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CARÁTER

Ralph Waldo Emerson


CARÁTER
Ralph Waldo Emerson
1803-1882

Tradução
Sarmento de Beires e José Duarte

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Ensaístas Americanos
Clássicos Jackson
Volume XXXIII
W. M. Jackson Inc.
Rio de Janeiro, 1950

Digitalização,
revisão para o português do Brasil e
Versão para eBook
eBooksBrasil.org

© 2003 — Ralph Waldo Emerson


 

CARÁTER
Ralph Waldo Emerson
1803-1882

 

O sol pôs-se, mas não se pôs a sua esperança,
As estrelas surgiram, sua fé despertou mais cedo.
Fixos na amplidão da via láctea,
Mais profundos e experimentados pareciam seus olhos.
E igualava seu sublime sofrimento
A taciturnidade do tempo.
Ele falou, e palavras mais suaves que orvalho
Invocaram novamente a Idade do Ouro.
Sua atitude mereceu uma galante reverência
Quando ocultou a extensão do feito.

_______________

Obra de sua autoria
Ele não louva nem deplora:
Entrega-a à própria sorte
Como age a resoluta natureza,
Com toda a sua criação.

 

Li que todos os ouvintes de Lord Chatham sentiam que havia algo de mais belo no homem do que tudo aquilo que ele afirmava. Acusam o nosso brilhante historiador inglês da Revolução Francesa de que sua narrativa acerca dos feitos de Mirabeau não corresponde ao alto conceito que faz do gênio deste. Se nos pusermos a comparar a exposição das façanhas dos Gracos, Ágis, Cleómenes e de outros heróis de Plutarco, concluiremos que a notoriedade dos personagens sobreleva o mérito do que realizaram. Sir Sidney, o Conde de Essex e Sir Walter Raleigh, homens de grande nome, todavia, pouco produziram. Não conseguimos descobrir a mais ínfima parte do valor pessoal de Washington, na descrição de seus empreendimentos. A autoridade do nome de Schiller é demasiado grande para seus livros. Essa disparidade entre a reputação e a obra, ou as anedotas, não se justifica, alegando-se que o eco é mais longo do que o estrondo do trovão. Antes, residia nesses homens qualquer coisa, gerando uma expectativa que excedia a todas as suas realizações. A mor parte da sua força era latente. É o que chamamos caráter — uma força discreta que atua diretamente pela presença e sem intermediário. Imaginamo-lo uma pujança indemonstrável, autômato ou gênio, cujos impulsos guiam o homem, mas cujos conselhos este não pode repartir; que lhe serve de companhia, pois tais homens são as mais das vezes solitários, ou, se porventura sociáveis, não dependem da sociedade, pois podem muito bem entreter-se a sós. O mais genuíno talento literário, ora aparece grandioso, ora mais modesto, mas o caráter é de uma grandeza estelar e irredutível. Aquilo que outros fazem pelo talento ou pela eloqüência, este homem faz por um certo magnetismo. “Metade da sua força, ele não emprega.” Suas vitórias são menos produto de luta do que uma evidenciação de superioridade. Conquista porque sua presença altera a marcha dos acontecimentos.

“Ó, Iole, como soubestes que Hércules era um deus?” “Porque”, respondeu Iole, “me senti alegre no momento em que nele pousei meus olhos. Quando contemplei Teseu, desejei pudesse vê-lo oferecendo combate, ou, pelo menos, conduzindo seus cavalos na biga. Mas Hércules estava sempre disposto à guerra. Conquistava de pé, caminhando, sentado ou fazendo o que quer que seja.”

O homem, de ordinário dependente dos acontecimentos, só em parte ligado ao mundo em que vive, e, ainda assim, de modo desajustado, parece nestes exemplos partilhar da vida das coisas e ser sujeito às mesmas leis que controlam marés e o sol, os números e quantidades.

Mas, para usar uma figura mais modesta, e que nos está mais próxima, observo que em nossas eleições políticas, onde este elemento, se é que aparece, só ocorre na sua forma menos delicada, compreendemos suficientemente sua incomparável contribuição. O povo sente a necessidade de seus representantes possuírem algo mais do que talento, isto é, a força de fazer crido o seu talento. Não satisfaz esse seu propósito se mandar ao Congresso um orador culto, perspicaz e eloqüente, se não for um homem que, antes de ter sido eleito pelo povo para representá-lo, o tenha sido pelo Todo Poderoso para defender uma causa — estando invencivelmente persuadido da justiça dessa causa — de sorte que as pessoas mais confiantes e as mais violentas saibam que ali está a resistência contra a qual se esboroarão a impudência, como o terror. Esta resistência é a fé numa causa. Os homens que sabem conduzir-se não precisam indagar dos seus eleitores o que devem fazer, mas são, eles próprios, o país que representam. Em ninguém mais são as emoções e opiniões da nação tão instantes e verdadeiras como nesses representantes. Em ninguém mais, tão isentas de participação da individualidade pessoal. Os correligionários, em casa, rememoram os discursos, recordam-se da coloração da face e, nela, como num espelho, compõem a fisionomia dos próprios rostos. As nossas assembléias públicas são uma prova à força varonil. Os nossos sinceros patrícios do Oeste e do Sul têm predileção especial pelo caráter e gostam de saber se os da Nova Inglaterra são homens de substância ou vazios de convicções.

A mesma força motora intervém no comércio. Há gênios no comércio, assim como na guerra, no Estado, ou nas letras; e o motivo por que este ou aquele homem é um vitorioso não se revela. É privilégio dele, eis tudo o que se pode adiantar a respeito. Olhai-o e sabereis facilmente por que ele venceu, assim como, se vísseis Napoleão, compreenderíeis o seu êxito. Pelos fins, induzimos os meios, o costume de enfrentar os acontecimentos diretamente e de não entrar em contato com eles em segunda mão, por meio da percepção alheia. A natureza parece aprovar o comércio, conclusão a que chegais quando virdes um comerciante inato, o qual é menos um agente particular do que preposto e ministro do comércio daquela. Sua probidade natural casa-se com o conceito que faz da fábrica da sociedade o suficiente para pô-lo acima de embustes; a todos transmite a sua convicção de que os contratos não devem ter interpretação privada. Adquiriu o hábito mental dos modelos de imparcialidade e de interesse público. Inspira respeito e desperta o desejo de negociar-se com ele, não só pelo espírito de serenidade e de honradez que o serve, mas pelo passatempo intelectual que proporciona o espetáculo de tanta habilidade. Esse comércio altamente disseminado, lhe institui seus portos nos cabos do Oceano Meridional e do Oceano Atlântico, acha-se centralizado no seu cérebro. Ninguém no universo pode substituí-lo a contento. Agora em seu escritório, adivinho claramente que trabalhou muito pela manhã, isto devido àquela carranca e constante sisudez, indisfarçáveis até pelo grande desejo de mostrar-se amável. Vejo nitidamente quantas providências foram tomadas; quantos “nãos” audazes foram proferidos, quando outros teriam articulado ruinosos “sins”. Surpreendo-lhe a consciência, justamente ufanosa, de ser agente e íntimo conhecedor das leis originais do mundo, dada a sua habilidade de consumado matemático e faculdade de associações remotas. Também ele crê que ninguém pode substituí-lo e que o homem nasce comerciante, ou não aprenderá a arte. Esta qualidade ainda requer maior esforço mental nos casos de menos complexidade. E maior a energia despendida nas menores companhias e nas relações particulares. De qualquer modo, é um agente extraordinário e incalculável. Neutraliza o excesso de força física. As naturezas mais fortes subjugam as mais fracas, afetando-as com uma espécie de sono. As faculdades são algemadas e não oferecem resistência. Talvez isto seja a lei universal. Quando o grande não pode fazer vir até si o pequeno, entorpece-o, assim como o homem anula a resistência dos animais inferiores, encantando-os. Os homens exercem entre si uma semelhante força oculta. Quantas vezes a influência de um verdadeiro mestre realiza passes de mágica! Um rio de comando parecia fluir de seus olhos, penetrando em todos aqueles que o contemplavam uma torrente de luz forte e triste, qual um Ohio ou um Danúbio, que os invadiu de pensamentos e coloriu todos os acontecimentos com as cores da mente do hipnotizador.

“Que meios empregastes vós?”, foi a pergunta feita à mulher de Concini, sobre o tratamento que fizera de Maria de Médici. A resposta foi:

“Apenas a influência que toda mente forte exerce sobre uma mente fraca.”

Não poderia César, em ferros, libertar-se das algemas e transferi-las para a pessoa de Hipo ou Tarso, o carcereiro? Será uma algema de ferro uma ligadura tão irremovível? Suponhamos que um traficante de escravos da Costa da Guiné conduzisse a bordo uma leva de negros que contivesse pessoas da estatura de Toussaint L’Ouverture; ou imaginemos que, sob essas máscaras tisnadas, ele tenha um bando de Washingtons cativos. Quando chegarem a Cuba ainda reinará a mesma tranqüilidade e a mesma ordem no navio? Nada existirá, além de cordas e ferros? Não haverá amor e respeito? Não haverá um lampejo de direito no espírito de um pobre capitão corsário? E não serão esses sentimentos suficientemente potentes para romper, frustrar, ou, de qualquer modo, subjugar a influência de uma ou duas polegadas de um círculo de ferro?

Esta é uma força natural, como a luz e o calor e com ela coopera toda a natureza. A razão por que sentimos a presença de um homem e não nos apercebemos de outro é tão simples como a lei da gravidade. A verdade é a cúpula do ser, a justiça aplicação da verdade na vida prática. Os temperamentos individuais medem-se numa escala, de acordo com a pureza deste elemento neles contido. A vontade dos puros emana destes para outras naturezas como a água de um vaso mais alto para um vaso mais baixo. Esta força natural não deverá ser mais desprezada do que qualquer outra. É exato que podemos sustentar uma pedra no ar por um momento, contudo, verdade também que todas as pedras cairão sempre. Qualquer exemplo de roubo impune pode ser citado, ou de mentira a que se deu crédito, porém a justiça vencerá e é privilégio da verdade fazer-se acreditada. O caráter é esta ordem moral vista na média de um temperamento individual. O indivíduo é um receptáculo. O tempo e o espaço, a liberdade e as necessidades, a verdade e o pensamento já não são deixadas a esmo. Ora, o universo é um cercado ou circunscrição. Tudo no homem reflete a própria alma. Com a natureza de que é dotado, procura influenciar todos os seres que o rodeiam; não é inclinado a perder-se na vastidão, mas por maior que seja a curva descrita, volve a atenção para os próprios interesses, afinal. Vivifica aquilo que pode e só vê o que vivifica. Abarca o mundo, assim como o patriota abarca a pátria, e o considera uma base material para o seu caráter e um teatro para ação. Uma alma sã está unida ao Justo e ao Verdadeiro como o magneto comporta-se no pólo, de modo que está para todos os observadores como um corpo transparente entre eles e o sol, e quem assim encaminha-se para o astro dirige-se outrossim àquela pessoa. Ele é então o veículo da mais alta influência para todos aqueles que não se encontram no mesmo nível. Os homens de caráter são, portanto, a consciência da sociedade a que pertencem.

A medida natural desta força é a resistência às circunstâncias. Os homens impuros julgam a vida pela versão refletida nas opiniões, nos acontecimentos e nas pessoas. Não são capazes de prever a ação até que ela se concretize. Todavia, o elemento moral da ação preexistia no autor e sua qualidade, boa ou má, era de fácil predição. Tudo na natureza é bipolar, ou tem um pólo positivo e um pólo negativo. Há um macho e uma fêmea, um espírito e um fato, um norte e um sul. O espírito é o positivo, o fato é o negativo. A vontade é o norte, a ação é o pólo sul. O caráter pode ser classificado como tendo seu natural lugar no norte. Distribui as correntes magnéticas do sistema. Os espíritos fracos são atraídos para o pólo sul, ou pólo negativo. Só vêem na ação o lucro, ou o prejuízo que podem encerrar. Não podem vislumbrar um princípio, a não ser que este se abrigue noutra pessoa. Não desejam ser amáveis mas amados. Os de caráter gostam de ouvir falar de seus defeitos; aos outros aborrecem as faltas; adoram os acontecimentos; vinculam a estes um fato, uma conexão, uma certa cadeia de circunstâncias e daí não passam. O grande homem sabe que os eventos são seus servos: estes devem segui-lo. Uma dada ordem de acontecimentos não tem poder para garantir-lhes a satisfação proporcional ao grau de imaginação de que são dotados. O espírito da bondade transcende a qualquer série de circunstâncias, ao passo que a prosperidade pertence a um determinado espírito e introduz a força e a vitória, seus frutos naturais, em qualquer ordem de acontecimentos. Nenhuma mudança de circunstâncias pode mudar um defeito de caráter. Alardeamos a nossa emancipação de muitas superstições, mas se quebramos qualquer ídolo só o fazemos por troca de idolatria. Que benefício recebi, deixando de imolar um boi a Jeová ou a Netuno, ou um rato a Hécate; não tremendo diante do Eumínedes, ou do Purgatório dos Católicos, ou do Dia de Juízo dos Calvinistas — se tremo à opinião pública, como chamamos, ou à ameaça de assalto, ou à contumélia, ou a maus vizinhos, ou à pobreza, ou à mutilação, ou a boatos de revolução, ou de homicídio? Se tremo, que importa a causa? Nossos próprios vícios tomam formas diversas, de acordo com o sexo, idade, ou temperamento, e, se tementes, prontamente nos alarmamos. A cobiça, ou a malícia que me entristecem, quando as atribuo à sociedade, me pertencem. Estou sempre cercado de mim mesmo. De outro lado, a retidão é uma vitória perpétua, celebrada não por gritos de alegria mas com serenidade, que é a alegria permanente ou habitual. É uma desgraça recorrermos a fatos para confirmação da nossa palavra e dignidade. O capitalista não procura o seu corretor a cada instante para tomar contas dos seus lucros, em moeda corrente. Contenta-se com ler nas cotações da Bolsa que suas ações subiram. O mesmo transporte que a ocorrência dos melhores acontecimentos me proporcionaria, devo aprender a experimentar, ainda mais puro, na verificação de que a minha posição melhora a cada passo e já comanda os acontecimentos que desejo. Tal exultação só se deteria diante da previsão de uma ordem de coisas tão singular que viesse a atirar nas sombras mais profundas todas as nossas conquistas.

A face que se me apresenta o caráter é auto-suficiência. Reverencio a pessoa que é muito rica, porque não posso concebê-la solitária, ou pobre, ou exilada, ou infeliz, ou protegida, mas um eterno protetor, benfeitor e bem-aventurado. O caráter é centralidade, impossibilidade de ser deslocado ou posto à margem. Um homem deve dar-nos a idéia de massa. A sociedade é frívola e divide o seu dia em fragmentos, sua conversação em cerimônias e derivativos. Mas visitando um homem talentoso, considerarei perdido o meu tempo se se limitar a amabilidades e cerimônias; antes, ele deverá saber colocar-se solenemente em seu lugar e deixar-me julgar, por assim dizer, sua resistência; saber que encontrei um valor novo e positivo! — grande deleite para nós ambos. Já é muito ele não aceitar as opiniões e usanças convencionais. Esse não-conformismo servirá de aguilhão e lembrança e qualquer pesquisador terá que ouvi-lo, em primeiro lugar. Não existe nada real ou útil que não seja um motivo de guerra. Nossas casas vibram com o riso e as palestras familiares, porém isso de pouco vale. Mais valor encontra-se no homem rude, inútil, problema e ameaça à sociedade não indiferente à sua passagem, pois que o adora ou o odeia — e ao qual toda ela, quer por seus líderes da opinião, quer por obscuros e excêntricos, sente-se ligada. Confunde a América e a Europa e destrói o ceticismo que prega “o homem é um boneco, vamos comer e beber, eis melhor que podemos fazer”, iluminando os não iniciados e desconhecidos. Complacência com o estabelecido e apelo ao público indicam falta de fé, cabeças desorientadas que precisam ver a casa construída para poderem entender a respectiva planta. O sábio não cogita nem das multidões nem dos grupos. Origens, origens, os que se movimentam por si, os absorvidos, os comandantes, pois ele é comandado, os assegurados, os primários — são bons, pois proclamam a presença permanente da suprema força.

As nossas ações deviam vazar-se matematicamente na nossa substância. Não há na natureza estimativas falsas. Uma libra d’água na tempestade oceânica não tem maior força de gravidade do que numa poça do solstício estival. Todas as coisas funcionam exatamente de acordo com a qualidade e quantidade. À exceção do homem, nada tentam que não podem fazer. Aquele tem pretensão: deseja e tenta coisas além de suas forças. Li num livro de memórias inglesas: “Mr. Fox (mais tarde Lord Holland) disse que deveria possuir o Tesouro; havia-o servido a contento e queria possuí-lo.” Xenofonte e seus dez mil eram bem iguais, no que tentaram; tão iguais que não se suspeitou ser o seu feito tão grande e inimitável. Contudo, nunca foi repetido e constitui um elevado marco na história militar. Muitos tentaram fazê-lo, mas não o igualaram. Só na realidade pode ser baseada qualquer força de ação. Nenhuma instituição será melhor do que seu instituidor. Conheci uma pessoa amável e culta que empreendeu uma reforma prática, contudo nunca entremostrou o fundo de amor de que era portadora. Adotara-a de ouvido e pela compreensão dos livros que lera. Toda a sua atividade era por tentativa, um pedaço de cidade projetado nos campos, e ainda era cidade, e nenhum novo fato, e não podia inspirar entusiasmo. Se houvesse alguma coisa latente no homem, um terrível gênio indemonstrável, agitando e embaraçando sua ação, logo o observaríamos. Não basta que o intelecto veja os males e seu remédio. Não teremos existência digna desse nome, nem nos identificaremos com o nosso meio, enquanto tivermos por estímulo o pensamento e não o espírito. Ainda não realizámos esse ideal completamente.

Estas são as propriedades da vida e outra manifestação é o sinal do incessante crescimento. Os homens devem ser inteligentes e graves. Devem, também, fazer-nos sentir que dirigem um futuro feliz, que se abre à sua frente e que derrama um esplendor na hora presente. O herói é mal compreendido e mal interpretado; não se deve deter, portanto, para esclarecer os desacertos de qualquer um: está novamente a caminho, ajuntando novas reservas e honras ao se domínio e inspirando novas reivindicações em vosso coração que vos arruinará se dissipastes velhos pertences e não mantivestes vossas relações com ele, aumentando a vossa riqueza. As novas ações são as únicas apologias e explicações das velhas ações as quais os nobres podem oferecer ou receber. Se vosso amigo vos desagradar, não vos deveis sentar para meditar sobre o fato, pois ele já perdeu a lembrança do episódio e duplicou suas forças para vos servir e, antes que possais erguer-vos novamente, vos encherá de bênçãos.

Não sentimos prazer em pensar numa benevolência que se meça somente pelo seu exercício. O amor é inesgotável e se seu reino estiver extinto, seus depósitos vazios, ainda assim encoraja e enriquece e o homem, mesmo adormecido, parece purificar o ar e sua casa para adornar a paisagem e fortalecer as leis. Sempre reconhecemos esta diferença. Identificamos os benevolentes por meios outros que não pela quantia que subscrevem para fins filantrópicos. Só os baixos méritos podem ser enumerados. Temei, quando vossos amigos vos disserem o que fizestes bem e narrarem tudo; mas quando permanecerem com olhares incertos e tímidos de respeito e certo descontentamento e silenciarem por muitos anos sua opinião, podeis começar a ter confiança. Os que vivem para o futuro devem sempre parecer egoístas aos que vivem para o presente. Portanto, foi divertido que o bom Riemer, que escreveu as memórias de Goethe, tivesse feito uma lista de suas liberalidades e boas ações, como tantas centenas de táleres* dados a Stilling, a Hegel, a Tischbein, um lugar lucrativo arranjado para o professor Voss, um posto junto ao Grão-Duque para Herder, uma pensão para Meyer, dois professores recomendados para universidades estrangeiras, etc., etc. A mais comprida lista de especificações de benefícios pareceria pequena. Um homem é uma pobre criatura se for medido assim. Pois, todos estes, em verdade, são exceções: a regra e a vida hodierna de um bom homem é fazer o bem. A verdadeira caridade de Goethe deve ser inferida da explicação que deu ao Dr. Eckermann, do modo como tinha gasto sua fortuna. “Cada predicado que possuo custou-me uma bolsa de ouro. Meio milhão do meu próprio dinheiro, a fortuna que herdei, o meu salário e a grande renda proveniente das minhas obras de cinqüenta anos foram gastos para instruir-me naquilo que agora sei. Além disso, vi” etc.

Confesso que não passa de uma mesquinha palestra proceder à enumeração de facetas desta força simples e rápida e estamos a pintar o relâmpago com carvão, mas nestas noites longas e de vilegiatura gosto de consolar-me assim. Nada o substituirá. Uma palavra aquecida do coração enriquece-me. Rendo-me à discrição. Como é gélido o talento literário ante este fogo da vida! Estes são os contatos que reanimam minha alma pesada e lhe dão olhos para penetrar a escuridão da natureza. Onde me julgava pobre, surpreendi-me muito rico. Daí advém uma nova exaltação intelectual para ser novamente replicada por alguma nova exibição de caráter. Estranha alternação de coesão e repulsão! O caráter repudia o intelecto e o excita, todavia; e o caráter transita em pensamento, é publicado nessa forma e depois envergonha-se diante de novas manifestações de dignidade moral!

O caráter é a natureza na sua mais alta expressão. É inútil imitá-lo ou combatê-lo. É um tanto passível de resistência e de persistência e de criação dessa força que frustrará toda emulação.

Esta obra-prima é melhor onde nenhumas outras mãos trabalharam, exceto as da natureza. Cuidados têm sido tomados para que os predestinados tenham sido dados à luz nas sombras, fora dos mil olhos de Atenas, que vigiam e celebram cada novo pensamento, cada emoção forte do gênio em formação. Duas pessoas ultimamente — filhos muito jovens do Altíssimo Deus — deram-me ensanchas para pensar. Quando eu pesquisei a origem da sua santidade e encantos para a imaginação, parecia que cada uma respondia: “Devido ao meu não-conformismo: Eu nunca cuidei das leis do vosso povo, ou ao que chamam seu evangelho, e economizei meu tempo. Fui contente com a minha própria pobreza de camponês; daí, essa euforia: minha ocupação nunca vos sugere isso; está isenta disso.” E a natureza me revela em tais pessoas que, na América democrática, nunca se democratizará. Quão enclausurada e constitucionalmente seqüestrada do mercado e do escândalo! Ainda esta manhã despachei algumas flores silvestres destes sátiros. Esses tragos frescos das fontes do pensamento e do sentimento que lemos, cujas primeiras linhas da prosa escrita e dos versos de uma nação, são um refúgio para a literatura numa época de elegância e de crítica. Quão cativante é a sua devoção aos seus livros favoritos, seja Ésquilo, Dante, Shakespeare, ou Scott, como que sentindo que têm u’a amarra nesses livros: que os tocar, toca-os; e especialmente a solidão dos críticos, os Patmos do pensamento, que lhes dá matéria para escrever, ignorando quais sejam os olhos que um dia se deitarão sobre a página. Poderiam eles continuar sonhando, quais anjos, e não despertarem para comparações e para serem lisonjeados! Todavia, algumas personalidades não se deixam estragar pelo louvor fácil e quando a veia do pensamento se precipita no fundo não há o perigo da vaidade. Amigos solenes os advertirão do perigo de virarem a cabeça com os toques de trombetas, o que não os impede de esboçar um sorriso de aprovação. Recordo-me da indignação de eloqüente metodista a uma leve repreensão de um doutor em teologia: — “Meu amigo, um homem nem pode ser louvado, nem insultado.” Mas perdoai os conselhos; são muito naturais. Lembro-me de que o pensamento que me ocorreu quando alguns estrangeiros talentosos e espirituosos vieram à América foi: “Sois vítimas por terdes vindo até aqui?”, ou, antes que esse, respondei-me a este: “Sois vitimáveis?”.

Como já afirmei, a natureza mantém estas soberanias nas próprias mãos e conquanto impertinentes, os nossos sermões e disciplinas dividem algum quinhão de crédito e ensinam que as leis moldam os cidadãos, caminha inalteravelmente e corrige, quanto pode, o errado. Ela não faz caso de evangelhos e de profetas, como quem tem muito mais que fazer e nenhuma sobra de tempo para perder com qualquer coisa. Há uma classe de homens, indivíduos que surgem de longe em longe, tão eminentemente dotados de introspecção e de virtudes que são unanimemente recebidos como divinos e que parecem ser a polarização daquela força que estamos considerando. Pessoas divinas são o caráter nascido, ou, para usar uma expressão de Napoleão, são a vitória organizada. São usualmente recebidas de má vontade, porque desconhecidas e porque opõem resistência ao exagero feito em torno da personalidade da última pessoa divina. A natureza jamais louva sua criação, nem faz dois homens iguais.

Quando vemos um grande homem, imaginamos uma semelhança com alguma personalidade histórica e profetizamos a seqüência do seu caráter e do seu destino, dedução que necessariamente falhará. Ninguém jamais resolverá o problema de seu caráter, de acordo com os nossos prognósticos, mas de acordo com a própria orientação, personalíssima e sem precedente. O caráter aspira à largueza; não se deve misturar com as pessoas, nem ser julgado por episódios colhidos na velocidade da vida quotidiana ou em poucas ocasiões. Como um grande edifício, necessita de perspectiva. Não pode formar, e provavelmente não forma, relações rapidamente; e não devemos desejar explicações precipitadas, seja na ética popular ou na nossa própria, da sua ação.

Vejo na escultura a própria história. Não considero Apolo e Jeová impossíveis em carne e osso. Todos os contornos que o artista perpetuou na pedra ele os vira animados e melhores do que a cópia que produziu. Temos visto muitas falsificações mas já nascemos crentes nos grandes homens. Como líamos com facilidade nos livros clássicos, quando eram poucos os homens, as menores ações dos patriarcas. Exigimos que um homem deva ser tão grande e colunar no panorama geral, para que mereça ser talhado, que ele reuniu todas as suas forças e partiu para tal lugar. As cenas mais fidedignas são as de homens nobres, que venceram ao entrar e convenceram os sentidos, como aconteceu ao mágico oriental, que foi mandado experimentar os méritos de Zaratustra ou Zoroastro. Quando o sábio Yunani chegou aos Bálcãs, contam-nos os Persas, Gushtasp designou um dia para a realização de uma grande assembléia do povo de todo o país e mandou colocar uma cadeira de ouro para o sábio Yunani. Então o idolatrado de Yezdam, o profeta Zaratustra, apresentou-se no meio da assembléia. O sábio Yunani, ao ver aquele chefe, exclamou: “Este corpo e este andar não mentem e nada, exceto a verdade, pode deles emanar.” Platão afirmou que era impossível não acreditar nos filhos dos deuses “embora falem sem argumentos prováveis ou necessários”. Sentir-me-ia infelicíssimo se não pudesse dar crédito às melhores coisas da história. “John Bradshaw”, diz Milton, “mais parece um cônsul, de quem o fasces não se separará com os anos. Tanto assim que, não somente no tribunal, mas por toda a sua vida, o contemplaríeis como que na sua missão de julgar reis.”

Acho mais digna de crédito, por ser informação mais remota, que um homem deva “conhecer o céu”, como afirmam os chineses, do que tantos homens devam conhecer o mundo. “O príncipe virtuoso enfrenta os deuses sem qualquer prevenção. Ele espera centenas de gerações pelo advento de um sábio e não duvida. Aquele que enfrenta os deuses, sem qualquer prevenção, conhece o céu; aquele que espera centenas de gerações, sem duvidar, pelo advento de um sábio, conhece os homens. Então o príncipe virtuoso comove e, durante gerações, governa o império.”

Mas não há mister procurarmos exemplos remotos. É observador obtuso aquele cuja experiência não lhe ensinou a realidade e a força da mágica, tão bem como a da química. O mais frio puritano não pode sair sem encontrar influências inexplicáveis. Um homem crava-lhe os olhos e os túmulos da memória entregam os seus mortos; os segredos que o fazem desgraçado, quer guardando-os, quer revelando-os, devem ser confessados; — outro olhar e ele não poderá falar, e os ossos do seu corpo parecerão perder a cartilagem; a entrada de um amigo proporciona-lhe graça, audácia e eloqüência; e há pessoas — ele não pode deixar de lembrar-se — que deram uma transcendente expansão ao seu pensamento e embalaram uma nova vida em seu peito.

Que se iguala em excelência às perfeitas relações de amizade, quando brotam de raiz tão profunda? A resposta suficiente aos céticos, que zombam da força e dos ornamentos do homem, está na possibilidade de intercâmbio jovial entre as pessoas, que cria a fé e os hábitos de todos os homens razoáveis. Dentre as dádivas que a vida pode proporcionar, nada conheço tão agradável como uma boa e profunda compreensão, que pode subsistir ao cabo de muitas trocas de bons ofícios, entre dois homens virtuosos, cada qual estando certo de si e certo do amigo. É uma felicidade que inferioriza todos os outros prazeres e desloca a política, o comércio e as religiões para plano secundário, pois, quando os homens se encontrarem, como devem, cada qual sendo um benfeitor, um indicador de estrelas, adornado de pensamentos, de ações e de realizações, seria o festival da natureza proclamado por todas as coisas. De tal amizade, o amor nos sexos é o primeiro símbolo, como todas as outras coisas são símbolos do amor. Aquelas relações dos melhores homens que, noutros tempos, considerávamos novelas da mocidade, tornam-se, no desenvolvimento do caráter, o mais sólido entretenimento.

Se fosse possível viver em boas relações com os homens! Se nos pudéssemos abster de lhes pedir qualquer coisa, de lhes pedir seu louvor, ou sua ajuda, ou comiseração, e nos contentássemos em obrigá-los à prática da virtude das leis mais antigas! Não poderíamos tratar com poucas pessoas — com uma pessoa — segundo as normas da lei não escrita e fazer uma experiência da sua eficácia? Não poderíamos proporcionar ao nosso amigo o regalo da verdade, do silêncio e da tolerância? Necessitamos procurá-lo afoitamente? Se formos afins, encontrar-nos-emos. Era uma tradição no mundo antigo que nenhuma metamorfose poderia ocultar um deus de outro deus; e há um verso grego, assim:

“Os deuses não se desconhecem.”

Os amigos também seguem as leis da infalibilidade divina: gravitam entre si e não podem proceder de outro modo.

“Quando um for obrigado ao outro fugir
Cada um pelo outro mais apreciado será.”

Suas relações não são feitas, mas permitidas. Os deuses devem sentar-se sem senescais em nosso Olimpo, quando puderem instalar-se por prioridade divina. A sociedade é espoliada se houver fadiga, se seus membros andam u’a milha para encontrarem-se. E se não for sociedade é uma selva ímpia, ignóbil e degradante, embora formada do melhor. Toda a grandeza de cada um é retida e toda a fraqueza é mantida em dolorosa atividade, como se os Olímpicos devessem encontrar-se para permutar caixas de rapé.

A vida caminha precipitadamente. Perseguimos alguns esquemas flutuantes ou somos perseguidos por algum medo ou autoridade atrás de nós. Mas, se, de repente, encontramos um amigo, paramos; nosso calor e nossa pressa tornam-se ridículos. Ora a pausa, ora o domínio são necessários e também a força para encher o momento dos eflúvios do coração. O momento é tudo, em todas as relações nobres.

Uma pessoa divina é a profecia do espírito; um amigo é a esperança do coração. Nossa ventura espera pela concretização destas duas em uma. Os séculos estão dilatando essa força moral. Toda força é a sombra ou o símbolo daquela. A poesia é alegre e forte quando extrai nessa fonte sua inspiração. Os homens só inscrevem seus nomes no mundo quando estão cheios deste. A história tem sido ignóbil; nossas nações têm sido a gentalha; nunca vimos um homem: essa forma divina que ainda não conhecemos, mas apenas o sonho e a profecia de tal; não conhecemos os modos majestosos que lhe são peculiares e que acalmam e exaltam o observador. Um dia veremos que a energia mais particular é a mais pública, que a qualidade afina com a quantidade e a grandeza de caráter atua na sombra e socorre aos que nunca a viram. O que de grandeza já apareceu são os princípios e estímulos para que prossigamos nesse sentido. A história daqueles deuses e santos que o mundo tem escrito, e depois adorado, são provas de caráter. Gerações exultaram com a atitude de um jovem que nada devia à sorte e que foi enforcado no Tiburno do seu país e que, pela simples qualidade da sua natureza, derramou um esplendor épico em torno da sua morte, que transfigurou todas as particularidades em símbolos universais aos olhos da humanidade. Esta grande decepção é, até hoje, a nossa maior culpa. Mas o espírito exige uma vitória para os sentidos, uma força do caráter que converterá os juizes, os tribunais, os soldados e os reis; que regerá as virtudes animais e minerais e confundirá os cursos da quintessência, dos rios, dos ventos, dos astros e dos agentes morais.

Se não pudermos atingir os limites de semelhantes grandezas, rendamo-lhes, pelo menos, homenagem. Na sociedade, altas vantagens são conferidas aos seus possuidores, assim como desvantagens. Requerem a maior cautela nas nossas relações particulares. Não perdôo aos meus amigos o defeito de não conhecerem um belo caráter e não entretê-lo com uma hospitalidade graciosa. Quando, por fim, aquilo por que sempre suspiramos nos é concedido e nos cintila com o radiante esplendor da longínqua terra celestial, ser então grosseiro, ser então crítico e tratar semelhante visitante com o jargão e a desconfiança das ruas, demonstra uma vulgaridade que parece fechar as portas do céu. Temos a confusão e a verdadeira loucura quando a alma se desconhece a si própria e ignora a quem sua fidelidade e religião são devidas. Haverá alguma religião além desta, a saber que em alguma parte do vasto deserto da existência o sentimento santo que acalentamos desabrochou em flor, que viceja para mim? Se ninguém o vê, eu o vejo. Estou certo, que importa se sozinho, da grandeza do fato. Enquanto florescer, guardarei as sabatinas ou dias santos e suspenderei a minha melancolia e minhas perversidades e meus gracejos. A natureza é esquecida com a presença deste hóspede. Há muitos olhos que podem descobrir e honrar as prudentes virtudes domésticas; há muitos que podem discernir o gênio na sua trilha estelar, embora seja incapaz a plebe; mas quando esse amor que é todo sofrimento, todo abstenção, todo aspiração, por votos que fez a si próprio, de ser um desgraçado e também um idiota neste mundo, antes de poluir suas alvas mãos com qualquer complacência — entrar em nossas ruas e em nossas casas — somente os puros e os aspirantes podem reconhecer sua fisionomia e o único cumprimento que podem oferecer-lhe é reconhecê-lo.

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Nota

* — “talheres” na fonte digitalizada. Equívoco evidente de tradução ou impressão. Substituímos por “táleres”, plural de “táler” (do alemão Thaler), antiga moeda alemã.


 

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Julho 2003

 

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