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AS FORÇAS ARMADAS E O DESAFIO DA REVOLUÇÃO

Oliveiros S. Ferreira


 

As Forças Armadas e o Desafio da Revolução
Oliveiros S. Ferreira

Fonte Digital
Digitalização autorizada pelo Autor
do livro em papel
Edições GRD
Rio de Janeiro — GB
1964

© 2004 — Oliveiros S. Ferreira

 


Índice

Introdução
I. Sobre a Participação no Processo Político
II. As Forças Armadas contra o “Sistema”
— a. De Jacaré-acanga à Renúncia de Quadros

III. As Forças Armadas contra o “Sistema”
— b. A Nova República

IV. Brasília, 1963 — A Revolta dos Sargentos
V. Que Fazer

 

 


 

OLIVEIROS S. FERREIRA

 

AS FORÇAS ARMADAS
e o
DESAFIO DA
REVOLUÇÃO

 

 


INTRODUÇÃO

 

 

A pedido de amigos, reúno em livro alguns dos artigos que, sobre a crise brasileira na fase da guerra subversiva, publiquei no jornal “O Estado de S. Paulo” ao longo de 1962-1963. Recordo-me da surpresa que causaram os primeiros, dedicados a traçar o “Perfil” do vice-almirante Silvio Heck, ministro da Marinha no período de sete meses de governo do sr. Jânio Quadros: é que muitos não entendiam como quem vinha de longa militância na Esquerda Democrática, depois Partido Socialista Brasileiro, pudesse dedicar-se a expor à opinião pública o pensamento de um homem que a propaganda se havia encarregado de apresentar como avesso às causas populares e defensor da oligarquia. Para quem acompanhou a carreira política de Heck, bem assim pôde privar da intimidade de seu pensamento, ele nada disso é; pelo contrário, afirma-se como o homem que, neste preciso momento histórico, representa a resistência democrática da Marinha, pretendendo opor à corrupção, à inépcia e à permeabilidade ao comunismo, a austeridade, a competência administrativa e a libertação econômica e social do Brasil, realizada através de uma forma de organização democrática do povo, a qual se resume na frase que o tornou conhecido de amplos meios: “a união do povo livre organizado com suas Forças Armadas colocadas exclusivamente a serviço do Brasil”. Este livro pretende algo mais que a simples divulgação do pensamento de Silvio Heck — daí omitir os “Perfis”, embora deles publique, no apêndice [Não incluído na presente edição], os “Mandamentos da Lei do Povo”, que consubstanciam o pensamento político de Heck, em grande medida, o de toda a Marinha de Guerra do Brasil, e o da “Frente Patriótica Civil-Militar”.

Dos “Perfis” à série de artigos sobre o papel das Forças Armadas na atual conjuntura, mediou longo tempo, que serviu para comprovar a todos, que se abrira no país, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, uma crise de regime — talvez a mais grave de toda a História republicana — e que o vácuo de poder dela decorrente deveria ser preenchido sob pena de mergulharmos no caos da guerra civil. A questão que se colocou a todos os homens lúcidos, desde a renúncia, foi como superar a crise, isto é, que concepção do processo histórico, que tipo de organização e que forma de associação popular deveriam substituir-se às concepções, partidos e regime que se haviam mostrado incapazes de resolver, sequer de equacionar, os graves problemas da nacionalidade.

Encontrar a resposta adequada a estas questões é, hoje, tarefa urgente, em virtude do desafio que a História lançou aos homens responsáveis do país. Não se trata, como nos tempos passados, de preferir uma forma qualquer .de organização política ou econômica a outra: a República à Monarquia, o Parlamentarismo ao Presidencialismo, o Socialismo ao Capitalismo. O que está em jogo é muito mais que isso: é saber quem dirigirá o processo de incorporação da maioria da população brasileira aos novos valores culturais trazidos pela revolução tecnológica, e que forma associativa e sentido cultural ela assumirá no processo de realização do desenvolvimento econômico nacional.

Para alguns, o problema cifra-se à escolha entre a Democracia e a Ditadura, entre a Livre Empresa e o Capitalismo de Estado, embora mascarado sob o rótulo de Socialismo. Para outros, entre os quais formamos, o problema é mais complexo, pois expressões como Democracia e Livre Empresa nada significam hoje, face à concentração cada vez maior dos meios de produção e distribuição da riqueza, a qual determina, inelutavelmente, a maior concentração dos meios de decisão, portanto do Poder, nas mãos de alguns poucos. A Democracia, tal qual a conceituavam os homens do século passado — e como a sonharam os pais do socialismo utópico e científico — é mais um ideal a alcançar que uma realidade concreta que se vive na luta coditiana para vencer a morte. Como a Livre Empresa não passa, nos dias presentes, de uma abstração, se já o não fosse na época da Economia Clássica.

As experiências da segunda guerra mundial e as sucessivas tentativas feitas depois dela para restabelecer o “status quo ante bellum” vieram provar que o governo das sociedades se transformou em uma técnica refinada, e que o exercício do Poder tende, por sua dinâmica interna, a restringir a liberdade proclamada do cidadão em benefício da eficiência administrativa e da execução dos planos de desenvolvimento econômico. O próprio federalismo, suprema aspiração de liberais do XIX e de alguns socialistas do XX, como Laski e Silone, ele mesmo se provou inviável — e isso exatamente no país onde se originou e que o cultua ainda hoje com ardor nunca visto.

Dizer o que acima ficou não é afirmar uma posição de princípio contra a Democracia sonhada por nossos maiores; é tão-só conhecer o terreno em que se pisa para sobre ele tentar edificar uma sociedade em que se procure ao menos criar as condições para que a busca da Liberdade continue possível, e não se a sacrifique cegamente em favor da Autoridade sempre crescente do Estado a pretexto de defender formas exteriores já provadas inviáveis e ultrapassadas. Mannheim, aliás, já tratou do problema, mostrando que o dilema do Ocidente depois do nazismo e do stalinismo não é a escolha entre o “laissez-faire” e o dirigismo, mas entre a planificação da vida social com liberdade e essa mesma planificação sem liberdade. Não se reduz a escolha, pois, entre a Democracia e a Ditadura, entre a Livre Empresa e o Capitalismo de Estado — pois se sequer nos paises desenvolvidos do Ocidente a questão se apresenta nesses termos simples, que dizer então nos paises em via de desenvolvimento, mergulhados na “guerra fria” e lutando para garantir a suas populações um padrão de vida condizente com a condição humana? Para nós, a disjuntiva é Liberdade ou Totalitarismo, ou em outros termos, realizar o desenvolvimento econômico com ou sem Liberdade — não a liberdade abstrata dos filósofos, mas a liberdade concreta passível, a que concilia os interesses gerais e reais da sociedade com a diversidade natural dos homens e sua aspiração a uma vida decente, e que permita a essa mesma diversidade exprimir-se em formas orgânicas de vida social concordes com as diferentes aspirações individuais. É, portanto, um problema de organização — da vida social, política e econômica do país.

 

II

 

Os artigos que em continuação se lerá provocaram reações as mais diversas. Alguns, mais abertos à realidade do mundo moderno, chamaram-me de “metafísico do Poder” pela preeminência que neles dou ao problema da organização; outros, mais apegados às velhas fórmulas e a um marxismo dogmático inimigo da verdadeira filosofia da “praxis”, por igual razão e por opor-me ao Partido Comunista, pretenderam ver neles a tentativa de elaboração de uma ideologia fascista, ou neo-fascista. Adjetivo que em outros tempos não usavam, apesar de minha posição a respeito da luta que contra o Partido Comunista se deve mover não ter variado desde que, em 1946, iniciei minha freqüentação com os problemas do país. Isso por si só indica que a ação proposta é a verdadeira e a única capaz, hoje, de fazer frente à doutrina e à atividade do aparelho do Partido Comunista. Digo-o sem falsa modéstia, pois não a elaborei sozinho; formulei-a ao logo dos anos, na discussão aberta com trabalhadores urbanos e rurais e com aqueles que, tendo conhecido de perto a máquina infernal de trituração das personalidades em que se transformou o bolchevismo, deixaram o Partido Comunista sem abdicar de seus ideais e de seus propósitos revolucionários. Talvez essa posição melhor se defina pela frase com que Raimundo Schaun explica as razões que o levaram a deixar o PC na crise de 1956: “Rompi com o Partido Comunista pelas mesmas razões que nele ingressei”.

Pois o que nesses artigos se afirma é a necessidade de a Revolução ser feita para impedir a deformação do processo brasileiro pelos “príncipes do Sistema”. Fazê-la para devolver aos sindicatos sua autencidade, e à classe operária sua qualidade de Sujeito da História, retirando-a da condição de mero Objeto a que foi reduzida pela legislação sindical do Estado Novo, inalterada até hoje apesar da redemocratização. Fazê-la para incorporar à sociedade política, como homens livres e conscientes, os milhões de párias em que se transformaram os trabalhadores rurais não apenas do Nordeste, tão chorados, e explorados, mas também os do Centro-Sul, igualmente abandonados à sua sorte pelos “príncipes”. Em suma, fazer a Revolução Brasileira, impedindo que os outros façam a do Privilégio associado ao Partido Comunista, ou simplesmente a do Partido Comunista. Como reivindicação da Liberdade e como afirmação de autêntico Patriotismo.

O debate sobre se esta Revolução será de Direita, ou de Esquerda é supérfluo — e por supérfluo serve apenas a seus inimigos. Direita e Esquerda não se definem no plano do regime de produção — são termos que denotam antes de tudo uma posição social diante do problema da Liberdade. O nazismo foi um regime de direita, apesar de seu partido ser uma organização de trabalhadores, porque suprimiu a liberdade concreta, vale dizer a possibilidade de as estruturas sociais serem alteradas pelo inconsciente dos homens associados, e também porque considerou todas as manifestações de inconformismo como traições reais à causa do Estado. Da mesma forma que o stalinismo, ontem, e o kruchevismo, hoje, são regimes de direita, aquele mais que este, ambos no entanto timbrando em impedir que o “homem de carne e osso” de que nos fala Unamuno encontre, em novas formas de expressão associativa, o caminho que há-de aliviar a longa marcha que nos leva à Morte. E há um outro aspecto do problema para o qual gostaria de chamar a atenção daqueles que hesitam em engajar-se no único caminho que permitirá assegurar o desenvolvimento, garantindo a Liberdade, o qual é a união do civil com o militar, aqui proposta: o de Nação, conceito que alguns consideram superado, anacrônico e, por sê-lo, burguês e antiprogressista. Sem dúvida, o nacionalismo “chauvin” define melhor a Direita que a Esquerda — e por isso, ainda uma vez mais o nazismo e o stalinismo (kruchevismo) foram regimes de direita. Mas o Internacionalismo que se pretendeu, no século XIX, contrapor ao nacionalismo “chauvin”, transformou-se, hoje, pela identificação que a propaganda e a estupidez dos homens fizeram de um Estado com o Internacionalismo; perdeu seu sentido histórico progressista para afirmar-se instrumento de dominação colonial, política e mental, o famoso “coloniaje mental” a que alude Haya de la Torre. Já Jean Jaurès dizia, antes de sua morte nos albores da guerra de 1914-1918, que o Internacionalismo só se poderia realizar depois que a idéia de Nação tivesse sido esgotada, por sua interiorização, em todos os homens — o que vale afirmar que ao Internacionalismo só se pode chegar após cada Nação ter cumprido sua missão histórica, vale dizer realizado suas potencialidades e dado a todos os seus filhos aquilo que eles dela esperam. O caminho do Internacionalismo não passa, hoje como ontem, pela negação silogística do conceito de Nação, mas sim por sua superação dialética, a qual só se poderá dar pela anfictionia de Pátrias soberanas e livres, as quais não temem das outras a ameaça militar, nem a pressão econômico-política. Mas superação que só se verificará quando às Nações se permitir escolherem livremente seu caminho e não se lhes pretender impor, pela ação de aparelhos subvencionados do Exterior, ou de intervenções diplomáticas assentes numa possibilidade real de pressão econômica, uma determinada forma de regime econômico e associativo-político.

Ora, se assim é, e se a História a todos ensinou que os partidos comunistas nacionais são meramente expressão local de uma potência estrangeira “chauvinista” servindo a seus interesses de grande potência e não à causa do verdadeiro Internacionalismo, segue-se que a Revolução só se poderá dar como processo nacional e que, pelo fato mesmo de sê-lo, ela afasta o Partido Comunista de seu núcleo dirigente e, inclusive, veda-lhe a possibilidade de lutar pela hegemonia do processo revolucionário. Não se trata de posição reacionária, ou direitista: trata-se de afirmar a independência nacional contra aqueles que a pretendem ver submetida aos ditames da política exterior de outra potência, a cujos dirigentes não agrada hoje, como não seduziu ontem, a idéia de constituirem-se pelo mundo afora nações livres e economicamente independentes, as quais tenham, no processo de sua emancipação e de seu desenvolvimento, eliminado as fontes do poder político do Privilégio, aberto a todos os homens a perspectiva de dias melhores.

A exclusão do Partido Comunista do processo revolucionário brasileiro é, assim, condição primeira de sua autenticidade — como, aliás, a exclusão de quantos objetivem fazer do país uma mera peça no jogo da “guerra fria”. Não se pode desejar fazer uma revolução brasileira que seja dirigida pelo Partido Comunista, ou que o tenha como aliado. Expressão de um Estado estrangeiro, ele tenderá sempre a encaminhar a revolução para os rumos que a esse Estado interessarem, e não para aqueles que ao Brasil convierem. Se a Revolução Espanhola, se a Revolução Chinesa são fatos históricos por demais longínquos para que as novas gerações possam ter-lhes aprendido a lição, Cuba aí está como símbolo da deformação que o Partido Comunista pode impor a um processo revolucionário autenticamente nacional.

Não são aspectos programáticos os que separam hoje a maioria dos que desejam pôr fim ao Privilégio e à condição semi-colonial do Brasil. Palavra por palavra, muitos que formam em campos opostos poderiam unir-se, deitando abaixo o “sistema”. O que impede essa união, o que a torna mesmo impossível, é a recusa de quase todos os que se proclamam “esquerdistas” em denunciar seu estranho conúbio com o Partido Comunista; é o não desejarem reconhecer que o Partido Comunista é uma força totalitária e antinacional que logicamente não pode formar com os que afirmam a Pátria como primeiro passo para a anfictionia dos povos livres. Esses problemas, nossas “esquerdas” não foram capazes de ver — nem é nossa intenção demovê-las do erro em que incorrem, pois nele perseveram apesar de todas as tentativas de esclarecimento. O que só se explica por ingenuidade, estupidez córnea, ou má fé cínica — e num ou noutro dos casos, o convencimento é tarefa que cabe aos apóstolos. Escolheram seu campo, iludidos pela identificação que fazem entre o marxismo e o Partido Comunista, esquecidos de que não há nada de mais contrário ao verdadeiro espírito do marxismo que a organização burocratizada e totalitária, e que a tarefa dos verdadeiros marxistas, quando uma organização se reclama da filosofia da “praxis” sem merecê-la, é denunciá-la à classe trabalhadora e ao conjunto do povo para impedir que o engodo persista.

A série de artigos deveria concluir com a exposição daquilo que julgo ser a concepção justa do processo brasileiro. A necessidade, porém, obriga a reuní-los em livro antes que a tarefa esteja concluída. Como, porém, tal concepção se me afigura indispensável, pois sem ela será impossível compreender nossos problemas e impedir que a revolução brasileira sofra distorções, e como aqueles que se reclamam da Liberdade ainda não a elaboraram, aqui adianto alguns tópicos que mais importantes me parecem. De sua discussão e aprofundamento nascerá a nossa concepção do processo: Libertária, Nacional e Progressista.

 

III

 

Uma concepção justa do processo necessariamente deve levar ao programa mínimo sobre o qual todos se ponham de acordo, o qual seja decorrência da análise da crise estrutural brasileira sob pena de constituir-se num texto igual aos outros, cuja aplicação pode produzir resultados imediatos, ou mesmo a longo prazo no domínio da economia, mas sem alterar fundamentalmente as relações de poder na sociedade. E o que se pretende é exatamente isso, pois sem tal alteração nas relações de poder não há processo revolucionário.

O problema, já que se introduziu a palavra proibida, é de Poder — como aliás foi sempre em todos os movimentos históricos. E para que se possa realizar uma política de poder tendente a conciliar a liberdade concreta com a necessidade do desenvolvimento econômico; as transformações estruturais que o país está a exigir com a necessidade de manter a Ordem (isto é, conciliar a Razão das gerações mais antigas com novas formas institucionais) e fazer que o preço a ser pago pelo progresso seja o menor possível, é preciso saber onde e como agir em primeiro lugar, que setores atacar com prioridade, e quais interesses — helàs! — prejudicar antes dos demais. Sem isso, qualquer tentativa de reformular as relações de poder na sociedade brasileira será mero exercício acadêmico; só deixará de sê-lo à medida que, proposição acadêmica que inicialmente é como qualquer esforço de compreensão teórica, ligar-se a uma organização capaz de interpretá-lo e adaptá-lo às realidades concretas, levando-o, em conseqüência, à prática das ruas, ou do governo.

Há um dado fundamental na conjuntura brasileira, peculiar a nosso desenvolvimento histórico a partir do segundo quartel do século XX, o qual altera o quadro das análises até hoje feitas pelos que se preocupam com explicar a realidade nacional: é a intromissão do Estado no processo de produção e sua tentativa de planejar as relações sociais mediante o controle das relações entre patrões e trabalhadores, as quais integram aquilo que Mannheim denomina a “matriz irracional” da vida em sociedade, isto é, aquele setor da vida social em que se elaboram os novos comportamentos, as novas maneiras de ver o mundo e de onde parte o empuxe para transformar as estruturas sociais sempre ultrapassadas pela aventura humana. É o controle desse setor, isto é, o impedimento de os novos comportamentos se tornarem conscientes e de elaborarem novas formas de associação entre os homens, que caracteriza os regimes totalitários a exemplo da Alemanha nazista e da Rússia stalinista, ou kruchevista. Quando as relações entre operários e patrões são transferidas do campo próprio em que nasceram para o do Estado, tenta-se impedir o surgimento de novas formas de colaboração e impõe-se uma única norma à solução de todos os litígios — e com isso caminha-se para o Estado totalitário. Quando se esmaga, pela condenação oficial, a manifestação artística dos descontentamentos sociais e procura-se impedir os homens de identificarem nos heróis novelescos, ou na pintura abstrata, a sua angústia e o seu desassossego — busca-se com isso afirmar a imutalidade e o caráter sagrado das estruturas sociais que geram esse descontentamento e essa angústia, proibindo-se a renovação, que caracteriza os regimes livres.

A nossa “classe política” não se deu conta dessa intervenção sumamente perigosa, a longo prazo, à sobreviência das liberdades. Sempre que o Estado interveio no processo de produção, antes que o perigo da infiltração comunista nos postos-chave da administração se tornasse patente, considerou-se necessário tal procedimento, quando não imposição das circunstâncias, à qual não cabia fugir. Assim, o Estado pôde, insensivelmente, ir assumindo a hegemonia do processo político geral, à qual chegou hoje como causa e ao mesmo tempo conseqüência da fraqueza de nossa estrutura econômica e do desejo da “classe política” de ver transferidas para o Governo aquelas responsabilidades de adaptação às exigências reivindicatórias da classe operária, as quais em outros países foram assumidas plenamente pelos extratos superiores das classes econômica e socialmente dominantes.

Concluída, em 1930, uma das fases do “tenentismo”, a “classe política” não se apercebeu de que a crise maior não era a política, que motivara os homens, mas a real, que se estabelecera entre as exigências de realizar-se o desenvolvimento das forças produtivas a fim de possibilitar ao Brasil vencer as distâncias que o separavam das outras potências industrialmente mais desenvolvidas, e a incapacidade das classes dirigentes de a elas atender. Essas exigências — já assinalámos em trabalho anterior — “só poderiam ser satisfeitas pelo aumento da densidade da indústria na economia geral do país, o qual se deveria dar mediante o emprego de técnicas de produção que igualassem a produtividade de nosso trabalho à das demais nações. Essa era a tarefa que a evolução do país colocava à consciência das camadas dirigentes; exigência de racionalidade que, uma vez não satisfeita, levou ao Estado Novo, durante o qual a visão econômica da ‘elite do poder’ continuou adstrita ao modelo do laissez-faire, mas a visão política do grupo detentor do poder político se orientou por esquemas intervencionistas e regulamentadores não tanto da atividade econômica, quanto da organização social. Com isso, verificou-se, no dizer de Manheim, (...) que ‘o número de instituições e ordens que preparam o caminho para um Estado planificado [aumentou] dia a dia. Devido a uma deficiência da consciência, a qual determina uma separação entre os princípios dos homens e seus atos, essas ordens e regulamentações atuam latentemente. Mas isso de modo algum minora sua importância; pelo contrário, fazem assim mais dano, pois ninguém se detém a examinar suas conseqüências. Assim se chocam a cada passo com o sistema mais livre [as forças produtivas, no sentido mais amplo e mais fiel em que o marxismo clássico as define] e o paralisam’.”

É a partir de 1930 que o Estado ganha preeminência sobre a sociedade, não tanto pela intervenção no processo econômico — contra a qual a “classe política” se opunha —, mas na vida associativa básica, através das leis do trabalho especialmente, a partir de 1943, da Consolidação das Leis do Trabalho, e a organização sindical institucionalizada no título V. Essa intervenção, que se dá objetivamente mediante a arrecadação do Imposto Sindical, não teria sido possível, no entanto, se condições concretas não houvessem ensejado a transformação da mentalidade da classe operária dos grandes centros urbanos, predispondo-a a aceitar o Estado como intérprete de seus anseios reivindicatórios, ao invés de exprimi-los longe da tutela estatal e através de suas organizações de classe. Entre essas condições avultam o êxodo rural e a relativa hegemonia dos setores agrários da sociedade (pela sobrevivência de representações coletivas decisivas no processo político) no surto de industrialização a que assistiu o País.

Há, ao longo do processo que cumpriu importante etapa em 1930 e que a meu ver ainda não terminou, algumas características básicas:

a) a Indústria não se desenvolveu de maneira autônoma, deixando de assumir a hegemonia do processo de transformação das estruturas sociais e políticas. Oriunda dos excedentes da produção de matérias-primas e bens primários e do comércio com o Exterior, não foi capaz, pela ligação, no plano das relações individuais, entre a fazenda e a fábrica, de impor à Agricultura o universo de produção que lhe é próprio: racional, frio, impessoal, no qual tudo se rege por considerações econômicas, de rentabilidade máxima. Pelo contrário, cedeu ante o universo agrário, pré-capitalista (e o pré-capitalismo, no século XX, é uma força anticapitalista), trazendo para o campo das relações de trabalho fabril paternalismo dos velhos tempos imperiais, e para o da propriedade o domínio familiar e não anônimo das empresas, a par da mentalidade do “homem cordial”, que colonizara a terra e exaurira o solo despreocupado do futuro e de sermos parte de uma constelação internacional de Poder. E assim como o “homem cordial”, que desbravara os sertões e fixara a população, esgotara a terra, assim o “homem cordial” que ocupou as fábricas delas retirou o máximo sem lhes dar nada em troca, acumulando capital não pela restrição de seu consumo, mas pelo contrário aumentando as despesas pessoais não diretamente relacionadas com a produção, aproveitando-se da imensa mão de obra, barata, que o Nordeste e o interior jogavam constantemente nas cidades industrializadas do Centro Sul, e na imensidão do mercado e no aviltamento do trabalho fácil encontrando o substituto para a renovação das técnicas de produção.

b) Tampouco a Agricultura — embora se pudesse dizer que deteve a hegemonia do processo pela predominância de traços essenciais da mentalidade rural tanto nas classes empresariais urbanas, quanto no proletariado industrial — tinha condições de passar de uma semi-hegemonia à liderança, assumindo o controle do processo político, ela só. A Revolução de 1930, dizem, foi a revolução da industrialização. Talvez — mas feita por homens do café, os quais, para assegurar seus privilégios tiveram de compor-se, de ceder parte de seu poder político aos homens da cidade. E é essa associação desconexa entre os interesses da Agricultura e da Indústria que impediu a primeira de reclamar todo o poder político para si — ela que nele estava através de seus representantes diretos, de seus “commis” e de seus aliados de hoje, os industriais, que da exportação dos produtos primários dependiam para importar as matérias primas e as máquinas de que suas fábricas necessitavam. Intercâmbio que se fazia através do Comércio, que dessa maneira também participava do Poder.

c) Neste quadro, em que a Indústria não tem capacidade de assumir a hegemonia do processo, embora assumindo a liderança em muitos casos; em que a Agricultura detém a hegemonia por seus aspectos negativos, obrigada a partilhar o poder com a Indústria e o Comércio, as Finanças poderiam assumir a liderança e a hegemonia, impondo ao conjunto da sociedade a racionalidade própria da atividade bancária. Todavia, apesar de controlar o processo de desenvolvimento econômico há muito tempo, as Finanças não puderam assumir esse papel: ê que a proposição de racionalizar a economia, desenvolver livremente a vida social e realizar a integração econômica das várias regiões do País, bem assim seu desenvolvimento, chocava-se com os interesses sociais e político-eleitorais das classes anteriormente citadas, com as quais as Finanças se identificavam, também. É esse aspecto — a concordância de interesses — que permite explicar o não se ter tentado resolver, de 1930 a 1945 e de lá para cá, o problema das formas de apropriação no campo a fim de criarem-se as condições necessárias à expansão do mercado interno e ao desenvolvimento — causa e consequência daquela — da Indústria. É que, presa “nas malhas de interesses comuns aos dos proprietários fundiários”, a chamada burguesia industrial — à qual se ligavam intimamente as Finanças — temia qualquer alteração no “status quo” agrário, pois era da desigual repartição do poder no campo que ela, Indústria, retirava a força para, juntamente com as élites rurais, manter seu aparente controle do Estado. Não fora isso e a atividade bancária tomada em si teria podido imprimir ao País, por suas características de racionalidade, depois de 1930, a marca do progresso e do desenvolvimento capitalista que os tempos impunham. Tal não aconteceu pelas razões acima apontadas, pois apesar das Finanças subordinarem a seus interesses a Indústria e a Agricultura, associavam-se às exigências políticas e político-eleitorais delas — e assim a racionalidade presumida da atividade bancária e da produção industrial cedeu passo a um setor agrário de baixa produtividade e aos desígnios reguladores do Estado, expressão dessas forças sociais, mas perseguindo, pela dinâmica de seu desenvolvimento enquanto grupo social que começava a participar do processo de produção, objetivos próprios dele, Estado.

d) A classe operária (os trabalhadores rurais só começam a ser sujeitos da História brasileira nos fins dos anos 50), que até a Revolução de 1930 desenvolvera sua luta independentemente do Estado, animada da visão do mundo própria das sociedades européias — a qual era racional e levava a equacionar o ajustamento entre as diferentes classes da perspectiva seja do anarquismo, seja do marxismo dos anos 20 —, não teve condições de assumir, por falta de densidade no conjunto da população do país, de uma organização efetiva de âmbito nacional e de uma perspectiva política mais audaz, a hegemonia e a liderança do processo político. O Estado, que se reorganizou a partir de 1930, foi paulatinamente incorporando aos quadros administrativos o aparelho sindical, cuja liderança seus interesses passou a defender, depois de 1935 e especialmente do Estado Novo, substituindo-se à antiga liderança de formação anarquista, comunista ou socialista. Esse processo de transformação das associações da classe operária de instrumentos da luta de classes, como as concebia a visão européia dos primeiros anos do século, em órgãos de colaboração com o Poder Público, como estatuído no Título V da Consolidação das Leis do Trabalho, foi também possível em virtude da maciça incorporação de elementos de origem rural ao proletariado. Eles vieram para a cidade trazendo para o meio urbano as suas concepções rurais do processo político, em que representavam o Estado pela mediação da figura do “coronel”, eminentemente tradicionalista, ou paternalista, simplesmente.

Antecipando-se no atendimento das reivindicações da classe operária e controlando o movimento sindical organizado por seus agentes — a liderança sindical, ou vulgarmente, os “pelegos” — o Estado colocou as associações da classe trabalhadora sob sua tutela, burocratizando comportamentos que de outra forma escapariam à sua marca para inscrever-se naquela esfera do “irracional” a que se refere Mannheim, e que enquanto irracionais permitiriam um desenvolvimento mais livre, embora mais agônico, do processo social. Pois é essa irracionalidade, esse não sujeitar a normas legais estritas e específicas as relações entre patrões e empregados, que a nosso ver condiciona e possibilita o desenvolvimento do regime em termos de economia de esforços e de aprimoramento da técnica, além de possibilitar que o espírito inventivo dos homens descubra a melhor forma de associarem-se.

Sustada pelo Estado a possibilidade de a classe operária reivindicar autonomamente, enquanto sujeito, e de os patrões com ela negociarem diretamente — uns e outros exercitando nos convênios coletivos a prática do diálogo e da vida democrática de base — o sistema social por assim dizer estagnou enquanto processo vital e livre, ainda que desordenado, tendendo a uma racionalidade quase burocrática dos comportamentos coletivos, a qual, se estabelecia uma relativa paz social, tendia a longo termo a impedir a livre concorrência com todas as suas conseqüências para o desenvolvimento do país, e a frustrar a possibilidade de a produtividade média da indústria situar-se, ou aproximar-se dos níveis da produtividade média mundial.

Criou-se assim a imagem do Estado paternalista capaz de antecipar-se às reivindicações operárias e de satisfazê-las inclusive além daquilo que a consciência dos trabalhadores poderia julgar necessário. Mais importante, no entanto, foi o fato de a legislação e a prática trabalhistas do Estado Novo terem transformado os sindicatos em órgãos burocráticos, e os dirigentes do proletariado em pessoas estreitamente vinculadas ao Estado e dele dependentes — não em termos de subsistência, mas da apropriação das possibilidades de mando político e social oferecidas pela estrutura assente no Imposto Sindical. Essa burocratização das organizações operárias e a conseqüente transformação dos dirigentes em quase-funcionários públicos, permitiu que, no plano do Estado, os interesses da liderança operária se identificassem com os daqueles que sustentavam as estruturas políticas globais da sociedade, vale dizer os proprietários fundiários, os setores ligados ao comércio de exportação de produtos primários, os industriais e os banqueiros — sem contar os homens que controlavam o aparelho do Estado. E foi essa burocratização do sindicalismo, com o conseqüente deslocamento da luta de classes do campo patrão-empregado (campo esse em que ela se trava em todos os países democráticos) para o campo Estado-operário (que é aquele em que o problema se situa nos países totalitários), que privou o sistema social de seu principal elemento transformador das forças produtivas, vale dizer, do principal elemento responsável pela mudança social.

Importa assinalar que o Partido Comunista entrou a fazer parte do “sistema” pela via dos sindicatos, e que ao entrincheirar-se na cidadela inexpugnável do Imposto Sindical, fonte de corrupção e de burocratização das organizações operárias, ligou-se aos interesses mais retrógrados da sociedade brasileira, os da produtividade marginal na agricultura e na indústria, os quais sobrevivem graças ao fato de os setores mais produtivos aproveitarem-se dessa marginalidade, que fixa os preços, para acumular em proporções não imaginadas pelos teóricos da economia.

e) Nesse quadro, o Estado foi a única formação social capaz de assumir a hegemonia e a liderança do processo, transformando-se de Poder Soberano, que era, em Patrão e Sócio da Indústria, do Comércio, das Finanças e, indiretamente, da Agricultura — Bonapartismo institucional em que o Estado deixa de ser a expressão de determinados grupos sociais com interesses facilmente identificáveis, para assumir o papel de sujeito, que faz os grupos sociais que o criaram agirem como criaturas.

Com o aguçar das contradições entre a Constituição real (as relações reais entre as forças sociais em presença) e a Constituição escrita, a intervenção reguladora do Estado no processo econômico e na vida social tornou-se mais freqüente, mais profunda e de conseqüências cada vez mais paralisadoras da vida espontânea da sociedade, visando a impedir que as forças livres da produção e do trabalho deitassem por terra o esquema regulador e burocrático. A isso acresce que a estatização dos meios de produção e distribuição das riquezas, processada de forma orgíaca, perseguia também objetivos personalizáveis: e a classe operária jungida ao carro do Estado, identificada por suas organizações com os interesses da “classe política”, transformou-se também em “gado eleitoral do Estado”, na magistral expressão de Engels ao comentar as nacionalizações de Bismarck. “Gado eleitoral” que não é passivo, como se poderia supor, pois votando, exige a prestação de serviço dos homens que compõem o Estado e que reclamam seu voto, a qual se traduz na burocratização dos serviços e na produtividade marginal das empresas estatais. Destarte, o setor estatal da economia brasileira, ao invés de aproveitar-se dos privilégios que lhe eram concedidos em nome do “nacionalismo” para sobrepujar o setor privado, quer em produtividade, quer em qualidade, passou a ser a negação mesma da racionalidade que deve presidir a empresa econômica. Com isso, o “nacionalismo” — versão brasileira do estatismo — dos burocratas e dos comunistas que a eles se associam, derrotou Lênin e toda a concepção marxista do domínio e controle pelo Estado da produção e distribuição da riqueza; com efeito, o fundador do Estado soviético havia escrito em 1921: “A missão histórica do proletariado consiste em organizar a produção. Se não produzirmos mais e melhor que o capitalismo é capaz de fazer em sua anarquia econômica, não teremos nada de melhor a fazer senão nos retirar da cena história”.

Nessas condições, o Estado escapou do controle dos que pensavam tê-lo em suas mãos, constituiu-se num ser à parte com tantos orçamentos quantos fossem os setores em que havia intervido, e teve a hegemonia do processo pela incapacidade das classes sociais e dos partidos políticos. E o conduz conforme a mentalidade privatista dos que o controlam desde os anos 30.

 

IV

 

Assim, quando todos os interesses se interligam no plano do Estado: Agricultura, Comércio, Indústria, Finanças e Liderança Sindical, nesse “sistema” não há possibilidade, no quadro da Constituição escrita, de uma ação renovadora da vida social para torná-la mais livre, mais agônica, mais criadora, mais autêntica. Não são os trabalhadores rurais que se organizam para reclamar a melhor condição de vida que a situação do campo impõe e que o desenvolvimento do país reclama — é o Estado que pretende realizar as reformas para aumentar o poder político dos que o representam; não são os trabalhadores urbanos que reclamam, espontânea e organizadamente, os direitos inerentes à condição humana — são os “pelegos” que negociam com os patrões para aumentar seu poder pessoal; não são os partidos, enquanto expressão das muitas sociedades particulares que compõem a sociedade global, que oferecem sua mensagem parcial ou totalizadora à consciência da Nação — são os líderes que estabelecem, em conchavos com o Poder, como se fará para perpetuar seu domínio eleitoral sobre a sociedade; não são os fazendeiros e os industriais que elaboram a sua concepção do processo e dizem, planejadamente, como se deve dar o desenvolvimento — é o Estado, e a seus planos todos se submetem, presos que estão aos financiamentos do BNDE, ou ao redesconto do Banco do Brasil.

Esse “sistema” — do qual o Partido Comunista é parte integrante — aparentemente indestrutível, tal a harmonia de interesses contraditórios, tem dois pontos fracos: a corrupção, que se transformou num processo institucionalizado de espoliar a Nação, e a permeabilidade ao comunismo, isto é, aos agentes de uma potência estrangeira, os quais procuram fazer do Brasil mero peão no sinistro jogo da “guerra fria”. O primeiro, sensibilizando a longo prazo a consciência nacional, desacredita o Estado e consequentemente o “sistema”; o segundo colocando em risco a segurança nacional, toca fundo na consciência das Forças Armadas.

O Povo — a imensa maioria dos que não participam do “sistema” e da corrupção espoliativa — e as Forças Armadas, pelos motivos que procuro explicar nos artigos que se lerão a seguir, são as únicas forças capazes de, unidas numa mesma organização política, vencer a corrupção e a inépcia, e, realizando a libertação econômica e social do país — isto é, derrotando o Privilégio e tornando mais livre a vida social —, impedir a subordinação do Brasil aos interesses da luta internacional. Se esta união não se der, se preconceitos e vacilações acomodatícias impedirem o “capitão do povo” de dar ao Povo um movimento novo, o “sistema” triunfará e a Nação deixará de cumprir o destino que é seu.

Aos civis e militares que se reúnem na “Frente Patriótica Civil-Militar”, e que em todos os cantos do Brasil procuram unir o povo organizado às suas Forças Armadas, dedico o que adiante se lerá.

São Paulo, outubro-novembro. 1963
Oliveiros S. Ferreira

 

 


I

SOBRE A PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO POLÍTICO

 

 

1. As condições

 

Há duas condições fundamentais para que a participação no processo revolucionário seja um ato realmente construtivo e não mera adesão sentimental à multidão que passa, inspirada pelo receio de permanecer sozinho ou ser considerado timorato: a concepção justa do processo e a organização. Sem a primeira, é-se mera bandeira batida pelo vento, barco sem patrão capaz de conduzi-lo ao rumo seguro — mesmo que exista a segunda, que então passa a ser mera caudatária dos que constroem na ação cotidiana o devir. Sem a segunda, assiste-se impotente ao passar dos dias e ao suceder dos fatos, incapaz de neles intervir e de fazer sua voz ouvida no grande conselho dos que tomam as decisões capitais. A união da idéia com sua mediação com a prática é que abre, a quem se engaja no processo, a possibilidade de disputar a hegemonia e, numa segunda fase, a liderança definitiva. Mas há, subjacente a essas duas condições fundamentais, uma como que pré-condição sem a qual a concepção justa e a organização se resumem a exercícios acadêmicos, mais a um testemunho escatológico que propriamente a uma intervenção humana na História: é a vontade de chegar ao Poder.

A política — e especialmente a Revolução, momento em que os fins a atingir e os meios a tanto adequados se tornam conscientes do maior número de partícipes do processo — é um jogo que tem suas regras. Duras algumas, menos dignas outras, necessárias todas. Quem a elas se recusa submeter, jamais poderá dominá-lo, e é melhor que nele não se envolva sob pena de ver-se frustrado em suas melhores esperanças e traído em suas grandes ilusões. De nada adianta dispor-se a jogar se não se pretende ganhar a partida — a não ser que se queira ter nos momentos cruciais a atitude diletante de quem participa como se observasse, recusando-se a sujar as mãos na massa descontínua das paixões humanas. Na política não há lugar para o diletante, para quem não objetive o Poder para si ou sua organização, e não almeje provar na prática a justeza de sua concepção teórica.

A luta pelo Poder é um jogo que embriaga como um tóxico a que se recorre por obrigação, mas que tal como o tóxico, exige que não se o tome por suas virtudes mágicas, mas pelos efeitos estimulantes que pode produzir no organismo, permitindo uma lucidez maior diante do mundo e uma proposição mais coerente, talvez mais dramática, mas sempre e em todo o caso mais criadora de nossa ação sobre a sociedade e as coisas. Quando se perde de vista o objetivo criador que levou ao uso do tóxico, a ele se acostuma e dele se torna escravo. Da mesma forma, o Poder e a vontade de a ele chegar: sem ela, a participação no processo revolucionário é mero filosofar sem sentido; mas se a ele se apega como o fim último das coisas, corre-se o risco de perdê-lo, exatamente porque dele e da vontade de tê-lo se torna escravo, desconhecendo-se as aspirações dos homens às quais se faz mister atender, pois é de sua adesão ao regime que se instala, que depende sua sobrevivência.

O poder pelo poder é tão estéril e perigoso quanto a ausência de vontade de alcançá-lo. Ele só se legitima perante a consciência dos outros e só legitima por sua vez as ações que a ele levam, quando é exercido em nome de uma concepção do processo e se tem, para mantê-lo, uma organização que sirva de mediadora já não mais entre a idéia e a prática revolucionárias, mas entre quem governa e quem é governado, entre o Estado e seus súditos — e, importa não esquecer, entre os cidadãos e o governo que os representa e a seus anseios deve atender.

Os governantes — e a observação vale tanto para os homens de Estado, quanto para os chefes de uma organização — que se afastam dos homens de cujas vontades, necessidades e temores retiram sua autoridade de exercer o Poder, isolam-se do processo, perdem contato com a única fonte de inspiração legitima para sua ação, transformam-se em vulgares “pelegos” e sua concepção do processo passa a flutuar na subjetividade da representação deformada que têm da realidade.

Mas não basta ter a disposição de jogar para poder ganhar; faz-se mister ter os meios, isto é, a concepção justa e a organização. A concepção justa não significa um corpo de doutrina, pois a doutrina por definição implica na noção da verdade absoluta das proposições nela contidas — e não há nada mais contrário à pátria revolucionária que concebê-la em termos da verdade de uma doutrina. Porque o simples ato de admitir-se a universalidade e a necessidade das proposições doutrinárias traz em si implícita a atitude dogmática diante da realidade e a tendência a enquadrá-la, sem mais essa, nos quadros rígidos do sistema de pensamento que nos inspira. A justeza de uma concepção não se mede pelo enquadramento da realidade à doutrina; é dada, ao contrário, pela aderência do método à realidade e pela constante reintepretação desta — e conseqüente proposição de novas formas de ação — na medida em que os fatores que a compõem se transformam.

Talvez se pudesse dizer que a participação no Poder é a grande inimiga da visão justa do processo, porquanto a que dele se tem dessa situação já vem deformada pelo desejo natural de nele manter-se, com o que se corre o risco de tomar a nuvem por Juno, de ver os apoios devidos ao Poder como aplausos à maneira de exercê-lo e de pesar seu exercício (elementos em si inseparáveis), e de identificar tal exercício com as necessidades fundamentais da sociedade e do Estado.

 

 

2. Liderança e hegemonia

 

A grande preocupação com que hoje se debate a esquerda “autêntica” (como há a “positiva” e a “negativa”, creio que se pode falar numa “autêntica” e noutra “inautêntica”, aquela constituindo-se dos desiludidos com a “positiva” e a “negativa”, que não consegue encontrar nos quadros institucionalizados do País uma via que seja capaz de abrir-lhes esperanças de ação construtiva imediata), sua grande preocupação, dizia, é saber quem vai liderar o processo revolucionário — se e quando vier. A pessoa do líder é de capital importância para definir sua adesão ou sua repulsa ao movimento, como se essa figura de todos desconhecida tivesse a virtude mágica de transformar o sentido e a direção do processo histórico, independente dos motivos objetivos que o determinaram.

É certo que o líder é de extrema importância no ato de construir a História — e ela se faz com maiores rapidez e intensidade nos momentos de crise. É ele que encarna as aspirações e os anseios de amplos setores da população, cujo concurso no processo revolucionário é capital para a consecução dos fins colimados. É em torno de sua figura que se definirão os leais e os hostis, e de sua capacidade de propor, no momento exato, tarefas políticas concretas à Nação, é que dependerá muito do êxito ou do malogro da ação empreendida.

Mas o movimento não se resume no líder, nem na relação direta entre ele e a massa dos liderados. O movimento é mais amplo que sua pessoa, freqüentemente realizado não por um único grupo social de contornos e ideologia bem definidos, mas por um conjunto deles, que deverão ter, no instante em que a ação se inicia, objetivos comuns permitindo sua unidade, embora haja outros que possam divergir. Em outras palavras, a revolução não se processa por obra e graça do líder, nem de um grupo, exclusivamente: é produto da união de vários, de sua frente única, que como toda frente única tem seu programa mínimo e seu programa máximo, ditado aquele pelas conveniências de aproximação para uma atividade conjunta, imposto esse pelas exigências fundamentais do processo, as quais podem ou não aparecer claramente à consciência de todos os partícipes da ação, mas que se encontram por assim dizer como faíscas confundidas com a ganga, à espera de que alguém se dê ao trabalho de torná-las conhecidas de todos. A liderança, na frente única, é a resultante de um conjunto de fatores os mais diversos — a audácia do que se pretende chefe, sua maior identificação com os anseios do grupo mais atuante da frente; o jogo das forças em presença, a relação de poder existente. Nem sempre, porém, o líder é o faiscador que aflora à consciência dos demais o ouro esparso entre o resíduo; é capaz de encarnar as aspirações expressas no programa mínimo, mas não reúne condições (por deficiências pessoais, ou das forças em que se sustenta) de propor o programa máximo — e freqüentemente a proposição deste último é bastante para romper a frente única, pois ele afirma ideais a se realizarem no futuro, cujas premissas residem no presente, mas que nem sempre são reconhecidas como tal pela maioria dos que a integram.

O líder, enquanto fenômeno individual, tem ação no presente — e poderá estendê-la por largo tempo, dependendo de sua capacidade mimética de adaptar-se às contingências de cada momento que se faz presente, e de aceitar a progressiva transformação do programa mínimo de ontem no programa máximo de hoje, embora esse último seja, com relação ao primeiro, um passo à frente que sequer poderia ter-se pensado dar quando o processo se iniciou. Mas se ao líder da fase inicial falece essa capacidade de adaptação às novas circunstâncias; se não possui a “virtù” capaz de moldar a “fortuna” — apanágio dos Príncipes — sua função será breve cumprida e sua missão dada por encerrada, devendo ceder o lugar a novo líder, engendrado no passado, quando a frente única apenas engatinhava, e que é capaz de substituí-lo por ter sido sagaz bastante para compreender o sentido do processo histórico, os zigue-zagues que a ação seria forçada a fazer para chegar-se à realização do programa máximo não proposto por inoportuno no instante em que a frente única se estruturou.

Esse novo líder chega ao poder numa data mais recuada no tempo e sua ascensão se deveu ao fato de haver tido a habilidade necessária e suficiente de não pretender liderar quando as condições objetivas, a relação das forças em presença, não lhe permitiam aspirar a tanto. Mas por ter alcançado mais depressa que os demais o sentido do processo, pôde orientar suas ações de acordo com ele; soube fazer suas as aspirações de setores cada vez mais amplos de descontentes com a ação necessariamente destrutiva do primitivo líder; pôde ter tempo de colocar sua compreensão do processo histórico a serviço desse mesmo processo (com o que, por assim dizer, moldou-o às suas necessidades) — em outras palavras, teve, desde o início da frente única, a hegemonia do processo.

As condições dessa hegemonia não se esgotam, porém, no que acima se apontou. Não basta sentir para onde marcha a História (e embarcar mesmo contra a corrente, sabendo que o barco será obrigado, dado o vigor da correnteza e a fragilidade das máquinas, a fazer meia volta e seguir o curso normal da evolução social e política da Humanidade), nem sequer saber capitalizar os descontentamentos. Isso qualquer um faz — é suficiente ter sensibilidade política. A condição sine qua non para deter-se a hegemonia do processo é uma organização, forma histórica de canalizar num dado sentido, dando-lhe coerência política, as aspirações populares — ao mesmo tempo que colocando a massa a serviço das aspirações dos que estão no Poder. Não são todos os que possuem uma organização, ou que a integram, pois não são todos os que se submetem à disciplina, por preferirem a “façanha individual, livre, revolucionária, arbitrária”. Esse tipo de ação, por superior que seja no plano individual, não produz frutos na História — e o pecado dos liberais foi sempre acreditarem em que a simples exposição da verdade seria bastante para iluminar as massas e estabelecer o reino da Razão na Terra.

Só os que à organização aderem, só os que são capazes de nela reconhecer o Príncipe moderno, forjador da consciência nacional e popular, é que podem pretender a hegemonia do processo — a qual será do Príncipe e não deles, isto é, da organização e não dos indivíduos que a integram, pois a ação de cada um deles é a “façanha submetida a uma obediência hierática absoluta”, como se refere A. Weber, em sua luminosa análise de Santo Ignácio e da obra da Companhia de Jesus na luta contra a Reforma.

Na frente única, haverá sempre pelo menos duas organizações a disputarem-se a hegemonia do processo — e o líder do início da ação revolucionária pode pertencer a uma delas, ou a nenhuma (com o que sua presença ativa no processo dependerá do jogo que saiba fazer com as rivalidades competitivas, embora seu campo de manobras seja limitado pelas próprias imposições e exigências do tipo de ação e decisão requerida pela Revolução). E como é inevitável que a Revolução devore seus próprios íilhos, uma delas tenderá a afastar a outra pela violência, ou pela manipulação. A História tem mostrado que o “único partido capaz de tomar o Poder é aquele que tem a coragem de lançar a palavra de ordem mais radical e de tirar dessa todas as conseqüências”. Em outras palavras, vencerá aquela organização que tiver maior poder — atual, ou virtual — maior capacidade de mobilização das massas e, o que é essencial, saiba levar o povo a identificar como suas a esperança da Revolução e as palavras de ordem mais radicais da frente única, e como da outra organização todas as hesitações, todos os erros, todos os “desvios” e “crimes” cometidos pela Revolução.

Decorre daí, na atual conjuntura brasileira, que a hegemonia do processo revolucionário pertencerá necessariamente ao Partido Comunista se a ele não se contrapuser uma organização que tenha uma concepção do processo e se disponha a ousar.

 

 

5. O drama dos “autênticos”

 

O que assegura ao Partido Comunista a hegemonia no processo revolucionário brasileiro, se não se constituir uma organização revolucionária nacional, é sobretudo a inautenticidade da esquerda “autêntica”, que entra na luta não para afirmar na prática a justeza de sua visão teórica do processo, mas para justificar-se, perante si e a História, do fato de divergir dos comunistas em aspectos a seu ver essenciais, mas para eles secundários. Lênin pôde vencer a resistência da direção provisória do Partido, em 1917 porque teve uma visão mais adequada, mais radical — e ao mesmo tempo exeqüível — do processo de desintegração da sociedade czarista e do governo Kerensky. Tivesse ele seguido a inspiração iluminada de Stalin e dos outros que depois confessaram sua “traição” aos ideais de Outubro, e o curso da Revolução teria sido sem dúvida diferente. Foram a superioridade de sua inteligência, a justeza de sua concepção política, e sobretudo a coragem de ser contra cem, isto é, de ficar sozinho nos momentos cruciais, que lhe permitiram dobrar a vontade dos acomodados e fundir a “consciência teórica mais elevada que se tem da época... com a ação direta das camadas mais profundas das massas oprimidas, mais distantes de toda a teoria”.

O cerne da questão, quando se confrontam o Partido Comunista e os “autênticos” numa frente única, não reside em que esses se sirvam do mesmo instrumento de análise que aqueles — pois o mesmo método, aplicado por inteligências diferentes a igual realidade, pode levar a concepções diversas do processo. Reside, isto sim, em que os “autênticos” vêem a realidade da mesma maneira que os comunistas, trabalhada pelas mesmas forças que deverão levar a História ao mesmo destino final. Ora, essa identificação de posições teóricas interpretativas — e necessariamente práticas —, somada à ausência de uma organização profundamente vinculada à massa, faz dos “autênticos” os porta-vozes e os aliciadores dos comunistas perante a alegre confraria dos que, não ousando afirmar-se bolchevistas — talvez por aborrecer as exigências burocráticas e disciplinares da organização — preferem aceitar um dos tantos rótulos que por aí cobrem a mesma garrafa, com o que ficam em paz não com sua consciência (eternamente trabalhada pela culpa de não terem ingressado no Partido Comunista), mas com a necessidade de formar ao lado dos que encarnam a “verdade objetiva da História”.

É possível que nossa análise das intenções subjetivas seja incorreta; se o é, então a esquerda “autêntica” deixa de ser simples caudatária do Partido Comunista para ser dele rival na disputa da liderança e da hegemonia do processo. Ora, a configurar-se tal situação — e é seguramente essa a visão que os “autênticos” têm da questão — o problema ganha em profundidade e em dramaticidade. Em profundidade, porque desde o início da luta na frente única, a esquerda “autêntica” é consciente de ter como adversário histórico não as forças reacionárias, superáveis no processo revolucionário, mas o Partido Comunista; em dramaticidade, por que disso consciente, sabe também que os comunistas a têm na mesma couta e que a organização do Partido, sua capacidade de avançar e recuar, de denegrir reputações e imputar crimes é superior à sua, pois os “autênticos”, antes que revolucionários são românticos, capazes de tudo permitir ao adversário, mas de nada igual fazer para conquistar a hegemonia e o Poder, pois para eles a ação revolucionária deve ser pura, sob pena de confundirem-se com aqueles, cujos métodos condenam.

A esquerda “autêntica” entra assim no processo já em condições de inferioridade: em primeiro lugar, porque tem escrúpulos em parecer diferente do que é, afirmando sempre a necessidade, de uma perfeita concordância entre a integridade subjetiva e a ação objetiva; depois, porque, falta de organização, não poderá jamais oferecer às massas a certeza de que seu triunfo não será efêmero e que após a vitória da frente revolucionária a contrarevolução se instalará no poder; em terceiro lugar, porque na realidade objetiva não consegue distinguir-se dos comunistas, porquanto fala a mesma linguagem e aponta ao povo os mesmos caminhos trilhados por eles, e em quarto e último, por que estando a serviço da História e da Verdade — e não colocando a Verdade e a História a serviço de seus interesses concretos enquanto partido — nutre-se da mística da unidade das forças que farão essa mesma História, não sendo assim capaz, nos momentos cruciais, de romper a frente única e ir buscar junto às massas o apoio político, o poder que lhe faltou no seio daquela soma de organizações todas diferentes na aparência, mas subordinadas todas na realidade ao comando único do Partido Comunista. Trotsky, superior embora aos “autênticos”, cometeu o mesmo erro fatal: confiante na verdade objetiva do processo histórico e na força transformadora de suas idéias, não quis travar a luta pelo poder no único campo em que poderia ser travada, isto é, colocar o partido diante da inevitabilidade da cisão. A partir do instante em que a “oposição de esquerda” proclamou sua intenção de não romper com o partido bolchevista, Stalin sentiu-se à vontade para “usar métodos puramente fascistas” a fim de aniquilar seus adversários históricos.

A coragem de cindir a frente única é a grande arma de que se pode servir quem, comprometido na luta pela hegemonia, está temporariamente em minoria na organização, mas tem a certeza de possuir a visão mais correta — portanto capaz de aglutinar o maior contingente popular — do desenvolvimento do processo. Os comunistas, hoje, o que mais temem é a cisão, que coloca o problema do Poder não nos termos burocráticos em que se acostumaram a pensá-lo desde os tempos de Stalin, mas em seus verdadeiros termos políticos. Hoje, mais que uma visão dialética, crítico-prática da realidade, os comunistas têm dela uma visão burocrática (que julgam justa por ter sido, ao menos para eles, confirmada pelas experiências do nazismo e do stalinismo). Para eles, o essencial é o poder puro e simples; o que conta e não podem perder é possuir o comando das organizações de massa, o qual lhes permite usar “grupos militarmente organizados” para dissolver as reuniões dos opositores “a força de assovios e cacetadas” — em uma palavra, assegurar-se pela corrupção, pela coação moral e pela violência física o controle das assembléias das organizações populares, impedindo a livre discussão dos problemas, pois o esclarecimento das massas pode ser-lhes fatal.

Em sua pureza doutrinária — e em sua consciência culpada — a esquerda “autêntica” será sempre incapaz de opor qualquer resistência a esse rolo compressor nitidamente totalitário. Na medida que parte do princípio de que o Partido Comunista — por reclamar-se do marxismo e da classe operária, sendo o marxismo a Filosofia dos tempo modernos e o proletariado o Cristo em concreto do século XX — tem a História como sua testemunha de defesa e os trabalhadores como garantes de sua honorabilidade, os “autênticos” jamais serão capazes de erguer-se contra o domínio das organizações de massa pelo Partido. Não porque não considerem nos arcanos de suas consciências, ou nas pungentes auto-críticas que se farão a cada dia, os comunistas como companheiros desleais, sempre prontos a trair os solenes compromissos jurados. Disso eles sabem — e aí reside todo o drama: pois apesar de isso saber, não podem, por estranha compulsão, romper com aquela organização que a seus olhos é a História, é o Proletariado, é a encarnação não do Príncipe — personagem humano como nós — mas do Messias.

Não se pode, do ponto de vista subjetivo — e sei-o difícil — marchar sem dilaceramentos interiores ao mesmo tempo contra a História, o Proletariado e o Messias. Mesmo sabendo que o Partido, ao fim do processo, quando dos “autênticos” se tiver servido o suficiente, irá obrigá-los a dizer “I love the Big Brother”. É difícil porque do outro lado da barricada — tal é o raciocínio da esquerda “autêntica” — está a anti-História, estão os “gorilas”, isto é, aqueles (e no seu meio há de tudo, até reacionários) que não julgam os comunistas encarnação de coisa alguma, porém meros seres de carne e osso que querem o Poder para realizar seus objetivos e não a História; que sabem, mais que os comunistas, que a História não faz nada por si, mas pelos homens que a constroem, esses mesmos homens concretos, que têm seus interesses, ligam-se a situações econômico-sociais objetivas (inclusive os comunistas) e para manter suas posições lutam e morrem — além de às vezes dispor-se a matar.

Temendo morrer à mão dos “gorilas”, a esquerda “autêntica” alia-se aos comunistas. Com o que se suicida em vida, entregando ao carrasco as armas que são seu pendão de glórias: sua integridade subjetiva na ação e sua honestidade de propósitos; sua dedicação sem par à causa do progresso social e da liberdade humana e, por que não dizê-lo?, sua ingenuidade.

 

 


 

 


II

AS FORÇAS ARMADAS CONTRA O
“SISTEMA”

 

 

a — DE JACARÉ-ACANGA À RENÚNCIA DE QUADROS

 

 

1. O Quixote e a Revolução Couraçada

 

Haroldo Veloso representa, na fase do “tenentismo” iniciada a 29 de outubro de 1945, o momento de cristalização da náusea de amplos setores com a política e os homens — o de Jacaré-acanga, não o de Aragarças, inspirado por motivos outros que os do primeiro gesto romântico e fruto manifesto da impotência do Homem contra a engrenagem do “sistema”.

Mas representa também a ausência de organização e uma visão apenas inconsciente do processo — embora estivesse nele sempre presente, se não a vontade de conquistar o Poder, aquela “coragem de ousar” que Rosa Luxemburgo apontava como apanágio dos velhos bolchevistas e condição fundamental a quantos desejam participar da luta pela transformação das condições de existência do homem moderno.

No processo revolucionário de nossos dias — especialmente no latino-americano, apesar do que se diga da gesta de Sierra Maestra — não há mais lugar para o ato isolado, o protesto do testemunho, o sacrifício individual; desde que a concentração dos meios de destruição nas mãos do Estado tornou impossível a “revolução das barricadas”, a tomada do Poder deixou de revestir-se do caráter de “beau geste”, de luta do Homem contra o Homem, para converter-se num assunto eminentemente técnico, com suas regras precisas — e desapiedadas. Mas a coragem de ousar não se apresenta apenas como a capacidade física de sofrer a dor e o desconforto: mais que isso, é o primeiro sintoma da consciência de que, hoje, as grandes massa da população, sem cujo concurso não se faz a Revolução (sem elas, toma-se o Poder, sem elas, não se o mantém) cansaram-se das palavras de ordem altíssonas anunciadoras do milênio, por desprovidas de qualquer conteúdo de ação mais concreto.

Ter a coragem de ousar significa que se despreza a Palavra — pois ela foi conspurcada pelas “esquerdas”, que no mais das vezes transformaram as revoluções na negação dos princípios afirmados, quando não na mera mudança de homens já saciados por outros ainda não partícipes da distribuição dos empregos e benefícios; e além de conspurcada, negada pelo Poder que envolve os homens e lhes retira, pela corrupção que institucionaliza, a capacidade de reagir, por tédio, ou simplesmente cansaço. Mas significa também que se renega o Poder enquanto expressão única de governo, afirmando-se contra ele a Vida, que se joga para provar ao Povo que o protesto contra o “sistema” não é um mero ato verbal para conquistar empregos ou posições de mando, mas uma idéia que vale a pena ser seguida, pois na comprovação de sua justeza o revolucionário faz a prova suprema. Nesse sentido e num contexto diverso, mas animado dos mesmos ideais anticomunistas e antiimperialistas, o Castro de Sierra Maestra compreendeu com grande lucidez o drama das revoluções modernas: “A um povo cético pelo engano e pela traição não se pode falar em outros termos: seremos livres ou mártires. Quando chegar esta hora, Cuba saberá que os que estamos dando nosso sangue e nossas vidas somos os seus filhos mais leais... E se cairmos... cairemos... pela liberdade do povo”.

Jacaré-acanga foi a Sierra Maestra brasileira — batida pela inércia de alguns poucos, pela não aceitação, por Veloso, das regras impiedosas do jogo, pela ausência de organização, pelo desprezo consciente do papel decisivo que esse Povo amorfo e nauseado pode desempenhar, desde que organizado, no momento em que encontra, num homem, o gesto que lhe restitui a crença no conteúdo e no sentido das palavras. Foi a reedição dos “18 do Forte”, que traçaram a linha geral do processo — que só poderá ser civil e militar —, e que desaguaram na “Coluna”, que procurou realizá-lo no seu cenário natural — que há-de ser o interior. Repetiu a gesta anterior, sem havê-la compreendido no que havia de essencial — que era sua linha geral; sem atentar para o fato de não se poder combater o Poder num meio praticamente desabitado, sem apoio da população civil, sem um programa que mobilize as consciências, sem uma organização para estabelecer a ligação entre o Povo e o novo governo ao instalar-se o poder revolucionário. Por isso tudo malogrou, embora tivesse despertado de novo a consciência dormida e houvesse paralisado a máquina de propaganda do Partido Comunista, porquanto ao erguer-se contra o “sistema”, ele proclamou sua inquebrantável fidelidade à plena soberania nacional, acusando o governo Kubitschek de pactuar a um tempo com o “imperialismo e o partido comunista”.

A Revolução não se faz a partir do aparelho do Estado — dessa posição dá-se o golpe técnico, o mais das vezes sem riscos para quem o dirige. E também não se faz como a guerra — com plena garantia dos recursos em material e comunicações, com o apoio psicológico da população civil, toda ela voltada para derrotar o inimigo nacional. O golpe técnico resolve-se em algumas horas; depois dele, vem a supressão das liberdades essenciais e a transformação da palavra empenhada na irrisão da dialética colocada a serviço da mentira. A Revolução pode resolver-se também em dias, ou meses: depois dela vem a ingente tarefa de cumprir o programa anunciado, sob pena de mergulhar-se no caos e o revolucionário confundir-se com o vulgar aventureiro, que jogou com vidas humanas para obter maior soma de poderes. No golpe técnico, os líderes refugiam-se em seus Estados-Maiores e comandam a máquina de destruição de vidas e vontades; na Revolução, os chefes se empenham ombro a ombro com os chefiados — mas ai deles se hesitarem, num momento crucial, em lançar os que neles acreditam na defesa de uma posição sabida perdida de antemão. Também por isso se frustrou Jacaré-acanga.

Talvez a hesitação fatal a Veloso decorra da psicologia que sua Arma nele desenvolveu. O oficial-aviador é um homem só — ele, o inimigo, o horizonte e Deus. Tem consciência plena de que sua missão não é um ato de criação individual; sabe que seu vôo depende de múltiplas operações e da colaboração de dezenas de pessoas. Mas é ele quem, sozinho, joga a vida — e não pode permitir que ninguém mais faça por ele, pois para isso foi educado e lhe ensinaram que, haja o que houver, especialmente nos momentos difíceis, o comando é seu, a decisão é sua, a responsabilidade a assume sozinho, apenas ele. O aviador é o Quixote que sobreviveu à Cavalaria e integrou-se na mecanização da morte. De seu posto de comando, vislumbra além do horizonte comum dos homens; pode permitir-se fazer e pensar o que aos demais não assiste. É ele, apenas ele, que pode vencer a distância e o isolamento das populações, levando-lhes o jornal que evoca o conforto sonhado, e o remédio que prolonga a agonia. E é ele, apenas ele, que deve morrer — sozinho como nasceu, mais perto de Deus que todos nós.

Pense-se nas outras Armas — são expressão couraçada da organização; nelas o homem não tem o sentimento do desafio que a imensidão lança ao aviador logo que decola. Todos se enquadram, avançam, recuam, ajoelham-se, morrem juntos. A própria condição de ser dessas Armas impõe aos que comandam a necessidade de arriscar a vida alheia — juntamente com a sua. Nas Armas couraçadas, ninguém morre sozinho — nem sabe mesmo porque morreu nesta posição e não naquela. Ninguém vê o adversário; sabe que está lá, distante, inalcançável por sua vez — única expressão humana do soldado engajado —, mas mortal ao seu projétil. A arte de matar, para eles, despersonalizou-se. Por isso podem morrer e mandar morrer impessoalmente.

A Revolução é, nesse sentido, couraçada por excelência. E sem piedade, mas também sem paixão, pois o sentimento, deve ceder lugar à conveniência tática, às necessidades da organização. Quem não tem esse tipo de coragem política não se sobreporá jamais aos acontecimentos, continuará sempre Quixote, fiel aos princípios em que se criou — sem atingir jamais a estatura do revolucionário do século XX.

 

Por esse e outros motivos, frustrou-se a revoada de Jacaré-acanga. Que ficou como o símbolo do que não se deve fazer, porquanto as idéias em cujo nome se faz a Revolução não permitem o desgaste decorrente do malogro, da frustração da opinião pública, que havia entrevisto no Quixote aquele que poderia apontar novos rumos ao País. Não se julga aqui o homem, mas o gesto — incontinuado, mas que semeou fundo na consciência popular dos que mais sofrem. Que estão à espera de que a semente germine e que da interioridade da terra surja um novo homem apoiado na organização, couraçado em sua concepção justa do processo e em sua coragem de ousar. Que diga a palavra que transforme as existências; que não se detenha, pelas más alianças, a meio caminho da Revolução, como aqueles que fizeram o 11 de novembro, para morrer no ostracismo, acusados pelos amigos da véspera de terem-se vendido ao que sempre combateram. Porque embora tendo a organização e a coragem de ousar, não tiveram a concepção justa do processo e aliaram-se a seus adversários históricos reais.

O “sistema” contra o qual se fez o “tenentismo” ainda inconcluso, não se destrói de cima, burocraticamente; mas de fora e pela base, numa frente única ampla em que hão-de formar todos os que se lhe opõem, sem restrições ditadas pelos preconceitos, nem prevenções geradas pela ambição. O líder do processo — assim como a organização que dele terá a hegemonia — não se escolhe passando em revista os títulos nobiliárquicos de cada um. No processo revolucionário, a única coisa que se decide, nas reuniões dos candidatos a chefe, é se existe ou não, no grupo dirigente e nas bases que suportarão o peso maior das deliberações, a coragem de ousar. Ela existindo, como diria Napoleão, “on s'engage, puis on voit”.

 

 

2. A união de Agosto e Novembro

 

Traduzindo, embora, posições antagônicas quanto às pessoas, os movimentos de agosto de 1954 e novembro de 1955 refletem a mesma insegurança e iguais deficiências: o segundo menos que o primeiro, pois teve a alicerçá-lo uma organização, ou embrião dela, e a inspirá-lo uma palavra de ordem (cristalização de uma concepção do processo) mais capaz de canalizar as simpatias populares, conquanto por seu extremo formalismo fosse fadada, como a do primeiro, a impedir qualquer ulterior progresso da consciência política dos que decidem. Inseguros, pois a mais não se propunham que a realização imediata dos objetivos limitados que os haviam desencadeado: a moralização, num caso; a legalidade, a continuidade do processo democrático, noutro — e a insegurança teórica se tornou inibição concreta para a ação quando a moralização se deteve com o suicídio do presidente, e a legalidade se afirmou pela ilegal deposição de dois outros. E da mesma forma deficientes, pois não formularam a concepção justa do processo, pelo que foram obrigados a deter-se a meio caminho, sem se aperceber de que transposta a tênue linha que separa o legítimo do ilegítimo — do ponto de vista da estrita interpretação dos textos jurídicos — ou se cria uma nova Legalidade e uma nova Moralidade, ou se perde o Poder.

Não que se tenha em pequena conta a importância da moralidade e da legalidade no processo revolucionário — a Revolução Puritana, Robespierre e Castro são a prova em contrário, no que tange à conduta moral necessária da parte dos dirigentes; os “processos de Moscou”, com a inerente violação à da legalidade do sistema soviético, a comprovação de que, sem o respeito à forma e ao conteúdo da lei, qualquer transformação social tende a perder-se nas trevas da burocracia. Mas o principal é não tomar o circunstancial pelo que é essencial no processo; é não fazer da moralidade a bandeira maior, esquecendo-se de que mais importante que vencer a náusea advinda da má ordenação das relações dos governantes com a coisa governada, é dar aos homens uma esperança e uma fé de que possam viver. E não levantar o estandarte da legalidade formal, olvidando que ela pode servir para ocultar exatamente a desigualdade real que se deseja combater.

A Agosto faltou tudo: desde a “coragem de ousar” à organização, e por isso, seus líderes, surpreendidos pelo suicídio, nada mais puderam fazer senão reunir o que a República tinha de melhor e tentar conduzir a nau do Estado sem tocar em ninguém. Limparam-se os porões, pois contra eles é que se subvertera a ordem jurídica; mas a ossatura do aparelho montado pelo “sistema” há 30 anos permaneceu intacta, emperrando a administração, dificultando as decisões, impossibilitando às camadas populares sentirem que os sacrifícios das noites de 5 e 24 tinham dado frutos positivos.

Ademais, a ausência de uma organização capaz de dar ao processo uma orientação coerente impediu o governo, que terminou a 10 de novembro do ano seguinte, de afirmar sua unidade na ação — pois sequer a de pensamento possuía. Eminentes varões concordavam no que não deveria ser feito, mas no essencial, no pensamento comum sobre o que se deveria fazer para destruir o mau legado e lançar as bases do futuro, não houve acordo. E não houve — sequer no tocante ao conceito de sanção penal que deveria prevalecer — porque todos se haviam comprometido na ação sem examinar onde levava, e confiado em que a organização burocrática seria suficiente para preencher as funções hegemônicas do grupo dirigente, cuja existência é imprescindível nos momentos de crise.

Falharam os homens de Agosto pela incapacidade de agir além do que a Lei expressamente não condenava; por ter do processo a visão burocrática e conservadora que a velha sociedade oligárquica havia incutido na “classe política” durante os anos do Estado Novo e do governo Dutra; por não discenir as novas forças que o crescimento demográfico e a industrialização haviam transformado em fatores ponderáveis do jogo político.

Novembro malogrou por outros motivos. Se é que se pode considerar malogrado um movimento que triunfa sobre a inércia dos adversários e vê reunidos à sua volta todos os homens do “sistema” que em agosto fora abalado — inclusive Jânio Quadros, seu herdeiro presuntivo, oscilando sempre entre a legalidade do “Tamandaré” e a do novo governo que se instalara. Partindo de um embrião de organização, os líderes de Novembro deram por encerrada sua tarefa apenas cumprida a primeira etapa do processo e desmobilizaram-se; com isso, deixaram de constituir aquele órgão de controle dos empossados sem o qual, paulatinamente, viram-se afastados do Poder, nada mais lhes restando como ação que o protesto e a denúncia — vazios de sentido para quase todos, pois tudo o que se denunciava nada mais era que a continuação do que Agosto tentara deter.

A concepção do processo era tão formalista quanto a de Agosto — e igualmente vazia de conteúdo concreto. A euforia e a esperança dos cinco anos que se seguiram não foram dadas ao povo pela organização que tentaram forjar — mas pelo Poder e seus agentes, dos quais foram instrumentos até se aperceberem da validade concreta da tese fundamental de Agosto. E do Poder se afastaram para a solidão, quando não o ostracismo, incapazes de ser entendidos na mensagem que chegaram a formular, mas não souberam transmitir, pois não entreviram, nas alianças concertadas para cumprir sua meia Revolução, que davam as alavancas de comando e a direção dos centros de decisão àqueles que eram, historicamente, seus adversários reais: o “sistema”, por um lado, o Partido Comunista, por outro.

Agosto e Novembro foram etapas necessárias para a maturação do processo. Como o Agosto seguinte, quando o príncipe herdeiro do “sistema”, elevado ao trono pelos que ao “sistema” se opunham, deixou o governo e abriu a crise de Poder, a qual é insanável, porquanto a “classe política” está esgotada e sem alternativas pessoais e políticas válidas para as exigências do momento — salvo o Necker desse novo Louis XVI, como o anterior vivendo na solidão da corte erguida longe dos centros de decisão, sofrendo as pressões de quantos falam nas vantagens e nos perigos da Revolução, mas não têm a coragem de dizer ao povo a palavra sem a qual o que se pensa e o que se diz a propósito dela se dilui na irrisão.

Etapas necessárias porque o tempo apagou o que de circunstancial dividia os realmente autênticos de ambos os lados, aproximando-os no que de fundamental foi neles sempre presente: a necessidade intuída da concepção do processo, a qual começa a forjar-se; da organização, que hesita em vir à luz; da “coragem de ousar”, que avança e recua, afirma-se e renega-se a cada passo — mas que surge cada vez mais como exigência racional para os que se engajaram no processo.

Enquanto não se elabora a concepção justa, que deverá cimentar sua unidade na organização, aproxima-os algo que sempre os marcou, onde estivessem: defensores da Nação contra os que a oprimem, homens do povo que a ele voltarão, antes de mais nada são garantes do Estado, de sua soberania e de seu progresso. Se a união de hoje se tornou possível ao longo dos anos, é porque Agosto compreendeu, no amargor da experiência refeita, que a uma Nação que reclama trabalho, aço, energia, transportes, escolas e hospitais — romper enfim as estruturas políticas e sociais em que se alicerça o “sistema” — não se pode oferecer apenas a moralização dos costumes administrativos como programa. E porque Novembro reconheceu que a um organismo tornado insensível pela corrupção e penetrado pelo Partido Comunista — expressão brasileira de um outro Estado — não se pode propor como tarefa única o desenvolvimento a qualquer preço, nem a legalidade formal e abstrata (rompida, aliás, quando se fez mister), pois o primeiro eterniza o “sistema” e aumenta a desigualdade, e a segunda favorece, em seu imobilismo, a tomada do Poder por dentro, como em Praga, 1948.

É desses avanços e desses recuos, desse mergulhar fundo na realidade humana do país, desse identificar-se na missão construtora das Forças Armadas, que os representantes mais legítimos de Agosto e Novembro voltaram a retinir-se sob a mesma bandeira. No programa que falta, na organização ausente, na “coragem de ousar” ainda infante, souberam ter a funda compreensão de que a Nação reclama uma Nova República — que, se realmente se a deseja construir com a paixão dos fortes, só verá a luz do esforço tenaz e paciente de alguns poucos que forjam, no silêncio de seu retiro, a superação das velhas concepções pelo afirmar reiterado de que o progresso nacional só pode — e aliás só deve — ser feito por quem é autenticamente nacional e sinceramente popular.

 

 

3. Os “proletários do sistema”

 

Agosto de 1961 foi a prova dos que pretendiam participar do processo político sem reunir as condições para tal: a “coragem de ousar”, a concepção justa do processo e a organização. Receosos de tomar diretamente o Poder, deram a todos a impressão de que pretendiam fazê-lo com a passiva cumplicidade do Congresso; intuindo a necessidade de realizar as reformas destinadas a dinamizar uma economia reduzida à condição de quase marginalidade, tornaram explícito, no famoso manifesto de 30 de agosto, seu apego à Ordem, que então se confundia com a fixidez das instituições, que sabiam, no entanto, responsáveis pelo atraso social, econômico e político a que o país fora reduzido; desejosos de comunicar ao povo suas preocupações mais sentidas com seu legítimo destino, não souberam encontrar o meio capaz de aferir os sentimentos populares, nem de transmitir ao povo o essencial de seu pensamento.

Querendo preservar a legalidade, violaram-na tacitamente, e não tiveram consciência de que esse rompimento tácito impunha ser seguido da “coragem de ousar” necessária a iniciar o processo transformador, que a Nação reclama para desenvolver-se e afirmar-se como potência que é. Por essa hesitação, pagaram o preço que a História reserva aos que chegam às margens do Rubicão e, ao invés de cruzá-lo, lançando a sorte, limitam-se a nelas bivacar à espera de que os deuses iluminem os homens e lhes revelem de que lado está a Verdade.

Não é de estranhar que assim tenha sido — nem de lamentar, pois tendo sido a prova cabal de que não se viola a legalidade a meias e para nada, serviu para tornar clara a urgência da organização, a qual não se faz sem concepção justa do processo, isto é, sem saber de onde se vem e para onde — especialmente em nome do que — se vai.

O malogro da tentativa de Agosto compreende-se quando se tem em conta que todos os que viveram aqueles dias ainda inconclusos tinham consciência do grave caráter institucional da crise e da impossibilidade de resolvê-la em seus quadros formais. Impossibilidade que decorria, como decorre, do fato de o “sistema” ser vertical em sua composição, atravessando toda a sociedade, comprometendo em seus interesses grupos da mais variada extração, prendendo a “classe política” no jogo suave das portas sempre abertas à aproximação com o Poder — em suma, institucionalizando a corrupção, e quando não süjeitando pela prebenda, emasculando pela visão dantesca da nova Espanha que advirá de seu desmoronamento, embora se esquecendo de que amanhã, ao invés de Madrid, pode ter-se Budapeste.

Servindo-se das Forças Armadas para resolver seus problemas criados no mundo civil, o “sistema” sempre se preveniu contra a possibilidade de elas contra ele se voltarem: imunizou-as contra a Política, vale dizer, isolou-as da Nação e de seus problemas, impediu-as de pensar como resolvê-los, tirou-lhes a possibilidade de serem o grande artífice do progresso do País pelos quadros técnicos e pela mão-de-obra que poderiam colocar a seu serviço. Com isso, paulatinamente, o “sistema” colocou o Civil contra o Militar, fazendo que o primeiro nutrisse pelo segundo, apesar de sua função de garante do Estado, o sagrado furor de quem vê suas energias malbaratadas na falsa imagem daquele que não produz e que para manter sua inércia retira aos outros a possibilidade de se instruírem.

Não importa que essa imagem seja falsa — todos a aceitaram. Uns por impotentes para pôr cobro ao imaginado estado de coisas; outros, por incapazes de perceber a trama de sonho e fantasia em que estavam sendo enleados. Assim, forjada sua mentalidade pelo “sistema”, as Forças Armadas sempre o serviram lealmente — porque serviam à Nação, sem consciência de que na realidade perpetuavam a desigualdade e o domínio dos “príncipes do sistema”. Daí não terem, nunca, se proposto mais do que a “classe política” delas esperava: afastar do poder os grupos que nele se haviam desgastado e não possuíam mais as condições mínimas para continuar recebendo a adesão emocional do povo governado.

Fizeram assim, em todas as crises sucessivas à Revolução de 30, o papel de guarda pretoriana do “sistema”, sem na verdade sê-lo. E por isso, quando em 1961 o trono ficou vazio e os “príncipes” agoniados esperaram 48 horas que o ocupassem, seus chefes hesitaram e temeram porque nada sabiam dos negócios de Estado e receavam que o mundo civil contra eles se levantasse se ousassem a aventura suprema, aniquilando-os e às Forças Armadas, e devolvesse ao trono o que o abandonara, esperando voltar como Perón — embora não tivesse Espejo, nem Eva Duarte. E apesar, ou talvez por hesitarem, o Civil ergueu-se contra o Militar, inflingindo-lhe a pena mais severa, que foi a perda da confiança da Nação em seus garantes e a sutura, ainda hoje não fechada, entre comandantes e comandados.

Em Agosto, porém, o “sistema” esgotou seu imenso naipe de manobras. Razão teve o renunciante ao dizer, meses depois, que naquele instante tudo poderia ter sido decidido — até a reinstalação da Monarquia, pois se solução não fosse encontrada, a própria dinâmica da situação, não concordando individualmente os chefes militares com o Parlamentarismo, vacante o Poder e esgotadas as “classes políticas”, levaria à solução fatal do desespero. E a crise de poder abriu-se com gravidade insuspeitada por muitos, mas sentida intuitivamente por todos.

O Parlamentarismo varreu as ilusões que o país nutria sobre a possibilidade de orientar-se o desenvolvimento, jugular-se a inflação, integrar a Nação que ameaça cindir-se pelas desigualdades regionais, e pôr cobro à desigualdade. E contra o novo regime, a “classe política” não soube oferecer ao Povo senão a solução menos indicada, a qual implicava em restabelecer o regime anterior, que provara incapaz de realizar as tarefas que a História havia colocado à Nação.

Solução mecanicista e retrógrada, pois significava fortalecer a cabeça do “sistema”, vale dizer o Executivo, cujas agências arrogam-se dia a dia funções privativas do Estado; retirar do Legislativo, que bem ou mal ainda é capaz de ser sensível aos reclamos da Nação, o pouco da força que lhe restava depois de haver-se isolado nos rincões ermos do planalto goiano, e impedir o Judiciário de afirmar-se como o Poder independente que deve ser para garantir os cidadãos contra o abuso dos demais.

Se se voltou ao velho regime — no momento em que largos setores começavam a intuir a necessidade de reformular-se a estrutura institucional republicana, fazendo uma democracia nova fundada “na união do povo organizado com as Forças Armadas” — é porque todos os membros da “classe política” — que aderiram emocionalmente, ou por interesse, ao “sistema” — pressentiram que a tentativa de superar as contradições entre uma estrutura econômica esclerosada — que não se renova para as técnicas modernas e não propõe ao país o tipo de desenvolvimento capaz de vencer os decênios que nos separam das nações mais desenvolvidas —, e uma estrutura política desligada da realidade, qualquer tentativa dessa natureza, intuíam, significaria o início do fim de um regime que só se sustenta, hoje, pelo princípio da inércia, já que não possui mais aquilo que se convencionou chamar de bases reais de Poder.

Da perspectiva estritamente objetiva, a crise de Poder resultou dessa contradição fundamental entre a economia esclerosada, irracional e quase-marginal, e as instituições, cujo funcionamento apresenta, em 18 anos de República nova, o triste saldo de dois presidentes que deixam o poder ao termo de seu mandato — um, respeitado por todos, outro por alguns — um se suicida, dois são depostos e outro renuncia ao fim de sete meses. Condições objetivas e contradições reais entre as forças produtivas, que reclamam racionalidade para expandir-se, e uma estrutura de Poder que impede essa racionalização, pois é de sua ausência que a “classe política” retira seu domínio. Mas no campo subjetivo, tão real quanto o outro, as condições ainda não amadureceram bastante para permitir uma visão clara das contradições e, portanto, oferecer-lhes solução, isto é, capacitar um grupo hegemônico a propor ao senso comum dos indivíduos soluções que a consciência coletiva da Nação tenha por necessárias.

É essa defasagem entre as contradições objetivas e as condições subjetivas de organização (consciência teórica dos problemas levada à prática operacional), que explica a sobrevivência do “sistema”; pois nem os comunistas, que nele se infiltraram a ponto de com ele se confundir, nem os que de Norte a Sul esperam uma solução nacional, democrática e progressista para a crise, puderam superá-la. Porque todos, de um modo ou de outro, pelas prebendas ou pelo comodismo, cresceram com o “sistema”, à sua imagem formaram sua consciência, e no medo de Madrid e do Alcazar de Toledo fizeram suas opções.

Potência ideológica erguida sobre os homens, alicerçado no exclusivismo da “consciência corporativa” das Forças Armadas, na irracionalidade intrínseca da economia e no “peleguismo” sindical — na agonia lenta das forças vivas da Nação, mais que em seu crescer desordenado, talvez, mas vital sempre — o “sistema” deixou-se envolver pelo próprio fantasma da imagem que de sua fortaleza se fizera. E não viu que o corpo se recusa à morte enquanto tem consciência de poder viver, e que as forças sobre as quais assentava seu domínio poderiam um dia despertar subitamente da letargia e dar-se conta de sua frustração.

O mais grave na crise que se abriu em Agosto de 1961 — e talvez o sintoma da agonia final do “sistema” tal qual se estruturou durante esses anos todos, é que as Forças Armadas se viram, bruscamente, isoladas da sociedade em que viviam. Sentiram, pela primeira vez em sua longa história, que sem o mundo civil do qual estavam distanciadas não teriam forças sequer para sobreviver como garantes da Nação. E, o que é mais, aperceberam-se de que a ele não poderiam voltar a unir-se, pois a muralha entre um e outro era intransponível, erguida que fora sobre a imagem alimentada pelos “príncipes” de que os beneficiários do “sistema” eram elas e não eles, partícipes do festim. E ao voltarem-se sobre si mesmas, na silêncio da consciência balbuciando o “mea culpa” e o “non possumus”, viram-se sem objetivo, párias expulsos da sociedade civil, sem direito sequer de reivindicar para si aquele mínimo que para os “príncipes” era dado sempre sem medida. E cada um dos que as integram se sentiu de repente habitante de Roma, que à sua prole nada mais podia dar que o ganho com seu trabalho cotidiano — proletário do “sistema”, sequer membro da guarda pretoriana.

Aos proletários conscientes de sua posição social e da mensagem de redenção de que são portadores, cabe a tarefa de vencer o Privilégio, que é a fonte da Desigualdade.

 

 


III

AS FORÇAS ARMADAS CONTRA O
“SISTEMA”

 

b. — A NOVA REPÚBLICA

 

 

1. Armas para quê?

 

Na crise da renúncia de Quadros, subitamente, o soldado sentiu-se pária da sociedade civil. Os esquerdistas — não importa a adjetivação que tenham — levantar-se-ão irados ou irônicos para contestar a tese fundamental de que o militar, na sociedade brasileira, transformou-se no proletário de um sistema de privilégios, corrupção e negação da própria nacionalidade. Porque, para eles, o militar só pode ser aquilo que o “sistema” inoculou desde a infância na mente de cada um: o privilegiado, o intocável, o verdadeiro “príncipe do sistema”. De nada adiantará tentar provar-lhes, vítimas do “fanatismo abstrato do pensamento” condenado por Juarès nos “esquerdistas” de seu tempo, que a História está sendo trabalhada por forças outras que as categorias de pensamento que um marxismo mal-assimilado colocou na cabeça de muitos. Continuarão certos de que a História seguirá o curso que eles próprios para ela estabeleceram, com isso se distanciando cada vez mais da realidade e surpreendendo-se, um dia, com fatos que julgavam impossíveis. E então, ao invés de fazer a crítica de suas posições teóricas básicas, limitar-se-ão à autocrítica de seus esquemas de ação, como se isso bastasse para reintegrá-los na sociedade da qual se afastaram com receio de pensar os fatos tais como são.

 

O que de grave existe no despertar dessa “consciência proletária” das Forças Armadas é que ela exige, inicialmente no plano da consciência, em seguida no da ação, uma proposição teórica capaz de reformular sua posição no meio da sociedade e, portanto, uma concepção justa do processo que terminou por fazer do soldado aquilo que hoje é. Essa tomada de consciência já se deu, ainda que não para todos — manifesta-se toscamente em alguns fatos de dominio público, significativo do desejo profundo que o militar tem de sair do isolamento a que o submeteu, durante decênios, o “sistema”. Mas oferece, tal processo psicológico, o grave risco de colocar em xeque a estrutura clássica das Forças Armadas, pois no instante em que o militar e o civil se juntam em torno da mesma mesa para pensar os problemas do país e tentam encontrar a linha de pensamento e de ação que poderá redimir a Nação, a idéia mesma de hierarquia se subverte, e o escalonamento natural de comando corre o risco de ser substituído pelo da inteligência, quando não da “vontade de ousar”.

É um perigo que tende a aumentar na exata medida em que os antigos chefes, presos ainda às velhas concepções e não se dando conta de que os tempos mudaram, tratam os jovens e os inferiores, mais inquietos e por natureza mais agressivos, como se nada de novo se tivesse passado de 1945 a esta parte, e os civis como elementos sem nenhuma importância, dignos talvez de aclamarem as virtudes infalíveis dos chefes militares, mas incapazes de propor-lhes problemas dignos de consideração.

Esse risco só pode, no entanto, ser obviado pela prática cotidiana de um com o outro — e a hierarquia e a disciplina apenas serão preservadas se os chefes, superando prejuízos e dando-se conta do sem-sentido de muitas pretensões, aceitarem os jovens não como aqueles chamados a obedecer cegamente instruções que vêm de cima, mas como colaboradores a igual título em todas as decisões que se fazem mister.

Isolado do mundo civil, o militar a ele só pode voltar, à Nação só se reintegrará no instante em que de seus problemas tiver consciência e agir em conseqüência dela; em suma, no instante em que voltar a ser civil — o que implica em perder o complexo a um tempo de mando e inutilidade que o “sistema” lhe deu, e em ter a humildade de reconhecer que há um sem-número de campos do conhecimento a que ele não teve acesso, sobre os quais o parecer do civil é tão importante e fundamental quanto o seu sobre os problemas que concernem especificamente à arte da guerra — e mesmo nesse campo, as experiências dos últimos anos vieram demonstrar que também os civis podem emitir parecer sobre o assunto, pois a guerra, como a revolução, não é problema exclusivamente técnico, mas antes e acima de tudo um problema político.

A crise que lavra hoje nas Forças Armadas brasileiras decorre do fato de terem elas perdido sua função específica, que é fazer a guerra — embora conservem ainda a missão precípua de defender a soberania nacional e a segurança interna. A evolução da arte da guerra, o desenvolvimento da tecnologia industrial e o aparecimento de mecanismos jurídicos internacionais capazes de prevenir, ou ao menos fazer terminar rapidamente as guerras internacionais — todos esses fatos que se vêm acumulando desde o começo do século, levaram neste após-guerra à impossibilidade de guerras externas entre os países em cujas mãos reside o equilíbrio político da América Latina, vale dizer Brasil e Argentina. A impraticabilidade de um conflito entre essas duas potências aparece com clareza meridiana para quantos se detêm a analisar a evolução dos problemas político-militares do continente — mas não para os Estados-Maiores, que no desempenho de sua função tradicional têm a obrigação de pensá-lo possível, senão provável.

É essa inadequação do pensamento estratégico à realidade política que se tornou responsável, no lento correr dos anos, pelo desajustamento das Forças Armadas à realidade nacional. Porque essa atitude enraizada nos Estados-Maiores levou-os a não propor às Forças Armadas outra função que a de preparar-se para uma hipotética conflagração internacional, para a qual, inclusive, nunca estiveram e não estão preparadas, porque não têm em sua retaguarda, servindo-lhe de apoio, uma economia próspera e dinâmica, capaz de fornecer aos Exércitos aquilo de que necessitam — em suma, não têm o apoio de uma potente indústria de base.

Essa inadequação do pensamento estratégico-militar à realidade político-social, sobretudo econômica, leva o País a manter apreciáveis contingentes de mão-de-obra sob bandeira sem outra função social que a de receber, aproveitando-os de forma não-econômica, os que se deslocam do setor primário da economia, visando com isso impedi-los de exercer uma pressão muito intensa sobre os setores secundário e parte do terciário — o que viria a agravar as tensões sociais. Assim, a única função que as Forças Armadas preenchem — especialmente aqueles corpos que são compostos de profissionais — é a de impedir a pressão demográfica sobre os setores secundário e terciário e aliviar em parte a registrada sobre o primário — ainda assim a preenche mal, pois o recruta liberado é um elemento não qualificado profissionalmente e socialmente um desajustado, arrancado que foi a seu meio de origem, suas tradições e sua maneira de ver o mundo, e lançado no mais das vezes à cidade onde não encontra um ajustamento tão fácil como se imagina teoricamente. E mesmo que seja de origem urbana, o período que passa nas casernas constitui-se num hiato, num isolamento da vida civil — mais uma fonte, portanto, de desajustamentos.

Não é essa a única conseqüência da concepção errônea que os Estados-Maiores têm da função das Forças Armadas na vida nacional. Necessitando manter sob armas grandes contingentes populacionais num país sem os requisitos industriais mínimos para sustentar um Exército estruturado nos moldes antigos, anteriores à segunda guerra mundial, vêem-se os Estados-Maiores forçados a comprar suas armas no Exterior — e como o natural do chefe militar é sempre ver seus homens bem equipados, esse fato contribui para alterar constantemente o equilíbrio militar no sul do Continente, o qual só se restabelece mediante o fornecimento, ao país de igual estatura político-militar, de idêntica quantidade de armamentos. Esse jogo diabólico, consistindo em armar-se com o que a técnica militar tem de já obsoleto, leva em última instância a uma dependência, restrita, embora, aos países fornecedores de armamento — pois, no mais das vezes, essas armas vêm por assim dizer em consignação quando não doadas sub conditione, a mais importante das quais — já que aquela que condiciona o uso do material recebido à defesa da Democracia tem sido letra morta em muitos países latino-americanos — é a padronização do equipamento das Forças Armadas abaixo do Rio Bravo.

O então coronel de Gaulle escreveu, pouco antes da guerra, um livro que o tornou famoso: Pour une armée de métier. Era a tentativa de dar à França uma estrutura militar consentânea com as novas técnicas da época, tendo em vista a possibilidade — que se provou tristemente real logo depois — de uma nova guerra européia, ou mundial. Um Exército estritamente profissional, essencialmente fundado no princípio da mobilidade, já que sem a capacidade de deslocar rapidamente a infantaria de um ponto para outro do campo de batalha; sem a capacidade de aplicar ao adversário golpes súbitos e de grande poder destruidor; de a tropa — mecanizada ou auto-transportada — atacar aqui, refluir acolá, avançar sempre, seria impossível esperar o êxito em qualquer batalha. Um Exército dessa natureza, altamente móvel, requer menos homens e mais máquinas; menos trincheiras e mais tanques e aviões; menos infantaria e mais indústria pesada capaz de fornecer-lhe os instrumentos de destruição de que necessita. Os Estados-Maiores franceses julgaram as idéias do coronel de Gaulle inadaptáveis e mesmos pessimistas, pois havia a famosa “linha”, que impediria a passagem de qualquer força invasora. O resultado desse apego irracional à rotina foi o que todos viram: os Estados-Maiores alemães aproveitaram-se da doutrina da mobilidade e da mecanização e a França sucumbiu.

Hoje, para os países subdesenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento — como é o caso do Brasil — não se trata de aplicar as doutrinas criadas, aplicadas e provadas válidas durante a segunda guerra. Pela simples e boa razão de que a guerra internacional é impossível na América Latina, a colaboração dos Exércitos nacionais numa possível guerra mundial é mínima — pois a guerra será necessariamente nuclear — e não se justifica, diante da gravidade dos problemas do desenvolvimento, armar-se o país como antigamente. E também porque a realidade militar com que se defrontam, hoje, os países subdesenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, é a guerra subversiva — a qual, quando se traduz em ações bélicas, se reveste da forma de guerra de guerrilhas. A estrutura militar das Forças Armadas brasileiras ou de qualquer país latino-americano não pode responder satisfatoriamente à guerra de guerrilhas — pois não têm elas, em número suficiente e bastante adestrados, homens capazes de fazê-la. E não só o adestramento é insuficiente: também o material é inadequado e a organização da máquina militar é excessivamente pesada, burocratizada e rotineira para poder evoluir com a mobilidade e a improvisação requeridas pelo novo tipo de guerra que as transformações sociais impuseram ao país.

O Exército francês na Argélia sabia, pela experiência indochinesa, que não mais poderia combater se organizado nos moldes antigos. Tentou transformar sua estrutura — e foi essa transformação que lhe permitiu dar combate, durante tantos anos, à FLN. Mas apesar disso, nada pôde fazer contra a marcha dos fatos políticos pela simples e boa razão de que na Argélia, apesar de ter feito o golpe de 13 de maio contra o “sistema”, o Exército estava a seu serviço, mantendo em terras africanas o privilégio e o colonialismo do século XIX, vencidos, estes sim, pelo lento trabalho dos homens cristalizado na História. Em outras palavras, a concepção do processo que presidiu à reorganização do Exército francês na Argélia — embora tivesse bastado para as primeiras fases da guerra de libertação e houvesse permitido a Massu e seu “Vème Bureau” vencerem a “batalha de Argel”, não era dinâmica o suficiente, nem real bastante para permitir uma clara e perfeita visão da missão do Exército na vida política francesa. Por isso, o golpe de 13 de maio deu-se em duas etapas — não na mente dos generais e coronéis que o desfecharam no ar, sem saber a quem entregar o poder, mas na do general de Gaulle, que deles se serviu para liquidar o fardo colonial da guerra argelina e emprender as tarefas de reconstrução que a França reclama. E nessa tarefa de reconstrução — fundada em uma concepção eminentemente tecnocrata, pragmática do processo — desempenha importante papel a nova estrutura das Forças Armadas, preparadas, com material francês, para a guerra nuclear, única que a França deve temer.

 

A estruturação das Forças Armadas — para que elas possam realmente desempenhar uma função social de relevância no país que juraram servir — depende essencialmente da visão que se tenha do desenvolvimento do processo social e político. E, inversamente, essa estruturação pode ser instrumento de inegável valia, em determinadas circunstâncias, para levá-la à prática. Em outras palavras, reorganizadas a partir de uma concepção justa do processo, as Forças Armadas podem transformar-se na organização que há de tornar essa concepção conhecida de todos e operante. Já Maquiavel assinalava em suas obras — e não apenas no Príncipe — que o exército nacional, por ele denominado milícia, fundado essencialmente na infantaria (que era a arma moderna de seu tempo) poderia ser, nas mãos de um Príncipe com virtù, o integrador da nacionalidade e o forjador da consciência nacional e popular de um povo.

 

 

2. Armas para criar

 

Quando se coloca em causa a atual doutrina política de nossas Forças Armadas, não é para estabelecer quantas divisões deve ter o Exército, nem qual das três Armas receberá as prioridades de l a n para seu reaparelhamento. O que se procura analisar é que função política — no sentido proposto por Maquiavel às suas milícias — as Forças Armadas podem desempenhar no processo de desenvolvimento do Brasil. Essa função não envolve, necessariamente, como poderia pensar-se, a intervenção militar nos negócios públicos, a exemplo do registrado na História da República; define-se sobretudo por sua integração no corpo político da Nação, como membro a parte inteira, desempenhando papéis que embora específicos são gerais, pois se enquadram na concepção do processo estabelecida pelo grupo hegemônico que vem a deter, ao longo da transformação social e política que todos reconhecem necessária, o poder de Estado.

A crise latente nas Forças Armadas — da qual os movimentos reivindicatórios são mero sintoma epidérmico — decorre, como já vimos, do fato de não se ter estabelecido para elas, apesar das alterações da tecnologia e da própria arte da guerra, novas tarefas condizentes com a realidade moderna. Malgrado os Estados-Maiores terem sido capazes de perceber a irracionalidade entre os fins propostos às Forças Armadas e os meios existentes para atingi-los — a qual se manifesta sobretudo na doutrina militar e na concepção estratégica hoje vigentes, sem falar na organização propriamente dita, totalmente obsoleta — ainda não foi possível vencer os prejuizos próprios da mentalidade corporativa e decorrentes do isolamento a que elas se condenaram ao aderir emocionalmente ao “sistema”.

A burocratização da carreira das armas, conseqüência de uma errônea doutrina estratégica, dá ao militar uma única funcão em toda sua vida profissional: a de preparar-se para a guerra externa (sabendo que não se poderá responder imediatamente a um ataque de surpresa, nem suportar uma campanha prolongada sem maciço auxílio exterior em armas, munições, transportes e abastecimento), e a de estar sempre pronto a intervir a fim de garantir a ordem interna (ciente de que o peso da máquina e sua burocratização a tornam vulnerável ao movimento revolucionário que adotar as modernas técnicas da guerra subversiva e irromper em lugares distintos e muito distantes um do outro no território nacional).

É uma função limitada e por sua própria natureza limitadora, quando não asfixiante da personalidade do militar, a qual não se pode desenvolver no cumprir todos os dias da mesma tarefa que se sabe sem sentido humano, pois se completa em si sem que seu executor anteveja perspectivas de novos desenvolvimentos. Dir-se-ia, nessas condições, que o militar é outro Sísifo, condenado eternamente a levar a pedra ao alto do monte para vê-la rolar, e a recomeçar sempre, a cada instante, para fazer sempre as mesmas coisas inconclusas. Com a diferença que Sísifo tinha consciência de sua própria condição e do destino que nela se encerrava, aceitando-a por impotente para transformá-la.

Exceto o aviador, que leva a civilização aos rincões do país, e o soldado, que nas guarnições do interior longínquo sente ser o amparo do civil pária da civilização, o militar não cria — e é da esterilidade de seu fazer cotidiano que decorre sua insatisfação, seu sentimento de frustração diante da sociedade civil. Mas não apenas esse constante fazer improdutivo e não-reprodutivo; também a consciência — esta sim, clara e nítida — de que a função que lhe atribuíram é inadequada à realidade moderna e que tal como está enquadrado será presa fácil de quem, dotado embora de instrumentos menos perfeitos, tiver maior mobilidade e o apoio maciço da população civil dos lugares onde exercer sua ação revolucionária.

A crise nas Forças Armadas não se resolverá, dessarte, pela renovação total do equipamento militar. Não são as armas obsoletas, ou antiquadas, que fazem do marinheiro, do soldado e do aviador seres estranhos a si mesmos; poderemos dotar nossas Forças Armadas do equipamento mais moderno que nem assim conseguiremos dar um sentido vital à profissão. Durante algum tempo, enquanto se adestrar no manejo das novas armas, o militar adormecerá seu drama interior; quando a elas se acostumar, a inquietação far-se-á de novo presente, mais aguda, e ele perguntará angustiado: “Domine, quid me vis facere?”

Porque o essencial, nesse alheiar-se de si, não é ter armas modernas, ou do começo do século. É, sim, criar — sentindo-se criador e partícipe dos dramas da Nação, sabedor de que também desempenha um papel importante na luta contra a miséria e pela redenção de seus semelhantes. Enquanto o mundo civil considerar o militar apenas o parasita da sociedade, que onera os orçamentos sem nada dar à Nação, ele também assim se verá, nu diante do espelho. E o civil só mudará de pensar e de sentir quando o militar provar-lhe ser capaz, tanto quanto ele, de criar as riquezas reclamadas pela Nação, garantindo-a ao mesmo tempo contra os eventuais — e seguramente hipotéticos — inimigos externos continentais, e o ataque subversivo da revolução interna organizada do exterior.

A guerra subversiva, característica de nossos dias, não pode ser comparada às antigas insurreições populares para a tomada do poder. Vencida, na segunda metade do século passado, a fase das barricadas e encerrada com Lênin a sua fase blanquista, a Revolução voltou a ser o que sempre fora, isto é, o embate de duas concepções do mundo, antagônicas e irreconciliáveis, com uma diferença sobre o passado: pela intromissão necessária do Poder na esfera ideológica, negando-a, o Estado Soviético e o Partido Comunista passaram a ser os pólos de definição da “esquerda” ou da “direita” de uma tomada de posição política. E a adesão ao Estado Soviético e ao Partido Comunista passou a ser o critério de definição do Bem e do Mal. Não importou que Trotsky tivesse dado sua vida pela causa da Revolução — por ser inimigo do PC majoritário, foi considerado “lacaio do imperialismo” e membro proeminente da conjura nazi-trotsky-integral-fascista contra a humanidade.

Com a intromissão desse elemento novo, as posições revolucionárias não são mais definidas em função das questões sociais objetivas, reais, próprias a cada país, nem o revolucionário considerado tal pelo ardor com que abraça a causa e pela justeza dela. Ser contra ou a favor do “status quo” tornou-se fato de menor importância diante da aceitação ou não dos postulados firmados pelo Partido Comunista, todos concordes com os interesses do Estado Soviético e não obedecendo à dinâmica dos interesses nacionais. Se assim é — como os fatos provam ser — não há, na guerra subversiva (que é a forma moderna da revolução), lugar para os que têm restrições à ação do Partido Comunista e iguais reservas a fazer ao capitalismo. A guerra é total, trava-se em todos os campos, exige de quantos nela se vêem envolvidos uma subordinação integral a suas regras sempre impiedosas. A primeira das quais se resume em saber onde está Kerensky e de que lado se situa Kornilof, pois, como dizia Trotsky, não se pode fazer a Revolução em duas frentes, sendo sempre necessário saber qual o inimigo histórico, real, a fim de — helàs! — ao lado do outro formar, pois é adversário circunstancial e episódico.

A identificação do progresso com o Partido Comunista e o Estado Soviético aceita pelos “autênticos” na prática de cada dia — embora possa ser negada nas especulações teóricas —, alterou fundamentalmente os dados do problema tais quais se apresentavam até o Thermidor stalinista. A longa experiência da ditadura burocrática na URSS veio provar — e o XX Congresso não alterou a essência da questão, pelo contrário confirmou-a na “guerra fria” — que na luta pelo desenvolvimento econômico e pela afirmação da soberania das nações dependentes a opção é apenas uma: formar ao lado do Partido Comunista, que poderá deter, pela organização e pela agressividade de seus quadros e de sua propaganda, a hegemonia do processo, ou contra ele se colocar, visando a garantir a independência do processo nacional dos interesses estratégicos da União Soviética, em particular, ou do campo socialista, em geral — aceitando, a escolher-se o segundo caminho, todas as más alianças que a opção traz consigo: “com o canalha Kerensky, contra o canalha Kornilof”.

A guerra subversiva — desde que não se trate de uma luta pela independência política de nações colonizadas — é proposta nesses termos e é em função deles que todos são classificados por quem detém, hoje, a hegemonia do processo em seus aspectos psicológicos. O progresso e o conservantismo, para os “esquerdistas”, não se definem mais pelo desejo de transformar ou conservar as estruturas sociais (apresentando-se a luta contra o imperialismo como decorrência e não motor da luta contra a miséria e a opressão das oligarquias privilegiadas), mas pela adesão ou rejeição da aliança com o Partido Comunista e natural entrega da hegemonia do processo transformador a um grupo antinacional por sua própria afirmação de partido integrante dos dispositivos ofensivos de um dos campos em que hoje se divide o mundo.

Não somos nós que postulamos tal caráter antinacional do Partido Comunista: são todos os revolucionários realmente autênticos — especialmente os africanos — que, tendo aprendido as lições do movimento operário internacional, fecham as portas de suas organizações aos comunistas e, uma vez chegados ao poder, tratam de colocar o Partido Comunista na ilegalidade sem medo de ser acoimados de reacionários — pois sua fidelidade ao progresso e à independência nacional foi provada na luta cotidiana, freqüentes vezes armada.

Como no caso brasileiro a independência nacional já foi conquistada e não se acha frontalmente ameaçada, o militar não poderá provar sua fidelidade ao progresso e seu desejo de consolidar a soberania pelo desenvolvimento, senão aceitando o desafio da guerra subversiva no terreno em que ele lhe é lançado pelo adversário. Não o adversário ocasional, transitório, já transformado pelo progresso da técnica e pelas forças subterrâneas que trabalham a Sociedade e a História — o capitalismo, dado como morto nas abstrações teóricas, embora na realidade, desde que respeitada a racionalidade da economia de mercado nos países dependentes, ainda tenha frutos positivos a oferecer. Mas sim o real e o histórico, que é o Partido Comunista, que se beneficia do mito em que se transformou a Revolução Russa e da gesta romântica de Sierra Maestra, e que na realidade objetiva de seus atos pouco se preocupa em resolver os problemas da distribuição do poder na sociedade, pois o que lhe interessa é combater o imperialismo norte-americano — e se isso faz, é porque o comunismo de hoje é o “chauvinismo” da grande potência de ontem.

Este é o terreno em que as Forças Armadas podem mostrar sua fidelidade à Nação e seu apego ao Progresso: o da realização do desenvolvimento, a qual só terá sentido humano e viabilidade política se se fizer contra o Privilégio, cujas guardas avançadas formam em estranho contubérnio com o Partido Comunista. É tal aliança que exige faça-se o desenvolvimento simultaneamente contra o Privilégio e contra o Partido Comunista. Não se pode lançar-se à guerra subversiva contra o Partido Comunista se, à mensagem que ele é pensado trazer, opõe-se apenas a conservação das liberdades formais, que nestes 17 anos de redemocratização produziram apenas crises e revelaram-se incapazes de oferecer esperanças ao povo, pais a “classe política” não afirmou o desejo de realizar o desenvolvimento harmônico e combinado do país.

A luta contra o Partido Comunista só terá sentido, só poderá ganhar as grandes massas desiludidas com a democracia, se ferir-se fundo o Privilégio — e em nossa atual fase histórica, ele não se confunde com um determinado sistema de apropriação dos bens de produção, mas com uma desigual distribuição das oportunidades de apropriação das possibilidades de mando econômico, prestígio social e poder político. É por não terem intuído isso, que as camadas dirigentes democráticas deixaram que todas as palavras de ordem do processo do desenvolvimento fossem usurpadas pelos comunistas, com isso possibilitando o aumento do número dos “autênticos”, isto é, daqueles a quem repugna sentir-se parte da máquina iníqua da desigualdade política. Como também, por outro lado, a luta não poderá fazer-se apenas contra o Privilégio, pois significará entregar-se a hegemonia do processo ao Partido Comunista, mais organizado, mais capaz, para muitos dono inconteste da Verdade e intérprete não negado da História.

É dessa perspectiva que assume seu pleno sentido histórico a união do povo organizado com as Forças Armadas. Pois é aliando-se ao povo oprimido pela oligarquia e pelo Privilégio, pelo “sistema” enfim, que as Forças Armadas poderão realizar as magnas tarefas do desenvolvimento e encontrar as novas funções que lhes permitirão tornarem-se criadoras. E é formando fileiras ao lado delas, varrendo com um único gesto os preconceitos que o “sistema” inoculou em nós, que o civil terá a certeza de que o processo será progressista e nacional, pois a condição de patriota do militar é inerente à sua mentalidade, e de sua posição contrária ao Privilégio, ele começa, agora, tardiamente embora, a tomar consciência.

 

 

3. A união do Civil com o Militar

 

As milícias nacionais tinham, no pensamento de Maquiavel, a missão de forjar e organizar a consciência nacional e popular. E a tal escopo eram propostas porque — pelo menos assim o exigia “Il Nostro” — compunham-se sobretudo de infantes, ao contrário das antigas companhias integradas em sua maioria por cavaleiros. Essa função política da força militar não radicava apenas no fato de o grosso da tropa ser de infantaria e não mais de cavalaria; só pode ser plenamente compreendida se se tem em vista que o infante podia usar as novas armas em melhores condições “econômicas” que o cavaleiro — com o que o poder ofensivo da milícia se tornava maior — e se se compreende que, vindo o infante do campo e o cavaleiro da cidade, o Príncipe confiava a guarda de seus interesses à maioria da população armada, ou apta a portar armas.

Confiar, à maioria da população, a defesa do Estado que se pretendia criar a partir da virtù do Príncipe, não era apenas uma visão tático-militar que se esgotava em si, sem maiores repercussões na ordem política; pelo contrário, era uma visão político-militar que partia do princípio de que a incorporação de grandes massas rurais ao universo urbano permitiria ao Estado afirmar-se como potência racional e racionalizadora das relações sociais, dando-lhe — pelo fato mesmo de sua defesa ser confiada às grandes massas sem fortuna — a possibilidade de libertar-se das pressões do Privilégio, dedicando-se, apoiado nelas, à defesa das reais necessidades e à promoção das massas rurais.

Assim, fundada numa concepção do processo, a nova estruturação dos exércitos proposta por Maquiavel tinha a longo prazo uma função eminentemente transformadora da realidade social, libertando o Príncipe de injunções contrárias ao superior interesse do Estado, e ensejando-lhe inclusive ir contra os privatismos, à medida em que o Poder se exercia em nome da maioria e nela encontrava seu suporte militar.

A integração das grandes massas camponesas nas milícias nacionais — os exércitos modernos — ao mesmo tempo, pela dinâmica das relações integradoras, daria azo a que os infantes conhecessem, ao menos intuíssem, o fundamental dos problemas políticos da Nação e sobre eles formassem opinião, levando-os à prática com o apoio das armas que possuíam, colocadas sempre, pela estruturação mesma das milícias e pelo sistema mais democrático de comando, a serviço do bem comum que então se identificava com os interesses do Príncipe, que hoje, pelas relações de poder, tende cada vez mais a confundir-se com a vontade do grupo hegemônico.

Em suma, a reunião dos homens do campo com os habitantes da cidade, todos agrupados na mesma força armada, preenchia duas funções essenciais na vida do país: uma, a de garantir a defesa do Príncipe, libertando-o dos mercenários; outra, integrar as massas no corpo do Estado, dando-lhes consciência política e fazendo aquela união do campo com a cidade que é o ideal dos jacobinos de todos os tempos. Uma estruturação, pois, que atende a dois objetivos: o militar e o político, este sendo alcançado pela maneira mesma de resolver-se, com virtù, aquele.

Assim também, nos países subdesenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, a nova estruturação das Forças Armadas. Como vimos acima, o militar, pelo fato de ter sido preparado para uma guerra hipotética, quase impossível, perdeu paulatinamente seus contactos com o mundo civil, erigindo-se num ser à margem do processo, desprezado pelo cidadão comum, que dele faz a imagem que o “sistema” em todos incutiu. Isolado da sociedade civil, “proletário do sistema”, a ela só poderá reintegrar-se voltando a ser civil, isto é, quando tiver, pela concepção justa do processo social e político e do papel que nele é chamado a desempenhar — embora às vezes não o queira —, a “coragem de ousar” necessária à superação das contradições que o separam do civil, a ele se unindo para a restauração da autoridade da República e para a realização das ingentes tarefas impostas pelo desenvolvimento do país.

A consciência dessa necessidade de unir-se o militar ao civil para, irmanados — como sempre deveriam ter estado — permitirem ao Brasil a realização de seus destinos, já brotou em diversos círculos: o exemplo concreto disso é-nos dado pela “Frente Patriótica Civil-Militar”, a qual objetiva “purificar a República, isto é, aquele regime em que todos se submetem à Lei e em que ninguém é superior a ela, e no qual o governo se preocupa em organizar a distribuição da riqueza de maneira que não haja miseráveis nem nababos, pois as distorções das fortunas apenas estabelecem os privilégios e com eles as desigualdades extremadas, fontes do despotismo do poder econômico, social ou político dos indivíduos, grupos e famílias”.

Essa “Frente Patriótica” parece resumir, no fundo, idéias que fermentavam no mundo militar há tempos; indica uma primeira tomada de consciência coletiva de um grupo civil e militar, com o que não faz mais, a nosso ver, que dar forma a uma série de concepções que andavam esparsas, sem um organismo aglutinador de quantos pensavam igualmente.

Não é preciso remontar muito longe no passado para encontrar os primeiros sinais dessa consciência da necessidade de fundar uma “nova República instituída pelo povo organizado com suas Forças Armadas, esteio da nacionalidade, garantes da ordem, aval do progresso social na liberdade”, e de realizar a “união fraterna do povo livre organizado com suas Forças Armadas exclusivamente colocadas a serviço da Nação”. Os “Dezoito do Forte” tiveram, intuitivamente, a visão do processo — que há de ser civil e militar — e ela desaguou na “Coluna”, que o realizou, como já dissemos, em seu meio natural, que há-de ser o interior, pois é nele que se encontram as grandes massas da população, e é nele que o homem da cidade se unirá ao homem do campo para incorporá-lo ao processo civilizatório, realizando na prática os ideais jacobinos.

Mas se não quisermos ir até os “Dezoito”, encontraremos em 1956, ao lado do Movimento Militar Constitucionalista — que fez e perdeu os movimentos de novembro por uma falsa visão do processo — uma voz isolada no seu pronunciamento, mas seguramente comungando com a grande maioria das Forças Armadas, a qual apontava as causas últimas das crises sucessivas da República, crises essas que previa não terminadas e podendo desembocar numa guerra civil de proporções inimagináveis, a menos que se unissem as três Armas, pois, “num país como o Brasil, em que os fatores de desagregação são vários e trabalham com pertinácia”, elas se constituem no “principal instrumento real de coesão e integração nacionais”.

O depoimento que o tenente-coronel Antônio Carlos de Andrade Serpa prestou no IPM a que respondeu por ordem do marechal Lott, então ministro da Guerra, logo após os sucessos de novembro de 1955, dá mostras de uma lucidez impressionante, bem assim de uma visão do processo ainda hoje atual, porque foi buscar nas necessidades inadiáveis do progresso do país seus fundamentos, dispensando qualquer coloração ideológica, ou filosófica. A essa compreensão do papel unificador da nacionalidade desempenhado pelas Forças Armadas, contrapõe ele a incapacidade real da “classe política”, que até hoje não se capacitou “da verdadeira grandeza dos destinos do Brasil”, preocupada em perpetuar-se nos postos de mando, em fazer dos instrumentos do poder do Estado — como as policiais militares estaduais — fonte de opressão e de supressão da liberdade, colocadas que estão a serviço de um privatismo assente naquele complexo sócio-cultural que se convencionou chamar de “coronelismo”. Diante desse complexo sócio-cultural, fundado num “agrarismo de estrutura antiga”, “pura ilusão” que se busca opor ao “Brasil em pleno processo de industrialização”, a própria força federal é impotente, porque a interpretação das leis destinadas a garantir a pureza do sufrágio impede as Forças Armadas de se colocarem realmente a serviço do eleitor, tendo sua tarefa limitada à garantia meramente formal do pleito no dia de sua realização.

É o choque dessa estrutura agrária antiga com o Brasil em desenvolvimento — a ele se somando a incapacidade da “classe política” e a utilização da classe operária, “permanentemente iludida e explorada pela demagogia e pelo peleguismo”, para a “satisfação do perpétuo continuismo” dos dirigentes — que explica a constante intervenção das Forças Armadas no processo político. Que continuará, ciclicamente, a “repetir-se durante muito tempo”, pois “os nossos angustiosos problemas sociais e econômicos propiciam, de tempos em tempos, esses pronunciamentos”.

Essa linha de pensamento, que traduz a exata compreensão do importante papel que as super-estruturas políticas desempenham na manutenção do “sistema”, condicionando todo o desenvolvimento do processo social e econômico, coincide integralmente com a posição exposta do “Chamamento à Pátria” feito pela Comissão Executiva da “Frente Patriótica Civil-Militar”, ao afirmar-se que “as classes dirigentes brasileiras têm oscilado sempre entre soluções aventureiras e utopias retrógradas, quando pensam nas soluções dos problemas colocados pela própria dinâmica do nosso desenvolvimento interno e pelo envolvimento do país nos embates da guerra fria”, ou ao proclamar-se que “o país não pode mais assistir a este espetáculo em que a demagogia e o privilégio disputam o apoio das Forças Armadas e o aplauso do povo, sem se preocupar em dar a esse mesmo povo as condições mínimas capazes de permitir o seu esclarecimento e a capacidade de escolher o próprio caminho”.

O que indica que a consciência das Forças Armadas já despertou para os grandes problemas da nacionalidade, e que uma concepção justa do processo começa a formar-se entre civis e militares. A essa concepção justa falta, no entanto, a reformulação do papel que as Forças Armadas serão chamadas a desempenhar no futuro, a confirmar-se a previsão feita por Andrade Serpa em 1956. Porque, e nisso o mundo civil tem razão — não porque suas objeções em si sejam pacíficas e sem contestação, mas porque o descalabro financeiro a que más gestões do “sistema” nos levaram não permite dedicar-se ao equipamento das Forças Armadas mais do que elas já recebem — a continuarem elas com a mesma estrutura e as mesmas funções, em nada colaboração para o desenvolvimento do país.

Impõe-se, à luz dessa concepção do processo que começou a germinar publicamente com o depoimento de Andrade Serpa, e que parece ganhar forma organizatória com a “Frente Patriótica Civil-Militar”, encontrar, para as Forças Armadas, “principal instrumento real de coesão e integração nacionais”, funções compatíveis com a integração nacional e o desenvolvimento acelerado do país.

 

 

4. O Redivivo

 

Dorme o batalhador!... por que chorá-lo?
Armas em funeral
silêncio, ó bravos!
Que a dor não o desperte!

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Armas em continência! É um morto vivo!
Ei-lo que passa agora, erguido ao alto
No esquife da Vitória!
O Brasil te saúda, e tu, História,
Um poema de luz de novo escreves!
Soldados, cortejai Andrade Neves!

JOSÉ BONIFÁCIO, O MOÇO“O Redivivo”

 

Gostaria de retomar alguns problemas já discutidos anteriormente, menos para repisar o que já disse que para tornar explícita uma posição teórica que me parece a mais justa nesse preciso momento da guerra subversiva.

Apesar da insistência com que procurei mostrar que a nova forma de organização da vida política nacional deve assentar fundamentalmente na união política e organizatória do civil com o militar, tem parecido que o objetivo colimado é afirmar o primado do militar sobre o civil, com isso sufocando o desenvolvimento livre das potencialidades culturais do país, das quais os civis têm sido, indiscutivelmente, os depositários e os propulsionadores. Nada mais errado e nada mais longe daquilo que suponho ser a realidade dos dias que correm e a própria tradição de nossos movimentos revolucionários, todos eles de cunho nitidamente civil-militar e todos frustres pela falta de uma concepção justa do papel que o militar deve representar no processo de desenvolvimento do país, e pela ausência de uma organização civil-militar capaz de dar forma coerente às idéias que, sobre o sentido de nosso processo histórico, se vêm enunciando desde que a respeito de nossos problemas começamos a refletir, numa tomada de consciência de nós próprios.

A fórmula “união do povo livre organizado com suas Forças Armadas, colocadas exclusivamente a serviço do país”, não surgiu — como aliás nenhuma idéia política — do nada; é a maturação de um processo de reflexão sobre a realidade brasileira, a qual, em um determinado momento de nossa crise mais recente, passou a fazer-se em conjunto por civis e militares desejosos de preservar a Liberdade, muitas vezes sacrificada no que tem de essencial pelo culto da forma em que se transformou a Democracia.

(Talvez tenha sido o prof. Jesus de Galindez, em sua obra sobre a ditadura de Trujillo, quem pela primeira vez tenha apontado com pertinácia o fato de as tiranias latino-americanas respeitarem sempre a forma da Democracia, sacrificando, no entanto, a essência da Liberdade.)

Cabe sem dúvida ao almirante Silvio Heck o mérito de haver exposto publicamente a necessidade de a nova e autêntica democracia que a Nação reclama ser construída “mediante a união das Forças Armadas com o povo organizado”. Como cabe à Marinha, denunciando a ação corruptora e depauperadora realizada pela oligarquia, a virtude de haver reconhecido na união do civil com o militar a “fórmula salutar... capaz de libertar o Brasil desses grupos privilegiados que, corrompendo, vêm enganando e empobrecendo o povo brasileiro”.

Mas se coube à Marinha enunciar pela primeira vez, na área militar, a necessidade de encontrar-se uma nova fórmula de organizar o povo para enfrentar as tarefas propostas às Forças Armadas pela guerra subversiva, a idéia — como dissemos — elaborou-se lentamente ao longo de nossa História recente. Ela corresponde a um processo de tomada de consciência dos problemas suscitados pelo domínio da sociedade por aquele grupo que ora se chama de “oligarquia”, ora de “sistema”, tomada de consciência essa que levou o civil a compreender que, sem o suporte das Armas, não se poderão realizar quaisquer planos destinados a dar ao país as novas instituições que permitirão realizar, sem maiores atritos, o desenvolvimento econômico, e o militar a entender que, sendo de seu dever assegurar ao civil o apoio material para tanto requerido, deveria dá-lo de maneira a que esse mesmo desenvolvimento se fizesse respeitando a Razão das gerações mais antigas, isto é, a Liberdade, e impedindo, ao assegurar-se a Liberdade, que se abrissem brechas na segurança nacional.

É preciso ter em conta que essa desejada união organizatória e política do civil com o militar, sobre estar ainda dando seus primeiros passos, tornados difíceis pelo receio mútuo que um nutre pelo outro, exigirá para sua realização histórica uma nova concepção do papel que as organizações populares e as Forças Armadas serão chamadas a desempenhar na consolidação da República — isto é, do regime em que não há privilégios, e no qual a igualdade de todos perante a lei se transforma em igualdade de fato perante os outros, exatamente pela eliminação dos “privilégios de grupos, classes e famílias”.

Que as Forças Armadas estão inapelavelmente comprometidas com o processo de desenvolvimento econômico do país, apesar da resistência que ainda se pode encontrar em determinados setores menos permeáveis ao progresso, é uma decorrência de sua própria condição de ser. Quando o soldado vê, no desfile da Pátria, a Bandeira tremular sobre armas que não são suas — pois foram cedidas de empréstimo, ou compradas no Exterior — intui, se não pensa claramente, que a sua missão de garante das instituições e da soberania nacional não se poderá cumprir enquanto não tiver atrás de si uma potente indústria capaz de fornecer-lhe o armamento de que necessita para completar-se na realização de sua tarefa histórica.

Assim, é a própria condição alienadora a que foi reduzido pela inexistência de uma indústria capaz de dar às Forças Armadas o que elas reclamam, que leva o militar a exigir dos poderes públicos e da iniciativa privada que dêem ao país o aço e a energia necessários ao progresso. Talvez muitos não sejam capazes de ver o alcance revolucionário dessa posição em si conservadora — mas que se pense nas profundas transformações estruturais que o país terá de sofrer para consumir, no período de 20 anos, e numa previsão modesta de investimentos, três vezes mais aço, cinco vezes mais energia elétrica, três vezes mais energia do petróleo e do carvão — e consumir não importando, mas produzindo aqui mesmo.

Não bastará, porém, cumprir esse programa, acreditando que uma vez vencida a barreira do subdesenvolvimento a guerra subversiva terá sido ganha. Pois se dessa união do civil com o militar não resultar a transformação da doutrina política de nossas Forças Armadas, que se preparam para a guerra subversiva como se a ação do adversário fosse diferente da realizada na guerra clássica, apenas militar e materialmente, e não globalmente distinta, continuará o paulatino e lento trabalho de desmoralização dos garantes da Liberdade, apontados como beneficiários ilegítimos do esforço produtivo nacional.

Todos sabem que a Nação não poderá equipar devidamente suas Forças Armadas, nem remunerar condignamente soldados, graduados e oficiais se sua estrutura continuar tal qual é, pesada, burocrática e sobretudo inadaptada às novas condições da política e da técnica militar internacionais. Em outras palavras, a Nação não pode nem poderá manter Forças Armadas para fazer guerras externas de velho estilo, cuja probabilidade de ocorrerem, exigindo um comprometimento maciço da Nação, é tão pequena que merece ser desconsiderada. Mas ela pode e deve manter Forças Armadas que preencham uma nova e mais alta função, integrando, pelo trabalho, as grandes massas no processo civilizatório, ao mesmo tempo que, pela existência de reduzidos corpos permanentes, estejam em condições de impedir a eclosão de situações tendentes a ameaçar a segurança interna.

Não se poderão realizar as grandes obras de infra-estrutura requeridas pelo desenvolvimento que dará às Forças Armadas o aço e a energia que reclamam, se elas não voltarem a página da história de sua doutrina política, e não se dispuserem a ser os intrumentos da construção desse mesmo desenvolvimento. Os “poemas de luz” da guerra clássica já foram escritos pelas centenas de “mortos-vivos” que encheram de glória o passado. Faz-se mister agora que o Redivivo “um poema de luz de novo” escreva, o civil tornado soldado e o militar feito paisano no ato daquele dar a este o Livro, o Arado, a Ferramenta e, só depois, a Espada.

 

 

5. Questões de organização

 

Na guerra subversiva, a única arma que pode, a longo e a curto prazo, destruir o império que sobre as mentes exerce a sedução das palavras de ordem “esquerdistas”, é a fé (e peso bem a palavra) na Liberdade e no instinto democrático das massas — embora ele se manifeste o mais das vezes amorfo e infenso à organização, sem a qual a Liberdade não se mantém.

Se de início a política comunista partia do princípio correto de que a organização é a “conditio sine qua non” da realização da “praxis” humana, paulatinamente, trabalhada por sucessivas deformações burocráticas, foi levada a isolá-la do sentido mais profundo dessa mesma “praxis”, o qual é a reivindicação da Liberdade. A condição humana é o afirmar sempre repetido do homem sobre a natureza física e o meio social; é na luta contra aquela e na adaptação a esse, que o Homem, ampliando seu domínio sobre os elementos e seu conhecimento sobre seus semelhantes, afirma-se tal e busca alcançar, ao longo desse processo dialético infindo, o reino da Liberdade.

A “praxis” humana sempre foi reivindicação de Liberdade — talvez porque, como afirmava Jean-Jacques Rousseau, quem renega a Liberdade renega sua condição mesma de ser humano. E daí que, ao negá-la, sustentando o primado da organização sobre a paixão e a própria necessidade, do “aparelho” sobre o espontaneísmo das massas, o bolchevismo ilhado na Rússia tenha levado à diferenciação “funcional” no seio da sociedade e permitido a burocratização do regime, além de ter-se revelado incapaz de vencer a luta pelo Poder quando se defrontou com uma outra concepção do processo político que colocava a paixão a serviço da organização burocrática e atentatória à Liberdade, a qual foi o nazismo.

Ao amplo partido democrático de massas, cuja existência Rosa Luxemburgo reclamava contra os bolchevistas, Lênin opôs o partido monolítico assente no centralismo democrático. Concepção ditada pelas necessidades da luta clandestina dos comunistas na Rússia czarista, mas que na prática se transformou num sistema de cooptação totalitário, no qual a base era cada vez mais afastada das decisões políticas tomadas pelo “aparelho”, tendo como alternativa válida à salvaguarda de um mínimo de liberdade a fuga da militância. Porque permanecer na luta significava amoldar-se aos donos do poder através do oportunismo mais cínico, o qual permitiria aos interiormente inconformados, mas moralmente incapazes de afirmar sua dissidência, ter ao menos um lugar ao sol e preservar sua vida.

Este é o problema crucial que se coloca a todos que se propõem transformar a sociedade brasileira e destruir o “sistema”: encontrar uma forma de organização que, sendo capaz de levar à prática a concepção justa do processo, garanta a Liberdade, sem quebrar a eficácia do aparelho montado para fazer e vencer a guerra subversiva.

Para tanto, o essencial é saber que grau de liberdade concreta vigorará na organização — isto é, qual a possibilidade real de as bases controlarem as direções, de fazer sentir seus pontos de vista e de poder vê-los discutidos, e qual o respeito que as opiniões dissidentes terão dos órgãos dirigentes. Em outras palavras, saber se a democracia será sobretudo o regime das maiorias, ou se um sistema assente no respeito à opinião da minoria, que terá sempre assegurado seu direito de discordar e, dissentindo, da mesma forma garantido seu direito de viver na organização enquanto por ela trabalhar.

Resume-se assim a questão — estabelecido o princípio de que “a Liberdade é a Liberdade do que pensa de modo diferente” — em saber se assegurar-se-á às minorias o direito de organizarem-se em fração, desenvolvendo sua política própria e procurando aliciar simpatias para sua causa. A questão é crucial: se a minoria não tem o direito de opinar diferentemente da maioria, essa tende, ao longo do desenvolvimento da ação política, a impor àquela seus pontos de vista e mesmo a eliminá-la (dos quadros partidários, ou fisicamente, não importa); se esse direito lhe é assegurado, a existência da minoria pode levar seus integrantes a organizarem a fração, o que em si compromete a eficácia da luta, pois a minoria arrogar-se-á o direito de não executar as decisões da maioria, alegando delas discordar e frustrando assim alcance a organização o objetivo colimado.

Trotsky já dizia a propósito das frações: “Se não se quer frações, não deve haver agrupamentos permanentes; se não se quer agrupamentos permanentes, é preciso evitar os temporários; enfim, para que não haja agrupamentos temporários, é preciso que não haja divergências de pontos de vista, pois onde há duas opiniões, as pessoas fatalmente se agrupam. Mas como, por outra parte, evitar as divergências de pontos de vista em um partido de meio milhão de homens, que dirige o país em condições excepcionalmente complicadas e penosas? Tal é a contradição essencial que reside na situação mesma do Partido...”

Nem Trotsky, nem seus companheiros, resolveram a contradição — Stalin, sim, ao menos praticamente, pois eliminou as opiniões divergentes, fazendo que a vontade do “aparelho” fosse soberana e incriminando de traidores os que divergiam das opiniões dos velhos e novos comunistas, que elevados ao poder dos Soviets, dos Conselhos de Empresa, ou de Planejamento, distanciaram-se da massa do Partido e do povo em geral, fazendo sua a vontade do Estado. Constituindo, como dizia, em 1927, Rakovsky, e mais tarde Djilas, a “nova classe”.

A questão não se resolve simplesmente dizendo que todos os membros da organização — e por extensão todos os cidadãos de um Estado — têm o direito de discordar dos que estão no Poder. A organização — como já o demonstraram os estudos de Michels sobre a Social-Democracia Alemã e as organizações sindicais alemãs e inglesas, essencialmente democráticas — traz em si o germe da oligarquia, vale dizer da burocratização. O Poder, pelo simples fato de ser o que é, diferencia os indivíduos entre os que o detêm e aqueles que a ele obedecem, e o que é mais importante, modifica fatalmente a mentalidade e a psicologia dos que comandam: “A função modifica o próprio órgão, isto é, a psicologia dos que são encarregados das diferentes tarefas de direção na administração e na economia do Estado muda a tal ponto que não só objetivamente, mas também subjetivamente, não só materialmente, mas também moralmente, deixam de fazer parte do grupo de onde provieram.

Como, pela mesma razão, de nada adianta proclamar como Trotsky, nos anos 20, que a organização deve impedir a formação da burocracia e garantir a cada um o direito de discordar, pois a partir do instante em que se dá ao militante o direito de dizer “não” às determinações das direções, atribui-se-lhe de fato o direito de não executar as diretivas e, portanto, de frustrar a ação.

A democracia talvez seja o único sistema de vida que só se aprende praticando — isto é, dando ao povo o direito de exercitá-lo em qualquer escalão. E a tendência à burocratização só se vence pelo princípio da elegibilidade dos que detêm as alavancas do Poder. Se o ideal da Comuna de Paris revelou-se utópico, pois os funcionários não podem ser eleitos sob pena de a máquina estatal emperrar, nem por isso sua proclamação deixou, ou deixa de corresponder à verdade profunda dos que desejam impedir seja a política uma carreira aberta à desfaçatez dos que podem comprar consciências, e o Poder eternamente controlado pelos mesmos grupos ou indivíduos, que nele se perpetuam pela sanção formal do sufrágio.

A dominação do Estado por um grupo sem controle de espécie alguma, é o caminho aberto à ditadura — e Castro dá-nos disso o exemplo mais pungente. Mas a permanência quase vitalícia dos mesmos homens no Poder, ainda que seja pelo caminho do sufrágio, abre as portas para que se coloquem os recursos do Estado à disposição dos que decidem de como aplicá-los, fazendo que se estabeleça flagrante desigualdade entre os cidadãos que já estão no Poder e os que nele não estão, além de ser a válvula para o nepotismo e a corrupção, que então se institucionaliza e impede o povo de encontrar em si energias para renovar o “sistema”.

Estabelecido esse duplo princípio — de que aqueles que detêm o Poder devem ser eleitos e eleitos por período certo, sem possibilidade de renovar “ad infinitum” seus mandatos, e de que a Liberdade é a Liberdade do que pensa de modo diferente — torna-se mais fácil tentar a solução do difícil problema proposto pela relação direção-base, maioria-minoria.

Talvez sem ter em vista essas questões, mas apenas a eficiência maior do aparelho nas missões que lhe são cominadas, as Forças Armadas tenham encontrado a fórmula de conciliar a unidade de comando e a diversidade de opiniões.

“É no Exército que é mais fácil e mais tentador estabelecer este princípio: Cale-se, não raciocine. Mas no domínio militar, este princípio é tão funesto como em qualquer outro. A principal tarefa consiste não em impedir, mas em ajudar o jovem comandante a elaborar sua própria opinião, sua própria vontade, sua personalidade, na qual a independência deve aliar-se ao sentimento da disciplina. O comandante e, em geral, o homem treinado a contentar seus superiores, é uma nulidade. Com essas nulidades, o aparelho administrativo militar, isto é, o conjunto dos bureaux militares, pode ainda funcionar, não sem êxito, pelo menos aparentemente. Mas o que é preciso a um exército, organização combativa de massa, não são funcionários bajuladores e servis, mas homens fortemente temperados do ponto de vista moral, penetrados do sentimento de responsabilidade pessoal que, sobre cada assunto importante, propor-se-ão como dever elaborar conscientemente sua opinião pessoal e defendê-la corajosamente por todos os meios, sem ir contra a disciplina racionalmente compreendida (isto é, não buracraticamente) e a unidade de ação”.

Nessa concepção, que na linguagem de Estado-Maior se convencionou chamar de “Disciplina Intelectual”, o ter opinião própria, concordante ou divergente da do comandante (e por extensão das direções) deixa de ser um direito para ser um dever: todo membro da organização, ou todo cidadão, tem o dever de discordar quando sua convicção pessoal a isso o leva. E aqueles de cujas opiniões discorda, por ser a discordância um dever e não um direito, não podem julgá-lo adversário da causa, nem inimigo na ação, pois sabem que está cumprindo o dever que a lei lhe estabeleceu, como também sabem que a discordância tem por objetivo permitir formular o melhor partido de ação, na qual todos se comprometerão no momento azado.

Não há, pois, o risco da burocratização, nem da ditadura — nem muito menos da fração. Pois a fração só se desenvolve naquelas organizações onde a minoria sabe, sente ou intui que seus pontos de vista serão sempre relegados a segundo plano, por não participar do Poder. E há também implícito nesta concepção organizatória o triunfo dos jovens sobre os que se anquilosam em suas posições; a vitória da mudança sobre a inércia, do presente e do futuro sobre o passado — sem no entanto renegá-lo.

 

 


IV

BRASÍLIA, 1963 — A REVOLTA DOS SARGENTOS

 

 

1. Uma concepção aventuresca

 

 

“Não se pode organizar um exército sem repressão. Não se pode conduzir à morte multidões de homens se o comando não dispõe, no seu arsenal, da pena de morte. Enquanto os maldosos macacos sem cauda que se chamam homens e que se orgulham de sua técnica, formarem exércitos e lutarem, o comando colocará os soldados na eventualidade de uma morte possível na frente, ou de uma morte certa na retaguarda. Entretanto, não é o terror que faz os exércitos. (...) Para o nosso exército, o cimento mais forte foram as idéias de Outubro”.

TROTSKY, “Minha Vida

 

 

 

O grave no movimento dos sargentos não é a desorganização, a falta de propósitos revolucionários claramente enunciados, a ausência de aliciamento capaz de conquistar para sua bandeira a adesão da maioria do povo. Tudo isso, por criminoso que apareça da perspectiva histórica diante do sangue que correu, é perdoável, pois há momentos em que a paixão fala mais alto que a razão e os homens se esquecem de que, na Revolução, a paixão só entra no momento em que nela se engajam, substituída depois pela razão no planejamento de suas menores ações.

O condenável é a concepção política que presidiu o movimento e que levou ao “putsch” (Aragarças feita sem o aproveitamento da experiência histórica): tomar as Forças Armadas como modelo em escala reduzida da sociedade global e mecanicamente transpor para ela a divisão em classes, como se fora possível, política e sociologicamente, estabelecer diferentes concepções do mundo a partir de posições hierárquicas distintas, igualadas, na mentalidade de “autênticos” e comunistas, às concepções do mundo que se desenvolvem a partir da diferente participação na cultura por nossa posição no processo de produção e distribuição da riqueza.

(Mais grave que o erro metodológico, no entanto — ao invés de nele perseverar, arriscando seduzir a maioria dos sargentos e conquistar a adesão simpática da população civil, especialmente dos trabalhadores rurais e urbanos —, foi variar a concepção básica do processo diante da ameaça de repressão, com o que se rompeu a unidade de pensamento, e portanto a frente interna, e se expôs o movimento ao ridículo, quando não ao malogro mais pungente. Um movimento que se inicia como reivindicação de classe como tal deve ir até o fim; a História não perdoa os que se opondo aos oficiais em nome de uma pretendida situação de classe, dias depois do movimento sufocado invocam os argumentos do general ministro da Guerra para dizer que os sargentos, com os oficiais, formam uma só classe, a classe militar).

O mecanicismo que preside a concepção geral do movimento dos sargentos — o qual é típico dos que, entrincheirados num “fanatismo abstrato de pensamento”, hipostaziam as lideranças sindicais e participam de corpo inteiro da concepção do mundo desenvolvida pelo “peleguismo” sindical e militar, que o há também, — não resiste a uma análise mais séria. Resulta da transposição fria e desenraizada dos esquemas bolchevistas de Outubro para nossa realidade sem uma crítica acurada das condições históricas que levaram à desagregação do exército czarista, e das relações que a oficialidade russa mantinha com a sociedade global, e sem uma meditação mais profunda sobre o papel que as Forças Armadas — oficiais, sargentos e soldados — desempenham no processo político brasileiro.

Tal concepção nasce mais da revolta que propriamente do engajamento passional, mas nem porisso menos lúcido: é mais uma política objetivando a destruição do “status quo” porque encerra em si uma situação hierárquica particular, e não porque seja iníquo e, como presente, esteja impedindo que o futuro nasça coerentemente do passado; é revolucionarismo voluntarista levado ao extremo, dele estando ausente qualquer lampejo de consciência histórica.

Em suma, é uma concepção que, por seu caráter anti-histórico e voluntarista, pelo apego irracional às formas exteriores da classe e pelo desejo de fazer a Revolução — não importa qual, nem para o quê — hoje já se pode dizer responsável pelo advento da ditadura dos “partidários da ordem” sobre os inimigos do Privilégio e o conjunto da sociedade, a qual conduzirá ao esmagamento do movimento espontâneo das massas trabalhadoras a pretexto de pôr fim à irrisão em que se transformou a ação do “peleguismo” sindical comprometido com o sistema de corrupção espoliativa que oprime a Nação.

Não se pode, ao menos numa justa posição teórica, transpor os esquemas com os quais o marxismo nos ensinou a ver a sociedade global para dentro das Forças Armadas. Querer comparar o oficial ao privilégio e os graduados ao proletariado é cometer erro metodológico grave, que na ação política se deve condenar como aventureirismo criminoso, pois solapa a unidade do poder de Estado (sem a qual regime algum do mundo, capitalista ou socialista, se mantém) e impede se una o militar, oficial ou sargento, ao civil, na tarefa histórica de destruição do “sistema”.

Na atual estruturação das Forças Armadas, o militar não produz, nem é proprietário dos meios de produção. Sequer os controla, pois é a burocracia estatal civil, previdenciária e sindical que tem hoje a função de apropriar-se dos excedentes do trabalho nacional para com eles construir seu domínio à parte do conjunto da sociedade. E na atual conjuntura, não se pode responsabilizar em bloco o corpo de oficiais pelo que a disciplina tenha de excessivo, nem pela separação que porventura possa existir entre superiores e graduados.

Se as Forças Armadas brasileiras apresentam uma estrutura anacrônica, incapaz de fazer frente às tarefas do desenvolvimento na guerra subversiva, e se o sistema hierárquico é desatualizado (o que seria ainda de discutir), a responsabilidade pela possibilidade que se abriu da cisão entre oficiais e sargentos cabe aos “príncipes do sistema”. Eles, primeiro tentaram conquistar o oficialato e, depois, vendo-o irredutível às suas promessas, passaram ao aliciamento dos sargentos, não para melhorar sua condição (pois de nada adianta acenar-lhes com as estrelas do oficialato, se sua situação de “proletários do sistema” continua a mesma), mas para afirmar ainda mais, sob o rótulo da união de operários, camponeses, soldados e estudantes, o domínio da corrupção e do “peleguismo”, vale dizer do “sistema”.

Nada há, na história da revolução brasileira, que autorize a dizer que o oficial é o privilégio e o sargento é o proletário. Ambos fazem parte da mesma força que o “sistema” quer atrelada a seu carro para perpetuar-se no Poder. O “tenentismo” é disso a melhor prova — foram os tenentes, portanto oficiais, aliados aos civis, os que traduziram, nos anos 20, os anseios de renovação da sociedade global; como foram os coronéis em 1954 e 1955, e são hoje os oficiais inferiores, os “capitães do povo”, que tentam levantar a bandeira de um movimento novo capaz de unir o militar e o civil na construção da Nova República.

Dizer, como pretendem os “autênticos” e os comunistas, que apenas os sargentos são capazes de sentir a dor e a miséria das populações sofredoras do interior e das cidades, é fazer demagogia, vale dizer, é preferir as soluções mais cômodas, aventureiras, para resolver contradições que talvez não se tenha capacidade teórica para equacionar e “coragem de ousar” suficiente para superar. Como também é retrógrado e utópico, padecendo das mesmas deficiências atrás apontadas, pretender que apenas o oficial pode entender os problemas do país, devendo o sargento segui-lo como um autômato.

Se na guerra clássica já se podia observar a introdução do problema da hegemonia, portanto da política, nas relações entre o poder civil, que ditava a estratégia, e o comando militar, que a alterava pelas necessidades táticas da luta, na guerra subversiva o elemento político é proeminente. A Revolução (e a guerra subversiva é a forma moderna da luta revolucionária) é por definição política, e por sê-lo, exige que as fronteiras da hierarquia sejam superadas na proposição das questões teóricas e dos alvos a atingir, mas firmemente mantidas, coesa e disciplinarmente, quando se trata de passar à ação. Na elaboração do pensamento político que deve levar à ação contra o adversário na guerra subversiva, não pode haver diferença entre o oficial e o soldado, o general e o sargento — afinal, sentir os problemas da Nação e pensá-los não é privilégio de ninguém. Na hora da ação, porém, é mister que a cadeia de transmissão funcione harmonicamente, pois se houver qualquer fissura, qualquer divergência provocada pelo fato de um ter estrelas e o outro divisas, a ação será impossível.

O crime, que contra a Nação se cometeu com o movimento dos sargentos, foi abrir o fosso entre o oficial e o graduado — em outros termos, foi retirar, pelo menos enquanto possibilidade real de ação, eficiência à única máquina capaz de enfrentar, no terreno do desenvolvimento, a guerra subversiva e realizar o progresso do país. Não há outra força organizada no país capaz de enfrentar o “sistema”, senão as Forças Armadas. Os inspiradores do movimento dos sargentos dão de ombros quanto tal tese se enuncia — mas quando pensam em fazer a sua revolução dos “pelegos”, lançam primeiro os sargentos, para depois, dependendo da reação do governo, mobilizar os dispositivos sindicais para a greve parcial administrativa.

É esta a verdade que necessita ser dita e repisada, antes que a luz se apague e o fosso entre oficiais e sargentos se torne intransponível, permitindo a ditadura dos “partidários da ordem” e a eternização do “sistema”. Nos movimentos passados, o militar engajava-se no bom combate porque sabia de seu dever travá-lo: “Pela Pátria e minha honra”. O civil seguia-o, por sentir nele a força capaz de vencer a desigualdade. Neste de Brasília, os civis seus inspiradores lançaram os sargentos à frente, jogando-os contra os oficiais e todo o peso do aparelho repressivo do Estado, sem dar-lhes a menor sombra de cobertura. E continuam tramando, querendo que os sargentos dêem o passo fatal para que só depois o aparelho do “peleguismo” sindical se movimente — se a estrada estiver livre e os graduados tiverem aberto o caminho para que possam apascentar-se tranqüilamente no bivaque da vitória.

Instrumentos do que o “sistema” tem de mais corrupto e acomodatício, os sargentos — com seu gesto reivindicatório — abriram grave crise entre as Forças Armadas e dentro de suas próprias corporações. Não tendo sido capazes de ver que sua reivindicação de elegibilidade, se satisfeita, iria colocá-los entre os “príncipes do sistema”, e que se vitorioso o movimento armado seriam meros pilotis para a sustentação do “sistema” no que tem de mais corrupto e antinacional, os sargentos foram levados inconscientemente a servir à causa que, julgando ser dos oficiais, diziam combater. Porque sua luta, seu bom combate, não é contra os oficiais: só pode ser contra o “sistema” antinacional, que os “autênticos” e os comunistas reforçam, fornecendo-lhe a ideologia para mascarar a corrupção e a inépcia.

Só quando o sargento voltar a dar o braço ao oficial para, irmanados a seus irmãos civis, completarem a obra iniciada pelos “18 do forte”, continuada na “Coluna” e frustrada nos movimentos subsequentes, é que o graduado voltará a sentir-se ser humano, pois terá deixado, juntamente com o oficial, de ser o “proletário do sistema”, afirmando-se cidadão de iguais direitos a todos os demais.

 

 

2. Sentido e realidade de uma revolta

 

O movimento dos sargentos poderá vir a marcar importante etapa na reformulação das funções das Forças Armadas brasileiras, possibilitando-lhes — desde que seus chefes tenham capacidade para caracterizar a fonte do mal-estar nelas reinante e do desajuste de graduados e oficiais diante da realidade da guerra subversiva — adotarem a única saída consentânea com a missão que a História lhes atribui nesta oportunidade.

O essencial, quando se procura diagnosticar uma enfermidade, ou um ligeiro mal-estar, não é reagir à situação anormal como se ela aberrasse da ordem natural das coisas e como emanação do Mal devesse ser tratada. Assim também nas crises sociais, deve procurar-se ver o que de errado existe nas relações de poder no conjunto da sociedade global e em cada um dos setores que a compõem. O fundamental, pois, não é eliminar os sargentos da “sociedade militar”, como alguns mais ardorosos chegam intimamente a pensar, classificando-os a todos de inimigos da ordem e da democracia, agentes de forças totalitárias antinacionais, mas ver quais as razões políticas — isto é, quais os fatos concretos que, tornados conscientes, ou semi-conscientes, levaram-nos a um tipo de ação que contraria a tradição de disciplina de que sempre deram mostras, e viola decênios de relações aparentemente harmônicas entre oficiais e graduados.

Sem dúvida, a ideologia que os “autênticos” e os comunistas criaram para justificar a oposição entre sargentos e oficiais não corresponde à verdade; sem dúvida, não se pode estabelecer uma associação entre os oficiais e o Privilégio, os sargentos e o proletariado, e é sem dúvida criminoso fazer dos sargentos, parte integrante da única organização capaz de vencer o Privilégio e o Partido Comunista, aliados daquilo que o “sistema” tem de mais corrupto e desligado dos superiores interesses históricos da classe trabalhadora brasileira, que são os “pelegos”.

A concepção básica dos “autênticos” e comunistas está histórica e teoricamente errada — mas afirmar isso não resolve o problema, pois ele não se resume a uma concepção teórica, nem a um problema de liderança, pelo menos da parte dos sargentos. E é essa limitação, a nosso ver, o grave equívoco que ameaça tornar as seqüelas do movimento de Brasília ainda mais graves que a insurreição em si.

Todo o problema dos sargentos tem sido examinado e discutido pelas duas facções em que paulatinamente o País se vai dividindo, como se fosse uma mera e simples questão de o graduado ter o direito de ser eleito vereador e deputado. Mesmo os sargentos — que apesar de diretamente interessados são os que menos falam — insistem por sua liderança ostensiva em que o problema a isso também se resume, aduzindo, em defesa de suas pretensões, argumentos que à luz dos princípios gerais do direito político são de fato irrespondíveis, pois não se admite em uma república bem organizada que a lei estabeleça num campo distinções entre cidadãos que, nos outros, reconhece iguais. A discussão nesse terreno, no entanto, não leva a nada — pois um problema político não se resolve na abstração de uma fórmula jurídica feita exatamente para consagrar a desigualdade real entre os cidadãos. Mas se ela, nesse campo, nada de novo acrescenta — já que a letra da Lei é no caso soberana e toda a discussão nela termina — é preciso ver, no entanto, que desde que os sargentos a resolvam travar nesse campo, suscitam insensivelmente um problema mais amplo e talvez mais grave: o do valor relativo da lei positiva e do direito que têm os cidadãos de a ela opor-se em nome da Norma, que é universal e verdadeira.

A idealização da lei positiva tem levado sempre à estagnação social, quando não aos piores regimes políticos que a história da Humanidade conheceu: foi o positivismo jurídico do Exército alemão que permitiu a seus chefes cumprirem ordens que, aberrando da natureza das coisas, encontravam sua justificação na ordenação jurídica do III Reich e na vontade soberana do Fuehrer. Como foi a afirmação da Norma sobre a letra da lei que permitiu a Revolução Americana e a Independência das colônias espanholas — para não falar em Cromwell e na Revolução Gloriosa, que lançaram, com precedência de cem anos sobre as jornadas de Paris, os fundamentos jurídicos da sociedade civilizada moderna.

Importa notar, contudo, que se a discussão sobre o problema da elegibilidade não permite resolver a questão suscitada pelo movimento de Brasília, deve ser, no entanto, o ponto de partida de uma análise mais aprofundada, pois foi em torno do direito de constituirem-se em “príncipes do sistema” que eles pegaram em armas sem apontar ao povo, talvez por motivos inconscientes, quais as razões profundas que os levaram à ação.

Dessa perspectiva, Brasília surge como a saturação de um longo processo semi-consciente, que, vindo a furo, mascarou as causas mais profundas do protesto armado sob a racionalização do direito de ser deputado, como se os sargentos se sentissem inibidos de afirmar, alto e bom som, que se erguiam não contra a decisão do Supremo Tribunal Federal, mas sim contra os oficiais a quem regularmente deviam obediência. Como se fossem filhos que se rebelassem contra a autoridade paterna e, incapazes de a si próprios isso admitir, procurassem disfarçar sua oposição ao pai em finas filigranas de afirmação de direitos civis de que até então não haviam cogitado.

Nas horas graves, não se mascara a verdade sob filigranas, ainda que juridicamente perfeitas. Se parte da Nação sentiu o movimento dos sargentos como um desrespeito ao Judiciário, dois segmentos dela houve que o interpretaram correta, embora inconscientemente: sargentos e oficiais. Talvez eles tenham sido os únicos a sentir em toda a sua crueza do que de fato se tratava, e por intuí-lo — se não sabê-lo racional e conscientemente — adotaram posições rígidas, as quais impedem o diálogo e contribuem para tornar mais amplo o fosso, ameaçando fazê-lo intransponível.

Há indícios de que essa é a interpretação correta, alguns trágicos em sua conseqüência, outros iluminadores do caminho a ser seguido para manter acesa a luz que permitirá assegurar a unidade de pensamento e ação das Forcas Armadas:

A — Quando, no Ministério da Marinha, um oficial se volta em sua cadeira e dá com uma metralhadora apontada para si, atrás dela reconhecendo o sargento que sempre protegeu — ele tem um choque traumático do qual talvez não se tenha ainda hoje recuperado. É que jamais lhe poderia ocorrer que a pessoa a quem sempre favoreceu, “quebrando galhos” e conseguindo funções burocráticas de fácil desempenho pudesse contra ele se voltar. E isso porque quem conduz relações humanas em base paternalista não pode admitir que o inferior a quem ele trata como filho — portanto criança — deseje ser considerado adulto e ser humano.

B — Quando os sargentos, frustrado o movimento, fecham-se para todo o contato com o mundo por assim dizer exterior, confiantes numa força que no íntimo sabem ser pequena, pois têm contra si a maior parte da sociedade politicamente organizada, é porque interiormente não desejam admitir que lhes desfalece razão para o gesto extremo, e que um confronto leal e franco com os oficiais talvez pudesse resolver seus problemas. É que embora se proclamando adultos, ainda que filhos, sentem-se crianças e como tal sem direito a reclamar seu lugar na sociedade dos grandes, devendo conquistá-lo pela violência e não pela discussão.

C — E quando os oficiais, racionalmente ligando a insurreição ao Partido Comunista, isolam-se dos sargentos, confinam-nos e impedem-lhes o acesso ao armamento como se todos estivessem possuídos pelo demônio do bolchevismo, dão razão aos filhos que afirmam ser impossível o entendimento leal e aberto com os pais. É que também se reconhecem pais, cujos privilégios foram postos em causa.

Não se deve, assim, restringir o debate ao problema da elegibilidade e a questão à associação ilícita entre sargentos e “pelegos”. Pois além de ser uma perspectiva de análise incompleta, mostra-se falsa diante da realidade, aceitando-se a luta no terreno proposto pelo adversário, que não são os sargentos, mas os “autênticos” e os comunistas. E a prova de que assim é reside no fato de os sargentos, hoje, recusarem-se a dialogar com quem quer que seja — salvo os que já se integraram no “sistema” e procuram, com sua aliança aos “pelegos” e aos “príncipes”, da desunião das Forças Armadas, colher frutos para si, individualmente, esquecendo-se das reivindicações de seus camaradas, as quais, até hoje, permanecem desconhecidas de todos.

Se a causa real do movimento e da desunião fosse a elegibilidade, os sargentos estariam a esta hora procurando aumentar sua área de influência; teriam tentado, do dia 12 para cá, conquistar para sua causa a simpatia da maioria da população, talvez forçando o Congresso a votar emenda que a opinião pública aceitaria, embora julgasse sua aprovação mais uma prova da impossibilidade em que se encontram os deputados de resistir às pressões organizadas pelos “príncipes do sistema”. Se nada disso acontece, é porque o problema não é a elegibilidade. E se não é, sua cruzada não se dirige em primeiro lugar contra a desigual distribuição do Poder na sociedade global, mas sim contra uma situação particular vigente num segmento parcial dela.

Em outros termos, se os sargentos politicamente se retraíram depois de malogrado o movimento, é porque não se constituía numa reivindicação de direitos civis, cuja forma mais acabada é a Revolução, mas configurava, isto sim, uma reivindicação de supostos direitos ligados antes de mais nada à posição que cada um deles ocupa no grupo particular a que pertence. Daí dizermos que o movimento de Brasília não foi dirigido contra a Constituição, mas contra os oficiais.

A afirmação — disso temos plena consciência — é grave. E sua gravidade não será diminuída pelo fato de reconhecermos que a inspiração do movimento, senão sua chefia, foi “autêntica”, ou “chinesa”. O desassossego não deixa de existir pelo fato de aqueles que exploram e conduzem os inquietos serem comunistas, ou “autênticos”. Suas causas permanecem reais e objetivas, e como tal devem ser tratadas, pois os problemas não se resolvem dando-lhes causas diferentes das reais, nem identificado com o Mal aqueles que os trazem à luz do dia.

Se é uma expressão de revolucionarismo aventureiro e demagógico dizer que os oficiais defendem o Privilégio, iguais conseqüências práticas tem o considerar todos os sargentos como seduzidos pelo Partido Comunista — chinês, ou russo, não importa. Assim pensar e de igual forma agir é lançar os graduados de mãos e pés atados aos agentes das forças totalitárias antinacionais, que apenas esperam dos oficiais o erro fatal. O essencial, no momento, é saber distinguir entre os que se rebelaram contra os oficiais porque têm, ou julgam ter, razões suficientes para tal, e os que — oficiais, graduados e “pelegos” — tramam contra a Nação, utilizando a insatisfação dos demais para abalar a unidade das Forças Armadas, única organização capaz de se lhes opor.

E é este esforço de superação de preconceitos e susceptibilidades feridas que deve ser tentado agora pelos oficiais, estendendo a mão e vencendo o fosso. Por eles, pois é demonstrando compreender as reivindicações funcionais dos graduados que, a seus subordinados e toda a Nação, darão a prova de estar maduros para a tarefa ingente de travar e vencer a guerra subversiva.

 

 

3. O Livro, o Arado, a Ferramenta e depois a Espada

 

O problema dos sargentos, assim como o do oficial que se sente estranho à sua profissão, só se resolverá quando as Forças Armadas tomarem plena consciência do papel que devem desempenhar na guerra subversiva e no desenvolvimento do país. Não se pense que cumpri-lo seja apenas intervir no processo político para entregar de volta aos “príncipes” a máquina administrativa saneada de seus defeitos mais gritantes. Esta é a tarefa que o adversário real das Forças Armadas espera que levem a cabo, pois reduzindo sua missão histórica a uma simples incursão saneadora desarmar-se-ão psicológica e politicamente e retirarão do povo a última esperança que ainda tem de poder vencer o “sistema”.

Talvez a crise seja maior que os homens. Porque talvez a inflação, a corrupção institucionalizada, a ausência tantas vezes comprovada de virtù nos que o homem comum julga Príncipes, tenham tornado vãos — como aparentemente inúteis por sua não seqüência foram os gestos dos que fizeram Galeão e sua revolução frustra, de Veloso e dos coronéis de 1955 — os esforços que desde 1922, inconscientemente, vêm gestando o laborioso e talvez inconcluso parto dessa nova forma de governo alicerçada na união de civis e militares, na íntima associação política e organizatória das Forças Armadas com o povo. E talvez o “sistema” tenha finalmente triunfado sobre os homens, impondo-lhes a resignação dos conformados. Se isso de fato houver ocorrido, ao povo farrapo, ao povo canudos, ao povo balaio que espera do capitão do povo o movimento novo, só restará recolher a semente de sua esperança sob a neve para que, como os homens não a querem germinada, ao menos não morra. Mas se pelo contrário o grão já brotou e falta apenas a organização que lhe dê força e forma, mister se faz preparar os espíritos para a dura tarefa de restabelecer em termos normais a ligação entre o Estado e a Sociedade, fazendo que aquele deixe de sufocar essa, ostensivamente em nome dos interesses do país, na realidade para cevar uma pequena parte da burocracia e os “príncipes”.

Não basta, porém, propor-se restabelecer a comunicação entre os vários setores da Sociedade e entre essa e o Estado, a qual foi fechada pelo sindicalismo estatal, pela intervenção irracional e orgíaca do Estado no processo de produção e distribuição das riquezas, por planejamentos feitos para dizer que há plano, quando a eles falta o essencial que é o escopo, a doutrina, a compreeensão do processo político. Se não houver a disposição interior de superar orgulho e preconceitos, a humildade de reconhecer como inadaptadas à realidade deste preciso momento da guerra subversiva as fórmulas elaboradas pelos séculos XVIII e XIX, a disposição de ver a realidade tal qual é, sem heroísmos coletivos, sem virtude, os interesses privatistas tendendo a predominar sobre o interesse geral — e apesar de permeada pelo desejo instintivo da imensa maioria do povo de mudar, de aprender, de participar cada vez mais e mais profundamente dos valores espirituais e materiais que a cultura ocidental nos legou — será inútil qualquer gesto mais drástico para romper o “sistema”.

Além de, ou talvez pelo fato mesmo de ser um emaranhado coerente de interesses aparentemente contraditórios, o “sistema” é também uma mentalidade, um estado de espírito. Já disse e volto a insistir em que as revoluções foram ideológicas enquanto não se cristalizaram, especialmente a partir de 1917, num Poder de Estado; em que se o Poder de Estado negou a Ideologia, constrangendo os homens à acomodação, adaptando sua mentalidade pela dura realidade da pressão psicológica cotidiana, quando não pela sedução do aburguesamento corrompido, só um ato de fé na Vida — que é contradição, luta e superação de contrários, portanto Liberdade — poderá restabelecer a confiança do Homem em si e nos valores que a sociedade lhe ensinou a ter como verdadeiros; e em que a condição dos que participam desse novo ato de fé é dar a prova de dispor-se ao sacrifício supremo, única maneira de neutralizar o Poder, vencendo a náusea que se apoderou do povo.

Só assim talvez se possa dizer que a flor foi capaz de vencer o asfalto e trazer sua mensagem de esperança aos que desacreditam do “sistema” e receiam dos saltimbancos que contra ele se dizem erguer, mais parlapatões que cavaleiros, nem Quixote nem Sancho Pança por falta de dignidade, pois da crítica ao “sistema” vivem e o gesto fatal receiam, temendo perder o público que os aplaude e nutre, também ele peça do “sistema”. Se antes de a náusea ter tomado o corpo dos homens, a Idéia precedia a Ação no trabalho catequético da pregação do milênio, hoje essa deve àquela anteceder, pois desconfia-se do verbo prostituído na defesa da iniqüidade, em nome de usufruir-se tranqüilo a ilusão inflacionada da lei consagradora da desigualdade. Munique que antecede Varsóvia. E por não crer, o povo se retrai, deixando de ver até a flor que venceu o nojo e o tédio dos homens. É que talvez não baste a flor; faz-se mister a hecatombe.

Haroldo Veloso e aqueles sargentos que em nome da Nação erradamente contra ela se colocaram, dirigidos pelo contubérnio que a domina, tentaram despertar a consciência dos homens. Mas não basta despertá-la sem que o acordar para a realidade do “sistema” ofereça aos homens norte a referir-se, rumo certo a seguir. E norte não haverá e derrota alguma se traçará sem antes, no altar da Pátria, rezar-se o “confiteor” redentor e, abdicados do orgulho e dos preconceitos, civis e militares se dispuserem a reformar aquilo que pela tradição nos chegou, devendo para conservar-se ser alterado na forma, preservando-se apenas a Razão das gerações mais antigas e não o peso das instituições perecíveis, que a deformaram e retiram vitalidade e sentido real à Revolução da Ordem.

Não se unirão civis e militares sem que os preconceitos cedam ao interesse supremo da Nação que se quer erguer. Sem que os civis percam seu atávico horror aos companheiros que a História lhes deu, motivado mais pelo medo de serem fortes que pelo temor de serem fracos, e sem que os militares a si mesmos se vejam tais como o “sistema” os forjou: força armada sem função, alienadora no sem-sentido de sua missão proposta, pequena demais para as tarefas históricas que a Nação deles reclama, grande, pesada, burocratizada em demasia para as realidades da guerra subversiva.

É nesta renúncia e neste despertar que a tradição civilista de nossas Forças Armadas e sua missão de garantes da Ordem, da Lei pautada na Norma e do desenvolvimento do Brasil poderão conciliar-se. Só quando as Forças Armadas, além de constituir-se no cerne da grande organização civil-militar que há-de enfrentar o adversário real na guerra subversiva, transformarem-se na escola de integração, na cultura e na liberdade, dos milhões de párias em que o “sistema” transformou nossos semelhantes, dando-lhes o Livro, o Arado, a Ferramenta e depois a Espada, é que se poderá dizer que o “sistema” não mais voltará e que a guerra subversiva foi ganha.

Nos países em que o Partido Comunista chegou ao poder, as Forças Armadas foram destruídas por ele, sem que tivessem tempo de reagir. No Brasil, a menos que das duras realidades do momento nos convençamos e estejamos dispostos a abdicar dos preconceitos, reformulando toda nossa concepção do papel das Forças Armadas e dos civis na construção da sociedade política, elas poderão ser destruídas exatamente pelos que as desejam preservar íntegras. Na sua forma, arcando com o peso das instituições perecíveis, pelo receio de transformá-las, respeitando a Razão das gerações passadas.

 

 


V

QUE FAZER

 

 

Desta V parte, apenas o primeiro artigo “Libertar os sindicatos” foi publicado. O que a ele se segue foi escrito para esta edição em livro, tendo o A. partido do pressuposto de que, oferecida uma concepção do processo político brasileira e analisada a atuação de civis e militares nas crises dos anos recentes, fazia-se mister propor à consideração dos leitores algumas normas de ação política, as quais não chegam a constituir-se em um programa de governo pois para tal se requer o concurso de especialistas diversos e a posse de dados que só o Governo possui —, mas em uma espécie de roteiro para um planejamento. Como roteiro, talvez valha o que tantas outros que por aí andam valem mas nem por isso deixa, a meu ver, de ser importante fornecê-lo à consideração dos leitores.    O.S.F.

 

 

1. Libertar os sindicatos

 

Se, como tentámos demonstrar, é realizando o desenvolvimento que as Forças Armadas poderão responder ao desafio lançado pela guerra subversiva, impõe-se enunciar os objetivos a serem alcançados e os meios a utilizar para atingí-los. Sem essa definição clara de alvos, qualquer tentativa feita para neutralizar as forças antinacionais será mera formulação teórica acadêmica, ou proposição de ação sem sentido prático, pois enquanto não se conhecer a que se vai será inútil tentar esperar do povo a receptividade necessária a qualquer empreendimento mais duradouro.

Esses objetivos e os meios a eles relacionados, no entanto, só poderão assumir pleno sentido de ação quando explicitados por uma concepção do processo capaz de, a um tempo, dar resposta teórica adequada aos problemas suscitados pela realidade e sensibilizar a consciência nacional, propondo-lhe — graças a essa sensibilização — tarefas concretas. Só assim se poderá dizer que determinada ação será historicamente necessária e só assim será possível esperar vencer as forças do adversário na guerra subversiva.

Tal concepção do processo, contudo, não poderá ser elaborada isoladamente quer por civis, quer por militares. Uma concepção do processo — com a conseqüente ação determinada pela consciência das necessidades a superar — elaborada apenas pelos primeiros, corre o risco de desconsiderar o elemento capital para sua transposição à prática, qual seja a adesão emocional das Forças Armadas, que serão, em última instância, chamadas a garantir sua efetiva realização. Não se pode, hoje, no Brasil, pretender aplicar não importa qual política sem contar com o apoio das Forças Armadas: não que elas à sua aplicação necessariamente se oponham pela violência (e já o fizeram em determinadas fases de nossa História); é que se com ela não concordarem, criar-se-á na área do Governo uma cisão entre a cabeça pensante e os órgãos executores, a qual, a longo prazo, será fatal para a unidade do Poder de Estado. Da mesma forma, as Forças Armadas não podem pensar aplicar uma política elaborada apenas pelas Escolas de Estado-Maior, ou pela Escola Superior de Guerra, porquanto se o mundo civil de sua elaboração não participou, e de sua execução for afastado, a ela se oporá, e o Poder sustentar-se-á então no vácuo, perdendo-se inevitavelmente.

É essa constatação que torna imperiosa a união do civil com o militar — na elaboração da política a seguir e em sua execução na militância diária do Poder. Freqüentes vezes, ao contrário do que se imagina, será o militar aquele que irá fornecer os elementos da realidade cotidiana ao civil, que, acostumado às considerações acadêmicas, tem do processo nacional uma visão deformada pela teoria e pela não freqüentação com os dramas do povo. Pois é o militar, por sua formação — que Andrade Serpa reconhecia deficiente — e por sua própria atividade profissional, quem entra em contato mais íntimo com o povo, embora de uma perspectiva deformante — que é a de ver os problemas através dos dramas do recruta desligado de seu meio e sem possibilidade de receber, durante o período em que se instrui nas Armas, as influências diretas dele. Mas mesmo assim, sente mais que o civil o problema da desigualdade política, porquanto tem diante de si, num contato longo e que se pode presumir fecundo, o analfabetismo, as endemias, as frustrações de um indivíduo eternamente pária de uma sociedade que vê aumentar diariamente as distâncias sociais geradas pela fortuna feita nos golpes da Bolsa, no peculato, no contrabando, ou através das amizades palacianas. Como, na mesma ordem de idéias, será o civil o elemento que fornecerá ao militar os quadros teóricos de referência sem os quais não há ação possível e o conhecimento da desigualdade engendrada pelo Privilégio extinguir-se-á na simples enumeração casuística das constatações empíricas.

Só uma concepção do processo assim forjada e que se tempera na verificação cotidiana de sua validade é que pode apresentar condições de viabilidade democrática, pois resulta da interação dos elementos mais vitais da Nação, a saber, o Trabalho, a Inteligência e as Armas. As outras, forjicadas nos gabinetes ou nos conciliábulos de candidatos a Bonaparte, ou Naguib, poderão oferecer maiores atrativos, por mais facilmente seduzirem as consciências pelo simplismo da proposição teórica, ou pelo êxito pessoal assegurado de imediato por estar-se nas boas graças dos donos do Poder — o político, ou o econômico, não importa. Mas embora triunfando mais facilmente, embora ofuscando pelo brilho das vitórias de algumas fórmulas levadas apressadamente ao cadinho da prática social, não têm elas a possibilidade de oferecer saídas democráticas ao povo, porquanto aqueles que as elaboram se unem ao que o “sistema” de mais corrupto e totalitário produziu — o Privilégio do peleguismo sindical (janguista, comunista, ou amarelo simplesmente, não importa) mancomunado ao dos que, a pretexto de defender a economia nacional dos assaltos do imperialismo, fazem do “nacionalismo” a linha Maginot do monopólio e da exploração dir-se-ia primitiva do trabalho.

Se coube a pequenos grupos civis reunidos em torno de “Vanguarda Socialista” denunciar, no início da redemocratizacão, o caráter totalitário e fascista do Imposto Sindical — responsável pelo peleguismo e meio através do qual o Estado passou a controlar os sindicatos operários, retirando-lhes a combatividade própria e substituindo-a por uma passividade cômoda ao Privilégio, ou uma agressividade de cúpula favorável aos desígnios políticos dos detentores do Poder — aos militares esteve reservada a tarefa de fazer a primeira intervenção na vida política nacional, visando impedir a transformação ao sindicalismo operário numa força a serviço de intuitos liberticidas. Mas os Coronéis do “Memorial” que conduziu à substituição do sr. João Goulart no Ministério do Trabalho, limitaram-se a uma manifestação superficial contra o desvirtuamento do sindicalismo operário, atribuindo-o mais a intenções demagógicas do que propriamente a causas estruturais. Daí não haverem os coronéis de então, ou os capitães e majores de hoje, jogado sua força política contra a pedra angular do “sistema”, dirigindo-a de preferência contra suas manifestações exteriores. Com o que não se desferiu, nunca, o golpe de morte contra o adversário, que pôde assim continuar seu trabalho surdo contra a Igualdade e a Liberdade, apesar da boa intenção dos que pretenderam renovar a República pela mera substituição dos homens que a dirigiam.

Se, em 1954, os coronéis levantaram-se contra as tentativas de transformar os sindicatos — na época controlados em sua maioria pelos “amarelos”, já que o domínio dos comunistas sobre o aparelho sindical deu-se depois — num poder que se contrapusesse ao Legislativo e às Forças Armadas, e se Andrade Serpa formulou, em 1956, seus votos para que florescesse no Brasil um sindicalismo autêntico a exemplo dos países escandinavos, nem aqueles nem esse souberam, no entanto, diagnosticar a causa do mal de que sofria o movimento operário e com ele a República.

Examinando o problema apenas da perspectiva do desvirtuamento das funções do sindicalismo — numa visão em que transparecia, às vezes, o desejo de que os trabalhadores jamais ultrapassassem a “consciência corporativa” de que fala Gramsci — não quiseram nunca encará-lo tal qual é. Se o tivessem feito, se as denúncias ouvidas no Clube Militar, em 1963, contra o “peleguismo”, se tivessem dirigido, desde nove anos antes, contra a origem do mal, não se teria dado, em 1954, a aliança, inicialmente administrativa, depois política, entre o sindicalismo “amarelo” do sr. João Goulart e o dispositivo sindical do Partido Comunista — que, pela porta do sindicato criado pela ditadura e mantido pela Imposto Sindical, entrou nos arcanos do Poder. Nem se haveria mantido essa aliança entre os “amarelos” e os “vermelhos” até 1960, quando os dispositivos de segurança da Nação resolveram acordar para a dura realidade — num despertar ainda assim tardio e não plenamente consciente, pois tudo se fez, de lá para cá, em amplos círculos, para manter o Imposto Sindical, a pretexto de que sem ele os Sindicatos desapareceriam, ou seriam tomados de assalto pelo Partido Comunista, que na verdade deles já se assenhoreara — pelo menos dos politicamente decisivos. Defendendo o Imposto Sindical, não se aperceberam, militares e civis empenhados na luta contra o domínio do sindicalismo pelo Partido Comunista, que a organização que com mais ardor se empenhava na manutenção desse tributo era exatamente o Partido, que supunham combater, mas que na realidade reforçavam em seu poder real, pois com ele faziam coro na defesa de uma situação que só favorecia os já enquistados na máquina sindical.

É esse um dos pontos fracos da concepção do processo que se vem tentando elaborar desde a redemocratização: construída isoladamente por civis e militares, os primeiros não conseguiram fazer-se ouvir pelos segundos e esses não souberam ver os problemas da sociedade civil senão pela ótica estreita dos “grandes homens” (que às vezes pareciam ser a encarnação do Mal). Influenciados por essa perspectiva, os militares, sempre que chamados a agir, limitaram-se a substituir os homens, deixando intacta a máquina política, administrativa e social do “sistema”, que assim encontrou forças para renascer das cinzas.

É no sindicalismo oficial e corporativista — portanto fascista e totalitário — que se dá a conjunção da classe política com o Privilégio e o Partido Comunista, o contubérnio dos defensores de um “nacionalismo” monopolista com os adversários verbais do monopólio e do capitalismo. Todos, absolutamente todos, têm a lucrar com a existência do sindicato único, ausente da massa, vivendo à custa de sua exploração pelo Imposto Sindical: os empresários do Privilégio dele desfrutam, porque tendo a prerrogativa de representar a classe perante a Justiça do Trabalho e os patrões, o sindicato impede, por espúrios entendimentos, que o movimento operário floresça consciente e coerente — reivindicador e em conseqüência propulsor de um dinamismo da economia, o qual o Monopólio reputa contrário a seus interesses, pois uma economia dinâmica leva o menos competente, técnica e organizatoriamente, a sucumbir mesmo com o apoio sempre presente dos bancos oficiais; os oligarcas fundiários da mesma forma, porque a inexistência de movimento sindical autêntico no campo permite manter um sistema de produção que se poderia caracterizar como marginal, o qual sobrevive em virtude do acordo tácito com os empresários do Monopólio e os donos do Poder; os “pelegos”, porque é graças a esse sindicato que vive à custa do dia de salário arrancado anualmente à classe, que mantêm sua posição de poder no “sistema”, dele auferindo favores e prebendas devidas a verdadeiros príncipes; e a “classe política”, porque tem no sindicato um instrumento de pressão dócil, barato e de grande valia.

E como assim é, como é o Imposto Sindical que põe de acordo governo, empresários do Monopólio, comunistas e “amarelos” — os “príncipes do sistema”, enfim — é por sua extinção que deve começar a tarefa saneadora dos que se propõem a “restabelecer a autoridade e purificar a República, isto é, aquele regime em que todos se submetem à Lei, em que ninguém a ela é superior, e no qual o governo se preocupa em organizar a distribuição da riqueza de maneira a que não haja miseráveis, nem nababos, pois as distorções das fortunas apenas estabelecem os privilégios e com eles as desigualdades extremadas, fontes do despotismo do poder econômico, social ou político dos indivíduos, grupos e famílias”.

Desse ponto de vista, o “Chamamento à Pátria”, da Frente Patriótica Civil-Militar, representa um progresso sobre a concepção do processo presente no “Memorial dos Coronéis” e no depoimento de Andrade Serpa: ali está clara a condenação do Imposto Sindical bem assim dos comunistas, “demagogos e aventureiros, aproveitadores do sindicalismo oficial e do peleguismo previdenciário”.

 

 

2. Organizar a sociedade

 

O grave erro dos que se desejam opor ao “sistema” sem se dar conta de ser ele, além de um emaranhado de interesses contraditórios, uma mentalidade assente num determinado modo de ser da sociedade brasileira, consiste em julgar que se pode deitar abaixo o conturbérnio do Privilégio com o Partido Comunista sem substituir, à mentalidade dos “príncipes do sistema”, uma nova, renovada, voltada para os problemas da organização da sociedade civil. A concepção do mundo dos “príncipes” não se formou a partir do instante em que os comunistas passaram a participar do aparelho do Estado: vem de longa data, construindo-se no dia a dia do desinteresse popular pela organização civil e na distância cada vez maior que o Estado, amorfas as classes e os grupos sociais do ponto de vista político, foi ganhando da sociedade. Já em 1930, um pensador lúcido apontava o mal da democracia brasileira:

“Esta participação coletiva [nos negócios públicos] é a pedra de toque de uma verdadeira organização democrática. Uma democracia só é realmente digna deste nome quando repousa, não na atividade dos seus cidadãos, agindo como tais, isto é, como indivíduos; mas na atividade dos seus cidadãos agindo como membros desta ou daquela corporação, como parcelas de um dado agrupamento, unidos pela consciência de um interesse comum, de classe.

“Ora, em nossa democracia, o que vemos é justamente o contrário disto; ela se baseia em indivíduos — e não em classes; em indivíduos dissociados — e não em classes organizadas; e todo mal está nisto”.

De nada adianta opor-se ao “sistema”, se o povo não altera, pela organização, sua anterior maneira de colocar-se diante dos problemas da Política: de nada adianta substituir um governo por outro, se o novo continua elaborando, como o anterior, leis com cuja feitura o povo sequer sonhou e para cuja aplicação não está capacitado, carente de organização. O que acontecerá na hipótese de lançar-se à derrubada do “sistema” sem organizar-se o povo, será a mera substituição de um grupo corrupto por outro talvez menos corrupto; enquanto perdurar o entusiasmo popular pela nova perspectiva que se abriu, tudo irá bem, mas apenas a chama se apague e os indivíduos voltem às preocupações cotidianas das quais foram afastados pelo apelo da transformação súbita da “classe política”, a mentalidade do “sistema” voltará a predominar e o Estado, uma vez mais, ganhará distância da sociedade civil, sufocando, ao mesmo tempo, suas possibilidades de criação espontânea de novas formas de viver em conjunto.

O que se faz mister como proposição criadora da Nova República e transformação dos antigos modos de ser, é impedir se desenvolva o bonapartisnto institucional que caracteriza o Estado brasileiro, isto é, impedir que os “príncipes” continuem legislando para uma sociedade desorganizada, que se recusa a organizar-se, aceitando passivamente que o Estado preencha funções que não são, a rigor, suas.

O que tem caracterizado essencialmente a mentalidade dos que se opõem ao “sistema” é o desprezo pelas formas de organização popular autêntica, as quais não se podem ligar, enquanto tais, sem mais aquelas, a esquemas políticos apenas contrários ao “status quo”. Todos os movimentos que de um tempo a esta data têm aparecido na cena política brasileira, trazem marca característica, a qual impede sua viabilidade em termos organizatórios, portanto políticos gerais: são agrupamentos artificais, criados para responder aos interesses políticos imediatos de determinados grupos declaradamente contrários ao “sistema”, mas que não correspondem, tais agrupamentos, a forças sociais vivas, não podendo, dessa forma, preencher qualquer função hegemônica (da organização e direção da consciência popular e nacional em termos intelectuais, culturais e políticos) na sociedade brasileira. Sobrevivem enquanto o motivo determinante de sua criação subsiste; mas sua existência é mera ficção formal, pois não têm a servir-lhes de apoio estrutural a vontade coletiva. E tanto não aspiram conseguir, originários que são do só desejo de substituir um grupo da “classe política” por outro, e não da vontade de fazer do povo organizado para a defesa de seus interesses sociais mais concretos o instrumento número um da transformação das relações de Poder na sociedade brasileira — em outras palavras, provêm do desejo de substituir os homens, mas não de alterar as situações. Em última instância, negam na prática a necessidade de fazer-se a Revolução, perpetuando ainda que inconscientemente o “sistema”, embora dirigido por homens melhores do ponto de vista moral.

Em 1958, escrevi, a propósito de Brasília, que deveríamos confessar de público nossa responsabilidade pelo fracasso das revoluções contra o “sistema”; fracasso que se resumia numa longa interrogação: “Alguém perguntou a V., seu pai, seu irmão, se Brasília deveria ser construída? Mas alguém, alguma vez, perguntou a V., seu pai, seu irmão, se este ou aquele deveria ser candidato à Presidência da República? Quantas vezes V., seu pai, seu irmão se viram diante da própria consciência, chamados a escolher entre aqueles que outros, os que não privam de seus problemas, de suas angústias, escolheram antes que V. pudesse eleger? V., seu pai, seu irmão protestaram contra este esbulho de seus direitos mínimos de cidadão de uma república democrática? E seu protesto tímido, isolado, às vezes manifesto aos gritos nos comícios, no contágio fácil da sociabilidade da massa, quantas vezes foi ouvido? E quantas vezes V. tentou recomeçá-lo? Deram-lhe sempre a oportunidade de escolher não o que a Nação exigia, mas o menos pior daqueles que os outros, os que não privam de suas angústias, de nossas angústias de cidadãos, julgavam os melhores. V. foi, como eu, sempre colocado diante do fato consumado. E nunca o discutimos; nunca fomos a favor ou contra ele. Por quê ser, agora, contra ou a favor de Brasília, se ali vamos ser enterrados com as pompas que a loucura sabe dar aos atos que a demência considera fundamentais?”

Ninguém até hoje deu resposta a esta longa interrogação; ninguém até hoje pretendeu impedir que se chegasse ao fato consumado. Mas enquanto isso não se der, o “sistema” continuará triunfante, e será sempre maior que os homens que contra ele se colocam, porque lhes falta a compreensão do fenômeno básico da vida política brasileira dos dias que correm: cansado do fato consumado, das fórmulas salvadoras dos partidos; atingido pela náusea profunda da prostituição do sindicalismo, e traído pelos líderes em que depositava suas mais caras esperanças, o povo, hoje, só se organizará em função de dois objetivos aparentemente contraditórios e excludentes, convergindo, porém, para o mesmo fim de Liberdade — a) a defesa de seus interesses sociais concretos e imediatos. (interesses corporativos, como diria Gramsci), de cuja consciência se passa facilmente à dos interesses políticos mais gerais, ou então, b) para fazer a Revolução, significando o gesto dos que a ela aderem a superação emocional de todas as limitações do espírito corporativo e do individualismo. Propor ao povo que se reuna em uma organização ostensivamente ou não política, cujo objetivo é apenas opor-se ao mau governante, significa estar distante do sentir popular e nada pretender realizar; com efeito, identificando-se com tantas outras, uma organização desse tipo não poderá “deixar de ser senão uma organização artificial, tão artificial como as (...) que a precederam e, como tal, destinada, mais tarde ou mais cedo, a dissolver-se, ou a desviar-se dos seus objetivos superiores”.

Organizar para a Revolução é fácil; basta saber conspirar e ter os recursos para, no momento azado, desfechá-la. O difícil é organizar para dar ao governo da Nova República uma base real de sustentação, que elimine para sempre o fato consumado e sirva ao mesmo tempo de cadeia de transmissão entre governantes e governados, entre os cidadãos e o Estado. Mas ao mesmo tempo é simples, desde que se disponha dos recursos para montar o primeiro aparelho que há-de impulsionar a vontade popular, a qual sinto clamar por organização democrática e revolucionária (no sentido mais lato da palavra, transformador das condições atuais de existência social). Basta não dar ao povo normas precisas de como fazer as coisas: não se organizará o povo brasileiro se não se respeitar sua oposição idiossincrásica à organização formal, do século passado, que se traduz em reuniões semanais para discutir sobre nada e resolver absolutamente nada. A nos atermos a esse tipo antigo de organização, conseguiremos reunir cem no primeiro mês, mas ao fim do semestre seremos apenas dez, emasculados pela esterilidade do trabalho sem objetivo concreto e imediato.

O povo brasileiro organiza-se difusamente, não institucionalizadamente — por contraditória e esdrúxula que pareça a afirmação. Ele quer saber que existe um grupo hegemônico em que possa confiar, o qual lhe dará as tarefas a cumprir e só tomará suas decisões fundamentais depois de ouvi-lo, a ele, Povo. Despreza reuniões — mas deseja ser consultado. Aborrece a política tal qual é feita — mas se engajará apenas lhe acenem com uma liderança honesta e popular, e com um programa que toque sua consciência corporativa e que lhe faça entrever a perspectiva da grande mudança.

Não se retirará do Estado burocratizado a hegemonia do processo, burocratizando-se por sua vez a vida social básica. O essencial é encontrar, na prática de cada dia, o termo médio entre o centralismo bolchevista — indispensável à eficiência da ação — e o espontaneísmo luxemburguista — necessário a preservar a liberdade de opção das massas, impedir a burocracia e possibilitar a atividade criadora dos homens. Talvez a solução da antinomia centralismo-espontaneísmo esteja na organização difusa — ou semi-anárquica, como queiram, que se traduz na existência de um núcleo hegemônico, de um pequeno aparelho e de um órgão de divulgação em que todos protestem contra as injustiças diárias, contra os erros que se cometem na administração e onde todos possam discutir, livremente, como se deverá organizar a Nova República.

O essencial é organizar a sociedade civil. É fazer que o Estado perca sua hegemonia sobre o conjunto dos homens e que as leis que elabore resultem do sentir popular — que só um núcleo hegemônico pode apreender em toda sua extensão e profundidade. Quando, nos bairros, o povo se organizar para discutir seus problemas, saber quais são e dar-lhes a solução que a ele mais interesse; quando os operários se organizarem — dentro ou fora dos sindicatos, não importa — para exigir dos patrões e não mais do Estado (pois sua relação humana mais direta é com o empregador e não com o burocrata) o cumprimento da Lei ou o atendimento de suas reivindicações corporativas; quando os empresários se dispuserem a, juntos, formular planos para desenvolver grandes ou pequenas regiões, no complexo agro-industrial que há-de permitir a superação das contradições entre a cidade e o campo, levando a este os modos modernos de produzir elaboradas naquela — retirando do Estado, paulatinamente, sua função de governar as pessoas para que simplesmente administre as coisas de acordo com a vontade das comunidades humanas livremente organizadas —; quando isso acontecer, o “sistema” terá sido deitado abaixo. Porque o que comunistas e oligarcas mais temem é a expressão do sentimento das bases. Uns e outros receiam o diálogo com o povo porque são burocratas por essência. E assim sendo, só a organização do Povo na base poderá fazer que a sociedade se liberte do Estado e que o povo trabalhador sinta que tomou em suas mãos as rédeas de seu destino. E uma vez dadas ao Povo as condições de auto-governar-se, ele não mais as abandonará, pois terá aprendido a viver democraticamente.

 

 

3. Dar a hegemonia à Indústria

 

A situação brasileira, de si já complexa, tornou-se menos simples ainda em virtude dos leitos tortuosos em que correu o processo de industrialização sob a égide do “sistema”; daí fazer-se mister adotarem-se a um tempo soluções conservadoras para resolver determinados problemas, e revolucionárias para tratar outros. Como a inflação, por exemplo. Fruto de desajustes estruturais e de uma errônea concepção do papel das finanças no desenvolvimento econômico, ela não poderá ser contida simplesmente pelo que se convencionou chamar de “métodos clássicos”, isto é, pela compressão brutal das despesas públicas (de custeio e investimento) e redução do crédito com o risco da deflação e conseqüente paralisação quase-total do crescimento do produto nacional. Afora a retração econômica e a crise social que uma política clássica provocaria, é preciso atentar para outro aspecto do problema brasileiro, o qual preocupa muito poucos: é que a diminuição das despesas de custeio da máquina estatal (União, Estados e Municípios), levando à redução do pessoal burocrático, lançaria ao mercado de mão-de-obra, deficitário globalmente de parte da procura, milhares de trabalhadores semi-qualificados, ou sem nenhum preparo técnico, os quais se iriam constituir em foco permanente de inquietação e agitação. O que não implica em dizer que não se reduzam os orçamentos de manutenção; pelo contrário, os cortes orçamentários devem ser feitos, mas desde que se atente para o fato de deverem fazer-se a partir de uma planificação geral da economia, e não de uma simples programação financeira.

Na solução dos problemas brasileiros — a inflação, a questão agrária, o crescimento da indústria, as desigualdades regionais, a crise educacional, entre outros —, há certas diretrizes que a nosso ver deveriam ser observadas por quem se abalançasse à difícil tarefa de elaborar o plano de governo. Começo pela mais geral, mas nem por isso a mais importante:

 

l. O PROBLEMA DA PROPRIEDADE — Esta questão vem-se constituindo no óbice maior a qualquer tipo de planejamento, na medida em que boa parte dos que se opõem ao “sistema”, apontando a falência da proposição marxista do século XIX, não se dão conta de que a defesa que fazem do direito de propriedade e a oposição que movem à intervenção estatal na economia podem ser referidas ao século XVII. Ora, se Lênin, premido pelas necessidade inadiáveis do desenvolvimento da economia soviética após a guerra civil, não hesitou em adotar a NEP, solução sócio-econômico-política em que a propriedade privada disputava palmo a palmo com a propriedade estatal a hegemonia do processo de construção do socialismo (!), aberra da razão mais elementar oporem-se restrições de princípio à adoção de soluções de Estado para certos problemas, quando se sabe que na atual fase de desenvolvimento do capitalismo brasileiro eles só se resolverão com a intervenção do Estado na economia, visto não desejar a iniciativa privada assumir riscos, ou compromissos em determinados setores.

Não se trata de saber se a propriedade é instrumental, ou não. A discussão, sobre ser ociosa, só favorece o Privilégio e indiferentemente o Partido Comunista. A propriedade foi instrumental desde o início dos tempos modernos, seja no pensamento de Maquiavel — “Ora, basta-lhe [ao Príncipe] para não se fazer odiar, respeitar a propriedade de seus súditos e a honra de suas mulheres. (...) Porque os homens, devemos confessá-lo, esquecem mais a morte de seus pais que a perda de seu patrimônio” —, seja no de Jean-Jacques Rousseau, para quem, constituindo-se na fonte da desigualdade e na origem da sociedade civil com todo o seu cortejo de males, é ela, no entanto, o garante da fidelidade dos homens ao “contrato social” e como tal deve ser mantida, desde que não se transforme em fonte de opressão dos pobres pelos ricos.

Sem dúvida, o problema da planificação sem liberdade liga-se, em teoria, estreitamente ao da propriedade estatal ou privada; mas mesmo assim é preciso ter em mente que na sociedade totalitária alemã do século XX — a Alemanha nazista —, a propriedade privada era respeitada, da mesma forma que combatida na Rússia stalinista, totalitária a igual título. A ligação entre Liberdade e Propriedade, portanto, não se dá no conceito puro, mas na prática do Poder dos proprietários, ou do Estado. E ousaria mesmo dizer que a Liberdade liga-se à possibilidade do homem sair das normas traçadas pela sociedade para seu comportamento moral, econômico, social e político, e que, portanto, relaciona-se mais com a Livre Iniciativa, que nada tem a ver com a Propriedade Privada enquanto direito natural. O “sistema” é disso a prova cabal, pois respeitando a propriedade privada, sufocou a Livre Iniciativa moral intelectual, técnica, econômica, social e política dos homens, reduzindo todos a peças anônimas de uma engrenagem sinistra em que a violação da conduta formalmente estabelecida implica em sanções morais, ou policiais, contra o gênio inventivo.

O problema da Propriedade não pode ser resolvido de antemão por uma “elite” de intelectuais comprometidos com o Privilégio, ou com o Partido Comunista, os quais se reúnem em torno de uma mesa verde e decretam, intimamente convencidos de estar mudando o curso do mundo, que ela será privada, ou do Estado (o que, a meu ver, diante da experiência do nazi-stalinismo vem a dar no mesmo). Ela se resolve — na Agricultura, na Indústria, nas Finanças e no Comércio — respeitando um princípio anterior, que é o da Liberdade: deixai os homens decidir livremente se desejam viver num kibbutz, ou trabalhar cada um seu pedaço de terra, que eles escolherão a forma que melhor se adequar à sua natureza. Que é múltipla e não una.

 

2. — A REGRA DE OURO — Os principais problemas brasileiros devem ser considerados como um todo, o que implica necessariamente em dizer que sua solução deve ser una. Não há uma crise financeira, uma crise econômica, uma crise educacional, uma crise militar (no sentido do não adequamento das atuais funções das Forças Armadas à realidade), não há uma crise nas nossas relações com os paises da América e da Europa. Há a crise do “sistema”, e é ela que deve ser resolvida unitariamente, globalmente. E pode ser, pois as causas sendo as mesmas, as medidas a adotar formam um todo indivisível.

Pièrre Mendès-France afirmava, traçando para a Assembléia Nacional o quadro da França em 1954, antes do fim da guerra da Indochina: “Já disse que a causa fundamental dos males que assoberbam o país é a multiplicidade e o peso das tarefas que pretende executar de uma só vez: reconstrução, modernização e equipamento, desenvolvimento dos países de além-mar, melhoria do nível de vida e reforma sociais, exportações, um exército grande e possante na Europa, etc.... Ora, os acontecimentos confirmaram aquilo que a reflexão permitia prever: não se pode fazer tudo de uma só vez. Governar é escolher, por difíceis que sejam as escolhas”.

“Escolher não quer dizer forçosamente eliminar isto ou aquilo, mas reduzir aqui e às vezes aumentar lá; em outros termos, fixar escalas de prioridade” (grifos nossos).

A análise dir-se-ia traduzir a realidade brasileira (embora haja os que se levantem irados para acusar-me de colonialismo intelectual. Que o seja...). E na lucidez dela, no esforço de impedir o 13 de maio de 1958, que se poderia teoricamente antever já em 1954, Mendès-France toca o nervo da crise — que não é só francesa — dos paises que desejam fazer tudo a um tempo, esquecendo-se dos princípios gerais que devem reger qualquer economia, socialista, capitalista, ou “instrumental”: “...não dispondo senão de meios limitados, devemos zelar para aplicá-los nos objetivos essenciais, para eliminar o que é menos importante em proveito do que é mais importante. Em todos os domínios, deveremos transferir os esforços do improdutivo para o produtivo, do menos útil para o mais útil. Esta será a regra de ouro de nosso reerguimento, regra universal válida para as atividades privadas e para o setor público. O Estado deve dar o exemplo... As verdadeiras economias são produtivas. Obrigam a uma modernização e a uma racionalização que deverão ser perseguidas energicamente... As empresas publicas devem ser julgadas por seu rendimento...” (grifos nossos).

Mas não apenas as empresas públicas; também as privadas. Examinem-se os dados sobre a produtividade média de amplos setores da indústria brasileira e ver-se-á que estão muito abaixo dos índices da produtividade média da América Latina, para não falar da produtividade média mundial. Não há grande nação, não há grandes exércitos sem grande indústria. E não há indústria digna desse nome se ela não persegue, respeitando os princípios da economia de mercado, objetivos de racionalização e de modernização capazes de colocar o país na vanguarda mundial. Dir-se-á que a tanto não podemos aspirar, pois as relações de poder mundial impedem nosso desenvolvimento. Se até hoje o jogo das forças econômicas internacionais impediu o livre desenvolvimento de nossa economia — e a afirmação parece-me apenas meio-verdadeira — é porque ninguém propôs ao Povo e às Forças Armadas os objetivos de governo, as opções fundamentais. Até agora, nossas classes dirigentes, intimamente ligadas ao “sistema”, recusaram-se a propor ao Brasil a missão histórica condizente com sua extensão territorial e sua vocação continental; até agora, limitaram-se a aceitar, para o Brasil, o papel de potência de terceira classe, pois é dessa condição, incutida diariamente na mente dos jovens, que podem justificar a baixa produtividade, a exploração do trabalho e a não modernização de nosso parque industrial; que podem eternizar a hegemonia do Estado no processo brasileiro, dele se servindo para a satisfação de seus interesses de grupo. Não se deu nunca à Nação o objetivo de alcançar rapidamente as outras; parte-se da inutilidade desse esforço, quando não de sua inviabilidade. Daí permitir-se que investimentos estrangeiros se façam com maquinaria obsoleta — e daí industriais brasileiros seguirem o mesmo caminho, em uma traição técnica, quando não política, ao país. Por isso não temos uma indústria capaz de servir, nos termos técnicos da segunda metade do século XX, às Forças Armadas, e daí proteger-se sempre a improdutividade, ou a menor produtividade, institucionalizando-se a rotina, impedindo-se a formação de uma classe operária altamente especializada e não se resolvendo o problema do pleno emprego.

É preciso dar-se a hegemonia do processo à Indústria — mas a uma indústria que seja capaz de transformar a fisionomia social e econômica do país, não se limitando a manter a rotina de processos já ultrapassados de produção. Se as considerações privativistas que caracterizam o “sistema” forem substituidas pelas do interesse da segurança nacional em sua acepção mais ampla: se a produtividade da indústria reclamar uma maior, produtividade da terra — o problema agrário terá sua normal solução econômica, até hoje não encontrada porque a baixa produtividade da agricultura corresponde a uma baixa produtividade da indústria privada e do setor público da economia. Não há um setor que impulsione os demais — e tudo se resolve na proteção alfandegária sem sentido econômico real, ou com sentido simplesmente político-burocrático.

Mas a hegemonia da Indústria não se estabelecerá sem a ação decisiva do Estado — e esta é a contradição maior da crise brasileira: exercendo a hegemonia do processo, o Estado deve consentir em perdê-la para entregá-la à Indústria. O que só será possível quando o “sistema” for deitado abaixo e instalar-se no país a Nova República. Porque só uma reforma fiscal associada a uma política planificada de crédito — depois de removidas as causas da inflação — fornecerá os meios de uma ação visando ao duplo objetivo da Justiça e da Produtividade. Uma política fiscal moderna — já dizia Mendès-France — deve “repartir equitativamente as cargas e combater eficazmente a fraude; deve sanear e orientar, encorajar e apoiar a produção, dirigindo os recursos à economia e orientando sua melhor utilização. Ela pode, enfim, e deve estimular os investimentos privados quando conformes ao interesse geral, reservando-lhes vantagens apropriadas”.

Mas isso não se fará — insisto — enquanto a “classe política” persistir em manter o “sistema”; enquanto pretender conciliar no plano do Estado os interesses do latifúndio improdutivo, da indústria de baixa produtividade, das Finanças não-racionalizadas e do sindicalismo do Imposto Sindical, mantendo, por motivos políticos, um setor público a todos os títulos condenado perante a História e a Economia.

Deixemos de lado as ideologias esclerosadas e façamos como os grandes revolucionários tiveram coragem de fazer: o essencial é dar trabalho, educação, pão, terra, justiça e liberdade ao povo. A forma de fazê-lo será determinada pelas condições gerais da economia do país e da política mundial, e não por considerações teóricas próprias a satisfazer nosso narcisismo intelectual.


 

 

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