capa

eBookLibris
Comentários Sobre
A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
Guy Debord
(1931-1994)


 

Comentários sobre A Sociedade do Espectáculo
Guy Debord (1931-1994)

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte digital:
A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO
E OUTROS TEXTOS DE
GUY DEBORD
www.terravista.pt/IlhadoMel/1540

©2003 — Guy Debord


COMENTÁRIOS SOBRE
A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

 

 

À memória de Gérard Lebovici, assassinado em Paris a 5 de Março de 1984, numa cilada que permanece no mistério.

 

 

"Por críticas que possam ser as situações e as circunstâncias em que te encontres, não desesperes; é nas ocasiões em que tudo é temível, que nada há que temer; é quando se está rodeado de todos os perigos, que não há que temer nenhum; é quando se está sem nenhum recurso, que há que contar com todos; é quando se está surpreendido, que é preciso surpreender o inimigo."

(Sun-Tzu, A Arte da Guerra)

 

I

Estes Comentários têm a segurança de ser prontamente conhecidos por cinquenta ou sessenta pessoas, o que já é muito nos dias que vivemos e quando se trata de questões tão graves. Mas é por isso mesmo que eu tenho, em certos meios, a reputação de ser um conhecedor. Importa igualmente considerar que, desta elite que vai interessar-se neles, metade, ou um número muito aproximado, é composta por pessoas que se ocupam em manter o sistema de dominação espectacular, e a outra metade por gente que teimará em fazer exactamente o contrário. Tendo assim em conta leitores tão atentos e diversamente influentes, não posse evidentemente falar com toda a liberdade. Devo sobretudo tomar cautela para não instruir demasiadamente seja quem for.

A desgraça dos tempos obrigar-me-á, portanto, a escrever, uma vez mais, de um modo novo. Certos elementos serão voluntariamente omitidos; e o plano deverá ficar bem pouco claro. Poder-se-á encontrar nele, como a própria assinatura da época, alguns logros. Na condição de intercalar aqui e ali várias outras páginas, o sentido total pode aparecer: deste modo, muitas vezes, foram acrescentados artigos secretos àquilo que os tratados estipulavam abertamente, e o mesmo acontece com agentes químicos que não revelam uma parte desconhecida das suas propriedades senão quando se encontram associados a outros. Todavia, nesta breve obra, demasiadas coisas serão, finalmente, fáceis de compreender

II

Em 1967, mostrei num livro, A Sociedade do Espectáculo, aquilo que o espectáculo moderno era já essencialmente: o reino autocrático da economia mercantil, tendo acedido a um estatuto de soberania irresponsável, e o conjunto das novas técnicas de governo que acompanham este reino. As alterações de 1968, que se prolongaram em diversos países no decurso dos anos seguintes, não derrubaram em nenhum lugar a organização existente da sociedade, donde o espectáculo brota como que espontaneamente; ele continuou, portanto, a reforçar-se por todos os lados, quer dizer, ao mesmo tempo que se estendeu até aos extremos em todas as direcções, aumentou a sua densidade no centro. O espectáculo aprendeu mesmo novos procedimentos defensivos, como acontece com frequência aos poderes atacados. Quando comecei a crítica da sociedade espectacular notou-se sobretudo, dado o momento, o conteúdo revolucionário que se podia descobrir nesta crítica, e isso foi sentido, naturalmente, como o seu elemento mais incómodo. Quanto à coisa mesma, acusaram-me por vezes de ter inventado todas as suas partes e sempre de ter conspirado exageradamente ao avaliar a profundidade e unidade deste espectáculo e da sua acção real. Devo reconhecer que os outros, fazendo aparecer depois novos livros à volta do mesmo tema, demonstraram perfeitamente que se podia evitar dizer tanto. Eles nada mais fizeram que substituir o conjunto e o seu movimento por um só detalhe estático da superfície do fenómeno, a originalidade de cada autor satisfazia-se em escolhê-lo diferente e, por isso, cada vez menos inquietante. Nenhum quis alterar a modéstia científica da sua interpretação pessoal misturando-lhe temerários julgamentos históricos.

Mas, afinal, a sociedade do espectáculo não deixou de continuar a sua marcha. Ela vai depressa, se tivermos em conta que, em 1967, não tinha mais de uma quarentena de anos atrás de si; mas plenamente utilizados. E no seu próprio movimento, que ninguém achou valer a pena estudar, ela demonstrou depois, por surpreendentes façanhas, que a sua natureza efectiva era bem aquela que eu tinha dito. Estabelecer este ponto não tem somente um valor académico, porque é sem dúvida indispensável ter reconhecido a unidade e articulação desta força actuante que é o espectáculo, para, a partir daí, ser capaz de procurar de novo em que direcções esta força pôde deslocar-se, sendo aquilo que ela era. Estas questões são de um grande interesse: é necessariamente em tais condições que se jogará a continuação do conflito na sociedade. Visto que o espectáculo é hoje seguramente mais poderoso do que era antes. Que faz ele deste poder suplementar? Até onde avançou, onde não estava ele antes? Quais são, em suma, as suas linhas de operações neste momento? O sentimento vago de que se trata de uma espécie de invasão rápida, que obriga as gentes a levar uma vida muito diferente, está de ora avante largamente espalhada; mas sente-se isso mais como uma modificação inexplicável do clima ou de um outro equilíbrio natural, modificação perante a qual a ignorância só sabe que nada tem a dizer. Além disso, muitos admitem que é uma invasão civilizadora, tornada inevitável, e têm mesmo desejo de colaborar nela. Estes antes querem não saber para que serve precisamente esta conquista e como ela caminha.

Vou evocar algumas consequências práticas ainda pouco conhecidas, que resultam deste desenvolvimento rápido do espectáculo durante os últimos vinte anos. Não me proponho, em nenhum aspecto da questão, entrar em polémicas, de ora avante demasiado fáceis e demasiado inúteis; nem tão pouco convencer. Os presentes comentários não se preocupam em moralizar. Eles não consideram o que é desejável, ou simplesmente preferível. Limitar-se-ão a fazer notar o que é.

III

Agora, que ninguém pode razoavelmente duvidar da existência e do poder do espectáculo, pode pelo contrário duvidar-se que seja razoável acrescentar algo sobre uma questão que a experiência resolveu de uma maneira tão draconiana. Le Monde de 19 de Setembro de 1987 ilustrava com felicidade a fórmula «Aquilo que existe já não tem necessidade de ser falado», verdadeira lei fundamental destes tempos espectaculares que, pelo menos a este respeito, não deixou para trás nenhum país: «Que a sociedade contemporânea seja uma sociedade de espectáculo, é um assunto sabido. Em breve, valerá mais a pena examinar os assuntos que não chamam a atenção. São incontáveis as obras que descrevem um fenómeno que vem caracterizando as nações industrializadas sem poupar os países em atrazo em relação ao seu tempo. Mas nota-se o ridículo de que os livros que analisam este fenómeno, em geral para o deplorar, devem, eles também, sacrificar-se ao espectáculo para se fazerem conhecer.» E verdade que esta crítica espectacular do espectáculo, chegada tarde e que para cúmulo quereria «dar-se a conhecer» no mesmo terreno, limitar-se-á forçosamente a generalidades vás ou a lamentos hipócritas; como também parece vã esta sabedoria desenganada que bufoneia num jornal.

A discussão vazia sobre o espectáculo, isto é, sobre aquilo que fazem os proprietários do mundo, está, assim, organizada por ele mesmo insiste-se sobre os grandes meios do espectáculo, para nada dizer sobre a sua ampla utilização. Com frequência prefere-se chamá-lo, em vez de espectáculo, o mediático. E, assim, quer-se designar um simples instrumento, uma espécie de serviço público que geriria com um imparcial «profissionalismo» a nova riqueza da comunicação de todos através dos mass media, comunicação enfim chegada à sua pureza unilateral, onde se faz admirar sossegadamente a decisão já tomada. Aquilo que é comunicado são ordens; e, muito harmoniosamente, aqueles que as deram são igualmente aqueles que dirão aquilo que pensam delas.

O poder do espectáculo, que é tão essencialmente unitário, centralizador pela força própria das coisas, e perfeitamente despótico no seu espírito, indigna-se com frequência ao ver constituir-se dentro do seu reino uma política-espectáculo, uma justiça-espectáculo, uma medicina-espectáculo, ou tantos outros também surpreendentes «excessos mediáticos». Assim, o espectáculo nada mais seria que o excesso do mediático, cuja natureza, indiscutivelmente boa já que serve para comunicar, é por vezes dada a excessos. Com muita frequência, os mestres da sociedade declaram-se mal servidos pelos seus empregados mediáticos; mais amiúde eles censuram à plebe dos espectadores a sua tendência para se entregar sem moderação, e quase bestialmente, aos prazeres mediáticos. Dissimular-se-á, assim, por detrás de uma multitude virtualmente infinita de pretensas divergências mediáticas, o que é, pelo contrário, resultado de uma convergência espectacular querida com uma notável tenacidade. Do mesmo modo que a lógica da mercadoria prima sobre as diversas ambições concorrenciais de todos os comerciantes, ou que a lógica da guerra domina sempre as frequentes modificações do armamento, a mesma lógica severa do espectáculo comanda por toda a parte a abundante diversidade das extravagâncias mediáticas.

A mudança que tem a maior importância, em tudo o que se passou desde há vinte anos, reside na própria continuidade do espectáculo. Esta importância não se deve ao aperfeiçoamento da sua instrumentação mediática, que já anteriormente tinha atingido um estádio de desenvolvimento muito avançado: é pura e simplesmente devida ao facto de que a dominação espectacular tenha podido criar uma geração submetida às suas leis. As condições extraordinariamente novas em que esta geração, no seu conjunto, efectivamente viveu, constituem um resumo exacto e suficiente de tudo aquilo que doravante o espectáculo impede; e também de tudo aquilo que ele permite.

IV

No plano simplesmente teórico, só me faltará acrescentar àquilo que tinha formulado anteriormente mais um detalhe, mas que vai longe. Em 1967, distinguia duas fórmulas, sucessivas e rivais, do poder espectacular, a concentrada e a difusa. Uma e outra pairavam sobre a sociedade real, como seu fim e sua mentira. A primeira, expondo a ideologia resumida à volta duma personalidade ditatorial, tinha acompanhado a contra-revolução totalitária, tanto a nazi como a estalinista. A outra, incitando os assalariados a realizar livremente a sua escolha entre uma grande variedade de novas mercadorias que se defrontavam, tinha representado esta americanizarão do mundo, que nalguns aspectos assustava, mas que também seduzia os países onde durante mais tempo se tinham podido manter as condições das democracias burguesas de tipo tradicional. Uma terceira forma constituiu-se depois pela combinação ponderada das duas precedentes, e na base geral duma vitória daquela que se tinha revelado a mais forte, a forma difusa. Trata-se do espectacular integrado, que doravante tende a impor-se mundialmente.

O lugar predominante que tiveram a Rússia e a Alemanha na formação do espectacular concentrado, e os Estados Unidos na do espectacular difuso, parece ter pertencido à França e à Itália no momento do estabelecimento do espectacular integrado, pelo jogo de uma série de factores históricos comuns: papel importante do partido e do sindicato estalinistas na vida política e intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um só partido de governo, necessidade de acabar com uma contestação revolucionária aparecida de surpresa.

O espectacular integrado manifesta-se umas vezes como concentrado e outras como difuso e, depois desta unificação frutífera, soube empregar mais amplamente uma e outra destas qualidades. O seu modo de aplicação anterior mudou muito. Considerando o lado concentrado, o centro director tornou-se agora oculto: nunca mais se coloca aí um chefe conhecido, nem uma ideologia clara. E considerando o lado difuso, a influência espectacular nunca tinha marcado a este ponto a quase totalidade das condutas e dos objectos que são produzidos socialmente. Já que, o sentido final do espectacular integrado é que ele se integrou na própria realidade à medida que dela falava; e que a reconstruía como falava dela. De modo que esta realidade agora não está perante ele como qualquer coisa estranha. Quando o espectacular era concentrado a maior parte da sociedade periférica escapava-lhe; e quando era difuso, apenas uma diminuta parte; hoje, nada Ihe escapa. O espectáculo misturou-se a toda a realidade, irradiando-a. Como se podia prever facilmente em teoria, a experiência prática da realização sem freio das vontades da razão mercantil demonstrou rapidamente e sem excepções que o tornar-se mundo da falsificação era também um tornar-se falsificação do mundo. Exceptuando uma herança ainda importante, mas destinada a diminuir constantemente, de livros e construções antigas, que por outro lado são cada vez mais amiúde seleccionados e dispostas em perspectiva segundo as conveniências do espectáculo, nada mais existe, na cultura ou na natureza, que não tenha sido transformado, e poluído, segundo os meios e os interesses da indústria moderna. Mesmo a genética tornou-se plenamente acessível às forças dominantes da sociedade.

O governo do espectáculo, que presentemente detém todos os meios de falsificar o conjunto da produção assim como da percepção, é senhor absoluto das recordações tal como é senhor incontrolado dos projectos que modelam o mais longínquo futuro. Ele reina só em todo o lado; ele executa os seus julgamentos sumários.

É em tais condições que se pode ver desencadear repentinamente, com um gozo carnavalesco, um fim paródico da divisão do trabalho; tanto melhor recebido quanto coincide com o movimento geral de desaparecimento de toda a verdadeira competência. Um banqueiro canta, um advogado torna-se informador da polícia, um padeiro expõe as suas preferências literárias, um actor governa, um cozinheiro filosofa sobre os momentos de cozedura como marcos na história universal. Cada qual pode surgir no espectáculo a fim de entregar-se publicamente, ou por vezes para dedicar-se secretamente, a uma actividade completamente diferente da especialidade pela qual inicialmente se deu a conhecer. Lá onde a posse de um «estatuto mediático» alcançou uma importância infinitamente maior que o valor daquilo que se foi capaz de fazer realmente, é normal que este estatuto seja facilmente transferível e confira o direito de brilhar, da mesma maneira, seja onde for. Mais frequentemente, estas partículas mediáticas aceleradas perseguem a sua simples carreira no admirável estatutariamente garantido. Mas acontece que a transição mediática faça a cobertura entre muitas empresas, oficialmente independentes, mas de facto secretamente ligadas por diferentes redes ad-hoc. De modo que, por vezes, a divisão social do trabalho, assim como a solidariedade normalmente previsível do seu uso, reaparece sob formas completamente novas: por exemplo, hoje em dia pode publicar-se um romance para preparar um assassinato. Estes pitorescos exemplos querem também dizer que já não se pode confiar em ninguém pelo seu ofício.

Mas a mais alta ambição do espectacular integrado é ainda que os agentes secretos se tornem revolucionários e que os revolucionários se tornem agentes secretos.

V

A sociedade modernizada até ao estádio do espectacular integrado caracteriza-se pelo efeito combinado de cinco traços principais, que são: a renovação tecnológica incessante; a fusão económico-estatal; o segredo generalizado; o falso sem réplica; um presente perpétuo.

O movimento de inovação tecnológica dura já há muito tempo e é constitutivo da sociedade capitalista, dita por vezes industrial ou post-industrial. Mas desde que tomou a sua mais recente aceleração, (no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial), reforça ainda mais a autoridade espectacular, já que através dele cada um encontra-se inteiramente entregue ao conjunto de especialistas, aos seus cálculos e aos seus julgamentos sempre satisfeitos com estes cálculos. A fusão económico-estatal é a tendência mais manifesta deste século; e aí está ela tornada, no mínimo, o motor do desenvolvimento económico mais recente. A aliança defensiva e ofensiva concluída entre estes dois poderes, a Economia e o Estado, assegurou-lhes os maiores benefícios comuns em todos os domínios: pode dizer-se que cada um possui o outro; é absurdo opô-los, ou distinguir as suas razões ou as suas desinteligências. Esta união mostrou-se também extremamente favorável ao desenvolvimento da dominação espectacular, que, desde a sua formação, não era senão precisamente isso. Os três últimos traços são os efeitos directos dominação, no seu estado integrado.

O segredo generalizado mantém-se por detrás do espectáculo, como o complemento decisivo daquilo que ele mostra e, se aprofundamos mais as coisas, como a sua mais importante operação.

O simples facto de estar a partir de agora sem réplica deu ao falso uma qualidade completamente nova. É ao mesmo tempo o verdadeiro que deixou de existir quase por todo o lado ou, no melhor caso, viu-se reduzido ao estado de uma hipótese que nunca pode ser demonstrada. O falso sem réplica acabou por fazer desaparecer a opinião pública, que de início se encontrava incapaz de se fazer ouvir; depois, rapidamente em seguida, de somente se formar. Isto acarreta evidentemente importantes consequências na política, nas ciências aplicadas, na justiça, no conhecimento artístico.

A construção de um presente onde mesmo a moda, do vestuário aos cantores, se imobilizou, que quer esquecer o passado e que já não dá a impressão de acreditar num futuro, é obtida pela incessante passagem circular da informação girando continuamente sobre uma lista muito sucinta das mesmas banalidades, anunciadas apaixonadamente como importantes descobertas; enquanto só muito raramente, e por sacudidelas, passam as notícias verdadeiramente importantes sobre aquilo que efectivamente muda.

Dizem sempre respeito à condenação que este mundo parece ter pronunciado contra a sua existência, as etapas da sua autodestruição programada.

VI

A primeira intenção da dominação espectacular era fazer desaparecer o conhecimento histórico em geral; e em primeiro lugar quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o mais recente passado. Uma evidência tão flagrante não necessita ser explicada. O espectáculo organiza com mestria a ignorância do que acontece e, logo de seguida, o esquecimento daquilo que pôde apesar de tudo tornar-se conhecido. O mais importante é o mais escondido. Vinte anos depois, nada foi mais recoberto de tantas mentiras comandadas como a história de Maio de 1968. Contudo, lições úteis foram tiradas de alguns estudos desmitificados sobre essas jornadas e as suas origens, mas são segredo de Estado.

Em Franca, há já uma dezena de anos, um Presidente da República, esquecido em seguida, mas flutuando, então, à superfície do espectáculo, exprimia inocentemente a alegria que ressentia, «sabendo que viveremos a partir de agora num mundo sem memória, onde, como na superfície da água, a imagem afasta indefinidamente a imagem». É efectivamente cómodo para quem está nos negócios; e sabe manter-se neles. O fim da história é um agradável repouso para todo o poder presente. Garante-lhe absolutamente o êxito do conjunto das suas iniciativas, ou pelo menos o ruído do êxito.

Um poder absoluto suprime tanto mais radicalmente a história, quanto tem de ocupar-se dos interesses ou das obrigações mais imperiosas, e principalmente conforme encontrou mais ou menos grandes facilidades práticas de execução. Ts’in Che Hoang Ti mandou queimar os livros, mas não conseguiu fazê-los desaparecer todos. Estaline levava mais longe a realização de um projecto semelhante no nosso século, mas, apesar das cumplicidades de toda a espécie que encontrou fora das fronteiras do seu império, ficava uma vasta zona do mundo inacessível à sua polícia, onde se riam das suas imposturas. O espectacular integrado fez melhor, com novíssimos métodos, e operando desta vez mundialmente. A inépcia faz-se respeitar por todo o lado, já não é permitido rir dela; em todo o caso, tornou-se impossível fazer saber que se riem dela.

O domínio da história era o memorável, a totalidade dos acontecimentos cujas consequências se manifestariam durante muito tempo. Era inseparavelmente o conhecimento que deveria durar e ajudaria a compreender, pelo menos parcialmente, aquilo que aconteceria de novo: «uma aquisição para sempre», diz Tucídides. Por isso, a história era a medida duma novidade verdadeira; e quem vende a novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de a medir. Quando o importante se faz socialmente reconhecer como aquilo que é instantâneo, e vai sê-lo no instante seguinte, e no outro e noutro ainda, e que substituirá sempre uma outra importância instantânea, pode também dizer-se que o meio utilizado garante uma espécie de eternidade desta não-importância, que fala tão alto.

A preciosa vantagem que o espectáculo retirou deste pôr fora-da-lei da história, de ter já condenado toda a história recente a passar à clandestinidade, e de ter conseguido fazer esquecer muito frequentemente o espírito histórico na sociedade, é antes de tudo cobrir a sua própria história: o próprio movimento da sua recente conquista do mundo. O seu poder aparece já familiar, como se tivesse estado Iá desde sempre. Todos os usurpadores quiseram fazer esquecer que acabam de chegar.

VII

Com a destruição da história é o próprio acontecimento contemporâneo que se afasta imediatamente a uma distancia fabulosa, entre os seus relatos inverificáveis, as suas estatísticas incontroláveis, as suas explicações inacreditáveis e os seus raciocínios insustentáveis. A todas as idiotices que são avançadas espectacularmente, não há senão os mediáticos que poderiam responder através de algumas respeituosas rectificações ou repreensões, mas mesmo nisso são parcos, porque para além da sua extrema ignorância, a sua solidariedade de ofício e de coração, com a autoridade generalizada do espectáculo, e com a sociedade que ele exprime, gera-lhes um dever e também um prazer de jamais se desviarem desta autoridade, cuja majestade não deve ser lesada. É preciso não esquecer que todo o mediático, por salário e por outras recompensas ou gorjetas, tem sempre um senhor, às vezes vários, e que todo o mediático se sabe substituível.

Todos os expertos são mediático-estatais, e apenas por isso são reconhecidos. Todo o experto serve o seu senhor, porque cada uma das antigas possibilidades de independência foi pouco mais ou menos reduzida a nada, pelas condições de organização da sociedade presente. O experto que serve melhor é, seguramente, o experto que mente. Aqueles que têm necessidade do experto são, por motivos diferentes, o falsificador e o ignorante. Lá onde o indivíduo não reconhece mais nada por si mesmo, será formalmente tranquilizado pelo experto. Antes era normal que houvesse expertos na arte dos Etruscos; e eram sempre competentes, porque a arte etrusca não estava no mercado. Mas, por exemplo, uma época que acha rentável falsificar quimicamente a maioria dos vinhos célebres, não poderá vendê-los, a não ser que tenha formado expertos em vinhos que levarão os otários a gostar dos seus novos aromas, mais reconhecíeis. Cervantes observa que «debaixo de uma má capa, encontra-se muitas vezes um bom bebedor». Aquele que conhece o vinho ignora a maioria das vezes as regras da indústria nuclear; mas a dominação espectacular estima que, já que um experto se riu dele a propósito da indústria nuclear, um outro experto poderá gozá-lo melhor a propósito do vinho. Sabe-se, por exemplo, quanto o experto em metereologia mediática, que anuncia as temperaturas ou as chuvas previstas para as próximas quarenta e oito horas, é obrigado a muitas reservas pela obrigação de manter os equilíbrios económicos, turísticos e regionais, quando tanta gente circula tão frequentemente por tantas estradas, entre lugares igualmente desolados; de modo que ele será melhor sucedido como animador.

Um aspecto do desaparecimento de todo o conhecimento histórico objectivo manifesta-se a propósito de qualquer reputação pessoal, que se tornou maleável e rectificável à vontade pelos que controlam toda a informação, aquela que recolhem e também aquela, bem diferente, que difundem; eles têm portanto toda a permissão para falsificar. Porque uma evidência histórica da qual nada se quer saber no espectáculo, já não é uma evidência. Lá onde ninguém tem senão a celebridade que Ihe foi atribuída como um favor pela benevolência de uma Corte espectacular, a desgraça pode acontecer instantaneamente. Uma notoriedade anti-espectacular tornou-se qualquer coisa de extremamente rara. Eu próprio sou um dos últimos vivos a possuir uma; a nunca ter tido outra. Mas esta também se tornou extraordinariamente suspeita. A sociedade proclamou-se oficialmente espectacular. Ser conhecido à margem das relações espectaculares equivale já a ser conhecido como inimigo da sociedade.

E permitido mudar completamente o passado de qualquer um, de o modificar radicalmente, de o recriar no estilo dos processes de Moscovo; e sem que seja mesmo necessário recorrer às fadigas de um processo. Pode matar-se com menos custos. Os falsos testemunhos, talvez desajeitados — mas que capacidade de sentir esta inabilidade poderá ainda restar aos espectadores que serão testemunhas das façanhas destes falsos testemunhos? — e os falsos documentos, sempre excelentes, não podem faltar àqueles que governam o espectacular integrado, ou aos seus amigos. Portanto, já não é possível acreditar, sobre ninguém, em nada daquilo que não tenha sido conhecido por si mesmo e directamente. Mas, de facto, já não há muitas vezes a necessidade de acusar falsamente alguém. Desde que se detém o mecanismo de comando da única verificação social que se faz plenamente e universalmente reconhecer, diz-se o que se quer. O movimento da demonstração espectacular prova-se simplesmente andando à roda: voltando, repetindo-se, afirmando continuamente sobre o único terreno onde reside doravante aquilo que pode afirmar-se publicamente, e fazer-se acreditar, pois que é disso somente que todo o mundo será testemunha. A autoridade espectacular pode igualmente negar seja o que for, uma vez, três vezes, e dizer que não falará mais disso, e falar de outra coisa, sabendo bem que já não arrisca mais nenhuma outra réplica no seu próprio terreno, nem em nenhum outro. Porque já não existe àgora de comunidade geral, nem mesmo de comunidades restritas aos corpos intermédios ou às instituições autónomas, aos salões ou cafés, aos trabalhadores de uma só empresa; nenhum lugar onde o debate, sobre as verdades que dizem respeito àqueles que Iá estão, possa libertar-se de forma duradoira da esmagadora presença do discurso mediático, e das diferentes forças organizadas para o substituir. Actualmente já não existe julgamento com a garantia de relativa independência, daqueles que constituíam o mundo erudito; daqueles que, por exemplo, antigamente, manifestavam o seu orgulho numa capacidade de verificação, permitindo a aproximação àquilo a que se chamava a história imparcial dos factos, de acreditar pelo menos que ela merecia ser conhecida. Já nem existe mesmo verdade bibliográfica incontestável, e os resumos informatizados dos ficheiros das bibliotecas nacionais poderão suprimir ainda melhor os traços. Perder-nos-iamos pensando naquilo que foram noutros tempos os magistrados, os médicos, os historiadores, e nas obrigações imperativas em que eles se reconheciam, na maior parte das vezes, nos limites das suas competências: os homens parecem-se mais com o seu tempo do que com o seu pai.

Aquilo de que o espectáculo pode deixar de falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra coisa qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, em suma, existe. As consequências práticas, como se vê, são imensas.

Acreditava-se saber que a história tinha aparecido, na Grécia, com a democracia. Pode verificar-se que ela desaparece do mundo com ela.

É preciso porém acrescentar a esta lista de triunfos do poder, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande défice de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.

VIII

A sociedade que se anuncia democrática, quando alcançou o estádio do espectacular integrado, parece ser admitida por toda a parte como sendo a realização de uma perfeição frágil. De modo que ela não deve ser mais exposta a ataques, já que é frágil; e alem disso não é mais acatável, pois é perfeita como jamais sociedade alguma foi. E uma sociedade frágil porque tem uma grande dificuldade em dominar a sua perigosa expansão tecnológica. Mas é uma sociedade perfeita para ser governada; e a prova disso é que todos os que aspiram a governar querem governa-la, pelos mesmos procedimentos, e mantê-la quase exactamente como ela é. É a primeira vez que, na Europa contemporânea, nenhum partido ou fracção de partido ensaia somente pretender que tentaria mudar qualquer coisa de importante. A mercadoria já não pode ser criticada por ninguém: nem enquanto sistema geral, nem mesmo como essa embalagem determinada que terá sido conveniente aos empresários pôr nesse momento no mercado. Em todo o lado onde reina o espectáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espectáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem infringir a omertá que diz respeito a tudo. Acabou-se com esta inquietante concepção que dominou durante mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Perante este resultado medir-se-á, em vez da felicidade geral, a força terrível das redes da tirania.

Jamais a censura foi tão perfeita. Jamais a opinião daqueles a quem se faz crer ainda, em certos países, que são cidadãos livres, foi tão pouco autorizada a tornar-se conhecida, cada vez que se trata duma escolha que afectará a sua vida real. Jamais foi permitido mentir-lhes com uma tão perfeita ausência de consequência. O espectador é suposto ignorar tudo, não merecer nada. Quem olha sempre, para saber a continuação, jamais agirá: e tal deve ser o espectador. Com frequência ouve-se citar a excepção dos Estados Unidos, onde Nixon acabava por sofrer um dia duma série de recusas tão cinicamente inábeis; mas esta excepção localizada, que tinha velhas causas históricas, deixou de ser manifestamente genuína, já que Reagan pôde fazer recentemente a mesma coisa com impunidade. Tudo aquilo que nunca é sancionado é verdadeiramente permitido. É pois arcaico falar de escândalo. Atribui-se a um homem de Estado italiano de primeiro plano, tendo exercido funções simultaneamente no ministério e no governo paralelo chamado P.2, Potere due, uma divisa que resume profundamente o período em que entrou o mundo inteiro, um pouco depois da Itália e dos Estados Unidos: «Havia escândalos, mas já não há»,.

Na obra O 18 Brumário de Louis Bonaparte, Marx descrevia o papel invasor do Estado na França do Segundo Império, que dispunha então de meio milhão de funcionários: «Tudo se transforma assim em objecto da actividade governamental, desde a ponte, à escola, à propriedade comunal de uma aldeia até às linhas do caminho de ferro, às propriedades nacionais e às universidades de província.» A famosa questão do financiamento dos partidos políticos punha-se já nessa época, pois Marx nota que «os partidos que, à vez, lutavam pela supremacia, viam na tomada de posse deste edifício enorme a principal presa do vencedor». Eis como isto soa um pouco bucólico e, como se diz, ultrapassado, já que as especulações do Estado de hoje dizem respeito preferencialmente às novas cidades e auto-estradas, à circulação subterrânea e à produção de energia electro-nuclear, à exploração petrolífera e aos computadores, à administração dos bancos e dos centros socio-culturais, às modificações da «paisagem audiovisual» e às exportações clandestinas de armas, à promoção imobiliária e à indústria farmacêutica, à agroalimentar e à gestão dos hospitais, aos créditos militares e aos fundos secretos do departamento, em contínuo crescimento, que deve gerir os numerosos serviços de protecção da sociedade. E, contudo, Marx continua sendo infelizmente demasiado actual, quando evoca, no mesmo livro, este governo «que não toma de noite as decisões que quer executar de dia, mas decide o dia e executa à noite».

IX

Esta democracia tão perfeita fabrica ela mesma o seu inconcebível inimigo: o terrorismo. Ela quer, com efeito, antes ser julgada pelos seus inimigos que pelos seus resultados. A história do terrorismo é escrita pelo Estado. E, portanto, educativa. As populações espectadoras não podem certamente saber tudo sobre o terrorismo, mas podem sempre saber a esse respeito o suficiente para ser persuadidas de que, comparado ao terrorismo, tudo o resto deverá parecer-lhes mais aceitável, em todo o caso mais racional e mais democrático.

A modernização da repressão acabou por aperfeiçoar, em primeiro lugar na experiência piloto de Itália sob o nome de «arrependidos», os acusadores profissionais ajuramentados; aquilo que na sua primeira aparição no século XVII, durante as alterações da Fronda, se chamava de «testemunhas de ofício». Este espectacular progresso da justiça povoou as prisões italianas de vários milhares de condenados que expiam uma guerra civil que não teve lugar, uma espécie de vasta insurreição armada que por acaso nunca viu chegar a sua hora, um golpismo tecido da juta de que são feitos os sonhos.

Deve-se notar que a interpretação dos mistérios do terrorismo parece ter introduzido uma simetria entre opiniões contraditórias; como se se tratasse de duas escolas filosóficas professando construções metafísicas absolutamente antagónicas. Alguns não veriam no terrorismo nada mais do que algumas evidentes manipulações dos serviços secretos; outros estimariam, pelo contrário, que apenas se deve censurar aos terroristas a sua falta total de sentido histórico. O uso de um pouco de lógica histórica permitiria concluir rapidamente que nada há de contraditório ao considerar que pessoas carentes de todo o sentido histórico podem igualmente ser manipuladas; e até mesmo ainda mais facilmente que outras. É também mais fácil levar a «arrepender-se» alguém a quem se pode mostrar que, antecipadamente, se sabia tudo aquilo que ele acreditava fazer livremente. É um efeito inevitável das formas organizativas clandestinas de tipo militar, onde basta infiltrar poucos agentes em certos pontos da rede para fazer andar e fazer cair muitos. A crítica, nestas questões da avaliação das lutas armadas, deve analisar em certas ocasiões uma destas operações em particular, sem se deixar desviar pela semelhança geral que todas eventualmente teriam revestido. Por outro lado, deveria esperar-se, como logicamente provável, que os serviços de protecção do Estado pensam utilizar todas as vantagens que encontrem no terreno do espectáculo, que foi organizado precisamente para isso há muito tempo; é, pelo contrário, a dificuldade de pensar nisso que é surpreendente e não parece justa.

O interesse actual da justiça repressiva neste domínio consiste, naturalmente, em generalizar o mais rapidamente possível. O importante neste tipo de mercadorias é a embalagem, ou a etiqueta: os códigos de barras. Todo o inimigo da democracia espectacular vale tanto como qualquer outro, como valem todas as democracias espectaculares. Assim, não pode haver mais direito de asilo para os terroristas, e mesmo que: não se Ihes aprove tê-lo sido, eles vão certamente voltar a sê-lo, e a extradição impõe-se. Em Novembro de 1978, sobre o caso Gabor Winter, jovem operário tipógrafo acusado principalmente, pelo Governo da República Federal Alemã, de ter redigido alguns panfletos revolucionários, Nicole Pradain, representante do Ministério Público na câmara de acusação do Tribunal da Relação de Paris, depressa demonstrou que «as motivações políticas», única causa de recusa de extradição prevista pela convenção franco-alemã de 29 de Novembro de 1951, não podiam ser evocadas: «Gabor Winter não é um delinquente político, é um delinquente social. Ele recusa as obrigações sociais. Um verdadeiro delinquente político não tem sentimento de rejeição face à sociedade. Ataca as estruturas políticas e não, como Gabor Winter, as estruturas sociais.» A noção de delito político respeitável só foi reconhecida na Europa a partir do momento em que a burguesia atacava com sucesso as estruturas sociais anteriormente estabelecidas. A qualidade de delito político não podia separar-se das diversas intenções da crítica social. Foi assim para Blanqui, Varlin, Durruti. Simula-se pois, agora, querer guardar, como um luxo barato, um delito puramente político que, sem dúvida, ninguém terá jamais a ocasião de cometer, já que ninguém se interessa mais pelo assunto; a não ser os próprios profissionais da política, cujos delitos não são quase nunca perseguidos, e que já não se chamam políticos. Todos as delitos e crimes são efectivamente sociais. Mas de todos os crimes sociais nenhum poderá ser considerado pior que a impertinente pretensão de querer ainda mudar qualquer coisa nesta sociedade que pensa de si própria ter sido demasiado paciente e demasiado boa até aqui; mas que não quer mais ser criticada.

X

A dissolução da lógica foi prosseguida, segundo os interesses fundamentais do novo sistema de dominação, por diferentes meios que operaram prestando sempre um apoio recíproco. Vários destes meios estão ligados à instrumentação técnica, que experimentou e popularizou o espectáculo, mas alguns deles estão preferencialmente ligados à psicologia de massas da submissão.

De acordo com as técnicas, quando a imagem construída e escolhida por algum outro se torna na principal relação do indivíduo com o mundo que antes olhava por si mesmo, de cada lugar onde podia ir, não se ignora evidentemente que a imagem vai suportar tudo; porque no interior de uma mesma imagem pode justapor-se sem contradição seja o que for. O fluxo de imagens domina tudo, e é igualmente qualquer outro que governa a seu gosto este resumo simplificado do mundo sensível; que escolhe aonde irá esta corrente, e também o ritmo daquilo que deverá manifestar-se nela, como perpétua surpresa arbitrária, não deixando nenhum tempo para a reflexão, e em absoluto, independentemente do que o espectador possa compreender ou pensar. Nesta experiência concreta da submissão permanente, encontra-se a raiz psicológica da adesão tão generalizada àquilo que Iá está, que vem a reconhecer-lhe ipso facto um valor suficiente. O discurso espectacular cala evidentemente, além de tudo aquilo que é propriamente secreto, tudo aquilo que não Ihe convém. Daquilo que mostra ele isola sempre o meio, o passado, as intenções, as consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Já que ninguém pode contradize-lo, o espectáculo tem o direito de contradizer-se a si mesmo, de ratificar o seu passado. A altiva atitude dos seus servidores quando têm de fazer saber uma versão nova, por ventura mais mentirosa ainda, de certos factos, é de ratificar rudemente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao seu público, ainda que sejam os mesmos que na véspera se apressavam a difundir esse erro, com a sua habitual certeza. Assim, o ensino do espectáculo e a ignorância do espectador passam indevidamente por factores antagónicos quando nascem um do outro. A linguagem binária do computador é igualmente uma irresistível incitação a admitir em cada instante, sem reservas, aquilo que foi programado como muito bem quis qualquer outro, e que se faz passar pela fonte intemporal duma lógica superior, imparcial e total. Que ganho de rapidez, e de vocabulário, para julgar de tudo! Político? Social? É preciso escolher. O que é um não pode ser o outro. A minha escolha impõe-se. Sopram-nos, e sabe-se para que são estas estruturas. Não é pois surpreendente que, desde a infância, os alunos facilmente comecem, e com entusiasmo, pelo Saber Absoluto da informática: enquanto ignoram cada vez mais a leitura, que exige um verdadeiro julgamento a cada linha; e que só ela pode dar acesso à vasta experiência humana ante-espectacular. Já que a conversação está quase morta e em breve também estarão muitos daqueles que sabiam falar.

De acordo com os meios do pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência está ligada claramente ao facto de que todo o discurso mostrado no espectáculo não deixa nenhum lugar para a resposta; e a lógica não se formava socialmente senão no diálogo. Mas também quando se propagou o respeito por aquele que fala no espectáculo, que é considerado ser importante, rico, prestigiado, que é a autoridade mesma, a tendência espalha-se também entre os espectadores, de quererem ser tão ilógicos como o espectáculo, para alardear um reflexo individual dessa autoridade. Enfim, a lógica não é fácil, e ninguém deseja ensiná-la. Nenhum drogado estuda lógica; porque não tem dela necessidade e porque não tem sequer essa possibilidade. Esta preguiça do espectador é também a de qualquer quadro intelectual, do especialista formado à pressa, que tentará em todos os casos esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos pela repetição dogmática de qualquer argumento de autoridade ilógica.

XI

Pensa-se geralmente que aqueles que demonstraram a maior incapacidade em matéria de lógica são precisamente aqueles que se proclamaram revolucionários. Esta censura injustificada vem de uma época anterior, onde quase toda a gente pensava com um mínimo de lógica, à notícia excepção dos cretinos e dos militantes; e entre estes últimos infundia-se muitas vezes a má fé, desejada porque julgada eficaz. Mas hoje já não é possível negligenciar que o uso intensivo do espectáculo, como seria de esperar, converteu em ideólogos a maioria dos contemporâneos, ainda que somente às sacudidelas e por fragmentos.

A falta de lógica, isto é, a perda da possibilidade de reconhecer instantaneamente o que é importante daquilo que é menor ou está fora de questão; o que é incompatível ou inversamente poderia bem ser complementar; tudo aquilo que implica tal consequência e o que, ao mesmo tempo, a proíbe; esta doença foi voluntariamente injectada em altas doses na população pelos anestesistas-reanimadores do espectáculo. Os contestatários não foram de nenhuma maneira mais irracionais do que a gente submissa. Só que, entre eles, esta irracionalidade geral vê-se mais intensamente, porque, ao apregoarem o seu projecto, tentaram levar a cabo uma operação prática; bastaria ler certos textos mostrando que eles compreendem o sentido. Entregaram-se a diversas obrigações que implicam dominar a lógica, e até a estratégia, que é exactamente o campo completo do desenvolvimento da lógica dialéctica dos conflitos; enquanto que, tal como todos os outros, eles estavam mesmo muito desprovidos da simples capacidade de se guiar pelos velhos instrumentos imperfeitos da lógica formal. Não há dúvidas a respeito deles, enquanto que não há muito para pensar a propósito dos outros.

O indivíduo a quem este pensamento espectacular empobrecido marcou profundamente, e mais que qualquer elemento da sua formação, coloca-se assim, desde o início, ao serviço da ordem estabelecida, ainda que a sua intenção subjectiva possa ser completamente contrária a esse resultado.

Ele seguirá no essencial a linguagem do espectáculo, porque é a única que Ihe é familiar: aquela em que Ihe ensinaram a falar. Sem dúvida quererá mostrar-se inimigo da sua retórica; mas empregará a sua sintaxe. Este é um dos pontes mais importantes do êxito obtido pela dominação espectacular.

O desaparecimento tão rápido do vocabulário pré-existente não é mais que um momento desta operação. Serve-a.

XII

O apagamento da personalidade acompanha fatalmente as condições da existência concretamente submetida às normas espectaculares, e também cada vez mais separada das possibilidades de conhecer experiências que sejam autênticas e, através delas, descobrir as suas preferências individuais. O indivíduo, paradoxalmente, deverá negar-se permanentemente se pretende ser um pouco considerado nesta sociedade. Esta existência postula com efeito uma fidelidade sempre variável, uma série de adesões constantemente enganosas a produtos falaciosos. Trata-se de correr rapidamente atrás da inflação dos sinais depreciados da vida. A droga ajuda a conformar-se com esta organização das coisas; a loucura ajuda a fugir dela.

Em todas as espécies de assuntos desta sociedade, onde a distribuição dos bens está de tal maneira centralizada que se tornou proprietária, de uma forma simultaneamente notória e secreta, da própria definição do que poderá ser o bem, acontece atribuir-se a certas pessoas qualidades, ou conhecimentos ou, por vezes, mesmo vícios, perfeitamente imaginários, para explicar através de tais causas o desenvolvimento satisfatório de certas empresas; e isto com o único fim de esconder, ou pelo menos dissimular tanto quanto possível, a função de diversos acordos que decidem sobre tudo.

Contudo, apesar das suas frequentes intenções, e dos seus pesados meios, para tornar notória a plena dimensão de numerosas personalidades supostamente notáveis, a sociedade actual, e não apenas por tudo aquilo que actualmente substituiu as artes ou pelos discursos a este respeito, revela muitas vezes o contrário: a incapacidade completa choca-se com uma outra capacidade comparável; aproximam-se, e uma encostará a outra à parede. Acontece com o advogado que, esquecendo que só figura num processo para defender uma causa, se deixa influenciar sinceramente por um raciocínio do advogado contrário; ainda que este possa ser tão pouco rigoroso como o seu próprio. Acontece também que um suspeito, inocente, confesse momentaneamente um crime que não cometeu, pela simples razão de ter ficado impressionado pela lógica da hipótese de um delator que queria culpabilizá-lo (caso do Dr. Archambeau, em Poitiers, em 1984).

Mesmo Mac Luhan, o primeiro apologista do espectáculo, que parecia o imbecil mais convencido do seu século, mudou de opinião ao descobrir finalmente, em 1976, que «a pressão dos mass media empurra para o irracional», e se tornaria urgente moderar-lhe o uso. Antes, o pensador de Toronto tinha passado várias décadas a maravilhar-se com as múltiplas liberdades que produzia esta «aldeia planetária», tão instantaneamente acessível a todos sem fadiga. As aldeias, contrariamente às cidades, foram sempre dominadas pelo conformismo, o isolamento, a vigilância mesquinha, o aborrecimento, os mexericos sempre repetidos sobre as mesmas famílias. E assim se apresenta daqui em diante a vulgaridade do planeta espectacular, onde já não é mais possível distinguir a dinastia dos Grimaldi-Mónaco, ou dos Bourbons-Franco, daquela que tinha substituído os Stuart. Porém, ingratos discípulos tentam hoje fazer esquecer Mac Luhan, e restaurar os seus primeiros achados, aspirando por sua vez a uma carreira no elogio mediático de todas essas novas liberdades que seriam a «escolher» aleatoriamente no efémero. E, provavelmente, estes renegar-se-ão mais depressa que o seu inspirador.

XIII

O espectáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. A poluição dos oceanos e a destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação de oxigénio da Terra; a sua capa de ozone resiste mal ao progresso industrial; as radiações de origem nuclear acumulam-se irreversivelmente. O espectáculo conclui somente que isso não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com isto consegue tranquilizar; o que para um espirito pré-espectacular seria tido por impossível.

Os métodos da democracia espectacular são de uma grande flexibilidade, contrariamente à simples brutalidade do diktat totalitário. Pode manter-se o nome quando a coisa foi secretamente transformada (da cerveja ao bife, passando por um filósofo). Também pode mudar-se o nome, quando a coisa foi secretamente continuada: por exemplo, em Inglaterra, a unidade de tratamento de resíduos nucleares de Windscale levou a fazer chamar Sellafield a sua localidade, a fim de melhor desviar as suspeitas, depois de um desastroso incêndio em 1957; mas este rebaptismo toponímico não impediu o aumento da mortalidade por cancro e leucemia nos seus arredores. O governo britânico, viemos a sabê-lo democraticamente trinta anos mais tarde, tinha decidido, então, manter secreto um relatório sobre a catástrofe que julgava, e não sem razão, de natureza a abalar a confiança que o público depositava no nuclear.

As práticas nucleares, militares ou civis, necessitam uma dose de segredo mais forte que quaisquer outras, ainda que, como se sabe, nestas matérias a segredo nunca é demais. Para facilitar a vida, quer dizer, as mentiras, os sábios escolhidos pelas senhores deste sistema descobriram a utilidade de mudar também as unidades de medida, diversificá-las segundo um maior número de pontos de vista, refiná-las para, conforme as circunstâncias, poder aldrabar com várias dessas cifras dificilmente convertíveis. É assim que para avaliar a radioactividade, pode dispor-se das unidades de medida seguintes: o curie, o becquerel, a röntgen, o rad, aliás centigray, o rem, sem esquecer o fácil milirad e o sivert, que é o mesmo que uma porção de 100 rems. Isto evoca a recordação das subdivisões da moeda inglesa cuja complexidade dificultava o rápido domínio para os estrangeiros, no tempo em que Sellafield ainda se chamava Windscale.

Imagina-se o rigor e a precisão que teriam podido alcançar no século XIX, a história das guerras e, por consequência, os teóricos da estratégia se — com o objectivo de não fornecer informações demasiado confidenciais aos comentadores neutros ou aos historiadores inimigos tivessem habitualmente de ser prestadas contas de uma campanha nestes termos: «A fase preliminar comporta uma série de confrontos onde, do nosso lado, uma sólida vanguarda, constituída por quatro generais e pelas unidades colocadas sob o seu comando, se confronta com um corpo inimigo contando 13.000 baionetas. Na fase posterior desenrola-se uma batalha campal longamente disputada onde se usou a totalidade do nosso exército, com os seus 290 canhões e a sua poderosa cavalaria de 18.000 sabres; enquanto que o adversário Ihe opôs tropas que não contavam com menos de 3.600 tenentes de infantaria, quarenta capitães de cavalaria ligeira e vinte e quatro de cavalaria pesada. Depois de alternâncias de reveses e de êxitos de parte a parte, a batalha pode ser considerada finalmente coma indecisa. As nossas perdas, muito abaixo da cifra média habitualmente verificada em combates com uma duração e intensidade comparáveis, são sensivelmente superiores às dos Gregos em Maratona, mas inferiores às dos Prussianos em Yena.» Depois deste exemplo, não é impossível a um especialista fazer uma ideia vaga das forças envolvidas. Mas a condução das operações tem a segurança de ficar acima de qualquer julgamento.

Em Junho de 1987, Pierre Bacher, director adjunto do equipamento da E.D.F. (Electricidade de França), Expôs a última doutrina em matéria de segurança das centrais nucleares. Dotando-as de válvulas e filtros torna-se bastante mais fácil evitar catástrofes maiores, a fissuração ou a explosão do recinto que afectariam o conjunto de uma «região». É este o resultado que se obtém ao querer confinar demasiado. Mais vale descomprimir suavemente de cada vez que a máquina ameaça ter tensões de passar os limites, contaminando uma vizinhança limitada de alguns quilómetros, vizinhança que será sempre diferente e aleatoriamente prolongada pelo capricho dos ventos. Ele revelou que, nos dois anos anteriores, os discretos ensaios levados a cabo em Cadarache, no Drôme, «mostraram concretamente que as fugas — essencialmente de gás não excedem alguns milionésimos, no pior dos casos um por cento, da radioactividade reinante no recinto» Este pior dos casas fica portanto moderadíssimo: um por cento. Antes estávamos seguros de que não havia nenhum risco, salve em caso de acidente, logicamente impossível. Os primeiros anos de experiência mudaram este raciocínio desta maneira: visto que o acidente é sempre possível, o que é preciso evitar é que atinja um limiar catastrófico, e é fácil: basta contaminar, pouco a pouco, com moderação. Quem não reconhece que é infinitamente mais saudável limitar-se durante alguns anos a beber 140 centilitros de vodka por dia, em vez de começar a emborrachar-se de uma só vez como os polacos?

É certamente uma pena que a sociedade humana enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objecção ao discurso mercantil; no momento em que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espectáculo de toda a réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar; e verdadeiramente já não sabe pensar. Por inabalável que seja o democrata, não preferiria que Ihe tivessem escolhido senhores mais inteligentes?

Na conferência internacional de expertos realizada em Genebra, em Dezembro de 1986, colocava-se simplesmente a questão duma interdição mundial da produção de clorofluorcarbonetos, o gás que faz desaparecer desde há pouco, mas a passos largos, a fina camada de ozone que protegia este planeta — havemos de recordá-lo... — contra as efeitos nocivos da radiação cósmica. Daniel Verilhe, representante da filial de produtos químicos da ELF-Aquitaine, e integrando a este titulo uma delegação francesa firmemente oposta a esta interdição, fazia uma observação plena de sentido: «são necessários pelo menos três anos para pôr em estado de funcionamento eventuais substitutos e os custos podem ser multiplicados por quatro.» Sabe-se que esta fugitiva capa de ozone, a uma tal altitude, não pertence a ninguém nem tem nenhum valor comercial. Portanto, o estratega industrial pôde fazer avaliai aos seus contraditores toda a sua inexplicável indiferença económica, através deste chamamento à realidade: «É muito arriscado basear uma estratégia industrial segundo imperativas de matéria ambiental.»

Aqueles que, há muito tempo, começaram a criticar a economia política definindo-a como «a negação acabada do homem», não se enganavam. Poder-se-á reconhecê-la neste episódio.

XIV

Ouve-se dizer que a ciência está actualmente submetida a imperativos de rentabilidade económica; na verdade sempre foi assim. O que é novo é que a economia venha a fazer abertamente guerra aos humanos; já não somente quanto às possibilidades da sua vida, como também às da sua sobrevivência. Foi então que o pensamento cientifico escolheu, contra uma grande parte do seu próprio passado antiesclavagista, servir a dominação espectacular. Antes de chegar a este ponto, a ciência possuía uma autonomia relativa. Então sabia pensar a sua parcela da realidade e, assim, tinha podido contribuir imensamente para aumentar os meios da economia. Quando a economia toda-poderosa enlouqueceu, e os tempos espectaculares não são mais do que isto, suprimiu os últimos vestígios da autonomia cientifica, tanto no campo metodológico como no das condições práticas da actividade dos «investigadores». Já não se pede à ciência que compreenda o mundo ou o melhore nalgurna coisa. Pede-se-lhe que justifique instantâneamente tudo o que faz. Tão estúpida neste terreno como em todos os outros, que explora com a mais ruínosa irreflexão, a dominação espectacular promoveu o abate da árvore gigantesca do conhecimento cientifico com o único fim de dela talhar uma matraca. Para obedecer a essa última exigência social de uma justificação manifestamente impossível, mais vale não saber pensar incomodamente e, pelo contrário, estar-se bastante bem exercitado nas comodidades do discurso espectacular. E é com efeito nesta carreira que a ciência prostituída destes tempos miseráveis encontrou agilmente, com muita boa vontade, a sua mais recente especialização.

A ciência da justificação mentirosa apareceu naturalmente depois dos primeiros sintomas de decadência da sociedade burguesa, com a proliferação cancerosa das pseudo-ciências ditas «do homem»; mas, por exemplo, a medicina moderna pôde fazer-se passar por útil durante algum tempo, e os que venceram a varíola ou a lepra eram diferentes destes que, com baixeza, capitularam perante as radiações nucleares ou a química agro-alimentar. Nota-se rapidamente que a medicina, hoje, indubitavelmente, já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patogénico, visto que isto seria opor-se ao Estado, ou pelo menos à indústria farmacêutica. Mas não é somente por aquilo que é obrigada a calar, que a actividade cientifica presente confessa aquilo em que se tornou. É também por aquilo que, muitas vezes, tem a simplicidade de dizer. Anunciando em Novembro de 1985, depois de uma experimentação de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem descoberto um remédio eficaz contra o S.I.D.A., os professores Even e Andrieu, do hospital de Laennec, viam morrer os seus doentes dois dias depois e suscitavam algumas reservas por parte de vários médicos, menos avançados ou talvez ciumentos, pela sua maneira precipitada de correr a registar, algumas horas antes da derrocada, o que não era mais que uma enganadora aparência de vitória. Aqueles professores defenderam-se sem se perturbar, afirmando que «apesar de tudo, mais valem falsas esperanças do que não haver esperança nenhuma». Eram mesmo demasiado ignorantes para reconhecer que este argumento, por si só, era uma completa negação do espirito cientifico e que tinha historicamente sempre servido para encobrir as proveitosas fantasias dos charlatães e dos feiticeiros, nos tempos em que não se Ihes confiava a direcção dos hospitais.

Quando a ciência oficial vem sendo conduzida deste modo, come todo o resto do espectáculo social que, sob uma apresentação materialmente modernizada e enriquecida, não fez mais que retomar as antiquíssimas técnicas do teatro de feira — ilusionistas, vendedores da banha da cobra e vígaros —, não pode surpreender ver que grande autoridade retomam paralelamente, um pouco por todo o lado, os bruxos e as seitas, o zen embalado em vácuo, ou a teologia dos Mormons. A ignorância, que bem serviu os poderes estabelecidos, foi sempre excessivamente explorada por engenhosas empresas que se mantinham à margem das leis. Que momento mais favorável que este em que o analfabetismo tanto progrediu? Mas esta realidade é por sua vez negada por uma outra demonstração de feitiçaria. A UNESCO, aquando da sua fundação, tinha adoptado uma definição cientifica muito precisa de analfabetismo, considerando tarefa sua combatê-lo nos países atrasados. Quando se viu reaparecer inesperadamente o mesmo facto, mas desta vez do lado dos países ditos avançados, tal como aquele que, contando com Grouchy, viu surgir Blucher na sua batalha, bastou-lhe encarregar da missão a Guarda dos Expertos, e estes rapidamente arrebataram a fórmula com um só assalto irresistível, substituindo o termo analfabetismo pelo de iletrismo: do mesmo modo um «falso patriota» pode aparecer oportunamente para apoiar uma boa causa nacional. E para alicerçar entre pedagogos a pertinência do neologismo faz-se rapidamente passar uma nova definição, come se estivesse aceite desde sempre, e segundo a qual, enquanto o analfabeto era, sabe-se, aquele que nunca tinha aprendido a ler, o iletrado em sentido moderno é, pelo contrário, aquele que aprendeu a ler (e aprendeu melhor que antes, come podem testemunhar desapaixonadamente os mais dotados teóricos e historiadores oficiais da pedagogia), mas que per acaso rapidamente esqueceu. Esta surpreendente explicação correria o risco de ser menos tranquilizadora que inquietante, se não tivesse a arte de evitar, falando de lado come se a não visse, a primeira consequência que ocorreria ao espirito de todos nas épocas mais cientificas: saber que este último fenómeno, o iletrismo, mereceria ser explicado e combatido, já que jamais pudera ser observado, nem mesmo imaginado, onde quer que fosse, antes dos recentes progressos do pensamento avariado; quando a decadência da explicação acompanha passo a passo a decadência da prática.

XV

Há mais de cem anos, o Nouveau Dictionaire des Synonymes français de A.-L. Sardou definia os matizes pouco sensíveis que é necessário discernir entre: falacioso, enganador, impostor, sedutor, insidioso, capcioso; e que em conjunto constituem hoje uma espécie de paleta de cores adequadas para um retrato da sociedade do espectáculo. Não pertence ao seu tempo, nem à sua experiência de especialista, expor tão claramente os sentidos vizinhos, mas tão diferentes, dos perigos que deve normalmente esperar-se enfrentar em todo o grupo que se entregue à subversão, e seguindo, por exemplo, esta gradação: enganado, provocado, infiltrado, manipulado, usurpado, arrependido. Estes matizes consideráveis, ainda assim, nunca foram evidentes aos doutrinários da «luta armada».

«Falacioso, do latim fallaciosus, hábil ou habituado a enganar, cheio de velhacaria: a terminação deste adjectivo (fallacieux, no original francês) equivale ao superlativo de enganador. Aquele que engana ou induz em erro seja de que maneira for, é enganador: o que é feito para enganar, abusar, lançar no erro por um desígnio consciente de enganar com o artifício e o instrumento impondo o mais apropriado para abusar, é falacioso. Enganador é uma palavra genérica e vaga; todos os sinais e aparências incertas são enganadores: falacioso designa a falsidade, a velhacaria, a impostura estudada; os discursos, os protestos, os raciocínios sofísticos são falaciosos. Esta palavra tem relações com as de impostor, de sedutor, de insidioso, de capcioso, mas sem Ihes equivaler. Impostor designa todo o género de falsas aparências ou de tramas concertadas para abusar ou para prejudicar, por exemplo, a hipocrisia, a calúnia, etc. Sedutor exprime a acção própria de apoderar-se de alguém, induzindo em erro por meios manhosos e insinuantes. Insidioso indica apenas a acção de armar manhosamente ciladas e de nelas fazer cair. Capcioso limita-se à acção subtil de surpreender alguém e de fazê-lo cair no erro. Falacioso reúne a maior parte destes caracteres.

XVI

O conceito, ainda novo, de desinformação foi recentemente importado da Rússia, justamente com outras invenções úteis à gestão dos Estados modernos. Este conceito é sempre abertamente utilizado por um poder, ou corolariamente por indivíduos que detêm um fragmento de autoridade económica ou política, para manter o que está estabelecido; e atribuindo sempre a esta utilização uma função contra-ofensiva. Aquilo que possa opor-se a uma única verdade oficial deve ser forçosamente uma desinformação emanando de potências hostis, ou pelo menos rivais, e terá sido intencionalmente falseada pela malevolência. A desinformação não seria a simples negação de um facto que convém is autoridades, ou a simples afirmação de um facto que não Ihes convém: a isto chama-se psicose. Contrariamente à pura mentira, a desinformação, e é nisto que o conceito é interessante para os defensores da sociedade dominante, deve fatalmente conter uma certa parte de verdade, mas deliberadamente manipulada per um hábil inimigo. O poder que fala de desinformação não acredita estar ele mesmo absolutamente sem defeitos, mas sabe que poderá atribuir a toda a critica precisa esta excessiva insignificância que está na natureza da desinformação; e que deste modo não terá de reconhecer nunca um defeito particular.

Em suma, a desinformação seria um mau uso da verdade. Quem a lança é culpado, e quem nela acredita imbecil. Mas quem seria então o hábil inimigo? Aqui, não pode ser o terrorismo, que não corre o risco de «desinformar» ninguém, já que esta encarregado de representar ontologicamente o erro mais estúpido e menos admissível. Graças a sua etimologia, e às recordações contemporâneas dos afrontamentos limitados que, por meados deste século, opuseram brevemente o Leste e o Oeste, espectacular concentrado e espectacular difuso, ainda hoje o capitalismo do espectacular integrado finge acreditar que o capitalismo de burocracia totalitária — apresentado mesmo por vezes como a base de retaguarda ou a inspiração dos terroristas — continua o seu inimigo essencial, assim como o outro dirá a mesma coisa do primeiro; apesar das provas inumeráveis da sua aliança e solidariedade profundas. De facto, todos os poderes instalados apesar de algumas reais rivalidades locais, e sem querer dizê-lo nunca, pensam continuamente aquilo que soube recordar um dia, do lado da subversão e sem grande sucesso no momento, um dos raros internacionalistas alemães depois do inicio da guerra de 1914: «O inimigo principal está dentro do nosso pais». A desinformação é finalmente o equivalente daquilo que representava, no discurso da guerra social do século XIX, «as más paixões». É tudo aquilo que é obscuro e arriscaria querer opôr-se à extraordinária felicidade com que esta sociedade, sabemo-lo bem, faz beneficiar aqueles que se têm fiado nela; felicidade que ignoraria ser excessivamente paga por diferentes riscos ou dissabores insignificantes. E todos aqueles que vêem essa felicidade no espectáculo admitem que não há que regatear o seu custo; enquanto que os outros desinformam.

Outra vantagem que se encontra ao denunciar, digamos assim, uma desinformação muito particular, é que em consequência o discurso global do espectáculo não será suspeito de a conter, já que pode designar, com a mais cientifica segurança, o terreno onde se reconhece a única desinformação: é tudo aquilo que pode dizer-se e que não Ihe agrada.

Sem dúvida por erro — a menos que este não fosse mais do que um logro deliberado — foi ventilado recentemente em França o projecto de atribuir oficialmente uma espécie de marca ao mediático «garantido sem desinformação»: isto melindrava alguns profissionais dos media, que queriam ainda acreditar, ou mais modestamente fazer crer, que não são efectivamente censurados no momento presente. Mas, sobretudo, o conceito de desinformação não tem evidentemente de ser utilizado defensivamente, e ainda menos numa defensiva estática, guarnecendo uma Muralha da China, uma Linha Maginot, que deveria cobrir absolutamente um espaço considerado como estando interdito à desinformação. É necessário que haja desinformação, e que ela se mantenha fluida, podendo passar per todo o lado. Lá onde o discurso espectacular não é atacado seria estúpido defendê-lo; e este conceito, contra a evidência, usar-se-ia rápidamente para o defender a respeito de assuntos que, pelo contrário, devem evitar chamar as atenções. Além disso, as autoridades não têm nenhuma necessidade real de garantir que uma informação precisa não conterá desinformação. Nem têm sequer os meios para fazê-lo: as autoridades não são tão respeitadas e não fariam mais que atrair a suspeita sobre a informação em causa. O conceito de desinformação só é bom no contra-ataque. Há que mante-lo em segunda linha, depois lançá-lo instantaneamente para a frente para repelir toda a verdade que venha a surgir.

Se por vezes uma espécie de desinformação desordenada, ao serviço de alguns interesses particulares passageiramente em conflito, arrisca aparecer e ser ela também credível, tornando-se incontrolável e opondo-se por isso ao trabalho de conjunto de uma desinformação menos irresponsável, isto não é porque haja motivos para temer que, naquela desinformação, se encontrem empenhados outros manipuladores mais expertos ou mais subtis: é simplesmente porque a desinformação desdobra-se agora num mundo onde já não há lugar para nenhuma verificação.

O conceito confusionista de desinformação foi posto em alerta para refutar instantaneamente, ao simples sussurro do seu nome, toda a critica que as diversas agências de organização do silêncio não foram capazes de fazer desaparecer. Por exemplo, poder-se-ia dizer um dia, se isso se revelasse desejável, que este escrito é um empreendimento de desinformação sobre o espectáculo; ou então, o que é a mesma coisa, de desinformação em detrimento da democracia.

Contrariamente aquilo que afirma o seu conceito espectacular invertido, a prática da desinformação só, pode servir o Estado aqui e agora, sob a sua condução directa ou por iniciativa daqueles que defendem os mesmos valores. De facto, a desinformação reside em toda a informação existente; e como seu carácter principal. Só é nomeada à onde é preciso manter, pela intimidação, a passividade. Lá onde a desinformação é nomeada não existe. Lá onde existe, não se a nomeia.

Quando ainda havia ideologias que se afrontavam, que se proclamavam por ou contra certo aspecto conhecido da realidade, havia fanáticos e mentirosos, mas não «desinformadores». Quando já não é permitido, pelo respeito do consenso espectacular ou ao menos por uma vontade de gloríola espectacular, dizer verdadeiramente aquilo a que alguém se opõe, ou também aquilo que alguém aprova em todas as suas consequências; mas onde alguém encontra muitas vezes a obrigação de dissimular um aspecto que se considera, por qualquer razão, como perigoso dentro daquilo que é suposto admitir-se, neste caso pratica-se a desinformação; como por irreflexão, ou como por esquecimento, ou como por pretendido falso raciocínio. E, por exemplo, no terreno da contestação depois de 1968, os recuperadores incapazes denominados então de «prositus» foram os primeiros desinformadores, porque dissimulavam tanto quanto possível as manifestações práticas através das quais se afirmou a crítica que se gabavam de adoptar; e, sem qualquer vergonha de enfraquecer-lhe a expressão não citavam nunca nada em ninguém, para ter o ar de terem eles próprios encontrado qualquer coisa.

XVII

Invertendo uma fórmula famosa de Hegel, já em 1967 notava eu que «num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso». Os anos passados desde então demonstraram os progressos deste princípio em cada domínio particular, sem excepção.

Assim, numa época em que não pode mais existir arte contemporânea, torna-se difícil julgar as artes clássicas. Aqui, como em tudo o resto, a ignorância só é produzida para ser explorada. Ao mesmo tempo que se perdem simultaneamente o sentido da história e o gosto, organizam-se as redes da falsificação. Basta ter os expertos e os avaliadores, o que é bastante fácil, para fazer passar tudo, já que nos negócios desta natureza, como finalmente em todos os outros, é a venda que autentifica todo o valor. Depois, são os coleccionadores ou os museus, particularmente americanos, que, abarrotados de falso, terão interesse em manter a boa reputação, do mesmo modo que o Fundo Monetário Internacional mantém a ficção do valor positivo das imensas dívidas de cem nações.

O falso forma o gosto, e sustenta o falso, fazendo cientemente desaparecer a possibilidade de referência com o autêntico. Refaz-se mesmo o verdadeiro, desde que seja possível, para fazê-lo assemelhar-se ao falso. Os americanos, sendo os mais ricos e os mais modernos, têm sido os maiores papalvos deste comércio do falso na arte. E são precisamente eles próprios quem financia os trabalhos de restauro de Versalhes ou da Capela Sistina. Por esta razão os frescos de Miguel Angelo deverão tomar as cores avivadas da banda desenhada, e os móveis autênticos de Versalhes o vivo brilho do dourado que os fará assemelhar-se muito ao falso mobiliário da época de Luís XIV importado pelo Texas a altos custos.

O julgamento de Feuerbach sobre o facto de que o seu tempo preferia «a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade», foi inteiramente confirmado pelo século do espectáculo, e isto nos diversos domínios em que o século XIX quisera ficar à margem daquilo que era já a sua natureza profunda: a produção industrial capitalista. Foi assim que a burguesia propagou bastante o espírito rigoroso do museu, do objecto original, da crítica histórica exacta, do documento autêntico. Mas hoje é por todo o lado que o copiado tem tendência a substituir o verdadeiro. Neste ponto, é muito oportunamente que a poluição devida à circulação dos automóveis obriga a substituir por réplicas em plástico os cavalos de Marly ou as estátuas romanas da fachada de Saint-Trophine. Em suma, tudo será mais belo que antes, para ser fotografado pelos turistas.

O ponto culminante é sem dúvida atingido pelo risível falso burocrático chinês das grandes estátuas do vasto exército industrial do Primeiro Imperador, que tantos homens de Estado em viagem foram, convidados a admirar in situ. Isto prova portanto que nenhuma dispunha, no conjunto dos seus conselheiros, de um só indivíduo que conhecesse a história da arte na China ou fora dela, visto que puderam gozar com eles tão cruelmente. Sabe-se que a sua instrução foi outra: «O computador de Vossa Excelência não foi informado». Esta constatação, de que pela primeira vez se pode governar sem ter nenhum conhecimento artístico nem nenhum sentido do autêntico ou do impossível, poderia por si só bastar para conjecturar que todos estes ingénuos patetas da economia e da administração vão provavelmente conduzir o mundo para uma grande catástrofe; se a sua prática efectiva não o tivesse já demonstrado.

XVIII

A nossa sociedade é construída no segredo, desde as «sociedades-ecrãs» que põem às escuras os bens concentrados dos possuidores, até ao «segredo-defesa» que cobre hoje um imenso domínio de plena liberdade extra-judicial do Estado; desde os segredos, muitas vezes assustadores, da fabricação-pobre, que se escondem atrás da publicidade, até às projecções das variantes do futuro extrapolado, sobre as quais só a dominação lê a marcha mais provável daquilo que ela afirma não ter nenhum tipo de existência, calculando as respostas que então empregará misteriosamente. A este propósito podem fazer-se algumas observações.

Cada vez há um maior número de lugares, tanto nas grandes cidades como nalguns espaços reservados da província, que são inacessíveis, isto é, guardados e protegidos de todo e qualquer olhar; colocados fora do alcance da curiosidade inocente, e fortemente abrigados da espionagem. Sem serem todos propriamente militares, inspiram-se nesse modelo colocando-se para lá do alcance de qualquer risco de verificação pelos transeuntes ou pelos habitantes; ou mesmo pela polícia, que viu desde há muito tempo as suas funções reconduzidas à simples vigilância e repressão da delinquência mais comum. Foi assim que, em Itália, quando Aldo Moro estava prisioneiro do Potere Due, não esteve detido num edifício mais ou menos difícil de encontrar, mas simplesmente num edifício impenetrável.

Cada vez há um maior número de homens formados para agir no segredo; instruídos e adestrados para só fazer isso. Trata-se de destacamentos especiais de homens armados de arquivos reservados, isto é, de observações e análises secretas. Outros estão armados de diversas técnicas para exploração e manipulação desses assuntos secretos. Finalmente, quando se trata dos seus ramos «Acção», eles podem igualmente estar equipados de outras capacidades de simplificação dos problemas estudados.

Enquanto que os meios atribuídos a estes homens especializados na vigilância e na influência se tornam maiores, também encontram as circunstâncias gerais que Ihe são de ano para ano mais favoráveis. Quando, por exemplo, as novas condições da sociedade do espectacular integrado forçaram a sua crítica a permanecer realmente clandestina, não porque se esconda mas porque é escondida pela pesada encenação do pensamento da diversão, aqueles que estão encarregados de vigiar esta crítica e na necessidade de a desmentir, podem finalmente empregar contra ela os recursos tradicionais no meio da clandestinidade: provocação, infiltração e diversas formas de eliminação da crítica autêntica em proveito de uma falsa que poderá ser colocada no seu lugar para esse efeito. A incerteza aumenta, a propósito de tudo, quando a impostura geral do espectáculo se enriquece com a possibilidade de recurso a mil imposturas particulares. Um crime inexplicado pode também ser chamado suicídio, na prisão como em qualquer outro lugar; e a dissolução da lógica permite investigações e processos que descolam verticalmente no absurdo, e que são frequentemente falsificados desde o princípio por extravagantes autópsias, executadas por singulares expertos.

Desde há muito tempo que estamos habituados a ver por todo o lado executar sumariamente todo o tipo de gente. Os terroristas conhecidos, ou considerados como tais, são combatidos abertamente duma maneira terrorista. A Mossad vai matar longe Abou Jihad, ou os S.A.S. ingleses os Irlandeses, ou a polícia paralela do «G.A.L.» os Bascos. Aqueles que são mortos por supostos terroristas, não são eles mesmos escolhidos sem razão; mas é geralmente impossível estar seguro de conhecer estas razões. Sabe-se que a estacão dos caminhos de ferro de Bolonha foi pelos ares, à bomba, para que a Itália continue a ser bem governada; e o que são os «Esquadrões da morte» no Brasil; e que a Mafia pode incendiar um hotel nos Estados Unidos para apoiar uma extorsão. Mas como saber para que puderam servir, no fundo, os «assassinos loucos de Brabante»? É difícil aplicar o princípio cui prodest? num mundo onde tantos interesses activos estão tão bem escondidos. De tal modo que, sob o espectacular integrado, vive-se e morre-se no ponto de confluência de um grande número de mistérios.

Os rumores mediático-policiais adquirem num instante, ou no pior dos casos depois de terem sido repetidos três ou quatro vezes, o peso indiscutível de provas históricas seculares. Segundo a autoridade lendária do espectáculo do dia, estranhos personagens eliminados no silêncio reaparecem como sobreviventes fictícios, cujo retorno poderá sempre ser evocado ou calculado, e provado pela mais simples diz-se dos especialistas. Algures entre Aqueronte e Letes estão estes mortos que não foram regularmente enterrados pelo espectáculo; é suposto estarem adormecidos, esperando que se queira acordá-los, todos, o terrorista descido de novo das colinas, e o pirata regressado do mar, e o ladrão que já não tem necessidade de roubar.

A incerteza está, assim, organizada por toda a parte. A protecção da dominação precede muitas vezes por falsos ataques, cujo tratamento mediático fará perder de vista a verdadeira operação: tal como o bizarro golpe de forca de Tejero e dos seus guardas civis nas Cortes espanholas em 1981, cujo fracasso deveria esconder um outro pronunciamento mais moderno, isto é, dissimulado, e que foi bem sucedido. Igualmente vistoso, o fracasso de uma sabotagem pelos serviços especiais franceses, em 1985, na Nova Zelândia, foi por vezes considerado como um estratagema, talvez destinado a desviar a atenção das numerosas novas funções destes serviços, pretendendo convencer da sua caricatural imperícia na escolha dos objectivos como nas modalidades de execução. E com mais segurança foi avaliado, quase por todo o lado, que as pesquisas geológicas de um jazigo petrolífero no subsolo da cidade de Paris, que foram ruidosamente levadas a cabo no Outono de 1986, não tinham outra intenção mais séria que a de medir o ponto que tinha podido alcançar a capacidade de embrutecimento e de submissão dos habitantes, mostrando-lhes uma pretendida pesquisa tão perfeitamente demencial no plano económico.

O poder tornou-se tão misterioso que, depois do assunto das vendas ilegais de armas ao Irão pela Presidência dos Estados Unidos, pode perguntar-se quem governa verdadeiramente nos Estados Unidos, a mais forte potência do mundo dito democrático? E, portanto, que diabo pode comandar o mundo democrático?

Mais profundamente, neste mundo oficialmente tão cheio de respeito por todas as necessidades económicas, ninguém sabe quanto custa verdadeiramente qualquer das coisas que se produzem: com efeito, a parte mais importante do custo real nunca é calculada; e o resto é mantido secreto.

XIX

O general Noriega tornou-se num instante conhecido mundialmente no princípio do ano de 1988. Era ditador sem título do Panamá, país sem exército, onde comandava a Guarda Nacional. Pois o Panamá não é verdadeiramente um Estado soberano: foi escavado pelo seu canal e não o contrário. O dólar é a sua moeda, e o verdadeiro exército ali estacionado é igualmente estrangeiro. Noriega tinha feito toda a sua carreira, nisto perfeitamente idêntica à de Jaruzelski na Polónia, como general-polícia ao serviço do ocupante. Era importador de droga para os Estados Unidos, pois o Panamá não produz o suficiente, e exportava para a Suíça os seus capitais «panamianos».Tinha trabalhado com a C.I.A. contra Cuba e, para ter a cobertura adequada às suas actividades económicas, tinha também denunciado às autoridades americanas, tão obcecadas por este problema, um certo número dos seus rivais na importação. O seu principal conselheiro em matéria de segurança, que provocava inveja em Washington, era o melhor do mercado, Michael Harari, antigo oficial da Mossad, o serviço secreto de Israel. Quando os americanos quiseram desfazer-se do personagem, porque alguns dos seus tribunais o tinham imprudentemente condenado, Noriega declarou-se disposto a defender-se durante mil anos, por patriotismo panamiano, simultaneamente contra o seu povo em revolta e contra o estrangeiro, e rapidamente recebeu a aprovação pública dos ditadores burocráticos mais austeros de Cuba e da Nicarágua, em nome do anti-imperialismo.

Longe de ser uma estranheza estritamente panamiana, este general Noriega, que vende tudo e simula tudo num mundo que por todo o lado faz o mesmo, era, ao mesmo tempo, como espécie de homem duma espécie de Estado, como espécie de general, como capitalista, perfeitamente representativo do espectacular integrado; e dos êxitos que este permite nas direcções mais variadas da sua política interior e internacional. É um modelo do príncipe do nosso tempo; e entre aqueles que se destinam a chegar e a ficar no poder, em qualquer sítio onde este possa estar, os mais capazes assemelham-se-lhe bastante. Não é o Panamá que produz tais maravilhas, é esta época.

XX

Para todo o serviço de informações, neste ponto em concordância com a justa teoria clausewitziana da guerra, um saber deve tornar-se um poder. Daqui este serviço obtém presentemente o seu prestígio, a sua espécie de poesia especial. Quando a inteligência foi tão absolutamente expulsa do espectáculo que não permite agir e nem diz grande coisa de verdade sobre a acção dos outros, quase parece ter-se refugiado entre aqueles que analisam as realidades e agem secretamente sobre as realidades. Recentemente, revelações que Margaret Thatcher tudo fez para abafar, mas em vão, autentificando-as deste modo, mostraram que em Inglaterra estes serviços tinham já sido capazes de levar à queda dum ministério cuja política consideravam perigosa. O desprezo geral que suscita o espectáculo restitui, assim, por novas razões, uma atracção para aquilo que pôde ser chamado, no tempo de Kipling, «o grande jogo».

A «concepção policial da história» era no século XIX uma explicação reaccionária, e ridícula, quando tantos e tão poderosos movimentos sociais agitavam as massas. Os pseudo-contestatários de hoje sabem-no bem, por ouvir dizer ou através de alguns livros, e julgam que esta conclusão permaneceu verdadeira para a eternidade. Eles nunca querem ver a prática real do seu tempo. Porque ela é triste demais para as suas frias esperanças. O Estado não o ignora e joga com isso.

No momento em que quase todos os aspectos da vida política internacional, e um número sempre crescente daqueles que contarn na política interna, são conduzidos e mostrados no estilo dos serviços secretos, com enganos, desinformação, dupla explicação — aquela que pode esconder uma outra, ou apenas parecê-lo —, o espectáculo limita-se a dar a conhecer o mundo fatigante do incompreensível obrigatório, uma aborrecida série de romances policiais privados de vida e onde sempre falta a conclusão. É então que a encenação realista de um combate de negros, de noite, num túnel, deve passar por um efeito dramático suficiente.

A imbecilidade crê que tudo é claro, quando a televisão mostrou uma bela imagem e a comentou com uma audaciosa mentira. A semi-élite contenta-se em saber que quase tudo é obscuro, ambivalente, «montado» em função de códigos desconhecidos. Uma elite mais fechada quereria saber o verdadeiro, muito difícil de distinguir claramente em cada caso particular, apesar de todos os dados reservados e das confidências de que pode dispor. É por isto que ela amaria conhecer o método da verdade, ainda que no seu seio este amor continue a ser geralmente infeliz.

XXI

O segredo domina este mundo, e em primeiro lugar como segredo da dominação. Segundo o espectáculo o segredo não seria mais que uma necessária excepção à regra da informação abundantemente oferecida por toda a superfície da sociedade, do mesmo modo que a dominação, neste «mundo livre» do espectacular integrado, se reduziria a não ser mais que um Departamento executivo ao serviço da democracia. Mas ninguém acredita verdadeiramente no espectáculo. Como aceitariam os espectadores a existência do segredo, que garante, por si só, que não podem gerir um mundo do qual ignoram as principais realidades, se a título extraordinário se Ihes pedisse verdadeiramente a sua opinião sobre a maneira de preceder? É um facto que o segredo não aparece a quase ninguém na sua pureza inacessível, e na sua generalidade funcional. Todos admitem que haja uma pequena zona de segredo reservada aos especialistas; e para a generalidade das coisas, muitos acreditam estar no segredo.

La Boétie demonstrou, no Discurso sobre a servidão voluntária, como o poder de um tirano deve encontrar numerosos apoios entre os círculos concêntricos dos indivíduos que nele encontram, ou crêem encontrar, o seu proveito. Da mesma maneira muitos, entre os políticos ou mediáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar deles como sendo irresponsáveis, conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se contenta com estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la; nem portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da realidade ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente protecção dos trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha. Pois as migalhas da informação oferecidas a estes familiares da tirania mentirosa estão normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: Contudo, satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a dominação, e nunca para a compreender efectivamente. Elas constituem o privilégio dos espectadores de primeira classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender algo, não servindo-se daquilo que se Ihes esconde, mas acreditando naquilo que se Ihes revela !

A dominação é lúcida pelo menos naquilo que espera da sua própria gestão, livre e sem entraves, um número bastante grande de catástrofes de primeira grandeza para muito em breve; e isto tanto nos campos ecológicos, químico, por exemplo, como nos domínios económicos, bancário, por exemplo. Desde há algum tempo, a dominação colocou-se em situação de tratar estas desgraças excepcionais de forma diferente do habitual manejo da doce desinformação.

XXII

Quanto aos assassinatos, em número crescente desde há mais de duas décadas, que ficaram inteiramente por explicar, — pois, se foi por vezes sacrificado algum comparsa, jamais esteve em questão chegar aos comandatários —, o seu carácter de produção em série tem marca própria: as mentiras evidentes, e variáveis, das declarações oficiais; Kennedy, Aldo Moro, Olof Palme, ministros ou financeiros, um ou dois papas, e outros que valiam mais do que eles. Este síndroma de uma doença social recentemente adquirida espalhou-se rapidamente um pouco por toda a parte, como se a partir dos primeiros casos observados, ele descesse dos píncaros dos Estados, esfera tradicional deste género de atentados, e como se, ao mesmo tempo, ele subisse do bas-fond, outro lugar tradicional de tráficos ilegais e protecções entre profissionais, onde sempre se desenrolou este género de guerra. Estas práticas tendem a encontrar-se na meio de todos os negócios da sociedade, como se de facto o Estado não desdenhasse misturar-se nelas, e a Mafia conseguisse elevar-se até ele, operando-se, assim, uma espécie de junção.

Ouviu-se já dizer de tudo para tentar explicar acidentalmente este novo género de mistérios: incompetência das polícias, palermice dos juizes de instrução, inoportunas revelações da imprensa, crise de crescimento dos serviços secretos, má vontade das testemunhas, greve categórica dos delatores. Todavia, Edgar Poe tinha já encontrado a direcção certa da verdade, no seu célebre raciocínio no Duplo assassinato na rua Morgue

«Parece-me que o mistério é considerado como irresolúvel, pela mesma razão que deveria fazer vê-lo como fácil de resolver — refiro-me ao carácter excessivo sob o qual se manifesta... Em investigações do género desta que nos ocupa, não é tão necessário saber-se como se passaram as coisas, mas antes estudar em que é que elas se destinguem de tudo aquilo que aconteceu até ao presente.»

XXIII

Em Janeiro de 1988, a Mafia colombiana da droga publicava um comunicado destinado a rectificar a opinião pública sobre a sua pretendida existência. A maior exigência duma Mafia, onde quer que possa estar constituída, é naturalmente estabelecer que não existe, ou que foi vítima de calúnias pouco científicas; esta é a primeira semelhança com o capitalismo. Mas na circunstância, esta Mafia irritada por ser a única posta em evidência chegou a evocar os outros agrupamentos que queriam fazer-se esquecer, tornando-a abusivamente por bode expiatório. Declarava: «Nós não pertencemos à Mafia burocrática e política, nem à dos banqueiros e financeiros, nem à dos milionários, nem à Mafia dos grandes contratos fraudulentos, à dos monopólios ou à do petróleo, nem à dos grandes meios de comunicação.»

Pode seguramente considerar-se que os autores desta declaração, como os outros, têm interesse em verter as suas práticas no vasto rio de águas turvas da criminalidade e das ilegalidades banais, que inunda em toda a sua extensão a sociedade actual; mas também é justo reconhecer que se trata de pessoas que, por profissão, sabem melhor que ninguém do que falam. A Mafia desenvolve-se por todo o lado e ainda melhor no terreno da sociedade moderna. Está em crescimento tão rápido como os outros produtos do trabalho pelo qual a sociedade do espectacular integrado talha o seu mundo. A Mafia cresce com os imensos progressos dos computadores e da alimentação industrial, da completa reconstrução urbana e dos bairros-da-lata, dos serviços especiais e do analfabetismo.

XXIV

A Mafia não era mais que um arcaísmo transplantado, quando no princípio do século começou a manifestar-se nos Estados Unidos, com a imigração de trabalhadores sicilianos; na mesma altura em que apareciam na costa oeste as guerras de gangs entre as sociedades secretas chinesas. Fundada no obscurantismo e na miséria, a Mafia não podia implantar-se na mesma altura na Itália do Norte. Parecia condenada a desaparecer por todo o lado perante o Estado moderno. Era uma forma de crime organizado que não podia prosperar senão na «protecção» de minorias atrasadas, fora do mundo urbano, lá onde não podia penetrar o controlo duma polícia racional e das leis da burguesia. A táctica defensiva da Mafia nunca podia ser outra que não fosse a supressão das testemunhas, para neutralizar a polícia e a justiça, e fazer reinar na sua esfera de actividade o segredo que Ihe é necessário. Em seguida encontrou um campo novo no novo obscurantismo da sociedade do espectacular difuso, depois integrado: com a vitória total do segredo, a demissão geral dos cidadãos, a perda completa da lógica, os progressos da corrupção e da cobardia universais, todas as condições favoráveis foram reunidas para que ela chegasse a ser uma potência moderna e ofensiva.

A Proibição americana — grande exemplo das pretensões dos Estados deste século no controlo autoritário de tudo, e dos resultados que daqui decorrem — deixou ao crime organizado, durante mais de uma década, a gestão do comércio do álcool. A partir daí, a Mafia, enriquecida e exercitada, ligou-se à política eleitoral, aos negócios, ao desenvolvimento do mercado de assassinos profissionais, a certos detalhes da política internacional. Deste modo a Mafia foi favorecida pelo governo de Washington durante a Segunda Guerra Mundial, para ajudar à invasão da Sicília. O álcool legalizado foi substituído pelos estupefacientes, que se constituíram então como mercadoria-vedeta dos consumos ilegais. Depois a Mafia adquiriu uma importância considerável no ramo imobiliário, nos bancos, na alta política e nos altos negócios de Estado, por fim nas indústrias do espectáculo: televisão, cinema, edição. É também já uma realidade, pelo menos nos Estados Unidos, na própria indústria discográfica, corno em todos os ramos em que a publicidade de um produto depende de um número bastante concentrado de indivíduos. Pode-se, pois, facilmente fazer pressão sobre eles, comprando-os ou intimidando-os, já que se dispõe evidentemente de capitais suficientes, ou de homens de mão que não podem ser reconhecidos nem punidos. Corrompendo os disc-jokeys, decide-se, assim, daquilo que deverá ser o êxito, entre mercadorias tão igualmente miseráveis.

Foi sem dúvida em Itália que a Mafia, no regresso das suas experiências e conquistas americanas alcançou a maior força: depois da época do seu compromisso histórico com o governo paralelo, encontrou-se em situação de mandar matar juizes de instrução ou chefes da polícia; prática que ela tinha podido inaugurar durante a sua participação nas montagens do «terrorismo» político. Em condições relativamente independentes, a evolução similar do equivalente japonês da Mafia prova bem a unidade da época.

É enganador querer explicar qualquer coisa opondo a Mafia ao Estado: nunca estão em rivalidade. A teoria verifica com facilidade aquilo que todos os rumores da vida prática tinham muito facilmente demonstrado. A Mafia não é estranha neste mundo; ela está nele como em sua casa. No momento do espectacular integrado, a Mafia reina de facto como o modelo de todas as empresas comerciais avançadas.

XXV

Com as novas condições que predominam actualmente na sociedade esmagada pelo tacão de ferro do espectáculo, sabe-se que, por exemplo, um assassinato político é visto a uma outra luz; de algum modo velada. Há em toda a parte muitos mais loucos que outrora, mas o que é infinitamente mais cómodo é que pode falar-se disso loucamente. E não é um terror reinante qualquer quem imporia tais explicações mediáticas. Pelo contrário, é a existência passiva de tais explicações que deve causar terror.

Quando em 1914, estando eminente a guerra, Villain assassinou Jaurés, ninguém duvidou que Villain, indivíduo sem dúvida bem pouco equilibrado, acreditou dever matar Jaurés porque este aparecia, aos olhos dos extremistas da direita patriótica que tinham influenciado profundamente Villain, como alguém que seria certamente nocivo para a defesa do país. Estes extremistas apenas tinham subestimado a imensa força do consenso patriótico no partido socialista, que devia impeli-lo instantaneamente à «união sagrada»; que Jaurés fosse assassinado ou, pelo contrário, se Ihe deixasse a ocasião de manter firme a sua posição internacionalista ao recusar a guerra. Hoje, em presença de um tal acontecimento, os jornalistas-policiais, expertos notórios em «factos de sociedade» e em «terrorismo», diriam imediatamente que Villain era sobejamente conhecido por ter várias vezes esboçado tentativas de homicídio, impulso visando em todas elas homens, que podiam professar opiniões políticas muito diversas, mas que tinham por acaso uma parecença, física ou de vestuário, com Jaurés. Psiquiatras atestá-lo-iam e os media, afirmando nem mais nem menos o que aqueles Ihes tinham dito, atestariam com este mesmo facto a sua competência e imparcialidade de expertos incomparavelmente autorizados. Depois, a investigação policial oficial poderia estabelecer, a partir do dia seguinte, que se acabavam de descobrir diversos homens honrados prontos a testemunhar o facto deste mesmo Villain, considerando-se um dia mal servido na «Chope du Croissant», ter, na presença deles, exuberantemente ameaçado vingar-se proximamente do dono do café abatendo à vista de toda a gente, naquele mesmo lugar, um dos seus melhores clientes.

Isto não quer dizer que, no passado, a verdade se impunha muitas vezes e sem demora; já que Villain foi finalmente absolvido pela Justiça francesa. Não foi fuzilado senão em 1936, quando rebentou a revolução espanhola, pois tinha cometido a imprudência de residir nas ilhas Baleares.

XXVI

E porque as novas condições dum manejo proveitoso dos assuntos económicos o exigem imperativamente, no momento em que o Estado detém uma parte hegemónica na orientação da produção e onde a procura para todas as mercadorias depende estreitamente da centralização realizada na informação-incitação espectacular, à qual deverão também adaptar-se as formas de distribuição, que por todo o lado se vê constituírem-se redes de influência ou sociedades secretas. Não é mais que um produto natural do movimento de concentração de capitais, da produção, da distribuição. Nesta matéria, aquilo que não se estende deve desaparecer; e nenhuma empresa pode estender-se sem os valores, as técnicas, os meios, daquilo que são hoje a indústria, o espectáculo, o Estado. Em última análise é o desenvolvimento particular escolhido pela economia da nossa época, que vem impor por toda a parte a formação de novos laços pessoais de dependência e de protecção.

É justamente neste ponto que reside a profunda verdade desta fórmula, tão bem compreendida em toda a Itália, usada pela Mafia siciliana: «Quem tem dinheiro e amigos ri-se da Justiça». No espectacular integrado, as leis dormem; porque não foram feitas para as novas técnicas de produção, e porque elas são torneadas na distribuição por acordos de um tipo novo. O que pensa ou prefere o público não tem importância. Eis o que é escondido pelo espectáculo de tantas sondagens de opinião, de eleições, de restruturações modernizantes. Quem quer que sejam os vencedores, o menos bom será arrebatado pela amável clientela: já que terá sido exactamente isso que foi produzido para ela.

Só se fala continuamente de «Estado de Direito», a partir do momento em que o Estado moderno dito democrático deixou em geral de o ser. Não é de modo nenhum por acaso que a expressão só foi popularizada pouco depois de 1970 e, em primeiro lugar, justamente em Itália. Em muitos domínios, fazem-se mesmo leis precisamente para que sejam torneadas, por aqueles que justamente possuirão todos os meios para isso. A ilegalidade em certas circunstâncias, por exemplo, à volta do comércio mundial de todo o tipo de armamentos, e mais frequentemente envolvendo produtos da mais alta tecnologia, não é mais que uma espécie de força de apoio da operação económica, que se encontrará muito mais rentável. Hoje muitos negócios são necessariamente desonestos como o século, e não como eram outrora aqueles que praticavam, em séries claramente delimitadas, os homens que tinham escolhido os caminhos da desonestidade.

À medida que crescem as redes de promoção-controlo para balizar e dominar os sectores exploráveis do mercado, aumenta também o número de serviços pessoais que não podem ser recusados àqueles que estão ao corrente, e que não têm proveito em recusar essa ajuda; e nem sempre se trata de polícias ou dos guardiões dos interesses ou da segurança do Estado. As cumplicidades funcionais comunicam a grande distância, e por muito tempo, pois as suas redes dispõem de todos os meios para impôr estes sentimentos de reconhecimento ou de fidelidade que, infelizmente, foram sempre tão raros na actividade livre dos tempos burgueses.

Aprende-se sempre alguma coisa do adversário. É preciso acreditar que os homens de Estado foram levados, também eles, a ler as observações do jovem Lukàcs sobre os conceitos de legalidade e de ilegalidade, no momento em que tiveram de tratar da passagem efémera duma nova geração do negativo — Homero disse que «uma geração de homens passa tão rápida como uma geração de folhas». Os homens de Estado, desde então, puderam deixar, como nós, de embaraçar-se com qualquer tipo de ideologia sobre esta questão; a verdade é que as práticas da sociedade espectacular não favoreciam absolutamente nada as ilusões ideológicas deste tipo. A propósito de nós todos, finalmente, poder-se-á concluir que aquilo que nos impediu muitas vezes de nos envolvermos numa só actividade ilegal foi termos tido várias.

XXVII

Tucídides, no livro VIII, capítulo 66, da Historia da Guerra do Peloponeso diz, a propósito das operações de uma outra conspiração oligárquica, algo que tem muito de parecido com a situação em que nos encontramos: «Mas para além disso, aqueles que ali tomavam a palavra faziam parte da conspiração e os discursos que pronunciavam tinham sido submetidos ao exame prévio dos seus amigos. Nenhuma oposição se manifestava entre o resto dos cidadãos, que temiam o número de conjurados. Logo que algum ensaiava, apesar de tudo, contradizê-los, encontrava-se em seguida um meio cómodo de eliminá-lo. Os assassinos não eram procurados e nenhuma perseguição era iniciada contra aqueles de quem se suspeitava. O povo não reagia e as gentes estavam de tal forma aterrorizadas que se consideravam felizes, ainda que calando, por escapar às violências. Imaginando os conjurados bem mais numerosos do que eram na realidade, tinham o sentimento de uma impotência completa. A cidade era demasiado grande e eles não se conheciam o suficiente entre si para que Ihes fosse possível descobrir o que cada um era verdadeiramente. Nestas condições, por indignado que se estivesse, não se podia confiar estas queixas a ninguém. Devia portanto renunciar-se à preparação de uma acção contra os culpados, pois para isso seria necessário dirigir-se a um desconhecido ou a uma pessoa conhecida de quem se desconfiava. No partido democrático, as relações pessoais estavam por toda a parte marcadas pela desconfiança e sempre ficava a dúvida se aquele com quem se tinha relação não era conivente com os conjurados. Com efeito, entre estes últimos havia homens de quem nunca se teria acreditado que se unissem à oligarquia.»

Se a história nos deve regressar depois deste eclipse, o que depende de factores ainda em luta e, portanto, dum resultado que ninguém poderá excluir com certeza, estes Comentários poderão servir para escrever um dia a história do espectáculo; sem dúvida o mais importante acontecimento que se produziu neste século; e também aquele que menos se arriscou explicar. Em circunstâncias diferentes, creio que poderia considerar-me grandemente satisfeito pelo meu primeiro trabalho sobre este assunto e deixar a outros o cuidado de observar a continuação. Mas, no momento em que estamos, pareceu-me que nenhum outro o faria.

XXVIII

Das redes de promoção-controlo desliza-se insensivelmente para as redes de vigilância-desin-formação. Antigamente, apenas se conspirava contra uma ordem estabelecida. Hoje conspirar a seu favor é uma nova profissão em grande desenvolvimento. Sob a dominação espectacular, conspira-se para a manter, e para assegurar aquilo que só ela poderá chamar o seu bom rumo. Esta conspiração faz-parte do seu próprio funcionamento.

Começou-se já a colocar no sítio alguns meios de uma espécie de guerra civil preventiva, adaptados a diferentes projecções do futuro calculado. Trata-se das «organizações específicas» encarregadas de intervir nalguns pontos segundo as necessidades do espectacular integrado. Previu-se, assim, para a pior das eventualidades, uma táctica, dita por chalaça «das Três Culturas», em evocação duma praça do México no Verão de 1968, mas desta vez sem cerimónias e que, de resto, deveria ser aplicada antes do dia da revolta. E fora casos tão extremos, não é necessário, para ser um bom meio de governo, que o assassinato inexplicado toque muita gente ou reapareça frequentemente: o simples facto de saber-se que essa possibilidade existe, complica imediatamente os cálculos num vasto número de domínios. Não há sequer necessidade de ser inteligentemente selectivo, ad hominem. O emprego deste procedimento, duma maneira puramente aleatória, seria talvez mais produtivo.

Está-se também em situação de mandar compôr fragmentos de uma crítica social de domesticação que deixará de ser confiada aos universitários ou aos mediáticos, a quem mais vale daqui em diante manter afastados das mentiras demasiado tradicionais neste debate; mas será uma crítica melhor, lançada e explorada de uma forma nova, manejada por uma outra espécie de profissionais, melhor formados. Começam a aparecer, de urna maneira bastante confidencial, textos lúcidos, anónimos ou assinados por desconhecidos — táctica aliás facilitada pela concentração de conhecimentos de todos sobre os bobos do espectáculo; a qual faz com que os desconhecidos pareçam justamente os mais estimáveis -, não apenas sobre temas que nunca são abordados no espectáculo, mas ainda com argumentos cuja justeza é tornada mais marcante pela espécie de originalidade, calculável, que Ihes advém do facto de não serem em suma nunca utilizados, ainda que sejam bastante evidentes. Esta prática pode servir pelo menos de primeiro grau de iniciação para recrutar espíritos um pouco despertos, a quem se dirá mais tarde, se forem proveitosos, uma maior dose da continuação possível. E o que será para alguns, o primeiro passo de uma carreira, será para outros — menos bem classificados — o primeiro degrau da armadilha na qual serão apanhados.

Em certos casos, trata-se de criar, sobre questões que correriam o risco de tornar-se escaldantes, uma outra pseudo-opinião crítica; e entre as duas opiniões que, assim, surgiriam uma e outra estranhas às miseráveis convenções espectaculares, o juízo ingénuo poderá oscilar indefinidamente, e a discussão para as avaliar será relançada cada vez que convenha. Trata-se a maior parte das vezes de um discurso geral sobre aquilo que está mediaticamente escondido e este discurso poderá ser fortemente crítico, e nalguns pontes manifestamente inteligente, mas ficando curiosamente descentrado. Os temas e as palavras foram seleccionados artificialmente, com a ajuda de computadores informados em pensamento crítico. Há nestes textos algumas falhas, bem pouco visíveis, mas apesar disso dignas de ser assinaladas: neles, o ponto de fuga da perspectiva está sempre anormalmente ausente. Parecem-se com o fac-simile de uma arma célebre, a que falta apenas o percutor. É necessariamente uma crítica lateral que vê várias coisas com muita franqueza e justeza, mas colocando-se de lado. Isto não porque finja uma qualquer imparcialidade, pois é-lhe necessário pelo contrário ter ar de censurar muito, mas sem nunca mostrar sentir a necessidade de deixar aparecer qual é a sua causa; portanto, de dizer, mesmo implicitamente, donde vem e para onde desejaria ir.

A esta espécie de falsa crítica contra-jornalística, pode juntar-se a prática organizada do rumor, do qual se sabe ser originariamente uma espécie de resgate selvagem da informação espectacular, pois, toda a gente pressente nele, pelo menos vagamente, um carácter enganador, e daí a pouca confiança que merece. O rumor foi na sua origem supersticioso, ingénuo, auto-intoxicado. Mas, mais recentemente, a vigilância começou a colocar na população gente susceptível de lançar, ao primeiro sinal, os rumores que poderão convir-lhe. Aqui, decidiu-se aplicar na prática as observações de uma teoria formulada há perto de trinta anos, e cuja origem se encontrava na sociologia americana da publicidade: a teoria dos indivíduos a quem se pôde chamar de «locomotivas», isto é, que outros a sua volta vão ser levados a seguir e imitar, mas passando desta vez do espontâneo ao preparado. Presentemente também se libertaram os meios orçamentais ou extra-orçamentais para sustentar muitos supletivos, ao lado dos anteriores especialistas, universitários e mediáticos, sociólogos ou polícias, do passado recente. Acreditar que se aplicam ainda mecanicamente alguns modelos conhecidos do passado é tão enganador como a ignorância geral do passado. «Roma já não é Roma» e a Mafia já não é a ralé. E os serviços de vigilância e desinformação parecem-se cada vez menos com o trabalho dos policias e informadores de outrora — por exemplo, aos bófias e bufos do Segundo Império — assim como os serviços especiais actuais, em todos os países, se parecem pouco com as actividades dos oficiais da Segunda Divisão do Estado-Naior do Exército em 1914.

Desde que a arte morreu, sabe-se que se tornou extremamente fácil disfarçar polícias de artistas. Quando as últimas imitações dum neo-dadaismo regressado são autorizadas a pontificar gloriosamente no mediático, e, portanto, também a modificar um pouco a decoração dos palácios oficiais, como os bobos dos reis de pacotilha, vê-se que simultaneamente uma cobertura cultural se encontra garantida a todos os agentes ou auxiliares das redes de influência do Estado. Abrem-se pseudo-museus vazios, ou pseudo-centros de investigação sobre a obra completa duma personagem inexistente, tão depressa como se faz a reputação de jornalistas-policiais, ou historiadores-policiais, ou romancistas-policiais. Arthur Cravan via sem dúvida chegar este mundo quando escrevia em Maintenant: «Na rua em breve não se verá senão artistas, e ter-se-á todas as dificuldades do mundo para aí descobrir um homem.» Tal é também o sentido desta forma rejuvenescida dum antigo dito humorístico da vadiagem de Paris: «0lá artistas! Estou-me a cagar se me engano.»

Tendo chegado as coisas a serem aquilo que são, pode ver-se alguns autores colectivos empregados da edição mais moderna, quer dizer, aquela que dispõe da melhor difusão comercial. Sendo a autenticidade dos seus pseudónimos assegurada apenas pelos jornais, estes autores colectivos repetem-se, colaboram, substituem-se, empregam novos cérebros artificiais. Estão encarregados de exprimir o estilo de vida e de pensamento da época, não em virtude da sua personalidade, mas segundo ordens. Aqueles que pensam que eles são verdadeiramente empreendedores literários individuais, independentes, podem então chegar a assegurar sabiamente que, agora, Ducasse zangou-se com o conde de Lautréamont; que Dumas não é Macquet e que é preciso sobretudo não confundir Erckman com Chatrian; e que Censier e Daubenton já não se falam. Seria melhor dizer que este género de autores modernos quis seguir Rimbaud, pelo menos nisto, «Eu é um outro».

Os serviços secretos foram chamados por toda a história da sociedade espectacular a jogar nela o papel de placa giratória central, já que neles se concentram ao mais alto grau as características e os meios de execução duma semelhante sociedade. São também cada vez mais encarregados de arbitrar os interesses gerais desta sociedade, ainda que sob o seu modesto título de «serviços». Não se trata de abuso, já que eles exprimem fielmente os costumes ordinários do século do espectáculo. E é assim que vigilantes e vigiados se afastam rapidamente num oceano sem limites. O espectáculo fez triunfar o segredo, e este deverá permanecer cada vez mais nas mãos dos especialistas do segredo que, bem entendido, não são todos funcionários autonomizando-se, a diferentes níveis, do controlo do Estado; que não são todos funcionários.

XXIX

Uma lei geral do funcionamento do espectacular integrado, pelo menos para aqueles que Ihe gerem a conduta é que, neste quadro, tudo aquilo que pode fazer-se deve ser feito. Quer dizer que todo o novo instrumento deve ser utilizado, custe o que custar. A ferramenta nova torna-se em todo o lado o fim e o motor do sistema; e será a única a poder modificar consideravelmente a sua marcha, cada vez que o seu emprego é imposto sem outra reflexão. Os proprietários da sociedade, com efeito, querem antes de mais manter uma certa «relação social entre as pessoas» mas é-lhes necessário também continuar nela a renovação tecnológica incessante; porque esta foi uma das obrigações que aceitaram com a sua herança. Por conseguinte, esta lei aplica-se igualmente aos serviços que protegem a dominação. O instrumento que se pôs em estado de funcionamento deve ser utilizado e o seu uso reforçará as mesmas condições que favorecem este emprego. É assim que os procedimentos de urgência se tornam processes de sempre.

A coerência da sociedade do espectáculo tem, duma certa maneira, dado razão aos revolucionários, visto que se tornou claro que nela não pode reformar-se o mais pequeno detalhe sem desfazer o conjunto. Mas, ao mesmo tempo, esta coerência suprimiu toda a tendência revolucionária organizada suprimindo os terrenos sociais onde ela tinha podido, mais ou menos bem, exprimir-se: do sindicalismo aos jornais, da cidade aos livros. Num mesmo movimento pôs-se a claro a incompetência e a irreflexão de que esta tendência era naturalmente portadora. E no plano individual, a coerência que reina é bem capaz de eliminar, ou comprar, certas excepções eventuais.

XXX

A vigilância poderia ser muito mais perigosa se não tivesse sido empurrada, na via do controlo absoluto de todos, até a um ponto onde ela encontra dificuldades resultantes dos seus próprios progressos. Há contradição entre a massa de informações recolhidas sobre um número crescente de indivíduos, e o tempo e a inteligência disponíveis para as analisar; ou muito simplesmente o seu possível interesse. A abundância da matéria obriga a resumi-la a cada passo: muita desaparece, e a restante é ainda demasiado extensa para ser lida. A conduta da vigilância e da manipulação não esta unificada. Em todo o lado, com efeito, luta-se pela partilha dos benefícios; e, por conseguinte, também pelo desenvolvimento prioritário desta ou daquela virtualidade da sociedade existente, em detrimento de todas as suas outras virtualidades que, entretanto, são tidas por igualmente respeitáveis, contanto que sejam da mesma laia.

Luta-se também por jogo. Cada oficial implicado é levado a sobrevalorizar os seus agentes, e também os adversários de que se ocupa. Cada país, sem fazer menção das numerosas alianças supra-nacionais, possui presentemente um numero indeterminado de serviços de polícia ou contra-espionagem, e de serviços secretos estatais ou para-estatais. Existem também muitas companhias privadas que se ocupam da vigilância, protecção, informação. As grandes firmas multinacionais têm naturalmente os seus próprios serviços; mas igualmente as empresas nacionalizadas, mesmo de dimensão modesta, que não deixam de ter a sua política independente, no plano nacional e por vezes internacional. Pode ver-se um grupo industrial nuclear opor-se a um grupo petrolífero, ainda que sejam um e outro propriedade do mesmo Estado e, mais ainda, que estejam dialecticamente unidos um ao outro pelo seu apego em manter elevado o preço do petróleo no mercado mundial. Cada serviço de segurança duma indústria particular combate a sabotagem no seu seio, e em caso de necessidade organiza-a no seu rival: quem investe grandes interesses num túnel submarino é favorável à insegurança dos ferry-boats e pode pagar a jornais em dificuldades para a fazer sentir na primeira ocasião, e sem demorada reflexão; e quem faz concorrência à Sandoz é indiferente aos lençóis de água freáticos do Vale do Reno. Vigia-se secretamente o que é secreto. De maneira que cada um desses organismos, confederados com muita flexibilidade à volta daqueles que têm a seu cargo a razão de Estado, aspira por conta própria a uma espécie de hegemonia privada de sentido. Pois o sentido perdeu-se com o centro conhecível.

A sociedade moderna que, até 1968, ia de êxito em êxito e estava persuadida de que era amada, teve de renunciar desde então a estes sonhos; prefere ser temida. Sabe bem que «o seu ar de inocência já não voltará mais».

Assim, mil e uma conspirações a favor da ordem estabelecida enredam-se e combatem-se um pouco por todo o lado, com a imbricação cada vez mais estendida das redes e das questões ou acções secretas; e o seu processo de integração rápida em cada ramo da economia, da política, da cultura. O teor da mistura em observadores, em desinformadores, em serviços especiais, aumenta continuamente em todas as zonas da vida social. A conspiração geral tornou-se tão densa que se espalha quase às claras, cada um dos seus ramos pode começar a incomodar ou inquietar o outro, pois todos estes conspiradores profissionais chegam a observar-se sem saber exactamente porquê, ou encontram-se por acaso, sem poder recolher-se com segurança. Quem quer observar quem? Por conta de quem, aparentemente? Mas na realidade? As verdadeiras influências permanecem escondidas e as últimas intenções não podem ser senão muito dificilmente suspeitadas, quase nunca compreendidas. De modo que ninguém pode dizer que não é enganado ou manipulado, mas é só em raros instantes que o próprio manipulador pode saber se foi vencedor. E, por outro lado, encontrar-se do lado ganhador da manipulação não quer dizer que se tenha escolhido com justeza a perspectiva estratégica. É assim que êxitos tácticos podem atolar grandes forças em maus caminhos.

Numa mesma rede, perseguindo aparentemente um mesmo fim, aqueles que não constituem senão uma parte da rede são obrigados a ignorar todas as hipóteses e conclusões das outras partes, e sobretudo do seu núcleo dirigente. O facto bastante notório de que todas as informações sobre qualquer assunto observado podem ser também completamente imaginárias, ou gravemente falseadas, ou interpretadas muito inadequadamente, complica e torna pouco seguros, numa vasta medida, os cálculos dos inquisidores; pois aquilo que é suficiente para condenar alguém não é tão seguro quando se trata de o conhecer ou de o utilizar. Já que as fontes de informação são rivais, as falsificações são-no também.

É a partir de tais condições do seu exercício que pode falar-se de uma tendência para a rentabilidade decrescente do controlo, à medida que este se aproxima da totalidade do espaço social, e que consequentemente aumenta o seu pessoal e os seus meios. Pois aqui cada meio aspira, e trabalha, por transformar-se num fim. A vigilância vigia-se a si própria e conspira contra ela mesma.

Finalmente a sua principal contradição actual é que vigia, infiltra, influencia, um partido ausente: aquele que é suposto querer a subversão da ordem social. Mas onde se vê a sua obra? Porque é verdade que nunca as condições foram por todo o lado tão gravemente revolucionárias, foi tão perfeitamente privada do seu pensamento que está desde há muito tempo dispersa. Por isso ela não é mais do que uma ameaça vaga, porém muito inquietante, e a vigilância foi por sua vez privada do melhor campo da sua actividade. Esta força de vigilância e de intervenção é justamente conduzida pelas necessidades presentes, que comandam as condições do seu compromisso, a colocar-se no próprio terreno da ameaça para a combater de antemão. Eis porque a vigilância terá interesse em organizar ela própria pólos de negação que dará a conhecer fora dos meios desacreditados do espectáculo a fim de influenciar, já não os terroristas, mas, desta vez, as teorias.

XXXI

Baltasar Gracián, grande conhecedor do tempo histórico, diz com muita oportunidade no Oráculo manual y arte de prudência: «Seja a acção, seja o discurso, tudo deve ser medido na altura. E preciso querer quando se pode, pois nem a estacão nem o tempo esperam por ninguém».

Mas Omar Khayyan, menos optimista: «Falando claramente sem parábolas — Nós somos as peças do jogo que joga o Céu — Divertem-se connosco no tabuleiro do Ser — E depois voltamos, um a um, para a caixa do Nada.»

XXXII

A Revolução Francesa arrastou consigo grandes mudanças na arte da guerra. Foi depois desta experiência que Clausewitz pôde estabelecer a distinção segundo a qual, a táctica era o emprego das forças no combate para ai obter a vitória, enquanto que a estratégia era o emprego das vitórias para atingir os fins da guerra. A Europa foi subjugada, sem demora e por longo período, pelos resultados. Mas a teoria só mais tarde foi estabelecida, e desigualmente desenvolvida. Em primeiro lugar compreenderam-se os caracteres positivos trazidos directamente por uma profunda transformação social: o entusiasmo, a mobilidade em que vivia o pais tornando-se relativamente independente dos armazéns e comboios, a multiplicação dos efectivos. Estes elementos práticos acharam-se um dia equilibrados pela entrada em acção, do lado contrário, de elementos similares: Os exércitos franceses chocaram-se em Espanha com um outro entusiasmo popular; no espaço russo, com um pais no qual não puderam viver; depois do levantamento da Alemanha com efectivos muito superiores. Entretanto, o efeito de ruptura na nova táctica francesa, que foi a base simples sobre a qual Bonaparte fundou a sua estratégia — esta consistia em empregar as vitórias de antemão, como adquiridas a crédito: concebendo desde o inicio a manobra e as suas diversas variantes enquanto consequências duma vitória que não estava ainda obtida, mas sê-lo-ia seguramente ao primeiro cheque —, resultava também do abandono forçado de ideias falsas. Esta táctica tinha sido bruscamente obrigada a libertar-se destas ideias falsas, ao mesmo tempo que encontrava, pelo jogo concomitante das outras inovações citadas, os meios duma tal libertação. Os soldadas franceses, de recente leva, eram incapazes de combater em linha, quer dizer, de permanecer na sua fileira e fazer fogo à voz de comando. Eles vão então deslocar-se como caçadores e praticar o fogo à vontade marchando sobre o inimigo. Ora, o fogo à vontade descobria-se ser precisamente o único eficaz, aquele que operava realmente a destruição pelo fuzil, a mais decisiva nesta época no afrontamento dos exércitos. Contudo o pensamento militar tinha-se universalmente recusado a chegar a uma tal conclusão no século que finalizava, e a discussão desta questão pôde ainda prolongar-se durante quase um outro século, apesar dos exemplos constantes da prática dos combates, e os progressos incessantes no alcance e velocidade de tiro de fuzil.

Semelhantemente, o estabelecimento da dominação espectacular é uma transformação social tão profunda que mudou radicalmente a arte de governar. Esta simplificação, que tão depressa deu tais frutos na prática, ainda não foi plenamente compreendida teoricamente. Velhos preconceitos por todo o lado desmentidos, precauções tornadas inúteis, e até mesmo vestígios de escrúpulos doutros tempos, estorvam ainda um pouco no pensamento de numerosos governantes esta compreensão, que toda a prática estabelece e confirma dia a dia. Não somente se faz crer aos submetidos que ainda estão, no essencial, num mundo que se fez desaparecer, como os próprios governantes sofrem por vezes da inconsequência de ainda acreditarem nisso nalguns aspectos. Acontece-lhes pensar numa parte daquilo que suprimiram como se permanecesse uma realidade, e que deveria continuar presente nos seus cálculos. Este atraso não se prolongará muito. Quem pôde fazer tanto sem esforço ira forçosamente mais longe. Não se deve crer que possam manter-se duravelmente, como um arcaísmo, nas cercanias do poder real, aqueles que não tiverem muito rapidamente compreendido toda a plasticidade das novas regras do seu jogo, e a sua espécie de grandeza bárbara. O destino do espectáculo não é certamente acabar em despotismo esclarecido.

Falta concluir que uma substituição é iminente e inevitável na casta cooptada que gere a dominação, e particularmente naquela que dirige a protecção desta dominação. Numa tal matéria, a novidade, seguramente, nunca será exposta na cena do espectáculo. Somente aparece como o raio, que apenas se reconhece pelas suas consequências. Esta substituição que vai concluir decisivamente a obra dos tempos espectaculares, opera-se discretamente e, ainda que respeitante a indivíduos já todos instalados na própria esfera do poder, conspirativamente. Seleccionará aqueles que nela tomarão parte segundo esta exigência principal: que saibam claramente de que obstáculos se livraram, e do que são capazes.

XXXIII

O mesmo Sardou diz também: «Vãmente é relativo ao sujeito; em vão é relativo ao objecto; inutilmente, é sem utilidade para ninguém. Trabalhou-se vãmente quando se o fez sem êxito, de modo que se perdeu o seu tempo e o seu esforço: trabalhou-se em vão quando se o fez sem atingir o fim que se propunha, por causa da imperfeição da obra. Se eu não puder concluir a minha tarefa, trabalho vãmente; perco inutilmente o meu tempo e o meu esforço. Se a minha tarefa acabada não teve o efeito que esperava, se eu não atingi o meu fim, trabalhei em vão; quer dizer que fiz uma coisa inútil...

Também se diz que alguém trabalhou vãmente, quando não é recompensado pelo seu trabalho, ou porque este trabalho não agradou; pois nesse caso o trabalhador perdeu o seu tempo e o seu esforço, sem prejulgar de modo nenhum o valor do seu trabalho, que pode alias ser muito bom.»

 

GUY DEBORD
(Paris, Fevereiro-Abril 1988.)


 

 

© 2003 — Guy Debord

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

__________________
Maio 2003

 

eBookLibris
© 2003 eBooksBrasil.com