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CRÔNICAS DA GUERRA FRIA

Janer Cristaldo

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Crônicas da Guerra Fria (1889-1991)
Janer Cristaldo (1947—    )

Edição
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©2000-2006 Janer Cristaldo
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CRÔNICAS
DA
GUERRA FRIA

 

Janer Cristaldo

 

Tudo que é sólido se desmancha no ar.
Karl Marx

 

A luta pela memória é a eterna luta do homem contra o poder.
Milan Kundera


Índice

Sobre o autor
Gades, el atarantado
Mãe é uma só
Santiago segundo Littín
Favor não brandir Martí
Aos novos inquisidores
Cumbre en Cubanacan
Primeira Epístola ao aiatolá de Forquilhinha
Idade Média, volver!
Pornô para o povo, por favor!
Carta aberta aos hematófagos
Tovaritch Gorbachov nas Índias Ocidentais
Lá!
Na corda bamba
Gin disse assim? Amém!
De como passei fome na Argentina
Gorbachov mas não molha
Fé é poda
Carta aos cornúpetos
Ode ao Ocidente
Sobre senhores e servos
De onde nascem as flores
Ceaucescu tem medo
No ovo, a serpente
Beijinho beijinho tchau tchau
O drama das viúvas
A longa linhagem
Sob as saias do Vaticano
Vivam nós!
Paunescu e os nossos
Sartre e os pica-paus de Berlim
A paranóia cede
Bronzear-se em Berlim
O fim da guerra
Um escritor sem medo
O muro sexual
Baitas machos
Aos amigos de Cuba
Sobre virgens e ixiptlas
Prestes pode
Minha fúria demente
In memoriam Deutschmarx
A indústria textil
Eu, sem terra
Justiça aos brancos
A Desunião Soviética
Ao Nove de Novembro
Por um fio
O pálido aspargo de Pablo
Culo clavado
O estranho amor das vivandeiras
Sobre cães e comunistas
Filhos ingratos
Remember Nurenberg
Percebes en los pendejos
Questões teolóxicas
Carta aberta à velhinha de Taubaté
A dura vida de campus
Chez les belingues
Os cravos murchos do 25 de abril


 

SOBRE O AUTOR

 

Janer Cristaldo nasceu em 1947, em Santana do Livramento, RS. Cursou o secundário em Dom Pedrito e Santa Maria, onde formou-se em Direito. Em Porto Alegre, em Filosofia. Iniciou-se em jornalismo no extinto Diário de Notícias, Porto Alegre. Escreveu no Correio do Povo e Folha da Manhã. Nos anos 71 e 72, exilou-se voluntariamente em Estocolmo, onde estudou cinema e língua e literatura suecas.

De volta ao Brasil, publicou suas primeiras traduções: Kalocaína, de Karin Boye (do sueco), e Crônicas de Bustos Domecq, de Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares (do espanhol). Em 1973, publicou O Paraíso Sexual Democrata, que teve quatro edições no Brasil e uma em espanhol, em Buenos Aires, proibida na Argentina. Em 1975, passa a assinar coluna diária para a Folha da Manhã, Porto Alegre. Em 77, recebe bolsa do governo francês para um doutorado em Letras Francesas e Comparadas. De Paris, mantém correspondência diária para a Folha da Manhã. Em 1981, doutorou-se pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), com a tese La Révolte chez Ernesto Sábato et Albert Camus, traduzida ao brasileiro sob o título de Mensageiros das Fúrias. Participou de diversos colóquios na França e Alemanha, como também de festivais cinematográficos em Berlim, Cannes e Cartago, na condição de jornalista. Ainda em Paris, iniciou a tradução da obra ficcional e ensaística de Ernesto Sábato, a pedido do próprio autor.

No Brasil, foi professor visitante de Literatura Brasileira e Comparada, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, de 1982 a 1986. Neste período, traduziu vários outros romances, introduzindo no universo literário brasileiro autores como Roberto Arlt, Camilo José Cela, José Donoso, Michel Déon e Michel Tournier. Em 86, publica seu primeiro romance, Ponche Verde, que tem como fulcro a peregrinação dos exilados brasileiros por Estocolmo, Berlim, Paris e Lisboa.

Em 87, recebe bolsa do governo espanhol para um curso de Língua e Literatura Espanholas. Residiu seis meses em Madri. De 91 a 93, foi redator de Política Internacional da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo.

Crônicas da Guerra Fria é uma compilação de artigos publicados em sua maior parte entre 1989, ano da queda do Muro de Berlim, e 1991, ano da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.


 

GADES, EL ATARANTADO

 

FlorianópolisCarmen me libera, dizia Nietzsche. Bizet, infelizmente, não teve ocasião de ouvir esta confissão proferida pelo espírito mais refinado de seu século: amargurado pelas violentas e injustas críticas feitas à ópera, morreu na noite de sua 33ª apresentação. Antonio Gades, bailaor alicantino e emérito pizzaiolo, traz ao Brasil sua versão de Carmen e pode estar seguro de que não sofrerá o que sofreu Bizet. Desde que dance e se mantenha silente.

Não sei se Gades sabe, mas em meu último ano sabático em Madri, freqüentei sua casa quase todas as semanas. Falo da Casa de Gades, pizzaria que fica próxima à Biblioteca Nacional e ao Museu do Prado, o que tem suas vantagens e desvantagens. Vantagens, porque após uma aula sobre Velázquez ou Goya, era sagrado um osso bucco chez Gades. Desvantagens, porque após umas que outras de Valpolicella, embalados pela ambiência afável do restaurante, atravessar o Paseo de Recoletos para chegar até a biblioteca é esforço que exige fibra sobre-humana. Sem falar que entre a Casa de Gades e a Biblioteca Nacional se situam, solertes, El Gijón e Los Espejos, à espreita do pesquisador incauto. Assim que, se jamais consegui atravessar o Paseo de Recoletos, a culpa é um pouco do atarantado alicantino que ora nos visita.

Digo atarantado por alusão a Nietzsche, este alemão enamorado de Carmen, que dizia não poder acreditar em um deus que não soubesse dançar. Assim falava Zaratustra: “Olha, esta é a toca da tarântula! Queres vê-la, a ela mesma? Está aqui a sua teia: toca-lhe para a veres tremer!”

Tarântula é uma aranha grande que vive entre as pedras e buracos profundos e abunda na cidade de Taranto, Itália. Sua picada é extremamente venenosa e de seu nome vem a tarantela, dança napolitana de movimentos muito vivos. Daí vem “Los Tarantos”, grupo de dança espanhol. Como também atarantado, isto é, Gades falando em vez de sapatear.

Falando em sapatear, meus interlocutores de esquerda dão pulinhos de ódio quando sugiro que rezem ao bom Deus para que conceda longos anos de vida e governo a Alfredo Stroessner. Não que eu nutra simpatias pelo homem. Acontece que quando Stroessner morrer, a desconfortável comenda de decano dos ditadores latino-americanos será carregada por Castro, guru de Gades.

Pois o bailaor, em suas declarações à imprensa, sempre vai além de suas pizzas. Diz que Carmen representa o ideal da própria Espanha, que renasceu das cinzas após uma ditadura brutal de quarenta anos. Castro sapateia em cima dos direitos mínimos dos cubanos — para começar a liberdade de ir e vir — já faz quase trinta anos e, para Gades, esta ditadura é boa, pois é de esquerda. Seus contínuos salamaleques ao gulag tropical gerido por Moscou já quase me fizeram renunciar a seus dotes de pizzaiolo. Meus colegas, mais realistas, acabavam arrastando-me à Casa de Gades: “Calma, Cristaldo. Estamos com fome e o resto é veleidade ideológica”.

Siete son las fases de la castaña — dizem os espanhóis — e por castaña, no caso, leia-se porre. A saber:

— copeo

— rudo copeo

— cantos marítimos y regionales

— franca amistad

— insultos al clero y autoridades constituídas

— negación de la evidencia

— y devolución del ingerido.

Devo ter chegado, nas tardes que passei chez Gades, certamente até à quinta fase, lembro ter erguido brindes como “¡Muerte a los maridos!” e “¡Las putas al poder, que sus hijos allá ya están!” Mas Gades, mesmo sóbrio, parece chegar à sexta fase, sem passar pelas precedentes. O que é deplorável em seu caso, de homem que se pretende cosmopolita e bem-informado.

Dizer que Carmen é um ideal libertário renascido das cinzas do franquismo é afirmação de um homem que fez toda sua carreira sob o regime de Franco. A Espanha é hoje país livre, com eleições livres e se dá até mesmo ao luxo de ter rei e família real. Constituí atualmente uma das mais dinâmicas economias do continente europeu e um dos mais belos países para se descobrir e viver. Não fosse Franco, os espanhóis viveriam hoje certamente sob ditaduras de economia ao estilo do Leste europeu, onde até para se comprar uma máquina de escrever é necessário registrá-la na polícia. Escritores como Ramón Sender e Jorge Semprún, que lutaram décadas contra Franco, viveram a clandestinidade e sofreram prisão e exílio, ao conhecer a realidade dos países socialistas, concluíram amargamente ter combatido o mau combate. Gades, que não combateu nem foi forçado a exilar-se, vira o cocho condenando o regime onde viveu e cresceu como artista.

Em algo, no entanto, o bailaor é coerente: comunista exemplar, como seu guru Castro, adora dólares. Ou capitalistas marcos ocidentais, que marcos do outro lado do Muro pouco lhe interessam. E seu espetáculo no Brasil não se dirige ao proletariado, mas a um público burguês capaz de despender quase um salário mínimo em uma noite. Gades justifica que numa sociedade justa, em um Estado socialista, os espetáculos seriam de graça. Pela experiência que tenho de tais “sociedades justas”, nelas os espetáculos nunca são de graça e mais: o turista é sistematicamente despojado de seus dólares.

Se o leitor viajar um dia a qualquer país europeu e não souber orientar-se em sua geografia gastronômica, sugiro procure alguma célula ou sede do partido Comunista. Todo militante, à força de lutar contra a fome no mundo, sabe onde melhor matá-la. Não é por acaso que um dos mais orgíacos festivais de bem comer na Europa é a Fête de l’Humanité, a festa do PC francês, que se realiza a cada segundo fim-de-semana de setembro no parque La Courneuve, ao norte de Paris. Afinal, como dizia aquele outro emérito gourmet, Bertold Brecht, não pode ser revolucionário quem não sabe comer bem, beber bem e bem tratar uma mulher na cama.

Mulheres à parte, a Casa de Gades em Madri é uma verdadeira escola revolucionária. De excelente cozinha, vinhos de boa cepa, nela o militante se prepara para o agir revolucionário bem melhor que nos canaviais de Cuba ou nos cafezais da Nicarágua. Neste sentido, Gades se revela autêntico revolucionário, e de revolução muito aprendi em sua escola. Freqüentada por intelectuais, escritores, jornalistas, artistas de teatro e cinema, toreros, verdade que nela jamais vi aqueles operários de macacão azul que abundam nos demais cafés e restaurantes de Madri. Mas, enfim, a revolução é assunto por demais importante para ser entregue às mãos de operários.

Assim que, parece-me absolutamente improcedente a queixa de um estudante pobre no Rio, que perguntava ao bailaor porque não fazer um espetáculo acessível a quem tem pouco dinheiro. Revolução é affaire para elites, ora bolas! “Compañero — respondeu Gades — guarde uma pergunta dessas para quando falar com um inimigo de classe”. Pois eu sou amigo de classe de Gades e confesso que já morro de saudades das etílicas tardes que passei em sua Casa.

Carmen é como Che Guevara, declarou Gades em São Paulo, e os ossos do argentino nesta altura já devem estar se contorcendo em sua tumba desconhecida. Pois, se bem me lembro, Che empunhava um fuzil. Quanto a Carmen, com todo meu respeito pela obra de Merimée, do que ela empunhava já nem falo.

O sr. Antonio Gades está subestimando o nível de informação no país que ora o recebe. Para promover seu espetáculo não precisa usar recursos assim demagógicos. A mítica Cuba revolucionária hoje não passa de uma Disneylândia das esquerdas, para onde partem em românticas revoadas aburguesados senhores em busca dos sonhos de adolescência, pois sentir-se-iam ligeiramente ruborizados se fossem visitar a Disneylândia gringa.

Dito isto, vou assistir Gades. Que dance. ¡Y, por favor, hombre: cállese!

Blumenau, Jornal de Santa Catarina, 07.05.88


 

MÃE É UMA SÓ

 

Florianópolis — Com A Última Tentação de Cristo, de Martín Scorcese, parece que vai repetir-se no Brasil o mesmo fiasco gerado pelo anódino Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. Em países catolicíssimos como França, Espanha e Portugal, o filme de Godard passou completamente despercebido e em poucas semanas saiu de cartaz. No Brasil, graças à publicidade gratuita decorrente de sua proibição, foi visto por jovens que jamais haviam ouvido falar de Godard e que, se tivessem visto seus filmes anteriores, provavelmente não repetiriam a façanha. Ao que tudo indica, apesar de sua experiência milenar, a Igreja romana ainda não aprendeu que todo index prohibitorum é contraproducente: só serve para vender o que pretende proibir.

Curiosamente, um filme como A Vida de Brian, dos Monty Python, este sim blasfemo e deletério, passou e repassou em todas as telas do país, sem que censor algum, laico ou religioso, desse um pio. Neste filme, de refinado humor, Maria é apresentada como prostituta e representada por um ator do grupo, travestido. Quando chegam os três reis para ver o Menino, Maria os recebe de péssimo humor, afinal já era tarde da noite. Quando sabem que trazem ouro, incenso e mirra, sorri pragmaticamente: bom, o ouro vocês deixam aqui e o incenso e a mirra podem levar de volta”.

Verdade que no filme dos Monty Python o personagem é Brian, uma espécie de profeta que só dá certo por acaso e que, inclusive, assiste ao Sermão da Montanha, pregado pelo próprio Cristo. Mas para quem conhece os Evangelhos, os ingleses não enganam: é o próprio Cristo que é submetido ao ridículo e disto só parecem ter-se dado conta os censores da Noruega, único país, segundo me consta, a proibir o filme. No Brasil, a Igreja dormiu de touca. Ou então Godard passou alguma grana ao papa para que promovesse seu abacaxi em geografia tupiniquim.

Em A Vida de Brian, Cristo inclusive se mostra como foi crucificado. Ou seja, nu. Só que não está na cruz, e sim com uma discípula revolucionária e é flagrado na cama, tanto por seus seguidores como por sua mãe. No filme todo, perpassa a imagem de uma espécie de bobo alegre envolvido pelas circunstâncias e que em momento algum sabe o que está acontecendo, o que aliás não difere muito da circunstância do Cristo histórico. Ao ser crucificado, acaba cantando e acompanhando com o pé batendo no madeiro, em coro com seus colegas de cruz, uma espécie de samba britânico e fatalista no melhor estilo de M. Pangloss. Confesso jamais ter visto — e já vi seis vezes — filme mais hilariante e corrosivo do que este. Em matéria de hilaridade, só é comparável a Mash e ao Incrível Exército Brancaleone. Em matéria de derrisão, às vezes me pergunto se Swift terá conseguido ir mais longe.

Pois bem: este filme desopilou o fígado de platéias do mundo inteiro e só os luteranos noruegueses, que pouco ou nada têm a ver com o profeta fracassado e maquiado pela Igreja romana, perceberam seu caráter herético.

Neste Brasil 88, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) parece estar pretendendo, com sua censura prévia e desaforada — pois o foro censório em um Estado laico não é o eclesiástico, sem falar que a nova Constituição abole a censura tornando-a apenas classificatória — render mais royalties a Mr. Scorcese. O fulcro da condenação está nos delírios sexuais de Jesus. Mesmo partindo do pressuposto de que fosse Deus, tais fantasias seriam perfeitamente inteligíveis, já que se fez homem e humano é o desejo. O filme é baseado em um romance de Kazantzakis, místico cretense que cometeu maiores despautérios ao nivelar Cristo a Lênin e nem por isso foi apedrejado. O que só nos ensina que os ianques têm mais senso de merchandising que os helenos.

A realidade histórica, no entanto, está mais para os Monty Python que para Scorcese. Que Cristo tenha tido seus desejos, mais do que natural é absolutamente lógico, ou então humano não era nem em homem havia-se encarnado. Se isto não consta no relato de seus biógrafos tidos como oficiais, será talvez porque os evangelistas não dominavam as modernas técnicas narrativas do diálogo interior, desenvolvidas a partir de Bergson, Proust e Joyce. Sem falar que os quatro evangelhos aceitos pela Igreja romana constituem, para o leitor mais atento, uma antologia incoerente e mal-costurada. Mas o problema não é esse. Ao que tudo indica, a partir de depoimentos históricos e inclusive bíblicos, Maria era efetivamente prostituta, e isto não é descoberta dos Monty Python.

Para começar, deve-se eliminar de toda e qualquer discussão essa versão puritana de que Jesus era o único filhos de Maria. Jesus tinha cinco irmãos e se, parir uma só vez e permanecer virgem já é em si paradoxal, mais misterioso se torna ainda parir seis filhos e preservar a “graça original”. A nenhum pesquisador honesto é permissível a aceitação desta tradução desonesta chamada Vulgata.

Assim sendo, a realidade histórica parece ser bem mais contundente que os inocentes delírios eróticos de um Cristo perdido em meio ao caldeirão de uma situação pré-revolucionária. Que não é filho de José, isto a própria Bíblia nos diz. Para o crente que leva ao pé da letra o texto bíblico, só resta outra alternativa: é filho de Maria com uma pombinha. Para o cético que aceitaria prazerosamente tal circunstância apenas se inserida na mitologia grega, restaria uma última opção, a partenogênese, fenômeno já observado em certos pulgões da lavoura, mas jamais em ser humano.

Jesus é então filho de quem? Segundo Celso, filósofo pagão, que viveu na segunda metade do século II, Cristo seria filho de um soldado romano chamado Pantera. Tal afirmação está no livro intitulado Discurso Verdadeiro, onde o pensador romano, perplexo, faz uma análise da religião então emergente. Sua hipótese não pode ser ignorada pelos historiadores por várias razões.

Uma delas é que a Igreja queimou os oito tomos de seu livro onde os encontrou. Do Discurso só nos restam os fragmentos reunidos por Orígenes no seu Contracelso, onde, no afã de contestar o nobre romano, acabou transmitindo à posteridade a voz do homem que queria calar. Uma outra razão está na tradição talmúdica, que fala de Jesus Ben Panthera, ou seja, Jesus filho de Pantera. O que é bem mais verossímil, pois filho de algum pai teria de ser, e de José não era.

Analisemos o texto de Celso, transcrito e contestado por Orígenes, graças ao qual, ironicamente, chegaram até nós alguns fragmentos do pensador pagão:

“Voltemos às palavras atribuídas ao Judeu (personagem criado por Celso, parêntese meu), onde ele escreve que a mãe de Jesus foi repelida pelo carpinteiro que a havia pedido em casamento, por ter sido convencido de adultério e ter sido engravidada por obra de um soldado romano chamado Pantera”.

Mais adiante:

“Admitamos que haja verdade na doutrina dos fisiognomistas Zopyros, Loxos, Polémon, e de todos aqueles que escreveram sobre o tema, gabando-se de um saber espantoso sobre o parentesco de cada corpo com o caráter de sua alma: a esta alma, destinada a viver miraculosamente e cumprir grandes feitos, seria necessário um corpo, não como crê Celso, nascido de um adultério entre Pantera e a Virgem, pois de uma união assim impura teria antes nascido um louco nocivo aos homens, mestre da intemperança, da injustiça e de outros vícios, e não do domínio de si, da justiça e de outras virtudes”.

Apoiar-se nos tratados de Zopyros, Loxos e Polémon, dos quais hoje pouco ou nada sabemos, podia ser de grande valia a Orígenes, mal tal argumentação hoje nada nos diz. Por outro lado, boatos havia em torno de Maria e, dada a fúria censória da Igreja em relação ao livro de Celso, é bastante provável que nele exista mais verdade que no absurdo e incongruências dos Evangelhos. Celso — pelo menos no que dele resta — não nos fala de prostituição. Mas onde iríamos situar, em uma cultura judaica e patriarcal, uma mulher com seis filhos de pai desconhecido, sendo um deles oriundo de um soldado do exército invasor? A resposta a esta pergunta talvez explique o respeito de Cristo, sempre manifesto nos Evangelhos mais divulgados, às adúlteras e prostitutas.

A santa ira que se ergue nas comunidades católicas do Ocidente é, no fundo, cortina de fumaça erguida por clérigos que desconhecem a Bíblia — como também por outros que a conhecem muito bem — para eludir o drama vivido por Jesus e Judas em sua luta contra o império romano. Afinal, mãe só se tem uma, e Paulo de Tarso quis dividi-la em duas. E o resto é publicidade gratuita a um filme ianque.

Joinville, A Notícia, 11.09.88


 

SANTIAGO SEGUNDO LITTIN

 

Santiago do Chile — A cidade é feia, pobre e suja. Pelos buracos e lixo acumulado nas amplas avenidas, adivinha-se uma capital que um dia foi próspera e cujos habitantes desfrutaram, em passado pouco distante, um alto nível de vida. Cidadãos pobremente vestidos, em seus ternos ainda restam farrapos de dignidade — e nada mais triste do que ver um homem cheio de remendos, mas elegantemente vestido, estendendo a mão súplice para pedir alguns centavos. Lojas vazias, de vazias e tristes vitrines, restaurantes entregues às moscas, garçons olhando para nada. Mal o sol se põe sobre o Pacífico, a capital escurece e os raros privilegiados da tirania se escondem em suas tocas, temerosos da fome e da justa violência dos deserdados. Mesmo durante o dia, nota-se tensão e medo nos rostos e gestos, como se alguém que agora circula livremente pelas ruas, no momento seguinte, sabe Deus lá por que razões, pudesse estar algemado nos porões da ditadura. Um exército parece ter postos suas patas sobre a cidade. Estou em Santiago do Chile. Do Chile de Pinochet.

O poder do tirano é onipresente. Em um país privilegiado pelos deuses, que por sua geografia se permite quatro estações simultâneas, mar e montanha, deserto e neve, os tentáculos da ditadura envolvem o território todo, manifestando-se principalmente na capital. Raríssimas bancas de jornais exibem apenas a imprensa laudatória ao regime. Jornais de oposição, nem em sonhos. A imprensa internacional está banida do país e só pode ser adquirida em hotéis de luxo, onde o cidadão comum só pode entrar se estiver disposto a sérios interrogatórios pela polícia do regime ao sair, mesmo que saia sem jornal algum. As raríssimas livrarias, de paupérrimas estantes, exibem não mais que literatura técnica e alguma ficção de escritores coniventes com a ditadura.

Miséria, lixo, decadência, medo, opressão, silêncio, desconfiança: estes são os odores que todo visitante, isento de quaisquer preconceitos ideológicos, respira em um rápido giro por Santiago. Mas as cidades são como árvores, quem quiser destruí-las terá de cortar-lhes as raízes. Estão vivas as raízes de Santiago. Que um dia será Salvador. Salvador Allende.

Terminasse eu aqui esta crônica, sem ajuntar sequer uma linha a mais, conquistaria platéias e simpatias, sem falar em tribunas, lugar ao sol e quem sabe até mesmo uma sinecura num órgão público qualquer. Acontece que estaria mentindo, transmitindo, é verdade, uma mentira que todos gostam de ouvir. Como não gosto de mentir, renuncio a eventuais simpatias e passo a contar o que vi.

Para quem está acostumado a bater pernas pelas ruas de cidades como Porto Alegre ou São Paulo, Santiago exerce um poderoso impacto pela conservação e limpeza de suas ruas e passeios. Nas capitais brasileiras, há muito resignei-me a enfrentar ruas sujas e esburacadas, sem falar no lixo cotidiano nelas jogado por transeuntes sem noção alguma de cidadania, meros habitantes, nefastos usuários da cidade. Passear pelas margens do Mapocho — rio que atravessa um aglomerado de cinco milhões de almas — respirar milagre, suas águas preservam a limpidez com que descem da Cordilheira. Para quem sofre a Beira-Mar Norte de Florianópolis — já nem falo do riacho Ipiranga ou Tietê — o Mapocho mais parece miragem de viajante perturbado pela travessia dos Andes.

Pelo Paseo de la Ahumada, rua Estado, Huérfanos, uma fauna humana e bem vestida (insisto em dizê-la humana, pois os transeuntes das ruas centrais do Rio ou São Paulo, sem ir mais longe, mais parecem animais machucados na luta pela vida) que há muito não se vê nas metrópoles da América Latina. Antes de Santiago, estive em Buenos Aires e a outrora elegante Florida, hoje, proporções à parte, mais parece rua Direita ou Nossa Senhora de Copacabana. Deixada de lado a agressão idiota — mas não perigosa — de cambistas à cata de divisas fortes, senti no centro de Santiago sensação que brasileiro algum pode hoje sentir em nossas capitais: a sensação de segurança. As ruas da capital chilena têm um ar de praça; nela vi velhos, jovens e crianças sentados, degustando sorvetes e o espetáculo da rua em si, tanto à tarde como à noite, sem preocupação alguma com assaltos ou violência gratuita. Para mim, que já penso duas vezes quando em Porto Alegre ao atravessar a Borges e a Praça XV para freqüentar o Chalé à noite, Santiago me fez evocar a Praça da Alfândega dos anos 60, quando filosofávamos madrugada adentro preocupados com a enteléquia aristotélica ou o ser em Sartre, jamais com punhais ou revólveres.

Outra surpresa, e das melhores, os quiosques de jornais e revistas. Penso que tais quiosques são uma excelente amostragem da cultura e liberdade de expressão de um país, neles podemos auscultar que tipo de informação consomem os cidadãos e, ao mesmo tempo, que qualidade ou quantidade de informação não proíbe o Estado de ser consumida. Pois bem: nesta Santiago que imaginava cidade sitiada e sob censura, vi nas bancas uma profusão e diversidade de jornais que sequer encontrei em Paris ou Madri. Jornais em cirílico do Leste europeu, imprensa de toda Europa, Escandinávia, Alemanha, França, Itália, Espanha, Estados Unidos, América Latina, Brasil. Sabendo como esta imprensa toda é gentil a Pinochet, o espanto do turista vira perplexidade. E mais: jornais chilenos malhando, em primeira página, a ditadura. Ocorre-me evocar os quiosques tristes e monocórdios que vi em cidades do Leste europeu, mas nem preciso ir tão longe. nenhuma banca do Rio ou São Paulo, neste Brasil 88, me oferece tal quantidade e diversidade de informação.

Livrarias imensas, bem sortidas, onde não faltam livros de Fidel Castro ou Garcia Márquez, o mais ferrenho adversário de Pinochet e, curiosamente, defensor incondicional do ditador cubano. Tampouco faltam nas prateleiras obras de José Donoso ou Isabel Allende, isso para citar apenas dois opositores do regime chileno já conhecidos do leitor brasileiro. O que é no mínimo insólito em uma ditadura.

Nas vitrines e gôndolas das mercearias, víveres e bebidas do mundo todo, desde arenques do Báltico a foie gras trufado, dos mais diversos uísques da Escócia a vinhos alemães, franceses, italianos, espanhóis. E chilenos, naturalmente. Preços? Abordáveis. Para se ter uma idéia, pode-se comprar um scotch — com a certeza de que não são da reserva Stroessner — a partir de dez dólares, ou seja, o preço de um Natu Nobilis hoje. Que mais não seja, qual intelectual de esquerda não gostaria de viver em uma sociedade onde uma dose de um bom escocês custa, em bares, um dólar? Conheço não poucos exilados traumatizados com a democrática França de Mitterrand, onde um gole de uísque só é viável a partir dos cinco dólares. Piadas à parte, a farta oferta de tais produtos evidencia uma sociedade habituada a comer bem e com requinte, afinal comerciante algum seria insano a ponto de importar iguarias para turista ver.

Contava eu estas e outra coisas a uma moça ilhoa e bem-nascida, cidadã da Santa e Bela Catarina, dessas que julgam ser todo empresário um canalha, mas que jamais recusam uma cobertura facilitada por um pai empresário, dessas que jamais subiram o morro do Mocotó mas estão preocupadas com a colheita do café na Nicarágua, em suma, falava eu com um espécime típico da raça que chamo de os Novos Cafeicultores, e a objeção — a primeira objeção — caiu como um raio:

— E a miséria? Aposto que não foste visitar os bairros pobres, a periferia de Santiago.

Tinha razão em parte a jovem cafeicultora. Não visitei os bairros pobres de Santiago, afinal se troco as margens do Atlântico pelas do Pacífico, não será para ver miséria que conto meus parcos dólares. Não tenho a psicologia do francês médio, por exemplo, que mal chega ao Brasil, quer visitar favelas. Este comportamento, a meu ver doentio, parece-me ser vício de europeu inculto e de consciência pesada, que insiste em ver a miséria do Terceiro Mundo que explora, para depois contribuir com avos de seu bem-estar para guerrilhas suicidas. Se junto meus trocados para visitar um país, quero receber o que de melhor esse país tem a me oferecer. Nos anos que vivi em Paris, descia certa vez de Montmartre e enveredei pelas ruelas da Goutte d'Or, encrave árabe e paupérrimo que se alastra na cidade como mancha de óleo. Senti-me, de repente, em um território miserável para o qual jamais teria pensado em viajar, que mais não seja não será minha indignação ou revolta que resolverá o problema árabe na França. Dei meia volta, enfurnei-me na primeira boca de metrô e só voltei à superfície na Rive Gauche, a margem que mais me fascina do Sena. Não, não vi a miséria de Santiago. Mas consolei a cafeicultora: podes estar certa de que miséria existe, pois miséria está presente em qualquer metrópole do mundo.

Ela sorriu por dentro, parecia dizer: que bom que existe miséria em Santiago. O que me deixou um tanto perplexo, eu sorriria intimamente se soubesse que não existe miséria em lugar algum do mundo, independentemente de regimes políticos ou ideológicos. Ela, por sua vez, admitia a veracidade de meu relato. Ajuntei que a inflação era de seis por cento. Quando digo isto a um brasileiro, a reação normal é: "seis por cento ao mês?" Acontece que é seis por cento ao ano. Isto é sonho que, brasileiros, já nem ousamos sonhar. Se eu passar a alguém os preços de um restaurante que visitei em Santiago no mês passado, e se este alguém visitar o Chile no ano que vem, é provável que os preços continuem os mesmos ou, no máximo, tenham variado em torno de uns dez por cento a mais. Cá entre nós, não conseguimos recomendar para amanhã um restaurante no qual comemos ontem. Caiu, então, fulminante, a segunda objeção:

— Sim. Mas que preço pagaram os chilenos por este bem-estar?

Houve, no Chile, um assalto marxista e armado ao Estado e negá-lo é paranóia. Deste confronto resultaram, segundo alguns, dez mil mortes. Segundo outros, quarenta mil. De qualquer forma, um preço infinitamente inferior ao preço pago pelos russos a Josiph Vissarionovitch Djugatchivili — que oscila entre vinte e sessenta milhões de cadáveres — para dar no que deu: uma confederação forçada de países pobres, alguns vivendo a nível de fome, como a Romênia e a Albânia. Bem mais barato que o preço pago pelos cambojanos a Pol Pot: dois milhões e meio de mortos, em um país de cinco milhões de habitantes, e disto não mais se fala. Sem falar que os que ficaram se jogam ao mar em jangadas, enfrentando tempestades, tubarões e piratas, ou já esquecemos os boatpeople? Sem falar nos que matou Castro — número que nenhum Garcia Márquez aventa — para instalar no Caribe seu gulag tropical. Em Cuba também há farta escolha de bebidas e gêneros alimentícios. Mas só o turista pode comprá-los, e com dólar. O cidadão cubano fica chupando no dedo. Nas praias, cheias de peixe, não há atividade pesqueira alguma, pois quem tem barco vai pra Miami.

— Justificas então tais mortes? — quis saber a moça — referindo-se, é claro, aos mortos do Chile, já que tornou-se tácito, para os fanáticos contemporâneos, que é lícito fazer correr sangue de certas pessoas e criminoso o de outras. Em suma, para usar dois conceitos que não me agradam, porque multívocos, é perfeitamente permissível fazer jorrar sangue da assim chamada direita e constitui sacrilégio, quase tabu, sangrar a assim chamada esquerda. Não justifico morte alguma, a humanidade tem pelo menos uns três mil anos de experiência histórica, milênios suficiente, parece-me, para concluirmos que não é matando que se chega a erigir a cidade humana.

— Cristaldices! — jogou-me na cara minha cafeicultora, digo, interlocutora. Pode ser. Chamo então um cineasta exilado que voltou clandestinamente ao Chile, em depoimento tomado por Gabriel Garcia Márquez, intitulado A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile, já traduzido ao brasileiro por Eric Nepomuceno e encontradiço em qualquer livraria. No capítulo significativamente intitulado "Primeira desilusão: o esplendor da cidade", depõe Littín:

— Eu atravessei o salão quase deserto seguindo o carregador que recebeu minha bagagem na saída, e ali sofri o primeiro impacto do regresso. Não notava em nenhuma parte a militarização que esperava, nem o menor traço de miséria. (...) Não encontrava em nenhuma parte o aparato armado que eu tinha imaginado, sobretudo naquela época, com o estado de sítio. Tudo no aeroporto era limpo e luminoso, com anúncios em cores alegres e lojas grandes e bem sortidas de artigos importados, e não havia à vista nenhum guarda para dar informação a um viajante extraviado. Os táxis que esperavam lá fora não eram os decrépitos de antes, e sim modelos japoneses recentes, todos iguais e ordenados.

Mais adiante:

— Na medida em que chegávamos perto da cidade, o júbilo com lágrimas que eu tinha previsto para o regresso ia sendo substituído por um sentimento de incerteza. Na verdade o acesso ao antigo aeroporto de Los Cerrillos era uma estrada antiga, através de cortiços operários e quarteirões pobres, que sofreram uma repressão sangrenta durante o golpe militar. O acesso ao atual aeroporto internacional, em compensação, é uma auto-estrada iluminada como nos países mais desenvolvidos do mundo, e isto era um mau princípio para alguém como eu, que não só estava convencido da maldade da ditadura, como necessitava ver seus fracassos na rua, na vida diária, nos hábitos das pessoas, para filmá-los e divulgá-los pelo mundo. Mas a cada metro que avançávamos, o desassossego original ia se transformando numa franca desilusão. Elena (militante da esquerda chilena que acompanha Littín) me confessou mais tarde que ela também, ainda que estivesse estado no Chile várias vezes em épocas recentes, tinha padecido o mesmo desconcerto.

Coragem, leitor de esquerda. Adelante! Leiamos Littín, só mais um pouquinho:

— Não era para menos. Santiago, ao contrário do que contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova York. A interminável Alameda Bernardo O'Higgins abria-se frente a nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris. Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e tristes do que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado. Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas. Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho ao fundo de um jardim francês.

Fico por aqui. Se o leitor ainda alimenta dúvidas, que visite o Chile, preferentemente após ter deambulado por Havana. O homem só conhece comparando. Para finalizar, apenas mais uma observação, não minha, mas de Littín, que talvez elucide a prosperidade atual de seu país.

— Uma das primeiras medidas que ele (Allende) tomou no governo foi a nacionalização das minas. Uma das primeiras medidas de Pinochet foi privatizá-las outra vez, como fez com todos os cemitérios, os trens, os portos e até o recolhimento do lixo.

O que esclarece, a meu ver, o fascínio das ruas de Santiago.

Joinville, A Notícia, 27.11.88. Porto Alegre, RS, 10.12.88


 

FAVOR NÃO BRANDIR MARTÍ

 

Florianópolis — Fui convidado, certa vez, a um debate em torno ao socialismo, do qual participavam vários intelectuais marxistas. Por socialismo, no caso, entenda-se socialismo soviético, é melhor deixar claro isto desde o início, particularmente nestes dias em que todo mundo fala de socialismo sem especificar a qual se refere, se ao socialismo do Leste europeu, da Iugoslávia ou da Albânia, ou das social-democracias européias, regimes estes fundamentalmente capitalistas mas de economia muito mais socializada do que a das ditas “democracias populares”, pleonasmo só concebível em intelectuais sem noções mínimas de grego. Enfim, etimologia à parte, meus colegas de mesa abriram o debate louvando a eficácia, o humanismo e o caráter revolucionário das teorias marxistas.

De Marx, pouco ou nada entendo, e vou dizer porque não entendo. No dia em que me dispus a enfrentar O Capital, percebi que necessitaria de bases anteriores de matemática, estatística, economia, história da Europa e particularmente da Inglaterra no período da Revolução Industrial. Em suma, para poder entender o economista Marx (até hoje não sei porque o consideram filósofo) eu necessitava de alguns anos de formação que não me dispunha a desperdiçar para tão-somente entender um livro. Leigo em matéria de teorias, modestamente me restringi a contar o que vi em minhas andanças por países socialistas, favor não confundir com as social-democracias.

Estive em Berlim Oriental, na Romênia e na Bulgária. Estive ainda na Iugoslávia, regime socialista peculiar, o único onde os nacionais podem sair do país sem maiores problemas e onde, em certas repúblicas, há uma economia dinâmica. Pequenos fatos do cotidiano nos oferecem robustos elementos de comparação.

Por exemplo: é meio-dia e você quer almoçar. Sem ir muito longe, até em Florianópolis o turista encontra um restaurante onde, com mais ou menos sorte, há boa oferta de pratos. Pois estive um dia em uma das capitais mais ricas do mundo socialista e localizar um restaurante foi uma epopéia que me exigiu mais de hora. Mesmo com amigas que falavam fluentemente o alemão, não foi tarefa fácil encontrar um, escondido no segundo andar de um monstruoso bloco de concreto, sem placa alguma que o anunciasse.

Enregelado, minha carcaça submetida a sei lá quantos graus abaixo de zero, esperei mais de hora em uma fila de resignados cidadãos. Tomasse o metrô e voltasse a Berlim Ocidental, quatro mil casas de restauração me atenderiam em um segundo, com carinho e calefação. Enfim, cheguei finalmente à porta, quando Sua Eminência, o Garçom, com um gesto ríspido me ordenou entrar. Penetrei em um galpão imenso, onde mesas imensas, situadas a enormes distâncias umas das outras, esperavam humildemente ser atendidas. Um cardápio me oferecia uma vintena de pratos, mas pelo menos na hora de escolher o garçom foi gentil: melhor nem tentar, só tem o prato do dia. Eu estava em um restaurante de luxo, em Berlim Oriental.

Transportei-me então — em meio ao debate — para Mangália, cidade balneária romena, às margens do Mar Negro. Era verão e a moça que me acompanhava, julgando muito caros os maiôs de Paris, decidiu deixar para comprar um honesto maiô socialista. Não sei, não — objetei — tens certeza de encontrar maiô por lá? Respondeu-me com um gesto indignado, quase ofensivo. Resumindo: após revirar Mangália inteira — cidade balneária e dirigida ao turismo europeu, insisto — em pleno verão, ela teve a ventura de encontrar dois maiôs: um era verde e outro azul. Quanto às dimensões, que se lixasse. Mas isto é o de menos.

Estávamos em um hotel de primeira classe e já na primeira noite o garçom perguntou-me que desejávamos para o almoço do dia seguinte e estendeu-nos uma tira suja de papel mimeografado onde devíamos optar entre porco ou frango. Não que fôssemos muçulmanos, mas preferimos frango. Café ou chá? Café. Dia seguinte, deu porco com chá da China. “Desculpe, mas frango e café estão em falta”. Hóspede de um hotel de primeira classe, pago em moeda forte, imaginei então o que seria a vida de um romeno, detentor de magros leu, a moeda local. Nem foi preciso imaginar: supermercados vazios, clientes disputando a tapas um pedaço de carne e isso que o pedaço era disputado por aqueles que tinham poder aquisitivo suficiente para comprá-la.

O verão fazia jus ao nome. Céu de brigadeiro, na praia os turistas eram brindados com alegres canhoneios de barcos de guerra ao largo. Minha companheira, ostentando seu magnífico maiô verde — e magnífico aqui é superlativo de grande mesmo, que outro número não tinha — desceu comigo à praia, justo no momento em que dois garçons começavam a abrir um bar. Uma hora de sol e pensamos em uma cerveja. Fui lá buscar.

Ah, cerveja não tem. Enfim, água mineral? Muito menos. Tentei outras hipóteses. Existe na Romênia uma cachaça feita á base de ameixa, o haidouc, aguardente típico do país. Também não tem.

Estávamos sob domínio soviético, pensei, quem sabe um vodca. Nem pensar. Parti então para a utopia: serve então um uísque, pode ser? Nem em sonhos. Por curiosidade, já que nem no deserto me ocorreria tal idéia, pedi uma Coca, Pepsi, ou um refrigerante qualquer. Negativo. Não há nada para beber, então? Nada. E para comer, o que é que tem? Nada.

Nada não entendia eu. Era aquilo um bar? Era, disse o garçom. Estava aberto? Claro que estava, o senhor não está vendo? Eu estava vendo. Mas não há nada para comer ou beber? Não. E por que não há? Porque o distribuidor não trouxe, ora bolas!

Contava eu estas histórias — e contei muitas outras, por exemplo, a dos turistas internos tirando fotos junto a maquetes de veleiros, porque veleiro, que é bom, nem pra remédio, pois bom velejador em dois dias chega às costas da Turquia, sem falar nos vigias de praia, assessorados por cães e metralhadoras de baioneta calada, assestadas contra o primeiro nacional que ousasse abordar um turista em busca de dólares, sem falar na moça da portaria com cara de sargento, que quando reclamei da falta de papel higiênico me perguntou: “quantos dias o senhor vai ficar aqui?”. Neste hotel, dois dias. Olhou-me então de alto a baixo, avaliou meu metabolismo, rasgou uns dois metros de um rolo e passou-me as tiras — enfim, contava eu essas coisas e muitas outras contaria se mais tempo tivesse, quando o organizador do debate interrompeu-me:

— Não é para isso que te convidamos. Estamos discutindo o socialismo em teoria.

Desculpei-me. De teoria eu nada entendia, só conhecia os dados da realidade. As teorias são brilhantes. Na prática, a teoria é outra.

Estas considerações surgem à propósito do artigo de Gilson Pereira, “O coro dos contentes”, publicado domingo passado, onde o autor contesta algumas observações minhas após uma visita a Santiago do Chile. Diz Gilson jamais ter ido a Santiago — o que já não o autoriza muito a falar de Santiago — e acresce ser um daqueles 80 por cento de brasileiros que provavelmente jamais cruzará a fronteira, por absoluta falta de condições. Cantiga para ninar pardais, como dizem os lusos. O articulista demonstra excelente domínio do vernáculo, e mesmo da lógica — a ponto de sofismar à vontade — e hoje, qualquer pessoa que tenha chegado a este quociente mínimo intelectual é homem que, ou viajou, ou não viajou porque não quis. Diz não ser economista, mas brande a teoria da escola monetarista de Chicago. E assim explica o atual período de prosperidade vivido no Chile. Cito literalmente: “repressão ao movimento de massas, arrocho salarial e grandes investimentos estruturais”.

Confesso que nada sei da escola de Chicago. Mas de Stalin entendo um pouco. Sua política foi exatamente essa e mais, continua sendo. Mesmo sob o signo da glasnost e perestroika gorbachovianas, as massas continuam sendo reprimidas (vide os armênios do Azerbaijão e, certamente dentro em breve, os estonianos) e liberdade sindical, que dizem os petistas ser bom, digno e justo e justo, nem sombra dela nas repúblicas soviéticas. Esta política começou com a repressão e morticínio dos kulaks sob Stalin e tem sua seqüência com Lech Walesa. Os grandes investimentos estruturais na América do Sul, pelo menos, ainda não se traduzem em armamento nuclear e militarização do espaço. Em suma, como lemos no Eclesiastes, nada de novo sob o sol.

Com uma diferença: nos países soviéticos esta política não deu certo e hoje a URSS é uma “confederação” que permanece um século atrás da era moderna, onde instrumentos banais do nosso cotidiano, como o xerox e o telefone, são inacessíveis ao cidadão comum. Estou apenas seguindo a argumentação de meu interlocutor, pois não sendo especialista em questões econômicas — e muito menos chilenas — não tenho a mínima idéia a que se deve a atual prosperidade do Chile. É curioso, no entanto, que alguém que jamais atravessou a Cordilheira, tenha uma resposta certinha para explicar uma realidade que jamais viu. O que mais fascina os jovens no marxismo, a meu ver, é esta possibilidade de entender o mundo através de fórmulas figées. Acontece que o universo é por demais complexo para ser captado a partir de doze lições.

Gilson Pereira tem também uma resposta na ponta da língua para explicar a pluralidade de informações que encontrei em Santiago, seja em livrarias como em quiosques de jornais: “para mim está meridianamente claro que o Chile colhe hoje o que plantou no passado”. O que não passa de uma colossal lapalissade, afinal, todo presente, seja qual for, é conseqüência imediata de um passado.

Acontece que o passado do articulista é imediatíssimo, é o de ontem: “Seriam necessários pelo menos mais duzentos anos de ditadura para apagar do Chile as marcas da experiência socialista do governo Allende”. A assertiva carrega em seu bojo a fé de um crente. Mais cauteloso, não me parece que alguns anos de governo possam criar leitores que consomem jornais russos, poloneses, suecos, franceses, ingleses, italianos, americanos e vou ficando por aqui, já que não me preocupei em listar tudo que vi nas bancas.

Que mais não seja, que fatores teriam levado Eça de Queiroz a escrever, em 1890: “Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente, Nicaráguas grotescos”? Todo presente decorre fatalmente de um passado, mas o passado de Gilson é por demais curto e tendencioso. Passado é um conceito elástico, espichado por cada um conforme suas próprias conveniências. Na Espanha, eu me divertia às custas dos madrilenhos quando tentavam provar-me, por exemplo, que Sêneca era um pensador espanhol.

Allende se professava marxista. Desafio meu interlocutor a citar um regime, um só regime marxista, onde haja pluralidade de expressão e informação, onde livrarias e quiosques estejam repletos das mais diversas formas de pensamento.

É ocioso contar mortos, afirma Gilson. Eu diria que não. Até mesmo por uma questão de ofício, jornalistas, estamos sempre contando mortos. O que me desagrada é a diagramação da contagem. Em julho de 83, eu estava na Itália quando começaram uma série de manifestações em Santiago. DOIS MORTOS NO CHILE — titulava um jornal italiano. CINCO MORTOS NO CHILE — dizia outro na manhã seguinte. Passei à França: DEZ MORTOS NO CHILE. (Estes números eu os cito de memória, talvez não sejam exatamente estes, mas a progressão era esta).

Já na Espanha — e sempre em garrafais nas primeiras páginas dos jornais — Pinochet havia matado uma dúzia ou mais. Que a imprensa denuncie tais fatos é salutar. Foi aí que apanhei um Le Monde, talvez um Le Matin, em Madri. Posso não lembrar muito bem o jornal. Lembro apenas que, na última página, uma notinha telegráfica, sem destaque algum, noticiava: russos matam 250 no Afeganistão. Gilson cita Engels: a violência é a parteira da história. Pode ser que tenha sido, meu caro. Mas já está na hora de fugirmos a esse fatalismo tão grato a velhotes gagás como Antônio Callado, que quando babam na gravata, babam ódio e sangue. Não penso ser ocioso contar mortos. Infelizmente, temos de contá-los.

Ao reivindicar como seu modelo intelectual o cubano José Martí, o articulista faz-me lembrar meus alunos de Letras que, ao ver na televisão Quanto mais Quente Melhor ou O Anjo Azul sonhavam, idílicos: “já pensou? Eu tomando um trago com a Marylin na Florida, convidando a Dietrich para uma esticada noturna em Paris?” Nesta nossa era televisiva, passado, presente e até mesmo o futuro parecem ter sido mesclados em um tempo só. Como as imagens são oferecidas simultaneamente no vídeo, os jovens gostariam talvez de achar o número de telefone da Monroe ou quem sabe contemplar as pernas célebres da Dietrich, que hoje tem pelo menos o pudor de escondê-las em seu refúgio parisiense.

Pior mesmo, só quando essa mixagem de tempos — recurso inerente ao cinema — é transporta para a história ou literatura e é isto que faz Gilson, quando insere Martí na Cuba contemporânea. Que sempre lutou pela independência de Cuba e dos países latino-americanos, isto todos sabemos, e talvez muito poetinha de esquerda que adora falar em Nuestra America ignore ter sido Martí quem cunhou tal expressão. Gilson tem em mãos o epistolário. Boa leitura. Mas conheceria melhor o poeta se tivesse suas obras completas.

Constataria, por exemplo, nos Discursos, a fé de Martí no futuro de Cuba e na capacidade de os cubanos governarem-se livremente, a fé de Martí no continente que ele considerava ser o da esperança humana. Seria também interessante ler El Presídio en Cuba, de 1871, fruto de sua condenação ao regime de trabalhos forçados. O livrinho tem mais de um século, mas sua publicação seria atualíssima na Cuba de Castro, afinal presídios, sejam os de ontem, sejam os de hoje, em pouco ou nada diferem.

Martí contesta efetivamente a hegemonia ianque. Mas contestou-a estabelecido em Nova York, onde foi cônsul, sucessivamente, do Uruguai, Paraguai e Argentina. Constituiria um interessante exercício intelectual imaginá-lo hoje em Cuba, contestando a ditadura de Castro.

Por outro lado, se contestava a hegemonia econômica e política dos Estados Unidos, era homem fascinado pela cultura de seus irmãos do Norte, a ponto de estudar, em Norte-americanos, as obras de Emerson, Beacher, Cooper, Wendell Philips, Grant, Sheridan, Whitman e fico por aqui.

Yo quiero cuando me muera
sin patria, pero sin amo
tener en mi losa un ramo
de flores y una bandera.

Martí, pensador libertário, morreu em 1895. Que seu cadáver — por favor! — não seja brandido em defesa de tiranetes dos trópicos.

Joinville, A Notícia, 11.12.88


 

 

 

AOS NOVOS INQUISIDORES

Florianópolis — Cristo decide voltar à terra, mostrar-se a seu povo sofredor e miserável e para isso escolhe Sevilha, em pleno século XVI, quando mais intensamente crepitavam as fogueiras acendidas ad majorem Dei gloriam. No dia anterior, o cardeal Grande Inquisidor havia feito queimar uma centena de hereges. Cristo surge discretamente, sem se fazer notar, mas todos o reconhecem. Ressuscita uma menina e o cardeal manda prendê-lo nos porões do Santo Ofício. À noite, vai visitá-lo.

— És Tu? Tu?

Face ao silêncio do Cristo, ajunta:

— Não diz nada, cala a boca. Por que vieste nos atrapalhar?

Assim vê Dostoievski o Cristo. No livro V de Os Irmãos Karamazov, o genial e histérico místico russo, católico ortodoxo e sempre hostil à igreja de Roma, desenvolve o eterno paradoxo do cristianismo, a oposição entre um Cristo humilde e pobre e uma igreja rica e arrogante. O Grande Inquisidor, considerando os homens excessivamente débeis e mesquinhos para viver segundo os mandamentos de Jesus, decidira corrigir sua obra: a fé na liberdade e no amor é substituída pelo poder, pelo milagre e pela autoridade.

— Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio — acusa o cardeal — mas também nada mais doloroso. Tu ampliaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os tormentos desta liberdade.

O inquisidor vai longe em seus considerandos e Dostoievski é à prova de síntese. Transcrevo apenas as palavras finais do cardeal:

— Amanhã, a um sinal meu, tu verás essa tropa dócil trazer carvões ardentes para a fogueira onde subirás, por ter vindo atrapalhar nossa obra. Pois se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste tu. Amanhã, eu te queimarei. Dixi.

Voltarei em breve, diz Cristo ao final do Apocalipse. Se ainda não voltou, totalitário e triunfante como o quer João, tem seguidamente reaparecido nas artes e particularmente na literatura, sempre provocando em crentes e sacerdotes a mesma inquietação manifestada pelo Inquisidor: por que vieste nos atrapalhar?

E sempre que volta, atrapalha. Perturba até mesmo a vida dos que mais o veneram. Nietzsche, por exemplo, não saiu ileso de seu corpo-a-corpo com ele: em seus dias de insânia, assinava-se “O Anticristo”. Ernest Renan, outra das maiores sensibilidades do mesmo século de Nietzsche, tampouco escapou a seu charme. Vida de Jesus, qualificado como um dos grandes acontecimentos do século passado, é um poema em torno ao Cristo, travestido em ensaio histórico. Para escrevê-lo, Renan preparou-se estudando línguas semíticas e refazendo o percurso do biografado na Galiléia e Palestina. Em 1862, ao assumir uma cátedra no Collège de France, teve de interromper seu curso por ordem do governo: em sua primeira aula, ousara falar de Jesus como “um homem incomparável”.

Giovanni Papini, outro apaixonado pelo nazareno, escreveu uma História de Cristo e nem por isso escapou ao Index Prohibitorum. E hoje em dia, tanto Dostoievski como Nietzsche, tanto Renan como Papini, são anatematizados pelos inquisidores, grandes ou pequenos, de qualquer igreja. Qualquer dia destes, até Hegel cai em desgraça, pois na juventude escreveu — o que muito marxista ignora — uma Vida de Jesus, onde o sentido espiritual da revelação cristã e mesmo o drama da vida, morte e ressurreição do cristo estão explicados através da doutrina ético-religiosa de Kant.

Martin Scorsese, cineasta americano, está sendo vítima de insultos e interdições no mundo todo, por ter levado às telas o romance A Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis. Curiosamente, o livro foi recentemente traduzido ao brasileiro, está em todas as livrarias e, pelo que me consta, os novos inquisidores, cientes de que seus seguidores são mais ou menos analfabetos, pouco estão ligando para a difusão literária da obra. Cinema já é mais perigoso, pode gerar idéias no mais inculto dos espectadores. Perigoso a tal ponto que um distribuidor catarinense, em crise de atroz provincianismo, proibiu o filme em suas salas. Freira de dia, puta à noite, tudo bem, tais obras-primas parecem não ofender credo algum. Já uma madura reflexão, oriunda sensibilidade de um criador fascinado pelo Cristo, esta merece a fogueira.

Pois uma grande injustiça está sendo cometida em relação à Kazantzakis e sua obra. Para começar, duvido que a literatura deste século tenha produzido autor tão febrilmente religioso como este cretense, que já conhecíamos através de Zorba, o Grego. Ou será ateu e herege quem escreveu “Três espécies de alma, três preces”?

a Eu sou um arco em tuas mãos, Senhor; tende-me, senão apodreço.

b Não me tende muito, Senhor; eu quebrarei.

c Tende-me quanto quiseres, Senhor, e tanto pior se eu quebrar.

Poeta, tradutor, místico e viajante, Kazantzakis percorreu o mundo em busca de fé e encontrou nessas andanças quatro degraus decisivos para sua ascensão: Cristo, Buda, Lênin e Ulisses. Como funcionário do Ministério de Assuntos Sociais de seu país, salvou da fome, na Rússia, 150 mil gregos expulsos da Ásia Menor, no final da II Guerra. Os cardeais e inquisidores menores que têm condenado o filme de Scorsese certamente não ignoram tais fatos e, caso os ignorem, deveriam procurar conhecê-los antes de abrir a boca para dizer bobagens.

Mas o fascínio de Kazantzakis pelo Cristo não se esgota em A Última Tentação. Em Cristo de Novo Crucificado, um dos momentos culminantes da novelística contemporânea — também já traduzido e disponível em qualquer livraria — o cretense volta à carga e desta vez com artilharia de grosso calibre. A ação se desenrola em Licovrisi, aldeia grega encravada em território turco. Seus habitantes seguem a religião grega ortodoxa e têm por hábito, a cada sete anos, representar o drama da paixão. Os atores são escolhidos e cabe a um pastor de olhos azuis e barba curta e loura, Manolios, representar o Cristo. A partir da escolha, os atores devem imbuir-se de seus papéis, procurando identificar-se, na vida cotidiana, com os personagens interpretados.

É quando acontece o imprevisível: um grupo de gregos, perseguidos pelos turcos, pede abrigo em Licovrisi. Os aldeões, liderados pelo pope Grigoris, o organizador da Paixão, recusam-se a recebê-los. O final, este sim, é previsível. Manolios e seus companheiros, os que deviam representar os apóstolos, imbuídos do espírito evangélico, advogam pelos gregos. A paixão se consuma, só que desta vez não é teatro. Manolios é assassinado na igreja, por instigação do pope, pelo aldeão que fazia o papel de Judas.

Estamos em pleno Dostoievski, novamente. Os que se dizem seguidores do Cristo não hesitam em crucificá-lo quando volta. Não terá sido por acaso que, ao perguntar a um sacerdote grego o que pensava de seu conterrâneo de Creta, obtive resposta curta e grossa: “louco, doido varrido”.

Quanto a mim, se por um lado abomino a santa ira dos moralistas de cueca que hostilizam o filme de Scorsese, por outro não partilho do enamoramento de Renan ou Kazantzakis. Vejo o Cristo como um iluminado, como tantos outros que brotavam às margens do Jordão como cogumelos após a chuva. Sua doutrina, é verdade, rejeita o ódio imanente ao Antigo Testamento, mas pouco ou nada tem de original. Para o leitor atento, os evangelhos já estão todos embutidos nos textos judaicos. E como homem — já que só assim posso vê-lo — Cristo desaparece se comparado, por exemplo, a um Sócrates, Platão, Aristóteles ou Alexandre.

Há um certo zelotismo, diga-se de passagem, na impermeabilidade de Cristo à cultura grega e em seu recurso exclusivo à cultura judia. Paulo, que desde menino falava grego, a língua comum de Tarso, é quem efetivamente inventa o cristianismo a partir de fontes helênicas, mesclando conceitos do gnosticismo e das religiões de mistério, particularmente do culto de Átis.

Sócrates, por exemplo. Guerreiro e pensador, ousou contestar os deuses de Atenas e, uma vez condenado à morte, acusado de introduzir novas divindades e corromper a juventude, não pediu a seus juizes clemência, como era praxe pedir. Nem quis fugir, como poderias ter feito. No momento de contrapor à pena imposta pelos juizes a pena que julgava merecer, Sócrates ri dos que o condenam ao declarar que merecia não uma punição, mas um prêmio, por seus serviços prestados à Atenas. Morreu por não querer humilhar-se e bebeu serenamente a cicuta, rodeado de amigos e discípulos. Quando vemos um Cristo lamuriento, balbuciando Eli, Eli, lama sabachtani?, aceitando sem revolta alguma a crucificação, salta-nos aos olhos a superior fibra moral do ateniense.

Ou um Alexandre, que desbravou a pata de cavalo e a ponta de espada a Ásia Menor, fundando cidades por onde passava e criando a primeira universidade da História, a Biblioteca de Alexandria, isso três séculos antes de Cristo. Rei, ao entrar em combate ia sempre à frente de seus comandados. Quase perdeu a vida quando, impaciente ante o vagar com que seus homens tomavam uma fortaleza, apanhou uma escada e nela penetrou sozinho, para perplexidade dos inimigos, que não sabiam se enfrentavam um louco ou um deus. Quando os sacerdotes do Sinédrio perguntam a Cristo se é lícito ou não pagar tributos a César, Cristo tenta fugir: “Daí, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Mas tarde piou.

Decididamente, se busco homens a cultuar, antes e depois de Cristo, a história nos oferece centenas de nomes ornados pela decisão, coragem e feitos e não pela indefinição, covardia e palavras dúbias. As visões de Dostoievski, Renan ou Kazantzakis, ainda que respeitáveis, a meu ver são românticas. Apenas acho que os novos inquisidores, que se presumem defensores da civilização cristã, deveriam examinar carinhosamente — e não condenar sem ler — as obras destes escritores fascinados pelo Cristo.

Joinville, A Notícia, 18.12.88


 

 

CUMBRE EN CUBANACAN

 

Havana (Urgente) — Em sua recente entrevista com Fidel Castro, o Dr. Luís Inácio da Silva, candidato do PT à presidência da República, revelou insuspeitados dotes de estadista, emergindo deste encontro no Caribe como um dos mais lúcidos líderes de Nuestra America. Hóspede oficial do governo cubano, Dr. Lula sequer necessitou deslocar-se de Cubanacan para discutir com o Líder Máximo os destinos do continente: na noite mesmo de sua chegada, mais precisamente às 23h30min de sábado passado, Fidel foi, verborrágica e pessoalmente, cumprimentá-lo. Exausto pela longa viagem e ciente da monologomania do velho ditador, mal Fidel esboçou um “bienvenido sea el compañero de luchas por la felicidad y bienestar de nuestro pueblo latinoamericano, impertérrito adversário del capitalismo y de la libre iniciativa, líder incontestable de las luchas laborales en Brasil...”, Dr. Lula cassou-lhe o verbo.

— Sei, sei — resmungou Dr. Lula, com a nonchalance de um plenipotenciário — e além do mais dispenso salamaleques, em verdade estou aqui apenas de passagem, mais diria em campanha eleitoral, pois se stalinismo passou de moda na Europa, ainda rende votos no Brasil. Quero em todo caso cumprimentá-lo por esta permanência de três décadas no poder, façanha que sequer foi atingida pelos militares brasileiros, com armas e atos institucionais em punho, sonho longe do alcance de caudilhos menores como Pinochet, desautorizado em plebiscito mal completou década e meia de governo. E quero particularmente cumprimentá-lo, camarada Fidel, por façanha bem mais insólita, a de preservar a simpatia da imprensa toda do Ocidente após trinta anos de ditadura, a propósito, bem gostaria que me passasse esta fórmula, nunca se sabe quantos séculos são necessários para educar uma nação.

Perplexo ante o sangue frio do jovem estadista, mal Castro esboçou um tímido “pero...”, Dr. Lula o atalhou:

— Ni pero, ni pera, Fidel. Você há de convir que trinta anos é um exagero. Se nem a CIA e o cigarro conseguiram te matar, mais dez aninhos e empatas com Franco. Visitar a ilha é uma espécie de batismo, sei disso, o Caetano e o Chico também sabem, acontece que nós envelhecemos e as gerações se renovam, estou aqui apenas para um gesto de aceno a meus companheiros de geração, acontece que conseguimos introduzir na Nova constituição o direito de voto a maiores de dezesseis anos, o que nos fornece uma fatia virgem no mercado eleitoral, são cinco ou seis milhões de eleitores, em sua maioria em fase de revolta com os pais, ou seja, voto certo no PT. Cá entre nós, camarada, esta minha visita até que me desprestigia, a imprensa burguesa vai gozar com a minha cara, ainda nem voltei e aposto que nalguma redação algum jornalista reacionário já deve estar me preparando alguma. Cuba já não dá mais crônica social, Fidel. A moda agora é Nicarágua e é pra lá que estou indo. Há centenas de jovens da classe média e alta classe média pagando mil dólares para passar fome e colher café para os nicas, que afinal isso de ser revolucionário não é para qualquer pé-rapado, não é qualquer zé-povinho que se pode dar ao luxo de pagar tanto para passar tão mal, e a classe média é muito intuitiva, assim que penso comer algumas lagostas em Havana, daquelas que você reserva para quem traz dólares e no meio da semana já estou voando pra Manágua, que mais não seja para abraçar “compa” Ortega. Desculpe o camarada Fidel minha franqueza, mas há razões que a razão não desconhece, são as famosas razões de Estado.

— Pe... pe... — quis balbuciar um Fidel perplexo — no que foi calado pelo líder petista.

— Ni pe ni pa, camará! Estou em campanha eleitoral e fica cada vez mais difícil, para um homem que ambiciona o poder e precisa namorar as esquerdas, explicar tua ilha. Quando jovem, vibrei com teu combate em Sierra Maestra, brindamos a queda de Fulgencio Batista, inovamos a autodeterminação dos povos e a Doutrina Monroe por ocasião da invasão da Baía dos Porcos. Pena que vivemos na era das comunicações, compañero, e não há hoje quem não saiba que na Cuba de Batista quem quisesse abandonar o país só precisava fazer as malas. Aquela fuga em massa pra Miami, lá por 80, caiu muito mal, meu caro Castro. Até o general Pinochet já fez plebiscito, mais ainda, aceitou o resultado da consulta, o que nos deixa numa situação muito desconfortável quando, convidado a confirmar tua legitimidade, declaras que os cubanos já fizeram um plebiscito há trinta anos. Como é que eu fico, Fidel, logo eu que lutei e luto pelas eleições diretas, como ficamos nós que denunciamos que há vinte e sete anos não votamos para presidente? Você há de convir que não é fácil explicar às novas gerações estas contradições dialéticas, certamente inevitáveis no processo histórico, mas dificilmente inteligíveis em um país onde a imprensa infelizmente é livre. Estamos te mandando turistas, camarada, e todos com os bolsos cheios de dólares e é claro que te somos gratos pela recepção, temos acesso a mordomias com as quais cubano algum ousa sonhar. O Chico, por exemplo, sempre cantou tua revolução, claro que ele sempre prefere sua cobertura no Rio, seu apartamento em Paris, mas isto é humano, Brecht já dizia que quem não sabe bem comer, bem beber e bem tratar uma mulher na cama não pode ser revolucionário. A reflexão é pertinente, só que dificilmente inteligível pelas massas. E nunca falta o jornalista de má-fé que insista em perguntar: mas se turismo é comércio de ida-e-volta, por que não vemos turistas cubanos no Brasil? Para os menos esclarecidos sempre podemos alegar que não se faz omelete sem quebrar os ovos, ameaça imperialista ao Norte, fortaleza sitiada pelo capitalismo, etc., mas meu suporte é a classe média e a classe média bem ou mal lê ou viaja e já não engole mais tais potocas. Camarada Castro! — e então Lula tentou erguer o braço até os ombros do Líder Máximo — até Gorbachov está conquistando o Ocidente, com não mais que duas palavrinhas, glasnost e perestroika. Custa muito ao camarada fazer uma concessãozinha aos ventos do Leste?

— Pe... pe... peres... que? — balbuciava atônito o Líder Máximo.

— Perestroika, camarada. Glasnost. Reestruturação. Transparência. Words, words, only words. Você acha que Gorbachov vai abrir fronteiras ou permitir críticas a seu governo na imprensa? Você imagina que vai liberar o xerox ou derrubar o Muro de Berlim? Nada disso, companheiro. Gorbachov está apenas tentando chegar ao século XX, antes que o Ocidente chegue ao século XXI. Mera ofensiva de charme. Estou até pensando em ver se descolo um encontro com o perestroistchki tovaritch Gorbachov, não há hoje quem não saiba que se ele deixa de enviar dólares aos bilhões à tua ilha, dia seguinte estás sem emprego. E depois, Fidel, isso de nomear sucessor. Logo um irmão! Eu, que fiz minha fortuna política xingando os militares, nem disso pude acusá-los! Trinta anos, meu caro — e Lula esfregou sua barbicha nas vetustas barbas do Caudilho — bem que eu gostaria de um período assim para endireitar aquele país, infelizmente lá a imprensa é livre, repito, e nunca falta um negativista profissional que nos cobre alternância de poder, eleições livres, em suma, esses empecilhos democráticos que nos impedem de construir a utopia.

Nesta cumbre, como dizem meus colegas de fala espanhola, o líder petista deixou claro que, uma vez presidente da República, só pensaria em uma aproximação com Cuba a partir do momento em que o Líder Máximo devolvesse aos cubanos o direito de voto.

— Não que eu acredite lá muito em eleições, camarada Fidel. Bem sabemos que a violência é o fórceps da História. Acontece que os brasileiros desde há muito estão contaminados pelos tais de ideais democráticos, culpa talvez em parte nossa, admito, afinal tanto falamos em democracia para contestar a ditadura que o povo acabou por intoxicar-se. A última tentativa de chegarmos ao poder pelas armas, o camarada viu no que deu e até hoje deve doer-lhe no bolso, meu caro Castro, aquele milhão de dólares repassadas a El Ratón, é assim que vocês chamam o Brizola aqui em Cuba, não é verdade? Por outro lado, compañero, isso de manter intelectuais e opositores na prisão, isso já era, Fidel, já era. As “autocríticas” de prisioneiros políticos não convenceram nem na época do Stalin. Aquela do Heberto Padilha, que desastre, hombre! Perdeste teus melhores garotos-propaganda, o Sartre, a Simone, Pasolini, Alain Resnais, Susan Sontag, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Vargas Llosa e vou ficando por aqui. O Gorbachov já está reabilitando Trotsky e você insiste em manter intelectuais no cárcere. Perestroicisesse, hombre, perestroicisesse antes que seja tarde.

— Pero pa qué si yo... — tentou atalhar Castro, impotente ante a verve do ex-metalúrgico.

— Ni pa que sí ni pa que no, camarada. Tua sorte foi a Armênia, não fosse aquele terremoto o Gorbachov dava entrevista no “Granma” e eu pagava pra te ver censurando o chefe, dia seguinte ele dispensava teu açúcar e fechava a torneira dos dólares. A propósito, isso do jornal da revolução ter um nome ianque, isso também cai mal, meu querido. Sem falar que eu tenho vergonha de voltar para o Brasil com um exemplar dele, lá no Brasil qualquer jornaleco de província tem mais informação e crítica do que este Diário Oficial. E mais, Fidel — e então o ex-metalúrgico foi de dedo em cima do Líder Máximo — tem mais, meu caro, isso de fazer discurso com pombinha branca no ombro é recurso fajuto de tua assessoria, imagina se lá no Brasil um milico, com farda e tudo, subisse a uma tribuna de pombinha ao ombro pra comemorar datas, ia ser mais divertido que ouvir o Sarney falando espanhol. Ou achas que alguém ignora tua presença armada em Angola? Isto nos coloca problemas terríveis, a nós, intelectuais de esquerda — (e neste momento o rosto do camarada Lula foi perpassado por um ligeiro rubor) — como explicar às massas que o cidadão cubano só come macarrão com ketchup o dia todo, isso quando tem a sorte de encontrar os dois? Como explicar os dois pares de sapato por ano a que tem direito os cubanos, quando não faltam coturnos para tuas tropas em território africano? Cá entre nós, Fidel, não é fácil vender tua revolução, quando se sabe que o turista em tua ilha tem acesso às dollarshops, ao que de mais sofisticado o capitalismo oferece, enquanto o ilhéu fica chupando no dedo. Acontecesse isso no Brasil, tuas lojinhas de caça ao dólar viravam cacos de vitrine no dia seguinte.

— Pe... pe... pero, Lula — tentava protestar o Supremo Comandante, já próximo à apoplexia, quando o futuro presidente da nação brasileira acalmou-o com um gesto imperioso:

— Tranqüilito, Fidelito, tranqüilito. Te convido para uma missa, sabes muito bem que só existo graças à Igreja, não é por acaso que me assessora um dos maiores ficcionistas catarinenses, frei Leonardo Boff. Ele vai oficiar uma missa e nós vamos rezar, meu querido, por muitos e muitos anos de vida a Stroessner. Sim, o Líder Máximo paraguaio. Pois se o homem morre, camarada, vais ganhar a desconfortável comenda de Decano dos Tiranetes da América Latina.

Joinville, A Notícia, 22.01.89


 

 

PRIMEIRA EPÍSTOLA AO AIATOLÁ DE FORQUILHINHA

 

Florianópolis — De Forquilhinha, Santa Catarina, conheço dois cidadãos. Ou melhor, um cidadão e uma cidadã, o Paulo e a Albertina. O Paulo, conheço apenas de nome. A Albertina, de meu dia-a-dia. Ambos nasceram em lares humildes mas — coisas da vida! — tiveram diferentes destinos. Albertina veio a ser minha faxineira e Paulo doutorou-se pela Sorbonne. Paulo viu no sacerdócio sua chance de chegar ao poder e a Albertina, coitada, enfrenta bravamente o mundo com sua vassoura. Paulo, ao que tudo indica, prefere uma metralhadora.

Falar em metralhadora me faz lembrar um distante 1º de abril, como também aquela pergunta que nos anos 70 se tornou moda: onde você estava no 1º de abril de 1964? Eu estava em Santa Maria, mais precisamente na sede dos Sindicato dos Ferroviários, mais conhecido como Casa Rosada. Era jovem e idiota. Do alto de meus dezessete anos, trepado em uma mesa, trazia aos operários o apoio da classe estudantil, denunciava Carlos Lacerda, louvava Brizola e exigia do comandante da guarnição local, general Pope de Figueiredo, uma definição sobre o governo João Goulart. Em meio a meu discurso, o salão foi se esvaziando aos poucos, o que era no mínimo desconfortável para quem se julgava bom orador. Mas o problema não era o verbo. Era a definição que chegava, trezentos homens armados de fuzis e metralhadoras, baionetas caladas. Minha platéia se evaporava. Desci da mesa, sentindo-me ridículo até a medula. Na Casa Rosada, restamos eu e mais dez operários. Fui até a porta. A um metro e meio de mim, centenas de soldados, todos de minha idade, formavam semicírculos concêntricos de baionetas. Não senti medo, não acreditava que alguém desse ordem de fogo. Mas tive de desarmar um operário bêbado que, com seu facão, pretendia enfrentar o exército. Algum tempo depois, surgiram os mensageiros da guerrilha. Convidado para a luta armada, recusei-me. Considerava suicídio lutar de bodoque contra tanques. A esta mesma conclusão chegaram meus companheiros de geração, só que vinte anos mais tarde, após centenas de mortes e sofrimentos no exílio. Mas falava de Paulo. Não no de Tarso, o maior matador de cristãos de seu tempo e que acabou construindo o cristianismo, Stalin precursor que se tornou um enviado de Deus para suas vítimas. Falava do Paulo de Forquilhinha. Conterrâneo de Albertina.

Pois o Paulo, ou Dom Paulo, como prefere ser chamado, ou melhor ainda, Dom Paulo Evaristo Arns, escreveu há pouco afável cartinha a um dos mais antigos tiranos da América Latina, que há trinta anos oprime com seus coturnos toda uma nação. Não, a carta não foi dirigida a Stroessner. Bem poderia ser. Pois como disse o estafeta episcopal, o ficcionista Carlos Alberto Libânio Christo, vulgo frei Betto, o pecador não deve ser confundido com o pecado. Muito menos a Pinochet, que parece ainda pouco maduro nos meandros do poder — afinal tem só quinze anos de ditadura! — para merecer tapinhas no ombro de um príncipe da Igreja. A carta foi dirigida a Fidel Castro Primeiro e Único, Real Imperador de la Isla de Cuba. E eu que me queixava da Albertina, a coitada, cujo único pecado é tentar organizar por altura das lombadas os livros de minha biblioteca.

Pois Dom Paulo, de certa forma, já me aprontou outra. Quando estava sendo traduzido ao brasileiro o livro Nunca Mais, o relatório da Conadep (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas), cujos trabalhos foram coordenados por Ernesto Sábato, Dom Paulo tomou a dianteira: endossou trabalho semelhante feito no Brasil, o que é bom, digno e justo. Só não é bom, digno e justo roubar título alheio como o fez, usufruindo indevidamente da publicidade internacional de que gozava o trabalho coordenado por Sábato. A Albertina de vez em quando junta Casanova com Tomás de Aquino, só porque os tomos são da mesma altura, mas jamais subtraiu nada de minha biblioteca.

"Queridíssimo Fidel" — começa o corajoso cardeal — "Paz e bem". Digo corajoso porque coragem intelectual é o mínimo que se exige de um homem culto e bem informado para assim saudar o único ditador do continente que ainda mantém intelectuais no cárcere e proíbe aos nacionais saírem de seu gulag tropical. Em sua epístola ao tirano, Paulo abraça Castro e saúda o povo cubano pelo trigésimo aniversário da ditadura: "Hoje em dia Cuba pode sentir-se orgulhosa de ser no nosso continente, tão empobrecido pela dívida externa, um exemplo de justiça social". Não é bem o que pensa a Anistia Internacional, cujas investigações embasam em boa parte o Brasil: Tortura Nunca Mais, de Dom Paulo. Muito menos o que pensam dois milhões de cubanos que votaram com os pés, fugindo para Miami. Como dizia a Albertina, "que paraíso é esse, professor, onde as pessoas estão proibidas de sair e quando saem não voltam mais?"

"A fé cristã descobre" — continua Paulo em sua epístola aos castrenses — "nas conquistas da Revolução, os sinais do Reino de Deus que se manifestam em nossos corações e nas estruturas que permitem fazer da convivência política uma obra de amor". Ora, se fronteiras fechadas, ausência de eleições livres, imprensa e oposição sufocadas e vida a nível de miséria são sinais do Reino de Deus, vamos então canonizar logo este santo homem chamado Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido como Stalin, "o de aço".

Ao dar notícias do Brasil, sua Excelência Reverendíssima, nosso cardeal Arns, não perde a oportunidade de evocar "a vitória popular alcançada nas últimas eleições". Supomos que quando fala de vitória popular se refira ao avanço do PT, pois não é de hoje que temos conhecimento deste namoro entre a Igreja e o partido que se diz dos trabalhadores mas, fundamentalmente, é constituído por acadêmicos. Tal vitória, continua o cardeal, "renova o marco político do país e abre esperanças de que o indescritível sofrimento do nosso povo possa ser minorado no futuro".

Que em algo renova, disso não tenho dúvida alguma, pois pela primeira vez vejo uma prefeita, Luiza Erundina, eleita folgadamente pelo voto popular, declarar via Embratel que a solução dos problemas nacionais passa pela luta armada. Marília Gabriela, sua entrevistadora na TV Bandeirante, em vez de ficar esbanjando charme, bem que poderia propor-lhe três questõezinhas mais:

a) Luta armada exige preparação. O PT está se preparando para ela?

b) Se está, quem o prepara e financia?

c) Se a luta armada é necessária, contra quem vai ser a luta? Contra os empresários? Contra as Forças Armadas? Contra o Congresso? Quem é o inimigo?

Pois atribuo mais sensatez à minha inculta Albertina: "Derramamento de sangue, Deus nos livre, professor!"

Não contente em esfregar-se junto à caspa da ditadura, Paulo Evaristo, cardeal Arns, vai mais longe, reza diariamente por Castro e pede "ao Pai que lhe conceda sempre (o grifo é meu) a graça de conduzir os destinos de sua Pátria". Ora, conceder sempre a graça de conduzir os destinos da pátria, a meu ver não tem diferença alguma de conceder a graça de sempre conduzir os destinos da pátria. Estará Paulo, o de Forquilhinha, pedindo ao Pai pela permanência do tirano?

Paulo de Tarso, que na verdade, não era de Tarso, mas da Cilícia, fariseu fanático que mais matou cristãos no primeiro século do cristianismo, era mais singelo e não usava de meias palavras, matava quem quer que seguisse o Cristo e estamos conversados. Quando viu no cristianismo então emergente um potencial instrumento de controle do poder, não teve dúvidas, converteu-se às novas circunstâncias. Dom Paulo de Forquilhinha parece estar percorrendo a estrada de Damasco em rumo contrário. Depois de velho, vai esfregar-se em prepostos de Moscou, que preferem manter um país a nível de fome para garantir a presença soviética na África, regada com o sangue de jovens cubanos.

Passou aqui em Florianópolis, há coisa de um ano e pouco, um destes senhores que adora sangue e cultua quem o faz derramar. Chamava-se Antonio Callado e fez palestra nos salões da Universidade Federal de Santa Catarina. Hospedou-se em hotel de luxo, foi caitituado pelos intelectuais autóctones e vinha financiado por uma multinacional. Disse esperar que no Brasil estoure uma revolução violenta. Desafiado por um repórter, disse que assinava embaixo. E assinou mesmo, o velhote sanguinário. Disse ainda que este caminho, o da revolução violenta, passa pela Igreja e pelo PT. Os sinais do Reino de Deus parecem estar fechando. Frei Betto levando quitutes da mamãe para o tiranete das Antilhas, portando cartas de Paulo de Forquilhinha ao ditador. Leonardo Boff namorando Ernesto Cardenal, mais conhecido internacionalmente como o aiatolá do Caribe por seu apoio a Khomeiny. Erundina falando em luta armada. Lula estabelecendo vínculos com os aprendizes de tirano da Nicarágua. Estará próximo o Reino de Deus?

Ou talvez o da estupidez, como diria Albertina, sem talvez ter idéia da profundidade do que diz. Nenhum homem medianamente informado desconhece o preço pago em sangue pelos espanhóis durante a Guerra Civil. A nenhum homem honesto é permissível ignorar quem foi Pol Pot. Latino-americanos, todos sabemos em que resultaram essas tentativas desvairadas de tomada do poder no Uruguai, Chile, Argentina e Brasil. O massacre está sendo reeditado no Peru. Um grupo de assassinos com vocação para o suicídio tomou recentemente um quartel em Buenos Aires. Eram paranóicos a ponto de portar no bolso um programa de governo. Luís Carlos Prestes, outro sanguinário impenitente, do alto de suas oito décadas de vida, que nada parecem ter-lhe ensinado, declarou que o assalto a La Tablada foi uma loucura. Nisto concordamos. Mas preferiria que o Cavaleiro da Esperança (sic!) reconhecesse, antes de morrer, seu ataque de loucura em 1935, quando, aterrissando na praia do Campeche, cá na ilha, voltou de Moscou para inaugurar a guerra civil, em sua tentativa messiânica de instalar no Brasil o reino, sei lá se de Stalin ou de Deus, pois afinal estes dois eram bastante confundidos na época e — o que é pior — parece que até hoje, pelo menos na América Latina, em pouco ou nada se distinguem.

Tenho mais de quarenta anos. Há umas boas décadas deixei de ser o jovem idiota de 64, que obedecia palavras de ordem que não entendia e que levaram parte de minha geração ao massacre. Não quero mais viver, nem quero ver alguém vivendo, aqueles dias de opressão, medo, exílio, desconfiança mútua, prisões arbitrárias e tortura, inerentes a tais processos de assalto ao poder. Vivi dias em que a amizade era exercício quase impossível, pois se buscávamos a convivência de um colega já contaminado pelo vírus da ideologia, ou tínhamos de concordar em tudo ou, automaticamente, éramos classificados como inimigos. Vivi seis meses na Espanha, em 87. A Guerra Civil terminara há meio século e observei que, até hoje, os espanhóis continuam divididos e ainda alimentam velhos rancores. Pior ainda: a Espanha é hoje nação livre, rica e democrática, e nunca falta intelectual que continue a sonhar com a vitória dos republicanos, o que teria levado o país, e certamente toda a Europa junto, à paupérrima condição dos países do bloco soviético.

Paulo Evaristo, cardeal Arns: bem ou mal, pertenço à sua Igreja. Fui batizado, à revelia, é verdade, como à revelia se tornam partícipes do Corpo Místico de Cristo crianças que prefeririam uma chupeta a serem aspergidas com água benta. Dentro de vossa ótica, talvez seja um membro doente deste Corpo. Mas a ele pertenço. Uma vez a ele pertencendo, sinto-me no direito de pedir a meu pastor que não mais abrace tiranos. E não mais escreva bobagens. Não fica bem para um cardeal.

Ou o cardeal nos deseja um novo Primeiro de Abril?

Joinville, A Notícia, 05.02.89


 

 

IDADE MÉDIA, VOLVER!

 

Florianópolis — Valayaté-Faghih, Kachfol-Astar e Towzihol-Masael são os três livros-chave de um escritor que, em 1979, recebeu generoso asilo em terras de França, em cidade nas cercanias de Paris. Traduzindo, pela ordem: O Reino do Erudito, A Chave dos Mistérios e A Explicação dos Problemas. Pinço cá e lá algumas reflexões do erudito autor:

No momento de urinar ou defecar, é preciso se agachar de modo a não ficar de frente nem dar as costas para Meca.

Não é necessário limpar o ânus com três pedras ou três pedaços de pano, uma só pedra ou um só pedaço de pano bastam. Mas, se se o limpa com um osso ou com coisas sagradas como, por exemplo, um papel contendo o nome de Deus, não se pode fazer orações nesse estado.

É preferível agachar-se num lugar isolado para urinar ou defecar. É igualmente preferível entrar nesse lugar com o pé esquerdo e dele sair com o pé direito. Recomenda-se cobrir a cabeça durante a evacuação e apoiar o peso do corpo no pé esquerdo.

Durante a evacuação, a pessoa não deve se agachar de cara para o sol ou para a lua, a não ser que cubra o sexo. Para defecar, deve também evitar se agachar exposto ao vento, nos lugares públicos, na porta da casa ou sob uma árvore frutífera. Deve-se igualmente evitar, durante a evacuação, comer, demorar e lavar o ânus com a mão direita. Finalmente, deve-se evitar falar, a menos que se seja forçado, ou se eleve uma prece a Deus.

A carne de cavalo, de mula e de burro não é recomendável. Fica estritamente proibido o seu consumo se o animal tiver sido sodomizado, quando vivo, por um homem. Nesse caso, é preciso levar o animal para fora da cidade e vendê-lo.

Quando se comete um ato de sodomia com um boi, um carneiro ou um camelo, a sua urina e os seus excrementos ficam impuros e nem mesmo o seu leite pode ser consumido. Torna-se, pois, necessário matar o animal o mais depressa possível e queimá-lo, fazendo aquele que o sodomizou pagar o preço do animal a seu proprietário.

Onze coisas são impuras: a urina, os excrementos, o esperma, as ossadas, o sangue, o cão, o porco, o homem e a mulher não-muçulmanos, o vinho, a cerveja, o suor do camelo comedor de porcarias.

O vinho e todas as outras cervejas que embriagam são impuros, mas o ópio e o haxixe não o são.

O homem que ejaculou após ter tido relações com uma mulher que não é sua e que de novo ejaculou ao ter relações com a legítima esposa, não tem o direito de fazer orações se estiver suado; mas, se primeiro tiver tido relações com a sua mulher legítima e depois com uma mulher ilegítima, poderá fazer as suas orações mesmo se estiver suado.

Por ocasião do coito, se o pênis penetrar na vagina da mulher ou no ânus do homem completamente, ou até o anel da circuncisão, as duas pessoas ficarão impuras, mesmo sendo impúberes, e deverão fazer as suas abluções.

No caso de o homem — que Deus o guarde disso! — fornicar com animal e ejacular, a ablução será necessária.

Durante a menstruação da mulher, é preferível o homem evitar o coito, mesmo que não penetre completamente — ou seja, até o anel da circuncisão — e que não ejacule. É igualmente desaconselhável sodomizá-la.

Dividindo o número de dias da menstruação da mulher por três, o marido que mantiver relações durante os dois primeiros dias deverá pagar o equivalente a 18 nokhod (três gramas) de ouro aos pobres; se tiver relações sexuais durante o terceiro e quarto dias, o eqüivalente a 9 nokhod e, nos dois últimos dias, o eqüivalente a 4½ nokhod.

Sodomizar uma mulher menstruada não torna necessários esses pagamentos.

Se o homem tiver relações sexuais com a sua mulher durante três períodos menstruais, deverá pagar o eqüivalente em ouro a 31½ nokhod. Caso o preço se tiver alterado entre o momento do coito e o do pagamento, deverá ser tomado como base o preço vigente no dia do pagamento.

De duas maneiras a mulher poderá pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais.

Enquanto o homem e a mulher não estiverem casados, não terão o direito de se olhar.

É proibido casar com a mãe, com a irmã ou com a sogra.

O homem que cometeu adultério com a sua tia não deve casar com as filhas dela, isto é, como suas primas-irmãs.

Se o homem que casou com uma prima-irmã cometer adultério com a mãe dela, o casamento não será anulado.

Se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este permanece válido.

O marido dever ter relações com a esposa pelo menos uma vez em cada quatro meses.

Se, por motivos médicos, um homem ou uma mulher forem obrigados a olhar as partes genitais de outrem, deverão fazê-lo indiretamente, através de um espelho, salvo em caso de força maior.

É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido.

A mulher que tiver nove anos completos ou que ainda não tiver chegado à menopausa deverá esperar três períodos de regras após o divórcio para poder voltar a casar.

Qualquer comércio de objetos de prazer, como os instrumentos musicais, por menores que sejam, é estritamente proibido.

É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica.

Cansei. Acho que chega. Pois o autor destes eruditos preceitos não é nenhum doente mental — ou pelo menos assim não é oficialmente considerado — nem, pelo que me conste, está sob camisa de força. Ao contrário, é um dos chefes de Estado contemporâneos que mais freqüenta as primeiras páginas da imprensa internacional e, do alto de sua sabedoria e humanismo, ousa reptar as potências. O autor de tão doutas prescrições é nada menos que o aiatolá Ruhollah Khomeiny. Excertos destas suas três obras foram publicadas em vários países, no Brasil inclusive, sob o título genérico de O Livro verde dos Princípios Políticos, Filosóficos, Sociais e Religiosos do Aiatolá Khomeini.

Paris, 1979. Eu me preparava para credenciar-me junto ao Festival de Cinema de Teerã, quando Khomeiny recebeu asilo da França e, ao arrepio das leis que regem este estatuto, sentado em seu tapete em Neauphle le Chateau, desfechava suas baterias contra o xá Reza Palhevi. O festival gorou, o xá caiu e o aiatolá entrou a ferro e fogo no Irã, de Corão em punho, fuzilando homossexuais e prostitutas. Uma de suas primeiras providências foi proibir a música e o cinema.

Mas as esquerdas parisienses continuavam abominando o xá e louvando o potencial revolucionário do islamismo. Só começaram a preocupar-se quando Khomeiny, empunhado uma esquecida surata do Corão, que assimila o consumo de ovas de esturjão a um ato impuro, decidiu proibir a exportação de caviar. A União Soviética passou então a dominar o mercado e aproveitou a prescrição de Alá para aumentar o preço das ovas de beluga (um primo do narval, que habita o Ártico). Caíra um aiatolá no caviar dos intelectuais de esquerda.

Não sei se o leitor sabe, mas no Irã de Khomeiny, como aliás em todo o mundo islâmico, as mulheres têm o clitóris cortado, lá pelos cinco ou seis anos, e a vagina infibulada, isto é, costurada com fibras vegetais. Ao casar, o marido corta as fibras com uma faca e depois a pendura às costas, para exibi-la, pingando sangue, aos vizinhos. Após o parto, a mulher volta a ter a vagina costurada, para ser novamente rasgada. A esta prática estão submetidas cerca de cinqüenta milhões de mulheres, na África e no Oriente Médio, hoje, 1989. A genitália de muitas muçulmanas transformou-se em cloaca, o que esclarece a alta incidência de Aids nos países africanos, pois dadas as lesões internas da mulher, toda relação sexual sempre é de alto risco. Isto é o Islã, século XX.

Pois Khomeiny, cuja primeira providência ao assumir o poder foi provocar uma guerra que produziu um milhão de cadáveres, não contente de legislar sobre a maneira de defecar ou copular com animais, quer agora impor seu obscurantismo ao Ocidente. Ao entrar em Teerã, afirmou: “Criminosos não devem ser julgados, e sim executados”. Começou fechando os bordéis e fuzilando as prostitutas. Mas casar por uma hora, tudo bem.

Continuou fuzilando homossexuais. Mas se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este continua válido. Numa França de baixo crescimento demográfico, estes fuzilamentos sumários causaram, diga-se de passagem, muita apreensão. Pois, como me dizia um colega de imprensa, “se a moda pega na França, vamos chegar ao final do século com a população reduzida à metade”.

Com a nonchalance de um deus, Khomeiny condenou à morte o escritor Salman Rushdie, autor de Versos Satânicos, romance onde Maomé, à semelhança do Cristo de Kazantzakis, é visto como um ser humano. Rushdie, a propósito, não é cidadão persa, o que o colocaria sob a “legislação” do atual Estado teocrático iraniano. O escritor condenado à morte é um hindu, goza de cidadania britânica e vive em Londres. Para o assassino, o aiatolá oferece não só o paraíso, como também três milhões de dólares, que já subiram para seis. Mais ainda: a pena de morte é extensiva aos editores do livro. Stalin era mais modesto. Mandou matar Trotsky no México, sem maiores alardes.

Em outras palavras, o terrorismo com a bênção de um chefe de Estado. Terrorismo previamente anunciado, premiado com o paraíso vírgula seis milhões de dólares. A liberdade de expressão, talvez a mais importante conquista da cultura ocidental, é ameaçada pelo fanatismo de um sacerdote à beira das morte. Rushdie, provavelmente, deverás viver escondido pelo resto de seus dias. E editores e livreiros correm risco de vida em função das aiatolices de um padre no poder.

“As linhas da batalha estão se formando” — escreve Rushdie em Versos Satânicos -, “o secular contra o religioso, a luz contra a escuridão. É melhor escolher o lado”. Com sua sentença, o aiatolá decreta não apenas a morte de um homem, mas a volta do Ocidente aos dias cinzentos da Idade Média.

A Europa acaba de chamar seus embaixadores em Teerã. É chegada a hora, para todo homem que pensa, de escolher seu lado, ainda que com risco da própria vida.

Joinville, A Notícia, 26.02.89


 

 

PORNÔ PARA O POVO, POR FAVOR!

 

Florianópolis — Em Teerã, em mais uma de suas sinistras aiatolices, Khomeiny conclama os iranianos a dois dias de ódio contra o Grande Satã ocidental. Em Brasília, o Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Criação e Expressão, do Ministério da Justiça, pretende restabelecer oficialmente, através de projeto enviado ao Congresso nacional, a censura. E digo oficialmente não por acaso, pois a censura continuou sempre existindo, mesmo após a declaração de sua morte, nos primeiros dias da “Nova República”. O fim da censura na atual Constituição, aliás, só serviu para produzir seu primeiro transgressor, o próprio presidente da República que, seguindo orientação do aiatolá de Roma, proibiu em território nacional a exibição de um anódino filme de Godard, Je vous salue, Marie. Estamos vivendo dias de Orwell.

Dois dias de ódio. Em 1984, Orwell não chega a tanto, são apenas dois minutos, verdade que diários. Por outro lado, ao ver um Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Criação e Expressão institucionalizar a censura, estuprando esta Carta que, mal tendo meio ano de idade já sei foi sei lá quantas vezes violada, impossível deixar de lembrar as três divisas do Partido imaginado por Orwell:

GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA

Trocando em miúdos:

LIBERDADE É CENSURA

Pois outra coisa não é o que nos transmite o absurdo projeto quando pretende proibir a transmissão de programas pornográficos através do rádio e da televisão. Antes mesmo de entrar no mérito da questão, a redação do projeto demonstra a pouca familiaridade de seu redatores com o vernáculo. Pornografia, conforme a palavra indica, é algo escrito, grafado e, por extensão, gravado ou filmado. Pornografia através de ondas hertzianas soa como barbarismo a qualquer pessoa alfabetizada. Pornofonia seria a palavra exata, aliás já registrada no Aurélio.

A extinção da censura no novo texto constitucional foi hipocritamente saudada por “intelectuais” como o início de uma nova era. Digo hipocritamente, porque pessoa alguma que goze plenamente de suas faculdades mentais vai pensar que a censura pode ser abolida por decreto. Se não mais existe em texto legal, ela continua no entanto a existir na escola, universidade, na imprensa, rádio e televisão. Vou mais longe: ela continua existindo em nós mesmos.

Se dispomos um pingo de autoridade moral, nossa simples presença já é uma espécie de censura a eventuais manifestações de estupidez. Sem falar na censura ideológica, até hoje praticada pelas esquerdas brasileiras, que clamam por liberdade de expressão e riscam dos meios de comunicação — e se possível da História — o nome de quem quer que delas discorde. Diga-se de passagem, as tais de esquerdas, nas duas últimas décadas, censuraram tanto ou mais do que os governos militares. Hoje ainda, em certos círculos, afirmar que Cuba ou Nicarágua são regimes ditatoriais é crime imediatamente punido com banimento e mesmo morte intelectual.

Dito isto, sou, sempre fui e sempre serei defensor incondicional da pornografia. Pornografia não faz mal a ninguém. Muito antes pelo contrário. E às provas me remeto.

A indústria pornográfica, que hoje manipula bilhões de dólares no Ocidente, sai da clandestinidade nos anos 60, nos países nórdicos, mais precisamente na Suécia. Estocolmo, apesar de situar-se próxima ao Círculo Polar Ártico, tornou-se centro de colóquios e simpósios de cientistas do mundo todo. Os sexklubbar proliferam pela cidade, oferecendo a qualquer cidadão ou turista uma farta oferta de pornografia. Uma nova palavra surgiu nos circuitos internacionais, o liveshow, ou seja, sexo em cena.

Por algumas coroas, qualquer Svensson podia dar-se ao luxo de contemplar, ao vivo, as míticas louras nórdicas empenhadas em acrobáticas proezas sexuais, e mais, podia até mesmo ser convidado a participar do teatro. O pragmatismo europeu, invejoso das divisas que fugiam rumo ao Ártico, deixou de lado quaisquer pruridos de puritanismo e a pornografia desceu lentamente ao Sul, invadindo hoje catolicíssimos países como França, Itália e Espanha.

Em 1973, quando distribuir os “catecismos” de Carlos Zéfiro dava cadeia no Brasil, publiquei O Paraíso Sexual Democrata, onde afirmava que em menos de dez anos, pornografia seria rotina em nossos cinemas. Se na época minha previsão causou espanto, devo confessar que exagerava, não foram necessários sequer dez anos. Afirmava-se então que a pornografia era estratégia comunista para desestabilizar o Ocidente. Mas disto os camaradas são inocentes, e mesmo os membros da Nomenklatura necessitam passar clandestinamente estes subprodutos do capitalismo para alegrar as noites do paraíso soviético. Verdade que a nossa economia anda abaixo do rabo do cachorro, mas não acredito que alguém possa creditar este desastre aos “miasmas” da pornografia, como diria — e disse — certa vez, um cardeal.

A pornografia é hoje uma poderosa indústria, tanto na Europa como nos Estados Unidos, a ponto de certos bairros dos centros mais parecerem um exótico açougue, onde ao lado da carne de gado oferecida pelos restaurantes vende-se também carne humana, não por quilos ou gramas, é claro. Qual turista que, passando em Amsterdã, não passeou seu espanto pelo Bairro Vermelho? Entremeando lojas e restaurantes, mulheres de sonho e praticamente nuas estão expostas em vitrines noite e dia, inverno e verão. E juro que já vi, tanto crianças voltando da escola ou fiéis da missa, atravessando aquele feérico mercado, com a mesma indiferença de quem passeia por um largo qualquer.

E tanto em Amsterdã como em todos os grandes centros europeus, existem nas sexshops as cabinas individuais para masturbação. O cliente fecha-se em um cubículo e assiste ao filme que bem entende, ou ainda, tendo por meio um vidro, assiste uma mulher que exibe seu corpo. Não deixa de ser triste este voyeurisme. Mas, nestes dias de Aids, é prática das mais profiláticas.

Em Paris, nos últimos anos, tanto a pornografia como a pornofonia estão ao alcance de qualquer cidadão que disponha de um televisor, telefone... ou terminal de computador. De alguns anos para cá, o Canal Plus passou a transmitir filmes pornográficos no meio da noite. Pelo telefone, o usuário tem acesso a interlúdios eróticos. E pelo minitel, terminal que é oferecido gratuitamente junto com o telefone (paga-se apenas a utilização do serviço) você pode, entre milhares de serviços, estabelecer os contatos eróticos que vem entender. Esta pornografia ao alcance de todos está plenamente institucionalizada na Europa, de Sul a Norte, incluindo recentemente países mais conservadores como Portugal e Espanha.

Desestabilização econômica? Caos social? Desintegração dos valores morais? Nada disso. Apesar dos problemas inerentes a cada país, a Europa é hoje continente próspero, que garante a seus cidadãos saúde, ensino, livre expressão e mais ainda, esperança no futuro, este direito que a nós, brasileiros, há tanto tempo nos falta. Pornografia, vai ver quem quer. Sem falar que tem seus efeitos benéficos. Na Suécia, por exemplo, após sua liberação, diminuiu consideravelmente o índice de crimes sexuais.

Já neste país de economia desvairada, barco que ninguém sabe rumo a que abismos navega, os senhores defensores da liberdade de expressão estão preocupados em impedir que a televisão e o rádio (sic!) transmitam pornografia. Ou seja, pornografia torna-se luxo de elite, privilégio de quem pode viajar à Europa, pagar motel, ou de quem dispõe de videocassete. Ou que aceita pagar o tributo de enfrentar cinemas imundos e mal-freqüentados. Nestes dias demagógicos, em que tudo é feito em nome do povo, pergunto-me porque o PT não empunha logo a bandeira:

PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA

Pornografia, a meu ver, é ver senadores fraudando votos, ministros atolados até o pescoço na corrupção premiados com prebendas em tribunais superiores, governadores administrando estados como quem gere um curral, presidentes violando a Constituição, candidato à Presidência pedindo a benção a tiranos, cardeais abençoando assassinos e torturadores.

Ano passado, um colega de ofício pregou-me uma bela peça. Pegou-me de supetão numa manhã de domingo e, de microfone em punho, queria saber minha opinião sobre a prisão do ministro fulano de Tal. Eu não sabia de nada. “Mas como, não sabes que o ministro foi preso na noite de sábado?’ Eu, jornalista, não sabia. “Desculpa a brincadeira, hoje é 1º de Abril”.

Ministro na cadeia, no Brasil, só pode ser mesmo piada de abril. Mas, voltando à pornografia: qual é o custo social desta impunidade? Pauperização crescente de uma nação, fome, miséria, capitais envoltas por cinturões de ressentimento e ódio, em suma, um caldo extremamente fértil para fanáticos famintos de poder. E Pasionárias é o que não nos falta, estão aí dando entrevistas a jornais, rádio e TV, sem Conselho algum que censure estas criminosas incitações à guerra civil.

Senhor ministro da Justiça:

Em vez de encaminhar ao Congresso propostas idiotas de assessorias analfabetas, que sequer conseguem dominar o vernáculo, oriente suas baterias contra esta pornografia maior, de conseqüências infinitamente mais graves que um inocente filminho erótico. Que mais não seja, todo televisor tem um botãozinho. Liga-o quem quer. E quem não quer o desliga.

Joinville, A Notícia, 12.03.89


 

 

CARTA ABERTA AOS HEMATÓFAGOS

 

Florianópolis — “O lugar digno de execração onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco” — escreveu Nietzsche, em O Anti-Cristo — “será completamente arrasado, e este lugar maldito sobre a terra inspirará horror às gerações futuras. Nele serão criadas serpentes venenosas”. Se interpretamos a frase lato sensu, tomando o Egeu e o Mediterrâneo como focos primeiros de transmissão do cristianismo, estive em uma dessas chocadeiras, mais precisamente Lindos, na ilha de Rodes.

Entra-se na cidade pela baía onde, segundo a tradição, Paulo teria aportado em sua terceira viagem de apostolado, introduzindo os Evangelhos no Ocidente. A entrada da baía é árida e escarpada e fiz a mim mesmo um propósito: vou subir no penhasco mais alto e fazer xixi lá de cima. Não foi preciso nem seria conveniente. Na praia, em vez de serpentes venenosas, miríades de suecas nuas. Pelo menos ali os ovos haviam gorado. Melhor mergulhar daquele barco sem pressa e varar a braço os poucos metros que me separavam do Valhala. Junto com outros apressadinhos que haviam tido a mesma idéia, joguei-me do barco e lá me fui, braço e braço, rumo às suecas, rumo às suecas, nuas, nuas.

Paulo sempre me lembra sangue, perdoem-me os “leitores” da Bíblia que só a carregam sob o sovaco. De maior assassino de cristãos no século de emersão do cristianismo, travestiu-se em maior divulgador do novo monoteísmo. Cansado de derramar o sangue dos primeiros cristãos, passou a vender o sangue de Cristo como elixir da salvação. “O cálice de benção que benzemos” — escreve aos coríntios — não é a comunhão do sangue de Cristo?” Aos efésios, lembra: “Naquele tempo estáveis sem Cristo, sem direito de cidadania de Israel, alheios às alianças, sem esperança da promessa e sem Deus neste mundo. Mas em Jesus Cristo, vós, que antes estáveis longe, agora vos aproximastes pelo seu sangue”.

Na Epístola aos Hebreus, Paulo — ou quem quer que tenha sido seu ghostwriter — nos mostra um Cristo como Sumo Sacerdote dos bens vindouros, penetrando um tabernáculo mais excelente e mais perfeito, não feito por mãos do homem. Não leva consigo o sangue de carneiros ou bezerros, “mas com seu próprio sangue entrou uma só vez no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna. Pois se o sangue de carneiros e de touros e a cinza da novilha, com que se aspergem os impuros, santificam e purificam pelo menos os corpos, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito Eterno ofereceu a si mesmo como vítima sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para o serviço do Deus vivo?”

Na narrativa bíblica, do Antigo ao Novo Testamento, o sangue é conditio sine qua non da salvação. Moisés inaugura a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito com o sangue dos animais sacrificiais e Cristo sela a Nova Aliança com seu próprio Sangue. Seria possível, mas monótono, enumerar as dezenas de vezes em que os autores bíblicos clamam por sangue para salvar-se. No Apocalipse, os puros, envoltos em vestes brancas, são salvos pelo sangue do cordeiro: “Esses são os sobreviventes da grande tribulação: lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do cordeiro”. Jeová, ou Adonai ou Eloim, ou como quer que se chame o deus judaico, é deus sedento de sangue, inclusive humano. A Abraão, ordenou que lhe oferecesse o sangue de Isaac. Pode-se objetar que interrompeu a trajetória do punhal do pai de Isaac. Mas sua sede de sangue não fora saciada: Cristo não teve sursis.

Em meio a isso, correu solta a farra-do-boi, nesta Semana Santa, na ilha e no litoral catarinense. Seus defensores — que são legião — alegam tratar-se de uma antiga tradição açoriana e que, como tal, não pode ser proibida ou reprimida. Não demonstram conhecer história, estes senhores. Esta sede de sangue, como vimos, vem de bem mais longe. Esta orgia de sangue e sadismo só pode ser concebida dentro de um caldo cultural cristão. E não é por acaso que a farra atinge seu auge nos dias da Paixão.

Que a farra seja cruenta, isto a mim não espanta. Para se ter uma idéia do que é capaz o ser humano, não precisamos de grandes leituras. Basta um livrinho, e dele estamos falando. A Bíblia toda é um desfile de massacres e torturas, plenamente justificáveis quando feitas em nome — ou por ordem — de Deus. Há quem afirme que o Novo Testamento vem suavizar a Lei Antiga. Os defensores desta idéia certamente esqueceram de trechear, que mais não seja, o último livrinho do Livro. Crueldade não constitui novidade para ninguém. O espantoso em tudo isto é que, tendo a farra existido desde sempre, só agora, nos últimos três anos, venha sendo denunciada.

A Igreja sempre se manteve silente sobre o assunto. Cardeais, bispos e padres, sempre tão preocupados em proibir filmes ou ocupar terras, jamais disseram uma palavra ou assinaram uma linha condenando a orgia infame, pelo menos antes da repercussão internacional da farra. Se bem que isto tampouco me espanta. Quem bebe sangue todos os dias, deve ter pego gosto pela coisa. De hematófagos profissionais, nada se pode esperar.

Literatos, intelectuais e artistas em geral, todos cientes da coisa fétida que ocorria sob suas vistas, jamais abriram o bico. Sempre preocupados em definir a identidade ilhoa, em cantar o verde e o azul dos morros e praias não perceberam — ou preferiram deixar de perceber — que o cerne desta identidade é a farra, tanto que persiste desde o povoamento da Ilha de Santa Catarina e até hoje resiste com armas, inclusive, como já ocorreu na praia de Ganchos, a qualquer tentativa de proibição. Verdade que agora começamos a ouvir tímidos chiados, afinal não fica bem compactuar com a ignomínia. Sem falar que, hoje, denunciar a farra já rende prestígio e até mesmo votos.

Na universidade, onde trafeguei pela área de Humanidades, jamais ouvi um pio sequer em torno à farra, o que não deixa de ser coerente. Boa parte dos professores desta área são défroqués ou ex-seminaristas (particularmente nos cursos de Letras) e, apesar de terem largado o hábito ou a batina, continuam cultuando o deus sanguinolento nascido no deserto. Deles, portanto, nada esperar.

Quanto ao governo e demais autoridades, menos chances ainda de qualquer reação. Fornecer bois para a farra rende votos e, o que é mais importante, preserva a incultura do ilhéu e do homem litorâneo, isto é, o mantém sob o jugo. Para perpetuar-se no poder, nada melhor que pequenos currais de eleitores estupidificados pela barbárie.

Mas uma sensibilidade nova parece estar contagiando a ilha nos últimos anos, a idiossincrasia de uma cultura onde o boi, em prosa e verso cantado, sempre foi considerado amigo e companheiro de trabalho. A partir da migração gaúcha rumo a Santa Catarina, forma-se uma massa crítica que permite a denúncia da farra. A internacionalização da denúncia, segundo me consta, foi obra de um gaúcho junto aos grupos antitaurinos em Madri. Para os que, em defesa da farra, brandem o argumento da existência das touradas, é bom lembrar que tanto na Espanha como em toda a Europa, há um movimento organizado e aguerrido lutando pelo fim das “tardes de sangre y de sol”. Com a entrada da Espanha na comunidade européia, tal propósito deixa de ser utópico, pois os demais países-membros podem muito bem optar por sanções econômicas que afetariam duramente a vida dos espanhóis. Mas voltemos à farra.

Os antitaurinos, sem conseguir acreditar na existência de um ritual mais sangrento e estúpido do que a tourada, quiseram ver para crer. Receberam um dossiê com as primeiras e tímidas denúncias da imprensa catarinense e, a partir destas, o escândalo tomou dimensões internacionais. Todo jornalista que, escandalizado com as hecatombes de todas as páscoas, registrou em seu espaço seu protesto, pode orgulhar-se de ter contribuído para esta tentativa de acabar com a farra. Verdade que esta não acabará tão cedo. Mas enquanto existirem, carregaremos a pecha de viver entre bárbaros.

Alegar que a farra é tradição açoriana, inocentando a cultura local, é prático e confortável e parece ser sinônimo de: “se é tradição, nada se pode fazer”. Mas é falso. Porto Alegre e parte do litoral rio-grandense foram colonizados por açorianos e naquelas plagas boi algum é torturado. Por outro lado, mesmo sem conhecer as Açores, não consigo acreditar que nelas se pratiquem tais vilezas. Se nelas a farra existisse, há muito teria sido denunciada pelos milhões de turistas nórdicos, alemães ou franceses que constituem seu suporte econômico.

A tradição, dizia, vem de bem mais longe. Vem do livro que está na base da cultura ocidental e que tanto sangue fez — e ainda faz — correr mundo afora. Não consigo ver como acabar, seja com a farra, seja com as corridas de touros, participando de uma cultura onde milhares de homens, todos os dias, bebem sangue. Não sei se o leitor sabe, mas quando o sacerdote consagra o vinho na missa, o vinho não é mais vinho. É sangue. E muita gente foi queimada e sangrada pela Igreja, por julgar que o vinho continuava sendo vinho, que a consagração era meramente simbólica. E se o leitor duvidar, pode perguntar até para o Leonardo Boff. Por mais avançadinho que se pretenda, aposto que não vai negar que bebe sangue todos os dias. É dogma, e fim de papo.

Enfim, voltando à farra, devo confessar que nela não é exatamente o sofrimento do boi o que mais me preocupa. E sim o que deve existir de hediondo e perverso nos seres que a praticam. Vistos de longe, até parecem gente. A tortura não degrada apenas o torturado, mas também o torturador. Na farra, no fundo, o ilhéu é o boi.

Joinville, A Notícia, 02.04.89


 

 

TOVARITCH GORBACHOV NAS ÍNDIAS OCIDENTAIS

 

Florianópolis — Falei outro dia de dois cidadãos de Forquilhinha, o Paulo e a Albertina. Paulo é o cardeal aquele que reza pedindo ao Pai para que sempre permaneça no poder o tirano que tanto sangue fez rolar em Cuba. Albertina é a minha faxineira e detesta sangue. Mas não consegue viver sem açúcar. Quanto a mim, de doce já me basta a vida. Desaparecesse o açúcar do mercado, em função de algum desses planos mágicos para combater a inflação, eu só ficaria sabendo da coisa pelo olhar súplice da Albertina. Pois sempre reservo uma ração para seu café. Em sua insciência, a coitada nem sonha que desde sempre o açúcar teve sabor de sangue. Mas não era disto que pretendia falar.

Carson Ritchie é um cidadão americano — ou talvez britânico, mas isto pouco importa — que um dia convidou alguns amigos a um bom restaurante. Jantaram à la farta e tudo transcorreu muito bem, pelo menos até o momento da dolorosa. Ritchie puxou a carteira e nela não encontrou dinheiro suficiente. Teve de apelar aos amigos que convidara para jantar. Passado o episódio, considerou que a história da alimentação em algo se parece com esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que aquilo que desfrutamos custa bem mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa. Terá sido talvez esta gafe o que levou Ritchie a escrever um belo ensaio, Food in Civilization — How History Has Been Affected by Human Tastes.

"O açúcar para adoçar o chá e o café europeu — escreve Ritchie — foi cultivado às custas da escravidão negra. Os peles vermelhas foram expulsos sem piedade das pradarias onde caçavam para que o homem branco pudesse cultivar trigo e milho, e seus búfalos foram exterminados para dar lugar a grandes rebanhos vacuns. Os escritores norte-americanos responsabilizaram as grandes multinacionais fruticultoras pelo caos das economias centro-americanas, construindo ferrovias ilegais, sonegando impostos, manipulando os baixos salários da mão-de-obra não qualificada (já por si suficientemente baixos), expropriando as terras dos camponeses e exaurindo a fertilidade do solo. E tudo isso para que os norte-americanos tivessem bananas como sobremesa!"

Ao debruçar-se sobre os efeitos dos alimentos sobre a História, Ritchie descobre que foram os conceitos errôneos de alimentação e não os corretos, os que demonstraram ter maior influência. "Crenças em que as especiarias aumentavam a virilidade, que o açúcar era essencial para a saúde, ou que para ser forte devia-se beber muita cerveja, condicionaram mais os destinos da humanidade que as autênticas e consolidadas leis da ciência da alimentação". Mas como convencer minha Albertina de que seu vício não passa de um hidrato de carbono sem nenhum valor alimentício? Se os europeus, para açucarar suas tardes, destruíram homens e culturas, na África e nas ditas Índias Ocidentais, como queixar-me de minha faxineira?

Já vi universitários e professores universitários se lambuzando com sorvetes, que além de açúcar contém algo mais nocivo, o sal. Pior ainda, já vi muitos destes senhores que, por uma questão de ofício possuem, ou deveriam possuir, noções de bem comer, dando sorvetes a seus filhos. Assim sendo, sempre tenho em casa um açucareiro cheio para saciar os instintos primários de Albertina e de eventuais formigas que já descobriram o mapa da mina. Sem falar que, quando o café é forte, tipo exportação, não me furto a ajuntar-lhe uma colherinha de veneno.

Pois este hidrato tão prestigiado, que no fundo só serve para produzir cáries, obesidade e doenças cardíacas, produziu mais estragos na trajetória do ser humano do que o próprio sal, que pelo menos tem a virtude de conservar as carnes, fator aparentemente banal mas decisivo na caminhada do Homo Sapiens, seja rumo ao combate, seja rumo a descobertas. E já fez levas de jovens do mundo todo partirem em revoadas rumo àquela ilha tanto amada por Paulo, Cardeal Arns, o conterrâneo de minha voraz consumidora de açúcar.

Pois a cana-de-açúcar deve ser colhida rapidamente quando madura e Castro, preocupado em seguir as diretrizes de Moscou, mandou para Angola a juventude cubana, onde, em vez de ceifar cana, ceifam vidas alheias e muitas vezes perdem as suas. Mas Estados Unidos, Europa, América Latina e mesmo o Brasil, pronto supriram a falta de mão-de-obra. Milhares de jovens, que jamais haviam visto de perto um canavial, bravamente acorreram, de machete em punho, em apoio à ditadura. Verdade que Cuba está passando de moda, o supra-sumo agora é colher café na Nicarágua.

A esta geração, costumo chamá-los de os Novos Cafeicultores. A cada época de colheita, filhinhos de papai da Europa democrática, e mesmo daqui, rumam à Manágua em alegres revoadas onde, sem precisar muita sorte, se pode fazer um rápido estágio na guerrilha, com possibilidades de pós-graduação na Líbia. Mas do que era mesmo que eu falava? Ah, do açúcar.

Foi introduzido no mundo mediterrâneo por Dario, o rei dos persas, trazido da Índia após suas conquistas por lá. Difundiu-se pela Europa e passou ao Novo Mundo graças aos colonizadores espanhóis. Hernán Cortez introduziu a cana-de-açúcar no México. O Caribe proporcionava ao açúcar o clima mais adequado que seu próprio lugar de origem, a Índia, pois lá chovia muito mais. Acontece que os espanhóis jamais iriam trabalhar se encontrassem alguém que o fizesse por eles.

A tarefa foi delegada, se assim se pode dizer, aos índios caribes e arawaks, culturas que logo foram exterminadas. Tendo de buscar mão-de-obra em outra parte, os colonizadores das "Índias Ocidentais" deram uma piscadela de olhos aos portugueses. Estes, tendo observado que os índios, não se adaptando ao trabalho duro, morriam na colheita de açúcar, os deixaram de lado e foram buscar escravos na África.

"Já que espanhóis e portugueses haviam começado a desenvolver suas plantações de cana com a colaboração dos escravos negros, todos os demais pensaram que tinham de seguir seu exemplo. Se assim não faziam, expunham-se a produzir um açúcar mais caro, sem saída no mercado. Resulta irônico comprovar a que ponto haviam chegado os primeiros colonos franceses e ingleses no Caribe: homens idealistas, freqüentemente perseguidos por suas crenças religiosas, e muitas vezes indivíduos de princípios elevados que queriam viver de uma forma mais livre da qual lhes era permitido viver na Europa". Pois estes senhores, diz-nos Ritchie, tornaram-se escravocratas nas Índias Ocidentais. Para satisfazer o paladar europeu.

Outro subproduto da cana, o rum, serviu para incrementar o tráfico de escravos. Quando surgem as primeiras campanhas abolicionistas, seus líderes implantam o primeiro boicote ao comércio infame, adoçando o café com nata em vez de açúcar, e pedindo conhaque francês em lugar de rum. Para ajudá-los a propagar suas idéias, lady Henderson, comerciante em Londres, vende açucareiros com gravado em letras douradas: "Açúcar das Índias Orientais, não produzido por escravos".

Falar nisso, sei lá porquê, lembrei uma historinha que li recentemente. Uma galinha surge nas ruas de Havana e é perseguida por um bando de cubanos famintos. A galinha descobre um bueiro e nele se esconde. Em seguida, um ovo surge rolando na esquina e é logo perseguido. A galinha o chama para seu esconderijo. Aparece então na calçada um filé. Antevendo o perigo, a galinha e o ovo chamam o filé para o esconderijo. Mas o filé, sem se apressar, responde calmamente: "não se preocupem, não há nenhum problema. A mim, eles não reconhecem mais".

Confesso não saber porque me ocorreu a anedota. Enfim, falava de comida e civilização. Em verdade, não era disto que pretendia falar. Em verdade, pretendia comentar a visita do líder soviético Mikhail Gorbachov à Cuba de Castro. Vai ver que é por isso que lembrei do filé. Pois os cubanos estão vivendo a nível de fome, enquanto Castro se dá ao luxo de mandar soldados para a África e exportar sua "revolução" para a América Latina. Com todo seu messianismo, o Líder Máximo não conseguiu livrar seu feudo da fase da monocultura. Cuba, hoje, só subsiste graças aos cinco bilhões de dólares anuais fornecidos por Moscou. Trocados por açúcar vendido por preço acima da cotação de mercado.

Pouco entendo de protocolo, mas imagino que Castro oferecerá um café a Mikhail e Raíssa. Seria bom ver com que tipo de açúcar tovaritch Gorbachov adoça o seu, se com o açúcar de homens livres ou com o açúcar da ilha.

Joinville, A Notícia, 09.04.89


 

 

LÁ!

 

Florianópolis — Lá! Lá onde nos bares não há cerveja e quando cerveja há, sempre está morna; onde todos falam baixinho, temendo que ao lado o vizinho pertença à polícia; onde em um restaurante se espera duas horas na fila para se comer um frango com fritas, isso quando não falta nem frango nem fritas; onde o garçom lhe joga o prato na cara julgando estar prestando um favor; onde os restaurantes de luxo, se de luxo se pode falar, são proibidos ao cidadão comum e somente acessíveis ai turista com dólares; onde só o dólar compra, nas berioskas, o que de melhor o Ocidente oferece; onde a moeda local compra menos que um cruzado-louvado-seja Machado; e mesmo se algo comprasse, pouco ou nada há a comprar. Lá!

Lá onde telefones são grampeados e uma ligação interurbana exige três ou quatro horas de espera; onde pesquisadores estrangeiros têm microfones ocultos em seus quartos; onde as máquinas de xerox são proibidas ao cidadão e as de escrever devem ser registradas na polícia; onde para se fazer um xerox se necessita a assinatura de dez burocratas; onde livros estrangeiros são proibidos de entrar e os nacionais são proibidos de sair; onde nas bancas de jornais não há nem sombra de imprensa ocidental; onde há um diário oficial que atende pelo pomposo nome de A Verdade e pouco publica além de mentiras; onde jornalista fez do medo uma segunda natureza e só se permite contestar o Estado quando o Estado admite ser contestado; onde criticar o poder pode render alguns anos de Sibéria. Lá!

Lá, de onde é proibido sair e de onde quem sai não volta mais, ou só volta para não expor a represálias os filhos mantidos como reféns; onde para viajar de uma cidade a outra é preciso passaporte; onde trocar de cidade não está ao alcance de qualquer cidadão; onde, na capital “onde faltam menos coisas”, cada moscovita dispõe de cinco metros quadrados para habitar; onde os jovens casam, não por casar, mas postular o direito de, após cinco ou dez anos, obter dez metros quadrados fora da casa paterna; onde um grupo de atletas só vai ao Exterior cercado por anjos da guarda; onde uma orquestra, em excursão pelo Ocidente, ao voltar vira quarteto; onde entrar em hotéis internacionais é proibido ao cidadão comum; onde falar com um turista é gesto altamente suspeito e passível de imediata interrogação policial. Lá!

Lá, onde as caixas de correspondência não têm aberturas, para que nenhuma mensagem passe de uma pessoa a outra a não ser por intermédio do carteiro; onde todo porteiro tem por função vigiar quem visita quem em um edifício; onde quem quer que detenha uma parcelinha de poder esmaga quem tem menos ou não tem nenhuma; onde é proibido a quem quer que entre no país portar uma carta fechada; onde, para um turista, é impossível escolher um hotel que lhe agrade; onde, para o visitante, são impostas previamente datas e itinerários, e ai de quem deles fugir; onde o horário de partida de um trem é objeto de apostas e o de chegada é segredo do maquinista; lá, onde casais alugam táxis para fazer amor enquanto o táxi roda, já que outros lugares não há. Lá!

Lá naquelas plagas que Graciliano Ramos e Jorge Amado tanto amaram; naquela Nova Jerusalém para onde rumaram milhares de intelectuais deste século; naquelas estepes onde milhões de kulaks foram exterminados pelo Paizinho dos Povos; naqueles gulags onde foram explorados, torturados e massacrados os milhões de soviéticos que ousaram opor-se ao Paizinho, ao qual Amado dedicou um terno e amoroso livro, idilicamente intitulado O Mundo da Paz; naqueles países onde sindicatos e partidos políticos são proibidos e dissidentes são calados; naquela cultura onde liberdade é palavra já sem sentido, exceto quando sinônima de dizer sim. Lá!

Lá naquelas terras que tantos escritores e artistas tanto louvaram, mas nelas jamais ficaram; naquele paraíso em prosa e verso cantado, cercado por cães, metralhadoras e arame farpado, não para que nele ninguém entre, mas para que dele ninguém saia e não volte; naquele mundo da paz que em nome da paz invade seus vizinhos; naquele universo fechado onde o lucro é pecado e a economia um poço de águas paradas; naquele outro lado do Muro, onde cidadãos, buscando a liberdade, enfrentam guardas, cães, metralhadoras, arames farpados e campos minados. Lá!

Lá naquelas praias onde veleiros só existem em maquete e manual de navegação à vela é livro subversivo; onde guardas de metralhadoras com baionetas caladas zelam para que os autóctones não falem com estrangeiros e onde navios ao largo despertam os nativos com alegres canhoneios, para insinuar que se vive em guerra permanente; naquelas ilhas piscosas, onde pescar é proibido, pois quem tem barco vai a Miami; onde lagosta é exportada ao satânico mundo capitalista, enquanto os ilhéus comem macarrão com ketchup, isto quando têm a ventura de encontrar os dois; onde um ditador de barbas brancas, há trinta anos no poder, proíbe qualquer plebiscito, eleição ou livre manifestação do pensamento e, apesar de tudo, continua sendo caitituado pelas esquerdas da América latina; naquela ilha tanto amada por Chico Buarque e Caetano Veloso, mas na qual nenhum dois gostaria de morar. Lá!

Lá onde Shakespeare, Nietzsche, Kafka, Orwell, Koestler, Sartre, Camus, Ernesto Sábato, Vargas Llosa, entre outros, estão proibidos; onde só existe uma editora que só edita o que o Estado quer; onde computador deve ser escondido debaixo da cama, e impressora , nem sonhar; onde tratamentos dentários são feitos sem anestesia e papel higiênico é privilégio da Nomenklatura; onde você não pode escolher um modelo de óculos ou número de sapatos; onde os absorventes higiênicos são tamanho único e vire-se como puder. Lá!

Lá, onde o álcool é proibido e sem nele afogar-se é difícil viver; onde o açúcar vale ouro pois dele pode-se fazer álcool; onde as colheitas apodrecem nos campos, pois a ninguém apetece colher qualquer coisa sem obter qualquer lucro; onde as prateleiras dos mercados são monótonas sucessões de coisas iguais; onde a prostituição oficialmente não existe, mas com uma calcinha de renda ou um par de meias de náilon você compra universitárias soberbas nos corredores dos hotéis internacionais; onde um prosaico par de jeans é símbolo de paraíso inacessível; onde as garrafas vazias de uísque são sinais de status e objeto de culto. Lá!

Lá, onde o cotidiano é tão duro que sequer sobra tempo a alguém para pensar em contestar o regime; onde falar sem peias é sempre um risco e pensar é sempre perigoso; onde o livre debate, a oposição de idéias e maneiras de ver o mundo é sequer concebível; onde o comer, longe de ser um prazer, constitui triste obrigação de ingerir coisas sem gosto para manter o esqueleto em pé; onde uma cervejinha gelada com lingüiça e farofa, viável em qualquer botequim de favela, é delírio só pensável nas ficções de um escritor de imaginação poderosa. Lá!

Lá, onde o século XIX ainda não chegou. Lá, onde viver só difere de estar morto porque os mortos, estes pelo menos não sofrem. Lá onde viajar é proibido e prospectos de agências de turismo são como contos de fadas. Lá, onde impera o medo e o futuro não existe. Lá, onde sonhar é crime. Nós queremos LULA LÁ!

Aqui, não.

Joinville, A Notícia, 30.04.89


 

 

NA CORDA BAMBA

 

Florianópolis — Comer todos os dias às margens do Atlântico cansa, não é verdade? Sem falar no eterno peixe-frito-com-pirão que nesta Ilha de Santa catarina passa por culinária, mais que a vontade de mudar de geografia nos impelem as ganas de degustar algo menos prosaico, tentar outros pratos às margens do Pacífico, por que não? Só que para isso é preciso voar e terrível é meu medo de voar. Para afastá-lo, me agarro em qualquer coisa, livro, garrafa ou mulher. Mal o avião decolou, aterrissei no primeiro volume das memórias de Arthur Koestler, La Corde Raide.

Ao sabor do acaso, caí em suas lembranças da Viena dos anos 20, na época da inflação austríaca, quando ninguém sobrevivia senão às custas de expedientes, quando respeitáveis donas de casa tinham de prostituir-se para equilibrar o orçamento familiar, onde, naquele sabá de feiticeiras, foi destruída a classe média da Europa Central e de onde emergiram ideologias totalitárias: “era o começo do fim da vida civilizada ao longo do Danúbio e ao leste do Reno”.

Koestler nos fala de uma pendenga judicial envolvendo seu pai, causa perdida em função da corrupção dos juizes, já que na época o salário mensal de um magistrado alcançava o preço de uma libra de manteiga, ou quase isso. Os juizes, escreve Koestler, “eram apenas um pouco mais difíceis de serem comprados que suas mulheres ou filhas nos bares da Kärntnerstrasse”. Considerando que eu saía de um Brasil com uma inflação — escamoteada, diga-se de passagem — de uns dez por cento ao mês, e teria como final de viagem a Argentina, onde a inflação já alcançava dois por cento ao dia, minha mania de refugiar-me em um livro resultava mais inquietante que o próprio vôo.

Antes de continuar esta viagem, melhor pôr-lhe uma data. Eu viajava nos primeiros dias de maio. Hoje, estima-se a nossa inflação em dezesseis por cento ao mês, e a de nuestros hermanos ninguém sabe a quantas anda. Angustiado com o panorama traçado por Koestler, preferi enfrentar o vôo e tentar comunicar-me com o universo circunjacente.

O avião estava assim de gaúchos e paulistas, gaúchos de Porto Alegre e paulistas da capital, é bom salientar. E que acontece quando porto-alegrenses e paulistanos se encontram a dez mil metros de altura? O assunto é um só, as desgraças do PT, tema que rendeu muita charla a viagem toda. Descendo, mais tarde, rumo à Patagônia, não havia quem não se dobrasse junto à janela, tentando situar o vulcão mais adequado onde jogar a Erundina, quem sabe o Osorno, talvez o Chalbuco. Ou mesmo o Puntiagudo. Proposições mais eivadas de humanismo sugeriam exilá-la na ilha de Chiloé, “os nordestinos não agüentam o frio”. Eu, que nada tinha a ver com os dramas dos paulistanos, sei por que lembrei Euclides da Cunha:

— O nordestino é, antes de tudo, um forte. Sou mais Punta Arenas.

O diálogo transcorria assim ameno, todo mundo buscando soluções mais amenas para Erundina, a tal ponto que acabei descontraindo. A meu lado havia uma chilena. Fechei Koestler e tentei fechar meus ouvidos ao debate tupiniquim, afinal enfrentava meu medo de voar justo para afastar-me de meu país e, para afastar meu medo, que mais não fosse, puxei conversa:

— E Pinochet?

Mal ouviu nominar o tirano, os olhos da chilena se encheram de justa cólera. E de medo, afinal voltava ao Chile. Ao saber-me brasileiro, ousou confiar:

— No Chile, nós odiamos Pinochet.

O Boeing continuava adejando rumo ao Oeste, ao longe já se divisava as neves da Cordilheira, atrás de mim alguém comentou que o dólar na Argentina, de 83 austrais passara a 104, assim de um dia para o outro. Com aquela sensação de que, uma vez metade da viagem feita, metade do perigo havia passado, fui relaxando e passei a perscrutar meu meio ambiente.

Não poucos turistas era jovens bancários do Banco do Brasil em greve e, como acho que vou acabar voltando ao assunto, passo a abreviá-los por JBBBG. “Não é que a gente seja a favor da greve” — dizia um JBBBG catarinense — mas a pressão dos petistas é tal que temos de cair fora”. Maravilha de queda, pensei com meus botões, nada mau trocar de oceano para fugir a pressões sindicais. Entendi então parte do charme petista: seus militantes, com sua agressividade, forçam zelosos funcionários a apoiar a greve do outro lado dos Andes.

Esta temática contaminou a viagem toda, o assunto dominante nos bares e boates de Bariloche — permita-me o leitor antecipar escalas — era, entre mesas repletas de trutas, veados e javalis, o problema da greve no Banco do Brasil. Terá terminado ou não? Foram ou não foram atendidas nossas reivindicações? Reivindicações, a meu ver, fundamentalmente justas: que horror um JBBBG, sem sequer ter curso superior, ganhar apenas o suficiente para curtir sua greve na Patagônia! Salário justo seria o que lhe permitisse curti-la nos Alpes ou Pirineus, em Roma ou Paris.

Já mais relaxado, consciente de causas maiores que meu medo de voar estavam em jogo, fui contaminado pelo desprazer de viajar quando meu país vivia uma crise constitucional, sendo incerto o resultado das justas reivindicações sindicais. Uma eterna angústia perpassava os olhos dos jovens bancários, não só durante o sobrevôo da cordilheira, como também ao navegar pela paisagem de sonho dos lagos de Todos los Santos e Nahuel Huapi, sob a presença imponente do Osorno: será que a greve acabou?

Em Florianópolis, contou-me um desses reacionários sem cura que um caixa do BB, mal tendo curso secundário, ganhava o dobro de um professor titular na universidade, com doutorado e vinte ou mais anos de carreira. Tentando negar as calúnias do direitista abominável, perguntei a um de meus parceiros de vôo qual era seu salário.

— Estás invadindo minha privacidade — reagiu o bancário. Isso só a mim diz respeito. No máximo, à Receita Federal.

Enfiei a viola no saco e voltei-me para a chilena. Além de seu perfil contra a escotilha, crescia, imponente, a Cordilheira.

— Pinochet? Um canalha. Empobreceu as elites do país, com essa piada populista de tributar violentamente as grandes fortunas. Por isso teve 44% de votos no plebiscito, coisa que nem Mitterrand fez no primeiro turno. Com o dinheiro da gente, deu casas aos vagabundos das favelas de Santiago e Valparaíso. Coisa de comunista, isso de tributar os ricos e dar aos pobres, logo aos que nada produzem.

O clima era de absoluta insatisfação naquele Boeing que transportava injustiçados turistas de um oceano a outro, revolta que nem mesmo as generosas doses de Chivas ou Ballantines conseguiam atenuar. Meu medo de voar reduzia-se cada vez mais a suas verdadeiras dimensões, preocupação egoísta com a própria vida, quando no avião as preocupações eram antes de tudo sociais. Que percentual de aumento a classe levará na greve? Verdade que por setecentos dólares se pode comprar peles chiquérrimas em Buenos Aires? E o austral, será que vai continuar caindo?

Angústias, a meu ver, perfeitamente compreensíveis no Terceiro Mundo, pois se estou viajando sem saber qual é meu atual salário, rumo a outro país de moeda que se esfarela de hora em hora, como posso saber quanto realmente paguei por um vison ou chinchila?

O austral, efetivamente, caiu ainda mais, nos dias seguintes o dólar estava cotado a 170, 200 e mesmo 250 austrais, o que permitia uma refeição no requintado Clarks, de Buenos Aires, por cinco dólares por cabeça, o que mal paga uma sola de sapato de codinome filé, sem vinho algum, nos restaurantes da Santa e Bela Catarina. A inflação acabaria chegando a 4% ao dia, o que daria, segundo os especialistas, um índice de 24.000% ao ano. Nesta altura do vôo, sei lá o que mais me fazia medo, se Koestler ou o Boeing. Mas é nisso que dá escrever sobre coisas passadas, na verdade ainda não cheguei a Santiago e já falo da Argentina. O fato é que esta angústia corroía a todos, pairava no ar um certo arrière-goût a almejas, piúres, locos e picorocos.

Estamos sobre a Cordilheira. As comparações são inevitáveis, não falta quem evoque os Alpes ou os Urais, evidência de que não navego com marinheiros de primeira viagem. Um gaúcho me fez emergir de minhas elucubrações:

— O senhor também é criador?

Enfim, uma alma gêmea. Criador sempre fui, desde que rabisquei minhas primeiras ficções. Só não sabia que tal profissão de fé se me estampara no rosto, ou talvez o gaúcho me conhecesse de peleias passadas, o fato é que ser reconhecido sobre os Andes constituía uma gentil massagem a meu ego. Quis saber então qual a linha de produção de meu interlocutor:

— Hereford, Angus-Abeerden.

Voltei a Koestler. Dias depois, nas cadeirinhas suspensas de Bariloche, numa Argentina à beira da hiperinflação, eu voltaria a rever meus colegas de vôo, em monótona sucessão, os cabos de aço girando e fazendeiros e bancários passando. Lá embaixo, os lagos andinos e mais ao leste, apenas intuído, um Brasil em crise. Mas isto aconteceu mais adiante, bem depois daquele momento bendito em que as rodas encontram a pista e o piloto reverte as turbinas. Estou em Santiago.

Alívio. Quinze graus, céu de anil. Um por cento, a inflação de abril.

Joinville, A Notícia, 11.06.89


 

 

GIN DISSE ASSIM? AMÉM!

 

Florianópolis — Voltando da Patagônia, tive a grata surpresa de ler uma saraivada de artigos xingando singela crônica que publiquei neste Anexo, tendo “Lá!” como título, pois para lá eu mandava os arautos do totalitarismo. Sem falar que soube que seis sacerdotes da região de Joinville, em vez de contestar-me nas páginas sempre abertas deste jornal, queriam, através de um abaixo-assinado, nada mais nada menos do que privar-me de voz.

Lástima que faltou a assinatura do bispo. A estes senhores, meus agradecimentos, pois a mim me agrada lançar idéias que confundem, já que de certezas estamos fartos. Adoro irritar aiatolás, sem falar que sei que tenho, daqui pela frente, seis fiéis leitores a mais destas mal-traçadas. Mas o que mais me surpreendeu não foi a previsível reação do obscurantismo. Foi, isto sim, o ulular das esquerdas. Só porque, em “Lá!”, manifestei minha ojeriza a regimes ditatoriais. Meu pecado parece ter sido falar mal do mundo socialista e, particularmente, da Disneylândia das Esquerdas, o gulag tropical instalado por Castro no Caribe, Cuba, a intocável.

Entrecruzaram-se artigos louvando o bem-estar cubano e as mazelas nossas, automaticamente atribuídas ao capitalismo. Para responder a meus oponentes, teria de escrever três ou quatro ensaios, tantas são as objeções destes senhores que, vivendo em um país onde uma cervejinha gelada não é privilégio da Nomenklatura, louvam sistemas pelos quais talvez passaram mas onde certamente jamais viveriam, tanto que cá estão. Tal atitude traz-me à lembrança discussão que tive na Hauptbahnhof de Berlim Ocidental, com duas amigas que lá moravam, sempre louvando o regime do outro lado do Muro. Detentoras de ações de sólidas empresas brasileiras, insistiam em louvar o regime do lado de lá. Mas por que vocês não vão então morar lá? — quis saber.

A fronteira estava ali, a poucos minutos de distância, bastava tomar um trem para entrar no paraíso, eu jamais vira duas crentes tão perto do céu. “Ah! Mas acontece que morar lá não é fácil”, resmungaram as duas, meio sem jeito. Em suma, paraíso onde ninguém quer viver e, de onde, os que lá vivem, não podem sair, não me convence. Raros, para não dizer raríssimos, foram os exilados que se refugiaram em Havana ou Moscou. A maioria preferiu as delícias capitalistas de Paris, Berlim ou Estocolmo.

Em meus dias de Europa, assisti palestras de exilados que afirmavam só voltar ao Brasil de metralhadora em punho. Mal saiu a anistia, voltaram sem metralhadora alguma, e chorando. Diga-se o que quiser do Brasil, não é fácil conter as lágrimas, após uma prolongada estada no Exterior, quando avistamos o Corcovado, apesar daquele Cristo horrendo estaqueado lá em cima. Digam o que quiserem os defensores de novas Jerusaléns: a qualquer pessoa de bom senso não convence a imagem de sociedades tão perfeitas que proíbem seus cidadãos de delas sair.

Não vou mergulhar no mar de depoimentos e bibliografias de pessoas que de lá saíram, sem falar nos crentes que para lá foram e de lá voltaram sem fé, sem falar no noticiário dos “jornais” — se é que press-release é jornalismo — que desses países nos chegam. Entrar nesta discussão é repetir meio século de testemunhos. Prefiro um atalho: derrubem o Muro de Berlim, concedam a cada cidadão destes países o direito a passaporte e a possibilidade de usá-lo quando bem entendam.

Os brasileiros estão fazendo turismo em massa em Cuba, não é verdade? Não só em Cuba, como pelos Estados Unidos e Europa. Turismo é comércio de ida-e-volta, não é verdade? Quando veremos, então, cidadãos cubanos circulando livremente pelo Brasil e pelo mundo? Quando veremos o Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Le Monde, El País, distribuídos nas ruas de Havana? Mais ainda: quando veremos o Granma distribuído no Brasil? Não há restrição alguma no atual Brasil à imprensa cubana, e se o Granma aqui não está, será por certo por pudor dos guardiães do gulag caribenho, que não ousam exibir como jornalismo um diário oficial.

Não quero repetir argumentos que repito há mais de décadas. Mais ainda: não quero repetir as denúncias de Panaïti Istrati, Camus, Gide, os precursores. Cansa-me falar da affaire Kravchenko, de 1949. Cansa-me repetir as denúncias de Kruschov no XX Congresso. Se meus contestadores tivessem lido com atenção John W. F. Dulles — copiosamente documentado, como diz Gilson Pereira — lembrariam que Stalin enviou, para comunizar o Brasil, três devotos, a saber: Luís Carlos Prestes, de cognome Garoto; o argentino Rodolfo Ghioldi, o Índio, e o alemão Artur Ernst Ewert, o Negro. Os membros do Partido passaram a designá-los por seus codinomes e, quando a eles se referiam, diziam: “GIN disse isso, GIN pensa assim”.

Sem falar em Olga Benário, cidadã berlinense e oficial do Exército Vermelho, que desembarcou com Prestes — consta que após tê-lo desvirginado — aqui na praia do Campeche. As esquerdas até hoje condenam Vargas por tê-la deportado para a Alemanha. Acontece que mais tarde Prestes apoiou o homem que enviou sua mulher à morte, sem falar que condenou à morte Elza Fernandes. Por favor, que Gorbachov abra os arquivos de Moscou, só depois começarei a pensar em transparência. Se GIN continua pensando assim, há muito deixei de ser fanático.

É triste, mas ao mesmo tempo compreensível, ver que, se a Europa já renegou o stalinismo, os latino-americanos ainda o adotam como conduta. E os tempos são propícios. A múmia de Joseph Vissarionovitch Djugatchivili deve estar se remoendo de inveja com os funerais sangrentos do aiatolá Khomeiny. Cansei, disse, não quero voltar a esta discussão já exaurida na Europa. Só quero, em meio à saraivada das carpideiras, salientar dois itens.

Primeiro, meu artigo nada tem a ver com o macartismo dos anos 50, para começar nessa época eu vivia em Dom Pedrito, longe de qualquer debate do gênero. Todos os testemunhos que constituem o corpo de “Lá!” partem, ou de minha experiência pessoal em alguns países comunistas, ou de depoimentos que recebi de jovens que fogem daquele mundo, e os últimos depoimentos são de dois meses atrás. Bem que gostaria, não apenas de revelar minhas fontes, como também de entrevistá-las. Mas como entrevistar alguém que deixa reféns no país do qual foge? Muito me alegraria saber que tudo que escrevi naquela crônica são águas passadas, coisas dos anos 50. Acontece que não são.

A meus interlocutores, que tanto defendem a utopia comunista, sugiro que para lá viagem. Mas, por favor, não em excursões. Que viajem sozinhos, como se viaja em qualquer país da Europa de cá, podendo escolher hotel, restaurantes, itinerários, anfitriões, amigos, interlocutores. Digo mais: que tentem viver dois ou três anos em tais regimes e, se o conseguirem, depois me contem se ao descer neste mundo podre ocidental, não lhes acomete a vontade de curvar-se e beijar a terra, como faz o João Polaco por onde anda.

Segundo: se alguém denuncia o totalitarismo nos países comunistas, não falta quem evoque a miséria do lado de cá, no caso, a do Brasil. Certo, miséria existe em meu país, urge erradicá-la e, o que é pior, dentro das atuais propostas políticas, não vejo como erradicá-la. Mas há uma diferença: se um cidadão qualquer, habitante de qualquer favela, quiser instalar sua carrocinha de cachorro-quente, jamais será considerado um inimigo da sociedade perfeita. E se, com o lucro de sua carrocinha, quiser viajar, seja a Rivera ou Assunção, seja a Buenos Aires ou Paris, autoridade alguma lhe barrará a saída. Não estou falando de utopias: quem gere uma carrocinha de cachorro-quente hoje, neste Brasil, pode ganhar bem mais que um jornalista ou professor universitário. Diga-se o que quiser deste Brasil e seus problemas. Mas dele não é proibido sair. Xingar o presidente é rotina, denunciar a corrupção não leva à Sibéria. Verdade que tais denúncias geralmente têm caído no vazio, mas o problema já não é mais da alçada da imprensa. Este debate nesta página seria inconcebível em qualquer das sociedades defendidas por meus contestadores.

Viajem, meninos, viajem. Viajem e comparem. Mas, por favor, repito, jamais em excursões organizadas. Viajem sem mordomias e sem preconceitos. Viajar a um país só não vale. Um nordestino, por exemplo, que acha que chinelo de dedo é sapato, certamente se deslumbrará com as botas dos moscovitas. O paraíso é lá, onde todo mundo anda calçado. Acontece que em um inverno lá deles, andar descalço é suicídio. No Nordeste, passa por conforto. Aos que defendem regimes que não conhecem, ou que, se os conhecem, conhecem-nos como turistas, sugiro conhecer outros países e sistemas. O homem só valora comparando.

Tenho um amigo que bordejou os países socialistas, sem jamais neles penetrar, com medo de ver feita em cacos sua utopia de juventude. Em Berlim Ocidental, olhou de binóculos o paraíso. Mas não ousou atravessar o Muro. Hoje, tenho assistido o fenômeno inverso. Os peregrinos que rumam a Cuba ou Nicarágua, em geral recusam-se a visitar o Chile ou Argentina, bem mais próximos e baratos e livres, temendo ter de renunciar a seus dogmas. Pertencem a uma geração de jovens envelhecidos antes da idade normal do fenômeno, como diria Machado.

“O socialismo, para Cristaldo, é um inferno”. Este tipo de socialismo para mim é, de fato, um inferno. Verdade que lá as pessoas riem e choram, cantam e dançam, bebem e trabalham, como sói acontecer em todo e qualquer país, por pobre que seja. Mas a opressão paira no ar, podemos respirá-la mal se atravessa a fronteira. Isto não li na imprensa “burguesa e comprometida”. Isto respirei nos países por onde andei. E se o leitor quiser ter uma pálida idéia do que o espera por lá, que passe em uma agência qualquer de turismo e peça a seu agente: olha, preciso estar em Roma dentro de 24 horas. Se houver vaga em avião, pode chegar lá até mesmo antes. Mas digamos que o leitor mudou de idéia, precisa estar em Moscou na semana que vem. E depois, por favor, me conte o que o agente lhe disse. Totalitarismo, mesmo de longe, fede.

Viajem, velhotes. Viajem e comparem e depois me falem. Quanto ao resto, perguntou-me um dia minha filha o que era o infinito. Em seus seis anos, claro que não falava da noção matemática de infinito. Seu cérebro já começava a ser invadido pelo obscurantismo papista, pois toda escola, mesmo a leiga, está por ele contaminado. Enfim, a pergunta havia sido feita e uma resposta era esperada. Tentei uma ao alcance de sua compreensão, algo que fosse tangível, palpável:

— Infinito, minha filha, é a burrice das esquerdas.

Joinville, A Notícia, 18.06.89


 

 

DE COMO PASSEI FOME NA ARGENTINA

 

Florianópolis — Uma foto vale mil palavras, não é verdade? Talvez sim, talvez não. Ousaria arriscar que uma foto pode até mesmo não valer nada. Por exemplo, aquela foto famosa dos anos 70, a de um oficial vietnamita estourando os miolos de um vietcong. “Disparei ao mesmo tempo que o militar”, disparou certa vez o fotógrafo. Muita tinta rolou sobre o fato, eu mesmo dediquei-lhe não poucas linhas, denunciando a barbárie da guerra. Há coisa de alguns anos, li entrevista com o autor da foto, onde este declarava ignorar o que acontecia no momento e só bem mais tarde soube que o vietcong executado havia assassinado barbaramente, minutos antes, seis ou sete pessoas. Confessava-se arrependido de ter posto a foto em circulação. Mas o trabalho da mídia já fora feito. No mundo só faltou pedir-se a canonização do terrorista justiçado.

Pois outra foto semelhante está ganhando espaço na imprensa internacional, foto feita pouco antes do sangrento massacre na praça da Paz Celestial, em Pequim. A propósito, pena que Che Guevara não esteja vivo nestes dias, bem que gostaria de vê-lo opinar sobre o fato, já que considerava o regime comunista chinês seu modelo de sociedade ideal. Sem falar no cinismo dos porta-vozes do Partido. Quando todas as estimativas da imprensa internacional eram de três mil mortos, os dirigentes chineses falaram em apenas trezentos. Diminuíram mais tarde esse número para duzentos e, outro dia, na televisão, juro que vi, uma fonte oficial afirmando que não havia morrido ninguém.

Do jeito em que vão as coisas, como observou um jornalista, vai ver que nasceram pessoas na praça Tienamen e os chineses talvez tenham sido presos por violar a lei que proíbe a todo casal mais de um filho. E por qual fator se multiplicarão estes três mil mortos? Na chamada Revolução Cultural, falou-se inicialmente em milhares de mortos. Hoje, os analistas menos pessimistas aventam a cifra de vinte milhões. Acontece que quando os cadáveres atingem a casa dos milhões, contá-los se torna inviável. Enfim, em um país de um bilhão de habitantes, não serão minorias de agitadores, ainda que sejam meros milhões, que perturbarão a paz celestial da democracia chinesa, tão ao gosto de nosso asmático guerrilheiro argentino.

Mas falava de fotos. Invadiu nestes dias a primeira página dos jornais do mundo todo a foto idiota, digo, dramática, de um solitário jovem chinês interceptando com seu corpo uma coluna de tanques. Em um ímpeto datilográfico, eu já ia escrevendo foto idiota. Acontece que as fotos não são idiotas, são apenas fotos. Idiota é a interpretação. Sem falar que a foto, antes de ser foto, era filme. As televisões do mundo todo — exceto a chinesa, é claro — mostraram o rapaz subindo à torre do tanque e dela descendo e, depois, o tanque tentando desviá-lo. Cá no Brasil, já começaram a espoucar as primeiras crônicas louvando o gesto heróico do anônimo resistente. Quanto a mim, bem que gostaria de louvar sua coragem. Mas não consigo entender heroísmo como sinônimo de estupidez.

Tudo o que o homem faz tem sentido, e isto não parece ter percebido o novo e anônimo mito da década que vem. Penso não exagerar em falar em mito, tenho certeza de que a foto e o filme se repetirão ad nauseam na imprensa futura. Tanques não foram concebidos apenas para desfiles. Assim fosse, uma escola de samba sairia bem mais barato e daria mais prazer aos olhos. Tanques só podem ser enfrentados por tanques, bazucas ou bombardeios. Coquetel Molotoff pode até ter certa eficácia, mas no fundo não passa de saudosismo de anarquista ingênuo.

Opor jovens a tanques foi o que tentaram certos senhores no Brasil, eu inclusive fui convidado a participar da loucura. Em 64, estudávamos as melhores fórmulas de como deter um tanque. Como me parecia ser gesto suicida lutar de bodoque contra mastodontes, recusei-me ao suicídio. O mesmo não aconteceu com muitos companheiros de geração. Os sobreviventes, hoje instalados em altos marajanatos da “Nova República”, ostentam com orgulho em seus currículos o delírio que causou a morte e a tortura de centenas de jovens mais ingênuos e entusiastas. Quantos estudantes terão tentado imitar o “heróico” gesto do anônimo “herói” da praça da Paz Celestial? Quantos, jamais saberemos. Só sabemos que foram soterrados sob as lagartas dos tanques e tiveram seus corpos incinerados em meio ao lixo. Tienamen faz jus a seu nome. Hoje, nela impera, a paz dos cemitérios.

Mas falava de fotos. Fomos bombardeados, nas últimas semanas, por dezenas de fotos e filmes, vindos da Argentina, mostrando filas de gente com fome, supermercados saqueados e vitrines em estilhaços. Tais fotos e filmes, somadas à queda brutal do austral e a uma inflação projetada de 24 mil por cento ao ano, dão-nos a idéia de um país falido. O telespectador tupiniquim, ante tal quadro, é até capaz de sorrir com seus botões: cá no Brasil, só estão faltando leite, filé e azeite. Acontece que, entre fatos e fotos, há mais distância do que sonha nossa vã fotografia.

Entrei na Argentina no dia 14 de maio, data das eleições que levaram ao poder, sem necessidade de segundo turno, o peronista Carlos Menem. Diga-se de passagem, lá tive de enfrentar minha única restrição aos regimes democráticos: a cada cinco ou seis anos, a gente fica um dia sem beber. Estava em Bariloche e, para beber, o melhor que havia era água. Macaco velho, conhecedor dessas esporádicas falhas da democracia, no Chile eu me muniria de uma botellita de bom vinho. Às oito da noite, os peronistas com seus bumbos tomaram as ruas celebrando a vitória e pedindo a renúncia de Alfonsín. Dia seguinte, acelerava-se a queda do austral. Nos supermercados, os argentinos olhavam os novos preços com desalento.

Dia 19 de maio, guiado por um portenho apaixonado por sua cidade, percorri a noite buenairense. “Quero mostrar-te as diferentes faces da crise”, disse-me. Jantamos na Costanera, onde os restaurantes se sucedem, um ao lado do outro. A fome ali era uma realidade palpável: apesar dos salões imensos com duzentas ou mais mesas, os argentinos se amontoavam em filas esperando uma mesa vaga. Giramos depois pelos cafés de Belgrano, Palermo e La Recoleta. Passava de meia-noite e Buenos Aires nada ficava a dever a Madri numa noite de verão. Publiquem os jornais as fotos que quiserem, mas ninguém me convence — como parecem pretender certos correspondentes — que a Argentina empobreceu do dia 19 do mês passado para cá.

Em Paris ou Nova York, todos os dias, milhares de pessoas entram em filas para receber comida de graça. Jamais vi fotos dessas filas, e isso que leio dois ou três jornais por dia. E mesmo que as visse, jamais me ocorreria pensar que a França ou os Estados Unidos passaram a integrar, do dia para a noite, o time do Terceiro Mundo. Da Argentina também nos chegaram fotos de saques em supermercados. Impossível negar a evidência de tais saques, se bem que me soa estranho ver pessoas famintas levando terminais de computadores para comer em casa.

Alfonsín decide então renunciar, passar o cargo a Menem antes da data prevista constitucionalmente. Não vemos mais nos jornais as filas de famintos nem as fotos de saques. De ontem para cá, a Argentina parece ter sido readmitida no clube dos países ricos. Por favor, me contem outra. Essa eu já conheço.

Pouco antes do carnaval de 87, um jornal madrilenho publicava, em duas páginas centrais, uma reportagem sobre São Paulo, “a capital da Aids”. Em foto de cinco colunas, um travesti soberbo exibia seus dotes. Lida a reportagem, o eventual candidato a turista tinha a impressão de que, mal aterrissasse em Cumbica, ou trancava a respiração ou estaria irremediavelmente contaminado.

Em julho do mesmo ano, a imprensa européia exibia em primeira página, depredação de trens no Rio e saques a supermercados no Nordeste. As manchetes eram mais ou menos unânimes: CAOS NO BRASIL, ou algo do gênero, como se Central do Brasil, no Rio, ou um supermercado em Recife, resumissem o clima do país todo. Uma amiga parisiense, que há horas tento arrastar ao Brasil, já andou pela Índia e pela China, mas tem arrepios ante a idéia de visitar-nos. Não acredita que possa caminhar pelas ruas de qualquer cidade, mesmo de dia, sem ser assaltada, violada ou contaminada pela peste. Uma foto, efetivamente, vale mais do que mil palavras.

Mas que a fome é uma realidade na Argentina, isto é fato incontestável e disso sou testemunha. A fome, eu a vivi, eu a sentia corroer-me as entranhas, enquanto esperava mesa para enfrentar aqueles filés imensos, concebidos para alimentar uma família, mas servidos para um só estômago. Não só passei fome como também sede, pois sede é o que nos resta após degustar um vinho seco sabendo à terra.

Nossos vizinhos vivem, efetivamente, um momento de crise. O padrão de vida do argentino — grandes fortunas à parte — baixou. “Vocês, no Brasil, estão vivendo muito melhor” — diziam-me, invariavelmente, taxistas, garçons, livreiros. E como convencer meu interlocutor de que se um dia, nós brasileiros, atingíssemos o atual nível de “pauperismo” da Argentina, poderíamos até mesmo andar de cabeça erguida?

Joinville, A Notícia, 25.06.89


 

 

GORBACHOV MAS NÃO MOLHA

 

Florianópolis — Maxim Gorki, o luxuoso transatlântico soviético, chocou-se com um iceberg a 300 quilômetros a oeste do arquipélago norueguês de Spitzbergen, no mar de Barents, é o que informam, para meu desconforto, as agências internacionais. Para meu desconforto porque há pouco escrevi crônica sobre a penúria endêmica — Nomenklatura à parte — do regime soviético. As manchetes da imprensa internacional constituíam um cabal desmentido às minhas calúnias imperialistas, particularmente nesta era gorbachoviana. Mergulhei com avidez na notícia, vai ver que só os membros da Nomenklatura faziam turismo pelo Ártico, com o que minha reputação estaria salva.

Acontece que na insensata nau não navegavam nem mesmo as elites soviéticas. Noves fora a tripulação, no Maxim Gorki viajavam nada menos que 551 alemães, em sua maioria idosos, e 16 passageiros de outras nacionalidades. Alemães ocidentais, bem entendido, já que os orientais, se a este luxo quisessem dar-se, teriam primeiro de vencer um muro protegido por cães, soldados com metralhadoras, arame farpado e terrenos minados. Sem falar, é claro, que o orgulho da marinha soviética jamais levaria a bordo cidadãos munidos de marcos da RDA, tão ou mais desmoralizados que nosso cruzado-louvado-seja-Machado.

Falar nisso, outro dia uma pesquisa feita em Porto Alegre escandalizava literatos, pois jovens diziam achar Machado um chato. Escândalo que constitui um duplo equívoco. Em primeiro lugar, Machado não é leitura para adolescentes. Em segundo, é um chato mesmo e a única coisa que me alegra em nossa inflação galopante é que, dentro em breve, sua efígie de medalhão deixará definitivamente de passar por minhas mãos. Mas falava do muro. Ou melhor, do Maxim Gorki, orgulho da frota soviética. Depois volto a Berlim.

Coisas da perestroika. Gorbachov mas não molha. Em uma ditadura socialista que proíbe seus cidadãos de dela sair, seus dirigentes põem a menina dos olhos de sua marinha a serviço de macróbios capitalistas. Marx deve estar se revirando na cova. Mas o que mais me surpreendeu no fato, é que Fernão de Magalhães, cinco séculos atrás, sem radar algum e com um grumete sonolento medindo a velocidade com uma ampulheta, havia atravessado o perigoso estreito que hoje leva seu nome, sem trombar com icebergs. Titanic, vá lá! Mas em pleno século XX, atropelar um iceberg distraído, é dose. A tripulação deve estar bêbada, pensei com minhas pedrinhas de gelo. Dia seguinte, nos jornais, não deu outra: 70 por cento da tripulação estava mais para lá do que pra cá. Enquanto esta moderna versão proletária do bateau ivre rimbaudiano continua encalhada nas neves do Ártico, volto com meus macróbios a Berlim.

Nasci em Santana do Livramento e não é por acaso que, em Ponche Verde, tenho um personagem santanense que perambula pelas ruas de Berlim. Em Livramento, pode-se almoçar em um país e tomar a sobremesa em outro, bastando para isso atravessar a rua. Poucos gaúchos — já nem falo de brasileiros — terão se dado conta da importância simbólica desta fronteira sempre aberta. Se um dia não for possível almoçar em Rivera e tomar o cafezinho em Livramento, ou vice-versa, algo de muito grave e triste terá ocorrido na América Latina. O muro de Berlim pode chocar qualquer homem livre, nascido em país onde seus cidadãos são livres. Mas choca ainda mais um santanense. Escrevia, em crônica passada, que toda e qualquer discussão sobre as utopias deveria ser antecedida, entre outras coisas, pela derrubada do muro. Gorbachov, sensível a este anseio de todo homem livre, afirma na mesma semana: “O muro não é eterno”.

Assim não fosse. Pois o muro, mais do que triste símbolo da barbárie contemporânea, é a sustentação armada das tiranias do Leste europeu. Jamais existiram duas Alemanhas. Jamais existiu uma Alemanha Oriental. Como escrevia há pouco Gilles Lapouge, há uma Hungria eterna, há uma Polônia eterna. Mas não há uma Alemanha Oriental eterna. Privada do alicerce comunista, ela afundaria.” A derrubada do Muro seria a morte da Alemanha Oriental e a emergência de uma nova potência na Europa, que reduziria França e Inglaterra a economias de segunda linha. De onde decorre que, ao lado das ditaduras de Cuba e da Romênia, a RDA é hostil a todo e qualquer aceno liberalizante de Gorbachov.

A propósito, na semana passada, o presidente da Alemanha Oriental apoiava publicamente o massacre da Praça da Paz Celestial. Entschuldigung Sie, bitte, perestroitchiski tovaritch Gorbachov, mas não será tão cedo, infelizmente, que os berlinenses gozarão da singela liberdade dos santanenses e riverenses, aos quais basta atravessar uma rua para abraçar um amigo ou tomar um café em outro país.

Mas falava do bêbado barco soviético abalroando inocentes icebergs em Spitzbergen. Tais cruzeiros, hoje em dia, são geralmente comprados por clientes em fim de vida, detentores de fortuna e ócio suficiente para tais luxos. Outro dia, ancorou cá na ilha, ao largo de Jurerê, o Ocean Princess, que fazia cruzeiro semelhante. Em um botequim de praia, encontrei uma jovem alemã que, ao descer do barco, fez com que a média de idade dos passageiros subisse mais que o dólar na Argentina nestes dias de Menem. É possível que no imaginário de algum cronista social, tais cruzeiros evoquem volúpias de palácios orientais. Mas bem outra é a realidade. Tais naus mais parecem um asilo flutuante repleto de argentários caquéticos.

E não seria eu a negar-lhes razão. Por que não morrer no mar? Em todo o caso, o Ocean Princess era um barco coerente. Içava bandeira capitalista e transportava autênticos milionários oriundos dos States. Já o Maxim Gorki, a meu ver, naufragou em suas dialéticas contradições, só solúveis no álcool. Tais navios carregam em seus porões um certo número de caixões, correspondentes, em geral, a um quinto do total de passageiros. Caixões de defunto, bem entendido, pois presume-se que vinte por cento dos turistas voltem ao lar de pés juntos, isso se seus cadáveres não forem jogados ao mar.

Na Inglaterra, tive a ocasião de assistir a uma cena tétrica. O Eugenio Costa atracara em Southampton, para apanhar quatrocentos membros do clube Saga. Até aí, nada demais. Acontece que o tal de clube só aceitava sócios com mais 65 anos. Como eu estava na ponte mais alta do barco, tive o privilégio — ou talvez o horror — de ver as quatrocentas velhinhas, ao som de uma banda, entrando pela proa, ao mesmo tempo que oitenta esquifes eram embarcados pela popa. Ocorreu-me então a atroz imagem de um café da manhã no decorrer do cruzeiro, os comensais olhando em torno e contando as baixas, tentando descobrir quem ou quantos haviam morrido na noite, reformulando mesas e fazendo novas amizades, mas... enfim, por que não confraternizar no naufrágio?

Mas, ao que tudo indica, não era chegada a hora dos turistas terminais do Gorki. Após tiritar algumas horas entre perplexos pingüins, foram recambiados ao aconchego de Berlim ocidental onde, pela primeira vez, desde que o muro é muro, um dirigente soviético ousou afirmar: o muro não é eterno. Mal Gorbachov acena com uma tênue esperança, um pouco mais ao sul, Nicolau Ceaucescu, o ditador romeno, começa a erguer uma cerca de arame farpado, ao longo dos 400 quilômetros de fronteira com a Hungria.

Mesmo pertencendo ao bloco socialista — não por vontade própria, é claro — a Hungria, por ter aderido a uma economia de mercado, é hoje certamente o país menos pobre do Leste europeu. Como na Romênia, há mais de década, a população vive com fome, os camponeses da Transilvânia começaram a dar no pé rumo à casa do primo rico. A pauperização crescente dos países socialistas, decorrente dos dogmas econômicos do marxismo, começa a gerar novos muros entre países irmãos, como diria o Joãozinho.

Ou talvez nem se chamasse Joãozinho. A piada, eu a ouvi na Iugoslávia. Em meio a uma aula, a professora pergunta ao Joãozinho lá deles quais são os países amigos da Iugoslávia. Joãozinho vai citando os que conhece, Romênia, Bulgária, Hungria... A professora quer o nome de outros países amigos. Joãozinho puxa pela memória: Polônia, Checoslováquia... Mais um, meu filho, pede a professora. Joãozinho consegue lembrar: a República Democrática Alemã. Mas não é ainda o que a professora quer ouvir.

— E a União Soviética, Joãozinho, não é um país amigo?

— De jeito nenhum, professora. A União Soviética é um país irmão.

— E qual é a diferença, Joãozinho?

— É que amigo a gente escolhe. Irmão é uma fatalidade.

Joinville, A Notícia, 02.07.89


 

 

FÉ É PODA

 

Fé é fogo. Volto à vaca fria. Quando seis sacerdotes de Joinville enviaram abaixo-assinado a este jornal tentando abafar-me a voz, imaginei que tal reação fosse oriunda curas de campanha, nutridos com a fé dos simples, assustados ao deparar-se com um senso de religiosidade mais profundo. Lendo O Estado de São Paulo, vejo que me equivoco. Pois la crème de la crème da teologia dita da libertação, reunida em um congresso na cidade de Domingos Martins, Espírito Santo, recusou-se a dar entrevista coletiva só porque dela participava um jornalista do Estado. “A decisão foi unânime” — disse um porta-voz dos 125 teólogos em congresso — “detestamos a linha editorial do Estado”. Temos então 125 marmanjos metidos a entender de Deus, borrando-se nas sotainas — se é que ainda as usam — com medo de um jornalista.

Quando Boff diz bobagens e João Polaco o censura, os libertários teólogos protestam contra o autoritarismo papal. Assino embaixo. Acho que todo e qualquer Boff, seja o Leonardo, seja o Clodovis, tem o sagrado direito de dizer besteiras. Não tivessem os padres o direito de dizer besteiras, o mundo seria, é verdade, mais silencioso. Mas menos divertido, pois teríamos menos motivos para rir. Sempre fui contra o autoritarismo de Roma. Que falem os Boff!

Acontece que nossos teólogos, em vez de seguir Jesus, parece que estão seguindo o Joseph. Falo do Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, Stalin para os íntimos. Pois um dos coordenadores do encontro, um certo padre Silva (sei la por que, lembrei-me agora das madressilvas de minha infância), afirmou que há mais de ano não lê o Estadão, “pois ali são publicadas opiniões contrárias às minhas”. Assim é a teologia da libertação.

Imaginemos esses aiatolás no poder. Khomeiny vai virar déspota esclarecido. Em minha biblioteca, tenho a biografia definitiva do Joseph, escrita originalmente em francês, por Boris Souvarine. Consta que há uma tradução em russo, editada em um só exemplar, para uso do Joseph. O tradutor foi fuzilado. Stalin era ex-seminarista. Tudo fecha.

Falar em fé, alguns leitores me contestavam, outro dia, alguns aspectos por mim revelados do mundo soviético contemporâneo. Que eu estava sendo macartista, que o stalinismo era coisa dos anos 50, etc. e tal. Pode ser que Stalin esteja morto. Mas sua múmia continua exalando um odor fétido. Foi embalsamado no Kremlin, mas temos de continuar tapando os narizes, mesmo aqui na América Latina. Nietzsche já nos havia prevenido sobre como fede o cadáver de um Deus morto. Falava do deus de Israel, sem talvez imaginar que as viúvas de Adonai construiriam, no século que nasceu com sua morte, um deus vivo e mais sanguinolento que o deus de Abraão.

Para os que julgam o cronista por demais macartista, lembro recentes declarações de Anatoli Ribakov, autor de Os Filhos da Rua Arbat, livro que permaneceu por mais de vinte anos censurado. Mesmo reconhecendo as recentes e tímidas transformações da União Soviética, diz Ribakov: “o stalinismo ainda está vivo, é forte e faz sentir seu peso”.

E como está vivo. Na mesma semana em que Ribakov atestava a saúde do stalinismo, um jornal de Porto Alegre publicava entusiasmado relato de um viajante apressado que voltava da Nova Jerusalém. Lá em Moscou tudo é lindo, divino e maravilhoso. Claro que nada diz sobre passaportes internos, proibição de viajar de uma cidade a outra sem pedir permissão à polícia para viajar, algo assim como caso me desse na telha ir de Florianópolis a Joinville, eu tivesse de explicar a um comissário do povo quais são os meus motivos para ir a Joinville. Mas o melhor de tudo é o fecho das entrevista com o jovem crente:

— Lá, o governo realmente leva a sério a questão do meio ambiente. Quase todas as cidades têm muito verde, e os rios são limpos. E o que é mais incrível: o governo tem feito reformas ortográficas, na forma de escrever o idioma russo, para diminuir os textos, gastar menos papel e com isso não precisar abater tantas árvores para fazer celulose.

E viva a ecologia. Será certamente para preservar a taiga que o PC soviético proíbe editar Kuprin, Pasternak, Nietzsche, Kafka, Soljenitsin. Sem falar no jovem Marx, copidescado por razões certamente ecológicas, quando são expurgados de sua obras completas os textos onde afirma que a Rússia não estava preparada para o comunismo. Quando penso na hipótese de um Roberto Freire como presidente do Brasil, só fico imaginando os temores da Fundação Catarinense de Cultura, FUCACU para os íntimos. Em nome da araucária, não vai sobrar nada da literatura barriga-verde. Como ficam então os escritores que, tendo quatro ou cinco empregos, militam no Partidão? Sei lá. Nem quero saber. Afinal, falava do Joseph. Nestes dias de revisão do stalinismo, quantas florestas serão poupadas se trocarmos o ph por f? Perestroika é poda.

Foi frei Betto, ou talvez frei Boff, já não lembro mais, que voltou um dia da União Soviética dizendo não saber se existia censura na imprensa, afinal não falava o russo. Mas para afirmar que estavam no paraíso, não precisaram conhecer russo. Se o conhecessem, certamente teriam eliminado de seus nomes as inúteis consoantes duplas, em nome da ecologia soviética. Mas ortografia é o de menos.

Betto ou Boff, ambos pertencem à longa linhagem de gigolôs da História, que apostam em tiranias para passar bem. E esta aposta tem suas vantagens. Pablo Neruda, Jean-Paul Sartre e Garcia Márquez foram galardoados com o Nobel. Se Sartre recusou as capitalistas coroas suecas, Neruda e Garcia Márquez as embolsaram, con mucho gusto y placer. Neruda morreu como stalinista ferrenho, mas sempre curtindo as melhores coisas deste capitalismo podre ocidental. Mal embolsou as coroas, importou da Alemanha um Mercedes. Ao ser descarregado no porto de Valparaíso, aconteceu o insólito. Ao saber a quem se destinava o carro, os estivadores foram erguendo-o cada vez mais alto no guindaste, tac-tac-tac, e uma vez no ponto mais alto possível, largaram-no no cimento do cais. Ploft! Mingau de Mercedes. Perdão, leitor, desviei o assunto.

Já o Garcia Márquez, este continua roçando-se no maior narcotraficante do Caribe, o ditador Fidel Castro, que gere sua ilha particular com a non chalance de um senhor feudal. Garcia Márquez dirige inclusive uma escola de cinema na Disneylândia das Esquerdas, muito freqüentada por rapazes cá da ilha que, sempre louvando a ditadura cubana, vivem implorando verbas à capitalistíssima FUCACU. Coisas da ilha.

Ou seja, Jorge Amado está no bom caminho. Cultuou Stalin a vida toda, dedicou-lhe inclusive uma litania asquerosa, O Mundo da Paz. Prestado o preito ao Paizinho dos Povos, foi publicado em toda a União Soviética, devastando boa parte da taiga com seu realismo socialista laudatório e vagabundo. Hoje, sempre faminto de poder e glória, Amado é imortal da academia que apedrejou quando jovem e dá apoio ao presidente mais pusilânime e ridículo que teve o Brasil, o que só confirma um velho ditado: nordestino só vai em frente porque não tem senso crítico, a Erundina que o diga.

Mas Amado está em bom caminho. Esfrega-se em Castro e Sarney, ganha de um lado a simpatia do obscurantismo de esquerda e, ao mesmo tempo, não abre mão das benesses do poder, tanto que sua filha Paloma (assim batizada em homenagem à “pomba da paz”, daquele outro stalinista impenitente, o Pablo Picasso) voou nesta semana para Paris, no obsceno Boeing da alegria, onde a corte brasiliense dança seu último baile da Ilha Fiscal. Com as embaixadas a seu serviço, mais dia menos dia pinta Nobel. Apoiar a tirania e a corrupção sempre rendeu dividendos e Dona Flor jamais se arrependeu de cultivar dois maridos, não é verdade, putamado?

Como em bom caminho também está o aiatolá de Forquilhinha, Dom Paulo Evaristo Arns. Mal manifestou seu apoio, em carinhosa missiva, ao narcotraficante máximo das Antilhas, espoucaram por todas as partes campanhas indicando seu nome para Nobel da Paz. Há nisto tudo, toda uma lógica. Como dizia Jean Rostand, quem mata um é assassino, quem mata milhões é conquistador, quem mata todos é Deus.

Já menos compreensível é saber que no Sindicato de Jornalistas de Santa Catarina há uma lista de adesões à candidatura do cardeal. Jornalista dando apoio a príncipes que pregam apoio a ditaduras, esta, sinceramente, não entendo. Ou falta vergonha na cara de meus colegas ou, vai ver, também estão querendo o Nobel.

Joinville, A Notícia, 16.07.89


 

 

CARTA AOS CORNÚPETOS

 

Florianópolis — Mitsuko Nakanishi chorou de felicidade quando ouviu, na televisão, Susuke Uno renunciar a seu cargo de primeiro-ministro do Japão. Mitsuko é a gueixa que, durante quatro meses lhe prestou serviços de cama e mesa, recebendo por tais préstimos 21 mil dólares. Ou seja, US$ 5.250 por mês. Arredondando em moeda do país nosso, 20 mil cruzados novos, salarinho pra marajá algum botar defeito. Susuke caiu porque Mitsuko trouxe a público a natureza de sua relação e Mitsuko ri porque Susuke caiu. Haja ingratidão nesta terra.

Mitsuko nega qualquer sentimento de vingança pessoal, alegando que agiu em defesa da mulher japonesa, que “sempre foram espancadas pelos homens e suportaram o sofrimento em silêncio”. Ilhas em muito se parecem. Pois cá nas antípodas, há mulheres apanhando por salário mínimo e sequer chiam. Não que recebam salário para apanhar. Com os trocados que recebem por faxinas e lavados, sustentam o animal inútil que as espanca. Se falam em divórcio são ameaçadas de morte e, eventualmente, mortas mesmo.

À primeira vista, o fenômeno parece ser inerente à pobreza. Acontece que não é. Tenho não poucos relatos de burguesas senhoras da Beira-Mar Norte, capazes de fazer inveja a um ficcionista, na hora de explicar um olho roxo. Com uma diferença: neste nível de renda, as tensões se resolvem com mais finesse. A nobre dama faz um giro pela Europa e volta em forma, pronta para outra. Mas falava de Mitsuko.

Confesso até hoje não ter entendido por que razões uma coletividade exige de seus líderes uma vida sexual monótona, sejam estes líderes homens ou mulheres. Se há muito sexo deixou de ser pecado, não há estadista ou candidato a estadista que resista a um bom escândalo. As gueixas são uma instituição milenar no Japão, cortesia sempre oferecida a visitantes oficiais, repouso do industrial dinâmico, mãos que relaxam o executivo tenso. E vemos um ministro cair simplesmente por fazer o que todo mundo faz. O inconsciente coletivo parece pretender punir o homem bem sucedido: já que alcançaste o poder, condenamos teu corpo á tristeza. Da mesma forma, jamais consegui entender relações baseadas na violência.

Ilhas em muito se parecem, dizia. Mentira minha, mera provocação. O problema é universal e ocorre em países que não podemos chamar de incivilizados. Na França, existe inclusive uma Association des Femmes Battues. E sócias é o que não falta. Em Paris, certa madrugada, um francês estrangulava uma mulher debaixo de minha janela. Como não teria tempo de descer antes que o animal consumasse seu gesto, tentei impedi-lo a gritos: “Arretez, imbécile!” Para seu pasmo: “Mais c’est ma femme!!!

Como em briga de marido e mulher, melhor é não se meter, perguntei à moça se ela queria auxílio. Disse que não. Fechei então a janela e voltei a dormir, não se antes pedir que se estrangulassem em silêncio.

Ou Joinville, para não ir mais longe. Leio nos jornais que a polícia atente, em média, três casos por dia de maridos que espancam, ameaçam ou abusam sexualmente de suas companheiras. Neste ano, que ainda não dobrou a esquina, três mulheres foram assassinadas, e onze espancadas, sem falar, bem entendido, nas inúmeras outras que preferem ocultar o fato, com medo da próxima surra. E mais de quinhentos maridos foram levados para os distritos policiais. Os responsáveis pelos três crimes e demais violências passeiam livres como passarinhos.

Ou seja, o macho está falido. Violência é a reação da incompetência. Com a entrada no mercado de trabalho e a liberalização dos costumes, a mulher deu um passo à frente. O macho, encerrado em seus medos, não conseguiu acompanhá-la. E reage batendo ou matando. Dos anos 70 para cá, estamos assistindo à emersão de uma mulher nova. Em falta de tacape, os maridos reagem à bala.

Falava de Mitsuko, a adorável gueixa que comeu milho na mão e depois virou o cocho. Sinal de que o Japão se ocidentaliza, importando nossa hipocrisia. Dirigente de uma potência econômica, samurai das finanças internacionais, Uno cai por uma questiúncula de cama. Dependerão a economia das nações das tesões cotidianas de seus ministros? Se assim for, seria talvez mais prudente formar um ministério de castrati. Afastaria candidatos, é verdade. Mas daria um belo coral.

Quando tudo seria mais simples, não estivesse o Ocidente contaminado por esse doentia sentimento chamado amor. Em meus dias de universidade, minhas alunas de Letras convidavam-me, às vezes, para seus casamentos. Sempre recusei polidamente tais convites, considerando que minhas pupilas de literatura nada haviam entendido, ou de casamento teriam ainda muito a entender. Pois uma coisa exclui a outra ou nem uma nem outra foi entendida.

Se a arte é a ruptura com o instituído, só me restavam duas hipóteses. Ou elas nada queriam com Letras. Ou eu fora um fracasso como professor. Na história da literatura, vibramos com as transgressões à moralidade vigente, seja na vida dos autores como dos personagens. Pois escrever é opor-se ao que vige. Na hora do casamento, minhas diletas discípulas entregavam-se, quais bois rumo ao matadouro, ao jugo de um troglodita. Casem, meninas, casem o mais rápido possível — era o meu conselho — para que logo se divorciem e possam mergulhar na vida ainda jovens.

Fui visto como um louco, quando apenas estava sendo lúcido. Desde há muito constatei que o macho contemporâneo é menor que o próprio pênis e foge, como o diabo da cruz, de uma mulher independente. Mas nada melhor que um dia depois do outro. Pois não passa sem que eu reencontre algumas de minhas pupilas: “Tenho boas notícias, professor. Agora, me divorciei”. Meu magistério não fora vão.

Falava do amor. Esta ficção ocidental surge pela primeira vez na história nos textos de Safo, poetisa de Lesbos. Enquanto grego, a amor era alegre e não excluía nenhum sexo. Mas nenhuma mudança de idioma permanece impune. Transplantado para Roma, o Eros grego deixa contaminar-se pelo cristianismo e temos esse leito de Procusto insuportável — um homem, uma mulher — que tanto derruba ministros no Japão como mata mulheres em Joinville. Quando, na escola ou na família, uma criança lê fábulas onde uma princesa é destinada a um príncipe encantado, naquele preciso momento está sendo forjado o futuro assassino.

“Quem ama não mata” — intitulava-se uma ingênua noveleta televisiva, transmitida há alguns anos. Nelson Rodrigues devia estar se revolvendo na tumba, louco pra dar uma saidela e batucar uma crônica na redação mais próxima do cemitério. Pois só mata quem ama. Pelo menos enquanto amor for concebido com essa relação eterna, exclusiva e empobrecedora entre dois condenados.

Joinville, A Notícia, 06.08.89. Porto Alegre, RS, 02.09.89


 

 

ODE AO OCIDENTE

 

Florianópolis — Atirando-se no reservatório de água de uma aldeia das montanhas do sul da China, seis jovens camponesas se suicidaram pelo fato de não poderem descer ao vale, porta de um mundo exterior, maravilhoso e inacessível. É o que nos informa o jornal A Tarde, de Cantão. O fato, que não mereceu destaque algum na imprensa ocidental, nos faz pensar.

Em Paris, partilhei meus dias com amigas fugitivas do Leste europeu. Não que fossem ativistas políticas, nada disso. Fugiam, isto sim, de uma vida cinzenta que mais se assemelhava a uma morte em vida. Sair de tal inferno para cair no paraíso consumista parisiense não deixa de ser traumático. E era com um misto de humor e lástima que eu as via trocar desengonçadas calcinhas de pano vagabundo e sem cor, por excitante lingerie em seda vermelha ou preta. Mais divertido era observá-las perplexas, em um supermercado, sem entender como um povo podia permitir-se o luxo de escolher papel higiênico em função da cor. Mais perturbador ainda — ó, utopia! — era saber que poderiam escolhê-lo pelo perfume.

Habituadas às ásperas páginas da Pravda — dura é a verdade e tem grande tiragem — as bravas camaradas tinham, no entanto, uma espantosa capacidade de adaptação. Com poucos meses de Ocidente, as sofridas eslavas despiam-se do casulo socialista e se transformavam em libélulas de fazer inveja a muita parisiense. Mas não era esta traumática metamorfose o que nelas mais me comovia. E sim seus transportes, infantis e quase histéricos, frente a uma agência de turismo. As duas primeiras vítimas, diz o jornal de Cantão, amarraram-se juntas pelas mãos, antes de atirar-se nas águas em Huilan.

Falava das eslavas. Mas antes melhor explicar o que é uma agência de viagens na Europa Cá no Brasil, se você não tem informações anteriores sobre o país para onde quer ir, terá de ser vidente para saber o que vai encontrar, já que os agentes de viagem são mais avaros com papel impresso do que os regimes comunistas com papel higiênico. Em Paris, as coisas são um pouquinho diferentes. Você entra em qualquer agência e apanha quilos de prospectos, luxuosamente impressos, que lhe oferecem o planetinha todo, do Saara à Lapônia, de Machupichu ao Katmandu, no inverno ou no verão, a preços baixos ou altos, de avião ou de trem, em lombo de dromedários ou em trenós puxados por cães. E por esse cardápio de povos e paisagens você paga... absolutamente nada. É chegar e pegar e, se quiser, depois voltar e partir.

Mas por que não ficaste por lá? — é o que me perguntam quando me ponho a xingar o Brasil. Não fiquei por uma simples razão: daqui sempre posso sair e um dia chegar lá. O mesmo não ocorria com minhas Olgas e Úrsulas. Voltassem a seus países, de lá jamais poderiam voltar a sair. Mas o que nelas mais me comovia, não era o fascínio ante lingeries sofisticadas ou ante as diversas opções de papel higiênico, isso sem falar na oferta alucinante do mercado parisiense. O que me dava vontade de chorar era vê-las abraçadas a quilos de sonhos. Ou seja, de prospectos de viagem, que ofereciam o planeta todo a preços módicos.

Ou nem tanto. Para a Índia, pode-se tanto voar em primeira classe rumo a hotéis cinco estrelas como tomar um ônibus Paris/Benares, coisa de uns trinta dias, isto conforme a evolução das guerras ou guerrilhas pelos países por onde se passa. Carnaval no Rio, mariachis no México, lamas no Tibete, gurus na Índia, glaciares na Patagônia, fiordes na Noruega, dunas e oásis no Saara, todas estas promessas de viagens elas portavam sob os braços. Para meu espanto. As coitadas mal conseguiam pagar suas cervejinhas no Quartier Latin e desejavam o mundo.

Para que tantos prospectos? — quis saber — afinal vocês mal têm centavos para o metrô. “Ah — me responderam — aqui pelo menos se pode sonhar. Lá, até sonhar é proibido”. Das outras quatro chinesas desaparecidas quinze dias depois em Huilan, só foram encontrados seus sapatos junto ao reservatório de água.

Donde concluímos: xerox é como liberdade, só percebemos sua importância quando a perdemos. Por que xerox? Porque sempre o utilizei sem sequer imaginar o que significava em termos de liberdade. Pois na União Soviética, mesmo nestes dias de Gorbachov, possuir uma máquina de xerox é crime de lesa-socialismo. E o pesquisador que quiser uma cópia de um documento qualquer, terá antes disso de rastejar para obter pelo menos umas dez assinaturas da Nomenklatura, antes de obter sua cópia, única e irreproduzível.

Ou viajar. Imaginou o leitor ter de pedir permissão ao Estado para ir de Florianópolis a Porto Alegre? Ou de Porto Alegre a Dom Pedrito? Parece-nos absurda tal hipótese e espero que assim pareça, pelos séculos dos séculos, amém. Para minhas amigas russas, era rotina. Se quisessem afastar-se cinqüenta quilômetros de Moscou, teriam de explicar muito detalhadamente as razões pelas quais queriam varar os cinqüenta quilômetros. O jornal de Cantão informou que as razões dos suicídios das seis chinesas são simples: as moças, analfabetas, tinham visto alguns filmes e escutaram os relatos deslumbrados de alguns aldeões que visitaram a cidade.

Ocidentais, degustamos quase com tédio nossos privilégios cotidianos, direitos que são negados a pelo menos dois terços dos habitantes do planeta. Quando velho, eu adorava falar na “sifilização ocidental e cristã”. Com o passar dos anos, rejuvenesci. Hoje, apesar do cristianismo, aceito o Ocidente e seus valores e contradições. Pois aqui ainda se pode respirar. Convencidas de que estavam condenadas a vegetar em suas montanhas, as seis moças de Huilan preferiram a morte.

Jamais ocorreu talvez ao leitor avaliar o tremendo privilégio que desfruta ao passar um dia na praia, nestes estertores do século XX. Para começar, pode ir à praia que quiser, sem dar satisfação à autoridade alguma, o que já não ocorre no universo chinês ou soviético. Você pode beber o que quiser, inclusive uísque ou cerveja. E cerveja gelada, bem entendido. Em países muçulmanos ou comunistas, não encontraria álcool nem pra remédio. Nos primeiros, porque Alá não gosta. Nos segundos, porque a livre iniciativa é pecado.

Mas deixemos de lado estas sociedades ainda mergulhadas nas trevas da Idade Média. Na esplendorosa e cosmopolita Estocolmo, recentemente indicada como a melhor cidade do mundo para se viver, uma cervejinha na praia dá cadeia. Pois beber ao ar livre — beber álcool, bem entendido — é crime. Mais ainda: é proibido beber em bares. Mas para que então bares? Ora, nos bares pode-se tomar chá, chocolate, sucos de laranja, pepsi e xaropes do gênero. Mas onde se pode beber no paraíso nórdico? — já estará se perguntando o sedento leitor. Nos restaurantes, desde que se peça almoço ou janta. Mas atenção: só a partir das doze horas em ponto até as 24. Nem um minuto a mais ou a menos. E a preços de tornar sóbrio qualquer cristão ou Cristaldo.

Sem falar nas mulheres que nos presenteiam, com uma generosidade quase lúbrica, com o festival de suas curvas. Exato; nossas praias têm mulheres. O cronista hoje ensandeceu, dirá o leitor. O pior é que não. Apenas acometeu-me uma crise de lucidez. Pois bem mais da metade do planeta está proibida de contemplar a nudez do sexo oposto. Já nem falo do mundo islâmico, que de mulher Alá também não gosta. Desloquemo-nos para um país laico e materialista. Bulgária, por exemplo. Em Varna, principal porto do Mar Negro, ainda hoje, neste ano da graça de 1989, há praias para homens e praias para mulheres. Cerveja, não sei se tem. Pois quando soube que em minha praia não podia contemplar estes seres sem os quais as praias não têm sentido, dei meia volta e amaldiçoei Varna, Bulgária e Marx e prometi a mim mesmo jamais voltar lá.

E nossas mulheres têm clitóris. Exato: nossas mulheres têm clitóris. Grande coisa, dirá o leitor. Grande mesmo, insisto. Pois ainda hoje, neste finzinho de século XX, 50 milhões de mulheres foram submetidas, na infância, à ablação do clitóris e à infibulação da vagina. Pois de clitóris Alá também não gosta. Outro dia, uma amiga que voltava da Nicarágua, cansada de colher café e aspirando emoções mais fortes, confidenciou-me o desejo de conhecer a Líbia de Kadhafi. Vais voltar sem a grande coisa, adverti. Consegui empanar, no olhar da fanática, o carisma do líder líbio: “Não vão levar. Morro dando e não entrego”. Prevalecera o bom senso ocidental.

Vivemos dias duros, é verdade. Faz bem olhar, de vez em quando, o universo circundante. Enquanto tivermos praias, cervejas e clitóris, o Ocidente está salvo. Tim-tim, leitora!

Porto Alegre, RS, 09.10.89


 

 

SOBRE SENHORES E SERVOS

 

Florianópolis — Para observar o mundo, bastam alguns metros de altura. Como observatório, escolhi o Polly’s, restaurante que fica em um primeiro andar e cuja sacada dá para a Praça XV. O mundo, gosto de observá-lo no dia em que Deus descansa, assim sua divina presença não interfere em meus juízos. Sábado é ainda o dia preferido pelos pastores que, Bíblia sob o sovaco, vociferam contra o pecado e vícios, como também pelos mercadores que abastecem de maconha a juventude ilhoa. O que às vezes resulta em conflito. Em um sábado destes, um pastor verberava sem piedade os vícios desta Ilha de Santa Catarina e teve a infeliz lembrança de incluir, entre eles, a canabis.

Foi uma vaia geral, que reboou pela Felipe Schmidt afora e talvez tenha até acordado Deus de seu merecido repouso. Surpreendeu-me o conhecimento bíblico dos artesãos que infestam a praça. De fato, em momento algum o hagiógrafo condena um baseado. O pastor mudou de assunto.

Falar em Bíblia, seguidamente sou procurado por pais que querem saber onde situar este ou aquele milagre de Jesus. Não que estejam preocupados com o assunto. Acontece que a escola, sempre dançando sob o cetro de Roma, inculca nas crianças precisamente os episódios da Bíblia que pertencem ao território das lendas. De um livro escrito com ódio e sangue, extraem um Cristo edulcorado que nada tem a ver com o Cristo histórico. O dramático processo revolucionário vivido por Jesus e Judas, em uma Palestina ocupada pelo invasor romano, vira historieta de fadas, da qual Judas é escanteado. Em mãos de professoras analfabetas, o estudo deste livro fascinante, que embasa a cultura ocidental, vira conto de Chapeuzinho Vermelho. No que em pouco diferem dos pastores da Praça XV, que acham que Cristo veio ao mundo para condenar mascadores de alfafa.

Entrou em vigor, no mês passado, o novo regimento interno da Câmara dos Deputados, em Brasília. Entre outras novidades, o artigo 79, parágrafo 1º, exige que uma Bíblia permaneça sobre a mesa da Presidência, à disposição de quem dela quiser fazer uso. O que já nos leva a uma interrogação: qual Bíblia? A “princeps” não há de ser, já que se contam nos dedos os homens que hoje podem ler a Bíblia no original. Considerando-se que o livro mais lido do mundo só é lido em traduções, resta a pergunta: qual tradução estará á disposição dos deputados? A Vulgata? A King James? Ou a Bíblia de Jerusalém?

Pois cada igreja puxa brasa para seu assado ao traduzir a Bíblia. Sem ir mais longe, na Vulgata Cristo tem primos. Já na King James, sem compromisso algum com o dogma romano da virgindade de Maria, Cristo tem irmãos. Enfim, parlamentar lendo a Bíblia já constitui milagre e o cronista ainda reclama dos tradutores. Deixemos de rabugices e imaginemos os senhores deputados buscando no Livro inspiração para definir a conduta do trabalhador brasileiro.

O Êxodo nos traz sugestões interessantes:

“Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar. Se veio só, sozinho sairá; se era casado, com ele sairá a esposa. Se o seu senhor lhe der mulher, e esta der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do senhor, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo disser: ‘eu amo a meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre’, o seu senhor falo-á aproximar-se de Deus, e o fará encostar-se à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela: e ele ficará seu escravo para sempre”.

O que só demonstra o caráter revolucionário da Bíblia. Enquanto os professores universitários no Brasil só agora conseguiram o direito ao ano sabático, os escravos de Israel dele já desfrutavam. A Bíblia que consulto, diga-se de passagem, é a de Jerusalém. Com imprimatur de Paulo Evaristo, cardeal Arns, pra leitor algum botar defeito. As relações entre patrão e empregado também mereceram um comentário do hagiógrafo:

“Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido. Mas, se sobreviver um ou dois, não será punido, porque é dinheiro seu”.

Como as metrópoles brasileiras estão sendo invadidas por migrantes de toda a América Hispânica, seria oportuno ver como é tratada esta mão-de-obra no Levítico:

“Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua. Tê-los-eis como escravos; mas sobre os vossos irmãos, os filhos de Israel, pessoa alguma exercerá poder de domínio”.

Caso algum petista pretenda regulamentar a condição dos bóia-frias, melhor dar antes uma olhadela no primeiro livro dos Reis:

“O rei Salomão recrutou em todo o Israel mão-de-obra para a corvéia; conseguiu reunir trinta mil operários. Mandou-os para o Líbano, dez mil cada mês, alternadamente; eles passaram um mês no Líbano e dois meses em casa. Salomão tinha ainda setenta mil carregadores e oitenta mil cortadores na montanha, sem contar os chefes dos prefeitos, em número de três mil e trezentos, que dirigiam os trabalhos e comandavam a multidão empenhada nas obras”.

Para que tanta corvéia? O leitor pode estar imaginando estradas, hospitais, escolas. Nada disso. O sábio rei Salomão mandava essa gente toda cortar pedras no deserto para a construção do Templo. E não falta padre de esquerda que julgue faraônico o presentinho de Sarney aos empresários amigos, a rodovia Norte-Sul. E nestes dias em que se discute o xenófobo projeto de um pedágio para entrar na Ilha de Santa Catarina, nada melhor que buscarmos inspiração no extraordinário senso de hospitalidade vigente em Sodoma. Quando Ló recebe os dois anjos, os sodomitas (falo no gentílico, sem trocadilhos) cercaram sua casa e o intimaram:

“Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para deles abusemos.

“Ló saiu à porta e, fechando-a atrás de si, disse-lhes: ‘Suplico-vos, meus irmãos, não façais o mal! Ouvi: tenho duas filhas que ainda são virgens; eu vô-las trarei: fazei-lhes o que bem vos parecer, mas a estes homens nada façais, porque entraram sob a sombra de meu teto’”.

Ló, deve estar o leitor lembrado, foi o único homem justo que Abraão encontrou para recomendar ao Senhor. Verdade que era primo de Abraão — o que nos mostra que nepotismo não é achado moderno — e mais tarde gerou, com sua filhas, Moab e Ben-Ami. Hospitalidade é isso aí.

Tal gesto, nós o vemos novamente em Juizes. Em Gabaá, o levita de Efraim é hospedado por um ancião. Traz consigo sua concubina e seu servo. Os viajantes se reanimavam, eis que surgem alguns vagabundos da cidade, fazendo tumulto ao redor da casa e, batendo na porta com golpes seguidos, diziam ao velho, dono da casa: ‘Faze sair o homem que está contigo, para que o conheçamos’. Então o dono da casa saiu e lhes disse: ‘Não, irmãos meus, rogo-vos, não pratiqueis um crime. Uma vez que esse homem entrou em minha casa, não pratiqueis tal infâmia. Aqui está minha filha, que é virgem. Eu a entrego a vós. Abusai dela e fazei o que vos aprouver, mas não pratiqueis para com este homem uma tal infâmia’. Não quiseram ouvi-lo. Então o homem tomou sua concubina e a levou para fora. Eles a conheceram e abusaram dela toda a noite até de manhã e, ao raiar da aurora, deixaram-na”.

Ao voltar para casa, o levita de Efraim pega um cutelo, corta sua concubina em doze pedaços e os remete a todo território de Israel. Mas isto já é outro assunto, fica para quando comentarmos a condição feminina na Bíblia.

Enfim, já que o Livro está agora à disposição de nossos representantes, façamos votos para que nenhum sacerdote invente de lê-lo, ou acabará solicitando sua proibição por atentado à moral e aos bons costumes. Enquanto isso, por sugestão do cineasta Luís Buñuel, releio o Livro da Sabedoria:

“Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu; fumo é o sopro de nosso nariz, e o pensamento, centelha do coração que bate. Extinta ela, o corpo se tornará cinza e o espírito se dispersará como o ar inconsistente. Com o tempo, nosso nome cairá no esquecimento e ninguém se lembrará de nossas obras; nossa vida passará como uma nuvem — sem traços -, se dissipará como a neblina expulsa pelos raios do sol e, por seu calor, abatida. Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; o selo lhe é aposto, não há retorno. Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil. Inebriemo-nos com o melhor vinho e com perfumes, não deixemos passar a flor da primavera, coroemo-nos com botões de rosas, antes que feneçam; nenhum prado ficará sem provar de nossa orgia, deixemos em toda parte sinais de alegria pois esta é nossa parte e nossa sorte”.

Amém!

Joinville, A Notícia, 15.10.89. Porto Alegre, RS, 21.10.89


 

 

DE ONDE NASCEM AS FLORES

 

Florianópolis — Os animais são comoventes, não é verdade? Outro dia, a televisão nos mostrava cenas brutais de um massacre de elefantes, espécie cuja extinção preocupa organismos do mundo todo. Consta que há dez anos atrás um milhão de elefantes pastava pelas florestas africanas e destes só restam hoje 620 mil. Pululam ainda, nos países do Primeiro Mundo, entidades que lutam pela preservação de hienas e focas. O que não parecem ter percebido estes ativistas — ou talvez já comecem a percebê-lo — é que, se elefantes, focas e baleias estão ameaçados de extinção, isto se deve ao fato dos cidadãos do Primeiro adorarem defesas de marfim esculpidas, casacos de pele e cãezinhos bem nutridos. Mais que amor aos animais, parece predominar uma certa mauvaise conscience nestas manifestações ecológicas.

Já os seres humanos, estes não parecem comover tanto. Em três anos, de 75 a 78, Pol Pot reduziu a população do Camboja de sete para cinco milhões de habitantes e o Ocidente reagiu com um silêncio constrangido. Há quem fale em um milhão mais de cadáveres. Verdade que a imprensa americana e européia indignou-se, mas isto quando nada mais podia ser feito. Pol Pot, educado em Paris, seguia a doutrina de Mao, e Mao era intocável. Hoje, começa-se a suspeitar que Mao matou mais que Stalin e Hitler juntos.

Mas, enfim, é tão desagradável contar cadáveres, ainda mais quando são milhões, que melhor mesmo é não tocar no assunto. Um elefante incomoda muita gente. Quatrocentos mil incomodam muito mais. Três, quatro, cinco, vinte, cem milhões de pessoas parecem não perturbar o sono de ninguém. Eles, que são amarelos, que se entendam. Que mais não seja, o bicho-homem é desprovido daquele olhar melancólico de espécime em extinção.

Hitler à parte, estes formidáveis assassinos que marcaram o século sempre contaram com o apoio incondicional, não só das esquerdas, como também dos melhores cérebros das esquerdas. Listar os que os louvaram em suas obras exige um esforço enciclopédico. Mais fácil arrolar os que denunciaram genocídios, que para isto bastariam os dedos das mãos de três ou quatro pessoas.

A propósito, outro dia Paulo Francis se penitenciava de ter apoiado o Khmer Vermelho em sua entrada triunfal em Phnon Penh. Alvíssaras, pelo menos fez um mea culpa. Se não me falha a memória, também havia apoiado Khomeiny, medíocre condutor de povos, afinal só produziu um milhão de cadáveres. E enquanto ecologistas do mundo todo preocupam-se com elefantes, baleias e focas, Pol Pot está em vias de voltar ao Camboja, como parte de um governo de coalizão, com o aval das nações ocidentais. Se um elefante continua a incomodar muita gente, Pol Pot parece já não incomodar ninguém mais.

Enfim, quem morre descansa. Pior mesmo, só a morte em vida dos seres que vivem sob o tacão das ditaduras socialistas. Para o Janer — reclamava outro dia um leitor — o socialismo é um inferno. Jamais me ocorrera formular a frase, assim tão precisa e redonda. Mas assino embaixo. O leitor intuíra, com síntese, o que penso de tais regimes. Pois não é que leio, nas últimas reportagens internacionais, esta mesma frase, sem tirasr nem pôr: “o socialismo é um inferno”? Só que desta vez era dita por um cidadão que fuiga da Alemanha Oriental, o país de mais sólida economia do bloco socialista.

O homem não é apenas corpo e alma — escreveu Stefan Zweig — mas corpo, alma e passaporte. Tendo vivido em uma Europa convulsionada pela guerra, Zweig tinha uma idéia bastante precisa do valor deste terceiro elemento inerente ao ser humano. Passada a guerra, passaporte é documento que em menos de uma hora se retira na polícia. Para os europeus ocidentais, bem entendido. Para os que ficaram no brete forjado por Stalin, passaporte é milagre caído dos céus, símbolo e possibilidade de vida nova, adeus a um regime de morte em vida.

E se algum leitor mais céptico acha que o cronista está exagerando, que dê uma olhadela nos jornais e revistas das últimas semanas. Neles verá jovens chorando e rindo, exibindo um passaporte, quase sem acreditar que o tem em mãos. Verá também trens atulhados de trânsfugas do paraíso, trens diminuindo a velocidade junto às estações para que os que ficaram possam entrar pelas portas e janelas lacradas para que da utopia ninguém mais fuja.

Enquanto escrevo estas linhas, já eram 45 mil os que abandonavam apartamentos, carros, bens, parentes e passado, em busca de ares mais respiráveis. Fogem do menos pobre — ou do mais rico, se quisermos — dos países socialistas.

Várias vezes estive em Berlim Ocidental, tanto a trabalho como pelo simples prazer de visitar uma das mais vivas e agitadas capitais culturais da Europa. Todas as vezes que por lá passei, entreguei-me ao masoquístico prazer de atravessar o Muro, viagem que deveria fazer todo cidadão que habita em países livres, que mais não seja para valorizar na volta o que jamais lhe fez falta, a liberdade. Sem exagero algum, a diferença é do dia para a noite, do céu para o inferno.

Se você vai de metrô, na hora de atravessar o Muro um policial de má catadura olha por sessenta longos segundos a foto do passaporte e, por mais outros sessentas, o seu rosto. Você é obrigado a trocar moeda forte por moeda-lixo e, nestes trâmites burocráticos, para atravessar vinte metros, você leva meia hora. Isto se não houver tensões entre Leste e Oeste. O Muro funciona como um tambor de grande ressonância e se por acaso a Nomenklatura russa não gostou das declarações de um líder ocidental, a travessia daqueles vinte metros pode custar-lhe quatro ou mais horas. Isso se não for proibida.

Minhas incursões a Berlim Oriental foram rápidas, mas suficientes para auscultar o medo, a tristeza e a ausência de futuro estampadas nos rostos que vi. Só uma historinha, para ilustrar. Ao atravessar o muro, notei que vários turcos faziam a mesma travessia. Que jornalistas e turistas fizessem tal peregrinação, era perfeitamente compreensível, uma questão de curiosidade, necessidade de comparação. Mas que buscariam no lado de lá operários imigrantes que fugiam de seus próprios países?

Curiosidade não era. Buscavam mulheres, explicou-me um amigo berlinense. Muitas jovens de Berlim Oriental entregavam-se a quem quer que fosse, na esperança de que os visitantes com elas casassem, o que lhes daria direito a um passaporte para o Ocidente. Empenhavam corpo e alma para conseguir aquele terceiro elemento constitutivo do ser humano, do qual nos falava Zweig.

O comunismo está morrendo, clamam os jornais. Não é verdade. Morreu há muito tempo, o necrológio é que foi publicado com atraso. A pessoa alguma bem informada é lícito alegar desconhecimento do que ocorria nas ditaduras do Leste. Os gulags datam de 1918. As purgas e assassinatos, de 1936. Em 49, Kravchenko desvelava ao Ocidente a tirania stalinista. Em 56, Kruschov passa a admiti-la. No mesmo ano, foi invadida a Hungria. O muro de Berlim data de 61. E, de lá para cá, contam-se aos milhares os que, arriscando a própria vida — e muitas vezes perdendo a aposta — ousaram tentar a travessia rumo à liberdade. Isto, só não viu quem não quis.

Gorbachov vem sendo aclamado, tanto no bloco socialista como neste universo capitalista — tão odiado pelos que aqui vivem e adoram o socialismo e tão invejado pelos que sofrem o socialismo — como a esperança de transformação das ditaduras do Leste. Alguns sinais são promissores. Polônia e Hungria não mais querem ouvir falar de comunismo, optam por uma economia de mercado e Moscou, pelo menos por enquanto, não enviou seus soldados a fazer turismo blindado em Varsóvia ou Budapeste. Letônia, Estônia e Lituânia pedem autonomia e, pelo menos por enquanto, os tanques russos por lá ainda não exibiram suas lagartas. No quadragésimo aniversário desta república de papel, a RDA, seus cidadãos votam com os pés e fogem para o Ocidente e, pelo menos por enquanto, Honecker não conseguiu ousar uma solução à la Pequim.

Estamos em compasso de espera. Verdade que a imprensa continua amordaçada nos países socialistas e xerox é instrumento de subversão, portanto proibido. De fronteiras abertas, nem falar. Quando houver um buraco na Cortina, que dele desfrutem os mais audazes. O que me espanta em tudo isto, é que stalinistas impenitentes venham a exibir a Perestroika como fruta sadia, decorrência do socialismo. Algo assim como se um piloto, encharcado de coca, errasse de rota e virasse herói, por ter matado apenas uma dúzia de passageiros em plena floresta.

Órfãos de Deus e encharcados de ideologia, os intelectuais deste século incentivaram e defenderam uma tremenda cagada histórica. Ao contemplar a florzinha que emerge do maelström de merda, batem palminhas:

— Que linda!

Joinville, A Notícia, 22.10.89


 

 

CEAUCESCU TEM MEDO

 

Florianópolis — Perambulava eu outro dia pelo Parque Farroupilha, em Porto Alegre, quando deparei-me com um daqueles flagrantes da realidade que nos exigem alguns segundos de reflexão para serem entendidos. Era domingo. Em um bar, do lado do brique, meia dúzia de filhinhos de papai, bem nutridos e empunhando uma cerveja depois da outra, empunhavam bandeiras vermelhas com a foice e o martelo e cantavam:

Ai, quem diria? Ai, quem diria?
O proletário derrotando a burguesia.

Todos pertenciam, é claro, ao dito Partido dos Trabalhadores, mas de trabalhadores não tinham a cara. Aliás, neste primeiro turno de eleições presidenciais, o PT foi vitorioso entre os eleitores residentes em Londres, Paris e Roma. Tais votos serão oriundos, certamente, dos operários brasileiros que labutam às margens do Tâmisa, do Sena e do Tibre.

Volto a Florianópolis. No domingo seguinte, estive no bar do Arante, em Pântano do Sul, baluarte estival das esquerdas ilhoas, onde a mesa é farta e cerveja sempre gelada é o que não falta, ao contrário de Moscou, onde apesar da perestroika, segundo amiga recém-chegada de lá, cerveja não há nem pra remédio e papel higiênico, mesmo nos hotéis de luxo, só com requerimento no qual deve ser especificada a metragem necessária. Curioso cálculo. Pois não é que naquele porto, atulhado de carros pra burguês nenhum botar defeito — quase todos com a insígnia do PT, é claro — onde não faltava nem cerveja, nem comida, nem papel higiênico, dúzias de filhinhos de papai, todos gordos e bem nutridos, balançavam-se ao som de uma canção estúpida? O cantor, que está de partida e já vai tarde, berrava:

A burguesia fede
fede
fede

É o que dá os petistas só irem de carro a Pântano do Sul. Tivessem de enfrentar um ônibus proletário superlotado de gente humilde, talvez percebessem que se há alguma classe que cheira mal cá na ilha, esta classe é o proletariado. Mas petista não gosta de ônibus, coisa de lumpenproletariat. Gostam mesmo é de xingar a classe à qual pertencem, os pais que lhes facilitam moradia, carro e cerveja. Não quero bancar o freudiano primário, mas em todos os petistas com os quais tive ocasião de cruzar, observei um sentimento de ódio ao pai e autofagia. A burguesia fede, fede, fede. Ò Arante, salta aí uma geladinha!

— O gênio da nação deve ser reeleito — disse Nico, diante dos delegados participantes do 14º Congresso do Partido Comunista Romeno, em Bucareste -. O brilhante relatório do camarada Ceauscescu faz uma análise brilhante do caminho luminoso que conduz a um futuro magnificente.

Nico é o filho de Nicolae Ceaucescu, vice-decano dos ditadores contemporâneos. (Mais antigo, só Fidel Castro). É, pelo menos, filho agradecido. Nestes dias em que começam a esboroar-se as ditaduras comunistas do Leste europeu, Nico apóia a “reeleição” por mais cinco anos de seu papá. O que me lembra áspera discussão que tive em Berlim Ocidental. Uma amiga que há muitos anos lá reside, detentora de 12% de ações de uma sólida empresa catarinense, me confidenciava seu ódio ao capitalismo e amor ao socialismo e apontava para o outro lado do Muro — antes da queda do Muro, é claro — afirmando: “Lá no Leste, a família é mais unida”. É verdade.

O Muro estás caindo, para perplexidade dos alemães orientais, para os quais a Berlim livre era uma realidade mais distante do que a Austrália ou Nova Zelândia. Por alvissareira que seja a notícia — sem dúvida alguma, a mais grata que os jornais me trouxeram em toda minha existência — isto não significa que os cidadãos do Leste europeu estejam libertos do tacão stalinista.

Gorbachov mas não molha, escrevia eu em crônica passada, pouco esperançoso com a lentidão da perestroika. Mas os acontecimentos tomaram um ritmo acelerado no lado de lá. Longa vida a Gorbachov. E se conseguir fazer com que os russos tirem as patas de suas colônias, Nobel da Paz ao Mikahil.

Na Romênia, lá onde o proletariado derrotou a burguesia, cada cidadão tem direito a meio quilo de carne e dez ovos por mês. É o que dizem os jornais e me pergunto se não pecam por otimismo. Nos dias em que andei por lá, vi gente brigando à tapa mal chegou uma paleta bovina em um daqueles supermercados sinistros de longas gôndolas vazias. Cerveja, só da China, morna e de péssima qualidade, isso quando ocorria o milagre de encontrar-se um bar que tivesse cerveja, onde clientes cheios de medo falavam baixinho e se empapuçavam com aquele xarope sem graça.

Mas não sejamos injustos, há bons vinhos na Romênia. Eu os degustei, pois era estrangeiro e pagava com divisas fortes. Os romenos, que plantam a vide, colhem a uva e elaboram o vinho, estes ficam chupando o dedo. Nunca é demais repetir que nos paraísos socialistas, onde o proletariado derrotou a burguesia, existem as berioskas ou dollarbutiques, onde se pode encontrar os mais sofisticados bens de consumo que o Ocidente malvado e capitalista produz. Mas a esses requintes só tem acesso o turista provido de dólares, marcos ou francos.

Foi na Romênia, creio, que senti pela primeira vez o absurdo e a desumanidade de uma fronteira intransponível. Estava em Mangália, cidade balneária às margens do rio Negro, a sete quilômetros da fronteira com a Bulgária. Hospedei-me em hotel de luxo, onde como cardápio só havia duas opções, carne de frango onde porco. Se você pedia porco, tudo bem. Mas se pedisse frango, só vinha porco mesmo, afinal frango era apenas uma abstração do cardápio. Se em hotel de luxo, pagando em dólares, assim era tratado o turista, fiquei imaginando o que comeriam os romenos. Mas não era disto que pretendia falar.

E sim de um garçom, meu interlocutor em Mangália. Com ele eu trocava meus dólares por lei (plural de leu, a moeda lá deles). Ao saber que eu iria a Varna, na Bulgária, devolveu-me meus dólares e outros mais. Queria que eu lhe comprasse “o que fosse possível” nas berioskas búlgaras, mais baratas que as romenas. Era um homem de meia idade e ocorreu-me perguntar se não tinha alguma vez atravessado aquela fronteira, a sete quilômetros do hotel. Não, jamais a atravessara. A polícia lhe exigiria razões muito graves para ultrapassar aquela linha, sem falar que, tal pedido, já o colocaria na lista dos suspeitos de conspirar contra o Estado. O garçom teria uns quarenta anos e jamais lhe fora permitido dar uma espiadela no país ao lado.

Nas praias, observei mais um daqueles fatos que nos exigem algum tempo de reflexão para serem entendidos. Turistas estrangeiros e internos tiravam fotos ao lado de maquetes de veleiros. Veleiro mesmo, que é bom, nem pra remédio. Muito menos barcos. Rui consultar meu interlocutor.

— É simples, disse o garçom -. A Turquia fica a apenas dois dias de navegação. Serias tentador demais para quem sabe velejar ou remar.

Senti-me então como um viajante privilegiado, em rápido turismo por um gulag. Fiquei duas semanas nas Romênia. Duas, porque não havia vôo de volta ao mundo livre logo após a primeira. Ofereceram-me mais uma terceira semana no país, nesta não pagaria nada por hotel ou refeições. Sei que para muitos jornalistas não constitui nenhuma falta de ética receber mordomias para fazer o elogio de ditaduras, há inclusive quem se orgulhe de prêmios literários concedidos pela ilha particular de Castro, da mesma forma que Jorge Amado orgulhou-se um dia de receber o prêmio Stalin de Literatura. Devo ser antiquado, pois recusei a hospitalidade romena. O que queria mesmo era sair, o mais rápido possível, daquele universo sufocante.

As ditaduras do proletariado, inspiradas, diga-se de passagem, no pensamento burguês, estão ruindo em ritmo vertiginoso. As estátuas de Stalin vieram abaixo após 1956, agora é Lênin e a estrela vermelha que começam a ser derrubadas. E Marx que se cuide. No Leste, a Romênia e a Albânia candidatam-se seriamente ao título de museus vivos do obscurantismo. Como também a Cuba de Castro.

Ceaucescu tem medo e alerta seus prisioneiros para não traírem os ideais do socialismo. Enquanto as nações centro-européias começam a libertar-se dolorosamente de meio século de escravidão, ainda resta no Brasil uma juventude analfabeta que empunha bandeiras com foice e martelo e prega a luta de classes. Stalin morre no Velho Mundo e ressuscita, triunfante, na sofrida América latina.

Aqui-del-rey, Gorby!

Porto Alegre, RS, 09.12.89


 

 

NO OVO, A SERPENTE

 

Florianópolis — Mani Hayyá, ou Mani, o Vivente, nasceu no ano de 216, na Babilônia, e morreu flagelado em 277, acusado de socavar as bases da religião oficial masdeísta. Em uma vida intenso apostolado, que o levou à Índia, criou a religião que passou a levar seu nome e teve enorme influência tanto no Oriente como no Ocidente. Santo Agostinho foi um de seus adeptos mais fervorosos. Segundo Mani, no começo havia duas substâncias ou princípios: a luz, equiparada ao Bem e às vezes a Deus, e a Escuridão, equiparada ao Mal e às vezes à matéria. As duas substâncias são eternas e igualmente poderosas. Nada têm em comum e residem em distintas regiões. A Luz, ao Norte. A Escuridão, ao Sul. Cada uma das duas substâncias tem à sua cabeça um rei. A Luz, o Pai da Grandeza. A escuridão, o Reino das Trevas. Segundo alguns estudiosos, os cátaros teriam sido os últimos remanescentes do maniqueísmo no Ocidente. Tais estudiosos desconheciam, é claro, o PT e os petistas.

Mani, nós o encontramos hoje em qualquer salão paroquial, bar ou repartição pública. Em sua versão moderna, mas não muito, divide o universo em patrões e operários, ricos e pobres. Os patrões constituem o princípio do Mal, o Reino das Trevas. Os operários, por sua vez, são Luz e Salvação. O rico será sempre maldito, mesmo que sua riqueza tenha sido conquistada honestamente. E o pobre será sempre abençoado, já que a pobreza passou a ser sinônimo de virtude. No fundo, a interpretação romana dos Evangelhos que, ao considerar o lucro um pecado, dividiu o Ocidente, do ponto de vista econômico, em Norte e Sul.

Ao Norte, os países ricos e protestantes, pois para estes, ser rico é prova de ser benquisto por Deus. Ao Sul, os países pobres e católicos, pois para estes, dos pobres é o Reino dos Céus. A equação acaba fechando: o bem-estar dos países protestantes do Norte, para os quais Deus gosta mesmo é dos ricos, é financiado pela indigência dos países católicos do sul, para os quais Deus gosta mesmo é dos pobres. Tivéssemos uma ministro da Economia com tanto carisma como Jeová, estaria resolvido o problema das greves no Brasil.

Para quem leu os romances baseados no realismo socialista, deste stalinista impenitente, Jorge Amado, nada de novo. Os ricos são podres e devassos. Os pobres são nobres e castos. Pena que a teimosia dos fatos não confirma tão lindas teorias. Pois é a luta pela sobrevivência em condições adversas o que mais corrompe as classes menos favorecidas. Para um homem sem maiores problemas materiais, não é difícil ser nobre. Já para um pobre, não é fácil fugir à condição de pobre. A Igreja Católica, apesar de seus dois milênios de manipulação do poder, não parece ter entendido este paradoxo que de paradoxal nada tem: sendo rico, posso dar-me ao luxo da generosidade. Sendo pobre, mesquinharia é meu alimento cotidiano. Em nada me espanta, pois, que os teólogos ditos da libertação apoiem o PT, última flor, inculta e feia, do maniqueísmo.

Quem me vê assim falar, já deve estar pensando: o cronista é milionário. Equívoco do leitor. Sou bilionário. Ao chegar a Florianópolis, meu patrimônio era dois bi. Ou seja, uma bicicleta e uma biblioteca. Dada a histeria estival da ilha, desfiz-me da bicicleta e hoje estou reduzido à minha biblioteca. Nem por isso acho que ser rico seja necessariamente sinônimo de ser crápula, e pobre sinônimo de ser santo. O universo é por demais caótico para ser reduzido a uma linguagem binária.

Todo empresário é um canalha, dizia-me certa noite uma dessas meninas que vivem em uma cobertura e esperam na fila para pagar três mil dólares pelo sublime direito de passar fome e treinar guerrilha na Nicarágua. Dyonelio Machado, saudoso e injustiçado escritor gaúcho, disse-me um dia: “a data é inerente ao texto”. Parodiando Dyonelio, eu diria que besteiras são inerentes à idade. E falo de cátedra: quando jovem, idiota e maniqueísta, eu também pensava assim. Mas o grave em minha interlocutora é que já estava entrando em sua quarta década de vida.

Em minha adolescência, intoxiquei-me de leituras, primeiramente cristãs, depois marxistas e finalmente anarquistas. Ou seja, dose tripla de maniqueísmo. Vivia em uma pequena comunidade do interior gaúcho, não tinha de lutar pelo meu pão de cada dia e considerava todo comerciante, empresário ou fazendeiro, um criminoso. Com o tempo, abandonei Cristo, Marx, Kropotkins, Bakunins e Trotskis da vida. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi-me e joguei para bem longe de mim aqueles conceitos que, se em teoria são lindos, nas prática jamais funcionaram.

Para o cachorro, o problema é simples, boa parte da água vai embora e o que sobra evapora. Ideologia é bem mais grave, adere como lepra à pele e por mais que a gente se sacuda sempre permanece alguma caspa. Por muito tempo transportei comigo este preconceito em relação ao capital e, por extensão, a seus detentores. Não fosse ter um dia saído de minha pequena cidade, conhecido outras culturas e gentes, faria coro com a jovem petista: todo empresário é um canalha.

Viajei por países onde o comércio é crime e lá vi miséria, escassez de toda e qualquer coisa, corrupção, desrespeito aos direitos mínimos dos cidadãos, ausência total de liberdade de expressão e de imprensa. (Que mais não seja, estão aí os jornais para confirmar o que há muito se sabia). Como também vivi em sociedades de consumo compulsivo. Embalado desde a adolescência pelos discípulos de Mani, sempre abominei as sociedades de consumo. Após ter vivido em algumas delas, a caspa começou a cair.

Sociedades capitalistas como Suécia, Alemanha ou França dão ao trabalhador condições mil vezes melhores que as ditas — e agonizantes, espero — ditaduras do proletariado. Pois as sociedades de consumo criam necessidades, em boa parte supérfluas, é verdade. Mas o supérfluo gera mercado e o mercado gera trabalho.

Queremos construir uma sociedade de classe média, declarava o Dr. Lula no domingo passado. Sem falar que a definição de classe média só tem sentido enquanto existir uma classe alta e outra baixa — ou então não seria média — o candidato do PT lembra-me anedota que corre na Europa sobre as diferentes visões de mundo de americanos e franceses. O americano, ao ver um cidadão dirigindo um Mercedes ou BMW, logo exclama: “Que maravilha, vamos construir uma sociedade onde todos tenham acesso a um carro destes”. Já o francês pensa por outros rumos: “Que canalha! Vamos construir uma sociedade onde esse filho-da-mãe ande a pé como todo mundo”. A classe média brasileira tem vivido mais de susto do que de rendas e o candidato petista apresenta ao país este brilhante programa, transformar o Brasil todo numa imensa classe média.

Todo empresário é um canalha, dizia a moça petista. E logo eu, que de berço não simpatizava com estes senhores, senti-me obrigado a defendê-los. Pois nesta república papeleira, onde investir no dólar, over ou ações é lucro certo e trabalho nenhum, penso que ao empresário devia ser erguido um monumento: é homem que nestes dias de lucro fácil e desonesto tenta investir em produção, quando poderia muito bem estar enchendo os bolsos apostando nas ficções decorrentes da inflação. Se há um herói nestes tempos de paz, neste Brasil de papel já em fase de hiperinflação, este herói é quem investe seu capital tentando produzir riqueza.

Vamos estabelecer a luta entre o capital e o trabalho — declarava Lula, há poucas semanas, aos jornais. Verdade que agora já fala em debate entre capital e trabalho, afinal votos valem mais do que coerência. Mas isto é o de menos. O trágico nestas primeiras eleições presidenciais, após três décadas de jejum cívico, é que o PT alimente sua campanha com a tosca doutrina de um persa de dezessete séculos atrás. O capital é o Reino das Trevas. O trabalho, o Mundo da Luz. Não é por acaso que Dr. Lula tem formação católica e tem recebido o apoio descarado desta instituição fundamentalmente maniqueísta, a Igreja Católica.

Ganhe ou não o partido dito dos trabalhadores estas eleições, o mal já está feito. As ruas estão tomadas por uma juventude fanatizada empunhando bandeiras e conceitos obsoletos. “A revolução, nos a faremos com os jovens” — dizia o ideólogo dos terroristas em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt — “pois os jovens são estúpidos e entusiastas”. O que nos evoca, tragicamente, os primeiros jovens que um dia empunharam na Alemanha, com a fé dos crentes, a bandeira com a cruz gamada.

Joinville, A Notícia, 10.12.89


 

 

BEIJINHO BEIJINHO

TCHAU TCHAU

 

Meu beijinho doce
foi ele quem trouxe
de longe pra mim.
Abraço apertado
suspiro dobrado
de amor sem fim

 

Florianópolis — O beijo, este gesto aparentemente pagão, em verdade é bíblico. Pais e filhos beijavam-se ao se darem as boas-vindas e ao se despedirem, lemos no Gênesis, I Reis e Lucas. O mesmo faziam os parentes próximos, diz-nos o Êxodo e o livro de Rute. No I e II Samuel, o hábito já se estende aos bons amigos. O beijo, como gesto erótico, só vamos encontrá-lo no Cântico dos Cânticos, quando Sulamita, morena e formosa, pede a Salomão: "que me beije com os beijos de sua boca!" Responde o rei: "Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro de Faraó!". Nestes dias que correm, tal dito provocaria um insuportável alarido nas alas feministas mas, enfim, Salomão, além de sábio, era soberano e usava as medidas que bem entendia. Mas não era disto que pretendia falar.

No I Reis, temos uma interessante acepção do beijo. Na conferência de cúpula em Horeb, Deus ordena a Elias ungir Hazael como rei de Hazam, Jeú como rei de Israel e Eliseu como profeta em seu lugar. "Quem escapar à espada de Hazael, Jeú o matará. Mas pouparei em Israel sete mil homens, todos os joelhos que não se dobraram diante de Baal e as bocas que não o beijaram".

Em termos contemporâneos, chamaríamos tal massacre de genocídio. Mas que fazer, se Javé não gostava que seus servos beijassem touros? Beijar, na época, nem sempre era salutar. Oséias não perdoa: "Homens beijam bezerros. Por isso serão como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece, como a palha que voa fora da eira e como a fumaça que sai pela janela".

Mas o beijo mais trágico da Bíblia está, não no evangelho de Mateus, como se poderia pensar, e sim no II Samuel. Joab, chefe de exército do excelso rei Davi, após ter assassinado traiçoeiramente Abner e mandado matar Absalão, tendo por isso decaído da graça de Davi, foi substituído por Amasa. Se Abner era primo de Saul, Absalão era filho de Davi. Absalão, para vingar sua irmã Tamar, assassinara seu meio-irmão Amon e, como se isto não bastasse, proclamou-se rei em Hebron. Ao entrar em Jerusalém, Absalão tomou posse do harém do pai. Não era fácil a vida em família naqueles dias.

Mas falava de beijos. Ao encontrar seu substituto em Gabaon, Joab o saúda: "Vai bem, meu irmão?" Com a mão direita, Joab segura a barba de Amasa para beijá-lo. "Amasa não percebeu a espada que Joab tinha na mão, e este lha cravou no abdômen, derramando-se-lhe as entranhas no chão". Beijar é perigoso.

Menos para o rei Davi. Muitos beijos terá trocado com Jônatas, mas sobre estes o hagiógrafo mantém discreto silêncio. Quem bota a boca no mundo é o rei Saul, que já oferece a Davi duas de suas filhas, primeiro Merob e depois Micol. Mas o ingrato Davi queria mesmo era Jônatas, coincidentemente filho de Saul. O que quase lhe valeu a vida.

Estava um dia Davi dedilhando sua cítara quando Saul, tomado por um mau espírito da parte de Javé, quase o crava contra a parede com uma lança. Não fosse lesto Davi, Cristo não teria nascido ou, pelo menos, os historiadores teriam de buscar-lhe outra ascendência. Resumamos a história. Com a morte de Jônatas no monte Gelboé, Davi, transido de dor, rasga suas roupas, decreta luto oficial e chora a morte do amado: "Tu me eras imensamente querido, a tua amizade me era cara mais cara que o amor das mulheres". Mas como não há mal que não se acabe, nem amor que sempre dure, o rei Davi toma por favorito Meribaal, filho de Jônatas. Por sorte, Saul morrera junto com seu filho, ou teria ainda a deplorar a sedução do neto. Coisas da Bíblia. Mas voltemos aos beijos.

Gorbachov, em sua última visita à Alemanha Oriental, beijou com ênfase Erich Honecker, o todo-poderoso dirigente comunista que hoje está em cárcere privado, acusado de corrupções de fazer inveja a qualquer modesto marajá de nosso Nordeste. Beijo de Judas, clamaram os comunossauros tupiniquins, com isto querendo dizer que Honecker foi traído por Gorbachov. Beijo de Judas tornou-se, para os leitores apressados da Bíblia, expressão assimilada ao beijo da Máfia, quando um capo beija aquele que deve morrer. Tudo isto porque nos acostumamos a ver em Judas um traidor, quando em verdade foi traído.

Que mais não fosse, sem seu beijo não seriam realizados os desígnios de Javé. Se Judas foi, afinal de contas, instrumento da vontade divina, não vejo porque jogá-lo na lata de lixo do cristianismo.

Judas, traidor ou traído?, de Danilo Nunes, é um desses raros e belos ensaios que uma vez por década — e olhe lá! — honram o ensaísmo nacional. Neste livro o autor acompanha os dias da Paixão. A ruptura de Judas com Cristo, iniciada quando este se retira subrepticiamente do templo, para onde fora conduzido pelo povo aos gritos de Hosana! (liberta-nos!) se consuma quando Jesus, ante a pergunta dos escribas do Sinédrio, cede: "Dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Ora, os escribas queriam saber se era lícito pagar impostos a Roma, questão vital para uma nação que lutava para libertar-se do jugo de César. Cristo vacila e sai pela tangente, com uma resposta que muito nos lembra Lula, quando interrogado sobre a existência de Deus: "Se eu creio em Deus, só ele sabe." Mas Judas não era tão besta quanto os entrevistadores de Lula, que parecem ter engolido, sem tugir nem mugir, a saída safada. Judas, nacionalista ferrenho, vê seu companheiro de lutas aceitando passivamente a dominação romana.

Era, pois, um colaboracionista. Melhor entregá-lo à morte, para não atrasar o processo de libertação de Israel. Para Judas, Jesus não passa de um traidor que percorrera a Palestina arregimentando o povo para um levante, para depois desertar, deixando seus seguidores mergulhados na frustração.

Sob esta luz, o beijo de Gorbachov adquire novo sentido. Honecker está atrapalhando a revolução? Beijinho nele. Claro que Gorbachov deve estar pensando na revolução comunista, pois se a perestroika começa a liberar-se do entulho stalinista, que me conste Lênin e Marx continuam na condição de intocáveis, pelo menos para a cúpula moscovita. Por falar nisso, por onde andará aquele osculador compulsivo, que tanto atrapalhou os serviços de segurança tentando beijar personalidades no Brasil? Aposto que qualquer dirigente comunista bem que preferiria trançar os bigodes com aquele mitômano do que receber um terno beijinho do Gorba.

Em meio a isso, tivemos eleições livres no Chile e Pinochet está passando a seu sucessor um país com uma inflação de 12% ao ano, sem que ninguém precise beijá-lo. Nos últimos comícios, ex-exilados clamavam pelo fim da ditadura, o que é no mínimo paradoxal. Que ditadura permite — e mais, protege — a sua contestação, tanto nos comícios de rua como nas colunas de jornais? Tais liberalidades não existiam sequer nas democracias ditas populares do Leste europeu, pelo menos antes dos beijinhos trocados entre Honecker e Gorbachov.

Falar nisso, quando teremos eleições em Cuba? Lembro que Gorbachov andou por lá e, russo sendo, certamente trocou bicotas com Fidel. Sei lá se pela espessura das barbas do caudilho, ou quem sabe por uma dessas famosas vacinas cubanas, que previnem deste meningite a perestroika, o fato é que o folclórico animador da Disneylândia das esquerdas continua invicto em suas três décadas de ditadura.

A propósito, comentando as eleições do Chile, há pouco um jornal mancheteava: Cai o último ditador da América do Sul. Ou seja, melhor não falar em América Latina. Pois se assim falarmos, está faltando um.

Quando nos dará Gorba o prazer de mais um beijinho em Castro? Não precisa ser no estilo de Joab beijando Amasa, nem de Davi beijando Jônatas. Basta um beijinho doce, um abraço apertado, um suspiro dobrado e o horror terá fim.

Joinville, A Notícia. 17.12.89. Porto Alegre, RS, 23.12.89


 

 

O DRAMA DAS VIÚVAS

 

Florianópolis — Todo homem que nada espera após a morte — e entre estes me incluo — gostaria de ver, antes do último suspiro, algo surpreendente na História. Viagem à lua não valeu, isto os cronistas já nos haviam antecipado. Ir a Marte seria um grande feito, mas como o bicho-homem já pôs esta idéia na cabeça, chegar lá é apenas uma questão de verbas e tempo. Uma nave espacial começa a sair do sistema solar? O fato é insólito, jamais o homem conseguiu lançar um objeto tão longe. Mas parece que vai levar alguns milhões de anos antes de aproximar-se da estrela mais próxima. Minha curiosidade revela-se inútil. Fora a face atormentada de Tritão, pouco nos disse a Voyager que pudesse surpreender-nos.

"Deus morreu, Marx agoniza e eu estou com gripe. Quel siècle!", escrevi outro dia, citando um colega francês. A frase surgiu no final dos anos 70, num daqueles lacônicos editoriais assinados, na primeira página do Monde. Se Deus morreu, seu cadáver continua insepulto. Se Marx agoniza, seus devotos o mantêm entubado e vegetando. Do século, só nos resta a gripe. Mas algo de novo parece estar germinando nas nações que um dia pretenderam escorar-se nas teorias do economista alemão. O marxismo — disse alguém algum dia, talvez eu mesmo — antes do final de século não passará de um verbete numa enciclopédia.

Pois destes dias, ao que tudo indica, estamos nos aproximando mais aceleradamente do que se poderia imaginar. As economias socialistas estão se esboroando por onde quer que existam. Bastou a Hungria pôr abaixo o muro que a separava da Áustria e lá estão 40 mil alemães orientais esperando visto para o Ocidente. Na RDA, as empresas já não sabem de quantos funcionários dispõem, pois quem saiu de férias provavelmente não voltará mais. Isso que a Alemanha Oriental é considerada uma das economias mais sólidas do bloco socialista.

"Eles têm mais para comer do que os poloneses, mais dinheiro do que os húngaros, vivem incomparavelmente melhor do que os russos, os ucranianos, os usbeques" — diz Monika Maron, escritora da RDA e refugiada na Alemanha Ocidental, em artigo para a Der Spiegel. "Mesmo assim, eles despencam nas cidades do lado de cá, fugindo em balões construídos do outro lado em fundos de quintal, atravessam a nado o gelado rio Elba, arriscam a travessia da fronteira austríaca, ocupam as embaixadas da Alemanha Ocidental. O famoso senso alemão de ordem deixa de ter validade quando cidadãos da Alemanha Oriental se empurram mutuamente diante dos poucos e pequenos buracos existentes no muro".

Nas fronteiras da Hungria com a Áustria, amontoam-se os carros abandonados pelos alemães orientais. Se considerarmos que quem tem carro em país socialista pode considerar-se um privilegiado, podemos ter uma idéia de como vivem os demais, que não pertencem à Nomenklatura. Isto que, para ter acesso a um carro, um cidadão da RDA precisa esperar 18 anos. Se tiver a lembrança de candidatar-se à compra de um aos 18 anos, tudo dando certo — o que nem sempre acontece — poderá recebê-lo aos 36.

Monika Maron nos relata a perplexidade de um operário que teve permissão para visitar Colônia. Após retornar à sua casa, sentado em meio a seus familiares, perguntava-se, balançando a cabeça: "Mas o que foi que nós fizemos? Por que estamos sendo castigados desta maneira? Afinal de contas, não foram todos os alemães que perderam a guerra?"

Quando até os privilegiados decidem votar com os pés, podemos imaginar o que sofre quem está sob as botas da Nomenklatura. Poloneses e húngaros já não querem nem ouvir a palavrinha mística, comunismo. Lituânia, Letônia e Estônia denunciam o pacto secreto que as entregou ao jugo de Stalin e reivindicam sua integração ao bloco ocidental. A Moldova recupera sua língua e as repúblicas muçulmanas ameaçam rachar pelo meio o império moscovita. Gorbachov, com suas tímidas iniciativas, tem hoje diante de si uma esfinge de duas cabeças: balcanização ou uma solução à la Pequim. Por qual delas optará, isto se não for antes limogé do Kremlin? Este desfecho, creio, será dado a mim e aos de minha geração assistir. Marx morreu. Que a terra lhe seja leve. E, por favor, viúvas: não me venham falar de Trotsky.

Comecei este comentário baseado em informações de véspera. Os jornais de hoje me informam que os fugitivos da Alemanha Oriental já são sessenta mil. Abandonaram tudo o que haviam conseguido amealhar em vida: casa, apartamento, móveis, carro. A televisão nos mostra os rostos vibrantes do que já conseguiram atravessar a fronteira austro-húngara, portando apenas a roupa do corpo. A pergunta mais corrente, nestes dias, quando dois alemães se encontram em Berlim Oriental é: "ainda aqui?"

Gorbachov tem em mãos uma oportunidade raramente concedida a um estadista em um século: acelerar a desunião soviética, declarar a bancarrota do império, permitir que os povos respirem. Ingleses, espanhóis e portugueses tiveram de renunciar ao colonialismo. Por que constituiriam os russos exceção? Balcanização, urgente! Antes que a Nomenklatura reaja e o mande para a Sibéria. Antes que a Europa do leste seja submetida à tétrica paz da Praça da Paz Celestial. Estamos vivendo, sem dúvida alguma, um crucial momento histórico.

A Europa testemunha hoje o estertor de suas mais desvairadas utopias. Lástima não mais estarem entre nós homens como Camus, Gide, Orwell, Koestler, Raymond Aron. Foram caluniados, julgados e condenados em vida, pelo crime então imperdoável de denunciar as tiranias travestidas de humanismo. Pena não estarem vivos Sartre, Simone, Aragón, Neruda. Para pelo menos assistirem a débâcle ideológica que norteou suas vidas.

O problema é que muitos outros continuam vivos, particularmente na América Latina, onde mesmo na era das comunicações os epitáfios costumam chegar com pelo menos uma década de atraso. Aconteça o que acontecer no império moscovita, nossa intelligentsia precisará ainda de mais algumas décadas para descontaminar-se.

Entre os muitos livros que deveriam ser traduzidos no Brasil — mas não o foram, dada a censura onipresente dos ditos intelectuais de esquerda — está Le Dieu des Ténebres, antologia que reúne depoimentos de escritores que um dia militaram nas fileiras de Moscou, para logo abandoná-las, ao intuir a essência totalitária do marxismo. O livro foi publicado em 1950, em Paris. Entre os vários depoimentos, transcrevo estes trechos do escritor italiano Ignazio Silone:

"A verdade é que minha saída do Partido Comunista constituiu para mim uma data muito triste, um grave luto, o luto de minha juventude. E eu venho de um país onde se porta luto por mais tempo que alhures. Não nos libertamos facilmente de uma experiência assim intensa como a vivida na organização comunista. Dela sempre subsiste qualquer coisa que marca o caráter pelo resto da vida. Vejam, aliás, como são facilmente reconhecíveis os ex-comunistas. Eles constituem uma categoria à parte, como os padres apóstatas e os ex-oficiais de carreira. Hoje, o número de ex-comunistas é legião".

Silone assinava tais declarações há quatro décadas. Como estamos na América Latina, e longa é a jornada de um fanático até o entendimento, passo de novo a palavra ao italiano:

"A luta final terá lugar um dia entre os comunistas e os ex-comunistas, disse certa vez a Togliatti. Esta afirmação deu lugar a diversas interpretações. No entanto, o sentido que eu lhe atribuía era simples. Será a experiência do comunismo, pretendia eu dizer, que matará o comunismo. Assim sendo, não excluo que o golpe de misericórdia lhe venha da Rússia. Que acontecerá quando os milhões de pessoas de retorno dos campos de trabalho forçado na Sibéria possam livremente falar?"

Silone enganou-se, ao que tudo indica, quanto aos milhões que voltariam dos gulags: raros foram os que de lá voltaram. Mas milhões são os que hoje querem fugir do imenso gulag comunista ou, pelo menos, transformá-lo em um mundo habitável. Marx morreu, caríssimos. E luto está completamente fora de moda.

Porto Alegre, RS, 01.10.89


 

 

A LONGA LINHAGEM

 

Porto Alegre — Pois andei perambulando pela última Feira do Livro de Porto Alegre, com a alegria de quem é um pouco partícipe do Nobel de Literatura, já que me coube a honra — e as peripécias — de traduzir ao brasileiro as duas únicas obras publicadas entre nós de Camilo José Cela, A Família de Pascual Duarte e Mazurca para dois Mortos. Quando um Nobel surpreende e sua obra é totalmente inédita no Brasil, não falta quem reclame de nossa indigência cultural, falta de sensibilidade editorial e resmungos do gênero. Bueno, agora o autor tem traduzidas duas de suas criações fundamentais que, diga-se de passagem, pouca atenção mereceram, tanto de parte da crítica como de parte dos leitores. E muito menos dos livreiros. Na Feira do Livro, inaugurada quase junto com a premiação, não havia um só exemplar de Cela. Mais ainda: não o encontrei em livraria alguma de Porto Alegre.

Encontrei, em compensação, livrinho dos mais significativos, particularmente nestes dias que correm. Falo de Berlim: Muro da Vergonha ou Muro da Paz?, edição da L&PM, com terna homenagem em suas primeiras páginas a Luiz Carlos Prestes, esta alma penada que parece ter perdido a noção da época em que vive, ainda hoje encaracolado em seu stalinismo obtuso, primário e criminoso.

Se viajar ilustra, como dizem as gentes, há pessoas que mesmo dando dez voltas ao mundo não se deixam impregnar do mínimo verniz cultural. É o caso de Antônio Pinheiro Machado Netto, autor desta sintomática ode à tirania. Terá o livro envelhecido tão cedo ou terá sido seu autor sempre senil? Senão, vejamos.

Tendo visitado por duas vezes a URSS, a convite do Comitê dos Partidários da Paz na União Soviética, e uma terceira vez a Tchecoeslováquia, pela Assembléia pela Paz e pela Vida, e sentindo-se na obrigação de pagar suas mordomias em alguma moeda — desde que não dólares — nosso turista apressado entoa loas ao muro que durante três décadas constituiu o mais sinistro e desumano erigido pelo comunismo russo. Pincemos, cá e lá, alguns trechos desta cretina defesa do totalitarismo. O livro, é bom lembrar, foi editado em 1985. Se ainda entendo de matemática, há apenas quatro anos. Vamos lá.

Hoje não se pode mais falar em reunificação da Alemanha, pura e simplesmente, com fundamento tão somente na língua e história comuns. (...) Não se pode, todavia, afastar a hipótese de, num futuro mais ou menos remoto, vir a ocorrer a unificação (como aconteceu no Vietnã). Esta hipótese, porém, só pode ser considerada se na chamada Alemanha Federal — RFA — passar a existir também um regime socialista.

Uma das maiores bobagens veiculadas no Brasil sobre o Muro de Berlim é que ele foi erguido para evitar as fugas de alemães da RDA para a parte oeste de Berlim. Esta asneira é veiculada até por pessoas que gozam de alguma credibilidade no Brasil, e por órgãos de comunicação, que se apresentam como veículos fiéis à verdade.

Todos os epítetos lançados contra o muro — afronta à liberdade, vergonha, etc., etc. — escondem apenas o ressentimento e a frustração dos fazedores de guerra que, naquela linha de fronteira, viam o começo da terceira guerra mundial por que tanto sonham, e para cujo deflagrar tudo fazem, com vistas a salvar o capitalismo da crise irreversível em que está mergulhado.

É natural que na RDA e nos demais países socialistas a tendência seja a diminuição do índice de criminalidade, de vez que as infrações penais que têm origem na miséria, numa vida difícil e atormentada, com dificuldades econômicas e financeiras, tendem a desaparecer por completo nos países socialistas, e muito particularmente na RDA.

Mas, decorridas quatro décadas, essa mesma Alemanha Ocidental — eis a grande verdade — não resolveu problemas vitais do povo alemão que vive na região ocidental. Mais do que isso. Hoje a República Federal da Alemanha — RFA- , como todo mundo capitalista, é um país atormentado por uma crise de vastas proporções, crise política, econômica, social e moral.

A realidade alemã ocidental hoje reflete a crise que avassala o sistema capitalista. Na RFA a situação social também vem se agravando. Progressivamente aumenta a pobreza.

Os sindicatos da RFA estão prevendo que até 1990 cerca de 100 mil pessoas perderão seus empregos, atualmente, por força da automação. Afora, evidentemente, o desemprego resultante da crise do capitalismo que existe na RFA e em todo o ocidente capitalista, e que vai continuar.

Os meios de comunicação de massa do Ocidente já “decretaram” que nos países socialistas não há liberdade para os cidadãos e que, especialmente, inexiste liberdade de imprensa. Também “decretaram” que os direitos humanos não são respeitados no mundo socialista.

Daqui cinco anos (ou seja, ano que vem, parêntese meu), na RDA, não haverá mais desconforto habitacional — todas as famílias terão sua casa.

Acho que chega. Visto destes dias, quando centenas de milhares de alemães orientais choram, riem, cantam e bebem comemorando a derrubada — política, por enquanto — do muro, o livro de Antônio Pinheiro Machado Netto nos sabe a sinistra e merencória estupidez. Curiosamente, vereador algum da dita Administração Popular apresenta moção declarando persona non grata a Porto Alegre este entusiasta advogado de gulags. Este senhor, defensor dos restos podres do stalinismo, é Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e dela ainda não foi expulso.

Que um jovem fanatizado, sem leituras nem viagens, profira tais despautérios, é compreensível. Mas tal atenuante não beneficia um homem de idade cujos olhos tiveram a oportunidade de constatar, in loco, o exercício da tirania. Enfim, a paranóia parece ser genética. Um outro Pinheiro Machado, o Luiz Carlos, durante décadas, pretendeu submeter os genes às leis da dialética, defendendo as experiências fajutas de Lyssenko, pupilo de Stalin que por seu dogmatismo quase arrasou com a agricultura russa, tornando-a dependente, até hoje, de grãos do Ocidente. Luiz Carlos teve certa sorte: não teve editores que publicassem suas asneiras. O mesmo não aconteceu com Antônio.

Desde os anos 30, Moscou aprendeu como conquistar intelectuais no Ocidente: basta oferecer-lhes viagens e mordomias, com a nonchalance de quem joga milho às galinhas. A longa linhagem de intelectuais vendidos alberga desde pinheiros natos a expressões mais altas, tipo Kazantzakis, Aragon, Neruda, Brecht, Lukács, Sartre, Simone, Jorge Amado, Graciliano Ramos e vou ficando por aqui, que a lista seria infinda. O stalinismo, dogma já superado na Europa, ainda vige na América Latina.

O muro de Berlim já caiu. Quando cairá o muro mental de imbecilidade que ainda determina o pensamento de intelectualóides de esquerda?

Joinville, A Notícia, 26.11.89


 

 

SOB AS SAIAS DO VATICANO

 

Florianópolis — Quando comecei a escrever estas linhas, Ceaucescu estava cai não cai. Na segunda lauda, já havia caído e tive de reformular a crônica. E antes que me ocorresse qualquer reflexão sobre as novas notícias, já fora fuzilado. A libertação da Polônia exigiu dez anos de luta. A libertação da Alemanha Oriental, Hungria, Tchecoeslováquia e Bulgária, coisa de cem dias. A da Romênia, dez horas.

Na América Central, Noriega não dirige mais sua base de narcotráfico e Castro que se cuide. Decano dos ditadores contemporâneos, tem seus dias contados e sabe disso. Basta Gorbachov cortar-lhe os dólares e boa-noite! Claro que qualquer desejo de liberdade custará aos cubanos um alto preço em sangue, como está custando aos romenos. Caindo Castro, a Nicarágua perde seu apoio logístico. Caindo Ortega, os meninos mimados — e irados — da classe média brasileira não terão mais onde treinar guerrilha na América Latina. Resta um pós-grad na Líbia, é claro. Mas no deserto impera o islamismo e Alá não gosta de cerveja.

O ano que passou foi de muitas lágrimas, muitas de dor e muitas mais de alegria. Choraram alemães de contentamento e chineses de perplexidade. Romênia à parte, libertação sem sangue no Leste europeu e retrocesso sangrento na China Comunista. Neste macabro balanço, ousaria afirmar que o saldo foi positivo. Resta agora a Albânia como última vergonha dos Balcãs e Cuba e Nicarágua como últimas vergonhas da América Central. Restam outras vergonhas mundo afora, é verdade, mas voltemos à Romênia.

Foi um dos raros países onde antes de entrar já senti medo. Em Paris, embarquei em um Tupolev caindo aos pedaços, tipo aquele nos quais o Tio Patinhas envia o sobrinho Donald para alguma missão longínqua. Coincidiu que o espaldar de meu assento não se mantinha na vertical, caindo sobre os joelhos do passageiro de trás. Em suma, decolei sem o cinto de segurança, pois tive de utilizá-lo para firmar o assento. Durante cinco horas de vôo, escuridão absoluta no avião e reiterados avisos de não usar máquinas fotográficas. Como se, nesta época em que satélites conseguem fotografar uma página de jornal, a maquineta de um turista voando em meio à escuridão pudesse revelar algum segredo militar às potências inimigas.

Mais caquéticas que o avião, só mesmo minhas companheiras de viagem, uma excursão de múmias com esperanças de recauchutar-se nas clínicas de Ana Aslan. A média de idade de meus parceiros de vôo estaria em torno dos 80 anos e isso que eu — e apenas eu — tinha menos de quarenta na época. No que não vai nenhuma derrisão.

Aterrissamos em Bucareste, no meio da noite. Dezenas de soldados, metralhadoras em punho e baionetas caladas, formavam um corredor polonês para recepcionar os perigosos estrangeiros que, diga-se de passagem, mal podiam manter-se em pé por si sós. Isto aconteceu há dez anos, quando, aparentemente, tudo era paz no país. Digo aparentemente porque outros indícios me fizeram intuir que a paz romena trazia em si um ódio embutido.

Em Mangália, cidade turística às margens do Mar Negro, passei duas semanas em “hotel de luxo”, e não é por acaso que o ponho entre aspas. No “hotel de luxo” da cidade turística, vivi quase no limiar da fome, e isso que pagava em dólares. Tentei então imaginar como viveria e comeria um romeno. Não necessitei de muito esforço. Em um supermercado de prateleiras vazias chegou um pedaço de carne. Os nativos disputavam a tapas um naco, e isso que disputavam aqueles que tinham condições de pagá-lo.

Nas ruas, mal um romeno me abordava, logo surgia atrás dele um anjo da guarda equipado com aquelas sinistras metralhadoras com baioneta calada, e ainda apoiado por um cão policial. O transeunte anônimo que ousara falar com o estrangeiro tinha de identificar-se e se expunha a conseqüências que desconheço. Diz-se que o turista tem sempre uma visão superficial da própria viagem. É verdade. Mas quando chegamos em um país com baionetas nos espetando a barriga em tempos de paz, e a polícia identificando qualquer nacional que ouse abordar um estrangeiro, não precisamos de maiores intuições para saber em que tipo de regime estamos. Quando o turista, com dólares e de passagem, tem tratamento de suspeito, já podemos ter uma idéia do que sofre o cidadão comum.

Na Romênia, vi miséria, corrupção, opressão, medo. Principalmente medo. Pessoas com medo de falar e, se falavam, falavam baixinho. Este clima de medo chegou a contaminar-me. Escrevera alguns postais para a França e Brasil, contando o que havia visto por lá. Na hora de postá-los, hesitei. Com tamanha vigilância, sei lá o que poderia acontecer. Preferi deixá-los para o dia do embarque. Quando a Securitate — a polícia política de Ceaucescu — os tivesse traduzido, eu já estaria voando.

Contei estas e outras coisas ao voltar, em palestras e artigos, para incredulidade de quem me lia ou ouvia. “Não pode ser, estiveste apenas duas semanas no país, lá existe comida e educação para todos”, etc. e tal, em suma, a costumeira apologética empunhada contra os que ousam denunciar a ignomínia dos sagrados regimes socialistas. Dez anos depois, aí estão as manchetes. A ditadura familiar dos Ceaucescu gerou tanto ódio que os romenos sequer conseguiram esperar o julgamento merecido. Sabemos agora que tanto Ceaucescu, “o gênio dos Cárpatos”, quanto Honecker, o “presidente” da Alemanha Oriental, mantinham gordas contas em bancos suíços. E viva o socialismo!

FUZILADO DITADOR ROMENO, alardeiam as manchetes dos jornais. O que muito me surpreende, pois Ceaucescu era ditador há vinte e quatro anos e, ao que tudo indica, jornalista algum havia percebido o fato. Leitor inveterado de jornais, não lembro ter lido, neste último quarto de século, referência alguma na imprensa brasileira ao ditador romeno. Após o fuzilamento, Ceaucescu vira uma espécie de Drácula.

“Ele também era” — escreve tardiamente Luís Fernando Veríssimo — “uma representação quase mítica nos seus extremos, da nova aristocracia da região, a dos pequenos tiranos criados pela ortodoxia comunista nos países satélites, além de ser o exemplar mais antigo da espécie”. E aqui se equivoca o cronista. O conducatur foi ditador por apenas duas décadas e meia. O mais antigo exemplar da espécie dos pequenos tiranos criados pela ortodoxia comunista nos países satélites está no poder há mais de três décadas. Chama-se Fidel Castro e gere sua ilha particular onde recebe as esquerdas do mundo todo, seja para treinar guerrilha e exportar seus métodos ditatoriais, seja para difundir a idéia de que seu gulag é um paraíso.

Enquanto isso, Noriega se esconde sob as saias do Vaticano, último regime ditatorial da Europa de cá. O maior traficante internacional de drogas — não é o cristianismo uma droga poderosa? -, do alto de sua curul no Vaticano, alberga e protege o traficante menor do Caribe. Excitação nas esquerdas latinas, protestos contra a intervenção ianque. Mas o que está em jogo não é a doutrina Monroe, sempre invocada quando Castro é ameaçado, sempre esquecida quando o solitário deão dos ditadores latinos invade Angola. O que mais preocupa as esquerdas é o acesso aos arquivos de Noriega e a constatação de que o comunismo, na América Latina, depende do narcotráfico.

Com a mesma aisance com a qual homiziou um cardeal ligado à Máfia e perseguido pela justiça italiana, o Vaticano subtrai aos tribunais americanos um criminoso comum. Cuba lhe oferece albergue. Tudo fecha.

Porto Alegre, RS, 13.01.90


 

 

VIVAM NÓS!

 

Florianópolis — A leitura dos jornais, dizia Hegel, é minha prece cotidiana. O mesmo já não diria Nietzsche, para quem o jornalismo era a morte da cultura. Leitor apaixonado de Nietzsche, jamais me entendi bem com Hegel, em cujo pensamento estão as raízes dos totalitarismos contemporâneos. Enquanto Nietzsche nos libera espiritualmente, Hegel nos insinua o caminho dos gulags. No entanto, fascina-me a frase de Hegel e não participo da ojeriza nietzscheana. Apesar dos problemas que vivemos, apraz-me viver em um país onde posso, três ou quatro vezes por dia, prestar meu preito — e com muito prazer — ao espírito da história. Não sei se o leitor sabe: se considerarmos os grandes órgãos de divulgação nacional, temos tranqüilamente uma das melhores imprensas do mundo.

Fui dar-me conta disto, no ano passado, ao viajar pelo Chile e Argentina. Sempre procuro ler os jornais do país onde estou. Mas tanto em Santiago como em Buenos Aires, fazia a ronda das bancas em busca de uma Folha de São Paulo, Estadão ou Jornal do Brasil. Não era saudades do Brasil, nada disso. Acontece que qualquer destes três jornais me dava maior volume de informação sobre a América Latina e o planetinha do que as imprensas chilena ou argentina. Vou mais longe. Na França de hoje, apesar do provecto Le Monde e do ágil Libération, não temos um jornal que se compare, em termos de informação e opinião, ao Estado de São Paulo. Há o Canard Enchainé, é verdade. Mas o Canard é hors concours. Sei que não é fácil pensar no Brasil com otimismo. Mas boa imprensa, pelo menos, nós já temos.

Em Meu Ultimo Suspiro, Buñuel dizia recusar-se a viajar a países que já não conhecesse. Ainda não cheguei a tal ponto. Mas a cada dia que passa, reluto cada vez mais em viajar por países onde a imprensa não é livre ou, o que é pior, onde sequer tenho acesso à imprensa de países livres. Você pode estar numa praia perdida das Açores, Canárias ou em alguma das ilhas gregas, mas lá estão Le Monde, El País, Corriere della Sera, Svenska Dagbladet. Nos países comunistas por onde andei — onde, no fundo, há o dedo de Hegel — nosso filósofo andaria de língua de fora de quiosque em quiosque, sedento por notícias da marcha do espírito na história. Há, é verdade, a imprensa local. Mas aquilo não é jornalismo e só serve como sucedâneo à falta crônica de papel higiênico nos países socialistas, o que talvez explique a enorme tiragem da Pravda.

A Iugoslávia, por exemplo. Dentro do bloco do Leste, até antes da derrubada do muro de Berlim, era país de certa liberdade, o único de onde seus cidadãos podiam sair e voltar. Mas liberdade de imprensa, que é bom, nem pensar. Contestar Tito, quando vivo ou mesmo depois de morto, nem sonhando. Em meus dias de Skopje, embalado pela hospitalidade macedônia, poderia dizer que fui recebido com tapete vermelho. Soava como ofensa, a meus anfitriões, o gesto de puxar a carteira para pagar qualquer coisa. Mas pelas manchetes dos jornais, traduzidas pela amiga que me levara àquelas plagas, eu deduzia que nada se noticiava do que de realmente importante acontecia no mundo.

Saciado de vinhos e sedento por notícias, pus minha interlocutora contra a parede. Se teu país é livre, como dizes, onde é que estão os jornais? Desses, com autoridades cortando fitas, não quero nem saber. Quero os jornais de Paris, Londres, Roma, Madri. Onde é que estão? Ou serão proibidos em teu país? Verdade que eu exigia demais dos bravos autogestionários. Cá em Florianópolis, quando morava na Lagoa da Conceição, se quisesse um jornal do Rio ou São Paulo, teria de descer ao centro, como dizem os ilhéus. Em Canasvieiras, no fim de ano, encontrei jornais fresquinhos de Buenos Aires. Do Brasil, que é bom, nenhum.

Minha macedônia, nascida na geografia que deu ao mundo Alexandre, troteou junto comigo de quiosque em quiosque, e nada de notícias do mundo livre. Apelamos aos hotéis internacionais, refúgio de turistas endolarados. Nada feito. Se, numa cidade, não sei o que está acontecendo no planetinha, melhor ir para mais longe. Refugiei-me então em uma ilhota, dentro de um lago de uma ilha maior, Mljet. Na ilhota interior havia um convento transformado em colônia de nudismo, o que me pareceu excelente idéia do camarada Tito. Se a transportássemos à América Latina, teria gente mais saudável e menos Boffs ou Cardenais. Mas falava de jornais.

Precisamente dois séculos após a sanguinolenta revolução francesa, a imprensa do mundo livre nos traz notícias desta insuspeita revolução, feita praticamente sem sangue, Romênia à parte. Nenhuma ficção contemporânea, por mais insólita e profunda que se pretenda, nos traz tantas surpresas quanto os jornais dos últimos dias do ano passado. Para quem não costuma fazer suas preces cotidianas, ao estilo Hegel, o que ocorre no Leste pode parecer mais moda do que revolução. É, no entanto, revolução. E das boas. Com profundas conseqüências na América Latina. Pois neste próxima década, neste final de milênio, será necessário muita falta de vergonha para exibir estrelas, foices e martelos, como símbolos de bem-estar e liberdade. Estas transformações estão sendo, intempestivamente, creditadas a Gorbachov. Concedo, Gorbachov tem seu valor ao enfrentar, com risco de vida, a Nomenklatura russa. Mas o mérito disto tudo pertence, a meu ver, à imprensa livre do mundo ocidental.

Por mais fechado que seja um sistema, acaba sendo permeado por informações do universo que o envolve. Por mais que se proíba a entrada de livros ou jornais, as notícias sempre ultrapassam as fronteiras. Não surpreende que o ponto mais vulnerável da Cortina de Ferro tenha sido precisamente o mais fortificado, Berlim. O lado ocidental da cidade é uma deslumbrante vitrine do mundo capitalista assestando seus apelos ao lado oriental, pois alemão ingênuo só encontramos mesmo em piadas.

Por que tenho de fazer fila para comprar um rolo de papel higiênico que mais parece lixa, quando do outro lado do muro, sem fila alguma, posso escolher entre 30 ou 40 tipos de papel? Por que não posso ter um micro, quando do outro lado do muro toda uma geração de crianças usa o computador como se fosse lápis? Essas ilhas paradisíacas, às quais qualquer operário europeu tem acesso, por que só para mim são proibidas? Por que a noite é viva e cheia de luzes do lado de lá e tão triste e escura do lado de cá?

Otimismo é moeda rara em tudo o que escrevo. Já houve quem sugerisse um patrocínio para estas crônicas, a soda cáustica. Assim sendo, com a autoridade de pessimista profissional, ouso dizer que entramos na década com o pé direito. Quem quiser empunhar bandeiras libertárias neste final de milênio, que delas retire qualquer estrela vermelha ou foice e martelo. O relativo bem-estar proporcionado pela social-democracia européia dobrou a barbárie stalinista. Esta revolução sem sangue, cujas conseqüências ainda mal intuímos, deve em boa parte ser creditada aos filhos de Gutenberg.

Joinville, A Notícia, 14.01.90


 

 

PAUNESCU E OS NOSSOS

 

Florianópolis — Adrian Paunescu, poeta oficial da ditadura romena, vive hoje seus piores dias. É que caiu Ceaucescu, definido por Paunescu como o Titã dos Titãs, o gênio dos Cárpatos e outras gentilezas mais. No último Natal, mal soube do fuzilamento de seu protetor, o poeta foi correndo à televisão manifestar seu apoio à revolução emergente. Teve sorte em não ter sido linchado. “Devemos julgá-lo”, bradavam os romenos.

Eta povinho apressado! Ou seremos nós os lentos e propensos ao perdão? O século foi pródigo em poetas que cantaram ditaduras e até hoje não os julgamos. Pelo contrário, apressamo-nos a conferir-lhes os mais nobres galardões da literatura.

Por exemplo, Louis Aragon, que durante toda sua vida foi um dos vates mais cultuados pelas esquerdas. Pincemos esta pérola, que reproduzo em francês, para não roubar ao poeta seu estro:

Salut à toi, Parti, ma famille nouvelle
Salut à toi, Parti, mon père désormais
J’entre dans la demeure où la lumière est belle
Comme um matin de premier mai!

Traduzindo, sem preocupações com rima ou ritmo:

Eu te saúdo, Partido, minha nova fampilia
Eu te saúdo, Partido, meu pai doravante
Entro em tua morada, onde a luz é linda
Como uma manhã do primeiro de maio.

Isto foi escrito em 1960, quando já se sabia muito bem o que significava o comunismo russo. Enfim, para não sairmos de nosso continente, temos Pablo Neruda, que além de suas medíocres odes aos hortifrutigranjeiros, não deixou de escrever sua ode a Stalin. Não a tenho em mãos porque foi subtraída de suas Obras Completas, mas em algum lugar já tive oportunidade de lê-la. Neruda vai influenciar Drummond de Andrade, que além de prestar seu culto ao totalitarismo em Rosa do Povo chega a dirigir um jornal stalinista, em 1945.

Ao inverso de Adrian Paunescu, Neruda, que morre como stalinista ferrenho, mereceu o Nobel de Literatura. E Carlos Drummond de Andrade que, como bom mineiro, calou o bico, mereceu homenagem na cédula de 50 cruzados novos. A inflação não deixa de ter seus méritos. Se hoje, com um Drummond, compro duas cervejas, mais dois ou três meses e o poeta não valerá sequer uma caixa de fósforos.

Sem ir mais longe, Oswald de Andrade, cujo centenário está sendo comemorado, nestes dias, o que certamente valerá incontáveis hagiológios dos PhDeuses uspianos e irmãos Campos Universitário. Oswald, não contente de ser stalinista, foi fascista e nazista. Ou seja, prestou culto às três maiores pestes do século. Na Semana de Arte Moderna, foi porta-voz de Marinetti, vigarista italiano nascido no Egito que, por sua vez, era porta-voz de Mussolini.

Em sua peça O Homem e o Cavalo, louva Stalin como o arauto dos tempos novos. Por ocasião do pacto Stalin-von Ribbentropp, passa a escrever no jornal nazista Meio-Dia, cuja página de cultura era editada, nada mais nada menos, por Jorge Amado. O erro de Paunescu parece ter sido apostar apenas em Ceaucescu. Distribuísse algumas fichinhas em Hitler, Mussolini, Khomeiny, talvez continuasse hoje sendo cultuado como poeta revolucionário. Convido o leitor a um rápido passeio pelo teatro do poeta centenário.

A voz de Stalin — Passar do cavalo camponês ao cavalo da indústria construtora de máquinas, eis o plano central do poder Soviético. Escutai a metáfora leninista. Passar de uma alimária à outra. Da alimária do campo, do cavalinho que convém a um país arruinado de camponeses ao cavalo que o proletariado procura e deve procurar, o cavalo da indústria, o cavalo-vapor”.

Só mais um pouquinho de Stalin, segundo Oswald:

“— Não tínhamos indústria siderúrgica, agora temos! Não tínhamos indústria mecânica, agora temos! Não tínhamos indústria de tratores, agora temos! Não tínhamos indústria de automóveis, agora temos! Não tínhamos indústria química, agora temos! Não tínhamos liberdade, agora temos!”

Não tínhamos liberdade, agora temos! — diz Stalin através da pluma do viajado e provinciano dandy, oriunda da burguesia cafeeira paulista. Tão provinciano a ponto de ter alugado uma sala na Sorbonne — como qualquer um pode fazer — para depois jactar-se de ter feito uma palestra na Sorbonne. Pior que tudo, sua apologia ao massacre stalinista, candidamente expressa pela voz da Terceira Criança. O sacrifício de milhões de vida justifica o mundo novo. Mundo que hoje se esboroa precisamente por ser arcaico e desumano. Fechamos as cadeias, diz Oswald pela boca do Médico. Esqueceu de acrescentar: abrimos gulags. Pois este senhor, que além de fazer a apologia de Stalin, foi fascista e nazista, receberá neste ano as homenagens da intelligentsia brasileira.

Jorge Amado, por sua vez, vai assessorar o renascimento da Biblioteca de Alexandria. Stalinista baboso e militante, editou Oswald na página literária que dirigia no jornal nazista Meio-Dia. Sem falar em suas ambições ao Nobel, obscenamente patrocinadas pelos serviços diplomáticos brasileiros nesta era Sarney, escrevinhador medíocre com quem Amado fecha como unha e carne. Suponho que, no renascer da biblioteca organizada por Alexandre, que constitui a primeira universidade da história, o baiano metido a cosmopolita não deixará de incluir suas odes a Stalin e ao stalinismo, que constituiram mais da metade de sua literatura.

Aliás, algo que até hoje não entendo, é como Moacyr Scliar consegue posar sorridente ao lado do escritor que trabalhou para Hitler e Stalin, justo os dois maiores exterminadores de judeus que este século conheceu. Mas, enfim, se Amado, seu amigo, orgulha-se de ter recebido um prêmio Stalin de literatura, não vejo porque Scliar não poderia orgulhar-se de um prêmio da Casa de las Americas, patrocinado pelo último tirano stalinista da América Latina.

Acho que perdi o fio da crônica. Falava mesmo de quem? Ah! Do Adrian Paunescu, puxa-saco do Ceaucescu. Bem que podia pedir asilo junto à intelectuália brasileira. Chez nous, em vez de ser linchado, provavelmente estaria recebendo as homenagens com as quais a mídia nacional honra estes dois fascistas-nazistas-stalinistas, Oswald e Amado.

Joinville, A Notícia, 21.01.90. Porto Alegre, RS, 28.01.90


 

 

SARTRE E OS PICA-PAUS DE BERLIM

 

Florianópolis — O sonho acabou, dizem intelectuais ditos de esquerda, ao referir-se ao fracasso total dos regimes comunistas. Digo intelectuais ditos de esquerda, porque jamais aceitei esta conceituação, afinal desde os anos 20 as tais de esquerdas vêm cultuando os vícios que atribuíram à tal de direita. Os gulags, é bom lembrar, datam de 1918. Hitler nada teve de original. Por sonho, nossos intelectuais entendem o socialismo. Estes sonhadores profissionais sempre viveram no cálido e capitalista Ocidente, é claro. Socialismo, no olho alheio, é colírio. Para quem o sofre, um pesadelo.

O sonho pode ter acabado. Mas apenas para estes esquerdofrênicos que, degustando um scotch e pinçando castanhas ao som de Chico Buarque, louvavam o regime inumano que oprimia milhões de seres na China, União Soviética e colônias. Disse oprimia? Perdão leitor. Continua oprimindo. Se os países do Leste europeu começam a tatear um caminho de liberdade, Gorbachov ainda não está conseguindo impor a perestroika em sua própria casa. Quando os comunossauros de Moscou largarem o osso do poder, só então poderemos respirar tranqüilos. É bom lembrar que as tropas russas continuam estacionadas na Europa central. A Gorbachov, para concluir sua missão, só falta um passo: declarar massa falida o sistema que o gerou. Ou seu projeto terá sido vão.

De Paris, recebo duas cartas. A primeira, de amiga que agora cogita visitar-me, pois finalmente o Brasil teve "eleições democráticas". (As aspas são dela, não minhas). Pelo jeito, preferia a barbárie no poder. A propósito, no período do segundo turno, os jornais franceses estavam saudando Monsieur Lula como le futur président du Brésil. Francês sempre teve o coração à esquerda. Socialismo é ótimo, desde que longe da França.

Mas falava de minha missivista, que já viajou pela China, União Soviética, países do Leste e jamais exigiu eleições livres do lado de lá. Conseguiu inclusive entrar na Albânia, último reduto dos "puros e duros", para onde agora estão viajando cinco deputados brasileiros, entre eles Florestan Fernandes, homem dotado de tal coragem intelectual que chegou a apoiar os massacres da praça da Paz Celestial em Pequim.

Da Albânia, minha amiga parisiense contou-me uma história divina. Encrave tirânico e medieval em meio a uma Europa moderna, a agricultura do país ainda está na fase da enxada e do rabo do arado. Enver Hoxha, acusado pela imprensa ocidental (pela albanesa é que não o seria) de manter um sistema que sequer produzia um trator, convocou seus engenheiros e ordenou a construção de um. Construído o dito, ficou provado que o poderoso pensamento camarada Hoxha era capaz de conceber uma agricultura mecanizada. Provado isto, o trator foi para um museu, onde até hoje está, enquanto os albaneses continuam entortando as vértebras no cabo da enxada.

Na segunda carta, as angústias do final de década de um brasileiro há muito vivendo em Paris: "Toda a ideologia dominante de nossa geração e os castelos e fortalezas que sobre ela foram construídos se esboroam sobre as fundações que supúnhamos sólidas. No PCF a debandada é geral, o que, em comparação com o resto é um epifenômeno localíssimo. Embora a política não tenha sido objeto de minhas paixões, vejo tudo isso boquiaberto e me pergunto que nova Jerusalém o espírito humano (e europeu) vai nos tirar de sua caixinha de surpresas".

Pois espero que o espírito europeu não conceba mais nenhuma, que de Jerusaléns estamos fartos. Gerações e gerações foram sacrificadas neste século na busca de um ideal assassino, e ai de quem discordasse dos sagrados postulados de Moscou! Dois milenaristas no poder já são demais para um único século em um só continente. Hitler e Stalin foram adorados por seus contemporâneos e quase afogaram a Europa no mais vasto mar de sangue que até hoje temos notícia. Hitler, ao perder a guerra, foi relegado ao papel de vilão. Mas não tenhamos dúvida alguma: se a ganhasse continuaria a ter adoradores no mundo todo, pois quem escreve a história são os vencedores. Stalin, vitorioso, virou Deus. Mas, como dizia Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar. Esta singela frase, quase escondida no Manifesto, não parece ter recebido a devida atenção de seus seguidores.

O tosco e rude messianismo russo impressionou os intelectuais do Ocidente a tal ponto que Sartre, ao voltar de uma viagem à União Soviética, declarou ao Libération, em 1954: "A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Exceto alguns, os russos não têm muita vontade de sair do país... não têm muita vontade de viajar neste momento. Têm outra coisa a fazer em casa".

Mais uma pérola: "Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso. Qualquer que seja o caminho que a França deve seguir para sair de seu imobilismo, para recuperar ser atraso industrial, para se constituir como nação diferente da de hoje, ele não pode ser contrário ao da União Soviética". E nisso é que dá receber mordomias de Moscou. Esta prostituta respeitosa, que chegou a receber o prêmio Nobel e o recusou de puro despeito, pois Camus o havia recebido antes, foi guru de toda uma geração de tupiniquins. Entende-se agora melhor Nelson Rodrigues quando dizia ser o pensamento de Sartre de uma profundidade tal que uma formiga o atravessava com água pela canela.

Todo anticomunista é um cão, decretou um dia Sartre. Com a autoridade de parisiense que determina qual será o perfume ou filosofia da década, condenou ao círculo dos infames todos os pensadores lúcidos que clamavam por liberdade, Camus inclusive.

Em 1980, assisti ao enterro de Sartre, acompanhado por stalinistas e compagnons de route. Pena ter morrido tão cedo. Teria hoje a coragem de chamar de cães toda esta gente que derruba dos prédios estrelas vermelhas e rasga das bandeiras a foice e o martelo? Serão cães estas nações que querem abandonar de suas histórias a palavra comunista? É uma pena, realmente, que Sartre não esteja vivo neste final de década.

Falava de cartas. De Berlim recebo outra: "Vem logo, ou não vais conseguir nenhum pedacinho do muro como lembrança". Minha interlocutora me conta que, dia e noite, ouve-se um matraquear incessante de berlinenses de picaretas em punho, grudados ao muro que nem pica-paus a um eucalipto. E eu, que tanto me queixo dos ruídos de Florianópolis, não vou resistir ao convite para este concerto.

Porto Alegre, RS, 03.02.90. Joinville, A Notícia, 11.02.90


 

 

A PARANÓIA CEDE

 

Paris — Vista das margens do Sena, a América Latina efetivamente perdeu a década. A moda agora é o Leste europeu. As livrarias expõem esquecidos autores tchecos, poloneses, húngaros e romenos. Os cinemas ressuscitam cineastas proibidos. E as agências de turismo oferecem pacotes para todos os bolsos, para quem quiser dar uma última olhadela nos cacos do comunismo.

Quanto a Nuestra America, esta parece ser preocupação do milênio passado. Castro, se antes teve a sustentação da intelectuália parisiense, hoje é visto como o último caudilho do continente. La Lune et le caudillo: le rêve des intellectuels et le régime cubain, de Jeannine Verdés-Leroux, é um dos bons lançamentos que parece ser onipresente nas livrarias do Quartier Latin. Neste ensaio, a autora não se preocupa em desmitificar Castro propriamente, e sim os intelectuais parisienses que, cachimbando às margens do Sena, com a poltrona assestada na direção do rumo da História, apoiaram a ditadura cubana. E não faltam alguns respingos para o Che Guevara, cuja imagem de santo laico começa a ceder ante o perfil de um psicopata excitado com o cheiro de sangue.

É triste constatar que nós, brasileiros, só daqui a uns dez anos acabaremos chegando a estas conclusões. A propósito, olhando-se o mundo lado de cá, tem-se a nítida percepção de que o Brasil é o último país comunista da América Latina. Ou seja, país onde há uma predominância de uma ideologia obsoleta, que atrasou em um século ou mais os países do Leste.

Ora, direis leitores, e Cuba onde é que fica? Acontece que Cuba não é um país comunista. Lá, ao que tudo indica, só existe um comunista, já desesperado ante a perspectiva, cada vez mais próxima, de largar o osso do poder. “Todos os homens têm direito a tudo que pedem”, disse um dia Fidel a Sartre. “E se eles pedem a Lua” — quis saber Sartre, pensando certamente na peça Calígula, de Camus. “Se eles pedem a Lua” — respondeu o caudilho — “é porque dela necessitam”. Hoje, sabemos que os homens não pedem tanto. Querem algo mais singelo e mais ao alcance da mão, a liberdade.

Os intelectuais franceses estão confusos. Até setembro, outubro ou novembro do ano passado, havia resposta para todo e qualquer problema. De repente, as respostas todas se revelaram falsas, se não safadas. Bernard Henry Lévy, velho-novo-filósofo, tenta recuperar-se parafraseando Marx: “Sonhamos muito tempo em transformar o mundo, chegou a hora de interpretá-lo”. Talvez acabe chegando, depois de velho, a alguma conclusão inteligível.

A Europa Ocidental levará ainda alguns anos para mitigar a perplexidade que lhes foi brindada pelos primos pobres do Leste. O stalinismo impregnou de tal forma os cérebros ocidentais, a ponto de o Muro de Berlim ser considerado como um fasto eterno e consumado, mesmo pelos mais obstinados anti-stalinistas. Percebem agora estes pensadores terem esquecido que a alavanca das grandes transformações sociais continua sendo a mesma de sempre: o desejo de liberdade, inerente a todo ser humano. E nisto em nada diferem de nós os homens do Leste.

Nas manchetes da imprensa parisiense, começa a mudar o vocabulário político. Pela primeira vez na França, ouço falar em fascismo eslavo. PC virou piada. Nanni Moretti, corrosivo cineasta italiano, diverte a fauna parisiense com seu último filme, La Palombella Rossa, datado do ano passado. Cenário, uma piscina. Personagem central, um deputado do PC italiano, jogador de waterpolo.

Ao tentar explicar em que consistiria ser comunista hoje, o deputado se deixa emaranhar em uma teia de lugares comuns que conduzem o público a um sorriso interior e amargo. Mas quando fala na “crise geral do capitalismo” nestes primórdios de 1990, não há na sala quem controle a gargalhada. Repetindo à exaustão os slogans do Partido, Moretti deixa claro que a peste que contaminou este século não passou de um amontoado de palavras vazias.

Sem Deus nem ideologia, o deputado italiano pede socorro à mamãe. Assim devem sentir-se, suponho, os últimos comunossauros tupiniquins. O filme, de 1989, revelou-se premonitório. Na França, só um cara-de-pau como Marchais, íntimo de Ceaucescu, consegue defender, ao lado de Castro, os ideais comunistas. “Não nos jogaremos nos braços da social-democracia, nem aceitamos o capitalismo”, insiste Marchais no L’Humanité, órgão oficial do PC francês, precisamente nestes dias em que os países comunistas dissolvem seus PCs e a Polônia cria um partido social-democrata.

Comentaristas angelicais pretendem que social-democracia é uma coisa, capitalismo é outra. Só cai neste conto quem não conhece Alemanha e países escandinavos. Ao clamar pela social-democracia, os sofridos habitantes do Leste em verdade reivindicam, eufemisticamente, um regime capitalista, com todas as suas — boas ou más — conseqüências. E o resto é conversa fiada.

Para os historiadores futuros, o século XX será visto como um vasto laboratório no qual ensaiou-se — às custas de milhões de cadáveres — uma utopia que não deu certo. “O pior fracasso do comunismo” — escreve Jean Daniel, do Nouvel Observateur — “foi ter associado o horror a um dos maiores sonhos da humanidade”.

Enfim, o sonho acabou, conforme expressão das carpideiras. Melhor diriam: a paranóia. Sempre vi algo de paranóico nestes senhores que, beneficiando-se das delícias do capitalismo, apoiavam-se incondicionalmente no regime que oprimia os cidadãos do Leste. Não por acaso, corre uma piada na Romênia pós-Ceaucescu.

Em Bucareste, nos dias do conducator, um cidadão entra em uma farmácia:

— Bom dia, camarada farmacêutico!

— Bom dia, camarada cliente!

— Camarada farmacêutico, você tem algo para a paranóia?

— Para a paranóia, camarada cliente, só tenho respeito.

Joinville, A Notícia, 25.02.90


 

 

BRONZEAR-SE EM BERLIM

 

Paris — As revoluções normalmente têm uma data, seja ano, mês ou dia, data sempre determinada a posteriori, pois nunca se sabe quando uma guerra ou revolução está começando. Foi o que aconteceu com esta que, cidadãos do final do milênio, estamos assistindo. A fins de outubro passado, ninguém ousaria imaginar o que ocorreria na semana seguinte. Aqui em Paris, pelo menos, o evento já foi batizado: Revolução do Nove de Novembro, data emblemática e por cima de tudo aliterante, para que não seja esquecida. Derrubado o muro, desmorona também o sistema que empestou sete décadas deste século.

Confusos ante os acontecimentos, em janeiro passado, reuniram-se na Sorbonne dezoito intelectuais parisienses, no que foi pomposamente intitulado “Le Grand Coloque de la Liberté”. Colóquio que seria honroso se fosse anterior ao Nove de Novembro. Posterior sendo, tem um certo ar de oportunismo e mea culpa. Deste confiteor coletivo, excluamos Hélène Carrère d’Encausse, que há mais de década previu a explosão do império russo em função do avanço muçulmano. Os demais, Leszek Kolakowski, Cornélius Castoriadis, K. S. Karol e Alain Tourraine, entre outros, correm atrás do trem perdido.

Para Carrère d’Encausse, autora de L’Empire eclaté — livro que foi amaldiçoado pelos franceses com o “coração à esquerda”, pois antecipava há mais de dez ano o que hoje está ocorrendo nas repúblicas muçulmanas — o comunismo foi, em 1917, a resposta de Lênin a uma velha questão: onde está a Rússia? Na Europa ou fora dela?

“Incapaz de optar, Lênin tomou uma decisão singular: a Rússia era, ela sozinha, o futuro da Europa. O comunismo foi o manto de Noé de um império de tzares reconstituído e mantido na esperança de que um dia as diferenças nacionais desapareceriam. O fim do comunismo põe a nu o problema da relação entre os povos e da escolha a fazer entre uma Rússia que se restringiria a seus limites ou um império que seria preciso manter, a não importa qual preço. Manter o império é afastar-se da Europa e frear a democracia. A escolha desta segunda via abriria, é claro, um processo longo e doloroso: seria o abandono de uma longa história de conquista. Isto, a Rússia tem dificuldade para aceitar. Mesmo se uma facção da intelligentsia encara a questão com lucidez e espera que os dirigentes soviéticos saberão facilitar um abandono do império que teria por resultado a democratização e europeização da Rússia”.

Explodido — ou implodido, como quisermos — o império russo, a utopia em bancarrota, poderia a religião ocupar o vazio ideológico criado pelo naufrágio do dogma marxista-leninista? Para Leszek Kolakowski, o marxismo-leninismo (grande novidade!) era uma paródia de religião, ou seja, uma ideologia global que pretendia resolver todos os problemas metafísicos, históricos, filosóficos e sociais.

“Mas, ao contrário das religiões, ele se pretendia uma teoria científica. Hoje, não acredito que a religião possa tomar o lugar de uma ideologia global, salvo sob sua forma medieval, isto é, nos países islâmicos fundamentalistas onde religião engloba tudo, dá resposta a tudo. A religião cristã, inclusive sob sua forma oriental, não poderá, a meu ver, assumir novamente este papel”.

Ou seja: no fundo, o que Kolakowski deixa transparecer é que religião, nos dias de hoje, só serve para países pobres e populações analfabetas. Assino embaixo. Bernard Henri Lévy já não é tão otimista:

“A questão não é de saber se a religião terá algum papel no futuro. Hoje, nas sociedades pós-totalitárias contemporâneas, ela já tem este papel. Em Moscou, restauram-se monumentos históricos, reabrem-se igrejas. Em suma, a Igreja está no centro do debate político e ideológico russo”.

Para Adam Michnick, outro participante do debate, há duas formas de renascimento religioso:

“No cemitério das ilusões do bolchevismo, assistimos o retorno aos valores morais do cristianismo, os valores absolutos. Sem este renascimento da consciência do valor absoluto, a vida no pós-comunismo totalitário seria impossível. Mas o renascimento religioso pode também ser a fascinação pela força da Igreja como instituição”.

Ou seja, assim como todos os mercadores europeus, João Paulo deve estar de olho no tentador mercado dos milhões de crentes órfãos de Marx. Deus sucederá Lênin? — pergunta-se o Nouvel Observateur. É possível. E o mundo socialista terá saído do barro para cair na merda.

Mas a Revolução do Nove de Novembro — do ano passado, bem entendido -já parece pertencer a um século distante. A imprensa francesa já saúda a Revolução de Fevereiro — de fevereiro deste ano, é bom salientar. Gorbachov montou num tigre, como diz um provérbio oriental, e quem monta em tigre dele jamais desmonta. A perestroika, desde sua gestação, tinha endereço, mais que certo, necessário: o fim da preponderância do Partido Comunista Russo na gestão do poder.

As ex-colônias russas entenderam logo o recado. Alemanha Ocidental, Polônia, Tchecoeslováquia, Bulgária e — aos trancos e barrancos — a Romênia, estão jogando os comunossauros na lata de lixo da História. Faltava a Rússia. E não que o camarada Gorby propõe nada mais nada menos que o fim do monopólio do PC? O que significa que não mais existirá o Partido Comunista e sim um partido comunista, se é que na Nomenklatura vai sobrar alguém com coragem suficiente para apagar a luz do museu.

“O Partido não pode existir” — diz Gorbachov em seu discurso de abertura do 28º Congresso do PCUS — “e cumprir seu papel de vanguarda se não for uma força democraticamente reconhecida. Isto que dizer que sua posição não deve ser imposta através de uma legalização pela Constituição”.

Em outras palavras, os russos parecem estar descobrindo a democracia burguesa que Lênin e Stalin tanto odiavam. A proposição de Gorbachov, vitoriosa no plenum do PCUS, significa simplesmente a instituição no império desta coisinha elementar tão rotineira no Brasil: o pluripartidarismo. Castro já deve estar de barbas de molho, afinal a Constituição cubana evoca, em seus preâmbulos, a proteção da URSS, assim como a nossa evoca a proteção de Deus, jaculatória que, dada nossa taxa de inflação, só serve para desmoralizá-Lo. Que fará Castro quando secar sua fonte de misticismo? Enfim, Castro pouco ou nada tem a fazer, a não ser abandonar sua ilha particular e o osso do poder. A pergunta crucial é outra: que farão os paranóicos latinos quando for evidenciado o horror da última utopia desvairada do Ocidente?

Sei lá! Já começo a ouvir explicações. Cartazes em Paris dizem que tudo foi traição, que o socialismo não estava lá, mas mais adiante. Quanto a mim, vou a Berlim. Para bronzear-me. Ora, direis leitores, na Europa é inverno e sol só se encontra nas agências de publicidade. Mas, como insinua o Nouvel Observateur, o sol da liberdade também bronzeia.

Porto Alegre, RS, 10.03.90


 

 

O FIM DA GUERRA

 

Berlim — Berlim, nestes dias de fevereiro, agita-se a cada ano em função do Festival Internacional de Cinema, hoje em sua 40ª edição e desenvolvido nas duas Berlins, se é que de duas Berlins ainda se pode falar. Mas estamos em fevereiro de 1990 e a grande vedete não é o cinema e sim o Muro, dia a dia picotado por berlinenses e turistas ávidos de uma lembrancinha do fim da barbárie. Um milionário americano chegou a oferecer às autoridades do Leste 40 milhões de dólares pelo Muro, valor que pretendia multiplicar por cem, vendendo-o aos pedaços. O negócio não foi feito, afinal o Muro pertence a todos e a ninguém.

“Todo muro no mundo” — escreve Peter Schneider, autor de Sauter le mur — “provoca a vontade instintiva de atravessá-lo. Nem uma criança, nem um gato, resiste à intenção de escalá-lo, para ver o que acontece do outro lado”. Para os alemães ocidentais, esta curiosidade sempre pode ser saciada. Um visto no passaporte, mais a troca compulsória de alguns marcos e o cidadão ou turista podia constatar in loco o horror ao qual havia escapado, voltando ao Oeste ainda em tempo de comer decentemente em um bom restaurante. Para os homens do Leste, até Nove de Novembro passado, a Berlim livre estava tão distante quanto a Austrália ou o Japão. Pular o Muro era gesto pago com a própria vida. Hoje, o Muro é apenas um muro e a vergonha parece pertencer a um passado distante.

Para os ex-presidiários, o choque é brutal. Pessoas que não mais lembravam a cor de bananas ou laranjas, sorriem incrédulas ante a profusão de frutas, carnes e bebidas no mercado. Uma grande loja de departamentos causa pânico. Depoimento de uma jovem universitária, hoje vivendo no lado ocidental:

“Descubro como se provoca a necessidade de comprar: os bunkers dos supermercados engolem as pessoas como imensos aspiradores, lá se encontra de tudo, e sobretudo uma quantidade considerável de bobagens; os animadores berram por todos os lados. Minha cabeça zumbe e eu me precipito rumo à saída”.

O mesmo choque ao inscrever-se na universidade:

“Entrego meu pedido de inscrição, recebo de volta minha carteira de estudante. Peço informações aos professores e os descubro desprovidos de arrogância, da autoridade e do patriarcalismo aos quais eu estava habituada; pelo contrário, eles dão provas de tolerância, às vezes de desenvoltura, muitos demonstram inclusive camaradagem ao tutear-me desde o início. Divirto-me lendo as inscrições nas paredes; cada um nelas exprime seus sentimentos, suas opiniões políticas. No Leste, foram retirados de circulação todos os sprays para impedir os grafitti”.

As máquinas de xerox, estes objetos rotineiros do mundo ocidental, constituem milagre para a recém-vinda do Leste:

“Em cada corredor da universidade vejo máquinas de xerox. Eis-me de novo desorientada. Na RDA, estas máquinas eram reservadas a certas pessoas: era preciso obter intermináveis autorizações, fornecer por escrito o interesse científico de sua requisição, antes que a pessoa responsável fotocopiasse seu documento. A única intenção era impedir a circulação de idéias hostis ao Estado. Eis-me agora diante de uma enorme máquina que me explica seus botões. Sinto-me como uma extraterrestre”.

Para melhor esta surpresa de extraterrestre da moça do Leste, nada melhor que evocar uma parábola proposta por Peter Schneider. Para o escritor, ao final de quarenta anos, pode-se considerar a divisão das Alemanhas como uma experiência social involuntária surgida das necessidades da guerra, os Aliados assumindo o papel de laboratoristas e os alemães de cobaias superdotadas. Dois gêmeos, com um passado comum, são dominados pelos Aliados e encerrados em internatos diferentes. O gêmeo criado no Oeste tem por nome RFA, cresce no clima estimulante dos valores ocidentais, aprende o que são a democracia, a economia de mercado, a propriedade privada e a liberdade individual e liga-se a seu experimentador ocidental.

O outro gêmeo tem por nome RDA, é seguidamente espancado, deve familiarizar-se com os valores rebarbativos e menos acessíveis da cultura comunista. Nele se incluem virtudes tais como a solidariedade internacional, o engajamento social, o desprezo da propriedade individual, o ódio de classes e, evidentemente, uma “amizade inquebrantável” pelos laboratoristas do Leste.

Doze anos depois, um muro é construído entre esses dois irmãos e um sistema bizarro de visitas é estabelecido. Enquanto o gêmeo do Oeste goza do Plano Marshall e dos progressos do sistema capitalista, seu irmão deve reembolsar as dívidas de guerra ao laboratório do Leste, bem mais pobre, do qual ele herdou o Estado de um só partido e um sistema econômico inoperante. As queixas não se farão esperar. Ouçamos o irmão do Leste:

— Meu caro irmão vive tão ocupado que aos poucos vai me esquecendo. Já não vem me ver quando eu lhe peço. Não vê o que me falta. Bastaria apenas que se mostrasse mais generoso, principalmente em sentimentos, pois ele tem mais sorte em ter ficado no Oeste. Aliás, diga-se de passagem, ele nada fez para merecê-lo. Ele simplesmente vivia no bom momento na boa margem do Elba. Mas agora seu sucesso subiu-lhe à cabeça. Em vez de dividir — pois não se trata de dar, mas sim de dividir — ele pretende trabalhar mais, ter mais talento. Honestamente, eu o conheço desde pequeno, ele não é mais nem menos preguiçoso do que eu. Ele apenas tornou-se arrogante, cheio de si. Em verdade — nossa propaganda não erra totalmente — ele continua a viver da exploração e da miséria dos outros. Mas ele não quer saber de nada. Ele poderia ao menos demonstrar um pouco mais de sentimento filial em relação a seu pobre irmão que teve menos sorte.

Diz seu irmão ocidental:

— As coisas não vão bem para meu pobre irmão atrás de seu muro, é evidente. Mas ele me enerva com suas reprovações. E esta maneira que tem de esperar eternamente... Afinal de contas, não fui quem o construí, e não se pode dizer que ele tenha se oposto ao muro. Só Deus sabe como gosto de dar presentes mas, se não existe mais a surpresa, não é divertido. Ele acha que lado de cá, as televisões em cores, os aparelhos de vídeo e os relógios Rolex nascem das árvores. Mas ninguém recebe um Mercedes quando nasce, é preciso ganhá-lo. Dívida, crédito, leasing, são palavras que meu irmão não conhece senão por ouvir dizer. Gostaríamos de explicar-lhe mas ele não escuta, ele só fala. Naturalmente, não é por sua culpa que ele ainda deve fazer fila para comprar laranjas. Não o estamos criticando diretamente, é a economia dirigida que é um desastre.

Longo é o discurso do irmão ocidental, segundo Schneider, pois o oriental sequer aceita críticas.

— Quando a discussão se anima, ele acaba me tratando de conformista e consumidor idiota, cumprimento que tenho prazer em devolver-lhe, pois suas pretendidas virtudes sociais lhe foram todas inculcadas, sei disso. Ele se toma por um idealista que ainda não vendeu sua alma! Acontece-me às vezes sentir-me aliviado ao final das visitas. Entre nós instalou-se um ressentimento, um sentimento de decepção sobre o qual precisaríamos falar um dia. Quando chega o momento de partir, mal ouso olhar meu relógio, tenho pena de vexá-lo. Ele dispõe de tempo, muito tempo, e ignora que pessoas como eu trabalham também nos fins-de-semana, têm almoços de negócios aos domingos.

Com o fim da Segunda Guerra, que poderíamos datar, na necessidade de uma data precisa, de Nove de Novembro, chegou a vez dos gêmeos se entenderem. A aproximação será certamente dolorosa e a Europa a vê com apreensão. Os livros de História deverão ser reescritos. Heróis passarão para a ala dos vilões e vice-versa. E muito ainda há de se ver até o final do milênio.

Prosit!

Joinville, A Notícia, 11.03.90


 

 

UM ESCRITOR SEM MEDO

 

Praga — A vida é como uma viagem aos países do Leste — dizia-me um jornalista espanhol -, curta e cheia de aborrecimentos. Suas observações, é claro, datavam do ano passado. Corroído desde dentro o regime tão amado pela intelligentsia brasileira, regime que durante décadas devastou os povos do Leste, viajar por estas bandas torna-se interessante. Em Berlim, junto à porta de Brandenburgo, onde consegui arrancar alguns cacos do Muro antes que fosse posto abaixo pelos seus construtores, o ruído incessante dos martelos escavando o símbolo maior da Guerra Fria foi música para meus ouvidos.

Estou agora em Praga. Segundo observadores temerários, a cidade mais linda do mundo. Opinião discutível para quem viveu em Paris. Mas isto pouco importa. E sim Vaclav Havel. No ano passado estava no cárcere e hoje é presidente da Tcheco-Eslováquia. Tudo muda neste mundo, e mais rapidamente do que se podemos imaginar. Como dizia Marx, profeticamente, tudo que é sólido se desmancha no ar.

— Não encontrei um único relógio nos gabinetes do Castelo de Praga — disse Havel em seu primeiro discurso ante o Parlamento -. Considero isto como algo simbólico. Durante longos anos não havia porque olhar um relógio, pois o tempo estava parado. Em realidade, foi a História que parou.

Vaclav Havel é escritor, dramaturgo e ensaísta. Sofreu quatro anos de prisão lutando contra o regime comunista cuja defesa levou ao cárcere míopes intelectuais brasileiros e latino-americanos. Antes de partir para a Tcheco-Eslováquia, decidi munir-me de alguma informação sobre o país. Publicações oficiais louvavam os grandes feitos do socialismo. O mesmo não diria — nem disse — Havel em seu discurso.

— Durante quarenta anos temos escutado a mesma coisa da boca de meus predecessores, embora apresentada de formas diferentes: nosso país floresceu, produzíamos tantos milhões mais em aço, somos todos felizes, temos fé em nosso governo e brilhantes perspectivas pela frente. Suponho que não me propuseram para este cargo com a finalidade de que eu também lhes minta. Nosso país não floresce. Este estado, que pretende ser um estado de trabalhadores, humilha e explora os trabalhadores. Devastamos a terra, os rios e os bosques, patrimônio de nossos antepassados, e temos o mais poluído meio ambiente de toda a Europa. Mas isto não é o principal. O pior é que vivemos em um meio moral putrefato. Estamos moralmente doentes porque nos acostumamos a dizer algo diferente do que pensamos. Aprendemos a não acreditar em nada, a não nos importarmos uns com os outros, a não nos ocuparmos senão de nós mesmos. Definições tais como o amor, a amizade, a compaixão, a humildade ou o perdão perderam suas dimensões e sua profundidade e significam para nós uma espécie de peculiaridade psicológica, que interpretamos como mensagens errantes de tempos passados, um tanto ridículos na era dos computadores e dos foguetes espaciais.

Em minhas rápidas incursões pelos países socialistas, sempre intuí nos rostos e gestos um medo latente pairando no ar. Medo de falar com o viajante estrangeiro, medo de falar alto, medo de emitir qualquer opinião não sacramentada pelo poder. Este medo, diga-se de passagem, só fui encontrá-lo no Brasil em duas ilhas: Brasília e Florianópolis, coincidentemente os dois mais corruptos currais eleitorais do país. Mas estou na Tcheco-Eslováquia. Em uma carta aberta a Gustav Husak, datada de 1975, Havel propunha uma questão fundamental: por que as pessoas se comportavam como o faziam? Por que cumpriam todos tudo aquilo que, globalmente, dava a impressão de uma sociedade totalmente unida, apoiando totalmente seu governo? Para Havel, a resposta era então evidente: o medo.

— Por medo de perder seu posto, o professor ensina a seus alunos coisas nas quais não acredita. Por medo de seu futuro, os alunos o repetem. Por medo de não poder continuar seus estudos, os jovens aderem à União da Juventude e fazem o que se lhes pede. Por medo de que seus filhos não obtenham, ao entrar na universidade, o número de pontos exigidos pelo monstruoso sistema de conotação política, o pai aceita as mais diversas funções e faz "voluntariamente" o que lhe é exigido. Por medo de eventuais perseguições, as pessoas participam das eleições, votam nos candidatos propostos e fingem tomar esta liturgia por verdadeiras eleições. Por medo, as pessoas assistem às comemorações, manifestações e desfiles. Por medo de serem impedidos no prosseguimento de seu trabalho, cientistas e artistas defendem idéias às quais não aderem, escrevem coisas que são falsas, associam-se a organizações oficiais, participam de trabalhos dos quais têm péssima opinião, ou ainda amputam ou deformam suas próprias obras.

Denunciar o medo exige coragem, Vaclav que o diga. Sua coragem custou-lhe anos de cárcere e agora parece contaminar os tchecos. Pela primeira vez em um país socialista, consegui falar de política, abertamente, com um desconhecido encontrado ao azar em um café. “É o começo do fim”, dizia-me com entusiasmo um tcheco, embalado por uma cerveja de Praga, a 12 graus. E brindamos em altos brados — gesto insólito nas ditaduras socialistas — ao fim do regime infame.

Mas o fim ainda não chegou. Como bem acentuava meu interlocutor, estamos assistindo ao começo do fim. “O medo não é — escrevia Havel a Husak -, o único material de construção de nossa sociedade atual. Mas continua sendo, no entanto, o material essencial”.

Estes povos, para os quais a História parou e os relógios não têm sentido, necessitarão de mais algumas décadas para readquirir o aprendizado da fala e do livre debate. Pode ser até verdade que a vida seja curta e aborrecida, como filosofava meu colega espanhol. Mas voltar a Praga será sempre cada vez mais interessante.

Porto Alegre, RS, 31.03.90


 

 

O MURO SEXUAL

 

Berlim — Um dia antes da derrubada física da parte do muro que divide Berlim, fui até a Porta de Brandenburgo colher meus caquinhos. Se você vem do Leste pela Unter den Linden, mal se aproxima do muro logo começa a ouvir aquele matraquear incessante dos alemães e turistas ocidentais picando o concreto do outro lado, tentando arrancar um souvenir da barbárie. Aproximando-se da porta pelo lado ocidental, pela Strasse des 17 Juni — agora espontaneamente rebatizada por Nove de Novembro — o panorama é mais divertido. Centenas de pessoas dirigem-se ao muro de martelo e punção em punho, enquanto os orientais invadem a avenida com sacolas vazias, em busca de coisas mínimas que por décadas lhes foram proibidas.

Enfim, melhor seria conjugar este passeio no passado, afinal aquela parte do muro não mais existe e, com a derrocada do fascismo eslavo, o mercado de seus cacos está sendo substituído pelos símbolos de um regime também obsoleto, as insígnias, distintivos e medalhas com a estrela vermelha ou a foice e o martelo. (Atenção, velha e jovem guardas stalinistas: o que já foi motivo de prisão terá, daqui por diante, valor crescente. Nestes dias de cruzeiros curtos, titularidades perdidas podem ser compensadas com uma banquinha de relíquias no brique da Redenção). Mas não era disto que pretendia falar. E sim de sexo. Lá no Leste.

Lieb steht nicht auf dem Plan (O Amor não está escrito no Plano), livro redigido a quatro mãos pela jornalista russa Tatiana Suworowa, da agência Tass, e por seu colega Adrian Geiges, da RDA, recentemente lançado na Alemanha Ocidental, nos revela a miséria sexual de boa parte do mundo socialista, a tragédia de sociedades de um puritanismo de fazer inveja a João Paulo II, onde fora do casamento não há salvação.

“Toda experiência erótica enriquece a alma humana”, escrevia Alexandra Kollontai, bolchevique itinerante dos anos 20. O mesmo não pensava o ex-seminarista Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, hoje mais conhecido como Stalin. E um universo materialista e ateu, de onde foi expulso o deus cristão, permaneceu décadas — e ainda permanece — sob o império de uma ideologia que odeia o corpo, tão grata ao aiatolá de Roma. Os depoimentos colhidos pelos autores nos fazem voltar às tardes cinzentas da Idade Média.

— A primeira vez que eu deitei com um homem — declara uma russa de 23 anos, empregada da Administração — eu não sabia como se faz um filho. Isto me trazia problemas quando lia livros estrangeiros. Quando li Fiesta, de Hemingway, eu não entendia o que estava acontecendo entre homens e mulheres.

— A masturbação é uma doença — diz uma engenheira de 25 anos — uma doença terrível que se desenvolve durante a infância. É preciso explicar às crianças os danos causados por essa atividade, é preciso levar as crianças a pensar em outras coisas.

— Isto está indo longe demais — protesta fora de si, o secretário do Partido de uma grande empresa moscovita -. Imagine o que esses pretensos autores estão fazendo. Esses tipos interrogam nossos empregados sobre a masturbação! Tais questões sapam a ideologia de nosso Estado e permitem à propaganda burguesa lavar os cérebros de nossos operários. Com o simples fato de mencionar noções como essa, pode-se destruir a moral comunista.

Se a masturbação é doença e tabu, homossexualismo é crime e maldição.

— É preciso liquidar os homossexuais, são todos seres inferiores — diz uma laboratorista de 21 anos.

— É um fenômeno inquietante, eles deviam ir presos — declara uma operária da indústria têxtil.

— A sociedade deve eliminá-los — opina um estudante de jornalismo, 27 anos.

— Devem ser torturados — propõe um chofer, 22 anos.

— Depois dos anos 30 — diz uma estudante de cinema, 20 anos — a alegria de viver não mais existe em nosso país, prega-se o ascetismo. São poucas as pessoas que podem falar livremente da sexualidade, sem preconceitos, sem corar nem sentir vergonha. O sexo tem uma função reprodutiva, e é só.

Segundo os autores, uma grande parte das mulheres interrogadas, raramente — ou nunca — têm orgasmo. As chances de conhecer a satisfação sexual constituem privilégio masculino. Mais de um terço das mulheres admite jamais ter chegado lá, nem se masturbando, nem por ocasião de relações sexuais. A maior parte dos homens acha que o vai-e-vem do pênis na vagina é mais que suficiente para proporcionar prazer à mulher. Raros são os que sabem alguma coisa sobre o papel decisivo do clitóris. Qual muçulmanos, ainda não descobriram o que é bem bom. Que mais não seja, para a reprodução, o clitóris não faz falta alguma.

Exceção feita da Polônia e Hungria, onde a duplicidade da cultura católica deixa certa margem ao prazer, os autores constatam nos demais países do Leste um total analfabetismo do corpo, puritanismo, vigilância incessante, intolerância aos pecados mais veniais e uma legislação anti-homossexual medieval.

Aproveitando o lançamento deste livro que desponta como um dos primeiros bestsellers da era pós-comunista, a revista parisiense L’Evenement du Jeudi enviou seus repórteres às repúblicas socialistas vizinhas para auscultar a saúde sexual dos camaradas do leste. Na Alemanha Oriental, talvez por influência da irmã vizinha, o nível de tolerância às opções sexuais de cada um é bastante satisfatório. Um homossexual arrisca de ouvir na rua perguntas como “eles esqueceram de pôr no forno em 45?”, é verdade, mas já se fala em um partido gay para as próximas eleições.

Claro que a RDA ainda sequer cogita das sexshops da Alemanha Ocidental. Com a derrubada do Muro, as lojas de Beate Hushe, antes entregues às moscas, voltram a locupletar-se de clientes, famílias inteiras do lado oriental, rindo entre perplexas e nervosas, ante a colorida oferta de gadgets, filmes e revistas pornográficas. Na Tchecoeslováquia, a revolução sexual ocorreu há vinte anos, o adultério sempre foi praticado como esporte e hoje, tanto tchecos como eslovacos estão mais imbuídos do amor a Vaclav Havel do que de outros amores.

Na Polônia católica, sexo continua sendo tabu e os aiatolás polacos conseguiram até mesmo proibir que se fale em contracepção. Na Iugoslávia, que sempre repudiou o stalinismo, liberdade sexual não é novidade. O tétrico da coisa sobrou para a Romênia de Ceaucescu.

— Em dez anos — declara o romancista Florin Iaru — só foi possível publicar um único livro sobre sexualidade e mesmo assim... Quando se chegava ao capítulo dos desvios sexuais, fim para toda e qualquer explicação científica! Dizia-se que era efeito dos costumes podres do Ocidente.

Mihaï Bacanu, redator-chefe do Romana Libera, após ter saído da prisão, conta como fazia para escapar ao arbítrio dos Ceaucescu:

— Para driblar a censura, em vez de dizer “igreja” empregava-se palavras como prédio ou casa. Quanto a sexo, no entanto, não havia palavras possíveis, nenhuma referência, nada senão o não-dito.

Mas o melhor mesmo nos conta Ioanna Craciunescu, atriz de cinema:

— Certa vez, eu interpretava uma francesa que combatido no maquis durante a guerra. Ela casava com um romeno e o seguia até Bucareste. À noite, ela jogava as roupas de baixo ao pé da cama. Claro que a cena desapareceu durante a montagem. Mas o pior ocorreu durante a filmagem de Ion, um filme baseado no romance de Liviu Rebreanu. Uma jovem camponesa se deixa seduzir por um homem ambicioso. Esta cena, eu a repeti seis vezes. Meu jeito de gritar enquanto ele me fazia amor parecia por demais sugstivo. No final, eu só emitia um pequeno suspiro, como se alguém tivesse me beliscado.

Em sua tentativa de castrar os romenos, os Ceaucescu obrigaram os criadores a exóticos malabarismos. Florin Iaru, por exemplo, quando tinha de escrever “sexo”, escrevia “caneta esferográfica”. Em vez de “orgasmo”, grafava “marasmo”. A censura nada entendia e deixava passar.

O muro de Berlim caiu. Mas falta ainda derrubar outros. Sem uma perestroika no Vaticano, não vai ser fácil.

Porto Alegre, RS, 14.04.90


 

 

BAITAS MACHOS

 

Curitiba — Andei lendo, outro dia, as memórias de um ex-guerrilheiro gaúcho, um desses meninos revoltados, oriundos geralmente de família burguesa, que são capazes de levantar-se em arma contra o Estado enquanto não recebem poder e regalias. Hoje, confortavelmente sentado nas poltronas do poder, o guerrilheiro de pijamas evoca com saudosismo seu passado stalinista, tentando pintar como heroísmo o que não passou de atroz estupidez. Mas isto é o de menos, afinal está virando moda e modas não me interessam.

O homem transitou pela Argentina, Chile, Argélia e acabou em Paris, sonho de todo revolucionário, afinal Paris foi a cidade que abrigou o maior contingente de exilados latino-americanos, que as esquerdas podem se enganar quanto aos rumos da História, mas na hora do bem-bom ninguém tem dúvidas, antes a burguesa Lutécia do que o desconforto das heróicas Havana ou Moscou. Mas isto tampouco importa. Impressionou-me no livro, não seu caráter de diário de viagem, com fotos idiotas de alguém que julga estar vivendo um momento histórico por onde quer que passe, vício ancestral de todo comunossauro, que ao substituir Deus pela História esqueceu que se o finado Adonai era absoluto, a História é muito relativa.

Impressionou-me, isto sim, um pequeno episódio ocorrido em Valparaíso. O bravo guerrilheiro, tendo deixado sua amada no Sul, repousa na cama de uma chilena. Quando sua Dulcinéia, no melhor estilo das fotonovelas cristãs, vai encontrá-lo em Santiago, o corajoso revolucionário abandona, sem sequer despedir-se, a moça que o acolheu em seus dias de exílio.

Baita macho! O homem enfrentou polícia, exércitos, ditaduras e, na hora de ser honesto com uma parceira, enfiou o rabo entre as pernas e fugiu qual cachorro magro. Conquistar o mundo — ou uma sinecura, para revolucionários gordos e mais modestos — parece ser empreendimento mais fácil do que olhar nos olhos da pessoa que dia abraçamos e que nos fez felizes. Falando assim no plural, confesso estar falando à toa, afinal jamais participei de tais covardias. Mas já encontrei não poucos valentes capazes de tomar de assalto um ninho de metralhadoras sem ter, no entanto, a coragem de confessar à própria companheira onde e com quem passaram a noite.

Em meus dias de universitário, desde minhas primeiras incursões ao território do outro sexo, sempre fui partidário de uma glasnost afetiva e sexual. Estudante de Filosofia e Direito e leitor ávido de Platão, Nietzsche, Dostoievski e Pessoa, entre outros, monogamia sempre me soou como solene balela dos papistas. Homem que conhece uma só mulher, a meu ver não conhecia nenhuma, pois não tinha elementos de comparação. O mesmo sempre afirmei sobre a mulher que conhece um único homem e jamais exigi fidelidade de companheira alguma. As amigas daqueles dias, hoje todas bem casadas (afinal, não casaram com este que vos escreve) certamente guardarão uma grata lembrança de um dia ter encontrado alguém que jamais mentiu nem precisou buscar bares discretos para encontrá-las. Sou fiel, isto sim, a bares. Para não traí-los, sempre marquei encontros com elas nos mesmos bares e mesas. Desde que me entendi por gente, passei a ter uma visão atéia do mundo e não tinha razão alguma para submeter-me aos grilhões de Roma.

Admirávamos, nos anos 60, a relação aberta existente entre Sartre e Simone de Beauvoir, cada um vivendo sua vida e elaborando sua obra sem interferir na vida do outro. Admirávamos é modo de dizer, o verbo talvez ficasse melhor no singular. Pois se era lindo Sartre e Simone terem respectivamente seus amantes lá em Paris, em Porto Alegre o papo era outro. Uma troca de esperma sempre rejuvenesce uma mulher, dizia Henry Miller. Em Paris, é claro. Mal uma esposa ou namorada sedenta de outras emoções aventava tal hipótese, os machões gaúchos, por mais lidos e liberais que fossem, se arrancavam os cabelos: “Estás louca! Como levar este tipo de vida nesta sociedade mesquinha? Fosse em Paris, tudo bem”.

Como nem um nem outro iam a Paris — e se lá estivessem, continuariam vivendo a mesma miséria sexual — o macho continuava a exercer sua tirania. Mas dos anos 60 para cá, as mulheres entraram de rijo no mercado de trabalho. E quem é dona de seu sustento é dona de seu corpo. A mulher deu um passo à frente e o homem não conseguiu acompanhá-la, daí a avalanche de separações de nossos dias. Mas falava de Simone.

Apesar de admirá-la, a mulher sempre foi uma pedrinha em meu sapato, pelo menos no curso de filosofia. O Segundo Sexo era um dos ensaios em moda, e mal eu propunha a uma colega uma relação erótica, meramente lúdica, lá vinha pedrada: “estás achando que eu sou mulher-objeto?”. Este maldito conceito, elaborado às margens do Sena, roubou-me centenas, talvez milhares de horas de folgança. Eu queria apenas dar e receber prazer, pois esta história de amor e sexo é coisa de católico e católico eu não era e muito menos a Simone. O remédio era buscar prazer em outras áreas, junto às enfermeiras, bancárias, balconistas e profissionais da noite, moças que jamais haviam lido Simone e se entregavam a seus instintos sem o freio mental das universitárias que liam Simone.

Em Paris, a Gallimard acaba de lançar Lettres à Sartre, epistolografia póstuma desta senhora que de tantos prazeres me privou em meus dias de aprendiz de filósofo. Numa espécie de voyeurisme literário, la Beauvoir relata a seu companheiro suas lides de leito com homens e mulheres. Junto com esta obra, foi lançado seu diário, Journal de Guerre, septembre 1939 — janvier 1941. E não é que em plena guerra Simone fazia com as moças o mesmo que eu queria fazer com elas em tempos de paz? Só que elas não deixavam, pois haviam lido Simone. Destaco uma pérola, datada de um :

— Já são 6h10min — diz Simone — e eu acho que ela calcula o tempo que restará para os abraços, isto me irrita, eu lhe propus uma hora a mais para escutar música e ela resmunga. Sei que sou injusta, ela me vê tão pouco, ela não pode suportar estar encerrada comigo em um quarto sem estasr em meus braços... Enfim, eu a pego em meus braços e em cinco minutos estamos na cama. Abraçadas. Mal acabamos, ela se agita e soluça: “Foi um fracasso, não há nada a fazer”, etc., e logo ela se desmancha com minhas carícias. Acendemos a luz, nos vestimos e como ela quer ainda me pegar, tenho um movimento de humor que lhe traz lágrimas aos olhos, do qual me desculpo banalmente.

Pois confesso jamais ter sido assim indelicado com uma mulher, e muito menos tão indiscreto. A líder e teórica das feministas foi tão linguaruda, mesmo em vida, que fez um Mauriac escrever a propósito de um de seus romances: On sait déjà tout sur le vagin de cette dame! O mesmo não escreveria, por exemplo, Drummond de Andrade, para quem “as coisas de cama são segredo de quem ama”.

Ou nem tanto. Pois o poeta que cantou Stalingrado ao mesmo tempo que trabalhava para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), durante a ditadura de Getúlio Vargas. Foi postumamente flagrado em sua mineirice. Uma exposição de fotografias no Rio de Janeiro, que comemora o sexagésimo aniversário da publicação do primeiro livro do poeta, nos revela seu caso secreto, uma moça com quem conviveu durante 36 anos. Apesar de ter o dobro da idade de sua musa, Drummond ainda se dava ao luxo de alimentar este sentimento inerente aos inseguros e pobres de espírito, o ciúme.

A vida dúbia e hipócrita vivida pelo poeta que acenava para as esquerdas e comia milho na mão de Getúlio Vargas quase o privou deste afago fundamental, apertar a mão de quem amamos quando estamos de partida. Enquanto Drummond morria no hospital, sua companheira não podia vê-lo, dada a presença da esposa do poeta no quarto. Finalmente, com a intervenção de um neto, Dolores saiu e Lygia pode apertar-lhe a mão até o último suspiro.

E assim são os heróis desde século, em prosa e verso cantados, mitificados em vida e reduzidos a farelo mal descem à tumba.

Porto Alegre, RS, 28.04.90. Joinville, A Notícia, 03.05.90


 

 

AOS AMIGOS DE CUBA

 

Curitiba — A boa nova, eu a recebi numa segunda-feira, em Madri. Acordei cedo para aparar as cãs e meu barbeiro brindou-me com uma daquelas notícias que faz bem a todo homem que detesta ditaduras: “Le pegaron a Ortega”. Caía a penúltima ditadura na América Latina. “Y muy pronto llegará la hora de Castro”, avançou meu fígaro. Fui pródigo em gorjetas naquela manhã cheia de sol.

Mal chego ao Brasil, morre Luís Carlos Prestes, o mais corajoso, paranóico, fanático e burro stalinista que percorreu neste século nosso continente. Corajoso a tal ponto de que costumo afirmar: gaúcho, quando não presta, dá um Prestes. E o homem que apoiou o Getúlio Vargas, o ditador que enviara sua mulher para os campos de concentração nazistas, o homem que mandou matar Elza Coloni, o homem que em toda sua vida seguiu rigidamente as ordens do império que ora desmorona, este homem que durante mais da metade de sua vida lutou pelo totalitarismo, hoje recebe homenagens de herói ao descer à tumba.

Morreu simbolicamente no mesmo dia em que o Partido Comunista obteve seu registro definitivo no Brasil, logo agora que comunista velho e cruzado novo não valem um vintém e os camaradas, numa tentativa de fugir à antiga parassematografia, não sabem se trocam a foice e o martelo por um nabo e um pepino ou, quem sabe, por uma rutabagas e uma ferradura. Mal morre a múmia, vem nos visitar o último ditador latino-americano, precursor da sedizente Teologia da Libertação, quando lutava em Sierra Maestra com um crucifixo ao pescoço, rodeado de medalhas da Virgem da Caridade do Cobre (jesuíta é fogo!), e não por acaso fez palestra para as Comunidades Eclesiais de Base, apresentado pelo maior ficcionista que as letras catarinenses um dia tiveram notícia, frei Leonardo Boff, em encontro que mais evidenciou, como disse alguém, um casamento tardio da Inquisição com o marxismo agonizante.

A Lituânia se declara independente do fascismo eslavo, o pensador libertário Florestán Fernandes volta da Albânia declarando seu amor à mais grotesca e mais antiga ditadura dos Balcãs e, na Ilha de Santa Catarina, funda-se uma Associação de Amigos de Cuba, ou seja, de Amigos de Castro, pois se amigos fossem de Cuba deveriam, já na primeira reunião, enviar telex a Castro pedindo que abra as portas de seu gulag tropical. Não está sendo fácil, para o cronista, acompanhar os fatos. Amparai-me, Virgen del Cobre, tu que destes forças a teu devoto para instaurar a mais longa ditadura deste século na América Latina!

Desamparado pelos russos e farejando novos tempos, Castro aproveita a posse de Collor para uma ofensiva de charme no Brasil, certamente preparando uma caminha para um eventual exílio, que isso de terminar seus dias na Líbia, Argélia ou Coréia do Norte pouco deve apetecer ao Garanhão Máximo do Caribe que, seguindo a tradição de Vasco Porcallo de Figueroa, um dos primeiros conquistadores espanhóis, semeou parece que uma centena de filhos pela Disneylândia das esquerdas, mais conhecidos como Castricos. Don Porcallo, colonizador de Cuba, onde boleava a perna deixava filho feito e emprenhou boa parte das índias que sobraram das matanças e, segundo a lenda, deixou mais de setecentos rebentos, o que parece servir de emulação ao caudilho que ora nos visita, em sua tentativa de superar os recordes do machismo latino-americano, tanto que os castricos são hoje bem humoradamente chamados pelos cubanos de potricos.

Enquanto o grande reprodutor caribenho, travestido de general russo, fala a Marília Gabriela sobre os pijamas listados que usa para dormir — ou imaginaria La Rubia que Castro dormisse de battledress? — os generais russos retomam um velho hábito, o turismo blindado, desta vez pelas ruas de Vilna, na Lituânia, numa tentativa de intimidação ao desejo de respirar dos lituanos e como alerta à Letônia e Estônia, o que vai entortar ainda mais o diminuto cérebro dos comunossauros que, nos últimos dias, parodiando o corvo de Poe, só sabem papaguear: não lembro mais, não lembro mais.

Mas eu lembro, e se bem me lembro, ao falar em eleições, Castro queria saber quem elegeu o rei da Espanha ou a rainha da Inglaterra e não ocorreu a La Rubia perguntar se Castro quer iniciar uma dinastia, legando o cetro certamente ao mano Raulito, que se o legasse a algum potrico ia dar guerra civil na luta pelo usufruto de uma ilha tropical, cujo proprietário gaba-se de suas habilidades culinárias no preparo da lagosta enquanto os cubanos comem massa com molho de tomate, isso quando têm a sorte de encontrar os dois. Tampouco lembraram de perguntar, os jornalistas brasileiros, porque sendo tão linda a ilha e tão perfeito o sistema — a ponto de merecer as louvações de sua Eminência Reverendíssima Cardeal Arns, Paulo Evaristo -, os cubanos não têm direito a passaporte e dela não podem sair e por que quando de lá saem não voltam mais. perguntado sobre seus medos, respondeu Castro que teme um dia não poder servir mais à revolução.

Mas jornalista algum — muito menos La Rubia — ousou interrogá-lo sobre seu medo fundamental, a livre informação. Enquanto o mundo todo é bombardeado pelas emissões da Rádios Havana, Moscou e Pequim, Fidel Castro Primeiro e Único treme em seu trono ante a perspectiva de que as emissões da TV Marti informem seus súditos sobre o que acontece fora da ilha e, particularmente, no Leste europeu. Mas por que tanta apreensão, companheiro? Em caso de desemprego, dado o deslumbramento das esquerdas brasileiras pela tirania, sempre lhe restará algum papel nalguma escola de samba, o de último caudilho do continente, e nem vai ser preciso comprar barba postiça.

Cuba é ilha cheia de miragens, tanto que já enganou Colombo, que ao bordejá-la estava certo de ter chegado ao Japão, para espanto dos acadêmicos de Espanha que negavam tal feito. Colombo ria dos acadêmicos, afinal eram teóricos e não navegantes, enquanto ele, o nauta, lá havia estado. O que mais uma vez nos confirma que muitas vezes o homem ignora completamente as circunstâncias que o envolvem.

Consta que Colombo, em sua viagem, buscava nada menos que o paraíso, como pelo paraíso pensam ter passado fanáticos deslumbrados que cantam as virtudes de um sistema social no qual não suportariam viver um mês na condição, não de turistas, mas de cidadãos comuns. Os teólogos da libertação (mas onde se viu teologia libertando?) e suas macacas de auditório entoam loas ao homem que, em 1961, como nos conta Carlos Franqui, seu companheiro de guerrilha, deportou de Cuba milhares de sacerdotes e freiras, acabou com as igrejas, fechou os colégios religiosos, mesmo aqueles nos quais havia estudado, acabou com o Natal e ano Novo, dia de Reis, Semana Santa e demais tradições cristãs que os cubanos, religiosos ou leigos, praticavam entre a festa e a fé. Ainda segundo Franqui, a constituição de 1976, as leis, códigos e disposições estabelecem uma clara discriminação para os que não se declarem marxistas ou pratiquem alguma fé ou religião.

Ser católico impede ser membro do Partico, digo, do Partido do pai dos potricos, e não ser membro do Partido Comunista impede o acesso, na melhor tradição tradição stalinista, a qualquer posição importante no Estado cubano. Hei, hei, hei, Fidel é nosso Rei.

Uma turista francesa, ao ler em um ônibus a inscrição “PAREDÓN PARA LOS TERRORISTAS”, interpretou a coisa segundo sua fé. “Pardon pour les terroristes? Oh, ils sont gentils, les Cubains!” Terroristas, é claro, é quem exige eleições livres, alternância de poder, pluripartidarismo, economia de mercado e liberdade de expressão. PERO YO, FIDEL ALEJANDRO CASTRO RUZ, SOY LA REVOLUCIÓN: LA REVOLUCIÓN TIENE OJOS, TIENE OÍDOS. Cuba é miragem.

Há muito venho denunciando tais miragens, para escândalo dos desejosos de crer. Mereci, recentemente, por parte de um leitor em pane, o apodo de esquizofrênico. Ora, esquizofrenia é uma psicose que ataca particularmente os jovens, logo, dela estou salvo. Se esquizofrenia é demência precoce, sou então o que se chamaria de esquizofrênico tardio. Gabriel Garcia Márquez, por exemplo, não merece tal pecha: jamais criticou seu dileto amigo Fidel, emboras o tenha pintado, sem querer, em O Outono do Patriarca. Recebeu o Nobel e doou parte das coroas suecas à guerrilha colombiana.

Em meio a isso, leio nos jornais que tenho ilustre parceria. Mário Vargas Llosa, cuja vendagem de livros caiu no mundo inteiro quando passou a denunciar a ditadura cubana, foi galardoado pelo garanhão do Caribe, em sua visita ao Brasil, com o título de esquizofrênico. Parece que um novo palavrão ideológico vai invadir os jornais nestes dias de amnésia.

Joinville, A Notícia, 08.04.90


 

 

SOBRE VIRGENS E IXIPTLAS

 

Curitiba — Mas então a gente não termina nunca de contar? — quis saber outro dia minha filha. Contente ao ver que já roçava o conceito de infinito, disse que sim, os números começam e não terminam nunca mais. Para ela, em sua insciência, até o infinito já tinha limitações:

— Quem sabe, só Deus sabe contar até o fim.

A pivete mal sabe contar até cem. Mas Roma já está fazendo seu trabalho.

Deus? Mas quem é esse cara? — perguntei. Qual é o jeitão dele? Ah! Ele é barbudo. Assim que nem eu? Mais ainda, e a barba é branca, muito mais branca que a tua. Onde é que ele mora? Lá em cima. Ali, no teto? Não, depois do teto. Mas depois do teto só tem nuvens, e lá não estou vendo nenhum barbudo. Ah! Mas ele não pode ser visto. Se não pode ser visto, como é que sabem que ele é barbudo? Ela pôs um dedinho na boca e desistiu de argumentar. Acho que ganhei a parada: consegui ativar a lógica implacável das crianças.

Estávamos em um bar, ela chupando um desses abomináveis xaropes ianques vendidos pela televisão, eu degustando minha cerveja, que mais não seja pelo menos ela aprende a segurar um copo e familiarizar-se com garçons. Quem te falou desse cara? — eu quis saber. A professora, diz Isa. E isso que Isa é pagã e estuda em escola laica. Deus tem telefone? — perguntei. Acho que não. Bom, se tiver, pergunta pra tua professora qual é o número, pergunta também pra ela se ele gosta de coca ou cerveja, e depois convidamos ele pra tomar um trago com a gente.

Creio tê-la confundido, o que aliás era meu propósito. As crianças mal sabem ler ou contar e já estão contaminadas, mesmo em escolas laicas, pela imagem antropomórfica do deus judaico-cristão. Atrás da imagem do deus barbudo, o pacotaço teológico: medo ao pai, medo à autoridade, o sexo visto como pecado, o prazer como fonte de culpa. Já nos primeiros anos, a escola semeia a neurose no inconsciente infantil, para alegria futura dos ditadores, gurus e psicanalhas. Se Deus é barbudo e mora acima das nuvens, ó Isa, quando chove ele está fazendo xixi? E quando troveja, cocô? Pedagogas, por favor: não infiltrem em um cérebro ainda informe a idéia de um deus pai, patriarca e castrador. Alfabetizem-se, antes de pretender alfabetizar.

Imagens. Disto os conquistadores europeus entendiam — desde os dias da Descoberta até nossa era televisiva — e até hoje a elas permanecemos submetidos. “Pois a imagem constitui com a escritura” — escreve Serge Gruzinski — um dos instrumentos maiores da cultura européia. O gigantesco empreendimento de ocidentalização que se abateu sobre o continente americano assumiu a forma de uma guerra de imagens que se perpetua desde séculos, e nada indica que hoje esteja encerrada”. Aposto que, depois do deus barbudo, minha filha virá torrar-me a paciência (a coitada não tem culpa) com a Virgem Maria. E atrás da Virgem outro pacotaço papista: virgindade, amor, monogamia, casamento, reprodução e o começo do ciclo todo. Desde Colombo até hoje, os conquistadores sabem muito bem que, ao impor o mito de uma mãe virgem a culturas pagãs, já ganharam a batalha. O papa que o diga.

João Paulo II foi ao México, não para degustar tequila ou ouvir mariachis, e sim para beatificar Juan Diego, o índio em cuja túnica as rosas teriam deixado gravada a imagem da Virgem de Tepeyac, mais conhecida como Virgem de Guadalupe, não por acaso a mesma venerada nas montanhas de Estremadura, e muito querida pelos conquistadores. João Paulo, padre astuto, intuindo que a tal de teologia de libertação está em franca decadência com o desmoronamento do fascismo eslavo, investe no mistério. E confere odor de santidade ao coitado do íncola manipulado pelo barroco europeu.

Tudo começa nos anos 1550, quando na colina de Tepeyac os indígenas mexicanos prestavam culto a uma ixiptla, ou seja, estátua ou imagem de uma deidade que, na linguagem dos conquistadores, é trazida como ídolo. O ixiptla, no caso, é o da deusa Toci-Tonantzin, nome que, traduzido do náuatle, dá — maravilhosa coincidência! — Nossa Mãe. Alonso de Montufar, arcebispo do vice-reino, não vai perder esta oportunidade — como direi? — divina, de sobrepor, como sempre fez a Igreja romana, aos símbolos e cultos pagãos, a tralha católica. Encomenda a Marcos, um pintor indígena, uma obra inspirada em um modelo europeu e a coloca ao lado do ixiptla asteca, gesto aparentemente inocente se visto daqueles dias, mas carregado de conseqüências quando o olhamos com o distanciamento de quatro séculos.

Pelo período de aproximadamente um século, a imagem da Virgem permanece, sem trocadilhos, em banho-maria, sem que se fale de epifanias ou milagres. Em 1648, com a publicação de Imagen de la Virgen Madre de Diós de Guadalupe, do padre Miguel Sánchez, o culto mariano toma novo impulso. “Segundo esta versão destinada a tornar-se canônica” — escreve Gruzinski, em La Guerre des images — a Virgem teria aparecido três vezes em 1531 a um índio chamado Juan Diego. Segundo Juan de Zumárraga, primeiro bispo e arcebispo do México, Juan Deigo abriu sua capa sob os olhos do prelado: em lugar das rosas que ela envolvia, o índio descobriu uma imagem da Virgem, miraculosamente impressa, até hoje conservada, guardada e venerada no santuário de Guadalupe”.

Mas nada surge do nada, muito menos imagens. Antes da publicação do livro de Miguel Sánchez, que oficializa a versão das rosas imprimindo os traços da Virgem na capa de Juan Diego, haviam chegado ao México pelo menos duas levas de pintores e arquitetos, profundamente influenciados pela escola flamenga. Colocando seus talentos a serviço da Igreja, estes artistas transportam ao novo continente o imaginário europeu. Vasto é o mercado. Para Gruzinski, a clientela dos artistas cresce e se diversifica: “A corte, a igreja, as autoridades municipais, a universidade, a Inquisição, as confrarias e os ricos entregam-se a uma concorrência cada vez mais viva e rivalizam em encomendas que afirmam publicamente, aqui como alhures, poder, prestígio e influência social. Eis então reunidos todos os meios de uma predileção pela imagem e de uma produção em larga escala, conforme o gosto europeu, impulsionada pela Igreja, posta sob a vigilância da Inquisição e de prelados de zelo por vezes intempestivo”.

Faltava apenas o ingênuo para descobrir, sob as rosas, a imagem da Virgem. Como seria pouco convincente apresentar uma imagem sendo descoberta por seus criadores, foi escolhido Juan Diego, hoje alçado à condição de beato pela igreja que destruiu seus ixiptlas e sua cultura. E assim, como quem não quer nada, semeando marias mundo afora, vai o Vaticano alastrando seus domínios.

A última é a de Medjugorje, na Iugoslávia, ainda não reconhecida pela Igreja. Mas como débil é a memória das gentes, mesmo nestes dias de cultura impressa, não é de se duvidar que dentro de alguns séculos esteja sendo canonizado algum discípulo do general Tito, para alegria das agências de turismo, que mesmo sem o reconhecimento papal lotam aviões para ver a virgem vermelha. Que, segundo me consta, se dispõe até mesmo a interceder junto ao Senhor pela entrada de Lula no Reino dos Céus. Mas o Collor, por mais missas que assista, de jeito nenhum, principalmente após aquele plano perverso que cortou as divisas de seu séquito de adoradores.

Ave, Regina!

Porto Alegre, RS, 26.05.90. Joinville, A Notícia, 17.06.90


 

 

PRESTES PODE

O Pilla é mobile
qual pluma ao vento
muda de assento
e de partido
já foi comuna
e trabalhista
ultimamente
é socialista.

 

Curitiba — Sei lá por quê, me vem à memória esta paródia das reflexões do duque de Mântua, em Rigoletto, parece que muito cantada nas redações de um jornal de Porto Alegre, particularmente depois que nosso volúvel secretário municipal de Cultura cantou a Internacional durante sua posse na Administração dita Popular. Ah! Descobri agora porque lembrei do Pilla Vares. É que suas contradições não são menos tragicômicas que as enfrentadas pelos comunossauros no poder. Maldade minha. Nem era do Pilla que queria falar. E sim da alcaiceria.

Num destes fins-de-semana, ao passar pela Esquina Fascista, encontrei a Borges de Medeiros e a Rua da Praia entregue ao lixo e ao ratos, o que me lembrou antiga crônica de Ney Messias. Nela, Ney falava de sua dificuldade em definir o que seja povo, este nome tantas vezes invocado e que parece, após a Revolução Francesa, ter substituído o nome de Deus. Em suma, o cronista não conseguia chegar a uma definição precisa e unívoca da palavra, mas de algo tinha certeza: bastava olhar o Parque Farroupilha numa manhã de segunda-feira e o fato se tornava óbvio, por ali o povo havia passado. Se aceitamos a definição do Ney, não nos resta dúvidas de que a atual administração da capital é eminentemente popular. Mas tampouco era disto que pretendia falar. E sim de Luís Carlos Prestes, que em paz descanse.

“E então eu te prometi contar a história do Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro” — escrevia Jorge Amado, em O Cavaleiro da Esperança — “E como ele é o próprio povo sintetizado num homem, é certo que o povo não se vendeu nem se dobrou. Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza”.

O Cavaleiro da Esperança foi escrito em 1941, traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili que, qualquer dia, se a gente se descuida, ainda acaba recebendo busto ou nome de rua em Porto Alegre. Mais tarde, apesar das denúncias contínuas na imprensa internacional dos massacres e assassinatos de Stalin, Amado prestará seu preito ao “Paisinho dos Povos”, no baboso e encomiástico O Mundo da Paz. Recebe o prêmio Stalin de Literatura — atualmente sempre omitido em suas biografias — e, com o fervor de crente que recebeu uma dádiva de seu deus, escreve Os Subterrâneos da Liberdade, última pérola do zdanovismo, ainda encontradiço em qualquer livraria do país. E do jeito que vão as coisas, com o Pilla Vares cantando a Internacional e o Olívio Dutra e o Tarso Genro convocando o Niemeyer — outro stalinista ferrenho, personagem de Amado em Subterrâneos e autor deste horror arquitetônico chamado Brasília — para erigir um memorial a Prestes, qualquer dia sobra título de porto-alegrense honorário para este baiano deslumbrado e prostituído que ontem ainda se roçava em Sarney, utilizando os serviços diplomáticos brasileiros, na esperança de abocanhar um Nobel, que moeda capitalista sempre vem bem, mesmo para quem fez da condenação do capitalismo sua fórmula de encher as burras. Mas falava de Prestes.

Mal faltam algumas horinhas para virar o século — ou o milênio, como quisermos — e o herói virou vilão, o que era verdade virou embuste e o que, para Amado, eram calúnias, revelaram-se como fatos. O desmoronamento do socialismo no Leste europeu é visto, por ingênuos intelectuais latino-americanos, como uma transição pacífica e sem sangue rumo a um regime mais humano, como se não contasse, nesta revolução, o sangue de milhões de vítimas do stalinismo até hoje vigente. As estrelas anunciadoras da aurora, sempre presentes nas panfletárias ficções de Amado, estão sendo derrubadas com gosto do alto dos prédios horrendos que inspiraram Niemeyer. E as manhãs de liberdade, os lendemains qui chantent, os dias livres e belos não passavam de tardes cinzentas nos gulags. Na Europa, pelo menos, estes fatos já eram conhecidos. As notícias parecem, no entanto, ainda não ter chegado à América Latina, onde os piores celerados do século continuam merecendo bustos e homenagens.

O senhor alcaide foi à Brasília receber das mãos do idealizador daquela monstruosidade urbana o projeto ao memorial do stalinismo caboclo. Certamente o receberá de graça, pois Niemeyer sempre foi generoso com seu talento, desde que mais tarde as obras sejam tocadas por suas empresas. Na volta de Brasília, o prefeito voltou por Rio, São Paulo e Campinas, “pois sempre se pode trocar experiências e aprender com os outros municípios”. Melhor faria, a meu ver, se ficasse em casa estudando um pouco da história deste século, talvez assim ficasse poupando os gaúchos de ver sua capital ornada com um monumento ao obscurantismo. Pois memorial sempre tem o sentido de homenagem. Propusesse a Prefeitura um arquivo Prestes, nada teríamos a reclamar, afinal o homem pertence, bem ou mal, à história do país. Visitaríamos então, não o mausoléu do herói com pés de barro cantado por Amado, mas a triste trajetória de mais um idealista enganado pelos milenaristas russos. A luta pela memória — dizia Milan Kundera — é a eterna luta do homem contra o poder. Precisamos de memória, não de altares.

Enquanto o alcaide brinca de sacristão, os vereadores brincam de libertários. Por unanimidade, aprovaram projeto de lei proibindo o uso da suástica em símbolos, emblemas, propagandas, ornamentos ou distintivos expostos na cidade, como se os analfabetos que com ela se ornam constituíssem alguma potencial ameaça nazista.

Enquanto o PT e PCs empunham a estrela vermelha e a foice e o martelo na Esquina Fascista, os vereadores saem à caça de balangandãs que são vendidos em qualquer capital européia sem que com isso ninguém se preocupe. Pois se vamos proibir símbolos que evocam genocídios, pela entrada de ordem na história do Ocidente, teríamos de começar proscrevendo a cruz. “Crimes contra a humanidade não podem ser comemorados” — diz o prefeito — “sequer através de símbolos ou brincadeiras”. Quanto aos cultores de Stalin, estes merecem memoriais. Cantar a Internacional, pode, mesmo para quem sabe o que significa cantá-la. O que não pode é um desmiolado qualquer portar um pedaço de lata, cujo significado sequer conhece. Quando, na verdade, o que se pede à administração municipal é mais preocupação com o lixo das ruas e menos carinho pelo lixo da História.

Um pouco mais de coerência e teremos a praça Ceaucescu, que sabe em frente à Prefeitura, em homenagem ao homem que, segundo o deputado Amaury Müller, foi o maior estadista do século. Ou talvez uma avenida Fidel Castro, em homenagem ao gerente da Disneylândia das esquerdas, em prosa e verso cantado. E, no rumo em que marcha o trem da História, digo da Prefeitura, melhor trocar o nome daquela avenida próxima ao riacho Ipiranga, a avenida Érico Veríssimo. Afinal, um dos maiores bestsellers já publicados pela Editora Globo foi Mein Kampf. Na ocasião, eram conselheiros editoriais da casa, entre outros, Érico Veríssimo e Maurício Rosenblat.

Porto Alegre, RS, 30.06.90


 

 

MINHA FÚRIA DEMENTE

 

Curitiba — Que fazer? — perguntava-se outro dia José Hildebrando Dacanal, evocando, talvez conscientemente, a célebre pergunta de Lênin. — Vomitar ou apoiar a fúria demente de Janer Cristaldo? Referia-se, é claro, à perplexidade das esquerdas ante as transformações na União Soviética e no Leste europeu. Por enquanto, deixo entre parênteses minha “fúria demente”. Mas a alternativa é falsa. Vomitar é preciso e apoiar minhas denúncias também.

Desde os dias em que me conheci por gente e optei por escrever, venho denunciando o totalitarismo, não importa sob qual forma se apresente. Naquela idade em que alguém se desvencilha do deus cristão e tende a suprir o vazio de fé com o marxismo, eu estudava Filosofia e História da Filosofia, disciplinas que me afastaram a tempo do novo dogma. Como sempre foi anátema para um escritor deste século não ser marxista, pelo menos nos países de influência católica, ao longo dos últimos vinte anos perdi amigos, empregos, editores e tribunas. Sempre por escrever e dizer o que penso, sem preocupar-me com ideologias em moda.

Em 1968, no falecido Correio do Povo, escrevi uma sátira aos comunistas de café, intitulada “Marxismo Gaúcho Contemporâneo”. Fui excluído do mundo dos vivos na universidade e acabei sofrendo prisão e interrogatório, por ordens de um delegado analfabeto que julgou, pelo título, que eu fazia a apologia do marxismo. De lá para cá, fui fichado e interrogado no DOPS, enquanto as ditas esquerdas me estigmatizavam como agente do SNI. Quando comecei a viajar, não houve mais dúvidas: “ele é da CIA”. Enfim, pelo menos uma promoção.

Meus livros foram sistematicamente ignorados pela crítica tupiniquim e minhas traduções sabotadas. Em certas universidades ou redações de jornal, há autores que não são estudados ou mencionados por terem sido por mim traduzidos. Tudo isto porque cometi este pecado mortal: jamais fui marxista. Pior ainda, ousei criticar a nova religião. Meu consolo foi saber que sempre estive em boa companhia: Panaïti Istrati, Eugéni Zamiatine, André Gide, Arthur Koestler, George Orwell, Albert Camus, Raymond Aron e muitos outros que sofreram a conspiração do silêncio conduzida pelos cultores da peste do século. Mas os ventos estão mudando. E se, forçados pelos fatos, determinados intelectuais tiveram de reformular suas convicções, entre eles não estou.

Eles, por sua vez, aí estão, usufruindo de altas mordomias nas estatais criadas pela ditadura militar, ocupando postos-chaves na administração federal, estadual e municipal, arrotando teorias assassinas nas universidades e igrejas, censurando na imprensa, nas editoras e em toda e qualquer tribuna qualquer autor que conteste seus dogmas. José Ribamar, em sua cabeça-chatice, entendeu-os muito bem. Foi semeando stalinistas pela Funarte e fundações outras, TVs ditas educativas, Boeings presidenciais e mordomias diversas e deu no que deu: os aguerridos comunossauros do PT não disseram sequer uma palavrinha, na última campanha eleitoral, contra os desmandos do governo Sarney. E ainda há quem diga que nordestino é burro!

Eles mentiram, ocultaram e deturparam fatos, assassinaram e censuraram durante décadas. A censura das esquerdas no Brasil foi mil vezes mais eficaz que a censura dos militares. Estes proibiam livros que continuavam circulando clandestinamente, e a proibição fazia vender mais do que qualquer campanha publicitária. As esquerdas proibiam autores e desta vez a censura era pra valer. Quem a ignorasse, virava leproso da noite para o dia. Nelson Rodrigues, talvez o estilista maior de nossas letras, foi vítima paradoxal desta censura. Seu teatro, enquanto crítica feroz dos modelos comportamentais da classe média, foi louvado e difundido no País todo. Suas crônicas, onde encontramos o melhor de Nelson, jamais foram reeditadas. Pois cometia o sacrilégio de neleas ridicularizar os sagrados dogmas do stalinismo tupiniquim.

Em suas Memórias — livro que recomendo a todo leitor que queira entender um pouco deste século — Raymond Aron evoca uma pergunta do norueguês Jon Elster, seu “réu” em uma defesa de tese na Sorbonne: em que condições se pode ser simultaneamente marxista-leninista, inteligente e honesto? Para Elster, pode-se ser marxista-leninista e inteligente, porém neste caso não se é intelectualmente honesto. Como também há marxistas-leninistas sinceros, mas estes carecem de inteligência. Trocando em miúdos a proposição de Elster, temos que todo marxista-leninista ou é burro ou é mau-caráter. A Revolução do Nove de Novembro passado foi, para os últimos românticos, como uma dessas injeções que dão melhor transparência a um órgão radiografado: tudo se tornou mais claro. Os pretensos heróis não passavam de grotescos celerados e o tal de paraíso socialista, em prosa e verso cantado, não passava de um inferno mal-administrado.

Se não, vejamos. Segundo Algert Likhanov, presidente do Fundo Soviético para a Infância, anualmente 900 mil menores são detidos pela polícia por vadiagem nas grandes cidades soviéticas, logo lá naquele mundo onde Jorge Amado e Neruda nos juravam que as crianças eram felizes e sem problemas. Calcula-se que na União Soviética existam uns três milhões de desabrigados, entre eles 20% de mulheres e 2% de profissionais com formação universitária. Segundo o Konsomolskaya Pravda, o jornal da Juventude Comunista, “a pobreza é uma realidade, a nossa tragédia nacional”.

O Notícias de Moscou vai mais longe. Calcula-se que 15% da população soviética, estimada em 287 milhões de habitantes, tem renda mensal de 75 rublos, insuficiente para viver. Ou seja, temos 43 milhões de soviéticos na miséria. Como é de supor-se que tal catástrofe não exista apenas de Gorbachov para cá, espanta-nos que viajantes deslumbrados, tipo freis Bettos e Boffs, não tenham visto tais “pecados sociais”, conforme o jargão dos sedizentes teólogos da libertação.

“Minha viagem até transcorreu bem, mas que decepção em minha chegada” — escreveu-me um dia uma amiga francesa muito querida -. “O que mais me chocou foi, em torno às cidades, a pobreza das pessoas, os pobres são amontoados em barracos de madeira e as crianças se arrastam na imundície. Neste momento, o país está paralisaado pela greve dos comerciantes, não se encontra mais manteiga e a carne é escassa. Os preços dobraram em um mês e todo mundo deseja a queda do governo”.

Pelo teor da carta, o leitor já terá intuído que não estamos em Moscou, pois há comerciantes e greves, sem falar no desejo da queda do governo. Esta carta, que agora pinço de meus arquivos, está datada de Concepción, Chile, 1972, um ano antes da queda de Allende. Dezesseis anos depois, ao descobrir o Chile, encontrei um país rico e sem problemas sociais, com plena liberdade de imprensa, expressão de pensamento e eleições livres. Escrevi sobre o que vi e quase perdi meus últimos amigos. “Pode até que seja assim” — disse-me um deles, que jamais esteve lá -. “Mas não podes escrever isso”.

Escrevi. Não participo daquela tese sartriana de que os amigos devem concordar em tudo ou então não há amizade. Estávamos em 88, um ano antes do Nove de Novembro, quando condenar Allende, Castro ou o Muro de Berlim constituía crime de lesa-humanidade, De 88 para cá, se não me engano nas contas, transcorreram dois anos. Vejamos então esta pérola, publicada a 23 de março passado, não no New York Times, mas no Notícias de Moscou:

Segundo Yuri Korolev, técnico que trabalhou na equipe econômica do presidente Salvador Allende (quer dizer então que havia aparatchiks russos na espontânea revolução chilena?), o modelo econômico tentado por Allende fracassou, e o que foi implantado pelo general Pinochet “é perfeitamente exemplar”. Para Korolev, o modelo chileno de Pinochet, que deixou o país praticamente à margem da crise latino-americana, poderia ser uma das alternativas estudadas pelos dirigentes soviéticos para a difícil transição do centralismo à economia de mercado. Como detesto estatísticas, deixo por conta do economista russo seu entusiasmo pelos indicadores — segundo suas palavras — do grande sucesso chileno:

“Nos últimos cinco anos, o Chile teve um crescimento de 5 a 6% e no ano passado chegou a 10%. A agricultura responde por menos de 20% do PNB chileno e a produtividade industrial supera dez mil dólares anuais, o que é mais de quatro vezes a taxa da URSS”. Tais afirmações, é bom lembrar, não são do Cristaldo, mas do Korolev. As pedras, por favor, enderecem-nas ao tovaritch moscovita.

Em A Insustentável Leveza do Ser, falando dos regimes comunistas da Europa Central, Milan Kundera considera que tais regimes não foram moldados por criminosos, mas por entusiastas convencidos de terem descoberto a única via para o paraíso. “E eles defendiam corajosamente esta via, executando para isso muita gente. Mais tarde, tornou-se claro como dia que o paraíso não existia e que os entusiastas eram assassinos”.

Surgem então as desculpas: nós não sabíamos! Fomos enganados!, Nós acreditávamos! No fundo do coração, somos inocentes! Outra variante, não registrada pelo escritor tcheco, mas muito repetida nestes dias no Brasil, nos lembra o corvo de Poe: não lembro mais, não lembro mais. Como se fosse possível esquecer ou ignorar, nesta era das comunicações, as purgas de Stalin, o pacto germano-soviético, os gulags, o caso Kravchenko, o XX congresso do PCUS, as invasões da Hungria e Tchecoeslováquia, isso sem falar na falta crônica de comida e liberdade que sempre caracterizou os regimes socialistas.

Mas Kundera, através da perplexidade de seu personagem Tomas, vai adiante. Para este médico caído em desgraça, a questão fundamental não é: eles sabiam ou não sabiam? E sim: somos inocentes por não sabermos? Um imbecil sentado sobre o trono é isento de toda responsabilidade, apenas por ser imbecil? “Édipo também não sabia que dormia com a própria mãe e, no entanto, quando compreendeu o que havia acontecido, não se sentiu inocente. Não pode suportar o espetáculo da desgraça que havia causado por sua ignorância, furou seus próprios olhos e, cego para sempre, abandonou Tebas”.

As esquerdas têm uma invulgar sensibilidade para detectar ditaduras, desde que delas não participem, é claro. Na aldeia global, bastam não mais que dez dias, quando não dez horas, para que um regime seja condenado, urbi et orbi, como ditatorial. Curiosamente, necessitaram de mais de meio século para intuir que, de 1917 para cá, os regimes socialistas sempre constituíram férreas ditaduras e produziram mais prisioneiros e cadáveres do que Hitler ousaria sonhar.

Minha fúria demente? “O anticomunismo sistemático que alguns me atribuem” — escreve Aron — “professo-o sem consciência pesada. O comunismo não é menos odioso do que o era o nazismo”. Minha fúria nada tem de demente, É a justa indignação de um observador atento que vê seus companheiros de geração defendendo, com a convicção de um santo, as piores tiranias que dominaram o século. E se algum dia deixar de indignar-me — como dizia Gide — será sinal de que estou envelhecendo.

Que fazer? Às esquerdas, não se pede que furem os olhos, como Édipo. A medicina contemporânea tem técnicas extraordinárias de correção de miopia e raspagem de catarata. Mas a história deste século deverá ser revista sob uma nova ótica. Ou então, por favor, abandonem Tebas.

Porto Alegre, RS, 09.07.90


 

 

IN MEMORIAM DEUTSCHMARX

 

Curitiba — Saudades — escreve-me uma amiga berlinense. Mas a saudades não é de mim, e sim do muro. "Nostalgia generalizada. Depois da invasão alemã oriental faminta de consumo, poloneses, romenos, ciganos, vietnamitas do Leste. Roubalheira, especulação, conto do vigário, esmoleiros e bêbados em cada canto. Não podes imaginar a reviravolta que está acontecendo por aqui. Adeus dolce vita alternativa. Hoje fui realizar um velho desejo, visitar Berlim Oriental de bicicleta. Andei quase três horas e voltei deprimida com o aspecto da cidade. Meu Deus, não só as gentes são detestáveis no seu incrível provincianismo, também seu habitat é assustador. Ponto para ti, que deves estar feliz lendo estas linhas negras".

O ponto para mim, este eu aceito. Mas feliz não estou, a desgraça alheia é algo que jamais me alegrou. Minha amiga é marxista. Vive há mais de década na orgíaca capital de consumo que é Berlim ocidental, mas sempre louvou o outro lado. Com a queda do muro, do alto de sua bicicleta, parece estar descobrindo o horror que embasava suas convicções.

"É óbvio que os mitos sobre a URSS são interpretáveis tanto a partir do lugar onde nascem quanto a partir do país que produz sua substância", — escreve Marc Ferro, em O Ocidente diante da Revolução Soviética. "Por que, na França, por exemplo, acreditou-se em Soljenitsin em 1970, quando ele falou do terror na URSS de 1920 a 1950? Por que não se acreditou em Kerenski ou Volin, em Kravtchenko ou Koestler, embora eles dissessem a mesma coisa? É evidente que a resposta deve ser encontrada em Paris, em Berlim e Londres, e não somente na URSS".

A antiga Berlim ocidental foi certamente a capital mais marxista de toda a Europa. Situada no olho do furacão, atraiu, talvez até mesmo em maior intensidade do que Paris, as esquerdas de toda América Latina. Ostensiva vitrine do capitalismo, encravada em um oceano socialista, Berlim constituiu a ilha ideal para os defensores do fascismo eslavo. Sempre era possível defender o sistema circundante, sem precisar renunciar às delícias do sistema contestado, tais como carros de luxo, giros pelas ilhas do Egeu ou do Mediterrâneo, boa calefação, boa cerveja e bom vinho, isso sem falar dos demais requintes que a cidade oferece, de braços e pernas abertas, a seus amantes. Tal lascívia conseguiu chocar até mesmo aquele poetastro gordo, glutão, medíocre e stalinista, o Neruda, que julgava ter construído um poema apenas alinhando palavras na vertical:

 

Os pederastas dançam se abraçando
contra os técnicos do State Department
as lésbicas encontraram
seu paraíso protegido
e seu santo: Saint Ridway
Berlim ocidental; tu és a pústula
sobre o rosto antigo da Europa
as velhas raposas nazis
escorregam sobre as mucosidades
de tuas sujas ruas arqui-iluminadas
Coca-cola e anti-semitismo
correm abundantemente
sobre teus excrementos e tuas ruínas
Na cidade maldita
filha do crocodilo Truman...

 

Etcétera. Neruda depois abiscoitou o Nobel, para vergonha de todo poeta que se preze, mas se afinal Cholokhov o conseguiu com um plágio, O Don Silencioso, os braços da Real Academia Sueca permaneciam abertos aos vigaristas do século. Mas falava de Berlim.

Como a alma de todo marxista, Berlim permaneceu décadas dividida, e nisto reside seu caráter emblemático, de cidade-mártir de um século ensandecido por milenarismos. Tanto Neruda, gordo e glutão, como minha amiga berlinense, magra e ascética, adoram e ao mesmo tempo detestam a luxuriante vitrine do capitalismo ocidental. Neruda, para sua própria sorte, está morto e bem morto. Não precisa mais responder pela tirania que lhe rendeu dólares e prestígio. Quanto à minha missivista... Bem, alguém terá de reformular conceitos, e este alguém não sou eu.

Quando adolescente e contaminado por idéias obsoletas, sempre detestei o consumo e as sociedades de consumo. Impregnado pelo obscurantismo católico, a meu ver todo comércio era crime e todo comerciante um ladrão. Mas a vida, para bom entendedor, é uma caminhada rumo à lucidez. Hoje estou convicto de que o comércio é a base mais saudável da paz entre os povos.

Um consumista inveterado — já deve estar pensando o leitor fanático de Neruda. Nada disso. Meu consumo se resume a comprar livros, curtir bom cinema, sentar em bares propícios ao recolhimento, ler jornais, beber e conversar. Certos museus também me atraem. Por exemplo, o Berlin Musée. Até hoje não sei bem o que ele abriga, parece que umas locomotivas antigas. Mas após aquelas tralhas, há um bar magnífico, onde se toma um vodca com figo, nata e pimenta, capaz de dobrar o mais radical inimigo de museus.

Enfim, falava de consumo. Por idiota que seja, acaba gerando empregos e riquezas. Nisto reside o fascínio de capitais como Berlim, Paris ou Madri. Para suprir as demandas do consumo, seja uma peça de lingerie, uma caneta mais sofisticada, um computador ou Mercedes Benz, centenas de milhares de cidadãos têm emprego e salários garantidos. Jamais participei desta orgia consumista. Mas constatei que, nas sociedades onde existe, as pessoas vivem bem. Se me sobra salário no fim do mês, estou livre tanto para opções burras como inteligentes e qualquer uma delas gera riqueza e distribuição de renda. Assim sendo, com a isenção de ânimo de quem detesta entrar em lojas, louvo a nova Berlim que nasce dos escombros da barbárie. Verdade que os intelectuais de esquerda refugiados nos Kneipen da Kudam ou do Kreutzberg terão agora de disputar seu espaço vital com os famintos de consumo do Leste. Dialética tem dessas coisas.

O caráter ficcional do bem-estar de uma economia sempre acaba se revelando na saúde de sua moeda. Brasileiros, há muito sabemos disso. Conscientes do valor simbólico da moeda ou do papel-moeda, a Alemanha ocidental sempre cuidou de oferecer a seus cidadãos cédulas estalando de novinhas. Mal um bilhete começava a ficar sujo ou amarrotado, era queimado e substituído por papel novo. O Deutschmark jamais sujou as mãos de seus portadores e sempre teve livre curso no mundo todo. Já o Deutschmarx, como foi apelidado o marco oriental, além de não comprar nada fora das fronteiras da ditadura, era tão ou mais imundo quanto cruzados ou cruzeiros.

Ao raiar do mês de julho, como conseqüência da revolução do Nove de Novembro e selando a reunificação alemã, toneladas de marcos ocidentais foram transportados à parte enferma da nação para substituir a cédula inútil. "Milhões de pessoas terão pela primeira vez nas mãos uma moeda realmente forte" — disse Helmut Kohl — "Elas não vão iniciar uma discussão teórica ou filosófica sobre a unificação alemã. Provavelmente, o marido dirá á mulher: vamos até Paris. E eles passearão pelos Champs Elysées e se sentirão no centro do mundo".

Para não poluir ainda mais a já poluída geografia da Alemanha oriental, a falecida moeda será sepultada em minas de sal e urânio. Junto com as cédulas de cem, jazem as efígies de Marx e Engels. Se daqui a um século, um arqueólogo ou espeleólogo deparar-se com aquelas toneladas de dinheiro sujo, constatará com ironia, que Lênin tinha razão: para destruir um regime, basta desmoralizar sua moeda.

Porto Alegre, RS, 14.07.90


 

 

A INDÚSTRIA TEXTIL

 

Curitiba — E já vou avisando ao revisor que é textil mesmo, assim sem acento, para não confundir com a dos têxteis, atividade esta honesta e produtiva. Se a indústria têxtil está vinculada ao campo, a textil melhor floresce no campus. Enquanto a primeira vai depender de condições climáticas e flutuações do mercado, a segunda constitui lucro certo a seus cultores, independentemente de humores atmosféricos ou financeiros. O que talvez explique a crescente migração de homens do campo para o campus. Se no campo a vida é dura e carente de atrativos (exceto talvez para poetas românticos), no campus tudo são flores e facilidades.

“A crise universitária não é um fenômeno urbano” — escreve Vargas Llosa — “ nem latino-americano, mas que também provocou rupturas em sociedades de alta cultura, com sua tradição universitária de muitos séculos. França, Itália, Espanha, Alemanha e outros países europeus conheceram ou conhecem, como o Peru, a Colômbia, o México, a Venezuela, uma profunda crise em seu sistema universitário, e há vários anos dão murros de cego em busca de uma solução que não parece fácil nem imediata”.

Ao falar de universidade, Llosa fala da universidade pública, diga-se de passagem. E cita um discurso de Manuel Vicente Villarán, que acusava a universidade de produzir inúteis, pensadores literários e juristas, em vez de agricultores, colonos, empresários, engenheiros, capazes de produzir riquezas e modernizar o país. Este discurso, é bom lembrar, foi pronunciado em 1900, quando o Brasil era dominado pela frágil literatura de um mulatinho europeisado e europeisante, e sequer sonhava com universidade. Trocando em miúdos: brasileiros, estamos começando a intuir, neste final de século, problemas que nuestros vecinos tentavam equacionar em meio aos estertores do século passado.

Ao abordar o movimento da reforma universitária, iniciado nos anos 20, em Cordoba, Argentina, o escritor peruano constata uma vontade de que a universidade produzisse, não capitalistas industriosos, e sim revolucionários:

“É preciso ler as páginas que José Carlos Mariátegui lhes dedica em Siete Ensayos, para se ver até que ponto a reforma concebia a universidade como uma instituição cuja meta é formar ativistas e militantes, converter-se numa máquina de demolição da sociedade burguesa. Ele vê com simpatia o movimento da reforma porque a ele parece um aspecto — no campo burguês e juvenil — da luta pela destruição da sociedade capitalista e sua substituição pela socialista. A reforma deixou flutuando no ar da América a idéia de que a universidade (e a cultura) não devia subordinar a política a seus fins e trabalhos, mas sim subordinar estes à ação e ideais políticos”.

Enquanto a revolução não ocorre, o socialismo se refugia nas universidades, cuja finalidade, é bom lembrar, jamais foi subsidiar utopias desvairadas. Se nosso século provou à bastança que não é fácil impor uma disciplina marxista às leis da gravidade ou da genética, o mesmo não ocorreu no campo das ciências humanas, onde tanto faz que dois mais dois sejam quatro, cinco ou dez. Emerge então, no Ocidente, o fundamento de uma indústria das mais prósperas. Investimento? Palavras. Dividendos? Bons salários, turismos e mordomias.

Tudo isto, é claro, sob a égide de uma palavrinha mágica; pesquisa científica. Os cursos da área humanística, na universidade brasileira, são, de um modo geral, grotescas cartilhas marxistas. Enquanto os países do Leste europeu estão eliminando o marxismo de seus currículos, nós, botocudos, continuamos a insistir em doutrinas obsoletas. Na Alemanha Oriental, constatei o desespero de 25 mil professores de marxismo desempregados. Ao comentar o fato com um amigo universitário, este pediu-me que não falasse do assunto. “Se a universidade brasileira sabe, contrata todos”. Discreto que sou, nem piei.

Cá entre nós, o diagnóstico mais arrasador da universidade pública brasileira foi feita por Edmundo Campos, sociólogo mineiro, em A Sinecura Acadêmica, um corajoso ensaio ante o qual os PhDeuses torcem o beicinho esse mantêm silentes. Para o autor, a universidade não está dando o retorno pelo que a sociedade paga, em impostos e taxas, pela sua manutenção. “Ninguém mais se importa com uma greve universitária que dura cinco meses. A universidade não faz nenhuma falta, tornou-se absolutamente irrelevante. Existem, é óbvio, ilhas de competência espalhadas pelo país, com bons cursos e programas, professores bem preparados e responsáveis, mas essas são exceções à regra, que são as universidades dominadas pelo baixo clero”.

Por baixo clero não deve o leitor desavisado entender cardeais que louvam ditaduras no Caribe nem freis que pregam o totalitarismo. Na acepção do professor Campos, baixo clero é “esse enorme contingente de professores mal qualificados e com titulação mínima, aos quais foi entregue o grosso das funções universitárias. Hoje, é o baixo clero que está nas salas de aula, quando não está fazendo greve ou promovendo assembléias gerais. O baixo clero costuma ser agressivo e raivoso, porque odeia o debate e as idéias de uma forma geral”.

Dinheiro público versado generosamente, baixo clero mais utopismos desvairados, eis o caldo fértil para a instalação da próspera indústria de textos. Se causa indignação no país todo o número de professores que fazem turismo com o pretexto de defender teses, não menos escandalosa é a situação — falo da área humanística — da maioria dos que voltaram com tese defendida. Cá e lá pode-se catar algum ensaio interessante, é verdade. Mas, de um modo geral, os programas de doutoramento constituem verdadeiros crimes ecológicos, nos quais milhares de árvores inocentes são sacrificadas para fornecer o papel a masturbações teóricas, geralmente importadas da Europa. Aqui-del-rei, secretário Lutzenberger!

Durante várias décadas, os acadêmicos brasileiros fundamentaram suas reflexões no pensamento marxista, conforme as vulgatas de evangelistas menores como Lukács, Gramsci, Goldman, Althusser, Poulantzas et caterva. Tais teóricos conferiam ao pesquisador o selo sagrado de garantia, o rigor científico. Perguntinha para este final de século, quando o pensamento marxista desmorona desde dentro, exatamente por revelar-se como crença e não como ciência: que destino dar a essas toneladas de reflexões anódinas, fundamentadas em dogmas fajutos? Para o que o leitor está pensando não serve, o papel é muito grosso. Mas acho que a Holanda, por exemplo, poderia ter algum interesse no assunto, já que sempre faltou terra aos Países Baixos para fazer diques.

Mas nem só os professores-turistas são beneficiados pela indústria textil. Graças a ela, autores que há muito deviam estar mortos e enterrados continuam a transitar como se vivos fossem nos corredores universitários. Não fossem as exigências curriculares dos cursos de Letras, quem leria hoje, por exemplo, uma obra chocha e pedante como Macunaíma? Qual editor, em pleno juízo e com capital de seu próprio bolso, ousaria reeditar um chato como Oswald de Andrade? Qual leitor, em sã consciência, compraria os peixes podres dos irmãos Campos? Indo um pouco mais longe: que tem a dizer Machado de Assis a um jovem de nossos dias? Por que impor Machado a alunos que jamais folhearam um Nietzsche ou Dostoievski, estes eternamente jovens e subversivos? Através da indústria textil, a máfia universitária consegue vender cadáveres literários, ao mesmo tempo que afasta do mundo das letras gerações inteiras de leitores potenciais.

Causou celeuma em São Paulo, a hipótese de retirar o nome de Drummond de Andrade da lista de autores exigidos no vestibular. Pois acho que deveria ser retirado mesmo, para vermos se morreu ou não morreu. Poeta é aquele que vai em socorro das angústias de seus contemporâneos e pósteros, e não o que sobrevive graças à benção da máfia. Quando descobri pessoa ou Cervantes, fui ao encontro deles por prazer e necessidade espiritual, não por imposições acadêmicas. O mesmo ocorreu com Nietzsche, Dostoievski, Herman Hesse, Hernández, Sábato, Donoso, Cela. Curiosamente, jamais vi estes nomes nos currículos universitários. O baixo clero, além de odiar o debate, detesta o gênio.

Fala-se, nestes dias, em cortar as enxúndias da universidade pública. Os reitores, reféns dos funcionários que os elegeram, negam-se a qualquer corte de pessoal. O professor universitário, com a garantia da estabilidade, sente-se acima do bem e do mal. O que deveria ser universidade virou repartição pública. O que deveria ser universidade virou repartição pública, com todas as impunidades daí decorrentes. E a indústria textil vai muito bem, obrigado.

Porto Alegre, RS, 19.08.90


 

 

EU, SEM TERRA

 

Curitiba — Das coisas que fizeram as mãos de um homem do campo, poucas não terão feito as minhas. Arranquei chirca com picão, cortei aveia com foice, trabalhei em alambrados e rasguei a terra no rabo de um arado puxado por bois. Quinchar um rancho para mim não tem mistérios, muito menos carnear uma vaca ou ovelha. Meus primeiros trocados — questão de comprar bolinhas de gude ou rapaduras — ganhei-os juntando cordeiros mortos pela geada. Com sorte, cada manhã rendia uns cinco ou seis e depois era só negociar as peles no bolicho do Candoca. E mais: se algum gaúcho ainda sabe o que é mundéu, devo confessar que fui emérito caçador de perdizes. Sem tiros nem violência. Apenas uma forca onde o bichinho, talvez não muito espontaneamente, acaba entrando.

Minha infância, eu a vivi em uma época que antecede o trator. Tratores já existiam, é verdade, mas descendo de uma raça de camponeses teimosos — ou suicidas, como quisermos — que preferiam ir morrendo lentamente, tomando chimarrão sob a copa cúmplice de um cinamomo, do que entregar-se às tentações da modernidade. Sou da época do radinho de pilhas e mais ainda: poderia afirmar que sou de antes do rádio. Só fui conhecê-lo lá pelos seis ou sete anos, graças à iniciativa de um tio mais ousado, que sacrificou seu mais antigo eucalipto para instalar um catavento. Escutar rádio para mim sempre teve algo de mágico, e meu tio girava o dial qual sacerdote erguendo uma hóstia.

Cidade é coisa que fui conhecer aos dez anos. Enfim, tudo isto é para dizer que, nestes dias em que se fala tanto nos tais de sem-terra, sem-terra mesmo sou eu. Fui expulso de minha geografia, um pouco pela pressão dos latifúndios circundantes, outro tanto pelas tentações da cidade. E, cá entre nós, graças a Deus — há horas em que viro místico! — que fui expulso. Nutro imenso carinho pelas sangas e cacimbas de minha infância, mas se nelas continuasse pescando ou bebendo, do mundo só teria visto o horizonte. A vida no campo é linda, dizia Sócrates, acontece que os amigos estão em Atenas.

Assim sendo, muito me surpreendem as manifestações dos ditos sem-terra, entre os quais os mais falantes são pessoas de mãos sem calos. Que as minhas não tenham calos é inteligível, abandonei meus pagos há cerca de trinta anos. Mas tampouco reivindico uma volta à terra. Em Portugal, lá pela época da finada Revolução dos Cravos, quando os intelectualóides do PCP desciam ao Algarve para conclamar os camponeses à luta (mas que luta?), os algarvios pediam apenas uma coisa: mostra as mãos, ó gajo! E ao ver que os salta-pocinhas lisboetas nas mãos não tinham calos, os mandavam de volta à capital, sob pena de experimentar nas fuças a mão de um homem que trabalha.

Em Paris, ainda neste ano, encontrei um colombiano que fazia uma tese sobre as lutas sociais na América Latina. Interrogou-me sobre os movimentos camponeses no Brasil, e não quis acreditar quando garanti que no Brasil não havia movimento camponês algum. Para começar, camponês é palavra dúbia. Homem algum do campo se define como camponês. Camponês é palavra inventada por aqueles que — lá no campo — nós chamávamos de “bundinhas da cidade”. A denominação não é fortuita. O gaúcho, dentro de suas bombachas, esconde as ancas. O bicho urbano, com sua calça corrida, exibe mais suas convexidades. Mas falava dos ditos movimentos camponeses. Ora, o homem do campo, o peão, jamais teve senso algum de organização. O que existe no Brasil, afirmei, é uma massa de pobres coitados manipulados pela dita ala progressista da igreja Católica e pelas viúvas de Stalin, os integrantes do autodenominado Partido dos Trabalhadores. Este filme tem um gosto insosso de déjà-vu, e efetivamente já o vimos na China e na Rússia, para dar no que deu: ditadura, opressão, miséria e fome.

O que me lembra versos do Aparício Silva Rillo, gaúcho da gema, quando canta a saga do João da Gaita:

Lá um dia percebeu
para o seu entendimento
de índio meio bagual,
que o que chamavam “ideal”
era apenas, bem pensando,
ambição pura de mando
dos chefões da capital,
daqueles que concitando
a gauchada ao combate
ficavam tomando mate
peleando só por jornal.

E nisto se resumiram as degolas de 93 a 23, revoluções que apenas sangraram o Rio Grande do Sul, sem que o sangue tivesse alguma paga. As atuais invasões de terra, feitas ao arrepio da lei e com logística de quem conhece guerrilha, parecem querer forçar as circunstâncias a mais um derramamento de sangue. Não é de espantar que tais movimentos sejam liderados por padres e bispos. Eles bebem sangue todas as manhãs — e, por favor, não ousem negá-lo! — e vai ver que querem sangue também no almoço e na janta.

De sangue, devo confessar que também gosto, mas suíno ou bovino e sob forma de morcilha ou guisado. O sangue ritual, aquele que os padres bebem, com ele jamais fui brindado. Os safados o reservavam a si próprios e me serviam um pão sem fermento e sem graça. O cara aquele, o Cristo, muitas vezes o comi, mas sem prazer algum. Mas falava de terras.

Terra, em minha geografia, conquistava-se com o trabalho, jamais com proseletismo. A loja brasileira da máfia romana, sentindo-se obsoleta e pouco convincente, em seu desespero apela aos pobres. Não para torná-los ricos, mas para nivelá-los por baixo, mantendo-os naquele nível de pobreza que sempre agradou ao poder. Fala-se em demitir 360 mil apaniguados no Brasil para moralizar o serviço público? Horror, arbítrio do poder. Mas os alemães orientais acabaram concluindo, a duras penas, que só com alguns milhões de desempregados pode se aspirar a uma economia sadia. Se não nos cuidarmos, após o fim de Castro, o Brasil será o último país socialista da América Latina.

Mas falava de quê? Ah, de terras. A meu pai, gaúcho daqueles que não se fazem mais, jamais ocorreria invadir a terra de alguém. Em contrapartida, jamais lhe ocorreria permitir que alguém invadisse suas poucas braças. Havia um alambrado que dividia seu território dos alheios, e ai daquele que o ultrapassasse sem seu convite. Herança talvez de 23, sob as camas havia um arsenal escondido. Fui criado manipulando mosquetes Mauser e Winchesters e creio que só agora, depois de adulto, consegui entender este sentimento visceral do homem da terra: em meu território, por menor que seja, ninguém põe as patas.

Na Hungria, leio nos jornais, está se começando a devolver a terra a seus antigos proprietários. No Brasil, tenta-se tirar a terra de seus proprietários. Se, por um lado, não há sentido algum em quadras e quadras de latifúndio improdutivo, tampouco há sentido algum em invadir geografias produtivas. Santa Catarina, por exemplo. Em um estado cuja distribuição fundiária é das mais coerentes e produtivas do país, não faltam agitprops defendendo a invasão de terras.

E as invasões estão virando seqüestros. Ser oficial de justiça no Brasil está começa a tornar-se tão arriscado quanto ser juiz na Colômbia. É curioso constatar que Dom José Gomes, que já foi bispo em Bagé, sem jamais ter dito um pio contra o latifúndio, agora se erija em líder dos tais de sem-terra nesta geografia bastante humana de Santa Catarina. Os príncipes da Igreja, em vez de envelhecerem com elegância, parecem ter aderido a esta demagogia barata, a aceitação de idéias aparentemente jovens, mas no fundo senis e obsoletas.

A todo jornalista que entrevista esta nova classe, permito-me sugerir duas análises, a das mãos e a do vocabulário. Se as mãos não têm calos e se o vocabulário é petóide — atenção! — o tal de sem-terra é camponês de mentirinha, e só posa como vítima em função de interesses das viúvas saudosas do finado Djugatchivili.

Porto Alegre, RS, 11.09.90


 

 

JUSTIÇA AOS BRANCOS

 

Curitiba — Na África do Sul jamais estive. Como não gosto de falar sobre países que não conheço, jamais ousei escrever sobre apartheid. Jornalista, não confio muito em meus confrades. A Suécia curou-me desta doença, a confiança irrestrita nos meios de comunicação. Antes de ir para lá, havia recortado e relido reportagens e relatos sobre o paraíso nórdico, sem falar na leitura de pelo menos uns quinze livros de privilegiados hóspedes do país dos Sveas. Abandonei o Brasil embalado por miragens. Mal comecei a balbuciar o idioma e ler a imprensa local, descobri que havia sido ludibriado pelo entusiasmo de viajantes apressados. A Suécia real em nada coincidia com a Suécia que me haviam vendido.

Assim sendo, sempre fiquei com um pé atrás quando lia sobre as injustiças cometidas pelos brancos em relação à maioria negra da África do Sul. Minhas suspeitas aumentaram quando o líder da população negra explorada era um marxista, Nelson Mandela. Ora, marxista denunciando injustiça me lembra o Lula condenando o analfabetismo. Nosso século criou um curioso silogismo:

Os presos e torturados sempre têm razão.
Eu fui preso e torturado.
Logo, eu tenho razão.

Acontece que a primeira premissa nem sempre é verdadeira. Que o diga Luís Carlos Prestes. Sofreu prisão e exílio por lutar pela peste mais mortífera que empestou o século. Mandela, aliás, ao sair das grades, logo mostrou as garras: desmanchou-se em elogios a Kadhafi e Fidel Castro, ditadores sanguinolentos e ridículos dos quais Saddam Hussein parecer querer roubar o cetro da truculência. Comentaristas internacionais tentaram escusá-lo, alegando que Mandela, em sua prisão, não recebia jornais. O argumento não procede, afinal o Tarso Genro recebe jornais todos os dias e jamais fez qualquer denúncia — logo ele que adora denunciar — em relação ao último e decrépito e caspento ditador latino-americano.

Mas falava da África do Sul. Em Madri, encontrei uma argentina que residira cinco anos em Pretória. Contaminado pelo bombardeio da imprensa, quis saber como conseguira sobreviver, sendo branca, em meio aos conflitos raciais. “Não é bem assim” — contestou-me a moça -. “Eu também trabalhei em teu país, e duvido que o negro viva melhor no Brasil que na África do Sul”. A convicção com que falava caiu-me como gelo ao lombo. Quer dizer que todas as informações que eu tinha sobre o apartheid eram falsas?

— Não — atalhou a portenha -. A separação racial é um fato, isso não se pode negar. Mas em que país do mundo há cinco universidades para negros? Em que país da América Latina um negro dirige uma Mercedes sem provocar a suspeita de que é chofer ou ladrão? Em qual estado do Brasil um negro, ou mesmo um branco, ganha oitocentos dólares para descer ao fundo de uma mina?

Fiquei, literalmente, sem palavras, quase envergonhado ao confessar que em o salário mínimo, para pretos ou brancos, sempre oscilara em torno aos 40 dólares. Sem falar que Mercedes Benz era sonho de alta classe média, de preferência próxima ao poder. Pedi que me contasse mais coisas sobre Pretoria, e muito mais coisas me contou, só que delas não mais lembro, já que um Rioja e seu sorriso embotaram, pouco a pouco, minha memória. Mas seu relato não era o de um viajante apressado. Ela me falava de um país onde havia vivido.

Ano passado, li no Jornal do Brasil uma entrevista com empresários brasileiros que voltavam da África do Sul. Suas declarações fechavam com as de minha amiga portenha. Que o operário brasileiro, que sobrevive na base do salário mínimo, sequer ousava sonhar com o ganho do menos qualificado mineiro sul-africano. E de novo falava-se em oitocentos dólares como mínimo. Em anúncio deste mês, a Folha de São Paulo acenava com Cr$ 50 mil para o cargo de repórter, dominando preferentemente uma língua estrangeira e cursando, se possível, pós-graduação. Nos dias de hoje, de câmbio excepcionalmente baixo, teríamos 714 dólares. Ou seja, um jornalista com curso superior, mais pós-graduação, na capital que melhor paga no Brasil, recebe menos que uma mão-de-obra não qualificada na África do Sul.

O conceito de racismo sempre me deixou com um pé atrás, pois é conceito só de ida e não tem volta. Quando o branco discrimina o negro, o branco é racista. Se o negro discrimina o branco, aí as coisas mudam de figura, é a justa reação do dominado ante a arrogância do dominador. Os porto-alegrenses foram testemunhas disto. Ainda há pouco, uma branca foi eleita rainha do carnaval e teve de entregar a coroa, tão hostilizada que foi. Pois a comunidade negra da capital julga que carnaval é domínio privado da raça. Tivessem a preocupação de enfronhar-se um pouco em História, talvez até descobrissem que o carnaval tem suas origens na Roma branca e cristã. Enfim, nestes dias em que racismo é crime inafiançável, ficou o dito pelo não dito, afinal só branco é racista.

Insulto que, aliás, já me foi atribuído. Quando editava um caderno de cultura no falecido Diário de Notícias, fui procurado por um poeta que queria assinar uma coluna. Ora, colaboradores era o que eu mais necessitava. Acontece que o poeta em questão queria dar à sua coluna um cabeçalho: Poesia Negra. Como, a meu ver, poesia não tem cor — e muito menos sexo — declinei de sua oferta. Se a aceitasse, por uma questão de coerência, teria de pensar em um espaço para a poesia branca, outro para a amarela, a verde, a azul. Outro racismo que anda despontando no campo literário é o sexual. Nas últimas décadas, passou-se a falar de literatura feminina. Como se literatura necessitasse adjetivações. Ou é literatura ou não é, independentemente do sexo de quem a faz.

Mas falava de quê? Ah, da África do Sul. País no qual um branco trabalhando — segundo minha amiga portenha — carregava seis negros nas costas. País que, caso fosse expulsa a minoria branca, seria devorado por lutas tribais. Que a Europa, é verdade, havia sido consumida por tais lutas, mas pelo menos hoje, as tribos haviam chegado a um acordo. Sem querer pôr em dúvida o depoimento de pessoa na qual, de cara, depositei confiança, de qualquer forma, seu testemunho revelava uma idiossincrasia branca.

Já não é o caso de Ivo Castro, presidente da União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia. Brasileiro, negro e garimpeiro, Castro faz na última Veja, uma declaração que vai entortar o pescoço das esquerdas: “quero morar na África do Sul”. Ouçamos este depoimento insuspeito:

— Com a libertação de Nelson Mandela, abriu-se uma perspectiva para o racismo acabar na África do Sul. Mas o que se viu desde então foi um aumento fabuloso das agressões e assassinatos. Só que desta vez entre os negros, entres as tribos e facções que se entredevoram. Ainda assim, eu quero morar lá. Na África do Sul, os operários negros que trabalham nas minas de ouro não ganham menos de mil dólares por mês. Fora das minas, vi muito executivo negro ganhando, no mínimo, seis mil dólares mensais, todos com pleno acesso à educação, saúde e moradia. O melhor de tudo é ganhar isso em um país de inflação baixíssima, sem a ameaça de redução de salário.

Castro — favor não confundi-lo com o tirano — considera que a imprensa internacional dá excessivo destaque à violência da polícia sul-africana contra os protestos políticos. Mas considera que, no Brasil, os negros apanham por muito menos. O que me lembra episódio caricatural, ocorrido em Canoas. Um pastor evangélico rodesiano foi interpelado pela polícia gaúcha. Como falava um português precário, eivado de forte sotaque inglês, os policiais o tomaram por um negro bêbado enrolando a língua. Até que o assunto fosse esclarecido, levou não poucas porradas.

Mas falava de Castro, que julga ser necessário fazer justiça aos brancos na África do Sul, “ilha de prosperidade no paupérrimo e conturbado continente africano”. Castro nos conta a história de um amigo seu, filho dos colonizadores portugueses em Angola, onde tinha uma fábrica de cimento e defendia a luta dos negros.

— Quando houve a revolução socialista, os negros o colocaram para correr. Pouco depois, quando retornou à Angola, viu sua fábrica arruinada por pura falta de capacidade dos negros para mexer com as máquinas. Não sabiam consertá-las e não entendiam de contabilidade. Mas não há dúvidas de que os negros vão assumir o poder na África do Sul. É difícil saber se isto será melhor para o país. Numa das minas de ouro que visitei, percebi que boa parte dos operários era oriunda de países vizinhos, onde a maioria negra tomou o poder, como Angola, Moçambique e Namíbia. Alguns atravessaram a fronteira a pé para trabalhar nas minas de ouro, porque em seus países a independência virou também sinônimo de miséria absoluta. Expulsaram os brancos, o dinheiro dos brancos, as idéias dos brancos, e ficou um bando de negros sem saber o que fazer.

Pedras, por favor, jogá-las no Castro, não no Cristaldo.

Porto Alegre, RS, 22.09.90


 

 

A DESUNIÃO SOVIÉTICA

 

Curitiba — "Deus morreu, Marx agoniza e eu estou com gripe" — queixava-se, no final dos anos 70, um jornalista francês — "Quel siècle, mon Dieu!" Pois eu também estou perplexo. Há poucos meses, li que fora eliminada a censura da imprensa na União Soviética. Quer dizer então que a imprensa era censurada no paraíso dos sovietes? Que vamos fazer dos relatos dos peregrinos da Nova Jerusalém, que desde Amado e Neruda a freis Bettos e Boffs, nos juravam de pés juntos que lá não existia censura alguma? Pior ainda: leio agora que o Parlamento soviético aprovou o texto geral de um projeto de lei que permite a liberdade religiosa na URSS. Quer dizer que antes não havia liberdade religiosa lá? Não entendo mais nada. Milhares de viajantes, entre estes não poucos sacerdotes, de lá voltavam garantindo a plena liberdade de culto no éden socialista.

Mas a liberdade de culto, na URSS, não vai durar muito, que mais não seja porque dentro de pouco nem a URSS existirá. Gorbachov propõe uma mudança de nome, para União dos Estados Socialistas Soberanos. Cai a palavrinha sagrada, o soviete. Mas resta uma que não consegue consenso entre os ex-soviéticos: socialismo. Setores mais lúcidos da Desunião Soviética sugerem: União das Repúblicas Euro-Asiáticas. Avante, camaradas! Mais um pequeno esforço mental e ainda verão que a palavrinha união só serve para desunir e é perfeitamente dispensável.

Crise geral de identidade. Na Itália, o Partido Comunista anda em busca de melhor nome. Enquanto não o acham, é tratado como A Coisa, assim com maiúsculas. O que demonstra atroz falta de criatividade dos camaradas italianos, já que poderia ser confundido com uma outra cosa, a Cosa Nostra, se é que não são as duas faces de uma mesma moeda. Enquanto muitos capos mafiosos enfrentaram julgamento e foram condenados, Palmiro Togliatti continua sendo venerado como herói. Acontece que, mais dia menos dia, serão abertos os arquivos do Kremlin, salvo se um incêndio oportuno não for provocado para salvar as biografias das estátuas de pés de barro deste século. Togliatti, como há muito se sabe, foi conivente — se não responsável — com a liquidação do PC polonês e com o assassinato de militantes italianos pelos serviços secretos de Stalin. A Coisa quer então mudar de nome! Qualquer nome, desde que elimine outra palavrinha subitamente fora de moda, comunista. Propõe-se algo como Partido Democrático da Esquerda. Em italiano, Partito Democratico della Sinistra. Ou seja, PDS. As esquerdas tupiniquins já devem estar sofrendo de insônia. Que tal o Lula ou Erundina sendo recebidos, em Roma, pelo PDS? Não vai ser fácil explicar a coisa às bases.

Enquanto A Coisa lá deles continua indefinida, o Líder Máximo da Disneylândia das Esquerdas dá um passo à frente em sua revolução. Mais um pouco e ultrapassa a Albânia, só que em marcha à ré. Lá pelos anos 70, quando a revolução albanesa foi acusada de sequer ter conseguido mecanizar a agricultura, Envers Hodja reuniu seus engenheiros e ordenou a produção de um trator. O que foi feito. Foi gerado um monstrengo quadrado e antediluviano, mas trator. Construída a coisa, provado que o pensamento invencível do Farol da Humanidade era capaz de produzir uma máquina agrícola motorizada, o trator foi posto num museu e os albaneses continuaram arando a terra no rabo do arado.

É o que propõe o caudilho do gulag tropical, ante o corte das generosas verbas moscovitas, já que os russos parecem estar concluindo ser melhor garantir o escasso pão nosso de cada dia do que financiar aventuras ideológicas nas Índias Ocidentais. Sem combustível para tratores, Castro revela que cem mil bois e touros estão sendo preparados para trabalhar no campo dentro de seis meses. Se a situação piorar e for necessário substituir mais veículos e máquinas agrícolas, este número poderá chegar a quatrocentos mil. O que certamente fará as delícias das viúvas do socialismo, um charter a Cuba terá o sabor de uma exótica viagem no tempo, um inesperado tour à Idade Média.

Sem falar nesta humilhação suprema para um touro, puxar um arado. Fosse eu o touro em questão, concitava até bois e vacas para derrubar Castro. Fossem só estes os problemas da ilha, agora órfã da finada doutrina, até que não era nada. Em Cuba começa a faltar papel, drama de todo país socialista, sequer previsto por Marx. Em meus giros pelos regimes comunistas, senti brutalmente a falta de duas coisas, papel higiênico e boa imprensa. Na Romênia, tive de solicitar na portaria de um hotel, não jornais, seria sonhar demais. E sim o prosaico papel higiênico, que o aiatolá Khomeiny autorizava ser substituído por duas pedras, mas afinal nada tenho a ver com Maomé. Uma moça com cara de sargento quis saber quantos dias eu lá ficaria, avaliou minhas trocas metabólicas e me ofereceu uns dois ou três metros, com ares de quem me havia prestado um grande favor.

Como não gosto de julgar uma sociedade a partir de experiências individuais, sempre procuro checar minhas impressões com as de outros viajantes. Ainda há pouco, encontrei uma professora que voltava de Moscou. Estivera hospedada no Cosmos e eu quis saber se a perestroika já havia resolvido este probleminha vil, mas crucial, o do papel higiênico. "Que nada, só com requerimento". O que deve explicar, a meu ver, as tiradas mirabolantes da "Pravda".

Mas em Cuba, o que falta é papel-jornal. Ou seja, o higiênico já deve pertencer ao território do anecúmeno. Em meus pagos, nos dias de minha infância, a gauchada usava guanxuma, erva um pouco áspera, é verdade, mas que talvez ainda acabe sendo recuperada nestes dias em que nasce uma nova religião, a ecologia, emergindo já com seus santos e mártires, vide Chico Mendes, obscuro apparatchik lotado na Amazônia e hoje mito pra gringo ver. Na falta de guanxuma, servia a grama. Para os cubanos, ao que tudo indica, só resta o Granma, órgão oficial da Coisa, digo, do Partido Comunista, que não teve vergonha alguma em adotar para seu jornal um nome ianque que, ironicamente, significa vovozinha. Pois a Vovó da Coisa, com o corte de papel de Moscou, capital que não consegue sequer suprir os turistas de papel higiênico, a Vovó, dizia, será o único jornal a ser publicado diariamente em Cuba. Intelectualmente, os cubanos não perderão nada, afinal numa ditadura tanto faz ter um como dez jornais, todos são unânimes. Parece que Castro está preocupado com o "colapso no setor de informações". Charminho de déspota a caminho do desemprego. Preocupados devem estar os cubanos com sua higiene pessoal.

Mas este final de século não nos deixa com fome de surpresas. Pois não é que Castro, do alto de sua ilhota, que hoje pensa voltar a uma agricultura de boi e arado, queria provocar, nada mais nada menos, que uma guerrinha nuclear? É o que nos revela o terceiro volume das memórias de Nikita Kruschov. Em 62, durante a crise provocada pela instalação dos mísseis soviéticos em Cuba (calúnia! — disseram na época os comunossauros), Castro pediu a Kruschov um ataque preventivo contra os Estados Unidos.

Republiqueta açucareira, mas aguerrida! Graças aos Rosenberg, que armaram com segredos nucleares o fascismo eslavo. Este é um dos segredos de Polichinelo revelados por Kruschov. Segundo o líder soviético, Julius e Ethel Rosenberg foram realmente os fornecedores dos segredos da bomba atômica a Moscou, mas por "idealismo", não por dinheiro. O casal foi executado na cadeira elétrica em 53. Mártires do maccartismo, ulularam as esquerdas. Tive uma tia que teria uma visão diferente da coisa: há putas que são tão putas que até dão de graça.

Enquanto isto, o império vai desmoronando. No final de setembro, as Izvestia deixaram de circular por um dia, por falta de papel. Se em Moscou falta papel para propaganda do partido, o tiranete do Caribe já deve estar com as lêndeas de molho. E com Castro, el Africano, todos os intelectuais vendidos que o apoiaram. Desde Sartre — que no Brasil ainda não morreu — até vestais de quinta categoria, tipo Antônio Callado, Chico Buarque, Evaristo Arns, e outras que até me canso em citar.

Porto Alegre, RS, 13.10.90


 

 

AO NOVE DE NOVEMBRO

 

Curitiba — Uma das boas lembranças que trouxe de meus dias de Suécia — exílio voluntário, é bom esclarecer — foi um romance de Karin Boye, Kalocain. A autora optou por fugir à vida há cinqüenta anos, e a ocasião é oportuna para rever sua obra, seu rosto lindo e seu sorriso terno. Em Estocolmo, estudei cinema e acho que não exagero se afirmo que Boye me fez optar pela literatura.

“Este livro que me proponho escrever parecerá sem sentido para muitos — se ao menos ouso pensar que muitos poderão lê-lo — pois iniciei-o espontaneamente, sem ordens de ninguém, e no entanto nem certamente eu mesmo sei qual é meu objetivo. Quero e preciso, isso é tudo. Pouco a pouco, inexoravelmente, acabamos nos perguntando pelo objetivo e método do que fazemos e dizemos, de modo que palavra alguma caia ao azar, mas o autor deste livro foi forçado a tomar o caminho oposto, em direção ao inútil”.

Assim abre seu longo depoimento Leo Kall, o personagem central de Kalocain. Sempre fui fascinado pelas frases iniciais de uma obra de porte, e Boye capturou-me já no primeiro parágrafo. De volta a Pindorama, para não perder meu sueco, decidi traduzir o livro. Caminho em direção ao inútil, como diria Leo Kall. Por um desses estranhos caminhos, sei lá como, consegui publicá-lo no Rio, pela Companhia Editora Americana. O livro foi solenemente ignorado pela crítica, pois era um libelo contundente contra os milenarismos que empestaram o século.

Falar nisso, a Real Academia Sueca parece voltar a tomar vergonha. Após ter premiado celerados como Sholokov, Neruda e Garcia Márquez, passou a honrar homens íntegros com Cela e Octavio Paz. Verdade que meu candidato era outro, Ernesto Sábato. Verdade que Paz abandonou tarde demais o barco stalinista, só lá pelos anos 60, quando após a affaire Kravchenko, em 1949, a nenhum intelectual minimamente informado era permissível continuar defendendo o regime soviético. Mas pelo menos foi homem capaz de revisar seu itinerário. “Tenho medo do homem incapaz de mudar de idéias”, dizia Camus. Premiando Paz, os Sveas honram “a coragem e a lucidez de um herege, como também prestigiam a língua que, contemporaneamente, tem produzido a melhor literatura desta segunda metade de século. Quem perde pontos são os fanáticos. Escreve Paz:

“Acredito que existe um setor profundamente reacionário na América Latina: o dos intelectuais esquerdistas. Trata-se de uma gente sem memória. Jamais vi um deles reconhecer um erro cometido. O marxismo converteu-se em um vício intelectual e na superstição do século XX”.

Quem ousa fazer tal afirmação só podia mesmo ser amaldiçoado do Alaska à Patagônia. Sua premiação, surpreendente à primeira vista, talvez tenha uma explicação. Ano passado, morreu em Estocolmo Artur Lundkvist, presidente da Real Academia Sueca e tradutor de Neruda ao sueco. Claro que um homem com tais credenciais jamais iria permitir a concessão do Nobel a um escritor que passou a denunciar a empulhação do século. Enfim, o Valhala parece ter aberto suas portas aos homens lúcidos. Mas falava de Karin Boye.

Em 86, em Uppsala, percorri a geografia de sua infância, adolescência e maturidade. Vinte graus negativos me cortavam o rosto como navalhas. Por dentro, eu me sentia aquecido, diria melhor, comovido com a evocação daquela sofrida escritora que acabou dando sentido a meu exílio. A propósito, se alguém quiser conhecer esta geografia, basta ver ou rever Fanny e Alexander, de Bergman. O filme foi rodado em época de uma nevada excepcional e a ausência de carros e sinais de tráfego nas ruas retrata a Uppsala de início deste século.

Boye, como a quase totalidade dos intelectuais dos anos 30 e 40, foi comunista e sua militância ocorreu no grupo sueco Klarté. Escritora de águas profundas, baseada na experiência do nazismo, ela antecipa a derrocada do sistema gêmeo, o comunismo.

Em Kalocaína (título brasileiro), vivemos em uma sociedade indefinida no tempo e no espaço. Nós a intuímos no século XX — o avião e o metrô já existem, e os personagens falam de uma grande guerra — mas Karin Boye não a data nem a situa geograficamente. Existe o Estado Mundial e as cidades não têm nomes: temos assim as Cidades Químicas, as Cidades dos Calçados, as Cidades Têxteis, cada uma atendendo por um número. Além do Estado Mundial — o mundo teria sido dividido em dois depois da Grande Guerra — há “os outros seres do outro lado da fronteira”, o Estado vizinho, com o qual o Estado Mundial vive em guerra permanente”. Cabe lembrar que esta ficção foi publicada em 1940. Sete anos depois, a Guerra Fria dividiria o mundo em dois blocos permanentes.

Nesta sociedade sem classes, que antecipa a estrutura política de Israel, seus habitantes são cidadãos e soldados ao mesmo tempo. O Estado oferece a cada um — recruta ou general — apartamentos estandardizados e uma alimentação padrão distribuída pelas cozinhas centrais de cada prédio. Como vestes, o cidadão-soldado dispõe de três uniformes: um para o trabalho, outro para o serviço policial-militar e um terceiro para o tempo de lazer. Pobres não existem, ricos muito menos. Olhos e ouvidos eletrônicos da polícia vigiam o interior de cada apartamento, mesmo à noite, através de raios infravermelhos, antecipação do Grande Irmão, de George Orwell. Mais ainda: as domésticas são trocadas semanalmente e têm o dever de enviar à polícia, após a prestação de serviços em uma família, um relatório sobre a mesma. Solicitações para visitas devem ser encaminhadas aos porteiros dos edifícios que, por sua vez, as encaminham à polícia. Concedida a permissão, o porteiro controlará a identidade e o horário de entrada e saída do visitante. No metrô e nas ruas, cartazes advertem:

Ninguém pode estar seguro.
Quem está a teu lado
pode ser subversivo.

Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4, descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação: a kalocaína. Com apenas uma dose, sem tortura alguma, todo indivíduo que tenha idéias associadas confessa alegremente e sem reservas sua culpa. Se o cidadão pertence por inteiro ao Estado, como poderiam os pensamentos e os sentimentos ser coisas privadas? Se até então eram as únicas coisas que não podiam ser controladas, agora o meio fora encontrado. Quando alguém objeta ter sido devassado o último refúgio da vida privada, Kall responde alegremente:

“— Mas isto não tem importância alguma. A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais poderiam esconder-se. Vejo agora, simplesmente a grande comunidade aproximar-se de sua culminância”.

A kalocaína começa a ser aplicada em cobaias e descobre-se, para espanto e temor dos serviços de segurança, uma espécie de seita onde as pessoas preferem relacionar-se entre si a relacionar-se com o Estado. Seus membros cumprem um estranho ritual. Alguém apanha uma faca e um outro dorme ou finge que dorme. O cientista químico crê estar tratando com loucos. Quer saber qual o sentido daquilo.

“— Um sentido simbólico” — diz a cobaia -. “Através da faca ele se entrega à violência do outro. E no entanto nada lhe acontece”.

Leo Kall suspeita da existência de alguma organização que quer tomar o poder ou, no mínimo, exige cargos no Estado:

“— Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constróem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constróem utilizando a vocês mesmos como pedras, e ruem por fora e por dentro. Nós nos construímos desde dentro como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado”.

Resumindo: à medida que a droga da verdade vai sendo aplicada, desvela-se a grande mentira. Nem mesmo o chefe de Polícia acreditava no que pensava e pregava. O Estado Mundial desmorona desde dentro. Verdade que os russos não chegaram à kalocaína, ou teria sido mais apressada a queda do império. Mas penso que podemos eleger Karin Boye como o primeiro escritor deste século a prever um desmoronamento interno do socialismo, sem que filosofia ou organização alguma necessitasse desfechar uma guerra. O que é orgânico não precisa ser organizado. O Muro caiu de podre. O socialismo também.

Boye tinha medo do livro que havia escrito. Nele está antecipado o Muro, a Segunda Guerra e a Guerra Fria, a Stasi e o KGB, o medo e a desconfiança mútua imperantes nos países socialistas. Quando sua mãe comenta que ela havia feito um bom livro, Boye comenta:

— Tu achas que fui eu quem o fez?

Em Kalocaína está a inexorabilidade da Revolução do Nove de Novembro, já considerada na Europa mais importante e prenhe de conseqüências do que a Revolução Francesa. Como seu primeiro aniversário certamente será esquecido entre nós, neste novembro, quando for revisitar a Feira do Livro de Porto Alegre e os jacarandás da Praça da Alfândega, azuis de flores, estarei fazendo uma palestra sobre Boye e a queda do Muro. Dia nove, sexta-feira, às dezoito horas.

Porto Alegre, RS, 03.11.90


 

 

POR UM FIO

 

Florianópolis — Leitores pedem que o cronista deixe de falar dessa coisa inconveniente que se chama História. Um deles, que certamente jamais saiu do Brasil e acha que social-democracia é algo distinto do capitalismo, preferiria que eu escrevesse sobre livros, bares, vinhos e mulheres. O que lembra um pouco minha falecida mãe. Em seu instinto cego de preservar as crias, lá pelos idos de 64, não perdia ocasião ao sugerir-me: por que não escreves sobre flores? No Brasil há tantas...

Mas de botânica, eu não entendia. Quanto às pautas sugeridas por meu irritadiço leitor, bem ...delas talvez entenda um bocado. Como a fruição simultânea de livros e mulheres é pouco viável, deixo os livros para mais tarde. Evoco então as boas amigas que me aqueceram corpo e alma, com vinhos e afagos, em meus dias de auto-exílio e solidão.

Estocolmo, inverno de 71. As razões que nos impelem a viajar nem sempre são as que alegamos como motivo de partida. Conscientemente, eu fugia de um continente militarizado, do Brasil, do samba e da miséria. As gaúchas recém começavam a libertar-se dos preconceitos de Roma, e eu tinha pressa. Sem falar que, na época, o mito sexual por excelência eram as "adoráveis louras nórdicas". Quando o sol cai por trás dos fiordes, dizia uma atriz, só nos resta ir para casa e fazer amor. É para lá que eu vou, pensou este ingênuo que vos escreve. Pois as suecas eram bem mais inacessíveis do que insinuavam os pacotes turísticos. Tanto que minha primeira "sueca", de sueca nada tinha. Era uma brava cidadã soviética, de Ashkhabad, no Turquimenistão.

Tinha pômulos asiáticos e deles muito se orgulhava. Como língua comum tínhamos o sueco, do qual conhecíamos umas dez palavras. "Eu, bonita" — me confessava Gysel, indicando seu rosto. Acontece que eu partira em busca das louras vikings. "Tu bonita em Ashkhabad", respondi. "Eu muito exótica", insistia a camarada. Em suma, acabei partilhando do gosto dos Sveas — que assim se chama aquela tribo que erigiu a Suécia — pelos rostos orientais. Gysel casou-se com um sueco. Não que lhe agradassem os branquelas do Norte. Ocorre que faria qualquer sacrifício para jamais voltar a seu universo soviético.

A adorável loura nórdica surgiu bem mais tarde, afinal elas não dão em cachos à beira da estrada, como imaginam os latinos. Encontrei-a em uma festa, num daqueles verões em que o sol jamais se põe e os suecos correm desvairados pelos bosques. A noite não caía, o dia não amanhecia e o vinho jamais findava.

Se bem me lembro, naquela noite que não era noite, ensinei os nórdicos a dançar samba, logo eu que detesto samba, o que deve dar uma vaga idéia de meu estado etílico. Summa av kardemuma, como dizem os suecos: acabamos coincidindo na mesma cama. Amor? Nada disso, era puro porre. Em todo caso, daquela coincidência — como direi? — quase geográfica, resultou uma cálida amizade que embalou meus dias junto ao Ártico. Lena iniciou-me nos melhores autores suecos, e a ela devo minha descoberta de Karin Boye e a tradução de Kalocain ao brasileiro.

Como também meu primeiro livro, O Paraíso Sexual Democrata. Lena me havia introduzido no fechado universo estocolmense, nada mais justo do que dedicar-lhe meu ensaio. Justo até certo ponto, já que no Brasil me esperava minha companheira. Decidi como Salomão, dediquei-o às duas. Quanto a Lena, casou-se com um romeno. Em suas viagens como guia turística, encontrara Alex e decidiu tirá-lo da miséria e da tirania dos Ceaucescu. Jamais me deixava jogar no lixo sacos de plástico, "em Bucareste, isso vale uma fortuna e dá status". E foi essa a primeira idéia que tive da Romênia, um país onde o lixo das social-democracias era disputado como símbolo de prestígio.

Com Lena degustei minha primeira Uzicka Sljivovica e soube que na Iugoslávia havia uma ilha chamada Krk. (Para os cinéfilos atentos, em O Silêncio, de Bergman, Ingrid Tulin bebe este aguardente à base de ameixas). De modo que, ao encontrar uma iugoslava com o nome cheio de kas e ves, passei logo a chamá-la de Krk. Mas sigamos a cronologia. Antes aconteceu Úrsula, polonesa refugiada em Paris. Não era dissidente, nada disso. Era apenas jovem e queria viver. Após alguns anos de espera, conseguira vaga em uma excursão para a Iugoslávia. De lá, teria de voltar à Polônia, já que os iugoslavos, cujas fronteiras estavam abertas apenas para os nacionais, não lhe permitiriam sair rumo á Europa livre. Em uma nesga da Áustria, em uma pausa para fazer xixi, abandonou o ônibus e sua pátria. No que não foi nada original: para Varsóvia voltaram só dois polacos, o motorista e o guia.

Úrsula seguidamente me surpreendeu com quilos e quilos de prospectos turísticos, propondo viagens pelo Nepal ou Nova Zelândia, Brasil ou Patagônia, Itália ou Espanha. Mas que fazes com esses folhetos — perguntei — afinal mal tens dinheiro para o metrô? "São de graça. E me fazem sonhar. Em meu país, até sonhar é proibido". Como adoro apresentar a alguém uma cidade que me fascina, convidei-a em uma de minhas viagens a Berlim. "Tenho medo, meu urso tropical. De trem, não vou nem atada, tenho de atravessar a Alemanha comunista e me mandam de volta para a Polônia. E para avião, me falta a grana". Enfim, acabou dando um jeito em ir de avião, rezando para que nenhum imprevisto a obrigasse a uma aterrissagem forçada em território alemão oriental. Do muro, manteve distância. A simples proximidade do horror lhe causava medo.

Enfim Krk. Chama-se em verdade Katica — pronuncia-se Katitza, o que soa bem mais terno — e a ela dediquei minha tese de doutorado. Peoniana, como Alexandre, era dirigente das juventudes comunistas da Macedônia. Nos encontramos em Paris, e não creio que por acaso. Quando duas pessoas gostam de Paris, vinho e literatura, o mais provável é que um dia tropecem uma na outra em algum bistrô do Quartier Latin. Estudávamos Literatura Comparada, disciplina que se nutre de viagens, exílio e traduções. Não que ela fosse exilada. Na época, a Iugoslávia era o único país do Leste europeu a permitir o livre tráfego de seus cidadãos. Orgulhosa de sua república, a Macedônia, Krk insistia para que eu a visitasse. O que fiz tão logo pude.

No barco de Bari para Dubrovnik, entabulei conversa com uma dálmata, que não entendia o que levava um brasileiro às terras de Tito. É que conheço uma macedônia, expliquei. Tive então, pela primeira vez, uma percepção da fama daquelas gentes: "ma sono tutti testadura" — exclamava a dálmata.

Hóspede privilegiado dos camaradas macedônios, eu preferia defini-los como altivos. E inflexíveis como um poste. Entre íntimos, em interiores aquecidos por um bom vinho, a discussão era livre e nada ortodoxa. Mas bastava que entrássemos em um ônibus, bar ou qualquer recinto público e lá se instalava, onipresente, aquele sentimento que tanto torturava Úrsula, o medo. Cabe lembrar que meus anfitriões pertenciam à Nomenklatura iugoslava. E quando a própria Nomenklatura tem medo, pode-se imaginar o que sente o cidadão comum. Poeta e contaminada pelos ares de Paris, Katica queria demonstrar-me que em seu país havia liberdade de expressão. Não conseguiu.

Em qualquer banca de jornais nas capitais brasileiras, mesmo durante o regime militar, havia mais evidência de democracia que nas bancas da Macedônia. Uma peste qualquer do século havia secado o solo que gerou Alexandre, o criador da primeira universidade da História. A Iugoslávia está por desintegrar-se. Talvez desapareça do mapa, mas sempre permanecerá em minha memória, país onde, sem entender língua alguma, não me senti estrangeiro.

Palavra puxa palavra e acabei desviando do assunto. Nesta altura, o leitor já deve estar intrigado. Ou o cronista é obcecado por meninas do Leste, ou fazia espionagem sexual. Nem uma, nem outra. Como comparatista, por um dever de ofício, estendi minhas pesquisas ao Ocidente. Em boa parte de minhas amigas do lado de cá constatei também um desejo de fuga, apenas as motivações eram distintas. Enquanto as camaradas do Leste queriam liberdade, as ocidentais partiam em busca de algo inefável. Uma de minhas professoras de francês, parisiense da gema, foi várias vezes a Cuba cortar cana. Voltava às margens do Sena com as mãos escalavradas pelo machete, por demais enrijecidas para o afago. O que te leva a abandonar Paris para cortar cana para Fidel? — perguntei. Solidariedade ideológica? "Não é bem assim. Acontece que conheci um dirigente do PC cubano..."

Ah, bom! Agora, eu entendia, mas cortar cana em Cuba passou de moda, como passam todas as modas. De volta ao Brasil, curiosamente, fui encontrar motivação semelhante em Florianópolis. Uma amiga, sempre que podia, juntava uns três mil dólares e ia colher café e passar fome na Nicarágua. Nos dias de Ortega, bem entendido. Não que a revolução a fascinasse. “É que conheci um comandante guerrilheiro num congresso do Partido".

O que me fez concluir que, nas ocidentais, as ideologias se transmitem por via uretral. Ou, como diria o gaúcho, um fio de pentelho puxa mais que vinte juntas de boi. Voilà, consegui mudar de assunto.

Porto Alegre, RS, 12.01.91


 

 

O PÁLIDO ASPARGO DE PABLO

 

Curitiba — Ainda em atenção aos leitores que não gostam de ler sobre essa coisa inconveniente chamada História, falo hoje sobre livros. Contemporâneos, bem entendido. Pois livro antigo muitas vezes é refúgio de bolcheviques em plena andropausa, que assim se furtam aos debates atuais. Como dizia alguém, já não lembro quem, nada mais doloroso do que ler jornais nos dias atuais. Imagine comentá-los. Enfim, acabo de receber Minha Vida com Pablo Neruda, de Matilde Urrutia, viúva do maior embuste literário deste século que finda.

Pois haja fé para se considerar como poesia aquelas tripas espichadas de Eliecer Neftali Ricardo Reyes y Basoalto, que assim se chamava Neruda. Como ver um poema naquelas palavras soltas das Odes, muitas vezes uma ou duas por verso? Alinhadas horizontalmente, dariam uma ou duas frases, no máximo, de péssima prosa. John Gunther, em seu ensaio A Rússia por Dentro, há quatro décadas, já nos explicava a razão das linhas extremamente curtas dos versos dos poetas russos: é que os poetas recebiam uma taxa uniforme por linha, quatorze rublos. Stalinista e tão mais ávido por dinheiro que Jorge Amado, pensei, Neruda terá disposto seus “poemas” de modo a obter um lucro máximo por cada verso em defesa das massas espoliadas pelo vil regime capitalista que mais tarde lhe conferiu um Nobel, mas isto já é outro assunto.

Pensei, mas sequer ousei expressar o que pensava, não faltaria quem me chamasse de fascista e reacionário, inimigo dos mais belos sonhos da humanidade. Pois não é que, lendo uma recente coletânea de crônicas, tive minhas infames suspeitas confirmadas? Em A Ponte dos Suspiros, o insuspeito Moacir Werneck de Castro nos conta que os versos curtos das Odes nada tinham a ver com normas poéticas e sim motivações menos prosaicas: “é que o jornal El Nacional, de Caracas, pertencente ao escritor Miguel Otero e Silva, grande amigo de Neruda, colaborador assíduo, pagava as poesias por linha”. Eu sabia que nesse mato tinha coelho. Para muito jovem ingênuo, a malandragem do Avida Dolars chileno passou por escola poética.

Avida Dolars, deve estar o leitor lembrado, foi o anagrama pespegado a Salvador Dali. Não tanto por seu amor aos dólares. Mas porque permaneceu na Espanha salva por Franco da peste que hoje Gorbachov tenta conjurar. Tomasse o partido dos vermelhos (republicanos foi eufemismo que só surgiu tardiamente), Dali poderia adorar dólares à vontade. Como aliás fez Picasso, sem que ninguém condenasse tão humano desejo no pintor de Guernica. Este mural, a propósito, foi um braguetaço dos mais bem-sucedidos. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi. Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, multidões hipnotizadas pela propaganda comunista, vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. De um só golpe de pincel, o vigarista malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História.

Picasso bem poderia ter batizado sua obra de Paracuellos del Jarama. Mas aí seria expulso do mundo dos vivos, como o foram todos os que ousaram denunciar os crimes dos republicanos. Pois em 1936, em Paracuellos del Jarama, sítio que ninguém gosta de lembrar, foram fuzilados pelo Partido Comunista nada menos que dois mil e quatrocentos espanhóis que se opunham à Frente Popular. À frente do PC espanhol estava Santiago Carrillo. Mas falava de outro Pablo, o Neruda. Terá sido esta avidez de dólares, disputados verso a verso, que o fez escrever esta pérola:

Stalin construía,
de suas mãos nasceram
os cereais
os tratores
os ensinamentos
as estradas...

Etc. Ad nauseam. Fico por aqui, que a tripa é longa e não tem graça. Pelo menos para nós. Pois de rublo em rublo, Pablo encheu o papo de dólares. Em 71, tais hagiológios lhe renderam nada menos que um prêmio Nobel. Em Pablo y Don Pablo, Jurema Finamour, sua secretária, nos conta a “surpresa” do poeta ao saber da premiação. Pois Neruda, que todos os anos viajava a Moscou na condição de jurado do prêmio Stalin, durante toda sua vida mobilizou energias e os serviços diplomáticos do Chile para alcançar a láurea máxima literária da sociedade capitalista que tanto abominava. Sua surpresa foi tamanha que o banquete comemorativo do prêmio já estava organizado.

Mas comecei falando das memórias de Matilde Urrutia, uma das muitas esposas de Neruda. O livro data de 1986, quando já não mais se podia dizer que Salvador Allende fora assassinado em La Moneda, como o faz a autora nas primeiras páginas. Em Os Dois Últimos Anos de Salvador Allende, publicado originalmente em 1985, Nathaniel Davis demoliu definitivamente este mito. Não faltarão objeções ao autor, afinal era o embaixador americano no Chile na época do golpe. O fato é que Hortencia Allende, no dia 15 de setembro de 1973, confirmou a um jornal mexicano o suicídio de seu marido. Quatro dias depois, falou em assassinato. Hoje, em recentes declarações, distante dos fatos e de quaisquer pressões, a viúva Allende reconhece que de fato ocorreu um suicídio. O livro de Urrutia fica assim prejudicado, desde as primeiras linhas, por uma afirmação que hoje sabemos ser falsa. Quanto ao mais, é uma fútil crônica social de peregrinações por Berlim, Praga, Paris, Capri, Nice, Veneza, itinerário no mínimo insólito na vida de um líder proletário.

Em Praga, no ano passado, quando fui respirar os ares de liberdade que hoje inundam a cidade de Kafka, aprendi algo mais sobre Neruda. Sempre me intrigara onde Eliecer Neftali, de sefardita ressonância, fora buscar seu pseudônimo. Ao dirigir-me ao castelo que hoje abriga Vaclav Havel, subi pela rua Nerudova, desagradável evocação em cidade tão linda. Relendo agora Confesso que Vivi, as memórias de “pájaro Pablo”, como ele adorava autodenominar-se, constato que meu mal-estar tinha sua razão de ser: Eliecer buscou seu nome de guerra em Jan Neruda, poeta tcheco do século passado. O que não deixa de constituir uma ironia atroz: por uma dessas razões da qual homem algum está livre, o poeta que amou e cantou Praga acabou emprestando seu nome ao poetastro que deu aval, com seu stalinismo, aos tanques que tentaram escravizá-la.

Mas a História é mulher loureira, dizia Machado. Visto de nossos dias, o monumento se revela de barro. Rindo por dentro deve estar Leo Gilson Ribeiro, um dos raros ensaístas corajosos a militar na crítica brasileira. Em O Continente Submerso, livro que recomendo a todo leitor que queira dar um passeio pelas letras latino-americanas, Leo Gilson, comemorando o livro de Finamour, o define como “um processo póstumo às mentiras que criaram o culto dessa personalidade que ela revela, traço por traço, ser mesquinha, narcisista, medíocre, covarde, egoísta, avarenta, calculista, superficial”. Por esta — e por outras — tanto Leo Gilson como Jurema Finamour tiveram suas mortes civis decretadas nas letras tupiniquins. Pois da manutenção de certos mitos dependem muitas carreiras jornalísticas e universitárias.

Outro escritor expulso do mundo dos vivos foi Ricardo Paseyro, ao publicar em Paris Le Mythe Neruda, pequeno e contundente ensaio sobre o óbvio: “seus livros são um monumento à infâmia. Neruda, como certos pássaros, faz seu ninho de bosta, se compraz na imundície da frase, na vulgaridade da sensação primária e nela refocila com volúpia’’. O mito nada tem de misterioso. Para Alberto Baeza Flores, “à força de repetir durante trinta anos que Neruda era genial, o Partido Comunista conseguiu que todo mundo acreditasse nesse refrão”.

Por falar em livros, acaba de ser lançado em Paris, pela Payot, Martin Heidegger, de Hugo Ott. Para os discípulos do pensador nazista, que ficaram escandalizados com as denúncias do professor chileno Otávio Farias, há muito ainda o que ver e ouvir. Pois Ott demonstra ainda mais abundantemente as ligações de Heidegger com o regime hitlerista. Nos meios universitários, exceção feita dos doutores que fizeram suas carreiras papagueando o filósofo nazista, todos dele se afastam como se leproso estivesse. “Que horror, era nazista!” Quando nutrirão, nossos universitários, este mesmo horror sagrado em relação aos pensadores, poetas e professores comunistas? Se as bandeiras eram diferentes, a barbárie foi a mesma.

Enquanto isto, melhor lermos Leo Gilson, para quem na história das artes e do pensamento sempre houve inúmeros casos de monstros que foram artistas admiráveis: “Céline, assassino; Genet, ladrão; Baudelaire, toxicômano; Rimbaud, mercador de negros; Knut Hamsun, Walter Gieseking e Elisabeth Schwartzkopf abraçando o nazismo; Ezra Pound transmitindo mensagens radiofônicas em prol do fascismo; Brecht jamais denunciando os crimes do stalinismo — mas há uma cisão nítida entre a arte que sobrevive por sua vida intrínseca e temporal e o ser humano cego, calculista, viciado, débil, oportunista. Esta cisão, infelizmente, nunca existiu entre a obra e o homem Pablo Neruda”.

O cronista deve possuir uma nerudiana fabulosa, deve estar imaginado o leitor. Nada disso, sou apenas um leitor vadio, adoro pular de livro em livro. Tenho até uma ode ao poeta, Elegi för Pablo Neruda, de autoria de Artur Lundkvist, nada menos que o falecido presidente da Real Academia Sueca, aquela que atribui os prêmios Nobel de Literatura. Parceiro de Neruda nos Congressos pela Paz financiados por Moscou (aqueles mesmos dos quais participava Antônio Pinheiro Machado Netto, o defensor do Muro de Berlim, gaúcho de triste memória), Lundkvist era caitituado pelo aparatchik chileno, que o recebia em suas embaixadas e mansões diplomáticas, o que nos mostra que os caminhos que levam ao Nobel não dependem propriamente do talento.

Enfim, panfletos à parte, o que sempre me espantou em Neruda foi sua urolagnia. Quem não lembra de “poemas” como El Gran Orinador, plágio descarado de Swift? Ou ainda esta coisa, onde o poeta canta a amada ao ouvi-la

urinar na escuridão,
no fundo da casa,
como se vertesse
um mel trêmulo,
argentino,
obstinado,
quantas vezes entregaria
este coro de sombras
que possuo.

Bueno, em sua elegia a Neruda, Lundkvist canta o sexo do futuro Nobel, “en blek sparris som blott gav vatten". Traduzindo: “um pálido aspargo que apenas jorrava água”. Estranha ode à anatomia do vate. Como também são estranhos os sendeiros que conduzem ao Nobel. Outro dia volto a falar de livros.

Porto Alegre, RS, 19.01.91


 

 

CULO CLAVADO*

 

Curitiba — Analistas apressados vêem na atual crise no Golfo Pérsico uma continuação do confronto entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano. Um adjetivo se justapõe a um substantivo e, com o tempo e a repetição, a dobradinha assume ares de verdade histórica. Tais "especialistas", oriundos certamente de faculdades onde se estuda qualquer coisa menos História, esquecem — ou desconhecem — que nem sempre o Oriente foi muçulmano. E que cristianismo é religião nascida no Oriente. A título de curiosidade, é bom lembrar que as três religiões dominantes do planeta foram criadas por homens do deserto.

A vontade de deserto acometeu-me lá pelos anos 70. Cansado de cidades, queria silêncio e solidão. Federica de Cesco, escritora suíça e cidadã do mundo, me sugeriu El Hoggar, maciço montanhoso do Saara argelino, dois mil quilômetros ao sul de Argel. Comecei a viagem de Boeing, continuei em Land-Rover e terminei em lombo de camelo. Entre tuaregues e harratines, passei duas semanas mastigando alho e areia, sob uma temperatura que baixava a 15 graus negativos durante a noite. Ao contrário do que se pensa, o Saara é um país frio que aquece durante o dia. A ausência de qualquer forma de vida gera um silêncio estridente, que zumbe dolorosamente em nossos ouvidos anestesiados pelos ruídos urbanos. Naquelas noites glaciais, esmagado pelos três picos imponentes do Assekrem, acho que entendi Moisés, Cristo e Maomé. Se deus existisse, seria o deserto sua morada.

Foi meu primeiro contato físico com o Islã. Terminei a viagem em lombo de camelo, dizia. Minto. Mesmo nesta era das comunicações, nossa ignorância é tamanha que imaginamos que no deserto africano existam camelos. Apesar dos presépios natalinos e da imprensa nacional. no Saara pode até existir Deus. Mas camelo, não. Camelo não sobrevive em climas quentes, mesmo que as noites sejam frias. O que existe é o dromedário, aquele de uma bossa só. Foram eles, os caluniados dromedários, a razão de meu primeiro espanto ante o universo muçulmano.

De Argel a Tamanrasset, fiz um vôo interno repleto de árabes voltando da Arábia Saudita, após a peregrinação à Meca, ritual que todo muçulmano deve cumprir pelo menos uma vez na vida. A Arábia é Saudita, caso o leitor não saiba, por ser feudo da família Saud. Algo assim como se o Brasil se chamasse República Federativa dos Silva. Mas volto ao avião. O fato de ver aquela gente embuçada, usando propulsão a jato para virar o traseiro pra lua ante a Kaaba, até que não me surpreendia, afinal cá entre nós jatos e jatos despejam aleijados mentais, em Fátima, Lourdes ou Medgorje. Caiu-me o queixo, isto sim, ao aterrissar em Gardaia. Ao descer, os peregrinos eram recebidos por seus haréns, centenas de mulheres que produziam um alarido infernal, batendo a mão junto à boca.

Até aí, tudo bem. Que mais não fosse, tal gritaria não me era estranha, estava em A Batalha de Argel, de Ponte Corvo. O que embasbacou este guasca do Ponche Verde foi ver a indiada descendo de um Boeing para montar num dromedário, de volta a suas vilayas. Minha impressão foi a de que desembarcavam do século XX para entrar na Idade Média. Não por acaso, a Hégira começa no ano 622 da era cristã, quando Maomé, após ter dado um braguetaço numa viúva rica, foge de Meca para Medina. Entre o Boeing e os dromedários havia uns cinqüenta metros de areia e quatro séculos de distância.

Mas não desci em Gardaia. Aqueles quatro séculos, eu iria transpô-los nos confins da antiga França, que De Gaulle dizia ir de Paris a Tamanrasset. Lá estavam também as mulheres ululantes e os dromedários subservientes à espera dos crentes idem. Dali até a base do Assekrem, fomos em um Land-Rover, dirigido por um tuaregue desvairado que me fez sentir saudades do Boeing, apesar de meu medo ancestral a aviões. Eu viajava rumo ao nada quando, no meio do caminho, vindos do nada, um monte de tuaregues de mantos esvoaçantes desceu de um caminhão. O sol caía e a hora era de preces. Curvaram-se na direção de Meca, viraram os glúteos para o Ocidente e louvaram Alá. Sem que eu imaginasse, fora improvisada uma mesquita em meio ao vazio do deserto. Pois mesquita, por definição, é todo lugar onde o crente faz suas preces.

Na época, falava-se muito do poderio bélico do Irã, ainda regido pro Reza Palhevi. O Irã, é bom lembrar, islamismo à parte, nada tem a ver com o mundo árabe. Mas cultua o mesmo deus de Maomé. A pedra de toque do Xá, se bem me lembro, era sua força aérea, hoje desmantelada pela incompetência dos aiatolás. Que derrubaram o Xá, não por razões religiosas, mas por outras bem mais chãs. Reza Palhevi iniciara um programa de reforma agrária em uma sociedade em que os sacerdotes eram os maiores terratenentes. O Alá dos aiatolás não gostou e deu no que deu: o Irã, que começava a namorar o século XX, voltou á Idade da Hégira. Ou da pedra, como quisermos. Em seu livro de preceitos teológicos, o aiatolá Khomeiny escrevia que ao crente não eram necessárias três pedras para fazer a higiene anal. Uma só bastava.

Mas eu estava na Argélia, estado teocrático-socialista, cuja Nomenklatura explorava — e ainda explora — Maomé para manter-se no poder. A fé dos pobres de espírito sempre me comoveu, e pobres de espírito eram aqueles coitados que beijavam a areia adorando o deus enjambrado por um profeta analfabeto. Sei lá por quê, talvez por recém ter descido do século XX, imaginei um daqueles seres pilotando um caça ou bombardeiro. Ou melhor, tentei imaginar. Pois não é fácil conceber que o piloto de um Mig, por exemplo, tenha de virar, cinco vezes por dia, a bunda pra lua.

Mas Jeová pouco difere de Alá — objetará o leitor mais atento — e nem por isso o Ocidente deixou de fabricar seus jatos, bombas e naves espaciais. Ocorre que no Ocidente, em boa hora, o estado deixou de ser teocrático. Caso contrário, ainda estaríamos pastando, como nos tempos em que o Vaticano forçou Galileu a admitir que terra era imóvel e o sol girava em torno dela. Falar nisso, lembro agora de uma ingênua dúvida de infância: será que o Papa acredita em Deus?

Dúvida boba, coisa de criança. É claro que um papa não pode acreditar em Deus. Eles são em geral homens cultos, conhecedores de História e falantes de várias línguas. Seriam os últimos a crer nos mitos que o homem cria para conjurar o deserto metafísico que o rodeia. Quando Stalin perguntava quantas divisões teria o aiatolá de Roma, apesar de ser ex-seminarista, esquecia o potencial tremendo desta arma típica dos fracos, a manipulação da humana estupidez. Tanto que Stalin está morrendo pouco a pouco e Woitilla vai exibir sua majestade, ainda este ano, na escatológica Beira-Mar Norte de Florianópolis. Mas falava do Islã.

O Iraque, não conheço. Nem pretendo conhecê-lo. Depois de rápidas incursões pelo Egito, Argélia e Tunísia, prometi a mim mesmo jamais voltar a país muçulmano. Não me sinto em casa em países onde o álcool é proibido e uma mulher pode ser trocada por dromedários. Quanto a Saddam Hussein, dele já temos um bom perfil. Civil travestido de militar, líder tribal metido a tiranete, só porque dorme sobre poços de petróleo julga que pode reptar o Ocidente. Com a covardia típica dos fracos quando armados, invadiu o poço de petróleo vizinho. Acuado pela máquina bélica americana, invoca Alá e brande a bandeira palestina. Tal blefe só pode viger em um oásis de analfabetos: quando o inimigo natural seria a aguerrida Israel, o Hitlerzinho do Golfo estupra um Kuait indefeso. Bush é o grande Satã?

Pode ser. Mas é o Senhor da Guerra. Saddam apela então à Jihad — guerra santa — e ao terrorismo. Alá é grande e os civis europeus e americanos, que nada têm a ver com o peixe, que se cuidem. Como terrorista desempregado é o que não falta no mercado destes dias de pós-Guerra Fria, nenhum anônimo cidadão comprando frutas em uma feira em Paris, Londres ou Berlim estará a salvo da fúria impotente do ladrão de Bagdá.

Enquanto escrevo estas linhas, dezoito mil toneladas de bombas foram jogadas sobre a capital iraquiana. Aproveitando a tensão da guerra, remanescentes dos trogloditas russos, sub-éspecie comunossauros, esmagaram civis com tanques na Lituânia e ameaçam brincar de turismo blindado na Letônia. Seus êmulos gaúchos, pelo que me contam os jornais, organizam comitês de apoio a Saddam Hussein.

O que só me confirma uma recente intuição: órfãs e desorientadas, as esquerdas elegeram George Bush como líder. Guru às avessas, é verdade, mas guru. Se Bush vai ao Norte, as viúvas rumam ao Sul. Se bem que, conforme o Islã, as esquerdas sem norte não precisam temer devotos de Alá. O grande vencedor desta guerra, que provavelmente já estará concluída quando forem publicadas estas linhas, foi sem dúvida alguma o Iraque. Pois uma vez declarada a Guerra Santa, todo fiel morto em combate vai direto para o céu. Não é sonho de todo humano morrer feliz?

Pelo menos para quem crê, o que não deve ser o caso da maioria dos iraquianos. Para justificar um saque, Saddam apelou ao misticismo. Em meio ao ruído de bombardeios, a televisão nos trouxe a voz de um Saddam assustado, repetindo Alá é grande, Alá é grande. Será? Por via das dúvidas, Saddam acabou falando inglês. Provavelmente estava tentando convencer seus adversários do poder de Alá. Para os últimos fanáticos do século, que têm a Terceira Guerra como dogma, esta foi uma decepção. Para quem apostou no Apocalipse, foi culo clavado.

Porto Alegre, RS, 26.01.91

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* Expressão gaúcha utilizada no jogo da taba. O osso usado no jogo, o astrágalo do boi, tem duas faces, denominadas suerte e culo. Quando o osso clava de culo, quem o jogou perde.


 

 

O ESTRANHO AMOR DAS VIVANDEIRAS

Ai que vida que passa na terra
quem não ouve o rufar do tambor
quem não canta na força da guerra
ai amor, ai amor, ai amor!
Quem a vida quiser verdadeira
é fazer-se uma vez vivandeira.
Só na guerra se matam saudades
só na guerra se sente o viver,
só na guerra se acabam vaidades
só na guerra não custa morrer.
Ai que vida, que vida, que vida,
ai que sorte tão bem escolhida!
“Canção da vivandeira”.

(Guerra do Paraguai, anônimo.)

 

Curitiba — A Terceira Guerra, tão almejada pelos derrotados do século, já teve data várias vezes marcada. Para muitos, teria começado lá pelos anos 70. O vilão invariavelmente são os Estados Unidos e a razão é uma só, a luta pelo petróleo. Em 1978, Sir John Hackett, general inglês, assessorado por uma prestigiada equipe de outros militares, ousou fixar uma data: 04 de agosto de 1985. Do trabalho da equipe resultou um livro, The Third World War — August 1985. Este exercício de ficção política foi traduzido ao brasileiro pela Biblioteca do Exército Editora e hoje pode ser encontrado nos bons sebos da praça.

Mas de pouco adianta comprá-lo. Mais imprevisível que qualquer guerra foi a Revolução do Nove de Novembro. Sir John Hackett trabalhou com dados que hoje parecem pertencer a um passado distante. Desenha um quadro onde a Índia e a África do Sul estão desintegradas, formando várias repúblicas. A 29 de novembro de 1984, um submarino soviético afunda um cargueiro iraniano e um navio de espionagem americano é atacado no Golfo de Aden. Os berlinenses orientais começam distúrbios e o presidente do México é assassinado. No início do verão de 1985, a Rússia invade a Iugoslávia, forçando a OTAN e os Estados Unidos a reagirem contra a invasão. No desenrolar do conflito, o império soviético na Europa Oriental se desfaz. A luta na Europa termina em três meses.

Acontece que, em uma década, se esfarelaram boa parte dos pressupostos do general Hackett e sua equipe, composta aliás de eminentes oficiais-generais e conselheiros da OTAN. Berlinenses orientais não existem mais. A Rússia está tratando de sua própria fome e mal consegue conter a libertação de suas colônias. A Iugoslávia tende, espontaneamente, ao mesmo fim do império soviético na Europa Oriental, o desmoronamento desde dentro. O autor tampouco leva em consideração este fator imponderável no curso da História, os delírios de grandeza de um megalomaníaco armado até os dentes. Esta falha, aliás, sempre foi constante nas "científicas" análises dos finados marxistas: nenhum de seus teóricos previu a iniciativa bélica de insanos como Saddam ou Khomeiny.

A queda do muro — disse alguém — provocou a reunificação da Alemanha, a reunificação da Europa e, o que é mais importante, a reunificação do discurso. A Guerra Fria supria as necessidades dos cérebros binários-maniqueístas. Para estes senhores, interpretar o mundo era fácil quando de um lado havia o Mal absoluto, os Estados Unidos e, de outro, o Bem, também absoluto, a União Soviética. Mesmo após a derrocada do socialismo, seus cérebros não deixaram de funcionar binariamente: se antes havia o conflito entre Leste e Oeste, manifesta-se agora o conflito Norte-Sul, entre a civilização e a barbárie. Com esta simplificação eludem o fato que agora se tornou óbvio: socialismo era a barbárie. Aliás, continua sendo. Vontade de rir é o que não me falta quando os jornais mancheteiam uma ameaça de ditadura na União Soviética. Como se a partir de ontem tivesse sido instaurado, no império russo, qualquer sistema que mesmo de longe lembrasse a democracia.

As vivandeiras estão confusas. Para que o universo continuasse inteligível, era necessário que o urso soviético continuasse alinhado com o Iraque. Nada mais confortável do que tomar partido quando uma questão tem apenas dois lados. Um chanceler iraquiano acaba de confirmar minha hipótese ao acusar a URSS — ora, ora — de ter sido a responsável pela Guerra no Golfo. E por quê? Porque concordou com o fim da Guerra Fria, é claro. Gorbachov tem sua sobrevivência política — e até mesmo física — ameaçada, mal consegue segurar os cordões que mantêm o império empacotado, e ainda é acusado de ter iniciado uma guerra. Da qual, aliás, tem procurado se manter distante.

Outra afirmação espantosa — para não dizer criminosa — é acusar Israel de ter começado a guerra. Os judeus estão suportando estoicamente os mísseis cegos de Saddam e não falta quem os acuse da iniciativa bélica. Sei que é difícil acreditar. Mas na semana passada, após quatorze dias de guerra e sete Scuds jogados em Haifa e Tel-Aviv, um leitor me telefonava: viste a agressão dos judeus? Se fé removesse montanhas, até que não era nada. O pior é que remove evidências.

Para enfrentar os tomahawks, Saddam brande Alá. Acontece que Alá, como disse Roberto Campos, não tem software. As esquerdas, acometidas pelo que já passou a ser chamado de doença infantil do anti-americanismo, fazem manifestações pela paz. Que mal não pergunte: porque não as fizeram em agosto passado, quando começou a guerra?

No Brasil, pelo menos, Saddam já fez uma vítima: ao apoiá-lo, o PT deixou cair a máscara e mostrou sua verdadeira face. Pelo jeito, o PT ainda não matou o pai. Aquele bigodinho à la Djugatchilivi está fazendo furor nas esquerdas. Saudades do Paizinho dos Povos, bem entendido. Se bem que, em país onde se cultuou — e ainda se cultua — Envers Hodja, nada mais me espanta.

Mas se a reunificação da Alemanha hoje é fato consumado e a da Europa avança aceleradamente, a reunificação do discurso segue em ritmo de tartaruga. Quando Khomeiny entrou a ferro e fogo no Irã do Xá, as esquerdas imediatamente apoiaram o aiatolá. Pois Palhevi contava com o apoio do grande Satã americano. Até mesmo um jornalista soi disant lúcido como Paulo Francis, caiu na armadilha do pensamento binário e manifestou seu apoio ao fanático que fez o Irã retornar à Hégira. Palhevi morreu como um cachorro sarnento. Moribundo, teve seu quase-cadáver recusado por países cujos dirigentes foram alegremente saudá-lo em Persepólis. Por ocasião da guerra Irã-Iraque, cessou o alarido das esquerdas. Por um lado, não havia uma bússola ianque a orientá-los. Por outro, Saddam era protegido de Moscou. Sem falar que a intelligentsia ocidental pouco está ligando quando a carnificina é do lado de lá. Se eles são muçulmanos -ou amarelos- que se entendam entre si.

Em meio a este desnorteamento — sem trocadilhos — das viúvas da Guerra Fria, surge na Itália um Ernesto Bobbio afirmando que esta guerra é justa. Bobbio, pensador de bom tráfego junto aos milenaristas, fala da Guerra do 15 de Janeiro de 1991, é claro. Falasse da Guerra do Dois de Agosto de 1990, quando o Iraque invadiu o Kuait, em vez de estar sendo amaldiçoado, estaria respirando incenso. Pois o conceito de guerra justa fere a certas consciências supostamente delicadas. Poderíamos, por exemplo, citar Marx: a violência é a parteira da História.

Mas aí não faltará quem reclame: "alto lá, essa frase é nossa, os direitos autorais são nossos, só nós podemos usá-la". Quando os teólogos da libertação (mas onde é que se viu teologia libertando?) ciscam Tomás de Aquino para justificar a violência da guerrilha, louvado seja o Doutor Angélico. Mas ai de quem empunhar a Suma para justificar a reação a Saddam. Não faltará quem insinue a organização de novas cruzadas. Tão binário é o "pensamento" das vivandeiras, que estabeleceram uma segunda data para um fato que, como todos os fatos, tem uma data só. Bobbio, se consegue escapar ao primarismo dos desbussolados, acaba caindo na armadilha da cronologia.

Ao clamar pela paz, nesta altura da guerra, as vivandeiras em verdade defendem o fato bélico gerado pelo ditador iraquiano. Responsáveis pela guerra foram Bush, Gorbacthov, Kuait, Israel. Menos Saddam Hussein. Nunca foi tão oportuno relembrar Orwell. Em 1984, os donos da História e da linguagem conseguem convencer suas vítimas de que guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é sabedoria. Dr. Strangelove, o filme de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Peter George, merecia também ser revisto. Quem não lembra do reflexo condicionado do braço direito do Dr. Strangelove?

Mal se falava em guerra, tinha de usar a mão esquerda para conter o braço que se erguia esboçando a saudação ao Führer. Certo, o filme é da época da Guerra Fria. Embora os tempos sejam outros, o mesmo fenômeno parece estar ocorrendo com as viúvas. Moscou deixou de apoiar Saddam e, pelo jeito, esqueceu de enviar ucasses para informação dos crentes.

Porto Alegre, RS, 09.02.91


 

 

SOBRE CÃES E COMUNISTAS

 

São Paulo — Eu flanava por Montparnasse, quando uma voz rouca vinda de meu passado, quase cantando, me chama, carregando nos erres: Janérrr. Era Michelle, permanente do PCF e minha antiga professora de francês. Há quase uma década não nos víamos e estávamos frente ao Select Latin. O bar fica frente ao La Coupole, um dos bebedouros de Sartre e Simone. Nele, em 1980, havíamos erguido um brinde póstumo a Sartre, logo após seu enterro. A ocasião era única para reviver porres passados, o que foi feito. Mal sentamos, o garçom já foi perguntando:

— É verdade, Monsieur. Que é que o senhor quer?

O início da frase me surpreendeu. Diante de meu espanto, o garçom indicou com os olhos o livro que eu acabara de comprar, Les Hommes ont soif, de Arthur Kloester. Ah, bom! E pedimos uma Leffe, a cerveja que sempre pedíamos no Select. Após as efusões iniciais, perguntei por Igor. Passava bem, embora um pouco alquebrado pelo reumatismo. E Marchais? Sempre capitaneando o Partido, embora um pouco perplexo com os acontecimentos no Leste. Trocamos trivialidades e telefones. Não demorou uma semana, aquela voz rouca, que tanto me agrada em mulheres, cantarolou ao telefone:

Janérrr, j'ai besoin de tes forts bras!

Foi minha vez de ficar perplexo, certamente bem mais do que George Marchais com o fuzilamento de seus queridos amigos, os Ceaucescu. Entre nós, sempre se interpunha a sombra de Igor. No final de 70, eu fazia correspondência em Cannes para a Caldas Júnior. Era maio, festival de cinema, muito sol no céu do Midi e estrelas vagando pela Croisette. Eu alugava sozinho um apartamento com sacada para o mar, ela se deprimia em um estúdio escuro em Paris. Sejamos gentis com nossos mestres, pensei, vou oferecer-lhe alguns dias de sol e cinema. Recebeu faceira meu convite e chegou no dia seguinte, fazendo autostop. Dizem as más línguas que, de Paris a Cannes, são só quatro ou cinco orgasmos. A França é pequena.

Sol vale ouro para um parisiense e cinema é um dos orgulhos nacionais. Ela estava feliz, eu também. Sempre considerei que, quanto mais íntima a relação professor-aluno, mais rápido é o aprendizado. Mas pouco durou minha felicidade. Ficou apenas três dias comigo, morria de saudades do Igor. Havia telefonado a Paris e sentiu, ao telefone, que ele se sentia só.

Ela se foi e só fiquei eu. Mas não por muito tempo. Naquele festival Coppola havia lançado, em pré-estréia internacional, seu Apolicapse Now. Jornalistas do mundo todo me confundiam com o Coppola e não vi nada demais em tirar algumas casquinhas às custas de meu sósia. Seja como for, Igor me ficou atravessado na garganta. E agora, dez anos depois, aquela voz rouca me chamava, dizia necessitar de meus fortes braços.

Armistício, reconciliação? Quand vous voulez, respondi enfaticamente, afinal sempre a tratara por tu. Marcamos a coisa para o dia seguinte. Ãs nove da manhã, chez elle. Francesa tem cada horário.

Aquele leitor que me odeia mas não deixa de me ler todas as semanas, já deve estar espumando: lá vem o Cristaldo com suas histórias de cama. Pois hoje vais ganhar colher de chá, meu querido. A moça necessitava de meus fortes braços para que eu ajudasse em sua mudança. Em função das conquistas sindicais, as prestações de serviços são caríssimas em Paris. A menos que se esteja na condição de rico para milionário, toda mudança é um mutirão entre amigos. Quem contrata os serviços de uma transportadora, tem não só de colocar seus trastes no caminhão, como também de retirá-los, que trabalhador francês não está lá para isso.

Lá estava eu, ao lado de outros panacas que a permanente atroz conseguira reunir, carregando móveis do apartamento e arquivos das caves. Lá pelas tantas do meio-dia, exausto de carregar caixas, quis saber o que elas continham. São os arquivos da célula de Montparnasse, me respondeu aquela detestável voz rouca. Ah! Entrei em greve e fui pro Select rir um pouco de mim mesmo.

Pois é! Por algumas horas, pus meus fortes braços ao serviço da História, carregando os arquivos da célula do PC de Montparnasse. Ou seja: eu ajudava, braçalmente, na mudança de uma menina burguesa, cujo partido lutava para liberar os trabalhadores do trabalho braçal. Jamais recebi pena tão bem merecida. A gente morre e não aprende tudo. Já de barbas brancas, acabei caindo na armadilha de uma voz insinuante. Pior de tudo , não era a primeira vez que entrava em fria.

Num outro mês de maio, fora a Amsterdã para o coroamento da rainha Beatrix. Ao falar da viagem para Michelle, ela se entusiasmou com um fim-de-semana na Holanda e, desta vez, me ofereceu carona. Desde que eu não me importasse, é claro, que Igor fosse conosco. Sem imaginar o afluxo de turistas para as solenidades de coroamento, nem pensei em reservar hotel.

Resumindo: acabamos dormindo no carro à margem de um canal, arriscando inclusive dissabores com a polícia, pois em Amsterdã isto constitui infração. Bueno, uma noite como quer se passa, diz o gaúcho. Sem falar que não é todos os dias que um mortal acorda às margens de um canal de Amsterdã com uma francesa nos braços.

Mais uma colher de chá para o leitor que me detesta: o que prometia ser um despertar paradisíaco, revelou-se um pesadelo. Acordei cheio de pelos e com Igor me lambendo as cãs. E sequer podia dar um chute naquele quadrúpede abominável, pois minha parceira entraria em crise. Enfim, tudo isto é um pequeno intróito para explicar, inclusive a meus irritadiços leitores, porque não morro exatamente de amores por cães nem por comunistas.

Dos cães, até que eu gosto. Me criei entre eles, retouçando em meio aos alhos-bravos, como se cachorro fosse. Mas gosto de cachorro no campo, ou pelo menos em casa, jamais em apartamento. Meu primeiro choque na Europa -que nada tem de original, mas é espanto de todo latino-americano- foi esta situação privilegiada dos cães.

Visitei cemitérios para cães, vi três gerações chorando, em um Dia de Finados, diante da tumba de um deles. Li cardápios para cães, receitas de almoços, janta e sobremesa para cães, sem falar em xampus e pastas dentifrícias, temperadas com mel, para os pulguentos. Vi anúncios de psicanalistas para cães, recomendando inclusive aos donos que, por favor, fizessem psicanálise, para que seus distúrbios emocionais não interferissem na vida psíquica do cãozinho.

Conheci pesquisadoras latinas que trabalharam como dogsitters, isto é recebiam alguns trocados para levar os cães a defecar, e com isso financiavam seus doutorados. Ouvi, juro que ouvi, a frase infame: Mademoiselle X., elle suit un doctorat à la Sorbonne. Elle s'encharge de mon chien. Se terminou seu doutorado, não sei. Mas uma velhota decrépita se orgulhava de ter, como criada de seu lulu, uma pesquisadora brasileira.

Vi também casais divorciados, lutando na justiça pelo direito de visita, não aos filhos, mas ao cão. Vi cachorro tomando cerveja no mesmo copo que sua dona. Já não lembro em que cidade da França, busquei um boteco e pedi um calvá. A meu lado, sentou-se uma dame, e seus três pestilentos tomaram assento em minha mesa. A distinta senhora molhava pedrinhas em seu conhaque e as oferecia a seus amores.

Sentar com comunistas, foi rotina em meus dias de universidade. Com cachorros, chupando pedrinhas de açúcar embebidas em calvá, foi realmente uma experiência nova. Esta minha ojeriza, insisti em registrá-la em Ponche Verde. Quem conhece Paris só de vista, acha que exagerei. Quanto aos franceses, não entendem como alguém possa ter algo contra essa idolatria. Mas Michelle tinha senso de humor, qualidade rara tanto em franceses como em comunistas. Pelo jeito, soube preservá-lo, tanto que acaba de enviar-me um bem-humorado livrinho recém-lançado em Paris, Bas les Pattes, de Fabien Gruhier, redator do Nouvel Observateur. Gruhier, um dos raros franceses a intuir o absurdo deste culto aos animais, acrescenta novos dados a meu arquivo de zoofilia.

Nas lojas Samaritaine já se pode comprar, a 72 francos a meia dúzia, calcinhas para cadelas no cio, o que inaugura um novo ramo na tão celebrada lingerie francesa. Mais ainda: para cães diabéticos ou com problemas de colesterol, a Quaker lançou um enlatado, à base de carne branca e legumes ao vapor. Sem falar que as dietas caninas já passaram ao reino da informática. Na cadeia de butiques Animal's, você pode inserir em um terminal a idade, a raça, o sexo e o peso de seu cachorro e, na tela, aparece o menu ideal de seu tesouro. Este promissor mercado de futilidades oferece ainda dentifrícios e pastilhas clorofilisadas contra o mau hálito canino. Existissem na época do coroamento da Beatrix, talvez eu não guardasse tão triste memória de meus dias em Amsterdã com Igor.

Mas o melhor vem agora, o drama dos cães comunistas. Que Igor era um deles, disto não tenho dúvida alguma, pois Michelle jamais partilharia seu leito com um salle chien capitaliste. Mas Igor vivia em Paris, sonho de todo revolucionário, humano ou canino. Fabien Gruhier se refere ao drama dos cães do Leste, após a queda do muro. A revista Animaux Magazine consagrou um número, em março do ano passado, aos animais vítimas — ou beneficiários — da perestroika. Segundo Gruhier, nem os animais do Leste querem ouvir falar de socialismo e não deixam de ter suas razões para tanto.

Após a Grande Revolução, os cães soviéticos foram golpeados com uma taxa anual de 15 rublos, o que eqüivale a dois dias de um salário médio na União Soviética. O que fez com que, nos regimes comunistas, até mesmo inocentes cães passassem a ter uma vida clandestina. Segundo o professor Tkachov Kuzmine, da Academia de Agricultura de Moscou, na URSS há no mínimo tantos cães clandestinos quanto os oficialmente declarados. Para Animaux Magazine, citando o professor Kuzmine, os cães e gatos soviéticos são menos felizes que a média cães-gatos dos países ricos. Ah! que vontade de mandar o Igor para lá!

Porto Alegre, RS, 16.02.91


 

 

FILHOS INGRATOS

 

São Paulo — "Crescem os bosques de oliveira pelos vales, sobem pelas íngremes ladeiras num doce verde que me recorda subitamente terras de Espanha e Portugal. O avião voa sobre ásperas montanhas, em breve alcançaremos o mar, as águas ilustres do Adriático, e tudo é intensamente belo na paisagem em redor. No límpido céu azul fogem farrapos brancos de nuvens, serpeiam os rios cor de prata por entre a variação mediterrânea do verde, a Albânia se oferece aos olhos num esplendor de luz e colorido. Volto-me para os companheiros de viagem e os vejo de olhos pregados nas pequenas janelas do avião. Estes olhos fixos, de búlgaros e tcheco-eslocavos, de franceses e alemães, de poloneses e húngaros, estão turvados de emoção. Acabamos de sair das terras sofredoras da Iugoslávia, onde vis traidores assentaram seu acampamento. Este avião em que vamos é o mais persistente traço de ligação da Albânia com o mundo e contra ele se volta, em mesquinhas represálias, o ódio bovino dos judas titistas. Wanda Jacubowska, com um sorriso comovido, diz:

— É a Albânia! É belo!"

Deste relato, escrito por viajor experiente e de longo curso, lido em minha adolescência, deve provir minha curiosidade pela Albânia. Assim sendo, quando em visita às vis terras titistas, qualquer coisa me impelia a olha para o outro lado da fronteira macedônia. De Titov Veles, cidade que homenageia o traidor, deixei o Vardar seguir seu curso e enveredei alguns quilômetros a sudoeste. Velejando pelas águas mansas do Ohrid, percebi um certo temor em meus companheiros à medida que o barco avançava. Uma linha imaginária fazia a fronteira com a Albânia, e a fixação dessa linha dependia muito do humor das patrulhas albanesas. Melhor voltar, antes que nos crivassem de metralha. De modo que, estando a poucos quilômetros da Albânia, não consegui saciar minha curiosidade.

"Os rebanhos de carneiros pastam nos vales" — prossegue o celebrado guia — "a faixa branca das praias circunda o azul do mar, a Albânia se estende sobre nossas vistas. Para trás deixamos a Iugoslávia, essas estradas que partem de Shkroda se dirigem para Montenegro. Os olhos cobiçosos de Tito, mísera criatura de Truman e de Churchill, fitam com furiosa raiva as terras albanesas e a esse povo indomável. Seu ódio contra a Albânia e contra os comunistas albaneses deve ser alguma coisa de terrível: os comunistas desse pequeno país souberam conservar-se fiéis ao internacionalismo proletário quando Tito, cevado pelas gorjetas imperialistas, se afundou cada vez mais no lodo do imperialismo burguês, traiu os povos da Iugoslávia e o proletariado de todo o mundo... (Os albaneses) não são apenas cordiais, cordialidade é uma frágil palavra para expressar essa atmosfera fraternal, esse calor de vida, essa prova triunfal da força criadora do socialismo. As vozes se elevam numa canção, enquanto os automóveis partem. Eu vos disse antes que a Albânia é uma festa e realmente não sei de melhor comparação para a alegria reinante nesses locais de trabalho, para essa atmosfera de entusiasmo criador".

E eu ali, em meio ao lago Ohrid, sem poder visitar a terra encantada. Na fábrica Enver, nosso viajante se extasia ante a felicidade de uma operária:

"Penso com ternura e gratidão nos homens que lhe abriram as perspectivas de todo esse futuro: Marx e Engels, Lênin e Stalin, Dimitrov e Enver Hodja. A moça se curva outra vez sobre a máquina, suas mãos a movimentam, seus olhos estão atentos, sua face iluminada! De onde vem essa luz que cobre a face bela da jovem operária? O poeta Alexis Çaçi nos fala dessa luz num poema sobre a terra libertada da exploração do homem pelo homem:

Faces sorridentes
desfilam sucessivamente
e o sol,
a lua e as estrelas
se unem,
e uma grande luz
invade a nossa terra.
É a aurora do socialismo.

Claro que tais paraísos não se constróem ao acaso. Sem a vontade férrea de um grande líder, um farol da humanidade, os países jamais superariam a fase de um capitalismo decadente. A vontade, no caso, foi a do "Comandante":

"Durante a guerra de libertação, Enver Hodja atravessou, por duas vezes, a pé, todo o território da Albânia. Pode-se dizer que ele conhece cada cidadão, dormiu numa enorme quantidade de casas, nas cidades e nos campos, compartilhou da mesa pobre de milhares de camponeses, foi por eles escondido enquanto a polícia do fascismo o buscava afanosamente. Era, para cada um, como um filho querido, esse jovem quase adolescente que chefiava a luta pela libertação da Pátria. Mas era também como o Pai de cada um, aquele que estava construindo o destino de todo esse povo.

Fiz esta viagem em 79. As greves, os conflitos sociais, a falta de liberdade de imprensa e a ditadura então vigentes em meu país, todos estes fatores me pesavam como chumbo na alma. E eu estava ali, a poucas léguas da sociedade justa, erigida por um homem só:

"Quando não o tratam de Comandante, chamam-no pelo seu prenome: Enver. Vi os jovens estudantes o cercarem no teatro de Tirana e ele perguntar a cada um pelos seus estudos. Os operários da fábrica Enver disseram-se que de seu orgulho e de sua responsabilidade de trabalhar na fábrica que leva seu nome. E ouvi os seus discursos e ouvi dele, em três largas conversas, se desprender sua fidelidade ao povo albanês, à União Soviética e ao internacionalismo proletário. (...) Não é por acaso que ele está presente na poesia dos poetas novos da Albânia como o símbolo da nova vida conquistada. É que ele foi o coração ardente da luta, foi o cérebro dirigente, foi a coluna mestra da criação do Partido. Ele nasceu do sangue operário derramado nas greves dos anos feudais, nasceu do suor do camponês vertido sobre a terra que não era sua, nasceu das lutas anônimas de todo os patriotas contra o jugo estrangeiro. E hoje ele é mais do que nunca o coração da nova Pátria livre".

Ainda às margens do Ohrid, pareceu-me ouvir inefável canção:

"Quando sobe pelos céus da Albânia a música da construção socialista, quando se erguem os edifícios das fábricas, quando os jovens conquistam a técnica e a cultura, quando os camponeses se reúnem em cooperativas e as mulheres arrancam os véus para dirigir tratores, quando as crianças repousam nas creches e brincam nos jardins de infância, quando os escritores tomam da pena para criar romances e poemas, quando o trem de ferro apita sobre os trilhos colocados pela juventude, quando os túneis rasgam as montanhas e os fios elétricos se prolongam pelas aldeias perdidas, quando velhos camponeses se curvam sobre a carta do ABC, quando novas minas e novos campos de petróleo são explorados, quando a vida do povo se transforma e a pátria cresce em fartura e alegria, ali estão o Partido e Enver, criadores de vida!"

Após ter usufruído do sumo privilégio que me foi negado, o de visitar nação tão feliz, nosso entusiasmado viajante agradece comovido:

"Quero, Albânia, pôr a mão direita na altura do coração, num gesto de tamanha civilidade e gentileza como o fazem teus filhos, e repetir as palavras de agradecimento: Falem nderit, muito obrigado. Falem nderit, Albânia, pelo novo amor que te tenho, esse amor feito do conhecimento, com a mesma tímida ternura comovida. Amo a tua juventude, risonha adolescente colorida que os anos não envelhecerão jamais. Bem sei que madura és de experiência, adulta na vontade invencível dos trabalhadores, e amanhã madura estarás em teus kolkozes, nas torres de petróleo libertadas, no mar e na montanha conquistados. Mas adolescente serás p'ra todo o sempre, não há outono para a primavera do socialismo".

Pois não é que vejo nos jornais os ingratos albaneses derrubando estátuas do Pai da Pátria, enfrentando a polícia para retirar seu nome de fábricas e universidades? Quanta ingratidão, meu Deus! Quanto ao autor do hagiológio supra, é Jorge Amado, rodando a baiana nos Bálcãs. O mesmo que escreveu, no mesmo livro:

"Não existe nada mais poderoso do que a verdade. Ela rompe qualquer cortina de dólares e sua luz ilumina os povos".

Pelas citações, falem nderit.

Porto Alegre, RS, 16.03.91


 

 

REMEMBER NURENBERG

 

São Paulo — Quando Claire Sterling publicou A Rede do Terror, o coral costumeiro das esquerdas bradou em uníssono: ela é agente da CIA. Como agente da CIA era todo aquele que ousasse denunciar as ditaduras socialistas e o terrorismo por elas patrocinado. Agentes da CIA foram Gide, Kravchenko, Albert Camus, Ernesto Sábato. A pecha sobrou até para mim. Nos anos 70, por não participar dos desvarios das esquerdas, fui marcado na paleta como agente do DOPS, logo eu que tinha farto dossiê naquele departamento. Com o tempo, e graças à generosidade característica dos comunossauros, fui promovido a agente do SNI. Mais tarde, quando comecei a viajar, recebi a láurea máxima: agente da CIA.

Hoje, tais acusações sequer me fazem rir. Mas era duro, na época, sentar em um bar e sentir que na mesa ao lado todos silenciavam ou mudavam de assunto. Como também era doloroso ser excluído da cama das colegas de universidade, em função de intrigas ideológicas, justo naquela idade em que de mulheres andamos famintos.

Mas falava de Sterling. A Rede do Terror foi publicado no Brasil pela Nórdica Editorial, ao final dos anos 70, quando os Pinheiros Machados da vida pontificavam assegurando que a reunificação da Alemanha só seria possível se a Alemanha Ocidental se tornasse socialista. Sterling analisava o fenômeno do terrorismo nas democracias ocidentais e dava o endereço da escola: as ditaduras socialistas do Leste europeu, com especial menção aos serviços secretos da Tchecoeslováquia e Alemanha Oriental. Como pano de fundo de tudo, a Santa Madre Rússia, vulgo União Soviética. Escândalo! Calúnias do imperialismo ianque.

Com a derrocada do fascismo eslavo, tudo se torna mais claro. Na finada Alemanha Oriental, a Stasi não só formava terroristas, como também os protegia após seus crimes no lado de cá. Outras fábricas de assassinos funcionavam na Romênia, Tchecoeslováquia e Bulgária. Como também em Cuba, Nicarágua, Argélia e Líbia. Com a débâcle dos milenaristas, o reflexo nas estatísticas foi imediato. Recente relatório do Departamento de Estado americano — Patterns of Global Terrorism: 1990 — mostra que, no ano passado, os ataques terroristas tiveram umaredução de 14,6% no mundo todo. Qualquer coincidência com a queda do Muro de Berlim e suas conseqüências é mais que mera semelhança.

Com o que todos ganhamos, particularmente a América Latina. O terrorismo está perdendo terreno no continente. As “forças revolucionárias”, as “frentes populares”, as “uniões patrióticas”, eufemísticas expressões que abrigavam os celerados do século, em falta da mesada da Santa Madre Rússia, começam a pedir água. Na Guatemala — que antes de 89 ia de Guatemala a Guatepeor — a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (quanto menor a republiqueta, mais solenes se pretendem seus salvadores) se dispõe a conversar com o governo. Em Honduras, as Forças Populares Revolucionárias da Colômbia e o Exército de Libertação Nacional sentem seus dias contados e acenam com negociações. O Movimento Revolucionário 19 de Outubro, tão ao gosto de Gabriel Garcia Márquez, virou partido político. Em El Salvador, a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional deve assinar este mês um acordo definitivo de cessar-fogo.

Quanto a nossos vizinhos, no Uruguai os tupamaros tocaram as armas pela política e tomaram de assalto a prefeituras de Montevidéu, o que aliás explica esse obsceno namoro de nuestros vecinos com a alcaiceria de Porto Alegre. Na Argentina, os derrotados montoneros entraram na política na garupa do peronismo. No Chile, metade dos universitários da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, que em 1986 tentou matar Pinochet, já largou as armas. O Movimento de Esquerda Revolucionária não mais existe. Restam os fanáticos das Forças Rebeldes Populares Lautaro, que não estão gostando de ver o Chile vivendo um período de paz social e desenvolvimento econômico fora dos fracassados moldes marxistas. E no Peru, para vergonha da América Latina, persistem em suas paranóias os assassinos do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Desesperados à parte, parece que estamos entrando em uma era de certa lucidez. A hora é de fazer o balanço dos estragos que Marx (voluntária ou involuntariamente, isto é outra questão) fez à humanidade.

O curioso é que, para estes assassinos e seus cúmplices intelectuais, a impunidade parece ser direito adquirido. Posam de heróis e sequer lhes passa pela cabeça sentar no banco dos réus. Na Revolução do Nove de Novembro, se as vítimas se libertaram do tacão socialista, os opressores — exceção feita de algum Ceaucescu ou Honecker — continuam lindos e livres como passarinhos. Com a derrota de Hitler, os nazistas foram catados à unha onde quer que se escondessem. Stalin morreu de vez e seus cultores aí estão, empoleirados em prefeituras, órgãos culturais e universidades. Até hoje não entendi por que certo tipo de assassino merece Nurenberg, enquanto outros batizam ruas.

Na Polônia, pelo menos há um certo pudor, os comunossauros em climatério, como penitência simbólica, fazem uma hora de crucificação. A Administração porto-alegrense, auto-intitulada de Popular, bem que podia, em vez de memoriais a Prestes, inaugurar um monte Calvário. Ia faltar cruz no mercado, é verdade. Mas eu me divertiria muito se me dessem o papel do Arimatéia.

Os mais vivos saem pela tangente. Da Albânia a Angola, os tiranos e cúmplices da tirania começam a posar de social-democratas. Após ter de engolir Jonas Savimbi, da Unita, o MPLA-PT passou a chamar-se MPLA-PSD. Ou seja, o glorioso “Movimento Popular pela Libertação de Angola — Partido do Trabalho” passa agora a chamar-se “Movimento Popular pela Libertação de Angola — Partido Social Democrata”. Mudam as moscas e o marxismo é sempre o mesmo. Falar nisso, lembro que o Tarso Genro andou escrevendo uma ode qualquer à ditadura de Angola. Se algum leitor com espírito de humor tiver em mãos a escatológica obra, peço que ma envie para o endereço ao final destas, para que mais tarde possamos rir juntos através desta página.

Os comunossauros passam então a chamar-se social-democratas, quem diria? Volta às origens? Afinal de contas, até 1914 Lênin se considerava social-democrata. Quando fundou o Comintern, em 1919, impôs aos social-democratas a alternativa de continuarem filiados à Segunda Internacional ou romper com ela e filiarem-se à Internacional Comunista. No III Congresso do Comintern, em 1921, Trotsky e Varga deitaram doutrina:

“A diferença entre comunistas e social-democratas é que estes obstruem o verdadeiro progresso revolucionário ao fazer tudo quanto podem, seja no governo, seja na oposição, para ajudar a reconstruir a estabilidade do Estado burguês, enquanto que os comunistas aproveitam todas as oportunidades e todos os meios para derrubar ou destruir o Estado burguês”.

Pouco a pouco, para os fanáticos da deusa História, social-democracia virou insulto. Décadas mais tarde, muito militante foi expulso do partido, acusado de “capitulacionismo” ou “reboquismo”, por ter aderido ao bom senso. Acontece que social-democracia, de ideal utópico passara a ser experiência social relativamente bem sucedida. Como todo religioso, os comunistas detestam qualquer projeto viável do qual não tenham sido patrocinadores. E optar pela social-democracia, no jargão dos comunossauros, passou a ser sinônimo de reacionarismo atroz. Mas os tempos mudam, e com eles os conceitos. Depois de reduzirem à miséria um país potencialmente rico como Angola, os marxistas esboçam um discreto dar-de-ombros, como se nada tivessem a ver com o desastre. E passam a chamar-se social-democratas.

Social-democratas à la Lênin ou mais ao estilo de um Gunnar Myrdal ou Olof Palme? É o que resta saber. Pois toda a trajetória do marxismo não passou de manipulação de palavras. Tanto que agora, em Moscou, foi elaborado um novo dicionário para tentar fixar um sentido às velhas palavras. Primeira conclusão dos lexicologistas: democracia quer dizer nada. Ou qualquer coisa, tanto faz. De tanto ser usada a propósito de qualquer coisa, a palavra perdeu todo e qualquer sentido no mundo socialista.

O mesmo parece que vai acontecer à social-democracia. Já vi muito agitprop fazendo proseletismo, na imprensa e na universidade, tentando provar que o rumo da humanidade só podia ser mesmo o socialismo, tanto que até os países nórdicos já haviam optado por este sistema. Quando Mitterrand foi eleito na França, não faltou tupiniquim se regozijando com os “avanços do socialismo’. Como se os regimes da França, Alemanha ou países nórdicos — basicamente capitalistas — tivessem algo a ver com a miséria e barbárie predominantes nas democracias ditas populares.

As denúncias de Claire Sterling, se há dez anos atrás podiam suscitar certa prudência no leitor mais céptico, são agora, são agora de uma luminosidade mediterrânea, como adoram dizer os magistrados para insinuar que estão voltando de uma excursão à Europa. A fonte geradora do terrorismo era Moscou. Muito bem. Pergunta a quem interessar possa: os “humanistas” que financiaram, organizaram e estimularam guerrilhas, seqüestros, massacres, assassinatos, esta gente não vai ser julgada?

Pelo jeito que o mundo gira, ao que tudo indica, até as esquerdas preferem esquecer Nurenberg.

Porto Alegre, RS, 18.05.91


 

 

PERCEBES EN LOS PENDEJOS

 

São Paulo — Que estamos vivendo uma época de nivelamento por baixo, isto não é novidade. Os jornais, em vez de manter uma linguagem culta e precisa, optam pelo genérico e ao alcance de todos. Em vez de excitar o leitor a buscar o sentido de um conceito mais complexo, preferem respeitar seu patamar de ignorância e dispensá-lo da leitura de um dicionário. Não sei se já foi feita alguma pesquisa sobre o assunto, mas duvido que no Brasil alguém precise conhecer mais de quinhentas palavras para ler as notícias da imprensa diária. Televisão, nem falar. Orangotango que conseguir dominar a proeza de entender cem palavras, já domina o universo da rede Globo.

Ora, lidar com quinhentas palavras pouco ou nada nos distingue de nosso primo, o Pitecantropus eretus. Pode ser suficiente para candidato a deputado, animador de auditório, campeão de futebol ou de fórmula 1. Ou fórmula 2. Aliás, já começo a falar de coisas que não entendo, até hoje não sei qual é a diferença entre uma e outra. Ou melhor, talvez saiba. De meus dias de Florianópolis, fui contemplado pela ingrata epifania: uma polui mais, sonoramente, que a outra. Qual polui mais ou menos, não sei. Deixo a resposta a esses analfabetos de final de milênio, que já se julgam eruditos mal conseguem pronunciar um quadrissílabo tipo cilindradas.

Este reducionismo, rumo ao primo aquele que até hoje anda pendurado pelo rabo nas árvores, parece estar contaminando até mesmo este jornal. Outro dia, nesta página, falei em Cérbero. Foi overdose, as sinapses de meu revisor entraram em curto circuito e ele preferiu, por via das dúvidas, grafar cérebro. Acontece que Cérbero é Cérbero e cérebro é mercadoria cada vez mais escassa. Outro dia, escrevi que a avenida Berrini, em São Paulo, era uma contrafação de La Défense, em Paris. Parece que a palavra já não tem registro no cérebro de quem é pago para bem grafá-las. Saiu contratação. Fora outras que já nem lembro. Mas não era disto que pretendia falar.

Minto. Era disto mesmo que estava falando, desta tendência cada vez mais freqüente no jornalismo contemporâneo de descer ao nível do analfabeto, ao invés de tentar erguê-lo ao nível da língua culta. Orwell já analisou em profundidade o assunto em “1984”, quando criou a novilíngua, que aliás não foi criação sua, mas dos finados (perdão, leitor!) comunossauros. Pois esta saudade de selva e cachos de banana, ainda embutida nos genes do homem contemporâneo, manifestou-se agora com vigor em uma das últimas determinações da alcaiceria de São Paulo. Os cardápios da capital devem agora ter seus pratos traduzidos ou explicados em português.

O que me faz voltar a Florianópolis e à praça XV. O penúltimo prefeito, ilustre representante da cultura ilhoa, não conseguia se fazer entender quando falava em praça Xivi. Uma vez esclarecido, não teve dúvidas. Baixou bando: ficam proibidos, a partir de agora, números romanos na designação de ruas ou praças. Para contentamento geral da nação, digo, da ilha, a praça Xivi agora é praça 15. Volto a São Paulo. Vai ver que a Erundina andou se atrapalhando em algum restaurante francês e decidiu seguir o safado exemplo do prefeito florianopolitano.

Acontece que gastronomia é um nível superior de cultura. Comer, todos comem. Até o faminto come. Se não comesse, não seria faminto, mas defunto. Comer é um imperativo orgânico, que gere a agenda tanto da ameba quanto a do Lula. Saber comer já é outro assunto. Quanto a comer, não para encher a pança, mas para satisfazer o pálato, bom, isso é privilégio de quem já não tem a premência metabólica da ameba ou do classe média inculto.

Em Florianópolis, cheguei a fazer campanha, não para que os cardápios fossem traduzidos, mas que pelo menos fossem grafados corretamente. Pois restaurador que não sabe escrever o que serve, não tem a mínima idéia do que está servindo. Lá eu vi, juro que vi, filé à guarani por filé garni. Vi camarão à ilha-e-óleo por camarão ao alho-e-óleo. Eu não pedia tradução. Fossem os pratos grafados com acerto e servidos honestamente, já me dava por contente.

Sem falar que culinária é geralmente intraduzível. Churrasco, por exemplo. Americanos ou europeus podem achar que entenderam o prato ao pedir barbecue. Mas o churrasco mesmo é outra coisa. Mocotó ou dobradinha podem lembrar as trippes à Caen, mas com elas nada têm a ver. Cassoulet não é feijoada e duvido que alguém possa traduzir paella, sem pelo menos usar uma dez palavras. A intenção da prefeitura paulistana parece ser dicionarizar o cardápio. Melhor faria se nos explicasse porque desvia verbas da merenda escolar para financiar congressos da CUT.

Pois é o que andam fazendo os salvadores da humanidade, cá em São Paulo. Para proclamar ao mundo que as criancinhas do Brasil passam fome, consomem a verba destinada a alimentar crianças que passam fome, na organização de congressos onde denunciam a fome das criancinhas. Mas falava no nivelamento por baixo. Na Bahia, estado que nos legou dois dos maiores embustes nacionais — o Rui Barbosa e o Jorge Amado — a prefeitura sancionou lei que proíbe nomes estrangeiros em prédios residenciais e comerciais em Salvador. Parece que para evitar que o cidadão médio confunda, por exemplo, Bois de Boulogne com bois da Bolonha. Avante, baianada. Mais um esforço e este país ainda vira uma imensa Santa Catarina!

Que estamos rumando ligeirinho à noite dos tempos, disto não tenho dúvida alguma. Outro dia, um respeitável jornal paulistano cometeu uma gafe que é sinal dos tempos. A notícia era sobre Malcolm X, o líder terrorista negro aquele que só tem mídia entre os botocudos, pois nossas esquerdas ainda sofrem da doença infantil do anti-americanismo. Pois bem, a redatora, sem saber do que falava e tentando se fazer entender junto ao leitor, não teve dúvidas: tascou Malcolm 10. Cá entre nós, Praça Xivi tem mais charme.

Cardápios, era disto que eu falava. Em Madri, lá pelas dez da madrugada, eu adorava começar o dia tomando um carajillo com porra. Nestas circunstâncias, até concordo com a alcaidessa, é melhor traduzir: café batido com conhaque e uma espécie de biscoito que na Espanha se chama porra. Em Cuenca, me encharquei em litros de Q, o vinho da região. Brasileiro que sabe como se chama em espanhol esta letra, já deve estar imaginando minha perplexidade quando o garçom me perguntou:

— El Q, usted lo quiere blanco, tinto o rosado?

Enfim, espanhol não é vernáculo. Mas em Lisboa, cansei de comer febras, pregos, bifanas e safadinhas. Nestes dias em que o Antônio Hoauiss fala em unificação do idioma, como é que ficamos? Teríamos de traduzir do português para o brasileiro? Mas isto implica admitir que uma língua já são duas, fato que qualquer tradutor europeu ou americano já conhece, mas que os universitários brasileiros teimam em negar.

Lisboa, além das ginjas (com elas ou sem elas?) e fados, me faz lembrar dois outros pratos, a sopa de grelos e os percebes. De grelos, gosto em qualquer geografia. Quanto aos percebes, ainda não firmei opinião. É um bichinho asqueroso, que parece ainda não ter decidido se pertence ao reino vegetal ou animal, mas muito apreciado pelos gastrônomos. Como as angulas e santolas, não têm gosto de nada. Resumindo, é aquela craca que dá em cascos de navios e postes submersos. O verme custa caro, se faz de difícil ao ser descascado, e o único prazer que nele encontrei foi literário. Como as colônias de percebes levam tempo para se formar junto a cascos, madeiras ou rochas, os espanhóis encontraram uma bela metáfora para definir um homem de raciocínio lento: tiene percebes en los pendejos.

Em bom português: tem percebes nos pentelhos. Este é, a meu ver, o mal que está afetando a alcaidessa.

Porto Alegre, RS, 20.07.91


 

 

QUESTÕES TEOLÓXICAS

 

São Paulo — ¿Como admitir que a Deus non lle saíra o home un pouco mellor de querer crealo á súa imaxe e semellanza? ¿En que cabeza cabe que o home, esse saco de inmundicia e de soberbia, a partes iguais, poida parecerse a Deus? ¿Como Deus na súa infinita bondade, na súa infinita sabedoria, puido errar de semellante estrepitosa maneira co invento do home, esta besta débil e depredadora que se entretén coa guerra e morre de cáncer? Non, non, o erro orixinase ó confundir a Deus, esa noción eterna e, por tanto, que nin empeza nin acaba, con química e o ciclo do carbono, que son duas nocións continxentes e abrangibles con maior ou menor esforzo.

Se o leitor entendeu o que leu acima, meus cumprimentoss: conhece mais uma língua e não sabia. A língua de tão saborosa pronúncia é o galego, e o texto, intitulado Disquisicións teolóxicas, é de Don Camilo José Cela, prêmio Nobel de literatura, do qual tive a honra — e o compromisso — de traduzir dois romances ao brasileiro. De certa forma, foi Don Camilo que me levou à Galícia. Fascinado com aquela música que ouvimos em Mazurca para dois Mortos, fui dar uma olhadela naquelas “xeografias”. Em Santiago de Compostela, na estação rodoviária, encontrei Marina Pérez Rodriguez, atenta observadora dos trens que passam por aquela cidade de sonho e sempre disposta a introduzir o viajante perplexo na magia da Galícia. Pois é Marina que me envia esta crônica de Cela. Sei la por quê, lembrei de Jeffrey Dahmer, o canibal de Milwaukee.

Matou 17 pessoas — pelo que se sabe até agora -, decepou-as e comeu partes de suas vítimas, tendo guardado alguns órgãos no refrigerador para comer depois. Praticava sexo com seus convivas tanto quando vivos como depois de mortos. Quanto a comê-los, só degustava a carne daqueles que mais o atraíam. Em Paris, tive ocasião de cruzar com um destes seres de paladar tão exigente. Estudávamos literatura na mesma universidade, Paris III. Meu colega, cujo nome me escapa, era japonês e acabou comendo a namorada. Literalmente, bem entendido. Conservou durante semanas pedaços da moça e os fritava aos poucos.

Amor é fogo. Hoje, meu colega de estudos comparatistas vive no Japão, está livre e vai escrever um livro. Que certamente vai virar filme e lhe trará rios de dinheiro. Eu, que só comi minhas namoradas de mentirinha, continuo tendo de lutar pelo pão de cada dia.

Há uma constante nas fotos de Dahmer, quando ele desfila ante seus semelhantes: os homens que vão julgá-lo — entre os quais, bem ou mal, nos incluímos — olham o canibal com terror e perplexidade. Como se Dahmer pertencesse a outra espécie que não a humana. Quando na verdade nada fez senão praticar um gesto que está nos fundamentos da cultura cristã. Mais ainda, é exercido diariamente em todos os países do Ocidente.

No Deuteronômio, um dos principais livros da Bíblia, a hipótese é aventada como ameaça: “Então, na angústia do assédio com que o teu inimigo te apertar, irás comer o fruto de teu ventre: a carne dos filhos e filhas que Javé teu Deus te houver dado”. Em Jeremias, enciumado com os cultos a Baal, Javé anuncia os dias em que o vale de Ben-Enom se chamará Vale da Matança: “Eu farei que eles devorem a carne de seus filhos e a carne de suas filhas: eles se devorarão mutuamente na angústia e na necessidade com que os oprimem seus inimigos e aqueles que atentam contra a sua vida”.

Nos cinco poemas das Lamentações, livro atribuído a Jeremias, cujo tema central é a destruição de Jerusalém, volta o tema recorrente: “As mãos de mulheres compassivas fazem cozer seus filhos; eles serviram-lhes de alimento na ruína da filha de meu povo”.

Em Ezequiel, contemporâneo mais jovem de Jeremias, que denuncia a perversidade de Jerusalém e proclama a iminência de seu assédio e destruição, Javé volta a lembrar: “Farei no meio de ti o que nunca fiz e como não tornarei a fazer, isto por causa de todas tuas abominações. Por esta razão os pais devorarão os filhos, no meio de ti, e os filhos devorarão os pais”.

De fato, o canibalismo só ocorre no Segundo Reis. A fome impera durante o cerco de Samaria, quando uma mulher diz à outra: “Entrega teu filho, para que o comamos hoje, que amanhã comeremos o meu”. A primeira mãe cozinha seu filho e o divide com a segunda e, no dia seguinte, lhe pede: “Entrega teu filho para o comermos”. Mas a outra foge ao trato e esconde o filho.

Maldição no Antigo Testamento, no Novo o canibalismo se torna virtude. Durante a Santa Ceia, Cristo oferece seu corpo e seu sangue para que os participantes entrem em contato com o sacrifício, comendo do sacrificado. É o que os católicos romanos chamam de transubstanciação. Todo católico, quando comunga, não está bebendo o vinho ou comendo o pão como símbolos do corpo de Cristo. Está, de fato, bebendo o sangue e comendo a carne do Cristo.

No sacramento do altar, depois da consagração, não há senão o corpo e o sangue de Cristo. A doutrina da igreja Católica é clara. Segundo Santo Ambrósio, “antes da benção há uma espécie que, depois da consagração, se transforma no corpo de Cristo”. Santo Hilário confirma: “sobre a verdade concernente ao corpo e sangue de Cristo, não há lugar para dúvidas. Pois, conforme a afirmação mesma do Senhor e nossa fé, a sua carne é verdadeiramente comida e o seu sangue verdadeiramente bebido. Assim como Cristo é verdadeiramente filho de Deus, assim a carne que recebemos é verdadeiramente carne de Cristo, e a bebida é verdadeiramente seu sangue”.

São Tomás, na Suma Teológica, encerra a discussão, com uma ressalva: “que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente no sacramento do altar, não podemos aprendê-lo nem pelos sentidos nem pelo intelecto; mas só pela fé, que se apoia na autoridade divina”.

Tomás, o Doutor Angélico, vê na eucaristia a suprema celebração da amizade: “E porque é próprio por excelência à amizade, conviver com os amigos, Cristo nos prometeu como prêmio sua presença corporal. Por isso ele próprio disse: O que come minha carne e bebe meu sangue, esse fica em mim e eu nele. Logo, este sacramento é o máximo sinal da caridade e o sublevamento de nossa esperança pela união tão familiar de Cristo conosco”.

Os jornais me falam da infância de Dahmer, dos pais de Dahmer, dos traumas de Dahmer. Só não me contaram até agora qual é a religião de Dahmer, se é cristão ou luterano, calvinista ou simplesmente ateu. Seja qual for sua condição, nasceu em um caldo cultural cristão. Talvez jamais tenha ouvido falar de Tomás de Aquino. Mas intuiu muito bem suas lições: só se deve comer a carne de quem se ama.

Falava de Cela, que ao falar do homem, pela voz de seus personagens, o define como um “saco de inmundicia e de soberbia”. É o que muita gente deve estar pensando de Jeffrey. Herdeiros de uma tradição cultural que tem o canibalismo como suporte, não vejo como condená-lo. Talvez o leitor não tenhas se dado conta, mas Jeffrey é nosso irmão. Afinal, somos filhos do mesmo pai, daquele pai que sempre adorou sangue. Pediu inclusive a Adonai que sacrificasse seu filho Isaac. Não faltará quem objete: mas Isaac foi poupado. Pode ser. Mas na primeira esquina do milênio. Javé ferrou o Cristo. De cuja carne muito comemos, com amor e devoção, nos dias de juventude.

Porto Alegre, RS, 17.08.91


 

 

CARTA ABERTA À VELHINHA DE TAUBATÉ

 

São Paulo — Foi em Porto Alegre, na Feira do Livro de 1989, se bem lembro. E como me lembro, pois foi antes da Revolução do Nove de Novembro. E já estamos na Revolução do 21 de Agosto. Nesse meio tempo, a independência da Estônia, Letônia, Lituânia, Tajiquistão, Usbequistão, Quirguistão, Azerbaijão, Moldávia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Geórgia, Armênia. Sem falar na Croácia, Eslovênia, e Macedônia. Sem falar que talvez nasça um novo país antes do fechamento desta edição. De 89 paras cá, até parece que transcorreram dois séculos.

Faz tempo, dizia. Eu flanava pela Rua da praia, quando encontrei o Nosso Homem em Moscou. Às gerações mais novas, explico: Nosso Homem em Moscou era o Paulo Silveira, diretor do Instituto Brasil-URSS — isto é, ex-URSS — espécie de cônsul honorário do stalinismo no Rio Grande do Sul. Encontrei o Silveira na Praça das Alfândega. Magro, trôpego e entrópico, era a própria imagem do comunismo.

É, faz tempo. Na época, os ex-alemães orientais fugiam do paraíso através de brechas na fronteira austro-húngara, em busca do capitalismo podre ocidental. Muitos fugiam da ex-Berlim oriental para a Berlim ocidental. Tremendo atalho: para deslocar-se mil metros, viajavam mil quilômetros. Era primavera no Brasil, outono na Europa. Não me contive. Apressei o passo e abordei Nosso Homem em Moscou:

— Que te parece, Paulo, essa gente toda, sem lenço nem documento, fugindo do socialismo?

Nosso Homem em Moscou, viajor experiente, do alto de seu humanismo parecia preocupado:

— Que horror! O inverno está chegando na Europa, vão todos morrer de frio.

Não morreram. Mas isso já faz dois séculos. Ou dois anos? Às vezes fico confuso. Por um lado, caiu o Muro de Berlim, ruíram as ditaduras do Leste. Por outro, o velho comunossauro continua flanando pela Rua da Praia, como se vivo estivesse. Vai ver que foi só dois anos.

Nosso Homem em Moscou não por acaso era conhecido como Nosso Homem em Moscou: falava russo, deitava de quatro ante o PCUS — perdão, o ex-PCUS — e todos os anos ia a Moscou e incitava os gaúchos a visitar Moscou, desde que com dólares, é claro. Falando russo, viajando todos os anos a Moscou e conhecendo Moscou como a palma da mão, jamais nos disse água sobre a tirania atroz que o PC soviético exercia sobre os moscovitas, muito menos sobre a tirania que Moscou exercia sobre as repúblicas. Isso sem falar sobre a tirania que a URSS — perdão, ex-URSS — exercia sobre o Ocidente. Um pouco desligado, Nosso Homem em Moscou. No fundo, um humanista. Quando os alemães orientais largavam casa, posses, passado e parentes em busca de liberdade, Paulo Silveira preocupava-se com o conforto destes pobres equivocados: que horror, vão todos morrer de frio.

A Santa ingenuidade de Nosso Homem em Moscou nos torna ternos e tolerantes. Se o Paulo Silveira, que ia todos os anos a Moscou, que conhecia Moscou e satrapias como a palma da própria mão, nada sabia dos porões de tortura da KGB, bem das mordomias da Nomenklatura, nem da corrupção do PCUS, em nada nos espanta que humanistas de souche como Josué Guimarães (R.I.P.), Moacyr Scliar ou Luis Fernando Veríssimo — que não falam russo nem vão todo santo ano a Moscou e, ao que parece, não lêem jornais — em nada nos espanta, dizia, que estes renomados escritores jamais tenham informado seus leitores sobre a mais infame ditadura que contaminou o século.

Falar nisso, soube que andou em Porto Alegre uma triste alma penada, parece que patrocinado, ou pelo menos convidado, pelos bolches que tomaram posse da alcaiceria da capital gaúcha, o tal de Cornelius Castoriadis. E por favor, não me chamem de maldoso quando assim escrevo. Quando Pilla Vares, ilustre secretário municipal de Cultura — cujo itinerário intelectual vai de Trotski a Sirotski — canta a Internacional ao tomar posse do cargo, é sinal que algo de podre flutua nos corredores da prefeitura.

Mas falava do Cornelius. Conivente a vida toda com o fascismo eslavo, desmoralizado em Paris por seus laivos de Madalena tardia, conseguiu encontrar ao sul dos trópicos, logo em Porto Alegre que eu julgava cidade culta, um palco para suas histrionices. A capital gaúcha está emburrecendo. Será por certo influência da alcaiceria, que importa da Europa putas de fim de noite, desde que tenham boca para qualquer prática como, por exemplo, tentar recuperar os restos podres do socialismo.

Fosse só isso, não era nada. Quando o Cornelius, papagueando o que há duas décadas se sabe na Europa, classificou como stalinista o regime de Castro, foi vaiado. Devagar nas pedras, Cornelius. As esquerdas tropicais são assim mesmo, lentas e fanáticas. Mesmo após a queda de Castro, necessitarão de mais algumas décadas para considerá-lo ditador.

Imagino, por exemplo, o Moacyr Scliar na platéia. Escritor premiado pelo regime de Castro, deve ter-se contorcido por dentro ao ouvir do ex-stalinista grego que o regime que o premiara era stalinista. Mas o Scliar está acostumado a essas imposições sociais. Já apertou não poucas vezes a mão de Jorge amado, que escreveu para jornais nazistas que defendiam Hitler e o massacre de judeus, como também foi adorador de Stalin, outro tremendo assassino de judeus.

Falar nisso, recebo telex de que o ex-presidente da ex-Alemanha Oriental, o ex-Honecker, atualmente hospedado na ex-URSS, dado o risco de ser extraditado para a Alemanha, para responder por seus crimes, tipo fuzilamento pelas costas e outros que ainda desconhecemos, o ex-ditador, dizia, está por ser enviado pela ex-URSS para a China, último reduto da barbárie que também está por ruir. Como Honecker está em fim de vida, talvez escape ao Nurenberg que merece.

Falar nisso, lembrei de um ilustre musicista gaúcho, o Flávio Oliveira, que recebeu mordomias na ex-Berlim Oriental do ex-ditador Honecker e voltou fazendo cantatas ao ex-herói Che Guevara, que matou para erigir a ditadura de Castro, que premiou o Moacyr Scliar, ditadura que nem o Cornelius Castoriadis consegue condenar sem receber vaias em porto Alegre. Horror, esta irreverência das esquerdas. Nem intelectuais tipo o Cornelius, que orientam suas poltronas no sentido da História, que quando arrotam às margens do Sena, o arroto ultrapassa a Rive Gauche e vira método na universidade brasileira, nem estes intelectuais, dizia, conseguem dobrar o stalinismo obstinado dos radicais oriundos da baixa classe média rio-grandense.

Falar nisso, onde andará nossa Deusa Shiva, vulgo Antônio Hohlfeldt, que usufruiu prazerosamente da hospitalidade dos capachos da ditadura búlgara? E nosso íntegro Santiago, sempre corajoso e irreverente? Tão corajoso, a ponto de ter seus cartuns premiados por uma tirania qualquer dos Balcãs, certamente por sua extraordinária coragem intelectual de ter sempre silenciado sobre tiranias, desde que estas fossem de esquerda. Quando nos brindará Santiago com um charge contra a ditadura cubana, por exemplo?

Enfim, não sejamos ranzinzas. Se o Jorge Amado ostenta em seu currículo um prêmio Stalin de literatura, não vejo porque o Scliar, Hohlfeldt ou Santiago iriam recusar louros e mordomias de tiranetes menores. Aliás, preciso consultar o Luis Fernando Veríssimo. Será que a Velhinha de Taubaté ainda acredita no socialismo, a aurora da humanidade?

Porto Alegre, RS, 21.09.91


 

 

A DURA VIDA DE CAMPUS

 

São Paulo — Estava outro dia no Brahma, ali na Ipiranga com a São João, quando um vizinho de mesa, logo ao sentar, foi perguntando pelo preço do chope. O garçom disse o que lhe cabia dizer: 480 cruzeiros. Meu vizinho contorceu-se na mesa, olhou para mim e desfiou um rosário de queixas: que horror este país, onde é que se viu chope a 480, onde é que vamos parar? Fui solidário com meu interlocutor: pedimos dois chopes.

Outro dia, em Porto alegre, falava com um professor universitário. Queixava-se de 90, o pior ano de sua vida. Assim como quem não quer nada, fui puxando assunto e, ao final da charla, obtive três dados significativos. Em 90, ele havia quitado um apartamento em Petrópolis, havia passado três meses em Paris com mulher e filhos e tinha trocado de carro por um modelo do ano. Realmente, 90 foi um horror.

Claro que havia votado no Lula, como aliás a maioria dos professores universitários, que completaram uma greve de mais de cem dias, sem que o país tenha se dado conta de que estão em greve. O que só demonstra uma coisa: do jeito que está, a universidade pública no Brasil é perfeitamente descartável. Imagino que 91 tenha sido ainda pior que 90 para meu interlocutor: três meses e meio sem trabalhar, recebendo tranqüilamente o salário no dia certo.

O pior de tudo, queixava-se outro professor, é que a imprensa não nos dá cobertura. O sangue frio do acadêmico me deixou perplexo. Estávamos em São Paulo, única capital do país na qual o salário de um jornalista pode ombrear com o de um professor das universidades federais. Com uma diferença: a carga horária média de um professor da USP, por exemplo, é de 3,9 horas/aula por semana. Cabe ainda lembrar que uma hora/aula é, em verdade, 45 minutos. Ora, os professores universitários, de modo geral, estão no regime das 40 horas semanais. Ou pelo menos 20. Temos então que, na universidade padrão do Brasil, um professor cumprindo quatro horas efetivas de trabalho por semana, recebe em geral por 40 ou, pelo menos, por 20 horas.

Ora, direis, e a pesquisa onde é que fica? De fato, há professores que elaboram pesquisas sérias e oportunas. Mas estes são minoria e duvido que constituam dez por cento do corpo acadêmico. Jornalistas, trabalhamos teoricamente cinco horas por dia, de fato sete ou oito e muitas vezes dez ou onze horas. O fax e o modem nos jogam os fatos brutos na mesa, quase na hora em que acontecem, e temos de reelaborá-los rapidamente para que na manhã seguinte o leitor adoce seu café com cadáveres, massacres, terremotos. E não temos o direito de errar uma vírgula, uma letra de um nome impronunciável. Sem falar nos processos intimidatórios e ameaças de morte que estão se tornando cada vez mais freqüentes no Brasil. Não por acaso, mesmo que não seja assassinado, o jornalista em geral morre cedo. Sob um regime de tensão extrema, cumprimos no dia uma cota de trabalho que um professor da USP não cumpre em uma semana.

Estes senhores vêm então queixar-se de que nós, jornalistas, não somos solidários com a famosa greve, que durou mais de cem dias sem que o país, como um todo, dela se desse conta. Transporte-se o problema para o interior do Brasil, onde jornalista sequer sonha em ganhar um terço do que ganha um bolsista da Capes, e o que parecia irônico vira cinismo. Enfim, esta greve paranóica, deflagrada por lideranças desvairadas, não deixa de ter sentido: mostra que a sociedade pode tranqüilamente dispensar os serviços desse paquiderme oneroso e inoperante no qual se transformou a universidade pública brasileira.

Não me refiro, bem entendido, a cursos como medicina, engenharia, odontologia, biologia ou agronomia. Destes, todo país precisa. Mas os cursos de jornalismo, só para começar, podiam acabar que deles ninguém sentiria falta, fora os apaniguados do magistério. Não há país civilizado que exija curso de jornalismo para o exercício da profissão. Esta exigência legal no joga na vala comum da barbárie socialista.

Continuando: se os cursos de Direito fossem reduzidos em 90 por cento, mesmo assim teríamos rábulas sobrando para o início do próximo milênio. Quanto aos de Letras, se desaparecessem dos campi, a literatura e os próprios escritores respirariam melhor. Já os de Sociologia, vão acabar morrendo de inanição conceitual: as teorias que os nutriam foram sepultadas no mês passado.

O Brasil jamais sairá deste atoleiro de Terceiro Mundo enquanto a universidade, como também a maioria das estatais, não for privatizada. Enquanto professores que ganham de dez a vinte salários mínimos para dar quatro aulas por semana se dão ao luxo de cruzar os braços por mais de cem dias, continuaremos patinando neste final de milênio. No caso específico da universidade brasileira, um corte profundo terá de ser feito nos cursos ditos de humanidades, que até hoje só têm se prestado, em sua maioria, para a pregação de teorias mortas.

O tema da corrupção e decadência da universidade brasileira é tão fascinante, que até perdi o fio do assunto. Falava dessa sacrificada classe média tupiniquim, que chora de barriga cheia. Que sofre quando o chope custa um dólar, escamoteando o fato de que cinco ou dez chopes por noite pouco afetam seus rendimentos. Desses bravos doutores, que intercalam três meses de greve, mais outros tantos de férias, tendo de suportar o trabalho escravo de três meses de magistério por ano, na base de três ou quatro horas/aula por semana. De fato, dura é a vida de campus.

Talvez um dia os professores de Letras acabem descobrindo que o surrealismo não se encontra propriamente nos textos de Breton ou nos filmes de Buñuel, mas no dia-a-dia de cada um deles. Qual ficcionista conseguiu imaginar um Estado que financia a sua própria contestação? Afinal de contas, a universidade é autônoma. Os professores são efetivos. E o Tesouro nacional paga pontualmente, ao final de cada mês, os gordos salários dos bravos grevistas. Se o autoritarismo fascista de Brasília decide não pagar quem não trabalha, que horror! E a autonomia universitária, onde é que fica?

E depois ainda há quem ache que o Brasil pode ingressar no Primeiro Mundo sem acabar com esse monstrengo corrupto — ilhas de competência à parte — que é a universidade pública brasileira.

Porto Alegre, RS, 28.09.91


 

 

CHEZ LES BELINGUES

 

São Paulo — Enquanto o Moacyr Scliar não nos explica aquele prêmio literário que recebeu da ditadura cubana, reservado a escritores que jamais denunciaram o regime totalitarista de Castro, enquanto o Luis Fernando Veríssimo não nos informa se a Velhinha de Taubaté ainda acredita no socialismo como a aurora da humanidade, falemos da Paulicéia.

Aconteceu em uma dessas noites, em que fico rezando pela saúde do papa, de Bush ou de Gorbachov. Não que creia em rezas. Mas terror de plantonista de jornal é a morte em fim de noite de personagens deste quilate. Estes senhores, tão bem servidos pela imprensa internacional, deveriam ser cordiais conosco, jornalistas: morrer preferentemente de manhã. Em função do fuso horário, o ônus da angústia noturna do jornalista de plantão recairia sobre nossos colegas orientais. Problema deles.

Era fim de noite, eu havia lido os jornais do dia, o telex ronronava tranqüilo. Para espantar o tédio, comecei a ler classificados. Fui direto às massagistas especiais, setor que me fascina por seus eufemismos. Os jornais do centro do país anunciam diariamente profissionais que oferecem mãos de fada, boca de ouro, seios rijos, cintura fina, pernas torneadas, bumbum arrebitado, olhos verdes e rosto de princesa. Tudo aquilo ao alcance de um telefonema. Como o preço já especificado no próprio anúncio.

Até aí, tudo bem, esse mercado não me é desconhecido. O que me espantou, em todos os jornais, eram os anúncios mais caros, os das belingues. Se é caro deve ser bom, pensei, mas mesmo depois de velho não tinha a mínima idéia do que eram belingues.

Enfim, nada como uma sopa de cebola após um plantão de fim de noite. O planeta bocejava de tédio, eu de sono. Lá pela uma da matina, dei por finda minha missão de vigia noturno dos sobressaltos da história e fui ao Eldorado, bar tradicional da madrugada paulistana, em um hotel da São Luís. O Eldorado sempre me transporta aos cafés europeus. Só me sinto em casa quando ouço várias línguas a meu redor, e lá estava eu, longe desta sofrida São Paulo, tão violentada pela cruel Erundina. Estava, de repente, no Primeiro Mundo.

Em meio a viajantes de todos os quadrantes, uma bela mostragem de mulheres lindas e disponíveis. Claro que toda mulher linda na madrugada, sorrindo pra gente, tem seu preço. Ou então a lógica desembarcou do planeta. Na mesa ao lado, três deusas me exibiam os dentes. Eu estava cansado, sem falar que cheguei àquela idade intolerante, na qual levar um bom livro para a cama me dá mais prazer do que muita mulher. Que mais não seja, um bom autor não diz bobagens. Enfim, aqueles dentes que pediam para serem secados ao relento acabaram despertando em mim o eterno sátiro. Convidei as moças à minha mesa.

Apresentações rápidas e vamos ao que interessa: quanto é que é? Claro que em tais ambientes não se fala em cruzeiros. Portanto, 200 dólares. Em um primeiro momento, não me pareceu caro. Três mulheres maduras, como gosto, e insinuando um sofisticado knowhow, não é toda madrugada que encontramos por esse preço. Se bem que, após uma jornada tensa de trabalho, corpo exausto, levar aquele trio para casa, mais que uma temeridade seria um desperdício. Estou morto, aleguei. Nós te ressuscitamos, revidaram as deusas.

Sei lá por que, lembrei do Cristo. Se ele sozinho havia ressuscitado Lázaro, bem que uma me bastava. E dispensei duas, sempre pensando com meus botões: é meu tudo que está ao alcance de minha mão. Nada como um dia depois do outro. Havia um congresso de médicos-residentes naquela semana em São Paulo, e minhas deidades preteridas se espalharam pelo bar, com a nobre intenção de tratar bem destes profissionais que tão mal nos tratam.

Já antecipava mentalmente o que estaria acontecendo dali a pouco, quando me ocorreu um senão: eu não tinha dólares. Envergonhado, voltando de repente ao Terceiro Mundo, perguntei timidamente à minha eleita se se dignaria aceitar moeda vil. Tudo bem, disse a moça, a gente faz pela cotação do dia. Foi justo naquela data em que o dólar parou nos 500 collorcruzeiros, o que me facilitou as contas. Setenta por quinhentos dá 35 mil, pensei. Vale!

Devo ter pensado em voz alta, pois aqueles dentes lindos desapareceram de repente de meu raio visual. Como setenta? — perguntou a moça. Claro, meu anjo. Duzentos dólares por três dá dízima periódica. Como não gosto de discutir centavos, arredondei por alto, setenta. Que fiasco, leitor! Era duzentos por cabeça.

Otimista como sou, pareceu-me que nem tudo estava perdido. A aura de encantamento que emanava das três meninas havia feito esquecer meu propósito original, uma casta sopa de cebola. E continuava com fome. Por 200 dólares, imaginei que seria recebido com um faisão trufado, escargots de entrada e talvez profiterolles de sobremesa. Depois então, mas só depois... Puro devaneio. Duzentos era a prestação devida exclusivamente a seus serviços profissionais. Fora táxi e eventualmente motel.

Há determinados ramos do comércio nos quais não cabe pechinchar. Como dizia Walter Benjamin, prostitutas são como livros, podemos levar quantas e quando quisermos para a cama. Naquela altura, já interiormente decidido a mergulhar na madrugada em algum capítulo do Quixote, me permiti tecer algumas considerações sobre o momento crítico que vive a nação. Nada de regateio, apenas o prazer de teorizar.

As moças aproveitavam o congresso de médicos para arredondar a receita de fim de mês. Ora, neste país em que médico em começo de carreira ganha por hora menos que encanador ou azulejista, médico-residente anda matando cachorro a gritos. Por sofisticadas que fossem as três, a meu ver nada entendiam de marketing. Fossem girar bolsinhas em um congresso de metalúrgicos do ABC, ou de estivadores de Santos, teriam cientificamente maiores possibilidades de ganho.

Ela concordou comigo. Mas pedia que eu ponderasse suas razões. Não era exatamente uma dessas meninas que fazem amor baratinho, com um olho no relógio para bem organizar o faturamento do dia. Nós — insistiu — não somos profissionais fulltime. Nós gostamos de unir o prazer ao dinheiro. Podes me imaginar na cama de um estivador, por mais dólares que me paguem?

De fato, não conseguia. No fundo, tinha de concordar com ela. Claro que ela merecia 200 dólares. Mas, argumentei, por quatro noites contigo eu pago um vôo Buenos Aires-Moscou-Buenos Aires. Lá, sobre a tumba do finado comunismo, pelo menos enquanto os sórdidos hábitos capitalistas não contaminarem as ex-camaradas, posso ouvir eslavas uivando na língua de Dostoievski, por uma calcinha rendada ou um secador de cabelos.

Pode ser, admitiu a moça, confessando que não conhecia Moscou. Mas alegou que precisava valorizar-se. Sem falar que era belingue.

Senti um frio no estômago ao ver meus duzentos dólares batendo asinhas. Essas eu não conhecia. E tinha uma a meu lado, pronta para o consumo, bastava apenas aceitar seu preço. Nunca é tarde para aprender coisas novas, pensei. Já me dispunha a levantar a moça, quando me ocorreu perguntar: mas belingue, como é que é mesmo? Ela se espantou com minha incultura. “Jura que não sabe, amor?”

Não sabia mesmo. Vagamente me ocorria uma mulher com duas línguas. Ela sorriu divertida: “ora, querido, sabes muito bem que isso não existe. Nós, belingues, falamos também inglês”.

Foi a minha vez de sorrir. Vai ver ela queria dizer bilingüe. E já não tinha mais sopa de cebola no Eldorado. Pedi uma salada niçoise a quatro dólares, economizei 196. Mais quatro noites sem minhas belingues, estou em Moscou. Compro uma bijuterias dos camelôs que a cruel Erundina instalou no Brás, e seja lá o que Deus quiser!

Porto Alegre, RS, 05.10.91


 

 

OS CRAVOS MURCHOS DO 25 DE ABRIL

 

“Este opúsculo trata exclusivamente da defesa e justificação da Ditadura Militar em Portugal, e do que, em conformidade com essa defesa, chamamos as Doutrinas do Interregno. As razões, que n’ele se presentam, nem se aplicam às ditaduras em geral, nem são transferíveis para qualquer outra ditadura, senão na proporção em que incidentalmente o sejam. Tampouco se inclui nele, explícita ou implicitamente, qualquer defesa dos atos particulares da Ditadura Militar presente. Nem, se amanhã, esta Ditadura Militar cair, cairão com ela estes argumentos. Não haverá senão que reconstruí-la, que estabelecer de novo o Estado de Interregno: não há outro caminho para a salvação e renascimento do País senão a Ditadura Militar, seja esta ou seja outra."

 

São Paulo — Esta afirmação, que poderia parecer manifesto dos militares que lideraram há duas décadas a chamada Revolução dos Cravos em Portugal, em verdade é mais antiga. Data de 1928 e é parte introdutória de um extenso opúsculo intitulado Idéias Políticas em geral aplicadas ao caso português, assinado por — pasme o leitor! — Fernando Pessoa. Quatro anos depois, Antonio de Oliveira Salazar assumiria o poder, instalando um regime ditatorial que durou 46 anos.

Pessoa morreu em 1935 e foi abominado pelas esquerdas por esta afirmação. Com o golpe militar de 1974 em Portugal, passou a ser visto com simpatia pelos que antes o abominavam. Afinal, os capitães e majores que haviam tomado o poder fechavam com Moscou, onde reinava a doutrina expansionista do brejnevismo, versão hodierna da ambição tzarista de um império com acesso a águas quentes. Portugal passou a ter um primeiro-ministro, o então coronel Vasco Gonçalves, que se submetia às decisões do Partido Comunista Português, o mais stalinista dos PCs europeus.

Estive em Portugal em 1975, no auge do entusiasmo “revolucionário”. Bancos e empresas de seguro haviam sido estatizadas, como também a imprensa, a siderurgia, indústria petroquímica e até mesmo as cervejarias e fábricas de cigarros. A ala comunista brasileira derrotada em 1964 e 1968, refugiada no Chile de Allende e de lá expulsa em 1973, apostava agora suas fichas em Portugal. No mundo da imprensa lisboeta algo havia mudado. Sugeri a um editor um de meus livros.

— Só se for P & P — me respondeu o gajo.

Fiquei perplexo. Que seria P & P?

— Política e putaria. É só o que se vende hoje em Portugal.

Nos meios mais intelectualizados, não importava se um escritor escrevia bem ou mal. O que dava valor à sua obra era o fato de ter ou não estado preso sob o regime anterior. Nos jornais, não interessava se o redator tinha bom texto ou espírito analítico. Pesava mais o fato de ter sido ou não militante. Não mais se informava, a pretensão era formar. O pior que poderia ter acontecido à imprensa portuguesa aconteceu: o fim da censura. Antes, os jornais não valiam nada, mas se jogava a responsabilidade na censura. Com a “Revolução dos Cravos” a situação continuou a mesma, sem que existisse a desculpa da censura.

Na sedizente revolução, os acusadores não sabiam como acusar os prisioneiros políticos em Portugal. As prisões eram sacos de gatos, onde se juntavam os PIDEs, (informantes da polícia política do regime salazarista) aos defensores de Marcelo Caetano, derrubado no 25 de abril. A estes, foram fazer companhia os “conspiradores” do 28 de novembro, quando Spinola foi destituído da presidência da República. Sem falar nos “conspiradores” do 11 de março, tentativa de golpe anti-esquerdista e fuga de Spinola. Depois foram jogados no mesmo e eclético saco os “conspiradores” do 25 de novembro, tentativa de golpe esquerdista.

Apóstolos comunistas se deslocaram ao sul pobre de Portugal para pregar a nova idéia. Os camponeses, desconfiados como todo camponês, lhes pediam que mostrassem as mãos. “Não têm calos?” Não tinham. Os algarvianos os mandavam então de volta à Lisboa. Mão sem calos é mão de quem não trabalha. Boa pergunta a ser feita hoje à guerrilha coordenada pela Igreja Católica no Brasil, disfarçada sob o eufemismo de Movimento dos Sem-terra.

Salazar, em sua luta contra a vontade expansiva de Moscou, se por um lado conteve o avanço dos partidários de Álvaro Cunhal — o mais stalinista dos dirigentes comunistas europeus — pelo outro não conseguiu tirar Portugal do barro. Mas se o país não atingiu um nível maior de desenvolvimento sob o salazarismo, pior estaria com Cunhal. Nos anos 70, o PC português procurava evitar que seus membros fossem à União Soviética, já que comparação dos níveis de vida de Portugal e países comunistas seria nefasta para a militância.

No país vizinho, Francisco Franco, o mais caluniado estadista da história contemporânea, conteve o avanço russo e salvou a Espanha do obscurantismo. Com Franco, apesar das restrições aos direitos democráticos — que nem de perto poderiam na época se comparar às restrições existentes nos países comunistas — a Espanha sai de uma economia agrária e entra em uma fase de industrialização. Escapa da Idade Média que empobreceu os países do Leste.

A península ibérica, por sua posição geográfica, sempre esteve presente nos sonhos expansionistas do Kremlin. Em 1936, Stalin tentou tomá-la. Conquistada a Espanha, Portugal cairia na semana seguinte.. Ou vice-versa. Dominada a península, os russos teriam acesso ao mar do Norte, controle do estreito de Gibraltar e, conseqüentemente, do Mediterrâneo e da costa atlântica européia. Daí para derrubar toda a Europa ocidental, bastaria um piparote. Salazar, digam o que quiserem os esquerdistas, foi uma retaguarda anti-Rússia escudada por Franco.

Quando Álvaro Cunhal estava no cárcere, a ponte sobre o Tejo chamava-se Oliveira Salazar. A esperança dos bolcheviques ocidentais era Otelo Saraiva de Carvalho, o poderoso comandante do Copcon e da Região Militar de Lisboa, ligado ao grupo terrorista 25 de Abril, de inspiração maoísta. Em 1974, Cunhal foi promovido de criminoso a herói e a ponte passou a chamar-se 25 de Abril. Panta rei, dizia Heráclito. Tudo flui. Ninguém se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio. Otelo Saraiva foi para o cárcere — de onde saíra Cunhal — e a ponte sobre o Tejo passou a chamar-se ponte sobre o Tejo.

As revoluções — costuma dizer Ernesto Sábato — começam com R maiúsculo, passam a ser grafadas com r minúsculo e terminam entre aspas. A celebração afetuosa da imprensa brasileira à “Revolução dos Cravos” não passa de vendeta de uma intelectuália tupiniquim que ainda não entendeu que Marx, finalmente, bateu as botas. Não houve, em Portugal, o que se poderia chamar de revolução. O salazarismo caiu de podre, como mais dia menos dia cairá o regime de Fidel Castro. Se Portugal hoje está deixando de ser o primo pobre da Europa, não é pela vontade dos militares de abril, mas pelo bom senso inerente a qualquer padeiro da esquina.

Porto Alegre, Zero Hora, 30.04.94


 

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