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CRISÁLIDAS

Machado de Assis


 

 

Crisálidas (1864)
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)
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ÍNDICE

Nota do Editor

Nota Informativa
O Autor

O POETA E O LIVRO
Conversação Preliminar
Musa Consolatrix
Stella
Lúcia
O Dilúvio
Visio

A Caridade
A Jovem Cativa
No Limiar
Quinze Anos
Sinhá
Erro
Ludovina Moutinho
Elegia
Aspiração
Embirração
Cleópatra
Os Arlequins
Epitáfio do México
Polônia
As Ondinas
Maria Duplessis
Horas Vivas
As Rosas
Os Dois Horizontes
Monte Alverne
As Ventoinhas
Alpujarra
Versos a Corina
I
II
III
IV
As Brisas
A Luz
As Águas
As Selvas
O Poeta
V
VI
Última Folha

Posfácio
Notas do Autor
Notas da Fonte Digital


 

NOTA DO EDITOR

Da RocketEdition de 2000

 

Ao fazer a versão desta tão bem cuidada fonte digital, enfrentamos alguns desafios, que esperamos ter vencido, para benefício do leitor.

Poesias e outros textos que requerem uma diagramação específica exigem de quem as verte para RocketEdition a busca de soluções inovadoras, para que o leitor final tenha, pelo menos, a mesma experiência que teria ao ler o texto em "árvores mortas".

Infelizmente, isso nem sempre é possível, ainda.

Se de um lado o leitor tem a vantagem de poder utilizar qualquer tamanho de letra, isso é uma desvantagem no que diz respeito à manutenção da diagramação original.

Tentamos manter a diagramação original do código fonte em rtf, mas, para conferir o resultado, o leitor deverá utilizar verdana, 10 pt (no eRocket corresponde ao tamanho pequeno, nesta data; no Rocket eBook, ao tamanho pequeno, na fonte padrão), e fazer a leitura com o programa ou o Reader na posição horizontal.

Qualquer mudança de fonte, tamanho de fonte ou direção de leitura comprometerá a diagramação original.

As Notas, que no arquivo rtf podem ser lidas sincronizadas com o texto, foram numeradas na conversão para RocketEdition.

Boa Leitura.


 

CRISÁLIDAS

Machado de Assis

NOTA INFORMATIVA

O primeiro livro de poesia de Machado de Assis foi dado lume em 1864, como indicado na página inicial, mais precisamente do dia 1º de setembro, como está escrito no final. Esta é, salvo engano, a segunda redação pública de Crisálidas, guardando fidelidade com o texto original e mantendo a versão integral, sem qualquer tipo de interferência senão a da modernização da língua, em especial a ortografia.

Na edição de suas Poesias Completas (1900), aquela que se tornou raridade em razão da troca fatídica da vogal pretônica da forma verbal cegara, que levou nosso poeta ao desespero, o autor de Dom Casmurro expurgou uma quantidade significativa de poemas, certamente por escrúpulos ou pudor, ou ambos, e alterou a redação de outros poemas que selecionou, abrindo com isso a possibilidade de variantes ao texto.

De qualquer modo, após mais de um século, a vontade autoral já não se justifica, porque o tímido poeta de Crisálidas é, hoje, sem favor, o maior nome de nossa literatura.

É possível que o extraordinário romancista tenha inibido o poeta, o que redunda em tema interessante para pesquisadores, e que possivelmente levou a autocensurar-se.

A segunda redação pública do presente texto foi obtida a partir da princeps e não dos manuscritos, que se perderam; por conseguinte, cuidou-se de manter a fidedignidade do texto original. Como não se trata de uma edição crítica – não se procedeu às técnicas recomendáveis nestes casos – buscaram-se alguns critérios básicos que atribuem credibilidade ao trabalho ora publicado, na medida em que seguiu rigorosamente a lição do texto.

Assim, mantiveram-se o prefácio e o posfácio, já que eles estabelecem um diálogo esclarecedor, no que tange ao juízo que Machado de Assis fazia de seus poemas e de seu círculo de amigos.

A errata e as notas do autor foram mantidas rigorosamente conforme o texto original, no fim do documento; as notas ao pé da página são de autoria do organizador da presente edição e se reportam a pequenas discrepâncias observadas quando da atualização para o português moderno ou curiosidades, e pequenos erros que enriquecem a leitura, além, de reproduzirem, fielmente, a errata redigida pelo próprio Machado de Assis.

A transcrição buscou ser cuidadosa, sobretudo respeitando os esquemas métricos e rítmicos do autor, permanecendo inalterada a pontuação utilizada por ele. Os nomes próprios foram mudados para forma moderna, sempre seguindo a tradição da língua portuguesa. Os nomes estrangeiros permaneceram inalterados.

Os grifos foram respeitados conforme o texto original.

Também conservou-se a maneira como Machado de Assis distribuiu as epígrafes e os títulos dos poemas, bem como a distribuição dos versos nas páginas.
     É auspicioso que se publique o texto completo de Crisálidas para que se possa acompanhar a evolução de um criador que veio a se revelar um dos expoentes da literatura mundial. Por meio de variantes que merecem, certamente, um estudo qualificado, poder-se-á ampliar o perfil do poeta Machado de Assis, ainda pouco estudado.

Carlos Sepúlveda


 

O Autor

JOAQUIM MARIA
MACHADO DE ASSIS

NOTA BIOGRÁFICA

JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e faleceu, nesta mesma cidade, em 29 de agosto de 1908.

Mestiço, de origem humilde – filho de um pintor de paredes e de uma imigrante açoriana, autodidata, sofrendo as inevitáveis restrições de sua descendência social, Machado de Assis, tendo perdido cedo sua genitora, foi criado por uma madrasta, que o cuidou com carinho. A despeito de tudo, Machado atingiu todas as glórias das letras nacionais.

Sua produção abrange a poesia, o conto, o ensaio, o teatro, o publicismo, a crônica. Foi no romance, principalmente nos cinco textos escritos após 1881, que ele atingiu os maiores níveis de criatividade e elaboração formal.

É o autor brasileiro de mais vasta fortuna crítica, não apenas entre os críticos nacionais, mas também entre os estrangeiros que o consideram um caso raro de artista e intelectual. As várias exegeses de sua obra revelam sua genialidade e apontam para o moralista – irônico e refinado – e o humorista, no sentido inglês do termo, com extraordinária agudeza de espírito.

Ao longo de sua vida, lutou contra as dificuldades de sua saúde precária e contra os preconceitos sociais. Por cultivar uma personalidade amena, cativante, sempre avesso às controvérsias banais, preferindo decifrar a condição humana com sua literatura inigualável, ficou conhecido como o bruxo do Cosme Velho, bairro do Rio de Janeiro onde morou desde a década de 1870 até sua morte.


 

O POETA E O LIVRO

Conversação preliminar

I

Há dez anos!... sim... dez anos!...

Como resvala o tempo sobre a face da terra?...

...............................................

Éramos sempre cinco, – alguma vez sete:

O mavioso rouxinol das Primaveras.

O melífluo cantor das Esperanças.

O inspirado autor das Tentativas.

O obscuro escritor destas verdades.

O quinto era um menino... uma verdadeira criança: não tinha nome, e posto que hoje todos lho conheçam, não me convém a mim dizê-lo neste lugar, e tão cedo.

II

Pago o quotidiano tributo à existência material; satisfeitos os deveres de cada profissão, a palestra literária nos reunia na faceira e tranqüila salinha do meu escritório...

Ali, – horas inteiras, – alheios às lutas do mundo, conchegados nos lugares e nas afeições, levitas do mesmo culto, filhos dos mesmos pais – a pobreza e o trabalho, – em derredor do altar do nosso templo – a mesa do estudo... falávamos de Deus, de amor, de sonhos; conversávamos música, pintura, poesia!...

Ali depúnhamos o fruto das lucubrações1 da véspera, e na singela festa das nossas crenças, novas inspirações bebíamos para os trabalhos do seguinte dia. Era um contínuo deslizar de ameníssimos momentos; era um suave fugir das murmurações dos profanos; era enfim um dulcíssimo viver nas regiões da fantasia!... E foi esse o berço das Primaveras, das Tentativas, das Crisálidas e das Efêmeras, e foi dali que irradiaram os nomes de Casimiro de Abreu, de Macedinho, de Gonçalves Braga, e com esplêndido fulgor o de Machado de Assis!

A morte e o tempo derribaram o altar, e dispersaram os levitas. Do templo só resta o chão em que se ergueu; e dos amigos só ficaram dois... dois para guardar, como Vestais severas, o fogo sagrado das tradições daqueles dias, e para resumir no profundo afeto que os liga, o laço que tão fortemente estreitava os cinco.

E no instante em que este livro chegar às mãos do primeiro leitor, as campas deles, – diz-mo o coração, – se entreabrirão para receber o saudoso suspiro dos irmãos, e um raio simpático da auréola do poeta!

III

Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos. Denunciávamos as novidades: zurzíamos as profanações: confundíamos nossas lições: – segredávamos nossos amores!

O quinto, – o menino, – depunha, como todos nós, sua respectiva oferenda. Balbuciando apenas a literatura, – ainda novo para os seus mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava ousadia; antes sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição de louros. Era vivo, era trêfego2, era trabalhador.

Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da imaginação; na constância das produções a avidez do saber, e combinando no meu espírito estas observações com a naturalidade, o colorido e a luz de conhecimentos literários que ele, – sem querer sem dúvida, – derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia, dediquei-me a estudá-lo de perto, e convenci-me, em pouco tempo, de que largos destinos lhe prometia a musa da poesia... E por isso quando, lida alguma composição do nosso jovem companheiro, diziam os outros: bons versos! mas simplesmente – bons versos, – eu nunca deixava de acrescentar, cheio do que afirmava: – belo prenúncio de um grande poeta!

IV

Correram os anos... e como se a seiva dos ramos perdidos se houvesse concentrado no renovo que ficara, o renovo cresceu, cresceu e vigorou! A profecia se foi todos os dias realizando de um modo brilhante.

Hoje a criança é homem; – o aprendiz jornalista e poeta.

Não me enganara... Adivinhei-o! E se alguém descobrir em mim vaidade quando me atribuo positivamente o privilégio e a autoridade desta profecia, declaro desde já que a não declino, que a quero para mim, que a não cedo a ninguém, porque... porque dela me prezo, porque dela me orgulho, porque o profetizado é Machado de Assis, – o bardo de Corina, – o poeta das Crisálidas!

V

Até aqui o amigo: agora, leitor! o crítico.

Eu disse: – o poeta das Crisálidas.

Poeta é o autor: Crisálidas é o livro.

Crisálidas e poeta... dois lindos nomes... dois nomes sonoros... mas um deles falso!

Como serpe entre rosas, – no meio de tanta consonância deslizou-se uma contradição.

Crisálida é ninfa, é princípio de transformação, aurora de existência, semente de formosura... e os versos de Machado de Assis são gemas cintilantes, vida espalmada, flores e sorrisos. Na mortalha informe e incolor do casulo a graça está em problema, o movimento em risco: os versos de Machado de Assis só guardaram de ninfa a beleza e o dom da aeredade!3 São fulgidas borboletas que adejam sobre todas as flores da alma, revelando a quem as contempla a perfeição da criatura e o gênio do criador. Não são, pois, crisálidas; se o fossem não seria o autor poeta, e Machado de Assis, leitor, é poeta!

Fala-vos o coração de quem vo-lo diz? Não: protesta unicamente a consciência, e juro-o por minha fé de homem de letras!

VI

A que escola pertence o autor deste livro?

À mística de Lamartine, à cética de Byron, à filosófica de Hugo, à sensualista de Ovídio, à patriótica de Mickiewicz, à americana de Gonçalves Dias? A nenhuma.

Qual o sistema métrico que adotou? Nenhum.

Qual a musa que lhe preside as criações?... A mitológica de Homero, a mista de Camões, a católica do Dante, a libertina de Parny? Nenhuma.

A escola de Machado de Assis é o sentimento; – seu sistema a inspiração: sua musa a liberdade. Tríplice liberdade: liberdade na concepção; liberdade na forma; liberdade na roupagem. Tríplice vantagem: – originalidade, naturalidade, variedade!

Sua alma é um cadinho onde se apuram eflúvios derramados pela natureza. Produz versos como a harpa eólia produzia sons: – canta e suspira como a garganta do vale em noites de verão; pinta e descreve, como a face espelhada da lagoa o Céu dos nossos sertões. E não lhe pergunteis porque: não saberia responder-vos. Se insistísseis... parodiar-vos-ia a epígrafe da sua – Sinhá! –, o versículo do Cântico dos Cânticos, e no tom da maior ingenuidade, dir-vos-ia: – a minha poesia... é como o óleo derramado!

E com razão... por que Machado de Assis é a lira, a natureza o plectro. E da ânfora de sua alma ele mesmo ignora quando transbordam as gotas perfumadas!

VII

Eis aqui, pois, como Machado de Assis é poeta.

Um Deus benigno, – o mesmo que lhe deu por pátria este solo sem igual, – deu-lhe também o condão de refletir a pomposa natureza que o rodeia. Fez mais... mediu por ela esse condão.

Se tivera nascido à sombra do pólo, entre os gelos do norte, seus cânticos pálidos e frios traduziriam em silvos os êxtases do poeta; – mas filho deste novo Éden, cercado de infinitas maravilhas, as notas que ele desprende são afinadas pelas grandiosas harmonias que proclamam.

É assim duas vezes instrumento... e nesta doce correspondência entre a criatura e o criador, a Musa ales, o sagrado mensageiro que une a terra e o Céu é... a inspiração!.. É ela que ferve, e derrama da ânfora o óleo perfumado. É ela que marca o compasso a ritmo, e a escola ao trovador. É ela que lhe diz: canta, chora, ama, sorri... É ela enfim que lhe segreda o tema da canção, e caprichosa, ora chama-se luz, mel, aroma, graça, virtude, formosura, ora se chama Stella, Visão, Erro, Sinhá, Corina!

VIII

Livres, sentidos, inspirados, os versos do autor das Crisálidas são e devem ser eloqüentes, harmoniosos e exatos. São – porque ninguém se negará a dizê-lo lendo-os. Devem ser – porque o sentimento e a inspiração constituem a verdadeira fonte de toda a eloqüência e de toda a harmonia no mundo moral, e porque a exatidão é o mais legítimo fruto do consórcio destas duas condições.

É um erro atribuir exclusivamente à arte a boa medição do verso. É erro igual ao do que recusa ao ignorante de música, ao diletante, a possibilidade de cantar com justeza e expressão. Um verso mal medido é um verso dissonante; é um verso que destaca dentre seus companheiros como a nota desafinada ressalta da torrente de uma escala. Num e noutro caso a inteligência atilada pelo gosto, e o ouvido apurado pela lição – arrancam sem socorro da arte o joio que nascera no meio do trigo, e embora a ela recorram para a perfeição da nova planta, nem por isso deixa esta de passar-lhe pela joeira.

IX

Para o poeta de sentimento a inspiração brota das belezas da natureza, como se elevam os vapores da superfície da terra; mais do vale do que da montanha; mais daqui do que dali. A natureza também tem altos e baixos para inspiração. O crepúsculo, e mesmo o dilúculo, é mais inspirativo que a luz meridiana: – o majestoso silêncio da floresta mais do que o frenético bulício da cidade: – o vagido mais do que as cãs.

A poesia que traduz a inspiração, e o verso que fotografa a poesia devem portanto ressentir-se destas diferenças. Por isso não há livro de bom poeta que não comprove esta verdade. Não é o talento que afrouxa ou dorme como Homero: é a inspiração que varia. Nas menos inspiradas subsiste ainda o engenho, e o engenho é muito.

No livro que vamos folhear, talvez julgueis comigo que poucas composições se aproximam da altura em que o poeta colocou a Visio e os alexandrinos a Corina. Como não havia de ser assim? Machado de Assis refletiu a natureza, e a natureza só criou uma Corina!

X

Entre a poesia-arte e a poesia-sentimento,– dá-se, sobre muitas, uma grande diferença: – a erudição.

Como o arrebique que, ocultando os vestígios do tempo revela na face remoçada o poder do artista, mas nunca a mocidade, – a erudição derrama sobre os cantos da lira um verdadeiro fluido galvanizado. A clâmide romana em que se envolve o poeta lhe dissimula – o vácuo do coração, e o coturno grego, que por suado esforço conseguiu calçar, lhe tolhe, apesar de elegante e rico, a naturalidade dos movimentos.

Com demasia de vestidos não é possível correr bem... e a poesia deve correr, correr naturalmente como a infância, como o arroio, como a brisa, e até mesmo como o tufão e como a lava!

O luxo exagerado da roupagem denotava ante a sabedoria antiga – leviandade de juízo: ante a crítica moderna ainda denota na poesia penúria de fantasia. A simplicidade dos modelos Gregos e Hebraicos, que nos legou a literatura dos primeiros tempos desde então proscreveu para o bom gosto, a pretensiosa lição dos pórticos. A facúndia acadêmica sempre emudeceu e atemorizou as almas ingênuas, e nas doces expansões destas, e não nas doutas preleções daquela, colhe a poesia os seus melhores tesouros, e os seus mais caros triunfos.

No gênero de poesia das Crisálidas, (único sem dúvida de que falo aqui,) é tão evidente esta verdade, tão clara a primazia conferida pelo gosto literário ao improviso sobre a arte, ao sentimento sobre a erudição que basta recordar quais os nomes dos poetas brasileiros ou lusos, que, no meio de tantas e tão variadas publicações, se tornaram e permanecem exclusivamente populares. E para que não vos falte, leitor, um exemplo de notória atualidade comparai Tomás Ribeiro a Teófilo Braga, e dizei-me – se o brilhante talento do segundo poderá jamais disputar a palma da poesia à divina singeleza do primeiro.

Machado de Assis é o nosso Tomás Ribeiro, mais inspirado, talvez, e mais ardente4; e como além de poeta é jornalista guarda a erudição para o jornal... digo mal: não guarda... O cantor de Corina quando escreve versos não levanta a pena do papel, e por isso a história nunca depara lugar entre o bico5 de uma e a superfície do outro.

XI

Seja, porém, qual for vossa opinião sobre tudo quanto acabo de conversar convosco: seja qual for vosso juízo sobre o modo porque recomendei o livro e o autor, negai-me embora vosso assentimento, mas concedei-me dois únicos direitos. O primeiro é o de fazer-vos crer que estas páginas não são mais do que a dupla e sincera manifestação dos sentimentos do amigo e do crítico. O segundo é o de asseverar-vos, ainda uma vez, que o livro que ides percorrer é flor mimosa de nossa literatura e que o poeta há de ser, – sem dúvida alguma, – uma das glórias literárias deste grande Império.

Na esplêndida cruzada do futuro, são as Crisálidas o seu primeiro feito d’armas. Como Bayard a Franciso I, a Musa da Poesia armou-o cavalheiro depois de uma vitória!

Corte em 22 de julho de 1864
DR. CAETANO FILGUEIRAS


 

MUSA CONSOLATRIX
(1864)

Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,

          Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.

          Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
          Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
          Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
          À enchente das angústias;
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.

          Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
          Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
          Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, – e terá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!


 

STELLA
(1862)

Ouvre ton aile et pars...
Th. Gauthier

Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.

Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.

À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.

Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.

Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?

Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.

Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera
Em lágrimas a pares,

Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,

De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.

A virgem da manhã
Já todo o céu domina...
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.


 

LÚCIA
(Alf. de Musset – 1860)

Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
          Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite, entre-fechada,
          A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
          E tínhamos quinze anos!

          Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!

Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento – na minha alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dois signos de paz e de ventura:
          Mocidade da fronte
          E primavera da alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
          E murmurou um canto.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Filha da dor, ó lânguida harmonia!
Língua que o gênio para amor criara –
E que, herdada do céu, nos deu a Itália!
Língua do coração – onde alva idéia,
– Virgem medrosa da mais leve sombra, –
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!

Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça...
Pobre criança! – no teu seio acaso
Desdêmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dor ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.

Doces mistérios do singelo teto
          Onde a inocência habita;
Cantos, sonhos de amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencível,
Que à porta já de Margarida, – o Fausto
          Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos,
          Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará sob os teus dedos!


 

O DILÚVIO 1 (1863)

E caiu a chuva sobre a terra
quarenta dias e quarenta noites.

Genesis: 7, 12

Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se um mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!

Só, como a idéia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além...
Lá vai! Em torno angústias,
Clamores e lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço: o vínculo
Da nova criação.

Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Voltando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.


 

VISIO
(1864)

Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam...
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam...

Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...

Depois... depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza –
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra – calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não vê se a imagem presente
Foi a visão do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes;
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!


 


(1863)

Mueve-me6 enfin tu amor de tal manera
Que aunque no hubiera cielo yo te amara.

SANTA THEREZA DE JESUS

          As orações dos homens
Subam eternamente aos teus ouvidos;
Eternamente aos teus ouvidos soem
          Os cânticos da terra.

          No turvo mar da vida,
Onde aos parcéis do crime a alma naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
          Senhor, tua palavra.

          A melhor segurança
Da nossa íntima paz, Senhor, é esta;
Esta a luz que há de abrir à estância eterna
          O fulgido caminho.

          Ah! feliz o que pode,
No extremo adeus às cousas deste mundo,
Quando a alma, despida de vaidade,
          Vê quanto vale a terra;

          Quando das glórias frias
Que o tempo dá e o mesmo tempo some,
Despida já, – os olhos moribundos
          Volta às eternas glórias;

          Feliz o que nos lábios,
No coração, na mente põe teu nome,
E só por ele cuida entrar cantando
          No seio do infinito.


 

A CARIDADE
(1861)

Ela tinha7 no rosto uma expressão tão calma
Como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça dos céus8,
Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe a ondear
Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.

Levava pela mão duas gentis crianças.

Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.
Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto
Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada
A infância lacrimosa, a infância desvalida,
Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.

E tu, ó Caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos – só teus – o pranto lhes secaste
Dando-lhes leito e pão, guarida e amor9.


 

A JOVEM CATIVA2
(André Chenier - 1861)

— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer não quero ainda!

De olhos secos o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?

Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.

Deve acaso morrer ? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.

Desta bela jornada é longe o termo.
Mal começo; e dos olmos do caminho
Passei apenas os primeiros olmos.
No festim em começo da existência
Um só instante os lábios meus tocaram
A taça em minhas mãos ainda cheia.

Na primavera estou, quero a colheita
Ver ainda, e bem como o rei dos astros,
De sazão em sazão findar meu ano.
Viçosa, sobre a haste, honra das flores,
Hei visto apenas da manhã serena
Romper a luz, – quero acabar meu dia.

Morte, tu podes esperar; afasta-te!
Vai consolar os que a vergonha, o medo,
O desespero pálido devora.
Pales inda me guarda um verde abrigo,
Ósculos o amor, as musas harmonias;
Afasta-te, morrer não quero ainda!" –

Assim, triste e cativa, a minha lira
Despertou escutando a voz magoada
De uma jovem cativa; e sacudindo
O peso de meus dias langorosos,
Acomodei à branda lei do verso
Os acentos da linda e ingênua boca.

Sócios meus de meu cárcere, estes cantos
Farão a quem os ler buscar solícito
Quem a cativa foi; ria-lhe a graça
Na ingênua fronte, nas palavras meigas;
De um termo à vida, há de tremer, como ela,
Quem aos seus dias for casar seus dias.


 

NO LIMIAR
(1863)

Caía a tarde. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia
De tronco seco e de folhagem morta,

Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia;

— “Que fizeste? Teu gesto insinuante
Que lhe ensinou ? Que fé lhe entrou no peito
Ao mago som da tua voz amante? 10

“Quando lhe ia o temporal desfeito
De que raio de sol o mantiveste?
E de que flores lhe forraste o leito?"–

Ela, volvendo o olhar brando e celeste,
Disse: — “Varre-lhe a alma desolada,
Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!

“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,
Uma vida de dor e de miséria,
Uma morte contínua e angustiada.

“Essa é a tua missão torva e funérea.
Eu procurei no lar do infortunado
Dos meus olhos verter-lhe a luz etérea.

“Busquei fazer-lhe um leito semeado
De rosas festivais, onde tivesse
Um sono sem tortura nem cuidado.

“E porque o céu que mais se lhe enegrece,
Tivesse algum reflexo de ventura
Onde o cansado olhar espairecesse,

“Uma réstia de luz suave e pura
Fiz-lhe descer à erma fantasia,
De mel ungi-lhe o cálix11 da amargura.

“Foi tudo vão, – foi tudo vã porfia,
A ventura não veio. A tua hora
Chega na hora que termina o dia. 12

“Entra" – E o virgíneo rosto que descora
Nas mãos esconde. Nuvens que correram
Cobrem o céu que o sol já mal colora.

Ambos, com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio. Eram:
Ela a Esperança, Ele o Desengano.


 

QUINZE ANOS13
(1860)

Oh! la fleur de l’Eden, pourquoi l’as-tu fannée,
Insouciant enfant, belle Eve aux blonds cheveux?

ALFRED DE MUSSET

Era uma pobre criança...
– Pobre criança, se o eras! –
Entre as quinze primaveras
De sua vida cansada
Nem uma flor de esperança
Abria a medo. Eram rosas
Que a doida da esperdiçada
Tão festivas, tão formosas,
Desfolhava pelo chão.
– Pobre criança, se o eras! –
Os carinhos mal gozados
Eram por todos comprados,
Que os afetos de sua alma
Havia-os levado à feira,
Onde vendera sem pena
Até a ilusão primeira
Do seu doido coração!

Pouco antes, a candura,
Co’as brancas asas abertas,
Em um berço de ventura
A criança acalentava
Na santa paz do Senhor;
Para acordá-la era cedo,
E a pobre ainda dormia
Naquele mudo segredo
Que só abre o seio um dia
Para dar entrada a amor.

Mas, por teu mal, acordaste!
Junto do berço passou-te
A festiva melodia
Da sedução... e acordou-te!
Colhendo as límpidas asas,
O anjo que te velava
Nas mãos trêmulas e frias
Fechou o rosto... chorava!

Tu, na sede dos amores,
Colheste todas as flores
Que nas orlas do caminho
Foste encontrando ao passar;
Por elas, um só espinho
Não te feriu... vás andando...
Corre, criança, até quando
Fores forçada a parar!

Então, desflorada a alma
De tanta ilusão, perdida
Aquela primeira calma
Do teu sono de pureza;
Esfolhadas, uma a uma,
Essas rosas de beleza
Que se esvaem como a escuma
Que a vaga cospe na praia
E que por si se desfaz;

Então, quando nos teus olhos
Uma lágrima buscares,
E secos, secos de febre,
Uma só não encontrares
Das que em meio das angústias
São um consolo e uma paz;

Então, quando o frio espectro
Do abandono e da penúria
Vier aos teus sofrimentos
Juntar a última injúria:
E que não vires ao lado
Um rosto, um olhar amigo
Daqueles que são agora
Os desvelados contigo;

Criança, verás o engano
E o erro dos sonhos teus;
E dirás, — então já tarde, —
Que por tais gozos não vale
Deixar os braços de Deus.


 

SINHÁ
(Num álbum - 1862)

O teu nome é como o óleo derramado.
SALOMÃO – Cântico dos Cânticos

Nem o perfume que espira
A flor, pela tarde amena,
Nem a nota que suspira
Canto de saudade e pena
Nas brandas cordas da lira;
Nem o murmúrio da veia
Que abriu sulco pelo chão
Entre margens de alva areia,
Onde se mira e recreia
Rosa fechada em botão;

Nem o arrulho enternecido
Das pombas, nem do arvoredo
Esse amoroso arruído
Quando escuta algum segredo
Pela brisa repetido;
Nem esta saudade pura
Do canto do sabiá
Escondido na espessura,
Nada respira doçura
Como o teu nome, Sinhá!


 

ERRO
(1860)

Vous . . . . . . . . . . . . .
Qui des combats du coeur n’aimez que la victoire
Et qui revëz d’amour, comme on rève de glore, 14
L’oeil fier et non voilé des pleurs. . . . . .

GEORGE FARCY

Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Nem foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
Em tua presença vivo,
Nulo se estavas ausente.
E se ora me vês esquivo,
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que, – como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.

Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro...Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...


 

LUDOVINA MOUTINHO

 

ELEGIA15
(1861)

A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada d’entre a gente.

CAMÕES – Elegias

Se, como outrora, nas florestas virgens,
Nos fosse dado — o esquife que te encerra16
Erguer a um galho de árvore frondosa,
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
          Do clarão das estrelas.

Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa a noite, ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho;
À borda do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos;
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
          De virtudes e graças.

Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
          A urna repartiam.

Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem,
          Deixa gozar na terra.

Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura,
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
          Veio fechar seus olhos:
          Enquanto a alma abrindo
As asas rutilantes pelo espaço,
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
          No seio do infinito;
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou, – se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
O recatado asilo, – abrindo o vôo,
          Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares,
Vai buscar noutra parte guarida.

Hoje, do que era ainda a lembrança resta,
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela;
O atento ouvido inda lhe escuta os passos;
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes,
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contato respondiam.

Ah! pesava-lhe este ar da terra impura,
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
          As palmas da virtude.

Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha17 sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra ? Tudo morre;
À sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos,
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
          O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
          Encerra de esperanças.

          Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo: e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude, – eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela, – os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nestes pobres versos
Um penhor de saudade, e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo,
Possas tu ler nas pálidas estrofes
          A tristeza do amigo.


 

ASPIRAÇÃO
                 A F. X. DE NOVAES
(1862)

Qu’aperçois-tu, mon ame 18? Au fond, n’est-ce-pas Dieu?
Tu vais à lui . . . . . . . . . . . . . . .

V DE LAPRADE

Sinto que há na minha alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.

Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus.
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,
Chora a pátria celeste, o foco, o centro, a luz,
Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz
No dia festival do grande livramento;
Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,
O torvo azar, e mais, a torva solidão,

Embaciam-lhe na alma o espelho da ilusão.
O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas
Da verde primavera as flores tão cuidadas;
Rasga, como Jesus, no caminho das dores,
Os lassos pés; o sangue umedece-lhe as flores
Mortas ali, – e a fé, a fé mãe, a fé santa,
Ao vento impuro e mau que as ilusões quebranta,
Na alma que ali se vai muitas vezes vacila...

Oh! feliz o que pode, alma alegre e tranqüila,
A esperança vivaz e as ilusões floridas,
Atravessar cantando as longas avenidas
Que levam do presente ao secreto porvir!
Feliz esse! Esse pode amar, gozar, sentir,
Viver enfim! A vida é o amor, é a paz,
É a doce ilusão e a esperança vivaz;
Não esta do poeta, esta que Deus nos pôs
Nem como inútil fardo, antes como um algoz.

O poeta busca sempre o almejado ideal...
Triste e funesto afã! tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre à estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer-lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,
Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,
Acha-se o nada, o torvo, o impassível algoz!

Onde te escondes, pois, ideal da ventura?
Em que canto da terra, em que funda espessura
Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar ?
Dos homens esquecido, em ermo recatado,
Que voz do coração, que lágrima, que brado
Do sono em que ora estás te virá despertar?

A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?
Jorra ele ainda além deste fundo horizonte
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar?
Que asas nos deste, ó Deus, para transpor o espaço?
Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:
Onde encontrar a mão que o venha desatar?

Creio que só em ti há essa luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta,
Esse alvo, esse termo, esse mago ideal;
Fonte de todo o ser e fonte da verdade,
Nós vamos para ti, e em tua imensidade
É que havemos de ter o repouso final.

É triste quando a vida, erma, como esta, passa;
E quando nos impele o sopro da desgraça
Longe de ti, ó Deus, e distante do amor!
Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:
Sucederá a glória à salutar provança:
O que a terra não deu, dar-nos-á o Senhor!


 

EMBIRRAÇÃO3
(A Machado de Assis)

A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, à luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.

Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida; 19

E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá noutra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;
Fechado em quarto escuro, à noite não tem luz,
E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,
Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;
Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;
Castigo alexandrino, eterna solidão,
Terá lá no desterro, em prêmio da ilusão;
Verá queimar, à noite, as rosas esfolhadas,
Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,
E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,
Verá que versos tais são galhos, não dão flores;
Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,
A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,

Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...
Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranqüila,
Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,
Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas
Que o longo verso-prosa oculta, do porvir!
Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,
Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,
Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,
Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs,
A palma cede ao metro esguio, teu algoz!"

E aspiras, vate, assim, da glória ao ideal?
Triste e funesto afã!... tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre a estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;
Ó inútil esforço! Ó é ímprobo luta!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,

O verso alexandrino, o impassível algoz!...

Não cantas a tristeza, e menos a ventura;
Que em vez do sabiá gemendo na espessura,
Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;
Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,
Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,
A lírica harmonia há de ir-te despertar!

Verás de novo aberta a copiosa fonte!
Da poesia verás tão lúcido o horizonte,
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,
Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,
Da perna sacudindo o alexandrino laço,
Hás de a mão bendizer que o soube desatar.

Do precipício foge, e segue a luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta;
Mas, noutro verso, amigo, onde ao mago ideal
A música se ligue, o senso e a verdade;
– Num destes vai-se, a ler, da vida a imensidade,
Da sílaba primeira à sílaba final!

Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;
Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;
Se já não tenho jus ao vosso puro amor;
Se nem da salvação nutrir posso a esperança,
Quero em chamas arder, sofrer toda a provança:
— Ler verso alexandrino... Oh! isso não, Senhor!
                                            F. X. de Novaes


 

CLEÓPATRA4
CANTO DE UM ESCRAVO

(M.me EMILE DE GIRARDIN)

Filha pálida da noite,
Nume20 feroz de inclemência,
Sem culto nem reverência,
Nem crentes e nem altar,
A cujos pés descarnados...
A teus negros pés, ó morte!
Só enjeitados da sorte
Ousam frios implorar;

Toma a tua foice aguda,
A arma dos teus furores;
Venho c’roado de flores
Da vida entregar-te a flor;
É um feliz que te implora
Na madrugada da vida,
Uma cabeça perdida
E perdida por amor.

Era rainha e formosa,
Sobre cem povos reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis;
Eu era apenas um servo,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos cruéis.

Vivia distante dela
Sem falar-lhe nem ouvi-la;
Só me vingava em segui-la
Para a poder contemplar;
Era uma sombra calada
Que oculta força levava,
E no caminho a aguardava
Para saudá-la e passar.

Um dia veio ela às fontes
Ver os trabalhos... não pude,
Fraqueou minha virtude,
Caí-lhe tremendo aos pés.
Todo o amor que me devora,
Ó Vênus, o21 íntimo peito,
Falou naquele respeito,
Falou naquela mudez.

Só lhe conquistam amores
O herói, o bravo, o triunfante;
E que coroa radiante
Tinha eu para oferecer ?
Disse uma palavra apenas
Que um mundo inteiro continha:
— Sou um escravo, rainha,
Amo-te e quero morrer.

E a nova Isis que o Egito
Adora curvo e humilhado
O pobre servo curvado
Olhou lânguida a sorrir;
Vi Cleópatra, a rainha,
Tremer pálida em meu seio;
Morte, foi-se-me o receio,
Aqui estou, podes ferir.

Vem! que as glórias insensatas
Das convulsões mais lascivas,
As fantasias mais vivas,
De mais febre e mais ardor,
Toda a ardente ebriedade
Dos seus reais pensamentos,
Tudo gozei uns momentos
Na minha noite de amor.

Pronto estou para a jornada
Da estância escura e escondida;
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te, ó morte, e vou morrer;
Uma graça única – peço
Como última esperança:
Não me apagues a lembrança
Do amor que me fez viver.

Beleza completa e rara
Deram-lhe os numes amigos;
Escolhe dos teus castigos
O que infundir mais terror,
Mas por ela, só por ela
Seja o meu padecimento,
E tenha o intenso tormento
Na intensidade do amor.

Deixa alimentar teus corvos
Em minhas carnes rasgadas,
Venham rochas despenhadas
Sobre meu corpo rolar,
Mas não me tires dos lábios
Aquele nome adorado,
E ao meu olhar encantado
Deixa essa imagem ficar.

Posso sofrer os teus golpes
Sem murmurar da sentença;
A minha ventura é imensa
E foi em ti que eu a achei;
Mas não me apagues na fronte
Os sulcos quentes e vivos
Daqueles beijos lascivos
Que já me fizeram rei.


 

OS ARLEQUINS 5
SÁTIRA
(1864)

Que deviendras dans l’éternité l’âme d’un
homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?

M.me De Stael

          Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
          Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
          Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
          Musa, toma a vergasta,
          E os arlequins fustiga!

          Como aos olhos de Roma,
– Cadáver do que foi, pávido império
          De Caio e de Tibério, –
O filho de Agripina ousado assoma;
          E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
          Pedia, ameaçando,
          O aplauso acostumado;

          E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
          De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
          E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
          E tu, tu não caías,
          Ó raio chamejante!

          Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
          O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
          Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
          Não encanta o ouvido,
          Fascina a consciência!

          Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro, altivo e penetrante,
          E certo ar arrogante
Que impõe com aparências de assombroso;
          Não vacila, não tomba,
Caminha sobre a corda firme e alerta:
          Tem consigo a maromba
          E a ovação é certa.

          Tamanha gentileza,
Tal segurança, ostentação tão grande,
          A multidão expande
Com ares de legítima grandeza.
          O gosto pervertido
Acha o sublime neste abatimento,
          E dá-lhe agradecido
          O louro e o monumento.

          Do saber, da virtude,
Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,
          Um manto de retalhos
Que a consciência universal ilude.
          Não cora, não se peja
Do papel, nem da máscara indecente,
          E ainda inspira inveja
          Esta glória insolente!

          Não são contrastes novos;
Já vem de longe; e de remotos dias
          Tornam em cinzas frias
O amor da pátria e as ilusões dos povos.
          Torpe ambição sem peias
De mocidade em mocidade corre,
          E o culto das idéias
          Treme, convulsa e morre.

          Que sonho apetecido
Leva o ânimo vil a tais empresas?
          O sonho das baixezas:
Um fumo que se esvai e um vão ruído;
          Uma sombra ilusória
Que a turba adora ignorante e rude;
          E a esta infausta glória
          Imola-se a virtude.

          A tão estranha liça
Chega a hora por fim do encerramento,
          E lá soa o momento
Em que reluz a espada da justiça.
          Então, musa da história,
Abres o grande livro, e sem detença
          À envilecida glória
          Fulminas a sentença.


 

EPITÁFIO DO MÉXICO
(1862)

Caminhante, vai dizer aos Lacedemônios que
estamos aqui deitados por termos defendido
as suas leis.

EPITÁFIO DAS TERMÓPILAS

Dobra o joelho: – é um túmulo
Em baixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.

Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça,
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.

Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.

E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.


 

POLÔNIA 6
(1862)

E ao terceiro dia a alma deve voltar
ao corpo, e a nação ressuscitará.

MICKIEWICZ – LIVRO DA NAÇÃO POLACA.

Como aurora de um dia desejado,
Clarão suave o horizonte inunda.
É talvez amanhã. A noite amarga
Como que chega ao termo; e o sol dos livres,
Cansado de te ouvir o inútil pranto,
Ao fim ressurge no dourado Oriente.

Eras livre, – tão livre como as águas
Do teu formoso, celebrado rio;
          A coroa dos tempos
Cingia-te a cabeça veneranda;
E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,
          A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
À porta dos teus lares vigiava.

Eras feliz demais, demais formosa;
A sanhuda cobiça dos tiranos
Veio enlutar teus venturosos dias...
Infeliz! a medrosa liberdade
Em face dos canhões espavorida
Aos reis abandonou teu chão sagrado;
          Sobre ti, moribunda,
Viste cair os duros opressores:
Tal a gazela que percorre os campos,
          Se o caçador a fere,
Cai convulsa de dor em mortais ânsias,
          E vê no extremo arranco
          Abater-se sobre ela
Escura nuvem de famintos corvos.

Presa uma vez da ira dos tiranos,
          Os membros retalhou-te
Dos senhores a esplêndida cobiça;
Em proveito dos reis a terra livre
Foi repartida, e os filhos teus – escravos –
Viram descer um véu de luto à pátria
E apagar-se na história a glória tua.

A glória, não! – É glória o cativeiro
Quando a cativa, como tu, não perde
A aliança de Deus, a fé que alenta,
E essa união universal e muda
Que faz comuns a dor, o ódio, a esperança.

Um dia, quando o cálix da amargura,
Mártir, até às fezes esgotaste,
Longo tremor correu as fibras tuas;
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;
Teu coração estremeceu; teus lábios
Trêmulos de ansiedade e de esperança,
Buscaram aspirar a longos tragos
A vida nova nas celestes auras.

          Então surgiu Kosciusko;
Pela mão do Senhor vinha tocado;
A fé no coração, a espada em punho,
E na ponta da espada a torva morte,
Chamou aos campos a nação caída.
De novo entre o direito e a força bruta
Empenhou-se o duelo atroz e infausto
          Que a triste humanidade
Inda verá por séculos futuros.
Foi longa a luta; os filhos dessa terra
Ah! não pouparam nem valor nem sangue!
A mãe via partir sem pranto os filhos,
A irmã o irmão, a esposa o esposo,
          E todas abençoavam
A heróica legião que ia à conquista
          Do grande livramento.

          Coube às hostes da força
          Da pugna o alto prêmio;
          A opressão jubilosa
Cantou essa vitória da ignomínia;
E de novo, ó cativa, o véu de luto
Correu sobre teu rosto!
          Deus continha
Em suas mãos o sol da liberdade,
E inda não quis que nesse dia infausto
Teu macerado corpo alumiasse.

Resignada à dor e ao infortúnio,
A mesma fé, o mesmo amor ardente
          Davam-te a antiga força.
Triste viúva, o templo abriu-te as portas;
Foi a hora dos hinos e das preces;
Cantaste a Deus; tua alma consolada
Nas asas da oração aos céus subia,
Como a refugiar-se e a refazer-se
          No seio do infinito.
E quando a força do feroz cossaco
À casa do Senhor ia buscar-te,
          Era ainda rezando
Que te arrastavas pelo chão da igreja.

Pobre nação! – é longo o teu martírio;
A tua dor pede vingança e termo;
Muito hás vertido em lágrimas e sangue;
É propícia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
          Não ama a liberdade
Quem não chora contigo as dores tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua ressurreição, finada heróica!


 

AS ONDINAS
(NOTURNO DE H. HEINE)

Beijam as ondas a deserta praia;
Cai do luar a luz serena e pura;
Cavaleiro na areia reclinado
Sonha em hora de amor e de ventura.

As ondinas, em nívea gaze envoltas,
Deixam do vasto mar o seio enorme;
Tímidas vão, acercam-se do moço,
Olham-se e entre si murmuram: “Dorme!"

Uma – mulher enfim – curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante;
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.

Esta, risonha, olhos de vivo fogo,
Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,
E apoiando-se nela, a contemplá-la
Perde-se toda em êxtase amorosa.

Fita-lhe aquela namorados olhos,
E após girar-lhe em torno embriagada,
Diz: “Que formoso estás, ó flor da guerra,
Quanto te eu dera por te ser amada!"

Uma, tomando a mão ao cavaleiro,
Um beijo imprime-lhe; outra, duvidosa,
Audaz por fim, a boca adormecida
Casa num beijo à boca desejosa.

Faz-se de sonso o jovem; caladinho
Finge do sono o plácido desmaio,
E deixa-se beijar pelas ondinas
Da branca lua ao doce e brando raio.


 

MARIA DUPLESSIS 7
(AL. DUMAS FILHO - 1859)

Fiz promessa, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.

E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.

Soube que, após um longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.

Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subira tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vem falar dos mortos ao vivente.

Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria

Sentei-me à mesa, onde contigo outrora
Em noites belas de verão ceava; 22
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.

Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morriam inda algumas flores...

Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.

Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias...
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.

As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio desposasse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.

Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater – hora por hora!

Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já te queimava a febre ardente.

Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que dormes,
A turba dos festins que acompanhaste?

A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.

Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.

Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.


 

HORAS VIVAS
NO ÁLBUM DA EXMA. SRA. D. C. F. DE SEIXAS
(1864)

Noite: abrem-se as flores...
          Que esplendores!
Cíntia sonha amores
          Pelo céu.
Tênues as23 neblinas
          Às campinas
Descem das colinas,
          Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
          Animadas,
Vão aquelas fadas
          Pelo ar;
Soltos os cabelos,
          Em novelos,
Puros, louros, belos,
          A voar.

- “Homem, nos teus dias
          Que agonias,
Sonhos, utopias,
          Ambições;
Vivas e fagueiras,
          As primeiras,
Como as derradeiras
          Ilusões!

- Quantas, quantas vidas
          Vão perdidas,
Pombas mal feridas
          Pelo mal!

Anos após anos,
          Tão insanos,
Vêm os desenganos
          Afinal.

- “Dorme: se os pesares
          Repousares,
Vês? - por estes ares
          Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
          E lascivas,
Somos – horas vivas
          De dormir!" –


 

AS ROSAS 8
A CAETANO FILGUEIRAS.

Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
          Matinais;

Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
          Da ilusão.

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
          Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
          Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
          As graças e o perfume.
Rosas que sois então? – Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.

Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
          Pereceis;
Mas, não... Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
          Floresceis.


 

OS DOIS HORIZONTES
A M. FERREIRA GUIMARÃES
(1863)

Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, – a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, – a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, – sempre escuro,–
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, – tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.


 

MONTE ALVERNE 9
AO PADRE MESTRE A. J. DA SILVEIRA SARMENTO
(1858)

Morreu! – Assim baqueia a estátua erguida
          No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
          Na hora do temporal.

Morreu! – Fechou-se o pórtico sublime
          De um paço secular;
Da mocidade a romaria augusta
Amanhã ante as pálidas ruínas
          Há de vir meditar!

Tinha na fronte de profeta ungido
          A inspiração do céu.
Pela escada do púlpito moderno
Subiu outrora festival mancebo
          E Bossuet desceu!

Ah! que perdeste num só homem, claustro!
          Era uma augusta voz;
Quando essa boca divinal se abria,
Mais viva a crença dissipava na alma
          Uma dúvida atroz!

Era tempo? – a argila se alquebrava
          Num áspero crisol;
Corrido o véu pelos cansados olhos
Nem via o sol que lhe contava os dias,
          Ele – fecundo sol!

A doença o prendia ao leito infausto
          Da derradeira dor;
A terra reclamava o que era terra,
E o gelo dos invernos coroava
          A fronte do orador.

Mas lá dentro o espírito fervente
          Era como um fanal;
Não, não dormia nesse régio crânio
A alma gentil do Cícero dos púlpitos,
           – Cuidadosa Vestal!

Era tempo! – O romeiro do deserto
          Pára um dia também;
E ante a cidade que almejou por anos
Desdobra um riso nos doridos lábios,
          Descansa e passa além!

Caíste! – Mas foi só a argila, o vaso,
          Que o tempo derrubou;
Não todo à essa foi teu vulto olímpico;
Como deixa o cometa uma áurea cauda,
          A lembrança ficou!

O que hoje resta era a terrena púrpura
          Daquele gênio-rei;
A alma voou ao seio do infinito,
Voltou à pátria das divinas glórias
          O apóstolo da lei.

Pátria, curva os joelhos ante esses restos
          Do orador imortal!
Por esses lábios não falava um homem,
Era uma geração, um século inteiro,
          Grande, monumental!

Morreu! – Assim baqueia a estátua erguida
          No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
          Na hora do temporal!


 

AS VENTOINHAS
(1863)

Com seus olhos vaganaus,
Bons de dar, bons de tolher.

SÁ DE MIRANDA

A mulher é um catavento,
          Vai ao vento,
Vai ao vento que soprar;
Como vai também ao vento
          Turbulento,
Turbulento e incerto o mar.

Sopra o sul: a ventoinha
          Volta azinha,
Volta azinha para o sul;
Vem taful; a cabecinha
          Volta azinha,
Volta azinha ao meu taful.

Quem lhe puser confiança,
          De esperança,
De esperança mal está;
Nem desta sorte a esperança
          Confiança,
Confiança nos dará.

Valera o mesmo na areia
          Rija ameia,
Rija ameia construir;
Chega o mar a vai a ameia
          Com a areia,
Com a areia confundir. 24

Ouço dizer de umas fadas
          Que abraçadas,
Que abraçadas como irmãs
Caçam almas descuidadas...
          Ah que fadas!
Ah que fadas tão vilãs!

Pois, como essas das baladas,
          Umas fadas,
Umas fadas dentre nós,
Caçam, como nas baladas;
          E são fadas,
E são fadas de alma e voz.

É que – como o catavento,
          Vão ao vento,
Vão ao vento que lhes der;
Cedem três coisas ao vento:
          Catavento,
Catavento, água e mulher.


 

ALPUJARRA 10
(Mickiewicz- 1862)

Jaz em ruínas o torrão dos mouros;
Pesados ferros o infeliz arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada;
Mas em Granada a peste assola os povos.

C’um punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;
Flutua perto a hispânica bandeira;
Há-de o sol d’amanhã guiar o assalto.

Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;
Arrasam-se trincheiras e muralhas;
No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;
Do castelhano a cidadela é presa.

Só, e vendo as coortes destroçadas,
O valente Almansor após a luta
Abre caminho entre as imigas lanças,
Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.

Sobre as quentes ruínas do castelo,
Entre corpos e restos da batalha,
Dá um banquete o Castelhano, e as presas
E os despojos pelos seus reparte.

Eis que o guarda da porta fala aos chefes:
“Um cavaleiro, diz, de terra estranha
Quer falar-vos; – notícias importantes
Declara que vos traz, e urgência pede."

Era Almansor, o emir dos Cauçulmanos,
Que, fugindo ao refúgio que buscara,
Vem entregar-se às mãos do castelhano,
A quem só pede conservar a vida.

“Castelhanos, exclama, o emir vencido
No limiar do vencedor se prostra;
Vem professar a vossa fé e culto
E crer no verbo dos profetas vossos.

Espalhe a fama pela terra toda
Que um árabe, que um chefe de valentes,
Irmão dos vencedores quis tornar-se,
E vassalo ficar de estranho cetro!"

Cala no ânimo nobre ao Castelhano
Um ato nobre... O chefe comovido,
Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros
Fazem o mesmo ao novo companheiro.

Às saudações responde o emir valente
Com saudações. Em cordial abraço
Aperta ao seio o comovido chefe,
Toma-lhe as25 mãos e pende-lhe dos lábios.

Súbito cai, sem forças, nos joelhos;
Arranca do turbante, e com a mão trêmula
O enrola aos pés do chefe admirado,
E junto dele arrasta-se por terra.

Os olhos volve em torno e assombra a todos:
Tinha azuladas, lívidas as faces,
Torcidos lábios por feroz sorriso,
Injetados de sangue ávidos olhos.

“Desfigurado e pálido me vedes,
Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?
Enganei-vos: eu volto de Granada,
E a peste fulminante aqui vos trouxe."

Ria-se ainda – morto já – e ainda
Abertos tinha as pálpebras e os lábios:
Um sorriso infernal de escárnio impresso
Deixara a morte nas feições do morto.

Da medonha cidade os castelhanos
Fogem. A peste os segue. Antes que a custo
Deixado houvessem de Alpujarra a serra,
Sucumbiram os últimos soldados.


 

 

 

 

VERSOS A CORINA 11

Tacendo il nome di questa gentilissima.
DANTE

(1864)


 

I

Car la beauté tue
Qui l’a vue,
Elle enivre et tue.

A. Briseux

Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a fórma26 peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!

De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.

Minha alma adivinhou a origem do teu ser:
Quis cantar e sentir; quis amar e viver;
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande, elevado, abriam-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção.

Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
Era assim: fronte altiva e gesto soberano,
Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano,
Em olhos senhoris uma luz tão serena,
E grave como Juno, e bela como Helena!
Era assim, a mulher que extasia e domina,
A mulher que reúne a terra e o céu: Corina!

Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.

Viver, – fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas – uma essência,
Apagar outras lembranças,
Perder outras ilusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a única ventura
Não reside em outra vida,
Não vem de outra criatura;
Confundir olhos nos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lágrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver...
Tal era a minha ambição.

Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flor pura?
Em que solitária fonte
Esta água iria beber?
Em que encendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrela,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti: – em ti que és bela,
Em ti que a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na ilusão de que deliras,
Em ti, que um ósculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus dias,
De vida e de juventude...

Amemos! diz a flor à brisa peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor;
Cantemos esta lei e vivamos, Corina,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.


 

II

Mon pauvre coeur, reprends ton sublime courage
Et me chantes ta joie et ton déchirement.

A. Houssaye.

A minha alma, talvez, não é tão pura,
Como era pura nos primeiros dias;
Eu sei: tive choradas agonias
De que conservo alguma nódoa escura,

Talvez. Apenas à manhã da vida
Abri meus olhos virgens e minha alma,
Nunca mais respirei a paz e a calma,
E me perdi na porfiosa lida.

Não sei que fogo interno me impelia
À conquista da luz, do amor, do gozo,
Não sei que movimento imperioso
De um desusado ardor minha alma enchia.

Corri de campo em campo e plaga em plaga.
(Tanta ansiedade o coração encerra!)
A ver o lírio que brotasse a terra,
A ver a escuma que cuspisse – a vaga.

Mas, no areal da praia, no horto agreste,
Tudo aos meus olhos ávidos fugia...
Desci ao chão do vale que se abria,
Subi ao cume da montanha alpestre.

Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de poeta;
E contemplei, nesta ambição inquieta,
Da muda noite a página sublime.

Tomei nas mãos a cítara saudosa,
E soltei entre lágrimas um canto...
A terra brava recebeu meu pranto
E o eco repetiu-me a voz chorosa.

Foi em vão. Como um lânguido suspiro,
A voz se me calou, e do ínvio monte
Olhei ainda as linhas do horizonte,
Como se olhasse o último retiro.

Nuvem negra e veloz corria solta
O anjo da tempestade anunciando;
Vi ao longe as alcíones cantando
Doidas correndo à flor da água revolta.

Desiludido, exausto, ermo, perdido,
Busquei a triste estância do abandono,
E esperei, aguardando o último sono,
Volver à terra, de que foi nascido.

— “Ó Cibele fecunda, é no remanso
Do teu seio – que vive a criatura;
Chamem-te outros morada triste e escura,
Chamo-te glória, chamo-te descanso!"

Assim falei. E murmurando aos ventos
Uma blasfêmia atroz – estreito abraço
Homem e terra uniu, e em longo espaço
Aos ecos repeti meus vãos lamentos.

Mas, tu passaste... Houve um grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpétuo gozo
Perpassava e me atraía,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da beleza
Que das escumas nasceu...
Eras tu, maga visão
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés sangrei!

Mas se minha alma, acaso, é menos pura
Do que era pura nos primeiros dias,
Porque não soube em tantas agonias
Abençoar a minha desventura;

Se a blasfêmia os meus lábios poluíra,
Quando, depois do tempo e do cansaço,
Beijei a terra no mortal abraço
E espedacei desanimado a lira;

Podes, visão formosa e peregrina,
No amor profundo, na existência calma,
Desse passado resgatar minha alma
E levantar-me aos olhos teus, — Corina!


 

III

Se tu pudesses viver um dia na minha alma...
feliz criatura, tu saberias o que é sofrer!

MICKIEWICZ .– Sonetos da Criméia

Quando voarem minhas esperanças,
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;

E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu da minha primavera;

E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;

Quando assim seja, por teus olhos juro,
Voto minha alma à escura soledade,
Sem procurar melhor felicidade,
E sem ambicionar prazer mais puro.

Como o viajor que, de falaz miragem
Volta desenganado ao lar tranqüilo,
E procura, naquele último asilo,
Nem evocar memórias da viagem;

Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados
A tudo mais, – a minha fantasia
As asas colherá com que algum dia
Quis alcançar os cimos elevados.

És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?

Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, é a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola; 27
Outra não há melhor.
          Se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.

Ah! faze que estas ilusões tão vivas
Nunca se tornem pálidas lembranças;
E nem voem as minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas!


 

IV

Ne vois-tu pas ?
A.M.

Tu que és bela e feliz, tu que tens por diadema
A dupla irradiação da beleza e do amor;
E sabes reunir, como o melhor poema,
Um desejo da terra e um toque do Senhor;

Tu, criação feliz de um dia de pureza,
Em que a terra não teve um só pecado, irmã
Das visões que sonhou no culto da beleza
A musa de Petrarca e o pincel de Rembrant;

Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas
Aos versos do poeta um desvelado olhar,
Corina, ouve a canção das amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas e do mar.

 

AS BRISAS

Deu-nos a harpa eólia a excelsa melodia
Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,
Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,
Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?

Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?
Que alma de serafim volteia aos lábios teus?
Donde houveste o segredo e o poderoso encanto
Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?

 

A LUZ

Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento à viva criação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vai meu vívido clarão.

Mas se derramo vida a Cibele fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda,
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.

 

AS ÁGUAS

Do nume da beleza o berço celebrado
Foi o mar. Vênus bela entre espumas nasceu.
Veio a idade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou: – pereceu.

Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha,
Tens a inefável graça e o inefável ardor.
Se paras, és um nume; andas, uma rainha,
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor!

Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga
A vaga, a tua mãe, que te abre os seios nus,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga,
E das regiões da névoa às regiões da luz!

 

AS SELVAS

Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão;
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endimião.

Da grande caçadora a um solícito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o eco repete a flauta de Sileno,
Após o grande ruído a mudez sepulcral.

Mas Diana aparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É a vida que renasce, é vida que se agita;
À luz do teu olhar, ao som da tua voz!

 

O POETA

Também eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solene mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O último suspiro e a última oração;

Também eu junto a voz à voz da natureza,
E soltando o meu hino ardente e triunfal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza
E banharei minha alma em tua luz, – Ideal!

Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cântico das águas,
Não procures, Corina, o caminho do mar!


 

V

Povero mio core! Ecco una separazione di piú
nella mia scigurata vita!

SILVIO PELLICO

Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.

Único em meio das paixões vulgares,
Fui a teus pés queimar minha alma ansiosa,
Como se queima o óleo ante os altares;
Tive a paixão indômita e fogosa,
Única em meio das paixões vulgares.

Cheio de amor, vazio de esperança,
Dei para ti os meus primeiros passos;
Minha ilusão fez-me, talvez, criança;
E eu pretendi dormir aos teus abraços,
Cheio de amor, vazio de esperança.

Refugiado à sombra do mistério
Pude cantar meu hino doloroso;
E o mundo ouviu o som doce ou funéreo
Sem conhecer o coração ansioso
Refugiado à sombra do mistério.

Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Vejo que em teus olhares de princesa
Transluz uma alma ardente e compassiva
Capaz de reanimar minha incerteza;
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?

Como um réu indefeso e abandonado,
Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
E se a perseguição me tem cansado,
Embora, escutarei o teu aresto
Como um réu indefeso e abandonado.

Embora fujas aos meus olhos tristes,
Minha alma irá saudosa, enamorada,
Acercar-se de ti lá onde existes;
Ouvirás minha lira apaixonada,
Embora fujas aos meus olhos tristes.

Talvez um dia meu amor se extinga,
Como fogo de Vesta mal cuidado
Que sem o zelo da Vestal não vinga:
Na ausência e no silêncio condenado
Talvez um dia meu amor se extinga.

Então não busques reavivar a chama;
Evoca apenas a lembrança casta
Do fundo amor daquele que não ama;
Esta consolação apenas basta;
Então não busques reavivar a chama.

Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.


 

VI

O amor tem asas, mas ele também pode dá-las.
HOMERO

Em vão! Contrário a amor é nulo o esforço humano;
É nulo o vasto espaço, é nulo o vasto oceano.
Solta do chão, abrindo as asas luminosas,
Minha alma se ergue e voa às regiões venturosas,
Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina,
Reveste a natureza a púrpura divina!

Lá, como quando volta a primavera em flor,
Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;
Ao influxo celeste e doce da beleza,
Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
Mais lânguida e mais bela a tarde pensativa
Desce do monte ao vale; e a viração lasciva
Vai despertar à noite a melodia estranha
Que falam entre si os olmos da montanha;
A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;
O mar tem novos sons e mais viva ardentia;
A onda enamorada arfa e beija as areias,
Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!

O esplendor da beleza é raio criador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.

Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida,
Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida
Da saudade que punge e do amor que lacera,
E palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
Respirando, como eu, a saudade e a tristeza;
A saudade do bem e a tristeza do mal;
Tristeza sem irmã, saudade sem igual.

É deste ermo que eu vou, alma desventurada,
Murmurar junto a ti a estrofe imaculada
Do amor que não perdeu, co’a última esperança,
Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.

Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
Do meu sombrio céu alva estrela bem-vinda!
Como divaga a abelha inquieta e sequiosa
Do cálice do lírio ao cálice da rosa,
Divaguei de alma em alma em busca deste amor;
Gota de mel divino, era divina a flor
Que o devia conter. Eras tu.

          No delírio
De te amar – olvidei as lutas e o martírio;
Eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma;
De outras belezas vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: – tinhas a alma e o amor.

Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minha alma. Na provança
Ela não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte
Tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro.

Deste profundo amor, doce e amada Corina,
Acorda-te a lembrança um eco de aflição?
Minha alma pena e chora à dor que a desatina:
Sente tua alma acaso a mesma comoção?

Em vão! Contrário a amor é nulo o esforço humano,
É nulo o vasto espaço, é nulo o vasto oceano!

Vou, sequioso espírito,
Cobrando novo alento,
Na asa veloz do vento
Correr de mar em mar;
Posso, fugindo ao cárcere,
Que à terra me tem preso,
Em novo ardor aceso,
Voar, voar, voar!

Então, se à hora lânguida
Da tarde que declina,
Do arbusto da colina
Beijando a folha e a flor,
A brisa melancólica
Levar-te entre perfumes
Uns tímidos queixumes
Ecos de mágoa e dor;

Então, se o arroio tímido
Que arrasta-se e murmura
À sombra da espessura
Dos verdes salgueirais,
Mandar-te entre os murmúrios
Que solta nos seus giros,
Uns como que suspiros
De amor, uns ternos ais;

Então, se no silêncio
Da noite adormecida,
Sentires – mal dormida –
Em sonho ou em visão,
Um beijo em tuas pálpebras,
Um nome aos teus ouvidos,
E ao som de uns ais partidos
Pulsar teu coração;

Da mágoa que consome
O meu amor venceu;
Não tremas – é teu nome,
Não fujas – que sou eu! –

FIM DOS VERSOS A CORINA


 

ÚLTIMA FOLHA

Tout passe,
Tout fuit.

V. HUGO

Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
          A última harmonia.

Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
          E as alvas margaridas.

Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
          O sol resplandecente.

Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
          Como um frio sudário.

Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
          Dos teus primeiros dias.

Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, – e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
          Irás, musa celeste!

Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;

Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;

E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;

Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza,
A ventura, o amor e a paz!

Ah! mas então será mais alto ainda;
          Lá onde a alma do vate
          Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;

Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
          Fartar-se do infinito!

Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
          A última harmonia!

FIM


 

POSFÁCIO

CARTA AO DR. CAETANO FILGUEIRAS

    Meu amigo. Agora que o leitor frio e severo pôde comparar o meu pobre livro com a tua crítica benévola e amiga, deixa-me dizer-te rapidamente duas palavras.
     Recordaste os nossos amigos, poetas na adolescência, hoje idos para sempre dos nossos olhos e da glória que os esperava. Tão piedosa evocação será o paládio do meu livro, como o é a tua carta de recomendação.
     Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma querida, como uma ilusão consoladora.
     A tua pena encontrou expressões de verdade e de sentimento para descrever as nossas confabulações de poetas, tão serenas e tão íntimas. Tiveste o condão de transportar-me a essas práticas da adolescência poética; lendo a tua carta pareceu-me ouvir aqueles que hoje repousam nos seus túmulos, e ouvindo dentro de mim um ruído de aplauso sincero às tuas expressões, afigurava-se-me que eram eles que te aplaudiam, como no outro tempo, na tua pequena e faceira salinha.
     Essa recordação bastava para felicitar o meu livro. Mas onde não vai a amizade e a crítica benevolente? Foste além: – traduziste para o papel as tuas impressões que eu, – mesmo despido desta modéstia oficial dos preâmbulos e dos epílogos, – não posso deixar de aceitar como parciais e filhas do coração. Bem sabes como o coração pode levar a injustiças involuntárias, apesar de todo o empenho em manter uma imparcialidade perfeita.
     Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais, nem menos.
     Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.
     Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo de não acumular muita coisa sem valor me não detivesse, este primeiro volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi o segundo.
     Como sabes, publicando os meus versos cedo às solicitações de alguns amigos, a cuja frente te puseste. Devo declará-lo, para que não recaia sobre mim exclusivamente a responsabilidade do livro. Denuncio os cúmplices para que sofram a sentença.
     Não te bastou animar-me a realizar esta publicação; a tua lealdade quis que tomasses parte no cometimento, e com a tua própria firma selaste a tua confissão. Agradeço-te o ato e o modo por que o praticaste. E se a tua bela carta não puder salvar o meu livro de um insucesso fatal, nem por isso deixarei de estender-te amigável e fraternalmente a mão.

MACHADO DE ASSIS
Rio de janeiro, 1° de Setembro de 1864


 

NOTAS DO AUTOR

1     E ao som dos nossos cânticos; etc.
     Estes versos são postos na boca de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do cenógrafo João Caetano, representando o dilúvio universal.

2     Foi com alguma hesitação que eu fiz inserir no volume estes versos. Já bastava o arrojo de traduzir a maviosa elegia de Chenier. Poderia eu conservar a grave simplicidade do original? A animação de um amigo decidiu-me a não imolar o trabalho já feito; aí fica a poesia; se me sair mal, corre por conta do amigo anônimo.

3     Esta poesia, como se terá visto, é a resposta que me deu o meu amigo F. X. de Novaes, a quem foram dirigidos os versos anteriores. Tão bom amigo e tão belo nome tinham direito de figurar neste livro. O leitor apreciará, sem dúvida, a dificuldade vencida pelo poeta que me respondeu em estilo faceto, no mesmo tom e pelos mesmos consoantes.

4     Este canto é tirado de uma tragédia de M.me Emile de Girardin. O escravo, tendo visto coroado o seu amor pela rainha do Egito, é condenado a morrer. Com a taça em punho, entoa o belo canto de que fiz esta mal amanhada paráfrase.

5     Esta poesia foi recitada no Clube Fluminense, num sarau literário. Pareceu então que eu fazia sátira pessoal. Não fiz. A sátira abrange uma classe que se encontra em todas as cenas políticas, – é a classe daqueles que, como se exprime um escritor, depois de darem ao povo todas as insígnias da realeza, quiseram completar-lha, fazendo-se eles próprios os bobos do povo.

6     Eras livre, tão livre como as águas
     Do teu formoso, celebrado rio.

     O rio a que aludem os versos é o Niemen. É um dos rios mais cantados pelos poetas polacos. Há um soneto de Mickiewicz ao Niemen, que me agradou muito, apesar da prosa francesa em que o li, e do qual escreve um crítico polaco: " Há nesta página uma cantilena a que não resiste nenhum ouvido eslavo; foi posta em música pelo célebre Kurpinski. Assim consagrado, o soneto de Niemen correu toda a Polônia, e só deixará de viver quando deixarem de correr as águas daquele rio."
     Foi a hora dos hinos e das preces.
     Alude às cenas da Varsóvia, em que este admirável povo ia aos templos cantar ladainhas sobre a música dos hinos nacionais, a despeito da invasão da tropa armada nas igrejas. É sabido que por esse motivo se fecharam os templos.

7     Em 1858, eu e o meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas filho. No dia aprazado apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me lembro em que jornal.

8     ............. Se a mão de um poeta
     Vos cultiva agora, ó rosas, etc.

     O Dr. Caetano Filgueiras trabalha há tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto. É um trabalho curioso de erudição e de fantasia; o assunto requer, na verdade, um poeta e um erudito. É a isso que aludem estes últimos versos.

9     A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.
     Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até hoje.

10     Este canto é extraído de um poema do poeta polaco Mickiewicz, denominado Conrado Wallenrod. Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Christiano Ostrowski.

11     As três primeiras poesias desta coleção foram publicadas sob o anônimo nas colunas do Correio Mercantil; a quarta e quinta saíram no Diário do Rio, sendo esta última assinada. A sexta é inteiramente inédita.


 

NOTAS DA FONTE DIGITAL

  1 locubrações, no original
  2 Na errata da edição original consta travesso
  3 Neologismo do autor do prefácio, significando a qualidade de ser aéreo.
  4 Corrigido da errata. No original consta mais inspirado, e talvex, etc...
  5 Bioco, no original. Corrigido na errata
  6 Conforme o original, embora a grafia correta devesse ser mueveme
  7 Note-se a cacofonia, como no original.
  8 Césu, no original, corrigido na errata.
  9 Na errata, o verso escreve-se: Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor.
10 No original, as aspas não fecham.
11 Foi mantida a forma arcaica em razão da métrica.
12 No original, as aspas não fecham.
13 No original, a letra z está invertida.
14 Conforme o original, sem menção na errata. A forma correta seria gloire.
15 O autor optou por este título em suas Poesias Completas.
16 Manteve-se o travessão, tal como na edição original.
17 No original consta desfolha, na errata, esfolha: possivelmente para caber na métrica, em decassílabos.
18 Sem acento circunflexo, no original.
19 Todos os grifos são do autor do poema, conforme original.
20 Na errata consta Nume, por Nome.
21 Na errata lê-se o por ó.
22 No original está ceiava
23 No original está ...os neblinas. Não houve menção na errata.
24 Na errata constam os versos seguintes:
         Como a areia
       Como a areia confundir.
25 No original das mãos corrigido na errata.
26 Manteve-se o acento para evitar a homofonia fôrma, tal como é a lição do autor.
27 Este o famoso verso, legenda que a estátua de Machado de Assis traz ao pé, na Academia Brasileira de Letras. (Nota do Pesquisador)


 

 

©2013 — José Maria Machado de Assis

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