capa

eBooksBrasil.org


 

eBookLibris

Falta Alguém em Nuremberg

Torturas da Polícia de Filinto Strubling Müller

David Nasser


 

Falta Alguém em Nuremberg — Torturas da Polícia de Filinto Strubling Müller - David Nasser
Fonte digital: digitalização do livro em papel
Edições O Cruzeiro - 4ª edição, Rio, 1966
Capa da primeira edição

Fonte — Edições do Povo, 1947

eBooksBrasil.org
© 2016 David Nasser

 


 

David Nasser


FALTA ALGUÉM
EM
NUREMBERG

 

Torturas da Polícia de Filinto Strubling Müller


 

Índice

 

Prefácio da primeira edição
Os primeiros revolucionários
Enchem-se as prisões
Aliança Nacional Libertadora
A cadeia do Recife
Surgem os integralistas
Na Marinha de Guerra
As verbas secretas da Polícia
As famílias dos presos
A ilha miserável
Lá onde tudo se acaba: Fernando de Noronha
Filinto Müller ataca
O Tribunal de Segurança vende absolvições
Harry Berger
Olga Benário Prestes
“Filinto mandou me sangrar”
A força vazia
Os delatores
A responsabilidade de Getúlio Vargas
Aqui mandava a Gestapo
O assassínio de Fournier


 

Prefácio da primeira edição

 

As atrocidades praticadas no Brasil pela polícia política do Capitão Filinto Strubling Müller excederam, em alguns pontos, as torturas infligidas pela Gestapo aos judeus, antinazistas e prisioneiros aliados. Difícil é comparar a maldade com a maldade, a barbaria com a barbaria, o perverso com o perverso. Os nazistas alemães retiraram a pele tatuada dos condenados para o fabrico de “abat-jours”. Os policiais brasileiros esmagavam testículos com uma espécie de alicates, a que chamavam pelo diminutivo de “anjinho”, corruptela de Higino, nome do escrevente da Polícia que os inventou. Os nazistas alemães matavam seus presos e faziam sabão com os cadáveres. Os policiais brasileiros do Sr. Getúlio Vargas enfiavam arames nos ouvidos dos presos. Os nazistas alemães faziam experiências científicas com os recolhidos aos campos de concentração. Os policiais brasileiros enfiavam arames na uretra dos presos e, com um maçarico, aqueciam esses arames até ficarem em brasa. Os nazistas alemães executavam os presos em câmaras de gás. Os policiais brasileiros apertavam o crânio dos presos até que eles morressem ou enlouquecessem.

Torna-se impossível, finalmente, saber quais eram os piores. Observarão os senhores, apenas, que, enquanto os nazistas alemães pagaram ou estão em vias de pagar seus crimes espantosos, os policiais brasileiros, autores de crimes contra a humanidade, mantêm-se em seus postos, impunes e felizes, quase todos bem instalados na vida. A Comissão de Inquérito, instaurada pela Câmara de Deputados para a apuração dessas monstruosidades, vive adiando seus trabalhos, numa atitude que faz crer que esteja, em sua maioria, interessada em silenciar os fatos, veementes como o mais tremendo dos libelos. Sim, porque os culpados poderiam negar tudo, mas nada poderiam fazer quando as vítimas, uma a uma, desfilassem, mutiladas, perante a Comissão de Inquérito. No instante em que o sargento da Marinha que ficou sem os órgãos genitais fosse depor, sem uma palavra, exibindo apenas sua desgraça, todos os argumentos, toda a defesa dos culpados seria inútil.

O autor do presente livro não conhece pessoalmente o Capitão Filinto Strubling Müller, nem tem contra ele qualquer motivo pessoal de animosidade, a não ser aqueles mesmos que nos fazem odiar os inimigos da espécie humana. Julga-o, porém, o segundo grande responsável pelos crimes praticados sob sua direta orientação. O primeiro grande culpado, a seu ver, é o Sr. Getúlio Vargas, que poderá fugir a todos os julgamentos atuais, mas não escapará ao implacável, justo e sereno veredicto da História. Logo que os fatos se coloquem dentro da perspectiva de análise, ele será apontado no Brasil como o maior assassino dentre os assassinos que viveram no tempo de sua vida.

 

D. N.


 

Os primeiros revolucionários

 

Os acontecimentos políticos do Brasil atingiram o grau de efervescência em 1929. Evidenciara-se a luta entre os grupos ligados aos poderosos trustes estrangeiros comandados de Washington e de Londres. De um lado, a política do café, sustentada pelo capital americano. Doutro lado, o grupo do Sul, comprometido com os ingleses. Getúlio Vargas, à frente dos sulistas, derrotou os interesses britânicos e ascendeu ao poder, depois de uma série de acontecimentos de aparência nacionalista. Até então, a questão social era tida como um simples caso de polícia e as greves eram raras, sem nenhuma importância. Os comunistas não preocupavam em absoluto os homens do poder. Muito menos, também, os marxistas impressionavam o povo, porque nessa época a escola era risonha e franca. Tudo corria em mar de rosas. A situação econômica do Brasil parecia ainda tolerável. O problema do imperialismo não estava tão enraizado, nem a cobiça se tornara a bandeira dos magnatas, que preferiam comer as economias do povo, mas de maneira discreta, sossegada, de acordo com as tradições capitalistas.

Os tratados de Economia, fontes de consulta, dizem que o capital vai criando sua própria queda, inevitavelmente. Depois da sociedade escravagista, a feudal. Hoje, a sociedade burguesa está em luta de morte com os trabalhadores, Para muitos, no afã de sustentar o regime que é a base de sua existência, o capitalismo tem revelado tremendas falhas, razão de sua própria decadência.

Baseados nesses princípios corretos, os intelectuais de antes do advento de Getúlio Vargas começaram a traduzir tratados de Economia, tratados políticos, livros em forma popular, que se tornavam acessíveis à compreensão das massas. Ideias revolucionárias passaram a germinar em bom terreno. Os trabalhadores puderam compreender alguns mistérios dantes impossível de serem decifrados. Sabemos hoje, diziam, por que nossos filhos morrem de fome, tuberculosos, vítimas de desnutrição e da falta de recursos. O motivo está em que não existem leis sociais para os trabalhadores, enquanto sobram leis que defendem o capital. Se não existem leis para os trabalhadores, a razão é simples: o governo não passa de um mandatário dos capitalistas. Substituindo esse governo por um imposto por nossa vontade, as leis que nos protejam da morte em tristes condições virão automaticamente.

Dedução simples, primitiva, sincera. A um operário que falava sobre o marxismo, um intelectual pediu a definição da doutrina política. “Que deseja o comunismo?”, responde o operário. “Eu lhe direi: no mundo existe uma minoria que tem em suas mãos as máquinas, o dinheiro que compra as máquinas e as terras que as máquinas fazem produzir. De outro lado está a grande maioria que trabalha com essas máquinas e compra o que as terras produzem. A minoria que tem as máquinas escraviza a maioria que não as tem. Qual a solução? Tomar as máquinas da minoria e usá-las por conta própria. A minoria adere à maioria ou perece. Isto é, para mim, o marxismo na forma pura e certa”.

Os intelectuais, já apoiados por uma reduzida fração proletária, fundaram partidos socialistas, a fim de precipitar a queda da burguesia. Para isto eles necessitavam do apoio do povo. O mesmo povo que ajudara a burguesia a derrubar a nobreza, ajudaria a derrubar a burguesia.

O Brasil sentira esse fenômeno em seus pródromos, já que em 1923 um grupo de intelectuais fundara o Partido Comunista do Brasil (1). Algum tempo depois, sobrevieram as primeiras lutas. O Presidente da República era Artur Bernardes: chefe de polícia, o Marechal Fontoura. Que a terra lhe seja leve, pois iniciou no Brasil os métodos de perversidade organizada. Culminou seu bárbaro sistema com o moderníssimo engenho de “suicidar-se uma pessoa”. Poucos se lembram do comerciante Niemeyer, a quem “suicidaram” atirando-o por uma janela do segundo andar do palácio da Polícia à rua. Poucos se lembram da celebérrima quadrilha dos famigerados Chagas, Moreira Machado, Mandovani e Vinte e Seis. Quando alguém desejava conhecer os motivos de tanta perversidade por parte do marechal, os entendidos diziam que tudo vinha de uma necrose crônica em um dos pés, que desafiava todos os conhecimentos da ciência daquele tempo. À proporção que a lesão degenerescente ia corroendo os tecidos orgânicos, sob o fétido exalado da perna, o reflexo desse estado contínuo de desagregação física ia ressoar-lhe no cérebro e na alma. Cérebro e alma empedernidos iam tornando cada vez mais negros os sentimentos desse homem. A vingança caía, inevitavelmente, sobre suas indefesas vítimas.

Muitos presos foram mandados para ilhas inabitáveis, outros morreram, outros não deixaram vestígios até hoje, depois da viagem forçada para a Clevelândia. Existe um sobrevivente desses martírios, o Domingos Braz. Quando ele fala daqueles horrores, sua voz perde a serenidade e seus olhos ganham um brilho diferente. Nunca esquecerá aquele inferno.

Getúlio Vargas tomou as rédeas do poder e revelou, a princípio, certa brandura com os revolucionários da esquerda. Verdade era o fato, entretanto, de que um destes subira à tribuna, em plena revolução da Aliança Liberal, no coração do Rio Grande do Sul. Chamava-se José Maria, E ao povo inflamado de entusiasmo aliancista, ele teve a coragem de dizer que aquela revolução era um golpe cuja finalidade seria entregar o Brasil ao imperialismo. Uma troca de homens, apenas, sem utilidade, pois nada resolveria, Prenderam José Maria. De lá, o chefe de polícia comunicou-se com Serafim Braga, no Rio. Este quis saber se se tratava de um homem de dedo indicador cortado. Era. Depois do movimento, José Maria foi embarcado para o Rio, a seguir para a Colônia Correcional de Dois Rios. Teve a honra de ser o primeiro preso político a descer na Ilha Grande. Recebeu o batismo consagrador: tremenda surra, que deixou surpresos os sentenciados comuns. Depois disso, levaram-no para a enfermaria. Esse método seria adotado em todo o Brasil pela polícia política. Começava uma era de monstruosidade.


 

Enchem-se as prisões

 

Batista Luzardo tem a inglória vaidade de ter sido o primeiro chefe de polícia a ordenar prisões por questões sociais, mandando os detidos para a Casa de Detenção, sumariamente, sem processo ou inquérito, juntando-os nos mesmos pavilhões com os presos comuns. Otávio Brandão, Minervino de Oliveira e muitos outros lá estiveram, ao lado dos assassinos, ladrões, pederastas e outros elementos da pior espécie, presenciando os atos de maior baixeza que se pode imaginar. Viram como os menores eram vendidos aos seus futuros “protetores” pelos guardas do presídio. Estes tiravam os jovens de sua seção e os forneciam aos degenerados a preços que variavam de 80 a 100 cruzeiros, conforme fosse a estampa do menino. Os presos políticos se revoltavam contra essa prática; mas os guardas, sentindo que os lucros podiam fugir, faziam intrigas entre os detidos por crimes políticos e os criminosos comuns. Por vezes estes investiam contra aqueles, e várias foram as cenas de sangue ocorridas à sombra das celas. Por fim, o trabalho de dialética venceu os assassinos, ladrões e outros criminosos, que puseram de lado sua atitude de franca hostilidade.

Já a esse tempo, o comunismo iniciava sua fase de existência real no Brasil, saindo do terreno simplesmente doutrinário para o de ação preparatória do regime soviético. Os comícios relâmpagos à porta das fábricas foram os primeiros sintomas dessa campanha. Mal os operários saíam, oradores improvisados tomavam rapidamente a palavra e pronunciavam uma brevíssima alocução, falando das tristíssimas condições em que os proletários brasileiros se encontravam, marcando os pontos básicos de suas reivindicações. A Polícia buscava impedir esses comícios e mandava seus agentes para os portões das grandes fábricas, à hora da saída. Do encontro desses investigadores policiais com os oradores comunistas resultaram os primeiros choques entre os adeptos do credo marxista e a Polícia no Brasil, Pouco a pouco, as autoridades policiais foram tomando mais a sério a luta contra esse novo inimigo, e as medidas se tornaram violentas. Os comunistas, por sua vez, mudaram de tática, e marcavam com os operários outras reuniões, longe das fábricas. O número de militantes aumentava. Naquele tempo exigia-se do militante dessa organização clandestina bastante coragem e nenhum amor à vida. Seja qual for o ponto de vista em que o observador imparcial se coloque, dentro ou fora do terreno político, esta justiça deve ser feita aos pioneiros do marxismo nesta terra.

O número de presos aumentava dia a dia. Levas e levas tomavam o rumo da Colônia, espécie de campo de concentração da pior espécie. A essa época, Emílio Romano era um simples investigador, não tinha o apelido de “Capitão”, usava calças de brim amarrotado e residia no subúrbio de Osvaldo Cruz, numa choupana. Chefiava a seção de ordem política o Lopes Vieira, cuja função se limitava a dar umas borrachadas no preso e entregá-lo ao Delegado Coelho Branco. Este, em tom ameaçador, interrogava o suspeito e, depois, mandava-o para a Casa de Detenção, onde ficava algum tempo. Na reincidência, o preso político era mandado para a famosa Colônia de Dois Rios.

O Governo Provisório principiava a crer na ameaça que significava aquela doutrina que empolgava os homens e os transformava em idealistas sinceros. Era preciso — gritavam os senhores do governo — isolar o povo desses propangandistas de um regime estranho, era preciso livrar o povo da demagogia dos revolucionários.

Ocorrera, entrementes, a primeira escaramuça entre os homens do Governo nascido da vitória da Aliança Liberal. Saíra da Chefatura de Polícia o Sr. Batista Luzardo. Deixava o Ministério do Trabalho o Sr. Lindolfo Collor. Abandonara o Ministério da Justiça o Sr. Maurício Cardoso. João Alberto assumira a Chefatura de Polícia, pronunciando sua palavra de ordem: — “Comunista? Não. Católico? Sim”. Os comunistas, entretanto, afirmavam que João Alberto, pouco tempo antes, tentara entrar para o Partido Comunista do Uruguai, sendo recusado. Disseram-lhe que procurasse o Partido Comunista do Brasil.

João Alberto, que muitos anos depois se tornou um protetor dos homens de esquerda egressos da prisão, foi um chefe de polícia bastante severo, em sua primeira gestão. As levas para a Colônia tiveram impulso por sua iniciativa. No Rio de Janeiro, a direção do Presídio estava nas mãos do Sr. Santos Maia, auxiliado pelo militar Silva Bastos, de quem os presos daquela época guardam até hoje amarga lembrança. Disse-me um operário, cujo nome não revelarei por motivos claros: “Silva Bastos era o algoz. Esse tenente da Polícia Militar, malvado, e o famigerado e degenerado Dr. Sardinha têm muitos crimes pesando-lhes na consciência. Isto é, se tivessem consciência”.


 

Aliança Nacional Libertadora

 

Entrementes, a Polícia alterava novamente sua tática na luta contra a propaganda comunista no Brasil. Redobrando de violência, passou a dissolver os comícios a bala. Em 1931, na gare da Central do Brasil, o tecelão Alencar tombou, varado pelas balas dos agentes do Governo, precisamente no dia 2 de novembro; Emílio Romano já então fora promovido a chefe da turma e principiava a se destacar como elemento implacável e inescrupuloso. Usava de todos os meios para se infiltrar nas fileiras comunistas, destacando para esse fim certos elementos que se faziam passar por marxistas e se inscreviam no respectivo partido clandestino. Muitos filiados passaram de tal maneira a ser controlados que, mal saíam à rua, eram presos incontinenti. Espancamento e suborno foram empregados, a princípio sem êxito, mas depois com excelentes resultados, a fim de se obterem delações. O primeiro traidor do Partido Comunista no Brasil foi o alfaiate do Batalhão Naval cujo sobrenome era Mendonça. Acompanhado por um investigador da Ordem Política e Social, conseguiu fazer com que vários companheiros seus caíssem nas mãos da Polícia e fossem mandados para a Colônia de Dois Rios.

Nesse verdadeiro campo de concentração, a vida corria igualmente dura, sob a vigilância incessante dos guardas, as ordens monstruosas dos chefes e o rebenque dançando no ar a qualquer pretexto. Exaustos, muitos presos tentaram a fuga, e alguns conseguiram romper o cerco do mar. Entre eles, Lino e Caetano Machado realizaram o que fora considerado impossível até então, saindo da Colônia sem deixar vestígios. Nem mesmo aos tubarões que rondavam o presídio os fugitivos respeitavam.

“Se eles, presos, arranjam meio de fugir e, soltos, fazem tremenda propaganda, só nos resta um caminho: exilá-los!”, concluíram as autoridades brasileiras. E sem demora os primeiros marxistas foram mandados para o estrangeiro. Otávio Brandão se viu, de uma hora para outra, colocado num navio que se destinava à Europa. Intelectuais e operários, entre os quais Astrojildo Pereira, Paulo Lacerda, Crove e outros, foram enviados à fronteira do Brasil com o Uruguai e lá receberam ordens de atravessá-la. Tempos depois, quando fazia o caminho de volta, Paulo Lacerda foi novamente preso, e tais foram as torturas por que passou que até hoje está inutilizado. Era um brilhante advogado no Foro do Rio e ficou impossibilitado de exercer suas atividades profissionais definitivamente.

O homem do povo ia perdendo, nesta terra, suas ilusões a respeito de Getúlio Vargas. Exemplos da Itália, da Alemanha e de Portugal pareciam agradar ao detentor do Poder. O Brasil estava às vésperas de uma ditadura. Aparecera por estas bandas, vindo de São Paulo, um escritor sem talento, Plínio Salgado, apregoando como novas as já conhecidas fórmulas fascistas e usando a mesma dialética que levara o Duce e o Fuehrer ao poder. O partido integralista, entretanto, conseguiu desenvolver-se espantosamente e se tornava uma força de incontestável perigo.

A polícia brasileira, longe de voltar suas preocupações para a ameaça da direita, continuava afeiçoada ao perigo da esquerda, pois fizera do combate ao comunismo uma excelente indústria. Grandes verbas secretas eram consumidas nesses serviços de pseudo-salvação nacional. Os auxiliares diretos do chefe de polícia construíram magníficas residências. Nunca se exigia, por parte do Sr. Filinto Müller, a explicação dos altos gastos. Os arautos do novo mundo fascista, Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, lá estavam para ajudar a criar um ambiente de perene ameaça comunista. Plínio Salgado, alimentado pelo imperialismo, apoiado por vários representantes do alto clero, ajudado pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano, também, por parte do Governo do Sr. Gctúlio Vargas, excepcional boa vontade, pois o ditador não escondia sua tendência para a direita e sua admiração pelos povos “jovens e fortes”, como dissera num discurso no Arsenal de Marinha. O movimento fascista brasileiro se estendeu de norte a sul, apoiado por grande número de capitalistas, fazendeiros, generais e uma parte considerável da oficialidade da Marinha de Guerra e Mercante. A vitória integralista parecia iminente. O chefe Plínio Salgado falava grosso, anunciava vinganças e punições. Ensinava-se, para amenizar o caminho, aos integralistas, o exercício das funções policiais, a fim de que descobrissem entre os operários todos aqueles que fossem comunistas.

Antes disto, um grupo de democratas e comunistas decidiu fundar a Aliança Nacional Libertadora, organização antifascista destinada, principalmente, a combater a influência fasci-integralista no Brasil. Violentíssima, a reação dos partidários do Sr. Plínio Salgado a esse movimento se transformou em oposição armada, tombando em Petrópolis, como primeira vítima dos integralistas, o operário Cantu. No Largo da Sé, em São Paulo, outro conflito revelou a falta de coragem dos membros da chamada Ação Integralista, que, a começar pelo chefe, se retiraram apressadamente ao primeiro tiro. Na cidade fluminense de Campos, entretanto, os integralistas fizeram distribuir pelas ruas milhares de folhetos comunistas, ameaçando dissolver o comício integralista a bala. Na hora do “meeting”, da própria janela da sede do partido fascista, uma bala foi disparada. No fim, quatorze tinham perdido a vida. Com isto, desejavam os direitistas fazer crer ao povo que a ameaça comunista não desaparecera. Certo de que haveria barulho, Plínio Salgado, que deveria comparecer à reunião em praça pública, nem pensou em embarcar para a cidade de Campos.

Fracassada a política de antepor à força comunista a organização integralista, o Sr. Getúlio Vargas decidiu fechar a Aliança Nacional Libertadora. Isto feito, o integralismo, que perdera bastante terreno, voltou a desenvolver-se poderosamente. O principal objetivo de Vargas era a criação de um Estado Forte, com os integralistas participando do poder. Principiou Getúlio por indicar para os postos-chaves os elementos mais reacionários, inclusive Filinto Müller na chefia da polícia. A Plínio Salgado seria oferecido, mais tarde, um lugar de Ministro de Estado, porém este, julgando apanhar coisa melhor, recusou imediatamente.

Um grupo de oficiais comunistas e não-comunistas deflagrou um movimento revolucionário a 27 de novembro de 1935, em unidades do Exército e da Aviação.

Luís Carlos Prestes, que depois da longa marcha da Coluna Invicta pelos sertões do Brasil, embrenhara-se na Bolívia e abraçara o credo marxista, voltara ao Brasil, sob um nome suposto, em companhia de sua esposa, Olga Benário Prestes. Tinham chegado também o comunista Artur Ewert, uma das cerebrações da 3ª Internacional, e o norte-americano Leon Baron. Prestes buscou, desde o início, tomar o pulso da situação. Os acontecimentos, entretanto, se precipitaram vertiginosamente. Mesmo assim, seu nome serviu de bandeira ao manifesto aliancista e todos julgaram que a revolução de novembro de 35 obedecera à sua orientação.

É possível que fosse esta a sua intenção, mas tudo se precipitou e a intentona começou, ao que parece, antes da hora. No Rio Grande do Norte, o interventor dissolvera a guarda civil e, sem qualquer autorização dos organizadores do movimento, os cabos e os sargentos do 31° B.C. começavam a revolução. Recife, sabendo disto, procura se articular também, no 29° B.C., em cuja sede estavam poucos soldados na ocasião. O Tenente Lamartine, dessa unidade do Exército, estava em sua casa, quando foi abordado pelo Sr. Caetano Machado, que lhe deu conhecimento do que se passava em Natal.

— Natal está em poder dos revolucionários! Uma junta governativa toma conta da cidade!

E contou ao tenente que a junta governativa era constituída pelos seguintes elementos: Lauro Lago, J. Quintino e o Sargento Eliesiel. O Tenente Lamartine advertiu o mensageiro contra o excesso de otimismo, pois não recebera notícias do Rio e achava estranha aquela explosão antes da hora marcada. Caetano, enfatuado, gritou que a única solução era ir para a luta de qualquer jeito. O Tenente Lamartine saiu, e ao chegar ao quartel, encontrou-o em polvorosa. Os sargentos, cabos e soldados tentavam arrombar o paiol. Assume o comando o Tenente Lamartine, que marcha para o Recife. Sai do quartel da Polícia Militar, com sua tropa, o Tenente Cunha, mas é imediatamente preso pelos revoltosos. Tomando conhecimento do motivo da luta, adere e arrasta seus soldados. Já as tropas governistas tomavam posições. No Largo da Paz, o combate estava travado. Silo Meireles toma o comando-geral do movimento em Pernambuco. Ondas de boatos enchem a cidade do Norte. Sabe-se que a junta governativa de Natal não se sustenta no poder, nem isto seria possível, sem o apoio de outro Estado. Saem colunas revolucionárias para o sertão, em direção ao Rio Grande do Norte, mandadas por Pernambuco. Chega ao Recife o Capitão Otávio e é preso. Ninguém compreende por quê. Outros elementos nitidamente revolucionários são presos também, e entre eles, Cristiano Cordeiro, Silo Meireles, Muniz de Faria. Não escapa também o Tenente Lamartine, que é detido juntamente com os Sargentos Valdemar Diniz e Romualdo Diniz. O movimento fracassara. Esses presos foram levados sob poderosa escolta com ordem de atirar para matar e, no Recife, metidos numa cadeia que já estava repleta. Principiava a longa série de martírios dos soldados vencidos.


 

A cadeia do Recife

 

Trinidade era o nome do diretor da cadeia do Recife, naquele tempo. Suas convicções integralistas não constituíam mistério para quem quer que fosse. Sentiu-se feliz, assim, quando os presos começaram a chegar. Todos esses homens da esquerda não passavam de seus inimigos, viessem em trajes civis ou em uniformes militares. Num espaço destinado a dois detentos, ordenou que fossem alojados 50. Não havia lugar para ficarem sentados. Além disso, todas as madrugadas, um grupo de presos era chamado para o espancamento, regularmente.

A essa altura, desembarca no Recife o General Manoel Rabelo e visita a prisão, saindo de lá espantado com as cenas trágicas daquele amontoado de homens em tão reduzido espaço. Dá imediatamente ordem para que as condições dos presos fossem melhoradas.

Já então começavam a aparecer nos arrededores do Recife cadáveres de homens com crânios esmagados e os rostos espatifados, para que ninguém os identificasse. O Sargento Gregório Bezerra, que seria deputado, chega à prisão, depois de ter tentado levantar seu batalhão juntamente com o soldado Miguel Inácio da Rocha. Na sala de carceragem, Gregório encontra seu irmão, e assiste, impotente, os policiais o levarem para a morte. O irmão Bezerra foi morto a pauladas, depois de cruéis torturas. Bispo, José Maria e outros presos, arrastados para fora, sofrem os mesmos castigos e a mesma morte.

Os policiais pernambucanos jogam os cadáveres nos caminhos, depois de tornar o rosto deles irreconhecível. Os torturadores são orientados por Mindelo, Etelvino, Vander Koche, Chico Pinote e Manuel da Farinha. Tempos depois, na Assembleia Nacional Constituinte, o Deputado Gregórío Bezerra encontrou-se, frente a frente, com o Senador Etelvino, o mesmo que mandara executar seu irmão. Nada aconteceu, porque a ordem era silenciar. De tal maneira foram torturados os presos no Recife que os suicídios podem ser contados às dezenas e inúmeros casos de loucura coroaram o trabalho da Polícia. O regime de martírio, na prisão, não bastava. Havia a fome para ajudá-lo.

Além de mutilados, espancados, até o ponto que a imaginação humana não poderia, nem de leve, calcular, os presos eram desmoralizados, como aconteceu com o Professor Epifânio Bezerra, homem de respeito, diretor do mercado do Recife, presidente da Federação Espírita de Pernambuco e grão-mestre da Maçonaria. Depois de insultado pelos policiais, estes procuravam enxovalhá-lo diante da esposa. O mesmo fizeram com o Tenente Cunha, da Polícia Militar, que, também em presença de sua esposa, passou pelos maiores vexames. Enquanto isso se passava, as casas dos presos eram invadidas pelos policiais, que praticavam as maiores baixezas. Insultavam os familiares e carregavam tudo que representava valor.

Prêmios em dinheiro foram anunciados para quem prendesse ou denunciasse o Major Costa Leite e o Tenente Tourinho. Antes, entretanto, que os candidatos se habilitassem, o Tenente fugiu para o sertão e o Major, por sua vez, foi para longe, atravessando a fronteira da Argentina. O Jornalista Paulo da Mota Lima, esse caiu nas mãos dos policiais pernambucanos, e o investigador, radiante, entrou na delegacia, gritando:

— Prendi o Major Costa Leite!

Quando o chefe de polícia chegou ao edifício e verificou que não se tratava do Major, mas do jornalista, enfureceu-se e começou a xingar o detido por engano. Afirma-se que Paulo da Mota Lima tinha no bolso uma regular quantia e conseguiu ver-se livre, gratificando o responsável pela briosa polícia pernambucana.

A perseguição, no entanto, continuava. Dezenas de cadáveres apareciam nas estradas, sempre com o rosto destroçado. As mulheres procuravam seus maridos ou irmãos ou filhos. Na delegacia, a resposta era sempre: não pode ser quebrada a incomunicabilidade. Elas continuavam dessa forma a ignorar se eles estavam vivos ou mortos. João Nuno fora nomeado diretor da prisão. Certo dia, como ouvisse um samba qualquer executado por instrumentos rústicos fabricados na cadeia, desceu até lá e gritou:

— Isto aqui é casa de tortura. Apreenda os instrumentos. Não quero ver gente alegre aqui!

Doutra feita, mandaram abrir as portas da cadeia, pois há muito tempo os presos estavam sem receber um pouco de ar puro. Ele chegou e disse:

— Prestem atenção! Eu sou um simples instrumento! Se mandarem matar, eu mato! Se mandarem soltar, eu solto! Fechem as portas.

Aconteceu, também, que um soldado se matou. O Coronel Nuno foi chamado para tomar conhecimento do fato. Declarou textualmente aos seus informantes:

— Isso não “recupete” lá fora, “Recupete” mais aqui dentro.


 

Surgem os Integralistas

 

Debelado o movimento revolucionário no Rio de Janeiro, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, a causa principal do fracasso, segundo os aliancistas e comunistas, foi a recusa, à última hora, do 22° B.C. em participar da ação contra o Governo. Estava adiada indefinidamente a transformação política do Brasil. “Evitou-se” — afirmavam os homens de esquerda — “um salto em nossa História.”

Os integralistas, ante esse insucesso de seus adversários, saíram em campo livre a redobrar a propaganda de suas ideias fascistas. Denúncias eram levadas, incessantemente, pelos militantes da Ação Integralista Brasileira às autoridades policiais de cada Estado. Pregavam abertamente a vingança. As prisões se encheram graças a esse trabalho de delação. Tudo servia de argumento na perseguição aos vencidos. Na cidade de Natal, a Polícia espalhou por todos os cantos que os comunistas tinham deflorado várias normalistas. Estas, indignadas, vieram a público desmentir tal afirmativa sem o mais leve fundamento. No Recife, as famílias dos presos apanhavam tremendas surras. Em Alagoas, onde a conspiração mal se articulara, permanecendo em um reduzido círculo de operários, sargentos, cabos e soldados, a Polícia prendeu, entre outros, os cabos José Maria, Nilo e Ribeiro. Vários civis foram detidos, mas, por falta de provas, o juiz local absolveu-os. Isto constituía algo de espantoso naquele tempo, e imediatamente uma ordem do Rio demitia sumariamente o magistrado e o mandava para a prisão, sob o fundamento de colaborar com os rebeldes.

Antes do golpe, no Rio de Janeiro, o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil se reunira e deliberara convidar os elementos democratas para um acordo. Luís Carlos Prestes, desesperadamente procurado pela gente da Polícia, comparece à reunião, num gesto de audácia. Ouve, em silêncio, os informes dos representantes de vários setores, entre os quais o marítimo Medina, que de maneira bombástica prestou esclarecimentos que asseguravam um sucesso indiscutível ao movimento. Prestes, depois de escutá-lo, disse textualmente: “Se essa informação é exata, a revolução está vitoriosa, mas se ela é falsa, teremos reação para dez anos”. Tais acontecimentos se passaram em 1935, dias antes da intentona. Depois de outras deliberações, ficou marcada a explosão do movimento para o dia 27 de novembro. Era necessário certo espaço de tempo para o trabalho de propaganda junto à parte da tropa que ainda não se comprometera.

Tudo pronto, Medeiros recebeu a incumbência de levantar o proletariado, declarando-se este em greve, sincronizada a imobilização dos braços, com os primeiros tiros nos quartéis. O 3° Regimento levantou-se sob o comando revolucionário do Capitão Álvaro de Souza. O Capitão Agildo Barata, que se encontrava preso nessa unidade do Exército, prestou sua cooperação ao golpe contra o Governo, mas o verdadeiro chefe do levante no 3° R. I. foi o Capitão Álvaro de Souza, filho de um velho gráfico, o “China”. Havia suspeita, dias antes, de que esse oficial tramava algo, e vários oficiais o vigiavam, com ordem para matá-lo ao primeiro movimento suspeito. Aos primeiros tiros, em plena confusão, ele correu para uma metralhadora, e lutou valentemente até o fim, quando já não mais havia esperanças. Os elementos fiéis ao Governo, divergindo embora das convicções políticas do Capitão Álvaro, reconhecem que ele se portou à altura do posto.

Enquanto isso se passava no Bairro da Urca, o movimento no Batalhão de Guardas nem chegava a explodir, o mesmo sucedendo ao Regimento de Cavalaria, que seria sublevado pelo Capitão Lauro Fontoura, recentemente assassinado. Na Aviação, o golpe fora também mal sucedido, e o Coronel Eduardo Gomes, acompanhado por um grupo de oficiais, resistira, dando tempo à chegada de reforços e impedindo que os rebeldes levantassem voo nos aviões para bombardear os Ministérios, o palácio do Governo e as sedes de unidades militares. A cartada estava perdida.


 

Na Marinha de Guerra

 

No Exército, na Marinha e na Aviação, o movimento abortara fatalmente. O Regimento Naval se encheu de marinheiros presos. Na Escola de Aviação, os rebeldes se entregaram, fugindo alguns. No 3° Regimento de Infantaria, todos os revolucionários foram presos, sem exceção. Oficiais, soldados e civis se viram empurrados para escuros e imundos porões na Casa de Detenção.

A Polícia começava, então, a viver. Chegara a hora dos Romanos, Filintos e outros algozes principiarem sua tarefa. Os torturadores foram escolhidos a dedo. Havia gente dentro da própria Polícia que não aceitava o encargo. Eram chamados os “facativos”. Somente aos que praticavam a sangue frio o arrancamento de unhas ou a queima da sola do pé com o maçarico era dada a confiança ilimitada dos chefes. O taifeiro Melo, nessa ocasião, enlouqueceu, depois de apanhar, durante quarenta e oito horas, mais de vinte surras.

Na Marinha, o Comandante Meira, integralista juramentado, como declarou o próprio Plínio Salgado, era o coordenador-geral das perseguições. O Ministro da Marinha dera-lhe a função de chefe do inquérito acerca dos marinheiros acusados de conspiração contra a Pátria. Meira entra em cena e expede uma série enorme de ordens de prisão, a torto e a direito, sacrificando barbaramente homens honestos e bons, não-comunistas em sua maior parte. Milhares de sargentos, cabos e marinheiros foram atirados ao desemprego e à prisão sem que nem mesmo em pensamento tivessem participado de qualquer conspiração, mas apenas porque não eram integralistas. Todos aqueles que não liam o jornal fascista “A Ofensiva” estavam sob o índice. Para que os oficiais integralistas pudessem fazer suas observações nesse sentido, havia um entendimento entre eles e a direção da Ação Integralista.

Esta mandava exemplares daquele jornal, gratuitamente era feita a distribuição entre as tripulações. Muitos, embora sabendo o que ia acontecer, recusavam altivamente a folha. No mesmo dia chegava a ordem de prisão e o homem desaparecia.

Os oficiais da Marinha de Guerra que tinham abraçado o credo fascista revelavam uma mentalidade reacionária que talvez causaria espanto aos próprios alemães. Chamavam a si mesmos os “sonhadores do bem” e esperavam que a monarquia de novo imperasse no Brasil. Citarei um fato que servirá bem para defini-los:

Um jovem marinheiro estudava música e praticava nas cordas de um violino, nas horas de folga. Certo dia, quando ele tocava, passa o Capitão Nuno e manda parar com aquilo, dizendo em tom violento:

— Ora bolas! Marinheiro estudando violino! Instrumento de vagabundo é pandeiro!

Sargento, cabo ou marinheiro que desejasse melhorar, seguindo algum curso secundário ou superior, sabia que as perseguições dos oficiais integralistas não tardariam. Todos aqueles que estudavam, na Marinha, e não pertenciam à Ação Integralista foram apontados, depois do levante de 1935, como elementos comunistas e atirados aos cubículos imundos da Ilha das Cobras, e depois enviados à Polícia Especial, a fim de passarem pelos métodos científicos de tortura. Esses marinheiros tinham ido ainda na infância para a Escola de Grumetes e dali saíram para as unidades navais, constituindo famílias aqui fora. De repente, por motivos que eram, quase sempre, não concordar com os pontos de vista pregados pelos integralistas, perderam seus lugares, foram presos, e suas famílias, sem amparo, chegaram, em alguns casos, à mendicância, à prostituição e ao crime. Seus lares foram desfeitos violentamente. A Polícia é, também, a responsável por essas desgraças. Seus agentes procuravam levar o terror às casas dos marinheiros presos, a fim de facilmente prostituírem suas esposas, irmãs e filhas. Grande número de exemplos vos poderia dar de residências de marinheiros assaltadas por esses vândalos: aparelhos de rádio, relógios de parede, as raras jóias, tudo quanto valesse dinheiro era pilhado, e arrastavam, não poucas vezes, as moças da casa para lugares ermos, onde praticavam as maiores baixezas.

Houve o caso do jovem cabo Mário, protestante convicto, não-comunista por princípios religiosos, mas anti-integralista por questões de caráter. O marinheiro integralista, que também era investigador da polícia carioca, por alcunha o “Bacalhau” denunciou-o como elemento comunista. O jovem cabo estava noivo e já adquirira todos os objetos para o seu futuro lar, inclusive um aparelho de ondas longas e curtas. O comandante de sua unidade, mal recebeu a denúncia, mandou prendê-lo, e o jovem cabo foi entregue ao Batalhão Naval. Levado à presença do Comandante Meira, este lhe faz a pergunta de praxe:

— Seu nome?

— Mário...

O Comandante abre a gaveta, puxa de uma lista, consulta-a e diz:

— Há muito tenho o seu nome aqui. Seu e de outros, que no momento oportuno serão presos.

Mário, sem saber por que estava ali, ouviu as acusações e se defendeu, provando que o jornal que lia era o jornal religioso de suas convicções doutrinárias e era membro da Igreja Batista Brasileira.

— Nunca fui comunista! — alegou, firmemente.

O Comandante Meira, com um sorriso japonês, respondeu que aquela era a conversa de todos os acusados. E finalizou:

— Vou lhe dar um bom destino!

Mandou-o para a Polícia Especial, e o jovem cabo Mário ali foi recebido com uma tremenda surra, uma tempestade de socos e pontapés no baixo ventre, no rosto, nas costas. Todo estourado, sangrando, rasgadas as vestes, se arrastou para junto dos companheiros presos, mal o deixaram dentro do cubículo. Ninguém o reconheceu, tal a inchação do rosto. Seu corpo não tinha um centímetro que não houvesse levado pancadas. Suas botinas foram arrancadas dos pés, mas o jovem cabo só percebeu que estava descalço quando os colegas lhe jogaram água no rosto para melhorar seu estado. Seus olhos eram duas manchas negras, tão inchados estavam, e ele mal podia enxergar.

Enquanto ele apanhava, agentes da Polícia Civil visitavam sua casa e levavam roupas, talheres, louças, e só não carregaram os móveis porque a vizinhança perceberia a estranha mudança.

Outros marinheiros torturados barbaramente foram os seguintes, entre tantos cujos nomes me escapam: Mário Quadros, Lucas, Fernandes, Juvenal de Brito e o Sargento Osvaldo de Assis. Este último sofreu torturas horrorosas na Polícia Especial. Tanto ele como os demais foram denunciados pelos integralistas na Marinha. A história do marinheiro Lucas é impressionante: preso e jogado a um porão, ficou lá muito tempo, sem processo de culpa, sem provas, sem coisa alguma que justificasse seu isolamento. Certo dia os policiais desceram até lá e o trouxeram para justificar uma denúncia trazida pelo “Baiano Pintado”. Um investigador entrou na sala do chefe Serafim Braga, vestindo um terno e calçando sapatos que pertenciam a ele, Lucas. Imprudentemente, num arroubo, Lucas gritou:

— O terno e o sapato são meus!

Logo os policiais caíram sobre o marinheiro, enchendo-o de pancadas. Completamente sem sentidos, ele foi outra vez arrastado para fora.

Outros casos existem de jóias vendidas a preços inferiores ou presenteadas às amantes, esposas, noivas ou filhas, pelos policiais que tinham ido buscá-las na residência dos presos. Até os livros eram arrebanhados e vendidos, depois, nas livrarias de segunda mão, os “sebos” da Rua São José. Contou-me um livreiro antigo que possuía como fornecedor dos mais importantes um elemento da Polícia. “Se aquele camarada lesse a décima parte dos livros usados que me trazia, era mais gênio que Voltaire! Houve uma ocasião em que ele trouxe uma tábua de logaritmos e foi entrando na livraria, dizendo singelamente que trazia para vender uma “tabela de termométrica”. E o dinheiro ia entrando facilmente.

Tempos depois, um cidadão honesto ocupou a chefia da Polícia. O Coronel Alcides Etchegoyen não ignorava que, às vésperas de sair da Polícia, o Sr. Filinto Müller organizara uma fogueira de documentos comprobatórios de sua gestão criminosa, e essa fogueira era bem maior do que a da embaixada alemã, no dia em que o Brasil rompeu com o governo nazista. Ajudaram o Sr. Filinto Müller na queima de papéis apenas os elementos da mais absoluta confiança, entre os quais o seu sobrinho e colaborador Dr. Ivens de Araújo.

Etchegoyen fez vários relatórios ao Sr. Getúlio Vargas. Contou as espantosas atrocidades praticadas por um grupo de homens do ex-chefe de polícia. As tremendas desonestidades, os desvios das verbas secretas. Jamais o Sr. Getúlio Vargas tomou qualquer atitude, no sentido de definir responsabilidades, porque, entre os responsáveis maiores, estava ele próprio, que dera seu beneplácito a esse método científico de morte lenta. Mesmo sem esperar a resposta do chefe do Governo, o digno Coronel Alcides Etchegoyen ordenou a prisão de inúmeros investigadores e o afastamento de muitos chefes de seção.

Muitos ladrões trabalhavam de acordo com agentes da polícia carioca. Numa determinada ocasião, em 1939, desceu ao porão da Polícia, preso por ter cometido um furto qualquer, o conhecido larápio Higino. Nessa mesma ocasião estavam no cubículo o hoje Deputado Carlos Marighela, o comunista Waldemar Dario e outros vindos de São Paulo. Entristecido com a situação alimentar dos presos políticos, o bom ladrão decidiu tomar uma série de providências.

— Durante todo o tempo em que eu permanecer aqui — declarou o gatuno — mandarei vir almoço e jantar para todos.

Eram mais ou menos 80 presos. Pois vieram 80 bifes com batatas. Infelizmente, para os presos políticos, Higino foi solto depois de dois dias e sua liberdade veio assim: o chefe da seção de furtos e roubos desceu à carceragem, acompanhado do chefe do depósito de presos, um tal de Péricles, e disse, cortesmente, na presença de 80 comunistas:

— Ora, Higino, por que você não me procurou? Eu não o deixaria chegar a essa situação.

Tal fato se passou a 14 de fevereiro de 1939. Outro fato que merece atenção é o do chefe policial Valadão. Esse cavalheiro vivia melhor que um barão. Possuía luxuosos apartamentos e se mostrava generoso. Realmente, era alegre, comunicativo e bonachão. Certo dia, um ladrão, seu protegido, roubou de uma grande família numerosas jóias e foi preso. Valadão recolheu as jóias e deixou-as na gaveta. O ladrão tomou o rumo da Casa de Detenção à ordem do chefe. Esse era um jeito que a Polícia dispunha de manter os presos durante muito tempo à sombra, sem necessidade de processo. (Em Fernando de Noronha existiam presos há vinte anos à ordem do chefe de polícia de Pernambuco.) Valadão, inteligentemente, esquecera as jóias na gaveta, como dizíamos, e junto às jóias deixara adormecido o inquérito contra o ladrão, seu amigo. Mas, em toda repartição pública existe a ambição de subir, de tomar o lugar do chefe. E um colega de Valadão, que estava a par de tudo, levou ao conhecimento da família roubada a artimanha de Valadão, guardando as jóias na gaveta. A familia, cujo chefe era um general do Exército, movimentou-se. O general procurou o Capitão Filinto Strubling Müller e ordenou-lhe que pusesse tudo em pratos limpos. Verificou-se, então, que de há muito o ladrão fora solto e que as jóias haviam sido apreendidas e estavam na gaveta do chefe Valadão. Este não podia dar explicação que fosse razoável e foi suspenso, a princípio, e demitido posteriormente. As jóías, entretanto, tinham desaparecido.

Etchegoyen, que assim vinha sanear a Polícia, mantendo em seus postos apenas os elementos honestos e cumpridores de seus deveres, sofreu, por parte dos outros, os inescrupulosos, a mais tremenda campanha difamatória que se pode imaginar. Tudo porque ele tentava separar o joio do trigo. Aquele ladrão Higino — o tal dos 80 bifes — contava publicamente:

— Eu serei solto hoje ou amanhã, não tenha dúvida, pois sou um ladrão limpo. Vocês querem saber de uma? Certa ocasião entrei em contato com uns investigadores e soube que eles estavam prestando serviço no distrito de Copacabana. Eles me disseram: venha trabalhar em nossa zona, porque o delegado é limpo. Não tive dúvida: caí naquela zona e inundei a praça de Copacabana de notas falsas. Pois fui chamado ao distrito e lá me disseram que eu devia sair da jurisdição. Por quê — eu quis saber. — Porque há perigo para você — respondeu-me o delegado. Então, calmamente, mudei de distrito.


 

As verbas secretas da Polícia

 

As verbas secretas da Polícia constituem um dos mais vergonhosos capítulos da história do governo fascista do Senhor Getúlio Vargas. Bilhões de cruzeiros foram dados de mão beijada, sem prestação de contas, à simples enunciação de um perigo que de fato talvez nem mesmo existisse, ou, se existia, não precisaria, para seu jugulamento, tanto dinheiro, pois não havia no Brasil o clima revolucionário. Gastaram-se com as verbas secretas para a Polícia do Sr. Filinto Müller trinta ou quarenta vezes mais que o necessário para o equipamento de todas as Forças Expedicionárias Brasileira, de terra e do ar. Vários foram os milionários que, na Polícia, assim se tornaram graças a essas verbas sem prestação de contas. Em 1939, para efetuar a prisão de 130 operários, em pleno Distrito Federal, o Sr. Filinto Müller conseguiu do Sr. Getúlio Vargas um crédito suplementar de 3 milhões e 500 mil cruzeiros.

Os chefes mandavam construir verdadeiros palácios para suas residências. Como, para exemplificar, poderia, o Sr. Filinto Müller justificar a origem legal do dinheiro para a compra do terreno e a edificação do luxuoso palacete em que reside, perto do Clube dos Caiçaras, uma das zonas mais ricas e valorizadas do Distrito Federal? Com o salário de chefe de polícia? Com o soldo de capitão, de major ou de coronel?

Frequentemente, a Polícia do Sr. Filinto Müller precisava de novas verbas secretas. Deveria justificá-las. Novas campanhas contra agentes dissolventes ou inimigos do regime. Os comunistas, nesse tempo, estavam totalmente desorganizados e não poderiam, de forma alguma, representar qualquer ameaça para a Nação. Se isso, entretanto, fosse divulgado, adeus verbas secretas da Polícia! O chefe mandava vir à sua presença o Major Batista Teixeira, e os dois juntos preparavam a revoluçãozinha. O povo não podia compreender, nem justificar a atitude dos comunistas, tão desbaratados e sempre ameaçadores. O olho de Moscou não se fechava nunca, porque estava aí, pelas ruas, em cartazes do DIP, em entrevistas preparadas no gabinete do chefe de polícia e distribuídas, já dactilografadas, à imprensa.

Voltemos às verbas secretas do Sr, Filinto Müller. Revelaremos, aqui, uma das formas que ele utilizou, contando fatos que, tal qual outro qualquer que esteja nestas páginas, DESAFIAM CONTESTAÇÃO.

O Major Batista Teixeira, certo dia, mandou chamar seu amigo, o “tenente” Costa. Tratava-se de elemento integralista. Depois de longa conferência secreta, o Costa saiu em busca de elementos da “Ala Militar”, dissidentes do Partido Comunista e filiados à orientação trotskista. O “tenente” Costa lhe afirma ter chegado do Uruguai e fala em nome de oficiais exilados. Incautos marinheiros e operários, ludibriados pelo canto da sereia, organizavam um movimento. À testa do movimento colocam o ex-marinheiro Elisiário Alves Barbosa. O comitê central é formado por Ademar José dos Santos, operário Antônio Azevedo Costa e Daniel Valência da Silva. O recrutamento para o golpe é iniciado. “Breve haverá um movimento militar e nós o apoiaremos”, promete o “tenente” Costa. Para estímulo, concede a gratificação de dez mil-réis por cabeça de elemento aliciado, de preferência ex-militares. Que revoluçãozinha ordinária essa, com golpistas arrebanhados a peso de dinheiro.

A “mise-en-scène” não estava completa. Faltava a morte por “background”. Ora, nessa ocasião, havia vários crimes indecifráveis. Os assassinos eram a doméstica MARIA DA CONCEIÇÃO e o desordeiro MÁRIO TELLES, vulgo PAULISTA, gente de reputação duvidosa. Esses dois crimes foram imediatamente atribuídos aos membros da “Ala Militar”. O ex-marinheiro ELISIÁRIO ALVES BARBOSA foi preso e conduzido à Polícia Central. Seu aspecto era de um louco e degenerado. Logo ao ver os instrumentos de tortura, acovardou-se. Confessou tudo. O movimento militar, com outras prisões, estava totalmente desfeito e a verba secreta plenamente justificada, porque Elisiário, em cartório, denunciou imediatamente, todos os seus camaradas, em número de cem, aproximadamente. As torturas começaram. O menor Ademar dos Santos, que figurava entre os presos, FOI AMARRADO PELOS PÉS, DE CABEÇA PARA BAIXO, E LHE APLICARAM NAS NÁDEGAS O MAÇARICO. Continuou negando. Levado à cadeira americana, manteve-se firme. O ex-marinheiro Elisiário foi trazido à sua presença e confirmou a sua acusação. O depoimento é escrito e Ademar obrigado a assiná-lo. Havia culpados até entre os suspeitos, mas, fossem ou não fossem, tinham de confessar o crime, ou escolher a morte.

O carpinteiro AZEVEDO COSTA é escolhido para receber a acusação de assassino de MARIA DA CONCEIÇÃO. Elisiário, o ex-marinheiro da “Ala Militar”, confirma. O carpinteiro nega; que diabo, ele nunca vira a mulher, nem morta nem viva, nem preta nem branca. Com o maçarico chiando atrás, os “adelfis” debaixo das unhas, a gente é assassino de quem quer que seja — “No dia do crime eu estava trabalhando e posso provar com o livro do ponto!” Nada levam em consideração e o homem é torturado até o fim.

A verba secreta é curta, e se torna necessário esticá-la. O jeito é levar a história mais longe, até a própria residência do Presidente Vargas. Na hora de sentir a ameaça rondando sua própria casa, seu próprio leito, o Presidente não hesitará em assinar a concessão de mais dinheiro para a polícia política. Os investigadores, os detetives que guardam realmente a lei e o bem comum, continuarão ganhando miseráveis quinhentos mil-réis. Mas os chefões terão grandes palácios e possantes superluxos de almofadas macias.

O ex-marinheiro ELISIÁRIO BARBOSA denuncia membros da polícia presidencial como participantes do movimento fracassado. O “tenente” BEZERRA, da guarda presidencial, vem à Polícia e ouve os informes da própria boca do preso. A coisa é séria. Na madrugada seguinte, a caravana policial vai surpreender os investigadores presidenciais denunciados. O chefe é Diocésano Martins. Mas este, alterado, foge para Santa Luzia de Carangola, não sem denunciar o plano da Polícia, “aparentando uma revolução que não existe”. Irritados com o companheiro que lhes ia entornando o caldo, Diocésano é preso e submetido pelos policiais à mais bárbara série de torturas. Nega sempre. O colega Elisiárío é chamado à sua frente e confirma: sim, ele, mais Diocésano, mais ANTÔNIO DE AZEVEDO VÍTOR, mais DANIEL VALÊNCIA DA SILVA, assassinaram MARIA DA CONCEIÇÃO e MÁRIO TELES. Todos foram obrigados a assinar o depoimento-confissão.

Na hora de assinar o documento, DIOCÉSANO MARTINS recua e diz:

— Eu não matei ninguém!

A Polícia vê que só existe um recurso para obrigá-lo a assinar. Manda buscar a filha e a esposa do acusado. Vendo-as nuas, expostas à fúria daqueles monstros, o homem se decide a lançar sua assinatura sobre o papel que lhe estendem.

— Negarei tudo perante o Tribunal de Segurança! — declarou solenemente.

— O Tribunal é nosso — responderam-lhe.

Esses homens foram condenados a 60 anos cada um. O veredicto foi proferido depois de dois anos, porque ninguém no Tribunal queria assumir a responsabilidade, nem o próprio Himalaia Virgulino. Que interessava isso à Polícia, se a verba secreta já fora concedida?


 

As famílias dos presos

 

As famílias dos presos dormiam sobressaltadas. Não sabiam quando chegaria a hora inevitável da visita dos vândalos. De súbito, batidas fortes na porta. Iam abrir. Era a Polícia. Os investigadores entravam de chapéu na cabeça e começavam, antes de tudo, a revista. Examinavam, primeiro, o que representava dinheiro. Escolhidos os objetos que podiam ser transportados sem dificuldade para os automóveis que os esperava lá fora, passavam a observar as mulheres, esposas ou filhas dos presos. Muitas eram obrigadas a sair do leito em trajes menores. Os policiais, entre risos de gozo, ordenavam que elas levantassem a roupa, e, a pretexto de buscarem documentos secretos, submetiam-nas aos maiores vexames, apalpando-as com as mãos famintas. Não raras vezes os investigadores exigiam que elas se desnudassem completamente. Que podiam fazer essas moças e senhoras, senão obedecer sem protesto?

As esposas e filhas dos presos resistentes, os chamados na gíria policial pela significativa expressão: “queixos-duros”, essas passavam por tremendas provações. Altas horas da noite, os policiais chegavam à residência da família. Sem qualquer contemplação, escolhiam as que lhes pareciam mais atraentes, e sob pretextos de levá-las à delegacia, conduziam as infelizes para os arredores da cidade — Tijuca, Alto da Boa Vista, ou Estrada do Corcovado — e toda resistência por parte das senhoras ou senhoritas era quase inútil. Às vezes, quando perdiam a esperança de obrigá-las a aceitá-los, os policiais as torturavam e acabavam desistindo, levando-as para a prisão aos pontapés e bofetões. Algumas eram deixadas nuas em plena estrada. Não adiantava no dia seguinte queixar-se à imprensa, pois a imprensa estava amordaçada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Mesmo as mulheres preferiam silenciar, a fim de não piorar a sorte dos maridos ou noivos. Por essa mesma razão, acreditando que estavam ajudando seus companheiros, elas suportavam valentemente o sacrifício e a desonra. Certa ocasião, um investigador que foi repelido pela mulher de um preso, nas Furnas da Tijuca, partiu como uma fera sobre ela, e tanto esmurrou a infeliz que o sangue jorrou na estrada. Doutra feita, a companheira do preso André, vendo seu homem desfalecido, com as unhas arrancadas e os testículos amassados e queimados a maçarico, pensou que cedendo à pressão do investigador Aires aliviaria a situação do marido, cujo corpo estava coberto de marcas de charutos acessos. Ele e uma turma de degenerados levaram a mulher para um dos recantos do Distrito Federal, onde ela, mulher que sempre tivera conduta imaculada, suportou o contato daqueles que martirizavam seu esposo. Inúmeras mulheres seguiam esse exemplo. Quando tentavam recuar, era tarde: armas de fogo obrigavam-nas a ceder aos apetites bestiais. Nem virgindade, nem qualquer motivo de ordem sentimental, nada absolutamente nada, servia de entrave aos bestiais agentes da Polícia de Filinto Strubling Müller. Nas residências apalpavam as moças nas nádegas, procuravam boletins comunistas nos seios, e acabavam levando-as para os seus carros, rumo às florestas que cercam o Rio de Janeiro.

Os homens presos saíam da Polícia Central para a Casa de Detenção, a fim de dar lugar aos que deviam chegar, para que novas verbas secretas fossem concedidas. Tornava-se preciso dar ao povo a impressão de que continuava existindo a ameaça comunista. E as torturas continuavam dia e noite, para se obter delações. As enfermarias da Polícia Central, do Hospital da Polícia Militar e outras mais estavam repletas de presos espancados ao máximo. Certa vez, os médicos da Polícia Militar se revoltaram contra isso. Não estavam ali para consertar seres humanos estragados pelos agentes policiais. De uma feita, o Dr. Dirceu, médico da Polícia, se recusou a dar atestado de óbito como tendo sido vítima de um desastre um operário que de fato morrera espancado no Palácio da Rua da Relação. Outro médico fez tal concessão e tudo ficou em silêncio. Houve, também, o caso de dois presos vindos para o Hospital da Polícia Militar com os intestinos cortados pelos investigadores que os martirizaram. O médico cirurgião, por desencargo de consciência, coseu-lhe as tripas, certo de que ambos morreriam. Um deles, estranhamente, salvou-se. Seu nome é Gasparini, e ele está aí para provar, a qualquer tempo, quanto padeceu nas mãos daqueles degenerados. Vários soldados revoltosos do 3° R.I. morreram na Polícia, com os rins estourados, à custa de pontapés. Na Casa de Detenção, o diretor Aloísio Neiva tratava os presos sem se lembrar, jamais, de que eles eram seres humanos. O rancho, que era pago, vinha podre, e a carne nem aos urubus abria o apetite. Na Casa de Correção, o Tenente Vitório Caneppa, amigo particular de Getúlio Vargas, integralista confesso, sob a alegação de ter recebido ordens expressas do Catete, praticava os atos mais desumanos. O único homem que ele temia era o Capitão Trifino Correia.

O porão da Central de Polícia, entretanto, tinha aspecto pior. A velha carceragem ultrapassava em horror ao próprio inferno. No cubículo de cinco ou vinte metros quadrados cabiam oitenta ou cem homens. Não havia água, nem instalação sanitária, nem cobertores, e o chão de azulejo constituía meio certo de tuberculose. Naquele aperto, todos feridos ainda das surras policiais, exaustos, com sono, famintos, pois comiam uma vez por dia — e que espécie de comida! — havia o inimigo maior: — o percevejo sanguinário e insaciável. Presos ali se encontravam havia seis ou oito meses sem um banho, sem trocar a roupa. O Cipriano sentiu que a calça lhe endurecia nas pernas; Pafúncio era um crioulo típico, pois estava branco de poeira e de cinza, a barba enorme, o cabelo descendo pelo pescoço; era uma visão fantástica, a daqueles homens peludos, sujos, arrastando-se de um lado para outro com dificuldade. O marinheiro Mário Quadros passou ali 6 meses sem que lhe fosse permitido lavar sequer o rosto. Saiu diretamente para o hospital. Quase todos que a Polícia esquecia intencionalmente na sala de carceragem adquiriam tremendas dores reumáticas. Eram frequentes os casos de pneumonia, e mais frequentes, ainda, os de tuberculose.

Não havia vaga na Casa de Correção, na Casa de Detenção ou no xadrez da Polícia Especial. Os cubículos do Sr. Getúlio Vargas estavam abarrotados. Ora, certa noite, os investigadores vieram à porta da carceragem da Polícia Central. Temerosamente, porque temiam a explosão de ódio terrivelmente concentrado dos presos martirizados. Sob a ameaça das armas de fogo, os detidos foram saindo, e entrando nos carros-fortes que os aguardavam lá fora, já repletos de criminosos comuns, assassinos e ladrões. Embora fosse noite escura, perceberam que estavam chegando ao Cais do Porto. Embarcados num navio do Lóide Brasileiro, foram ter à Colônia Correcional de Dois Rios. Mal desceram, outro inferno se abriu para eles.


 

A Ilha miserável

 

O Tenente Vitório Caneppa, integralista juramentado, diretor do presídio, esperava-nos no cais e nos recebeu com um aparato bélico simplesmente ridículo. Um anspeçada, cujo nome saberíamos depois ser Aguiar, deu o primeiro grito:

— Atenção! Todos de braços cruzados!

Ai daquele que não obedecesse à ordem do pigmeu! A seu lado, soberanos e compenetrados, estavam Caneppa, Armando, um bando de guardas e de policiais, todos armados e furiosos. A massa humana, exausta de tanta fome e tanto suplício, homens embranquecidos por viverem meses sem ver o sol, se via agora entregue ao sádico Tenente Caneppa e a um bando de policiais habituados a espancarem os presos sem o menor motivo. Rumamos para os alojamentos. Quatro casarões lembrando as instalações penitenciárias da Monarquia. Entramos. Não havia cama, enxerga ou qualquer outra coisa em que se pudesse deitar o corpo cansado. Quando os presos fizeram menção de se despejarem no solo, arrebentados que estavam, o Tenente Vitório Caneppa deu uma ordem em contrário: — “Não se mexam!” Pouco depois — cúmulo da perversidade! — entravam seus homens e punham todos os presos para fora. Depois, ainda por determinação de Caneppa, os guardas espalharam areia molhada trazida da praia pelo chão dos quatro alojamentos. Não tínhamos dormido na véspera do embarque, nem durante a viagem, nem comido um naco de pão. Agora, quinhentos homens, quinhentos trapos humanos, ali estavam, de pé, sem poder deitar no chão umedecido. É verdade que um ou outro, completamente derrotado pelo cansaço, dormia assim mesmo, embora soubesse que a doença viria depois. Foi uma noite temerosa, igual às muitas passadas nos terríveis porões da Polícia Central. Manhã cedo, os guardas nos vieram buscar. Sorridentes, bem descansados, barbeados e felizes, perguntáva-nos se havíamos dormido bem. — “Entrar em forma!” — gritava o chefe. Marchando, como se fôssemos militares, tomamos o rumo do rancho, onde nos serviram uma água preta cujo nome não sei até hoje. Pão não havia, pois o padeiro não recebera ordem de aumentar a quantidade em proporção ao número dos presos recém-chegados. Que importância tinha para o diretor que quinhentos homens ficassem alguns dias sem comer pão? Voltamos todos de braços cruzados, pois essa era a ordem terminante, em filas enormes, com policiais de armas embaladas acompanhando-nos de 5 em 5 metros. Os guardas vinham depois, lançando-nos insultos sem a menor razão.

Mais tarde, travamos conhecimento com o médico, Dr. Sardinha. Cem anos não bastarão para qualquer um de nós, e cem anos não farão esquecer aquele tipo asqueroso e perverso, um dos grandes criminosos que terão de responder pelos atos contra seres humanos indefesos. Os presos sentiam verdadeiro horror em presença do Dr. Sardinha. Estávamos barbados, sujos, cheios de muquirana, catinguentos, com sarnas, pela falta d’água, pois a diretoria do presídio nos negava o direito ao banho. O Doutor Sardinha sabia disso, da proibição do uso da água; mas, fingindo desconhecê-la, insultava-nos com palavras de baixo calão, e quando um de nós tentava explicar a verdadeira situação, ele gritava: — “Cale-se, cachorro!” Outras vezes, esbofeteava quem respondesse, sem mais nem menos, bem protegido se achava o mísero doutor, pelos guardas que o rodeavam. Depois de examinar-nos rapidamente, na primeira visita, os presos eram distribuídos pelas várias turmas de trabalhos forçados:

— A Viga

— A Olaria

— A Estrada

— A Lenha

— A Horta

— Serviços Diversos.

A turma da viga era a mais sacrificada, pois tinha de puxar pesadíssimas toras de 5 a 8 toneladas, desde o morro até a vila. Os guardas vinham atrás com dois policiais embalados. Em meio do caminho, um deles cismava de surrar qualquer dos presos. Batia em silêncio ou proferindo imensos palavrões. O preso suportava tudo calado, ou seria pior. Os espancamentos sem o menor motivo eram frequentes.

Quase sempre, por estranha predileção dos guardas, o que ia no fim da fila apanhava. Por isso os presos determinavam entre si o derradeiro lugar, para que o mesmo preso não levasse surras dia após dia.

Altas horas, quando a turma estava carregando as toras de madeira, chegavam presos trazendo a comida. Vinha a bóia em latas de querosene. Farofa de osso, arroz que mais parecia uma pasta branca repugnante, um tutu de feijão que embrulharia o estômago de um mendigo da Lapa e provocaria vômitos a um cachorro vira-lata. Esse, o nosso alimento. Ai de quem reclamasse!

A turma de lenha também era das mais sacrificadas. Ia buscar troncos de árvores menores no alto da serra e, sem isto nem aquilo, o guarda cismava, dizia que tal preso era vagabundo e devia trazer mais lenha. Lá voltava o coitado, estimulado por grossas lambadas nas costas. A turma da estrada, por sua vez, fora incumbida de rasgar um caminho da Colônia até o lugar denominado “Abraão”. O trabalho de sol a sol sob pancada fazia arriar muitos homens. A alimentação péssima não lhes renovava as forças. — “Vocês aqui têm direito a pão e fome!” — repetia sempre o Tenente Vitório Caneppa. Vez por outra, um policial de coração melhor acendia um cigarro, dava uma tragada e jogava o toco aceso. O preso ao lado se curvava, apanhava o cigarro e este passava por cinquenta lábios ansiosos por uma tragada. Quem fuma pode compreender o martírio daqueles homens proibidos de fumar de uma hora para outra. A fome era outro problema. Devoravam até as cascas de banana.

Quando a noite chegava, seus corpos estavam moles, derrotados pelo cansaço, e deitavam-se no chão coberto pela areia úmida que o Tenente Vitório Caneppa mandava despejar todo santo dia. Outra manhã surgia, e lá estavam eles, cadavéricos, sonolentos, arrasados, doentes, sujos, famintos, na mais espantosa e terrível fila que se pode imaginar. Um ou outro, vencido pela doença, procurava esconder-se no alojamento. Os guardas contavam os presos, e, notando a ausência, destacava-se o anspeçada Aguiar para ir buscar o faltoso. O pequeno Aguiar se sentia feliz nessas horas. Vibrava. Suavemente, ia trazer o “camarão”, uma espécie de mostruoso chicote, e entrava devagarinho, gozando os minutos. Voltava com o preso debaixo de pancadas na nuca. — “É o lugar melhor para se bater” — repetia sempre. O fujão era posto no último lugar da fila, para apanhar durante toda a caminhada pelo morro acima.

A doença lavrou entre os presos, finalmente. Nem isto foi motivo para dispensa. Enquanto um homem podia permanecer em pé, estava são para o Doutor Sardinha, para o Tenente Caneppa e para o seu secretário Armando. Certo dia, o marinheiro Fernando estava na fila, e o soldado “Cigano” mandou a turma cruzar os braços. Por um desses azares inexplicáveis, o marinheiro não ouviu. Aguiar, e “Cigano”, se aproximaram, e a um só tempo, como se tivessem sido movidos pela mesma força, vibraram duas pancadas na cabeça do rapaz. Este caiu fulminado. Os dois policiais continuaram a espancá-lo. Largaram-no, por fim, e os companheiros levaram o ferido para a enfermaria. Todos os dias havia surra. O anspeçada Aguiar, baixinho, ordenava aos presos altos que se abaixassem para esbofetear-lhes o rosto. O Tenente Caneppa, o Armando e o Dr. Sardinha achavam uma graça especial nessa cena: o homúnculo levantando os braços para atingir o homenzarrão. — “É boa, não acha?” — dizia entre risos o diretor. Os presos ouviam em silêncio.

Os casos de doenças determinadas pela fome, pelas noites sobre o chão molhado, pelo trabalho desumano, se multiplicaram. Tuberculose às centenas vagavam entre os presos. Impossível se tomava a hospitalização, pois a capacidade da enfermaria estava praticamente esgotada. Surgiu então a patética solução do Dr. Sardinha. Aplicava certa injeção no doente. Que injeção era, ninguém o sabia. Mas o doente, em vez de melhorar, piorava e morria. Eutanásia? Um mistério. Em dois anos, centenas de presos morreram, e se supõe que a causa estivesse naquelas ampolas de líquido branco que o Doutor Sardinha lhes injetava, serenamente.

A vida continuou na ilha miserável. Vida de cão, terrível e má. Todos os dias, o caminho da viga, o rumo da estrada, o acesso à lenha, o trabalho na horta e aquela comida intragável, aquelas noites sobre o chão molhado com areia trazida da praia. Todos os dias, o anspeçada Aguiar com seus pequenos gestos, seu pequeno sorriso, seus pequenos golpes de chicote, seu pequeno coração. E o Tenente Vitório Caneppa assistindo à cena e rindo, rindo, pensando na tarde do dia seguinte, no Rio, quando iria buscar a baratinha vermelha para uma volta em Copacabana, ao lado de alguém, bem longe, muito longe daqueles seres imundos e desprezíveis. Mas esta é outra história.


 

Lá onde tudo se acaba: Fernando de Noronha

 

Lá onde tudo se acaba — Fernando de Noronha, a ilha esquecida no Atlântico — os operários, os intelectuais e os militares sentenciados eram condenados, sem o mínimo de conforto, a uma existência incompatível com a condição humana. Entregues a um bando de gaúchos da fronteira, desalmados, sofriam os mais cruéis castigos, dia após dia, incessantemente, durante longos e intermináveis anos. Mal desembarcavam, logo os guardas, exibindo seus chapelões e suas enormes botas, trazendo à cintura o facão e o revólver, conduziam os presos desde a praia de Santo Antônio até a sede do comando, onde cada qual dava seu nome e recebia um número.

Dois alojamentos existiam na ilha: um para os comunistas e aliancistas, outro para os integralistas. Os primeiros tinham organização modelar. O “coletivo” procurava melhorar as condições dos presos filiados aos partidos da esquerda. A diretoria era composta de um presidente, um secretário, um tesoureiro, um ministro do trabalho e outro ministro de arte e cultura. Cada filiado se incumbia de uma tarefa. O presidente, nos três meses de sua gestão, se responsabilizava perante as autoridades do presídio. O ministro do trabalho traçava e dirigia os serviços das várias turmas da horta, da água, da cozinha, da lavoura, dos aviários e da turma extra, para outros serviços variados. A horta era grande, produzindo verdura para os presos comunistas e aliancistas e para os funcionários. A turma que carregava água nunca deixava que esse elemento, precioso e raro na Ilha, faltasse aos membros do “coletivo” nos gastos da cozinha e para consumo próprio. A turma da lavoura se desincumbia magnificamente de suas missões. No aviário, as galinhas e outras aves nunca escasseavam. Havia ainda uma biblioteca cheia de livros que os parentes mandavam do continente. A turma extra, entretanto, ocupava maior número de pessoas. Eram padeiros, eram pedreiros, serventes eletricistas, ferreiros, alfaiates, sapateiros e outros profissionais. Duas máquinas, uma de costura, outra para consertos de sapatos, trabalhavam incessantemente. Os esquerdistas construíam em Fernando de Noronha uma obra que até hoje depõe em favor de seu espírito disciplinado e empreendedor. A horta prestou excepcionais serviços aos soldados brasileiros durante a guerra. O poço que os presos cavaram com espantosa dificuldade e a enorme caixa d’água de cimento armado, o teatrinho onde representaram numerosas peças aplaudidas por toda a população da Ilha foram realizações que exigiram vontade, dadas as condições difíceis da Ilha, onde faltava tudo. Escolas foram criadas, com várias turmas, para a população, e iam desde a alfabetização até o ensino de Matemática e de outras matérias adiantadas. Hoje, alguns rapazes que, ao serem presos, eram analfabetos colaboram em jornais e leem Jaurés no origmal. Construíram, também, uma praça de esportes, embora reduzida. Fundaram a Universidade Popular, onde operários aprendiam coisas úteis para o futuro, adquirindo gosto pela literatura. Entre eles, os casos de doença eram imediatamente debelados, pois tinham um posto médico perfeito, com remédios em abundância, vindos das cidades em que residiam seus parentes e amigos. Além disso, mantinham uma excelente indústria de cocos. Das cascas dos frutos, os trabalhadores faziam tinteiros, aviões, paliteiros, porta-jóias, verdadeiras maravilhas de habilidade manual, as quais, remetidas para o continente, produziam recursos para desenvolver o “coletivo”. Outros presos se ocupavam, ainda, do serviço do ambulatório, do correio, da mesa telefônica ou do gabinete dentário.

Tal foi a demonstração de eficiência dos presos esquerdistas, que os outros ficaram esmagados. Atravessava o mundo, nessa época, a negra fase das espetaculares vitórias alemãs, e o Governo Brasileiro fizera profissão de fé nazista. Procurava-se desmoralizar os presos da esquerda, jogando os guardas do presídio contra os comunistas e aliancistas. Além das provocações integralistas, as restrições aos que não acreditavam em Hitler eram terríveis. Não esmoreciam, porém, nem mesmo quando tudo parecia perdido, a Europa quase inteira nas mãos dos invasores germânicos. Nada quebrava a fé. “A contra-revolução nunca vencerá a revolução”, repetiam sempre. Assim foi.

Entre os esquerdistas, não havia capitão, tenente, sargento, cabo ou soldado. Todos eram iguais. Confundiam-se operários e capitães no trabalho ou na cozinha. O que comiam os operários, comiam os capitães. Não havia separação. Ao passo que, com os integralistas, tudo era diferente. Os Comandantes Nuno, Massena, Gonçalves e Nascimento moravam em casas boas, e suas refeições não eram as mesmas dos demais presos integralistas de baixa posição social ou inferiores na hierarquia militar. O próprio Dr. Belmiro Valverde residia numa ótima casa.

Na zona dos esquerdistas, era bastante comum ver-se um capitão pegar num saco, ao lado de um operário, e carregá-lo sem nenhuma vergonha. O Capitão Álvaro de Souza sempre procedeu assim. Todos os oficiais entregavam o que recebiam de seus soidos ao “coletivo”, para os gastos de todos. Quando chegava um navio do Rio, os operários e os oficiais da esquerda iam fazer o desembarque, todos de calção, sem camisa. Com rodilhas na cabeça, transportavam a carga para a terra. Entre eles figuravam Agildo Barata, Agberto, Álvaro de Souza, Carlos Marighella. Havia respeito, sem subserviência. Nas aulas, os professores eram respeitados como professores. Na Ilha, os homens eram respeitados como homens. Todos se estimavam como bons companheiros.

Durante longos dez anos, assim viveram os comunistas e aliancistas, primeiro na Ilha de Fernando de Noronha, depois na Ilha Grande, onde foi libertá-los um movimento popular orientado pelos democratas honestos. Lá também estiveram os integralistas, vivendo em ambiente favorável, pois o chefe de polícia era o Sr. Filinto Strubling Müller, a Alemanha vencia em toda a linha e tudo estava às mil maravilhas. Facilitava-se a essa classe de presos o máximo. Mas a Senhora Agildo Barata, somente por angariar medicamentos para os comunistas e aliancistas presos, foi detida várias vezes pela polícia do Rio. No tempo em que os Aliados sofriam espetaculares derrotas, os integralistas diziam abertamente que o Brasil se preparava para recebê-los como heróis e vencedores. Bastaria Hitler chegar a Dakar. Segundo eles, a chamada Ação Integralista Brasileira tinha homens em lugares-chaves, prontos a entrar em ação no caso de ataque nazista a este país, facilitando tudo aos invasores.

Havia ódio, divisão entre os integralistas. O velho Dr. Belmiro Valverde preparava uma fuga espetacular, juntamente com alguns sargentos, entre os quais o Pereira Lima, que ajudou Fournier no assalto ao Guanabara, e o Luís Gonzaga, que abriu o portão da residência do Sr. Getúlio Vargas. Um deles denunciou a fuga do “velho”, e por isso houve briga para um mês inteiro. Mesmo na Ilha Grande, o Dr. Belmiro Valverde preparou outra fuga. (Ele já fugira no Rio de Janeiro.) Ele, Franklin, Pinheiro e o marinheiro Benevenuto, o campeão de natação, sairiam, à noite, numa canoa que este último, de serviço no estaleiro, furtara habilmente. Belmiro Valverde rapou a cabeça, vestiu uniforme de marinheiro e ficou esperando Pinheiro. Este, que tinha em sua cela as serras necessárias ao trabalho de coco, serrou as grades. Os comunistas faziam uma conferência na 3ª Galeria, e Belmiro Valverde, aproveitando a ocasião excepcional, lançou uma corda e já ia pular, quando Benevenuto, o marinheiro integralista que tinha ajudado a preparar a fuga, foi correndo avisar a chefia. Dado o alarma, apanharam o “velho” com a boca na botija.

Em sua maior parte, os integralistas eram todos degenerados e viviam em franca promiscuidade com os presos comuns. A própria direção do presídio dizia que entre um integralista e um criminoso vulgar não havia diferença. Porque entre os integralistas não havia convicção política, mas muito pouca-vergonha. Eram ativos ou passivos. A bem da verdade, é preciso observar que havia exceções.

Entre os fatos notórios da “moral integralista” observava-se a hipocrisia em relação à família. Certo dia, juntos em Fernando de Noronha, vários presos políticos das duas correntes estavam tomando banho de mar na Praia do Cachorro. Na conversa entrou um integralista, de nome Correia, dizendo que havia desvirginado 40 moças. A essa altura, um preso esquerdista, chamado Sebastião, ex-cabra da polícia de Pernambuco, cujo apelido era “Jararaca”, diz ao integralista que se vangloriava de tantas proezas amorosas: — “Imagine que o senhor é um ardente defensor da família brasileira, como bom integralista. Pois bem, aqui temos muitos comunistas e aliancistas e nunca fizeram isso. São honrados chefes de família, pais de muitas jovens”.

O mar entrava pela areia, inundando a praia. Durante vários anos ele foi testemunha daquelas conversas, onde os conceitos fascistas sofriam total transformação e apareciam tal qual sempre foram e que o “Jararaca” definia como “pior que bosta”.

O caminho para a prisão fora aberto aos integralistas, por uma “série” de acontecimentos inesperados, quando eles já se julgavam aptos a assumir o poder. Conchavos tinham sido realizados entre Plínio Salgado e Getúlio Vargas. Este oferecera ao chefe verde a participação em seu Ministério, convite recusado porque o fascista sonhava voar mais alto. O célebre Cohen, imaginando uma fantástica revolução, era lançado às barbas do País e possibilitava a dissolução do Parlamento e a implantação de um governo ditatorial. Sentindo-se traídos, os integralistas protestavam ruidosamente por não terem sido chamados a participar do novo governo. A essa altura, Prestes e Berger já se encontravam presos e Barón assassinado pela célebre injeção e depois atirado, morto, pela sacada da Polícia, a fim de aparentar suicídio e ser dada satisfação ao povo.

Desmoralizados, os chefes políticos começaram a fazer serviços de conspiração. Na madrugada de 11 de maio, um grupo chefiado pelo Dr. Belmiro Valverde e pelo tenente não-integralista Severo Fournier tentou penetrar no Guanabara. Depois de três horas e meia de luta, foram presos alguns assaltantes, pois outros tinham fugido deixando Fournier em maus lençóis.

Enquanto isto se passava em chão firme, o Comandante Nuno, os Tenentes Hasselman e Gonçalves tentaram sublevar o “Rio Grande do Sul”. Imediatamente, uma lancha de gasolina com uma escolta embalada atracou no cruzador e o tenente que a comandava gritou: — “Nuno, desça!” E ele desceu. Com ele veio toda a guarnição revoltada.

Condenados, afinal, foram removidos para a Ilha de Fernando de Noronha, onde, como ficou dito, os chefes tinham privilégios. O Comandante Nuno residia numa casa mandada construir especialmente para ele. Os chefes integralistas comiam bons pitéis, que vinham do continente, mandados pelas autoridades, inclusive pelo próprio Filinto Müller. Mal os navios chegavam, via-se a carga fabulosa destinada aos integralistas, mandada por importantes firmas, entre as quais o Laboratório Silva Araújo, Casa York e outras. Somente o Sr. Sérgio Silva, de uma vez, mandou 180 contos de réis para os integralistas presos. Levavam estes a vida de príncipes no exílio. Mas, inesperadamente, o Dr. Belmiro Valverde rompeu com os oficiais, as brigas se tomaram constantes. A pederastia campeava entre os outros integralistas como verdadeira praga. Muitas vezes o escândalo era de tal ordem que os guardas se viam obrigados a intervir. O próprio Coronel Veríssimo, diretor do presídio, lavrou um flagrante entre um engenheiro integralista e outro companheiro, em situação lamentabilíssíma. Quando o Major Teimo reclamava contra esses excessos, os integralistas voltavam-lhe as costas. Lá também o velho Belmiro Valverde planejou uma fuga, com seu incontrolável espírito de aventura, mas o Sargento Lima denunciou a fuga, por lhe haverem recusado participar na mesma. Em consequência, Lima apanhou uma vastíssima surra.


 

Filinto Müller ataca

 

Nesse mesmo período a Polícia do Rio preparava nova revolução, pois havia necessidade de nova verba secreta. Estávamos em 1939, e um grupo de patriotas, com Raul Ribeiro à frente, desfraldara a bandeira da industrialização do País, e elementos comunistas apoiaram tal ideia, realizando conferências em vários lugares. Filinto Müller, que esperava uma ocasião propícia, começou a fazer seus preparativos. Chamou os ex-marinheiros Tupan e Boreste, transformados em agentes da Polícia Política, e deu-lhes a incumbência da provocação. Reuniu os investigadores e disse-lhes que o Partido Comunista estava preparando uma nova revolução. Já podia exibir um vasto relatório contando a atividade de elementos graúdos do Partido Comunista do Brasil. Ao que parece, o Ministério não concordava com a vultosa verba secreta pedida pela Chefatura de Polícia, exceto o Ministro da Guerra. Cumpria assim revelar o perigo da situação.

Filinto Strubling Müller dá uma ordem e os policiais saem em campo, numa atividade espantosa. Todos os homens da Polícia Política são mobilizados. Seus satélites, informantes de todas as classes, não escapam à medida de serviço ativo de obter, fossem quais fossem, elementos de prova de um movimento revolucionário comunista. O movimento não existia, e isto dificultava ainda mais o trabalho dos detetives, investigadores e informantes policiais. Até falsos espíritas foram lançados à tarefa, na sensacional mobilização. Aristides, funcionário da Prefeitura e que fazia serviços extras para a Polícia, nas horas vagas recebia os crentes para dar “passes”. Aproveita a oportunidade e colhe indícios que a Polícia transformará em fatos positivos e irrespondíveis. Um gráfico residente no subúrbio de Ricardo de Albuquerque acredita nas rezas de Aristides e vai procurá-lo. Aristides, o charlatão, explora-o, arranca todo o dinheiro do infeliz, deixa-lhe a família na miséria e, ainda por cima, com a delação simples e pura, arranja oito anos de cadeia para o gráfico.

Os primeiros detidos sofrem torturas espantosas. Uns resistem heroicamente aos apertos dos testículos, aos maçaricos nas nádegas e na sola dos pés e às duras pancadas nas costas e nos rins. As sessões espíritas funcionam dia e noite sem parar. A “máscara de ouro”, a cadeira americana, as unhas arrancadas com alicates, os alfinetes espetados embaixo das unhas, os “adelfís”, eis os instrumentos de suplício que arrancam gargalhadas dos policiais. Mas os presos não confessam. Gente dura. Os maiorais da tirania, então, comparecem. Os policiais Afonso Costa, Caetano, Nílton, Monteiro, Segadas Viana e outros sabem como ninguém arrancar as confissões. Se o preso surrado, martirizado, ensanguentado, sem unhas, ainda resistia, eles mandavam buscar a esposa ou a filha e, na presença do homem resistente, ela era espancada. Se ele ainda se mantivesse firme, a mulher era posta nua, e em sua vagina os miseráveis introduziam buchas de mostarda. Houve vários casos de senhoras deixarem a Polícia Central com fortes hemorragias. Maria, esposa de um negro chamado Alberto, desconhecido nos meios comunistas, mas tido como tal pela Polícia, apanhou tanto que sofreu um aborto, vindo a falecer mais tarde em consequência dele. Uma senhora de nome Antônia Xavier teve as unhas arrancadas e passou pelas torturas mais inacreditáveis. Aída, esposa de um comunista, viu arrancadas todas as suas roupas em presença do marido. Nua, introduziram-lhe a famosa bucha de mostarda. Ele não falava, não confessava. Alfinetes foram enfiados sob as unhas da mulher, até que ela perdeu os sentidos.

Elias Reginaldo da Silva teve os testículos queimados a fogo de maçarico. No porão da Polícia Central, os presos arrebentados iam amontoando, numa visão dantesca. Já não havia lugar para tantas vítimas dos desalmados. Os ferimentos, sem curativos, criavam pus, e um cheiro desagradável enchia a sala da carceragem. Outros, postos em liberdade por vários motivos, recebiam ameaças terríveis. Se falassem, voltariam, e então seria pior. Por isso, ficavam calados e, se alguém tocasse no assunto de sua prisão, empalideciam e calavam.

O médico Milton Lobato tinha sob tratamento, em seu consultório, um tuberculoso de nome Pedro de Oliveira. Preso este, ao ser interrogado, declarou estar gravemente enfermo, e como testemunho citou o nome do médico que lhe aplicava o pneumotórax. Imediatamente, a Polícia voou para o consultório do Dr. Milton Lobato e prendeu-o. — “Nunca fui comunista” — protestou o doutor. Até que provasse, levaram-no para a mesma sala de carceragem, o fétido porão da Polícia Central. E lá ele encontrou Pedro de Oliveira, o tuberculoso, completamente deformado de tanto apanhar e pondo sangue pela boca a todo momento, no meio de cem presos acotovelados em alguns metros quadrados. Tão pequeno era o espaço que os outros não podiam fugir ao sangue do enfermo.

O Doutor Demétrio Hamman, advogado de passado limpo e lutador incansável por um mundo melhor, estava inscrito para a vaga de catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito. Ia fazer o mesmo concurso um professor integralista, de cujo nome não me lembro. O mísero fascista imediatamente denunciou o concorrente, que levava sobre ele vantagem esmagadora. O Dr. Hamman foi preso e o integralista ganhou o concurso. O filho desse advogado, por simples suspeita, ficou vários meses na prisão, sofrendo as maiores humilhações imagináveis. A vida íntima do Dr. Demétrio Hamman foi vasculhada. Felizmente, tratava-se de uma pessoa muito digna, e nenhuma brecha pôde ser encontrada.

O preso Matias, o gráfico Celestino e outros viram os policiais enrolarem um jornal e, acendendo-o com um fósforo, aproximarem o fogo de suas partes sexuais, queimando todas as partes cabeludas, com o mais espantoso cinismo. O velho Francisco Natividade Lira, depois de passar por todas as torturas, sentiu que lhe abriam a boca à força e lhe arrancavam os dentes a alicate. Mesmo assim, sangrando, o velho não confessava o crime que não cometera. Enfiaram-lhe, então, um arame pelos ouvidos. O infeliz Francisco Natividade Lira enlouqueceu e depois morreu, em consequência desse bárbaro processo de arrancar confissões.

O operário Vespasiano Meireles e seu companheiro João Penha, além de outros martírios, foram queimados a ponta de charuto. O ferroviário Antônio Soares — o “Aço” — apanhou em silêncio, teve as unhas arrancadas, sempre em silêncio, e com os médicos à cabeceira, pois os policiais não queriam que ele morresse antes da confissão. Antônio, senhor de um organismo excepcional, sobreviveu e nada contou. Lauro Reginaldo passou por crueldades semelhantes. Unhas e dentes arrancados, “máscara de couro”, “adelfís” e o que mais utilizava a Polícia.

Marcante é o caso de uns soldados da Polícia que entraram presos no gabinete do Tenente Emílio Romano. Entre os soldados vinha um civil muito jovem e singularmente impecável em sua roupa nova. Estava assim quando entrou na sala ao lado, em companhia de Romano e de outros policiais. Quando saiu, estava irreconhecível, sangrando, as roupas em trapos, os olhos inchados. Chamava-se Pinho e trabalhava como gráfico numa empresa jornalística. Mandaram-no embora depois do interrogatório. Ele procurou um hospital, mas os médicos não o aceitaram, tal o estado de deformação em que se achava. Os demais soldados da Polícia Militar ficaram em idênticas condições.

Vários presos deixavam a carceragem, altas horas da madrugada, levados pelos agentes da Polícia, e nunca mais apareciam. Até hoje não há notícias desses infelizes, barbaramente mortos a tiros em lugares ermos do Rio. O carpinteiro Manuel Ferreira foi assassinado da maneira mais primitiva: a pauladas, na presença de todos os seus companheiros presos. Fernando Gonzalez, funcionário da Diretoria de Obras Públicas, sofreu o mesmo castigo: morto a pau pelos carrascos da Polícia. Outro, chamado Aloísio, depois de assassinado, foi jogado pela sacada a fim de parecer suicídio. Um padeirinho, Ferreira, ficou louco de tanto apanhar e atirou-se do 3º andar ao solo, morrendo imediatamente.

Recordam-se todos os presos daquela época do horripilante caso do alfaiate Diocesano Martins. Depois de massacrado, por Segadas Viana(2), Martins, Caetano, Nííton e outros agentes da Polícia, viu-se jogado no cubículo. À primeira vista, os companheiros não o identificaram, tal o estado em que se achava. Tiraram-lhe as roupas ensanguentadas, e — por milagre — essas roupas foram mandadas para a residência de Diocesano, onde, até hoje, são guardadas religiosamente. Esse alfaiate se recusara a assinar o depoimento escrito pela Polícia, e para tal recusa alegava não haver cometido aquele crime. Nem ao menos conhecia o local indicado no depoimento. A cada recusa, mais surras. Diocesano, todo quebrado, viu que os policiais não hesitariam em praticar as maiores baixezas. Diocesano assinou o depoimento falso.

Há ainda a atitude do marinheiro Daniel Valença, que, informado da tristíssima situação de seus companheiros presos, resolveu apresentar-se para assumir parte da responsabilidade, dando aos fatos a verdadeira história. Nem assim o pouparam. Sofreu iguais suplícios. De tal maneira a Polícia o injuriou, buscando desmoralizá-lo, que a esposa o abandonou, pois “seu marido era um monstro”. Voltaria meses depois, arrependida e certa de que tudo não passava de uma habilidade policial várias vezes utilizada. Soube, também, que o depoimento de seu marido era falso, pois ele não prestara qualquer informação à Polícia, sendo obrigado a assinar em cruz sem ao menos ler o que estava assinando.

Antônio de Azevedo Costa era acusado de um crime a determinada hora. Apresentou o livro de ponto da oficina em que trabalhava, provando que àquela hora estava trabalhando a muitos quilômetros do local do assassínio que lhe era atribuído, O policial Veras sacudiu os ombros e disse que aquilo não valia como prova capaz de destruir a afirmativa da Polícia. E Azevedo foi condenado.

O marinheiro Vítor, que faleceu em Bangu em consequência das torturas, declarou ao mesmo Veras que desmentiria tudo perante o Tribunal de Segurança. Veras respondeu cinicamente: — “Ali vocês não arranjam nada. Quem manda no Tribunal de Segurança é a Polícia. As sentenças já saem escritas da Polícia. O Tribunal apenas as ratifica”.


 

O Tribunal de Segurança vende absolvições

 

Sempre causou estranheza, aos presos falsamente acusados de crimes que nunca pensaram em cometer, a presença, no mesmo inquérito, de outros implicados que tudo confessavam sem temor das sentenças judiciais. Descobriu-se, depois, que esses tipos nunca iam a julgamento e suas confissões eram rasgadas. A Polícia contratava tais indivíduos para que servissem de instrumento na condenação dos outros.

Em certa oportunidade, um investigador do Palácio Guanabara, chamado Bezerra, foi preso e, depois de apanhar muito, conseguiu enviar um aviso ao Gregório, que chefiava a guarda pessoal do Ditador. Este foi lá e libertou o investigador. Ao passar por Diocesano, perguntou-lhe: — “Que foi que você fez?” O alfaiate respondeu: — “Estou sendo acusado de ter morto uma pessoa. Não sei se é homem ou mulher”. O Gregório se voltou para o Veras e disse: — “Esse homem é incapaz de fazer mal a uma mosca”. Veras sacudiu os ombros e disse: — “Isto é assunto do chefe”. Compreendendo, Gregório saiu em companhia de seu protegido. Os que ficaram, receberam sentenças que chegaram a 60 anos de prisão.

A maneira de se reduzir as penas no Tribunal de Segurança era desapertar a bolsa e pagar bem. Houve o caso de um jovem comunista, com grande responsabilidade no Partido, que sabia o que sucederia se caísse nas mãos dos policiais. Denunciado pelo cabo Itamar, um preso que não resistiu às torturas e revelou os nomes dos cúmplices, Otávio Valêncio, tal era seu nome, conseguiu boas gratificações e, à custa de ótimas gorjetas, ouviu do Benedito esta declaração: — “Nada posso fazer para soltá-lo porque o Itamar carregou muito. Mas você ganhará 2 anos de prisão. É sopa. Depois de três meses, peça uma revisão que eu arranjarei com o Serafim Braga para que você saia livre”. Tudo aconteceu conforme o plano traçado. No Tribunal de Segurança, os ricos sempre eram absolvidos. É típico o caso dos integralistas da Câmara dos 40. O fascista milionário Sérgio Silva tirou do cofre 140 contos de réis e conseguiu a liberdade. O mesmo sucedeu com os abastados sitiantes de Campo Grande.

O escândalo do capitalista Juvêncio nunca será esquecido. Esse integralista, criador de gado na Ilha de Marajó e pertencente a uma das famílias mais ricas do Brasil, foi condenado a muitos anos. Metido na Casa de Correção, mandou chamar o Dr. Moésias Rollim, célebre advogado, e disse: — “Doutor, quero brincar o carnaval. Tenho em meu poder o livro de cheques”. O Doutor Rollim respondeu que ia tratar do caso, mas — “o senhor sabe como são os juízes do Tribunal de Segurança”. Estavam nos fins de dezembro. Os processos levavam, geralmente, três ou quatro meses, no mínimo, para serem revistos. O de Juvêncio correu rápido. O capitalista foi julgado novamente e sua pena desceu para 1 ano. Ele já cumprira parte desse prazo, e o Dr. Moésias Rollim compareceu lá com o requerimento de liberdade condicional já despachado. Juvêncio foi solto na véspera do carnaval e saiu já fantasiado da Correção para o baile do Municipal.

Na Polícia Central havia sensível diferença na maneira de tratar comunistas e integralistas. Estes não passavam de aliados caídos em desgraça e mereciam o respeito e benevolência dos chefes. O caso do assassínio lento de Severo Fournier não merece ser apontado em contrário, pois esse bravo militar não era integralista. Os camisas-verdes jamais sofriam torturas, a não ser em casos especialíssimos. Tudo porque, entre os fascistas, a Polícia dispunha dos melhores informantes. O Capitão Batista Teixeira, por exemplo, protegia o marinheiro “Cavalaria”, participante do assalto do Arsenal de Marinha, na revolução integralista, e autor, naquele local, de duas mortes. — “Cala a boca” — disse-lhe o Capitão Batista Teixeira — “que irei aliviar a pena. Uma revisão e depois a liberdade”. Assim se fez.

Naquele instante em que a sereníssima e autorizada voz de Gilberto Freire se levantou em favor dos condenados de Nuremberg, ele queria dizer, talvez, que o crime desses homens fora enorme, mas outros crimes praticados com igual requinte de selvageria permaneciam impunes.

Falta alguém em Nuremberg. Revendo na memória as cenas de terror que se passaram dentro da Polícia Central, “onde até as paredes eram criminosas”, um jornalista consciente sente que é impossível querer mais, no terreno da barbaria. Os policiais da Ordem Política do Governo Vargas superaram o máximo, na técnica do espancamento, da tortura, do assassínio, da carnificina organizada com métodos.

Certa vez, um moço integralista da Marinha de Guerra, guarda-marinha mal saído da Escola Naval, intoxicado pela propaganda fascista, entrou no gabinete do chefe da Ordem Política. O “tenente” Emílio Romano, que depois seria processado por chantagem, era o “manda-chuva”. Romano tinha cara de anjo. Tratou o guarda-marinha com amabilidade. — “Menino, como é que você foi se deixar levar por essas conversas?” O moço se desculpou, alegando inexperiência. O Detetive Romano se curvou sobre a calça:

— Veja, estou sujo!

— É sangue! — disse o guarda-marinha, curvando-se também.

Foi quando Romano se ergueu, de repente. Seus braços subiram com força de uma catapulta, apanhando o guarda-marinha à altura do queixo e atírando-o a distância. A cabeça do jovem bateu contra a parede e o sangue se esparramou, devagar, em ziguezague. Ninguém me contou isto. Eu vi. Estava lá, fazendo uma reportagem policial, e o acaso me colocou entre aquela gente. Nada me deixou mais impressionado do que o detalhe final. Romano arrumou a gravata e saiu do gabinete, já com o sorriso dançando nos lábios. Alguém estava na outra sala e ouviu o que ele dizia, alegremente:

— Meu filho, qual é o seu caso?

Quantas vezes um chefe de família era acusado de comunista sem jamais ter o mais leve pensamento leninista! Sabemos de um rapaz que namorou — este não é bem o termo — a empregada de um agente de polícia de muita influência. O conquistador foi preso como perigoso agente marxista e trancafiado no xadrez da Polícia Central. Outro, por qualquer circunstância, teve uma desinteligência com um dos chefões. Teve a cama preparada deste modo: o mata-mosquitos recebeu a incumbência de jogar dentro da gaveta de um móvel qualquer um maço de papéis comprometedores, boletins de propaganda comunista. Duas horas depois, a caravana policial chegou, deu ordem de prisão ao incauto cavalheiro e — prova irrefutável! — descobriu na gaveta do móvel a documentação que serviria para todo o processo. O homem foi condenado.

No Rio era Filinto Müller o responsável. Em São Paulo, o torturador Apolônio. Em Pernambuco, Mindelo e Etelvino. Vários corpos de operários foram encontrados em Recife e todos eles tinham o cérebro esmigalhado. Entre aqueles que foram identificados, estava um certo bispo, José Maria, e Abelardo Bezerra, irmão do Deputado Gregório Bezerra. Mortos a pauladas foi a conclusão imediata. No Estado do Rio, havia o Sr. Ramos de Freitas, processado e trancafiado por receber dinheiro das famílias dos presos, Se um alemão era rico, ele mandava buscá-lo. Enquanto o homem estava na “geladeira”, mandava Ramos de Freitas, um advogado, se entrevistar com a família do alemão. — “Por tantos mil cruzeiros, respondo pela liberdade de seu marido!” E assim se fazia a história.

Comunistas, integralistas, alemães, italianos, fossem o que fossem, esses homens que tanto sofreram nas mãos da tenebrosa polícia de Getúlio Vargas eram seres humanos, porém jamais essa condição era respeitada quando se tratava de obter novas verbas secretas.

Embora pareça incrível, foram contratados técnicos na Europa a fim de orientar os interrogatórios sob torturas no Rio de Janeiro. O ex-sargento José Alexandre dos Santos, depois de espancado e torturado, como nada revelasse, percebeu que lhe enterravam na uretra um arame, cuja ponta ficou de fora. Com o auxílio do maçarico esquentaram o arame de tal maneira que em minutos ficou todo em brasa, entre urros de dor do infeliz sargento. Tempos depois, como não pudesse viver assim, submeteu-se a uma operação, perdendo vários órgãos. A micção é feita pelo lado.

Há ainda o caso do operário Matias dos Santos e de sua companheira Aída. Ele, depois de ter todas as unhas arrancadas e o corpo queimado a ponta de charuto, milímetro por milímetro, foi posto nu entre as mulheres, entre as quais, a sua. Ela, Aída, sofreu o martírio dos “adelfis”, uns pedacinhos de madeira que eram enfiados por baixo das unhas. Devagarinho, os torturadores iam batendo, aprofundando cada vez mais, até o preso confessar o que fizera e o que não fizera. A dor levava o supliciado ao inferno. Havia ainda a “cadeira americana”. Quando o preso estava sentado, a mola oculta jogava-o a vários metros de distância, de encontro à parede. A “máscara de couro” não tinha furos por onde o paciente respirasse. Tudo negro e horrendo. As mãos eram atadas, e nada se podia comparar a esse martírio. Vários casos de loucura foram observados, e entre esses o Dr. Jorge Silveira Martins, advogado no Distrito Federal, que melhorou posteriormente. Alguns, entretanto, ficaram definitivamente inutilizados, como o referido Matias, pois lhe encostaram um jornal em chamas em delicada parte do corpo, enquanto suas mãos estavam amarradas. Tamanha era a crueldade dessas torturas que os policiais, quase sempre, vinham embriagados para o serviço. Depois, iam-se acostumando e a coisa passava a ser simples rotina. Nas mulheres, além de “adelfis”, eram enfiadas “buchas de mostarda”. Havia mortes como a de Aída. Loucos ficaram muitos, depois de tantos martírios e de permanecerem quatro a cinco horas na “cadeira americana”, recebendo, de espaço a espaço, o golpe que o encosto da mesma lhes dava, sem poderem dormir, sem repousarem um minuto porque a “cadeira” não funcionava em intervalos certos. Podia ser de uma hora o descanso, podia ser de um minuto. Se assim mesmo o preso não confessasse, lançavam mão, os policiais, de agulhas quentes debaixo das unhas. O “maçarico” era outro instrumento bastante utilizado na Polícia do Distrito Federal ao tempo de Getúlio Vargas, Filinto Müller e Emílio Romano. (Aliás Romano, depois de processado e demitido, foi premiado pelo Sr. Getúlio Vargas com um lugar em sua guarda especial.) Sobre as nádegas do paciente, o “maçarico” jorrava seu fogo, entrando, queimando, destruindo, entre risadas e uivos de prazer. A cena era tanto mais divertida quanto mais gritava e chorava o torturado. O fogo parecia fascinar os policiais. Às mulheres nuas eles marcavam com os charutos acesos, queimando-lhes a ponta dos seios. Na hora de praticar essa tortura, o rádio era posto no último ponto, a fim de que a vizinhança não ouvisse os gritos das vítimas.

Depois das torturas, os presos que estivessem em perigo de vida eram mandados para a enfermaria da Casa de Detenção ou para a Enfermaria Filinto Müller, na Polícia Especial. Depois, como não houvesse mais vagas, passaram a mandá-los para o Hospital da Polícia Militar. O estado dos presos era tal que chegou a provocar sérios e enérgicos protestos dos médicos. Um deles disse: — “Isto aqui é um hospital para tratar de doentes, mas não uma oficina de consertos humanos”.

Hoje ainda existe, como um milagre de sobrevivência, mas parecendo um cadáver ambulante, o garçom Teodoro Carrera. Esse homem foi amarrado e espancado barbaramente. Por fim, enfiaram-lhe um sabre entre as nádegas. Viveu para acusar seus torturadores, se o dia do julgamento chegar. O padeiro Manuel Pereira passou por todas as torturas, desde a “cadeira americana” ao “maçarico”. Não resistindo mais, atirou-se do 3° andar da Polícia Central ao solo. Os suicídios, ou “suicídios”, eram comuns na Polícia Central. Depois de permanecer vários meses no porão imundo da casa da Rua da Relação, onde mais de trezentas pessoas ficavam num espaço destinado a vinte, sem água, comendo mistura horrível e saindo apenas para serem torturados, o preso sentia naturais impulsos para o suicídio. Se era conveniente, a Polícia deixava. Se não, vigiavam-no. Um detido contou-me, rapidamente, o pedaço de uma noite naquele porão medonho. — “Dormíamos em cubículos, onde apenas cabiam, à força, 10 homens, mas onde eles botavam 80. Diariamente havia cenas de loucura. Revezavam-se para dormir, por que o espaço era pouco. Lembro-me de uma noite em que o carcereiro veio até a porta e chamou: — Fernando Gonzales! — Esse homem era meu companheiro e falava sempre comigo, sem reservas. Era funcionário público. — Querem me matar — repetia sempre. Naquela noite ele saiu para não mais voltar. Morreu, de fato, entre as torturas.” O carpinteiro Manuel Ferreira também não resistiu aos sofrimentos. O “maçarico”, os “adelfis”, a “cadeira americana”, a “máscara de couro” liquidaram-no.

A lista dos nomes dos torturadores ou responsáveis é enorme; mas deve existir, forçosamente, se um dia forem levados, como se imagina, às barras de um tribunal por crimes praticados contra seres humanos, não importa suas convicções políticas, seus credos, suas inclinações. Entre os acusados encontraremos pessoas hoje bem situadas. Entre elas, distribuindo justiça, um juiz.

De 1935 a 1945, a casa da Rua da Relação, onde funciona a Polícia Central, se transformou em fábrica de mortes e de loucuras. Centenas de homens e mulheres saíram de lá mutilados ou inutilizados para o resto da vida. O estudante Almir Neves, hoje engenheiro, suportou todos os meios de suplício, um a um, e resistiu, não se sabe de que jeito. No fim disso tudo, com as provas obtidas dessa maneira, eram levados ao Tribunal de Segurança, onde os acusadores olhavam para a cara do réu e sem mais delongas pediam cinco meses ou cinco anos de prisão.

Guardamos a vergonha — nós, brasileiros desta geração — de ter assistido ao nascimento e à atividade do mais escandaloso e absurdo tribunal de justiça de todo o Mundo, em qualquer tempo. Nada se compara ao Tribunal de Segurança, criado por obra e graça do tirano Vargas, para seus criminosos objetivos de aniquilamento dos seus inimigos. Órgão de exceção, concedia ao advogado apenas 15 minutos para a defesa do acusado, quando se sabe que este é o tempo necessário à leitura de um documento anexo ao processo. As sentenças condenatórias eram cumpridas inflexivelmente, mas as sentenças absolutórias muitas e muitas vezes foram postas de lado.

Em certa oportunidade, os estenógrafos da Federação Taquigráfica Brasileira conseguiram penetrar no recinto e apanhar todos os documentos de uma sessão do Tribunal de Segurança. Cópias autenticadas dessas notas taquigráficas estão em nosso poder e são tremendos e incontestáveis libelos contra as arbitrariedades praticadas naquela casa dita de justiça. O Procurador era o Sr. Himalaia Virgolino; o Juiz, o Comandante Lemos Bastos. Virgolino sobe à tribuna para sustentar a acusação. (As notas foram comentadas pelo Tenente Severo Fournier.) Depois de dizer que estava quase afônico, Himalaia Virgolino declara que se levantou apenas para cumprir seu dever.

— “Não é necessário que a Procuradoria — continua Virgolino — faça um longo discurso para que sustentada fique a acusação, mesmo porque o processo que rege hoje os julgamentos perante o Tribunal de Segurança Nacional é de molde a dispensar o debate. Essa, aliás, a grande vantagem do processo oral. É que o juiz, quando comparece à audiência do julgamento, conhece a matéria nos seus mínimos detalhes.”

Virgolino defende o processo oral e afirma que “no processo oral, que em boa hora um decreto do Governo estabeleceu para reger os trabalhos do Tribunal de Segurança, o juiz, quando vem para a audiência do julgamento, já está senhor do assunto, faltando-lhe apenas um ou outro esclarecimento, aqui prestados pela testemunha. Aliás, o nosso processo, o do Tribunal de Segurança, não é o rigorosamente oral e moderno, porque nele, como no adotado por todos os países do mundo civilizado, Alemanha, Itália, Portugal, Hungria, Áustria — as testemunhas só respondem às perguntas do juiz, e o juiz formula as que acha, as que considera necessário fazer para sua orientação”.

Comentando essas palavras, Fourníer escreveu à margem da cópia taquígráfica da sessão do Tribunal de Segurança os seguintes conceitos:

— “Por acaso o Brasil não é um país civilizado? Como a palavra de um procurador dá ao povo o seu conceito próprio. O processo oral, tal qual está em vigor no Tribunal de Segurança Nacional, é uma farsa e uma tirania, pois o juiz, pela incapacidade de fazer justiça a inúmeros acusados (ante o número avultado e outras circunstâncias) já traz o seu veredicto no bolso do colete, mas não deixa de fazer injustiça. Para contestar a sentença, deveria, após a defesa, percorrer cada caso em particular e, comparando-os, dar a pena; mas isto seria por demais trabalhoso e incompatível com a moral da época de insegurança em que vivemos”.

Himalaia Virgolino prosseguia em sua argumentação: — “As testemunhas aqui chegaram, não esclareceram de modo algum o espírito do Juiz. As testemunhas que aqui depuseram nada mais fizeram que elogiar uns ao outros etc. Senhores, como todos, vós estais a ver, tais processos de defesa já caíram em desuso, por isso que não se pode destruir um fato público, notório, rigorosamente provado, com elogios ao passado”.

Responde Severo Fournier:

— “É uma teoria assaz ousada a desse cretino”.

Himalaia Virgolino prossegue:

— “Com efeito, ninguém aqui afirmou que esses acusados, antes da prática desses delitos, houvessem deixado de ser cidadãos exemplares, deixassem de ser perfeitos chefes de família, deixassem, enfim, de cumprir todos os seus deveres, o primordial dos quais consiste em não se insurgir contra os poderes constituídos da Nação e não atentar contra a estrutura do regime. Trata-se, pois, de um fato que a Procuradoria capitulou como delito e contra cujo acerto não foi, sequer de longe, esboçada uma defesa pelas testemunhas”.

Severo Fournier ataca:

— “É notável o Botocudo! Defesa não é atributo da testemunha e sim do advogado. Testemunha é auxiliar da Justiça, embora erroneamente se denomine de defesa. Acaso as perguntas formuladas pelo juiz a que alude o meretíssimo Procurador seriam em prol da defesa ou esclarecimento?”

Himalaia Virgolino volta a falar:

— “Ao que assistimos, como disse, foi a vários elogios e afirmações de vida pregressa correta, o que ninguém pôs em dúvida”.

Fournier observa:

— “Mas que o Procurador não possui”.

Himalaia entra no terreno da revolução:

— “Penetrou, pela maneira por que já me referi, no jardim do Palácio da Guanabara e abriu fogo contra a residência do Chefe da Nação, fogo esse não só de fuzil como de metralhadora, porque os revolucionários no ataque lançaram mão não só de seus fuzis e dos que tomaram à guarda, como também de metralhadoras”.

Fournier ironiza:

— “O Mocinho queria uma revolução com distribuição de bombons ou então com a distribuição de nossas mui honradas insígnias da Ordem do Cruzeiro do Sul”.

Himalaia continua:

— “O assalto verificado não chegou à consecução de seu fim, que era a eliminação do Sr. Presidente da República e de toda a sua família”.

Fournier responde:

— “Descobriu a pólvora o sagaz Procurador”.

E Himalaia vai indo:

— “Os assaltantes foram a Palácio — está provado no processo — com o intuito de eliminar não só o Presidente da República como toda a sua família”.

Fournier pergunta:

— “De novo?”

Himalaia prossegue:

— “Eliminando o Sr. Presidente da República e todos os seus...

E Fournier:

— “Outra vez?”

Himalaia:

— “Pois bem, em toda parte onde os articuladores passaram, na noite de 10 para 11 de maio, os integralistas se reuniram em determinado ponto, aguardando o sinal, pelo rádio, para início do assalto”.

Fournier:

— “Cada soldado era um aparelho receptor”.

Himalaia:

— “O movimento foi engenhosamente articulado. Aqui o Presidente da República e sua família seriam sacrificados”:

Fournier:

— “Está morrendo muito o Presidente”.

Himalaia:

— “Tudo está rigorosamente provado no processo, de sorte que me parece não ser necessário à Procuradoria perder mais tempo em considerações. Ademais, como disse o eminente Juiz, Comandante Lemos Bastos, já está mais do que senhor de todo o processo”.

Fournier:

— “O Procurador, que com tanto entusiasmo caolho defende o processo oral — por esta declaração, desabafante, confessa a inutilidade da Procuradoria”.

Himalaia Virgolino faz sua confissãozinha:

— “Aqui o Sr. Plínio Salgado conseguiu realizar um milagre. Num país de displicentes, num país onde todas as iniciativas de natureza intelectual e moral são de princípio rídiculizadas, o Sr. Plínio Salgado obteve a arregimentação de um milhão de brasileiros, disciplinou-os, transformou mesmo a mentalidade de certos indivíduos, que passaram, de displicentes, a pensar, como todos os bons homens pensam em todos os países do Mundo, isto é, que acima de tudo se deve ter a preocupação do futuro da Pátria. As prédicas do Sr. Plínio Salgado e seus lugares-tenentes eram realmente sedutoras, porque saturadas de um nacionalismo sadio, falando em Deus, Pátria e Família, e nessa trilogia estava, pode-se dizer, resumido um grande programa”.

Fournier sintetiza seu espanto assim:

— “Que confissão!”

E depois de ler outra consideração de Himalaia Virgolino, o ex-Tenente Severo Fournier dá seu veredicto:

— “Só mesmo no Brasil tamanha cavalgadura pode ocupar uma Procuradoria. Que é que o homem quer?”

*

O Tribunal era de exceção, tipicamente fascista. O juiz fala em voz serena e cônscio de sua responsabilidade:

— “Agora, darei a palavra à defesa, e em primeiro lugar, ao Dr. Bulhões Pedreira, pelos acusados Severo Fournier e Júlio Barbosa do Nascimento. O Dr. Bulhões Pedreira falará até o prazo de 15 minutos”.

O Dr. Bulhões Pedreira observa:

— “Sr. Juiz, creio que poderei ocupar a tribuna por meia hora, porque são dois os acusados que defendo”.

O Juiz:

— “Poderá usar a palavra por meia hora”.

E Severo Fournier, em suas notas:

— “Primeiro knock-down”.

Chega a vez de falar o desassombrado advogado católico Heráclito Sobral Pinto. Levanta-se solenemente, e em voz calma, com os olhos fixos no Procurador Himalaia Virgolino, começa assim:

— “Não é possível, na quase metade do século vinte, que palavras tão ofensivas à verdade jurídica possam ecoar neste tribunal! Eu e meus colegas de defesa não somos palhaços, não viemos aqui para representar uma farsa. Viemos trazer a contribuição de nossos esforços a bem da verdade; viemos colaborar com V. Exª numa obra de justiça; viemos colaborar com V. Exª, num empreendimento jurídico. Não é exato que o processo oral dispensa o magistrado que preside ao debate de atender às considerações apresentadas na tribuna pela defesa”.

Himalaia:

— “Não foi o que eu disse”.

Sobral Pinto:

— “V. Exª afirmou que inúteis se tornavam os debates orais, porque o juiz já trazia a sua sentença formulada, apenas dependendo de alguns esclarecimentos a serem prestados na tribuna de defesa. Meritíssimo Juiz, vou apresentar a V. Exª uma argumentação que V. Exª não ouviu, mas é obrigado a ouvir, sob pena de prevaricação”.


 

Harry Berger

 

De todas as vítimas da fúria sanguinária dos policiais de Getúlio Vargas, a maior foi o ex-deputado alemão Harry Berger, cujo nome verdadeiro é Artur Ernest Ewert, cidadão naturalizado americano, professor da Universidade de Stalingrado, figura revolucionária de renome internacional, citado por Jan Valtin no livro “Do Fundo da Noite”, e membro destacado da 3ª Internacional. Preso juntamente com sua esposa, levou mais de 20 surras espantosas, teve o corpo queimado centímetro por centímetro, enquanto à companheira chegavam pontas de charutos ao bico dos seios, ânus e partes genitais. A pobre mulher desfilava nua, entre as gargalhadas dos policiais, que estendiam a mão com os charutos em brasa e deixavam a marca na pele branca, O marido, amarrado, assistia a tudo, impotente e silencioso. Nenhuma palavra lhe arrancaram. Emagreceu 54 quilos à custa de tanto espancamento. De uma feita, obrigaram-no a ficar de pé 72 horas, com uma máquina de escrever amarrada ao pescoço. Obedeceu em silêncio. Quando o sono o fazia cambalear, os charutos acesos, o ferro de engomar, quentíssimo, faziam-no permanecer de pé. Sua esposa, completamente nua, pois dormia nesse estado sobre a laje de cimento, era diariamente arrastada pelos cabelos e levada aos pontapés, à presença do homem de gelo. Berger só respondia aos algozes que “um verdadeiro comunista não se abre”. Cada frase de Berger equivalia a uma surra. Já não tinha unhas, seu corpo parecia uma vasta ferida. Mesmo assim, os vândalos perseguiam a confissão. Queriam os nomes dos cúmplices, o esconderijo dos companheiros. Em determinada ocasião, Berger decidiu fazer a greve de fome. Passou a recusar todos os sujos alimentos que lhe traziam. Os policiais, ante isto, foram buscar sua esposa. Ela estava jogada na cela, sem água, nua, as queimaduras já exalando mau cheiro. Os bicos dos seios mostravam duas feridas enormes, horríveis, quase putrefatas. Veras, Leiria e outros policiais conduziram-na à presença de Berger. Este pouco tinha de aparência humana. Semilouco de tantas pancadas na cabeça, recebe a esposa com um sorriso e lhe pede um beijo. Ela se curva e beija-o carinhosamente, passando a mão sobre a cabeça. Depois, se volta para os investigadores e diz apenas isto: — “Ele sabe o que está fazendo”. Isto bastou para que lhe vibrassem violentas borrachadas e lhe enfiassem cassetetes no ânus e na vagina. A noite de Berger foi, talvez, a pior de todas. Depois disso, remeteram-no à Polícia Especial, onde foi metido debaixo de uma escada por onde tinham que passar todos os policiais. Ali esteve dois anos sem tomar banho, sem cortar os cabelos, sem fazer a barba, sem trocar de roupa. Já a loucura se aproximava quando foram buscá-lo para uma acareação com outros dirigentes comunistas. No carro-forte ao lado do seu estava Rodolfo Ghioldi, líder esquerdista argentino. Ghioldi chamou-o. Berger se voltou. — “Reconheci-o” — disse mais tarde Ghioldi — “por instinto. Ele nada tinha do antigo Berger. Perdera a metade do corpo. As faces cadavéricas, um brilho alucinado nos olhos, e caminhava encurvado, dobrado ao peso dos sofrimentos. Disse-me rapidamente: — Estou mal. Sinto a loucura bem perto, pois me apertaram o crânio e me bateram muito na cabeça”.

Sua esposa sofreu, depois, repetidos castigos. Como se recusasse a interferir na decisão do marido, o investigador Segadas Viana, irmão do deputado trabalhista, mandou que os outros abrissem as pernas da mulher, e, tranquilo, ele chegou ao ânus da esposa de Berger o charuto aceso.

Severo Fournier, no diário que deixou aos pósteros, descreve uma das cenas de tortura de Berger e sua esposa:

— “Não entremos no que seja ele, se comunista ou o que mais seja. Analisemos o cidadão que, por infelicidade, caiu nas malhas de nossa Polícia, juntamente com sua senhora, companheira ou qualquer outra denominação que lhe queiram dar, a dedicada amiga de um homem que, nem por deixar de ser assim, é que se lhe não deva todo o respeito. Pois bem, senhores, levados ambos para uma sala do quartel da Polícia Especial, no Morro de Santo Antônio, onde já os esperavam seus algozes, foi-lhes dada a ordem de desnudarem-se da cintura para cima (ele e ela). A ordem foi obedecida, mas com a relutância e a indignação de Berger. Nesta situação vexatória, sentaram-se, um defronte do outro, e deram início às cenas de vandalismo que haviam preparado: — uma sequência initerrupta de castigos os mais horripilantes e em sentido progressivo foi-lhes aplicada, com a virtuosidade, talvez, dos sequazes de “Pedro Botelho”, quando em épicos bailados acompanham os estertores de seus hóspedes, na universal fornalha ou conhecida caldeira. Desde os “simples” pescoções, charutos em brasa sobre a epiderme, estiletes debaixo das unhas, dilacerando-lhes os nervos, cautérios de ferro em brasa, um aparelho, talvez de invenção de Filinto, engenhosamente disposto perto de uma armação de madeira dentada e articulada, que ora serve para comprimir o crânio da vítima, ora para outros órgãos sensíveis etc. etc. etc.

Esgotados esses meios e já exausto os trêfegos beleguins, investiram de novo contra suas vítimas e, agora, de forma a mais bárbara e mais selvagem de que já tive conhecimento. Ordenando que ambos se desnudassem completamente, ficando em pelo, os sequazes, após uma série de novas atrocidades e vendo que nada arrancavam de Berger, que em seu mutismo deliberado lhes estava dando uma lição de alta dignidade e de virilidade, após aplicarem-lhe um ferro de engomar, em brasa, sobre o ventre, já extenuado, sustido por policiais, ordenaram-lhe que assistisse ao que se ia passar com sua mulher.

É demais, não lhes parece?

Pois, nesse ambiente de podridão moral, onde creio que o mais imprudente dos animais não encontraria energia para suportá-lo, dois policiais fizeram as maiores baixezas. E somente lágrimas rolavam sob o mutismo do verdadeiro homem, banhando-lhe os músculos faciais contraídos de dor, de vergonha e de raiva.

Estas cenas foram contadas pelo Capitão Aírton (naquele tempo, do gabinete filintiano), e posteriormente confirmadas pelo policial Galvão (polícia-especial, destacado no gabinete filintiano), que foi um dos vândalos da cena particularíssima da companheira de Berger, sob as vistas do primeiro.

São testemunhas do relato acima o Major Rogério de Albuquerque Lima e o Sr. Jurandir Nabuco de Araújo, presentes quando, respectivamente, ouvia-o do Capitão Aírton e do policial Galvão, hoje morto, assassinado por um seu colega que “suicidaram”, após, na Polícia, o Ernâni.

Os suplícios de Berger foram tantos e de tais quilates que hoje ele, que pesava 108 quilos, pesa 54 e está acabando seus dias no abandono absoluto de um cubículo da Casa de Correção, com uma psicose carcerária que, sobre prolongar seus dias, tal um dos característicos da moléstia, torna-se-nos penosa pela sua inconsciência e pelos seus constantes lamentos e gritos de loucura.

Após esses casos, perguntando uma vez, na Correção, o que ele achava da Polícia do Brasil, disse, repetindo o gesto popular de passar o braço por detrás da cabeça, com o fim de pegar a ponta da orelha do outro lado e permanecendo assim por algum tempo: — “É daqui... — e, concluindo, entre pesaroso e distante: — “Tenho sido preso muitas vezes e padeci até na Alemanha, mas nunca vi polícia igual a esta”.

De fato, eis uma recomendação que muito deveria honrar o Sr. Filinto Müller.

A esposa de Harry Berger foi entregue pelo Sr. Filinto Müller, por ordem do Sr. Getúlio Vargas, ao Sr. Adolf Hitler e executada num dos campos de concentração da Alemanha. Harry Berger enlouqueceu definitivamente e removeram-no para o Manicômio Judicial. Ao ser contemplado pela medida geral da anistia, foram buscá-lo, a fim de removê-lo para um sanatório de doentes mentais. Recebeu os homens com um olhar de pavor, mas permaneceu calado. Saiu. No carro, enquanto esses companheiros adquiriam roupas para ele, perguntou ao motorista: — “Para onde me leva a polícia?” E repetia, alucinadamente, a mesma palavra trágica: — “Polícia... Polícia...

Sua psicose carcerária é incurável. O tratamento não deu o menor resultado, infelizmente, e o líder esquerdista está condenado a morrer sem voltar à razão.


 

Olga Benário Prestes

 

A noite entrava pelas grades, encontrando Olga Benário Prestes deitada sobre a enxerga da Casa de Detenção. Esposa de Luís Carlos Prestes na Rússia, a jovem alemã viera com o líder comunista para a aventura revolucionária. Na hora da prisão, compreendendo que os policiais desejavam um pretexto qualquer para matar Prestes, Olga se agarrou ao esposo, recusando-se terminantemente a deixá-lo. — “Vá para o outro carro. Nada acontecerá”, diziam os homens da Polícia. Mas Olga não largava Prestes. Isto fez abortar o plano do Capitão Filinto Müller, que dera ordens formais e categóricas aos seus comandados: não trazer Prestes vivo. Tais ordens, certamente, vinham de mais alto. Emanavam de um poder superior. Ordens do próprio Sr. Getúlio Vargas.

Foi assim que o Ditador planejou a morte de Luís Carlos Prestes, com a mesma fria decisão com que depois entregaria Olga Benário Prestes à polícia alemã, para que ela fosse morta em um campo de concentração.

Ora, o tempo apaga tudo, mas reaviva o sangue das companheiras e dos irmãos mortos. Leon Barón, atirado pela sacada da Polícia, por não querer revelar o esconderijo de Prestes. Harry Berger, louco de tanto apanhar. Milhares de camaradas, arrastados nus e ensanguentados para a sala de torturas, em plena madrugada. E longe, num palácio que Neruda imaginou negro como a própria alma do tirano, o pequeno César caminhava com seus passos de sombra, arquitetando novas fórmulas para se perpetuar no poder.

A mesma noite entrava pela janela de Olga Benário Prestes. Estava grávida e a Polícia queria levá-la. O médico preso, Dr. Campos da Paz, assistia a tudo, impotente. Era uma dessas noites tenebrosas e indignas. Um gigantesco clamor, partindo de todas as celas, juntava-se aos trovões protestando contra a monstruosidade. Não apenas os presos políticos. Todos. Já não se tratava da companheira de um líder comunista, mas de uma mulher em adiantado estado de gravidez, ameaçada de perder o filho que ainda não nascera. Narrando o espantoso episódio, o Dr. Campos da Paz causa arrepios a quem o escuta: — “Gemiam as grades de todos os cubículos, batidas violentamente com todos os objetos capazes de resistir à fúria do protesto monstro, gritos, ameaças, investidas, doestos, insultos, tudo servia para a vaia tremenda com que pretendiam duas centenas de presos impedir a saída de Olga Prestes. O clamor infernal é respondido como um eco pelo presídio fronteiro e pelo presídio anexo, à esquerda do negro pavilhão. Todos estão dispostos a tudo, e os beleguins da reação, já agora temerosos, se retraem, receosos, não dos encarcerados, mas de serem levados a maiores violências, tão grande é o aparato bélico de que se fizeram acompanhar. Não esmorece o ânimo dos que protestam e o tumulto mantém-se no auge, com a mesma intensidade e violência. Nenhuma esperança nos animava, porém queríamos lutar até o último minuto, acreditando no impossível”.

*

Os policiais reclamavam a presença do Dr. Campos da Paz, para realizarem, sob aparência humana, mais uma das milhares de farsas com que sempre esconderam suas maldades. O nome do médico é chamado em voz alta, a fim de que comparecesse ao cubículo de Olga Benário Prestes. O médico se encaminha para lá. O silêncio agora é espantoso. Todos o acompanham com os olhos atravessando as grades. Ele entra e percebe que as companheiras da mulher que deve ser deportada ainda protestam. São as únicas que não se calam.

Os investigadores, com metralhadoras e outras armas, guardam a porta. À cabeceira de Olga Benário Prestes, está o maneiroso Carlos Brandes. Ela responde ao policial, sempre tranquila. A voz é firme. Diz que não sairá porque está doente e não pode caminhar.

Campos da Paz, o médico, penetra no cubículo e ouve o que Carlos Brandes lhe diz: — “A Polícia deseja remover Olga Prestes para uma casa de saúde, não só atendendo ao seu estado melindroso como a impropriedade do local para uma futura parturiente”. Se tinham chamado a ele, Dr. Campos da Paz, era para que verificasse que não havia outra solução para a doente. Antes que o policial concluísse, o médico declarou, incontinenti, que, segundo o que conhecia de ciência, a quebra de repouso com a remoção projetada seria o aborto iminente e não o parto futuro. De nada valeram, entretanto, a afirmação do médico e as demais objeções levantadas pelo doutor e pelas companheiras de Olga Benário Prestes, as quais insistiam, tumultuosamente, que ela dali não sairia. Um pedido de adiamento da remoção para quando ela estivesse em melhor estado é recusado pela Polícia. A ordem viera de muito alto. Não era possível o chefe ir à presença do Sr. Getúlio Vargas e dizer, simplesmente: — “Escuta aqui, chefão, a mulher está ruim. Fica para depois a remoção”. Nada disso. Olga Prestes era um presente de Getúlio para Hitler. A alemãzinha anti-nazista pagaria no cadafalso a ideia de acompanhar ao Brasil o seu perigoso marido. Mas, e esses presos que voltavam a gritar? Emílio Romano, “pálido e raivoso”, como o descreveu o médico, chamou o Dr. Campos da Paz para fora do cubículo e disse:

— “Veja se consegue fazer essa senhora sair, porque nós a levaremos de qualquer maneira, ainda que tenhamos que usar a maior violência”.

— “Descobriu seu jogo muito tarde, Tenente Romano, mas nós já contávamos com a violência. Nem outra coisa os senhores estão fazendo.” Foi a única resposta.

Olga Prestes, percebendo que Romano gesticulava furiosamente, chamou o médico e pediu que ele lhe contasse o que estava acontecendo. Assim foi feito.

— “Nós lutaremos contra isso”, terminou o médico.

O seu olhar, limpo e azulado, parecia perdido na forte luz que a circundava. E ela disse: — “Quero que meu filho viva e não tenho o direito de sacrificar a vida dos filhos de outras mães”.

Com um gesto mandou que os policiais se aproximassem. Estes vieram devagar, surpresos. A mulher grávida disse, então, que estava pronta a acompanhá-los. A princípio, houve espanto. Um pouco de luz, uma nesga de consciência penetrara, naquela fração de segundo, nos cérebros asfaltados daqueles monstros, ante o gesto de nobreza? Não. Mandaram que viesse a padiola, e entre os gritos dos presos, Olga Prestes saiu da prisão. Levada à Alemanha, teve a criança. E a esposa de Prestes viveu mais alguns meses, morrendo no campo de concentração. Quem forneceu essa vítima às câmaras de morte da Alemanha não respondeu, depois, por seu crime, aos juízes de Nuremberg.


 

“Filinto mandou me sangrar”

 

Esta é a narrativa de um operário, recolhida pelo autor deste livro, que respeitou fielmente o pensamento e as opiniões do sacrificado José Alexandre dos Santos:

“Num fim de tarde de junho, eu voltava do trabalho para minha casa no subúrbio de Osvaldo Cruz. De trem, naturalmente, porque a verba era curta. Meu emprego de montador-eletricista, numa antiga firma da Avenida Rio Branco, mal dava para sustentar a esposa e os dois meninos. “José Alexandre”, ela me repetia sempre, “você precisa poupar seu corpo.” Bem que eu queria seguir o conselho de minha patroa e trabalhar menos, mas a vida estava cada vez mais difícil. Hoje, que a minha mulher é morta, levada por uma tuberculose causada pela fome que passou durante o tempo em que estive preso, lembro-me de suas palavras e de sua dedicação. Era uma mulher carinhosa e de muita compreensão. Uniu-se a mim de alma e corpo e durante todo o tempo em que esteve a meu lado não deu a menor razão de queixa. Gostava que eu lhe contasse histórias de minha infância na cidade do Crato, no meu Ceará (nasci lá e daí o meu apelido de “Ceará”), e de como eu resolvera vir para o Rio, em 1935, justamente no dia 1 de janeiro. Ora, pensando nessas coisas, na ternura de minha mulher, nas dificuldades da vida, cheguei à minha casa pequena da Rua Andrade Araújo n° 64, em Osvaldo Cruz, e como sempre a companheira me recebeu sem grandes manifestações, mas eu sabia que ela ficava alegre quando eu entrava. Tomei banho, jantei e depois de ler o jornal da tarde, deitei-me. Recordo-me que pouco faltava para as nove horas da noite. Peguei no sono. O cansaço me fez adormecer pesadamente. De súbito, ouvi minha mulher falando com alguém. Levantei-me e fui ver o que havia. Logo reconheci, no meio de quatro homens, o cabo-marinheiro Costa Rêgo. Ele voltou os olhos para o lado, com vergonha. Compreendi que fora ele o meu delator e vinha acompanhando a Polícia para a minha detenção. Um dos investigadores, a quem os outros chamavam Matos, adiantou-se e perguntou-me se eu me chamava José Alexandre dos Santos. Respondi que sim. “O senhor se apronte” — disse-me o Matos — “para ir à Polícia Central dar alguns esclarecimentos. Não se demorará muito.”

“A maneira dele falar, cordial e serena, tranquilizou-me. Quero esclarecer que eu nunca fora preso e não tivera o mais leve contato com a Polícia. Nunca pertencera à organização clandestina dos comunistas e portanto acreditava que a única coisa que a Polícia poderia fazer seria me libertar, mal me ouvisse na delegacia. Vesti-me e acompanhei os investigadores e o cabo. Esse tal Costa Rêgo tinha o hábito de descobrir comunistas e denunciá-los. Ganhava da Polícia gordas propinas por serviço realizado. Um dia, a sorte mudou, e depois vos contarei o que sucedeu a esse marinheiro.

“Entrei no carro da Polícia, e, mal sentei-me na parte traseira, vi que as coisas estavam tomando outro rumo. Os três investigadores, friamente, sem qualquer desculpa, deram-me tremendos pescoções e socos, aos gritos de “abre-se logo, ou vai-se arrepender.” Reagi. Disse que não tinha nada que contar e que aquilo era uma covardia. A essa altura, passávamos pela ponte de Cascadura. Os policiais fizeram o carro parar e jogaram-me fora. Compreendi que estava perto minha hora. Queriam dar cabo de mim. Dei tudo que meus pulmões podiam dar, gritei por socorro. Umas dez pessoas se aproximaram, revoltadas. Os investigadores puxaram de suas armas, ordenando ao povo que se afastasse, pois se tratava de uma diligência policial. Os homens do povo, iam e voltavam, numa confusão infernal, e os policiais se viram obrigados a colocar-me novamente dentro do automóvel e a fugir a toda velocidade. Outra vez, lá dentro, os pescoçoes e socos se renovaram, desta vez com fúria multiplicada. Cheguei ao gabinete do Tenente Emílio Romano todo ensanguentado. Esse, que chefiava a seção política, ouviu as informações que um dos policiais lhe dava. Emílio Romano, um tipo musculoso e de boa aparência, nem por sombra revelava o que de fato ia em sua alma pervertida. Temperamento sanguinário, frio, mau e covarde, ele praticava as maiores torpezas com um sorriso nos lábios. Sorria, precisamente, quando o auxiliar lhe falava a meu respeito: “É um tipo valente, duro como ferro”. Romano se levantou com o mesmo sorriso. A seu lado, junto da mesa, estavam três homens louros, robustos, de queixos quadrados, feições impenetráveis. De vez em quando, Romano lhes dirigia uma ou outra palavra num idioma que desconheço, mas sei que não era inglês ou francês. Acredito que conversavam em alemão, porém não posso jurar sobre isto.

“Emílio Romano chegou bem perto do meu rosto, e, numa voz cheia de mel, perguntou-me se eu queria dizer onde era a sede do Comitê. Repeti-lhe que nada sabia sobre comitês, que não era comunista, e, se fosse, diria sem hesitar.

— “Bem” — concordou Romano — “se você não quer falar agora, na volta conversaremos. Vou dar um pulo lá embaixo.”

“Deixou a sala acompanhado de dois investigadores. Fiquei sentado à espera. Minutos depois, ele voltava. Não sei o que acontecera lá fora, pois trazia os olhos faiscantes, vermelhos de ódio. Avançou sobre mim, sacudiu-me pelos ombros gritando:

— “Vai-se abrindo, cachorro! Você é o elemento de ligação. É o estafeta. Vai dizendo logo, antes que eu perca a calma”.

“Espiei-o impressionado. Em meu modo de ver, era impossível o homem se transformar tão rapidamente assim. A seguir, eu lhe disse, sem levantar a voz, porém muito firmemente:

“Quer matar, pode matar, pois eu não posso dizer uma coisa que eu não sei”.

“Romano falou na tal língua que julgo ser o alemão. Um investigador que mais parecia um gorila, tão grande e tão gordo, aproximou-se de mim. Nem agitado, nem nervoso, mas friamente me segurou pelo casaco, meteu a mão pela camisa, arrastou-me para outra sala. Pensei que ficaríamos ali, mas ele continuou me arrastando aos trambolhões. Entramos, nesse instante, numa outra sala sem janelas e sem outra porta, a não ser aquela por onde penetramos. Dava a impressão de uma geladeira. Dois investigadores estavam lá em seu interior. Outros dois caminhavam ao meu lado, além do tal gorila, que me arrastava. Mal transpus o umbral da porta, a tempestade desabou. Despejaram sobre minha cabeça, meu rosto, minhas costas, seus cassetetes de borracha, que envergavam e se enrolavam em mim, como se fossem cobras de fogo. Fiquei cego de dor. Doía tanto que, por fim, não sentia mais. Gritei. Eles pararam um instante e Romano, que entrara na sala, deu uma ordem que não cheguei a escutar. Logo se ouviu o barulho de um rádio no ponto mais alto, e, em seguida, duas motocicletas começaram a funcionar. Compreendi que eles queriam abafar os meus gritos. Levantaram-se os seis homens e começaram a me bater de novo com os cassetetes de borracha. Uns se enjoaram dessa arma silenciosa e se valeram dos próprios punhos, esbordoando-me no rosto. Outros, mais resistentes, seguravam com a mão esquerda uma porção de carne nas minhas costas, nos meus rins, e iam batendo naquele ponto, cinco, dez, vinte vezes. Eu sentia tudo em chamas sobre mim. Minha cara era um braseiro. Um deles deu-me tremendo soco na barriga. Vomitei o jantar misturado com sangue. Socos na cabeça. Caí sobre a madeira do chão e recebi um pontapé na boca. Cuspi os dentes arrancados. Eles fizeram uma pausa e perguntaram-me se eu queria confessar. Confessar o quê? Hoje, que tudo está longe, juro pela mínha honra que nada poderia confessar. E a segunda fase começou. Minhas mãos estavam presas. Puderam, assim, golpear-me os rins sem que eu oferecesse dificuldade. Romano, que assistia à cena, com o mesmo sorriso cínico nos lábios, comentou:

— “Você vai morrer aos pouquinhos”.

“Enquanto Romano falava, seus asseclas não me batiam. O chefe perguntou-me se eu estava disposto a fazer as tais revelações. Tornei a dizer o que sempre dissera: nada sabia, portanto, nada podia informar. Emílio Romano se voltou para um dos homens que estavam assistindo e falou na mesma língua estranha para mim. Ele respondeu qualquer coisa, que os torturadores ouviam, respeitosamente, em silêncio. Mal ele acabou de falar, um dos investigadores saiu e voltou com uma toalha molhada. Torceu-a, fazendo dela uma corda. Envolveram-me o pescoço com a toalha e cada um segurando uma ponta, tal qual a serra de madeira, puxava daqui para ali, dali para aqui. Eu gritava como um louco, mas o rádio e as motocicletas abafavam tudo. Sentia a pele de meu pescoço ser arrancada, naquele vaivém infernal. Minha cabeça estava quebrada, meu corpo todo amarrotado, minhas roupas eram frangalhos. Pensei que terminara a sessão, quando um soco me atirou de novo no chão. Saltaram-me sobre o ventre. Os torturadores pulavam e deixavam cair todo o peso sobre a ruína que era meu corpo. Pisavam-me no peito, chutavam-me a cara e eu sentia o bico do sapato quebrar-me os ossos. (No hospital constataram, depois, trinta e duas fraturas.) Pontapés eram dirigidos a todas as partes de minha carcaça, desde os olhos até os pés. Cheguei a sentir estalar meu queixo, tendo a impressão de que fora arrancado. Voltei de frente para o chão, mas eles me viraram, e, sentados sobre meu peito, suspendiam e deixavam cair seus grandes e bem nutridos corpos. Instalados sobre mim, batiam com os cassetetes de borracha, cientificamente, sobre os rins, sobre a bexiga. Queriam — diziam eles em voz alta — rebentar-me a bexiga. Pisaram com seus sapatos duros sobre ela, uma, duas, mil vezes. De repente, uma febre alta e violenta me invadiu. O suor caía-me pelo rosto, misturado com sangue. Fui apossado, então, de espantosa embriaguez. Fiquei embriagado de dor. Comecei a gritar que me batessem mais, mais. Eles batiam, pisavam, chutavam e eu gritava que podiam bater mais quanto quisesse. Por fim, pararam. Fizeram-me sentar na cama, que se manchou quase toda de meu sangue. Ofereceram os pedaços de borracha aos companheiros descansados, que assistiam à surra de braços cruzados. Um sujeito forte sentou-se a meu lado. Lembro-me de seu tipo atlético, musculoso e do sorriso que ele trazia. Começou a me falar maciamente: “Por que você não confessa logo? Terá um emprego na Polícia, viverá bem, sem preocupação”. Respondi-lhe que eu tinha a profissão de montador-eletricista e não tinha necessidade de trabalhar na Polícia, nem sabia das coisas que eles desejavam saber. O homem sorria ainda quando me disse: “Pois é, você tem um olho quase do lado de fora. Vou fazer o mesmo com o outro”. E sem que eu esperasse, pois seu rosto não sofreu a menor alteração, deu-me um soco tão violento que senti meu corpo ser projetado sobre as três camas que estavam no compartimento. Caí a quatro ou cinco metros de distância, e lá estava o miserável ao meu lado, chutando-me o rosto. O “tenente” Emílio Romano entrou e a cena se interrompeu. Ele trazia um velho a quem chamava de Tanger. Tratava-se de um espanhol. Voltando-se para mim perguntou-me se eu o conhecia. Disse que jamais o vira em toda a minha vida, a não ser naquele instante. Novas borrachadas. Caí. Romano perguntou ao velho espanhol se me conhecia. O velho sacudiu a cabeça, negativamente. O cacete de borracha rodou no ar e tombou violentamente sobre o peito do velho. Ele se desaprumou. O sangue jorrou pela boca, pelos ouvidos, pelo nariz e o velho caiu no chão. Pois nem assim os miseráveis o largaram. Braços abertos, ele estava estirado no solo, mas os pontapés choviam de todos os lados. Pisavam-lhe o rosto, o peito, os rins. Percebi, num segundo, que o espanhol estava morto. Um dos investigadores desconfiou, também, e fez o sinal ao chefe. Romano mandou que me levassem. Ouvi ainda a ordem para que o corpo do pobre espanhol Tanger fosse retirado pela garagem e levado ao necrotério.

“Conduziram-me à Sala de Detidos, onde escutei conversas tenebrosas entre os investigadores. Eles imaginavam que nunca terminaria aquela situação e se vangloriavam da impunidade. Um deles contava a outro um novo método de tortura pela primeira vez aplicado a uma mulher:

— “Você não imagina” — dizia ele — “que coisa engraçada! Viramos a mesa de pernas para o ar. Amarramos cada perna da mulher em uma das pernas da mesa, e o mesmo fazendo com as mãos. Sobre a mesa virada, estendemos um travessão de madeira. Sobre o travessão de madeira, colocamos uma vela de cera. A vela pingava sobre a mulher e aquilo parecia picada de alfinete em brasa. Só que era pior. Ela não aguentou muito e contou tudo. Que invenção, companheiros, que grande invenção! Não há mulher que resista!”

“Eu olhava aquele jovem miserável e pensava que ele devia ter em casa uma esposa, mãe ou irmã. Depois, as palavras foram ficando longe e adormeci de cansaço e de dor.

Acordei com uma violenta bofetada, seguida de um insulto. Nova tentativa de obter-me declarações. Por fim, desistiram. Os investigadores saíram e um preso se chegou perto de mim. Deu-se a conhecer. Chamava-se Nobre e era sargento do Exército. Preparava alunos, mas outro sargento, que queria lhe tirar as aulas, denunciou-o como comunista. Foi preso, apanhara muito e ali estava. Devo a esse sargento não ter morrido. Tratou de mim desde as duas da madrugada (a surra que apanhei durou exatamente três horas e meia) até o momento em que comecei a gritar como um louco. Vieram me buscar, e, ante a gravidade de meu estado, levaram-me para o Hospital do Pronto-Socorro. Os médicos de plantão, vendo chegar um homem com marcas de pancadas, acompanhado da polícia, se recusaram a me aceitar, dizendo que não eram consertadores de gente que a Polícia escangalhava. Deixando ameaças atrás de si, os investigadores voltaram ao carro e assim fomos ter ao Hospital da Polícia Militar, onde me aceitaram. Fiquei alojado num xadrez-enfermaria. Tão doente me encontrava, de tal forma o meu corpo fora despedaçado, que eu não podia ficar de pé, não podia sentar, não podia deitar. Os médicos deram ordem aos enfermeiros para me aplicarem sacos de gelo. Consegui, aos poucos, suportar melhor a dor. Depois de oito dias, com sondas, pois os ferimentos na bexiga iam-se fechando e com eles o próprio orifício uretral, pude aliviar minha dramática situação, entre dores horríveis. O chefe ou diretor do Hospital da Polícia Militar mandou me chamar e fui levado à sua presença. Seu nome todo não sei, mas era o Capitão Gusmão. Entrei na ante-sala. Duas senhoritas que estavam ali, esperando o doutor, ao verem meu rosto deformado, caíram para trás, sem sentidos, sem um grito. Pareciam fulminadas. Imaginem como eu devia estar horrível.

“O Dr. Gusmão atendeu-as, medicou-as e me recebeu. Examinou-me e disse que somente o tempo poderia me curar. Voltei ao xadrez do Hospital e reencontrei o sargento radiotelegrafista Armando do O’, que morreria depois, vítima de uma tuberculose, em consequência dos maus tratos na Polícia. O suboficial Gumercindo também ali se encontrava, desfigurado. Ouvi uma voz conhecida e voltei para ver quem era o dono da voz. Fiquei espantado ao deparar com o meu denunciador, o cabo-marinheiro Costa Rêgo. Por que cargas d’água ele foi preso, até hoje não sei. Tive vontade de acertar as contas com ele, mais deixei de lado. Encontrei, igualmente, outros presos em estado lamentável, entre os quais um soldado desertor chamado “Cavalaria” e um Senhor José Dantas, prefeito de um município qualquer de Alagoas, preso por suspeita, mandado para o Rio, e aqui morto pelas autoridades do Sr. Filinto Müller. Esse José Dantas morreu em nossa presença. Gemia, pedindo água. Um enfermeiro ia trazê-la, quando uma voz lá de fora disse qualquer coisa e a água não veio. O Hospital, como todo o Brasil, estava submetido à onda terrível de covardia nacional, O alagoano morreu com sede. Que sua alma encontre, onde quer que esteja, um lago de água fresca, eu desejo de coração.

“Um marinheiro de nome Faustino assistia à morte do nordestino e fazia força para virar e ver tudo de olhos abertos. Soube depois que as pancadas que os investigadores de Romano tinham dado nesse marinheiro chegaram a arrancar-lhe pedaços de ossos. Ficou aleijado para sempre. Vi o alagoano gemer pela última vez e crispar as mãos na fase final. Nunca a morte nos parecera mais fria e desumana. Vieram buscar seu corpo, duas horas depois, sem uma palavra.

“Dezoito dias depois, deixei o Hospital, sendo levado para a Polícia Central, porque devia dar lugar a outro. Conduziram-me à presença de Emílio Romano. Ele estava sorrindo como sempre.

— “Alô, “Ceará” velho!”

— “Alô” — respondi.

— “Como vai essa força?”

— “Mal, estou com oito buracos abertos na bexiga. O médico disse que só o tempo poderá tratar de mim.”

“Romano se voltou para alguém que estava a seu lado e disse, em voz baixa, mas que eu pude ouvir: “Esse é resistente, mas o chefe mandou sangrá-lo. Parece que não dura muito”.

“Olhou-me, com o mesmo sorriso, e perguntou, friamente, se eu queria morrer num hospital ou em casa.

— “Em casa!” — respondi imediatamente.

— “Não hoje. Agora você irá para a Detenção.”

“Nesse presídio, o médico, Dr. Castelo Branco, fez com que eu entrasse na sala de operações, e, sem esterilizar os ferros, sem anestesia local, sem qualquer hesitação, enfiou-me um instrumento enorme no lugar ferido. Rasgou-o. O tal instrumento cirúrgico encontrou resistência e ele começou a empurrá-lo, Não se ferra cavalo daquele jeito, mas eu era um simples ser humano. Dez, quinze vezes, ele repetiu a tentativa. Por fim, desistiu. No dia seguinte, voltei à sala de operação, e aí, com outras precauções, fui submetido à intervenção, porque os presos políticos o exigiram debaixo de ameaças. Desde aquele dia, vinte e seis vezes passei pelo bisturi. Os médicos dizem que um dia eu voltarei a ter todas as minhas faculdades, mas não acredito. Por enquanto, nesse terreno, estou inteiramente inutilizado e devo isto à polícia de Filinto Müller. Durante quarenta e cinco dias arrancaram-me pedaços de carne podre do corpo. Finalmente, graças à atividade de minha esposa junto ao Deputado Café Filho e aos protestos deste na Câmara, fui solto por ordem do Tenente Virgílio. Por estranha coincidência, o investigador “Buck Jones” recebeu a incumbência de levar-me da Detenção para a Polícia Central. Lá estava o Romano com o mesmo sorriso nos lábios.

— “Ceará” velho, onde é que vais morrer?”

Sorria, gozando a própria graça.

— “Vais morrer em casa ou no Hospital?”

— “Em casa!” — respondi novamente. Responderia sempre assim.

— “Pois desta vez, irás para casa.”

“Fui para junto de minha esposa. Dias depois, a crise da bexiga agravou-se e internaram-me no Hospital São Francisco de Assis para ser operado pelos Doutores Sebastião e Junqueira. Suportei bem o bisturi. O Doutor Jorge Gouveia, da 4ª Enfermaria, tornou a me abrir. Essa a minha sina. Fez um enxerto, transplantando carne da perna. Hoje a água que bebo sai por um orifício aberto a ferro. De vez em quando volto à mesa de operação, porque este se fecha. O que a natureza fez, o homem não consegue desfazer. Veio a revolta integralista e principiaram a realizar novas prisões. Para evitar confusões, decidi fugir. Durante cinco ou seis meses, vivi sob o nome suposto de José Pereira dos Santos, noutra rua do subúrbio de Osvaldo Cruz. Minha mulher, que passara toda sorte de privações, estava à morte, tuberculosa. Os primeiro sintomas da guerra apareciam nos jornais. — “Parece que vai haver guerra e eu não estarei aí para acompanhá-lo”, disse-me a dedicada companheira. No dia da invasão da Polônia, 29 de agosto de 1939, ela piorou. “Você tinha razão” — dísse-lhe eu — “ao supor que não viveria muito.” Minha esposa morreu calmamente, não viu a guerra, nem a outra chegada dos investigadores, para levar-me preso. O Tribunal de Segurança condenara-me a cinco anos e oito meses de prisão e eu deveria cumprir quatro anos que ainda faltavam. Fui para a Detenção e depois para a Ilha Grande. Cumpri toda a sentença. A anistia veio tarde para mim. Nada lhe devo.”

*

“Numa tarde, há alguns meses, entrei com um amigo no Palácio do Café. Ele me apontou alguém com um braço. Era Filinto Müller, que entregava uma xícara ao Pedro Lafaiete. Filinto Müller sorria. Busquei me lembrar onde vira antes aquele sorriso. Larguei a xícara, saí como um louco, e fui andando pela rua. Longe, me lembrei de quem era o sorriso igual àquele. Filinto Müller sorria o sorriso nazista de Emílio Romano. Suas almas eram gêmeas. Seus sorrisos também. Deus os fez, Getúlio os juntou.”


 

A força vazia

 

Em uma carta endereçada ao General Almério de Moura, o Tenente Severo Fournier conta a seguinte cena passada na Delegacia de Segurança Política: — “Vou citar-lhe um fato que caracteriza bem não só as humilhações, mas os processos usados pelos algozes filintianos: após a tentativa de levante do dia 11 de maio de 1938 e as inúmeras prisões, os presos eram despedidos e lançados numa infecta sala a que os selvagens auxiliares do chefe de polícia chamavam “americana”, onde não lhe era permitido sentar-se. Apagadas as luzes, entram na sala o “Buck Jones” com outros valentes policiais, armados de cassetetes de borracha, e só deixam a mesma quando suas indefesas vítimas, já exaustas, caem por terra. Então, entra em cena a turma dos irrigadores e baldes d’água, para reanimar as vítimas e prepará-las para as consecutivas cenas, que se repetem até o desânimo de uns, morte de outros. Posso provar que só de uma feita sucumbiram seis presos à míngua de socorros. Dentre esses, um se sobressaiu pela resistência inaudita de seu físico aliada a um alto sentimento de dignidade. Conseguindo passar por todas as provas, já cambaleante, as costelas fraturadas, assim como vários ossos, erguia-se entre os companheiros, molambos humanos, e confirmava sua convicção doutrinária com a voz entrecortada de gemidos. Foi o bastante para que, penetrando novamente na “americana”, os sequazes filintianos aplicassem-lhe charutos em brasa sobre a pele e repetissem as cenas anteriores de surras de cassetetes até o desfalecimento do homem. Não satisfeitos de verem sua vítima ensanguentada no solo, introduziram-lhe uma cassete no ânus. Qual o sentimento que esse homem e os outros que experimentaram a “americana” podem ter? Meu general, sempre ouvi dizer e é um fato: a violência gera o ódio — e este gera a vingança”.

*

A escritora Pagu, de São Paulo, filiara-se no Partido Comunista do Brasil. Presa, tentaram fazer com que ela denunciasse seus supostos companheiros de plano revolucionário. Nem ao menos havia plano revolucionário. Utilizados os meios normais, passaram a usar os recursos violentos. Posta de forma a não poder reagir, introduziram-lhe na vagina um cassetete e faziam com o mesmo movimentos vários, até que o sangue saiu em golfadas e a mulher perdeu os sentidos. Só então a abandonaram. Inúmeras senhoras passaram por esse suplício. Algumas estavam grávidas, mas isso servia até de estímulo aos bárbaros.

Ao assumir a Chefatura de Polícia, o coronel, hoje General Alcides Etchegoyen, mandou apurar as responsabilidades de cada um desses carrascos. Por sua conta, demitiu-os. Os relatórios foram enviados ao chefe do governo, Sr. Getúlio Vargas, que guardou-os para sempre. De que lhe servia o relatório de crimes que ele autorizara, de selvagerias que tiveram seu beneplácito? Entre as denúncias que teriam sido formuladas pelo General Alcides Etchegoyen contra o Sr. Filinto Müller, estava a de ter o antigo chefe de polícia, descendente de alemães e nazista convicto, mandado fornecer passaportes aos ex-tripulantes do “Graf Spee”, refugiados no Rio. Com esses documentos, os oficiais e marinheiros germânicos puderam voltar à sua Pátria, ficando em condições de regressar em submarinos às nossas costas, para torpedear navios mercantes brasileiros.

Nunca o Sr. Filinto Müller poderá informar o destino das verbas secretas da Polícia, no tempo de Vargas. Nem dará suficientes explicações da forma com que obteve o dinheiro para construir o magnífico palacete em que reside, na mais valorizada zona da cidade do Rio de Janeiro. Com o soldo de capitão? Com os salários de chefe de polícia? Neste ponto, seus auxiliares souberam imitá-lo. Quase todos se tornaram comerciantes fortíssimos, proprietários de lojas, de sítios, de fazendas, de prédios espalhados em todos os bairros. Alguns, prudentemente, abriram contas em bancos estrangeiros, para o que desse e viesse. No caso de uma violenta reação aos seus crimes, fugiriam, e, fora do Brasil, na Argentina, no Uruguai, nos Estados Unidos ou na Europa, levariam vida de príncipes.

A reação não veio. Eles levam a vida de príncipes no Brasil mesmo, e morrerão felizes e tranquilos. Sobre seus túmulos haverá cruzes. Tudo ficaria esquecido depressa e a própria história de nossos dias deixaria em branco essa fase negra de nosso tempo, mas tal não se dará. O livro é o único processo de subsistência de um fato — e ficarei satisfeito em ter contribuído para que os pósteros saibam, pelos século em fora, por que houve uma forca vazia em Nuremberg.


 

Os delatores

 

A Ordem Social, departamento da polícia brasileira, possuía o quadro efetivo de investigadores e o quadro de extras, formado por indivíduos não pertencentes à organização policial. Tipos de mentalidade apodrecida, e escória das fábricas, das oficinas, dos quartéis, das casas de habitação coletiva, dos centros espíritas, serviam para o trabalho de espionagem, de delação, de vigilância. Eram o baluarte do Estado Novo. Descobriam futuras revoluções, hipotéticos golpes contra o Governo. O Governo se armava, a reação crescia, e a ditadura se eternizava. Sempre que Filinto Müller necessitava de novas verbas secretas, lançava mão desses chamados “cagoetes”. Estes se atiravam em campo, ferozmente. Aproximavam-se dos soldados, dos marinheiros, dos operários, e principiavam a conversar. Inicialmente, criticavam abertamente o Governo e os comandantes militares. Se o outro era tolo e revelava seu ponto de vista, o delator corria ao primeiro oficial integralista e fazia sua comunicação. O oficial, por sua vez, se punha em contato com a Ordem Social. O “cagoete”, feliz, comparecia à Polícia e recebia os 50 mil-réis a que tinha direito por cada indivíduo apontado. Tornou-se uma indústria rendosa no Brasil a da delação. Muitas vezes, o “cagoete” punha boletins subversivos no armário do companheiro, e denunciava-o. Preso e acusado, descobria-se o impresso comprometedor e o processo se formava, incontinenti. A indústria da delação deu fortuna a muita gente boa. Viam-se indivíduos que dantes davam facadas de dez a vinte cruzeiros nos amigos, se tornarem, quase da noite para o dia, ricos proprietários em Botafogo, Jacarepaguá etc. Conhecemos um carregador de coroas funerárias do Mercado das Flores, na Praça Olavo Bilac, que se tomou agente secreto e delator da Polícia. Por fim, conseguiu o lugar de investigador na Ordem Social. Atualmente está rico à custa de prender ou denunciar comunistas. Possui casa própria e anda folgado como um bom e inocente burguês.

A Polícia buscava corromper operários, soldados e marinheiros, escolhendo entre eles os tipos à sua feição. Tais métodos, copiados do fascismo italiano, pois Mussolini o adotava largamente, enchendo a Ilha de Capri de milhares de presos, deu no Brasil esplêndidos resultados. A verba secreta não tinha limite. Os investigadores trabalhavam de combinação, exigindo aos delatores que repartissem com eles os 50 mil-réis da denúncia. Muitos patrões aproveitavam essa situação tenebrosa para despedir antigos operários que iam completar os dez anos de estabilidade. Demitiam sem indenização por se tratarem de acusados de comunismo. Um industrial em tecidos, amigo íntimo de Serafim Braga, adotava tal sistema. Sempre que se via na contingência de pagar determinada indenização, conseguia que boletins comunistas fossem colocados na residência do operário e avisava o chefe da Ordem Social. O flagrante se realizava com a maior facilidade. Formava-se o processo e o empregado ia para a rua sem um centavo de indenização. O editor Vecchi utilizava esse truque com frequência. Valendo-se de um empregado integralista, “cagoete” da polícia, mandou que denunciasse o gráfico Rodolfo, sob a acusação de comunista. Rodolfo foi preso sem que possuísse qualquer entendimento sobre marxismo. Vecchi demitiu-o sem indenização. O inquérito contra Rodolfo deu em nada, pois Rodolfo tinha um protetor influente na Polícia. Apanhou, mas foi solto, sem processo. Moveu uma questão judicial contra o editor Vecchi e venceu plenamente, como de direito.

Nos sindicatos de classe, as diretorias eram escolhidas e controladas pela Polícia. De nada valia a assembleia eleger este ou aquele membro, pois dependia do referendo do Ministério do Trabalho, e, o Ministério do Trabalho, antes de dar a sua aprovação, ouvia a autoridade policial. Não se podia promover uma assembléia sem comunicar o intento à Ordem Social. Serafim Braga, o controlador de tudo, enviava seu representante para assistir aos debates e por vezes suspender a assembléia, prendendo os membros participantes. Não faltavam, nesse setor, as delações “per capita”. Cinquenta cruzeiros por denúncia não se podiam desprezar sem mais nem menos.

Na Marinha, a Ordem Social possuía ótimo auxiliar no Comandante Meira, o qual tinha sob suas ordens inúmeros lacaios integralistas para denunciar os seus colegas. Tal gente fora recrutada na escória da Marinha de Guerra e se constituía, quase sempre, de degenerados, ativos e passivos. Certa vez, um sargento foi convidado a fazer parte da Ação Integralista Brasileira. Desculpou-se, recusando-se a ingressar no Partido Fascista. O suboficial Frota insistiu no convite. E insistia todos os dias. O sargento se esquivava, sem expor com franqueza sua repulsa, pois queria evitar a perseguição. Finalmente, um dia o suboficial lançou seu ultimato:

— Hoje você se inscreve de qualquer jeito!

O sargento alegou que não podia fazê-lo, pois sua esposa estava doente e ele necessitava de duzentos cruzeiros com urgência para comprar remédios. O suboficial pediu ao comandante do barco a importância. O sargento aceitou, declarando que pagaria no dia seguinte.

— Está bem, respondeu o suboficial — mas vá se alistar ainda hoje.

Aflito, o sargento não retrocedeu. Não foi. No dia seguinte, o suboficial conduziu-o à presença do comandante. Este disparou uma saraivada de insultos, desde canalha, cachorro e sem-vergonha e outros mais baixos. Desde então, a cruel perseguição ao sargento principiou. A onda de provocações ao sargento não teve limite. Por fim, exausto, o sargento comunicou o fato ao seu instrutor de marinheiragem, o Comandante Conceição, oficial anti-integralista. Senhor das ocorrências, decidiu levar o caso ao diretor da Escola na Ilha de Mocanguê. Disse ao superior:

— Este homem tem mais de 30 anos de Marinha. Foi sempre um bom praça. Agora está sofrendo enorme perseguição, porque não quer ser nazista. Não é justo!

Respondeu o diretor:

— Deixe o caso comigo, que acertarei as coisas.

E acertou.

A Polícia contratara na Marinha outros dois delatores, um cabo e um alfaiate. Este último, de nome Mendonça, chegou a pertencer ao Partido Comunista e entrou em contato com o pessoal filiado. Outro se deixava prender, porém, todos conheciam esse velho truque. Todos os membros do Partido Comunista sabiam que ele fora excluído por traição. Mesmo assím, afastando-se dos seus antigos colegas marinheiros, conviveu com os militantes do partido comunista, trabalhou muito tempo para chegar aos seus objetivos, simulando com rara maestria. Em 1935, estava ele senhor de uma longa lista de adeptos e militantes comunistas. Depois do movimento, denunciou tudo que sabia, um a um, fornecendo a Serafim Braga a relação nominal de mais de 800 chefes de família. Hoje, existem centenas de mulheres prostitutas, centenas de lares desfeitos pela delação desse indivíduo. Seu nome é José da Mota, mas todos o conhecem por “Tupã”. Mais de 2 000 civis foram levados à prisão graças à sua tarefa de delação, pois ele fora secretário do Partido Comunista na vasta zona suburbana da Central do Brasil, onde o número de militantes da organização comunista era enorme. Suas atividades se estenderam até o Estado do Rio, onde ele fez uma grande limpa, desde Niterói até Campos. “Tupã” tem a glória de ser o delator que melhor serviu a Filinto Müller e Serafim Braga. Em recompensa, ganhou uma bela vivenda em Ricardo de Albuquerque, afora os 50 mil réis por cabeça pagos pela verba secreta da Polícia. Tupã possuía um caderno com nomes e endereços. Se precisava dinheiro, tirava o caderno do bolso, copiava alguns nomes e escrevia um bilhete a Serafim Braga. Logo um desgraçado era arrastado à câmara de torturas, sua casa varejada, sua família infelicitada, enquanto “Tupã” guardava uma cédula de 50 mil réis. Quantos marinheiros, cabos, sargentos e operários estão hoje desaparecidos, mutilados ou mortos pela ambição de “Tupã”! Ele arranjava, com os investigadores, uns embrulhos de manifestos comunistas e levava à residência de algum marinheiro, dizendo à esposa deste que o marido lhe enviara aquele pacote para guardar. O marinheiro caía nas mãos da Polícia no mesmo dia; sua casa revistada, o embrulho descoberto, prova do crime positivada, o Tribunal aceitava — e a sentença era lavrada. Até 1939, “Tupã” fazia grandes férias. Daí para 1945, entretanto, cada cabeça de comunista baixou. Valia apenas 20 mil réis. “Tupa” se recolheu, tranquilamente, à vida doméstica, em Ricardo de Albuquerque, onde desfruta de prestígio e vive como um nababo. Envelhecera contando histórias e rodeado de serenidade.

Contará, por exemplo, a história dos dois tipos de degenerados que o serviram até 1939. Um deles, o macumbeiro Ademar, que se dizia espírita, colhia informações de seus clientes e levava-as a “Tupã”. Esse Ademar trabalhava no Arsenal de Marinha e residia também em Ricardo de Albuquerque. O outro, um tal de Aristides, servia na Prefeitura, residia nos Pilares e era metido a conquistador. Fazia a mesma coisa que Ademar: sessões de baixo espiritismo. Ao mesmo tempo que recolhia informações, conquistava a esposa dos outros.

O alfaiate Mendonça não teve a mesma sorte de “Tupã”, pois os comunistas descobriram logo que ele os denunciava e o expulsaram imediatamente. Serafim Braga, compadecido, protegeu-o, arranjando-lhe um lugar de investigador efetivo. Serafim, padrinho de seu filho, colocou-o no posto de ajudante da carceragem, mas o Péricles não gostava dele e passou a persegui-lo. Mendonça se entregou ao vício da embriaguez, adoeceu e uma tuberculose levou-o.

“Tupã”, entretanto, não perdia o hábito, na pacata localidade em que reside. Certo dia, na estação, conversava com um jovem. Este se referiu em termos ásperos a Getúlio. “Tupã” encaminhou a palestra para as relações externas do Brasil. O rapaz elogiou a Rússia. Na hora de se despedir, deu o endereço por simples cortesia. “Tupã” tomou nota em seu caderno e telefonou para a Polícia. No dia seguinte, um jovem louro compareceu à residência do admirador da Rússia. Este não se achava em casa, mas a esposa atendeu o visitante, informando-lhe que o seu marido poderia scr encontrado à noite em casa e durante o dia na oficina da Rua Visconde de Itaúna.

À noite, o operário voltou, a mulher contou-lhe o fato, o jovem não se preocupou. Passados três dias, chega a Polícia à oficina e prende o rapaz, Ieva-o à Polícia, espanca-o barbaramente, pois queriam saber a que célula pertencia. Durante 120 dias passou miséria, horrivelmente maltratado. Finalmente é chamado pelo delegado e recebe a intimação de assinar um depoimento que não fizera.

Sob ameaças, assinou. O processo, remetido ao Tribunal de Segurança, resultou em 3 anos de cadeia para o ingênuo operário.

Havia, também, o Bagé, um preto marítimo, que fora militante da organização comunista e esteve preso, denunciando alguns companheiros. Atingido pela sentença do Tribunal fora cumprir a pena em Fernando de Noronha. Não o hostilizaram os antigos companheiros, ao contrário, buscavam instruí-lo. De analfabeto que era, chegou a saber álgebra e a ler corretamente. Ao rebentar a guerra, porém, os nazistas, de vitória em vitória, chegaram a Paris; o marítimo Bagé, sem linha política, começou a vacilar e se ligou, finalmente, ao grupo dos delatores, fazendo-se policial de denúncia. Imaginava Bagé que a vitória nazista era certa. — “Se eles vencem, nunca serei solto, se continuar a pertencer aos comunistas.” Foi solto, e continuou a tarefa de traição. A Polícia dava dinheiro, mas exigia trabalho. Como Bagé estava manjado, bastante conhecido dos comunistas, pouco fazia. Finalmente, encontrou um ex-companheiro, o Cabo Bezerra, e já se viu com os 20 cruzeiros no bolso. Marcou encontro com ele no dia seguinte e mandou a Polícia. O cabo foi preso. Bagé delatou outros inexperientes, mas a Polícia, vendo que ele pouco resultado dava, mandou-o às pulgas. Hoje ele vive de propinas no Cais do Porto.

Dentre os que procuraram se aproveitar da verba secreta da Polícia, alguns conseguiram reunir em suas mãos milhares de contos, servindo como intermediários entre o Governo e a Chefatura de Polícia na obtenção do dinheiro. Planejava-se uma revolução da noite para o dia, desde que houvesse necessidade de uma verba urgente. Enchia-se as prisões e os bolsos.

Enquanto isso, na Ilha Fernando de Noronha, os presos integralistas deixavam indignados os guardiães e os não-integralistas, com os repetidos casos de homossexualismo, obrigando certa vez o Chefe de Segurança da Ilha, o Major Telman, a usar sua chibata, intervindo, para apaziguar os ânimos, os Capitães Agildo Barata e Álvaro de Souza. Outros fatos de lamentável perseguição na ilha-presídio eram os banquetes nas residências dos chefes integralistas, principalmente na casa do Comandante Nuno. Todas as semanas se organizavam lautos jantares, dos quais participavam apenas os maiorais. Os sargentos Pereira Lima e Gonzaga, participantes do assalto ao Guanabara, quiseram se certificar e foram lá de surpresa. Vendo aquilo, protestaram ruidosamente, pois eles passavam a feijão e carne seca podre, que o presídio lhes dava, enquanto os oficiais recebiam leitões e cabritos. Nisto, o marinheiro Batista, que chefiava o grupo de choque dos oficiais integralistas, surpreendeu Pereira Lima na estrada e travou com ele uma luta que acabou com a intervenção da guarda. Entre os delatores na Ilha, os integralistas se sobressaíam como os melhores. Para surpreender correspondência entre os presos políticos e os companheiros em liberdade, dispunham as autoridades policiais de ótimos auxiliares, entre os adeptos da doutrina fascista. Ninguém os ultrapassava na arte de delação.


 

A responsabilidade de Getúlio Vargas

 

Impossível a Getúlio Vargas negar sua culpabilidade no assassínio e tortura dos presos políticos durante o longo tempo em que durou a noite fascista. Guardados em celas úmidas, separados do mundo exterior, os homens que ele mandara prender e supliciar não tinham perdido, entretanto, a espantosa coragem que os marcara. Lançaram do fundo das masmorras um libelo que ficaria para sempre como a principal peça da acusação ao ditador, ao seu chefe de polícia e a outros elementos que participaram dos imensos e trágicos serões de mortes na Polícia Central, na Casa de Correção, na Polícia Especial e na Colônia de Dois Rios. Nesse documento inesquecível, o Dr. Manuel Venâncio Campos da Paz e outros civis se juntaram a dezenas de valentes militares para historiarem, numa linguagem serena e digna, os acontecimentos que se imaginava ficarem sepultados naqueles antros de martírio. O documento de acusação foi dirigido ao Sr. Getúlio Vargas. O tirano não tem o direito de alegar desconhecimento. Nesse papel, saído clandestinamente da Detenção, se afirmava, de maneira desassombrada e categórica, que os signatários não pleiteavam qualquer medida que viesse melhorar a terrível situação em que se encontravam, mas apenas desejavam caracterizar a responsabilidade do ditador que se arvorava em Presidente da República.

Agravando-se, cada vez mais, a já precária e insuportável situação dos presos políticos, cujo número se elevou em todo o Brasil a cerca de 10.000 (só no Distrito Federal foram detidas, segundo relatório da Polícia, mais de 3.000 pessoas), em sua grande maioria privadas de liberdade por simples delação ou desafeição pessoal, os presos políticos resolveram, de acordo com o memorial que enviaram a Vargas, participar ao mais graduado agente do Poder, e, por consequência, o mais responsável, os fatos mais revoltantes da abjeta perseguição. “Não nos move a expectativa de providência que, de vossa parte, venham pôr termo a esse miserável estado de coisas, mas o objetivo de caracterizar a vossa responsabilidade pela aprovação do procedimento extralegal de certas autoridades. Elas vêm praticando uma série de monstruosidades que são uma negra mancha nas tradições da civilização brasileira e o descrédito do Brasil no conceito das nações cultas. Contra isso levantam-se os clamores da nossa consciência de homens livres e a voz ativa do nosso exaltado patriotismo. Temos a mais absoluta certeza de que o povo brasileiro se solidariza conosco, e neste momento compreende que os fatores de desmoralização de nossa terra no estrangeiro não são criados pelos presos políticos, mas pela ação do Governo. Sobre este recairá justamente a pecha de incivilização e de bárbaro que se queira imputar ao povo brasileiro, proverbialmente respeitado pelo seu sentimento de justiça e humanidade. Os presos políticos já protestaram perante o Sr. Ministro da Justiça, em janeiro do corrente ano, contra os asssassínios, espancamentos, torturas e maus tartos de toda natureza a que estavam submetidos sob o “estado de sítio”. Da tribuna, o Sr. Abel Chermont leu esse protesto. Quais as providências tomadas por aquela autoridade? Prisão do Senador Abel, devassa na casa desse parlamentar e toda sorte de represálias, indo até a prisão do seu filho Francisco Chermont, estudante de Direito, remetido para a Colônia de Dois Rios, de onde o vimos regressar, de cabeça raspada, desfigurado e horrorizado de tudo o que ali presenciara e sofrera. E, dos fatos referidos naquele protesto, apenas um mereceu caricata tentativa de desmentido: o espancamento do estudante Clóvis de Araújo Lima, cujas sevícias foram testemunhadas, a bordo do navio-presídio “Pedro I”, por todos os presos políticos e pelas autoridades presentes: Cap. Gonçalves, comandante do Destacamento de Polícia Militar; Cap. Linhares, comandante do navio, e outras. Dois meses depois, a Polícia submetia a sua vítima a exame médico, cujos laudos publicou em confronto com o lavrado a bordo por três clínicos, tendo o cuidado de omitir a data deste último, para evitar que se desprendesse a falsa fé, e a mistificação das autoridades policiais. Sob o “estado de guerra”, novos crimes vieram aumentar a já numerosa e nefanda lista das atrocidades cometidas de novembro para cá. Seria demasiado longo o relato completo desses horripilantes crimes atentatórios aos mais comezinhoss princípios de respeito à pessoa humana e nos quais só a evidência dos nossos próprios olhos nos obrigou a acreditar. Limitamo-nos, assim, a citar alguns dos que foram por nós constatados e, dos quais, pela precisão e riqueza de detalhes de nosso conhecimento, se tornaria impossível sequer uma tentativa de contestação honesta. O regime da Colônia de Dois Rios, ironicamente chamada Correcional, é de tal forma bárbaro e desumano que afasta toda possibilidade de descrição. Centenas de pessoas de todas as condições sociais, arrancadas violentamente dos seus lares e afazeres, encontram-se, sem a menor culpa formada e algumas sem mesmo terem sido sequer ouvidas pelas autoridades, submetidas a um regime de trabalhos forçados que nenhuma lei autoriza, premeditada e criminosamente sujeitas a viverem em promiscuidade com delinquentes tarados da pior espécie (vagabundos, pederastas etc.), com morféticos, tuberculosos, epilépticos etc., dormindo sobre a areia molhada de um barracão mal coberto por telhas de zinco furadas, onde não podem, ao menos, conciliar o sono, assaltados que são, a cada momento, por toda sorte de parasitas. Espoliados de todos os objetos de uso pessoal (roupas, cobertores, escovas de dentes, sabonetes etc.) e do próprio dinheiro, os presos políticos de Dois Rios são obrigados a andar seminus e sujos e com a cabeça raspada. As condições higiênicas são as mais precárias possíveis. A falta de banho, de camas, de assistência médica e medicamentos faz com que inúmeros presos apresentem o corpo coberto de chagas. São exemplos concretos e por nós testemunhados os dos cabos Jancy d’Ávila e Bendito de Oliveira, respectivamente da Escola de Aviação e do 1° R. I., há dias transferidos para a Casa de Detenção. Uma alimentação deficientíssima e nauseabunda debilita os presos, que são forçados, além disso, a trabalhar exaustivamente nas galés do Tenente Vitório Caneppa, administrador do presídio. No momento grassa, na Colônia, grave disenteria epidêmica. E, para ampliar esse quadro verdadeiramente dantesco, os presos políticos são espancados a cacete, coice de fuzil, borracha (camarão), pelos mais fúteis pretextos e mesmo sem pretexto algum. As síncopes frequentes, motivadas pela subalimentação e falta de repouso, constituem um dos motivos de espancamento e prisão celular, completada pela privação de alimentos e racionamento da água, durante um mínimo de três dias. Porque se achasse doente, ainda em consequência dos espancamentos que sofrerá na Polícia Central, quando de sua detenção, um desses presos, o Cabo Arlindo Pinho, do 1° Grupo de Obuses, não podendo transportar oito tijolos sobre a cabeça nua, pediu que lhe reduzissem a carga para seis. E isso deu lugar a que o enfermo fosse impiedosamente espancado a cacete e sujeito às piores humilhações. O Cabo Aristóteles, do Corpo de Fuzileiros Navais, porque distraidamente descruzasse os braços na formatura, posição obrigatória para todos os presos, recebeu uma coronhada na região renal. O marinheiro José Leite Filho, da nossa Marinha de Guerra, surpreendido a olhar uma das cenas frequentes da Colônia, uma briga entre dois vagabundos, foi barbaramente espancado e atirado à cela. E, na Colônia de Dois Rios, estão lançados cerca de quatrocentos presos políticos, desamparados, como párias, dentro da própria pátria e sobre os quais ainda não se pronunciaram os tribunais do País, a não ser absolvê-los, como é o caso do ancião Manuel Leal e de outros, absolvidos pelo juiz federal do Estado de Alagoas e violentamente segregados do seio de suas famílias por força das arbitrariedades do general integralista Newton Cavalcanti.

Dentre os cidadãos brasileiros vitimados pela barbaridade do regime de Dois Rios, encontram-se os Srs. Graciliano Ramos, conhecido escritor patrício; Joel de Carvalho, funcionário da Justiça Federal; João Antônio de Assis Brasil, cadete da Escola Militar; Anastácio Pessoa, alto funcionário do Banco do Brasil e primo do Governador Juracy Magalhães; Álvaro Ventura, deputado à Constituinte Federal; Aristóteles de Moura, ex-diretor do Sindicato Brasileiro dos Bancários e ex-contador do Instituto do Açúcar e do Álcool; Euclides Vieira Sampaio, presidente da Federação dos Ferroviários; Anaklicio Louriçal, presidente da U. T. L. J., Newton Freitas, jornalista; Jausênio Janserico Daemom, agente da Estrada de Ferro Central do Brasil; José Augusto Simões Barros (Zizé), “sportman” e bancário, e grande número de dirigentes sindicais, “líderes” ferroviários, comerciários, marítimos, bancários, estudantes etc. E, tudo quanto afirmamos, Sr. Presidente, é a pura verdade. Tanto que, daqui, vos reptamos a provar que mentimos, nomeando comissões mistas de pessoas gradas, parlamentares, oficiais das nossas Forças Armadas de terra-e-mar, magistrados, professores, médicos, jornalistas, padres, estudantes etc,, que vão, “in loco”, constatar a veracidade de nossas asserções. A Casa de Detenção é outro exemplo da “benignidade” do Governo para com os presos políticos que aqui se encontram, sem exceção, sob grades. Todos os que se achavam detidos a bordo do “Pedro I” foram para cá transportados em “tintureiros”. Chegados à Casa de Detenção foram, cerca de duzentos, lançados nas chamadas “galerias”. Aí permaneceram semanas e semanas, sem o menor conforto, sem banho, sem sol, dormindo sobre o ladrilho e recebendo, uma vez por dia, uma marmita de caldo de feijão e farinha, como única alimentação. Em xadrezes com lotação para 20 pessoas foram atiradas até 68. A situação era tal que, à noite, os presos dormiam por turmas, por não haver área suficiente para todos se deitarem. Presos políticos, vítimas das perseguições policiais, ficam sujeitos a um regime penitenciário desumano e ilegal, que não é aplicado nem mesmo a criminosos comuns. Era inexistente a assistência médica e dentária. Nesse ambiente, todos os males tinham livre curso e inúmeros são os que se viram atacados de afecções pulmonares (tuberculose, gripe epidêmica, bronquites), reumatismo, parasita da pele. As constantes reclamações aos administradores da Casa de Detenção, feitas pelos presos das galerias, tinham como resposta ameaças mesquinhas e humilhantes. Não para aí, no entanto, a série de atos bárbaros e infames praticados pelos agentes do poder público. Aos presos políticos nem sequer é permitido a leitura de jornais, o que constitui uma verdadeira tortura intelectual. A lavagem e higiene dos cubículos é feita por nós próprios. Tuberculosos se encontram em nosso meio, e, como medida de isolamento, por nós reclamada, foram transferidos para cubículos, entregues à sua própria sorte. Há poucos dias, achando-se à morte, no cubículo onde estava recolhida, a companheira Eneida Costa, e não tendo a direção, durante mais de uma semana, tomado as providências reiteradamente por nós solicitadas para remoção da enferma, resolveram os presos, em desespero de causa, forçar o entendimento pessoal com o Dr. Neiva, diretor da Casa. Para isso, uma comissão composta dos Srs. Major Alcedo Batista Cavalcanti, Capitão-Tenente Hercolino Cascardo, Cap. Agildo Barata e o Médico Sebastião da Hora, encaminhou-os à Diretoria, aproveitando um momento em que o portão do Pavilhão dos Primários estava aberto. Em consequência disso, foram aqueles companheiros violentamente metidos, sob o aparato de metralhadoras da Polícia Central, nas solitárias chamadas “novo raio”, da Casa de Correção, de onde saíram cinquenta horas depois, por força dos nossos protestos, que culminaram na greve de fome. E só desta maneira foi que conseguimos a remoção da enferma para um Hospital. Outro sugestivo exemplo da covardia da polícia chefiada pelo Sr. Filinto Müller é a maneira por que vêm sendo tratados Luís Carlos Prestes, presidente da Aliança Nacional Libertadora, e sua mulher Maria Prestes. O grande brasileiro acha-se há mais de três meses num quarto da Polícia Especial, sob o rigor de incomunicabílidade absoluta, não lhe sendo permitida a leitura de jornais, nem mesmo de livros, o que constitui, dentro da insuportável vida de inteiro isolamento que lhe impõe a Polícia, uma tortura inominável. É-lhe vedado até avistar-se com sua mulher, que se acha recolhida à Casa de Detenção, grávida e enferma, e sem a assistência que essas circunstâncias exigem. Maria Prestes, em tal situação, não recebeu até agora, da parte do Governo, senão o covarde insulto público que lhe lançou o Sr. Carlos Maximiliano. E, o que é mais ignominioso, neste momento as autoridades do Ministério da Justiça acabam de preparar sua expulsão para a Alemanha nazista, apesar da delicadeza e do adiantado de sua gravidez — num flagrante desrespeito às legítimas garantias que em todo o mundo civilizado amparam a mulher que vai ser mãe. Essa é a benignidade apregoada em discursos e notas tendentes a manter o povo enganado a respeito da ação das autoridades governamentais. Agora, desenterraremos da Polícia Central e da garagem da Polícia Especial as horripilantes cenas de banditismo que enchem a história do “estado de guerra”. Já nos referimos, em protestos anteriores, aos espantosos atos de espancamentos e torturas físicas e morais sofridas pelos estudantes Clóvis de Araújo Lima, engenheiro, e químico Abelardo Araújo, cabos do Exército José Basílio Lima e Eneu Gonçalves de Paula etc. Passaremos a apontar mais algumas vítimas dos processos medievais usados pela Polícia, dando local e dia em que foram praticados e os que ordenaram ou assistiram a tais atos, e que, apesar disso, continuam a desempenhar as suas funções:

Francisco Romero: pintor. Às vinte e duas horas do dia 22 de dezembro p.p. foi, em uma das salas da Delegacia de Ordem Política e Social, sujeito a espancamento com palmatória, nos pés, nas mãos e no tronco. A 23 e 24, foi espancado a cano de borracha pelo próprio chefe da Segurança Política, Sr. Emílio Romano, e aparelho de couro pelo chefe da Segurança Social, Sr. Serafim Braga. Em todos esse período foi privado de toda e qualquer alimentação. A 18 de março foi novamente surrado, a cano de borracha, pelo Tenente Américo de tal, da Ordem Política e Social. O menor Osvaldo, de 12 anos, filho de Romero, também foi espancado, na delegacia de Vila Isabel.

Esses espancamentos foram seguidos de torturas, inclusive enterramento de alfinete debaixo das unhas. Todas as surras foram até a perda dos sentidos. Júlio Ferreira Alves, 2° sargento reformado do Exército, apanhou de cano de borracha em 26 de dezembro, e posteriormente a 5 de março na sola dos pés e nas mãos, sendo autores da violência Emílio Romano e seus agentes. José Ferreira Ramos, marítimo, espancado às 3 horas do dia 2 de janeiro, na Polícia Central, pelo próprio Capitão Miranda Correia e investigadores, a cano de borracha. Carlos Emílio, padeiro, espancado no dia 21 de janeiro, às 3 horas, também pelo Capitão Miranda Correia, no mesmo local. Rodolfo Ghioldi, jornalista, secretário do Partido Comunista Argentino, irmão do deputado ao Parlamento da vizinha República; Américo Ghioldi, espancado a 28 de janeiro, na garagem da Polícia Especial, a socos e pontapés e cano de borracha, na sola dos pés, por José Torres Galvão e agentes da citada milícia, com a assistência de Francisco Julian. A 30 de janeiro, novamente, pelo dito Galvão e uma turma da Polícia. Milton Rodrigues da Silva, comerciário em Niterói, espancado às 24 horas do dia 5 de maio, na Polícia Central, a cano de borracha, socos e pontapés, por uma turma de investigadores, chefiados pelo Sr. Emílio Romano. Carlos Marighela, estudante de engenharia, espancado na Polícia Central, a 1° de maio, pela manhã, cinco vezes seguidas, a cano de borracha, nos pés e nas nádegas, socos no estômago, por Serafim Braga, Romano e agentes da Ordem Social. A 2 do mesmo mês, na garagem da Polícia, sofreu a chamada “tortura chinesa”: simultaneamente apertaram-lhe os testículos, enterravam-lhe um alfinete de gravata sob as unhas e queimavam-lhe a pele com brasas de cigarro. Tudo feito sob a chefia de Galvão, com a assistência de Julian. Foi ainda desta vez jogado repetidamente ao chão, o que lhe produziu contusões generalizadas e profundo ferimento no supercílio esquerdo. A 6 de maio, às 2 horas, na garagem da Polícia Especial, a cano de borracha, socos e pontapés. Taciano José Fernandes, farmacêutico, agredido a socos e pontapés e surrado a cano de borracha na Polícia Central, às 3 horas do dia 1° de maio, pelo próprio Julian. Levado às 4 horas para a Polícia Especial, foi aí novamente espancado e suplicíado por Julian e polícias especiais, tendo-lhe sido enterrados alfinetes sob as unhas. Na tarde desse mesmo dia, foi outra vez torturado, por Galvão, com a assistência de Julian. Recambiado, no dia 4, para a Policia Central, foi durante 3 horas, das 2 às 5 da manhã, submetido a sucessivos espancamentos por um grupo de policiais, sob a direção de Romano. A 6 de maio, às 24 horas, novos suplícios lhe foram infligidos pelo mesmo Romano. A violência dos espancamentos foi tal, que a vítima teve reincidência de uma hérnia inguinal esquerda, há tempos operada. Assas Halem, cozinheiro, espancado a 3 de maio, às 13 horas, por Romano, a cano de borracha, socos e pontapés. Miguel Xavier Borba, cabo radiotelegrafista do encouraçado “São Paulo”, espancado a 18 de maio, de 22 a 23.30 horas, na garagem da Polícia Especial, a cano de borracha, socos e pontapés, pelo investigador Matos, adido do Ministério da Marinha, e por uma turma da Polícia Especial, com autorização do Cap.-Ten. Paulo Martins Meira. Tal foi a violência daqueles espancamentos, que a vítima teve o pé esquerdo deslocado e fratura de uma das falanges do dedo mínimo da mão esquerda. Félix Wandismel da Costa Rêgo Sobrinho, marinheiro, servindo na Aviação Naval, espancado em 3 de junho, na Polícia Central, pelo mesmo investigador Matos e Emílio Romano, a cano de borracha, nas nádegas. Esses dois marinheiros foram depois mandados para a Detenção, onde os vimos chegar em estado verdadeiramente lastimável.

Até meninos do Colégio Militar foram brutalmente surrados na Polícia Central. Em 12 de abril, estavam na sala de detidos e seus corpos apresentavam sinais dos espancamentos sofridos.

A maioria dos espancamentos e torturas efetuados na Polícia Central tiveram lugar numa dependência contígua à sala de trabalho de Romano.

Nem o tradicional e natural respeito à intangibilidade da mulher deteve a mão inquisitória dos agentes policiais. D. Júlia Santos, empregada em casa de Luís Carlos Prestes, presa a 5 de março, foi conservada até o dia 8, na Polícia Central, sem comer e sem dormir, sendo espancada nesse dia, pela manhã, por uma turma de policiais. Para ser surrada, vendaram-lhe os olhos. Após o espancamento sofrido, foi supliciada com choques elétricos nas axilas e na fonte. D. Leonilda Félix, presa no dia 1° de dezembro p.p., em Natal, Rio Grande do Norte, no dia 6 deste mês, às 22 horas, foi levada para um lugar deserto, nos arredores da cidade, e ai foi brutalmente espancada a cano de borracha; depois foi transferida para o Rio, onde se encontra, na Casa de Detenção. D. Elise Ewert Berger, presa com seu marido Harry Berger, a 26 de dezembro p.p., permaneceu 2 dias na Polícia Central, privada de qualquer alimentação. Levada a 28 para a Polícia Especial, continuou sem comer e beber até o dia 1° de janeiro. Nesse dia, ao ser interrogada, Julian ofereceu-lhe um copo d’água, em troca de certas declarações. De 1° a 6 de janeiro, foi por várias vezes espancada na presença de seu marido, com um cinturão de couro e com fios eletrificados que produzem, simultaneamente, dor da vergastada, choques e queimaduras. Foi obrigada a assistir alguns dos horríveis suplícios a que submeteram seu marido e que foram denunciados da tribuna do Senado pelo Sr. Abel Chermont. De certa feita, ainda na presença de seu marido, foi despida, surrada e bestialmente supliciada nos seios. São indescritíveis os outros suplícios por que passou e que só cessaram por força da intervenção do Consulado norte-americano, a 16 de janeiro. Sendo que Harry Berger, que viera para a Casa de Detenção, foi novamente levado para a Polícia Especial, onde até hoje continuam seus sofrimentos.

O que está aí, Sr. Presidente, é a expressão da verdade. É justamente isso que desmoraliza o bom nome do Brasil no conceito das nações. Não alegue, pois, a mais alta autoridade, o desconhecimento de tais ocorrências. Os torturados aí estão, tendo presentes até hoje os quadros da requintada selvageria de que foram vítimas. E aqui, mais uma vez, vos reptamos a que sejam mandadas, até nós, comissões, já e já, sem subterfúgios nem mistificações, a fim de que lhes mostremos as vítimas do “estado de guerra” que povoam os cárceres da Casa de Detenção.

Senhor Presidente da República, a Nação Brasileira, neste momento algemada no tronco odioso do “estado de guerra”, ainda não tomou pleno conhecimento de todos estes crimes, de todas estas torpezas.

O Cap. José Augusto Medeiros, membro do Diretório Nacional da A. N. L., foi assassinado pela Polícia, na Vista Chinesa, como é público e notório. O cabo do 1° Grupo de Abuses, Abdenego Martins, foi supliciado até à morte, na Polícia Especial.

Ao lado desses verdadeiros mortos na Colônia de Dois Rios, o ex-soldado do 29° B. C. de Recife, pelo método assassino de suplício lento da cela, a pão e água, e o soldado da Força Pública do Rio Grande do Norte, João Teodoro, de 18 anos, vítima de disenteria e de absoluta falta de socorros médicos.

O relato frio desses fatos dispensa qualquer comentário. À sombra do “estado de guerra”, que é o instrumento da manutenção dos governos que se incompatibilizam com o povo e se colocou fora da lei, inúmeros outros crimes se cometem em todo o País, e tudo nos indica não estar terminado o seu sombrio desfile. Mais do que nunca, os milhares de brasileiros, que por amor à sua terra, acham-se confinados no recesso tenebroso das Casas de Detenção e das Colônias Correcionais, estão sujeitos à miséria, à fome, às doenças, aos suplícios, à morte.

Mas, longe de nos abater, tal situação só pode reforçar a nossa profunda convicção de que devemos lutar ao lado do povo por um Brasil onde haja Liberdade e Justiça.

*

Vários dos homens que assinaram esse documento histórico e que durante tanto tempo permaneceu desconhecido, por imposição da censura ditatorial, seguiram outros rumos. Naquele instante, entretanto, se firmaram como figuras de vanguarda, impregnadas de heroísmo. Guardo os seus nomes neste livro:

Roberto Sisson, cap.-ten., por si e pelo Major Alcedo Batista Cavalcanti; Agildo Barata e Dr. Sebastião da Hora, recolhidos à 3ª galeria da Casa de Correção, e Cap.-Ten, Hercolino Cascardo; Dr. Francisco Mangabeira; Jornalista Aparício Torelli; presidente do Sindicato dos Bancários Afonso Sérgio Ferreira; bancário Henrique Dantas; Dr. Lourenço Moreira Lima, que se acham na sala da capela do mesmo presídio, todos na impossibilidade moral de aporem suas assinaturas no presente memorial.

Manuel Venâncio Campos da Paz, médico; Renato Tavares da Cunha Melo, capitão; Benjamim Soares Cabelo, jornalista; Agberto Vieira de Azevedo, capitão; Álvaro Francisco de Souza, capitão; José Leite Brasil, capitão; Antônio Rollemberg, capitão; Valério Regis Konder, médico; Pascoal Leme, professor, inspetor de ensino e superintendente do Ensino da Educação de Adultos do Distrito Federal, por si e pelo Professor Eudgar Sussekind de Mendonça; Euclides Oliveira, capitão; Lauro Cortes Lago; Manuel Venâncio Campos da Paz Junior, médico; Rosa Furtado Soares de Meireles, professora; primeiros-tenentes: David Medeiros Filho, Benedito de Carvalho, Hugo de Souza Silveira; Valdemar Bessa, médico; Emílio de Barros Falcão de Lacerda, professor; Eusman Cavalcanti, químico-industrial; Isnard Teixeira, médico; Sílvio Dias, 1°-tenente; Durval de Barros, 1°-tenente; Cícero Carneiro Neiva, 1°-tenente; Dinarte Silveira, 1°-tenente; Antero de Almeida, 1°-tenente, Antônio Travassos Barros, 1°-tenente; Saturnino Santana Filho, 1°-tenente; Paulo Machado Carrion, 1°-tenente; Raul Pedroso, 1°-tenente; Colbert Maíheiros, jornalista; Francisco Leivas Otero, 2°-tenente; Otávio Malta, jornalista; José da Cunha, 2°-tenente; Humberto Lème, médico veterinário; Aristides Souza Tôrres, 2°-tenente; José Gutmann, 2°-tenente; Francisco de Souza, 2°-tenente; Iedo de Faria Pinto, Valdemar Piedade Cardoso, bancários; Iran Ramos Ribeiro, 2°-tenente; Afonso Henriques, bancário; Humberto de Morais Rêgo, 2°-tenente; Dinarco Reis, 2°-tenente; Jonas V. Machado; Júlio dos Santos, engenheiro; Abelardo Araújo, químico-industrial; Flávio Poppe, médico; Luís Xavier de Souza; Carlos Bruswick, 2°-tenente; Valter J. B. da Silva, aspirante; Amil de Oliveira Asanha, piloto marítimo; Augusto Pais Barreto, 1°-tenente.



 

Aqui mandava a Gestapo

 

Certa noite, a bordo de um avião que fazia a linha do Norte, viajei em companhia de um cearense. Não revelou a identidade durante as seis horas em que os motores roncaram em plena escuridão. Via-se que era cearense pelos sinais característicos. De onde me conhecia, nunca cheguei a saber.

— Meu amigo — dizia ele —, tenho visto suas apreciações sobre esse pusilâmine que se fantasiou de super-homem para poder servir de régulo do nazismo. Sou cearense. Brasileiro. O senhor é de origem árabe. Brasileiro. Ele descende de alemães. Nasceu no Brasil. Será sempre alemão até a décima geração. Sempre foi assim. Sempre será assim.

Voávamos sobre a cidade iluminada do Recife quando meu estranho companheiro disse as palavras que me ficaram gravadas:

— Filinto Müller afrontou com todo cinismo a dignidade da consciência nacional infensa à prática de selvagerias e zombou das nossas leis, menosprezando a integridade moral da nossa mais alta Corte de Justiça, praticando, durante dez anos, toda sorte de arbitrariedades, encabeçando, como testa-de-ferro, a prática dos mais hediondos crimes de morte e de sevícias, tal qual jamais se praticou no interior da Chefatura de Polícia, principalmente na Delegacia de Segurança Política e Social, onde os seus asseclas, Alencar Filho, Emílio Romano, Serafim Braga e outros faziam e fizeram nos desgraçados que lhes caíam nas mãos toda sorte de perversidades, a fim de lhes arrancar confissões de alguns crimes que nunca tinham praticado.

Meu companheiro de viagem falava com autoridade:

— A Delegacia de Segurança Política foi, durante a gestão desse indivíduo cruel, um verdadeiro antro de inquisições, onde senhoras e moças eram despidas e espancadas impiedosamente pelos carrascos-chefes das diversas seções, auxiliados por investigadores experimentados. De uma feita, depois de não saberem mais o que de perversidades fazer contra uma mulher, seviciaram-lhe com um cassetete.

Abria os braços, o viajante, falando assim:

— Isto tudo, meu amigo, se fazia contra elementos nacionais, à exceção de Berger e do chofer de Luís Carlos Prestes, este morto por “suicídio”. Já contra os nazistas de projeção a coisa foi bem diversa: eles tiveram de tudo e chegaram a organizar, na prisão, uma espécie de grupo, onde havia do bom e do melhor, inclusive livros e até “pequenas notícias” em bilhetes colocados dentro de pães, que lhes eram mandados pela Associação de Senhoras Alemãs para auxiliar o serviço de espionagem, cuja sede era em Santa Teresa. A polícia de Filinto Müller sabia da história, mas silenciava. Tal era a ordem.

O Chefe de Polícia, entretanto, não fazia esses trabalho de colaboração com o inimigo, desorganízadamente, sem um plano certo. Possuía um mentor nazista, ao qual ele prestava contas dos seus atos e de quem recebia instruções. Tratava-se de um conselheiro da Embaixada Alemã, residente à rua...

Puxou um caderno de notas e ditou o endereço:

— Macedo Sobrinho, 38, em Botafogo. O Filinto Müller não saía de lá. Fazia visitas frequentes e demoradas, mesmo no tempo em que devia atender aos interesses do Brasil na Chefatura de Polícia. Preferia resolver com o tal conselheiro as dificuldades da embaixada de Hitler, representada nas pessoas de Von Cossel e outros seus amigos. Esses agentes secretos nazistas nem eram mais secretos, tal a liberdade de movimentos que possuíam nas dependências da Polícia, como se fosse território alemão. E não era?

Parecia bem a par das coisas que sucediam nos bastidores, o meu companheiro daquela viagem ao Norte. O que ele ignorava, entretanto, é que tudo iria infinitamente mais longe de suas previsões, a ponto de a polícia fluminense realizar prisões de nazistas, às escondidas, no Distrito Federal. Os agentes do Estado do Rio desembarcaram, certa noite, no porto de Maria Angu, pois se descessem no Cais Pharoux, os colegas cariocas poderiam suspeitar da missão. Foram à casa de Gustav Engels, chefe de espionagem alemã no Rio. À frente, como isca, seguia um alemão não nazista. Bateram à porta.

— Quem é? — perguntou Engels, o espião.

— Heil Hitler — respondeu o de fora.

Aberta a porta do apartamento os policiais fluminenses caíram sobre o nazista, dando-lhe voz de prisão.

— Não é possível! — gritou este.

Sim, para ele, na terra onde mandava Filinto, era impossível sua prisão.

— Ontem, ainda, estive com o capitão Chefe de Polícia.

Disse isso exibindo um salvo-conduto para ir à Argentina.

Plena liberdade de movimentos entre os dois países.

Existia, possivelmente, um pacto secreto entre a polícia brasileira de Filinto Müller e a polícia alemã de Heydrich. Os norte-americanos encontraram, comprovando tais suspeitas, documentos importantes na Alemanha ocupada. Outros casos, entre os quais o de deportação de Olga Benário Prestes, comprovam a realidade desse acordo monstruoso. Eis outro fato de clamorosa evidência:

Em um dia de domingo, numa manhã de sol, no ano de 1936, se não nos falha a memória, cerca de 8 horas da manhã, o Chefe de Polícia autorizou a entrega de uma menor de 16 anos, de nome Gertrudes — Gert na intimidade, de um diminutivo familiar —, à polícia alemã, no Cais do Porto, para que a mesma fosse embarcada, à força, num dos vapores que faziam a linha Hamburgo—Rio de Janeiro. Os motivos dessa oferta de esbirros a esbirros não foram até hoje explicados. O Supremo Tribunal Federal nunca tomou conhecimento de um processo de deportação, a não ser que os seus membros tenham lido qualquer coisa a respeito nos jornais.

Filinto Müller confiou a alta missão de entregar uma presa de 16 anos à Gestapo aos seus auxiliares de maior confiança, entre os quais o Sr. Brasil Fitzgraft, Antônio Emílio Romano e diversos investigadores. O espetáculo provocado pelos gritos da menina, no Cais do Porto, implorando de joelhos, ora de mãos postas, ora em convulsões, que não lhe fizessem aquele mal, que não a entregassem à Gestapo, era contristador e despertou a atenção de quantos ali se achavam, surgindo protestos, reprimidos sob a clássica ameaça de prisão.

A menina Gert foi entregue à polícia alemã e seguiu viagem para Hamburgo, onde, 60 dias depois, condenaram-na à morte pelo hediondo crime de ser filha de um judeu, que combatera o nazismo em sua pátria e que procurara agasalho e garantia de vida para sua única filha no país da promissão, o tal que a todos recebe de braços abertos. Qual a explicação, qual a resposta que Filinto Müller dá a esse caso? Qual a justificativa? Com ordem de quem ele fez entrega dessa menor, dentro da capital do Brasil, com todos os requintes de perversidade, a uma polícia estrangeira, à revelia dos nossos tribunais, sem um pedido de extradição, sem nada que justificasse esse procedimento? Quanto lhe valeu esse serviço? Foi só o convite de viagem no “Zeppelin” à Alemanha, aproveitada pelo então Delegado de Ordem Política e Social, ou houve outras vantagens? Não, não é possível que tudo isso fique sem uma satisfação plena e categórica ao povo, que ele insultou na Chefatura de Polícia e de quem agora pretende zombar, no Senado Federal. Filinto Müller, entre muitas coisas, precisa responder por que motivo entregou a menor Gert à polícia alemã.


 

O assassínio de Fournier

 

Filinto Müller se defende das acusações contra ele levantadas pela morte de Severo Fournier exibindo cartas de agradecimento do Coronel Luís Mariano Fournier, pai de Severo Fournier, dirigidas ao então Chefe de Polícia. Com essas cartas pretende Müller pulverizar os argumentos do espantoso libelo deixado pelo comandante do assalto ao Guanabara, onde se afirma, de maneira categórica, que os homens de Filinto Müller procuraram lhe dar morte rápida e impiedosa.

Acredito, sinceramente, que o Coronel Fournier tenha escrito tais cartas de agradecimento a Filinto Müller em desespero de causa, tentando suavizar os padecimentos de seu filho, agarrando-se a tudo, mesmo à esperança frágil e incerta. Mas aí está, viva, a mãe de Severo Fournier, para atestar desassombradamente que, ao pedido de entrega do filho tuberculoso e semi-agonizante, o Capitão Filinto Müller respondeu ao Coronel Fournier:

— Dar-lhe-ei o cadáver de seu filho.

De que servem as cartas de desespero ante tais testemunhos insuspeitos? De que servem os arrazoados, a defesa raquítica do ex-Chefe de Polícia, quando surgem documentos como a carta de Severo ao Delegado de Ordem Política e Social, enfeixando a série de acusações que hoje Filinto Müller procura destruir?

Severo Fournier contraiu tuberculose pulmonar na prisão. A muito custo, a família pôde removê-lo para o Hospital da Polícia Militar, onde, sob os cuidados do Dr. Mota Resende, Severo Fournier recebia os pneumotórax e melhorava consideravelmente. De súbito, o Capitão Filinto Müller ordenou a imediata transferência de Fournier para um cubículo úmido da Correção, deixando-o oito meses sem tratamento. Depois de muitas tentativas, a família conseguiu que fosse autorizada a chapa radiográfica. Na hora de batê-la, queimou uma das lâmpadas do Instituto Médico Legal. Ofereceu-se o pai de Severo para adquirir outra no mesmo dia, a fim de que não atrasasse a obtenção da chapa. Recusaram. Tudo deveria seguir as normas burocráticas. E, enquanto o pedido de nova lâmpada corria de seção em seção, Fournier apodrecia na prisão. Vários meses esperou o revolucionário doente para que a chapa fosse batida.

Qual seria, entretanto, o motivo da perseguição movida por Filinto Müller contra Fournier? Animosidade política? Nada disso. A história era simples, doméstica, vulgaríssima. Meses antes da Revolução Comunista, Fournier pediu certo obséquio a Filinto. Este acedeu. Na hora, falhou. Indignado, Severo procurou-o na esquina do Cinema Eldorado e, numa das mesas do Café Nice, disse ao Chefe de Polícia tudo quanto pensava a seu respeito. Desde então, a luta entre os dois estava declarada.

Na Correção, o Tenente Caneppa, mau de natureza, sabia cumprir satisfatoriamente as ordens de Filinto Müller quanto a Fournier. Vejamos neste requerimento de Severo a dramática situação em que se encontrava:

... “No cumprimento de dever paterno e de humanidade, para oportuna defesa do direito, pede vos digneis ordenar informe o Médico da Casa de Correção, sobre os itens seguintes:

a) Higiene, aeração etc.

I — Se a construção da Enfermaria desse presídio e, consequentemente, a dos cubículos que a constituem, obedecem a algum plano técnico especializado de isolamento ou alojamento de vítimas de doenças infecto-contagiosas à altura da civilização atual?

2 — No caso afirmativo, por que foram, posteriormente, rasgadas as janelas no alto da parede que dá para o exterior e, mais recentemente, abertos vários olhais na chapa de aço da porta de cada cubículo?

3 — Se o cubículo em que está alojado Severo Fournier satisfaz às exigências normais de higiene e às necessárias à cura da tuberculose?

4 — Se o vaso sanitário está no interior do mesmo cubículo e se o abastecimento d’água, na Enfermaria, é suficiente para atender aos mais elementares preceitos de higiene e de asseio?

5 — Qual a causa da corrente que canaliza o ar dentro dos cubículos?

6 — Qual a capacidade de ar do cubículo em que se encontra Severo Fournier, e se esse volume de ar satisfaz às exigências da cura de um tuberculoso?

7 — Qual a temperatura média do interior desse cubículo?

8 — Qual o regime de vento a que está sujeito essa Enfermaria?

9 — Qual o tempo durante o qual Severo Fournier passa dentro do cubículo fechado?

10 — De que substância é pavimentado esse cubículo?

11 — Tem direito, esse doente, a passeio no pátio externo da Enfermaria?

12 — São esses passeios prescritos no regime higiênico de tuberculosos?

13 — Uma das vulgares garrafas de água mineral será suficiente para dessedentar 24 horas, quando, além dessa, a que dispõem os doentes, não é filtrada?

14 — Os frascos de vidro utilizados com remédios para os doentes, nos cubículos, antes de serem novamente utilizados na Farmácia do presídio, para outros doentes, não tuberculosos, passam por algum tratamento especial de limpeza e esterilização? Em que aparelho? Sob qual processo?

15 — Como explicará, o respectivo médico, o aparecimento frequente de utensílios usados por doentes que já foram postos em liberdade, ou que ali morreram, em poder de sentenciados mais novos do presídio?

16 — Sendo o escoamento obrigatório de todos os resíduos da Enfermaria feito através de dois ralos que convergem para um conduto externo, a descoberto, e que percorre cerca de 50 metros dentro do pátio externo, poderá o médico do presídio informar se o sangue, abundante, proveniente de hemoptises consecutivas de certos doentes, misturado ao abundante catarro esputado por todos, que por esses ralos têm curso obrigatório, e que, pela falta de limpeza, permanece por três ou mais dias expostos naquele conduto exterior, são ou não veículos de transmissão da doença aos presos e guardas obrigados a transitar por ali?

b) Dieta

17 — Qual a dotação de víveres a que tem direito cada enfermo, nessa Enfermaria?

18 — Há, ali, algum regime alimentar especial, estabelecido para tuberculosos?

19 — Qual esse regime?

20 — Recebe, realmente, o enfermo a dotação a que tem direito?

21 — Quem prepara as dietas e qual a sua categoria como funcionário?

22 — Qual a proporção em protídios, lipídios, glicídios, sais minerais e vitaminas que entram na composição das dietas? Como é computada?

23 — Quais as substâncias alimentares e em que quantidade compõem elas as dietas de um tuberculoso em tratamentos nessa enfermaria?

24 — Serão essas substâncias alimentares, em verdade, distribuídas racionalmente aos enfermos de tuberculose?

25 — As saladas com vinagre, o arroz com galinha em molho pardo, o bacalhau, o tutu de feijão, a feijoada e as comidas condimentadas serão apropriados a dietas convenientes a tuberculosos?

26 — Por que somente após ponderação de Severo Fournier foram suspensas de fornecimento algumas dessas iguarias?

27 — Quem é o encarregado do serviço de dietas e de sua distribuição, bem como de sua fiscalização?

28 — Dispõe a Enfermaria de instalação de água quente para a conveniente lavagem da louça, dos talheres e demais utensílios utilizados pelos doentes?

29 — Ignora o médico do presídio que tudo isso é lavado no mesmo tanque em que se lavam as escarradeiras da Enfermaria?

c) Condições clínicas

30 — Dispõe o presídio de serviço médico e de instalações apropriados ao tratamento da tuberculose?

31 — Dispõe o presídio de “estoque” de medicamentos apropriados e, se não dispõe, o serviço de compra de medicamentos indicados satisfaz às necessidades da urgência imposta?

32 — Por que motivo, no dia 4 de fevereiro, fazia cinco dias que estava Severo Fournier sem medicamentos?

33 — Em que data foi pedida, pelo médico do Hospital da Polícia Militar, encarregado de fazer-lhe aplicações de pneumotórax, uma radiografia de que carece, para orientar-se? Em que data foi atendido esse pedido, pelo Instituto Médico Legal? Já foi tirada essa radiografia?

34 — Após o acidente com a válvula do aparelho radiográfico do IML, tomou a direção do presídio qualquer providência no sentido de atender à necessidade daquela radiografia, já tão demorada? (Cerca de dois meses.)

35 — Dorme algum médico ou enfermeiro diplomado na Enfermaria ou no presídio, em serviço?

36 — Por que não dispõe a Enfermaria, pelo menos, de um termômetro?

37 — Por que não é feito o serviço de “controle” de peso dos doentes?

38 — Disporá a Enfermaria da necessária balança em estado de conservação e eficaz funcionamento?

39 — Por que não é a Enfermaria provida de aparelhamento técnico: raios X, gabinete de pesquisas etc.?

40 — É o facultativo do presídio especialista em tratamento de tuberculose?

41 — Os oito restantes tuberculosos, em tratamento na Enfermaria, estão entregues aos cuidados desse médico, ou facultativos especializados, de postos de saúde, designados pelos Juizes competentes?

42 — Quais as curvas de peso, temperatura e pressão arterial de Severo Fournier?

43 — Será bastante, para sua cura, a aplicação de pneumotórax?

44 — Poderá o médico do presídio atestar em relação aos benefícios adquiridos por esse doente em consequência de seu tratamento nessa Enfermaria?

45 — No caso afirmativo, quais esses benefícios em relação aos estados anteriores do doente?”

Finalmente, já em estado desesperador, Severo Fournier foi outra vez levado para o Hospital da Polícia Militar. Médicos tisiologistas, entre os quais o Dr. Genésio Pitanga, deram-lhe três dias de vida. Mesmo assim, a mãe de Severo tinha autorização de vê-lo durante horas, mas com sentinela de arma embalada à vista. O organismo excepcional de Severo resistiu e ele melhorou. Conduzido para um sanatório de Campo Belo, no próprio dia em que fora operado de grangena na perna, recebeu ordem telegráfica de Filinto Müller: — “Partir no próximo trem, mesmo que fosse de carga”.

Fournier veio a morrer da tuberculose que Filinto lhe presenteou. Todas as cartas de agradecimento do Coronel Fournier, pensando minorar a enfermidade do filho, não destruirão o fato.


 

Notas

 

(1) Desses fundadores, estão vivos, apenas, Astrojildo Pereira, José Lago Morales e Otávio Brandão.

 

(2) Não se trata do deputado do mesmo nome.


 

©2016 — David Nasser

Versão para eBook
eBooksBrasil.org
__________________
Maio 2016

eBookLibris © 2016 eBooksBrasil.org

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org