deve ser, e será terminada vitoriosamente."

OKH, Gen St d H/H West Abt.

(Quartel-General Supremo, Estado-Maior do Exército Setor Ocidental.)

Por sua vez, o astuto Goebbels esforçava-se por inocular, tanto no povo como nos soldados alemães, a convicção da imprescindível necessidade de "agüentar até ao último homem". Para açular o entusiasmo de seus concidadãos, já um tanto abalado a esta altura dos acontecimentos, Goebbels usava a estratégia do medo e da esperança como vigas-mestras de sua argumentação propagandística. Notadamente nos meses de fevereiro e março de 1945, tanto por meio da extensa rede de suas emissoras radiofônicas como por milhões de folhetos e jornais, ele martelou incessantemente, usando exortações como a seguinte:

"Vocês, povo alemão, têm a sagrada obrigação de agüentar até ao último homem, porque mesmo a pior das provações que estão sofrendo na hora atual, é insignificante quando comparadas à indignação e humilhações que os esperam durante uma eventual e permanente ocupação pelos bolchevistas russos e pelas tropas negras norte-americanas, aos quais, irremediavelmente, será entregue todo o território do Reich no caso de uma vitória inimiga. Agüentem, pois, homens e mulheres alemães. Sua obstinação será recompensada quando surgirem as novas armas secretas que estão sendo preparadas em nossas fábricas e cujo aparecimento — em breve — deverá modificar por completo o curso da guerra. Não somente impediremos o inimigo de realizar a conquista da Alemanha, mas rechaçaremos os restos aniquilados de seus exércitos para além de suas próprias fronteiras."

A reação da 12-12 contra tal raciocínio do supremo chefe da propaganda nazista foi um tanto sofisticada. Em vez de tentar demonstrar — como o teríamos feito na ABSIE — o absurdo e a futilidade da ordem de "agüentar até ao último homem", estávamos, pelo contrário, empenhados em dar-lhe o máximo de publicidade. Isto, com a finalidade de provocar comentários indignados de nossos ouvintes alemães, como por exemplo: "É fácil para vocês, chefões, incitar-nos a agüentar até ao último homem — é que, para vocês, nos seus redutos à prova de bombas, nada falta. Entretanto, as nossas casas estão ruindo e as nossas famílias estão sendo dizimadas sob o efeito dos bombardeios aéreos inimigos."

Sobre o tema "agüentar até ao último homem" escrevi, como se fosse um discurso do então todo poderoso e temível chefe das SS, Heinrich Himmler, o seguinte trecho, irradiado a 28 de fevereiro de 1945:

"Com o propósito de manter o espírito guerreiro do povo alemão para as futuras gerações, é obrigação sagrada de todo soldado e civil, impregnar-se do seguinte lema — Lutaremos até o último muro. Lutaremos até a última bala. Rendermo-nos, nunca! Mesmo que haja uma possibilidade de sermos esmagados pela superioridade numérica do inimigo, a guerra para nós nunca estará perdida, senão depois de depormos as armas. Já foram sacrificados milhões de vidas humanas alemãs no curso desta guerra. Não fará diferença que sejam sacrificadas outras cem mil ou mais. Por trágico que seja isto, do ponto de vista individual, este sacrifício supremo será realizado com a única finalidade de que possa sobreviver, para as gerações futuras, esta grandiosa herança que é o espírito guerreiro do nosso povo. Os netos e bisnetos daqueles que ora preferem a morte à rendição, lembrar-se-ão orgulhosamente de seus antepassados que, pela força de sua vontade, souberam transformar uma derrota material em vitória moral."


Capítulo XI
PARA A FRENTE EM BUSCA DE MATERIAL

As casas-fantasmas de Echternach — Procuramos seis sacolas de couro repletas de diamantes — Em Bitburgo, o fogo dos canhões alemães de 88 mm é incapaz de interromper a avalanche de tropas e material do III Exército — "Nenhum de nós quis a guerra".

 

Em nosso constante empenho de atualizar ao máximo as operações da 12-12, era-nos indispensável dispor, além de uma organizada corrente de informações, também de folhetos, livros, filmes cinematográficos e outros materiais de documentário nazista, de publicação recente. O fato de nos acharmos a pouca distância da frente de combate constituía um fator favorável quanto às possibilidades de obtê-los. Com esta intenção costumávamos empreender periodicamente expedições a localidades alemãs recentemente conquistadas. A "excursão" à cidadezinha de Bitburgo, realizada no dia 6 de março de 1945, narrada no meu "diário de guerra", dará uma idéia exata sobre esse lado prático das nossas atividades:

"A partida para Bitburgo — pequena cidade alemã situada a uns 50 quilômetros a nordeste de Luxemburgo — estava marcada para as 7,30 da manhã. Viajamos eu, o Sarg. Benno Frank e George. Ao tomar o café da manhã, tive um acesso de riso convulsivo, ao notar a chegada do Sarg. Frank, todo preparado para enfrentar os perigos da guerra. Devido ao intenso frio que ainda fazia em Luxemburgo, e que prometia não ser amenizado pelo nosso meio de transporte — um jipão militar — Benno tomara a precaução de envolver o corpo nas seguintes vestes protetoras: um pulôver; por cima do pulôver, um casaco de lã; por cima do casaco de lã, um jaquetão; e, finalmente, por cima destas três camadas de tecido quente, a felpuda capa militar de cor cáqui. Já normalmente dotado de dimensões consideráveis, ele adquirira agora proporções tão super-imponentes, que, para sua grande mágoa, não pude deixar de cumprimentá-lo como o Mal. Göring. Quando o assim "recheado" Benno se instalou na poltrona do Cel. Powell para, com toda a sua imponência de potentado oriental tomar o desjejum, eu quase perdi o fôlego de tanto rir."

Às 7,30 em ponto o jipão nos veio buscar. O Sarg. Frank instalou-se na frente, onde seus largos ombros, coroados que já estavam por um minúsculo gorrinho de lã, formavam uma espécie de pico de uma desproporcional montanha, perigosamente inclinada para o lado do chofer, um cabo. George e eu ocupamos o amplo assento traseiro do veículo que, roncando violentamente, atravessou a cidade de Luxemburgo na costumeira correria "à toda". Na saída tivemos que parar diante de um posto da Polícia Militar para o obrigatório exame de documentos. Logo chegamos às torres transmissoras da Rádio Luxemburgo (que, como dissemos, serviam também à nossa emissora). As imponentes construções, ancoradas à terra por grossos fios de arame, estendiam-se em fila ascendente até quase o topo da colina onde, num prédio branco, de linhas modernas, estava instalada a usina elétrica. Observei, andando de um lado para outro, uma sentinela portando um capacete achatado do tipo britânico e carregando um fuzil dotado de comprida baioneta; mas fui incapaz de descobrir a metralhadora pesada que, de acordo com a afirmação categórica do nosso cabo-motorista, achava-se atrás de uma das janelas. Prosseguimos o caminho, através de uma região coberta de bosques. Apesar da chuva que caía incessante, o chofer, graças aos pneumáticos antiderrapantes do jipão, conseguiu manter uma velocidade média assaz elevada. A estrada, que no início se apresentava excelente, logo deu para piorar e começaram a surgir, aos seus lados, filas de cercas com trapos vermelhos dependurados no arame farpado, indicando perigo de minas.

Quanto mais perto chegávamos de Echternach (cidadezinba em território luxemburguês, a uns 30 quilômetros da capital), tanto mais rastos da guerra podíamos observar: casas derrubadas por disparos de canhões, com grandes furos na alvenaria; algumas, com as paredes em pé, sem janelas, o interior consumido pelo fogo. Na cidade de Echternach a destruição era incrível. Não houve sequer um só edifício que tivesse escapado incólume ao efeito arrasador da artilharia e das bombas. Alguns dos prédios pareciam, vistos da rua, intactos. Porém, nada mais eram do que fachadas-fantasmas que escondiam amontoados de destroços. O cinzento triste da chuva contribuía ainda mais para aumentar a lúgubre desolação do ambiente. Algumas das casas tinham sido reduzidas a montes de tijolos, dos quais sobressaíam coloridos, sujos e umedecidos pela chuva, saias de mulher, como também pés de mesas, cadeiras e louças quebradas. O que sobrava da grande maioria dos prédios era a fachada, assim mesmo em lastimável estado: sem janelas, a alvenaria perfurada por gigantescos buracos e salpicada pelos rastos dentados de estilhaços de granada. Aqui ou acolá erguia-se metade de uma casa ou parte de uma igreja. Por onde quer que fôssemos, por todos os lados nos confrontávamos com o semblante feroz da guerra.

Através de toda esta desolação, continuava imperturbável o tráfego de veículos, rumo à frente. Era um fluxo quase que ininterrupto de possantes caminhões verde-oliva, tanques, jipes e outros veículos motorizados.

Quanto a nós, não deixamos Echternach imediatamente, pois antes de prosseguir, tínhamos que nos desincumbir de um dos encargos que nos tinham sido outorgados por amigos, residentes na cidade de Luxemburgo. Encargos de caráter estritamente particular, ligados às propriedades e coisas que eles tinham deixado atrás, em cidades onde antes residiam, ora engolidas pela voragem da guerra. Com efeito, apesar do teor secreto da missão que desempenhávamos como membros da equipe da 12-12 levávamos, dentro das poucos horas vagas de que dispúnhamos, uma vida completamente normal, o que acarretava, entre outros fatos, o estabelecimento paulatino de um sólido círculo de amigos no seio da população luxemburguesa. Até hoje sou incapaz de explicar a exatidão quase telepática com a qual os nossos amigos luxemburgueses chegavam a adivinhar a iminência de uma das nossas repentinas viagens rumo ao "front". Evidentemente desconheciam por completo a verdadeira razão, assim como os objetivos daquelas excursões. Possuidores de fina educação e de um tato por dizer inato, nunca lhes ocorrera sequer, mesmo de forma indireta, tentar obter quaisquer informações concretas a esse respeito. Porém, era natural que, cientes ou esperançosos de que pudéssemos passar por alguma localidade onde tinham abandonado seus bens, alguns deles nos pedissem encarecidamente que "déssemos uma olhadinha" para ver como as coisas andavam "por lá" e, principalmente, para nos certificarmos se ainda havia sobrado algo de suas propriedades. A mera tentativa de satisfazer tais desejos constituía, de nossa parte, uma flagrante violação do estrito regulamento militar. Porém, a verdade seja dita, tais infrações se produziam regularmente em todas as viagens que efetuamos. Prova de que, tanto em Luxemburgo, como nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer outro país do mundo, não há obstáculo que não possa ser superado por uma boa e sólida amizade.

Naquele 6 de março de 1945, em Echternach, custou-nos um pouco descobrir o prédio de esquina indicado por um dos nossos amigos de Luxemburgo. O edifício, parcialmente destruído, portava, como todos os outros daquela cidadezinha, uma placa com a inscrição NO LOOTING (proibido pilhar). Era uma advertência aos soldados norte-americanos para que respeitassem as propriedades de cidadãos de um país amigo como era o Luxemburgo, em território do qual se achava a pequena Echternach. No entanto, como viemos freqüentemente a descobrir, tais apelos à civilidade e ao cavalheirismo nunca surtiam efeito em tempo de guerra, quando a maioria dos homens perdem o seu equilíbrio moral, ficando completamente dominados por seus instintos. Assim, foi em vão que procuramos a mala deixada por um desses amigos, que devia conter uma apreciável soma em dinheiro e outros valores e que, na precipitação da fuga, não pudera levar consigo. Encontramos, isto sim, uma incrível desordem, como se o interior da habitação, relativamente intacto, tivesse sido vasculhado de baixo para cima pelo próprio Gengis-Khan e sua coorte da antiga Mongólia. Um monte de excrementos humanos em cima da cama de casal no dormitório da habitação servia de apropriado cartão de visita dos autores do furto da mala e do triste estado em que se achava o interior do prédio, o qual milagrosamente havia escapado à ação destruidora da artilharia norte-americana.

Logo depois de passar Echternach, chegamos ao Rio Sauer. Estreito como é, em poucos instantes conseguiu o jipão atravessar a recém-construída ponte que se estendia sobre as águas de cor amarelo-turvo. As isoladas habitações de camponeses e sitiantes que esporadicamente surgiam ao lado da estrada, não tiveram melhor sorte que as da cidade de Echternach, com os seus amontoados de destroços enegrecidos pela fumaça, e alvenaria crivada de enormes fendas.

Observamos regular número de casamatas, algumas camufladas. Uma delas imitava com perfeição o exterior de uma casa de camponeses. Ao invés de janelas, mostrava nas grossas paredes de cimento armado, buracos pelos quais, havia ainda pouco tempo, apontavam pesadas metralhadoras nazistas. Muitas destas construções de aspecto um tanto sinistro, cujas formas quadradas guarneciam as colinas vizinhas, estavam enegrecidas pela fumaça. O terreno ao redor, coberto por crateras de granadas. Árvores arrancadas, caídas, algumas delas com os troncos perfurados por balas, e as cascas da madeira à mostra. Filas de trincheiras, algumas cheias de água.

Aqui e acolá, virado no chão, um arado enferrujado. Um cavalo morto, a barriga inchada, o pêlo sujo e molhado. Outro, um possante animal castanho, achava-se caído no fosso ao lado da estrada, para onde aparentemente tinha sido arremessado pelo deslocamento do ar de uma explosão.

A estrada era ali tão esburacada que forçava o jipão a progredir vagarosamente, porém ainda com suficiente impulso para torturar bastante os meus órgãos internos, especialmente o fígado. O asfalto da estrada estava, em alguns lugares, de ponta a ponta atravessado por crateras recentemente entupidas. Eram rastos de antigas armadilhas anti-tanques alemãs, ao lado das quais apareciam ocasionalmente os restos retorcidos de várias de suas vítimas, como tanques, automóveis militares, caminhões ou jipes. A paisagem era triste e solitária, de vez em quando interrompida por grupos de soldados norte-americanos empenhados na construção de alguma ponte ou no conserto de uma linha telefônica, frouxamente dependurada. A alguns quilômetros de Echternach deparamos com três fileiras de obstáculos anti-tanques ainda intactos. Saliências triangulares de cimento armado, pintadas levemente de cor marrom esverdeada. Tanto esforço e dinheiro despendidos inutilmente pelos alemães na sua construção! Estendidas em vasta área naquela simetria pré-fabricada que caracteriza os cemitérios militares, perdiam-se no cinza triste do horizonte as suas intermináveis colunas.

Chegamos à fábrica na qual George ocupara outrora o cargo de gerente. As suas esperanças de encontrar algo intacto, logo se desvaneceram, quando vimos os destroços do prédio. Na porta do barracão principal, as palavras meio apagadas: "G.I. dead in attic"(22), Por dentro, fileiras de máquinas enferrujadas, parcialmente destruidas e lugubremente iluminadas pelo excesso de luz que penetrava nas enormes brechas do telhado. Quanto ao escritório, no primeiro andar, nada mais era do que um amontoado confuso, com escrivaninhas tombadas, papelada e cadernos de toda espécie; as portas do cofre estavam abertas. O soldado morto no sótão já havia sido levado.

Nossa próxima parada foi um castelo perto de uma aldeia. Ali devíamos desempenhar a segunda missão — esta, colorida pela atmosfera fabulosa de um conto das Mil e Uma Noites. Com efeito, outro dentre os amigos luxemburgueses, dono da magnífica mansão, demonstrando tanto desespero quanto uma fé cega em nossa honestidade, nos encarregara da localização e eventual remoção para Luxemburgo, de um tesouro de valor inestimável: meia dúzia de sacolas de couro repletas de diamantes e, conforme suas palavras, escondidas atrás de uma parede disfarçada, no porão do castelo. O prédio, de estilo barroco, de cor roxo-avermelhada, construído no ano de 1780, estava ainda de pé, apresentando porém, uma aparência lastimável. Suas paredes, marcadas já pelo familiar desenho lúgubre dos estilhaços da artilharia, eram coroadas por uma ornamentação sui generis, consistindo de um cordão de figuras de pedra precariamente dependuradas na alvenaria, da qual tinham sido arrancadas pelo impacto do deslocamento de ar proveniente dos disparos.

Enquanto o motorista ficou esperando no jipão, Benno, George eu nos dirigimos para a entrada do porão. O farolete que tinha trazido comigo provou ser sobremaneira útil, não somente porque iluminava os degraus de pedra um tanto escorregadios, como também porque permitia uma revista mais completa do local, para detectar a eventual presença de minas terrestres. A colocação desses engenhos traiçoeiros e mortíferos era uma especialidade dos alemães em retirada. Aqueles apetrechos diabólicos, habilmente camuflados, causaram elevado número de vítimas, principalmente entre as tropas de choque dos exércitos aliados. Como não existia, aparentemente, viv'alma nas dependências do castelo, que nos pudesse prestar quaisquer esclarecimentos sobre a nacionalidade dos seus últimos ocupantes, era claro que, por razões de elementar precaução, devíamos esperar o pior — ou seja, que se tratava de componentes da Wehrmacht. Entretanto, ao alcançarmos o porão, após uma descida vagarosa, degrau por degrau, respiramos aliviados ao depararmos, espalhada no chão de pedra, grande quantidade de rações de emergência, assim como sapatos e peças de uniforme, todos de procedência do exército dos Estados Unidos. Se, por um lado essa descoberta amenizou o receio das minas alemãs, por outro aumentou as nossas preocupações quanto ao destino dos diamantes. Desde que o porão, como o provavam os vestígios deixados por esses visitantes, evidentemente tinha sido já vasculhado pelos autênticos "craques" na localização de esconderijos que eram os militares ianques, apenas por um verdadeiro milagre poderiam estar a salvo as pedras preciosas pertencentes ao nosso amigo de Luxemburgo. Seguindo as instruções deste último, contamos um certo número de painéis de madeira, não demorando muito para descobrirmos o compartimento secreto. A luz do meu farolete, dirigida para o seu interior, revelou um amontoado de antigüidades empoeiradas consistindo principalmente de pratos de Sèvres ricamente pintados, assim como de algumas pratarias. Dos diamantes nada, nem sinal. Tivemos que nos curvar diante da dura realidade: o tesouro do castelo não conseguira escapar à cobiça dos soldados norte-americanos que, aliás, não agiram de modo diferente do que qualquer guerreiro conquistador de outras nações, do passado ou do presente.

Em Bollingen, a última cidadezinha que nos separava do destino final, que era Bitburgo, fizemos uma rápida visita a um burgo da BDM(23), organização feminina nazista, dedicada ao aperfeiçoamento das qualidades e virtudes consideradas dignas do chamado padrão da raça germânica, estabelecido por Hitler. O prédio, como todos os demais pontos da cidade, achava-se vazio e bastante danificado pelos disparos da artilharia norte-americana. Na porta de entrada estava escrita a giz branco: Achtung, Feind schiesst scharf(24). Nos amontoados de destroços empoeirados que guarneciam os cômodos, encontrei vários livros e folhetos. Quanto às antigas ocupantes do burgo, nada lembrava mais a sua presença a não ser alguns sapatos de baile, sem brilho, amassados e estragados.

A medida que nos aproximávamos de Bitburgo, cidade natal de George, este começou a demonstrar visíveis sinais de crescente agitação e, apontando um monumento cuja silhueta retangular se descortinava no céu cinza, exclamou: "O monumento dos combatentes ainda está de pé! E também a chaminé da cervejaria". Notava-se na voz de George, além da compreensível emoção, também alguns vestígios de esperança. Talvez o fato de terem ficado intactos aqueles dois marcos da cidade fosse um presságio alvissareiro, permitindo a dedução de que talvez a sua casa também tivesse escapado ilesa. Já na entrada, porém, tornou-se patente que Bitburgo apresentava um aspecto idêntico a Echternach. Não se via um prédio que não tivesse sofrido a ação da artilharia. No barro amarelado das ruas, margeadas por fileiras de ruínas, arrastava-se uma ininterrupta corrente de tanques, canhões, carros, jipes e caminhões norte-americanos. O pesado tráfego militar que encontramos em Bitburgo explicava-se pelo fato de estar atravessando a cidade, justamente naquela hora, um forte contingente do exército do Gen. Patton, incumbido de tentar um ataque maciço contra as linhas alemãs com a finalidade de rompê-las, rumo a Coblença. Num dos cruzamentos, o tráfego era tão intenso que fomos obrigados a parar o nosso jipão. Um major do exército, com o capacete inclinado por cima de um grande mapa, dirigia o fluxo incessante dos veículos. Enquanto discutíamos, ainda sentados no carro, a possibilidade de descer e seguirmos a pé até à casa de George, ressoou repentinamente um forte estampido, misturando-se ao estalo da explosão, uma sonoridade levemente melodiosa... bbbaenggg! E outra vez bbbaenggg! Ao todo, oito violentos disparos de artilharia, um após o outro, levantando-se no local onde os obuses caíam — a uns 800 metros de nós — pequenas nuvens de fumaça branca. Alguns soldados do caminhão à nossa frente, ao ressoarem os disparos saltaram do veículo, procurando abrigo numa das casas semi-destruídas.

—O som é de canhão de 80 mm — disse George — uma das melhores peças de artilharia que os alemães possuem. Estamos perto da frente de combate. Talvez a uns 8 quilômetros...

Uma série de violentos estrondos, mais poderosos que os primeiros, fizeram estremecer a terra.

—Estes são os nossos — exclamou o chofer — estão no máximo a uns quinhentos metros daqui.

Indiferente aos disparos da artilharia, provenientes de ambos os lados, a maré interminável de homens e material de guerra norte-americana deslocava-se em direção a Coblença.

Gigantescos caminhões militares, arrastando não menos possantes canhões de assalto, os "focinhos" encobertos por tampas protetoras de lona, grudados uns aos outros, esses conjuntos de artilharia pesada avançavam, numa procissão vagarosa, porém inexorável. Quando se balançavam, aos solavancos, produziam um tinido metálico, deixando na sua passagem um rasto com forte cheiro de óleo diesel. Atrás deles, pára-choque encostado a pára-choque, centenas de caminhões repletos de tropas de infantaria, vestindo capacetes toscos, cobertos de redes de camuflagem, a maioria em total apatia, alguns demonstrando palidez nos rostos, porém iluminados por tímidos sorrisos. Tanto as armas como os veículos careciam do aspecto reluzente que caracteriza os desfiles militares em tempo de paz, porquanto se achavam visivelmente gastos e cobertos de lama, demonstrando que haviam mantido fortes combates com o inimigo.

—Estes entram em ação ainda hoje — disse o Sarg. Frank, apontando para os soldados sentados nos caminhões.

A avalanche de veículos bélicos era imponente, interminável. Um jipe, com uma estrela prateada em fundo vermelho pintada no pára-choques, parou na esquina.

—Um general-brigadeiro — observou o chofer.

O general desceu. Era baixo e gordo, e trajava uma jaqueta que, para efeitos de camuflagem, ostentava um desenho onde predominavam as cores verde e amarela. O general, rodeado de alguns oficiais, permaneceu bastante tempo naquela esquina, fiscalizando o tráfego de homens e material. Ouvimos mais alguns disparos de artilharia, vindos do lado dos alemães. Porém, desta vez, os obuses caíram mais longe.

Chegamos finalmente à casa de George, onde o esperava uma amarga decepção, já demonstrada pelo aspecto exterior lastimável. Ao subirmos a escada coberta de grossa camada de lama, verificamos logo que, além da destruição, ela havia sofrido também os efeitos da pilhagem. Todos os cômodos estavam cobertos de destroços e imundícias. Nada sobrara, exceto algumas peças de mobília quebradas, cobertas de pó, gavetas puxadas para fora. E um grande silêncio.

Procedíamos agora à realização de nossa tarefa principal, ou seja, a de procurar material para nossa emissora. Infelizmente, o prédio do quartel-general do partido nazista da comarca de Bitburgo achava-se em estado não menos lastimável que os demais edifícios da cidade. Tivemos que remexer montanhas de papéis e engolir substancial quantidade de poeira, antes de descobrir algumas pilhas de documentos intactos, assim como umas vinte latas de metal contendo fitas cinematográficas de 16 e 35 mm, representando diversas fases das atividades do partido nazista em Bitburgo.

No prédio dos correios localizamos e levamos uma mala postal repleta de correspondência, escondida debaixo das grades de um guichê, camuflada por uma espessa camada de poeira e que milagrosamente escapara à "curiosidade" das tropas de choque.

Na volta paramos numa aldeia, diante de um grupo de casas semi-destruídas, a fim de interrogar alguns dos habitantes. Ficamos satisfeitos pela oportunidade de podermos conversar com aqueles raros representantes da população civil alemã, pois foram, com exceção de alguns meninos da "HJ"(25), os únicos que pudemos localizar durante toda a nossa viagem. Provavelmente, diante do impacto das recentes ações bélicas, a maioria dos habitantes da região tinha fugido ou estava escondida nos bosques das cercanias.

Dirigi a palavra a um homem de bigode eriçado, salpicado de fios brancos:

—Qual é a sua profissão? Lavrador?

Lavrador e trabalhador — respondeu o homem, fazendo evidente esforço de ser amável. Tanto ele como os dois rapazes a seu lado demonstravam uma docilidade e uma modéstia exagerada ao extremo, para ser sincera. Um dos garotos, que aparentava uns quinze anos, ainda vestia o uniforme da "Juventude Hitlerista", porém sem a "swastica" ou quaisquer outras insígnias nazistas. Admitiu ter pertencido à "HJ".

—Que podíamos fazer? A gente era forçada. Todo mundo era obrigado a alistar-se...

—E você? — indaguei do seu amigo, um garoto de uns onze anos — Também fez parte da "HJ"?

—Sim — concordou ele — a gente era forçada...

Atravessei a estrada, onde Benno havia entabulado conversa com duas mulheres, paradas à frente de uma casa esburacada. Uma delas, alta e magra, tinha o rosto pálido e arcado por uma boca exageradamente estreita. A outra era gorda e baixota.

—Então — indagava o Sarg. Frank — vocês estavam com medo dos americanos?

—Não — respondeu a dos lábios finos — sabíamos que eles não nos fariam mal, pois os conhecemos desde a Primeira Guerra Mundial. — E com a voz açucarada: — Ainda tenho uma fotografia que me mostra ao lado de um americano. — E depois de uma pausa: — Temos esperanças de que ainda veremos dias melhores. — Contou-nos, em seguida, que não haviam recebido ordem de evacuação. Assim, tinham decidido permanecer na aldeia. Enquanto conversávamos, o ruído ensurdecedor de alguns tanques, procedendo em meio a uma coluna de outros veículos, fez com que eu virasse o rosto naquela direção. A mulher devera ter percebido a expressão de orgulho que, sem eu querer, iluminara os meus olhos.

—Nós também — disse ela — possuímos muitos carros.., só que o nosso "Sprit"(26) se esgotou...

—A senhora acredita que a Alemanha ainda pode ganhar a guerra? — perguntou Benno.

Ela refletiu durante alguns segundos e, sem conseguir ocultar o ódio que engrossava sua voz, retrucou:

—Sim, cada um de nós deseja a vitória do seu próprio país. E ainda mais nós, que ternos lutado por seis longos anos...

Porém, a sua amiga gorducha apressou-se a acrescentar rapidamente:

—Ao ver passar todos estes veículos, a gente quase começa a acreditar que a Alemanha não consiga mais ganhar esta guerra.

Era evidente que ela pronunciara estas palavras, não porque refletissem a sua própria opinião, mas com o intuito apenas de apagar a péssima impressão causada pelo modo de falar da outra — mais atrevida, porém mais sincera.

Um homem trajando o casaco dos soldados da Wehrmacht, o rosto pálido coberto de pontas de barba, acrescentou em voz conciliatória:

—Ninguém de nós quis a guerra...

E a gorducha, com um sorriso um tanto forçado, concordou:

—De fato, ninguém de nós aqui da aldeia quis a guerra...


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Capítulo XII
ALEMANHA, ZERO HORA MENOS CINCO

Excesso de franqueza pode custar a vida — Até os cegos são obrigados a aderir ao "Volkssturm" — Altos funcionários nazistas insistem em seus privilégios — Descrição detalhada dos resultados de um bombardeio — Acabou-se: os americanos estão atravessando Bad Nauheim.

 

Mencionei, no capítulo precedente, a satisfação que sentimos ao descobrir nos escombros do edifício dos correios de Bitburgo, uma mala ainda lacrada do correio alemão, repleta de cartas. Isto, porque estas constituíam a nossa melhor e mais objetiva fonte de informações sobre o estado de espírito do povo alemão na iminência do colapso total da resistência da Wehrmacht ou seja, na "zero hora menos cinco minutos". Os remetentes, já sob o efeito dos constantes bombardeios dos aliados, tinham mandado aquela correspondência sem muita esperança de que chegasse ao destino. Porém, apesar destas considerações realistas, ninguém iria deixar de escrever aos seus parentes e amigos. Pode-se mesmo afirmar que, em nenhuma outra época na Alemanha teriam sido escritas e despachadas tantas cartas. Mandar uma correspondência era quase sempre a última e desesperada tentativa de estabelecer contato com um ente querido, talvez perdido na confusão da retirada do exército derrotado ou preso nos escombros de uma cidade devastada por bombardeios aéreos. Escrever uma carta seria sempre um "desabafo" psicológico, o meio mais seguro de se livrar, pelo menos temporariamente, da pressão quase insuportável das preocupações do presente e do medo do futuro. Receber uma carta era o melhor e mais caro presente, uma bênção de Deus, mais promissora que qualquer dinheiro do mundo.

Dos muitos milhares de cartas daquela época, que nunca chegaram ao seu destino e que, no desempenho da minha função no Departamento de Guerra Psicológica do XII Grupo do Exército norte-americano fora obrigado a ler, conservei algumas, a títulos de souvenir de guerra. Destas, cito em seguida as mais reveladoras:

Carta de uma mãe menciona meninos de quinze anos de idade chamados pelo exército para cavar trincheiras:

"Bad Nauheim, 26 de março de 1945

Minha cara Elfriede

No quarto de Hansgert dormem dois refugiados de Francforte, parentes da Senhora Stein. Hansgert dorme no divã. Impedida assim de arrumar a casa, aproveito o tempo para escrever-te. Tentarei novamente fazer chegar esta carta a Siegen, de onde, eu espero, te alcançará. Há quinze dias atrás, Marburgo foi alvo de um bombardeio. Não temos até agora, sinal de vida de vocês. Sabemos apenas o que foi contado pela Srta. Zander. É para desesperar, a gente não sabe mais nada sobre os parentes próximos. De casa, evidentemente, tampouco há notícias. Em nossos pensamentos, estamos constantemente com vocês. Como vão? E, principalmente, como vão teus pais? Deve ser terrível para ambos, verem-se confrontados com os destroços da obra pelo erguimento da qual trabalharam toda uma vida! E a padaria? Onde moram eles agora e por onde andam tuas irmãs? Caso desejes vir para cá com Wolfgaengchen, posso ceder-te o quarto do canto — o antigo escritório. Porém, é melhor não dar palpites. Talvez que nós mesmos possivelmente sejamos obrigados a abandonar o nosso lar. Todos os soldados feridos aptos a caminhar, receberam alta dos hospitais. Apenas os gravemente feridos continuam internados. Todos os telhados dos hospitais acabam de ser pintados com enormes cruzes vermelhas. A "Escola No. 3" foi ontem convertida em hospital. A cidade está sendo atravessada por uma torrente de refugiados vindos da região de Francforte-sobre-o-Meno. Até hoje ainda estou tonta. Imagina: no sábado, dia 24 e domingo, 25, os rapazes nascidos em 1929 e 1930, respectivamente, receberam ordem de se reunir. As 19 horas iria um transporte para Dieburgo, perto de Darmstadt, onde deveriam ser cavadas trincheiras. Incrível, a agitação dos pais! Era obrigatório levar víveres para três dias, inclusive cinco quilos de batatas. No caso do não aparecimento de qualquer dos rapazes, seus pais ficam sujeitos à lei marcial. Belo e formoso, após uma dura despedida, Hansgert, equipado com uma mochila de 40 quilos de peso, pôs-se em marcha às 13 horas. Reuniram-se em Friedberg uns 250 garotos. No meio da chamada, foi dado o alarma, sofrendo Friedberg o seu mais pesado bombardeio aéreo. Contamos aproximadamente 300 aviões que, com certeza, devem ter arremessado umas 1 200 ou 1 500 bombas sobre a cidade. E as crianças, no meio desta caldeira de bruxas, com apenas algumas trincheiras rasas para proteção! Graças a Deus, saíram ilesas. Foram ainda tão inteligentes, que se aproveitaram da primeira calmaria para "dar o pira" em direção a Nauheim. Chegaram em casa às 6 horas da tarde, cobertos de lama, da cabeça aos pés, e agora não os deixamos sair mais. Todos nós aproveitamos os sanduíches das mochilas de provisões. Asseguro-te que raramente comemos refeição mais saborosa. O meu Hansgert não se cansava de repetir de como estava contente de regressar à casa.

Fora isto, ainda estamos todos bem. Se pelo menos pudéssemos ter notícias tuas e de Hans... Sábado à noite o "Gauleiter" Sprenger, falando pelo rádio, exortou às populações de Francforte, Offenbach, Darmstadt e arredores, a deixarem suas cidades. Os que ficarem atrás serão considerados traidores. Que faremos, se tal ordem vier a ser dada também em Nauheim? Não o posso crer, porém, devido à chegada constante de novos hospitais militares.

Adeus, minha querida Elfriede. Desejo muita sorte a ti e ao meu pequenino Wolfgang. Saudações sinceras a ti, teus pais e tuas irmãs.

Tua GRETEL."

Aventuras de uma viagem de Berlim a Nauheim

"Nauheim, 27 de março de 1945

Meu querido Hansermann

Talvez já tenhas recebido as poucas linhas de saudações que pude entregar ao passageiro de um trem que parou aqui, cujo destino era Berlim. Entretanto, após uma viagem repleta de aventuras, cheguei ante-ontem às 17 horas a Nauheim. Eis o relato da minha peregrinação: Em Berlim, devido à paralização dos transportes públicos, eu me pus a caminho da estação duas horas antes da saída do trem. Assim mesmo alcancei justamente a tempo, o último carro da composição, que já estava em movimento. Dois soldados içaram-me para dentro do carro. A noite toda, o trem, em velocidade fantástica, não fez sequer uma parada fora das previstas no horário. Fui feliz em obter um assento a partir de Erfurt. Em Schweinfurt, onde chegamos às 20,30, tivemos que abandonar o carro, devido a um ataque de aviões inimigos, voando a baixa altitude. Porém, tanto eu como o trem saímos ilesos. Às 10 horas fomos notificados de que prosseguiríamos rumo a Wurzburgo, onde chegamos ao meio-dia e trinta. Wurzburgo é uma cidade morta, destruída pelo fogo. Nos poucos prédios que ainda restam de pé, pude distinguir alguns escritórios do partido, e uma igreja. O aspecto daquela cidade era positivamente desolador. Em Berlim, apesar da destruição de certos bairros, há ainda uma sensação de atividade febril da população, Mas, aquilo lá estava tudo morto e abandonado. Só ruínas e quase ninguém nas ruas.

Em Wurzburgo fomos informados de que um trem, estacionado na localidade de Zell, iria partir rumo a Aschaffenburgo. E fomos para lá — a pé, evidentemente. Dois senhores que iam para Francforte para retirar suas famílias, ofereceram-me a sua proteção. Aceitei grata, pois, viajando com alguma companhia, ainda existe uma possibilidade de atravessar esse caos, são e salvo. Uma pessoa sozinha acaba perecendo no caminho. Então principiamos a marcha, eu, com a mochila nas costas, na qual tinha colocado todas as minhas posses mais valiosas (pelo menos 50 ks de peso), os homens carregando as suas malas. Pelo caminho encontramos uma taverna onde fomos felizes em obter um último copo de cerveja Pilsen. Reconfortados, prosseguimos a nossa caminhada em direção a Zell, contornando lindos vinhedos, todos cuidadosamente cultivados (assim há esperança de que pelo menos vinho teremos este ano). Chegamos às 5 horas da tarde, mas saímos de Zell apenas às 9 da noite, viajando num trem que ia rumo a Gmünden, onde chegamos às 15 para 11. Tivemos que deixar o vagão, pois fomos informados de que os americanos já haviam alcançado Aschaffenburgo, achando-se, em conseqüência, totalmente paralisado o tráfego ferroviário na cidade de Gmünden. Restava-nos agora apenas o recurso de ir a pé, pela rodovia.

Após a caminhada de mais ou menos um quilômetro, consegui parar um caminhão, cujo motorista era um civil que ia a Francforte em busca do filho. Disse-me que estava sendo obrigado a fazer uma volta bastante grande, pois os americanos já se achavam na cidade. Sendo a única mulher entre os 25 ocupantes daquele veículo de carga, fui bastante mimada. Confortavelmente sentada, não cheguei a sofrer tanto os efeitos da ventania. Rodamos a noite toda, atravessando sucessivamente Spessart, Bad Orb, Gennhausen, Bad Seltz até Orrenheim. O clarear do dia revelou-nos um espetáculo entristecedor: as estradas repletas de refugiados; à beira da estrada os cadáveres dos que morriam de exaustão ou pela atuação dos aviões atacando a baixa altitude; destroços de automóveis e caminhões; cavalos mortos, etc. Um quadro cruel. Sem prestar atenção aos mortos, procedia o fluxo dos refugiados, e nós também. De longe ouvia-se o troar ininterrupto da artilharia. Estávamos, por conseguinte, não muito longe da frente de combate. A um lado da estrada estendia-se a fila sem fim dos refugiados, e seguiam os prisioneiros. O outro lado estava reservado aos veículos militares. Durante uma parada, encostou ao nosso lado um comboio de prisioneiros americanos. Estes se aproximaram, oferecendo-nos anéis de ouro e carnes enlatadas em troca de pão. Eram, sem exceção, homens bem nutridos, de aspecto educado. Uma das nossas paradas forçadas era dedicada à busca de lenha para o gasogênio do nosso caminhão. Apanhamo-la, assim como o óleo, sem mais nem menos, de um posto de gasolina abandonado. Numa época como a atual, tudo está mudado, inclusive os padrões morais e legais. O que importava para nós era que pudéssemos continuar a viagem. Recebemos mais três passageiros: meninos de 15 anos de idade, pertencentes ao "Volkssturm"(27). Os garotos acabavam de ser libertados pelos americanos, que os haviam prendido apenas o tempo necessário para despojá-los das suas facas e outras armas e mandá-los em seguida (munidos de uma grossa fatia de pão), de volta à mamãe.

Na segunda-feira pela manhã o tempo piorou. Choveu a cântaros e ficamos molhados até aos ossos. Não pudemos nos banhar e estávamos sem comida. Porém, tudo parecia sem importância. Repartimos os cigarros e criamos novo ânimo. Durante uma das periódicas paradas dedicadas às nossas "necessidades fisiológicas", o caminhão encostou à frente de uma casa de camponeses. Os homens se espalharam pelo interior da habitação, inclusive a privada. Quanto a mim, tive o estábulo das vacas inteirinho à minha disposição. Foi naquela parada que o caminhão tomou rumo diferente, ficando eu obrigada a continuar a pé o resto da viagem. Sobrecarregada como estava pela minha bagagem, os onze quilômetros que tive de percorrer até chegar a Nauheim não foram "biscoito". Até agora os meus pés estão cheios de bolhas, um dos meus joelhos se acha duro e inchado, e minhas costas cobertas de manchas azuis esverdeadas. Mas valeu a pena chegar quase arrebentada, pois consegui salvar todas as minhas posses preciosas. Apesar de estar agora aqui em Nauheim, continuo na realidade contigo, pois onde estiveres aí é o meu lar. Sempre tentarei voltar e procurar-te. Rever-nos-emos, porque nos amamos. Talvez seja esta a última carta que recebas. Beijo-te intensamente, muitas, inúmeras vezes. Penso em ti, dia e noite e continuo juntinho de ti.

Sempre, sempre, exclusivamente tua,

ERIKA.

Espero que um bondoso destino permita que esta carta chegue a tuas mãos. É isto o que desejo".

A censura nazista fiscaliza as cartas dos próprios alemães. Excesso de franqueza pode custar a vida.

"Quarta-feira, 14-3-45

Meu bom e querido Peter

Recebi hoje, para grande alegria minha, tua carta de 28-2. Agradeço-te de todo o coração, por me haveres escrito. Já estava bastante preocupada por tua causa: Imagina, Peter, na segunda-feira fomos alvo de um ataque aéreo. Eu estava deitada, quando caiu o "tapete"(28) de bombas (aconteceu em alguns segundos), eram 9,30. Descalça como me achava, saltei da cama e corri para o porão. As bombas caíram logo atrás da igreja, explodindo, quase todas felizmente, num campo deserto. Com exceção de alguns soldados mortos e feridos, não aconteceu nada mais grave. As crateras das bombas se estendem em linha reta até a primeira casa da aldeia, onde mora o guarda-caça Buellmann, Será que aquelas bombas estavam destinadas a Kilburgo? Talvez, devido ao fato de se acharem instalados naquele lugar alguns contingentes de reserva. Ou o ataque foi dirigido contra as estradas? Ou contra os depósitos de V-1 etc., que estão espalhados aqui nas imediações onde começam as florestas de Kilburgo? Fala-se de traição. Correm boatos insistentes de que tenham sido transmitidos na noite de domingo para segunda-feira, sinais luminosos e radiofônicos por alguém escondido nas vizinhanças da floresta (lá onde desce o caminho para Unnau). Após o bombardeio, foram colocados guardas durante a noite, na floresta, porém sem resultado.

No sábado caíram 20 bombas pesadas (de retardamento) na estrada que leva a Marienberg, uns 50 metros do local onde a gente se desvia para Lutzsenbruecken... Pouco a pouco explodiram todas elas, tendo ficado impedido o tráfego até voar pelos ares a última bomba; houve também alguns mortos entre os soldados. Assim, podes imaginar o perigo que nos ameaça aqui. Dizem que possivelmente virão para cá mais de mil soldados. Artilharia, infantaria, pára-quedistas etc., enfim, todas as categorias de armas. Daqui, os soldados seguem, todas as noites, rumo à frente. Por isso há, no período da noite, um extraordinário movimento de veículos. Faz uns vinte dias, foi publicado um novo decreto para as tropas, que diz o seguinte: "aqueles soldados que declararem ter perdido o contato com as suas unidades ou coisa semelhante, serão sumariamente fuzilados." Imagina que coisa horrível; isto nada mais é que um sinal de fraqueza, Peter. Ultimamente temos tido freqüentemente notícias de terem sido fuziladas certas pessoas devido ao teor das cartas que escreveram, e que a censura pegara. Isto é uma advertência para nós, Peter. Devemos ser um pouco mais cautelosos daqui por diante. Assim é melhor, não achas também, Peter? E não te esqueças da tua Peterle! Eu também continuarei a pensar sempre e com carinho, no meu querido Peter. Muitos carinhosos beijinhos de boa noite, da tua única

PETERLE."

Até os cegos estão sendo chamados para as fileiras do "Volkssturm".

"Bach, 16 de março de 1945

Meu caro senhor Bucher

Já se foram mais algumas semanas desde que recebi sua gentil carta. Porém, a culpa pelo atraso das respostas cabe às nossas constantes mudanças. Não creio que o senhor possa me escrever em futuro próximo para o lugar onde presentemente me acho (estou desde 18 de fevereiro no Westerwald; inicialmente perto de Coblença e agora, perto de Marienberg, no Oberwesterwald). Os aviadores inimigos, voando a baixa altura, dirigem os seus ataques de maneira concentrada contra as linhas férreas como também contra as auto-estradas importantes; principalmente, porém, eles tentam alcançar a "Reichsautobahn"(29), para, desse modo, facilitar o avanço das suas tropas para o interior do Reich.

Sim, meu caro senhor Bucher, tive de rir às gargalhadas quando soube que obrigaram o senhor a fazer parte do "Volkssturm"! Constitui realmente um certificado de pobreza o fato de até os cegos serem obrigados a acudir em defesa do país. Soube que aqui, perto de Marienberg, mora um cego ao qual pretendo visitar neste próximo domingo: dizem que trabalha numa oficina artística e que é muito inteligente. Desejo-lhe melhoras, e que seja poupado dos ataques aéreos, e que todos nos encontremos outra vez. Com a amizade mais sincera, sua

MARIE SCHINDLE.

Favor mandar a resposta quanto antes. Antecipadamente, meu muito obrigada!"

"Os diabos voam dia e noite..." Detalhada descrição de bombardeios.

"19 de fevereiro de 1945

Minha cara Ottie

Embora os "gangsters" estejam me sobrevoando neste instante, estou sentada na escrivaninha para te escrever e assim "bater um papo" contigo. Já chegamos a tal ponto aqui, que somente procuramos refúgio no porão, quando as bombas já estão caindo ou quando ouvimos os disparos de artilharia anti-aérea. Caso procurássemos nos proteger realmente, teríamos que ficar ocultos no porão ou no abrigo anti-aéreo desde a madrugada até à noite. Aqui, os diabos nos sobrevoam antes, durante e depois do alarme aéreo. A semana passada foi bastante movimentada.., na segunda-feira, algumas pancadas de chuva provocaram um acúmulo de 10 cm de água no cômodo localizado perto do jardim; o forno soltava tanta fumaça, que por pouco não ficamos asfixiados. Na terça-feira, a estação de Hochdorf voou pelos ares, enquanto aqui caíram duas bombas, matando nove pessoas, todas da mesma casa. Na quarta-feira, foram atiradas bombas em cima do balneário, perecendo nessa ocasião todas as pessoas que se encontravam no pequeno salão (aquele que fica por baixo do salão de festas); havendo entre os mortos, principalmente soldados que lá se achavam tomando o café da manhã. O balneário é um monte de destroços. Ontem à noite passei por lá justamente no momento em que estavam retirando o 12o. cadáver. Dizem que mais alguns outros se acham desaparecidos. Na quinta-feira, o viaduto de Lautenbad foi destruído por bombas aéreas perecendo nessa ocasião cinco soldados da artilharia anti-aérea. Na sexta, foram arremessadas bombas na estação, porém sem êxito; uma bomba de fósforo incendiário caiu em cima da estação de carga, escorregando pelo telhado inclinado e parou no chão. A tarde caíram bombas no antigo Hotel Schwald, do outro lado da estação, onde habita muita gente modesta com proles numerosas. Houve um incêndio, porém o prédio (uma estrutura de madeira) não desmoronou; mesmo o segundo andar ainda se acha em pé.

Os soldados de um trem militar que estava passando justamente naquele instante, ajudaram a salvar os bens dos habitantes. Uma granada de artilharia anti-aérea pesada derrubou um dos aviões inimigos. No seu interior havia 7 "gangsters" pretos e um branco, este último ferido, ora num hospital. Durante o interrogatório, ele revelou que tinham ordem de destruir todas as pontes e a estação; caso isto não fosse conseguido com bombas isoladas, viria o "tapete". Outrossim, contou ele que estão fazendo tudo o que é possível para que os nossos reforços não cheguem à frente. Os habitantes dos prédios situados ao redor da estação dormem nos abrigos anti-aéreos situados perto de Waldlust e Waldeck. Na sexta-feira, por ocasião de dois passeios na cidade, tive que procurar refúgio em cinco diferentes porões. Para dizer a verdade, sou forçada a me abrigar incessantemente em porões e outros esconderijos semelhantes, pois eles voam freqüentemente a vôos rasos, metralhando os transeuntes e as casas. Outrossim, há o perigo dos estilhaços provenientes da nossa própria artilharia anti-aérea, que atira da estação e dos viadutos.

Sim, minha querida, é assim que estão as coisas aqui! A gente quase não se atreve mais a sair à rua, mesmo quando se trata de alguma incumbência muito importante, pois repentinamente se ouvem os ruídos familiares, forçando-nos a procurar proteção. O gás de rua é fornecido apenas algumas horas por dia. A venda de carvão a particulares está praticamente suspensa. Logo terei de enfrentar o problema de como continuar cozinhando. Agora, compreendes porque te desaconselhei a visitar-nos. Entrementes, as viagens a título particular foram proibidas. Tornou-se impossível para nós, reunirmo-nos aos nossos entes queridos. Acha-se também praticamente interrompido o intercâmbio postal. Recebi ontem uma carta de uma prima, de Schopfheim (Baden), escrita no dia 21 de dezembro. Imagina, querida, dois meses para aquela carta chegar aqui! Uma carta e um vale-postal que mandei no dia 16 de janeiro a Sigfried por ocasião do seu aniversário, me foram devolvidos em fevereiro com uma anotação dizendo ter sido impossível a sua entrega — o que é compreensível, dada a situação reinante no Este. Já faz muito tempo que não tenho notícias de Kempten. Soube por ti, que Marie, a filha e as crianças se acham em casa de mamãe, como também a Gertrude e as filhas dela. Não sei como mamãe consegue abrigar toda essa gente. Em tua casa, decerto também haveria lugar para alguns deles, mas quem deseja hoje ir a Stuttgart? Será que os "gangsters" visitaram vocês hoje? Ao meio-dia um grupo substancial de aviões passou por aqui, voltando aproximadamente, um a um, duas horas mais tarde. Magdeburgo deve se achar em triste estado, pois falam de 70.000 mortos; também Dresden sofreu muito, esses dias. Ontem eles estavam em Linz, onde a Gerda e o seu rapazinho se achavam hospedados na casa da mãe dela. Assim, as coisas continuam andando sem que se possa prever um fim. Voltaste para a loja? Aqui passamos muitos vexames devido à falta de energia elétrica, falta de material e de suprimento. Uma época horrível. Estou muito preocupada por causa de Helmuth. Apesar de tudo isso, temos de agüentar. Ainda não perdi a esperança ou a fé. Tem que ir, e irá mesmo, pois o velho Deus ainda não morreu.

Saudações e um beijo manda a tua tia

ANNA".

Moça receia ser chamada para a artilharia anti-aérea

28-1-45

Querida Maria

Já faz tempo que não tenho notícias tuas. Recebi na semana passada duas cartas de Joseph. Uma de 7-1-45 e outra de 18-11-44. Isso te prova como é irregular o correio, hoje em dia. Numa das cartas, Joseph me escreve que estavas doente. Espero que já tenhas sarado e que não tenha sido nada sério. Espero que onde estão não faça tanto frio. Quanto a mim, estou passando este inverno bastante "bem". Não imaginas em que constante estado de inquietação estou vivendo. Em toda parte estão agora chamando também as moças para as fileiras da artilharia anti-aérea (FLAK). Como estou desempregada, já há dois meses, posso esperar diariamente a ordem de apresentação. Não imaginas que medo isto me inspira. Ajuda-me a orar para que isto me seja poupado. Quem haveria de pensar em tal coisa, quando nascemos... Agora que estamos ficando maiores de idade, não se pode fazer o que a gente quer. Porém, uma coisa é certa: caso eu tenha que ir, algumas outras desta aldeia irão comigo. Então, estejas contente de não morar aqui...

Muitas saudações de todos, especialmente da

LOTTE".

Alguns funcionários nazistas se "arranjaram" para levar boa vida, enquanto o resto do povo passa pelas mais amargas privações.

"Quinta-feira, 15 de março de 1945

Meu querido menino

...o cúmulo que fomos obrigados a assistir aqui, foi a chegada do Conselheiro Municipal de Mayen, junto com o conselheiro distrital, prefeito, veterinário, etc. Esta gente se apresenta toda importante, passeando de carro por toda a região e exigindo para eles e suas famílias alojamentos de primeira classe. Possuem cupons que lhes dão direito a aquisição de fogões, etc., assim como cupons de gasolina à vontade. O conselheiro municipal de Westerburgo lhes presta auxílio. Um deles ostenta a farda de primeiro tenente. O prefeito, evidentemente, deixa-se amedrontar. Eu, porém, não me pude conter, e dei a entender a um desses o que eu pensava de tudo isso. aquele fardado de primeiro tenente me disse ontem que necessitava de cupons de racionamento para adquirir vestidos para sua mulher e um terno para ele. Durante a nossa conversa, observei na manga do seu paletó a braçadeira do "Volkssturm". Indaguei então de como eles tinham conseguido partir assim, sem mais nem menos, apesar da ordem expressa do Führer no sentido de que especialmente os membros do partido e do "Volkssturm" estavam obrigados a agüentar até o fim".

Quanto ao seu pedido de cupons de racionamento, respondi que hoje em dia a posse de apenas um terno era considerada plenamente satisfatória para qualquer homem, não se justificando por razões patrióticas de economia popular, a aquisição de outros.

Então a senhora pretende exigir que eu vista sempre o mesmo terno? — respondeu ele irritado. Ao que retruquei:

—É isto precisamente o que foi exigido de nossos homens durante os seis longos anos de guerra. Aliás, se o senhor, como vejo, foi bastante esperto para arranjar condução motorizada para si e sua família, não lhe faria mal dar uma olhadinha para o modo como são obrigados a se locomoverem todos aqueles milhares de refugiados que entopem as estradas.

Mas o carro é de minha propriedade particular. Não sou obrigado a deixá-lo para trás — retrucou ele.

Os nossos automóveis — disse eu — também eram de nossa propriedade particular, porém foram confiscados desde o primeiro dia de guerra.

E agora, nós dois. Mesmo com todos estes transtornos, a tua filha sente uma imensa saudade de ti. Sinto-me tão jovem e com tanta necessidade de ser amada... Em parte, isto talvez seja causado pela primavera. Porém, fica sossegado, a tua menina se comportará. Vale para mim o que de ti também espero. A vida não teria sentido se fosse diferente. Deixa que meus pensamentos te envolvam com carinho e permanece tu, assim como me prometeste.

Tua menina".

Uma criança vê sempre o lado alegre e brincalhão da vida, mesmo numa triste guerra.

"Querida mamãe

Como vai você? A sua última carta de 25-1 chegou aqui antes de ontem. Há uns 15 dias todos os prisioneiros foram transferidos das aldeias das vizinhanças para o campo dos franceses, a fim de serem vacinados. Nós, crianças, estávamos justamente brincando na Hinterburg quando notamos a chegada dos prisioneiros, e corremos para vê-los de perto. Então os russos tiraram das suas sacolas os mais maravilhosos brinquedinhos por eles esculpidos em madeira: galinhas e pombinhos que, ao mais leve toque dão bicadas no chão, como se estivessem procurando comida. Os russos também trouxeram lindos aviõezinhos cujas hélices giram quando a gente corre contra o vento. O preço exigido para a aquisição daquelas coisinhas tão lindas era de 20 batatas ou metade de um pão. Adivinhe o que eu consegui? Adquiri três galinhas com apenas 20 batatas! Possivelmente, logo botarão ovos. Quando você vier para nos visitar, poderá vê-las...

Teu Ernst"

Todos os dias grandes quantidades de aviões nos sobrevoam. Mas, agora o principal: mamãezinha, estou muito contente por possuir aquela fotografia sua junto com o papaizinho. Coloquei-a numa moldura, com uma florzinha ao lado...

"Será que perdemos mesmo a guerra? Esperar, esperar, esperar..."

23-3-45

Minha querida Rosele

Como é esplêndido, o colorido verde-claro da primavera que se aproxima... A gente quase não pode acreditar que está em guerra. No entanto, infelizmente é assim. Dói o coração quando se pensa no futuro. Será mesmo que perdemos esta luta? Será que tudo foi em vão? Não posso e não quero acreditá-lo. Será que as nossas esposas e filhas serão entregues à sanha daquela soldadesca "aliada", essa mistura de raças? E nós, homens, seremos forçados a contemplar tudo isto, presos atrás de fileiras de arame farpado, ou talvez deportados para qualquer lugar longínquo? É inacreditável, porém às vezes os meus pensamentos se preocupam com tal eventualidade. Ainda não chegou, porém, esta hora amarga, pois por enquanto o adversário ainda é obrigado a contar conosco. Será que conseguiremos detê-lo? Temos que consegui-lo! A Alemanha cada vez mais diminui em tamanho. Já a esta hora o Reno se transformou em linha principal de combate. Fomos felizes em poder atravessá-lo ainda em tempo. Continuamos a combater aqui, porém, na qualidade de soldados de infantaria. O meu caminho em tua direção está ficando cada vez mais curto e mais próximo. Tenho apenas um desejo: que possamos nos rever de novo. Quanto ao resto, não importa que caia em pedaços! Estamos, como me escreveste de maneira tão bela, prontos a recomeçar nossa vida. Se apenas pudéssemos ganhar esta guerra! Assim como as coisas estão agora, não podem continuar. Espero então que o meu caminho me leve em tua direção. Esperar, esperar, esperar...

Por hoje, minhas saudações mais sinceras e os beijinhos mais carinhosos do teu

HAENSLE

N.B. Esta carta deve alcançar-te na época da Páscoa. Porém, acho que não é aconselhável mandar o "chocolatinho" que destinei de presente a vocês, pois tantas coisas são desviadas..."

Soldado descreve detalhada e dramaticamente sua última travessia do Reno

"13 de março de 1945

Minha querida e boa Agnes

Antes de tudo, saudações sinceras.

Desta vez tive que fazer-te esperar um pouco mais que de costume; alegro-me, porém, por poder escrever-te hoje. Acabo de viver uma semana repleta de acontecimentos e de agitação. Na minha última carta pude dar-te a notícia tranqüilizadora de que me achava em território situado do lado direito do Reno. Segunda-feira, dia 5 do corrente, tive de passar mais uma vez com meu carro para o lado esquerdo, efetuando a travessia perto de Bonn. Prosseguindo a viagem por aquele lado, passei sucessivamente por Bad Godesberg, Koenigswinter, Oberwinter, etc. Do belo Reno, porém, nada pude ver, pois viajava à noite; além disso, era grande o movimento na estrada, devido ao tráfego ininterrupto de colunas de veículos que voltavam. No local onde devíamos investir contra o inimigo, já no primeiro dia o diabo andou às soltas. A fim de evitar o encontro com o "Tommy", tivemos de executar nas horas noturnas uma rápida mudança de posição. Apenas terminávamos a manobra, e novamente caímos na ratoeira. Estavam se desvanecendo as nossas esperanças de poder ainda efetuar a travessia do Reno. Entretanto, o "Tommy" tinha progredido rio abaixo, penetrando em Bonn, Remagen, Sinzig e Niederbreisig; do lado sul ele estava em Coblença, tendo penetrado também em Andernach. Assim, tudo o que nos restava era uma pequena cabeça de ponte, não havendo outras vias que permitissem passagem pelo Reno. Na sexta-feira alcançamos o rio. Ali já se achavam algumas centenas de veículos. Durante as horas noturnas, a balsa entrou em ação para efetuar a travessia das pessoas e dos carros. Era uma balsa de tamanho pequeno, por isso o tráfego prosseguia muito vagarosamente. No entanto, estávamos mais do que contentes por nos ser oferecida ainda esta oportunidade de alcançar o outro lado do Reno. Esperamos pacientemente a nossa vez na fila, juntos com o nosso carro. Várias vezes, freqüentemente, aos berros, recebemos ordem de voltar. Amanheceu, e todos os veículos da fila tiveram que procurar abrigo, devido aos aviões inimigos. No decorrer do dia chegavam cada vez mais veículos e canhões que tinham preferência na travessia. No fim da tarde, chegamos finalmente perto da balsa, com a esperança de logo poder embarcar.

Foi então que, ali pelas 17,30, de uma colina coberta de bosques, o "Tommy" iniciou um fogo concentrado, estalando ininterruptamente tiros de fuzil, metralhadora e canhão. Impressionante era o eco nas montanhas que ladeiam o Reno. Pavoroso, porém lindo, o espetáculo dos rastos luminosos dos obuses incendiários e outros. De um e outro lado, ouviam-se os disparos da artilharia, sendo ouvidas logo depois as explosões das granadas no lado oposto. Nestas circunstâncias, é evidente que pegamos as nossas mochilas e procuramos abrigo na margem do rio. Parecia desintegrar-se a nossa esperança de alcançar o outro lado, mesmo sem os nossos veículos, pois a balsa ficou destruída pelo fogo da artilharia inimiga. Por conseguinte, como você pode imaginar, o nosso moral caiu abaixo de zero. Os meus pés estavam inteiramente molhados, ficando eu, em conseqüência, gelado até os ossos. Porém, nem por um instante tive a impressão de que algo de mal me pudesse acontecer. Assim mesmo, já me havia resignado mais ou menos com a idéia de que poderia ser feito prisioneiro. Naquelas horas, na noite de sábado, pensei também em ti, e me transportei mentalmente para aquela linda temporada da minha licença que passamos juntos, há um ano. Finalmente alcançamos um lugar onde havia alguns botes de borracha que deviam servir para atravessar a infantaria. Como não havia equipes de remadores, seis de nós tiveram que servir alternadamente nessa tarefa, todas as vezes que o bote efetuava uma ida-e-volta. Já na primeira vez, eu e dois dos meus camaradas conseguimos entrar no barquinho e servimos de remadores. Na travessia seguinte, quando já nutríamos esperanças de sermos definitivamente desembarcados no outro lado, fomos outra vez deixados para trás, devido à chegada de alguns feridos que evidentemente tinham prioridade. Demorou para que os botes voltassem. Entretanto, tinham aparecido bastantes candidatos à travessia, e só a muito custo consegui finalmente chegar ao outro lado, juntamente com os meus dois camaradas. Não superficialmente, mas de todo o coração, agradeci então a Deus.

Querida Agnes, ficaria imensamente feliz se pudesse ter notícias tuas. A última carta que de ti recebi era datada de 11 de fevereiro. Responsável é, com certeza, o correio. Saudações e felicidades.

teu fiel ALOIS".

Soldado ainda acredita nas "armas secretas"

Marienberg, 15-3-45

Meu benquisto Hansilein

...esperamos cada dia pelo grande contra-golpe que está para vir, porque assim não pode mais continuar. Atualmente estão sendo travadas renhidas lutas no território situado entre Bozzard e Coblença. Há boatos, ademais, de que os americanos já alcançaram Bad Kreuznach. Na cidade onde me achava antes, os americanos já entraram também, justamente um dia depois da minha partida. Assim sendo, vamos, com toda a probabilidade, retirar-nos ainda mais um pouco ou defender a nossa posição, lutando. As nossas tropas do Oeste se encontram em plena forma. O moral dos soldados, com exceção de alguns pessimistas e "reclamadores" é excelente. Os americanos ficam às vezes, durante dias e horas, parados diante de uma localidade onde não existe sequer um só dos nossos soldados. Assim mesmo, eles somente avançam depois de violento fogo preparatório de artilharia, e ainda bem hesitantes. De heroísmo, não parece existir entre eles sequer uma sombra! Responsável pela força momentânea do inimigo é apenas a sua superioridade aérea. Porém eu sei que isso também mudará. Ontem almoçamos juntos com o chefe distrital de Luxemburgo. Ele nos contou muitas coisas que fazem prever uma total mudança em futuro próximo. Várias mulheres ficaram do outro lado, recusando-se simplesmente a seguir conosco. Porém eu adverti muitas delas. Tentei inutilmente fazê-las ver que, quando de novo avançarmos, será impossível impedir que as nossas armas não venham também a ceifar muitas vidas dessa gente alemã. Então, nem o café nem o chocolate dos americanos as poderão salvar. Tenha coragem, e principalmente confiança no nosso Führer.

Com beijos afetuosos do seu

FRITZ

Arquivos nazistas são incinerados antes da chegada dos americanos

"Bad Nauheim, 27-3-45

Meu querido Gansel

Com toda a certeza esta será a última carta que de mim receberás. Aguardamos nos próximos dias a ocupação. Eles já se acham em Hanau e a meio caminho para Friedberg. Estão avançando também no vale do Lahn. Fomos declarados cidade aberta; por isso, não está havendo luta aqui, o que nos enche de alegria. Não imaginas quantos refugiados e soldados estão atravessando Nauheim. A cidade está irreconhecível. Além disso, reina um ambiente de pânico. O dinheiro sumiu. Ontem, cada um recebeu apenas 100 marcos.

O Banco Federal em Friedberg cerrou as portas. Junto com mamãe temos ainda 1.000 marcos, o que nos permite agüentar um pouco. Dizem que o nosso marco será depreciado para 0.17. Porém não vou quebrar minha cabeça por causa de ovos que ainda não foram postos. O tempo é bom conselheiro. Não podes imaginar quanta gente há em frente das lojas, à procura de carne, pão, manteiga e outras mercadorias. Escrevo do porão, devido aos aviões de vôo raso, que rodeiam Johannisberg. Conheces a região e deverás saber por quê. No domingo, Friedberg foi atacada por 6 a 8 ondas. Foi terrível! A estação e tudo ao redor produzem a impressão de terem sido revirados por um arado. No mesmo dia chegou a vez de Woelfersheim. De todos os lados elevaram-se grossas colunas de fumaça.

O "Volkssturm" foi dissolvido a partir de hoje, tendo sido incinerados seus documentos, como também os da "H.J.", etc.

Então, Ganschen, logo tudo estará terminado. É apenas questão de dias.

Deixa-me abraçar-te e beijar-te carinhosamente.

Da tua

GRETEL e os três meninos.

Acabou-se. Os americanos chegaram!

"Bad Nauheim, 29 de março de 1945

Meu querido Willi

A tua carta de 27 de fevereiro, eu a recebi somente no dia 26 de março — ou seja, depois de quatro semanas!

Acabou-se. A guerra, que mais uma vez perdemos, está chegando ao fim. Só o futuro poderá dizer o que será de nós. Talvez tudo seja mais fácil do que parece. Talvez nossos inimigos cheguem a compreender que lutamos apenas para defender nosso direito à liberdade. Devemos, por conseguinte, aparentar calma e prudência.

Neste instante, tropas americanas e tanques estão calmamente atravessando a nossa Nauheim. Elas vêm do Reno e aparentemente seguem em direção da auto-estrada.

Não pode demorar muito agora — talvez apenas alguns dias — para Berlim ser obrigada a capitular.

Tudo isto é muito, muito entristecedor, não apenas para nós, mas para a Europa toda, e talvez para o mundo inteiro.

Teu fiel,

ERNST."


Capítulo XIII
A ÚLTIMA FASE DA 12-12

Captura de generais alemães "por atacado" simboliza a aproximação do fim da guerra — Avalanche de mentiras derramada pela 12-12 — Queremos uma revolução antinazista — "O inimigo" irrompe em nosso estúdio — O que ensinou a 12-12.

 

Em 23 de março de 1945, uma descida maciça de tropas pára-quedistas na margem oriental do Reno foi o prelúdio de mais uma travessia daquele rio estratégico por tropas aliadas — no caso, contingentes anglo-americanos sob o comando do Gen. Montgomery. O que se dera, com efeito, a partir daquele fim de março de 1945, foi a tão cuidadosamente preparada invasão do território da Renânia e, concomitantemente, a transcendental fase final das operações da nossa emissora secreta. Chegara afinal o momento de colher a 12-12, os frutos de sua paciente e delicada tarefa de camuflagem. Poderia agora tirar o máximo proveito da sua já estabelecida reputação de emissora "patriótica alemã", sempre tão "infalivelmente correta" nas informações. Estava pronta para iniciar a fase tática de suas operações, semeando o caos e a confusão no território inimigo, por meio de uma avalanche de avisos e apelos falsos, assim como outras mentiras que, assim se esperava, deviam ser acreditadas pelos seus ouvintes alemães.

Como já frisamos no início deste livro, não se devem esperar milagres dos resultados da atuação, em tempo de guerra, de qualquer emissora de rádio. Outrossim, dada a impossibilidade de avaliar judiciosamente a medida de sucesso da missão tática da 12-12 ante a confusão reinante, seria relativamente fácil aventurar-me hoje em afirmações exageradas, realçando o papel desempenhado pela nossa emissora "alemã", naquela fase do esmagamento final do Reich. Já pela ausência quase total de provas, num ou noutro sentido, seria praticamente impossível me desmentirem. Contudo, não é propósito destas páginas realçar os méritos da 12-12, como tampouco é minha intenção propositalmente diminuir a sua importância. Assim sendo, a conclusão à qual posso chegar, é que a atuação da 12-12 indubitavelmente fora coroada de êxito, manifestando-se a utilidade principal da emissora, no seu papel de subverter o moral inimigo, função esta desempenhada com esmero durante os meses da chamada fase preparatória.

Meu "diário de guerra" do dia 4 de abril de 1945 registra o seguinte:

"Nossa operação está acabando. Quanto muito, mais uns 15 ou 20 dias... a guerra está chegando ao fim. É verdade que estes últimos dias e semanas nos parecem intermináveis. Contemplada pelo prisma da História, a Alemanha já está perdida."

"Um general-de-divisão alemão, preso, foi hoje fotografado em nosso jardim. Tinha ele coberto o seu uniforme com uma capa de civil e trazia um chapéu de feltro. Ao chegar ao jardim, tirou aqueles apetrechos de cidadão, exibindo-se com todo o seu garbo de general da Wehrmacht. Destacava-se contra o fundo verde claro do gramado, acariciada pelo sol da primavera, a sua figura marcial, com as duas faixas vermelhas laterais nas calças de cavalaria. No tecido cinza esverdeado da túnica reluziam várias fileiras multicores de fitas e condecorações: uma — preta, branca e vermelha — mais larga que as outras e enfiada obliquamente, representava a Cruz de Ferro. O gorro redondo e rechonchudo que ostentava lhe conferia uma indiscutível porém patética dignidade. Os fotógrafos entraram em ação. Ao desvanecer-se o pipocar do último "flash", o general vestiu novamente a capa de paisano e colocou o chapéu de feltro, assumindo como por encanto o aspecto manso de um velho fazendeiro ou administrador. Mesmo as botas pretas de montar, que se destacavam por baixo da capa, estavam agora desprovidas de qualquer traço de marcialidade. 'Lobo em pele de cordeiro' — comentou alguém".

Aquele general de divisão, servindo de modelo aos fotógrafos, era apenas um dos altos oficiais alemães que diariamente caíam nas mãos das tropas aliadas. Capturaram elas generais de divisão, de exército, de brigada, de todas as graduações, tipos e tamanhos. Enfim, generais alemães "por atacado", representando cada um deles um bolsão do exército ou grupo de exércitos eliminados. Um dos mais importantes bolsões assim posto fora de combate, foi o da área industrial do Ruhr, onde 18 divisões da outrora invencível Wehrmacht caíram, quase totalmente intactas, vítimas do inexorável cerco de ferro das forças blindadas do I e IX Exércitos norte-americanos.

Nestas condições, não é de estranhar que o ritmo e o modo de trabalho por nós realizado naquela fase final das operações da 12-12 tenham sofrido modificações profundas. Evidentemente, ainda agíamos em estreita colaboração com a suprema chefia militar norte-americana, porém as próprias circunstâncias nos forçavam, mais do que nunca, a tomar decisões independentes e de agir por nossa conta. Naquela última fase das atividades, tínhamos apenas uma finalidade: causar a maior confusão possível no exército e no povo alemães, a fim de apressar o quanto possível, o término das hostilidades. Irradiamos notícias de combates que nunca se travaram. Anunciávamos que um batalhão norte-americano se dirigia para determinada cidade, quando na realidade seguia direção inteiramente oposta. Dávamos conta de pretensas derrotas dos aliados, onde realmente haviam sido vencedores. Evidentemente, não se poderia esperar que tais mentiras surtissem efeito durante um período de tempo prolongado. Porém, quando os acontecimentos bélicos se desenvolvem em grande rapidez, mesmo pequenos atrasos podem produzir efeitos calamitosos. Com as comunicações esmagadas pelo assalto violento dos aviões da nossa Força Aérea, havia mais e mais casos de comandantes de unidades que perdiam contato — às vezes durante horas a fio — com os seus respectivos quartéis-generais. Em tais circunstâncias, qualquer informação era bem recebida, existindo mesmo possibilidade de que uma decisão tomada na base de uma notícia falsa daquela que anteriormente tinha sido a comprovadamente exata 12-12, poderia converter-se num desastre fatal. Que houve tais fatos, ficou posteriormente comprovado.

Começamos, naquela fase final das operações da emissora, a irradiar diariamente editoriais onde chorávamos a sorte da "pátria", e onde admitíamos que também nós estávamos sentindo a pressão cada vez mais intensa das "forças inimigas". Usando uma série de truques, como por exemplo, variações propositais de comprimento de ondas e dificuldades técnicas artificialmente criadas, dávamos a impressão de que estávamos mudando de localidade e fugindo do "inimigo".

Como resultado de um encontro entre o Gen. Eisenhower e o Gen. Omar Bradley (então comandante do XII Grupo de Exércitos norte-americano), na cidade de Namur, na Bélgica, durante o qual foi discutido o rumo que deveriam tomar certas atividades da 12-12, chegou a autorização, bastante almejada pelos líderes da nossa emissora, de podermos tentar, daquela hora em diante, provocar uma revolução antinazista na Alemanha.

A primeira irradiação visando esse resultado, dirigida a pretensos grupos que pertenceriam a uma suposta organização antinazista denominada "Nova Alemanha", foi efetuada durante a noite de 4 de abril de 1945, ou seja, três semanas antes do fim das atividades da emissora. Houve uma seqüência incessante de apelos e instruções àqueles pretensos grupos revolucionários para que se organizassem, assumissem o governo de suas cidades e proclamassem a cessação das hostilidades em suas regiões. Só assim a "Vaterland" poderia ressurgir das cinzas da derrota.

Mesmo isso, aconselhando a cessação da luta, não o fazíamos em tom de derrota, mas em "defesa franca e exclusiva do ponto de vista dos verdadeiros alemães" e apresentando fórmulas e soluções concretas para encontrar uma saída honrosa e de rendição que não afetassem o senso de honra dos militares alemães.

Uma das maneiras por nós inventada para demonstrar que os grupos da "Neues Deutschland" (Nova Alemanha) estavam em plena atividade, foi a propagação do boato de que os membros da "nossa" organização demonstravam a sua lealdade ao movimento, riscando nos cartazes propagandísticos do partido nazista a segunda, quarta e quinta letras — deixando assim, do costumeiro N S D A P(30) apenas as letras N D, ora significando "Neues Deutschland". Entre os motivos de entusiasmo que tivemos dessa atuação, estava o de que tais instruções foram realmente obedecidas em várias ocasiões, tendo sido encontrados por nossas tropas, repetidas vezes, cartazes da N S D A P com as letras S A e P riscadas. Outra satisfação tivemos, ao recebermos informações, no sentido de que diversos correspondentes estrangeiros estacionados na Alemanha haviam noticiado uma série de atividades antinazistas patrocinadas por um movimento denominado "Nova Alemanha".

Então, na noite de 25 de abril de 1945, após a irradiação de mais um comentário particularmente insistente sobre o tema "Agora a Paz", começamos a transmitir o noticiário. Repentinamente os ouvintes perceberam ruídos estranhos no estúdio, gritos, barulho de móveis derrubados... Como um gesto de último desafio, ouviam-se as notas iniciais do prefixo musical da nossa estação secreta — e, antes de chegar a terminá-lo, a Operação "Annie" morreu, saindo definitivamente do ar. Este falso aparecimento de tropas "inimigas" no estúdio, foi uma espécie de espetáculo de despedida; o ponto final no último ato do "show" destinado a enganar os nazistas. Terminara a Operação "Annie" ou simplesmente "Annie", como era chamada carinhosamente pela sua equipe.

Fomos um sucesso? Lograra realmente enganar os nazistas? Tanto uma como outra dessas respostas não podem ser respondidas com um "sim" ou "não" definitivos. Isto, porque, devido ao caráter secreto da emissora, não se podia cogitar de estabelecer, em países neutros como a Suíça, postos de escuta e sondagem da opinião pública, que tanto nos haviam ajudado a avaliar o impacto da ABSIE. Por outro lado, no entanto, possuímos a vantagem de ter à nossa disposição um fluxo cada vez mais numeroso de prisioneiros alemães, entre os quais, repetidas vezes, pudemos efetuar uma espécie de "levantamento da opinião pública" a respeito dos méritos ou falhas da 12-12.

De modo geral, tomando por base um grupo-padrão composto de dez prisioneiros, dois expressariam certeza de que realmente acreditavam ser a 12-12 uma emissora alemã; um, ao contrário, diria que estava certo da fraude; três declarariam que, por alguns motivos, acreditaram ser a 12-12 uma emissora alemã, mas por outras razões, no entanto, nutriam dúvidas a esse respeito; enquanto os restantes quatro diriam que nunca a haviam escutado.

Uma incerteza ainda maior prevalece quanto aos resultados concretos do lado tático da missão da 12-12. Chegamos, sem dúvida alguma, a desempenhar as nossas atividades na fase final das operações, da maneira originalmente prevista, derramando uma verdadeira maré de mentiras e boatos insidiosos. Porém, tão rapidamente prosseguia o avanço das tropas aliadas naquela memorável fase de invasão da Alemanha, que teria sido ilusória qualquer tentativa de realizar as necessárias pesquisas sobre o grau exato da nossa contribuição para o êxito de determinada operação bélica. O que se deu, de maneira impressionante, entre o fim de março e o fim de abril de 1945, foi um colapso total gradativo da resistência alemã. Houve, certamente, ainda algumas batalhas violentas onde renhidamente se disputava cada palmo de chão de determinada colina ou localidade, mas já não restava dúvida de que o esmagamento final da Wehrmacht se tornara inevitável.

Tanto assim, que as colunas motorizadas aliadas se espalharam pelo território da "Rheinland" numa torrente tão impetuosa, que às vezes se viram obrigadas a frear o avanço para evitar a separação de suas fontes de suprimento. Diante de tão extraordinária mobilidade das operações militares, teria sido inútil tentarmos estabelecer contatos com os comandantes de determinadas unidades das forças Armadas norte-americanas, com a finalidade de averiguar qual o efeito das irradiações da 12-12 sobre a rendição de um batalhão alemão ou a evacuação prematura de uma cidade, por nós "ordenada". Que houve tais rendições e que um certo número de ordens fictícias de evacuação foram obedecidas, é indubitável.

O que contudo se pode afirmar de maneira definitiva, é o fato de que a 12-12 foi uma estação ouvida em toda a Alemanha. E, segundo viemos a saber mais tarde, tivemos durante o mês e tanto de máxima confusão que caracterizou a fase final da invasão da Alemanha, a honra de ter sido ela a emissora mais ouvida, não somente pelos grupos de exército nazistas cercados, mas também por substancial parte da população do Reich. Só este fato, em si, já representa um sucesso. Ë licito afirmar, com efeito, que mesmo no caso de certa porcentagem dos ouvintes alemães terem nutrido alguma suspeita ou desconfiança a respeito da 12-12, uma boa quantidade do veneno subversivo por nós espalhado provavelmente lograra concretizar a sua tarefa de penetração.

Para finalizar estas conclusões, posso afirmar sem receio que, dentro de suas falhas e imperfeições, naturalmente próprias de um empreendimento pioneiro, a 12-12 comprovou plenamente a viabilidade intrínseca do seu arrojado esquema de concepção. Ficou patente, com efeito, pela sua atuação, a existência de reais possibilidades de prejudicar e confundir o adversário por meio de uma emissora secreta camuflada "na farda do inimigo".

Apesar de ter a Operação "Annie" conquistado o seu lugar na História militar dos Estados Unidos, muito pouco se tem publicado até agora a seu respeito. Houve, conforme um dos meus colegas certa vez me revelou em Nova York, interesse de um dos estúdios cinematográficos de Hollywood em rodar um filme cujo enredo fosse a história verídica da 12-12. Porém, ao que eu saiba, tal plano se realmente existiu, acabou "caindo n'água".

Quanto a eventuais atividades de emissoras secretas do futuro, poderão as mesmas se beneficiar plenamente, não só das experiências da Operação "Annie", como também dos fabulosos avanços da técnica no campo das rádio-comunicações e da TV.

Parece-me, porém, que para tirar o máximo de benefício de tal tipo de emissoras "disfarçadas", o seu planejamento e organização devem ser efetuados antecipadamente, com todo o esmero necessário, ainda em tempo de paz.

Caso as autoridades militares ocidentais presentemente encarregadas do setor da guerra psicológica estejam trabalhando nesse sentido, a existência da emissora secreta norte-americana 12-12 já por isso mesmo teria sido amplamente justificada.


Capítulo XIV
MOVIMENTADA VISITA AO SETOR SOVIÉTICO

Na qualidade de oficial de ligação, chego a conhecer a enorme quantidade de problemas angustiosos que atormentam as chamadas "pessoas deslocadas" — Consigo penetrar no setor soviético para distribuir jornais a prisioneiros de guerra franceses — Aviadora soviética faz dramático relato de suas experiências no campo de concentração — Quase perdemos a vida atravessando uma ponte de emergência.

 

As hostilidades tinham chegado ao fim — mas não a minha missão junto ao exército norte-americano. Logo após o término das atividades da 12-12 fui nomeado oficial de ligação no recém-criado setor de "pessoas deslocadas" do XII Grupo de Exércitos. A tarefa daquele setor, cujo quartel-general se achava localizado no conhecido balneário Bad Nauheim, era zelar pelo bem-estar e pela recondução, aos seus países de origem, de parte dos milhões de trabalhadores compulsórios estrangeiros e prisioneiros de Hitler, que se achavam espalhados por toda a Alemanha. Como se sabe, os nazistas, na sua arrogância de quererem transformar a Europa em mera sucursal do Reich, jogavam com o destino de milhões de habitantes das vastas regiões por eles conquistadas, como se fossem simples peões num gigantesco tabuleiro de xadrez. Os nazistas designavam pelo termo "Fremdarbeiter" (trabalhadores estrangeiros) aqueles que, com exceção de alguns "voluntários" atraídos por falsas promessas de altos salários e farta alimentação, não passavam de escravos da máquina de guerra de Hitler. Quase todos eles se achavam na Alemanha contra a sua vontade, em substituição, nas fábricas e nos campos, a milhões, de operários e camponeses alemães que tiveram de trocar os seus macacões por uniformes do exército.

Recolocar no seu país de origem toda aquela gente, era uma tarefa de grandes proporções, de vez que se apresentavam problemas de transporte, combustível e alimentação, muito semelhantes aos da movimentação de um exército. Evidentemente, era impossível prover suficientes caminhões ou demais meios de condução para efetuar, de uma só vez, o transporte daquela massa humana, dessa forma surgindo a complicação adicional do alojamento temporário em acampamentos provisórios de espera. Logo apelidadas pelos norte-americanos de "displaced persons" (pessoas deslocadas) ou, de forma abreviada "DP's", a incrível confusão provocada por essa aglomeração de estranhos, impacientes por deixarem a Alemanha e retornar aos seus lares, gerou para o Alto Comando americano uma série de dificuldades e incríveis transtornos. Uma das mais urgentes tarefas — evitar atritos entre os diversos grupos étnicos — era a organização de acampamentos separados por nacionalidades, onde deveria reinar uma disciplina estritamente observada, a fim de se evitar que elementos mais violentos deixassem o local, procurando vingança pessoal contra a população alemã. Para acalmar o quanto possível os ocupantes daqueles acampamentos provisórios, sobremaneira irritados pela penúria das acomodações, da comida e dos cuidados médicos, dois meios terapêuticos — ocupação e distração — deram ótimos resultados.

Desde logo ficou patente que ler jornais e revistas era um dos passatempos favoritos das pessoas deslocadas. Foi-nos relativamente fácil providenciar tão almejado material de leitura, pois dispúnhamos de grandes quantidades de jornais e revistas a cores, impressas em vários idiomas pelo "Office of War Information" de Nova York. Esse material, embora contivesse certa dose de propaganda oficial não deixava de ser essencialmente informativo e instrutivo. Fazia parte da minha tarefa como oficial de ligação do setor de pessoas deslocadas do XII Grupo de Exércitos, efetuar a distribuição daqueles jornais e revistas nos acampamentos que diariamente eu estava encarregado de visitar, assim como de tomar conhecimento das queixas e reclamações dos seus ocupantes.

Para realizar as viagens que me levariam através de considerável extensão territorial da Alemanha, eu dispunha de um caminhão do exército, com o respectivo motorista. Percorrer a toda a velocidade, estradas esburacadas num caminhão militar de molejo duro, não é exatamente um prazer. No entanto, fiquei amplamente compensado pela beleza da paisagem alemã, mais exuberante que nunca após os seis longos anos de guerra. Porém, uma satisfação ainda maior me era proporcionada pelos rostos sorridentes e alegres das moças e rapazes dos acampamentos, que em grupos ruidosos costumavam rodear o veículo para disputar o seu conteúdo. Cheguei a travar conhecimento com inúmeros dentre eles e inteirar-me dos seus problemas, suas preocupações e esperanças. Queixavam-se da insuficiência de acomodações, em geral apinhadas de gente e forçando a mais chocante promiscuidade, chegando muitos a dormir estendidos no chão de cimento. Insuficiência de colchões. Sempre a mesma comida, a mesma sopa e ausência de sal e açúcar. Carência de pão. Muitos desejavam reunir-se a parentes, às vezes localizados em acampamentos vizinhos, porém praticamente fora do seu alcance, de vez que havia a proibição de deixarem o alojamento sob qualquer pretexto, a não ser quando instalados nos caminhões de repatriação. Queixavam-se, outrossim, da carência de tabaco, bolas de futebol, aparelhos de rádio e da flagrante insuficiência de cuidados médicos. Ouvi essas queixas em russo, francês, italiano e numa variedade de outros idiomas, e procurava então, dentro das minhas possibilidades necessariamente limitadas, fazer o máximo para aliviar a situação. Como os "DP's" de nacionalidade soviética constituíam a maioria, o meu domínio da língua russa facilitava sobremaneira o contato com eles, aumentando, por outro lado, proporcionalmente, as minhas responsabilidades. Durante uma dessas visitas rotineiras ao acampamento da cidade de Wetzlar, a enfermeira encarregada de cuidar dos recém-nascidos, aproximou-se e em voz exaltada, disse:

—Soube que o senhor fala russo. Pelo amor de Deus, ajude-nos a conseguir alguns bicos de mamadeira. Ainda ontem à noite faleceu um dos nossos bebês porque se recusou terminantemente a aceitar o leite na colher.

Passei a tarde inteira tentando descobrir um dono de farmácia de Wetzlar, que ainda tivesse algum estoque dos tão raros, naquela época, bicos de mamadeira. Finalmente, após pacientes pesquisas e depois de bater em muitas portas erradas, fui feliz. Voltei com uma dúzia de bicos de mamadeira, todos novinhos em folha, e fui quase esmagado pelo forte abraço de gratidão dispensado pela troncuda enfermeira soviética.

Havia naquela época, na região de Francforte-sobre-o-Meno, que constituía a minha principal área de ação, aproximadamente quinze grandes acampamentos de pessoas deslocadas, com o total de umas 30.000, das quais aproximadamente a metade era constituída de russos e o restante composto de membros de outras nacionalidades da Europa oriental, meridional e ocidental. Além dos russos, outro importante grupo de pessoas deslocadas era os de nacionalidade francesa. Havia na Alemanha de Hitler aproximadamente dois milhões e quinhentos mil franceses, dos quais 750.000 prisioneiros de guerra, uns 900.000 "trabalhadores forçados" e cerca de 40.000 deportados políticos. Quando cheguei a saber da existência de alguns outros acampamentos de prisioneiros de guerra franceses na região das cidades de Riesa e Torgau, localizadas numa área ocupada pelo exército soviético, decidi pedir permissão aos meus superiores para levar para lá um caminhão cheio de jornais e revistas em língua francesa, os quais certamente iriam ser muito bem recebidos por aqueles homens, separados há tanto tempo da pátria.

Meu afã de prestar ajuda aos franceses se explica, ademais, pelos profundos laços de amizade que me ligam àquele povo desde os meus dias de estudante na cidade de Montpellier.

No setor de pessoas deslocadas do XII Grupo de Exércitos, havia dois capitães — G. Delahaye e Maurice Péguy (este último, aparentado ao célebre poeta e escritor francês Charles Péguy, que durante a Primeira Guerra Mundial recusou o posto de capitão, morrendo como simples soldado de infantaria no primeiro dia da grande Batalha do Marne) — destacados pelas forças degaullistas para servirem como oficiais de ligação. Procurei e logo consegui, estabelecer sólida amizade com aqueles dois simpáticos e eficientes colegas franceses, os quais, entre outros, estavam encarregados da redação de um jornal francês denominado Retour, especialmente dedicado aos prisioneiros de guerra franceses. Esse jornalzinho tinha apenas duas páginas, mas era repleto de informações úteis. Seu cabeçalho completo era: "RETOUR — périodique des prisonniers et déportés français en Allemagne". Conservo, ainda intacto o raríssimo número 1 daquela publicação, que contém, entre outros tópicos de interesse, uma mensagem do Gen. Omar Bradley na qual expressa ele absoluta confiança de que os prisioneiros e deportados pudessem, na sua qualidade de cidadãos franceses, permanecer "ombro a ombro com os aliados norte-americanos, assim como os de todas as nações unidas, que lutavam pelo estabelecimento de uma paz duradoura".

Ao solicitar a autorização dos meus superiores para levar um substancial número do Retour, e bem assim uma publicação semelhante denominada Voir, com a finalidade de distribuí-los nos acampamentos de prisioneiros franceses na área de Riesa e Torgau, eu estava longe de imaginar que a minha viagem para o território ocupado pelo exército soviético me iria trazer uma série de complicações graves, inclusive o risco da própria vida.

Embora fôssemos, naquela época, aliados de guerra dos russos, uma viagem para o setor da Alemanha por eles ocupado exigia diversas formalidades, inclusive a autorização prévia do general russo da região. Isto porque, aliados ou não, os soviéticos insistiam no seu desconfiado isolacionismo, diante do Ocidente. Alguns dias antes da minha viagem, um alto funcionário do OWI teve de cancelar a sua visita ao setor soviético, diante da recusa terminante do general russo, em fornecer o passe necessário. No meu caso, porém, talvez devido a um descuido do oficial norte-americano encarregado da seção de transportes, as autoridades russas não foram consultadas. Assim, parti apenas munido dos documentos necessários.

Como projetava visitar também outras partes da Alemanha, decidi levar, além do caminhão, também um jipe, o que me proporcionaria maior mobilidade e segurança caso o veículo pesado viesse a enguiçar.

Ao alcançar o posto de controle soviético, localizado a uns quinze quilômetros de Riesa, um capitão russo, ainda jovem, veio ao nosso encontro, indagando para onde íamos.

—Para as cidades de Riesa e Torgau, a fim de entregar "material a prisioneiros franceses" — respondi, estendendo a minha mão num gesto largo, para o caminhão estacionado atrás do meu jipe.

Sem se prevalecer do meu convite implícito, para investigar a carga do caminhão, o jovem oficial refletiu um momento e logo depois, em tom militar porém cortês, disse:

—Podem seguir.

Ao prosseguirmos viagem, ficou logo evidenciado que estávamos em território ocupado pelos soviéticos, pois as setas à beira da estrada traziam inscrições em alfabeto russo. Algumas diziam: "Na zdrastwuyte pobetuschtchaya Krasnaya Armiya"(31). 0 tráfego nos cruzamentos era dirigido por guardas militares femininas, as chamadas "Regulyorowchtici". Trajavam blusas e saias cor cáqui, vestiam pesadas botas e tinham a cintura apertada por largas cintas de couro. As costas levavam fuzis, com a boca dirigida para o chão. Ao aproximar-se um veículo, costumavam colocar-se em rígida posição de "sentido" e, com precisão militar, levantavam uma das duas bandeirinhas que seguravam nas mãos. A amarela significava: "pode passar" e a vermelha, "pare".

As casas das aldeias que atravessávamos achavam-se enfeitadas por pedaços de pano vermelho, suspensos em varetas rústicas de madeira. Havia pouca gente nas ruas, demonstrando os mais vivos sinais de alegria ao ver-nos passar.

Numa das localidades, um oficial da cavalaria soviética consentiu em deixar-se fotografar ao meu lado. O militar, que demonstrava sinais evidentes de ter bebido um trago a mais, tinha alguma dificuldade em segurar o seu cavalo inquieto, enquanto o Sarg. Tak batia a chapa com a minha pequena máquina alemã.

No primeiro cruzamento, já na cidade de Riesa, pedi a uma das moças-guardas que nos ensinasse o caminho para o acampamento dos prisioneiros franceses. Ela sorriu e mostrou-se curiosa por encontrar quem falasse o russo. Era bastante atraente, apesar do tecido grosseiro de seu uniforme e, mesmo com o fuzil às costas, sabia flertar com perfeição! Com um largo sorriso, deixou-se fotografar ao meu lado.

No pátio do acampamento havia uns 50 caminhões repletos de pessoas, a maioria enfeitada com bandeiras francesas, aparentemente prontas a partir rumo oeste. Sem perda de tempo mandei abrir a lona protetora do nosso caminhão e, após tirar vários fardos do Retour no meu jipe, comecei a percorrer os caminhões de prisioneiros franceses, distribuindo aos mesmos grande quantidade de jornais.

—Moi aussi! Moi aussi! — gritavam os homens, visivelmente contentes pela atenção recebida.

Apenas uma pequena minoria se mostrava decepcionada, pois esperavam que levássemos víveres ou cartas.

Ao deixar o acampamento após descarregar mais alguns fardos no prédio principal, observei os franceses, de pé nos caminhões, cada um absorvido na leitura do seu exemplar do Retour.

Porém, ao tentar repetir a distribuição-relâmpago dos jornais franceses num outro campo de prisioneiros, (este já localizado na cidade de Torgau), a coisa começou a transtornar. Com efeito, um tenente soviético, ao deparar com o início da operação de descarga dos fardos de jornais, indagou em tom severo se eu possuía a necessária autorização para levá-la a efeito. A muito custo consegui convencer o seu superior, um tenente-coronel bastante carrancudo, a permitir que deixássemos alguns fardos do Retour naquele acampamento.

Mesmo assim, foi-nos terminantemente negada autorização para distribuir os jornais diretamente aos prisioneiros. Tivemos, bem a contra-gosto, de deixar os fardos empilhados no escritório do acampamento, controlado pelos russos. Até hoje me pergunto se o tenente-coronel soviético cumpriu a sua promessa de zelar pessoalmente para que os nossos jornais fossem posteriormente distribuídos aos prisioneiros franceses.

Visivelmente tranqüilizado pela minha atitude cooperadora, aquele oficial convidou-nos para almoçar no refeitório do quartel dos militares soviéticos, localizado perto do acampamento. Agradeci, pois tínhamos almoçado otimamente, saboreando os deliciosos "blinyi" (panquecas recheadas com nata) havia apenas duas horas, em outro quartel, no caminho de Torgau. Mas os meus protestos de nada valeram, diante da insistência do oficial russo. Para não ofendê-lo, tive de aceitar o convite, sendo aquinhoado dessa vez com uma salada de batatas salpicada de pedaços de carne e bastante cebola crua. A bebida, como também no almoço precedente, consistia numa mistura alcoólica de cor levemente avermelhada, com um leve cheiro de vodka, porém composto, conforme me pareceu, de álcool puro. Achava-se — devido à aguda falta de garrafas — num grande vidro de tipo farmacêutico, onde em alemão estavam gravadas as palavras: "Ammoniakgeist — Vorsicht" (amoníaco, cuidado).

O "rito" de beber entre os russos era sempre o mesmo:os copos — de preferência os maiores possíveis — cheios até às bordas com aquela estranha mistura alcoólica, de onde se destacava, além do cheiro típico de vodka, às vezes também um pronunciado gosto de querosene. Os russos então exclamavam: "Truman!" (como se sabe, na ocasião presidente dos Estados Unidos) e, zelando e insistindo para que o seu gesto fosse seguido à risca, esvaziavam cada um o seu copo, até à última gota. O mínimo de boa educação exigia que os hóspedes norte-americanos, tão amavelmente brindados, pedissem que os copos fossem cheios novamente para, de sua parte, levantá-los em honra de seus anfitriões, exclamando: "Stalin".

Eram quase dez horas da noite quando decidimos continuar a nossa viagem. Logo depois de atravessarmos Torgau, começou a chover torrencialmente. Não havia sequer uma viv'alma para nos ensinar o caminho a seguir, e a chuva impedia a visão das setas indicadoras. Preferi regressar ao acampamento-quartel de Torgau e pedir alojamento aos soviéticos.

Antes de escoltar-nos aos nossos aposentos, o tenente soviético que havíamos conhecido por ocasião da malograda distribuição do Retour insistiu para que tomássemos um trago com ele. Estava sem a túnica, e vestia uma camisa branca e aberta. No cômodo para onde nos levou, achava-se um outro tenente, em idêntico traje sem-cerimônia, de camisa branca e calças militares, sentado numa mesa cheia de garrafas e comida, juntamente com algumas moças. Ao sermos convidados a participar da refeição, argumentei que "francamente não tinha fome", pois não somente havíamos jantado, como também almoçado duas vezes. Mas ninguém parecia prestar a mínima atenção às minhas palavras. Instantes depois tínhamos à nossa frente vários pratos de comida variada, assim como os indispensáveis copos de vodka.

Os boatos se propagam com a rapidez do relâmpago, nos quartéis. Assim, ao saber que três militares americanos se encontravam presentes no edifício, um tenente-coronel que se achava no andar inferior mandou um mensageiro, solicitando a nossa presença. Além daquele oficial, de fisionomia nostálgica, havia também um major, um verdadeiro gigante, cujo peito largo parecia querer rebentar-lhe a camisa branca. Seu rosto, um tanto achatado, de formato pronunciadamente mongólico, ostentava um franco sorriso. Como ficou logo patente, o tenente-coronel de olhar tristonho havia perdido dois irmãos e toda a família no decorrer da guerra. Fiquei pasmo, ao inteirar-me de que quase todos os russos que encontrava haviam perdido um ou mais entes queridos durante as hostilidades. Anos depois, ao conhecer os dados estatísticos oficiais da Segunda Guerra Mundial, com espanto verifiquei que as perdas militares da Rússia no conflito totalizaram cerca de 7 milhões e meio de homens mortos ou desaparecidos, ou seja, mais que as perdas da Alemanha, Japão, Estados Unidos, Itália e França juntos.

Na mesa, onde, apesar dos nossos protestos nos foi servida a terceira — e, felizmente, a última refeição da noite — achavam-se também três moças, uma delas trajando o uniforme da aviação militar soviética. A aviadora, de nome Ásya, moça delgada, de boca sensual, era a mais bonita — e também a mais inteligente das três. Servia a bordo de um quadrimotor-bombardeiro, na qualidade de radiotelegrafista, profissão que aprendera rapidamente, após a sua libertação pelo exército soviético, do campo de concentração. Passara um ano inteiro no temível campo de morte de Auschwitz. A segunda mocinha, que se achava sentada a meu lado, passara um ano em Auschwitz e mais seis meses em Ravensbrueck, campo não menos temível que o primeiro. A terceira, uma linda moça de cabelos castanhos, soltos, tinha conhecido o terror de três campos de concentração: Auschwitz, Ravensbrueck e Lyublin. A que se encontrava a meu lado arregaçou a manga da blusa, ficando visível no seu braço esquerdo, o número 50719 tatuado em azul por seus algozes.

A aviadora Ásya enfiou o dedinho nos cantos de seus lindos lábios e, forçando-os para trás, mostrou que faltavam todos os dentes molares de ambos os lados.

—Foi a Gestapo que mos arrebentou. Na ocasião fiquei dependurada durante quatro horas pelas mãos atadas nas costas e recebendo socos sem parar.

Contou mais que ela, assim como as suas colegas do campo de concentração eram obrigadas a trabalhar 12 horas por dia. Vestidas em suas saias e blusas listadas de azul e cinza, tinham que permanecer em rigorosa posição de sentido, durante horas a fio, na chamada matinal. O menor movimento, a menor infração da disciplina diabólica que reinava no campo, eram castigados com dois golpes violentíssimos dos cassetetes de madeira, com os quais estavam equipadas as vigias "supervisoras": um golpe de cada lado do rosto.

—Um dia vi, com os meus próprios olhos, as vigias alemãs matarem a golpes de cassetete uma garota russa de apenas 14 anos de idade — contou a jovem aviadora. E continuou: - Era uma menina franzina, porém, apesar do seu físico, obrigada a trabalhar numa fábrica de munições. De tanto sofrer, enlouqueceu. Um dia, durante a chamada matinal, recusou-se terminantemente a seguir para o trabalho. Chamaram então a vigia-chefe, que inicialmente desferiu dois fortíssimos golpes de cassetete no rosto da garota. Apesar dos seus gritos e gemidos, outros golpes se seguiram, cada vez mais fortes, até ela cair morta diante de todas nós.

Outro caso vivido por Ásya se deu no campo de concentração de Auschwitz. Um dia — contou — uma jovem prisioneira russa, filha de um professor de universidade, recebeu ordem para ajudar na escavação de uma fossa. Seja porque também já "não regulava muito bem", ela atirou a pá aos pés da vigia, negando-se a cumprir a tarefa, dizendo: "Stalin não me educou para manejar uma pá para os alemães." A vigia chamou um miliciano da SS, que logo apareceu, acompanhado de um feroz cão policial, especialmente adestrado. Ele repetiu a ordem de trabalho, e a moça novamente se recusou. Então, ao receber dois violentíssimos golpes de cassetete em pleno rosto, apenas limitou-se a responder: "Tenho 19 anos de idade. Stalin não me educou para que eu manejasse uma pá para os alemães".

—Então você não quer mesmo... — gritou furioso o guarda da SS, soltando o cachorro em cima da moça. — Eu fechei os olhos — continuou Ásya — mas o meu coração disparou ao ouvir os gritos de dor da menina, e seus gemidos de lamento, que mais pareciam os de um animal degolado no matadouro. Enquanto o cachorro dilacerava as pernas da moça, as vigias a rodeavam, rindo às gargalhadas: Levaram-na embora, banhada em sangue.

Ásya e suas amigas tinham sido salvas quando os aliados entraram em Auschwitz. Um dia, já num acampamento de pessoas deslocadas, soldados norte-americanos trouxeram um guarda SS russo (havia SS de várias nacionalidades, inclusive russos). — Pedi aos americanos — prosseguiu ela — que me deixassem assestar apenas dois golpes naquele homem.. apenas "dois socos"... Levaram o homem, cujo rosto já estava todo azul de tanto apanhar, para um cômodo situado no primeiro andar, onde fecharam as janelas. Gritei para ele: "De joelhos, traidor!" E, imaginem, ele se ajoelhou mesmo, diante de mim, uma mulher. Da mesma forma como tantas vezes tinha visto os SS agir contra prisioneiros indefesos nos campos de concentração, desferi-lhe, com o meu joelho dobrado, um violentíssimo golpe no queixo. Em seguida arremessei com toda a força o meu cotovelo em sua boca, quebrando-lhe todos os dentes dianteiros — como vingança pelos meus molares perdidos. Finalmente, usando o anel do meu dedo, e com a mão fechada, quebrei-lhe o nariz.., quebrei-lhe o nariz — repetiu Ásya já completamente exausta pela narrativa. E, subitamente, escondendo o rosto nas mãos, irrompeu num choro convulsivo.

No dia seguinte as moças nos acompanharam ao pátio do acampamento. Quando já me encontrava no jipe, Ásya entregou-me o texto da "Canção do Campo de Concentração" que as moças haviam cantado para nós na noite passada. A meu pedido, ela havia copiado as palavras melancólicas que contavam a triste vida das jovens nas "trinta e duas barracas de madeira" do "Konz-Lager"(32), com a sua cerca carregada de eletricidade.

Apesar de termos ainda metade do nosso carregamento de jornais e revistas, decidi suspender a distribuição no setor russo e seguir rumo à cidade de Dessau, ocupada pelos norte-americanos. O nosso comboio-mirim, com o jipe à frente, deslizava em altíssima velocidade pela "Autobahn" (auto-estrada). Um pouco antes de alcançar Dessau, mas ainda no setor russo, chegamos a uma comprida ponte de emergência, formada de botes transversalmente amarrados uns aos outros e cobertos de pranchas. Era bastante movediça e de aspecto bem frágil. Atravessei-a primeiro de jipe, para verificar se agüentava e voltei bastante preocupado, pois mesmo com o leve peso do pequeno veículo, ela parecia frouxa. Porém, tanto Ray como Tak insistiam em voltar para. o setor norte-americano, pois já estavam fartos de "tanta comida e de vodka". Decidi então assumir o risco e dei o sinal de partida. Mal o caminhão subira na rampa da ponte de emergência, surgiu correndo um tenente russo, gritando agitado: "Parem! Voltem, o caminhão não pode seguir.

Intimado por ele a exibir os documentos, mostrei, além dos nossos documentos de identidade, também a ordem de viagem expedida pelas autoridades militares ianques. O tenente examinou tudo com desconfiança evidente, e ao devolver-me os papéis, indagou em tom severo:

—E a sua autorização de passar pelo setor soviético, onde está?

Exibi novamente a minha ordem de viagem norte-americana.

—Não, não é isto.., quero a autorização do general soviético!

Ele ainda estava ponderando a minha negativa, quando um idoso tenente-coronel se destacou do grupo de soldados russos que se havia formado ao nosso redor. Após passar uma reprimenda no tenente, por ter deixado inicialmente passar o jipe pela ponte de emergência, perguntou-me bruscamente o que estávamos nós conduzindo dentro do caminhão. Ao ficar ciente de que levávamos jornais e revistas, ficou furioso.

—O senhor quer me dizer que ignorava o fato de ser estritamente proibido levar material impresso de qualquer natureza para o nosso setor sem uma autorização especial das autoridades soviéticas competentes? Num caso como este, talvez mesmo de Moscou... declaro os senhores presos.

A passos de tartaruga o jipe e o caminhão foram obrigados a seguir um soldado armado de fuzil automático que, montado numa bicicleta, nos precedeu rumo ao quartel soviético. Enquanto ficamos esperando, sentados dentro dos nossos veículos, pelos resultados dos telefonemas a respeito, que deviam estar fazendo, lembrei-me, com alguma apreensão, da minha pequena máquina fotográfica, com alguns filmes ainda não revelados, contendo vistas do setor soviético. Caso os russos dessem uma busca em nossa bagagem particular e descobrissem ainda o material fotográfico, talvez nos taxassem de espiões. Enquanto vislumbrava as possibilidades bastante desagradáveis de um incidente diplomático e a perspectiva nada agradável de ficarmos como "hóspedes" de uma prisão militar russa pelo tempo necessário à solução do incidente, Ray, no caminhão parado atrás do meu jipe gritava uma série de impropérios definitivamente impublicáveis contra os soviéticos, o que ainda aumentava mais o meu receio. Felizmente nenhum dos soldados russos que nos rodeavam, parados a uma distância respeitosa, parecia entender inglês.

Depois de aproximadamente duas horas de tensa espera, um tenente acompanhado de quatro soldados armados de fuzis-metralhadora surgiram na entrada principal. Sem proferir uma só palavra, mandou que dois dos militares se instalassem no banco traseiro do jipe e os dois outros compartilhassem o assento largo da cabina do caminhão onde se achava Ray. Apontando para uma motocicleta pilotada por um capitão cujo rosto queimado pelo sol denotava uma expressão severa, mandou-nos segui-lo. A motocicleta, que possuía um pequeno side-car para um passageiro, procedeu-nos com um estrondo infernal, rumo a um destino ignorado. Após uns vinte minutos de viagem a toda a velocidade, entramos numa pequena cidade, onde a motocicleta parou diante de um prédio que abrigava a administração militar da região. Só então o capitão me informou de que eu ia ter uma "conversa particular" com o coronel-comandante. Porém, este se achava ausente no momento e, assim sendo, instalamo-nos em nossos veículos, diante do prédio, para o período de espera.

Durante as três horas que passamos diante da "Kommandatura", travamos excelentes relações de amizade com os militares soviéticos da nossa escolta. O capitão contou-me que perdera cinco irmãos na guerra, assim como toda a sua família. Mostrou-me, detalhadamente, e com aparente orgulho, a sua motocicleta triciclo, realçando o fato de que ela chegava a alcançar 120 quilômetros horários com um consumo de 1 litro de gasolina para 100 quilômetros. A um tenente que se aproximava, também de motocicleta, cedemos algum combustível para o seu veículo.

—Como está a situação aqui? — indaguei — Vocês ainda têm dificuldades com a população civil?

—À noite sempre há tiroteios nas cidades e aldeias — respondeu o tenente. — Recebemos ordens de tratar a população com a máxima delicadeza possível.

Ao deparar com duas moças alemãs que nos observavam da janela da casa em frente, o tenente acrescentou:

—Estamos estritamente proibidos de travar amizade com as moças alemãs, e nos arriscamos, em caso de contravenção, a prisão severa.

A isto, expliquei que também no setor americano existia semelhante ordem de "não-confraternização".

—Há lindas moças na Alemanha... — disse o tenente, como que meditando.

—...e muitos soldados e oficiais na prisão por causa delas — acrescentei.

Um grupo de soldados russos estavam rodeando os nossos dois veículos. Tak, com evidente orgulho, mostrava-lhes o jipe, engatando e desengatando as marchas reduzidas. Ray, entretanto, exibia o seu fuzil, desmontando-o peça por peça.

Um civil alemão, conduzindo alguns embrulhos, aproximou-se, pedindo-me que o levasse "para o outro lado". Ignorando a minha resposta negativa, de que "isto era terminantemente proibido", o alemão, homem de uns 40 anos de idade, insistiu, argumentando que tinha direito de ir aonde quisesse, pois havia passado cinco anos no campo de concentração de Buchenwald.

—Fora, saia daqui! — gritou o capitão soviético.

—Para onde e como? — respondeu o homem — cinco longos anos em Buchenwald... é de desesperar... tenho vontade de me enforcar!

Finalmente chegou o coronel, homem já idoso, de porte e distinção aristocráticos. Ao ouvir as minhas explicações, de que estava distribuindo jornais e revistas aos prisioneiros de guerra franceses no setor soviético, levado unicamente por razões de solidariedade humana, e que ignorava o fato de ser necessária também uma autorização "dos nossos aliados", o coronel sorriu e, meio brincalhão, meio sério, disse:

—Para um homem que fala o russo assim como o senhor, era sua obrigação conhecer os nossos regulamentos um pouco melhor. No entanto, admitindo que somos realmente aliados, por esta vez prefiro fechar os olhos. Podem seguir...

Quando chegamos de volta à ponte de emergência que se estendia através do Rio Mulde na confluência com o Elba, e onde, no lado oposto se achava a "nossa" cidade de Dessau, o mesmo tenente que havia impedido a nossa primeira tentativa de atravessá-la com o caminhão, perguntou a Ray qual era o peso total do veículo, juntamente corn a carga. Antes que ele abrisse a boca para responder, indaguei do oficial soviético:

—Qual o peso máximo permitido na ponte de emergência?

—Cinco toneladas — foi a resposta.

—O caminhão, juntamente com a carga, deve pesar umas cinco toneladas e meia, — disse Ray então, recebendo, a seguir, ordem do tenente para descarregar meia tonelada de jornais e levá-los separadamente no jipe, mesmo que fosse necessária mais de uma viagem, para o outro lado. No entanto, mesmo tendo realizado duas viagens de ida e volta, ainda faltava bastante para reduzir o peso do caminhão ao máximo permitido. E já estava começando a escurecer. Tanto Ray e Tak, quanto eu, estávamos impacientes por voltar para o setor norte-americano, mormente devido à possibilidade ainda de os soviéticos mudarem de opinião e nos deterem por ordem de qualquer general que pudesse surgir de repente. Por outro lado, ao ordenar que o caminhão, sobrecarregado como estava, seguisse por cima daquela frágil ponte eu teria que assumir uma responsabilidade muito grande por qualquer desastre que porventura pudesse resultar do excesso de peso.

—Que tal? — perguntei a Ray.

—Vamo-nos embora! — foi a resposta.

Após mandar Tak com o jipe para a outra margem, tomei assento no caminhão ao lado do motorista, orando silenciosamente para que tudo acabasse bem. Ouvi Ray engatar a primeira, enquanto o caminhão, roncando ferozmente, subia a rampa.

Mal havíamos percorrido alguns metros, senti a traseira do pesado veículo afundar-se, enquanto a frente se levantava num ângulo assustador. Acima do ronco do motor, pude ouvir um grito de espanto que partia da aglomeração de soldados e civis do lado russo, e no qual distintamente se destacavam as palavras: "Estão se afundando! Estão se afundando!"

—Acelere! Acelere! — gritou uma voz que reconheci como sendo a do tenente "implicante".

Ray pisou no acelerador até o fundo, e o caminhão, num esforço violento, conseguiu subir pelas pranchas perigosamente inclinadas, reconquistando momentaneamente o seu equilíbrio. Instantes depois senti que as rodas traseiras do caminhão se afundavam de novo. Umas seis ou sete vezes repetiu-se aquela agonia, enquanto os gritos na margem do rio ressoavam cada vez mais fracos, para finalmente silenciarem de uma vez.

Na sua última arrancada a cabina do veículo enroscou na parte superior do arco de boas vindas que se erguia do outro lado da ponte, já no setor norte-americano.

Tak, que lá esperava ansioso, estava não menos pálido que Ray e eu.

—Não podia imaginar que apenas meia tonelada de sobrecarga quase fizesse ruir a ponte — exclamei. Ao que Ray exclamou, com um sorriso de malícia, passando a mão pela fronte molhada de suor:

—Meia tonelada, coisa nenhuma! — disse ele. — O peso do caminhão e mais o que sobrou da carga de jornais, é pelo menos de dez toneladas, ou seja, o dobro do máximo permitido nessa ponte miserável. Tive que mentir, pois, caso contrário, ainda estaríamos do lado dos "russkiy", talvez desmontando o caminhão para transportá-lo, peça por peça, para o lado de cá...


Capítulo XV
OS CAMPOS DE MORTE DE HITLER

Há um grão de verdade em cada uma das numerosas teorias tentando explicar o surgimento do nazismo — Organismo internacional para impedir crimes de genocídio — Visita ao campo de concentração de Buchenwald — Relato em primeira mão, de como funcionavam as câmaras de gás de Auschwitz.

 

Suponhamos que Hitler tivesse ganho a Segunda Guerra Mundial. Isto não seria nada impossível, pois os cientistas alemães por pouco não conseguiram fabricar a bomba atômica antes dos americanos. E, com Hitler vitorioso, é viável supor que as câmaras de gás de seus campos de morte estivessem ainda hoje em pleno funcionamento. Pode-se imaginar, outrossim, que uma vez esgotado o "combustível judeu", o nazismo teria arranjado outra nação para servir de bode expiatório e ser condenada ao extermínio por aquele processo aparentemente infalível, que eram as câmaras de gás do Führer. O fato de que tamanha monstruosidade pudesse surgir no século XX, é no fundo tão inexplicável como o próprio nascimento do fenômeno nazista em geral. Gabriel Marcel, filósofo francês, explica o surgimento do nazismo como um dos muitos resultados negativos do superdesenvolvimento técnico da nossa era, que mecanizou também as relações humanas, destruindo, entre outros, os sentimentos de responsabilidade do homem para com os seus semelhantes.

Por outro lado, a falecida escritora norueguesa Sigrid Undset, detentora do Prêmio Nobel, numa entrevista concedida ao autor deste livro, em Nova York no ano de 1941, expressou a opinião de que o desenvolvimento do nazismo na Alemanha se devia à loucura coletiva do povo alemão. Sugeriu ela que fossem mandados para a Alemanha após a guerra, milhares de psiquiatras para tentar a cura dos "instintos perversos" daquele povo a fim de prevenir o renascimento do nazismo sob qualquer outra forma no futuro.

Freqüentemente citada também, como uma das principais causas que facilitaram o aparecimento dessa ideologia na Alemanha, é a calamitosa situação econômica daquele país na época imediatamente anterior ao advento de Hitler, e simbolizada por sete milhões de desempregados, ou seja, de acordo com as estatísticas da época, um em cada sete habitantes.

Se o termo "loucura", ventilado por Sigrid Undset pode parecer um tanto violento, é inegável que Hitler — grande psicólogo do "negativo" que era — conseguiu, com a mera força de sua oratória espetacular, obter a vitória do instinto sobre a razão, de um povo inteiro. Isto constitui uma advertência espantosa da sobrevivência, no homem civilizado, de uma perigosa herança animal e da relativa fragilidade e superficialidade da camada de cultura, de que tanto nos orgulhamos ter adquirido com o perpassar dos séculos.

Seja como for, certamente numerosas outras teorias para tentar explicar o complexo fenômeno nazista serão ventiladas com o correr do tempo, podendo-se admitir que talvez haja um grão de verdade em todas elas.

Outro fenômeno que, à primeira vista parece inexplicável, é a falta de resistência e a incapacidade de reagir dos judeus e outras vítimas do nazismo.

Entretanto, a meu ver, não é às vítimas do crime de genocídio desarmadas e paralisadas de terror como estavam, que cabia o dever de reação, mas aos seus irmãos humanos fora do alcance desses carrascos.

Muito se tem falado, e ainda está sendo debatido, o grau de responsabilidade do povo alemão nos crimes cometidos pelos nazistas. Porém, praticamente, pouco ou nada tem sido ventilado sobre a responsabilidade dos povos livres cujos governos, já naquela época, estavam amplamente informados acerca do assassinato em massa praticado pelos nazistas nos seus malfadados campos de concentração.

Colocado assim o problema da responsabilidade em plano mais elevado, pode-se afirmar que não é com vingança, ou seja, acumulando outro crime ao já cometido, que deve ser lavado o rastro de sangue e lágrimas deixado pelo nacional-socialismo, mas com o aperfeiçoamento cada vez mais amplo dos dispositivos legais internacionais. Todo o possível deve ser feito para que estes, futuramente, atinjam uma grande perfeição que permita — não apenas em teoria, mas na prática — uma garantia eficaz, para que sejam plenamente respeitados, por todos os povos do mundo, aqueles tão amplamente proclamados "direitos humanos". Isto, evidentemente, só poderá ser alcançado por meio da existência, no futuro, de um poderoso e eficiente organismo internacional — do qual a ONU é um esperançoso mas ainda tímido precursor.

Tal organismo deve estar plenamente capacitado para agir imediatamente onde se tornar necessário, para impedir por qualquer meio cabível, não somente a realização de crimes de genocídio, mas também de qualquer caso grave de perseguição racial ou religiosa — mesmo que isso signifique interferência direta nos assuntos duma nação. Com efeito, é indispensável que a existência de um eficaz organismo internacional de proteção dos direitos humanos, seja vinculado a um direito internacional de concepção arrojadamente avançada, prevendo, entre outros, a extinção automática da soberania do país que, por fraqueza ou conscientemente, permita que se efetuem no seu território crimes de genocídio ou de perseguição racial ou religiosa.

Esse organismo terá atingido o seu máximo de perfeição quando chegar o dia em que seja capaz de impedir que qualquer ser humano em qualquer lugar do mundo possa ser dominado contra a sua vontade pelo terror exercido por uma minoria armada possuída de instintos criminosos, ou humilhado e perseguido por uma maioria, cega pelo ódio artificialmente criado por líderes inescrupulosos ou enraizado em costumes perigosamente antiquados.

Nada melhor do que uma visita a um campo de morte de Hitler, para demonstrar a que ponto pode chegar uma ditadura, após ter atirado por terra todas as noções de cultura e humanidade.

Eis o que conta o meu "diário de guerra", do dia 17 de maio de 1945:

"Deixamos Bad Nauheim às 14,30 horas. Destino: — o campo de concentração de Buchenwald. Em nosso jipe militar viajávamos eu, o motorista e os capitães do exército francês Delahaye e Péguy. A rodovia de Asfeld a Hersfeld era ótima. Só uma vez encontramos um desvio. À margem da estrada jaziam numerosos veículos destruídos pelos efeitos de balas e obuses. No caminho, em grotescas posições, encontrei quatro tanques norte-americanos. Numa floresta, fazendo uma fila ligeiramente curva, achavam-se os restos retorcidos de dez automóveis militares da Wehrmacht."

Mais expressivo, porém, do que essas testemunhas mudas e imóveis da sorte variável da guerra, era o quadro vivo que observamos durante todo o percurso. Encontrávamo-nos, parecia, no meio de uma verdadeira migração de povos. A estrada inteira achava-se repleta de gente puxando ou empurrando veículos de toda espécie, carregados de malas e outros pertences. Especialmente numerosos eram os carrinhos de bebês, onde se amontoavam embrulhos e malas. Carrinhos e carretas de todos os tipos e formatos. Motocicletas do tipo antigo (as mais modernas, assim como os carros particulares, tinham sido apreendidos pelas autoridades militares alemãs, já no início da guerra), os pneumáticos praticamente no chão devido ao peso exagerado, muitas delas com flâmulas. Bicicletas com enormes malas amarradas dos dois lados, empurradas pelos donos. Mesmo um digno carro fúnebre preto, com uma coroa prateada pintada ao lado, não escapara à obsessão locomotriz do povo alemão: cheio de bagagens variadíssimas e de gente, avançava no seu ritmo lento, característico. Aquela devia ser uma das raras vezes em que os ocupantes de um carro fúnebre deviam estar contentes. De fato, pareciam todos satisfeitíssimos pela sorte de poderem escapar rumo a oeste, antes que os russos invadissem a região. Era esta a razão principal da desesperada pressa de toda aquela gente, que temporariamente converteu a Alemanha num país de nômades: o medo dos russos, que estavam chegando. Medo mais forte que o amor à cidade ou aldeia natal. Eis porque até mulheres e crianças não hesitaram em empreender a longa caminhada, enfrentando as intempéries, a fadiga e um futuro incerto. Vestiam, principalmente, calças compridas, tipo rancheiro. Algumas sorriam; porém, a expressão predominante nos rostos queimados pelo sol, era de séria compenetração.

De longe, destacavam-se alguns carrinhos estrangeiros, marcados pelas respectivas bandeiras. Pertenciam a operários do trabalho forçado, trazidos pelos alemães dos países mais distantes, para ajudar na movimentação da enorme máquina industrial nazista, e que agora procuravam alcançar a pátria por seus próprios meios, sem a passagem enfadonha pelos campos de reagrupamento, onde normalmente deviam aguardar a repatriação. Era irônico vê-los ali no meio da multidão alemã. Donos e escravos, unidos na mesma miséria.

Os franceses, atraídos pelo quepe vermelho e bordado a ouro, do idoso Cap. Delahaye, acenavam alegremente. Este ocupava o banco da frente para, de vez em quando, apontar seu fuzil para alguma nuvem passageira, porém sem atirar.

Crianças louras, postadas à beira da estrada, acenavam. Algumas faziam o sinal vitorioso de Churchill, o "V" com os dedos. Outras mostravam papéis de balas como se quisessem explicar que a provisão se esgotara e que necessitavam de mais...

Já anoitecia quando chegamos à cidade de Eisenach, onde decidi passarmos a noite. Pernoitamos no Hotel Thueringer Hof, ocupando eu o quarto 44. Não tive sorte. O meu vizinho era um oficial, possuidor de uma rádio-vitrola, e aficionado da canção "Parlez-moi d'amour", que ele tocava à toda, sem parar. Não conseguindo dormir, decidi descer ao saguão, onde travei conhecimento com um oficial belga que perdera dois membros de sua família em Buchenwald, As esposas das vítimas, que viviam na Bélgica, alimentavam a certeza de que elas passavam muito bem. Pelo menos assim o diziam as cartas breves que recebiam do campo de concentração. O oficial belga falou-me também da fábrica de foguetes V-2, a mal afamada "Dora" que era subterrânea, e onde muitos judeus tinham sido empregados nos trabalhos mais penosos. Havia lá um túnel com vários guindastes. Às vezes, quando os guardas SS estavam ávidos de um divertimento diferente, mandavam esticar uma travessa de aço entre as pontas dos dois guindastes. Dependuradas nas travessas, achavam-se trinta cordas com os respectivos laços, onde trinta vítimas escolhidas tinham de enfiar suas cabeças. Então, aos sons alegres de uma valsa de Strauss, apertava-se um botão. Os dois guindastes levantavam-se juntos, carregando entre eles os corpos bamboleantes de trinta enforcados.

Ao sair do hotel no dia seguinte para tomar assento no jipe, um garôto alemão aproximou-se de mim, e em voz baixa, disse:

—Agora mesmo observei um nazista esconder uma pistola embaixo de um arbusto.

Dirigi-me com ele até uma pracinha em frente ao hotel e, de fato, bem escondida entre a folhagem, encontramos uma pistola Luger do ano de 1916; embora velha, achava-se em perfeito estado — o cano e o resto do mecanismo cuidadosamente lubrificados, juntamente com umas duas dúzias de balas.

Devido à minha condição de oficial "assimilado", não me era permitido portar armas. Assim sendo, nem eu e nem os meus colegas podíamos obter o regulamentar Colt-45, do arsenal do exército, o que nos obrigava ao expediente de "liberar" pistolas alemãs, assim que se apresentasse ocasião. Tínhamos, outrossim, tentado repetidas vezes conseguir permissão das altas autoridades militares norte-americanas, para andar armados, devido ao constante perigo que representavam os franco-atiradores. No entanto, apesar dos esforços renhidos feitos neste sentido pelo nosso Cel. Powell, a resposta era sempre negativa, pois andar armado significaria infringir as disposições internacionais. Confesso, porém, que apesar de tudo, sempre conduzi uma pistola, assim como uma boa quantidade de balas no coldre, sem que jamais ouvisse uma observação dos meus superiores, que preferiam "fechar os olhos" a respeito.

Logo depois de ter encontrado a Luger, deixamos Eisenach, rumo a Weimar, cidade que tínhamos de atravessar, antes de chegarmos a Buchenwald. Constitui mais uma das estranhas ironias freqüentes no decorrer da Segunda Guerra Mundial, o fato de que o campo de concentração de Buchenwald se achasse localizado apenas a uns quinze quilômetros do perímetro urbano da famosa cidade de Weimar, considerada outrora o centro do liberalismo na Alemanha. O gênio de Johann Wolfgang von Goethe, super-gigante da literatura alemã, lá passou o meio século mais frutífero de sua brilhante existência — de 1782 a 1832. O não menos genial poeta e dramaturgo Friedrich von Schiller morava em Weimar e lá, jovem ainda, morreu. A "avant-premiere" de numerosas óperas do célebre compositor Richard Wagner, "aconteceu" em Weimar.

É lícito supor que, tanto Goethe como Schiller, repousando lado a lado no jazigo dos Grão-duques de Saxônia-Weimar, no cemitério da cidade, se tenham revirado mais de uma vez em suas sepulturas, ultrajados por mais este desafio de Hitler, em escolher justamente as vizinhanças de "sua" cidade para erguer um dos mais mortíferos campos de concentração da Alemanha nazista.

Alcançamos Buchenwald antes do meio-dia de 18 de maio de 1945. Fazendo jus ao seu nome de "Buchenwald" — o que traduzido para o português significa floresta de faias — o temível campo de concentração achava-se rodeado de uma grande quantidade daquelas formosas árvores. Formava um contraste chocante com o sol primaveril que iluminava as suas cercanias verdejantes. A entrada era constituída por uma imensa torre quadrangular, de cor cinza, em cujo topo, ainda há pouco tempo, se achavam os temidos guardas SS com as suas metralhadoras. Agora, o que restava eram apenas as armações dessas armas e vários poderosos alto-falantes. Uma alta cerca de arame rodeava o campo. A fila interminável de seus murões de cimento armado, com a sua beirada superior dobrada para dentro, tinha um aspecto sinistramente elegante. Ao longo dessa barreira de arame farpado, outrora carregada de eletricidade, estavam grandes quebra-luzes de cor preta dirigindo para baixo a luz dos holofotes.

Aproximadamente a cada 100 metros havia torres menores, de cor cinza, como a torre gigante da entrada. Da torre principal avistava-se todo o campo: na frente, uma extensa praça cimentada, na qual se achavam, na ocasião, numerosos ônibus estacionados, com a cruz vermelha pintada nos pára-lamas. Também se viam as ruínas da antiga fábrica de peças de avião, onde muitos dos encarcerados foram obrigados a trabalhar. Marginando a praça cimentada, do lado direito e esquerdo apareciam os barracões dos presos, de cor roxo-avermelhada. Bem ao fundo, à direita, um pequeno prédio igualmente cinzento, com uma chaminé quadrangular de tijolos e degraus de ferro encravados ao lado: era o crematório.

Um garotinho de cabeça raspada, calças curtas feitas de tecido grosseiro, veio ao meu encontro. Olhou silenciosamente para a minha farda de oficial, de alto a baixo como se quisesse certificar-se de que não se tratava de um sonho. Com certeza ele já tinha visto outros uniformes norte-americanos, pertencentes àqueles soldados que haviam libertado Buchenwald. No entanto, continuando a permanecer ali, juntamente com mais umas 4.000 crianças, cada farda americana que aparecia era devorada com os olhos e admirada com uma incredulidade ingênua, num misto de lágrimas e de riso.

Encorajado pelo meu sorriso, o menino tornou uma das minhas mãos e, ainda em silêncio, começou a acariciá-la vagarosamente.

—Que idade tens? — perguntei, sentindo um nó na garganta.

—Dez anos.

—Quantos anos passaste no campo?

—Quatro... de um para o outro...

—O que fizeste lá?

—Trabalhei.

—Onde?

—Na fábrica de munições.

—Onde se encontra teu pai?

—Aqui.

—E tua mãe?

Houve um momento de hesitação.

—No crematório...

Alguns outros garotos tinham respostas quase idênticas. Haviam passado vários anos em diversos campos de concentração, o que na sua tenra idade representava pelo menos a metade de sua existência. Os pais de alguns ainda estavam vivos. As mães, invariavelmente, no crematório.

Nosso guia encarregado de nos mostrar o campo era um francês que ali havia passado muitos anos e conhecia todos os recantos. Entre os visitantes, havia soldados norte-americanos e um grupo de civis alemães. Encontramos esses alemães no laboratório, um pequeno cômodo forrado até o teto, com azulejos brancos. Um dos guias estava contando a prática dos médicos da SS em usar os internados do campo como cobaias humanas para uma grande diversidade de experiências "científicas", especialmente para injeções do vírus do tifo para obtenção, à custa dessas vítimas, de soro antitífico para as tropas alemãs.

—Será que isto aconteceu mesmo? — exclamou em tom incrédulo uma moça loura, de nacionalidade alemã.

Foi também no laboratório de Buchenwald que um médico SS, usando um dos prisioneiros como cobaia, descobriu ser possível puxar o olho humano a um distância de 1,80 m do corpo até ser arrancado definitivamente.

No pátio, em caminho para o crematório, passamos por uma armação simples de madeira, com quatro ganchos: a forca.

O edifício do crematório era de um só andar, ainda de cor cinzenta, com o teto roxo avermelhado. Do lado de fora achavam-se dependuradas duas coroas de flores murchas, uma delas enfeitada com uma fita nas cores da bandeira polonesa. Encostadas à porta de entrada, duas macas de ferro, enferrujadas e luvas sem dedos, sujas.

Um pequeno cômodo situado nesse mesmo edifício servia de "sala de estar" para os SS, onde eles costumavam ficar sentados ao redor de uma mesa. Ao chegar um prisioneiro condenado à morte, usavam convidá-lo para uma partida de baralho. Conforme o número de pontos que fizesse no jogo, podia ganhar apenas a permissão de escolher uma das seguintes modalidades de execução: 1) injeção letal aplicada pela própria vítima; 2) ingerir cianeto de cáli; 3) enforcado; 4) ser amarrado à cerca e chicoteado até à morte.

O imenso forno principal do crematório era de formato retangular e construído de tijolos. Numa das suas paredes lia-se em letras pretas: Betriebsvorschrift des koksbeheizten Topf-Dreimuffel Einäscherungsofens(33). Havia quatro bocas de forno. Em cada uma delas desembocava, num trilho, uma maca de ferro (agora toda enferrujada), que deslizava sobre rodas de aço lustrosas pelo atrito. O guia francês retirou uma das macas do forno e em seguida empurrou-a de novo para dentro. Em geral vinham três corpos em cada maca. A maioria dos cadáveres raquíticos eram tão leves que um guarda podia facilmente levantar um em cada mão, atirando dois dos corpos enrijecidos de uma vez, na maca. Esta era empurrada para dentro da boca do forno, exatamente como o nosso guia demonstrava.

—Eis o resultado — disse ele, levantando um pequeno pote de metal enferrujado, de aproximadamente um litro. Estava repleto, até à boca, de ínfimas lasquinhas de ossos, de cor branca ou amarelada. Alguns pedacinhos eram levemente porosos. — Isto — continuou o guia — era, uma vez, duas pessoas...

Um grupo de soldados norte-americanos entrou na sala. Um ex-prisioneiro, de rosto pálido, magro, pegou o pote com os ossos, sentou-se perto da boca do forno e, segurando-o com as mãos, deixou-se fotografar.

Visitamos também o "pequeno acampamento" (Das kleine Lager), que servia de prisão para os chamados "inúteis" (Nutzlose). Moravam eles em compridas barracas de madeira, contendo, ao invés de camas, ásperas tábuas formando quatro divisões, umas por cima das outras e separadas por vigas de madeira. Cada "andar" tinha mais ou menos 50 cm de altura, abrigando dezesseis homens literalmente amontoados. Um mau cheiro nauseabundo pairava no local. A privada era um rústico bloco de cimento, que ainda exalava um forte cheiro de excrementos. Os homens do "pequeno acampamento" passavam os dias num estado de fome contínua. Emagrecidos até aos ossos, pareciam esqueletos ambulantes. Corriam, empurrando-se uns aos outros, no seu curral de arame farpado, como um rebanho miserável, choramingando para os "privilegiados" do "grande acampamento": "pão... pão... por favor, um pedacinho de pão..." Estavam tão fracos que um simples esbarro seria suficiente para derrubá-los.

Em todas as dependências do campo, tanto por dentro como por fora, encontramos grupos de ex-prisioneiros que por lá ainda permaneciam, aguardando a repatriação.

Trajavam calças listradas de azul marinho e branco. Alguns vestiam paletós enfeitados com um pano triangular de cor vermelha, no meio do qual se achava uma letra preta, indicativa do país de origem do portador: F, significando França, por exemplo. Esse distintivo era reservado aos presos políticos que gozavam de certos privilégios.

No dia seguinte, encontrei na cidade de Weimar, onde havia decidido permanecer por mais algum tempo, um número apreciável de ex-cativos de Buchenwald. Estes, conforme eu soube, costumavam agora vir constantemente àquela cidade vizinha onde, ostentando os seus trajes listrados de ex-prisioneiros, perambulavam em atitudes provocantes no meio da população civil alemã.

Encontrei alguns deles também no "Residenzkaffee", o salão de chá mais elegante de Weimar, onde a sua presença criava um visível embaraço no meio dos bem vestidos freqüentadores alemães. Foi no "Residenzkaffee" que travei conhecimento com um engenheiro alemão que durante a guerra estivera encarregado de algumas obras de construção, localizadas nas proximidades de um campo de execução em massa de judeus. Contou-me que certa vez observara um soldado SS armado de um fuzil-metralhadora sentado diante da imensa valeta para onde estavam sendo levadas centenas de judeus para serem mortos a tiros. Uma velha avó, aparentemente enlouquecida, levando o seu netinho pela mão, cantava e dançava ao ser empurrada rumo à valeta. — "Coloquem um pano na cabeça da velha" — gritou o guarda SS aos seus colegas que, às gargalhadas, executaram o pedido. Tanto a velha senhora como todos os que eram conduzidos foram obrigados a se despir e, a chicotadas, forçados a pisar por cima dos cadáveres dos que os haviam precedido naquela última caminhada.

No dia seguinte o engenheiro alemão notou alguns feridos arrastando-se para fora do monte ensangüentado de mortos. Entre eles havia uma moça, jovem e bonita. À indagação do engenheiro, se podia fazer algo para ajudá-la, respondeu ela: "Caso o senhor possa me conseguir umas roupas para me vestir, eu talvez tenha alguma possibilidade de escapar... mas assim... nua, é impossível... prefiro voltar e morrer." Neste instante chegou o guarda SS e mandou o engenheiro embora. Logo depois ouvia-se um disparo.

Weimar sofrera alguns danos causados pelos bombardeios aéreos, especialmente o centro, bastante danificado por dois ataques maciços no mês de abril, um pouco antes das tropas norte-americanas entrarem na cidade. Diante da Câmara Municipal ainda intacta, vi um amontoado de destroços, entre os quais uma bandeira amassada, cordas metálicas de um piano, partes de um fogão e colchões sujos, de cor avermelhada, tudo isto cercado por montes de pedaços de ferro enferrujados e retorcidos, assim como tijolos quebrados.

Alguns dias mais tarde, também em Weimar, cheguei a conhecer um moço de nome Israel e fui um dos primeiros a receber um relato autêntico das famigeradas câmaras de gás de Auschwitz.

Conheci-o por acaso. Achava-me naquele dia, 22 de maio de 1945, na sala de espera do Governo Militar de Weimar aguardando um tenente norte-americano para discutir com ele um assunto de ligação. Para me distrair, fiquei observando as demais pessoas presentes, notando com especial interesse um homem ainda moço, em trajes civis, que conversava em alemão com outro civil.

Aquele que chamara minha atenção estava vestido com um terno novo de cor verde, vendo-se por cima do bolso esquerdo superior do paletó mal assentado, um pedaço de fazenda cinza, com um algarismo bastante comprido. O pano estava bem gasto e as cifras, um tanto apagadas. Porém o homem carregava aquele modesto trapo com evidente orgulho, como se fosse uma preciosa condecoração de guerra. No braço esquerdo, uma braçadeira rudemente confeccionada, trazendo em letras vermelhas a palavra: "Buchenwald".

O cabelo castanho de sua cabeça raspada estava começando a nascer outra vez, mas ainda não chegara o ponto de poder ser penteado. O rosto era magro e um pouco queimado pelo sol. Em cima do nariz proeminente, agressivamente curvado, um par de óculos, de formato antigo. Os olhos castanhos brilhavam intensamente, indicando vivacidade e inteligência e um "quê" de fanatismo. A impressão que transmitia era a de um gerente de loja algo ambicioso, ou de um estudante. Não se passou muito tempo e lá estava eu conversando com o moço do terno verde.

—Polônia? — indaguei apontando para o triângulo vermelho com o "P"' preto no meio, que ele trazia também costurado no paletó.

—Sim.

—Quanto tempo permaneceu em Buchenwald?

—Apenas quatro semanas... sou de Auschwitz.

Com isso, ele arregaçou a manga do braço direito, onde se achava tatuado em cifras pequenas e azuladas, o número 137486.

—Tenho um número muito baixo — explicou o moço — Não há muitos sobreviventes na categoria da primeira centena de milhar. No ano passado a numeração já havia passado o milhão e tinham iniciado a série "B".

—Como escapou à morte?

—Trabalhei no crematório. Simples golpe de sorte.

—Que fazia lá?

—Queimava os corpos que saíam das câmaras de gás.

—Você, um judeu, queimando judeus?

O moço de terno verde encolheu os ombros.

—Que é que o senhor quer? Era assim. Ou obedecíamos ou éramos castigados pelos guardas SS. Era executar a tarefa ou morrer. Se o senhor quiser, pode visitar-me hoje à noite, no meu quarto, caso esteja interessado em ouvir os detalhes.

Francamente, eu não estava com muita vontade. Já vira e ouvira tantos horrores! Mas não podia perder a oportunidade de registrar aquele testemunho de primeira mão sobre as câmara de gás de Auschwitz.

À noite, logo depois do jantar, dirigi-me para a Praça Wieland (Wielandsplatz). Um guarda alemão me fez continência e, vendo-me espreitar o número de uma das casas escondidas na escuridão, ofereceu-se para ajudar-me. Não havia necessidade. Achava-me em frente do prédio que procurava. A porta estava aberta. Como não tinha o farolete, foi a custo de vários tropeções que subi a escada curva e estreita que dava acesso a um cômodo do primeiro andar, onde Israel já se achava à minha espera.

—Atrasou-se um bocado — notou um pouco irônico, apontando para um relógio-cuco dependurado numa das paredes do quarto. Ele mudara de traje e estava agora com um par de botas pretas, imaculadamente polidas, à moda dos SS e vestia calças militares alemãs, de cor verde, tudo novo em folha.

A sala onde nos encontrávamos era tipicamente burguesa, limpa, com algumas porcelanas e um rádio. Tirando o bloco de papel que levara comigo, logo me atirei à tarefa de anotar as declarações de Israel. Escrevi febrilmente como um alucinado. Às vezes, parava por alguns instantes para fazer perguntas ou pedir-lhe para soletrar um nome ou repetir algum detalhe que me tivesse escapado.

Por sua vez, Israel, também de vez em quando, interrompia a narrativa. Era com o intuito de acender um cigarro ou preparar uma xícara de café. Ambos com rótulos norte-americanos. Ofereceu-me café, porém alguma relutância estranha me impedia de tomá-lo. Minha xícara grande, branca, exalando um cheiro revigorante, permaneceu cheia até o fim. Unicamente para não ofendê-lo, eu fazia de vez em quando um gesto de que ia tomar um gole ou dois, mas com uma sensação de repugnância e náusea.

O meu interlocutor tão amável pertencera, até alguns meses atrás, a uma turma do chamado "comando especial" do campo de concentração de Auschwitz, Ele e mais 21 companheiros, trabalhando dois a dois, eram encarregados de colocarem os cadáveres vindos das câmaras de gás nos carrinhos-macas de ferro — três corpos em cada carrinho — empurrá-los ao longo dos trilhos que conduziam ao crematório, e lá despejar a carga humana nas bocas ávidas do forno, onde ardia um fogo feroz e implacável.

Havia outras turmas englobadas no "comando especial", dedicados todos à execução de uma série de tarefas macabras, entre os quais o "dentista" para arrancar os dentes de ouro dos cadáveres e o "homem dos anéis", encarregado de retirar alianças e anéis dos dedos gelados e rígidos, o qual, com a pressa, freqüentemente cortava o dedo inteiro.

As diferentes turmas do "comando especial", perfazendo um total de 200 homens só podiam penetrar nas câmaras de gás onde jazia o amontoado de cadáveres, após expelido o ar envenenado pelo gás letal, por meio de possantes ventiladores. Quando estes paravam e o ar se purificava, então Israel se aproximava da porta da câmara. Era a de número 2, uma das mais antigas, e na forma de uma comprida garagem. As câmaras de gás eram construções estreitas, alongadas, da altura de um homem, com capacidade para dois ou três mil corpos humanos cada. Havia quatro, no campo de concentração de Auschwitz. As de número 1 e 2 eram modelos antiquados, construídas na superfície. As de números 3 e 4 eram mais modernas, subterrâneas, com uma pista inclinada de cimento levando à entrada. Eram também maiores. O interior de todas elas pintado de branco. Como as emanações de gás logo amarelavam as paredes, renovava-se a pintura a intervalos regulares.

Impelidas por golpes e invectivas dos guardas SS, as vítimas — homens, mulheres e crianças — se precipitavam, numa corrida frenética, rumo ao portão aberto da câmara. Os que vinham diretamente do trem de transporte e ainda se achavam vestidos, recebiam ordem de se despirem e empilhar as vestes ao seu lado, no chão cimentado e frio.

O pretexto para esta formalidade (que aliás apresentava certa utilidade prática, por permitir que os gases agissem ao mesmo tempo como desinfetante das roupas) era o de que iam tomar um banho de chuveiro. Com o cúmulo do cinismo, alguns até recebiam toalhas. Mas só muito poucos foram enganados. — É impossível — disse Israel — descrever a triste agonia daquela massa humana que, em pranto e aos gritos, era engolida pelas câmaras de gás.

Uma vez repletas as câmaras, ressoava a ordem que mandava os componentes dos diferentes "esquadrões", do "comando especial" — que, conforme contara Israel, executavam toda uma série de "tarefas auxiliares" também dentro das câmaras — a deixarem o recinto: "Häftlinge raus" (Prisioneiros, para fora).

Incontinente, os pesados portões eram hermeticamente fechados com enormes parafusos, apagando-se automaticamente as luzes dentro do recinto. Em cada uma havia um postigo, que nas câmaras antigas se achava de lado e nas modernas subterrâneas, em cima. Uma vez fechados os portões, um guarda SS colocado junto aos postigos apanhava uma caixa de uns cinqüenta centímetros de comprimento, cheia de grãos cinzentos, arredondados e marcados com uma caveira branca e a palavra "gás". Assemelhando-se no aspecto geral a uma caixa de bombons, continha aproximadamente 5 quilos da substância letal — o suficiente para matar a lotação inteira de uma câmara, ou seja, um total de duas a três mil pessoas.

Entrementes, o aquecimento era aberto a todo o vapor, desenvolvendo um calor intenso para facilitar "a expansão rápida dos gases". Rapidez deliberadamente estudada e executada, não com a finalidade de abreviar o sofrimento das vítimas, mas para poder matar o maior número de pessoas no menor espaço de tempo, o que aumentava a eficiência daquela diabólica linha de montagem da morte.

Então, abrindo o postigo, num gesto rápido e preciso, o guarda atirava a caixinha para dentro do compartimento, fechando-o imediatamente depois. Porém esse curto intervalo era suficiente para deixar passar o grito aterrorizado dos condenados à morte.

—Nunca — disse Israel — poderei esquecer aquele terrível grito coletivo de morte. Seu som agudo me perseguiu durante semanas e semanas. Várias vezes tive intenção de me suicidar.

Uma vez limpa a câmara pelos possantes ventiladores começava a verdadeira tarefa de Israel, isto é, o transporte dos mortos para os fornos crematórios. As vezes pegava-os pelas pernas, outras vezes pela cabeça. Era como vinham. O companheiro ajudando. O guarda SS berrando, fazendo voar o cassetete: "Depressa! Depressa, porcos!"

Da fronte de Israel, o suor escorria em gotas grossas e frias enquanto pegava os corpos, balançando-os sempre da mesma maneira: um de cada lado, o terceiro em cima, no carrinho-maca. Corpos de velhos, corpos emagrecidos pela fome, corpos de mulheres jovens, de mulheres velhas, de crianças. Milhares de corpos. A expressão, na maioria dos rostos, era de serenidade. Alguns tinham as bocas abertas como num último brado de terror.

Israel já tinha visto muitos rostos. De fato, fazia questão de sempre lançar um olhar rápido na face pertencente ao corpo que manejava, antes de atirá-lo no carrinho. Questão de hábito. Um ritual automático, que lhe permitia saber se a vítima seria, por acaso, de sua cidade natal. Realmente, já queimara muitos habitantes de Radom, a cidade onde nascera. O alfaiate Wichszniansky, por exemplo, com as suas sobrancelhas brancas e espessas; a senhora Ljublyanskaya, esposa do fabricante de tecidos que, por incrível que pareça, escapara com o seu brilhante "solitário" intacto; os seus dois primos.

Ele ainda podia lembrar-se das perguntas ansiosas no dia em que haviam chegado a Auschwitz: "Será verdade que vamos ser queimados? Será verdade mesmo que nos trouxeram para cá para sermos exterminados?"

Israel nunca lhes dissera a verdade. Em primeiro lugar: era estritamente proibido relatar o que estava acontecendo em Auschwitz; em segundo: para quê? Pensando bem, era talvez melhor que as vítimas permanecessem na ignorância de seu triste destino. Assim, procurando acalmá-los, ele costumava dizer: "Olhem para mim. Vocês sabem há quanto tempo estou aqui e podem ver que estou bem vivo. Vocês também têm probabilidade de sobreviver... " E nos olhos deles se acendia a chama de uma nova esperança.

—Estranho — disse Israel — com que felicidade revive a esperança, mesmo naqueles que esperam a morte certa. Não há pessoa mais crédula do que um homem condenado. Um dia, — murmurou ele — acabava de pegar pelos pés uma velha mulher, olhando como de costume para o seu rosto, ao atirá-la na carreta. E o meu coração quase parou. Era minha mãe.

Agarrou os pés de sua mãe como se estivesse fazendo um esforço inútil para segurá-la. No mesmo instante sentiu o golpe feroz do cassetete do guarda SS, quase desfalecendo de dor: "Depressa, cachorro! Depressa, depressa, porco imundo!

"Agora, o corpo da mãe de Israel se encontrava dentro do carrinho de ferro. Os vinte metros que separavam do forno crematório pareciam uma distância sem fim. Ele o empurrava. Não podia tirar os olhos do rosto azul e inchado. Mesmo na agonia da morte, era o rosto familiar que tão bem conhecia: os olhos castanhos abertos, a bem-amada face enrugada por anos e anos de trabalho e sofrimentos. Sua mãe. A querida mãezinha. E ele não estava ficando louco! E ele não estava chorando! A passos mudos e cansados estava correndo ao lado do carrinho de ferro que avançava inexoravelmente em direção ao forno crematório...

Levava de doze a quatorze horas o trabalho de queimar de dois a três mil corpos, o "carregamento" de uma câmara de gás.

—A cremação — explicou Israel — processava-se rápida. Corpos humanos ardem sozinhos. Os de mais fácil combustão eram os corpos relativamente bem nutridos das vítimas que vinham diretamente dos trens de fora. E também os de crianças. Os que demoravam a consumir-se e exigiam bastante carvão, eram os corpos magros dos prisioneiros de Auschwitz.

Demorava aproximadamente uma hora reduzir a cinzas os três corpos que perfaziam o carregamento do carrinho de ferro. Quanto aos cacos de ossos, "produto final" da queima, eram puxados com uma pá de ferro e usados para encher buracos dos caminhos em volta do crematório. Israel ignorava se eram usados também como fertilizantes das terras de Auschwitz, conforme corriam boatos.

—Gente que arde — explicou ele — não expele fumaça. Era uma chama avermelhada, saindo dia e noite da chaminé do crematório, que indicava o sinistro trabalho. E o cheiro horrível, insuportável, de carne e ossos queimados.

O caminho para as câmaras de gás do campo de concentração de Auschwitz, localizado no extremo sudoeste da Polônia, perto da fronteira alemã na cidadezinha de Oswiecim (em alemão, Auschwitz) principiava na estação da estrada de ferro, onde se efetuava uma espécie de triagem preliminar. Seleção fria, realizada com tão eficaz objetividade, como se fosse um lote de gado destinado ao corte. As vítimas em potencial chegavam de várias partes da Europa, encurraladas em vagões de carga. Prensados uns contra os outros, pisados, quase asfixiados pela longa viagem no escuro, vagamente sentiam o trem penetrar na estação. Podiam perceber, se ainda eram capazes de algum raciocínio, que a locomotiva executava uma manobra. Não podiam porém saber que o trilho especial pelo qual agora rodava lentamente o trem da morte, estava conduzindo diretamente às câmaras de gás.

Esperava-os a "comissão de seleção", composta de alguns guardas SS e o temido Schillinger, acompanhado do médico do campo de Auschwitz, Dr. Senker, ambos trajando o uniforme preto da SS. Caso não houvesse necessidade de trabalhadores, todos os componentes da miserável massa humana, a qual se aglomerava no pátio da estação improvisada, automaticamente seguiam para as câmaras de gás. Caso contrário, uns duzentos homens de aparência robusta eram separados para serem distribuídos nos diversos setores do campo, onde havia escassez de mão de obra.

Porém, o mero fato de ser admitido não significava que o espectro ameaçador da câmara de gás estivesse definitivamente afastado. Havia ainda as "seleções mensais" dentro do próprio campo, que se iniciavam com a chamada "Blocksperre" (proibição de deixar as quadras formadas pelas barracas onde se achavam os presos).

No dia da "Blocksperre", a vigilância dos SS era redobrada. Caminhando de barraca em barraca, a sinistra figura do Dr. Senker se postava nas entradas, obrigando todo mundo a desfilar diante dele. Todos despidos, eram obrigados a mostrar a língua e dar uma volta. A menor mancha vermelha no corpo, o menor sinal de doença ou mesmo de fraqueza... e a voz seca do doutor ressoava: "Para a esquerda".

Era a condenação à câmara de gás. "À direita" significava a salvação temporária. Que alívio sentiam aqueles que ouviam estas palavras! Ser posto do lado esquerdo, no entanto, era a morte. O escolhido (homem ou mulher) era obrigado a entregar o cartão de identificação e seu número anotado. Não havia nenhuma reação violenta por parte das vítimas. O negócio era uma espécie de triste rotina. Apático, quase resignado, o escolhido falava: "Acabei de ser anotado".

Uma vez condenados à morte, os infelizes eram entulhados em barracas especiais. Ali, os seus corpos nus esperavam a hora de serem levados para as câmaras. Dez cercas concêntricas de arame farpado carregado de eletricidade, assim como numerosas torres de observação guarnecidas de metralhadoras e possantes holofotes, impossibilitavam qualquer tentativa de fuga ao destino implacável que esperava os condenados, os quais começavam então a sentir todo o desespero da situação. Entreolhando-se, os presos murmuravam: "Estamos todos perdidos".

A nudez e a miséria já de há muito tinham apagado as diferenças profissionais e de classe. Haviam chegado todos ao único e último denominador. Esqueciam que outrora tinham sido médicos, professores, comerciantes, industriais, sapateiros, alfaiates, operários. Só sabiam que iam morrer pelo "crime" único de serem judeus. Alguns invocavam o nome de Deus e outros resmungavam: "Eu vou resistir. Eles não me deterão. Hei de fugir!"

De fato, como por milagre, alguns conseguiam iludir a vigilância dos guardas SS e escapar até à cerca de arame farpado. Atirando os corpos nus contra as pontas afiadas, carregadas de alta tensão, morriam eletrocutados.

Então, uma noite, apareciam os caminhões. Cem pessoas eram empilhadas em cada veículo. Se eram capazes de se movimentar, tinham de entrar correndo. Caso contrário, eram agarradas pelos pés e pela cabeça raspada, e atirados dentro do caminhão que as levava para a morte.

Foram três os principais grupos de vítimas que morreram nas câmaras de gás de Auschwitz: os componentes da malograda revolta dos judeus de Varsóvia; judeus húngaros e de outros países, e doze mil ciganos. Os últimos se achavam localizados num campo vizinho, onde tinham permanecido durante quatro anos e meio quando, de repente, chegou a ordem de exterminá-los. Ao receberem a notícia, um impressionante grito se levantou do acampamento, perdurando toda a noite e impedindo o sono dos demais prisioneiros de Auschwitz. Era inútil. Foram exterminados naquela mesma noite todos os ciganos.

Assim funcionavam as câmaras de gás de Adolph Hitler em Auschwitz.(34) Antes de se retirarem, os alemães as minaram e as fizeram voar pelos ares.

Eram quase três horas da madrugada quando deixei o quarto de Israel. Depois da atmosfera carregada de fumaça dos cigarros e dos vapores de café, o ar fresco da noite primaveril de Weimar foi um tônico revigorador mais do que bem-vindo.

O eco dos meus passos nas ruas desertas da cidade de Goethe ressoava estranhamente barulhento. Dirigindo meu olhar para o céu coberto de estrelas, e contemplando os prédios sombrios da cidade adormecida, eu me perguntei:

"Não teria sido apenas um pesadelo tudo isto que acabei de ouvir?"

Mas, ali mesmo, no bolso da minha farda, pude apalpar o maço de páginas que continham as minhas anotações do relato estarrecedor do ex-componente do "comando especial" de Auschwitz. Senti-me cansado e acabrunhado.

Naquela madrugada, em Weimar, enquanto perambulava pelas ruas solitárias da cidade, vislumbrei a idéia do erguimento, em cada país do mundo, em lugar proeminente, de um monumento dedicado "ao anônimo prisioneiro dos campos de concentração", semelhante ao túmulo do "Soldat Inconnu" em Paris, dedicado aos soldados mortos durante a Primeira Guerra Mundial.

Hoje, no entanto, parece-me que talvez a melhor maneira de honrar a memória daqueles que tiveram morte tão infame, seria o nascimento, em cada um de nós, de uma centelha de responsabilidade pelo ocorrido.

Só assim poderemos ter a esperança de que a humanidade nunca mais será degradada por outro "retorno à Idade Média", e que os horrores relatados nestas páginas jamais se repetirão.

 

FIM


NOTAS

1. Office of Strategic Services.

2. Office of War Information.

3. Condecoração outorgada por serviços notáveis no setor da aviação de guerra.

4. Alcunha dos soldados alemães na Inglaterra.

5. Referência jocosa às Fortalezas Voadoras.

6. "Onde está a Força Aérea Alemã?"

7. Moeda norte-americana de cinco centavos, representando, assim, algo de pouco valor.

8. "Minha honra se chama fidelidade".

9. "Condutos voadores de gás".

10. "Armas de represália".

11. A chamada Muralha Ocidental, linha principal de fortificações construída por Hitler.

12. A princípio, obrigatoriamente usada pelos membros do partido nazista e depois, paulatinamente também introduzida nas Forças Armadas.

13. Psychological Warfare Department.

14. Supreme Headquarters Allied Expeditionary Force.

15. Basic Training Company 9.

16. Boina.

17. Forces Françaises Intérieures.

18. Termo pejorativo para designar os soldados alemães, e usado pelos norte-americanos e ingleses; derivado da palavra alemã Sauerkraut cujo sentido é chucrute.

19. "Nós queremos permanecer o que somos".

20. "Tudo passa, tudo se vai: em novembro e dezembro não haverá mais nenhum prussiano aqui."

21. Pátria querida, fica sossegada
Pois, firme e fiel está postada
A guarda do Reno.

22. "Soldado americano morto no sótão". As iniciais G. I. significam "Government Issue", isto é, suprimento de uniformes pelo governo e, por analogia, o próprio soldado.

23. Bund Deutscher Mädel — "União de Moças Alemãs."

24. "Atenção, o inimigo atira com precisão".

25. Hitler-Jugend — "Juventude Hitlerista".

26. Designação popular da gasolina.

27. Batalhões populares de civis, formados por Hitler como os últimos recursos de resistência.

28. Muitas bombas atiradas simultaneamente, dando a idéia de um tapete.

29. Extensa rede de rodovias construídas por Hitler.

30. Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei — Partido Operário Alemão Nacional Socialista.

31. "Salve, o vitorioso Exército Vermelho".

32. Abreviatura popular de "Campo de Concentração".

33. "Instruções para uso do forno crematório aquecido a coque, tipo Topf-Dreimuffel".

34. Estima-se que dos seis milhões de judeus vítimas do nazismo, mais da metade sucumbiu em Auschwitz.


 

© 2001 — William K. Brant
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Ridendo Castigat Mores
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