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ENSAIOS

Pedro Mundim


Ensaios
Pedro Mundim

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zfpm@hotmail.com
www.pedromundim.org

© 2003 — Pedro Mundim


ÍNDICE

Ensaios

O Tal do Imperialismo Americano
O Racismo, lá e aqui
A Pirâmide e o Sanduíche
A Produção e a Distribuição de Riqueza
Rede Globo de Alienação?
Ressentimentos Luso-brasileiros
A Classe Média Universal
Pedagogia do Oprimido?
A Cultura e a Riqueza das Nações
América Latina?
O Sucesso das Nações
O Imigrante e o Nativo
O Socialismo Primordial
A Problemática da Tortura

Política

O Enigma da Esquerda Nacional
Nazismo ou Comunismo?
Minha “paixão” pelo Capitalismo
O que é a democracia?
Ecochatos & República de Paldora

Resenhas

Livro Partido
Darcy e o Povo Brasileiro
A Nova Abolição De Cristovam


ENSAIOS

Pedro Mundim


O Autor

Quem sou?

Chamo-me Pedro Mundim, sou brasileiro, resido no Rio de Janeiro. Não sou jornalista profissional, e meu trabalho nada tem a ver com esta atividade. Nas horas vagas, eu leio, pesquiso e escrevo.

Estas páginas contêm artigos, análises e resenhas de minha autoria, que escrevi meramente para exteriorizar minhas opiniões e conclusões acerca de tudo aquilo que, nesta vida, eu observei e procurei entender. Minhas opiniões raramente coincidirão com o senso comum e com aquilo que é rotineiramente expresso na grande mídia nacional; não obstante, tenho a mais firme convicção quanto a elas, e acredito que toda a unanimidade, se não é burra como dizia o grande Nélson Rodrigues, alguma coisa de errado sem dúvida tem. Polêmicas ou não, minhas teses estão agora à disposição de todos aqueles que acharem que vale a pena lê-las.


 

 

“Apenas a verdade ofende” — ditado francês

 


 

O tal do imperialismo americano

Desde minha infância e passando por minha juventude, não tenho ouvido expressão mais constante, mais perene, sempre rejuvenescida a cada vez que é repetida: o imperialismo norte-americano. Que ninguém ouse duvidar de sua existência. Afinal, não está aí a guerra contra o Iraque que todos estão vendo? Mas como bem observou Tácito, nas guerras, os olhos são os primeiros a serem vencidos. Quanto a mim, nada posso fazer para impedir que uma guerra ocorra, mas posso ao menos tentar impedir que meus olhos sejam vencidos, e proponho-me a enxergar: afinal, o que é e tem sido o pretenso imperialismo norte-americano?

Tomando o sentido da palavra “imperialismo”, tanto o sentido concreto — domínios territoriais e protetorados — quanto o sentido abstrato — ingerência nos assuntos internos de outros países — e examinando a História desde a emergência dos EUA como potência, podemos tirar duas conclusões.

Primeiro, que o imperialismo americano existe, sim. Os EUA já tiveram duas colônias (Cuba e Filipinas) e até hoje mantêm Porto Rico. Conta-se também numerosas intervenções menores, sobretudo na América Central.

Segundo, que o imperialismo americano é pífio. Não pode ser nem remotamente comparado ao imperialismo europeu do século XIX, que dominou boa parte do globo, foi longevo e eventualmente brutal. Tampouco pode ser comparado ao imperialismo nipônico no leste da Ásia durante a primeira metade do século XX, que foi menos duradouro que o europeu, mas especialmente brutal. As intervenções americanas em seu “quintal” foram numerosas, mas também tão breves que apenas um historiador ou jornalista experiente seria capaz de citar todas de cabeça. De fato, há até um site na internet que enumera estas intervenções. Dei uma olhada, e a maioria delas eu nem tinha conhecimento. Mas também cumpre reconhecer que em diversas ocasiões os americanos foram espoliados e tiveram suas propriedades encampadas. E nem todos os que sofreram intervenção ficaram ressentidos, haja visto o caso dos porto-riquenhos, que nem pensam em se tornar independentes e perder a cidadania americana. E o canal do Panamá foi, afinal, restituído.

O fato é que, na imaginação de nossos políticos e intelectuais, os americanos surgiram como os grandes bodes expiatórios de nossas deficiências, substituindo neste papel a Portugal, a quem costumávamos culpar por nossos males de origem (mesmo aqueles surgidos após a independência). A América Latina não é subdesenvolvida, mas sobreexplorada. Nós somos ricos, eles é que levam a nossa riqueza. Nós somos interessantes e criativos, eles é que impõem pela força seus padrões culturais. Como diz o ditado, engana que eu gosto... Tudo o que ocorre, a explicação é simples: nossas elites são manobradas pelo imperialismo anglo-saxônico. A Guerra do Paraguai teria sido, na verdade, uma guerra da Inglaterra contra uma emergente potência sul-americana, na qual Brasil a Argentina foram meros fantoches. A revolução de 64 foi provocada pela VIIa. Frota Americana, que deu ordens aos nossos generais. Acreditar nisso é conveniente, porque magicamente transfere a outros a culpa por tudo de mal que nós fizemos. Mas cultivar uma auto-imagem de fantoche e marionete, evidentemente nos leva a questionar se aquele que não tem dignidade pode sentir indignação...

Já relativizando um pouco o sentido da palavra “imperialismo”, podemos dizer que os EUA o exercem sob duas modalidades: o econômico e o cultural. O imperialismo econômico procura induzir o mercado a comprar produtos americanos, mas nem sempre é bem sucedido, já que outros países os fazem melhores e mais baratos. No imperialismo cultural, contudo, eles são mais bem sucedidos. O modo de vida, os modismos, os valores americanos encontram-se amplamente disseminados por todo o mundo, inclusive pelo Brasil. Como isto é possível?

Em primeiro lugar, porque a imagem que é passada da vida americana é vistosa. Isso ocorre porque o seu principal veículo de disseminação é a indústria do entretenimento, especialmente o cinema. As produções norte-americanas refletem a boa auto-imagem que os americanos tem, e que é exportada nessa embalagem atraente. Mas seria injusto deixar de reconhecer que os desejos e aspirações do resto do mundo tem muito a ver com os desejos e aspirações do americano médio. Isto de modo algum é contraditório: não foram os EUA, afinal, constituídos por imigrantes vindos de todo o mundo?

O lado irônico disso tudo é: se, no imperialismo econômico, que foi intencional e planejado, os americanos não lograram tanto sucesso assim, foram conquistar pleno sucesso justamente naquilo que não foi intencional nem planejado: o “imperialismo” cultural. De fato, a cultura americana originalmente era um produto de consumo interno. Ela foi exportada no rastro do sucesso econômico americano, que permitiu bem-cuidadas produções hollywoodianas, boa música, heróis de revista em quadrinho, computadores pessoais, a internet. Sem contar que o sucesso econômico é por si só uma propaganda. Se os americanos em numerosas ocasiões usaram da força para impor seus interesses econômicos, por outro lado eles jamais procuraram impor pela força seus valores culturais. Na verdade, salvo em raras ocasiões (como aqui na época da Política da Boa Vizinhança) não houve sequer um esforço politicamente motivado em fazer propaganda destes valores. Eles foram aceitos espontâneamente pelas populações, às vezes solapando arcaicas tradições morais e religiosas, para a fúria dos fundamentalistas. No Brasil, isto mal é sentido, pois somos parte do mundo ocidental, mas no oriente, as idéias americanas de democracia, liberdade de credo, emancipação feminina, entretenimento e consumo de massa são revolucionárias e produzem uma forte reação por parte dos tradicionalistas. Na verdade, estes valores “americanos” são de fato valores ocidentais genéricos, mas são taxados de americanos porque quase sempre chegam naquelas paragens em uma embalagem made in USA.

Se o intervencionismo americano em seus vizinhos gerou reações como seqüestro de embaixadores e militares, o imperialismo cultural — não planejado — gerou uma reação milhares de vezes pior, com os atentados do 11 de setembro. Os idiotas que julgam que esses atentados foram protestos contra a exploração econômica do Terceiro Mundo não tem a menor idéia do que se passa na mente de um fanático religioso.

De todos os países que, em alguma etapa de sua história, sentiram de alguma forma o imperialismo norte-americano, não houve nenhum que o sentiu com mais intensidade do que o Japão. Eis a História: o insular Japão logrou manter-se isolado do ocidente durante as Grandes Navegações, mas em 1853 os navios do comodoro Perry surgem na baía de Tóquio. Exigem o livre trânsito de mercadorias, e o Japão não tem como enfrenta-los. Que golpe! Inundado de manufaturas ocidentais, e sem poder taxa-las, o Japão não terá como desenvolver sua indústria. Cinqüenta anos depois, os japoneses tentam um tímido imperialismo no leste da Ásia, no sentido de garantir acesso às matérias-primas de que eram desesperadamente carentes. As potências imperialistas ocidentais não permitem! Estrangulado, o Japão não terá como produzir. Em desespero, partem para a guerra com os EUA. E são combatidos com uma selvageria que chegou ao extremo de lançar em seu solo duas bombas atômicas, a arma mais mortífera já concebida, e que jamais foi usada contra nenhum outro povo! Irreparavelmente batido, totalmente destruído, o Japão jamais terá como reerguer-se...

E o que foi que aconteceu?

Hoje, apenas Tóquio mais suas três prefeituras vizinhas detém o terceiro PIB do mundo. Os soldados japoneses não invadiram os EUA, mas seus produtos invadiram. As indústrias americanas não sentiram o peso das bombas, mas sentem o peso da concorrência. E no entanto, foi feito com o Japão tudo aquilo que, conforme nos ensinaram, as potências imperialistas fazem para inibir o crescimento dos países periféricos. O Japão foi impedido, pela força, de adotar medidas protecionistas ou reserva de mercado. Ainda assim a indústria nasceu. O Japão foi impedido, pela força, de garantir para si a posse de recursos minerais. Eles os adquiriram pelo comércio. Por fim, o Japão foi militarmente ocupado, teve sua constituição outorgada pelos americanos, tal como fizeram com Cuba, e lá como no Japão, havia um humilhante artigo que explicitamente garantia aos americanos o direito de intervir no país para assegurar sua neutralidade. Melhor para os japoneses, que ficaram dispensados de gastos militares... Enfim, a conclusão é uma só: o Japão foi o único país que enfrentou com sucesso o “imperialismo” americano. E para cúmulo da ironia, os americanos ainda ajudaram-nos a se reerguer após a guerra. Isto tudo aconteceu porque os japoneses, ao contrário dos demais, tiveram a hombridade de reconhecer aqueles aspectos em que a cultura estrangeira era superior à sua própria, bem como a humildade de aprende-los. Eles não se fecharam em uma reação histérica de condenação ao “imperialismo” que viola a sua “soberania”, como é de praxe em nosso nacionalismo de fancaria. Os japoneses são nacionalistas de fato. Por isso eles são grandes, e nós ainda patinamos na mediocridade.

Mas antes que comecem a afirmar que eu estou apoiando a guerra contra o Iraque, apresso-me a dize-lo, não apóio esta guerra, como não apóio guerra nenhuma. Só não posso é levar a sério este anti-americanismo histérico, que enxerga um novo Hitler onde só há um arrogante xerife caipira, que coloca o conservantismo do “Bible Belt” americano em pé de igualdade com o fanatismo dos fundamentalistas. E sobretudo, incomoda-me saber que estes pacifistas que desfilam pelas ruas do mundo a condenar a guerra contra o Iraque serão os mesmos que aplaudirão uma intervenção americana na amazônia...


 

O racismo, lá e aqui

A grande celeuma a respeito do projeto de cotas para estudantes negros nas universidades traz à baila, mais uma vez, o tema do racismo no Brasil, e suscita inevitáveis comparações com os EUA, o local, aliás, onde surgiu pela primeira vez esta idéia de cotas. Se copiamos a solução deles, isto significa que o problema deles é igual ao nosso? Ou será que, junto com a solução, estaremos importando também o problema? Em outras palavras, este sistema pode atrair contra os estudantes negros o despeito de seus colegas brancos, e então ninguém mais duvidará de que o racismo americano é igual ao brasileiro.

Em nenhum ponto o Brasil é mais distinto dos EUA, do que nas questões referentes a raças. A começar pela própria definição das raças. Nos EUA, a divisão entre brancos e pretos é nitidamente delineada, sendo os mestiços classificados entre os pretos (e há relativamente poucos mestiços). A diferença entre os níveis de renda de cada raça é flagrante. Desta forma, há uma relação evidente entre a cor da pele e a carência econômica que justifica o recebimento do benefício. Esta mesma relação, no Brasil, é muito mais fluida e questionável. Aqui as raças estão misturadas, há poucos brancos e pretos puros, e uma multidão de mestiços. Há poucos pretos ricos, mas em contrapartida, há muitos brancos pobres. Se a lei das cotas fizer sucesso, o que se verá a longo prazo é uma multidão de estudantes invocando algum remoto ancestral e declarando-se “pretos” na hora da prova. O benefício, neste caso, se extinguirá, pois o que é privilégio de todos, na verdade não é privilégio algum.

Aproveitando o gancho, disponho-me a fazer uma breve análise histórica e sociológica para explicar o porquê da evolução divergente do racismo nos EUA e no Brasil, países que tem em comum o passado escravocrata. Este é um tema sobre o qual muito já se falou e pouco se explicou. Mas acredito que a pista se encontra na observação, poucas vezes enfatizada, de que nos EUA, antigamente, existiam dois tipos distintos de racismo: o racismo dos ricos e o racismo das classes trabalhadoras.

O primeiro deles pode ser encontrado nos textos de refinados intelectuais e nos discursos dos políticos aristocratas. A discussão é mais subjetiva, especulava-se se os africanos pertenciam de fato à espécie humana, se a capacidade de aprendizado destes seria igual à do homem branco, ou se eles, na verdade, seriam um estágio de humanidade intermediário entre o homem caucasiano e o macaco. Volta e meia teciam projetos tresloucados de mandar todos os negros de volta para a África, ou de dar-lhes terras ali mesmo no continente americano, bem longe das áreas povoadas pelos brancos. De modo geral, estes homens não gostavam dos negros e desejavam que eles não estivessem ali, mas também não tinham propósitos hostis contra estes. Um bom exemplo desta corrente de pensamento foi dado por Benjamin Franklin:

...e visto que, por assim dizer, estamos limpando nosso planeta, livrando de florestas a América e, com isso, fazendo com que esse lado do globo reflita uma luz mais brilhante para quem o contempla de Marte ou Vênus, por que deveríamos... escurecer seu povo? Por que incrementar o número dos Filhos da África transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?

Note bem: o motivo da aversão de Benjamin Franklin pelos africanos era... estética! Ele achava que a cor deles não ia combinar com a paisagem que desejava expor aos marcianos e venusianos... Mas Benjamin Franklin era um intelectual sofisticado, e podia permitir-se estes devaneios. Os ricos podem ter esta atitude blasé porque eles circulam por ambientes como suas propriedades, condomínios, clubes elegantes, hotéis de luxo, salas VIP, lugares de onde os negros estão excluídos a priori, não por serem negros, mas por serem pobres. Eles podem não gostar de pretos, mas raramente cruzam com eles; e depois, como eles com freqüência são empregadores, a existência dos negros lhes é conveniente como reserva de mão-de-obra barata. A condição social do negro é que define o seu papel e segrega-o do branco rico, como este deseja, sem que haja necessidade de uma legislação discriminatória ou de atos de violência.

Bem diferente é o caso do branco de classe trabalhadora que tem que conviver ombro a ombro com os ex-escravos. Este fenômeno foi sentido nos EUA com bastante intensidade no quarto final do século XIX: antes o racismo era restrito ao sul recalcado e vingativo, mas à medida em que levas e mais levas de escravos libertos migravam para o norte em busca de emprego, acirrava-se a hostilidade contra eles. Para um trabalhador branco, a presença de um preto nas vizinhanças não era um incômodo subjetivo ou mera questão de antipatia, mas uma ameaça direta a seu padrão de vida. Os negros aceitavam salários muito baixos, e nos bairros onde eles se instalavam, o preço dos imóveis despencava. Desta forma, à medida em que o trabalhador americano se organizava em sindicatos e partia para a luta organizada contra os patrões, ele também lutava contra os negros e outras minorias. Na cultura americana, o combate do cidadão comum contra o poderoso — o monarca cobrador de impostos, o patrão ganancioso — é visto como glorioso, mas o combate contra o fraco — o negro, o imigrante pobre — é uma coisa feia, ou se preferirem, politicamente incorreta. Mas do ponto de vista do trabalhador americano, ambos os combates tinham um só objetivo pragmático: melhorar de vida. O racismo das classes trabalhadoras caracterizou-se, desde o princípio, pela violência sistemática e pela segregação forçada, que foi tomando forma de lei à medida em que o racismo contaminava a classe média que constituía a base do eleitorado.

É possível apontar, na História do Brasil, alguma ocorrência análoga?

Não, não é possível. Para examinar o porquê dessa ausência de similaridade, podemos examinar três momentos distintos: o último quarto do século XIX, a primeira metade do século XX, e a segunda metade do século XX até a época atual.

No final do século XIX, época em que a escravidão foi abolida, os EUA estavam em plena revolução industrial. O proletariado ia rapidamente se constituindo de operários, que em geral passavam longas horas diárias nas fábricas, e residiam em bairros-dormitórios com outros operários. Desta forma, forjou-se entre eles uma associação fechada e hostil a intrusos, como os escravos libertos que competiam por seus empregos. Na mesma época, no Brasil, não havia revolução industrial, nem classe trabalhadora numerosa, e os negros, mesmo libertos, continuavam no campo. Os poucos que iam para as cidades (como os ex-combatentes da Guerra do Paraguai) não encontravam ocupação e terminavam nas favelas, cujos primeiros exemplares datam desta época.

No início do século XX, acelerou-se a industrialização no Brasil, ainda que concentrada quase que exclusivamente no estado de São Paulo. O proletariado nacional constituiu-se, principalmente, de imigrantes europeus. Um censo levado a cabo em 1928 revelava que 70% dos trabalhadores da construção civil e 90% dos operários eram estrangeiros, italianos em sua maioria. Eram esses imigrantes que formavam a reserva de mão-de-obra disponível, uma vez que, por esta época, a grande maioria dos negros ainda se encontrava no campo (assim como mais de 3/4 da população, de modo geral). Neste ponto, há flagrante analogia com a situação nos EUA. Lá como aqui, os operários eram em geral imigrantes, e viviam em bairros divididos por nacionalidades. Eram comunidades muito unidas e fechadas sobre si mesmas. A escritora Zélia Gattai (in Anarquistas Graças a Deus) fala da sua infância em São Paulo, e conta como tinha que tomar cuidado ao passar por certos quarteirões do Brás onde sua mãe lhe havia proibido ir, por serem habitados por italianos do sul (a família de Zélia era do norte). Ela ressalta que, naquele território, eram eles quem mandavam, e até os policiais da força pública que circulavam por ali tinham que ser previamente aprovados pela comunidade. Entretanto, se por um lado houve um longo histórico de greves, anarquismo e conflitos trabalhistas entre essas comunidades e o poder público, por outro lado encontram-se ausentes os conflitos entre comunidades de diferentes grupos étnicos, que foram tão comuns nos EUA. Por que esta diferença, se de resto a forma como estas comunidades se organizavam era tão semelhante?

Certamente que apenas os ares do hemisfério sul não mudam o caráter de ninguém, nem tornam as pessoas mais tolerantes. Este tipo de conflito inter-étnico não surgiu aqui simplesmente porque não houve uma situação que os detonasse. A grande maioria dos operários era italiana, e os demais eram oriundos de outros países do sul da Europa. Essa massa era culturalmente afim e tinham todos uma pretensão salarial semelhante, enquanto que os contingentes de imigrantes dos EUA eram muito mais diversificados. Seria ingenuidade, entretanto, supor que os “anarquistas” do Brás iriam manter sua postura fraternal se, de um momento para o outro, surgissem por ali incontáveis levas de intrusos, aceitando salários ainda mais baixos que os deles, e ainda com o agravante de serem fisicamente diferentes, de pele negra, impossíveis de serem confundidos com membros da comunidade. Isto, porém, jamais ocorreu.

Na segunda metade do século XX, acelera-se a migração do campo para a cidade, ao mesmo tempo em que cessa a imigração estrangeira. O novo operariado nacional é heterogêneo em termos étnicos. Constitue-se, sobretudo, de migrantes vindos do interior, especialmente do nordeste (Lula é o representante mais emblemático desta classe). Os descendentes dos antigos operários imigrantes agora são membros da classe média, e nos antigos bairros de imigrantes agora predominam restaurantes e mercearias. Mas desta vez, as vagas nas fábricas já não são suficientes para todos. O modelo industrial, que desde o século XIX faz seu papel de elevador social, transformando primeiro camponeses em operários, e depois operários em classe média, claramente atingiu o seu limite. De fato, com as novas tecnologias de automação, a tendência mundial é de diminuição do total de empregados do setor industrial, ao mesmo tempo em que aumenta o setor de serviços. Na época atual, nenhuma fábrica mais admite operários sem um mínimo de instrução formal. No início do século isto era possível, primeiramente porque a natureza do trabalho então executado era menos complexa do que hoje, e segundo porque, de qualquer forma, não havia escolha, já que a grande maioria dos trabalhadores era semi-analfabeta. Mas hoje em dia isso é impensável. A geração que veio junto com Lula trabalhar no grande ABC, sem dúvida era oriunda das camadas pobres, mas não do extrato mais baixo da sociedade. Os integrantes deste extrato, no qual se inclui a grande maioria dos negros, nunca entrou na economia formal, e em geral veio do campo para habitar as favelas e viver de expedientes avulsos. Nota-se que há, até, relativamente poucos negros na classe trabalhadora, onde predomina o típico nortista conhecido como o “paraíba”.

Assim, época por época, uma série de circunstâncias fez com que os negros e a classe trabalhadora jamais entrassem em rota de colisão. De fato, estas entidades sempre levaram existências paralelas: nem o negro, estritamente, entrou para a classe trabalhadora organizada e formal, nem essa classe trabalhadora jamais viu o negro como fator de redução de seu padrão de vida. Assim, históricamente, o racismo de que os negros brasileiros vem sendo vítimas é o racismo subjetivo dos ricos, baseado em desprezo e indiferença, e não o racismo objetivo da classe trabalhadora, baseado em hostilidade, violência e leis de segregação. Pode-se traçar, também, um paralelo com a África do Sul. Poucos sabem, mas o apartheid nem sempre existiu, e de fato surgiu em época relativamente recente, em meados deste século. Antes disso, os negros teóricamente tinham direitos iguais. A razão da emergência do sistema de apartheid (literalmente, “desenvolvimento em separado”) está ligada às mudanças sócio-econômicas na África do Sul: inicialmente os colonos afrikaners, de origem holandesa, formavam uma comunidade rural e atrasada de fazendeiros escravocratas, onde os negros tinham um lugar bem definido. O quadro social, portanto, era análogo ao do Brasil na mesma época, e análogo também era o tipo de racismo. Mas com a modernização do país, que foi adquirindo um perfil europeu, os negros perderam o seu papel tradicional e viram-se transformados em um enorme contingente de mão-de-obra excedente, que tinha que ser de alguma maneira apartada do mercado de trabalho e dos bairros residenciais, para preservar o padrão de vida dos trabalhadores brancos. O quadro social, portanto, era análogo ao dos EUA pós-guerra civil, e análogo também era o novo tipo de racismo.

Espero ter dado uma explicação satisfatória para as diferenças entre o racismo no Brasil e nos EUA, e demonstrado como não há, em absoluto, similitude entre eles. Não espero, contudo, ouvir muitas palavras de apoio à minha tese, já que estou ciente de haver dito coisas que a maioria das pessoas não gosta de ouvir, como colocar a classe trabalhadora no papel de vilã tradicionalmente reservado à classe rica, bem como haver lembrado de que o racismo pode não ser filho do arcaísmo, mas da modernidade.


 

A Pirâmide e o Sanduíche

Qualquer brasileiro que não tenha passado a vida encerrado em uma caverna já ouviu falar da tal “elite”. Ela concentra toda a renda nacional, pois o que não é elite é o seu oposto, o povo. Ela é egoísta, gananciosa, sequiosa de poder, vendida ao estrangeiro, corrupta, avessa à cultura popular, violenta, ardilosa, manipulativa, e seus integrantes são sempre os outros. Ela é a culpada de nosso lamentável quadro social. Já o povo encarna as virtudes da gente generosa e sofrida, é desprendido, fraterno e autêntico; está sempre disposto a festejar e divertir-se, mesmo oprimido pela elite; é pobre e não ambicioso, usa a mágica do “jeitinho” para contornar situações difíceis, pratica a cultura popular e é avesso à influência estrangeira, é honesto e sua consciência é limpa, é pacífico e tolerante, e com infinita paciência desgarra-se do mundo ocidental e constrói uma nova civilização fundamentada na ginga e na lezeira. Uma tal de “Roma Tropical”, se não me falha a memória. Já a classe média, ou é apresentada como aliada servil da elite, ou sequer é citada, como se não existisse. É este modelo de sociedade estratificada que aprendemos na escola e que é constantemente endossado pela mídia: uma pirâmide onde o topo (a elite) é estreito, a base (o povo) é ampla, e uma tênue camada de classe média separa ambos.

Mas, uma vez dado nome aos bois, se chamamos os bois pelos nomes e eles não respondem, alguma coisa está errada. Qualquer reflexão um pouco mais atenta, qualquer coisa além da mera repetição de verdades prontas revela que a “pirâmide” tem fissuras. Um aspecto, em particular, é suspeito: o povo e a elite, que deveriam ser entidades antagônicas e irreconciliáveis, volta e meia demonstram uma inesperada afinidade... Dou a palavra a J J Chiavenatto, que escreveu em seu livro tratando do fenômeno do coronelismo:

O coronel tinha o poder real. (...) Apesar desse poder excessivo, às vezes desproporcional a suas posses, o coronel era um homem rude, pouco polido pela riqueza, semi-analfabeto, com valores que não o distinguia do mais pobre dos sertanejos. A sociedade onde ele reinava supremo era um aglomerado de homens brutalizados pelo meio social, um feudo muito peculiar. (...) mas só a riqueza o separava dos servos que são seus agregados. Cultural e psicologicamente, ele era igual a todo. Daí o dialogo fácil que havia entre o coronel e os cangaceiros, jagunços, pistoleiros, etc. No fundo, eram todos vaqueiros: os que conquistaram a posse da terra de fato mandavam. Os outros, embora oprimidos, obedeciam, porque as ordens não agrediam o conceito que eles tinham de justiça

É curioso que JJ Chiavenatto, marxista e autor de “Guerra do Paraguai, Genocídio Americano”, tenha deixado escapar uma afirmação que, se bem analisada, atinge em cheio os próprios fundamentos de suas crenças, as quais, como é sabido, baseiam-se na dicotomia de duas classes — burguesia e proletariado — que devem necessariamente ser inimigas e opostas em tudo. A Verdade é como um passarinho: quando tentamos caçá-la, foge voando, mas quando a encerramos em uma gaiola, ela às vezes escapole... Os mistificadores volta e meia são traídos por sua inteligência. Idêntica constatação já havia sido feita, não por um sociólogo, mas pelo carnavalesco Joãozinho Trinta, autor da célebre frase: “Quem gosta de miséria é intelectual, o povo quer é luxo”. Esta genial inspiração demonstra como não é em absoluto necessário possuir graduações universitárias para se afirmar uma verdade profunda, nem a posse de mestrados e doutorados impede alguém de dizer tolices estúpidas.

E penso que é precisamente a insistência no modelo falso da pirâmide a origem de todos os equívocos nas análises até agora produzidas a respeito de nosso quadro social. O modelo de nossa sociedade, a meu ver, é bem outro: um SANDUÍCHE, onde a fatia de cima representa a classe rica, a fatia de baixo representa a classe pobre, e o recheio representa a classe média. Note que tanto a classe rica quanto a pobre são constituídas da mesma substância — o pão — e estão em contato pelas bordas, o que representa a simbiose em que ambas vivem. A classe média é feita de uma substância diferente (o recheio) mas está cercada e isolada pelo pão.

A simbiose rico-pobre a que me referi é notória e constante em toda a nossa História. Manifesta-se sobretudo em época de eleição: os muito pobres sempre demonstraram a tendência aparentemente contraditória de votar nos muito ricos. Antigamente, isto era explicado pela fraude eleitoral, e depois, quando não havia mais fraudes, pela ingenuidade do povo ignorante e sua propensão em se deixar manipular. Mas na verdade não há contradição alguma nesta atitude: quando o pobre vota no rico, está simplesmente votando em alguém que pensa como ele. Outra “contradição” é o fato de que muitos dos políticos mais comprometidos com as causas populares são indivíduos riquíssimos, como os latifundiários João Goulart e Leonel Brizola. Quem não entende o porquê deve atentar para o fato de que um João Goulart e um Brizola, por sua própria condição social, desde que nasceram estiveram em íntimo contato com pessoas do povo, da cozinheira aos empregados da fazenda. É com essa gente que eles vão conviver desde sempre, experimentando as delícias do clientelismo. Homens com o dobro de sua idade virão pedir-lhes conselhos e soluções para suas pendengas. Eles entendem com perfeição a psicologia daqueles homens simples, dirigem-se a eles em seu próprio linguajar, sabem o que os agrada e o que os atemoriza, sabem como liderá-los, sabem o que dizer para lisonjeá-los, sabem seduzir suas mulheres. São duas fatias do mesmo pão, produto do mesmo meio social, compartilhando dos mesmos valores. Qualquer um que já tenha tido a oportunidade de lidar com políticos em Brasília leva a mesma impressão: embora eles sejam donos de vultosíssimo patrimônio, com muita freqüência são pessoas grosseiras e vulgares, não passando de tênue verniz a linguagem empolada que empregam em seus discursos (que via de regra não são escritos por eles, mas por assessores). Não estão nem aí para a finesse e os refinamentos culturais, coisa que se espera dos ricos. Lembro de uma fita gravada, há muito tempo, onde se ouve a voz de um ex-ministro comentando os esquemas de corrupção onde já esteve envolvido: a linguagem despudorada que empregavam estava pontilhada de nada menos que 27 palavrões, pacientemente contabilizados por mim.

Outro aspecto que assemelha a elite ao povo, ao mesmo tempo que separa ambos da classe média, é a questão dos impostos: só a classe média paga, o rico sonega e o pobre é isento. É óbvio que isso é uma imagem simplificada: nem todo rico é sonegador, o pobre não deixa de pagar os impostos que estão embutidos no custo das mercadorias, e alguns membros da classe média também sonegam. Mas há uma diferença fundamental: boa parte da classe média é constituída de assalariados que tem o imposto descontado em folha, e portanto estão incapacitados de sonega-lo, mesmo que queiram. Os ricos, mesmo não sonegando, tem uma carga de impostos que é, em termos proporcionais, muito inferior à do assalariado (só certos países nórdicos tem uma carga de impostos tão alta como o Brasil). O pobre, se é assalariado, não paga nada porque está em uma faixa salarial isenta de impostos; se é autônomo, integra a economia informal, que também não paga nada. Isso tipifica de forma clara o papel de cada componente de nossa sociedade-sanduíche: a função primária do recheio é pagar os impostos, e a função primária do pão é captá-los.

Bem sei que a esta altura muitos já estarão bradando que é imoral taxar um cidadão que ganha um salário mínimo, e conhecendo-se o valor do salário mínimo, dificilmente alguém discordará disso. O paternalismo permite esta pequenina concessão ao pobre. Mas, para preservar uma pequena fração de seu salário (que é insuficiente, mesmo sem desconto nenhum) se está negando ao pobre uma lição de valor inestimável: o significado da cidadania. Todos enchem a boca para dizer que o governo nega a cidadania aos destituídos, mas se esquecem de que o passo número um da cidadania consiste de cada um pagar o seu imposto. Mas o paternalismo não gosta de cidadãos; ele se sente mais à vontade em meio a dependentes, adultos cujo estado de minoridade se prolonga indefinidamente. Todos nós já vimos mais de uma vez, com profundo pesar, um político corrupto, que foi cassado ao cabo de hercúleos esforços, simplesmente disputar uma eleição e voltar ao poder nos braços de eleitores que sabiam muito bem quem ele era. A explicação é simples: somente eleitores que jamais pagaram impostos são capazes de votar em um candidato sabidamente corrupto. Por que haveriam eles de se importar, se o dinheiro roubado não saiu do bolso deles? De acordo com a moral do homem ignorante, aquele indivíduo não é um ladrão, pois ele não roubou a uma pessoa de carne e osso, mas sim a uma entidade incorpórea e incompreensível chamada “governo”. O homem do povo está interessado em obras concretas que beneficiem a comunidade em que vive, e não tem consciência de que cidadãos são todos os que pagam impostos. Se o candidato roubou este tal de governo, melhor ainda: assim ele terá mais dinheiro para distribuir cestas básicas. É essa a verdadeira causa da corrupção no Brasil, e não o fato alegado de que a corrupção seria “traço cultural latino”, como é afirmado insistentemente, sobretudo, por indivíduos de origem anglo-saxã. As dificuldades em reunir provas e o lobby político sem dúvida contam, mas se mesmo quando se consegue punir o culpado, ele é absolvido pelo eleitorado, resta concluir que a real origem do fenômeno está na cabeça de um povo que não foi ensinado de onde provém as verbas de um governo.

Um outro aspecto que endossa o modelo sanduíche são as transições entre classes. De modo geral, a mobilidade social é pequena no Brasil, mas de todas as transições, a mais rara é aquela que atravessa o sanduíche pelo meio — isto é, a do pobre que ascende primeiro à classe média, e depois à classe alta. As transições, quando ocorrem, em geral se fazem pelas beiradas onde as fatias do pão se tocam, ou seja, diretamente da classe baixa para a classe alta, como é o caso de um artista popular ou jogador de futebol que aos vinte e poucos anos já tem um patrimônio de milhões. Estudos mostram (e isto no mundo inteiro) que, entre os patriarcas de famílias milionárias, é elevado o percentual daqueles que foram pobres em sua juventude, e tiveram seu aprendizado de negócios derivado justamente das dificuldades que enfrentaram. O caminho inverso também é verdadeiro: se um rico dilapida totalmente seu patrimônio, via de regra ele cai diretamente para a classe pobre, e torna-se um alcoólatra, ou dependente da caridade de parentes. A possibilidade de ele cair para a classe média é reduzida, pois ele não tem um ofício aprendido nem uma rotina de vida própria da classe média, e em geral não tem mais idade para recomeçar algo que não seja o negócio em que sempre esteve envolvido. A transição da classe alta para a classe média é rara, e geralmente só concebível como o estágio final de uma decadência bem lenta. A transição da classe pobre para a média também é rara. Uma vez atingida a classe média, contudo, chega-se a um estado estacionário. A classe média tradicionalmente tem o objetivo de reproduzir-se a si mesma, em um ciclo sem fim: o pai que tem um diploma universitário quer que o filho entre para a universidade, o pai que tem um pequeno negócio deixa-o de herança, etc. A possibilidade de cair à classe pobre deve ser descartada a todo custo, mas a perspectiva de ingressar na classe alta fica mais a nível de um sonho que no mais das vezes é arquivado. Tal como o recheio do sanduíche, a classe média é um compartimento estanque, com valores próprios e bem definidos, que reproduz-se a si mesma a cada geração, com um pequeno acréscimo de membros da classe pobre que conseguiram ascender a ela, em geral pela via do ensino superior ou ingresso no oficialato das forças armadas.

No Brasil, bem como em diversos outros locais de quadro social semelhante, a História registra alguns episódios de transição-direta-sem-escalas de segmentos inteiros da classe pobre para a classe alta, sem que a fisionomia geral da sociedade seja afetada por estas transições. Isto é desagradável de admitir, pois contraria as concepções maniqueístas ao enfatizar que o caráter do pobre não é diferente do rico, e na verdade ambos são equivalentes em termos de objetivos e métodos. Um bom exemplo é o Haiti, primeiro país da América Latina a alcançar a independência, em 1804. Antes desta data, o país tinha uma sociedade bem estratificada: elite colonial branca (francesa) proprietária das terras, a massa de escravos negros, e entre uma e outra, alguns indivíduos mulatos, que em geral também eram proprietários, mas sofriam discriminação por parte da elite branca. Vem a rebelião dos escravos, que é vitoriosa. Ao contrário do que é praxe nesta parte do mundo, o fim da revolução não foi conseguido à base de conchavos com a elite, mas com a derrota total e eliminação desta: os brancos que não fugiram foram trucidados. Ao contrário, também, de todas as rebeliões de escravos até esta data, esta tinha o objetivo de acabar com a escravidão (havia escravos em Palmares, bem como na Sicília durante a rebelião de Spartacus), e efetivamente aboliu a escravidão. A despeito de todos estes aspectos progressistas, o quadro social do Haiti não se alterou, e continua marcado pela miséria e desigualdade até os dias de hoje. Só que a elite não é mais branca: após a revolução, alguns dos antigos escravos assumiram o controle das propriedades que os brancos abandonaram em sua fuga. Uma vez estabelecidos, contudo, comportaram-se de forma idêntica à antiga aristocracia colonial. Outro exemplo encontra-se na antiga elite de seringalistas de Manaus e Belém durante o ciclo da borracha em fins do século XIX. Estes seringalistas (não confundir com seringueiro, que é o trabalhador) vieram do nordeste, e em seu apogeu eram bem mais ricos que a combalida elite nordestina. Mas, ao contrário do que se pensa, seus pais e avós não eram grandes proprietários, mas sim fazendeiros arruinados, filhos sem herança, e mesmo, agricultores sem terra, pessoas que tinham pouco ou nada a perder, e que chegaram como aventureiros no início do ciclo da borracha. Uma vez assegurado o domínio do seringal, entretanto, assumiram um comportamento idêntico ao dos antigos coronéis de sua terra natal.

Esta evidente semelhança de mentalidade entre pobres e ricos deixa claro que a riqueza não altera os fundamentos morais e culturais dos indivíduos. Na verdade, a própria terminologia classe-pobre-média-rica torna-se incoerente a partir do instante em que o modelo pirâmide é retirado e substituído pelo modelo sanduíche, onde deixa de existir o eixo de quantidade de riqueza que atravessa as classes, e desta forma as define. O que de fato define as classes são a educação, os valores e os objetivos que, forjando um projeto de vida, tendem a conduzir os indivíduos aos níveis de renda que são peculiares a cada classe. Assim, a classe média não é constituída por indivíduos cuja renda se situa entre dois patamares definidos arbitrariamente, mas sim por indivíduos que compartilham os valores da classe média, que, conforme é sabido, incluem a educação, o aprendizado de uma profissão, a existência mantida em níveis dignos, a solidez dos laços familiares, a previdência, a pequena poupança, a busca por uma situação financeira estável, a rotina sem grandes riscos, o planejamento conservador, a casa própria, a aposentadoria, a herança a ser deixada aos descendentes. Estes valores foram legados à classe média brasileira por indivíduos que já os possuíam desde gerações passadas. De fato, o cerne da classe média brasileira é constituído de descendentes de imigrantes vindos de várias partes do mundo, que aqui chegaram em uma situação de penúria muito semelhante à da atual classe pobre. O projeto que tinham, entretanto, era diferente, e nota-se que desde o princípio, quando eram ainda colonos rurais, estes imigrantes não procuravam tornar-se latifundiários, mas sim pequenos fazendeiros. Isto ocorria porque esta comunidade de pequenos proprietários, nem ricos nem pobres, antes de se materializar já existia no imaginário daquelas famílias, principalmente daquelas influenciadas pelo protestantismo, que valorizava o trabalho árduo e a parcimônia. Idêntica construção sem dúvida não havia na mente dos ex-escravos haitianos, nem dos camponeses atraídos pelo boom da borracha no Amazonas. Estes indivíduos eram oriundos de um mundo sem classe média, onde as únicas categorias existentes eram o camponês-escravo miserável, ou então o rico senhor das terras. Não sendo a primeira categoria, obviamente, desejável, restava-lhes investir tudo na segunda possibilidade...

A classe média brasileira, embora sustente o estado com os tributos que paga, não tem praticamente nenhum poder político. A explicação é simples: o Brasil é uma democracia, e a classe média é minoritária. Praticamente não há candidatos que representem a classe média. O poder político tem sido monopolizado pela simbiose rico-pobre, a qual, uma vez que o modelo-sanduíche só reconhece duas classes, chamarei de o País Arcaico, oposto ao País Moderno que é a classe média (não gosto dessas definições, por serem maniqueístas, mas admito que não encontro outras melhores). O País Arcaico exerce o poder, ora por intermédio de sua faceta rica — os oligarcas — ora por intermédio de sua faceta pobre — os populistas. A situação não é diferente em todo o resto da América Latina. A única exceção foi a Argentina do início do século XX, quando reformas políticas abriram caminho para a classe média, em conseqüência do quê a Argentina assumiu na época um perfil europeu em termos culturais, políticos e de progresso econômico. O golpe militar de 1930, todavia, reinstalou no poder o País Arcaico que, ora apresentando sua face aristocrática — a oligarquia senil — ora exibindo sua face popular — o peronismo — alijou a classe média do comando da nação, e como se sabe, reconduziu a Argentina a seu destino de terceiro mundo.

Não há previsão de quando a classe média brasileira experimentará o poder. Jamais houve no Brasil uma revolução burguesa, que conduzisse a classe média ao poder. O termo “revolução burguesa”, tão consagrado que não posso evitar de mencioná-lo, foi uma entre as muitas distorções que o marxismo impôs à História Mundial, ao associar o termo “burguês” a “grande capitalista, banqueiro, comerciante, industrial”. As revoluções americana e francesa foram, então, “revoluções burguesas”, supostamente feitas pelos ricos — e não deixa de ser cômico imaginar um gordo banqueiro, imbuído de espírito de aventura, pegar em armas e ir lutar nas ruas... Isto é tolice. As camadas altas do Terceiro Estado, em especial os banqueiros, sempre apoiaram os monarcas (quando Luís XVI emprendeu sua tentativa de fuga em Varennes, levava consigo o dinheiro de banqueiros parisienses). Quem luta em uma revolução é a massa, os sans-culottes franceses e os minutemen americanos não podia ser classificados sequer como classe média, mas como pobres, mesmo, pois quem arrisca tudo é quem não tem nada a perder. Estas revoluções foram taxadas de “burguesas” pelo marxismo, que pretendia reescrever a História, mas ela foram, isso sim, revoluções de classe média. Não porque a maioria dos combatentes fosse da classe média (certamente não era), mas porque nelas foram consagrados os ideais que, mais tarde, seriam associados à classe média que se formou no rastro dessas revoluções — ideais de liberdade política e econômica, de recompensa ao mais capaz ao invés de privilégios, do direito dos contribuintes de exigir a justa aplicação dos impostos, e sobretudo, da supressão de um estado tirânico e sugador que impedia aos cidadãos prosperar a custa de seu próprio esforço. O termo burguês, em suas origens, significava, meramente, habitante dos burgos (cidades). Sua conotação não era de riqueza, mas de independência, posto que as cidades constituíam um espaço que não estava sob controle direto do senhor feudal, e portanto seus habitantes eram livres para escolher sua ocupação, e eventualmente enriquecer. Tal como faz a classe média, até os dias de hoje.


 

A Produção e a Distribuição da Riqueza

Não há questão mais levantada, não há bandeira mais erguida, não há unanimidade mais absoluta no Brasil: nossa anomalia número um é a má distribuição de renda, que em nosso caso é a mais iníqua do planeta. Esta certeza, que antes tínhamos intuitiva, agora já está fundamentada por estatísticas de órgãos internacionais: o Brasil tem mesmo a pior distribuição de renda entre todo o conjunto de nações das quais se conhece fatos e números. Neste ponto todos concordam, da direita à esquerda, do cidadão comum ao técnico do governo. Antes, porém, de engrossar o côro dos que reclamam uma redistribuição da renda nacional, penso ser oportuno definir o conceito de riqueza, como ela é criada, como ela é destruída, como ela pode ser acumulada, e o mais importante, como ela pode ser redistribuída.

Para quem, como eu, nasceu no Brasil, estudou no ensino médio brasileiro, leu os ensaios dos estudiosos brasileiros e ouviu os discursos dos militantes, não há dúvida nenhuma: riqueza é uma coisa que tem área, peso, volume, cor e cheiro. Nada tem consubstanciado mais a riqueza no Brasil do que a propriedade rural: a estrutura fundiária concentra a terra nas mãos de uns poucos latifundiários, e deixa uma multidão de sem-terras. Mas antes de ter cor de barro e cheiro de esterco, a riqueza já teve outras texturas: foi a madeira vermelha que deu o nome à terra, foi o ouro e os diamantes que os portugueses levaram em seus navios, o petróleo que antes mesmo de ser prospectado deveria ser resguardado da cobiça estrangeira, os minérios “estratégicos” que um dia viriam a ter enorme importância; enfim, uma pergunta já está respondida: como a riqueza é criada. Ela não é criada, já vem feita, e está por aí a espera de alguém que a pegue. Excluindo o pau brasil, que quase foi extinto, podemos responder também à segunda pergunta: como a riqueza é destruída. Ela não é destruída, ela é posta em um navio e levada para longe. Respondendo à terceira pergunta, a riqueza é acumulada por aqueles que, pela força, dela se apropriam: o binômio elite nacional / estrangeiro expoliador. A elite nacional se apropria das terras e deleita-se em deixa-las improdutivas, cobertas de capim e cupinzeiros, cercadas de seguranças armados, enquanto o povão quer plantar e não pode. O estrangeiro é uma espécie de parasita que suga as nossas riquezas, leva-as para a sua casa, e graças a elas tem vida boa. Como redistribuir a riqueza? Bem, esta pergunta é a mais fácil de todas. Se a riqueza já existe, ela não tem que ser criada; basta toma-la daqueles que dela se apropriaram de forma espúria — a oligarquia e o estrangeiro — e redistribuí-la pela massa dos cidadãos. E depois seremos felizes para sempre. Pois não somos um país imenso, pleno de recursos? Então somos ricos.

O conceito de riqueza que nos foi legado por nossos sábios scholars tem um claro sabor pré-Revolução Industrial, época em que, de fato, a riqueza estava ligada ao domínio de alguma coisa bem tangível como terras, jazidas, portos estratégicamente localizados, rotas comerciais. Nossa elite pensante ainda está estacionada nesta época, já que parece não atentar para o fato de que, desde 100 anos atrás, alguns dos países mais ricos do mundo são pequenos em território e sem recursos minerais, como a Suíça e o Japão. Mas para confundir, existem outros como os EUA, que tem território extenso e recursos abundantes. As concepções antigas custam a morrer e tem longa sobrevida. Quantas vezes não ouvimos que a revolução industrial na Inglaterra foi conseqüência de se haver “ferro e carvão”; que os países que tinham ferro e carvão, como os EUA, entraram logo na revolução industrial; que aqueles que tinham só ferro, ou só carvão, ficaram prejudicados. Mas e o Japão, que não tinha nem ferro nem carvão, e se industrializou também? E nós, que tínhamos o ferro de Minas e o carvão de Santa Catarina, e quando Mauá estabeleceu nossa primeira fábrica de caldeiras em Ponta de Areia, fez as contas e concluiu que saía mais barato importar o ferro de Plymouth, na Inglaterra, do que manda-lo vir de Minas Gerais, onde só poderia ser transportado no lombo de burros que carregariam, no máximo, 100 quilos cada? Depois a era do “ferro e carvão” foi sucedida pela era do “ferro e petróleo”, da qual Monteiro Lobato foi o expoente máximo. Ele passou um bom tempo como adido comercial dos EUA, e nem assim conseguiu libertar-se da crença de que a origem da riqueza das nações são as matérias primas. Não é por acaso que acreditamos nisso. O conceito que ainda fazemos de “Grande Potência” está ligado aos grandes impérios da antiguidade: um enorme território, grande população, grande número de províncias ligadas por rotas terrestres e marítimas, e naturalmente, uma metrópole gerindo todos estes recursos e fazendo-os fluir da periferia para o centro. Tampouco somos apenas nós que padecemos dessa obcessão. Nos tempos atuais, a Alemanha e o Japão consumiram milhões de vidas em uma guerra ruinosa que acreditavam ser imprescendível para garantir o seu futuro mediante a conquista de um “espaço vital” — e cinco décadas após, vê-se que a falta de um império de colônias não constituiu empecilho algum para que estes países prosperassem, nem a perda do império pela Inglaterra e pela França fez com que estes países empobrescessem. Estes equívocos, no entanto, são recorrentes: a direção e o sentido da História, a relação causa-conseqüência, tudo isso é fácil de ser percebido por historiadores que contemplam os acontecimentos convenientemente separados deles por um largo período de tempo; mas quanto aos contemporâneos, que vêem tudo ao vivo e de perto, só um pequeno número de analistas e visionários consegue de fato antecipar para onde o futuro os está levando. Daí que, durante a Revolução Industrial (que coinscidiu com a febre do colonialismo) nem mesmo os líderes das grandes potências assimilaram de imediato esta nova fórmula de poder econômico e militar que prescindia de recursos físicos. Muitos ingleses da era vitoriana não conseguiam compreender ao certo como seu país podia submeter tão fácilmente a enormes reinos antigos de história milenar, grande população e território muitas vezes maior do que as Ilhas Britânicas, e secretamente temiam que tudo aquilo fosse transitório, que em breve a Índia e a China “despertariam de sua letargia” e iriam à forra com seu exército de milhões de soldados. A expressão melhor cunhada para este temor foi “O Perigo Amarelo”, frase de forte conotação racista, repetida a boca pequena no parlamento e nos clubes londrinos.

Irônicamente, o verdadeiro “Perigo Amarelo” não viria a ser a imensa China, e sim o Japão, arquipélogo cujo tamanho é aproximadamente igual ao das Ilhas Britânicas.

Algo, sem dúvida, tinha que ser repensado aí. Tamanho não mais importava. O próprio conceito de riqueza teria que ser reformulado, ou antes, entendido corretamente. Procurando desvincular a idéia de riqueza dos símbolos aos quais ela normalmente se encontra associada — dinheiro, propriedades, carros esporte, ouro, roupas finas, resorts elegantes — podemos tirar algumas conclusões fundamentais:

 

— Tudo aquilo que podemos adquirir por dinheiro, ou trata-se de um bem, ou de um serviço;

— Tanto os bens quanto os serviços nada mais são do que o resultado do trabalho de alguém. No caso dos serviços, isto é óbvio. No caso dos bens, isto é menos óbvio, porque o termo “bem” é vago e pode denotar um sem-número de objetos, tanto duráveis como descartáveis. Há outras sub-categorias como “bens de raiz”, “bens de capital”, que não interessa abordar aqui. Trata-se de saber se um dado bem é, ou não, resultado do trabalho. Convencionamos dividir os ítens produzidos entre “manufaturados” e “não-manufaturados”, e à primeira vista, apenas estes primeiros parecem ser produto do trabalho. Entendemos fácilmente, por exemplo, que um aparelho de DVD é o produto do trabalho de vários técnicos, operários, engenheiros, etc. enquanto uma jabuticaba que comemos de sobremesa é um produto “natural”. Mas não custa muito esforço perceber o quanto estas definições são convencionais. A menos que estivéssemos dando um passeio pelo campo, sentássemos à sombra de uma jaboticabeira, e de súbito — Plaf! — cai uma jabuticaba madura em nossas mãos, temos que admitir que a jabuticaba que se encontra em nossa mesa foi, tanto como o DVD que está na estante, o produto do trabalho de alguém — no caso, de quem plantou a árvore, colocou fertilizantes, fez a colheita, o transporte, etc.

— Conclusão: tudo aquilo que entendemos como ‘riqueza’ nada mais é do que o resultado do trabalho.

 

Mas então, sendo riqueza igual a trabalho, como podemos falar tão naturalmente em acúmulo de riqueza? Trabalho é um substantivo abstrato, e só compreendemos o acúmulo de ítens concretos. “Acumular”, aqui, é apenas uma metáfora. A riqueza que é contabilizada em números encontra-se expressa em ativos de curtíssimo ou longuíssimo prazo — papel-moeda, depósitos bancários, títulos, ações — que nada mais são do que créditos, que podem ou não ser honrados. Dependendo do grau de estabilidade da economia, há motivos razoáveis para crer que eles serão honrados. Mas a princípio, isto só ocorrerá enquanto existirem pessoas dispostas a trabalhar. Pois se tudo o que posso adquirir é o trabalho de outrém, tenho que concluir que a minha riqueza nada mais é do que um instrumento mediante o qual eu posso fazer os outros trabalharem para mim. Assim, se mantenho uma conta no banco visando contruir uma casa para morar, eu sei que, no momento devido, aquela quantia fará com que um número de pessoas (que sequer conheço) trabalhem para mim e construam a casa conforme os meus desejos. Podemos fazer, então, uma idéia do que realmente é o indivíduo rico: não é aquele que possui papel impresso no bolso, nem metal amarelo no cofre, nem bytes de informação no computador do banco. O rico é aquele que possui o trabalho dos outros.

A afirmação “possuir o trabalho dos outros” é cruenta, e dá a impressão de que aquele que trabalha não tem escolha, é um escravo ou reles empregado.

Mas o caso do patrão é apenas um caso particular em que existe um contrato que garante ao patrão o resultado do trabalho do empregado dentro de um certo número de horas. Na prática, mesmo aqueles que nunca foram patrão de ninguém estão constantemente adquirindo o trabalho de terceiros. O DVD que está na estante esteve um dia em uma linha de montagem, alguns operários encaixaram suas peças, um técnico vistoriou-o, e antes disso, um número de engenheiros fez o projeto dele, e ainda antes disso, um número de cientistas desenvolveu a tecnologia necessária para que o aparelho funcionasse. Todas estas pessoas, que nem conheço, um dia trabalharam para mim, ainda que tenha sido só por uns poucos segundos.

Se riqueza é trabalho e trabalho é riqueza, por que, então, aqueles que executam tarefas pesadas e cansativas são pobres, e os ricos só fazem tarefas leves, quando fazem alguma coisa? A resposta é: sim, toda riqueza deriva do trabalho, mas não existe uma relação linear entre a quantidade de esforço dispendido e o valor do trabalho resultante. E depois, a vida em sociedade e a complexidade do trabalho exigem a divisão das tarefas entre várias funções distintas executadas por trabalhadores distintos. Em conseqüência disto, o trabalho não tem o mesmo valor para cada trabalhador. E, a menos que se viva em uma comunidade de agricultores auto-suficiente, as pessoas raramente trabalham para si próprias, mas sim para um “outro”, ao qual cabe determinar o que deve ser feito. Este “outro” pode ser uma pessoa física — no caso, o patrão — ou uma entidade, como uma firma, uma instituição qualquer, o estado; ou ainda a clientela, no caso do trabalhador autônomo. É inútil tentar eliminar a figura deste “outro” que nos dá ordens e se apropria do resultado de nosso trabalho, devido ao fato de que sua existência é determinada pela complexidade inerente à economia, e não pelo regime econômico. Assim, de nada vale substituir o capitalismo pelo comunismo — isto elimina apenas uma modalidade do “outro”, o patrão de carne e osso, mas põe em seu lugar o estado, que é o mais insensível dos patrões.

O já mencionado hiato entre esforço dispendido e resultado obtido tornou-se imenso, gritante mesmo, no decorrer da revolução industrial, a ponto de haver sido precisamente nesta época que foi teorizada pela primeira vez a relação Capital X Trabalho, que se tornaria o pomo da discórdia entre filósofos e economistas. Antes deste tempo, a relação existente entre trabalho e riqueza era muito menos óbvia, embora não menos verdadeira: a riqueza sempre foi o trabalho, mas a forma como se trabalhava era diferente, e a capacidade produtiva muito menor. Por isso, nos tempos antigos, a idéia de riqueza era invariávelmente associada à amplidão dos domínios. Os impérios da antiguidade tinham que ser imensos porque a riqueza que eles captavam, por intermédio de tributos, provinha de uma multidão de agricultores, mineradores, artesãos, comerciantes, cada um deles produzindo uma porção ínfima de riqueza, que tinha que ser somada em grande quantidade para produzir um montante significativo. Com a revolução industrial, isto acabou. Havendo sido inventadas as máquinas e as técnicas de produção em massa, um único operário fácilmente podia gerar mais riqueza do que duzentos cortadores de cana (isto não significa que o operário fique com a riqueza que ele produz; ela vai para o seu empregador, mas cedo ou tarde ela é injetada na economia, e acaba por afetar o padrão de vida de todos). Na era tecnológica em que vivemos, o importante não é mais dominar jazidas estratégicas, portos estratégicos ou rotas comerciais, mas sim dominar a tecnologia. E isto é muito bom, pois trata-se de uma conquista humana extraordinária: a fonte da riqueza agora é o cérebro, e não a geopolítica, e a forma de obtê-la é o estudo, e não a guerra de conquista. Pela primeira vez na História, podemos ter a sensação de que o cidadão comum, e não o mandatário supremo, é o agente das transformações, e ele pode mudar o seu futuro e o dos outros mediante sua inteligência e capacidade empreendedora. É a vitória do Fator Humano.

E com todo este aspecto positivo, ainda há gente — muita — que tem nostalgia do tempo em que a riqueza era um punhado de ouro dentro de um cofre. Esta concepção materialista, pré-revolução industrial, de que a riqueza é palpável, mensurável, finita, limitada no espaço mas não no tempo, que não pode ser criada nem destruída, inevitavelmente reporta a um modelo social dividido entre uma linhagem de proprietários e uma linhagem de não-proprietários, um mundo onde dinheiro não se ganha, dinheiro se tem. Ou não se tem. Assim era o mundo há mais de 200 anos atrás: uma vez que a riqueza não podia ser produzida, a única solução para aquele que não possuía riqueza vir a obtê-la seria subtrai-la daqueles que a detinham, mediante herança, casamento ou roubo. É óbvio que esta constatação influenciava o modo de agir dos ambiciosos da época, e suscitava elucubrações quanto à moralidade deste procedimento. Pois se só se pode enriquecer empobrecendo os outros, então o enriquecimento é moralmente condenável. Baseado nessa lógica, o catolicismo dos tempos pré-capitalistas anatematizou o lucro e proibiu a cobrança de juros (usura), com deploráveis conseqüências para as finanças dos países católicos, e ótimos resultados para os banqueiros judeus e protestantes. Esta linha de pensamento foi encampada nos tempos atuais pelo clero dito “progressista” e os adeptos da Teologia da Libertação, que seguem condenando o capitalismo como contrário ao princípio cristão da fraternidade. Aqueles que os apóiam são ingênuos ao julgar que esta se trata de uma ideologia de ruptura ou revolucionária, quando nada mais é que a continuidade do pensamento dos frades do século XIV. Outros são duplamente ingênuos ao supor que, com essa postura, a Igreja dos tempos antigos estava favorecendo os pobres, quando na verdade a Igreja jamais condenou a existência de classes sociais — apenas propugnava que as pessoas deveriam nascer ricas, e não se tornar ricas. O dinheiro dos nobres não era pecaminoso, o dinheiro do banqueiro burguês era. Mas se um nasceu rico e o outro pobre, trata-se da vontade de Deus, que não cabe questionar. Foi dito por São Paulo: “Na classe onde fostes chamado, aí permanecereis”.

Esta concepção rudemente materialista da riqueza, de ricos egoistas e pobres vítimas da ganância, a crença de que aquilo que falta a um é o mesmo que o outro tem em excesso, tudo isso deriva da incapacidade de compreender que a riqueza pode, sim, ser gerada, e não meramente transferida. Aquele que enriquece não empobrece necessáriamente o outro. Tomemos um exemplo: um certo Henry Ford, filho de um fazendeiro irlandês, que veio a fundar a Ford Motor Company. Começando a vida sem nada, Henry Ford foi a primeira pessoa a ultrapassar a marca de um bilhão de dólares, ou seja, o primeiro bilionário, sendo este o valor aproximado de seu patrimônio por ocasião de sua morte. Nesta mesma época, um operário americano conseguiria amealhar um patrimônio de não mais que dez mil dólares ao fim da vida, o que permite concluir que o cidadão Henry Ford, sózinho, possuía o mesmo que cem mil modestos trabalhadores. Aplicando-se a teoria dos frades pré-mercantilistas — de que o lucro é condenável porque causa o empobrecimento dos demais — teríamos que concluir que Henry Ford foi um canalha, e sua existência, uma desgraça para os americanos, uma vez que, para egoísticamente reunir 1 bilhão de dólares, ele expoliou e pauperizou exatos 100 mil infelizes trabalhadores.

Qualquer um percebe que esta tese é um disparate. A Ford Motor Company pagava salários a milhares de trabalhadores, gerava outros milhares de empregos indiretos, recolhia milhões aos cofres do governo na forma de impostos, e ao utilizar a Linha de Montagem e apostar na produção em massa, permitiu que milhões de americanos pudessem adquirir um automóvel. O bilhão que Henry Ford tinha ao final da vida, ele não tomou de ninguém — ele gerou esta quantia, com o bom rumo de seus investimentos, sua inventividade e suas estratégias comerciais. É evidente, contudo, que Henry Ford, como todo self-made-man, não se fez sózinho coisa nenhuma. Ele contou com um empréstimo de alguns milhares de dólares no início de sua carreira. Outro pecado, segundo os frades que condenavam a cobrança de juros. Examinando a História, vê-se que a aversão a dívidas — mais precisamente, a aversão ao pagamento das dívidas — está profundamente enraizada em nossa cultura, bem como em outros países de tradição católica. No início do século 19, não tínhamos práticamente banco nenhum. Tomar dinheiro emprestado era difícil; cobrá-lo, mais ainda. Dívidas tinham algo de imoral. Acionar o devedor na justiça, então, com freqüência terminava em suicídio. O governo, por sua vez, não via nada de errado em não honrar seus títulos, nem em levar meses, e até anos, para pagar a seus fornecedores. Esta mentalidade anti-dívida nos persegue até hoje, quando boa parte dos brasileiros achou que o não pagamento da dívida externa seria um valoroso ato de afirmação de nossa soberania... e posso afirmar, por minha própria experiência, que a moratória feita à época de Sarney prejudicou a nossa imagem no exterior mais do que qualquer outra coisa que fizemos em 500 anos de história.

Enquanto por aqui exercitávamos nossa aversão a dívidas, na Inglaterra, Charles Dickens retratava em seus textos o horror de uma época em que existia a prisão por dívidas. Mostrava respeitáveis chefes de família atirados em prisões imundas, só porque tiveram o azar de não conseguir saldar seus débitos. Exibia personagens sinistros como o avarento Scrooge, que vivia de cobrar juros de pobres viúvas. Entretanto, era essa severidade com que se tratava o devedor que tornava o crédito abundante na era vitoriana — acessível até a pobretões, como mostrou Dickens. E foi assim que muitos jovens de talento puderam obter um empréstimo que os possibilitaria dar o impulso inicial em seus negócios, que se transformariam mais tarde em Impérios — tal como fez o já citado Henry Ford, nos Estados Unidos. O crédito, na verdade, é o instrumento de redistribuição de renda mais eficiente já inventado, pois seu efeito é fazer a renda fluir daqueles que tem capital, mas não tem idéias, na direção daqueles que tem idéias, mas não tem capital. Por aqui, achávamos um absurdo que um agiota pudesse cobrar um empréstimo de uma viúva e deixá-la na miséria, mas não achávamos absurdo nenhum que um jovem empresário de talento não pudesse obter recursos para seus empreendimentos. A ausência de crédito tende a imobilizar o quadro social — a riqueza apenas passa de pai para filho, de geração em geração, em um ciclo sem fim. Os correntistas da casa bancária vitoriana que fez um empréstimo ao jovem que inventou uma engenhoca talvez fossem um punhado de antigos aristocratas que viviam de rendas. Estes respeitáveis senhores embolsaram os juros de seu empréstimo, e ficaram muito satisfeitos. Mas o jovem que inventou a tal engenhoca multiplicou o seu capital e tornou-se muito mais rico do que eles.

Mas por aqui, até hoje achamos que se pode distribuir renda como se distribui as fatias de um bolo. Até o século 19, julgávamos que a riqueza era o ouro, e não o trabalho. Não éramos os únicos. Já li em um livro norte-americano que “a descoberta do ouro na Califórnia impulsionou a revolução industrial nos EUA”. Pura tolice. O ouro não é a riqueza per si, o ouro é um passe que dá direito a usufruir da riqueza. A descoberta de novas jazidas auríferas não tem efeito algum sobre a quantidade de riqueza, mas sim sobre a distribuição desta riqueza — ela tende a fluir daqueles que não possuem ouro para aqueles que o possuem. Foi o que aconteceu após a descoberta da América. Quem pagou a conta da festa não foram os nativos do Novo Mundo, para quem o ouro tinha pouco ou nenhum valor, mas sim milhares de poupadores europeus, gente que havia trabalhado duramente para ter algumas moedas de ouro em sua velhice, e agora viam suas economias desvalorizar vertiginosamente a cada novo galeão abarrotado de ouro que chegava no Velho Mundo. Se a Califórnia não tivesse uma única lasca de ouro, podemos afirmar sem erro que a revolução industrial nos EUA teria acontecido do mesmo jeito, e os EUA teriam conseguido, hoje, exatamente a mesma quantidade de riqueza — ela só teria uma distribuição um pouco diferente, não sendo a Califórnia o segundo estado americano mais rico, e ao invés disso teria uma posição média, como o Arizona ou o Oregon. O efeito do ouro da Califórnia foi de atrair povoadores — isto é, capital humano — e seria o trabalho destes e de seus descendentes o verdadeiro gerador da renda que a Califórnia possui hoje. Não fosse o ouro, este pessoal iria trabalhar e gerar riqueza em outro lugar.

A prosaica constatação de que riqueza nada mais é do que trabalho — ou seja, um substantivo abstrato — tem o inconveniente de frustrar os sonhos daqueles que pensam em manipula-la e redistribui-la como se faz com ítens concretos, como se fossem brigadeiros em uma bandeja. Pode-se, no máximo, redistribuir o resultado final do trabalho, caso ele tenha existência material. Mas isso é tão efêmero quanto um dia de trabalho. Pode-se confiscar o conteúdo do depósito de um supermercado e dá-lo a uma multidão de retirantes, mas no dia seguinte eles estarão famintos de novo. Pode-se expropriar o latifúndio e dividi-lo entre uma turba de sem-terras, mas de que adianta? Eles não tem sementes, fertilizantes, agrotóxicos, ferramentas, irrigação, estradas para escoar a produção, muito menos mercado consumidor. De vez em quando o jornal noticia que um grupo de sem-tetos (leia-se favelados) invadiu e ocupou uns blocos de apartamentos que uma construtora falida deixou abandonados. Muito justificável. Mas eles não tem dinheiro para a manutenção do prédio, para pagar a conta de luz, a conta da água, porteiros, faxineiros. Em pouquíssimo tempo o prédio estará reduzido a uma ruína, e a vida lá será tão desconfortável quanto em uma favela. Pode-se também confiscar os automóveis Mercedes de uma concessionária e dá-los a pobres que só andam de ônibus. Mas eles não teriam dinheiro para os impostos, para peças de reposição, para o combustível; não poderiam sequer trocá-los por dinheiro, pois ninguém compra automóveis que estão sujeitos a confisco. Se a ‘riqueza’ que se quer redistribuir não é um bem material, mas um serviço, a questão se torna mais complicada ainda. Como se divide, por exemplo, uma consulta médica em 30 partes iguais? Fazendo um esforço de imaginação, podemos supor um médico passando um minuto exato com cada paciente, mas seja lá qual for o nome que se dê a este breve colóquio do médico com o paciente, não pode ser chamado de uma consulta médica.

Mas os números não estão lá? Os 3% mais ricos detêm 60% da renda, os 97% restantes detêm só 40%? Por que não podemos pegar e redistribuir? Porque são números, números, números. Ninguém possui coisa alguma senão créditos, toda esta contabilidade é feita em cima de ativos que só retém o seu valor em um quadro de estabilidade econômica. Ou seja, em um quadro onde as pessoas se dispõem a continuar trabalhando. Ao se tentar, pela força, confiscar as posses dos outros, destrói-se a estabilidade da economia, e junto com ela, a riqueza que se pretendia distribuir. O dinheiro que está no banco não vale nada, se todos querem troca-lo por moeda estrangeira e sair do país. As ações da companhia não valem nada, se ela pode ser encampada. Ninguém comprará o imóvel que pode ser impunemente invadido. Tudo é efêmero como um dia de trabalho. A riqueza não é, a riqueza está sendo, e permanecerá enquanto as pessoas continuarem a trabalhar. E como todos sabem, ninguém teria relações sexuais se esta prática não fosse prazeirosa, e tampouco alguém trabalha se não tiver, como recompensa, a faculdade de poder fazer o que quiser com o seu pagamento. Não é por acaso que o socialismo não foi inventado por trabalhadores, mas sim por intelectuais que não tinham o hábito de trabalhar...

Mas então, de que jeito, afinal, se distribui a riqueza? Sabe-se que diversos países foram bem sucedidos neste quesito. A Inglaterra, palco da revolução industrial, tinha uma enorme concentração de renda ao final do século XIX, e tem uma distribuição de renda bem mais equitativa nos dias de hoje. É preciso ter em mente, contudo, que aquilo que chamamos de distribuição de renda nada mais é que uma estatística. Se na Inglaterra vitoriana os ricos tinham uma parcela enorme da renda nacional, e hoje tem uma parcela bem mais reduzida, isso não significa que alguém foi lá e confiscou as jóias da rainha, os cavalos do duque, o dinheiro do banqueiro. O que houve de lá para cá foi que a renda das camadas populares cresceu enormemente, enquanto a renda das camadas mais altas cresceu muito pouco ou não cresceu. Sendo o trabalho a única riqueza de fato, eu concluiria que a única maneira de aumentar a renda das camadas mais baixas é aumentar o valor de seu trabalho, coisa que se faz melhorando o seu nível de instrução. Isto foi feito pela Coréia do Sul, que investiu maciçamente na educação básica durante os anos sessenta, época em que nós investimos maciçamente, sim... mas na educação superior. Como muitos hão de lembrar, tudo o que conseguimos foi dar um cala-bôca nos estudantes revoltados com a falta de vagas, e deteriorar o nosso ensino superior, uma vez que, não tendo recebido os mesmos insumos, os ensinos básico e médio não conseguiam suprir as novas vagas criadas no ensino superior com um pool de candidatos realmente capacitados. Na verdade, este foi um entre muitos erros de vários governos, e este erro estava visceralmente dentro de nós. Desde Whashington Luís, com seu lema “Governar é abrir estradas”, passando por Juscelino Khubitschek, com seu lema “Energia e Transporte”, até Médici, com sua transamazônica, uma idéia fixa é compartilhada por estes governantes totalmente diferentes entre si — a idéia de que o progresso se resume a uma série de obras de engenharia. Pontes, estradas, usinas, edificações, portos, ferrovias, represas, linhas de transmissão, até cidades inteiras, como Brasília. Ninguém cogita que a única coisa que há para ser construída é a cultura da população. Até quando se fala em construir escolas, a idéia que vem a mente é o prédio da escola, como foi o caso dos CIEP’s da era brizolista, quando se pretendeu resolver o problema das crianças de rua inventando-se uma nova escola onde a criança ficasse o dia inteiro e tivesse duas refeições. Ninguém cogitou que escola não é planta com a assinatura de Niemeyer, escola não é merenda, escola não é sequer carteira e quadro-negro. Escola é professor. Mas quem está preocupado em construir o professor? Para nossos líderes pretensamente socialistas, que só se sentem a vontade em meio a estatísticas e maquetes, o povo não é mais que uma massa, termo que gostam de empregar, e toda a massa é informe, despersonalizada, uma parte equivalente a qualquer outra, passiva e desprezível. Para que estimular a professora primária? Ela é equivalente aos catadores de lixo, e inclusive, não ganha mais do que eles. E assim vamos levando. Ao mesmo tempo em que construíamos a ponte, a Coréia do Sul construía o povo — e depois o povo fez a ponte, e muito mais.


 

Rede Globo de Alienação?

Por décadas, a grande Besta Negra dos intelectuais tem sido o sr. Roberto Marinho. Sejam intelectuais de esquerda ou de centro (de direita quase não há), ativistas ou acomodados, artistas ou acadêmicos, ninguém gosta desta figura sinistra. Uns consideram-no o Doutor Fausto, outros o próprio Mefistófeles. Atribuem-lhe ciladas traiçoeiras, ardis maquiavélicos, total falta de escrúpulos, ligações suspeitas, oportunismo despudorado, farsas dissimuladas, imenso poder tentacular, como um polvo; sobre ele chegam a correr lendas urbanas que o dão como falecido e secretamente substituído por um testa-de-ferro, sob o comando de poderes ocultos. Foi ele o diabólico criador da Rede Globo de Alienação, que controlaria a mente de milhões de brasileiros e os manteria dóceis e obedientes à elite dominante.

Por absoluta falta de dados e de interesse, não tenho nenhuma intenção de discutir o caráter do sr. Roberto Marinho, nem de afirmar se são verdadeiras ou falsas as acusações que lhe imputam. Mas pode-se discutir a real dimensão de seu poder, e o motivo do imenso sucesso comercial da Rede Globo. A versão aceita é de que tudo começou quando ele abraçou a causa da revolução de 64, fato que lhe renderia toda a sorte de facilidades da parte do novo regime. Bem, isso pode explicar como a TV Globo começou, mas não como ela chegou ao ponto onde chegou. E, teorias conspiratórias a parte, a explicação do sucesso da Globo, a meu ver, é bem simples. É a mesma razão de todo o empreendimento de sucesso: ela é orientada ao mercado. Em outras palavras, ela exibe ao telespectador aquilo que o telespectador quer ver.

Mas é isso o que o povo quer ver? Não, de modo algum, isto é o que ele é induzido a ver! Tudo efeito dos poderes hipnóticos do sr. Roberto Marinho, verdadeiro Goebbels renascido, no comando de uma sinistra organização de especialistas em desinformação a soldo do imperialismo norte-americano. Já ouvi uma universitária, certa vez, a afirmar com toda a solenidade que a Globo estaria empregando o método Paulo Freire ao contrário, visando alienar a sociedade inteira. Os intelectuais repetidamente criticam a Globo por falsear nossa realidade social, mostrando novelas onde todos os personagens são ricos e cheirosos. Mas como Joãozinho Trinta teve a coragem de dizer, quem gosta de miséria é intelectual, o povo quer é luxo... Para a infelicidade de nossa garbosa elite pensante, o povão não quer saber de pobre nem de revolução. Fenômeno similar ocorre em Portugal, onde as pessoas mais letradas lamentam que o país esteja invadido por novelas da Globo, produto de baixo valor cultural. Mas o sucesso destas novelas em terras lusitanas é uma evidência de que o nível mental do povo português, no fim das contas, não é muito diferente do brasileiro. Acredito ter chegado ao cerne da questão: o sr. Roberto Marinho é tão odiado pelos intelectuais porque ele comete o crime de dolorosamente mostrar aos intelectuais que o povo não é como eles gostariam que fosse...

Mas que a Globo é um sucesso, isso ninguém discute. Basta visitar qualquer barraco na favela: pode faltar tudo, mas a TV é sempre de último modelo. Já escutei a piada segundo a qual o pobre prefere comprar uma TV a uma geladeira porque, se abre a geladeira, ele não vê nada, mas se liga a televisão, ele vê tudo. Repetidas vezes ouvi “madames” indignadas por saber que suas domésticas possuem eletrodomésticos mais modernos que os delas, e vêem nisso a prova da irresponsabilidade que atribuem aos pobres, que “passam fome” e mesmo assim querem comprar uma TV último tipo. Quanto a mim, sou de opinião que o pobre sabe muito bem o que faz na vida, e se prefere comprar uma TV a fazer uma boa feira, é porque a TV lhes dá mais satisfação. E tem certo valor, sim. A televisão é a forma mais rala e massificada de difusão cultural, mas sem dúvida que é melhor do que nada. E distrai, sim. A distância social não impede que os pobres se identifiquem com os personagens ricos das novelas, e chorem por seus dramas. É a magia do Padrão Global. Em qualquer lugar do mundo, novelas são estigmatizadas por serem produções rasteiras e bregas, a ponto de serem conhecidas internacionalmente pela denominação irônica de “soup opera” (ópera de sabão), que vem dos tempos do rádio e remete aos intermináveis seriados baratos e patrocinados por uma fabriqueta de sabão qualquer, que as pessoas simples gostavam de acompanhar por não terem mais o que fazer. Por que a novela brasileira tem um padrão de qualidade diferente? Há nesse fato alguma coisa ligada a nossas peculiaridades, que nos diferenciam dos demais países latino-americanos?

Com certeza, a diferença entre as novelas brasileiras e as “mexicanas” é flagrante. Nada de tramas inverossímeis, coincidências incríveis, aristocratas que em pleno século 21 habitam mansões senhoriais ao invés de condomínios elegantes; nada de interpretações duras e falas empoladas, nem de latinos gélidos como nórdicos. O universo social, entretanto, é o mesmo: tanto nas novelas brasileiras como nas “mexicanas” o mundo é composto apenas de ricos e pobres, sem classe média. Digo novela mexicana entre aspas porque na verdade as novelas seguem este padrão em todas as partes do mundo, só a brasileira é diferente. E bem diferente. Aqui o tempo é o presente e a linguagem é a coloquial. Os acontecimentos que impactam o nosso dia-a-dia também impactam o dia-a-dia dos personagens. As locações são lugares que nos são familiares e os personagens se parecem com pessoas que conhecemos, só que... não são reais. Tudo é revestido de um discreto retoque para se acomodar ao Padrão Global.

E é este retoque a verdadeira razão do sucesso comercial das novelas da Globo. Não é um remendo tosco, é um retoque cuidadoso e esmerado. São mostradas as diferenças sociais e as mazelas morais, mas os aspectos repulsivos são eliminados. Os humildes empregados tem boas roupas e falam direito. A ex-menina de rua parece uma gatinha da zona sul. Os imigrantes do século 19 têm todos os dentes na boca e suas cozinhas são limpinhas. A garota de programa só cobra em dólares. Enfim, a Globo não mostra nada que não exista, mas tudo competentemente retocado pelo Padrão Global, que produziu esta notável invenção: o pobre que não fede.

Como nenhum pobre gosta que lhe lembrem de que é fedido, é com prazer que ele assiste às novelas da Globo. O visual exuberante e os personagens “gente fina” das novelas brasileiras, o visual démodé os personagens esquemáticos das novelas latinas, o quadro social só de ricos e pobres em ambos os casos, tudo isso ilustra nossa semelhança e nossa diferença em relação aos demais sul-americanos: não somos, em média, nem mais ricos nem mais cultos do que eles, mas sem dúvida somos bem mais diversificados e cosmopolitas.


 

Ressentimentos Luso-Brasileiros

Não adianta disfarçar. Repetem a toda hora o chavão dos “países irmãos” — como se todos os irmãos fossem obrigatoriamente amigos — mas o fato é que poucos povos tem um histórico tão longo e notório de ressentimentos mútuos. Isso é surpreendente, em se lembrando que o domínio colonial português, embora opressivo, não era muito diferente do de outras potências européias, e o nosso rompimento com a antiga metrópole foi relativamente pouco traumático, com muito menos luta, por exemplo, do que a guerra de independência norte-americana, e os americanos de hoje em dia não tem nem de longe o mesmo ressentimento em relação a seus antigos dominadores britânicos. Mas por aqui não há intelectual que não repita, em alto e bom tom, que a causa remota de todos os nossos problemas atuais é herança do nefasto colonialismo lusitano, espoliador de riquezas, matador de índios e escravizador de africanos.

Até que faz um certo sentido. As desvantagens do tipo de dominação empreendida pelos ibéricos são reconhecidas mundialmente, especialmente se este é comparado ao colonialismo britânico. Mas o sentido se vai quando a questão é colocada em números: 503 anos de História, 322 de domínio português, 181 de vida independente. Se já passamos mais de 1/3 de nossa História livre dos portugueses, e ainda não conseguimos reconstruir o que eles supostamente destruíram, sem dúvida que algo está errado nesta premissa. Como é possível que, tantos anos depois, ainda se queira acertar alguma conta com a antiga metrópole? Esta presunção ridícula é objeto de justa irritação da parte de alguns portugueses, como o escritor Miguel de Souza Tavares, que escreveu crônica* para o jornal O Público por ocasião dos festejos dos 500 anos, da qual reproduzo alguns trechos abaixo:

Simplificando, a história terá sido assim: até 1820, Portugal explorou, saqueou, matou, destruiu. Do "grito de Ipiranga" para cá, "o povo brasileiro" (do qual, estranhamente desaparecera, com a partida de D. Pedro IV para Portugal, qualquer cromossoma português), tem-se esforçado para das ruínas erguer um país.

De tão absurda, esta versão histórica tem qualquer coisa de patológico. O Brasil foi descoberto há 500 anos, é independente há quase 200: estamos a falar de uma eternidade, em termos de construção de um país, para mais tão rico como o Brasil. Ocorre lembrar que, no mesmo ano em que a América foi descoberta se pôs fim à ocupação árabe da Península. Lembraria a algum espanhol ou português, mesmo que grosseiramente ignorante, lastimar-se hoje da herança dos mouros?

Como mostra Miguel de Souza, não é preciso grande esforço para demonstrar o disparate que é esta tese. “Patológico” foi o termo que empregou. Quanto a mim, o que vejo é um traço de infantilidade, de falta de hombridade de nossa parte, por nos esquivarmos de nossas responsabilidades e atirar sobre os outros a culpa, e sobretudo de hipocrisia: exceto por uns poucos índios, todo o resto da população é descendente dos dominadores, e portanto, herdeira e usufrutuária de tudo de bom e de mau que nos foi legado por eles:

(...) Compreendo que os índios brasileiros não estejam entusiasmados com a perspectiva de verem comemorada a sua "descoberta". Compreendo pior que vagamente crioulos, como Caetano Veloso, se juntem ao protesto. Mas o que não consigo acreditar é que haja um só ser inteligente no Brasil que reduza o significado do acto científico, histórico e cultural da descoberta do Brasil à matança de índios ou ao saque do ouro de Minas.

Disso gostemos ou não, nossa matriz européia é portuguesa. A matriz apenas, pois de lá para cá tivemos tantos outros componentes étnicos e culturais, que certamente a herança portuguesa não pode ser unicamente responsabilizada por qualquer característica boa ou má que tenhamos nos dias de hoje, como bem colocou o cronista:

(...) porque, por maior que seja a tal nostalgia imperial, não acredito e não sinto que o vírus permaneça vivo quase 200 anos. Depois, porque, tendo feito a minha descoberta do Brasil, como quase todos os portugueses, pelo eixo Rio-São Paulo, não senti que naquela fantástica civilização de cidades e praias houvesse, fosse a que nível fosse, o mais leve vestígio da nossa marca. Pelo contrário, sempre achei que o Brasil é um país à parte, não apenas totalmente diferente de Portugal, como de qualquer outro país que eu conheça.

Deveriam os americanos odiar seus ancestrais ingleses apenas porque eles cobravam impostos escorchantes e não fizeram o obséquio de ir embora sem luta? Deveriam os ingleses odiar seus ancestrais romanos, anglos, saxões e vikings apenas porque eles chegaram em sua ilha matando, pilhando e estuprando? Qualquer um que já tenha assistido a uma aula de História no colégio sabe que era desta forma que todos os conquistadores da antiguidade agiam. Mas, ao se aceitar e usufruir da herança cultural do conquistador, a conquista torna-se um episódio do passado, e ao fim de algum tempo já não há mais dominador nem dominado, mas um novo povo originado de ambos. A persistência do sentimento anti-lusitano entre nós só pode ter raízes psicológicas. Diga-se de passagem, temos em comum com eles a falta de auto-estima. Entre um passado glorioso que não volta mais, e um futuro promissor que não chega nunca, portugueses e brasileiros desenvolveram uma considerável bagagem de frustrações e recalques ao longo dos anos. O escritor Eça de Queirós tornou-se conhecido por verbalizar através de seus personagens a péssima imagem que seus conterrâneos nutriam a respeito de si próprios. Quanto a nós, disfarçamos melhor, mas nossa auto-estima também é baixa. O dramaturgo Nélson Rodrigues a definia como “Complexo de Vira-lata”, e chamou a atenção para a necessidade que temos de nos orgulhar dos sucessos no esporte como forma de compensação. Comparando a inesperada derrota no mundial de 1950, em pleno Maracanã, com a vitória obtida na Suécia em 1958, ele atribuiu o insucesso à falta de hombridade dos jogadores que se deixaram intimidar:

(...) no meu tempo era pior. Não podia passar a carrocinha que todos se escondiam, com medo de serem levados juntos. (...) Por que o Uruguai nos venceu no Maracanã, em 1950? Porque todos viram Obdúlio Varela, capitão uruguaio, a berrar com todos a plenos pulmões. Ele nos tratou aos berros, como se cachorros fôssemos.

O caso de Portugal tem um agravante: a comparação. A Europa é bem ali, e quase todos os vizinhos são muito mais bem-sucedidos economicamente. Já os vizinhos do Brasil tem um nível sócio-econômico similar ao nosso. Como somos maiores em território do que todos eles, dá até para sentir um vago sentimento de superioridade. Na verdade, eu defino o sentimento brasileiro como algo esquizofrênico: é um complexo ao mesmo tempo de superioridade e de inferioridade. De superioridade, quando lembramos a vastidão de nosso território, a imensidão dos recursos, e o destino grandioso que julgamos que virá como conseqüência disto; de inferioridade, quando constatamos que esse destino grandioso não chega, e tudo aquilo que conseguimos nos parece irremediavelmente aquém do que julgamos ser “nossa potencialidade”. O sentimento português também é confuso: há aqueles que contemplam a vastidão dos domínios que o império português um dia possuiu, e sentem nostalgia e orgulho de haver Portugal, país tão minúsculo, conquistado e mantido territórios tão extensos. De fato, jamais houve na História uma metrópole tão pequena com domínios tão vastos. Mas esta mesma relação pequenez-vastidão é motivo de apreensão para outros, que temem que Portugal possa vir a ser submergido por uma avassaladora invasão, humana e cultural, da parte deste universo ultramarino desmesuradamente extenso. Este temor é agravado por já ter havido um procedente: a época da vinda da família real ao Brasil, quando o colonizador literalmente virou colonizado.

Tendo sido o Brasil fundado e colonizado por portugueses, como se explica que, nos dias de hoje, brasileiros e portugueses sejam tão diferentes?

Se não nos retivermos no aspecto étnico, mas considerarmos o aspecto estritamente cultural, veremos que a presença portuguesa no Brasil não é tão grande assim. Há uma distinção importante a fazer: os povoadores lusos que chegaram antes da independência, e aqueles que chegaram após a independência. Os primeiros eram reinóis, os segundos eram imigrantes. O imigrante é o estrangeiro que chega para viver, trabalhar e constituir família em sua nova terra; já o reinol considerava estrangeiro aos nativos, e não a si próprio — e estava certo, pois não havia ainda uma “cidadania brasileira”, mas apenas uma cidadania portuguesa, que somente os reinóis possuíam plenamente (para os colonos havia diversas restrições). Os povoadores vinham por vários motivos — eram degredados, aventureiros, membros do governo, membros do clero, donatários, camponeses — mas não vinham com o intuito de ter uma forma de vida semelhante à que tinham em Portugal, pois isto era vedado por lei. Era proibido plantar oliveiras, videiras, ou produzir qualquer produto que fizesse concorrência à metrópole. O impacto disto nos costumes foi considerável, fato que pode ser entendido se lembrarmos que, naqueles tempos em que pessoas comuns do povo não freqüentavam escolas e a educação formal não tinha uso algum para os trabalhadores, a transmissão da cultura se fazia sobretudo pelo ensino às novas gerações de um ofício, o mesmo de seus pais e avós. Ao se proibir o povoador de viver da mesma forma como viveram seus ancestrais, na prática impunha-se uma descontinuidade cultural. Ao português era proibido ser português, ele tinha que reinventar-se, tornar-se alguma outra coisa. Com freqüência se tornava minerador, atividade sem nenhuma tradição em Portugal, e por isso mesmo feita de forma primitiva (os garimpeiros desconheciam o uso do mercúrio, e só apanhavam as pepitas visíveis, desperdiçando o ouro que se encontrava pulverizado e misturado à terra).

Já o português-imigrante, chegado após a independência, mantinha uma identidade cultural bem mais distinta. Na verdade, é ele o único português “verdadeiro”, pois em cima dele, este modesto imigrante, foi calcada toda a imagem folclórica que o brasileiro até hoje faz do português. No cômputo geral, entretanto, ele foi apenas um entre vários grupos de imigrantes de diversas nacionalidades, e chegou em uma época em que os povos brasileiros e português já estavam nitidamente diferenciados. O elemento português não veio para dar o tom dominante, mas para ser um componente a mais em um país multicultural.

 

DAS GARRAFADAS ÀS ALFINETADAS

 

É certo que, tendo sido colônia de uma monarquia absolutista, e havendo declarado sua independência unilateralmente, seria milagre se esta ruptura não deixasse algumas cicatrizes. E de fato, durante todo o primeiro império e parte da regência, houve marcada polarização entre o “partido português”, composto por indivíduos que tinham ligações com a antiga administração colonial e que eram beneficiados pelo imperador português de nascimento, e o nativista “partido brasileiro”. As lutas políticas com freqüência resultavam em assassinatos políticos como o do jornalista Líbero Badaró, morto certamente a mando de portugueses. Em 1828 houve um gigantesco tumulto no Rio de Janeiro, opondo brasileiros e portugueses, conhecido como “A Noite das Garrafadas”, que deixou largo saldo de mortos e feridos. Durante as constantes rebeliões nas províncias, era freqüente que cidadãos portugueses (conhecidos como “marinheiros pés-de-chumbo”) fossem agredidos e linchados nas ruas — e isto aconteceu até meados do século 19. Mas com o tempo, a volta de Pedro I a Portugal, a chegada de levas cada vez maiores de imigrantes, trazendo o conseqüente fortalecimento dos laços familiares e comerciais entre portugueses e brasileiros, cessou esta hostilidade ostensiva. Mas não o ressentimento. Este iria se manifestar, daí por diante, na forma de um mútuo desdém, feito de comentários sarcásticos entre os letrados, e de piadas contadas pelo povo. Ironicamente, tanto as piadas de português quanto as de brasileiro tem a mesma origem nas anedotas regionalistas portuguesas. As alfinetadas substituíram as garrafadas, mas na época, o perfil de ambas as sociedades era tão análogo, as mazelas lá e cá eram tão parecidas, que nenhuma arrogância intelectual se sustentava por muito tempo sem cair na máxima do roto a falar do rasgado. Eça de Queirós, no início da carreira, escreveu uma crônica comparando seus compatriotas com brasileiros que ele conheceu em uma viagem ao Nordeste. O texto, cheio de comentários racistas e chistes desdenhosos (“Nós somos modestamente ridiculitos, eles são à larga ridiculões”) gerou protestos e causou até agressões a uns portugueses em Olinda da parte de uma turba enfurecida. Mas Eça, que precisava entrar no mercado brasileiro, não tardou a eliminar este trecho das edições posteriores de seu livro.

Passadas muitas décadas, observa-se em Portugal a tendência de se distanciar das antigas colônias, e de integrar-se cada vez mais à Comunidade Européia. A influência brasileira em Portugal ainda é grande, mas se faz sobretudo no campo do entretenimento — a música, as novelas, os jogadores de futebol. Nenhum português nos dias de hoje tem qualquer motivo para nutrir ressentimentos pós-coloniais em relação aos brasileiros, mas nós continuamos a considerá-los a matriz de todos os nossos males. Não posso atribuir isso, senão, à persistência do pensamento marxista entre nossos intelectuais, e sua pretensão de explicar tudo pelo viés maniqueísta — opressor X oprimido, burguesia X povo, e é claro, imperialista X colonizado. Aí que entra Portugal, quando não é os EUA. Azar o nosso. Como comentou Miguel de Souza,

(...) Se o Brasil entende que Portugal é a mancha na sua História, paciência. É como se nós nos lembrássemos de repudiar a nossa herança romana ou árabe: o ridículo seria só nosso.


 

A Classe Média Universal

No Brasil, a expressão “Classe Média” não tem muito prestígio. Em geral denota mesmice, um indivíduo que não é nem lá nem cá, um rico que não quer admitir que é rico, ou um pobre que tem vergonha de dizer que é pobre. Nas análises sociológicas, então, mal é mencionada. Todos querem frisar que somos uma sociedade muito desigual, dividida entre ricos e pobres, entre elite e povo, e a classe média surge mais como um detalhe acidental — é claro que entre o alto e o baixo existe o médio, mas que importa? Não há papel para ela nas modelagens que fazemos de nossa sociedade. O primeiro grande clássico de nossa sociologia chamou-se Casa Grande e Senzala, e nota-se bem, não é preciso ler uma única página — basta ler o título — para perceber que a classe média, ao autor, não só não interessava o mínimo, como ele sequer reconhecia a sua existência.

No entanto, eu vejo na expressão Classe Média um sentido inuzitado. Longe de designar um apanhado de indivíduos prosaicos, eu a vejo como o próprio cerne da sociedade, a expressão de uma identidade que já não é social, mas nacional. O arcabouço moral e cultural da população do país X é o arcabouço moral e cultural da classe média do país X, e não uma média entre todas as classes, como se supõe a primeira vista. E vou ainda além — afirmo que existe uma Classe Média Universal, conceitualmente definida por diversos valores e costumes compartilhados por cidadãos da classe média de todos os países, mesmo por aqueles que são radicalmente diferentes em termos culturais. Concordo que estas afirmações parecerão estapafúrdias a muitos, mas tenho argumentos para fundamenta-las.

Primeiro de tudo, trata-se de recuperar o sentido original do termo Classe Média, que pertence àquela categoria de expressões que todo o mundo sabe o que é, mas ninguém sabe definir em palavras. De modo geral, afirma-se que pertencem à classe média os indivíduos ou famílias cuja renda situa-se em um patamar entre o valor X e o valor Y. Mas quem ditou estes valores X e Y? Se em um mês a renda cair um tanto abaixo de X, aquela pessoa estará automáticamente rebaixada à classe pobre, mesmo que psicológicamente ainda pertença à classe média? Se no mês seguinte a renda subir um tanto acima de Y, aquela pessoa estará mágicamente transportada à classe rica, mesmo que não saiba nada a respeito do estilo de vida desta classe? Se a comparação for feita entre países diferentes, estes parâmetros perdem de vez o pouco sentido que tem. Dependendo da cotação da moeda e do custo de vida local, um cidadão da classe média do país A pode ser classificado como pobre no país B ou como rico no país C, muito embora ele continue sendo apenas aquilo que é — um cidadão comum da classe média.

A classe média só pode ser efetivamente conceituada de forma subjetiva: por definição, ela é “média”, entre os extremos rico e pobre, mas que “médio” é esse? Foi por acaso que tantos indivíduos atingiram este padrão “médio”? Ou existe um atrator? A melhor explicação que encontro (na verdade, a única) consiste de definir a classe média como um estado terminal considerado “digno” de acordo com os padrões culturais da sociedade onde ela se encontra inserida: diz-se que um indivíduo atingiu a classe média a partir do instante em que ele deixa de sentir incontrolável ânsia em melhorar de vida, passa a considerar aquele patamar aceitável para si e para sua família, e planeja que seus filhos tenham aquele mesmo nível quando se tornarem adultos. Desta forma, a classe média é um estado terminal estacionário: ela tende a reproduzir-se a si própria, geração após geração, e os indivíduos que se inserem nela tendem a permanecer nela. Havendo um quadro de estabilidade econômica, a longo prazo a classe média tende a absorver mais e mais indivíduos da classe pobre (e eventualmente perder um ou outro para a classe rica) até compreender quase a totalidade da população do país. É precisamente este o quadro social nas nações consideradas de primeiro mundo, e vê-se agora o quanto é artificial arbitrar que “país de primeiro mundo” é aquele que possui renda acima de X — o primeiro mundo é, simplesmente, o conjunto de países onde quase todos os cidadãos pertencem à classe média (e não à classe rica, como seria de se imaginar para um país “rico”. A classe rica existe tanto no primeiro quanto no terceiro mundo, mas tanto em um quanto em outro, compreende apenas uma minúscula percentagem da população). Neste caso, em que a classe média é numéricamente dominante, não se discute a premissa que coloquei a priori, de ser a classe média o arcabouço moral e cultural do país inteiro.

Mas e quanto ao resto? Como pode a classe média representar um país onde ela só tem 5% da população? Nota-se que a definição que dei à classe média — estado terminal estacionário para onde converge toda a população — produz duas conseqüências que valem tanto para o país rico quanto para o pobre.

A primeira delas é: apenas a classe média fixa os valores morais e a cultura de um povo. Pois o indivíduo que está satisfeito com o seu modo de vida, certamente deseja conservar tudo aquilo em que acredita, e que julga ser o agente causal de ele haver conseguido atingir o patamar onde se encontra. Deseja também transmitir aos filhos aquele mesmo sistema de crenças e valores, para que eles, no futuro, tenham o mesmo tipo de vida “satisfatório”. Mas e as outra classes, os ricos e os pobres? Não podem ter cultura própria e valores diferentes? Certamente que podem, e de fato os tem. Mas eu descarto a ambos, baseado nas razões que explicarei.

Descarto a classe rica como formadora da cultura nacional, em primeiro lugar porque ela é numéricamente pequena, e em segundo lugar (e mais importante) porque, por suas características, a classe rica tende à globalização e não à particularização. O rico tem recursos que permitem-lhe prescindir da solidariedade de vizinhos, do auxílio da comunidade onde vive e do amparo dos órgãos de assistência do governo; ele pode ir estudar no exterior e abeberar-se de numerosas fontes de cultura; via de regra fala mais de uma língua e viaja com freqüência; pode residir e sustentar-se onde desejar, pois o capital é essencialmente apátrida. Assim sendo, os ricos tendem a ser mais cidadãos do mundo do que cidadãos de seus países. Isto não é novo. No século XIX (bem antes do termo globalização entrar na moda) não havia quase diferença nenhuma entre um aristocrata brasileiro e um aristocrata francês. Ambos tinham a mesma formação, falavam a mesma língua, circulavam nos mesmos ambientes. Por conseguinte, ao se procurar um exemplar que tipifique os cidadãos de seu país, um indivíduo da classe rica necessáriamente é um exemplo mal escolhido.

Descarto igualmente a classe pobre como formadora da cultura nacional, por um motivo bastante simples: a classe pobre, como parte de seu esforço para sair de sua situação de carência, está constantemente a renegar sua própria cultura. Muitos detestarão ouvir isto, mas é fato. Isto ocorre porque a cultura não é uma escolha aleatória ou mera questão de preferência, mas algo ligado indelévelmente ao modo de vida, inclusive a nível material. Concorde-se ou não, melhorar de vida significa abandonar determinados hábitos culturais e adquirir outros. A insistência em manter um modo de vida “tradicional” mesmo após enriquecer conduz a casos singulares e patológicos, como a elite árabe-saudita dos dias de hoje, que é riquíssima mas vive de acordo com costumes arcaicos que foram inclusive atenuados por outros países árabes não tão ricos. Via de regra, para um pobre melhorar de vida, ele tem que abandonar parte de sua identidade e cortar boa parte dos vínculos que o ligam a sua comunidade de origem. E a maioria faz isso, até, com prazer, pois não tem motivos para estar satisfeita com a vida que leva. Um modo de subir na vida é através do estudo. Podemos imaginar uma comunidade de pescadores no interior, onde um menino consegue completar a escola. Este menino, mesmo que ainda resida no local, certamente não terá muito diálogo com seus avós analfabetos, nem muito interesse por seu modo de vida. Outra maneira de subir é pelo deslocamento em direção a comunidades mais ricas — a migração do campo para a cidade, de uma região para outra, ou de um país para outro — mas o indivíduo que se desloca, necessáriamente abandona parte da cultura de sua comunidade de origem, e adota parte da cultura de sua nova comunidade. Em conseqüência disto tudo, a contribuição do pobre para a formação de uma identidade cultural nacional é duvidosa. É difícil, mesmo, definir o que seria a cultura da classe pobre, pois trata-se de uma cultura mutante, indistinta, mixto de costumes arcaicos e modernos. Estudar uma cultura em mutação (se não em extinção) pode ser interessante do ponto de vista da Antropologia e da História, mas é pouco prático. Seria como tirar uma foto de uma multidão onde algumas pessoas estão em rápido movimento, e outras estão paradas. Como todo fotógrafo sabe, as imagens em movimento sairão borradas, e as imagens estáticas sairão nítidas. As pessoas que estão imóveis neste hipotético retrato são a classe média do país — a única que fixa os valores e os costumes, e que paulatinamente confere feições definitivas ao país inteiro.

A segunda conseqüência devida a este caráter específico da classe média a que me referi — ser um estado terminal em cuja direção converge a população inteira, adotando uma mesma bagagem de valores e costumes — é a gestação daquilo que chamarei de A Classe Média Universal, fenômeno já em andamento, e que tem em seu corolário a refutação definitiva da tese do relativismo cultural (idéia que, paradoxalmente, está muito em voga nos tempos atuais). Uma coisa que pode ser fácilmente observada — até mesmo ao se ligar a televisão e assistir a um seriado norte-americano sobre a Família X — é o notável grau de semelhança entre as classes médias de diversos países. Em termos de hábitos de consumo, é sempre a mesma coisa: a família tem uma casa, um carro, o pai tem um emprego, viajam nas férias, as crianças estão na escola, o filho tem uma guitarra ou coisa parecida, a filha tem pelo menos algumas roupas de grife, etc. etc. etc. São pessoas que não vivem do capital, e sim do trabalho, mas que possuem um conjunto de bens considerados imprescendíveis a uma vida “digna”. Isto vale para a classe média dos EUA, da Índia ou do Brasil. A diferença está na qualidade intrínseca da cada um destes ítens: a marca do carro, o tamanho da casa, qual o pacote turístico nas férias, o prazo do financiamento imobiliário, a qualidade da escola, do hospital, etc. De resto, tudo é muito análogo. A Índia, país multicultural onde convivem diversas etnias, não obstante a isto tem uma classe média bastante homogênea. No Brasil, boa parte da classe média descende de imigrantes de diversas origens, o que não impede que a nossa classe média também seja bastante homogênea, como confirmará qualquer um que resida por um tempo em São Paulo. Esta similitude eu noto em minha própria experiência de viagens a países mais ricos. Via de regra tenho diálogo fácil com indivíduos da classe média local — eles tem o mesmo nível cultural que eu, estudaram as mesmas coisas, até os problemas são semelhantes — mas não tenho assunto para conversar com um operário brasileiro por mais do que uns poucos minutos. E não obstante, a diferença de rendimentos entre eu e um típico operário brasileiro, calculada em moeda, é muito inferior à diferença de rendimentos entre eu e um típico representante da classe média de um país de primeiro mundo.

Mas as analogias vão além dos padrões de consumo: pode-se mesmo falar de uma cultura universal de classe média, parafraseando a cultura universal dos pobres de Oscar Lewis.

Estudando as famílias pobres do México, em seu clássico “Cinco Famílias”, Oscar Lewis observou a ocorrência de padrões que se repetiam, tanto em um local como em outro, tanto no passado como no presente. Chamou a isto de A Cultura dos Pobres, frisando que não se tratava de povos primitivos “que possuem uma cultura relativamente integrada, satisfatória e que se basta a si mesma” (eu diria que estes povos primitivos constituiam uma classe média segundo seus próprios padrões, posto que estavam satisfeitos com seu modo de vida). Os pontos recorrentes, assinalados por Lewis, eram “(...) a luta constante pela vida, o subemprego, o desemprego, os baixos salários, uma variedade de empregos não-especializados, o trabalho de crianças, a ausência de poupança, uma penúria crônica de liquidez monetária, ausência de reserva de alimentos na despensa, hábito de comprar pequenas quantidades de comida várias vezes ao dia, à medida das necessidades, a penhora de bens pessoais, o endividamento a agiotas”. Cada um destes tópicos tem um contraponto na classe média:

Classe Pobre Classe Média
Desemprego / Subemprego / Expediente Avulso Profissão definida e emprego seguro
Trabalho das crianças Crianças na escola
Ausência de poupança Poupança, mesmo pequena
Ausência de planejamento e de estoques de reserva Compras do mês, consumo planejado e margem de reserva
Crédito informal / agiotas Crédito bancário reconhecido
Falta de intimidade Ênfase na privacidade
Espírito gregário Espírito individualista
Violência doméstica freqüente Diálogo e civilidade
Iniciação precoce na vida sexual Iniciação sexual na idade adulta
União livre e abandono freqüente da família União regulada por contratos de casamento e de divórcio
Planejamento do presente Planejamento do futuro
Sentimento de resignação e fatalismo Espírito crítico
Machismo Ideal de igualdade dos sexos
Tolerância generalizada a todos os casos de psicopatologia Sociopatas excluídos do convívio social

 

Desta “cultura de classe média” emerge aos poucos a Classe Média Universal, processo que tende a acelerar-se nestes tempos de globalização. Os que se opõem à globalização, aliás, são os mesmos que consideram os ideais da classe média como mediocrizantes (haverá coisa mais aborrecida do que um pai dia e noite insistindo para que o filho estude e tenha uma boa profissão?). A adoção, da parte de comunidades de diversos países, etnias e ambientes culturais, de um mesmo conjunto de hábitos e princípios (só querem imitar o que vêem na televisão, dizem) denota que os hábitos culturais nativos não são intrinsecamente equivalentes: alguns são melhores do que os outros; uns devem ser abandonados, e outros adotados por todos. Os hábitos culturais podem favorecer ou não à formação da Classe Média Universal; em outras palavras, podem contribuir ou não para que o indivíduo atinja um nível de consumo que lhe seja satisfatório. Não é por coincidência que todo indivíduo classe média é parecido. Sem dúvida, isto irrita aos que defendem os particularismos regionais e o relativismo cultural.

No Brasil, a classe média ainda é rala e desprovida de influência política (praticamente não há candidatos que se disponham a representa-la). O grande elemento formador da classe média brasileira foi o imigrante, que já trazia consigo uma cultura de classe média, a qual propugnava a melhoria de vida mediante o trabalho, o planejamento, a poupança e a aquisição de cultura (ideais que contrastavam com o patrimonialismo do país colonial). Outro elemento formador da classe média foram famílias ricas cujos filhos tradicionalmente tinham um diploma superior (mero adorno) mas que, com o tempo, foram perdendo o patrimônio, de modo que a profissão tornou-se a única fonte de renda dos descendentes. Este extrato é fácilmente reconhecido por cultivar símbolos que reportam à classe rica de onde provieram, tais como empregados domésticos e o “canudo” indispensável, sem o qual não se é “doutor”. Em geral dedicam-se a profissões “tradicionais” e a empregos públicos, enquanto que o extrato derivado dos imigrantes dedica-se à iniciativa privada (por vezes enriquecendo). A transição dos pobres para a classe média tem sido muito lenta, devido às poucas oportunidades disponíveis, mas também ao pouco prestígio que a classe média brasileira desfruta (o pobre em geral sonha em ascender à classe rica, não à classe média). O traço mais flagrante desta falta de auto-estima é a insistência dos cidadãos de classe média em identificar-se com as outras classes: ou se tenta parecer um rico, imitando seu comportamento e seus hábitos de consumo, ou se solidariza com os pobres, abraçando ideais contrários ao capitalismo, à iniciativa privada e à propriedade privada — e assim ajuda a fabricar a corda que irá enforcá-lo. Não creio que a classe média brasileira florescerá enquanto seus integrantes não tiverem um mínimo de orgulho de pertencer a ela.


 

Pedagogia do Oprimido?

Um herói nacional absolutamente inconteste é o educador Paulo Freire, autor de “A Pedagogia do Oprimido” e inventor de um método revolucionário de alfabetização de adultos. Espécie de Santos Dumont às avessas, aquele que efetivamente inventou o avião, mas que nunca foi reconhecido fora do país, Paulo Freire sempre gozou de entusiástico reconhecimento internacional, embora nunca tenha feito rigorosamente coisa alguma. Passados tantos anos, não tenho conhecimento de um único lugar no planeta onde o método Paulo Freire tenha sido experimentado em larga escala e tenha efetivamente alcançado os resultados que propugnava. É certo que por aqui ele foi impedido de aplicar seu método, mas isto não é desculpa. Esteve em vários outros lugares, na América Latina e na África, e que eu saiba o analfabetismo continua alto nestas paragens. Culpa de quem? Dele com certeza não há de ser, a julgar pela popularidade que desfruta. Sua figura barbuda e monástica sempre foi bem-vinda nos palanques das mais prestigiosas universidades do mundo, talvez porque ele encarne tudo aquilo que o primeiro mundo acha que um intelectual de terceiro mundo deve ser: barbudo, monástico, que diz coisas que fazem os olhos lacrimejar, mas sem nenhuma coerência lógica ou utilidade prática. Dizer coisa com coisa? Que atrevimento! O rigor científico e a eficácia dos métodos são coisas que o primeiro mundo acha que devem ser exclusivas do primeiro mundo.

Mas convém aqui dar uma examinada em suas teorias, para tentar, ao menos, descobrir porque tanta gente as considera bonitinhas. As citações que reproduzo abaixo podem ser encontradas em qualquer biografia de Paulo Freire.

Paulo Freire é, sem dúvida alguma, um educador humanista e militante. Em concepção de educação parte-se sempre de um contexto concreto para responder a esse contexto. Em Educação como prática da liberdade, esse contexto é o processo de desenvolvimento econômico e o movimento de superação da cultura colonial nas ‘sociedades em trânsito’. O autor procura mostrar, nessas sociedades, qual é o papel da educação, do ponto de vista do oprimido, na construção de uma sociedade democrática ou ‘sociedade aberta’. Para ele, essa sociedade não pode ser construída pelas elites porque elas são incapazes de oferecer as bases de uma política de reformas. Essa nova sociedade só poderá se constituir como resultado da luta das massas populares, as únicas capazes de operar tal mudança

O diálogo proposto pelas elites é vertical, forma o educando-massa, impossibilitando-o de se manifestar“

De cara se reconhece a dicotomia que é a pedra angular da retórica marxista: colonizador X colonizado, oprimido X opressor, elite X massa. Ou colocando em outras palavras, nós X eles, inocentes X culpados, bons X maus. Não há categorias intermediárias. Ao enunciar a “educação como prática de liberdade”, fica implícito que a educação (ou deseducação) proporcionada pelas elites é responsável por manter o “oprimido” em seu estado de alienação, impedido de se manifestar.

Sua obra Pedagogia do oprimido completaria suas concepções pedagógicas acerca das diferenças entre a pedagogia do colonizador e a pedagogia do oprimido. Nela, sua ótica de classe aparece mais nitidamente: a pedagogia burguesa do colonizador seria a pedagogia ‘bancária’. A consciência do oprimido, diz ele, encontra-se ‘imersa’ no mundo preparado pelo opressor; daí existir uma dualidade que envolve a consciência do oprimido: de um lado, essa aderência ao opressor, essa ‘hospedagem’ da consciência do dominador — seus valores, sua ideologia, seus interesses — e o medo de ser livre e, de outro, o desejo e a necessidade de libertar-se. Trava-se, assim, no oprimido, uma luta interna que precisa deixar de ser individual para se transformar em luta coletiva: ‘ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão’

Afirma Paulo Freire, a pedagogia “burguesa” maliciosamente traria uma mensagem subliminar exortando o educando (o “oprimido”) a se conformar com o seu estado de opressão (hospedar o opressor dentro de si). A educação “libertadora” o levaria a rebelar-se contra o opressor.

A partir da tese sobre a relação entre a educação e o processo de humanização, Paulo Freire caracteriza duas concepções opostas de educação: a concepção ‘bancária’ e a concepção ‘problematizadora’

Na concepção bancária (burguesa), o educador é o que sabe e os educandos, os que não sabem; o educador é o que pensa e os educandos, os pensados; o educador é o que diz a palavra e os educandos, os que escutam docilmente; o educador é o que opta e prescreve sua opção e os educandos, os que seguem a prescrição; o educador escolhe o conteúdo programático e os educandos jamais são ouvidos nessa escolha e se acomodam a ela; o educador identifica a autoridade funcional, que lhe compete, com a autoridade do saber, que se antagoniza com a liberdade dos educandos, pois os educandos devem se adaptar às determinações do educador; e, finalmente, o educador é o sujeito do processo, enquanto os educandos são meros objetos

A educação bancária tem por finalidade manter a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os oprimidos e opressores. Ela nega a dialogicidade, ao passo que a educação problematizadora funda-se justamente na relação dialógico-dialética entre educador e educando; ambos aprendem juntos

Paulo Freire define como “bancária” a pedagogia burguesa, comparando os educandos a meros depositários de uma bagagem de conhecimentos que deve ser assimilada sem discussão. Paradoxalmente, esta modalidade de educação teria como objetivo não equalizar os conhecimentos entre educador e educando, mas sim “manter a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os oprimidos e os opressores”. O educador é necessariamente um opressor.

A partir dessa sua prática, criou o método, que o tornaria conhecido no mundo, fundado no princípio de que o processo educacional deve partir da realidade que cerca o educando. Não basta saber ler que ‘Éva viu a uva’, diz ele. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.

Para Paulo Freire, o alto índice de analfabetismo que caracteriza as regiões rurais miseráveis não seria parte de uma síndrome de pobreza e atraso, mas uma condição deliberadamente imposta pelas elites para manter o povo em um estado de ignorância, e desta forma eternizar seu domínio sobre ele. Cumpre esclarecê-lo sobre a sua situação de “oprimido” e a causa desta “opressão”. A educação só terá valor se conduzir os educandos coletivamente à rebelião contra este estado de coisas.

Isto tudo é uma mistificação tão óbvia que a vontade é parar por aqui mesmo, já que a fragilidade dos argumentos e a real intenção pragmática destes “educadores” fica patente a qualquer um que não queira ser enganado por sua livre e espontânea vontade. Mas já que comecei, disponho-me a apontar uma a uma as contradições e as distorções da teoria e do método Paulo Freire.

A primeira falha que aponto é a ausência de uma definição explícita de “oprimido” e “opressor”, termos que Freire emprega desde a primeira linha, mas cujo sentido só é percebido pelo contexto: o oprimido é o pobre analfabeto, aquele que deve ser educado, e o opressor é, por exclusão, todos os demais. Entretanto, sabe-se que a palavra “pobre” é mais usada como substantivo do que como adjetivo, designando um status permanente, enquanto “oprimido” é um adjetivo que expressa uma situação ocasional de opressão. Ao tornar um substantivo sinônimo de um adjetivo, Freire está afirmando que é a opressão que causa a pobreza. O pobre (substantivo) é pobre (adjetivo) porque é oprimido; não fosse oprimido ele não seria pobre. O estado natural da humanidade supostamente seria o da abastança; é a “opressão” que cria o pobre. Eliminando-se a opressão, todos retornariam a este estado natural feliz de abastança. Mas que fatos e números comprovam esta tese? Toda pobreza é resultado da opressão? Ou existe pobreza causada por fatores puramente estruturais, como a insuficiência dos meios de produção? Os ricos também podem sofrer opressão, e os pobres também podem ser de algum modo opressores? Estas questões não são respondidas. E se, após eliminar-se a “opressão” mediante uma revolução, ainda assim o quadro de miséria persistir, desta vez por mera insuficiência dos meios de produção? Teria-se que decidir se o papel de “opressor” agora cabe ao subsolo, que não produziu minérios, à nuvem que não choveu em cima da plantação, ou à constante gravitacional G, que é pequena e não permite que a usina gere muita eletricidade...

Logo de saída, há uma enorme contradição na argumentação de Freire. Ele afirma que o quadro de miséria e opressão é resultado da educação burguesa “bancária”, que conteria uma mensagem subliminar incitando o povo a se submeter às elites. Mas se a massa de “oprimidos” é analfabeta, e por conseguinte nunca recebeu educação alguma, burguesa ou não, como pode ser estabelecida esta relação causa-efeito? Se a educação “bancária” é geradora de miséria e opressão, devemos concluir que, ao menos para aquele grupo de pobres analfabetos com quem Freire trabalhava, não foi ela a responsável por causar sua miséria, uma vez que eles nunca tiveram educação alguma. E os poucos que puderam freqüentar a escola e se tornaram objetos da educação burguesa, o que aconteceu com eles? Tornaram-se ainda mais pobres e conformados com sua situação de oprimidos? Dá vontade de imaginar uma professorinha primária do nordeste saindo de manhã cedo para trabalhar, percorrendo os caminhos a dar risadas sarcásticas, antegozando o resultado de seu projeto maquiavélico de transformar os filhos dos agricultores em adultos dóceis, e assim perenizar o poder da riquíssima oligarquia à qual ela pertence... Como uma professorinha que ganha um salário de poucos tostões pode ser considerada parte de uma elite, é questão que Freire não está preocupado em responder.

E além disso, de que modo uma mensagem relativamente complexa, que incita ao conformismo e afirma a legitimidade das autoridades, pode ser camuflada em meio ao bê-á-bá e ao 2+2=4? Uma mensagem assim só é concebível no ensino médio, em uma matéria como História, Moral e Cívica e OSPB, na qual um professor distorça fatos para afirmar a excelência dos governantes e a necessidade de se obedecer a eles. E de fato, diversos regimes totalitários em diferentes épocas já se utilizaram deste expediente para doutrinar a juventude. Mas um aluno que conseguiu atingir o ensino médio é alguém prestes a se formar e a se habilitar a um emprego, alguém que sabe ler jornais e noticiários, e desta forma tem condições de perceber quando o professor lhe ensina uma falsidade. Uma pessoa assim ainda pode ser considerada “oprimida”? A princípio, este rótulo só caberia ao camponês analfabeto miserável.

Freire taxa a educação burguesa de “bancária”, reduzindo o aluno a mero depositário de ensinamentos, e propõe a educação “problematizadora” fundada na dialogicidade. “Na concepção bancária (burguesa), o educador é o que sabe, e os educandos, os que não sabem”, afirma Paulo Freire. Ninguém definiu melhor o que é um professor e o que é um aluno. O professor é o profissional que sabe uma coisa que o aluno não sabe, e seu trabalho consiste justamente de passar-lhe este conhecimento, ou “depositar” este conhecimento no aluno, como preferir. A educação “bancária” é, simplesmente, o único tipo de educação que existe. Evidente que o professor não é o dono da verdade, e tudo aquilo que hoje é Ciência um dia já foi experiência e elucubração, produto do trabalho de alguém que era um ser humano falível, como eu e você. Assim sendo, toda matéria ensinada na escola necessariamente tem tópicos polêmicos e questões em aberto, e inclusive é obrigação do bom professor chamar a atenção de seus alunos para estes pontos e incitar a discussão e o debate em torno deles. Mas, como qualquer professor sabe, o debate só será proveitoso após os alunos haverem atingido um nível mínimo de aprendizado, que os permita, inclusive, compreender as falhas teóricas e práticas que tornam aqueles pontos discutíveis. Até este nível ser atingido, a educação é “bancária”, e não pode ser diferente.

Freire afirma que a “libertação” através da educação só é válida se for um esforço coletivo: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Mas no entanto, é difícil conceber ato mais individual do que a descoberta. A descoberta ou o entendimento de um dado fato nunca é coletiva, pois os indivíduos tem percepções diferentes e interpretações diferentes: cada um tem a sua versão e o seu entendimento. Um professor cuja proposta não é ensinar, mas sim levar o aluno a um estado de “esclarecimento”, na verdade comete um estelionato: ele está passando ao aluno um pacote de conclusões previamente tiradas, ao mesmo tempo que dá ao aluno a ilusão de que é ele mesmo que está tirando aquelas conclusões. A função (honesta) do professor é ministrar ensinamentos de forma neutra e não-tendenciosa, de modo que o aluno tenha condições de entender aquilo que observa a sua volta, e desta forma tirar suas próprias conclusões e chegar a seu próprio estado de esclarecimento. Mas, como bem o sabem os políticos de palanque, os pastores de certas igrejas evangélicas e os animadores de programas de auditório, a ignorância torna o indivíduo impressionável, e tendo-se um pouco de magnetismo pessoal, não há dificuldade alguma em colocar uma multidão de ignaros a berrar palavras-de-ordem, slogans religiosos ou simplesmente idiotices. Bem mais difícil é fazer isto com um grupo de pessoas cultas, pois estas pessoas, tendo sido objeto da educação burguesa “bancária”, efetivamente se libertaram da ignorância que predispõe à manipulação. Freire e outros educadores marxistas vislumbraram uma oportunidade única de ministrar mensagens revolucionárias em larga escala, disfarçadas em uma educação “problematizadora” onde o assunto das aulas é a opressão dos latifundiários. Difícil conceber situação mais cômoda: aqueles indivíduos, sendo analfabetos miseráveis, eram rebeldes em potencial; eles nem precisavam ir ao encontro destes, estes é que vinham a seu encontro nas salas de aula; e para cúmulo, era o próprio governo que estava pagando para que eles preparassem a revolução! Como se sabe, as coisas não correram como eles planejavam, e Freire teve que se contentar em sair pelo mundo a comover as platéias internacionais com as suas boas intenções. O triste é saber que, na mesma época em que Freire urdia seus modelos teóricos sobre Educação, um outro povo também subdesenvolvido — os sul-coreanos — simplesmente pegavam no livro e estudavam, sem querer saber se a educação deveria ser “bancária” ou “problematizadora”.


 

A Cultura e a Riqueza das Nações

Uma assertiva instigante (e eventualmente irritante), que volta e meia aparece tanto em crônicas despretensiosas quanto em ensaios ambiciosos, é aquela que diz que a causa profunda da riqueza (ou da pobreza) das nações encontra-se na cultura da população. A cultura poderia favorecer ou não a prosperidade; a abastança seria, então, o produto de uma determinada atitude da parte do povo em geral. Isto é pura dinamite. Dificilmente alguém concordaria que sua cultura predispõe à preguiça e à ineficiência; a pressuposição de que uma cultura seja superior à outra parece preconceituosa, alguns diriam até racista. E a pergunta permanece irrespondida: qual é, afinal, o motivo de uns serem ricos e outros serem pobres?

Dizer que as causas são “muitas” seria redundante. Na verdade, nada está mais distante de ser explicado do que quando as causas alegadas são numerosas. Pois, se para produzir um dado efeito, é necessário somar uma profusão de causas distintas e não relacionadas entre si, então a contribuição individual de cada uma destas causas deve ser coisa tão ínfima, que é inevitável especular se ela é significativa, ou se o agente causal do fenômeno que tentamos explicar não seria, em realidade, algo completamente diferente. Qual seria o verdadeiro papel da cultura do povo na produção de riqueza? É agente determinante ou pequeno fator marginal?

Na era tecnológica em que vivemos, é óbvio que o alto grau de instrução das populações dos países ricos é a verdadeira causa de sua riqueza: crianças bem educadas tornam-se técnicos e administradores competentes. Há aqui uma relação entre cultura e riqueza, mas isso não responde à pergunta formulada, pois se está colocando o carro na frente dos bois: as pessoas têm boa escolaridade porque, antes, alguém construiu as escolas e os institutos de pesquisa, e deu-lhes condições para que pudessem se dedicar ao estudo ao invés de ter que ganhar a vida trabalhando precocemente. Ademais, a bagagem de conhecimentos adquiridos na educação formal constitui apenas um dos aspectos da cultura, termo que, em seu sentido mais amplo, designa todo um sistema de crenças, valores e costumes, praticados não por um indivíduo, mas por toda uma comunidade. É possível que haja alguma relação entre os valores morais abstratos e os prosaicos hábitos do dia-a-dia praticados por uma geração que viveu 500 anos atrás, e a atual situação de abastança da geração presente de um país rico? Difícil provar. Há também algo de desapontador em se creditar tanto poder à massa de cidadãos anônimos. A maioria das pessoas gosta de imaginar que a glória das nações provém de heróis que surgiram em momentos cruciais da história e conduziram seus países em direção à liberdade, ao poder e à prosperidade — ou pelo menos é assim que o assunto é tratado na maioria dos compêndios de história. A discussão é antiga. Uma corrente afirma que são os heróis que fazem a história, outra corrente afirma que a história é que faz os heróis. Segundo os primeiros, se Napoleão Bonaparte fosse alguns centímetros mais altos, não teria necessidade de compensar seu complexo de inferioridade, e ao invés de imperador teria sido um pacato oficial de província. Os segundos afirmam que na verdade pouco importa quem houvesse tomado o poder na França daquela época, pois ele teria sido forçado, pelas circunstâncias, a fazer mais ou menos o mesmo que Napoleão fez.

Aplicando essas hipóteses a um horizonte de vários séculos sucessivos, poderíamos afirmar que as nações hoje bem-sucedidas foram aquelas que, no passado, tiveram a sorte de ter líderes que tomaram as decisões corretas, generais que ganharam as batalhas? Mas que fator é esse que predispõe ao sucesso, com uma freqüência tal que é excluída a possibilidade de simples coincidência? É nesse quadro que surge a Teoria da Superioridade Racial (eugenia), hoje repulsiva, mas no passado bastante popular. Se a raça é, ou parece ser, uma característica compartilhada por múltiplas gerações de um mesmo povo, por que não atribuir a este fator o sucesso ou fracasso deste povo na história? Esta diferenciação aplicou-se, sobretudo, a brancos e pretos, os primeiros apresentados como senhores da civilização, os segundos como bárbaros primitivos, mas uma superioridade racial foi também apontada em relação a amarelos e índios, bem como judeus, mouros, ciganos, latinos e eslavos. Até o primeiro quarto do século XX essa era a idéia dominante e crença do cidadão comum. Expressar esta opinião era, então, ser moderno, “científico” e avesso a crenças supersticiosas (antes dessa época os europeus costumavam fundamentar sua superioridade em razões místicas, como afirmar que os índios “não tinham alma”, ou que, sendo cristãos, teriam sido “escolhidos por Deus”). Entretanto, jamais se provou cientificamente a superioridade de uma raça sobre a outra, e o próprio conceito de raça é posto em dúvida por alguns cientistas (todos os humanos pertencem à mesma espécie, e os caracteres raciais são secundários). O trauma que se seguiu ao nazismo e ao massacre de populações inteiras na segunda guerra contribuiu para anatematizar de vez, entre os pesquisadores éticos, a pseudociência da eugenia, que não desapareceu em definitivo mas tornou-se terreno de charlatões. Um outro fato também desmente esta teoria: os países que hoje se incluem no grupo dos ricos já foram, alguns séculos atrás, lugares acanhados e periféricos. A Europa de 600 anos atrás, por exemplo, era inferior econômica e culturalmente ao mundo árabe e à China. Se existisse uma superioridade racial, ela deveria ter se manifestado durante toda a história, pois em tese, a raça não muda com o tempo.

Há também os que creditam a riqueza e a pobreza das nações, não a fatores humanos, mas a fatores meramente físicos e geopolíticos: o clima, a topografia, a produção mineral, a localização estratégica de portos e cidades, o domínio de rotas comerciais. Cresceriam economicamente os povos que tivessem a sorte de ter estes fatores a seu favor; quem não tivesse, estaria condenado ao atraso, não importa o que o povo fizesse ou deixasse de fazer. Então, as pessoas não seriam mais que formigas em um formigueiro, e tudo dependeria de fatores físicos externos e incontroláveis? Bem, há casos e casos. Quinze séculos antes de Cristo, a civilização minóica, na ilha de Creta, era a mais notável do Mediterrâneo, como comprovam os relatos e os achados arqueológicos. Em 1.470 a.C., o vulcão da ilha de Thira explodiu, produzindo um maremoto que arrasou o centro da civilização minóica, localizado a apenas 100 quilômetros de distância. Temos aí um exemplo de que a derrocada de uma civilização deveu-se a fatores inteiramente naturais — mas trata-se de um caso extremo. Os fatores naturais influenciam, sem dúvida, mas o exame mais atento mostra que seu alcance não é tão grande quanto se pensa. Um bom exemplo é a questão do clima: uma rápida olhada no mapa-mundi mostra que não existe absolutamente nenhum país rico situado entre os trópicos — e cumpre notar que os trópicos compreendem uma região imensa, com uma variedade enorme de ambientes e culturas. Parece lícito atribuir este contraste ao clima, que aparentemente beneficiaria as populações do norte, de clima mais frio. E de fato, na Europa Ocidental, este gradiente clima X riqueza é tão flagrante que pode ser notado até dentro das fronteiras de um mesmo país — seja o napolitano ou o milanês, o catalão ou o castelhano, o inglês ou o escocês, o bávaro ou o prussiano, um estereótipo se repete: o habitante do norte é sempre mais rico que o sulista, e ao mesmo tempo é visto como mais sério, diligente e dedicado ao trabalho. Se, no entanto, o eixo norte-sul for trocado pelo eixo leste-oeste, o padrão é rompido. A Europa Oriental é mais fria que a ocidental, e aplicando-se a lógica, deveria ser, também, mais rica. No entanto, é mais pobre — e isto já ocorria antes dela ser anexada à cortina de ferro. O exemplo da Europa Oriental invalida de forma cabal a teoria que vincula frio e riqueza, mas isso quase não é notado, pois o fenômeno tornou-se extraordinariamente familiar nos últimos séculos: com o domínio mundial europeu, os colonos escolheram para povoamento as terras onde o clima era semelhante àquele que estavam acostumados, e relegaram as terras mais quentes próximas ao equador a monoculturas baseadas em trabalho escravo — e desta forma, o contraste norte-rico-sul-pobre foi exportado para o planeta inteiro.

Mas esta questão merece ser melhor examinada, pois parece ocultar uma explicação que pode ser a chave do que estamos procurando. Por que, a partir do século XVII, a Europa setentrional começou a tornar-se mais rica, se até então a Europa meridional tinha sido o local onde estavam o comércio, as idéias e os banqueiros? O que teria mudado?

A melhor explicação foi a apresentada pelo cientista social Max Weber, ao publicar, em 1904, o ensaio intitulado “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, obra hoje em dia meio esquecida e alvo de furiosas refutações. Weber identificou no protestantismo, em especial suas ramificações calvinistas, a base da ascensão do capitalismo moderno. As atividades comerciais e bancárias tinham severas restrições sob o catolicismo, mas eram permitidas aos protestantes e judeus. Isto já era sabido, mas Weber apontou um fator ainda mais importante: a ética protestante. As diferenças entre catolicismo e protestantismo, em seus aspectos puramente teológicos e vistos por uma ótica leiga, parecem uma coleção de trivialidades: se Cristo estaria ou não de corpo presente na eucaristia, se a Virgem Maria deveria ou não ser objeto de culto, se a salvação depende da fé ou das obras, se o culto aos santos é ou não idolatria. Mas os aspectos éticos e morais, derivados da nova crença religiosa, acabaram surtindo efeitos não-planejados no comportamento e no destino de seus adeptos. A ética protestante favorecia o trabalho perseverante, a honradez nos negócios e a poupança, e condenava todo ganho que não fosse derivado do trabalho. A boa situação financeira era vista como uma recompensa divina ao justo, e a pobreza material era vista como um sinal de pobreza moral. Os calvinistas eram parcimoniosos e vestiam-se de maneira austera, muito embora fossem mais ricos que a média dos cidadãos. Os protestantes traduziram a bíblia do latim para as línguas faladas na época, e encorajaram a alfabetização, para que todos pudessem ler a bíblia. A tese de Max Weber é: o protestantismo não só criou uma nova religião, mas também uma ética de comportamento cotidiano que conduzia ao sucesso nos negócios pessoais. Enfim, não moldou meia-dúzia de líderes políticos ou religiosos, mas toda uma massa de cidadãos anônimos, tornando-os mais produtivos, austeros e libertos dos preconceitos morais que incidiam então sobre as atividades comerciais. O efeito, a longo prazo, desta nova conduta de milhões de cidadãos, viria a ser o enriquecimento das regiões onde eles preponderavam — muito embora promover o enriquecimento e a justiça social jamais houvesse sido o objetivo original dos reformadores protestantes. O protestantismo implantou-se na Europa ocidental, especialmente ao centro e ao norte — e foi este, e não o clima, o motivo de serem estas regiões mais ricas que as outras.

Se há um ponto de inflexão entre a queda da Europa católica e a ascensão da Europa protestante, este ponto se encontra no ano de 1633, mais precisamente no dia em que Galileu Galilei compareceu perante o Santo Ofício para retratar-se de sua teoria herética, que afirmava que a Terra não era imóvel, mas girava em torno do sol, supostamente contrariando as sagradas escrituras. Em que grau este acontecimento específico alterou o mundo de então? Na verdade, em grau nenhum. Para a esmagadora maioria dos contemporâneos de Galileu, o caso de a Terra ser imóvel ou girar em torno do sol era uma questão teológica que não lhes dizia respeito, e a condenação de Galileu não afetou a vida nem os negócios de ninguém. O caso, entretanto, é emblemático: ficava patente a oposição da Igreja Católica à ciência e à aquisição de cultura em geral, e isso viria a ser desastroso para uma era em que o sucesso comercial tornava-se cada vez mais vinculado ao aprendizado de técnicas, ao espírito crítico e à inventividade (muito embora ninguém fosse capaz de prever isso no tempo de Galileu). A união final entre Ciência e Técnica — isto é, o nascimento da Era Tecnológica propriamente dita — só seria concretizada ao final da Revolução Industrial, na última década do século XIX, com a criação de uma equipe permanente de cientistas assalariados pela indústria química alemã (antes disso não havia qualquer relação óbvia entre Ciência e Técnica; a primeira era restrita aos meios acadêmicos, e a segunda consistia de um conjunto de conhecimentos empíricos passados de geração em geração pelas guildas de artesãos). Esse processo, contudo, já se encontrava em curso desde a invenção da imprensa no século XV. Prosperavam os países que tinham população mais educada, mais livros circulando, mais produção e disseminação em larga escala de conhecimentos vários — ou seja, prosperavam os países protestantes.

Ainda assim, a idéia de que a mera atitude de milhões de cidadãos anônimos possa moldar o futuro e alçar seu país à liderança — seja tecnológica, econômica, militar — é repudiada por muita gente. Compreende-se: isto implica reconhecer que os hábitos culturais de outros são “superiores” aos seus próprios, que uns estão certos e outros errados, que existem vencedores e perdedores. Mas como pode uma cultura ser superior a outra? Como reles hábitos da vida privada podem gerar a longo prazo conseqüências macro — políticas, econômicas? Segundo os adeptos do relativismo cultural, teoria muito em voga nos dias de hoje, e que veio de carona com a mania do politicamente correto, não faz qualquer sentido comparar duas culturas, pois não há parâmetros para comparação. O que é “superior”, tomar café ou chá? Comer com garfo ou com dois pauzinhos? Rezar a Jesus ou a Maomé? Comer carne ou vegetais? Eu concordo que, para a esmagadora maioria dos casos, não há mesmo qualquer termo de comparação entre costumes que não são nem melhores nem piores do que outros, apenas diferentes. Mas existem determinados hábitos e crenças que produzem, sim, conseqüências a longo prazo. O único termo de comparação que deve ser aceito é: se um costume tende a ser adotado por comunidades que antes o repudiavam, então este costume é de fato superior, no sentido que produz vantagens visíveis a quem o pratica. Apenas um exemplo: séculos atrás os cristãos na Europa não tinham o costume de tomar banho, então considerado hábito ruim e pecaminoso, enquanto que os judeus e muçulmanos tomavam banho regularmente por prescrição religiosa. Se hoje em dia ninguém duvida de que a higiene é essencial, então temos que admitir que o hábito cultural de lavar-se é superior ao hábito cultural de permanecer sujo.

Outra objeção feita à influência da cultura como fator determinante do futuro é que, sendo os hábitos culturais restritos à esfera da vida privada, eles não podem surtir conseqüências macro — isto é, não podem transparecer na esfera da vida política e econômica de sociedades inteiras. Eu afirmo o contrário, e citarei um exemplo. No século XVI, o império otomano era a principal potência européia, o estado mais sólido em um continente onde os estados-nações mal começavam a se constituir. Mas sofria de um problema grave — as guerras de sucessão. Explica-se: a religião muçulmana permitia a poligamia, e os sultões tratavam de ter muitas esposas e filhos, como forma de garantir que sucessores não faltariam. Mas como apenas um deles podia assumir o poder, cumpria-lhe a tarefa de matar os irmãos. Desnecessário dizer que isso implicava em uma guerra a cada vez que morria o soberano, com conseqüente desgaste para o reino e desafogo para os países cristãos ameaçados pelo poderio dos otomanos. Um sultão tentou achar uma solução para o impasse, e determinou que, a partir de então, não se mataria mais os príncipes que não fossem herdeiros do trono — ao invés disso, eles seriam confinados em uma sala do palácio (a sala existe até hoje no palácio Topikapi, em Istambul). E assim foi feito. Quando ele faleceu, o filho mais velho foi entronado, e seus irmãos foram confinados. Mas o novo herdeiro viveu pouco tempo, morrendo sem descendentes, e foram buscar o segundo na sucessão na sala onde se encontrava preso junto com os irmãos. Até aí tudo bem. Só que o rapaz, em razão do longo confinamento, tornara-se demente. Seu reinado foi um desastre, assim como seria o de vários que vieram em seguida, precipitando a decadência do império otomano. Aí está um exemplo em que um costume (a poligamia), embora do âmbito da vida privada, teve conseqüências políticas bem palpáveis. Aliás, o maior sultão da história turca, Solimões o Magnífico, foi (não coincidentemente) o único de todos que era filho único.

Acredito firmemente que é a cultura o fator determinante do sucesso e do fracasso das nações. Houve no passado o exemplo dos protestantes, cuja ética conduziu-os à prosperidade, e nos dias de hoje temos o exemplo do confucionismo, que está por trás da arrancada econômica dos países asiáticos conhecidos como “tigres”. A ética confucionista é, não coincidentemente, bastante análoga à ética protestante: também favorece o trabalho árduo, a parcimônia, a honradez, a poupança. O índice de poupança dos habitantes de Taiwan e Coréia é da ordem de 25% da renda, enquanto entre nós não passa de 10%. Pode-se dizer que nos dias de hoje eles já dispõem de uma situação financeira mais folgada, que lhes permite poupar. Mas este nível de poupança já ocorria desde os anos 60, época em que todos os países asiáticos hoje emergentes eram muito mais pobres do que a América Latina. Pode-se afirmar, sem erro, que esse pendor para a poupança é algo inserido na cultura dessa gente, e não uma decorrência de uma situação favorável. É aí que a cultura faz a diferença. Outro motivo que me faz crer na supremacia do fator cultural é que esta é a única explicação para o fato de que, mesmo com percalços, o mundo está mudando para melhor, certos erros do passado não são reeditados no presente, e bem ou mal existe hoje uma consciência crítica bem mais aguçada, que faz com que os crimes perpetrados por um governante local sejam alvo de julgamento internacional, e as instituições reconhecidamente benéficas, criadas por um conjunto de nações, sejam copiadas por outros povos. Não seria esse o quadro em um mundo onde houvesse raças superiores, e todo o destino do indivíduo fosse determinado por sua embriologia; nem seria assim em um mundo onde os cidadãos fossem simples massa de manobra, e todo o destino das nações fosse determinado pelas sortes e azares dos grandes líderes; tampouco seria assim em um mundo onde o trabalho e o estudo não valessem nada, e toda a prosperidade fosse determinada pela posse de jazidas minerais, o domínio de portos estratégicos e o controle sobre rotas comerciais. A preponderância do fator cultural cria um eixo e confere um sentido à evolução da humanidade: nem as pessoas nem as culturas são equivalentes; uns tem mais sucesso e outros fracassam, uns perdem e outros ganham, uns são repudiados e outros são copiados. A capacidade de reconhecer e adotar aquilo que, embora alienígena, é melhor, mais justo ou mais eficiente, determina quem vai progredir e quem vai estagnar. Difícil mesmo é reconhecer que o vizinho pode ser melhor do que você...


 

América “Latina”?

Há certas denominações que nos soam familiares, que nos acostumamos a ouvir e repetir desde que nos entendemos por gente, que sabemos bem o que querem dizer e que nos parecem de uma verdade cabal e cristalina. É o caso da expressão “América Latina” como sinônimo de América do Sul. O que há de errado nela? É uma identidade cultural que corresponde a um lugar geográfico, e pronto. Como, entretanto, muitas vezes as palavras não são mero instrumento de codificar idéias, mas trazem em si um significado pré-concebido que pode não corresponder ao que desejamos exprimir, cumpre aqui fazer uma pausa e verificar: o que queremos realmente dizer?

Aparentemente, quando nos referimos a esta parte do mundo como América Latina, queremos dizer que ela integra uma suposta civilização latina multinacional. Faz algum sentido. Esta parte do continente foi colonizada pelos países ibéricos, que são considerados nações latinas porque compartilham determinadas tradições, como a língua, herdadas do antigo Império Romano do Ocidente. Os norte-americanos referem-se aos sul-americanos como latinos, e simetricamente, a América do Norte deveria ser chamada de “América Anglo-Saxônica” (mas na prática não o é) em razão da sua origem. Mas afinal, até que ponto esses rótulos possuem alguma verdade histórica e sociológica?

Comecemos por levantar o sentido original da expressão “povo latino”. Os latinos antigos eram os habitantes do Latium, região da Itália central, cuja língua falada era o latim e cuja capital era Roma. Convencionou-se chamar de latinos aos povos originados da desintegração do Império Romano do Ocidente: Portugal, Espanha, França, Itália, parte da Suíça, parte da Bélgica e Romênia. Como conseqüência de sua origem comum, estes povos nos dias de hoje compartilham algumas características, como a língua derivada do latim, a religião católica romana, e outros aspectos menores. Mas é uma identidade muito vaga: um português não tem muita semelhança com um belga, nem um francês tem muita semelhança com um romeno; na verdade, ele não se parece muito nem com um suíço-francês. Pergunto-me, então: se esta identidade já tem um sentido tão vago em seu local de origem, por que ela continua sendo aplicada com tanta ênfase à América do Sul, lugar onde os colonos europeus foram apenas um dos componentes no caldeirão de misturas, entre povos nativos, africanos, orientais e europeus não-latinos?

De antemão, que se pode concluir é que, se esta denominação é tão disseminada por aí afora, certamente que tem algum valor expressivo. Examinando a história: o termo surgiu pela primeira vez em meados do século XIX, época em que o imperador Napoleão III nutria ambições imperialistas na América Central, tendo já invadido o México e colocado no poder um títere, o imperador Maximiliano. É claro que este novo domínio, esta “América Latina” deveria ser regida pela França, a mais importante nação latina. Como se sabe, Napoleão III abdicou após a derrota na guerra franco-prussiana, e logo em seguida Maximiliano foi derrubado e fuzilado, sepultando de vez o sonho de uma América francesa. Mas o nome pegou. Houve um motivo para isso: ele era uma boa solução para o problema criado pela ambigüidade do termo “América”, que designava tanto um uma expressão geográfica (o continente) quanto uma expressão política (os americanos chamam seu país de Estados Unidos da América). Desta forma, na terminologia de jornalistas e historiadores, América Latina passou a ser a denominação de qualquer lugar no continente americano que não estivesse integrado política ou culturalmente aos EUA. Ou seja, todo o resto.

Mas se isso resolveu um problema para os norte-americanos, criou outro problema para nós. Pegar dezenas de países em um enorme continente, e colocar todos sob um rótulo “América Latina”, é enfiá-los em um saco de gatos. Fica assim criada a expectativa — falsa — de que todos os sul-americanos são estritamente análogos. É isto o que acreditam os norte-americanos, que chamam de latino a qualquer índivíduo que vem do sul do Rio Grande; é isto também o que nós, eventualmente, queremos acreditar. Mas que identidade é essa que, supostamente, compartilhamos? A maioria dos países sul-americanos são “melting-pots”, onde os latinos são apenas um dos componentes da mistura. O que, por exemplo, tem de comum o Brasil e o Peru? Foram partes de impérios diferentes, seus povoadores vieram de diferentes partes do mundo, seus povos nativos pertenciam a etnias completamente distintas. Brasileiros e peruanos sequer falam a mesma língua. Os países sul-americanos não são iguais aos do sul da Europa, nem tampouco são iguais uns aos outros. Um argentino considera-se mais aparentado com um europeu do que com um brasileiro. Nós, brasileiros, viajamos com mais freqüência para a Flórida do que para qualquer um de nossos vizinhos sul-americanos. Apesar disso tudo, a ilusão de uma “América Latina” culturalmente homogênea continua forte nos dias de hoje. A pressuposição de uma estrita equivalência entre todos os latino-americanos é o ponto de partida para toda sorte de análises errôneas e abordagens equivocadas, seja no terreno da economia, da política ou da sociologia. A crise da Argentina faz desabar a credibilidade da Venezuela, e vice-e-versa. Conforme apontou João Ubaldo Ribeiro, também a literatura dessa parte do mundo é rotulada nas bibliotecas e universidades estrangeiras como “Literatura Latino-Americana”. Como se este rótulo fizesse mais sentido que “Literatura Européia” ou “Literatura Africana”, ou se as obras de Vargas Llosa, Jorge Amado e Jorge Luis Borges fossem análogas apenas porque estes autores nasceram no mesmo continente. João Ubaldo também estranhou: por que as estantes de literatura latino-americana não trazem também obras de autores franco-canadenses de Quebec? Afinal, eles também são latinos.

É verdade que, para muitos sul-americanos, a idéia de um “bloco latino-americano” é reconfortante. Dá uma idéia de coesão, de identidade, de oposição ao bloco anglo-americano. Alguns líderes políticos chegam a levar a sério a ilusão, como o revolucionário romântico Che Guevara, que, vitorioso em Cuba, foi para a Bolívia propagar a revolução, perfeitamente convencido de que cubano e boliviano era tudo a mesma coisa. Não era. Para muitos europeus e norte-americanos, igualmente, a ficção de uma “civilização latino-americana” é uma solução conveniente para extirpar estes países terceiro-mundistas do Bloco Ocidental, que assim pode apresentar-se ao mundo como contendo apenas países desenvolvidos. Coisa análoga ao que era feito até pouco tempo atrás com o sul da Europa, pobre e atrasado, que os habitantes do norte relutavam em aceitar como parte de seu mundo, e alguns ainda dizem que a África começa em Roma (ou nos Pirineus). Mas na América do Sul, mais distante, é mais fácil por a imaginação a funcionar. Desta forma, também, atende-se ao desejo do cidadão comum dos países do norte, que gosta de imaginar a América do Sul como exótica, peculiar, selvagem, plena de vigorosas culturas nativas e intocada pela civilização ocidental. Uma boa quantidade de imagens de índios e onças sepulta a desagradável evidência de que o Mundo Ocidental pode, sim, conter países subdesenvolvidos.


 

O Sucesso das Nações

O assunto que abordei em meu artigo A Cultura e a Riqueza das Nações está longe de se esgotar. Na verdade, penso que apenas arranhei a superfície. Identificar a verdadeira causa do sucesso de uns e do fracasso de outros significa obter, ao menos, uma pista para explicar porque esta parte do mundo continua presa no marasmo e na pobreza.

Para quem conhece um pouco de História Geral, exemplo é o que não falta. Há civilizações que emergiram e submergiram, impérios que unificaram e desmembraram-se, povos de história milenar que sobreviveram a todas as intempéries, e hoje são ricos; povos de história milenar que sobreviveram a todas as intempéries, e hoje são pobres; países novos e bem sucedidos, projetos de nações fracassados que explodiram em guerra civil, dúzias de países sem passado e de futuro incerto, civilizações que estiveram no topo durante séculos, e decaíram lentamente; e civilizações que simplesmente desapareceram sem deixar rastro. Há 600 anos atrás, o mundo possuía 8 pólos de poder, ou civilizações: A Europa Cristã, o Império Otomano, o Mundo Árabe, a Índia, a China, o Japão, o Império Asteca e o Império Inca. Haveria, então, elementos que, analisados, permitiriam prever que a Europa iria preponderar sobre todos os demais? Difícil dizer. Como é difícil dizer, hoje, se o ocidente conhecerá mais um século de liderança ou se passará o bastão para os países do leste da Ásia. Pode-se tirar alguma lição, extrair alguma ordem deste caos? Há leis gerais, ou um mínimo de coerência?

Sim, com paciência e imparcialidade, pode-se tirar algumas conclusões. A quem deseja se aprofundar neste tópico, eu recomendo duas obras: Armas, Germes e Aço, de Jares Diamond; e A Riqueza e a Pobreza das Nações, de David Landes. O primeiro aborda um período de sete mil anos, e procura explicar porque certos povos ingressaram na revolução agrícola, enquanto outros permaneceram como coletores-caçadores, e porque certas nações ingressaram na revolução industrial, enquanto outras permaneceram agrícolas. O segundo aborda um período mais recente, de 500 anos, e procura explicar porque certas civilizações sobrepujaram outras e porque umas nações deram certo, e outras não. Ambos os estudos são minuciosos e apontam tanto causas gerais quanto particulares — a questão, decerto, é complexa. Quanto a mim, no pequeno espaço que a internet me concede, não tenho condições de expor um estudo completo e conclusivo, mas pretendo relatar minhas observações e dar a minha modesta contribuição ao estudo deste tema, que é importante para os países ricos, e crucial para os países que querem sair da pobreza.

Um fato é flagrante: não houve nenhum povo ou civilização que, na história, permanecesse na liderança ininterruptamente. Alguns foram destruídos, e deixaram de existir como identidade étnica ou cultural; outros foram, em menor ou maior grau, aculturados. Ou sejam, assimilaram a cultura do vencedor e eventualmente acabaram absorvidos na identidade deste mesmo vencedor. Mas o vencedor de hoje é o perdedor de amanhã...

Se é obviamente impossível permanecer initerruptamente como vencedor, penso que a melhor política é não aprisionar sua cultura no hermetismo, e manter sempre um mínimo de intercâmbio com os demais. Desta forma, caso o outro se torne o novo vencedor, pode-se, ao menos, permanecer em sua órbita como tributário, mas sempre conservando a possibilidade de, ao assimilar a cultura do vencedor (e com ela as causas que o levaram à vitória), ser novamente alçado à liderança. O que quero dizer é muito simples: a principal causa do sucesso é a capacidade de reconhecer e assimilar aquilo que foi bem-sucedido em outras civilizações. Paradoxalmente, a causa da derrocada de muitas civilizações foi o sucesso que elas tiveram no passado, que gerou orgulho e crença cega em sua superioridade, mesmo quando era notório que o “bárbaro” já fazia bem melhor. É o caso do Mundo Árabe e da China, mas não o caso do Japão. A civilização japonesa é antiqüíssima e sempre foi distinta da chinesa, mas sempre, também, foi tributária desta, a ponto de quase todos os aspectos mais sofisticados da cultura japonesa terem uma origem chinesa — a escrita, a religião budista, a arte, até os peixes ornamentais (que são conhecidos como “japoneses” por nossos aquaristas, embora sejam chineses). Talvez por este motivo, por estarem acostumados a copiar o que valia a pena ser copiado sem perder sua própria identidade cultural, os japoneses foram capazes de se tornarem tributários da cultura ocidental no século XIX, a ponto de tornarem-se o único país não-ocidental a ingressar na revolução industrial nesta época. O oposto do que ocorreu com a China, que desprezava tanto europeus quanto japoneses (a quem se referiam como “os desprezíveis anões das ilhas”), e recusou-se obstinadamente a reconhecer que tinha algo a aprender com os bárbaros. Da Europa importavam somente relógios cuco, e o primeiro navio chinês só apareceu em um porto europeu na segunda metade do século XIX. Coisa semelhante ocorreu com árabes e turcos, que foram dos primeiros a usar canhões (para derrubar as muralhas de Constantinopla) mas necessitavam de engenheiros europeus para construí-los.

O fato é que nenhuma civilização, por mais brilhantismo que ostentasse, ergueu-se sem intercâmbio e sem assimilação daquilo que pode ser chamado o Patrimônio Cultural Universal, constituído pelas invenções e pelas idéias surgidas aqui e acolá. A ausência do intercâmbio gera singularidades, como é o caso das civilizações pré-colombianas. Quando os europeus depararam-se com astecas, maias e incas, não souberam como classifica-los. Sob muitos aspectos eles estavam bem a frente dos europeus: suas cidades eram maiores, tinham rede de esgotos (que a Europa só foi conhecer no século XIX), suas estradas eram pavimentadas, eles eram notáveis astrônomos que sabiam prever eclipses com mais precisão que os europeus. Mas por outro lado, não conheciam veículos com rodas, nem a metalurgia (e de acordo com este critério, encontravam-se em um estágio anterior à Idade do Bronze), para não mencionar a pólvora, a imprensa e a bússola. Como pode ser explicada esta coexistência de avanço extremo com atraso extremo? Isso fere o senso comum. Normalmente se espera que, se uma civilização se encontra em determinado grau de desenvolvimento, ela disponha dos recursos que consideramos compatíveis com aquele grau de desenvolvimento. A explicação que encontro é o isolamento em que aqueles povos se encontravam. Não tendo possibilidade de intercâmbio com ninguém mais, sua técnica dependia exclusivamente de descobertas feitas por eles próprios — e uma descoberta só ocorre se houver uma combinação de acaso e necessidade. Eles não tinham veículos com rodas porque não tinham cavalos para puxá-los. Já os europeus encontravam-se em uma região que facilitava o intercâmbio com outras civilizações do oriente. Seus cavalos, por exemplo, vieram da Ásia.

Evidente que não basta estar em uma região onde o intercâmbio seja facilitado, é preciso também desejar este intercâmbio. Mesmo porque ele tem duas mãos: vai e vem. Um exemplo: com a decadência da Europa durante a Idade Média, boa parte da cultura greco-romana perigou ser esquecida. Os livros, armazenados de forma precária nos mosteiros, e não raro desprezados por reportarem a uma antiguidade pagã, chegavam a ser apagados e reescritos devido à escassez de pergaminho. Mas no vizinho mundo árabe, a tolerância religiosa era bem maior, e a sabedoria antiga foi muito melhor preservada, e posteriormente reintroduzida na Europa pela invasão moura — a difusão do conhecimento, da religião e da cultura se fazia, freqüentemente, pela guerra. Coisa bem diferente aconteceu com a civilização maia. Um dos grandes mistérios da arqueologia foi o das cidades maias encontradas soterradas na floresta equatorial da Guatemala. O povo que as construiu parecia ter simplesmente desaparecido no nada, posto que, na época da chegada dos europeus à região, a população local era de índios que viviam em choupanas. Mas como um povo tão civilizado pode sumir, assim, de um momento para o outro? A explicação apontada foi um período prolongado de secas ocorrido há mil anos atrás, que provocou grande mortandade. Havendo morrido a elite de artífices que sabiam como construir cidades e canais, os remanescentes simplesmente regrediram ao estado neolítico. O conhecimento morreu junto com aqueles que os detinham. Ao contrário dos europeus, eles não dispunham de vizinhos civilizados que pudessem assimilar e preservar sua cultura.

Infelizmente o tráfego no sentido inverso foi menos fácil. Árabes e chineses, então mais orgulhosos e intolerantes que os europeus, por longo tempo relutaram em admitir que deveriam aprender com a revolução científica que ocorria na Europa desde a invenção da imprensa (ironicamente uma invenção chinesa), fato que determinou o declínio destas notáveis civilizações. Não que os europeus fossem imunes ao chauvinismo. Citarei um exemplo: o cálculo diferencial foi descoberto simultaneamente por Isaac Newton na Inglaterra e por Leibniz na Suíça, causando celeuma entre os discípulos de um e de outro quanto a quem seria o verdadeiro descobridor. Newton adotou uma notação peculiar para representar este cálculo, chamada “notação de Newton”, que foi de pronto adotada na Inglaterra, enquanto que a “notação de Leibniz” era adotada no continente. Só que esta segunda era mais prática, pois permitia a demonstração mais fácil de teoremas, e em conseqüência disto o estudo do cálculo floresceu na Europa continental e estagnou na Inglaterra durante 40 anos, quando enfim a notação de Leibniz foi reconhecida. Pode-se pensar: por que motivo a atitude chauvinista inglesa durou apenas 40 anos — um atraso superável — enquanto que no oriente, esta mesma atitude durou séculos, e só cessou no século XIX, quando eles já haviam perdido o trem da revolução científica?

A resposta, aparentemente, é: os cientistas britânicos podiam ser chauvinistas, mas eles viajavam e se correspondiam com os colegas. Podiam ver, com seus próprios olhos, que os outros faziam melhor. Um outro exemplo: o alquimista Paracelso, introdutor do Método Experimental e destruidor da Medicina Escolástica, teve que percorrer apenas alguns quilômetros entre a Basiléia e a Baviera para fugir de seus indignados colegas, que queriam assassiná-lo. Se vivesse na China, Paracelso teria que percorrer milhares de quilômetros para fugir dos guardas imperiais. Se vivesse no mundo árabe, poderia ter fugido para o califado vizinho — apenas para descobrir que lá as leis e os costumes eram idênticos. A Europa era um mundo menor e mais diversificado, com melhores comunicações, mais liberdade e mais gente dedicada a fazer descobertas — uns falhavam, mas outros acertavam, e o resultado de seu acerto era rapidamente disseminado entre todos. O obscurantismo e a perseguição religiosa atingiam algumas regiões, mas não o continente inteiro — sempre havia um lugar onde as mentes inquietas podiam refugiar-se.

Com tudo isso, cresceu o poderio europeu, e suas potências tornaram-se colonialistas. E isso deu origem a uma confusão entre causa e efeito que perdura até hoje: foram as potências imperialistas que sufocaram o progresso de suas colônias, ou foi o atraso inerente destas que as predispôs a se tornarem colônias? Um bom exemplo é o da Índia. Os britânicos alegam que sua administração foi benéfica e que construíram estradas de ferro, os indianos alegam que as estradas de ferro só serviam para trazer as matérias-primas de exportação aos portos e levar as tropas às regiões conflagradas. Os britânicos afirmam que as ferrovias serviram e continuam servindo, também, aos locais, e os indianos respondem que, afinal, eles pagaram impostos para que elas fossem construídas. A discussão prossegue, interminável, mas tudo isso nos afasta da questão original: se os britânicos não houvessem dominado a Índia, ela teria as ferrovias e o grau de progresso tecnológico que tem hoje em dia?

Possivelmente não. Havia na Índia ricos proprietários e comerciantes, donos de vultoso capital, mas empreendimentos como indústrias ou ferrovias não eram exatamente o que os interessava. Não que lhes faltasse técnica. Um bom exemplo é a manufatura têxtil, que na época artesanal, era incomparavelmente superior à européia. Os tecidos indianos eram apreciadíssimos na Europa, mesmo os de algodão eram muito melhores — os indianos inventaram um pano levíssimo, denominado p’jamas, que não tinha paralelo nos grossos panos de linho que os europeus usavam como roupa de baixo. E com tudo isso, a manufatora que passou ao estágio industrial foi a britânica, não a indiana. Como se sabe, os ingleses ordenaram a destruição dos teares da colônia, e obrigaram todos a comprar tecido feito nos teares mecânicos da ilha. Por que, com tanta retaguarda, a manufatura têxtil indiana não passou ao estágio industrial antes da britânica?

Simplesmente porque isso era inconcebível de acordo com o sistema social e a religião. Os indianos tinham o sistema de castas; havia a casta dos tecelões, e o destino destes e de seus descendentes estava programado por toda a vida. Trabalhar daquela maneira era, para eles, ao mesmo tempo um direito e um dever; substituir um homem por uma máquina era contrariar os deuses e a natureza, uma abominação inconcebível.

Não tem jeito. Sempre que se procura a razão profunda do avanço de um e do atraso de outras, ela se encontra nos hábitos culturais da população.


 

O Imigrante e o Nativo

Um renitente mito, que vem das gerações passadas, afirma que o “imigrante” é aquele sujeito que desembarca do navio sem um tostão no bolso, trabalha como um condenado, enriquece, desforra-se dos que o menosprezavam, e morre como patriarca de uma família grande e próspera. Tão renitente é o mito que cumpre investigar até que ponto é verdadeiro. De qualquer modo o assunto nos interessa, pois imigrantes sempre haverá — as correntes migratórias são fenômeno constante em toda a história da humanidade, e embora possam trocar de direção e sentido, não há qualquer sinal de que desaparecerão um dia.

O mito do imigrante construtor de fortunas é forte sobretudo nos EUA, mas aplica-se também a nós. Alguns, de fato, enriqueceram. Mas estes em geral eram daqueles que já traziam algum capital consigo (como o Matarazzo). A maioria incorporou-se ao proletariado, tornaram-se operários e camponeses. Já outros nem chegaram ao termo da viagem — morreram doentes a bordo do navio. De fato, a história toda lembra a anedota do afogado e os golfinhos. Dizem que os golfinhos, se encontram alguém se afogando, empurram-no para a praia à força de valentes cabeçadas. Mas penso que o instinto animal apenas preocupa-se em afastar o obstáculo da passagem do bando, e eles podem empurrá-lo tanto para a praia quanto para o oceano. Só que aqueles que foram empurrados para a praia safam-se e passam o resto da vida a dizer maravilhas de seus salvadores — é o caso dos imigrantes bem-sucedidos. Quanto àqueles que foram empurrados para o oceano — bem, estes morrem e ninguém jamais fica sabendo a opinião que eles tem a respeito de golfinhos.

Mas mesmo assim as evidências são muitas, e todo o mundo conhece um exemplo. De um jeito ou de outro, o imigrante sempre se dá bem — é lógico que isso acontece, pois do contrário o fluxo cessaria. Todos os fluxos migratórios da história são longos e constantes, podendo aumentar ou diminuir em caso de crise no país que envia ou no país que recebe, mas eles só cessam ou se invertem após a ocorrência de mudanças econômicas estruturais ou no balanço das pressões demográficas. Se o indivíduo emigra, é porque antes alguém o precedeu e deu certo. Outro sintoma desta tendência a se dar bem é a inveja que freqüentemente lhe é dedicada pelos nativos. Um bom exemplo são as anedotas que costumamos contar sobre os portugueses, esquecidos de que, apesar de alegadamente burro e ignorante, o português entre nós quase sempre é patrão e dono de seu próprio negócio, mesmo que seja um botequim ou padaria.

Avaliando com justa medida, podemos afirmar que, dentre os imigrantes que se dirigiram para cá, poucos enriqueceram. Mas poucos, também, terminaram pobres. Na verdade, observa-se uma marcada tendência de inserção, não na classe rica ou pobre, mas na classe média, camada que praticamente não existia aqui até a chegada das primeiras levas de imigrantes. O imigrante é o próprio cerne da classe média brasileira, como pode facilmente observar qualquer um que circule em um meio de classe média, e conforme eu já observei em meus estudos A Classe Média Universal e A Pirâmide e o Sanduíche.

Mas por que isso acontece? Por que o imigrante, aos poucos, melhora de vida, enquanto amplos setores dos nativos permanecem na penúria geração após geração? As poucas explicações já tentadas por aqui insistem no favorecimento e no racismo das elites. Afirma-se que o imigrante prosperou porque lhe foram concedidas terras, as mesmas terras que eram negadas aos negros e caboclos, e isto aconteceu porque a elite tinha um desejo fútil de “melhorar a raça” e embranquecer a população. De acordo com esta tese, a posse de um lote de terra seria o diferencial — quem a tivesse prosperava, quem não a tivesse estaria condenado à fome e à miséria. A forma como se trabalhava teria pouca ou nenhuma importância, o trabalho agrícola é visto como coisa trivial. Esta suposição, da parte de indivíduos criados em um meio onde se praticava uma agricultura primitiva, foi mais tarde encampada por intelectuais urbanos, igualmente ignorantes do trabalho rural. Ninguém concebe que, se for entregue um punhado de minério de ferro a um operário metalúrgico, ele devolverá um carro completo, mas muitos acreditam que, se for dado um lote a um sem-terra, ele se tornará um pequeno produtor rural. É necessário uma grande dose de generosidade ingênua para acreditar que um caboclo ou quilombola, se lhe fosse dado um lote, teria a mesma produtividade de (por exemplo) um imigrante nipônico, que tinha conhecimentos ancestrais sobre como produzir árvores anãs e frutas gigantes, ou como fazer a sexagem (diferenciar macho e fêmea) apenas apalpando o frango recém-nascido.

Na verdade, apenas uma fração dos imigrantes recebeu lotes do governo, os demais eram mesmo assalariados dos fazendeiros. E os lotes que recebiam eram cobertos de floresta, em locais quase inacessíveis. E depois, o importante no Brasil nunca foi ter a posse legal da terra, mas sim a capacidade de mantê-la. Multidões de assentados pela reforma agrária do governo receberam seus lotes, e no entanto foram incapazes de produzir, e diversos assentamentos transformaram-se em favelas rurais. Pode-se mesmo afirmar que o governo, hoje em dia, tem que lidar com dois problemas sociais — os Sem Terra e os Com Terra. Não foi por acaso que isso aconteceu. Os lotes se encontravam em regiões pouco valorizadas, longe das vias de escoamento e sem mercado por perto. Foi precisamente por este motivo que os latifundiários deixaram aquelas terras improdutivas, razão por quê elas foram tomadas pela reforma agrária. Já conhecíamos o latifúndio improdutivo, agora conhecemos o minifúndio improdutivo. E além disso, é notória a falta de vocação de muitos dos assentados para o trabalho agrícola. Bem diferente foi o caso dos imigrantes. Sem auxílio nenhum do governo, eles desbastaram seus lotes sem fazer queimadas, plantaram sem esgotar a terra, tornaram-na produtiva, não a abandonaram, não a venderam a latifundiários, fundaram vilas e cidades ao redor e constituíram núcleos de agronegócio que até hoje abastecem a indústria alimentícia do sul do país. Temos aí, simplesmente, uma diferença de atitude: a vocação de uns era a política, a de outros era o trabalho árduo.

Não é surpreendente que tenha sido assim no Brasil, pois é assim no mundo todo. Seja leste ou oeste, sul ou norte, a história se repete: os imigrantes sempre prosperam mais do que os nativos. Temos o caso dos chineses na Tailândia, na Malásia e na Indonésia, que constituem prósperas comunidades (e na Indonésia volta e meia são massacrados por fanáticos locais). Temos o caso dos indianos que foram levados para construir ferrovias na África, e hoje são bem mais ricos que a média dos africanos (a ponto de o ditador Idi Amin Dada confiscar suas propriedades e dá-las a apaniguados, que as arruinaram). Boa parte da indústria de informática nos EUA é capitaneada por indianos. É notório que muitos destes imigrantes são originários de países pobres, onde eram incapazes de prosperar. Mas é também notório que estes imigrantes mudam sua atitude ao chegar na nova pátria — os indianos, por exemplo, abandonam o sistema de castas. Temos aí que emigrar não é um somente um meio de livrar-se de maus governos, mas também, de más idéias. Tanta coerência só pode ter uma explicação: os imigrantes, seja qual for sua origem, partilham de algo que pode ser chamado a Cultura Universal do Imigrante, onde se destaca a tenacidade, o visionarismo, a disposição ao risco, a ausência de preconceito contra o trabalho braçal, a capacidade de adaptar-se a situações adversas e o hábito de não depender de favores do governo. Isto é de todo análogo a minha definição da Cultura Universal da Classe Média, que abordei em meu artigo A Classe Média Universal. Há uma relação óbvia entre ambas, e isto se percebe facilmente no Brasil, onde os imigrantes foram os grandes formadores de nossa classe média. Na verdade, esse é o grande motor da riqueza dos países do Novo Mundo. Os EUA devem sua arrancada aos 33 milhões de imigrantes que receberam no século XIX, os quais submergiram a antiga colônia de religiosos puritanos, revitalizando e de fato reinventando a nação inteira. Os imigrantes não se adaptaram à cultura norte-americana, a cultura norte-americana é que foi feita por eles.

No Brasil, os 5 ou 6 milhões de imigrantes que recebemos na mesma época não foram capazes de operar uma transformação semelhante à ocorrida nos EUA, mas deixaram sua marca. A maneira como são encarados hoje em dia, entretanto, é bastante ambígua. Seus feitos são exaltados, eles tornaram-se bons personagens de novelas, mas raramente é reconhecido seu papel na formação do caráter nacional, que continua sendo visto como derivando unicamente de Macunaíma, o anti-herói que supostamente encarna a brasilidade. Economicamente, seu papel é importante, mas políticamente, é pífio. São poucos os descendentes de imigrantes que se dedicam à política. O que é uma pena, pois quando o fazem, costumam ser bem sucedidos. Reproduzo aqui trechos do artigo As façanhas do Zé Português, de Márcio Moreira Alves, publicado em O Globo de 22/06/2003:

É o prefeito de Gouvelândia, cidadezinha do sudoeste de Goiás (...) veio na terceira classe do navio Corrientes e passou a travessia a pão e maçã. (...) vieram para Quirinópolis e, depois, compraram uma terra no então distrito de Gouvelândia (...) Criado o município, o PMDB de Íris Resende ganhou as eleições por três vezes consecutivas, até Zé Português chegar à prefeitura, em 2002.

Ao chegar ao poder com Lula, o PT e seus aliados falaram da ‘herança maldita’ de Fernando Henrique Cardoso (...) Herança maldita quem recebeu foi o Zé Português. Assumiu a prefeitura com a folha dos servidores atrasada em seis meses, as oito linhas de telefones cortadas por falta de pagamento, bem como a energia e a água. Seus antecessores tiveram seus direitos políticos cassados por desvio de recursos públicos. Um exemplo: o ônibus de transporte escolar estava abandonado há quatro anos em Quirinópolis, o que não impedia de ser abastecido todos os dias, conforme comprovavam as notas fiscais guardadas na prefeitura...

Como foi que o prefeito conseguiu em um ano colocar a folha em dia, pagar o 13o na data do aniversário dos funcionários e ainda fazer os investimentos que mudaram a cara da cidade? (...) Simples: fazendo as contas de português de armazém: anota cada real da receita (...) e vigia cada tostão do gasto. Também, é claro, não roubando e não deixando roubar. (...) Todos os serviços da prefeitura estão interligados à rede de computadores. Há controle do que entra e sai do almoxarifado geral. (...) Foram construídas 100 casas populares em substituição a casebres de madeira e lona, demolidos.

Em tempos passados, o PT diria que a administração do Zé Português seria um exemplo do ‘modo petista de governar’. Acontece que o Zé Português é do PFL, e fez a campanha de Ronaldo Caiado, o líder da UDR, para deputado federal.


 

O Socialismo Primordial

De tudo o que aprendi na vida, já esqueci muita coisa importante. É uma pena, mas o fato é que nossa memória, embora não se meça em gigabytes, certamente é limitada. Mas o que realmente acho estranho é que certas coisas que aprendi na escola, embora nunca tenham servido para rigorosamente nada, sejam lembrados por mim até hoje com toda a nitidez. É o caso da afirmação de que o socialismo teria sido o primeiro regime da humanidade, milhares de anos atrás, em tempos neolíticos. Ouvi isso pela primeira vez de um professor de História do segundo grau. O livro-texto confirmava, e contava, em um tom que me pareceu lamentoso, como as escavações revelavam que lá pelo ano 6000 AC “cercas, valas, muros, marcam o surgimento da propriedade privada”. Não me lembro o nome do livro, mas me lembro da frase direitinho. De outra feita, já na universidade (católica), em uma aula de religião um colega disse qualquer coisa sobre o crime haver surgido no mundo na primeira vez que um troglodita invadiu a caverna do outro, e foi de pronto interpelado pelo professor, um padre espanhol: Mas o primeiro regime da humanidade foi o socialismo!

A crença em um Socialismo Primordial reporta ao mito do bom selvagem, sem dúvida. Mas é gostoso de acreditar. O Estado Natural seria o socialismo, que posteriormente foi pervertido pela ganância humana, sendo recomendável, quem sabe, voltar à bondade primitiva. Mas se no meu tempo o jovem era rebelde e rebelava-se contra os mais velhos, comigo sucede o contrário: o adulto que sou vem contestar as idéias do jovem que fui. Há fundamento na crença de que as populações neolíticas viviam em um saudável e igualitário socialismo?

Bem, não podemos voltar no tempo para verificar, mas podemos observar as populações que vivem no estado neolítico na época atual. Caso dos índios brasileiros. A idéia parece ter fundamento. Os índios (quero dizer, as tribos isoladas) não são donos sequer de suas roupas (que não usam), a floresta é comunal, os roçados e as criações, quando existem, são comunais, e até suas habitações são coletivas. Mas socialismo é uma idéia gestada no século XIX, parece-me um tanto absurdo aplica-la a um contexto pré-histórico de milhares de anos atrás. Não teria sido uma confusão de conceitos, ou excesso de imaginação? Afinal de contas, por que motivo o regime das populações no limiar da Revolução Agrícola seria semelhante ao socialismo da época atual?

Analisando a questão com todo o rigor científico de que sou capaz, o que posso afirmar é: havia socialismo porque não existia capitalismo. E não existia capitalismo porque não havia excedente de produção. Pois quando há, surge a questão do que fazer com ele, e a melhor solução é troca-lo por alguma outra coisa que esteja faltando. Assim nasce o comércio, o mais elementar dos processos capitalistas. Os outros processos mais complexos surgem depois. Mas sem excedente não há capitalismo. Por que motivo, então, não havia excedentes? Porque o homem pré-histórico vivia um dia de cada vez. Se a caçada do dia houvesse sido bem sucedida, o que havia a fazer era a tribo toda comer até empanturrar-se, pois além do fogo não havia método algum de conservar o alimento, que tinha que ser consumido antes de estragar-se. Mesmo depois de surgirem os primeiros roçados e criações de animais, o quadro não era diferente, pois a Revolução Agrícola não se consumou de um dia para o outro. De fato, em seu estágio inicial, os animais e plantas domesticados serviam mais como um estoque estratégico para épocas de escassez, sendo razoável pretender que não pertencessem a um indivíduo específico, de modo que a tribo toda pudesse dispor deles em caso de necessidade. E de resto, o que mais havia? Artefatos toscos — facas, machados, estiletes — feitos de osso e pedra polida, descartáveis e perecíveis, que se pareciam muito pouco com bens duráveis que pudessem ser considerados patrimônio de alguém. A era dos metais ainda estava longe. E além de tudo, as tribos eram seminômades: toda a sua riqueza necessariamente consistia de coisas que pudesse carregar consigo em suas migrações. O mais era deixado ao vencedor e novo dono do pedaço.

Como se sabe, as plantações e os rebanhos foram aumentando de tamanho, exigindo que as populações se fixassem no local para que pudessem cuida-los. Foi necessário também o erguimento de cercados e fossos ao redor, proteção que de início se dirigia contra as incursões de animais silvestres, e não de outros seres humanos. Chamo isso de progresso. Ou o aumento de bens não é progresso? A produção, agora, excedia as necessidades alimentares da comunidade, sendo proveitoso trocar os excedentes por algum item qualquer que não fosse produzido ali. Com o passar do tempo, foi sendo abandonada a idéia de que o ato de produzir destinava-se a suprir as necessidades básicas daqueles que produziam, e estabeleceu-se a convicção de que o trabalho destinava-se a formar estoques de excedentes destinados ao consumo de terceiros, em troca de bens diversos adquiridos por escambo. Isto impôs a modificação da forma como se trabalhava, levando à divisão do trabalho e à especialização. Já não era mais concebível uma comunidade de agricultores e pastores, todos vivendo e trabalhando de forma idêntica: agora havia setores especializados de produtores, consumidores e trabalhadores variados. Nascia, assim, a Economia de Mercado. O sistema antigo era denominado a Economia Natural, na qual o produtor e o consumidor eram a mesma pessoa. Antes, as pessoas comiam o que plantavam e confeccionavam elas próprias tudo o que necessitavam, fosse roupas ou ferramentas. Agora, as pessoas se dedicam a uma ou duas atividades específicas, as quais, por este ou aquele motivo, elas tem condições de desempenhar melhor, e aquilo que não produzem é adquirido no mercado. A conseqüência inevitável dessa nova forma de trabalhar foi um brutal aumento na produção. De fato, uma vez que todos se dediquem a fazer apenas aquilo que podem fazer bem, e sejam dispensados do esforço ingrato de fazer tudo aquilo que tem pouca ou nenhuma capacidade de fazer, toda a cadeia de produção é otimizada.

A Economia de Mercado, como se vê, surgiu a partir das novas necessidades resultantes do progresso (o aumento dos rebanhos) e teve como conseqüência a geração de mais progresso ainda (a otimização da cadeia produtiva). Outra conseqüência foi o aparecimento das disparidades sociais e a desaparição do relativo igualitarismo em que viviam as tribos nômades (o mongol Gengis Khan, quando príncipe, tinha entre seus afazeres de rotina ordenhar cabras e recolher esterco). Isso foi decorrência das complexidades inerentes à nova divisão do trabalho, que criava setores como o senhor e o servo, o patrão e o empregado, o gestor e o produtor, o capataz e o contratado, o meeiro e o arrendatário, o dono e o sócio minoritário, o grande e o pequeno acionista, o trabalhador braçal e o trabalhador intelectual, o chefe e o subordinado, cada uma dessas funções gerando uma renda grandemente variável conforme as cotações do mercado específico: mercado de produtos agrícolas, mercado de ações, mercado de trabalho, etc. Havia também o fator sorte, a riqueza podia ser acumulada ou perdida. Nesse quadro, foi inevitável o surgimento de ricos e pobres. Mas embora desiguais, as comunidades sedentárias onde se praticava a Economia de Mercado eram muitíssimo mais ricas que as tribos que praticavam a Economia Natural, a ponto de ter ocorrido uma enorme explosão demográfica no sexto milênio antes de Cristo, época do final da Revolução Agrícola, quando se formaram as primeiras comunidades sedentárias. A produção de alimentos aumentou muito, possibilitando o aumento da população, que nos milênios anteriores não passava de pequenos bandos nômades vagando aqui e ali, todos vivendo no igualitarismo da pobreza, mas morrendo em massa durante os períodos de escassez, como é regra ocorrer com quem não tem excedentes de produção nem celeiros para armazena-los. Durante toda a Idade Antiga, o mundo consistiu de uns poucos núcleos civilizados cercados de populações nômades, que vagavam ao redor em busca de uma oportunidade de invasão, pois era lá, nas cidades, que se encontrava o que valia a pena ser pilhado.

Infelizmente, esse quadro não está restrito aos livros de História Antiga. No século XXI ainda existem populações nômades, comunidades sem agricultura, gente que passa fome e gente que vive à margem da Economia de Mercado. Com um pouco de capacidade de observação, pode-se perceber um elo de ligação entre cada uma destas situações. Vejamos o caso da fome. Passa-se fome, por exemplo, em regiões onde a população vive da agricultura e o clima ou o solo são ruins, como é o caso do nordeste do Brasil e de vastas regiões da África. É tentador estabelecer uma causa natural para essa situação de miséria e fome: é a seca, é a praga, é o desmatamento, é a queimada. Mas por que estranha coincidência essas pragas naturais só acontecem no Terceiro Mundo? Convém lembrar que a Califórnia é tão árida quanto o nordeste brasileiro, o Japão é uma ilha montanhosa e cheia de vulcões, e a Islândia tem 93% do solo rochoso e improdutivo. Não há dúvida que as secas e as pragas ocorrem também no mundo rico. Mas por que lá elas não causam dano, e nas regiões pobres são devastadoras?

Para responder essa questão é preciso notar que as regiões pobres, além de pobres, tem uma outra característica: a persistência da já referida Economia Natural, aquela em que o produtor e o consumidor são a mesma pessoa. No nordeste brasileiro e na África, é comum se viver da agricultura de subsistência, ou se produzir para pequenos mercados puramente locais. Qual é a diferença quando a seca ocorre em uma região onde há Economia de Mercado, e quando ocorre em um lugar onde impera a Economia Natural? Onde há Economia de Mercado circula o dinheiro, o que vale dizer, o alimento que foi perdido pode ser adquirido pelo comércio. Como se trata de uma importação, ele custará mais caro do que custaria se não se houvesse perdido, e uma maneira de interpretar isso é: para adquirir o alimento com esse preço majorado, as pessoas estarão deixando de adquirir alguma outra coisa. É precisamente neste ponto que reside toda a vantagem da Economia de Mercado: ela possibilita uma troca. Ao invés de privar-se de alimento, o indivíduo se privará de alguma outra coisa que lhe é menos útil no momento. Semelhante possibilidade não existe sob a Economia Natural. Lá, uma seca, uma praga, é um fato cabal e incontornável: sem colheita, sem comida na mesa. Podemos, com segurança, concluir que a verdadeira causa da fome no mundo é a ausência da Economia de Mercado.

Mas há os que pensam que a causa da fome no Brasil é a ganância dos proprietários de terra, e propugnam uma reforma agrária profunda, com o propósito declarado de dar ao “faminto” um lote de terra para tirar seu sustento. Entretanto, a ausência de uma Economia de Mercado afeta igualmente latifúndios e assentamentos, e mesmo que, em um esforço de imaginação, pudéssemos conceber o governo concedendo subsídios, sementes, fertilizantes, maquinário, construindo vias de escoamento e fornecendo transporte, há uma coisa que o governo não é capaz de criar: o mercado que irá absorver aquilo que os assentados conseguirem produzir. E para piorar, o Mercado não é nacional, mas mundial. Refiro-me ao Mercado com M maiúsculo, não aos pequenos mercados que existem em qualquer cidadezinha. E o fato, que está a vista de todos, é que boa parte dos assentados recua a um estágio de Economia Natural, tendo que plantar para comer, sem ter quem compre sua produção. Aos poucos, o problema social dos Sem Terra vai sendo substituídos pelo problema dos Com Terra — os indivíduos que foram assentados, mas que não conseguem produzir, e dedicam-se à agitação revolucionária. Esquecem-se de que ter a posse da terra só é proveitoso em um regime de Economia de Mercado, onde ele possa produzir, hipotecar, vender, arrendar o lote, enfim, dele tirar dinheiro e não mandiocas. Se o regime é o de agricultura de subsistência, tanto faz o lote pertencer ao assentado ou ao fazendeiro. Afinal, nossos fazendeiros sempre permitiram que seus colonos plantassem culturas de subsistência, pois se morressem de fome não haveria quem trabalhasse em suas terras... A Reforma Agrária, tão decantada como modernizante, nos moldes como é feita, é arcaizante, tendo o efeito de recriar um universo rural primitivo e desligado do Mercado. Nota-se que projetos de Reforma Agrária há muito saíram da agenda dos países mais desenvolvidos do mundo, onde elas só foram implementadas em épocas em que o campo era capaz de absorver mão-de-obra. Lá como aqui, houve grande êxodo rural resultante da mecanização da agricultura, a diferença foi que lá os migrantes foram inteiramente absorvidos por um modo de produção urbano, e aqui essa absorção foi parcial, dando origem à multidão de “excluídos” — os Sem Terra, que tem a ilusão de voltar ao campo, e os favelados urbanos, que não tem ilusão nenhuma, iludidos somos nós.

Curiosamente, entre nós, a idéia de uma Reforma Urbana (esta sim extremamente necessária) é pouco usual e muito menos popular que a Reforma Agrária. Não consigo deixar de especular que o motivo desta alta popularidade, sobretudo entre os universitários e a classe média urbana, seja a expectativa de que ela fará os pobres e favelados darem as costas e voltar correndo ao campo, deixando as cidades limpas de sua presença. Já a Reforma Urbana é menos popular, porque implica que os pobres continuarão vivendo nas cidades. Ou talvez, no fundo, tudo não passe de um projeto de reeditar o Socialismo Primordial, desejo este inculcado em nosso subconsciente pelas aulas dos padres professores... Fazer uma nova Canudos, aquele reduto de fanáticos religiosos que aboliram a propriedade privada, e por este motivo até hoje querem nos fazer crer que seu projeto era, na verdade, uma revolução social. Fossem quais fossem suas reais intenções, a abolição da propriedade privada não melhorou em nada suas condições materiais. Tanto não melhorou, que a colina onde se erguia a maior parte do arraial — chamada Colina da Favela — era atulhada de casebres tão precários, que até hoje o termo “favela” é paradigma de miséria.


 

A Problemática da Tortura

Um estigma da minha geração foi a tortura. Uma espécie de segredo sujo, mas de chocante evidência, um duro golpe em nossa crença quanto a sermos uma gente pacífica e cordial. Como pudemos fazer aquilo? É como um trauma de infância que afeta todo o resto da vida, um remorso, um caso mal resolvido. Ou talvez bem resolvido, a julgar pelas vultosas indenizações e pensões obtidas pelos perseguidos da repressão — teria sido mais barato punir os torturadores, sem dúvida. A lembrança da tortura incomoda nossa consciência.

Mas o leitor um pouquinho bem informado deve notar que há algo estranho nessa exposição. Primeiro, que a tortura no Brasil é muito anterior à minha geração. Segundo, que a tortura não é, de modo algum, uma “lembrança” — ela existe ainda. O problema é que, por aqui, quando se fala em tortura, implicitamente se refere à tortura infligida a presos políticos durante a ditadura. O mais não se chama tortura, ou não interessa. Ao menos para uma coisa a ditadura serviu — pelo primeira vez em nossa História, nos conscientizamos de que existe tortura no Brasil. Apesar de nossa vergonha e horror, pouco fizemos de produtivo para erradicar essa prática, que é feita rotineiramente e volta e meia mencionada nos jornais. Deve ser porque boa parte daqueles que se horrorizaram com a maneira como foram tratados jovens universitários de classe média, eram os mesmos que achavam aquilo normalíssimo quando acontecia com o filho da empregada. O tratamento que de longa data é reservado por aqui a marginaizinhos pobres e pretos faz a festa do pessoal das ONG’s e da Anistia Internacional, que recheiam páginas e páginas com relatórios sobre casos de violências cometidos contra presos no Brasil. E vezes sem conta temos que ouvir a mesma pergunta daqueles ingênuos europeus: Mas como? A ditadura no Brasil não tinha acabado? Pobres cidadãos de primeiro mundo, incapazes de conceber a tortura sem uma ditadura...

Mas bem ou mal, a experiência da tortura durante a ditadura trouxe este tópico, antes marginal, para o centro do debate — o que já é alguma coisa. Aquilo que não podemos mudar, devemos ao menos tentar entender. Por que persiste a tortura entre nós? Por que outros países do mundo a aboliram, e nós não? Tentarei produzir algumas respostas.

Abrindo o livro de História, vê-se que a tortura sempre existiu em toda parte desde tempos imemoriais. Até há pouco mais de 200 anos, era prática judiciária absolutamente legal e aceita por todos. Hoje em dia causa horror a idéia de que a Igreja tenha patrocinado o Tribunal da Inquisição e todo o seu séquito de horrendas torturas, mas ao contrário do que desejam os católicos contemporâneos, a Igreja não é uma entidade desligada do tempo que supostamente devesse aplicar no passado a moral do presente. A tortura era, simplesmente, uma coisa normal e legítima de acordo com os costumes de nossos ancestrais. As primeiras idéias contrárias surgiram no ocidente, na época do iluminismo. Voltaire costumava chamar a tortura de “uma excelente receita para absolver um bandido robusto e condenar um inocente fraco”. Com o tempo, foi se estabelecendo, não só entre os filósofos mas também entre os juristas (como o italiano Beccaria), a idéia de que a tortura, além de violenta, seria ineficaz: o forte morria sem confessar, o fraco confessava o que não fez. Um a um, os países da Europa Ocidental foram abolindo a tortura judiciária. O resto do mundo logo seguiria o exemplo, ao menos formalmente. Entre nós, a tortura foi abolida pela constituição de 1826, que revogou as penas prevista no livro quinto das Ordenações do Reino, que incluíam açoite, ferro em brasa e outros castigos corporais.

Mas como se sabe, a tortura não foi extinta. Em alguns países, ela acabou desde o “século das luzes” e não voltou mais. Em outros, ela pareceu ter acabado, mas retornou quando estes países caíram em ditaduras violentas, e cessou de vez com o fim destas ditaduras. E por fim, há um terceiro grupo onde a tortura nunca cessou de todo — caso do Brasil e do Terceiro Mundo de modo geral. Diante deste quadro, o primeiro impulso é considerar a tortura como parte de uma síndrome de atraso. O Terceiro Mundo ainda tem tortura, assim como ainda tem tuberculose e analfabetos. O progresso extinguirá esta mancha em algum momento no futuro, só temos que esperar. Se observarmos a história da perspectiva dos últimos 50 anos, os fatos parecem corroborar esta tese: a tortura tem estado confinada aos primitivos, aos bárbaros e aos pobres. Mas se a perspectiva for estendida a mais de 100 anos, a ponto de compreender todo o século XX — o longo século XX — temos alguns casos aberrantes. Torturou-se em larga escala em países como a Alemanha e a Itália na época do nazi-fascismo, e estes países eram cultural e economicamente desenvolvidos. Houve tortura também em Portugal e na Espanha durante o franquismo e o salazarismo, e estes países tinham regimes constitucionais aparentemente sólidos no final do século XIX. Até 1989, torturou-se nos países atrás da dita Cortina de Ferro — e a antiga URSS não era propriamente uma terra de bárbaros, mas um país que já havia dado significativas contribuições à ciência, à arte e à cultura em geral. Não há dúvida que a questão é mais complexa. Para encontrar uma explicação, é necessário descobrir quais preceitos são reconhecidos para tornar a tortura viável, e quais outros preceitos tornam a tortura inconcebível. Por que alguns permitem-se torturar, e outros não?

Uma pista vem do passado. Na época de Roma, era proibido torturar aos cidadãos romanos. Já os bárbaros e os escravos podiam ser torturados sem problemas. É bem conhecido o caso de São Paulo, que, condenado à morte por seu cristianismo, invocou sua condição de cidadão romano. E foi decapitado, morte considerada digna, ao contrário da crucificação, um infamante “suplício de servos” inconcebível para quem dispunha de civitas — a cidadania romana. É preciso notar, contudo, que essa proibição de torturar não resultava de algum escrúpulo relacionado a Direitos Humanos, que era um conceito inexistente à época, mas sim de uma dignidade intrínseca imputada ao cidadão romano, que tornava sacrílego o ato de violar-lhe o corpo. É mais ou menos o que acontece até hoje em dia. Cidadão de Primeiro Mundo não pode ser torturado, mas pode ensinar tortura aos militares do Terceiro Mundo — como tem sido feito na Escola das Américas no Panamá, fato amplamente divulgado. Três graduados generais de Pinochet jamais foram processados por haverem matado seus compatriotas, mas acabaram condenados à prisão porque mandaram colocar uma bomba no carro do ex-chanceler Letelier nos EUA, e de quebra mataram também sua secretária americana. A lição é clara: matar mil chilenos pode, mas matar uma secretária americana dá cadeia. Matar em solo chileno pode, matar em solo americano é proibido.

Vemos aí que o erro inicial de nossa abordagem estava em querer diferenciar povos que permitem torturar dos povos que não permitem torturar. A questão só pode ser corretamente enunciada na voz passiva: há povos que não permitem ser torturados, e povos que podem sofrer tortura sem que isso seja considerado crime. Um americano tem que respeitar os direitos individuais de seus co-cidadãos, mas não os de um iraquiano. Um europeu não pode torturar um bandido em uma delegacia, mas pode ir jogar bombas em Kosovo. Um francês não pode torturar um terrorista preso na França, mas não houve qualquer escrúpulo quanto a torturar argelinos durante a Guerra da Argélia, fato inclusive reconhecido publicamente pelos ex-torturadores. Análogamente, um militar chileno pode mandar assassinar opositores em seu país, mas não pode fazê-lo nos EUA. A possibilidade — ou não — da tortura está relacionada à dignidade intrínseca que é imputada a um determinado povo. Dentro dos limites de um mesmo povo, ocorre distinção semelhante: note-se que no Brasil sempre houve tortura, mas os torturados eram sempre gente de um mesmo grupo: pé-rapados, pretos, caboclos. Sempre houve aqueles que podiam sofrer tortura, e aqueles que não podiam, tanto que foi justamente o fato de a tortura haver sido estendida, durante a ditadura, a brancos de classe média, que causou a reação indignada que chamou a atenção para o caso. Mas não foi a primeira vez na nossa História que isso aconteceu. O escritor Graciliano Ramos, ao ser preso pela primeira vez, admirou-se ao ver o que ocorria ali. “É claro que eu sabia do tratamento que era dispensado, antigamente, aos escravos, e hoje em dia, aos patifes miúdos” — escreveu. “Mas não suspeitava que isso fosse feito também a pessoas como nós”. Segue descrevendo a indignação de seu grupo — bacharéis, operários, honrados pais de família — de um momento para o outro forçados a conviver com ladrões e escroques. O fato de ser misturado à canalha parece incomoda-lo mais que a prisão em si. Mas isto tudo, que tanto espantava a um homem como Graciliano Ramos, era a rotina da marginália desde tempos imemoriais. Se fosse contado, em um livro, todos os casos de arbitrariedades cometidos contra presos no Brasil, o caso específico da violência cometida por militares contra presos políticos não passaria de mero detalhe, ocuparia menos que um capítulo, ou apenas um parágrafo. Um renitente erro, que persiste até hoje, é achar que a tortura ao preso comum é uma derivação da tortura ao preso político. O oposto é o verdadeiro.

E não acontece apenas no Brasil. O escritor chileno Ariel Dorfman, que viveu a época de Allende, narra em seu livro Uma Vida em Trânsito o caso de um camponês índio torturado por militares da aeronáutica. O infeliz foi amarrado à hélice de um helicóptero, e posto a girar até morrer, com sua esposa assistindo a tudo. Aparentemente, mais uma barbaridade cometida pelo regime Pinochet. Só que o caso não aconteceu sob o regime Pinochet. Aconteceu nos últimos dias de Allende. O fato é que a tortura, nessa parte do mundo, sempre foi uma prática costumaz, que se faz sem a necessidade de uma ordem direta ou diretriz definida neste sentido — independe, portanto, de haver ou não uma ditadura. Relendo o livro Tortura Nunca Mais, um resumo minucioso das modalidades de tortura usadas na época, nota-se que a grande maioria das técnicas eram os mesmos métodos toscos usados desde muito tempo atrás — pau-se-arara, palmatória, máquina de dar choques. Outros métodos, como a Cadeira do Dragão, consta terem sido inventados na época, mas isto também é duvidoso, uma vez que ninguém registra patente de dispositivos de tortura. Se é fato que os militares estrangeiros não tiveram pudor em ensinar tortura a seus colegas sul-americanos, com certeza é muito imaginoso supor que, ao fazê-lo, estavam corrompendo a mente de inocentes que jamais tinham ouvido falar em tal coisa. Em matéria de torturas, tínhamos muito mais a ensinar do que a aprender. Na época, tentou-se negar a existência de tortura no Brasil — alguns por cinismo, outros por ingenuidade — mas como a lei de anistia isentou os torturadores de qualquer responsabilidade, muitos deles vieram a público contar suas histórias, pondo fim a qualquer dúvida a respeito da prática da tortura no Brasil. Lembro-me de um ex-tenente do exército, que concedeu uma entrevista à VEJA, e foi bastante minucioso nas respostas. Exceto em uma pergunta, a qual ele respondeu com uma única palavra:

VEJA: como foi que você aprendeu a torturar?

Vendo.

Tinha o que ver, sem dúvida. Com tanto histórico de tortura em estabelecimentos policiais, quem ousaria supor que ela não seria aplicada àqueles idealistas jovens de classe média que queriam mudar o mundo? Lembro-me de um caso citado por Francis Fukuyama em O Fim da História. Ele referiu-se a uma outra citação, esta de 1830, em que era mencionada uma carta escrita 100 anos antes por uma jovem aristocrata. A jovem narra, com indiferença, o caso de um homem que fora condenado à morte e despedaçado na roda em sua aldeia alguns dias antes. O homem fora acusado de haver roubado alguns papéis. Se, em 1730, uma jovem educada e sensível não era capaz de qualquer sentimento em relação ao um indivíduo de categoria social inferior, isso já era impensável em 1830, ao menos na Europa Ocidental. Mas nós, mais de 200 anos após este episódio, ainda dividimos nossos cidadãos entre torturáveis e não-torturáveis. A tortura nasce desta percepção de diferença, de distinção entre uma humanidade e uma sub-humanidade. É um fenômeno global. Se um oficial de polícia passar sua vida inteira em um local onde todos os cidadãos sejam considerados equivalentes, sem distinção entre respeitáveis e não-respeitáveis — por exemplo, um comissário de polícia qualquer em alguma cidadezinha do interior da Finlândia — ele tem excelentes chances de se aposentar sem jamais haver cometido qualquer violência ou arbitrariedade. Mas a propensão à violência, parece-me, fica latente à espera de uma situação em que uma humanidade volte a se defrontar com uma sub-humanidade. Lembro-me de um caso ocorrido com a tropa da Otan enviada para interferir na guerra civil iugoslava. Uns soldados alemães, em um momento de folga, resolveram divertir-se fazendo uma fita de vídeo onde eles apareciam massacrando aldeias e fuzilando civis indefesos. Os rapazes receberam uma reprimenda pela brincadeira de mau gosto, mas o caso mostra como a violência e a tortura, mesmo eliminadas na prática, permanecem no imaginário das pessoas. Outra cena eu vi na televisão, passada aqui no Brasil mesmo. Em um quartel, os soldados se exercitavam enquanto cantavam:

Tortura é uma coisa muito fácil de fazer,
pega o inimigo e maltrata até morrer.

O comandante deles não deu a mínima importância para o caso, e até permitiu que os cinegrafistas gravassem a cena. Segundo declarou, não acreditava que aquilo fosse afetar o caráter dos recrutas.

Não creio que a tortura desaparecerá do Brasil enquanto prevalecer a distinção entre “respeitáveis” e “não-respeitáveis”. É certo que alguns países bem desenvolvidos da Europa Ocidental torturaram muito mais gente do que os nossos militares de 64, e fizeram isso há menos de 50 anos atrás, mas havia uma diferença primordial: lá, todos os torturados eram perseguidos políticos. Que eu saiba, não se torturava ladrões e estelionatários na Alemanha nazista. Em toda a Europa Ocidental, mesmo nos países sob ditadura, a tortura a presos comuns era prática extinta havia mais de 100 anos, ao contrário do que acontece no Brasil da época atual (no caso da Itália houve uma exceção: os mafiosos também foram torturados em larga escala, assim como os militantes antifascistas. Mas, considerando o poder e a organização da Máfia, um mafioso não pode ser considerado exatamente um “criminoso comum”, mas tinha, de fato, um status semelhante ao de um subversivo).

A morte da tortura é a igualdade entre as pessoas. Afinal, aquele que admite que seja torturado um cidadão em tudo equivalente a si próprio, está abrindo o precedente para, no futuro, ser ele próprio torturado. Lembro-me, muitos anos atrás, do seqüestro de Aldo Moro na Itália pelas Brigadas Vermelhas. Alguém sugeriu que se torturasse um terrorista preso que parecia saber coisas interessantes. Outro alguém, não me lembro agora quem foi, respondeu: “A Itália pode permitir-se a perda de Aldo Moro, mas não pode permitir a implantação da tortura”.

A Itália perdeu Aldo Moro. E quem hoje em dia se lembra das Brigadas Vermelhas?


 

O Enigma da Esquerda Nacional

Tendo já vivido um número razoável de anos, e observado e procurado compreender o que se passava ao meu redor, há um enigma que, apesar de extraordinariamente trivial, ainda não consegui encontrar para ele resposta satisfatória: como é que a esquerda nacional, não tendo conquistado o poder, conquistou nossas mentes de maneira tão inquestionável?

O tempo passa, as crises vão e vem, os antagonismos se sucedem, sempre opondo uma “direita” e uma “esquerda” — rótulos que, no contexto brasileiro, não significam muita coisa mais do que “nós” X “eles” — os de lá se digladiam com os de cá, mas o discurso se torna invariavelmente monocórdio quanto vem à baila certos tópicos de importância fundamental — o papel do estado na economia, a crença em um estado paternal e apaziguador dos conflitos sociais, a paixão pelos monopólios estatais, o protecionismo, o nacionalismo de fancaria, a crença na causa “social” da criminalidade e de todos os conflitos, e sobretudo, a total incapacidade de compreender o que é o capitalismo, mesmo da parte daqueles que fingem defende-lo. Em suma, o ideário da esquerda é unanimidade, mesmo entre aqueles que nunca foram de esquerda. Como se explica isso?

Em primeiro lugar, é preciso chamar cada coisa pelo seu nome correto. Poucas coisas tem sido mais raras no Brasil do que pensadores e militantes de direita, e o que se chama de “direita” de ordinário são os conservadores, ou qualquer um que se opõe à esquerda. Mas a esquerda, esta sim, sempre foi organizada e militante nestas paragens. É certo que poucos, no passado, ousaram pegar em armas para defender uma revolução socialista, mas até hoje quase todos bebem com sofreguidão o discurso dos militantes, que parece não ter envelhecido nada nestes 30 anos — pelo menos no Brasil, pois no resto do mundo, como se sabe, essas idéias foram desmoralizadas e perderam o encanto, tendo sido amplamente demonstrada a sua ineficácia, para não mencionar os crimes que se cometeram em nome delas. Por que nós continuamos a cultua-las? Oxalá causas psicológicas, talvez um sentimento de culpa pela enorme miséria dos destituídos que vemos a nossa volta, ou a desilusão e a falta de auto-estima típicas de uma classe média que não é maioria no país, e que jamais esteve próxima de deter o poder para usa-lo em benefício próprio. Mas não insistirei por aí, pois o psico-social é um terreno em que eu não piso direito. Voltarei ao centro da questão: como explicar o paradoxo de um movimento tão derrotado na arena política haver sido tão vitorioso na arena intelectual?

Como já disse no início, não tenho a resposta definitiva. Mas tenho algumas pistas, bem como a certeza de que todo o paradoxo nada mais é do que o produto de uma falha de observação. Talvez não haja mesmo nenhuma relação entre domínio político e domínio da mente. Vejam o caso da Rússia, cujo povo, após 70 anos de comunismo, não deixou de amar o capitalismo, e amar até exageradamente, haja visto a desordem econômica por que passou e ainda passa este país. E notem que, ao findar-se o comunismo, da população russa apenas uma ínfima porção de indivíduos muito idosos havia conhecido o regime anterior à revolução (regime que, tal como o brasileiro, não era capitalista, mas pré-capitalista). Durante todos aqueles anos, geração após geração, o pecaminoso desejo de consumo permanecia latente no coração e na mente dos soviéticos... Conosco sucede o contrário, temos nostalgia do comunismo que nunca se implantou aqui.

E penso que a razão da persistência do apego ao ideário esquerdista seja justamente o fato de eles nunca haverem conquistado o poder. Não conquistando o poder, não puderam mostrar sua verdadeira face, e ficaram intactos em nossa imaginação. Tal como Che Guevara. De fato, certos exotismos da esquerda tupiniquim evidenciam que ela nunca passou de um estado de infantilidade ideológica; em outras palavras, era um projeto que nunca foi além da imaginação e da fantasia. Como se explica, por exemplo, que a grande maioria dos militantes de esquerda conhecidos por aqui não fossem operários, mas sim intelectuais, literatos, membros da classe média ou mesmo alta? Pois se foram essas duas categorias — intelectuais e classe média — justamente as mais perseguidas pelo comunismo de facto? Não refiro-me ao comunismo tupiniquim, mas o comunismo de Stalin, Mao e Fidel. A classe média cubana inteira mudou-se para a Florida. Os exilados do bloco soviético eram cientistas, escritores, artistas. Mao Tsé-Tung costumava repetir que a intelectualidade era a mais baixa e desprezível de todas as ocupações humanas, e comprazia-se em humilhar publicamente os intelectuais. Curiosamente ele próprio fora um professor e intelectual em sua juventude, talvez essa sua atitude fosse um recalque por haver sido um dia esnobado por seus pares.

Em toda a História, poucos exemplos se encontram de um movimento político mais patético, mais derrotado, e ao mesmo tempo tão insidioso quanto a esquerda brasileira. Não só desapontaram seus seguidores com sua fragorosa derrota na guerrilha, como ainda submeteram-nos ao vexame de ter que render graças a Deus por esta derrota ter acontecido, agora que todos sabem qual era o seu verdadeiro intento — sequer transformar-nos em uma nova Cuba, mas em uma nova Albânia, o regime comunista mais fechado e economicamente desastroso de todos. Na época achávamos que os rebeldes do Araguaia eram da linha chinesa. Pois eram da albanesa... Mas com tudo isso, as surradas idéias socialistas, varridas para o lixo em todo o mundo desenvolvido e mesmo em boa parte do mundo não-desenvolvido, continuam a ressoar entre nós plenas do frescor da juventude! Este fato não atesta mais do que nosso atraso e nossa incapacidade de compreender o que observamos. Lembro-me do comentário da septuagenária escritora Doris Lessin, que queria vir ao Brasil para conhecer os propagadores dos ideais de sua juventude (“Ouvi dizer que lá ainda existem comunistas! Acho isso um charme. Como se nada houvesse acontecido!”, declarou). Havemos de nos tornar um museu ideológico, repetindo sempre os mesmos chavões, nos quais os patronos da esquerda no Velho Continente apenas fingem acreditar, e desconfio, riem-se deles às gargalhadas entre um gole e outro no vinho? Não basta termos que receber deles tecnologia ultrapassada, moldes de automóveis que já estão obsoletos, mas temos também que ficar com a carcaça das idéias que eles lançaram no passado e jogaram fora no presente?

Penosamente ridículo é o exotismo-mor de nossa esquerda intelectual: a crença de que marginais e bandidos são proto-revolucionários, indivíduos oprimidos e fundamentalmente honestos que só aderiram ao crime por revolta contra a exploração capitalista que supostamente os reduziu à miséria! Não é por acaso que os traficantes de hoje tem um linguajar impregnado de chavões revolucionários. As pessoas que acreditaram nessa sandice poderiam ter olhado em volta e constatado que jamais houve um regime comunista que fosse condescendente com marginaizinhos. Tão logo Mao tsé-Tung conquistou o poder, sua primeira providência foi mandar dizimar à bala os incontáveis bandidos que infestavam as estradas da China, e se não fizesse isso, não poderia fazer circular um único caminhão. A China até hoje é o país campeão em execuções capitais, e tem uma criminalidade baixíssima. Cuba também não hesitou em mandar ao paredón até mesmo ex-heróis da revolução que se envolveram com o tráfico de drogas. E diga-se de passagem, ao agir dessa maneira, estavam sendo de todo coerentes com o credo comunista. Pois, para uma ideologia que afirma que os indivíduos só valem por seu trabalho, e não por suas posses, a ponto de a constituição da antiga União Soviética ter um artigo que solenemente dizia, “Aquele que não trabalha não tem o direito de comer”, nada é mais odioso que a figura de um bandido, um indivíduo que não trabalha e ainda se apossa do resultado do trabalho dos outros.

Que revolução socialista ainda é viável na América do Sul, neste início de século XXI? Aquela promovida pelas FARC na Colômbia, e que está em curso há 40 anos? Nenhuma revolução dura 40 anos! Define-se uma revolução como a derrubada violenta de um governo visando a sua substituição. Uma revolução, portanto, é um meio para se chegar a um fim, o qual pode ser descrito como uma nova ordem política, outro governo, outro regime. Ora, se o processo revolucionário perdura por 40 anos, sem nem haver derrubado o governo, nem implantado uma nova ordem, então não se trata mais de uma revolução. O que era um meio para se chegar a um fim tornou-se um fim em si mesmo. E qualquer pessoa minimamente bem informada e sem má fé sabe que os próceres das FARC há muito descartaram suas boas intenções (se é que algum dia as tiveram) e, sob a capa da revolução social, desejam apenas se locupletar do dinheiro do tráfico de cocaína e tiranizar a seu bel prazer as regiões que dominam. Dado que boa parte da esquerda tupiniquim recebe os representantes das FARC’s com tapete vermelho, a dúvida que fica é se trata-se de pessoas ingênuas ao extremo, ao ardilosas ao extremo. Aliás, duas características bastante recorrentes em nossos militantes.

Seja lá aonde formos parar com tudo isso, fica só uma certeza: os heróis da esquerda serão sempre bem festejados. Quem não viveu a época do regime dos generais, hoje em dia tem a impressão de que foi um regime sanguinário, que perseguiu, encarcerou, torturou e fez desaparecer milhares de vítimas. Cunharam até uma expressão para este período — os anos de chumbo — emprestada do título de um filme alemão sobre a época do Baader-Meinhoff. Qualquer um que sabe fazer contas vê que o total de guerrilheiros mortos pelas forças da repressão foi menor que o número de mortos em um fim de semana movimentado na periferia de São Paulo. O número de torturados foi insignificante se comparado ao número de marginais comuns que volta e meia são torturados nas delegacias pelo país afora. Se houvesse um livro narrando, desde o princípio, todo o histórico de violências e arbitrariedades cometidos pelas forças policiais no Brasil, os casos de violência cometidos pelas forças armadas contra militantes de esquerda ocupariam, se tanto, um parágrafo. Houve uma quantidade muito grande de mortos e desaparecidos, sim, mas em nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile (se formos dividir o número das vítimas da repressão pela população total destes países, a discrepância torna-se maior ainda, pois todos estes países tem população muito menor que a brasileira). Em nossos vizinhos do cone sul, o quadro é precisamente o oposto do nosso: lá o crime comum está relativamente sob controle, mas há um grande histórico de violência política. Nossos jornalistas e cineastas não acreditam. Empenhados em glamurizar as façanhas de um punhado de guerrilheiros fuleiros — seus colegas — por longo tempo ficaram soberbamente desinteressados da verdadeira guerra que ocorre diariamente nas favelas, bem debaixo de seus olhos.


 

O que é pior: nazismo ou comunismo?

É possível que o século XX tenha sido o mais sofrido e desgraçado da história da humanidade. A despeito dos extraordinários progressos em diversos campos da ciência e do bem-estar, foi no “longo século vinte” que ocorreram as guerras mais arrasadoras da história, em termos de destruição e número de vítimas.

Mas guerras sempre existiram em todas as épocas. O século XX, contudo, reservou uma singularidade sinistra — foi nele que surgiram as duas ideologias mais sanguinárias da história, o nazismo e o comunismo. Ambos mataram milhões de pessoas. Qual delas foi a pior? Nesse início de século XXI, quando o nazismo está extinto, e o comunismo acuado, parece uma questão meramente retórica, boa para uma discussão informal. Convém lembrar, contudo, que estas ideologias ainda estão vivas na cabeça de muito gente, de modo que não se pode descartar a hipótese de que um dia ainda vamos ter este dilema pela frente.

Um homem, no passado, efetivamente passou um dia por este dilema, e da boa solução do mesmo dependia a sorte de seu povo, e por tabela, de toda a humanidade. Este homem era Winston Churchill, e a época era 1941. Comandando a heróica resistência do povo inglês, ele ouviu a proposta de uma paz em separado e aliança para um ataque conjunto da Alemanha e da Inglaterra contra a URSS. Embora visceralmente anti-comunista, Churchill recusou de pronto. Foi nessa época que surgiu aquela sua frase famosa: “Se Hitler invadir o inferno, eu me aliarei ao demônio!”. Da acertada decisão que o grande estadista britânico tomou, devemos o fato de estarmos aqui agora. Churchill já havia percebido que os nazistas, então no auge do poderio, não tencionavam destruir somente a URSS, mas também o ocidente. A URSS, por outro lado, dilacerada pelos expurgos de Stalin, não representava senão uma ameaça de longo prazo.

Mas excluídas as circunstâncias do momento, qual regime é, intrinsecamente, pior? O nazista ou o comunista?

Se o parâmetro for o número de vítimas, o comunismo é pior. Os nazistas exterminaram seis milhões de judeus, enquanto que as vítimas dos expurgos e das grandes fomes na URSS e na China chegam a dezenas de milhões — setenta, oitenta, cem, nem quero saber, pois é sinistramente frívolo especular sobre dezenas de milhões de vidas humanas. Mas há uma diferença fundamental. As seis milhões de vítimas do nazismo foram mortas de forma deliberada, premeditada e planejada com esmero. Excluindo-se os dissidentes que foram executados, a grande maioria das vítimas do comunismo não foi morta deliberadamente, mas foi deixada morrer. Pela fome, pelo frio, pela exaustão, pela falta de medicamentos. Se, do ponto de vista de quem foi massacrado, saber se houve ou não intenção de matar é uma questão inteiramente irrelevante, não o é do ponto de vista de quem analisa a história e tem a perspectiva de uma dia defrontar-se com um regime deste tipo. Assim, chacinar de forma fria e industrial é efetivamente pior do que deixar que pessoas morram como moscas. E ainda, de forma subjetiva, pode-se responsabilizar os nazistas por todas as mortes da segunda guerra mundial, já que foram eles que começaram a guerra. E de forma ainda mais subjetiva, alguém já responsabilizou o “capitalismo” por todas as mortes da primeira guerra mundial, já que esta guerra se originou das rivalidades das potências imperialistas...

É difícil, portanto, comparar a malignidade do regime nazista com a malignidade do regime comunista, pois ambos foram malignos de forma peculiar. Só as diferenças são incontestes. O nazismo, se tratou com inaudita crueldade a seus inimigos — tanto aqueles que se declararam inimigos quanto aqueles a quem o nazismo declarou como inimigos, como os judeus — por outro lado foi muito benevolente com seus cidadãos. É um dado embaraçoso para as gerações atuais da Alemanha, mas o caso é que o nazismo proporcionou uma espetacular recuperação econômica da Alemanha depauperada (e sem auxílio americano), deu pleno emprego aos trabalhadores, saúde e otimismo para todos. Reside nisso a resposta à pergunta tantas vezes formulada, sobre como e por que os alemães permitiram tão dócilmente que o nazismo se instalasse. Todos na verdade estavam tão satisfeitos que preferiam fechar os olhos aos desmandos de Hitler, e havia verdadeiro pavor quanto à possibilidade de retorno ao caos inflacionário da república de Weimar.

Já o comunismo, em termos de atrocidades cometidas contra opositores — prisões, censura, torturas, fuzilamentos — não chega a ser extraordinário. É uma ditadura entre tantas. Mas tem uma característica verdadeiramente única entre todos os regimes políticos que já surgiram um dia neste planeta: matou em maior quantidade a cidadãos apolíticos do que a ativistas políticos adversários. A esmagadora maioria das pessoas que pereceram sob um regime comunista não tinha a menor intenção de empunhar uma arma, ou mesmo de fazer um discurso contra o ditador — eram meros trabalhadores, camponeses, famílias inteiras que morreram à míngua em um país onde a coletivização forçada causara a paralização da produção agrícola, milhões de inocentes deslocados à força para regiões estéreis, e nas cidades outros tantos morriam porque a paralização do comércio não permitia chegar a suas mãos diversos ítens de primeira necessidade. Não foram vítimas de fuzilamentos, mas da incúria administrativa. Nenhum regime produziu mais repulsa no cidadão comum do que o comunista. Como se sabe, Cuba produziu mais exilados do que Chile, Argentina e Brasil juntos, sendo que os exilados do cone sul eram ativistas políticos perseguidos pela ditadura, e os exilados de Cuba eram profissionais que, em sua maioria, nunca se interessaram por política, apenas queriam viver em um país onde pudessem ser donos de alguma coisa mais que a roupa do corpo.

E no entanto, muitos por aqui ainda sonham com o comunismo regenerador que um dia irá redistribuir nossas riquezas e proporcionar a todos uma vida digna. São gente que não tem a menor idéia de como é realmente viver em um país comunista, mas isso também não é desculpa, já que a finalidade do raciocínio é inferir, mediante deduções, aquilo que não está ao alcance dos olhos. Quem não enxerga o óbvio, ou não sabe raciocinar, ou age de má fé. Muitos alemães orientais fugiram para a Alemanha Ocidental. Alguém já viu um alemão ocidental fugir para o lado oriental? Muitos chineses fugiram para Hong Kong. Alguém já viu algum cidadão de Hong Kong buscar na China refúgio contra a opressão colonial britânica? Muitos cubanos fugiram para os Estados Unidos. Até aí não é novidade, pois cruzar a fronteira e ir trabalhar no norte é objetivo de mexicanos, porto-riquenhos, dominicanos e inclusive brasileiros. Mas se estas pessoas são pobres e buscam uma vida melhor, por que não emigram para Cuba, onde não há desemprego, a saúde e a educação são gratuitas? Ao invés de ficar especulando sobre Cuba, minha geração bem poderia ter tomado uma medida mais simples: perguntar a um cubano o que ele acha de Fidel. Mas ora, povo cubano, quem são esses caras? Cuba não era deles, Cuba era nossa. Ela era o nosso orgulho, a nossa revanche contra o imperialismo americano, a nossa esperança contra a ditadura. Ela tinha que ser do jeito que imaginávamos. Alguns ainda estão imaginando. As ilusões generosas só vão embora com muita relutância. Aqueles que ainda tem um lampejo de raciocínio recusam-se a ficar apenas repetindo palavras-de-ordem, e vem com “fatos”: Cuba tem 100% de alfabetização, a saúde é gratuita, boa parte da população tem curso superior, há mais médicos por habitante do que em qualquer lugar nas Américas.

Mas os bem informados hão de saber que a Cuba pré-Fidel era um país acima da média sul-americana, próximo do padrão da Argentina. A Cuba de 1958 tinha já 80% de alfabetização. Examinando de perto os benefícios da Ilha de Fidel, o que se verifica é que tudo não passa de um engodo, um jogo de soma-zero onde o que se ganha de um lado se perde do outro. Vejamos:

— Aqui o trabalhador passa necessidade porque não tem dinheiro para comprar o que precisa, em Cuba o trabalhador passa necessidade porque não tem o que comprar com o seu dinheiro;

— Aqui faltam médicos nos ambulatórios, em Cuba há médicos para todos, mas os remédios que eles receitam nunca são encontrados;

— Aqui poucos chegam ao ensino universitário, em Cuba a universidade está franqueada a todos, mas ninguém melhora de vida depois de formado. O salário de um engenheiro é de 30 dólares por mês, e ele em geral sobrevive como mecânico de automóveis.

O fato é que o trabalhador cubano nunca viveu melhor que o trabalhador do resto da América do Sul. As agruras são as mesmas, apenas camufladas sob a forma de racionamento, necessidade de haver vagas para todos, etc. A única diferença indiscutível entre o primeiro e o segundo é que o segundo tem a seu dispor muito mais opções de entretenimento. Tal como o alemão que vivia sob Hitler.

Mas chega a ser perda de tempo discutir o comunismo em Cuba, pela simples razão de que Cuba não é mais comunista strictu sensu — afinal, que comunismo é esse onde o dólar circula? Que moral há para enaltecer os valores do trabalho em um lugar onde a ocupação mais rendosa é a de garçon que recebe gorjeta em dólares? Se o igualitarismo deve ser mantido, então se deveria confiscar os dólares daqueles que tem família em Miami, e distribui-los para todo o povo. Isto não será feito por razões óbvias — aqueles que remetem os dólares deixariam de fazê-lo, e Cuba sobrevive dessas esmolas. O regime comunista cubano foi reduzido a uma caricatura, assim como o chinês, que tornou-se um regime híbrido que alguns batizaram de “capitalismo autoritário”. A prioridade dos dirigentes cubanos e chineses é se manter no poder. Se necessário vai-se o comunismo, mas fica a ditadura. O único regime comunista genuíno que ainda existe no planeta é o norte-coreano. Por enquanto.


 

Minha “paixão” pelo capitalismo

Repetidas vezes tenho sido interpelado a respeito de uma suposta paixão que eu teria pelo capitalismo, suposição esta fundamentada no fato de que eu estou sempre a defende-lo. Tendo sempre que repetir os mesmos argumentos, aproveito esta oportunidade para coloca-los por escrito e disponibiliza-los em uma página na internet onde todos podem lê-los, e verei se assim me dão um pouco de sossego.

O caso é que eu não tenho paixão alguma pelo capitalismo. Meu apego ao capitalismo é o mesmo apego que Winston Churchill tinha pela democracia, que ele afirmava ser “o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. Pois do capitalismo digo a mesma coisa: é o pior dos sistemas econômicos. Excetuando-se todos os outros...

Apontam-me nosso desastroso quadro social, e perguntam-me como posso defender um regime que produziu tamanha miséria e disparidade de renda. Nesta afirmativa há duas falsidades: nem o regime brasileiro é capitalista, nem foi o capitalismo que introduziu no mundo a miséria e a desigualdade. Quem pode afirmar que o Brasil é capitalista se aqui nada funciona como no mundo desenvolvido? Lá, aumenta-se as taxas de juros e a inflação cai. Aqui, aumenta-se as taxas de juros e a inflação sobe. Não sou economista, mas sei de uma experiência simples que volta é meia é repetida em escolas. Tome duas caixas-pretas, iguais por fora, com botões de um lado e luzes coloridas do outro. Se, ao apertar os mesmos botões numa e noutra faz acender luzes diferentes em cada uma delas, pode-se concluir que o mecanismo que elas contém não é igual. Minha escolha pelo capitalismo vem tão-somente da observação do mundo atual: os países mais prósperos, e ao mesmo tempo os mais igualitários, são justamente aqueles onde o capitalismo é mais antigo. O regime que temos, quer se chame pré-capitalismo, capitalismo selvagem ou neo-mercantilismo, notoriamente não é um capitalismo desenvolvido em toda a sua plenitude. Já a sua contrapartida — o socialismo — foi, sim, experimentado em toda a sua plenitude em vários lugares do mundo, e fracassou em toda a sua plenitude em todos os lugares onde foi experimentado. Como se vê, não nos resta muita escolha.

Embora os dados que me levaram a esta conclusão estejam aí, à vista de todos, a acachapante maioria dos brasileiros obstina-se em ignora-los. Segundo o ex-frei Leonardo Boff, o capitalismo é um regime perverso, “gerador de opressão, eventualmente desdobrando-se em repressão”. Mas a simples idéia de que um sistema econômico possa receber um adjetivo como “perverso” parece-me absurda. É como se alguém viesse dizer-me que o Sistema Operacional Windows XP é ganancioso, ou que o Padrão VHS é vaidoso. Sistemas não tem qualidades morais humanas, sistemas funcionam ou não funcionam. Apenas indivíduos tem qualidades morais boas ou más, e se todos os indivíduos de uma certa comunidade pensam e agem conforme um determinado padrão, a qualidade moral que se aplica ao indivíduo pode ser creditada à comunidade, no coletivo. Mas a recíproca, contudo, não é verdadeira. Um poder coercitivo pode proibir que indivíduos façam determinadas coisas, e mediante uma dura repressão pode efetivamente impedir que estas coisas proibidas sejam feitas. Mas não pode obrigar os cidadãos, no íntimo, a deixar de desejar aquilo que foi proibido. Estudos demonstram que os norte-americanos nunca beberam tanto quanto durante os 12 anos de vigência da Lei Seca. Haja visto que setenta anos de comunismo não tiraram dos russos o gosto pelo capitalismo. O caso é que a conduta moral de uma sociedade inteira só pode ser reformada se for reformada a moral individual de cidadão a cidadão, e isto só é conseguido muito lentamente, mediante a ação de filósofos, educadores, e sobretudo, de religiosos. Refiro-me, é claro, a religiosos verdadeiros, cuja mensagem dirige-se a indivíduos, e não a líderes messiânicos, cuja ambição é tiranizar a comunidade.

Se os sistemas não são intrinsecamente maus, por outro lado, admitamos, há determinados sistemas que só poderiam ter sido urdidos por gente especialmente perversa. Refiro-me, entre outros, ao comunismo, que matou (em geral de fome) milhões e milhões de pessoas no mundo todo. Há quem aponte o alto índice de desnutrição e mortalidade do terceiro mundo, e veja nisso prova de que o capitalismo também mata aos milhões. Mas desde quando foi o capitalismo que introduziu a miséria no mundo? Ela já existia nos sistemas econômicos anteriores — o mercantilismo, o feudalismo, a escravidão, até na vida comunal das primeiras comunidades neolíticas. A miséria apenas mudou de feição, tornando-se mais urbana no bojo da Revolução Industrial, fenômeno que está associado ao surgimento do capitalismo. A miséria urbana é mais visível, ao contrário da miséria rural, que fica escondida nos campos. A miséria urbana está sob as vistas de pessoas cultas, educadas e sensíveis, que podem se indignar e escrever libelos contra ela. A miséria rural fica sob as vistas de pessoas que, geração após geração, se acostumaram a vê-la como um fato natural da vida. Daí a impressão, freqüentemente reiterada, de que a Revolução Industrial multiplicou a miséria e fez nascer uma classe de desgraçados infelizes chamada proletariado. Mas foi justamente por juntar uma grande quantidade de trabalhadores no espaço exíguo de uma única unidade produtiva — a fábrica — que esta nova ordem econômica permitiu que os trabalhadores se unissem e expusessem suas reivindicações de forma coletiva e organizada. Operários situados em um mesmo galpão, executando as mesmas tarefas repetitivas, puderam pela primeira vez experimentar a consciência de que pertenciam todos a uma mesma classe. Assim, a livre organização dos trabalhadores em sindicatos, o direito de greve, as leis trabalhistas, tudo isso surgiu junto com o capitalismo. Nada disso existia no mundo anterior pré-capitalista, e tudo isso deixou de existir nos locais onde o capitalismo foi suprimido. Por conseguinte, não há nada mais contraditório, ou mesmo ridículo, do que um líder sindical que se proclame contrário ao sistema capitalista, sistema que deu condições para que ele existisse. Este tipo de coisa só pode acontecer em países como o Brasil, onde as pessoas não fazem a menor idéia do que é capitalismo.

Quem inventou o capitalismo? Quem inventou o comunismo? Os inventores deste último são conhecidos: um grupo de filósofos, que conceberam este sistema econômico a partir de suas elucubrações, e procuraram difundi-lo junto a trabalhadores que não tinham tempo nem cultura para filosofar. Esses filósofos eram, em geral, cidadãos de respeitável origem burguesa ou pequeno-burguesa, que jamais haviam sentido na própria pele as agruras de uma existência proletária, o que permite concluir que o alegado desejo que expressavam de melhorar a vida dos trabalhadores não era genuíno posto que não provinha de um trauma ou qualquer sensação física. Eles propagaram o comunismo simplesmente porque era uma idéia que os agradava, e que julgavam, cabia à massa aceitar este destino. No povo, viam apenas uma massa, onde não distinguiam indivíduos, muito menos direitos individuais. Já o capitalismo não tem inventores conhecidos. Surgiu espontânea e gradualmente. Ao contrário do que se pensa, as práticas capitalistas nunca foram exclusividade de mercadores e banqueiros. O homem do povo também podia emprestar um galão de aveia ao vizinho, ou fazer escambo de carneiros por cabras. Então, se o capitalismo é maligno, devemos concluir que boa parte da humanidade é maligna, e aquele que condena o capitalismo, ou está sendo hipócrita, ou deveria fazer um voto de pobreza e recolher-se voluntariamente a um convento. Coisa que, evidentemente, não está nos planos dos socialistas tupiniquins.


 

O que é a democracia?

Recentemente escrevi sobre o capitalismo, e expliquei porque eu o apóio. Não expliquei porque eu o amo — uma vez que eu não o amo — mas expus meus argumentos no sentido de mostrar que o capitalismo é preferível a outros sistemas econômicos. O mesmo tom que empreguei ao discutir o capitalismo pode ser empregado para discutir a democracia, e seria bastante oportuno fazê-lo, uma vez que este binômio — democracia e capitalismo — é uma constante nas nações mais prósperas e mais justas do planêta.

Não admira que democracia rime tão bem com capitalismo, pois a definição de ambos é bastante análoga: democracia é a liberdade no terreno político, e capitalismo é a libedade no terreno econômico. Tanto a eleição como o mercado são a expressão do desejo da maioria. Pelo candidato preferido, pelo produto preferido. Tal como referi-me em relação ao capitalismo, contudo, recuso-me a ver uma benignidade intrínseca na democracia, posto que a benignidade — assim como a malignidade — é uma característica que se aplica a indivíduos, e não a sistemas políticos ou econômicos. Se a democracia é a vontade da maioria, ela só pode conduzir ao poder o mais benigno dos candidatos, certo? Errado. Qualquer um com um mínimo de conhecimento de História é capaz de enumerar uma lista de canalhas que um dia venceram uma eleição. Análogamente, o mercado não é um instrumento de justiça, mas uma arena de luta onde nem sempre vence o melhor. Às vezes vence o produto que foi revestido de uma melhor estratégia de marketing, ou que beneficiou-se de subsídios ou outras coisas menos éticas. A definição de Winston Churchill foi lapidar: a democracia é o pior dos regimes políticos... bem, excetuando-se todos os outros. Abrahan Lincoln definiu o governo democrático como “remar um bote, tendo sempre a água pelas bordas”. Ele sabia o que estava dizendo, pois é até hoje o paradigma do governante democrático.

Um candidato eleito democráticamente não é, de modo algum, uma garantia de que seu governo realizará a vontade da maioria. Quando dizemos: “Fulano foi eleito presidente”, o que estamos afirmando, strictu sensu, é que houve um dia no passado — o dia da eleição — em que a vontade da maioria era de que Fulano fosse presidente. Mas nada impede que, no dia seguinte a sua posse, Fulano tome medidas impopulares, e não mais represente daí por diante o desejo da maioria. De maneira análoga, a História registra abundantes exemplos de déspotas que não chegaram ao poder democráticamente eleitos, mas que ainda assim desfrutaram da aprovação de seu povo por largo período de tempo (embora a moda seja todos negarem isto escandalizados quando o ditador é derrubado). Um bom exemplo foi Mussolini. Não, Hitler não, este foi eleito de forma plenamente democrática, fato que até hoje é embaraçoso para os alemães.

Se, conforme demonstrei, é altamente improvável que a vontade da maioria coincida com o melhor dos candidatos, qual é, então, a utilidade da democracia?

A democracia vale pelo contexto jurídico no qual ela se encontra inserida. É inconcebível a democracia sem o pacote de liberdades e garantias individuais. Quando nada, a democracia propicia uma maneira ordenada e pacífica de substituir o mandante incompetente a intervalos peródicos. Em regimes ditatoriais, a mudança de governo só pode ocorrer pela força, e o trauma da ruptura é sentido em vários campos, inclusive o econômico. Manter deputados e senadores custa caro, mas a revolução e a guerra civil são mais caras ainda. A prática democrática, a longo prazo, fomenta a solução negociada de conflitos, a estabilidade política e a civilidade dos cidadãos.

Um antigo ditado inglês dizia: “Os criados conversam a respeito de pessoas, os lordes conversam a respeito de coisas”. Com isto queriam dizer que a análise dos conceitos abstratos é própria das mentes mais elevadas, enquanto as mentes rasteiras só conseguem perceber aquilo que é concreto a seus sentidos. Não se deve, portanto, julgar as coisas pelas pessoas: a pessoa pode ser má, mas a coisa é boa. O presidente eleito pode ter sido um desastre, mas isto não invalida a eleição como método de escolha. O deputado pode ser um ladrão, mas nem por isso a instituição do parlamento deixa de ser a garantia do povo contra o poder absoluto. A democracia é uma coisa. Por vezes, para destruir a pessoa, se destrói a coisa junto. E depois se descobre que aquilo que foi fácilmente destruído não pode ser refeito com igual facilidade. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando um golpe militar depôs o presidente argentino Irigoyen em 1930, e desta forma interrompeu a normalidade constitucional que já durava décadas, e dentro da qual as classes médias vinham paulatinamente tomando o terreno da velha oligarquia agrária. Quando se tentou retomar a normalidade constitucional, já não era possível. Como se sabe, a Argentina viveu 60 anos de caos político, cujos efeitos até hoje não foram superados, e viu seu promissor destino de nação democrática e desenvolvida ser substituído por um prosaico fado terceiro-mundista. Aqueles que destruíram a democracia não perceberam que os regimes são mais longevos que as pessoas, e que a fórmula do progresso não é o brilhantismo individual do presidente, mas a estabilidade do sistema político como um todo.


 

Ecochatos & República de Paldora

Os ecologistas estão há tanto tempo em voga, que lhes é muito bem merecido o apelido de “ecochatos”. Eu por mim não tenho nada contra eles, exceto pelo fato de que eles se incluem, com incômoda freqüência, em uma destas duas categorias: os excessivamente tolos e os excessivamente espertos. Não posso deixar de experimentar uma certa nostalgia do tempo que não vivi — o tempo em que “ecologia” era um termo altamente técnico que denotava a complexa interação entre as espécies e o meio-ambiente circundante. Mas de criança já me lembro de haver lido essa palavra esquisita em livros infantis, e o resultado é que hoje todos se arrogam de conhecer muito bem o que é ecologia, enchem o peito e abrem bem a boca quando pronunciam esta palavra.

Quanto a mim, não me arrogo nada, mas pelo que a minha cultura geral feita de leituras aleatórias me permite saber, a coisa não é bem assim do jeito que é diáriamente proclamada pela mídia. Uma breve lista de Mitos X Fatos pode ser apresentada:

Mito 1: A amazônia é o pulmão do mundo.

Quem acredita nisso perdeu aquela aula do ginásio onde foi explicado que as plantas consomem gás carbônico e produzem oxigênio, sim, mas só durante o dia. De noite, o processo se inverte, de modo que o saldo é praticamente nulo. A verdadeira fonte do oxigênio atmosférico são os oceanos, expostos à radiação cósmica, que converte a água (H2O) em água oxigenada (H2O2), de ligações fracas, que logo se decompõe em oxigênio e hidrogêneo gasosos. O hidrogênio, muito leve, escapa da atmosfera, mas o oxigênio vai substituir aquele que respiramos ontem. A verdadeira importância da floresta amazônica está na manutenção do clima e em impedir que a erosão leve a terra ao mar.

Mito 2: O fim da floresta amazônica será o apocalipse.

Será um grande desastre, o clima mundial será drásticamente afetado, mas o mundo continuará existindo. Os efeitos nefastos poderão ser sentidos até no hemisfério norte, sem dúvida prejudicando as colheitas na Califórnia e na Flórida, mas o efeito será bem mais devastador na América do Sul. Se somos nós os maiores interessados em impedir que isso aconteça, não deixa de ser estranho que sejam estrangeiros aqueles que mais se levantem para defender a preservação da floresta amazônica e condenar nosso descaso.

Mito 3: O índio tem consciência ecológica e preserva a floresta.

O índio não tem a menor idéia quanto à interação das espécies com o meio-ambiente, coisa que tampouco era sabida pelos europeus até a era científica. O índio não sobrevive sem destruir o que está a sua volta: ele derruba árvores para obter material para fazer sua oca (antes de ter machados de metal, ele usava machados de pedra), ele pesca espalhando no rio um veneno vegetal que mata muito mais do que ele vai consumir, ele caça fêmeas com filhotes. O que ocorre é que, como o número de índios é muito reduzido, essas depredações não chegam a ser significativas e a floresta se recompõe. O índio não preserva a floresta, eu diria que a floresta é que preserva o índio.

Mito 4: O índio mora na floresta.

O índio não mora na floresta. O índio mora em clareiras, onde suas ocas são erguidas. A floresta é inabitável por seres humanos, exceto aqueles que fizeram um severo treinamento de sobrevivência na selva. De fato, há lugares da floresta amazônica aonde nem os índios vão. Gostei da resposta que um índio deu certa vez a uma ecochata que lhe perguntou por que motivo ele passava o tempo em uma birosa na beira do rio, ao invés de ficar na floresta: “Porque não sou animal. Quem gosta de floresta é bicho”.

Mito 5: O índio não tem agricultura, e por esse motivo não destrói a floresta.

Diversas tribos já conheciam uma agricultura primitiva desde a época da chegada dos primeiros europeus ao Brasil. Foram, inclusive, os índios que inventaram a técnica da queimada, mais tarde copiada pelos caboclos. Estima-se, até, que na época do descobrimento não haveria muito mais mata atlântica do que hoje em dia, graças ao uso indiscriminado da queimada pelos índios. Com o extermínio das tribos litorâneas, a floresta se recompôs, chegando ao auge por volta do século 18, quando então o aumento da população dos colonos no litoral impôs a sua destruição até os 8% a que se encontra reduzida hoje (esses 8%, em termos absolutos, perfazem uma área maior do que todas as florestas que restam na Europa).

Mito 6: O índio, em seu ambiente, tem saúde perfeita, e adoece tão logo entra em contato com os brancos.

É verdade que o índio adoece fácilmente após o contato com doenças para as quais não tem imunidade, mas lembrando a expectativa de vida das tribos sem contato — não mais que vinte e poucos anos — chega a ser uma piada insistir que o índio na natureza tem saúde de ferro. Seu meio-ambiente também possui agentes patogênicos, e a principal causa de morte nas tribos isoladas — bem como em todas as populações neolíticas — é a inanição, em épocas de escassez, que debilita o indivíduo e faz com que ele morra de infecções e ferimentos banais, que até o mais miserável favelado poderia curar com uma ida a um posto de saúde. Em certas tribos belicosas, a causa-mortis número um é, de longe, o assassinato. Sem contar que muitas tribos praticavam o infanticídio.

A insistência na repetição destes chavões não pode ser atribuída apenas à ignorância ou ingenuidade. Há interesses inconfessáveis envolvidos, conforme já foi muitas vezes denunciado e poucas vezes levado a sério. Se é paranóia afirmar que os EUA já estão preparando uma expedição para a semana que vem, também é falta de informação afirmar que essa idéia lhes seja estranha. Na verdade, é recorrente, e tão comum que estudos a respeito são citados até em documentos militares não-confidenciais, como este que peguei ao acaso na internet, de autoria de um certo major J. Carl Ficarrotta, que reproduzo aqui*. É um interessante resumo das concepções que americanos e europeus em geral tem sobre a questão dos povos indígenas. Traduzirei alguns trechos:

Estamos no ano de 200X. Você é o comandante da Décima Divisão Montanhista de Infantaria Leve. A divisão foi designada a uma missão na nova República de Paldora, na América do Sul. Sua missão é conduzir uma Operação de Construção Nacional e assistir os paldoranos na manutenção e desenvolvimento de suas instituições democráticas

Paldora é um país novo. Foi fundado em 200Y depois que a desordem econômica e política resultaram na desintegração do Brasil. O país tem aproximadamente o tamanho do nordeste da América do Norte. Embora extenso em área, sua população é pequena. A maior parte do território é parte da Floresta Amazônica. Econômicamente a nação está naufragando. A guerra civil brasileira destruiu a maior parte dos negócios e das indústrias

Não é preciso grandes conhecimentos em geografia para perceber que a República de Paldora é a região norte do Brasil. De cara se nota uma mania norte-americana que prefiro atribuir, não à malícia, mas à ingenuidade: a crença de que é sua missão ensinar aos outros povos a prática da democracia. Esta convicção é reforçada por ser crença geral de que foi o exército americano que ensinou democracia aos alemães e japoneses após a segunda guerra, e desta forma pacificou estas nações. Entretanto, a democracia não é uma invenção americana: os fundamentos de suas instituições lhes foram legados pelo colonizador britânico. E é ridículo crer que os americanos possam “ensinar” democracia a quem quer que seja, pelo simples motivo de que o mundo não é uma escola, nem os americanos são os professores. Quem tem um conhecimento um pouco mais profundo de História sabe que tanto alemães quanto japoneses já haviam passado por experiências de democracia parlamentar no início do século XX, antes de cair na ditadura que os levaria à guerra. Ademais, os americanos também impuseram uma constituição a Cuba em 1903, e nem por isso Cuba tornou-se uma democracia.

Outro equívoco — este sim, um grosseiro erro de avaliação — é a convicção de que os povos indígenas brasileiros tem a capacidade de engendrar uma rebelião tão profunda que resulte em uma guerra civil e no conseqüente desmembramento da região. Estas tribos de poucas centenas de indivíduos combatem com tacape e facão, não tem nem remotamente a capacidade operativa para iniciar qualquer forma de rebelião geral, e mais importante do que tudo isso, não tem qualquer comando político unificado para lidera-las. Para isso, elas teriam que ser, não tribos, mas nações. Mas como a novilíngua ecologista impõe que elas sejam chamadas de “Nações Indígenas”, compreende-se o equívoco. Meu avô já dizia, quem mente muito, acaba acreditando na própria mentira...

Esta é uma missão de construção nacional. (...) Temos que aumentar o padrão de vida dos paldoranos. Isto significa tudo, desde construir escolas a dar vacinas. (...) Eu não quero dar ao povo a impressão de que estamos aqui por outra razão que não seja ajudar seu próprio governo

Algo de que vocês devem estar particularmente cientes é de que os paldoranos são um povo muito misturado. Parte da população consiste de uma classe média próspera, que facilmente se adaptaria a nossa cultura. Outras partes do país são menos avançadas. (...) A população da floresta consiste de tribos que ainda estão no estágio de caçadores-coletores.

A tribo que habita a sua área de operações são os tinís. Nosso conhecimento sobre eles é limitado. História: pouco se sabe dos tinís antes de 1998. (...) Em 1998, o Brasil lançou projetos de extração madeireira massiva no coração de suas terras. Por causa disso, o povo tiní foi descoberto. (...) Embora pacíficos em geral, eles tem a reputação de serem implacáveis com o inimigo. (...) Cultura: os tinís são um povo profundamente religioso, que dá grande importância a rituais e tradições. (...) O mundo dos tinís está em perpétuo perigo de destruição pelas forças do mal, conduzidas pelo deus serpente, Balzaar. Os constantes esforços e sacrifícios de Leal (o deus bom) impedem que o mundo seja destruído.

Após o primeiro mês, você recebe o convite de assistir a Cerimônia da Lua. (...) Após um jantar, a cerimônia acontece. Vários guerreiros conduzem uma mulher idosa e uma menina para uma área aberta. Em meio à cerimônia, eles re-encenam a luta entre Leal e Balzaar. Ao final, dois líderes tribais surgem carregando tacapes. Eles matam a golpes e desmembram a mulher e a menina. Este ato produz uma onda de aplausos e cânticos na assistência. (...) Você pergunta ao chefe da tribo o significado daquilo. Ele explica, essas duas foram ajudar Leal em sua luta contra Balzaar. Com seu sacrifício voluntário, elas asseguram a continuação do ciclo da vida

Ao deixar a cerimônia, você nota que os incidentes horrorizaram e enfureceram seus soldados. (...) Na manhã seguinte, você confirma que a cerimônia dura três dias, e mais execuções estão programadas. Você nota a tensão no ar a sua volta. (...) Eles dizem coisas como: ‘Isto está errado’ e ‘Temos que detê-los’. Você chama pelo rádio e ninguém vem. Você é o comandante, tome uma decisão

O dilema envolve uma questão que apaixona os ecochatos, o tal de “relativismo cultural”. Não conheço esbulho maior. O princípio do relativismo cultural afirma que nenhuma cultura tem o direito de julgar outra, devido ao fato que, conforme o sistema de crenças e valores peculiar a cada uma delas, aquilo que está errado para uns pode estar certo para outros. Colocando isso em bom português, os britânicos cometeram uma abominação na Índia ao proibir o secular costume de queimar a viúva na mesma pira funerária do finado esposo. Os adeptos do relativismo cultural se esquecem de que há uma contradição óbvia entre permitir que cada um tenha o seu próprio sistema de crenças, e ao mesmo tempo afirmar que a dignidade humana é una e que existem direitos humanos universais. O corolário inevitável da tese do relativismo cultural é afirmar que a dignidade humana não é universal. Assim, uma viúva indiana pode ser queimada viva porque é indiana, e uma viúva ocidental não pode ser submetida à mesma ignomínia porque é ocidental. E no entanto, todos sabemos que o sofrimento e a morte nada tem de relativo, mas antes, são bastante absolutos... e irreversíveis. O sofrimento não é inerente à cultura. Aceitar o relativismo cultural é aceitar que as pessoas não tem o mesmo valor de parte a parte. Quem acredita nisso, ou é ingênuo a ponto de julgar que as diferenças entre os costumes de cada cultura são tão triviais quanto a diferença entre tomar café e tomar chá, ou então tem interesses inconfessáveis em manter os outros no obscurantismo.

Trocando em miúdos, este ensaio resume bem a estratégia que os pretensos defensores da ecologia desenvolveram para sua luta. Como eles decerto não esperam que os índios iniciem um bem-sucedido levante separatista, eles aproveitarão algum incidente menor, como uma refrega qualquer entre índios e lenhadores, e “descobrirão” um povo a que darão o nome de tiní ou outro qualquer, mas que na verdade será formado por indivíduos de diversas tribos diferentes, todos já devidamente cooptados pelas ONG’s. Este povo reclamará seu direito à auto-determinação, no que será apoiado por organismos internacionais, e uma “força de paz” será enviada para criar a República de Paldora, ou outro nome qualquer. O resto é filme de Sessão da Tarde... crendices pitorescas, muito índio dançando, se matando em sacrifícios rituais, afinal, o que se espera de selvagens? Mas que eu saiba, os índios da região amazônica não fazem sacrifícios humanos, nem nunca praticaram o canibalismo, que era costume apenas das tribos litorâneas. Um autêntico índio do Amazonas teria motivos para se sentir ofendido se lesse o que o Major Ficarrotta escreveu a respeito dele. Fica no ar a questão: se eles defendem a auto-determinação para os índios, por que, ao mesmo tempo, insistem em retratá-los como bárbaros selvagens, capazes de fazer sanguinários sacrifícios de gente? Ah! Mas isso quer dizer que este povo tão primitivo (coitadinho!) não pode ser deixado à própria sorte, mas necessitará ser tutelado por seus “generosos libertadores”. Até que o relativismo cultural se presta bem a objetivos de ordem prática...


 

Livro Partido

Poucos livros tem um título tão bem escolhido quanto Cidade Partida, de Zuenir Ventura. Lançado após 1968, O Ano que Não Terminou, confirma a reputação do autor como criador de títulos sugestivos, bem como o misto de brilhantismo e equívocos grosseiros que marca a geração 68.

Dividido em duas partes — o passado e o presente — o livro é de fato um livro partido, na medida em que a competência da primeira parte nada tem a ver com a repetição de acintosos clichês que marca a segunda parte. Zuenir é brilhante ao identificar, nos “dourados” anos 50, as sementes do caos que está agora à vista de todos. Entre as duas metades há um salto de 24 anos — de 1960 para 1994, ano da chacina de 21 pessoas em Vigário Geral, episódio que o autor considera emblemático dos novos tempos — e nesse salto, ele parece ter perdido a capacidade de unir as causas às conseqüências. Unir as causas, que identificou com competência, às conseqüências, que estão aí e não precisam ser explicitadas.

Zuenir e sua comitiva deslocaram-se numerosas vezes para a favela de Vigário Geral, tornaram-se íntimos e gravaram horas de conversa com Flávio Negão, o chefe do tráfico de área — fato que em si já me parece repugnante, mas vá lá, o homem é um jornalista e está fazendo o seu trabalho — mas o retrato que produz é a reedição pela enésima vez do surrado mito do bandido bonzinho, protetor da comunidade, primitivo mas de puros sentimentos, não mais que um inocente fantoche da “elite” maléfica.

Começa dando uma descrição da aparência do bandido, na qual procura afastar qualquer aparência ameaçadora: “lá ia pela rua, magro e minúsculo, anoréxico, com um vislumbre de cavanhaque e um bigode irrisório”. Ele conta como protege a comunidade: “‘Tomamos conta da favela 24 horas por dia. Tem duas turmas de vigias’. Como não cheira nem bebe, às seis da manhã Negão está sempre lampeiro para passar em revista as suas tropas. (...) ‘Procuro ensinar a eles. (...) Às vezes tenho que dar um arrocho maior. Mas só mato em último caso’.”

Que bonzinho, hein?

Ele conta como começou a vida de crimes: “O cara vai levando a gente para roubar um carro, depois rouba uma loteria, uma padaria, rouba uma farmácia, posto de gasolina. Eu nunca roubei foi ônibus, porque eu não queria roubar trabalhador. Ônibus só tem trabalhador.”

Magnífico! Ele entende perfeitamente a diferença entre um trabalhador e um capitalista. Um modesto comerciante, dono da padaria da esquina, é um desprezível membro da classe dos proprietários, e supostamente nunca viaja de ônibus...

Ele conta o que fez com uma mulher que traiu o bando:

Deve ter uns dois mês: foi o caso de uma mulher que rodou lá na boca e foi para a 39a DP. Chegou lá e disse pro delegado que sabia onde um moleque tinha escondido uma metralhadora. E levou os homes onde tava a arma. (...) O moleque pegou, não matou não. Deu um socão por dentro da cara dela e ela veio com o olho roxão aqui pra dentro. (...) Aí eu olhei pra cara dela e falei bem assim: ‘Vem cá! Não foi a senhora que foi na 39?’ ‘É, realmente eu fui lá na 39’ (...) Ela tava se passando como maluca. ‘Ah, é? Então vamo embora conversar!’ Levei lá na cachanga, peguei uma folha dela e tinha uns telefones da DRE. (...) Eu falei: ‘Não precisa falar mais nada não!’. Levei prum canto e quebrei ela logo.

Quando você diz que quebrou, quer dizer que você matou?

Eu matei, é. No caso, eu matei.

Você nunca sente remorso?

A gente fica sentido, né? Mas também tirar a vida da pessoa, vamo dizer, sem ter fundamento nenhum, eu não tiro. Tiro sim, quando tou sabendo o que tou fazendo.

Mas como é sábio o sentimento inato de justiça do simples e puro povo da favela! São eles o generoso e genuíno homus brasileirus, em seu estado natural, não contaminado pela justiça corrupta das elites... Será que os autores da chacina de Vigáro Geral também ficaram sentidos?

Um coronel do exército analisa a situação da cidade com uma imagem:

para ele, diante de peixes bravos dentro de um aquário, há três alternativas: mergulhar no aquário, desde que se saiba nadar tão bem quanto os peixes; tirar os peixes de seu habitat, isto é, do aquário, deixando-os sem oxigênio; retirar a água do aquário com canudinho, acabando aos poucos com o oxigênio. (...) O coronel demonstrou sua preferência pela última alternativa. ‘É preciso acabar com o oxigênio para os peixes bravos e oferecer cidadania para a população’, disse a seu interlocutor surpreso. Como vocês estão fazendo com o Viva Rio’.”

Os dois acabaram rindo porque Rubem César completou: “O problema, coronel, é que, enquanto a gente vai tirando com o canudinho, a água vai entrando aos baldes’.”

Zuenir surpreendentemente reconhece a falência da falácia que sua geração impingiu a todas as mentes, até aos ex-inimigos coronéis do exército: a crença de que o combate ao crime só pode ser feito eliminando-se as causas sociais do banditismo. Ora, qualquer um que conhece mínimamente a criminalística sabe que o fenômeno é complexo, não necessáriamente ligado a carências materiais, e que as causas sociais e psicológicas da criminalidade não podem, sequer, ser conhecidas completamente, muito menos eliminadas.

Ao final do livro, Zuenir chega à previsível conclusão:

Onde estará a cabeça desta cobra de que só se vê o rabo? Nesses dez meses tive a quase certeza de que o verdadeiro controle do tráfico de drogas no Rio não estava nas mãos desses moleques (...) São semi-analfabetos, a maioria nunca saiu do Rio, muitos não saem nem da favela, se forem jogados dentro de um aeroporto internacional de perderão...

Pronto! Chegamos ao ponto que o autor perseguia desde o início do livro — podemos dormir sossegados, os bandidos das favelas não passam de um bando de garotos levados, tão bobos, coitados, que se fossem levados ao aeroporto internacional se perderiam. Os verdadeiros e perigosos criminosos são os grandes traficantes de colarinho branco, membros da tal “elite” abominável cujos integrantes são sempre os outros. Mas quem são esses figurões? Flávio Negão prossegue:

— “Ah, isso eu já disse que num posso dizer pro senhor. É gente muito importante.

Mas essas pessoas vem aqui?

Que vem nada! Eu nunca vi a cara delas aqui. (...)

Quer dizer que eles é que são o verdadeiro crime organizado?

Ah, são, eles são muito organizados.

Mas quem são, afinal? Bem, já que não tem nome, podemos imaginá-los como quisermos. O rico. O delegado. O deputado. O empresário. O fazendeiro. O general. O almirante. O patrão. Qualquer um, menos o zé-povinho. Qualquer um, desde que esteja acima de nós. E assim, anestesiados pelo doce prazer que advém da falsa sensação de superioridade moral que experimentamos ao erguer o dedo acusador àqueles que, por este ou aquele motivo, estão acima de nós, consolamo-nos de nossa impotência frente a bandidagem. E assim vamos vivendo, se é que isso é vida.


 

Darcy e o Povo Brasileiro

O livro “O Povo Brasileiro”, lançado em 1995, foi anunciado como a obra-síntese do antropólogo Darcy Ribeiro, que ele levou exatos 30 anos para concluir. Veiculou-se até que Darcy estaria doente terminal em um CTI, do qual fugiu para refugiar-se em sua casa na praia de Maricá, com o firme propósito de juntar as anotações que se acumulavam ao longo de três décadas e por fim compor o livro. A vontade de terminá-lo era tanta, que acabou dando uma sobrevida ao doente de câncer Darcy.

Se, no entanto, alguém leva 30 anos para produzir um estudo em que não há, em absoluto, nenhum dado novo que ele já não houvesse citado, nenhuma conclusão nova que ele já não houvesse tirado, nem síntese alguma, isto denota de forma inequívoca que este alguém já está perdido em suas contradições — fato que Darcy obviamente não admitirá. Mas o livro é um bom resumo do amontoado de equívocos e fantasias em que caiu toda uma geração de intelectuais brasileiros (só uma?) e por este motivo merece ser analisado.

Darcy começa descrevendo a chegada do colonizador (ou invasor, como ele diz) ao Novo Mundo:

(...) Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram (...) a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. (...) Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena de seus ganhos, em ouro e glórias (...) Para alcançá-las, tudo lhes era concedido (...) Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente ali viesse ter.

Os recém-chegados (aliás, os ancestrais de Darcy Ribeiro) são descritos com uma má-vontade evidente, mas vá lá que é verdade que as concepções filosóficas de portugueses e índios fossem de fato bastante diferentes, bem como que a intenção dos europeus fosse mesmo fazer do Novo Mundo a arena de seus ganhos. Mas Darcy mergulha acintosamente no mundo da fantasia ao descrever como viviam os índios, que parecem saídos de um Jardim do Éden (idéia ingênua que deles faziam os viajantes europeus do século XVI, sobretudo aqueles que nunca haviam viajado para o Novo Mundo). Uma vida idílica de prazeres em meio à abundância, onde até os esforços necessários à sobrevivência (caçar, pescar, colher) seriam agradáveis. Mas isto contradiz frontalmente o que o próprio Darcy afirma no capítulo inicial de seu livro, quando mostra que os tupis estavam no estágio inicial da revolução agrícola, sujeitos às sazonalidades do clima tropical, que alternava estações de abundância com escassez. Caçar e plantar não eram, presumivelmente, tarefas tão fáceis e prazerosas. Darcy refere-se também à mítica Terra Sem Males, que os índios acreditavam existir além do oceano. Ora, se eles tinham necessidade de inventar mitos a respeito de uma suposta terra sem males, certamente que a terra onde habitavam tinha males, e muitos. Por isso mesmo eles estavam sempre se deslocando e guerreando, em busca de, se não da Terra Sem Males que não existia, ao menos dos sítios de maior abundância (sobretudo no litoral). Certamente que a costa brasileira não era um lugar que “podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a tanta gente viesse ali ter”. Uns teriam que ir embora para que os outros tivessem alimento. Em outro trecho, Darcy afirma que “a indiada não conhecia doenças, além de coceiras e desvanecimento por perda momentânea da alma”. Mas se não tinham doenças, por que sua expectativa de vida era tão baixa? A expectativa de vida de tribos isoladas que vivem no estágio neolítico é entre 20 e 30 anos, no mundo inteiro. Sem dúvida que não tinham as mesmas doenças dos europeus, mas aparentemente a vida na selva possui suas causa-mortis peculiares.

Para os índios, a vida era uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam, valentes. (...) Para os recém-chegados, muito ao contrário, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro

Chega a ser hilária a concepção do modo de vida dos índios (bons e solidários), que parecem ser hóspedes eternos de uma colônia de férias, enquanto os europeus (maus e gananciosos) eram condenados a trabalhar para viver. Até as guerras dos índios são apresentadas como um saudável esporte. Fantasia óbvia reportando ao mito do Paraíso e do Pecado Original.

Em determinado trecho, Darcy faz uma curiosa observação acerca da economia monocultora de exportação e a formação do quadro social brasileiro:

O ano de 1800 representou uma virada na história brasileira. A economia exportadora atravessava um período de declínio, o que constituía, certamente, um desafogo para a população. (...) Os revezes (...) e a conseqüente queda do poderio do empresariado latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação — o café —, que viria rearticular toda a força de trabalho para um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de proletariado externo

Que a monocultura de exportação é um modelo econômico obsoleto, mercantilista e anterior ao capitalismo, disso ninguém duvida. Mas para Darcy, a solução não é passar para o estágio seguinte (o capitalismo industrial), e sim voltar ao estágio anterior pré-mercantilista, com o desligamento da economia brasileira do mercado global, de modo que o povo pudesse ter um desafogo e a oportunidade de se “estruturar para si mesmo” — presumo que isto signifique viver em uma casinha de sapê, plantando e pescando para comer. O surgimento do café, que seria o grande motor da economia brasileira por mais de cem anos, é por ele considerado um acontecimento infausto. Acredito que essa propensão em mover tudo para trás tem causas psicológicas, uma crença irracional de que no primitivo se encontraria a pureza e a felicidade perdidas. Para Darcy, primeiro os colonos deveriam se transformar em caiçaras, viver da agricultura e da pesca de subsistência por um tempo indefinido, para depois, quem sabe — sonho supremo! — converter-se de volta em índios a correr nus pela floresta. Esta idéia fixa de Darcy se revelou também em seu esdrúxulo projeto de criar aldeias-modelo para caboclos na amazônia, onde eles mantivessem contato com sua cultura original e não a perdessem (Darcy parece esquecer-se de que os caboclos da amazônia são descendentes de migrantes nordestinos, e por conseguinte seus ancestrais não são índios amazônicos, mas sim tribos do litoral do nordeste, de cuja cultura perderam o contato há mais de três séculos).

Mas infelizmente para Darcy, o café apareceu e estragou tudo. Entretanto, existe um exemplo localizado onde as coisas se passaram como Darcy queria. Refiro-me à região de Parati, no estado do Rio de Janeiro, que três séculos atrás foi um porto importantíssimo para o escoamento do ouro de Minas, mas que perdeu toda a importância quando as rotas se mudaram. A região estagnou e os latifundiários abandonaram suas propriedades, deixando atrás ruínas de porteiras e casas-grandes até hoje avistadas pelos excursionistas. O povo, então, “teve um desafogo” e “a oportunidade de se estruturar para si mesmo”. E o fizeram, na medida do possível. Tornaram-se caiçaras e foram viver da pesca artesanal e de roçados de subsistência que plantaram nas terras abandonadas. Passaram-se três séculos. No início dos anos 60, a região de Parati era a região mais pobre do estado do Rio de Janeiro, a única ainda não servida por luz elétrica, com grande parte da população analfabeta. Por esta época construiu-se a estrada, e teve início o turismo, que proporcionaria um renascimento à região. De fato, Parati tornou-se um lugar da moda, e até nome de automóvel e do barco de Amyr Klink. Alguns dos descendentes dos antigos proprietários vieram reclamar suas terras, alguns posseiros foram expulsos e foram parar em favelas — mas de modo geral, o padrão de vida da população é agora muito superior ao que era antes. Não há mesmo outra possibilidade senão atribuir tamanho rousseaunismo a causas psicológicas complexas encerradas na mente do falecido Darcy Ribeiro...

Ao referir-se ao domínio do crime organizado nas favelas, Darcy aponta um culpado:

Outra expressão da criatividade dos favelados é aproveitar a crise das drogas como fonte local de emprego. Esta ‘solução’ (...) reflete a crise da sociedade norte-americana que com seus milhões de drogados produz bilhões de dólares de drogas, cujo excesso derrama aqui

Faz sentido. Realmente a culpa da tragédia das drogas é tanto do produtor quanto do consumidor. Mas quem disse que nós produzimos e exportamos drogas? Em seu cacoete de sempre culpar os EUA por todo o mal do mundo, Darcy esqueceu-se de que nós não somos produtores, e sim consumidores de drogas. Aplicando a sua lógica, deveríamos é sair da classe das vítimas — a Colômbia, a Bolívia — para ingressar na classe dos culpados, junto com os EUA... O excesso desse bilhão não é derramado aqui pelos EUA, nós é que fomos buscá-lo no mercado.

É bastante interessante o modelo que Darcy traça da pirâmide social brasileira:

Nome da Classe Integrantes
Classes dominantes Patronato (senhorial parasitário, empresarial contratista);
Patriciado (estatal, civil);
Estamente Gerencial Estrangeiro
Setores intermediários Autônomos (profissionais liberais, pequenos empresários);
Dependentes (funcionários, empregados)
Classes subalternas Campesinato;
Operariado
Classes oprimidas Marginais (trabalhadores estacionais, recoletadores, volantes, empregados domésticos, biscateiros, delinqüentes, prostitutas, mendigos)

 

No topo se encontram o patronato (eventualmente parasitário), aqueles que detêm o capital, e o patriciado, aqueles que detêm o poder. Ninguém duvida de que poder e capital andam juntos, mas é curiosa a inclusão aqui do estamento gerencial estrangeiro. Esta minúscula quantidade de executivos assalariados que para cá são mandados, no mais das vezes por curto período e sem visto permanente, não pode sequer ser considerada parte da sociedade brasileira, mas Darcy não apenas a inclui como lhe credita um poder exorbitante: “Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida.”

A classe média é citada meio de passagem, e apresentada mais como aliada servil das classes altas: “Todos propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem”. As classes subalternas também são coadjuvantes: “Seu pendor é mais para defender o que já tem e obter mais, do que para transformar a sociedade.”

Mas a conceituação que ele dá para a classe pobre é deveras curiosa. Pelo nome (oprimida) e pela estranha coleção de categorias que a compõe. Comecemos por esta última. Não me parece que uma empregada doméstica ficaria satisfeita ao saber que Darcy classificou-a junto com delinqüentes e prostitutas. Aliás, Darcy parece ignorar que as prostitutas vêm de todas as camadas sociais, e não só dos pobres. De modo geral, Darcy acredita que a pobreza remove a dignidade dos indivíduos: um trabalhador estacional, um biscateiro, mesmo honesto, é essencialmente equivalente a um delinqüente, posto que ambos tem baixa renda. Porém, ainda mais significativo é o nome que ele dá a este extrato: classes oprimidas. Não é a mesma coisa que batizar a classe alta de “dominante” e a classe baixa de “subalterna”, pois estes termos fazem sentido ao expressar uma posição relativa dentro de um eixo de renda. Mas “oprimida” é um adjetivo que designa uma situação ocasional de opressão, que a princípio pode acometer a indivíduos de qualquer classe social. Ao tornar um adjetivo sinônimo de um substantivo, Darcy está dizendo que existe uma relação biunívoca entre ambos: é a opressão que causaria a pobreza; não houvesse opressão, não haveria pobreza. A situação natural das sociedades supostamente seria a vida digna em termos materiais, é a opressão que cria a situação artificial de pobreza. Assim, um delinqüente e uma prostituta são marginais porque a opressão deliberadamente infligida sobre eles pelas classes altas obrigou-os a agir desta maneira, e por conseguinte, são inocentes e podem ser classificados junto com os trabalhadores pobres porém honestos (será que os policiais corruptos também se incluiriam nessa categoria?) Para resolver este estado de coisas, Darcy propõe uma ação que destrua o poder do opressor — a revolução. “Desfazer a sociedade para refazê-la. (...) Isso porque só tem perspectivas de integrar a vida social rompendo toda estrutura de classes”.

Isto tudo endossa aquilo que eu apontei no artigo A Produção e a Distribuição de Riqueza: a riqueza é algo material, palpável, mensurável, que não pode ser criada, e tampouco pode ser destruída; só pode ser transferida, acumulada ou distribuída. O corolário deste raciocínio é que aquilo que falta ao pobre é o mesmo que o rico tem excesso (como se a culpa da fome de um fosse o outro comer demais), e por conseguinte, o rico — não importa como conseguiu sua riqueza — é intrinsecamente culpado pela miséria do pobre. As causas deste estado de coisas não seriam macro-econômicas, estruturais ou de insuficiência da produção, mas puramente políticas: os ricos (opressores) deliberadamente impõem a miséria aos pobres (oprimidos), e só a revolução pode dissuadi-los desta malvadeza. Assim é a crença de Darcy, e de boa parte de nossa intelectualidade.

Darcy se enlanguece ao dissertar sobre as matrizes raciais do povo brasileiro, e mergulha de vez no mundo da fantasia. É digno de nota o seu comentário sobre as manifestações da cultura popular:

O fundamental, porém, é que milagrosamente o povo, sobretudo o negro-massa, continua tendo erupções de criatividade. Esse é o caso do culto a Iemanjá, que em poucos anos transformou-se completamente. Essa entidade negra (...) foi arrastada pelos negros do Rio de Janeiro para 31 de dezembro. Com isso aposentamos o velho e ridículo Papai Noel, barbado, comendo frutas européias secas, arrastado num carro puxado por veados. Em seu lugar, surge, depois da Grécia, a primeira santa que fode. A Iemanjá não se vai pedir a cura do câncer ou da AIDS, pede-se um amante carinhoso e que o marido não bata tanto.”

Não entendo por que motivo é meritório que Iemanjá seja “uma santa que fode”, e depreciativo que o carro de Papai Noel seja puxado por veados. Alguma coisa contra os gays? Não sei dizer que linguagem é essa que Darcy emprega, mas seguramente não é antropologia.

Isso significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa de civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz.”

Que somos parte do mundo ocidental (até geograficamente) não há dúvida. Mas o resto da frase é um amontoado de argumentos emocionais, racistas e desprovidos de qualquer significado científico. Estaremos destinados a ser a sede de um império, a Nova Roma? As raças negra e índia são intrinsecamente melhores, ou pelo menos, mais alegres?

O resto do livro não vale a pena ser lido, muito menos comentado.


 

A Nova Abolição de Cristovam

Publicado em junho de 2002 na revista Isto É, o artigo de Cristovam Buarque — Por Uma Nova Abolição — aponta uma analogia entre a abolição da escravatura, ocorrida no passado, e a necessidade presente de “abolir” a pobreza. Com este fim, ele defende um projeto que supostamente acabaria com a pobreza em uma década ao custo de R$40 bilhões por ano. Não chega a ser muito inspirador o artigo, mas também não é mera coleção de chavões. Na verdade, percebi nele um interessante painel dos erros conceituais que tem sido desde sempre repetidos por nossos políticos e intelectuais, frutos de uma abordagem necessariamente polarizada — povo X elite, esquerda X direita, capitalismo X socialismo — muito embora a “elite” sempre seja os outros, a direita praticamente não exista no Brasil (também são os outros), e o nosso regime econômico se pareça tanto com o capitalismo quanto uma chaminé se parece com um pára-raios. Já apontei essas distorções em vários artigos de minha página. Em suas afirmações, Cristovam revela-se confuso e perdido entre os antigos dogmas do pensamento de esquerda, nos quais já não crê integralmente, e sua constatação da real complexidade dos fenômenos sociais e econômicos, os quais não entende direito. Mas a confusão mental não deixa de ser um sinal de que ainda existe um fiapo de raciocínio, posto que, intelectualmente falando, nada há mais semelhante ao silêncio dos cemitérios do que o discurso monocórdio dos militantes. Munido de paciência, procurarei apontar, uma a uma, as contradições neste labirinto de pensamento tortuoso.

ISTO ÉCriança continua sendo sua principal preocupação?

CristovamContinua. Toda criança na escola, toda escola de qualidade. Se fizermos isso, o resto se resolve. É claro que junto tem a erradicação da pobreza. Do ponto de vista conceitual, creio que estou contribuindo ao romper com a visão tradicional de que a pobreza se erradica através do crescimento econômico. Ele é um instrumento fundamental para aumentar a riqueza, não para reduzir a pobreza. Até há algumas décadas, havia lógica e evidências na idéia de que aumentando riqueza se reduziria a pobreza porque a riqueza se espalhava. A riqueza não se espalha, concentra-se. A estrutura econômica força a isso. E a maneira de erradicar a pobreza também não é desarticular a economia dos ricos como se pensava na época da proposta socialista.

Cristovam faz várias afirmações corretas — que a base de tudo é a educação de qualidade, que o crescimento econômico pode ser concentrador de riqueza, que a proposta socialista está superada. Mas a colocação é feita de forma a induzir ao erro. Ao concluir que o crescimento não é a solução, posto que concentra a riqueza ao invés de espalha-la, insinua-se que o crescimento econômico per si não traz nenhum benefício para o pobre, ou que, pior ainda, o enriquecimento do rico é conseguido ao custo de empobrecer o pobre. Há um enorme mal-entendido nisso. É verdade que o crescimento econômico pode causar o aumento na concentração de riqueza (embora isto não seja a regra), mas o que sucede, na verdade, não é o aumento apenas da renda do rico, mas sim o aumento diferenciado das rendas do rico e do pobre. Tanto a renda de um quanto a renda do outro aumentam, mas a renda do rico aumenta mais rápido que a renda do pobre. Uma vez que em uma família de operários todos trabalham, uma situação econômica onde haja pleno emprego por si só permite o aumento da renda familiar, mesmo que os salários não tenham aumentado nada. O crescimento acompanhado de concentração de renda tem sido uma característica da economia brasileira nas últimas décadas, mas está longe de ser exclusividade nossa. A economia dos EUA também tem apresentado uma tendência concentradora, e a concentração de riquezas, no mundo todo, é hoje ligeiramente maior do que era anos atrás. Não conheço fórmulas infalíveis para combater esta tendência, mas conheço alguns exemplos. Veja o caso da Coréia do Sul, que foi, desde os anos sessenta, o exemplo mais notável de crescimento econômico acompanhado de distribuição mais eqüitativa de riquezas. Este resultado foi conseguido graças a investimentos massivos na alfabetização e na educação básica. Há uma lógica nisso: o pobre vive do trabalho, a educação aumenta a qualidade deste trabalho, e portanto, aumenta o valor deste trabalho (desde que, é claro, se esteja em uma economia de mercado. O socialismo educou as massas e produziu doutores que ganham 30 dólares mensais). A Coréia do Sul, desta forma, segue o mesmo caminho do Japão, que é hoje o país onde há menor distância entre ricos e pobres no mundo inteiro. Nessa mesma época (anos sessenta), o que fizemos por aqui? Algumas tentativas. Houve o boom do ensino superior, mas como os ensinos médio e básico não tiveram uma expansão similar, eles não puderam suprir um pool adequado de candidatos à universidade, e o resultado foi uma queda aguda na qualidade do ensino superior — aumenta a quantidade, baixa a qualidade. O governo dos generais tentou o Mobral, lançado com alarde, mas de pouca eficácia. Já a esquerda, alijada do poder, via o ensino básico como mero pretexto para doutrinação política das massas (método Paulo Freire). O fato é que ninguém, seja “direita” ou esquerda, percebeu a real importância da educação básica como motor do crescimento econômico.

ISTO ÉAumentar o salário mínimo é um bom começo?

CristovamDobrar ou triplicar o salário mínimo em curto prazo é demagogia. (...) Aí quebra a economia brasileira, que foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres. (...) A solução para o problema da pobreza da pobreza não está no salário e sim na garantia de que todos terão acesso a bens e serviços essenciais. É mais ou menos como na época da escravidão. A abolição não aconteceu para aumentar a renda do escravo nem para resolver um problema de crescimento econômico. Era uma questão ética.

Cristovam está ciente de que não se cria riqueza por decreto, o que já é um bom começo. Mas seu raciocínio derrapa no maniqueísmo piegas. A economia brasileira, diz ele, “foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres”. Mas todos sabemos que a única demanda que a economia atende é a demanda do mercado. Os ricos não são mais gananciosos ou mais egoístas do que os pobres, eles simplesmente detém uma parcela maior do mercado por terem mais capital para gastar ou investir. A analogia que Cristovam traça entre a escravidão e a pobreza sugere que esta, assim como aquela, é uma situação deliberadamente imposta ao indivíduo por uma classe (os donos de escravos antigamente, os ricos hoje em dia) e que poderia ser abolida mediante em ato político-legal (uma lei de abolição). Isto é simplório. Uma coisa é status legal, outra coisa é quantidade de riqueza. Se houvesse uma fórmula infalível de acabar com a pobreza, ela já teria sido descoberta, mas tudo o que sabemos é o que a experiência mostra: quanto mais o Estado define políticas e regulamentos com a intenção de acabar com a pobreza, mais a pobreza se expande. Também é ilusória a idéia de que a riqueza do indivíduo não consiste de sua renda e de seus bens privados, mas sim dos serviços do Estado de que ele dispõe. Se fosse assim o comunismo não teria caído, pois o que não faltava nos países comunistas eram serviços do Estado para todos os cidadãos. Mas aparentemente os cidadãos preferiam ter renda e bens de consumo. Um favelado que não tem sequer comida para por à mesa não se sente mais feliz porque uma tubulação de esgoto é colocada na favela. Se pudesse escolher, ele preferiria ganhar melhor e construir sua casa em um local onde já houvesse esgoto. A ilusão de que a miséria das favelas deve ser sanada com obras de benfeitoria traz péssimas conseqüências. Para começar, as favelas são dominadas por facções criminosas, que não permitirão em seus domínios nenhuma obra que não seja de seu interesse. Isso implica em negociações com os líderes do crime, e o resultado, que está à vista de todos, é o estreitamento cada vez maior das relações entre bandidos e autoridades públicas.

ISTO ÉO que fazer com as famílias pobres até cinco anos?

CristovamA direita propõe o crescimento econômico para aumentar a renda e possibilitar o pagamento das creches particulares. A esquerda quer garantir creches para todas as crianças até cinco anos. As duas são fantasiosas. Para essas crianças seriam necessárias entre 30 mil e 50 mil creches. O Estado não tem dinheiro para fazer nem competência para gerenciar isso. Imagina contratarmos gente para trabalhar em 50 mil creches. A minha proposta é mais simples e dentro do mercado: garantir licença remunerada para toda mulher, trabalhadora ou desempregada, para que ela crie os filhos até cinco anos.

Cristovam insiste na dicotomia direita X esquerda como sinônimo de Nós X Os Outros, mas isso não é o mais importante aqui. Cristovam lança teses, mas os argumentos que expõe, ao invés de confirma-las, refutam-nas. Ele afirma serem fantasiosas tanto a proposta da “direita” quanto a da esquerda. A proposta da esquerda ele explica porque: falta dinheiro e pessoal (e isto é verdade). Mas a proposta da direita, ele abstém-se de dizer por que motivo seria fantasiosa. E se o Estado não tem dinheiro para montar creches, de onde viria o dinheiro para pagar essas longuíssimas licenças-maternidade? Alguém fez as contas para provar que isto realmente estaria mais “dentro do mercado”? E se as licenças serão pagas até a mulheres desempregadas, aí está um ótimo motivo para se fazer um filho atrás do outro ao invés de procurar emprego. E as que trabalham, quem garante que elas não vão continuar trabalhando ao invés de ficar em casa cuidando dos filhos, para assim acumular salário mais benefício? E talvez — ironia — pagar uma creche particular com essa renda extra... Cristovam, em outro trecho, reclama dos empresários que desvirtuam os incentivos fiscais e os usam para montar ranários, mas aparentemente considera que a perfídia e a malandragem são exclusivas dos ricos.

ISTO ÉA reforma agrária não seria a base de todos esses programas sociais?

CristovamSeria. Ela faz parte do que chamo de projeto áureo e está dentro da mesma lógica: mobilizar uma quantidade de terras sem homens e de homens sem terra para que juntos produzam comida. Isso resolve o primeiro problema da pobreza, além de gerar renda para aqueles que vão trabalhar no campo. Esse é um dos itens mais caros do meu projeto, R$ 5 bilhões por ano. (...).

Mais uma vez a lógica simplista a serviço do raciocínio simplório. Há terras sem homens e homens sem terras, então a solução é dar estas terras àqueles homens. Há pessoas passando fome, então a solução é plantar para comer. A solução de tudo seria, portanto, a agricultura de subsistência... Cristóvam esqueceu-se de questionar por que motivo aquelas terras estão “sem homens”. O imaginário esquerdista vê o latifundiário como um sujeito gordo, bruto, burro, egoísta e insensível, que por pura maldade mantém uma gleba imensa abandonada e coberta de capim, enquanto do outro lado da cerca os trabalhadores olham famintos... Pode-se até apontar muitos defeitos nos latifundiários, mas geralmente eles gostam de ganhar dinheiro. E se eles deixam aquela terra improdutiva, ao invés de plantar, é porque a exploração daquela terra não é economicamente viável no momento. Isto ocorre por uma variedade de razões: solos inférteis, clima ruim, ausência de vias de escoamento para a produção, baixa cotação no mercado. Esses mesmos fatores determinarão o insucesso dos assentamentos feitos naquelas terras. Bom, pelo menos os assentados poderão plantar para comer, e assim viverão sem fome, na base de uma dieta de arroz no almoço e feijão no jantar, sete dias por semana. Isto se uma praga ou seca prolongada não destruir o roçado — aí a fome voltará, e não restará sequer o recurso de jogar a culpa do latifundiário. A persistência dessa lógica simplista, de Terra Sem Homem = Homem Sem Terra = Fome, revela uma tenaz incapacidade de compreender os princípios mais elementares da economia de mercado. Há fome no Brasil, não devido à falta de terras para plantar, mas sim devido à falta de dinheiro para comprar o alimento produzido por fazendeiros profissionais. Aliás, a posse de um lote de terra não é de modo algum requisito fundamental à existência, a menos que se deseje voltar no tempo e recriar uma sociedade rural arcaica. O rótulo “Sem Terra” faz eco com “Sem Teto”, e sugere que o primeiro seria tão essencial quanto o segundo. Mas então, por que não há o movimento dos “Sem Restaurante”, “Sem Barbearia”, “Sem Consultório”, “Sem Botequim” ou dos “Sem Oficina”?

ISTO ÉNão é uma comparação injusta com um país de Terceiro Mundo?

CristovamNão. A pobreza brasileira é culpa dos brasileiros. FMI e imperialismo podem impedir o crescimento, mas não são eles os culpados da existência da pobreza.

É um notável progresso ouvir um petista reconhecer que a pobreza brasileira é culpa nossa mesmo (embora a questão toda seja demasiado complexa para que se possa falar de “culpa” de um indivíduo ou grupo de pessoas). Mas a seguir, ele se contradiz ao afirmar que o FMI e o imperialismo podem impedir o crescimento. Afinal, a culpa é deles ou não? Como de costume, todos abrem a boca para protestar contra as absurdas exigências dos banqueiros internacionais, que provocam a paralisação do crescimento, mas ninguém se lembra de questionar por que motivo, quase 200 anos após a independência, ainda temos uma dependência aguda do dinheiro emprestado, que não serve de base para nenhum crescimento auto-sustentado. Onde está a nossa poupança interna? Bem, aí a culpa é nossa mesmo. O índice de poupança por aqui nunca passou de 10% da renda, enquanto que em Taiwan ou na já citada Coréia do Sul, chega a 25%. E já era assim desde os anos sessenta, quando esses países eram mais pobres do que nós. Podemos procurar aumentar a poupança interna, ou então cruzar os braços e esperar que os banqueiros estrangeiros se conscientizem de suas graves responsabilidades quanto a sustentar o crescimento dos países de Terceiro Mundo...

Não sei dizer se Cristovam Buarque é um típico representante do ministério petista, ou se é uma exceção individual. Mas é provável que a mesma confusão de conceitos que apresenta aqui também esteja na mente de toda uma geração, que é pós-anos sessenta, pós-muro de Berlim, mas ainda bastante influenciada pela esquerda ortodoxa. Não deixa de ser um progresso. Há rachaduras no muro do dogma...

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Agosto 2003

 

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