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COÉFORAS

Ésquilo

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Coéforas
Ésquilo
Tradução
Lôbo Vilela

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte-base Digital
Digitalização de edição em papel
Editorial Inquérito, Lisboa, 1939

© 2002 — Ésquilo


 

ÍNDICE

Notícia sobre a tragédia grega
Noticia acerca de Ésquilo

COÉFORAS
PRIMEIRO ATO
Cena I
Cena II

SEGUNDO ATO
Cena I
Cena II
Cena III

TERCEIRO ATO
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Cena VI

QUARTO ATO
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Cena VI

QUINTO ATO
Cena I

Notas


 

COÉFORAS

imagem

ÉSQUILO


 

NOTÍCIA SOBRE A TRAGÉDIA GREGA

 

A música e a dança constituem, desde a mais remota antigüidade, as formas estéticas de que o homem se serviu para exteriorizar os sentimentos que não podia calar em si. Ainda o homem vivia em tribos, errando de terra em terra para conciliar as suas necessidades com os recursos espontâneos da natureza, e já o bruxo, o feiticeiro, que era ao mesmo tempo sacerdote e médico, astrólogo e conselheiro, transfigurado em demônio ou coberto de amuletos, executava as suas danças epilépticas para fazer exorcismos e sacrifícios propiciatórios.

Até mesmo entre os povos selvagens a dança desempenha uma função importante, sendo inúmeras as suas aplicações: há danças religiosas, fúnebres, terapêuticas, guerreiras, etc., — ruidosas e movimentadas, sacudidas, frenéticas, delirantes, para excitar a compaixão dos deuses, afastar os espíritos maléficos que provocam as doenças, tornar os corpos ágeis, conforme o seu objetivo. Pode dizer-se que nenhuma cerimônia de certa monta se efetua sem a correspondente dança simbólica. Esta exige, por vezes, uma indumentária apropriada, com adornos bizarros, para que os dançarinos se tornem temidos ou admirados pela fealdade, a violência, a coragem, o vigor, a força, a agilidade, exibam os amuletos e efetuem os movimentos que o ritual impõe. Nestas grotescas representações há já, por vezes, alguma coisa de dramático, destacando-se um personagem para estabelecer diálogo com os restantes que formam uma espécie de coro. Mais tarde, a dança modifica as suas formas, estiliza as atitudes, introduz modulações suaves na primitiva vertigem dos ritmos delirantes, no paroxismo dos compassos rápidos. Quando a graciosidade e a leveza triunfam, é à mulher que cabe o papel principal. O mágico tornou-se o sacerdote que ministrava apenas os sacramentos e proferia as fórmulas ritualescas, enquanto as sacerdotisas, as bailarinas sagradas, agitando os flébeis corpos ondulantes nas convulsões da dança, traçavam as curvas mágicas de encantamento que haviam de enredar os deuses nas suas malhas misteriosas. Era assim que as Vestais do paganismo desenvolviam temas ritualescos, com embriagos de sonho, numa alucinação divina. E os deuses deixavam-se fascinar por aquela mímica estranha, que tinha filtros sutis. A dança realizava uma objetivação do pensamento metafísico. Era o movimento que exprimia as idéias; era o gesto que delineava formas, esculpindo posições.

Na Grécia, a forma dramática nasceu do culto de Dionisos, cujas festas se realizavam quatro vezes no ano, com grande solenidade(1).

Enquanto se procedia à cerimônia do sacrifício de um bode(2), em honra de Dionisos, um grupo de personagens, com máscaras representativas de Pans, Sátiros e Silenos — o cortejo do deus — dançava ao redor do altar do sacrifício entoando o ditirambo — espécie de poesia coral cuja criação se atribue a Arionte e que celebrava qualquer episódio da vida de Dionisos.

A partir de certa altura, introduziu-se uma inovação que, insignificante na aparência, foi o primeiro passo para o nascimento do drama: destacou-se um personagem do coro para desempenhar o papel de Dionisos, o qual recitava o ditirambo, no vestíbulo do templo, exortando, em breves frases, os dançarinos do coro, agrupados em volta do altar do sacrifício, a iniciarem o canto. Nos tempos primitivos era o próprio poeta quem recitava as suas composições, cabendo ao coro o papel mais importante. O monólogo passou depois a ser independente do coro, até que, no tempo de Sólon, cerca de 540 anos antes da nossa era, Tespis entremeou o coro com a representação da lenda de Dionisos dando-lhe a forma dialogada que permitia intervalos de descanso aos personagens que dançavam ao derredor do altar, sem interromper a cerimônia.

Os seus discípulos, Quérilo, Prátinas de Flionte e, sobretudo, Frínico(3) introduziram alguns aperfeiçoamentos na técnica teatral. Frínico distribuiu o coro em grupos, para lhe dar maior mobilidade, fez aparecer mulheres em cena, pela primeira vez, e teve a audácia de tratar um acontecimento contemporâneo na tragédia Tomada de Mileto. Esta peça, representada em 494, comoveu tão profundamente o povo de Atenas que o seu autor foi condenado a pagar uma multa de mil dracmas por ter recordado o desastre. Apenas se conhecem pouquíssimos fragmentos das suas tragédias, Fenícias(4), Alcestes, Tântalo e Danaides.

Foi pouco a pouco que a forma dramática triunfou da forma lírica do ditirambo. A princípio, como era natural, o mito de Dionisos servia exclusivamente de assunto às composições ditirâmbicas, mas, a breve trecho, os poetas litúrgicos, tendo esgotado já todos os recursos da lenda, que assim se tornava monótona, deixaram derivar a fantasia para outras regiões inexploradas, em busca de novos motivos. Entraram então em cena os reis e os heróis lendários cujos perfis dolorosos ou severos, angustiados ou ferozes, haviam já sido modelados na imaginação popular pela voz melodiosa dos aedos aqueus que inspiraram, na Jônia, a epopéia heróica e dos cantores sagrados do divino Helicon que fizeram surgir, na Beócia, a epopéia religiosa.

Este enriquecimento extraordinário de conteúdo trágico levou Ésquilo a introduzir na tragédia um novo personagem (deuteragonista) que dialogava com o primeiro (protagonista), passando o coro a ter uma importância secundária. Com Sófocles aparece um terceiro ator (tritagonista), que desempenhava diversos papéis; e Eurípedes torna o coro independente da ação que se desenvolve, exercendo a sua função apenas nos entreatos.

Assim a técnica teatral atingiu com Ésquilo, a sua forma definitiva, passando as representações a efetuar-se em lugares apropriados — os primeiros teatros — hemiciclos descobertos e em anfiteatro no meio dos quais se erguia um altar em honra de Dionisos (a quem as festas continuavam a ser consagradas) e uma barraca donde saíam os atores e onde se recolhiam, consoante as exigências da ação. Ao sacerdote de Dionisos era concedido um lugar especial no teatro.

Os atores usavam máscaras enormes para que todo o anfiteatro pudesse contemplar a sua expressão; e um calçado especial, de grande altura — o coturno — para assim lhes aumentar as proporções do corpo, tornando-os capazes de exprimir, simbolicamente, a estatura moral dos deuses ou dos heróis que representavam. O uso de máscaras não permitia, evidentemente, que os atores se servissem da expressão fisionômica para acompanhar, na sua mobilidade, o desenvolver da ação; e assim o teatro antigo tem apenas um valor literário e simbólico.

As máscaras da tragédia apresentavam traços que serviam para caracterizar o gênero trágico e as distinguiam das máscaras da comédia. As primeiras eram impessoais e procuravam suscitar o temor, a admiração, a piedade, ao passo que estas pretendiam apenas provocar o riso ou a indignação, quer reproduzissem caricaturalmente a fisionomia da pessoa visada, quer representassem um tipo social ou fossem simples alegorias.

O epônimo, que dirigia as dionísias, punha a concurso as peças de três poetas trágicos e de três poetas cômicos, depois de excluir aquelas que lhe não pareciam dignas de ser representadas; e o corégio, escolhido entre os cidadãos mais ricos das tribos, fazia as despesas da representação. O autor ensaiava os coros (corodidáscalo), reservava geralmente para si um dos papéis, instruía os atores e dirigia a representação. Como se tratava duma função pública, o Estado pagava aos atores e poetas o salário estabelecido, até que Agírrio fez aprovar um decreto que suprimiu este encargo.

Na própria tragédia havia uma parte reservada à Musa cômica. Os poetas trágicos, admitidos a concurso, enviavam ao epônimo um grupo de quatro peças (tetralogia), constituindo as três primeiras (trilogia) a parte trágica e a outra a parte cômica, na qual entrava um coro de Sátiros. Não chegou até nós nenhuma tetralogia completa; apenas se conhece uma trilogia de Ésquilo — Oréstia — e um drama satírico de Eurípedes — O Cíclope.

As obras dos poetas trágicos eram submetidas a um júri composto de dez cidadãos escolhidos pelo epônimo, entre os que já tivessem completado o serviço militar. “Se receais que os espectadores, por ignorância, não percebam as vossas sutilezas, tranqüilizai-vos: não é assim, todos eles fizeram a guerra”, diz o coro da comédia Rãs a Eurípedes e Ésquilo que discutem seus méritos. As representações duravam todo o dia; e à noite procedia-se à votação para classificar os concorrentes. O poeta que alcançava o primeiro prêmio imolava um boi a Dionisos.

As idéias dominantes na tragédia grega são a liberdade moral e a fatalidade. Moira, o destino, era para os gregos uma divindade implacável: o solo era pouco fértil, convulsionado por tremores de terra, eriçado de montanhas de encostas íngremes, rasgado por vales fundos e apertados, talado por sucessivas invasões que os peitos dos heróis não podiam conter nem o auxílio dos deuses evitar. Por isso o Destino é superior aos homens, aos heróis e aos próprios deuses.

A tragédia grega decaiu rapidamente a partir de Eurípedes. Embora os nomes de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, se destaquem acima de todos os outros e sejam os únicos dos quais possuímos peças completas, são dignos de menção os trágicos: Íone(5), amigo íntimo de Ésquilo, cuja primeira tragédia foi representada em 452 a.J.C.; Aqueu, autor das tragédias Cicno, Edipo, Filoteto e Onfale; Agatone(6) que, bastante novo ainda (416 a.J.C.), alcançou o prêmio da tragédia, festejando esse triunfo com um banquete que Platão nos descreve; Neófrone, que, segundo Suidas, escreveu 20 tragédias, entre elas uma Medéa que Eurípedes parece ter imitado; Fílocles(7), sobrinho de Ésquilo, que obteve o 1.° prêmio da tragédia numa competição com Sófocles; Astídamas, neto de Fílocles, que alcançou quinze vezes o prêmio da tragédia; Carcino(8), que introduziu, nas suas peças, deuses que se lamentavam; Xénocles(9), filho de Carcino, que venceu Eurípedes numa competição dramática e fazia freqüente emprego de máquinas.

L. V.


 

NOTÍCIA ACERCA DE ÉSQUILO

 

Pouco se sabe de positivo sobre a vida de Ésquilo, cuja figura aparece envolvida numa auréola de lendas.

Nasceu no ano 525 a.J.C. em Elêusis, burgo da Ática, a noroeste de Atenas, famoso pelos Grandes Mistérios que ali se realizavam. Era filho de Eufórion, tendo-se distinguido nas batalhas de Maratona, de Artemisium, de Salamina e de Plateia, antes de se tornar notável como poeta trágico. Seu irmão Cinegério morreu em Maratona. Segundo alguns autores, era também irmão de Amínias, mas não há provas suficientes deste parentesco.

Presume-se que tenha começado a escrever quando era ainda muito novo; todavia não se conhecem as suas primeiras obras. Por uma inscrição, encontrada nos mármores de Paros, sabe-se que obteve o primeiro prêmio nos concursos públicos que tiveram lugar em 485, contando portanto, 40 anos de idade. Antes disso, tinha entrado em competições com Quérilo, Prátina e Frínico, discípulos de Tespis.

Os seus êxitos repetiram-se depois, a ponto de ser apreciado pelo povo como nenhum outro o tinha sido. Das 80 tragédias que deixou, 52 obtiveram prêmio. A sua fama estendeu-se à Sicília onde fez várias viagens, a convite de Hiérone, rei dos sículos.

Depois de alguns anos de ausência, regressou a Atenas em 469. Pretende-se explicar esta ausência, pelo despeito de ter sido preterido por Sófocles (ou por Simónides, segundo outros autores) num concurso trágico, mas esta hipótese é inverosímil, visto que Sófocles alcançou o seu primeiro êxito em 469 e Ésquilo ainda se encontrava em Atenas dez anos depois, quando foi representada a trilogia de Orestes (459). Além disso, obteve, nesse intervalo, o primeiro prêmio com a trilogia dos Sete contra Tebas.

Após a estréia da Oréstia, efetuou uma viagem a Gela onde morreu, três anos depois, sem ter voltado a Atenas. Esta última viagem deu também lugar a várias interpretações. Julga-se que se viu forçado a exilar-se de Atenas em virtude de se apresentar, na tragédia Euménides, como defensor das antigas instituições e do Areópago. Isso valeu-lhe ser acusado de ter revelado em cena os segredos dos Mistérios, mas foi absolvido. Embora esta versão seja aceitável, há certos indícios de que esta acusação fora feita alguns anos antes da sua viagem.

Segundo a lenda, morreu com o crânio fraturado por uma tartaruga que uma águia lhe teria deixado cair sobre a cabeça. Esta lenda tem, porém, todo o caráter duma alegoria. O certo é que morreu no ano 456 a.J.C., em Gela, na Sicília, e as suas cinzas foram depostas num suntuoso mausoléu onde se inscreveu o epitáfio seguinte:

ESTE TÚMULO ENCERRA ÉSQUILO, FILHO DE EUFÓRION, ATENIENSE. MORREU NAS FECUNDAS PLANURAS DE GELA. OS FAMOSOS BOSQUES DE MARATONA E O MEDO DE LONGA CABELEIRA PODEM FALAR DA GLÓRIA DO SEU VALOR, POIS O PUSERAM À PROVA(10).

Ao seu sepulcro vinham em peregrinação os trágicos posteriores para invocar o Nume e a inspiração do “pai da tragédia”, cognome que lhe foi dado. Tal era o apreço em que os atenienses o tinham que, alguns anos após a sua morte, aprovaram um decreto segundo o qual seria concedido um coro a quem quisesse representar qualquer das suas tragédias; e aconteceu mais que uma vez que, depois de morto, ainda as suas peças triunfavam das dos competidores.

Deixou dois filhos. Eufórion e Bíone que também escreveram tragédias e fizeram representar as que seu pai deixou. Suidas diz que Eufórion alcançou quatro vezes o prêmio com as tragédias de seu pai que ainda não tinham sido representadas. Aristófanes, na comédia Rãs, em que Ésquilo e Eurípedes discutem seus méritos, põe na boca daquele estas palavras: “As minhas tragédias não morreram comigo”.

Das suas tragédias apenas sete chegaram completas até nós: Suplicantes, Os Persas, Prometeu Agrilhoado, Sete chefes contra Tebas e a trilogia de Orestes que compreende as tragédias Agamémnon, Coéforas e Euménides.

Parece ter sido “Os Suplicantes” a primeira que foi representada: é a mais rudimentar das suas tragédias que conhecemos: o Coro, composto por cinqüenta filhas de Danaus, é o personagem principal, limitando-se, quase, os restantes personagens, a fazê-lo falar. Mas o que falta em técnica e movimento à ação é suprido pelo lirismo apaixonado e exuberante do estilo. Notam-se já, nesta obra, os primeiros passos, para a arte dramática definitiva, nos contrastes de paixão e nas lutas de sentimentos que se desenrolam em animados diálogos.

Os Persas, a segunda tragédia é um quadro patriótico em que se mostra a humilhação dos persas, vencidos pelos gregos. A batalha de Salamina aparece pintada nela com uma vivacidade, um movimento, um colorido, que só lhe podiam ser dados por quem nela tivesse comparticipado.

Mas onde a garra do gênio melhor imprime a sua marca é nas tragédias que formam a trilogia de Orestes e constituem uma das maiores criações da arte dramática de todos os tempos, tanto pelo admirável poder de concepção como pela majestade e gravidade do estilo, a riqueza e a elegância da linguagem, o cunho épico que herdou de Homero.

Atribui-se a Ésquilo a criação da máscara e do coturno. Segundo alguns autores, foi ele que introduziu em cena um terceiro ator falante. Suprimiu os recitativos do fragmentário drama lírico primitivo, deu unidade ao diálogo e amplitude à fábula. Nas suas tragédias, o Destino paira, como sombra invencível, acima dos homens e dos deuses, imprimindo na vida o estigma cruel da fatalidade.

A tragédia Coéforas, é aquela em que a ação se desenrola mais teatralmente. Clitemnestra, que tinha assassinado seu marido Agamémnon, encarrega sua filha Electra de fazer um sacrifício expiatório junto do túmulo do pai, para apaziguar os seus Manes e afastar os sinistros presságios dum sonho. Electra dirige-se ao túmulo acompanhada pelas escravas (Coéforas) que levam os vasos e presentes funerários e formam o Coro. Chegada ali, invoca a sombra do Pai a quem pede que vingue o crime de que foi vítima. De repente, vê sobre o túmulo uma mecha de cabelos, parecidos com os seus, que supõe serem de Orestes e faz votos pelo seu regresso. Orestes, que se tinha escondido com Pílado quando viu aproximar-se o grupo formado por Electra e pelas Coéforas, aparece e os dois irmãos combinam vingar o pai. Orestes apresenta-se no palácio como um estrangeiro e aproveita-se dum ardil para matar Clitemnestra e Egisto, seu segundo marido. Aparece depois ao povo exibindo o véu em que os assassinos tinham envolvido Agamémnon para que não pudesse defender-se. De súbito perde a razão e retira-se para Delfos cujo deus lhe ordenara o matricídio.

L. V.


 

C O É F O R A S

PRIMEIRO ATO
CENA I

ORESTES, PÍLADO

 

ORESTES — Ó tu, a quem teu pai confiou a guarda dos mortos, Hermes subterrâneo, sê meu protetor e meu amparo: volto finalmente à minha pátria, após um longo exílio. Junto deste túmulo, eu invoco-te, meu pai: escuta-me! Vê estes cabelos que eu corto pela segunda vez e dos quais Inaco recebeu outrora as primícias, como prêmio do alimento que me deu na minha infância; é a ti que os consagro; são a oferenda da amargura... Que vejo eu? Quem são aquelas mulheres vestidas de luto? Que devo pensar? Alguma nova desgraça aflige este palácio? Serão libações que elas trazem para apaziguar os manes de meu pai? Sim, sem dúvida... Ah! é Electra, é minha irmã; reconheço-a pela sua profunda tristeza. Ó Zeus, fazje que eu possa vingar a morte de meu pai! vem em meu auxílio! Pílado, retiremo-nos; observemos o fito desta cerimônia fúnebre.


 

CENA II

O CORO, ELECTRA

 

ELECTRA. — Enviada pelos senhores deste palácio, trago libações; bato no peito repetidas vezes; as minhas faces escorrem sangue dos sulcos que as minhas unhas rasgam nelas. Meu coração alimenta-se de suspiros. Estes tecidos rasgados, estes véus em farrapos sobre o meu seio desnudo, anunciam o sofrimento e o triste infortúnio. O Terror, com os cabelos eriçados, filho profético dos sonhos, anunciando a vingança no meio do sono, entrou no aposento das mulheres, ao fundo deste palácio, e quebrou o silêncio da noite com o seu grito. Os áugures têm afirmado, por parte dos deuses, que os manes em cólera erguer-se-iam contra os seus assassinos. Ó terra, ó terra, é para afastar estas ameaças que uma esposa (ouso eu pronunciar este nome!), que uma esposa ímpia te envia esta oferenda! Oferenda demasiado inútil! Como resgatar o sangue que ela verteu? Ó lar infeliz!... deplorável habitação! Mais sol para ti! Desde a morte do meu senhor envolvem-te odiosas trevas. Já não existe aquele soberano poderoso, invencível, cuja majestade submetia todos os corações. O temor reina hoje ali. Todo aquele que é feliz é um deus, e mais que um deus para os mortais. Mas a justiça visita sempre os culpados. Ela fustiga-os, quer em pleno dia, quer um pouco mais tarde, à luz do crepúsculo ou na obscuridade da noite. A terra fecunda bebeu o sangue; a morte vingadora germinou; ela deve desabrochar. O crime é, para o seu autor, a fonte dos males mais cruéis; não há perdão para quem profana o santuário do himeneu. Ainda que se reunissem todos os rios do universo, eles não poderiam lavar um odioso parricídio. Eu, a quem os deuses envolveram na ruína da minha pátria, a quem arrebataram da casa paterna e reduziram à escravidão, recalcando o ódio amargo do meu coração, vejo-me obrigada a acatar as ordens, justas ou injustas, do imperioso tirano que hoje dispõe da minha vida. Mas secretamente, devorando os meus suspiros, choro o triste destino do meu rei.


 

SEGUNDO ATO
CENA I

ELECTRA, O CORO

 

ELECTRA. — Fiéis escravas, já que me acompanhais nesta cerimônia triste, ajudai-me com os vossos conselhos. Que desejos exprimirei, que votos farei a meu pai, quando espalhar estas libações fúnebres sobre o seu túmulo? Dir-lhe-ei que trago estes presentes da parte de minha mãe, da parte duma esposa querida, ao esposo que ela estremecia? Não, não terei essa coragem. Que palavras posso proferir então, regando o túmulo de meu pai? Pedir-lhe-ei que envie, como é justo, a digna recompensa dos seus audaciosos crimes àqueles que lhe enviam estes presentes? Ou antes, visto que meu pai foi vítima dum crime, devo espalhar em silêncio este licor sagrado e, como nos sacrifícios expiatórios, arremessando este vaso para trás de mim, fugir sem volver os olhos? Queridas amigas, aconselhem-me; porque, sem dúvida, compartilhais do meu ódio. Abri-me, sem receio, o vosso coração. Ah! senhores, escravos, todos estamos igualmente à mercê do Destino. Se tendes alguma opinião melhor, desejo que ma comuniqueis.

O CORO. — Já que o ordenais, explicar-me-ei sem rodeios: atesto-o por este túmulo, tão sagrado para mim como um altar.

ELECTRA. — Dizei, pois respeitais o túmulo de meu pai.

O CORO. — Quando regardes o seu túmulo pedi-lhe pelos que o amavam.

ELECTRA. — E que amigos poderei nomear?

O CORO. — Vós, em primeiro lugar e todos os inimigos de Egisto.

ELECTRA. — Mas então pedirei apenas por vós e por mim?

O CORO. — É a vós que pertence pensar nisso, é a vós que cabe dizê-lo.

ELECTRA. — E quem mais poderemos associar a nós?

O CORO. — Oh! lembrai-vos de Orestes, embora esteja ausente.

ELECTRA. — Sim, vós iluminais o meu coração.

O CORO. — Depois, recordando o crime, desejai aos seus autores...

ELECTRA. — O quê?... livrai-me da minha incerteza...

O CORO. — Que venha um deus ou um mortal...

ELECTRA. — Julgá-los ou puni-los?...

O CORO. — Dizei ousadamente, matar os assassinos.

ELECTRA. — Não será impiedade dirigir aos deuses semelhantes votos?

O CORO. — Porquê? é restituir aos vossos inimigos o mal que vos fizeram.

ELECTRA. — Hermes subterrâneo, faze-me perceber que os meus votos aprazem às divindades infernais que reinam onde meu pai habita, e à própria terra que gera, alimenta e recupera tudo. Derramando estas fúnebres libações, eu invoco-te, meu pai: lança um olhar de piedade para mim e para o teu querido Orestes; faze-nos entrar no teu palácio. Agora andamos errantes, traídos por aquela de quem nascemos. Ela ofereceu o teu leito a Egisto, o cúmplice na tua morte. Eu, sou escrava; Orestes, indigente e fugitivo; ao passo que os culpados, no meio dos prazeres, gozam insolentemente o fruto dos teus trabalhos. Faze que Orestes volte e triunfe nestes lugares. Escuta a minha voz, meu pai! permite que eu tenha um coração mais casto e mãos mais puras que minha mãe. Eis os meus votos para teus filhos. Quanto aos teus inimigos, apresenta-te a seus olhos armado da vingança. Vem matá-los, como eles te mataram. Tais são as maldições que eu junto às minhas preces. Sê-nos propício. Que os deuses, a terra e a justiça vingadora se juntem a ti! Com os meus votos, recebe as minhas libações.

(Dizendo estas palavras rega o túmulo; em seguida, volta-se para o coro).

ELECTRA. — Fazei ouvir os vossos lamentos, entoai o hino fúnebre, como é costume.

O CORO. — Derramemos uma torrente de lágrimas por um senhor desventurado; que elas reguem o seu túmulo; que se misturem às libações; que umas e outras sirvam para afastar os nossos males, para abater os nossos inimigos. Ó meu senhor, ó meu rei, escuta-nos do seio das trevas! Ai! Ai! quem te vingará? Quem salvará teus filhos? Que o deus dos citas, que o próprio Marte lance os dardos dilacerantes, os dardos fulminantes que levam a toda a parte uma inevitável morte.

ELECTRA. — Está tudo pronto; meu pai recebeu as libações. Divino mensageiro do Olimpo e dos infernos...

(Dizendo estas palavras, repara nos cabelos que Orestes tinha deposto sobre o túmulo. Corre em seguida para junto do coro).

ELECTRA. — Queridas amigas, compartilhai da minha surpresa.

O CORO. — Dizei, meu coração palpita de temor.

ELECTRA. — Encontrei, sobre o túmulo, esta madeixa de cabelos...

O CORO. — De quem são? Que homem ou mulher os depôs ali?

ELECTRA. — Não é difícil conjecturá-lo.

O CORO. — Como? Embora mais jovem, informai-me.

ELECTRA. — Sou eu aqui a única que posso oferecer esta oferenda a meu pai...

O CORO. — Aqueles que lhe deviam tal oferenda são seus inimigos.

ELECTRA. — No entanto, estes cabelos são perfeitamente semelhantes...

O CORO. — A quais?... estou ansiosa por sabê-lo...

ELECTRA. — Aos meus; parecem ser os mesmos.

O CORO. — Seria um presente feito secretamente por Orestes?

ELECTRA. — É muito verosímil, porque estes cabelos são dele.

O CORO. — Como ousou ele vir a estes sítios?

ELECTRA. — Terá enviado esta oferenda a seu pai.

O CORO. — É um novo motivo de lágrimas, se anuncia que ele não mais regressará à sua pátria.

ELECTRA. — Ah! meu coração foi assaltado por ondas de tristeza; um dardo pungente me trespassou. Contemplando estes cabelos, meus olhos inundam-se de amaríssimas lágrimas. A qual dos argianos poderiam eles pertencer? Não certamente àquela que assassinou o esposo, a minha mãe, cujo ódio sacrílego pelos filhos desmente um nome tão terno. Mas como assegurar-me de que eles sejam uma oferenda de Orestes, o mais querido mortal? Todavia a esperança acaricia-me... Ai! Porque é que estes cabelos não falam e dissipam a minha dúvida cruel? Porque é que eles me não dizem se devo repeli-los com indignação, por terem sido cortados numa cabeça inimiga, ou se, provindo de meu irmão, como legítima oferenda da sua angústia, que é também a minha, são um digno ornamento do túmulo paterno? Deuses que o sabeis, eu vos invoco!... Que tempestade agita a minha alma!... Se me espera a salvação, que este fraco gérmen lance, pois, uma profunda raiz!... Mais outro indício... vestígios de passos, idênticos aos meus... Vejo pegadas diferentes... Umas são de Orestes; outras de algum amigo que o tenha seguido... O contorno dos pés, os tacões, são semelhantes aos meus... Ai! tudo aumenta a minha perturbação e a minha mágoa.


 

CENA II

ELECTRA, O CORO, ORESTES, PÍLADO

 

ORESTES. — Suplicai aos deuses que realizem também o resto dos vossos desejos.

O CORO. — E que obtive eu até agora?

ORESTES. — Vedes aquele que há muito tempo desejais.

ELECTRA. — Quem me ouvistes, pois, lamentar?

ORESTES. — Conheço os vossos votos ardentes por Orestes.

ELECTRA. — Pois bem! em que é que eles foram atendidos?

ORESTES. — Ei-lo, não procures nenhum outro, nem quem mais vos ame.

ELECTRA. — Estrangeiro, quereis armar-me alguma cilada...

ORESTES. — Só se for para eu próprio cair nela...

ELECTRA. — Quereis insultar os meus desgostos...

ORESTES. — Os vossos desgostos? dizei também os meus...

ELECTRA. — Quê? sois Orestes? é com ele que falo?

ORESTES. — Estou diante de vós e não me reconheceis! vós que pelo simples aspecto destes cabelos oferecidos a meu pai, ficastes embriagada de esperança; que observando os vestígios dos meus passos julgastes ver-me logo. Pegai nessa madeixa, aproximai-a dos meus cabelos, semelhantes aos vossos, reconhecei o sítio donde foi cortada; reparai neste véu, feito pelas vossas mãos; vede se não foram os vossos dedos que fizeram este tecido, que traçaram estes desenhos... Dominai-vos; moderai a vossa alegria: os que mais deviam querer-nos tornaram-se nossos inimigos.

ELECTRA. — Querido objeto das queixas de tua família, esperança da minha vida, tu por por quem tenho chorado! ah! a tua coragem restituir-te-á o cetro de teu pai. Doce objeto que reúne todas as afeições da minha alma! porque já não posso defender-me; sim, tudo quanto devia de amor a meu pai, a uma mãe que devo odiar, a uma irmã cruelmente sacrificada, tudo se reuniu para ti, carinhoso irmão, que vais fazer a minha felicidade e a minha glória. Assim a vitória, a vingança e, sobretudo, o soberano dos deuses venham em nosso auxílio!

ORESTES. — Ó Zeus! Zeus! contempla o estado a que nos encontramos reduzidos; vê os filhos duma águia generosa que uma horrorosa serpente asfixiou nas suas espiras; como órfãos infelizes, acossados por uma fome cruel, demasiado fracos para trazerem para o ninho o alimento habitual, assim está Orestes assim está Electra, filhos que perderam o pai e ambos banidos do seu palácio. Se deixas perecer os rebentos do rei que outrora te honrou e ofereceu tão magificentes sacrifícios, de que mão receberás semelhantes oferendas? Se a raça da águia se extingue, que ave levará os teus augúrios aos mortais? Se esta árvore sagrada seca até à raiz, jamais cobrirá os teus altares, nos dias das sagradas hecatombes. Protege-nos. É fácil para ti o libertares da humilhação e reanimares esta casa que parece aniquilada.

O CORO. — Filhos salvadores dos lares paternos, não levanteis a voz; receai trair-vos e que algum vil delator previna aqueles que reinam ainda. Ah! Que eu possa vê-los consumidos pelo fogo!

ORESTES — O oráculo do poderoso Apolo não me trairá. Ele ordena-me que empreenda tudo e a sua voz ecoou no íntimo do meu coração. Anuncia-me horríveis desgraças se não persigo os assassinos de meu pai; quer(*) que os fira como eles o feriram. As suas insistentes ameaças ainda me arripiam. Se não obedeço, males sem conto vingarão em mim uma sombra que me deve ser querida. Aquele que ensina os mortais a acalmarem os manes irritados disse-me que uma cruel moléstia, invadindo as minhas carnes, a lepra, havia de corroer o princípio da minha vida com os seus dentes afiados; que os meus cabelos branqueariam antes de tempo. Falou de temíveis Fúrias que nasceriam do sangue de meu pai, dum espectro cujos olhares veria brilhar de noite. Porque a seta que lançam, do seio das trevas, aqueles a quem uma mão parricida pôs termo à vida, o pavor noturno e a raiva armada dum látego de bronze, dilaceram, perturbam e perseguem de cidade em cidade, o desgraçado que os não vinga. Neste estado, nenhuma comparticipação nos sacrifícios, nas libações; nenhum lugar nos altares; nenhuma hospitalidade ou convivência com o objeto visível da cólera dum pai. Aborrecido, desprezado por toda a gente, sofre-se uma morte lenta, em penosos tormentos. Devo acreditar, sem dúvida, em tais oráculos; e ainda que não acreditasse neles, nem por isso corria menos à vingança. Um conjunto de motivos me impele: a ordem do céu, a morte deplorável dum pai, a miséria que me oprime, finalmente a vergonha de ver submetidos a duas mulheres os corajosos e célebres cidadãos que destruíram Ílion; porque Egisto tem o coração duma mulher; veremos, em breve, se me engano.

O CORO — Ó poderosas Parcas! que Zeus faça brilhar a sua justiça! que o ultraje seja punido pelo ultraje! A equidade grita bem alto e reclama os seus direitos. Que o crime seja vingado pelo crime! que o que fere seja ferido! é a mais antiga das leis(11).

ORESTES. — Ó meu pai, meu desventurado pai! vindo do exílio para junto do teu leito fúnebre, que hei-de dizer, que hei-de fazer para conseguir que o dia suceda, aqui, à noite? Ai! a pompa do luto é o único tributo que a antiga casa dos Átridas recebe!

O CORO. — Meu filho, os dentes devoradores do fogo não destroem o sentimento entre os mortos. A sua cólera manifesta-se ainda depois. Os manes têm-se lamentado, o vingador apareceu. O pai e os filhos confundem as lágrimas e imploram justiça.

ELECTRA. — Escuta agora, meu pai! as minhas lamentosas queixas. Teus filhos choram sobre este sepulcro, ambos suplicantes, ambos fugitivos. Qual foi o bem que lhes ficou? O que é que eles não têm sofrido? Mas os seus males não são irremediáveis.

O CORO. — Os deuses, se quiserem, transformarão estes queixumes em gritos de alegria; em vez destas lamentações fúnebres, os cantos de vitória reconduzirão ao seu palácio este irmão que veio juntar-se-vos de novo.

ELECTRA. — Porque não morreste tu, meu pai, ao ferro dos Lícios, nos muros de Tróia, deixando o teu palácio coberto de glória e os teus filhos com uma vida honrosa assegurada! Numa terra estranha terias encontrado um soberbo túmulo; morrendo com os amigos que morreram generosamente por ti, serias grande até mesmo entre as Sombras, príncipe sempre augusto e venerado pelos temíveis senhores dos infernos, porque foste rei durante a vida e o Destino tinha deposto nas tuas mãos o cetro e o poderio. Mas ai! não morreste em Ílion e não foste enterrado nas margens do Escamandro, com todos esses gregos imolados pelo ferro. Quê? prouvesse ao céu que tivessem perecido desse modo aqueles que te assassinaram, e, isento dos males que sofreste, soubesses de longe do seu trespasse.

O CORO. — Esse destino, ó minha, filha, tinha sido extremamente belo! pedis um favor mais precioso que todos os favores da sorte mais próspera... Sucumbis à dor... mas a fortuna atingiu-vos com um duplo golpe. Os vossos defensores já não existem; e as mãos dos nossos odiosos tiranos nada respeitam. Infelizes crianças, sois vós que principalmente o experimentais!. ..

ELECTRA. — Cruel pensamento! dardo que dilacera meu coração! Zeus, Zeus, faze sair, enfim, dos infernos a merecida punição dos culpados e parricidas mortais! Quando me rigozijarei com as lágrimas amargas destes indignos esposos, no seu último suspiro? É minha mãe... Ah! bem o sei... Mas porque constranger-me?... O deus da vingança adeja à minha volta. A cólera e o ódio incendeiam-me o rosto, abrasam-me o coração... Zeus, que deténs o teu braço poderoso, fere, fere as cabeças criminosas e dá-te a conhecer pelos teus golpes. Imploro justiça para esses injustos mortais... Deusa que vingais os mortos, escuta-me: o sangue vertido pede sangue; assim o quer(*) a lei: as Fúrias chamam a morte para vingar infortunados manes... Divindades do inferno, onde estais? Imprecações dos moribundos, onde está o vosso poder? Vede os infortunados descendentes dos Átridas, vergonhosamente expulsos do seu palácio. Zeus, onde poderemos refugiar-nos?

O CORO. — Meu coração estremece quando oiço estas queixas lamentosas. Ora os vossos gemidos me lançam num terrível desespero, ora a vossa audácia, que se anima, suspende a minha dor e me restitui a esperança.

ELECTRA. — Que direi eu? recordarei todos os males que minha mãe me fez sofrer?... Irei lisonjeá-la?... nada pode enternecê-la. Qual lobo cruel, sua alma feroz não pode ser amansada. Mais bárbara que uma cissiana(12), vibrou um golpe terrível... Redobrou; e dentro em pouco não podem contar-se as feridas. Infortunada!... na minha cabeça retine ainda o ruído destes golpes funestos!... Ó minha mãe... ó mulher ímpia!... ousaste sepultar um rei sem o concurso do povo, um esposo sem lágrimas nem lamentos!

ORESTES. — Ah! céus! de quantos ultrajes me informais! Os deuses e este braço, far-lhos-ão pagar bem caro(**). Que eu possa morrer depois de me ter vingado!

ELECTRA. — Mal expirou, cortaram-lhe as extremidades do corpo(13)... e sepultaram-no depois de o terem tratado assim... Ela supunha entregar-vos ao infortúnio... Ouvis o horrível insulto feito a vosso pai...

ORESTES. — Quê!? foi esse o seu destino?

ELECTRA. — E eu, amarfanhada pelo desprezo, por indignidades, afastada do palácio como um animal perigoso, estranha à alegria, não conhecendo mais do que lágrimas, não tive outra felicidade que não fosse a de ocultar os meus suspiros e as minhas lágrimas. Que esta narrativa se vos grave no coração, que os ouvidos vo-la transmitam à alma. Eis o que eles fizeram; eis o que pretendíeis saber: que o vosso coração seja inflexível! E tu, meu pai, vem juntar-te a teus filhos. Invoco-te chorando, e todos que aqui estão se me associam. Escuta-nos; volta a ver a luz do dia: ajuda-nos contra os teus inimigos. A força vai lutar com a força; a vingança com a vingança: deuses, secundai a justiça!

O CORO. — Eu tremo ao ouvir esta súplica. A sentença está lavrada há muito; que os nossos votos lhe apressem a execução! Ó fatal série de desventuras! ó golpes sanguinários, golpes sacrílegos da vingança! ó luto funesto! ó males sem remédio, enraizados na casa dos Átridas! Não é nunca por mãos estranhas, é sempre pelas mãos mais queridas que eles perdem a vida. Deusa dos infernos, deusa do sangue, escutai o hino que vos é consagrado! Deuses subterrâneos, escutai as nossas preces; prestai auxílio a estas crianças e fazei-as triunfar!

ORESTES. — Ó meu pai, caíste varado por indignos golpes! dá-me o cetro e o teu poder.

ELECTRA. — Também eu, meu pai, tenho necessidade do teu auxílio para enganar Egisto e matá-lo. Então os humanos prestar-te-ão as honras a que tens direito; e, nos dias consagrados aos manes, não serás privado, vergonhosamente, de oferendas e sacrifícios. Então, instalada de novo no teu palácio, de posse dos meus bens, nos dias do meu himeneu levar-te-ei libações e o teu túmulo será o primeiro objeto do meu culto.

ORESTES. — Terra! abre-te; que meu pai veja este combate!

ELECTRA — Ó Proserpina, concede-nos uma vitória brilhante!

ORESTES. — Meu pai, recorda-te do banho em que perdeste a vida!

ELECTRA — Recorda-te destes lagos onde encontraste a morte!

ORESTES — Foste envolvido em vergonhosas cadeias!

ELECTRA — Foste surpreendido numa infame armadilha!

ORESTES — Desperta com a recordação destes ultrajes!

ELECTRA — Ergue, ergue a cabeça veneranda; manda a vingança em socorro de teus filhos; ou antes, restitui, tu mesmo, os golpes que te vibraram se queres vencer como foste vencido. Escuta esta última prece, ó meu pai! Vês dois órfãos junto deste túmulo; tem piedade de teu filho e de tua filha; não deixes perecer, com eles, a raça de Pélops. Por eles sobreviverás a ti mesmo; A glória de seus filhos ressuscita um pai, à semelhança da cortica que sustenta a rede e impede que se perca no fundo das águas. Escuta-nos! é sobre ti que nós choramos. Salvar-te-ás a ti próprio exalçando os nossos votos, estas justas homenagens devidas ao teu túmulo e às tuas cinzas, mal honradas até agora. (A Orestes). O projeto está amadurecido, é tempo de o executar; é tempo de experimentar os deuses.

ORESTES — Corro a fazê-lo... Todavia, dizei-me, antes de mais nada, porque enviou ela estas oferendas? Que a levou a tentar reparar hoje um mal irreparável? Honras tardias prestadas a cinzas insensíveis! Que pode ela esperar destes presentes? Eles estão muito abaixo do seu malefício. Todas as libações juntas, não expiariam o sangue de um só homem: tal é a lei. No entanto, informai-me, se puderdes.

O CORO — Posso, ó meu filho! porque estava presente. Aterrorizada com um sonho e visões noturnas, essa mulher ímpia ordenou estes sacrifícios.

ORESTES — Sabeis que sonho foi?

O CORO — Ela julgou, disse-nos, ter dado à luz uma serpente.

ORESTES — E como acabou essa visão?

O CORO — O monstro recém-nascido, como uma criança de cueiros, aproximou-se à procura de alimento; e, no sonho, ela deu-lhe o seio.

ORESTES —Essa odiosa serpente feriu-o, sem dúvida...

O CORO — Ela sugou, a longos goles, o sangue com o leite.

ORESTES — Ah! esse sonho realizar-se-á!

O CORO — Apoderada de terror, ela desperta, grita; imediatamente as lâmpadas extintas recomeçaram a brilhar no palácio. Ordenou, em seguida, estas libações fúnebres, na esperança de prevenir assim os males que a ameaçam.

ORESTES — Ó terra! ó túmulo de meu pai! possa eu realizar esse sonho! Parece ter uma perfeita relação comigo. A serpente nasceu do ventre que me concebeu: envolvida nos cueiros, sugou o seio que me alimentou, mas fez correr o sangue com o leite. De dor e de receio, a mãe gemeu; o horrível monstro que ela amamentava é o presságio da sua morte. Eu serei a serpente; arrebatar-lhe-ei a vida; justificarei o sonho. E vós não o interpretais assim?

O CORO. — Ah! assim mesmo! Mas instruí os vossos amigos. Quem deve agir? quem deve ficar?

ORESTES. — Diz-se em poucas palavras. Electra deve voltar e ocultar cuidadosamente os meus projetos. Eles imolaram um herói pela fraude; pela fraude e numa armadilha, morrerão por sua vez. Assim o predisse o deus dos oráculos, Apolo, profeta que até agora nunca mentiu. Quanto a mim, sob a aparência dum viajante, apresentar-me-ei com Pílado à porta do palácio, como hóspede e amigo de guerra desta família. Imitaremos a linguagem empregada próximo do Parnaso e o sotaque da Fócida. Certamente ninguém nos acolherá no palácio, porque ali tudo respira violência. Esperaremos que alguém que passe nos veja e lhes diga: “Porque repelem estes estrangeiros? Egisto não está? não sabe que eles estão ali?” Uma vez que eu transponha o limiar da porta, quer o encontre sentado no trono de meu pai, quer ele venha ao meu encontro para me falar e atender, não duvideis, antes que tenha tempo de me preguntar: “Estrangeiro, quem és?” — estendo-o morto a meus pés, com um golpe fulminante; e, bem depressa, um sangue mais precioso dessedentará, pela terceira vez, a Fúria que a morte não deixa de acompanhar aqui. Portanto vós, Electra, fazei que no palácio tudo concorra para a execução dos meus desígnios. (Ao Coro). E vós, fazei votos; sabei falar e calar-vos a propósito. Pílado vigiará o resto e assegurar-me-á o êxito deste combate sangrento.


 

CENA III

 

O CORO. — O ar está povoado de aves cruéis e temíveis: os antros do mar estão cheios de monstros, inimigos dos mortais; as tempestades nas nuvens formam-se com os vapores da terra; aves, monstros, tempestades, podem conhecer-se, pode prevenir-se-lhes a cólera. Mas quem sabe até onde vai a audácia dos humanos, o arrebatamento das mulheres, o transporte do amor, sempre vizinho da desgraça, e a raiva das paixões? O odioso amor, no coração duma mulher, é mais feroz que o homem e o bruto. Serve de testemunho, sem nos elevarmos a pensamentos mais altos, o projeto concebido por uma mãe bárbara, a infeliz Altéa(14), de inflamar o fatal tição ao qual as Parcas tinham ligado a vida de seu filho, no momento em que ele tinha visto o dia e soltado os seus primeiros vagidos. É testemunho disso a sangüinária e detestável Scila(15) que sacrificou a seus inimigos o mortal mais querido. Seduzida pelos colares brilhantes dos cretenses, pelos presentes de Minos, a ímpia! corta, sem hesitar, o imortal cabelo de seu pai adormecido, e subitamente Niso desce ao reino das Sombras. Visto que lembramos estas tristes histórias, recordemos, embora com desgosto, um odioso himeneu, funesto a uma família inteira, e a traição duma esposa a um esposo valente e corajoso. Que um homem se vingue dos inimigos, é essa a sua glória: a honra duma mulher está em dirigir em paz a sua casa; que ela nunca ouse armar o seu braço! Mas tudo fica a perder de vista ante o crime de Lemnos: crime execrável, que todos repudiam. Que malefício se lhe pode comparar? Também a raça inteira, que se tinha manchado num odioso sacrilégio, desapareceu da terra, exposta ao desprezo dos humanos: nenhum deles respeita o que os deuses odeiam. Que devo eu augurar de tal exemplo? O gládio cortante da vingança brilha sobre as cabeças dos culpados. Não é impunemente que se calcam aos pés todas as leis. A majestade de Zeus foi ultrajada; mas os fundamentos da sua justiça são inabaláveis. A Parca aguça o ferro e reconduz o filho a esta casa. Erinis, a quem nada escapa, vem pedir contas do sangue derramado há tanto tempo.


 

TERCEIRO ATO
CENA I

O CORO, ORESTES E PÍLADO,
batem à porta do palácio.

 

ORESTES. — Escravos, respondei-me. .. (Bate segunda vez). Não há ninguém neste palácio?... (Bate terceira vez). Pela terceira vez, eu pregunto a quem deve receber os estrangeiros se Egisto conhece a hospitalidade.


 

CENA II

OS PRECEDENTES, O PORTEIRO.

 

O PORTEIRO. — Aqui estou. Estrangeiros, quem sois?

ORESTES. — Ide anunciar-me a vossos amos, é a eles que eu procuro: trago-lhes notícias que lhes interessam. Apressai-vos. O carro tenebroso da noite aproxima-se; é altura dos viajantes se recolherem em casa de hospedeiros amáveis. Que a dona da casa, que a senhora venha... ou antes, trazei aqui o patrão, para lhe poder falar sem constrangimento; um homem, em presença doutro homem explica-se livremente e sem rodeios.

(O porteiro volta acompanhado por Clitemnestra).


 

CENA III

O CORO, ORESTES, PÍLADO, CLITEMNESTRA, ELECTRA.

 

CLITEMNESTRA. — Estrangeiros, dizei-nos, que pretendeis? Encontrareis aqui o que tendes o direito de esperar, banhos, leitos para vos refazerdes da fadiga e corações cheios de afabilidade; se algum assunto mais importante vos traz, isso diz respeito a meu marido e eu dar-lhe-ei parte.

ORESTES. — Eu sou fócio, de Daulis. Vinha para Argos trazendo comigo, como vedes, a minha bagagem. Encontrei no caminho um homem que não conhecia, mas que me disse ser Estrófio o fócio. Preguntou-me onde ia e ensinou-me o caminho. “Estrangeiro, acrescentou ele, já que ides a Argos, lembrai-vos de dizer aos parentes de Orestes que ele morreu, não vos esqueçais disso; quando voltardes, dir-me-eis se eles querem que o seu corpo seja levado para Argos ou preferem que fique sepultado para sempre na terra estranha em que tinha encontrado hospitalidade; por enquanto, as suas cinzas, justamente honradas com as nossas lágrimas, estão encerradas numa urna de bronze”. Reproduzo o que ele me disse, mas ignoro se falo àqueles a quem tal notícia interessa; é necessário, porém, que a mãe de Orestes seja informada.

ELECTRA. — Ó desgraçada, estou irremediavelmente perdida! Irresistível Destino que persegues a nossa raça! nada te escapa: privas-me de todos os entes que me eram queridos; os teus dardos inevitáveis atingem até os que estavam mais afastados. Orestes conservava-se prudentemente num porto abrigado da tempestade; mas hoje destróis com ele a consoladora esperança que nos restava de voltar a ter dias de alegria.

ORESTES. — Era trazendo notícias felizes que eu desejaria apresentar-me a tão respeitáveis hospedeiros e merecer o seu acolhimento: quem mais que um hóspede deseja bem aos seus hospedeiros? mas, depois da minha promessa, seria um crime não informar deste acontecimento as pessoas generosas de quem recebo hospitalidade.

CLITEMNESTRA. — Não sereis, por isso, menos dignamente tratado, nem menos amigo desta casa. Cedo ou tarde, qualquer outra voz nos traria a notícia. Mas é tempo já, para viajantes fatigados duma longa jornada, de saborear algum repouso. Escravo, condu-lo, com aqueles que o acompanham, aos aposentos dos hóspedes; que eles encontrem ali tudo aquilo de que precisam. Encarrego-te disso e dar-me-ás contas do que fizeres. Nós vamos transmitir a notícia ao senhor desta casa; temos amigos e resolveremos com eles o que há a fazer.


 

CENA IV

 

O CORO. — Guardemos, queridas companheiras, guardemos bem o segredo de Orestes. Ó terra venerável! ó túmulo respeitável que guarda as cinzas dum rei que outrora comandou mil navios, escutai os nossos votos, protegei Orestes! Chegou o momento em que a fraude deve servi-lo; que o deus das sombras, Hermes subterrâneo, o conduza pelas suas mãos neste sangrento combate.

(Avistam alguém que sai do palácio e mudam imediatamente de assunto).

Este estrangeiro não trouxe aqui senão luto...


 

CENA V

O CORO, GILISSA, ama de Orestes.

 

O CORO. — Vejo a ama de Orestes banhada em lágrimas. Gilissa, o que é que vos faz transpor assim as portas do palácio? A dor que vos acompanha transparece, embora o não queirais.

GILISSA. — Aquela que recebe estes estrangeiros, ordenou-me que procurasse Egisto, sem demora, a fim de que possa ouvir da boca deles, com certeza, a notícia que trouxeram. Diante das escravas, ela escondeu, sob uma máscara triste, a alegria que este acontecimento lhe causou. Estes hóspedes acumularam a sua ventura e a desgraça desta família. Certamente Egisto poderá abandonar-se à alegria ao ouvir tal notícia. Ah! desgraçada! os terríves males acumulados há tanto tempo no palácio dos Átridas, tinham já afligido bastante o meu coração; mas ainda não tinha sofrido uma dor assim. A minha coragem permitiu-me suportar tudo; mas, o meu querido Orestes... a afeição da minha alma... quem eu amamentara quando saiu do ventre materno... cujos gritos tantas vezes me chamaram de noite!... Quantas penas e fadigas perdidas! pois não são necessárias mil precauções para criar uma criança desprovida de razão como o bruto? Envolvida nos cueiros não pode exprimir-se embora esteja atormentada pela fome, pela sede, ou por quaisquer outras necessidades. O fraco instinto a que obedece, é tudo quanto a guia. Ai de mim; ama e governante, uma e outra foram bem ludibriadas nos seus cuidados! uma e outra receberam o mesmo prêmio. Esta dupla função foi-me confiada quando recebi Orestes das mãos de seu pai; e agora, infortunado! sei que já não existe... Mas tenho que ir à procura daquele que causou todas as nossas desgraças. Com que prazer ele vai escutar-me!

O CORO. — Mas como ordenou ela que ele viesse?

GILISSA. — Como?... Explicai-vos, não vos compreendo.

O CORO. — Ela disse que viesse só, ou com guardas?

GILISSA. — Com o séquito armado que o acompanha.

O CORO.—É isso que é preciso não dizer a esse senhor odiento; dizei-lhe que venha só, e sem receio, saber a notícia. Transmiti prontamente essa mensagem com alegria: a vossa felicidade, sem que o saibais, depende disso.

GILISSA. — Parece-vos? Depois desta notícia?...

O CORO — Mas se Zeus, finalmente, afastasse os nossos males...

GILISSA. — Como? Orestes morreu e a nossa esperança com ele.

O CORO. — Ainda não: quem ler bem no futuro julgará de outro modo.

GILISSA. — Que dizeis? Estareis melhor informadas que nós?

O CORO. — Ide, cumpri as ordens que vos deram; deixai ao céu o cuidado de realizar os seus desígnios.

GILISSA. — Vou, pois, e obedeço-vos. Possam os deuses olhar-nos favoravelmente!


 

CENA VI

 

O CORO — Agora, pai dos deuses do Olimpo, exalça meus votos! faze que os meus justos desejos se realizem plenamente! Tu sabes porque eu te imploro, ó Zeus! vela por ele, deus poderoso; permite que nesta casa ele vença os seus inimigos. Se lhe prestas o teu invencível apoio, ele far-lhes-á sentir todo o peso da sua vingança. Vês o filho dum homem que estremeceste jungido ao carro do infortúnio; modera o excesso das suas penas. Poderá ele levar ao fim a sua penosa carreira? Vê-lo-emos, finalmente, chegar ao desejado termo de seus males? E vós, habitantes destes veneráveis lares, deuses benfeitores, escutai-nos! chegou o vosso dia; vingai aqueles cujo sangue foi vertido outrora.

Mas que a morte não volte a gerar a morte. Estes últimos golpes serão justos. Habitante do antro profético! que Orestes entre de novo no seu palácio; que os nossos olhos o vejam livre e saia das trevas que o envolvem! Que o filho de Maia(16) lhe preste, contigo, um justo auxílio e secunde os seus projetos! Muitas vezes os teus oráculos são obscuros, e as tuas palavras inexplicáveis envolvem-se duma noite que nenhum dia dissipa. Mas, se lhe concedes a vitória, far-te-emos presente das mais ricas oferendas, honrando com as nossas lágrimas o túmulo do nosso rei. O êxito de Orestes fará a nossa felicidade e será o termo dos males duma família que estimamos. E tu, querido príncipe, fortalece a tua coragem; no momento de vibrares o golpe, se ela te disser: “Meu filho, é tua mãe que te implora”, lembra-te do que ela ousou contra teu pai, leva até o fim uma vingança terrível; tomando um coração de Perseu(17), restituí à sombra que te é querida, aos vivos a quem odeias, o que a tua cólera lhes deve, faze correr o sangue, imola os culpados assassinos.


 

QUARTO ATO
CENA I

O CORO, EGISTO, GILISSA

 

EGISTO. — Foram procurar-me e vim imediatamente. Soube que uns estrangeiros aqui chegados propalam a notícia da morte deplorável de Orestes. Anunciá-la no palácio, seria acrescentar um doloroso peso ao crime cuja recordação pungente ulcerou já os corações. Mas como assegurar-me da veracidade de semelhante informação? Não será apenas um boato aceite de ânimo leve por mulheres tímidas e que depressa se desfaz? Estais bem informada dessa notícia?

GILISSA. — Ouvi contá-la: mas entrai, interrogai esses estrangeiros. As informações não têm importância quando nos podemos elucidar por nós mesmos.

EGISTO. — Sim, quero vê-los e saber se eles próprios foram tesmunhas da sua morte ou se é um boato com pouco fundamento. Eles não poderão iludir a minha perspicácia.

(Entra com Gilissa).


 

CENA II

 

O CORO.— Ó Zeus! que hei-de eu dizer? por onde hei-de começar as minhas preces e as minhas súplicas? como exprimir todos os meus desejos? Em breve o ferro assassino, tinto de sangue, aniquilará, para sempre, a raça de Agamémnon ou restituir-lhe-á o brilho, a liberdade, o cetro e os bens da sua antiga herança. Tal é o combate que Orestes vai travar sozinho com dois sacrílegos assassinos. Que ele possa alcançar a vitória!

EGISTO (detrás da cena). — Ai! Ai! Ah deuses!

O CORO. — Bate, redobra... (Vêem alguém que sai do palácio). O que há? que se passa no palácio?... (À parte). Está tudo feito; afastemo-nos, a fim de que pareça que não tomámos nisso nenhuma parte.


 

CENA III

O CORO, UM ESCRAVO ou OFICIAL, que sai do lado por onde entrou Egisto e vai bater à porta dos aposentos da rainha, o qual tem ainda outra porta além daquela por onde entrou Egisto.

 

O ESCRAVO. — Ah! desgraçado, desgraçado! o meu senhor está morto!... Ah! três vezes desgraçado! Egisto já não existe!... Mas abri depressa, abri a porta dos aposentos das mulheres... Despachai-vos... não para socorrer Egisto... ai! já não é tempo... Abri... Ninguém responde... Parece que dormem... os meus gritos são inúteis... Onde está Clitemnestra? que faz ela? Ah! em breve a sua cabeça vai tombar também sob o gládio da vingança.


 

CENA IV

O CORO, O ESCRAVO, CLITEMNESTRA.

 

CLITEMNESTRA. — Que é? donde vêm estes gritos?

O ESCRAVO. — Aqueles que se dizia estarem mortos, mataram os vivos.

CLITEMNESTRA. — Ah! deuses, percebo este enigma. A astúcia perde-nos como nos tinha servido... Dêem-me depressa um machado, qualquer arma... Já que sou forçada a isso, veremos a quem cabe a vitória.


 

CENA V

O CORO, CLITEMNESTRA, ORESTES com uma espada na mão.

 

ORESTES. — É a vós que eu procuro; Egisto recebeu o seu salário.

CLITEMNESTRA — Ah! desgraçada! querido Egisto, já não existes!

ORESTES — Amai-lo? pois bem ! compartilhareis do seu túmulo; sede-lhe fiel até depois da morte. (Ele agarra-a e quere matá-la).

CLITEMNESTRA — Detém-te, ó meu filho! Respeita o seio em que repousaste tantas vezes, onde sugaste o leite que te alimentou.

ORESTES (Detém-se e volta-se para Pílado). — Pílado, que hei-de fazer!? Posso eu, sem estremecer, apunhalar minha mãe?

PÍLADO. — Que é feito dos oráculos de Pitos? Que é feito dos teus juramentos? Não temos outros inimigos a não ser os deuses.

ORESTES (depois duma pausa). — ...Tu vences, são justos os teus conselhos... (a Clitemnestra, arrastando-a). Segui-me, é junto dele (mostrando, detrás da cena, o local onde se deve supor que ele matou Egisto) que eu quero imolar-vos. Em vida, preferistê-lo a meu pai; que a morte vos una ainda com ele, a vós, a amante desse traidor, a vós, inimiga de vosso esposo!...

CLITEMNESTRA. — Amamentei a tua infância, poupa a minha velhice.

ORESTES. — Matastes meu pai, poderia eu viver convosco?

CLITEMNESTRA. — Foi o Destino, meu filho, que fez tudo.

ORESTES. — É também o Destino que vos vai dar a morte.

CLITEMNESTRA. — Meu filho, teme as imprecações de tua mãe!

ORESTES — Minha mãe?... vós, que me abandonastes ao infortúnio!?

CLITEMNESTRA.— Confiei-te a fiéis hospedeiros.

ORESTES. — Vendestes-me, a mim, filho dum pai livre.

CLITEMNESTRA. — E onde está o prêmio que recebi?

ORESTES. — O prêmio! coraria de o dizer...

CLITEMNESTRA. — Di-lo, mas dize também as infidelidades de teu pai.

ORESTES. — Éreis vós, sentada neste palácio, que acusáveis um herói distante?

CLITEMNESTRA. — Meu filho, a ausência do marido é penosa para sua mulher.

ORESTES. — Mas o marido ausente só para ela trabalha.

CLITEMNESTRA. — Meu filho, queres então matar tua mãe?

ORESTES. — Não sou eu, sois vós que vos condenais.

CLITEMNESTRA. — Pensa nisto: cães devoradores vingarão tua mãe.

ORESTES. — Não vingarão eles meu pai, se eu o esqueço?

CLITEMNESTRA. — Em vão eu choro à beira do túmulo...

ORESTES. — O destino de meu pai decidiu da vossa sorte.

CLITEMNESTRA. — Ai de mim! eu gerei e amamentei esta serpente! Horrendo sonho, como eras verdadeiro!

ORESTES. — Culpada dum assassínio, um assassino vos pune.

(Arrasta Clitemnestra para fora da cena).


 

CENA VI

 

O CORO. — Lamentemo-los a um e outro: mas se o infeliz Orestes é constrangido a derramar tanto sangue, desejemos, ao menos, que o facho desta raça jamais se extinga! O tempo vingou Príamo e os seus súditos. Dois guerreiros, dois leões, entraram em casa de Agamémnon. Instruído pelo oráculo de Apolo, o herói exilado tudo realizou. Enviado por determinação do céu, que ele triunfe no seu palácio. Encontrou o termo de suas penas, retoma a posse de seus bens, que dois torpes assassinos tinham usurpado. Os que venceram pela traição são punidos pela astúcia. A excelente filha de Zeus empunhou o gládio; mortais, com razão nós lhe chamamos justiça. A sua cólera exterminadora soprou sobre os seus inimigos; o profeta do Parnaso, que habita um antro profundo neste monte, tinha-o predito abertatamente; ela visita, enfim, na sua vingança, a mulher pérfida que a ultrajara. A divindade é como forçada a não servir nunca os maus. Adoremos, como é justo, a potestade que reina nos céus.

(Orestes aparece neste momento; as portas do palácio estão abertas; vêem-se, a distância, os corpos de Egisto e de Clitemnestra. Trazem, ao mesmo tempo, o véu em que Agamémnon se encontrara envolvido quando fora assassinado ao sair do banho).


 

QUINTO ATO
CENA I

O CORO, ORESTES, ELECTRA, PÍLADO, ARGIANOS.

 

O CORO. — Finalmente alvorece o dia: o nosso pesado jugo despedaçou-se. Receámos, por muito tempo, ver-vos adormecer para sempre na noite da desventura, mas em breve o tempo, que tudo faz, mudará a face deste palácio quando as vossas expiações lhe tiverem lavado as máculas. A fortuna, mais risonha, escutará os nossos votos. Os destinos desta família tomarão outro curso: finalmente brilha o dia.

ORESTES. — Vede estes dois tiranos de Argos (aponta os dois corpos), estes assassinos destruidores da minha casa, outrora sentados orgulhosamente no trono, unidos pelo amor, e agora ainda, como pode ver-se, fiéis a seus juramentos. Ambos tinham jurado matar meu desditoso pai e morrer juntos; cumpriram tudo. Vede, vós que tantas vezes os ouvistes falar, vede este tecido artificioso de que o infortunado não pôde desembaraçar-se, este liame em que os seus membros se encontraram enleados. (Aos escravos que seguram o véu de que ele fala). Desdobrai e mostrai este vestuário fatal. Que o pai, não o de Orestes, mas de toda a natureza, o sol, veja a obra ímpia duma esposa. Um dia, se me acusarem, ele testemunhará com que justiça eu matei, não digo Egisto porque sofreu a sorte devida a um vil adúltero, mas minha mãe... Pois quê!? aquela que concebeu tanto ódio contra o marido cujo amor tinha gerado filhos no seu ventre, penhores da sua ternura, antigamente queridos, hoje funestos, é assim que eu lhe devo chamar? Não é uma hidra, uma víbora, cujo contato, por si só, mesmo sem mordedura, envenena? Este laço, esta rede, este pérfido véu, é uma armadilha destinada aos hóspedes dos bosques, ou vestuário de morte, uma mortalha sepulcral? Invenção infame, digna dum salteador que, pérfido para com os seus hospedeiros, vivendo apenas de roubos, com o auxílio deste tecido nos seus assassinatos, facilmente acumularia crimes. Grandes deuses! que jamais habite convosco semelhante esposa! Antes eu morra sem posteridade!

O CORO (observando os dois corpos). — Ah! deplorável espetáculo!... (Contempla particularmente o corpo de Clitemnestra). Esta morte é horrível... (Vê Orestes que, de olhos fixos no corpo da mãe começa a perturbar-se). Quanto mais ele demora a examiná-la, tanto mais a sua dor aumenta.

ORESTES. — Foi ela inocente ou culpada?... Ah! tenho a prova neste vestuário que o punhal de Egisto tingiu dum sangue cujas manchas se não desvaneceram com o tempo. À vista deste tecido, fatal a meu pai, ora me vanglorio, ora me lamento. Choro o seu crime, a sua punição, esta raça toda... A minha vitória é horrorosa e desonra as minhas mãos!

O CORO (vê a perturbação de Orestes que aumenta pouco a pouco). — Nenhum mortal se torna criminoso impunemente. Todos são castigados, mais cedo ou mais tarde.

ORESTES. — Seja como for, sei a sorte que me espera. Como corcéis fogosos que se evadem, os meus sentidos desvairados me arrastam contra minha vontade. O meu coração suspira de ternura e palpita de raiva. Enquanto conservo ainda a razão, queridas amigas, eu repito que não foi injustamente que matei minha mãe, manchada com o sangue de meu pai e detestada pelos deuses. O profeta de Pitos, afirmo-o, incitou-me também. Os seus oráculos asseguraram-me que esta ação não seria, de nenhum modo, considerada um crime. Se a não tivesse praticado, anunciava-me ele uma punição que nem sequer direi, pois nenhum traço lhe pintaria o horror. Irei, portanto, com esta coroa e este ramo, irei ao seu santuário, centro(18) da terra, onde arde uma chama incorruptível: ali expiarei o meu matricídio. Ele proibiu-me que abraçasse outros altares. Vós, argianos, sede testemunhas, um dia, se eu mereci estes males: quanto a mim, para o futuro, errante, vagabundo, exilado, eis o renome que deixarei em morrendo.

O CORO. — A vossa vingança foi legítima. Não vos acuseis a vós mesmo, não pressagieis desgraças. Libertastes a cidade de Argos, justamente por terdes abatido dois monstros.

ORESTES (torna-se furioso). — Ah! queridas amigas!... vejo-as a estas negras Górgonas(19)... cercadas de inúmeras serpentes... Não posso livrar-me.

O CORO. — Que fantasmas vos perturbam? Ó príncipe tão fiel a vosso pai, que receais?

ORESTES. — Não são fantasmas, são cães devoradores, as Fúrias que vingam uma mãe.

O CORO — As vossas mãos estão ainda tintas de sangue; eis a causa da vossa perturbação.

ORESTES — Poderoso Apolo!... o seu número aumenta... o sangue distila dos seus olhos!

O CORO. — Há expiações: ide implorar Apolo, que ele vos livrará dos vossos males.

ORESTES. — Vós não as vedes... mas eu vejo-as... Elas perseguem-me, não posso livrar-me.

(Sai).

O CORO. — Que possais ser feliz, que um deus benfazejo se digne velar por vós! Três vezes a tempestade açoitou este palácio. Aqui se viu o deplorável Tiesto devorar os seus próprios filhos; viu-se o maior dos reis, o chefe da Grécia, massacrado num banho. Agora veio Orestes reparar, ou, di-lo-ei? acumular estas desgraças. Quando lhes chegará o termo? onde acabará esta cadeia de crime e de vingança?

FIM


 

Notas

(1) - Em Janeiro celebravam-se as festas Lenaias; em Fevereiro, as Antestérias; em Março, as grandes Dionísias; e em Dezembro, as pequenas Dionísias.

(2) - Tragédia deriva de tragos (bode) e ode (canto).

(3) - Aristófanes, Rãs.

(4) - Ésquilo reproduzia alguns passos desta peça na sua tragédia Persas.

(5) - Ateneu descreve um banquete que ele teve com Sófocles quando este ia tomar o comando da expedição de Samos.

(6) - Aristófanes considera-o um “célebre poeta trágico” (Festas de Demeter; Rãs) e põe-o em cena na comédia Festas de Demeter.

(7) - Aristófanes alude à dureza dos seus versos (Vespas, v. 462; Festas de Demeter) e acusa-o de plagiar Sófocles na peça Tereu (Aves, v. 281).

(8) - Aristófanes, Nuvens.

(9) - Eliano, IV, II, 8.

(10) - Supõe-se que este epitáfio tenha sido deixado pelo próprio Ésquilo.

(11) - Esta lei era chamada pelos gregos lei de Radamanto. Aristóteles (Ética, liv. V, cap. 8) enuncia-a: “Que a pena seja considerada justa se o culpado sofre o mesmo mal que fez”. Moisés estabelecera a mesma lei entre os judeus: olho por olho, dente por dente. Sólon aplicou-a em Atenas de modo mais severo, pois quem vazasse um olho a um cidadão, ficaria com os dois vazados.

(12) - Povo persa dos arredores de Susa.

(13) - Os antigos supunham que cortando os braços e as pernas ao corpo de um homem assassinado, impediam que o morto suscitasse as suas fúrias contra os assassinos.

(14) - Mãe de Meleagre.

(15) - Segundo Ovidio (Metamorfoses, liv. VIII) Scila cortou o fatal cabelo de que dependia a vida de Niso, levada apenas pela sua paixão por Minos.

(16) - Mãe de Hermes.

(17) - Perseu, filho de Zeus e de Danae, cortou a cabeça de Medusa e libertou Andrômeda.

(18) - Delfos era para os gregos, o centro da terra. No famoso templo conservava-se o fogo sagrado, que não devia deixar extinguir-se; e as sacerdotisas encarregadas de conservá-lo eram viúvas e não virgens como sucedia em Roma com as Vestais (Plutarco, Vida de Numa Pompílio, 13).

(19) - Monstros terríveis cujos cabelos eram serpentes.

Variantes

(*) – “quere” na fonte digitalizada

(**) – “caros” na fonte digitalizada


 

©2002 — Ésquilo

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