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Jean-Jacques Rousseau

DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

 

Discurso Sobre as Ciências e as Artes (1749)
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

Edição
Ridendo Castigat Mores

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Fonte Digital
www.jahr.org

Copyright ©
Autor: Jean-Jacques Rousseau
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


 

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia
BIOGRAFIA DO AUTOR
ADVERTÊNCIA
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
NOTAS


 

 

 

[imagem]

 


 

DISCURSO QUE CONQUISTOU O PRÊMIO DA ACADEMIA DE DIJON NO ANO DE 1750 SOBRE ESTA QUESTÃO: SE O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES CONTRIBUIU PARA PURIFICAR OS COSTUMES.

Jean-Jacques
Rousseau


 

 

 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

O “Discurso sobre as ciências e as artes” lembra um pouco, em seu método e estilo, a maiêutica de Sócrates. Rousseau faz afirmações incisivas, mas são poucas. No mais das vezes ele duvida e formula perguntas. Logo de início diz:

“O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar ou para corromper os costumes? Eis o que se trata de examinar. Que partido devo tomar nessa questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de bem que nada sabe e que como tal não se estima menos.”

Assim, apresentando dúvidas e formulando questões, Rousseau vai extraindo, como em um parto, a experiência vivida de seus leitores para que cheguem a uma conclusão geral.

A grande questão é: o homem, ao deixar seu estado de natureza, com toda a sua probidade, honradez, força e energia para se dedicar às ciências e às artes não teria se corrompido no que possuía de mais puro?

A resposta cabe, exclusivamente, ao leitor. É a maiêutica.


 

 

 

BIOGRAFIA DO AUTOR

[imagem]

 

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de 1778.

Dotado de excepcionais qualidades de inteligência e imaginação, foi ele um dos maiores escritores e filósofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idéia da volta à natureza, a excelência natural do homem, a necessidade do contrato social para garantir os direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqüente, tornou-se um dos mais poderosos instrumentos de agitação e propaganda das idéias que haviam de constituir, mais tarde, o imenso cabedal teórico da Grande Revolução de 1789-93. Ao lado de Diderot, D’Alembert e tantos outros nomes insignes que elevaram, naquela época, o pensamento científico e literário da França, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento enciclopedista. Das suas numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais notáveis: Júlia ou A Nova Heloísa (1761), romance epistolar, cheio de grande sentimentalidade e amor à natureza; O Contrato Social (1762), onde a vida social é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspirações da maioria; Emílio ou Da Educação (1762), romance filosófico, no qual, partindo do princípio de que “o homem é naturalmente bom” e má a educação dada pela sociedade, preconiza “uma educação negativa como a melhor, ou antes, como a única boa”; As Confissões, obra publicada após a morte do autor (1781-1788), e que é uma autobiografia sob todos os pontos-de-vista notável.

O Discurso, aqui editado, escrito em 1749, conquistou o prêmio da Academia de Dijon (1750), sobre o tema: “Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes”.


 

 

DISCURSO
QUE CONQUISTOU O PRÊMIO DA ACADEMIA DE DIJON NO ANO DE 1750 SOBRE ESTA QUESTÃO: SE O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES CONTRIBUIU PARA PURIFICAR OS COSTUMES.

 

Barbarus hic ego sum, quia non intelligor illis
Ovídio, As Tristes, V, elegia, 10, v. 37.

 

Que é a celebridade? Eis aqui a desgraçada obra à qual devo a minha. É certo que esta peça, que me valeu um prêmio e que me fez um nome, é quando muito medíocre, e ouso acrecentar que é uma das menores de toda esta coletânea. Que abismo de misérias evitaria o autor, se este primeiro escrito só tivesse sido recebido como o merecia! Mas, era preciso que um favor inicialmente injusto atraísse sobre mim, aos poucos, um rigor que o é ainda mais.


 

 

 

ADVERTÊNCIA

 

Eis uma das grandes e belas questões que jamais foram agitadas. Não se trata, neste discurso, dessas sutilezas metafísicas que invadiram todas as partes da literatura, e das quais os programas de academia nem sempre estão isentos; trata-se, sim, de uma dessas verdades que se relacionam com a felicidade do gênero humano.

Prevejo que dificilmente me perdoarão o partido que ousei tomar. Chocando de frente com tudo aquilo que desperta, hoje, a admiração dos homens, só posso esperar a censura universal; e não é por ter sido honrado pela aprovação de alguns sábios que devo contar com a do público: também o meu partido está tomado. Não me preocupo de agradar nem aos belos espíritos nem à gente da moda. Em todos os tempos, haverá homens feitos para serem subjugados pelas opiniões do seu século, do seu país e da sua sociedade. Isso faz, hoje, o espírito forte e o filósofo que, pela mesma razão, não passasse de um fanático do tempo da Liga. É preciso não escrever para tais leitores, quando se quer viver além de seu século.

Uma palavra ainda, e vou terminar. Contando pouco com a honra que recebi, depois de remeter este discurso eu o refundi e aumentei, a ponto de fazer dele de certa maneira, outra obra. Julgo-me, hoje, obrigado a restabelecê-lo no estado em que foi coroado. Acrescentei apenas algumas notas, deixando duas adições fáceis de reconhecer, e que a Academia talvez não aprovasse. Penso que a eqüidade, o respeito e o reconhecimento exigem de mim esta advertência.


 

 

 

DISCURSO SOBRE ESTA QUESTÃO:
CONTRIBUIU O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES PARA PURIFICAR OS COSTUMES?

 

Decipimur specie recti (IV).
Horácio, Arte Poética, verso 25.

 

O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar ou para corromper os costumes? Eis o que se trata de examinar. Que partido devo tomar nessa questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de bem que nada sabe e que como tal não se estima menos.

Será difícil, eu o sinto, apropriar o que tenho que dizer ao tribunal em que compareço. Como ter a ousadia de censurar as ciências diante de uma das mais sábias companhias da Europa, louvar a ignorância em uma célebre Academia e conciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos verdadeiros sábios? Vi essas contrariedades e elas me não dissuadiram. Não é a ciência que eu maltrato, disse eu a mim mesmo, é a virtude que defendo diante de homens virtuosos. A probidade é ainda mais cara às pessoas de bem do que a erudição aos doutos. Que devo, pois, temer? As luzes da assembléia que me escuta? Confesso-o; mas, assim é pela constituição do discurso, e não pelo sentimento do orador. Os soberanos eqüitativos jamais vacilaram em se condenar nas discussões duvidosas; e a posição mais vantajosa ao bom direito é ter de se defender contra uma parte íntegra e esclarecida, juiz na sua própria causa.

A esse motivo que me encoraja, acresce outro que me determina: é que, depois de ter sustentado, segundo minha luz natural, o partido da vontade, qualquer que seja o meu êxito, há um prêmio que me não pode faltar: encontrá-lo-ei no fundo do meu coração.


 

 

 

PRIMEIRA PARTE

 

É um grande e belo espetáculo ver o homem sair, de qualquer maneira, do nada, por seus próprios esforços; dissipar, com as luzes da razão, as trevas nas quais a natureza o envolvera; elevar-se acima de si mesmo; atirar-se pelo espírito até às regiões celestes; percorrer, a passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que ainda é maior e mais difícil, entrar de novo dentro de si mesmo para aí estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim. Todas essas maravilhas são renovadas há poucas gerações.

A Europa caíra na barbaria das primeiras idades. Os povos desta parte do mundo, hoje tão esclarecida, viviam, há séculos, em um estado pior do que a ignorância. Não sei que algaravia científica, ainda mais desprezível do que a ignorância, usurpara o nome do saber e opunha à sua volta um obstáculo quase invencível. Era preciso uma revolução para trazer de novo os homens ao senso comum; ela veio, enfim, do lado de onde menos poderia ser esperada.

Foi o estúpido muçulmano, foi o eterno flagelo das letras que as fez renascer entre nós. A queda do trono de Constantino levou para a Itália os despojos da antiga Grécia. A França, por sua vez, se enriqueceu com essas preciosas ruínas. Em breve, as ciências seguiram as letras: à arte de escrever, juntou-se a arte de pensar; gradação que parece estranha e que, talvez, não seja até bastante natural: e começou-se a sentir a principal vantagem do comércio das musas, a de tornar os homens mais sociáveis, inspirando-lhes o desejo de agradar uns com obras dignas de sua aprovação mútua.

O espírito tem suas necessidades, assim como o corpo. São esses os fundamentos da sociedade, constituindo os outros o seu atrativo. Enquanto o governo e as leis promovem a segurança e o bem-estar dos homens na coletividade, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e mais poderosas talvez, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro que eles carregam, sufocam neles o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar sua escravidão e formam assim os chamados povos policiados. A necessidade elevou os tronos, as ciências e as artes consolidaram-nos. Poderes da terra, amai os talentos e protegei aqueles que os cultivam.(1) Povos policiados, cultivai-as: felizes escravos, vós lhes deveis esse gosto delicado e fino com que vos irritais; essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes que, entre vós, tornam o comércio tão suave e tão fácil; em uma palavra, as aparências de todas as virtudes sem ter nenhuma.

Foi por essa espécie de polidez, tanto mais amável quanto menos afeta mostrar-se, que se distinguiram outrora Atenas e Roma, nos dias tão gabados da sua magnificência e do seu brilho; foi por ela, sem dúvida, que o nosso século e a nossa nação a ultrapassaram sobre todos os tempos e sobre todos os povos. Um tom filósofo sem pedantismo, maneiras naturais e contudo corteses, igualmente afastadas da rusticidade tudesca e da pantomina ultramontana: eis os frutos do gosto adquirido pelos bons estudos e aperfeiçoado no comércio do mundo.

Como seria agradável viver entre nós, se a aparência fosse sempre a imagem das disposições do coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regras, se a verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! Mas, tantas qualidades muito raramente vão refluídas, e a virtude não anda assim com tanta pompa. A riqueza do ornamento pode anunciar um homem opulento, e sua elegância um homem de gosto: o homem são e robusto é reconhecido por outros sinais; é sob a vestimenta rústica de um lavrador, e não sob os dourados do cortesão que se encontrarão a força e o vigor do corpo. O ornamento não é menos estranho à virtude, a qual é a força e o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que tem prazer em combater nu; despreza todos esses vis ornamentos que dificultam o uso das suas forças e cuja maior parte só foi inventada para ocultar alguma deformidade.

Antes da arte modelar as nossas maneiras e ensinar as nossas paixões a falar uma linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos, porém naturais; e a diferença dos procedimentos anunciava, ao primeiro golpe de vista, a dos caracteres. A natureza humana, no fundo, não era melhor; mas, os homens encontravam sua segurança na facilidade de se penetrarem reciprocamente; e essa vantagem, cujo valor não sentimos, lhes evitava muitos vícios.

Hoje, que pesquisas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a arte de agraciar a princípios, reina nos costumes uma vil e enganadora uniformidade, parecendo que todos os espíritos foram atirados num mesmo molde: a polidez sempre exige, o decoro ordena; sem cessar, todos seguem os usos, jamais o seu próprio gênio. Ninguém mais ousa parecer aquilo que é; e, nesse constrangimento perpétuo, os homens que formam esse rebanho chamado sociedade colocados nas mesmas circunstâncias farão todos as mesmas coisas, se motivos mais poderosos não os desviarem. Jamais saberemos bem a quem nos dirigirmos: precisamos pois, para conhecer um amigo, esperar as grandes ocasiões, isto é esperar que não haja mais tempo, pois que é precisamente nesse tempo que seria essencial conhecê-lo.

Que cortejo de vícios não acompanhará essa incerteza! Não há mais amizades sinceras não há mais estima real; não há mais confiança fundada. As suspeitas, as desconfianças, os temores, a frieza, a reserva, o ódio, a traição, hão de ocultar-se sempre sob o véu uniforme e pérfido da polidez sob essa urbanidade tão louvada, que devemos às luzes do nosso século. Não será mais profanado com juramentos o nome do senhor do universo; mas, será insultado com blasfêmias, sem que os nossos ouvidos escrupulosos se ofendam. Ninguém mais se gabará do próprio mérito, mas rebaixará o dos outros. Ninguém ultrajará grosseiramente seu inimigo, mas o caluniará com habilidade.

Os ódios nacionais se extinguirão, mas será com o amor da pátria. A ignorância desprezada será substituída por um perigoso pironismo. Haverá excessos proscritos, vícios desonrados: mas, outros serão decorados com o nome de virtudes; será preciso tê-los ou os afetar. Gabar-se-á quem tiver a sobriedade dos sábios do tempo; quanto a mim, não vejo nisso senão um requinte de intemperança tão indigno de meu elogio quanto a sua artificiosa simplicidade.(2)

Tal é a pureza adquirida pelos nossos costumes: é assim que nos tornamos gente de bem. Cabe às letras, às ciências e às artes reivindicar o que lhes pertence em obra tão salutar. Acrescentarei apenas uma reflexão: o habitante de alguma região afastada que procurasse formar uma idéia dos costumes europeus sobre o estado das ciências entre nós, sobre a perfeição das nossas artes, sobre a afabilidade dos nossos discursos, sobre as nossas perpétuas demonstrações de benevolência, e sobre essa multidão tumultuosa de homens de toda idade e de todo estado que parecem ter pressa, desde o amanhecer até ao pôr-do-sol, de se obsequiarem reciprocamente; esse estrangeiro repito, adivinharia exatamente nos nossos costumes o contrário do que eles são.

Onde não há nenhum efeito, não há causa que procurar: mas, aqui, o efeito é certo, a depravação, real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes se encaminharam para a perfeição. Dir-se-á que é uma desgraça peculiar à nossa idade? Não, senhores; os males causados pela nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o abaixamento diários das águas do Oceano não se sujeitaram mais regularmente ao curso do astro que nos ilumina durante a noite do que a sorte dos costumes e da probidade ao progresso das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que luz destas últimas se elevava sobre o nosso horizonte, e o mesmo fenômeno se observou em todos os tempos e em todos os lugares.

Vede o Egito, essa primeira escola do universo, esse clima tão fértil sob um céu de bronze, essa região célebre de onde outrora partiu Sesostris para conquistar o mundo. Tornou-se a mãe da filosofia e das belas artes, e, logo depois, a conquista de Cambises; depois, a dos gregos, dos romanos, dos árabes, e enfim dos turcos.

Vede a Grécia, outrora povo de heróis que venceram duas vezes a Ásia, uma diante de Tróia, e outra nos seus próprios lares. As letras nascentes ainda não haviam levado a corrupção aos corações dos seus habitantes; mas, o progresso das artes, a dissolução dos costumes e o jugo do Macedônio seguiram-se de perto; e a Grécia, sempre sábia, sempre voluptuosa e sempre escrava, não experimentou mais nas suas revoluções senão mudanças de senhores. Toda a eloqüência de Demóstenes jamais pode reanimar um corpo que o luxo e as artes haviam enervado.

É no tempo dos Ênio e dos Terêncio que Roma, fundada por um pastor e ilustrada por lavradores, começa a degenerar. Mas, depois dos Ovídio, dos Catulo, dos Marcial e dessa multidão de autores obscenos, cujos nomes bastam para alarmar o pudor, Roma, outrora templo da virtude, torna-se teatro do crime, opróbrio das nações, joguete dos bárbaros. Essa capital do mundo cai, enfim, sob o jugo que havia imposto a tantos povos, e o dia da sua queda foi a véspera daquele em que se deu a um dos seus cidadãos o título de árbitro do bom gosto

Que direi dessa metrópole do império do Oriente, que, por sua posição, parecia dever sê-lo do mundo inteiro, desse asilo das ciências e das artes proscritas do resto da Europa, mais talvez por sabedoria do que por barbaria? Tudo o que o deboche e a corrupção têm de mais vergonhoso; as traições, os assassínios e os envenenamentos, de mais horrível; o concurso de todos os crimes de mais atroz; eis o que forma o tecido da história de Constantinopla; eis a fonte pura de onde nos emanaram as luzes das quais se gaba o nosso século.

Mas, porque procurar, nos tempos afastados, provas de uma verdade da qual temos, sob os nossos olhos, testemunhos subsistentes? Há, na Ásia, uma região imensa na qual as letras veneradas conduzem às primeiras dignidades do Estado. Se as ciências purificassem os costumes, se ensinassem os homens a derramar o sangue pela pátria, se animassem a coragem, os povos da China deveriam ser sábios, livres e invencíveis. Mas, se não há vício que não os domine, crimes que lhes não seja familiar; se as luzes dos ministros, a pretensa sabedoria das leis, ou a multidão dos habitantes desse vasto império não puderam preservá-lo do jugo do tártaro ignorante e grosseiro, de que lhe serviram todos esses sábios? Que frutos retirou das honras com que foi cumulado? Seria o de ser povoado de escravos e perversos?

Opomos a esses quadros o dos costumes do pequeno número de povos que, preservados desse contágio dos vãos conhecimentos, fizeram com suas virtudes a própria felicidade e o exemplo das outras nações. Tais foram os primeiros persas: nação singular, na qual se aprendia a virtude como entre nós se aprende a ciência; a qual subjugou a Ásia com tanta facilidade e foi a única que teve a glória da história de suas instituições passar por um romance de filosofia. Tais foram os citas, dos quais nos foram legados tão magníficos elogios. Tais os germanos, cuja simplicidade, inocência e virtudes uma pena, cansada de traçar os crimes e os negrumes de um povo instruído, opulento e voluptuoso, consolava-se em pintar. Tal fora a própria Roma, nos tempos da sua pobreza e ignorância. Tal, enfim, se mostrou, até aos nossos dias, essa nação rústica, tão elogiada por sua coragem que a adversidade não conseguiu abater, e por sua fidelidade que o exemplo não pode corromper.(3)

Não foi por estupidez que eles preferiram outros exercícios aos do espírito. Não ignoravam que, em outras regiões, os homens ociosos passavam a vida a disputar sobre o soberano bem, sobre o vício e a virtude, e que, orgulhosos raciocinadores, fazendo-se mutuamente grandes elogios, confundiam os outros povos com o nome desprezível de bárbaros: mas, analisaram os seus costumes e aprenderam a desprezar sua doutrina.(4)

Devo esquecer que foi no seio mesmo da Grécia que se viu elevar-se essa cidade tão célebre por sua feliz ignorância quanto pela sabedoria de suas leis, essa república mais de semideuses do que de homens, tanto as suas virtudes pareciam superiores à humanidade? Oh Esparta, opróbrio eterno de uma vã doutrina! Enquanto os vícios conduzidos pelas belas artes se introduziam de uma só vez em Atenas, enquanto um tirano reunia com tanto cuidado as obras do príncipe dos poetas, tu expulsavas dos teus muros as artes e os artistas, as ciências e os sábios!

O acontecimento marcou essa diferença. Atenas torna-se a sede da polidez e do bom gosto, o país dos oradores e dos filósofos: a elegância das construções correspondia à da linguagem: por toda parte, viam-se o mármore e a tela animados pelas mãos dos mestres mais hábeis. De Atenas é que saíram essas obras surpreendentes que serviram de modelo em todas as idades corrompidas. Já o quadro da Lacedemônia é menos brilhante. “Lá, — diziam os outros povos, — os homens nascem virtuosos, e até o ar do país parece inspirar a virtude:” Dos seus habitantes só nos resta a memória de ações heróicas. Tais monumentos valeriam menos para nós do que os mármores curiosos que Atenas nos deixou?

Alguns sábios, é verdade, resistiram à corrente geral, e se preservaram do vício no convívio das Musas. Mas, que se ouça o juízo que o primeiro e o mais desgraçado deles fazia dos sábios e dos artistas do seu tempo:

“Examinei, — diz ele, — os poetas, e os vejo como pessoas cujo talento impõe a eles mesmos e aos outros, que se consideram sábios, que são tomados como tais, e que não são nada menos.”

“Dos poetas, — continua Sócrates, — passei aos artistas. Ninguém ignorava mais as artes do que eu; ninguém estava mais convencido de que os artistas possuíam belíssimos segredos. Entretanto, percebi que a sua condição não é melhor do que a dos poetas, e que tanto uns como outros têm o mesmo preconceito. Como os mais hábeis dentre eles excelem nas partes respectivas, olham-se como os mais sábios dos homens. Essa presunção desacreditou por completo o seu saber aos meus olhos: de sorte que, colocando-me no lugar do oráculo e perguntando a mim próprio o que mais eu desejaria ser, o que sou ou o que eles são, saber o que eles aprenderam ou saber que nada sei, respondi a mim mesmo e ao deus: — “Quero continuar o que sou.”

“Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas, nem os oradores, nem os artistas, nem eu, o que é o verdadeiro, o bom e o belo. Mas, há, entre nós, esta diferença: embora essa gente nada saiba, julga saber alguma coisa; ao passo que eu, não sabendo nada, ao menos não tenho dúvida. De sorte que toda essa superioridade de sabedoria que me foi concedida pelo oráculo se reduz apenas a estar bem convencido de que ignoro o que não sei.”

Eis, pois, o mais sábio dos homens, segundo o julgamento dos deuses, e o mais sábio dos atenienses, segundo o sentimento da Grécia inteira. Sócrates, a fazer o elogio da ignorância! Acredita-se que, se ele ressuscitasse entre nós, os nossos sábios e artistas o fariam mudar de opinião? Não, senhores: esse homem justo continuaria a desprezar as nossas vãs ciências; não ajudaria a aumentar esse montão de livros que nos inundam por toda parte, e deixaria, apenas, como fez, como único preceito aos seus discípulos e aos nossos netos, o exemplo e a memória de sua virtude. E assim que é belo instruir os homens.

Sócrates começara em Atenas, e o velho Catão continuou em Roma, a atacar os gregos artificiosos e que seduziam a virtude e enfraqueciam a coragem de seus artificiosos concidadãos. Mas, as ciências, as artes e a dialética prevaleceram ainda: Roma encheu-se de filósofos e oradores; foi negligenciada a disciplina militar, desprezada a agricultura, abraçadas as seitas, esquecida a pátria. Aos nomes sagrados de liberdade, de desinteresse, de obediência, às leis, sucederam os nomes de Epicuro, de Zenão, de Arcésilas. “Depois que os sábios começaram a aparecer entre nós, — diziam seus próprios filósofos, — os homens de bem desapareceram.”(5) Até então, os romanos se haviam contentado em praticar a virtude; tudo se perdeu quando começaram a estudá-la.

Oh Fabrício que pensaria vossa grande alma, se, por desgraça vossa, chamado novamente à vida, vísseis a face pomposa dessa Roma salva por vosso braço, e que vosso nome respeitável ilustrou mais do que todas as suas conquistas? “Deuses! — diríeis, — em que se transformaram aqueles tetos de colmo e os lares rústicos outrora habitados pela moderação e a virtude? Que esplendor funesto sucedeu à simplicidade romana? Que linguagem estranha é essa? Que costumes efeminados são esses? Que significam essas estátuas, esses quadros, esses edifícios? Insensatos, que fizestes? Vós, senhores das nações, vos tornastes escravos dos homens frívolos que vencestes! São os retóricos que vos governam! Foi para enriquecer os arquitetos, os pintores, os estatuários e os histriões que regastes com o vosso sangue a Grécia e a Ásia! Os despojos de Cartago são a presa de um tocador de flauta! Romanos, apressai-vos a derrubar esses anfiteatros; quebrai esses mármores, queimai esses quadros, expulsai esses escravos que vos subjugam, e cujas artes funestas vos corrompem. Que outras mãos se ilustrem por vãos talentos; o único talento digno de Roma é o de conquistar o mundo e nele fazer reinar a virtude. Quando Cinéias tomou o nosso senado por uma assembléia de reis, não o deslumbrou uma pompa vã nem a eloqüência rebuscada; não ouviu essa eloqüência frívola, estudo e encanto dos homens fúteis. Que viu, pois, Cinéias de tão majestoso? Oh cidadãos! viu um espetáculo que jamais poderão dar as vossas riquezas e as vossas artes, o mais belo espetáculo que jamais foi visto sob es céus a assembléia de duzentos homens virtuosos, dignos de comandar em Roma e de governar a terra.”

Mas, transponhamos a distância dos lugares e dos tempos, e vejamos o que se passou nas nossas regiões: sob os nossos olhos; ou melhor, afastemos as pinturas odiosas que magoariam a nossa delicadeza, e poupemo-nos o trabalho de repetir as mesmas coisas com nomes diferentes. Não foi em vão que evoquei os manes de Fabrício; e, que fiz esse grande homem dizer, que não pudesse pôr na boca de Luiz XII ou de Henrique IV? Entre nós, é verdade, Sócrates não teria bebido a cicuta, mas teria bebido, em uma taça ainda mais amarga, a zombaria insultante e o desprezo cem vezes pior do que a morte.

Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão, em todos os tempos, foram o castigo dos esforços orgulhosos que fizemos para sair da ignorância em que a sabedoria eterna nos colocara. O espesso véu com que cobriu todas essas operações parecia nos advertir bastante de que não nos destinou a vãs pesquisas.

Mas haverá, dentre essas lições, alguma da qual nos tenhamos sabido aproveitar, ou que tenhamos negligenciado impunemente? Povos, sabei, pois, uma vez, que a natureza nos quis preservar da ciência, assim como a mãe que arrebata uma arma perigosa das mãos do seu filho; que todos os segredos que ela vos esconde são tantos males dos quais vos preserva, e que a dificuldade que encontrais para vos instruirdes não é o menor dos benefícios. Os homens são perversos; seriam ainda piores, se tivessem tido a desgraça de nascer sábios.

Como são humilhantes essas reflexões para a humanidade! Como o nosso orgulho deve estar mortificado! Como! a probidade seria filha da ignorância? a ciência e a virtude seriam incompatíveis? Que conseqüências não se tirariam desses preconceitos? Mas, para conciliar as contrariedades aparentes, basta examinar de perto a vaidade e a insignificância desses títulos orgulhosos que nos deslumbram e que tão gratuitamente conferimos aos conhecimentos humanos. Consideremos, pois, as ciências e as artes em si mesmas. Vejamos o que deve resultar do seu progresso, e não hesitemos mais em convir que, em todos os pontos, os nossos raciocínios se encontrarão de acordo com as indicações históricas.


 

 

 

SEGUNDA PARTE

 

Segundo uma antiga tradição, passada do Egito à Grécia, um deus, inimigo do repouso dos homens, foi o inventor das ciências.(6) Que opinião, pois, era preciso que sobre estas tivessem os próprios egípcios, entre os quais elas nasceram? E que viam de perto as fontes que as produziram. Com efeito, tanto ao folhear os anais do mundo como ao suprir crônicas incertas com pesquisas filosóficas, não se encontra uma origem dos conhecimentos humanos que corresponda à idéia que a respeito gostamos de formar. A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosidade; todas, e a própria moral, do orgulho humano. As ciências e as artes devem seu nascimento aos nossos vícios: duvidaríamos menos das suas vantagens, se o devessem às nossas virtudes.

O defeito de sua origem só nos é bem traçado nos seus objetivos. Que faríamos das artes, sem o luxo que as nutre? Sem as injustiças dos homens, de que serviria a jurisprudência? Que seria da história, se não houvesse tiranos, nem guerras, nem conspiradores? Numa palavra, quem desejaria passar a vida em. estéreis contemplações, se cada qual, consultando apenas os deveres do homem e as necessidades da natureza, só tivesse tempo para atender à pátria, aos infelizes e aos amigos? Seremos feitos para morrer amarrados à beira do poço no qual a verdade se retirou? Essa reflexão deveria bastar para dissuadir, desde os primeiros passos, todo homem que procurasse seriamente instruir-se pelo estudo da filosofia.

Quantos perigos, quantas falsas estradas, na investigação das ciências? Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do que a verdade, não será útil, não será preciso passar para alcançá-la? A desvantagem é visível: porque o falso é suscetível de uma infinidade de combinações; a verdade, porém, só possui uma maneira de ser. Aliás, quem a procura com bastante sinceridade? Mesmo com toda a boa-vontade, que indícios nos certificam de que a reconhecemos? Nessa multidão de sentimentos diferentes, qual será o nosso critério para bem julgá-la?(7) E, o que é mais difícil, se por felicidade acabamos por encontrá-la, quem de nós saberá dela fazer bom uso?

Se as nossas ciências são vãs nos objetivos que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas na ociosidade, por sua vez a nutrem; e a perda irreparável de tempo é o primeiro prejuízo que necessariamente causam à sociedade. Em política, como em moral, é um grande mal não fazer o bem; e todo cidadão inútil pode ser olhado como homem pernicioso. Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós, por quem sabemos as razões pelas quais os corpos se atraem no vácuo; quais são, na revolução dos planetas, as relações das áreas percorridas em tempos iguais; que curvas têm pontos conjugados, pontos de inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus; como a alma e o corpo se correspondem sem comunicação, assim como dois relógios; quais os astros que podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem de maneira extraordinária; respondei-me, repito, vós de quem recebemos tão sublimes conhecimentos: se nunca nos tivésseis ensinado nada dessas coisas, seríamos por isso menos numerosos, menos bem governados, menos temíveis, menos florescentes ou mais perversos?

Desenganai-vos, pois, quanto à importância das vossas produções; e, se os trabalhos dos nossos sábios mais esclarecidos e dos nossos melhores cidadãos nos proporcionam tão pouca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa multidão de escritores obscuros e de letrados ociosos que devoram em pura perda a substância do Estado.

Que digo? ociosos? Prouvesse a Deus que na realidade o fossem! Seus costumes seriam mais sãos e a sociedade mais tranqüila. Mas, esses vãos e fúteis declamadores andam por todos os lados, armados com os seus funestos paradoxos, solapando os fundamentos da fé e aniquilando a virtude. Sorriem desdenhosamente dos velhos vocábulos de pátria e de religião, e consagram seu talento e filosofia destruição e aviltamento de tudo o que há de sagrado entre os homens. Não é que no fundo odeiem a virtude ou os dogmas; são inimigos da opinião pública; e, para reconduzi-los ao pé dos altares, bastaria relegá-los no meio dos ateus. Oh furor de se distinguir! quanto podeis!

O abuso do tempo é um grande mal. Outros males ainda piores seguem ainda as letras e as artes. Assim é o luxo, do mesmo modo que elas nascido da ociosidade e da vaidade dos homens. O luxo raramente existe sem as ciências e as artes, e elas jamais sem ele. Sei que a nossa filosofia, sempre fecunda em máximas singulares, pretende, contra a experiência de todos os séculos, que o luxo constitua o esplendor dos Estados; mas, depois de ter esquecido a necessidade das leis suntuárias, ousará ela negar ainda que os bons costumes são essenciais à duração dos impérios, e que o luxo é diametralmente oposto aos bons costumes? Que o luxo seja sinal certo de riquezas; que sirva mesmo, se se quiser, para multiplicá-las: que será preciso concluir desse paradoxo tão digno de ter nascido nos nossos dias? E que se tornará a virtude, quando se precisar enriquecer a qualquer preço? Os antigos políticos falavam, sem cessar, de costumes e de virtude: os nossos só falam de comércio e de dinheiro. Um vos dirá que um homem vale, em tal região, a soma pela qual o venderiam em Argélia; outro, seguindo esse cálculo, encontrará países em que um homem nada vale; e outros, em que vale menos do que nada. Avaliam os homens como rebanhos de gado. Segundo eles, um homem só vale, para o Estado, pelo que consome; assim, um sibarita valeria bem trinta lacedemônios. Adivinhe-se, agora, qual das duas repúblicas, a de Esparta ou a de Síbaris, foi subjugada por um grupo de camponeses e qual delas fez tremer a Ásia.

A monarquia de Ciro foi conquistada com trinta mil homens por um príncipe mais pobre que o menor dos sátrapas da Pérsia; e os citas, o mais miserável de todos os povos, resistiram aos mais poderosos monarcas do universo.

Duas famosas repúblicas disputaram entre si o império do mundo; uma era muito rica, a outra não tinha nada, e foi esta que destruiu a primeira. O império romano, por sua vez, depois de ter engolido todas as riquezas do universo, foi presa de gente que nem mesmo sabia o que era riqueza. Os francos conquistaram os gauleses, os saxões a Inglaterra, sem outros tesouros além da sua bravura e da sua pobreza. Uma tropa de pequenos montanheses, cuja avidez se limitava toda a algumas peles de carneiro, depois de ter domado a altivez austríaca, esmagou essa opulenta e temível casa de Bourgogne que fazia tremer os potentados da Europa. Enfim, todo o poder e toda a sabedoria do herdeiro de Carlos V, sustentado por todos os tesouros das Índias, foram quebrar-se contra um punhado de pescadores de arenques. Que os nossos políticos se dignem suspender seus cálculos para refletir sobre esses exemplos, e que aprendam, por uma vez, que se tem tudo com o dinheiro, exceto costumes e cidadãos.

De que se trata, precisamente, nessa questão de luxo? De saber o que mais importa aos impérios: serem brilhantes e momentâneos, ou virtuosos e duráveis. Digo brilhantes, mas, de que brilho? O gosto do fausto não se associa nas mesmas almas com o da honestidade. Não, não é possível que espíritos degradados por uma multidão de cuidados fúteis se elevem jamais a nada de grande; e ainda que para tanto tivessem a força, a coragem lhes faltaria.

Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios dos seus contemporâneos constituem a parte mais preciosa de suas recompensas. Que fará, pois, para os obter, se tem a desgraça de ter nascido no seio de um povo e nos tempos em que os sábios em moda puseram uma juventude frívola em estado de dar o tom; em que os homens sacrificaram seu gosto aos tiranos de sua liberdade(8); em que, não ousando um dos sexos aprovar senão o que é proporcional à pusilanimidade do outro, se deixa que se percam obras-primas de poesia dramática e se joguem fora prodígios de harmonia? Que fará ele, senhores? Rebaixará seu gênio ao nível do seu século e preferirá compor obras comuns, que se admirem durante a sua vida, a maravilhas que seriam admiradas muito tempo depois de sua morte. Dizei-nos, célebre Arouet o que não sacrificastes de belezas másculas e fortes à nossa falsa delicadeza! E como o espírito da galanteria, tão fértil em pequeninas coisas, vos custou grandes!

E assim que a dissolução dos costumes, conseqüência necessária do luxo, acarreta por sua vez a corrupção do gosto. Se, por acaso, entre os homens extraordinários pelo seu talento, se encontra algum com firmeza de alma que recuse ceder ao gênio do seu século e aviltar-se com produções puerís, desgraçado dele! Morrerá na indigência e no esquecimento. Não é um prognóstico que faço, mas uma experiência que refiro. Carle, Pierre(9), é chegado o momento em que o pincel destinado a aumentar a majestade de nossos templos por imagens sublimes e santas, cairá de vossas mãos, ou será prostituído a ornar de pinturas lascivas os painéis de uma berlinda. E tu, rival dos Praxíteles e dos Fídias; tu, cujos ancestrais teriam empregado o cinzel para fazer deuses capazes de desculpar aos nossos olhos a sua idolatria; inimitável Pigalle tua mão se resolverá a brunir o ventre de um macaco, ou será preciso que se torne ociosa.

Não se pode refletir sobre os costumes, sem gozar com a lembrança da imagem da simplicidade dos primeiros tempos.

É uma bela margem de rio, ornada exclusivamente pelas mãos da natureza, para a qual voltamos incessantemente os olhos, e, que, com pesar, vemos se afastar cada vez mais. Quando os homens inocentes e virtuosos gostavam de ter os deuses como testemunhas das suas ações, habitavam juntos nas mesmas cabanas; mas, tornando-se logo maus, cansaram-se desses incômodos espectadores, e os relegaram nos templos magníficos. Eles os expulsaram, enfim, para aí se estabelecerem, ou pelo menos os templos dos deuses não se distinguiram mais das casas dos cidadãos. Foi, então, o cúmulo da depravação, e os vícios jamais foram levados tão longe como quando foram vistos como que sustentados, à entrada dos palácios dos grandes, sobre colunas de mármore, e gravados sobre capitéis coríntios.

Enquanto as comodidades da vida se multiplicam, as artes se aperfeiçoam e o luxo se estende, a verdadeira coragem se enerva, as virtudes militares se dissipam; e é ainda a obra das ciência e de todas as artes que se exercem à sombra dos gabinetes. Quando os godos devastaram a Grécia, todas as bibliotecas só foram salvas do fogo devido à opinião, espalhada por um dentre eles, de que era preciso deixar aos inimigos móveis tão próprios para desviá-los do exercício militar e diverti-los com ocupações ociosas e sedentárias.

Carlos VIII se viu senhor da Toscana e do reino de Nápoles sem ter quase tirado a espada, e toda a sua corte atribuiu essa facilidade inesperada ao fato de que os príncipes e a nobreza da Itália se divertiam mais em se tornar engenhosos e sábios do que se exercitavam em tornar-se vigorosos e guerreiros. Com efeito, diz o homem sensato que lembra esses dois traços(10), todos os exemplos nos ensinam que naquela polícia marcial, como em todas as que se lhe assemelham, o estudo das ciências é bem mais próprio a enfraquecer e efeminar as coragens do que a fortificá-las e as animar.

Os romanos confessaram que a virtude militar se extinguira entre eles à medida que começaram a se conhecer em quadros, gravuras, vasos de ourivesaria, e a cultivar as belas artes; e, como se essa região famosa estivesse destinada a servir sem cessar de exemplo aos outros povos, a elevação dos Médicis e o restabelecimento das letras fizeram cair de novo, e talvez para sempre, essa reputação guerreira que a Itália parecia ter recuperado há alguns séculos.

As antigas repúblicas da Grécia, com essa sabedoria que brilhava na maior parte das suas instituições, tinham interdito aos seus cidadãos todas as profissões tranqüilas e sedentárias que, abatendo e corrompendo o corpo, enervam em seguida o vigor da alma. De que maneira, com efeito, pensamos que possam encarar a fome, a sede, as fadigas, os perigos e a morte, os homens que a menor necessidade acabrunha, e que a menor pena esmorece? Com que coragem suportarão os soldados os trabalhos excessivos com os quais não estão habituados? Com que ardor farão marchas forçadas sob o comando de oficiais que nem mesmo têm força para viajar a cavalo? Que não me objetem com o valor reconhecido de todos esses modernos guerreiros tão sabiamente disciplinados. Elogiam-me muito a sua bravura em um dia de batalha; mas, não me dizem como suportam eles o excesso de trabalho, como resistem ao rigor das estações e às intempéries do ar. Basta um pouco de sol ou de neve, basta a privação de alguma coisa supérflua, para fundir e destruir em poucos dias o melhor dos nossos exércitos. Guerreiros intrépidos, sofrei uma vez a verdade que vos é tão raro ouvir. Sois bravos, eu o sei; teríeis triunfado com Anibal em Canas e em Trasimeno; César convosco teria passado o Rubicão e subjugado o seu país: mas, não foi convosco que o primeiro atravessou os Alpes, e que o outro venceu os vossos antepassados.

Os combates nem sempre fazem o sucesso da guerra, havendo para os generais uma arte superior à de ganhar as batalhas. As vezes, o que corre para o fogo com intrepidez é um mau oficial; no próprio soldado, um pouco mais de força e de vigor seria talvez mais necessário que tanta bravura, que não o preserva da morte. E que importa ao Estado que suas tropas pereçam de febre ou de frio, ou pelo ferro do inimigo?

Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Desde os nossos primeiros anos, uma educação insensata orna o nosso espírito e corrompe o nosso julgamento. Vejo, por toda parte, imensos estabelecimentos onde se educa a juventude por preços exorbitantes, para lhe ensinar todas as coisas, exceto os seus deveres. Vossos filhos ignoram a sua própria língua, mas falarão outras que não se usam em parte alguma; saberão fazer versos que mal poderão compreender; sem saber separar o erro da verdade, Possuirão a arte de os tornar irreconhecíveis aos outros por meio de argumentos especiosos; mas, as palavras magnanimidade, eqüidade, temperança, humanidade, coragem, eles não saberão o que são; o doce nome de pátria jamais lhes impressionará os ouvidos; e, se ouvirem falar de Deus, será menos por apreendê-lo do que por temê-lo(11).

Eu preferiria que meu aluno passasse o tempo a jogar a péla pelo menos, o corpo se sentiria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade é para elas o perigo que mais se deve temer. Que é necessário, então, que aprendam? Eis aí uma bela questão. Que aprendam o que devem fazer sendo homens(12), e não o que devem esquecer.

Nossos jardins são ornados de estátuas e nossas galerias de quadros. Que pensais que representam essas obras-primas de arte expostas à admiração pública? Os defensores da pátria? ou esses homens ainda maiores que a enriqueceram com suas virtudes? Não. São imagens de todos os desvarios do coração e da razão, tiradas cuidadosamente da antiga mitologia e apresentadas oportunamente à curiosidade dos nossos filhos, sem dúvida a fim de que tenham sob os olhos modelos de más ações, antes mesmo de saberem ler.

Donde nascem todos esses abusos, se não da funesta desigualdade introduzida entre os homens pela distinção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Eis o efeito mais evidente de todos os nossos estudos, e a mais perigosa de todas as suas conseqüências Não se pergunta mais se um homem tem probidade, mas se tem talentos; se um livro é útil, mas se é bem escrito. São prodigalizadas recompensas ao belo espírito, mas a virtude não recebe honrarias. Há mil preços para os belos discursos, nenhum para as belas ações. Que me digam, entretanto, se a glória atribuída ao melhor dos discursos que serão coroadas nesta Academia, é comparável ao mérito de haver instituído o prêmio.

O sábio não corre atrás da fortuna; mas, não é insensível à glória; e, quando a vê tão mal distribuída, sua virtude, que um pouco de emulação teria animado e tornado vantajosa à sociedade, cai em langor e se extingue na miséria e no esquecimento. Eis o que com o tempo deve produzir por toda parte a preferência dos talentos agradáveis sobre os talentos úteis, e o que a experiência só tem confirmado sempre, depois da renovação das ciências e das artes. Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos, ou, se ainda nos restam alguns, dispersos nos campos abandonados, aí morrem indigentes e desprezados.

Tal é o estado a que são reduzidos, tais os sentimentos que obtêm de nós os que nos dão o pão e aos nossos filhos o leite.

Confesso, entretanto, que o mal não é tão grande como poderia tornar-se. A previdência eterna, colocando ao lado de diversas plantas nocivas outras salutares, e na substância de muitos animais malfeitores o remédio a suas feridas, ensinou aos soberanos, que são seus ministros, a imitar-lhe a sabedoria. Foi graças ao seu exemplo que do próprio seio das ciências e das artes, fontes de mil desregramentos, esse grande monarca cuja glória, de idade em idade, adquirirá novo brilho, tirou essas sociedades célebres encarregadas, ao mesmo tempo, do perigoso depósito dos conhecimentos humanos e do depósito sagrado dos costumes, pela atenção que têm em manter em si mesmas toda pureza e em exigi-la nos membros que recebe.

Essas sábias instituições, consolidadas por seu augusto sucessor e imitadas por todos os reis da Europa, servirão ao menos de freio aos homens de letras, os quais, aspirando todos a ser admitidos nas academias, velarão por si mesmos e procurarão tornar-se dignos por meio de obras úteis e costumes irrepreensíveis. Aquelas, dentre essas companhias, que, pelos prêmios com os quais honram o mérito literário, fizerem a escolha de temas próprios a reanimar o amor à virtude no coração dos cidadãos, mostrarão que esse amor reina entre elas e darão aos povos o prazer, tão raro e tão doce, de ver sociedades de sábios se devotarem a derramar sobre o gênero humano não somente luzes agradáveis, mas também instruções salutares.

Que me não oponham, pois, uma objeção que para mim não passa de nova prova. Tantos cuidados não fazem senão mostrar ainda mais a necessidade de os tomar, pois ninguém busca remédios para males que não existem. Porque será preciso que estes tragam ainda, pela sua insuficiência, o caráter dos remédios ordinários? Tantos estabelecimentos feitos para vantagem dos sábios só servem para os impor acima dos objetos das ciências e voltar os espíritos para a cultura. Parece, pelas precauções que se tomam, que se têm lavradores demais e que se receia que faltem filósofos. Não quero, aqui, ousar fazer a comparação entre a agricultura e a filosofia; ninguém a suportaria. Perguntarei somente: Que é a filosofia? que contêm os escritos dos filósofos mais conhecidos? quais são as lições desses amigos da sabedoria? Quando os ouvimos, não os tomamos por uma tropa de charlatães, gritando cada um de seu lado em uma praça pública: Vinde a mim, sou o único que não engano ninguém? Um pretende que não há corpo e que tudo é representação; outro, que não há outra substância além da matéria, nem outro deus além do mundo. Este avança que não há virtudes nem vícios, e que o bem e o mal moral são quimeras; aquele, que os homens são lobos e se podem devorar em segurança de consciência. Oh grandes filósofos! que não reservais para os vossos amigos e para os vossos filhos com essas proveitosas lições! em breve, recebereis o prêmio disso, e não temeremos encontrar entre os nossos alguns dos vossos sequazes.

Eis, pois, os homens maravilhosos aos quais a estima dos seus contemporâneos foi prodigalizada durante a sua vida, e a imortalidade reservada depois da sua morte. Eis as sábias máximas que deles recebemos e que de idade em idade transmitimos aos nossos descendentes! O paganismo, entregue a todos os desvarios da razão humana, deixou à posteridade alguma coisa que se possa comparar aos monumentos vergonhosos que lhe preparou a imprensa sob o reinado do Evangelho? Os escritos ímpios de Leucipo e Diágoras morreram com eles; ainda não se havia inventado a arte de eternizar as extravagâncias do espírito humano; mas, graças aos caracteres tipográficos(13) e ao uso que deles fazemos, os perigosos desvarios dos Hobbes e dos Spinoza permanecerão para sempre. Ide, escritos célebres, para os quais a ignorância e a rusticidade dos nossos pais não seriam capazes, acompanhai até aos nossos descendentes essas obras mais perigosas ainda, donde se exala a corrupção dos costumes do nosso século, e levai ao mesmo tempo aos séculos do porvir uma história fiel do progresso e das vantagens das nossas ciências e das nossas artes. Se vos lerem, sobre a questão que agitamos hoje não lhes deixarei nenhuma perplexidade; e, a menos que não sejam mais insensatos do que nós, levantarão as mãos para os céus, e dirão, na amargura do seu coração: “Deus todo poderoso, tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e das funestas artes dos nossos pais; restitui-nos a ignorância, a inocência e a pobreza, os únicos bens que podem fazer a nossa felicidade e que são preciosos diante de ti.”

Mas, se o progresso das ciências e das artes nada acrescentou à nossa verdadeira felicidade; se corrompeu os nossos costumes e se a corrupção dos costumes chegou a atingir a pureza do gosto, que pensaremos dessa multidão de autores elementares que afastaram do templo das musas as dificuldades que lhes impediam o acesso e que a natureza ali espalhara para pôr à prova as forças dos que tivessem a tentação de saber? Que pensaremos desses compiladores de obras que indiscretamente quebraram a porta das ciências e introduziram no seu santuário uma populaça indigna de se aproximar dele, quando seria de desejar que todos aqueles que não pudessem adiantar-se na carreira das letras fossem repelidos desde a entrada e atirados nas artes úteis à sociedade? Aquele que, durante toda a sua vida, fosse um mau versificador, geômetra subalterno, tornar-se-ia talvez um grande fabricante de tecidos. Nunca faltaram mestres para aqueles que a natureza destinou a fazer discípulos. Os Verulam, os Descartes e os Newton, esses preceptores do gênero humano, também os tiveram; e que orientadores os teriam conduzido até aonde os seus gênios os levaram? Mestres vulgares só teriam podido restringir o seu entendimento, apertando-o na estreita capacidade do seu. Foi pelos primeiros obstáculos que eles aprenderam a fazer esforços, e que se exercitaram a transpor o espaço imenso que percorreram. Se é necessário permitir que alguns homens se entreguem ao estudo das ciências e das artes, que sejam exclusivamente os que se sentem com forças para caminhar sós sobre as suas pegadas e ultrapassá-las; é a esse pequeno número que cabe levantar monumentos à glória do espírito humano. Se, porém, se quer que nada esteja acima de seu gênio, é preciso que nada esteja acima de suas esperanças: eis o único encorajamento de que têm necessidade. A alma se dá insensivelmente aos objetos que a ocupam, e são as grandes ocasiões que fazem os grandes homens. O príncipe da eloqüência foi cônsul de Roma; e o maior talvez dos filósofos, chanceler da Inglaterra. Acreditais que, se um não tivesse ocupado senão uma cadeira em qualquer universidade, e o outro só tivesse obtido módica pensão de academia, acreditais, repito, que suas obras não se ressentiriam do seu estado? Que os reis não desdenhem, pois, admitir nos seus conselhos pessoas mais capazes de bem aconselhá-los; que renunciem ao velho preconceito, inventado pelo orgulho dos grandes, de que a arte de conduzir os povos é mais difícil do que a de os esclarecer, como se fosse mais fácil persuadir os homens de fazer o bem de boa vontade do que os constranger pela força; que os sábios de primeira ordem encontrem honrosos asilos nas suas cortes; que obtenham a única recompensa digna deles, que é a de contribuir por seu crédito para a felicidade dos povos aos quais tiverem ensinado a sabedoria: só então se verificará o que podem a virtude, a ciência e a autoridade, animadas de nobre emulação e trabalhando harmoniosamente para a felicidade do gênero humano. Mas, enquanto o poder estiver de um só lado, as luzes e a sabedoria sozinhas do outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente farão belas, e os povos continuarão a ser vis, corruptos, e infelizes.

Quanto a nós, homens vulgares, para quem os céus não repartiram tão grandes talentos, e a quem não destinam tanta glória, fiquemos na obscuridade. Não corramos atrás de uma reputação que nos escaparia e que, no estado presente das coisas, não nos daria nunca o que nos teria custado, ainda que tivéssemos todos os títulos para obtê-lo. De que serve procurar a nossa felicidade na opinião dos outros, se podemos encontrá-la em nós mesmos! Deixemos a outros o cuidado de instruir os povos nos seus deveres, e limitemo-nos a bem cumprir os nossos: não temos necessidade de saber mais.

Oh virtude, ciência sublime das almas simples, será preciso então tanto trabalho e tantos aparelhos para te conhecer? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? e não bastaria, para ensinar tuas leis, penetrar em si mesmo e escutar a voz da consciência no silêncio das paixões! Eis a verdadeira filosofia, saibamos nos contentar com ela; e, sem invejar a glória desses homens célebres que se imortalizam na república das letras, tratemos de pôr entre eles e nós esta distinção gloriosa que se notava outrora entre dois grandes povos: um sabia dizer bem, o outro bem fazer.


 

 

 

NOTAS

 

(1) — Os príncipes vêem sempre com prazer o gosto das artes agradáveis e das coisas supérfluas, das quais não resulte a exportação de dinheiro, estender-se entre os seus súditos; é que, além de os nutrir assim nessa pequenez de alma tão própria da servidão, eles sabem. muito bem que todas as necessidades às quais o povo se apega são outras tantas correntes com as quais se prende. Alexandre, querendo manter os ictiófagos sob sua dependência, constrangeu-os a renunciar à pesca e a se nutrirem com os alimentos comuns aos outros povos; e os selvagens da América, que andam inteiramente nus e só vivem do produto da caça., jamais puderam ser dominados; com efeito, que jugo pode ser imposto a homens que não têm necessidade de nada?

(2) — “Gosto, — diz Montaigne, — de contestar e de discorrer, mas, com poucos homens e para mim, porque servir de espetáculo aos grandes, competindo na ostentação do seu espírito e da sua loquacidade, me parece ofício muito indecoroso para um homem de honra.” (Livro III, cap. VIII).

É o de todos os nossos belos espíritos, exceto um.

(3) — Não ouso falar dessas nações felizes que nem de nome conhecem os vícios que tanto nos custa reprimir, desses selvagens da América cuja simples e natural polícia Montaigne não duvida em preferir não só às leis de Platão, mas mesmo a tudo o que a filosofia jamais poderá imaginar de mais perfeito para o governo dos povos, cita ele uma porção de exemplos impressionantes, para os que os saibam admirar: “Mas, qual! exclama, — não vestem calças.” (Livro 1, cap. XXX.)

(4) — Que me digam, de boa fé, que opinião os próprios atenienses deviam ter da eloqüência, quando a afastaram com tanto cuidado desse tribunal íntegro dos julgamentos para o qual nem os deuses apelavam. Que pensavam os romanos da medicina, quando a baniram da sua república? E, quando um resto de humanidade levou os espanhóis a interdizer aos seus homens da lei a entrada na América, que idéia era preciso que tivessem da jurisprudência? Não se diria que julgaram reparar, com esse único ato, todo o mal que tinham feito a esses desgraçados indígenas?

(5) — “Postquam docti prodierunt, bani desunt.” (Sêneca, ep. XCV).

(6) — Vê-se claramente a alegoria da fábula de Prometeu e não parece que a opinião dos gregos, que o pregaram no Cáucaso, fosse a esse respeito mais favorável do que a dos egípcios sobre o seu deus Teuto. “O sátiro, — diz uma antiga fábula — quis beijar e abraçar o fogo, a primeira vez que o viu; mas, Prometeu gritou-lhe: “Sátiro, chorarás a barba do teu queixo, que queima quando o tocamos.”

(7) — Quanto menos se sabe mais se acredita saber. Os peripatéticos duvidavam de alguma coisa? Descartes não construiu o universo com cubos e turbilhões? E há, hoje, mesmo na Europa, um físico, por mais insignificante, que não explique ousadamente esse profundo mistério da eletricidade, que causará talvez, para sempre, o desespero dos verdadeiros filósofos?

(8) — Estou muito longe de pensar que esse ascendente das mulheres seja um mal em si. É um presente que lhes fez a natureza, para a felicidade do gênero humano; mais bem dirigido, poderia produzir tanto bem quanto mal faz hoje. Ainda não se sente bastante que vantagens nasceriam, na sociedade, de uma melhor educação dada a essa metade do gênero humano que governa a outra. Os homens serão sempre o que agradar às mulheres. Se quereis, pois, que eles se tornem grandes e virtuosos, ensinai às mulheres o que é grandeza d’alma e virtude. As reflexões que este assunto fornece, o que Platão fez outrora, bem mereceriam ser melhor desenvolvidas por uma pena digna de escrever segundo tal mestre e de defender tão grande causa.

(9) — Carle Vanloo e Pierre, o primeiro morto em 1765, o segundo em 1789, trabalharam principalmente na decoração das igrejas.

(10) — Montaigne, liv. I, cap. XXIV.

(11) — Pensamentos Filosóficos. É o título de uma obra de Diderot, contendo sessenta e dois pensamentos, publicados em 1746, e reimpressos sob o título de Étrennes aux Esprits Forts. O pensamento em que Rousseau se apoia nesta citação é o que traz o número XXV. — É provável que Rousseau tenha feito essa citação fora de tempo. A obra de Diderot tinha sido condenada ao fogo, não podia ser citada no manuscrito enviado à Academia.

(12) — Tal era a educação dos espartanos, segundo o testemunho do maior dos seus reis. “E, — diz Montaigne, — coisa digna de muito grande consideração que, nessa excelente polícia de Licurgo, na verdade monstruosa por sua perfeição, embora tão cuidadosa com a nutrição das crianças, como sendo o seu principal encargo, e na própria morada das musas, se faça tão pouca menção da doutrina: como se a essa generosa juventude, desdenhando qualquer outro jugo se tivesse devido fornecer, em lugar dos nossos mestres de ciência, somente mestres do intrepidez, prudência e justiça.”

Vejamos, agora, como o mesmo autor fala dos antigos persas: Conta Platão, — diz ele, — “que o filho mais velho de sua sucessão real era assim nutrido. Após o seu nascimento, deram-no não a mulheres, mas aos eunucos de maior autoridade junto aos reis por suas virtudes. Tinham eles o encargo de lhes tornar o corpo belo e são, e, depois de sete anos, os faziam montar a cavalo e ir à caça. Quando chegava aos catorze anos, depositavam-no entre as mãos de quatro: o mais sábio, o mais justo, o mais moderado, o mais intrépido da nação. O primeiro ensinava-lhe religião; o segundo, a ser sempre verdadeiro; o terceiro, a se tornar senhor das cobiças; o quarto, a não temer coisa alguma.” Todos, acrescentarei, a torná-lo bom, nenhum a torná-lo sábio.

“Astíages em Xenofonte pede contas da sua última lição a Ciro: E, diz ele, que, em nossa escola, um rapaz deu o seu saiote a um companheiro menor, e este lhe deu o seu, que era maior. Como o nosso preceptor me fizesse juiz dessa disputa, julguei que as coisas deviam ficar como estavam, pois que ambos pareciam estar mais bem acomodados dessa maneira. E ele me advertiu que eu fizera mal; porquanto eu ficara a considerar o benefício, quando primeiro era preciso fazer justiça, a qual queria que ninguém fosse forçado quanto ao que lhe pertence; e disse que ele fosse açoitado, tanto assim que estamos em nossas aldeias por ter esquecido o primeiro aoristo.

Meu regente me faria um belo sermão, in genere demonstrativo antes de me persuadir de que a sua escola vale aquela.” (liv. I, cap. XXIV).

(13) — Considerando-se as desordens horríveis que a imprensa já causou na Europa, julgando-se o futuro pelo progresso que o mal faz dia a dia, pode-se prever facilmente que os soberanos não tardarão a ter tantos cuidados para banir essa arte terrível dos seus Estados quantos tomaram para as introduzir.

O sultão Achmet, cedendo às importunações de alguns pretensos homens de gosto, consentira em estabelecer uma imprensa em Constantinopla; mas, mal entrara em funcionamento, foram constrangidos a destruí-la e a atirar as máquinas em um poço. Diz-se que o califa Omar, consultado sobre o que se devia fazer da biblioteca de Alexandria, respondeu nestes termos: “Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas ao Alcorão, são maus, e é preciso queimá-los; se não contêm senão a doutrina do Alcorão, queimai-os ainda, pois são supérfluos.” Nossos sábios citaram esse raciocínio como o cúmulo do absurdo. Entretanto, suponde Gregório-o-Grande no lugar de Omar, e o Evangelho no lugar do Alcorão: a biblioteca seria ainda queimada, e talvez fosse esse o mais belo traço da vida desse ilustre pontífice.


 

 

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