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eBookLibris

CID

Corneille


Cid
Pierre Corneille
(1606-1684)

Tradução
António Feliciano de Castilho
(1800-1875)

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Teatro Francês
Clássicos Jackson
Volume XXVIII
W. M. Jackson Inc.
Rio de Janeiro, 1950

Digitalização,
revisão para o português do Brasil e
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Imagem interna: Pierre Corneille - Terracotta - Musée du Louvre, Paris

© 2006 — Pierre Corneille


ÍNDICE
ATO PRIMEIRO
ATO SEGUNDO
ATO TERCEIRO
ATO QUARTO
ATO QUINTO
Notas


CORNEILLE

CID

Tradução de
ANTÔNIO FELICIANO DE CASTILHO


CID

PESSOAS DO DRAMA

D. FERNANDO — Primeiro rei de Castela
DONA URRACA —INFANTA DE CASTELA
D. DIOGO — Pai de D. RODRIGO
D. GOMES — CONDE DE GOEMAS, pai de XIMENA
D. RODRIGO — AMANTE DE XIMENA
D. SANCHO — AMANTE DE XIMENA
D. ÁRIAS — FIDALGO
D. AFONSO — FIDALGO
XIMENA — Filha de D. GOMES
LEONOS — Aia da INFANTA
ELVIRA — Aia de XIMENA
PAGE* — Da INFANTA

A cena se figura em Sevilha.


ATO PRIMEIRO

CENA I

Quarto de Ximena

XIMENA e ELVIRA


XIMENA
Parece-me impossível que meu pai consentisse!
Elvira, não me ocultes nada do que te disse.

ELVIRA
Como lho ouvi, Senhora, sinceramente o digo:
E quanto vós o amais, tanto estima Rodrigo:
Se na sua alma leio, crede que vi sinais
De pôr-vos por preceito que lhe correspondais.

XIMENA
Oh céus! Será possível! Mas dize por que crês,
Que aprove a minha escolha? Repete-me outra vez,
E mil esse agradável discurso. Jamais cansa:
Nunca serás prolixa: renova-me a esperança,
E aviva-me a paixão; se assim se me consente
A doce liberdade de a fazer patente.
Prossegue... E que te disse daquela emulação,
Com que Rodrigo, e Sancho haver a minha mão
Pretendem? Não fizeste ver-lhe a desigualdade,
Com que para um dos dois me propende a vontade?

ELVIRA
Muito pelo contrário: supus indiferente
O vosso coração, como vos é decente:
Pintei-o nem severo, nem também carinhoso,
Esperando de um pai a escolha de um esposo.
Este respeito o alegra; e quanto o consolou
A modéstia, nos olhos, no semblante o mostrou.
E vede nas palavras se acaso o contradisse;
Ouvi de vós, e deles o pouco, que me disse.
"Que bem se houve Ximena! Ambos são dignos dela,
"Do sangue mais fiel, e ilustre de Castela,
"Mancebos, mas nos olhos qualquer nos faz patentes
"As ínclitas virtudes dos claros ascendentes.
"O aspecto de Rodrigo traz à imaginação
"Uma alma generosa, um grande coração.
"É filho de uma casa de heróis, e dos primeiros:
"Parece que já nascem prudentes, e guerreiros.
"Valor, como o do pai seus tempos não lograram;
"E enquanto teve forças nenhuns lho disputaram.
"As rugas, e as proezas lhas suprem: inda agora
"As veneráveis cãs nos dizem o que fora.
"Um filho de tal pai pode desagradar-me?
"Ximena em lhe querer chega a lisonjear-me."
A hora do Conselho, a que fora chamado,
Cortou este discurso apenas começado;
Porém do que me disse sem anfibologia
Se vê dos dois propostos qual ele preferia,
E devo àquele gosto juntar o parabém
Do fim, que todos dizem, que este Conselho tem.
El-rei um aio quer ao filho nomear,
E vosso pai só pode encher este lugar.

XIMENA
Que me disseste, Elvira? Temo essa novidade:
Pois toda a Corte aspira àquela dignidade!

ELVIRA
A sua experiência, o seu raro valor,
Como não tem igual, não tem competidor.
E enquanto houver rebeldes, e mouros atrevidos,
Abortos não temais dos vis moles partidos.
E como Dom Rodrigo de seu pai conseguisse
Pedir-vos mal o vosso do Conselho saísse;
E lhe ordenou que fosse, apenas acabado,
Sem demora a palácio saber o resultado:
Bem podereis julgar, se o filho o deixará:
E se os vossos desejos se cumpriram, e já.

XIMENA
Cumpriram; mas minha alma turbada, e abatida
Metade da alegria conhece já perdida:
O rosto da fortuna se muda num momento;
E que maior presságio que o meu abatimento?

ELVIRA
Depressa um tal terror vereis desvanecido.

XIMENA
Ou talvez que o prazer em luto convertido.

CENA II

Quarto da Infanta

INFANTA, LEONOR, PAGE


INFANTA
Ide advertir Ximena de que tenho estranhado,
Não sem ressentimento, e com susto, e cuidado
O mais que os outros dias se demora em me ver.

CENA III

INFANTA, LEONOR


LEONOR
Sempre vos tarda, e sempre vos vejo estremecer;
E apenas aparece, com ânsia, e com ardor
Falais só em Rodrigo, falais no seu amor.

INFANTA
Não é sem fundamento, pois foi o meu respeito
Quem doces fez as setas, que lhe ferem o peito:
Ela ama Dom Rodrigo; houve-o de minha mão;
Ele por mim triunfou da sua ingratidão.
As cadeias forjei a Rodrigo, e Ximena;
Não devo procurar o fim da sua pena?

LEONOR
Deveis, Infanta; mas vejo que à proporção
Que os seus prazeres crescem, cresce a vossa aflição!
O mesmo amor, que os enche de gosto, e de alegria,
Vos cobre de profunda, mortal melancolia.
Uni-los, e ficar, se os vedes carinhosos
Como se infeliz fôsseis, porque eles são ditosos?
Mas vou muito adiante... desculpe-me o meu zelo.

INFANTA
Aumenta-se o tormento, se deixo de dizê-lo:
Ouve Leonor, e pasma do que minha alma oculta,
Vê como inda a paixão minha virtude insulta!
Amor é temerário: nem teme, nem se espanta
De cetros, de palácios. A tua, a tua Infanta...
Do mesmo Dom Rodrigo... (oh nunca ela o visse)
Que pediu a Ximena que amasse, que admitisse;
Se enamorou.

LEONOR
Vós!

INFANTA
Eu. Sobre o meu coração
Se o queres ver turbado, chega, põe a tua mão.
O nome, o doce nome do caro vencedor
O faz sair do peito.

LEONOR
Que infame, e louco amor!
Senhora, perdoai-me, se vos falto ao respeito:
Também de horror não cabe meu coração no peito.
Devera uma princesa (oh céus!) morrer primeiro,
Do que fitasse os olhos num simples cavaleiro.
Que astro, céus! vos domina? Que planeta, que estrela?
Sabeis que sois princesa, e Infanta de Castela?

INFANTA
E tanto o sei, Leonor, que a vida perderei;
Mas nas ações meu sangue nunca desmentirei:
Suposto que conheça que é nobre pensamento
Amar as belas almas, e o merecimento.
E se escutar quisesse delírios de paixões,
Princesas, e heroínas me dão atestações.
É minha inclinação justiça, e não furor;
Triunfa dos sentidos, e não a vence amor.
Comigo sempre disse, e podes crê-lo assim,
Que quem não for monarca, não é digno de mim.
     Por isso mal senti avizinhar-se o fogo,
Que abrasa, mal se ateia, não só fugi, mas logo
Em meu lugar cuidei de pôr Ximena ingrata,
Por que lavrando nela se apague o que me mata.
E vendo de que pende, Leonor, o meu troféu;
Vês por que impaciente me traz seu himeneu.
Extingue a união das duas almas belas
As minhas esperanças; e amor morre com elas.
Só delas alimenta sua chama esta paixão;
Apenas elas faltam, falta-lhe a nutrição.
E apesar da minha infausta desventura,
Verás o meu decoro, minha glória segura:
Pois mal Rodrigo esteja nos laços, que apetece,
Morre minha esperança, minha alma convalesce.
     Mas entretanto passo (oh céus!) por que tormento!
Pois entretanto o tenho sempre no pensamento.
Em separá-lo dele a glória tenho posto;
E disso mesmo nasce o meu maior desgosto:
E vejo, a meu pesar, por mais que me contenho,
Que me custa suspiros isso de que desdenho.
E sinto, se me animo, que de pior partido
Está uma alma forte, que um coração ferido.
Oh fatais núpcias! Eu, eu as apresso, e as temo;
Eu acendi a tocha, eu de apagá-la tremo.
E enquanto amor, e glória dividem meu desejo,
Chegando a vê-las morro, e morro se as não vejo.

LEONOR
Se vos vituperei, adorada princesa,
Como filha de um rei; filha da natureza
Já vos lamento, e choro caso tão lastimoso:
Mas vendo contra um mal tão doce, e doloroso
Vossa virtude altiva, entre susto, e quebrantos
Debilitar-lhe as forças, remover-lhe os encantos:
Ela porá, Infanta, vosso espírito em calma:
Muito esperai do tempo; mais de vossa grande alma;
E muito mais do céu: há-de ser-vos propício,
Não deixará a virtude mais tempo em tal suplício.

INFANTA
Talvez saindo dele serei mais desgraçada.

CENA IV

PAGE, INFANTA, LEONOR


PAGE
A vossos pés Ximena se encaminha apressada.

INFANTA
Sai, Leonor, a entretê-la, mete-a na galeria.

LEONOR
Não vindes?

INFANTA
Vou.

LEONOR
Fugi da vossa fantasia.

INFANTA
É impossível; mas detenho-me um instante,
Por ver se enxugo os olhos, se sereno o semblante.
E já te sigo.

CENA V

INFANTA, só


INFANTA
Céus! Em quem eu só espero:
Atalhai os progressos de meu destino fero.
Mova-vos minha honra: olhai por meu decoro.
Três desgraçados somos, por quem, céus! vos imploro.
A três um himeneu faz melhorar de sorte:
Não o demoreis mais, ou dai-me alma mais forte.
A dois castos amantes, castos contentamentos
Dareis; quebrais-me os ferros; acabam meus tormentos.

CENA VI

Sala interior do palácio

O CONDE, D. DIOGO


CONDE
Gabai-vos, Dom Diogo: el-rei o quis assim,
Mas um lugar levastes, que me tocava a mim.
Aio sois de seu filho, príncipe de Castela.

D. DIOGO
A honra é grande, sim, desvaneço-me dela.
E mostra justo el-rei a seus novos criados,
Que estima, e recompensa os serviços passados.

CONDE
Por grandes que os reis sejam, são como os mais humanos;
Sujeitos a paixões, mais expostos a enganos.
E esta escolha serve de prova às mais das gentes
Do mal, que pagar sabem os serviços presentes.

D. DIOGO
Essa eleição, que move vosso ressentimento,
Fazê-la pode a graça, como o merecimento;
Porém falta ao respeito supremo, que venero,
Quem examina nada, depois que um rei diz... quero.
Da honra, que me fez, outra se me seguira,
Se a minha à vossa casa um nó sagrado unira.
Uma só filha tendes; eu não mais que um varão;
Mais que amigos nos pode fazer esta união.
Aceitai-o por genro; fazei-nos esta graça.

CONDE
Não é digno partido, tê-lo-ia por desgraça:
Pois esse grande lustre da nova dignidade
O deve, como ao pai, encher de vaidade.
     Exercitai-a, sim; o príncipe educai:
Como reger o cetro prudente lhe ensinai.
Como infundir nos povos das santas leis temor,
Fazer tremer os maus, encher os bons de amor.
Uni a tais virtudes essas de um capitão,
Que tem por mesa a fome, que tem por cama o chão.
Da digna arte dos reis fazei o seu regalo,
Passar dias inteiros, e noites a cavalo.
Rechaçar um exército, saber forçar muralhas:
Não dever mais que a si o ganho das batalhas.
Mostrai-lhe mil exemplos, e fazei-o perfeito;
Comprovai a seus olhos as lições pelo efeito.

D. DIOGO
Para o nutrir de exemplo será bastante ensaio
O ler somente a história da vida do seu aio:
Só dela a longa série de estupendas ações
O farão ser um dia o terror das nações:
Levar até os céus numa e noutra vitória
Sobre as asas da fama a minha, e sua glória.

CONDE
O campo é só escola verdadeira de Marte:
Por livros nunca um príncipe bem aprende a sua arte.
E há nesses longos anos proezas, valentias,
Que se não achem num de meus famosos dias?
Se fostes valeroso, de nada hoje valera
A el-rei, se de Dom Gomes a espada não tivera.
Granada, Aragão tremem; e tremem só de vê-la.
Meu nome de antemuro serve a toda Castela.
Sem mim já se veria debaixo de outras leis,
E em seus inimigos respeitara seus reis.
A cada sol, que brilha, reluz a minha glória,
Ou com mais um troféu, ou mais uma vitória.
O príncipe a meu lado, o seu desembaraço
Em valor convertera: e à sombra do meu braço
A vencer aprendera com ver-me combater;
E para achar-se logo sem ter mais que aprender,
Bastara...

D. DIOGO
Basta, Conde; eu vos vi pelejar;
Debaixo do meu mando servir, e comandar.
E quando com a idade, força, e vigor me falta,
Supriu vosso valor, e bem a minha falta;
E para que cortemos tão molesta porfia,
Hoje, meu Conde, sois o que eu fui algum dia.
Mas sem vangloriar-me, nem fazer-vos ofensa,
O monarca entre nós conheceu diferença.

CONDE
Aquela só de obteres o que me pertencia.

D. DIOGO
Depois de disputar-vo-lo, vede que o merecia.

CONDE
Quem não pode exercê-lo, nem pode ser rival.

D. DIOGO
Mas não levá-lo, Conde, nunca é um bom sinal.

CONDE
Deveste-lo às astúcias de velho cortesão.

D. DIOGO
Os meus estratagemas, meus grandes feitos são.

CONDE
Melhor me explico, el-rei honrou a vossa idade.

D. DIOGO
Dizei melhor: El-rei honrou a heroicidade.

CONDE
Se honrá-la pretendesse, Gomes preferiria.

D. DIOGO
Se não preferiu Gomes, é porque não devia.

CONDE
Vós dizeis-me isso?

D. DIOGO
Digo.

CONDE
Tomai a recompensa.

(Levanta a mão para dar-lhe uma bofetada. Recua D. DIOGO e mete mão à espada, que lhe custa a sacar. O mesmo faz o CONDE, e brigam)

D. DIOGO
Sem que vos corte o braço, não vingo tal ofensa.
Mata-me, senão morres, que não sofrerei, não,
Uma afronta, que vinga o mais vil da nação.

CONDE
Vede que vos desarmo, se fores temerário.

(Cai a espada de D. DIOGO)

D. DIOGO
E faltas-me, vil braço, quando és mais necessário!

CONDE
É minha a tua espada, mas demasiado vão
Ficarias, se visses honrá-la a minha mão.
Cala-te por tua honra, eu o mesmo farei.
E por dissimular passo ao quarto del-rei.
Senão, faze que o príncipe como primeiro ensaio
Esta anedota leia na vida do seu aio.
Se ousares melindroso queixar-te só da ação,
Para acabá-la em público tenho corage, e mão.

CENA VII

D. DIOGO, só


D. DIOGO
Ah! contende-me, Deus, e seja preservada
A vida até que a infâmia se veja bem vingada,
Com honra dos passados, a glória dos vindouros;
Por não ver num instante murchar palmas, e louros.
Braço, que de invencível toda Espanha tratou:
Braço, que tantas vezes este império salvou:
E tantas foi temido: falhar, faltar-me assim,
Uma só vez que quis que me servisse a mim!
Lembranças lisonjeiras de meus feitos passados,
Trabalhos de oitenta anos num dia malogrados!
Ah nova dignidade tão funesta a meu brio!
Precipício fatal donde a honra caiu!
De mim o Conde altivo dirá que tem triunfado,
Se morro sem vingar-me, se vivo envergonhado.
No meu lugar, ó Conde, serei eu quem te ponha,
Que não deve ocupá-lo um homem sem vergonha.
E tu, do meu valor, então bravo instrumento,
Como hoje da fraqueza inútil ornamento,
Se de antes tão temido, na mais injusta ofensa
De ostentação me serves, porém não de defensa.
Do braço do mais vil, que vive entre os cristãos,
Passa por me vingar, passa a melhores mãos.

CENA VIII

D. DIOGO, D. RODRIGO


D. DIOGO
Tens ânimo, Rodrigo?... enfias?... Tens... mas pára!

D. RODRIGO
Quem não fosse meu pai, não mo reperguntara.

D. DIOGO
Digno ressentimento tão caro à minha dor:
Meu sangue reconheço, nesse nobre rancor.
A minha mocidade em ti renasce; vai,
Vai, meu sangue; vai, filho, desafrontar teu pai.
Vai vingá-lo.

D. RODRIGO
De quê?

D. DIOGO
Da injúria fatal,
Que cobrir-nos podia de uma infâmia imortal.
De um vil, que se atreveu a levantar a mão...
A pô-la em atitude de dar-me... um bofetão.
Não contara o sacrílego essa minha desonra,
Se forças de fraqueza tirar pudesse a honra.
O ferro, que meu braço tão mal soube suster,
No teu o ponho, filho, costumado a vencer.
     Vai contra esse arrogante, ensaia a tua corage;
No sangue é que se lava somente um tal ultraje.
Morre, ou mata: porém não quero lisonjear-te;
Não vais combater, não, com Hércules, nem Marte;
Mas cum herói, que eu vi de sangue, e pó coberto
Confundir um exército; e vi-o de mais perto
Romper cem esquadrões por seu valor constante;
E pudera passar muito mais adiante:
Mas bastará que saibas por tua mágoa, e pena;
Não te perturbes, filho, que é o pai de Ximena.

D. RODRIGO
O pai...

D. DIOGO
Não me repliques. Conheço a tua paixão;
Mas contra a honra, filho, não vai, nem a razão.
Quanto o agressor é caro, tanto é maior a ofensa;
Sabes a afronta; corre antes que amor te vença:
Vinga-me, filho, e vinga-te: voa, Rodrigo, vai:
Mostra-te digno filho, e filho de tal pai:
Eu vou a minha afronta chorar envergonhado.
Não me apareças, filho, senão morto, ou vingado.

CENA IX

D. RODRIGO, só


D. RODRIGO
Sagradas leis da honra, que me precipitais
Do cume da ventura nos abismos fatais
Da desventura! Oh céus! Vejo-me num instante
Infame cavaleiro, ou sacrílego amante!
Morre ou mata (é possível!) Meu caro pai me ordena!
Morrerei, que eu não mato, não, o pai de Ximena.
Mas a honra, meu Deus! Mas Ximena; que faço!
Em vão me animas, honra, se ela detém o braço.
Eu infame, ou traidor! Que destino é o meu?
Ou não vingar meu pai, ou sepultar o seu!
Pai, esposa, amor, honra, como me atormentais,
Pois quanto me sois caros, tanto me sois fatais!
Todo o meu prazer morre, ou toda a minha glória:
Morrerei desgraçado, se digno de memória.
E tu, nobre inimigo de meu fatal amor,
Subornador tirano da honra, e do valor
Dado me foste só para aumentar-me a pena;
Para perder a minha... minha cara Ximena.
Perdê-la-ei, porém, sem chegar a ofendê-la:
Entrarás no meu peito, e morrerei por ela.
Vingando-me, ser-lhe-ia triste objeto de horror;
Não me vingando, indigno de seu heróico amor.
E já que inutilmente meu mal curar-se intenta;
E se extingui-lo quero, mais dura, mais se aumenta;
Acabe, pois assim o meu destino o ordena,
Porém acabe ao menos sem ofender Ximena.
     Mas morrer sem vingar ação, que assim me infama!
Sepultar voluntário comigo a minha fama!
Sofrer que Espanha insulte da minha casa a glória,
Quando por lamentá-la de mim fizer memória!
Se nem amor, do prêmio pode lisonjear-me,
Perder-me-ia por ele! Deixaria cegar-me!
Que me detém; corramos: morreu a esperança;
Corramos, honra, é tempo, corramos à vingança:
Pois tal é meu destino, tão fatal minha pena,
Que inda que te perdera, perderia Ximena.
Se por Ximena vivo, murmurem os amantes:
Pelos meus ascendentes, por meu pai vivi antes.
Por eles com mais glória o sangue perderei,
Pois o verei correr tão puro como o herdei.
     E como... Eu estremeço! pode estar meu valor...
Que vergonha! indeciso entre a glória, e o amor!
Entre uma paixão louca, e o mais que a honra ordena:
Entre meu pai, oh céus! e o pai de Ximena.


FIM DO ATO PRIMEIRO


ATO SEGUNDO

CENA I

Átrio do palácio

D. ÁRIAS e o CONDE


CONDE
Dom Árias, eu não nego que tenho o sangue ardente:
Que sofrera, a não tê-lo, um caduco insolente.
Mas como o não sofri, que remédio terei?

D. ÁRIAS
Ceder, e sujeitar-vos à vontade del-rei.
Senão castigará vossa temeridade
De poder absoluto, e plena autoridade.
Negra foi vossa ação, por vil não tem defensa;
Sabeis quem é Dom Diogo, e quão grande é a ofensa:
E tudo pede, Conde, umas tais submissões
Mui fora do comum das mais satisfações.

CONDE
Separem-me a cabeça; pode el-rei querer mais?

D. ÁRIAS
A falta, em que caístes, mui mal a remediais:
El-rei inda vos ama, pois tanto lhe deveis.
E se disser... ordeno... desobedecereis?

CONDE
Mais que me ame, Dom Árias, pretendo que me estime:
Desobedecer nisso não é tão grande crime.
E por maior que seja, meus serviços presentes,
Por que se me disfarce, são mais que suficientes.

D. ÁRIAS
Fizésseis outros tantos prodígios de valor,
Nunca a um seu vassalo o rei é devedor;
Pois faz unicamente, devíeis-lo saber,
O que melhor o serve melhor o seu dever.
Subi; recorrei; crede-me; recorrei à clemência.

CONDE
Recorrerei, porém depois da experiência.

D. ÁRIAS
Essa vã confiança a quantos não perdeu?

CONDE
Um dia só não perde um homem como eu.
O poder do meu braço tem os del-rei atados;
Ver-se-á, se hoje me perde, amanhã sem Estados.

D. ÁRIAS
Passais, Conde, perdoai-me, de temerário a vão.

CONDE
Quem é que lhe sustenta o cetro inda na mão?
Mais interesse que eu tem na minha cabeça;
Talvez que já na sua a coroa estremeça.

D. ÁRIAS
Ponderai bem, meu Conde: não decidais irado:
Aconselhai-vos antes.

CONDE
Estou aconselhado.

D. ÁRIAS
Pois bem; que respondeis? Que hei-de dizer a el-rei?

CONDE
Que a uma tal vileza nunca me abaterei.

D. ÁRIAS
Porém olhai que el-rei quer ser obedecido.

CONDE
A sorte está deitada; todo o tempo é perdido.

D. ÁRIAS
Não desmaieis depois.

CONDE
Que coisa são desmaios?

D. ÁRIAS
Temo que os vossos louros vos não livrem dos raios.

CONDE
Intrépido os espero.

D. ÁRIAS
Mas sentireis o efeito.

CONDE
Ficará de uma vez Dom Diogo satisfeito
O que não teme a morte, menos teme ameaços:
El-rei pode rodar-me, e fazer-me em pedaços;
E pode reduzir-me a viver desgraçado;
Porém sem honra, não: eu já nasci honrado.

CENA II

D. RODRIGO e o CONDE


D. RODRIGO
Uma palavra, Conde.

CONDE (Falando alto e com ira)
Fala; que te detém?

D. RODRIGO
Conheces tu Dom Diogo... fala baixo.

CONDE
E muito bem.

D. RODRIGO
Sabes aquele velho o que foi algum dia?
Foi a mesma virtude... Sabei-lo?

CONDE
Seria.

D. RODRIGO
E sabes este ardor, que de honra me transporta,
Sabes que é o seu sangue?... Responde.

CONDE
Que me importa?

D. RODRIGO
Vem comigo, e verás se há-de importar-te, ou não.

CONDE
Mancebo temerário.

D. RODRIGO
Abate a presunção;
Moço sou, mas verás melhor do que to digo,
Se espera pela idade o valor de Rodrigo.

CONDE
Medir comigo a espada! E podes ser tão vão?
Tu, que jamais tomaste nem as armas na mão!

D. RODRIGO
Os meus não combateram nunca com menos glória;
Nem da primeira vez cederam a vitória.

CONDE
Não sabes quem eu sou.

D. RODRIGO
E tanto o sei, que entendo
Que eu só é quem teu nome não escuta tremendo.
Nas palmas, de que vejo tua fronte coberta,
Vejo o fatal destino da minha perda certa.
Ataco um braço forte, e sempre vencedor;
Mas não faltarão forças, e me sobra valor:
A quem vinga seu pai não é nada impossível.
Por não seres vencido, não serás invencível.

CONDE
O grande coração, que mostras arrogante,
É o que há muitos dias lia no teu semblante:
E vendo que um, ou outro Castela o saberia,
Minha alma satisfeita por genro te queria.
Sei que estimas Ximena, e que o teu coração
Magnânimo não cede à força da paixão,
Desmaia, nem vacila, se a sua honra o chama;
E por maior virtude, sei, enfim, que não ama.
E que querendo um genro cavaleiro perfeito,
Desempenhado vejo em ti o meu conceito.
Por isso mais excitam minha heróica piedade,
O teu grande valor, e a tua pouca idade.
Desiste, pois me deixas corrido, e envergonhado,
Ou bem fiques no campo, ou fiques desarmado.
Triste satisfação me causa esta vitória,
Que vencer sem perigo é triunfar sem glória.
E reputando todos fraca tua alma forte,
Me deixará sem honra a mágoa da tua morte.

D. RODRIGO
Essa indigna piedade inda é mais atrevida:
Se me tiraste a honra, temes tirar-me a vida?

CONDE
Aparta-te daqui.

D. RODRIGO
Tu me fazes deter.

CONDE
Tanto te cansa a vida?

D. RODRIGO
Tu temes de a perder?

CONDE
Mas vem; que degenera, Rodrigo, e infame vive
Todo o filho, que à honra de seu pai sobrevive.

CENA III

Galeria do palácio

INFANTA, XIMENA, LEONOR


INFANTA
Minha Ximena, aplaca, modera o teu cuidado.
Usa da tua constância neste revés do fado.
Isto é nuvem, que passa; verás como a tua alma
Com gosto duplicado já torna à doce calma.
Alongar-se a esperança não é vê-la perdida.

XIMENA
Já não espero mais do que perder a vida.
No meio da bonança tão horrível fracasso!
É de naufrágio certo infalível ameaço.
Amava, e era amada; meu pai, e o seu contente
Convém, e mal convém; escuto de repente
Ainda bem não tinha dado-vos esta nova,
A da fatal contenda, que tudo desaprova.
E muda nossos pais contentes, satisfeitos,
Dispostos, e conformes segundo nossos peitos.
     Vaidosa ambição, detestável mania,
De que os mais generosos sofrem a tirania.
Fatal honra! instrumento cruel do meu pesar,
Que suspiros, que lágrimas me não hás-de custar!
Que bem o coração pressago mo dizia:
Se Elvira aqui estivesse, ela vô-lo diria.

INFANTA
Nada recear deves de seu ressentimento;
Moveu-se num instante, passará num momento.
Deu já mui grande brado para não se atalhar.
El-rei tem resoluto de os acomodar.
E sabes como os teus males me são sensíveis,
Vê, se por extingui-los, não farei impossíveis!

XIMENA
As afrontas mortais são de tal condição,
Que não têm, nem ter podem boa reparação:
Em vão se empenha a força, e em vão a prudência;
E se se cura o mal, cura-se na aparência.
E do rancor, que ocultam fingidos corações,
Se nutrem esses fogos das grandes erupções.

INFANTA
A união dos filhos por esse nó sagrado
Converterá dos pais todo o ódio em agrado.
E tu verás muito antes, que julgas, a concórdia
Numa, e noutra família extinguir a discórdia.

XIMENA
Eu o desejo, Infanta: mas tal não esperai.
Altivo é Dom Diogo: eu conheço meu pai.
Sinto cair as lágrimas, que reprimir procuro:
Aflige-me o passado, e mais temo o futuro.

INFANTA
Que temes de um caduco, sem poder, sem ação?

XIMENA
Rodrigo tem valor.

INFANTA
Terá, mas força não.

XIMENA
Declara-se a fortuna a bem de um atrevido.

INFANTA
Mas não o vês, Ximena, por ti de amor perdido?
E quando a sua cólera tal chegasse a empreender,
Duas palavras tuas não o fariam conter?

XIMENA
Mas se não contiverem? Há desgraça maior!
Porém se o contiverem, não sei se inda é pior!
Que dirão dele, oh céus! se sofre um tal ultraje?
Enfim ceda, ou resista a amor, ou à corage,
Confunde-me igualmente, igualmente me assusta
O excesso do respeito, ou a repulsa justa.

INFANTA
Nem inda interessada pode o teu nobre alento
Sofrer, cara Ximena, um baixo pensamento?
Mas se eu, pendente o ajuste daquela diferença,
Prender o teu amante; far-te-ei, ou não ofensa?
E se impedir o efeito, que um fino amor condena,
Teu delicado brio assombrar-se-á, Ximena?

XIMENA
Infanta, só assim ela sossegará.

CENA IV

INFANTA, XIMENA, LEONOR, PAGE


INFANTA
Page, busca Rodrigo: conduze-mo aqui já.

PAGE
Ele, e o pai de Ximena...

XIMENA
Meu Deus! continuai.

PAGE
Saíram deste Paço.

XIMENA
Ele só, e meu pai?

PAGE
Sós, falando entre dentes, e um pouco apressados.

XIMENA
Às mãos estão, meu Deus! Que susto, que cuidados!
Senhora, perdoai-me: com vossa permissão.

CENA V

INFANTA e LEONOR


INFANTA
Oh céus! Que sobressalto! Que estranha inquietação!
Sua desgraça choro, seu amante me encanta.
Torna a atear-se a chama no coração da Infanta.
O lance, que separa Rodrigo de Ximena,
Renova-me a esperança, e aviva-me a pena.
E sinto, a meu pesar, que aquela desunião
Num lisonjeiro gosto me banha o coração.

LEONOR
E tão rara virtude é tão pouco constante,
Que a tão baixa fraqueza chega no mesmo instante.

INFANTA
Tal é minha paixão; tal destino é o meu;
Que corro atrás do amante, que Ximena perdeu.

LEONOR
E vós perdeis também o fruto da vitória,
O uso da razão, e o amor da glória.

INFANTA
Pouco eficaz remédio, Leonor, é o da razão,
Se acha de um tal veneno tocado o coração.
Enquanto o triste enfermo amar seu mal, piedade
Achará no que o deixe morrer da enfermidade.

LEONOR
É cara a esperança, doce o veneno atroz;
Porém Rodrigo, Infanta, não é digno de vós.

INFANTA
Eu não o sei, Leonor; mas ouve, se te espanta;
Vê como amor engana um coração, que encanta.
     Se vencedor Rodrigo sair deste combate,
Se seu valor triunfante um tal guerreiro abate,
Sem pejo posso amá-lo; e digo então comigo:
Se vencer pôde o Conde, que não fará Rodrigo?
E já cuido que vejo a seus golpes primeiros
Sair de Espanha os mouros, cair reinos inteiros!
E lisonjeiro amor, por que mais me persuada
Sentado mo figura no trono de Granada.
E vejo os agarenos adorando-o, e tremendo;
E o seu conquistador Aragão recebendo.
Levar além dos mares o terror, e a vitória;
Encher Espanha toda seu nome, e sua glória.
Com africano sangue regar os seus loureiros;
Enfim tudo o que dizem de famosos guerreiros,
Espero de Rodrigo depois desta vitória;
E faz do seu amor assunto à minha glória.

LEONOR
Mas vede que depende essa mesma ilusão
Do fim de outro combate, que ou se dará, ou não.

INFANTA
Rodrigo está ofendido; o Conde é o agressor;
Saíram sós; e ainda queres prova maior?

LEONOR
Será, Senhora; cessem contendas entre nós;
Mas Rodrigo irá nunca tão longe como vós?

INFANTA
Que queres, se estou louca! Daqui deves julgar
Até onde os delírios de amor podem chegar!
Desculpa-mos, e atalha-os; se tanto sabes... sim;
Nem me deixes enquanto me sentires assim.

CENA VI

Sala de audiência

D. FERNANDO, D. ÁRIAS, D. SANCHO, D. AFONSO


D. FERNANDO
Que seja tão soberbo! Que insolente responde!
É crime que eu disfarce? Passa de altivo o Conde.

D. ÁRIAS
Eu bem lho afeei, mas foi coisa escusada;
Fiz tudo quanto pude, e não consegui nada.

D. FERNANDO
Com tão pouco receio de me desagradar,
Assim um meu vassalo me chega a insultar!
Ofende Dom Diogo, e despreza o seu rei!
Dentro do meu palácio me agrava, e me dá a lei.
Seja bravo guerreiro, famoso capitão,
Eu saberei trocar-lhe o orgulho em submissão.
Fosse o mesmo valor, o mesmo Deus da guerra,
De nada lhe valera; quem não obedece, erra.
E já que temerário abusou da clemência,
Castigarei o crime, e a desobediência.
Ide buscá-lo, Afonso, trazei-o à minha vista,
Assegurai-vos dele, resista, ou não resista.

CENA VII

D. FERNANDO, D. SANCHO, D. ÁRIAS


D. SANCHO
Senhor, é bom vassalo, mas colérico, o Conde;
E cego da paixão quem sabe o que responde?
De seus negros transportes ainda o mais prudente,
Mais dócil, mais submisso não torna de repente.
Conhece a sua falta; mas uma tão grande alma
Faz muito se as confessa ainda em podre calma.

D. FERNANDO
Calai-vos, imprudente; e ficai advertido
Que é rebelde como ele quem toma o seu partido.

D. SANCHO
Obedeço, e me calo; mas haveis de escutar
Por graça...

D. FERNANDO
Em sua defesa, que podeis alegar?

D. SANCHO
Que uma alma costumada a tão grandes ações
Abater-se não pode àquelas submissões,
Que não deixam de ter na prática baixeza:
Resiste-lhes também, porque as julga fraqueza.
Encontra no preceito demasiado rigor;
Obedecera, tendo menos honra, e valor:
De heróis é só a própria, digna reparação,
Aquela, que se faz com as armas na mão.
Comandai-lha, senhor, vereis se ele obedece,
Se murmura, ou questiona, viesse quem viesse.

D. FERNANDO
Vós faltais ao respeito, mas valha-vos a idade.
É digno de desculpa o ardor na mocidade.
Um rei deve poupar o sangue dos vassalos
Para as ações, que podem de glória coroá-los.
Não menos do que o meu, seu sangue me interessa,
São membros de um estado, de que eu sou a cabeça:
Por isso tais propostas jamais aceitarei,
Falais como soldado, eu obro como rei.
Fiel na obediência a vossa glória ponde;
Deixai falar rebeldes, deixar dizer o Conde:
Não foi a Dom Diogo, a mim é que afrontou,
Foi a minha eleição, que ele não respeitou.
Aquele atrevimento o faz ser réu de Estado.
Contra o poder supremo obrou um atentado.
Falemos de outro assunto. De nossos inimigos,
Suposto que cobardes, petulantes, e antigos,
Dez bandeiras, parece, segundo me disseram,
Que ao largo se avistaram.

D. ÁRIAS
Se acaso apareceram,
Outra derrota levam. Não receeis, senhor,
Que venham a meter-se na mão do vencedor.

D. FERNANDO
Sem grande rancor, nunca, nunca os mouros verão
De Andaluzia o cetro fora da sua mão:
É muito antiga a posse; o país singular,
Para que não tentassem de o reconquistar.
E esta a razão foi, não a cidade bela,
Que fez Sevilha corte do reino de Castela.
Daqui, com prontidão, só posso rebater
Ou sítio, ou desembarque, que queiram empreender,

D. ÁRIAS
Menos, senhor, por isso os deveis recear
Porque a vossa presença costuma assegurar
As vitórias; e sabem-no.

D. FERNANDO
Sempre são inimigos;
E da muita confiança abortam os perigos.
E vós não ignorais como naturalmente
Sobre as nossas muralhas os traz a mesma enchente.
E de um rebate falso o pânico terror
Bastara a encher o povo de susto, e de pavor,
Se de atalhar não cuido com qualquer providência
Para a futura noite qualquer má conseqüência.
Fazei dobrar as guardas na muralha, e no porto,
E bastará por hora.

CENA VIII

D. AFONSO, D. FERNANDO, D. SANCHO, D. ÁRIAS


D. AFONSO
Senhor, o Conde é morto.
Dom Diogo por seu filho tanta vitória alcança.

D. FERNANDO
Depois que soube a afronta, receei a vingança,
Que prevenir quis logo, mas fiei mais do Conde.

D. AFONSO
Sua filha a vossos pés, como lhe corresponde,
Justiça vem pedir furiosa, e magoada.

D. FERNANDO
Suposto que a Justiça lhe não será negada,
Cuido que a Providência as fracas mãos da infância
Armou para castigo fatal da petulância:
Porém fosse, ou não justo, fere-me o coração
A perda, e a desgraça do grande capitão:
Depois de tais serviços, como fez ao Estado,
De ter por mim seu sangue mil vezes derramado;
Esqueço-me do orgulho, e esqueço-me de sorte,
Que me aflige a sua perda, consterna-me a sua morte.

CENA IX

D. FERNANDO, D. DIOGO, XIMENA, D. SANCHO, D. ÁRIAS, D. AFONSO


XIMENA
Justiça, se sois rei.

D. DIOGO
Se sois juiz, ouvi-me:
Ouvi a minha afronta.

XIMENA
Castigai o seu crime:
A vossos pés acabo, se me não deferis.

D. DIOGO
Por eles vos abraço, vos beijo, se me ouvis.

XIMENA
Eu peço-vos justiça.

D. DIOGO
Eu só que me escuteis.

XIMENA
Um moço temerário ultrajou vossas leis:
Do vosso cetro o apoio insolente abateu.
Ele matou meu pai.

D. DIOGO
Ele vingou o seu.

XIMENA
Ao sangue dos vassalos deve justiça o rei.

D. DIOGO
Uma vingança justa, é exceção da lei.

D. FERNANDO
Ximena, levantai-vos; levantai-vos, Dom Diogo:
Falai sem confusão, que eu vos defiro logo:
Igual à vossa dor suponde a minha pena:
Vós falareis depois... Continuai, Ximena.

XIMENA
Como por estes olhos meu sangue vem desfeito,
Vi eu sair o dele do generoso peito.
Sangue, que tantas vezes susteve estas muralhas;
Sangue, que vos ganhou tão famosas batalhas:
Que já perdido ferve inda altivo, e feroz,
Por ver que o não derramam pela Pátria, ou por vós:
De um sangue, que verter não ousa a mesma guerra,
Da vossa corte um bárbaro cobre a sagrada terra.
Ao malfadado sítio sem forças, sem alento
Corri, já o achei morto... Tira-me o sentimento,
A voz para falar-vos de caso tão funesto...
Suspiros e soluços melhor dirão o resto.

D. FERNANDO
Anima-te, Ximena, sua falta suprirei:
De pai, em lugar dele, te quer servir el-rei.

XIMENA
À miséria, senhor, corresponde a piedade;
Mas eu peço justiça, e pede-a a humanidade:
Meu pai, meu pai a pede: para me comover
Na terra com seu sangue escreve o meu dever.
Pela mesma ferida, contra seu inimigo,
Ele me fala, e exorta a perseguir Rodrigo.
E para ser ouvido do mais justo dos reis,
Por esta triste boca pede que o escuteis.
     Não sofrais, não, senhor, levado da clemência,
Que a vossos olhos reine o orgulho, a insolência,
Que impunemente fique exposta a heroicidade
À fúria de uma louca, cega temeridade.
Que a audácia de um mancebo possa triunfar da glória;
Se banhe no seu sangue, afronte a sua memória.
A morte de um guerreiro, que a Pátria há-de sentir,
Extingue, se a não vingam, o ardor de vos servir.
Enfim desafrontai-o, vede que nisso alcança
Mais o vosso interesse do que a minha vingança.
E a morte de um tal homem punis só de uma sorte;
Sangue com sangue, rei: senhor, morte com morte.
O vosso Estado a pede, pede-a vossa coroa,
Pede-a vossa grandeza, pede-a vossa pessoa:
Imolai-o, senhor, ao bem de todo o Estado;
Que a todo, o seu orgulho tem escandalizado.

D. FERNANDO
Dom Diogo, respondei.

D. DIOGO
Se me faltasse a vida,
Quando as forças, no risco fatal de a ver perdida
Sem honra, já no fim da carreira da glória
Nunca a poria a infâmia, de que faço memória,
(Depois de a ver vingada) ainda tão corrido;
Pois recebi a afronta, e a chorei vencido.
     O que não fez o ataque, o sítio, a emboscada;
O que nunca puderam Aragão, nem Granada;
Os vossos inimigos, nem os meus invejosos,
Fez a ambição do Conde! Foram mais poderosos
Os zelos dessa escolha pela superioridade
Infeliz, que me dava a fraqueza da idade.
Estas honradas cãs: esse nome adquirido;
O sangue pela Pátria tantas vezes perdido,
O braço, que instrumento foi da vossa grandeza,
Ao túmulo desceram cobertos de vileza,
Se não tivesse um filho... que assaz não louvarei,
Tão digno da sua Pátria, tão digno do seu rei.
     Ele me empresta a mão; ele o Conde matou:
Ele se encheu de glória, e me desafrontou.
Se ter honra, senhor, e nobre atrevimento
É culpa, que mereça vosso ressentimento,
Sobre mim caia o raio; Rodrigo não pereça,
Que quando o braço erra, castiga-se a cabeça.
Seja crime, ou não seja, esta distinção faço:
Seu pai foi a cabeça, ele não mais que o braço.
Se Ximena se queixa, que seu pai lhe matara,
Se eu pudera fazê-lo, Rodrigo o não ousara.
Sacrificai o Chefe, se algum deveis punir:
E conservai o braço, que vos pode servir.
Coa perda do meu sangue satisfazei Ximena,
Não só vos não resisto, mas consinto na pena;
Vereis minha alma forte, vereis minha constância;
Que como honrado morro, morro sem repugnância.

D. FERNANDO
É muito grande o caso, e bem considerado,
Deve em pleno Conselho ser proposto, e julgado.
Dom Sancho, a sua casa Ximena acompanhai,
Dom Diogo, por prisão a corte reputai,
Que busquem a Rodrigo; justiça vos farei.

XIMENA
Matar o matador é Justiça, e é Lei.

D. FERNANDO
Sossega, minha filha, modera a tua dor.

XIMENA
Em vão mo aconselhais, sem vingá-la, senhor.


FIM DO ATO SEGUNDO


ATO TERCEIRO

CENA I

Quarto de Ximena

D. RODRIGO, ELVIRA


ELVIRA
Tirano, que fizeste? Onde vens, desgraçado?

D. RODRIGO
Venho acabar coa morte meu destino, meu fado.

ELVIRA
É possível que venhas altivo, e resoluto
Mostrar-te num lugar, que cobriste de luto!
Vens insultar a sombra? Não te basta a proeza
De lhe tirar a vida?

D. RODRIGO
Era a minha vileza,
Pedia-o minha honra, e sinto consegui-lo.

ELVIRA
Mas na casa do morto vens procurar asilo?
Jamais dela refúgio fez nunca matador.

D. RODRIGO
Venho pagar a pena, faz-me meu crime horror,
E não posso evitá-lo, Elvira, de outra sorte:
Venho, depois de dá-la, pedir me dêem a morte.
Ximena é o meu juiz; minha morte é o castigo
De merecer seu ódio, bem o sabe Rodrigo:
E venho receber, da minha glória vão,
Da sua boca a sentença, o golpe da sua mão.

ELVIRA
Foge antes de seus olhos; maior que aquela ofensa,
É esta de julgares, que sofra a tua presença:
Vai, não te exponhas, não; evita os movimentos
Fatais de seus primeiros justos ressentimentos.

D. RODRIGO
Depois desta desgraça de lhe desagradar,
Toda a cólera é pouca para me castigar:
E mil mortes evito, se a posso reduzir
A que me tire a vida logo apenas me vir.

ELVIRA
No Paço está Ximena em lágrimas banhada,
E pode ser que venha de alguém acompanhada:
Que não dirão, Rodrigo, se te virem aqui?
Olha ao menos por ela, se não olhas por ti.
Por cume de miséria queres que um maldizente
Diga, que de seu pai o matador consente
Em casa, no seu quarto... Mas ela vem; Rodrigo,
Ao menos por sua honra; esconde-te, Rodrigo.

CENA II

D. SANCHO, XIMENA, ELVIRA


D. SANCHO
Senhora, é indispensável o sangue de uma vítima,
São justas vossas lágrimas, e vossa dor legítima:
E nunca me vereis querê-las atalhar,
Fora aumentar a mágoa, querer-vos consolar.
Porém se a minha espada pode desafrontar-vos,
De vos servires dela peço queirais lembrar-vos:
Combatendo por vós, vingando aquela morte,
Será animoso o imbele, o débil braço forte.

XIMENA
Desgraçada!

D. SANCHO
Senhora, servi-vos de aceitar.

XIMENA
Prometeu-me justiça el-rei, devo esperar.

D. SANCHO
Vedes os passos lentos, com que ela marcha; e são
Sinal dos grandes crimes ficar sem punição;
Demasiadas lágrimas perderíeis primeiro:
Mandai que pelas armas vos vingue um cavaleiro,
É meio mais seguro, e mais curto que aquele.

XIMENA
Como último remédio recorrerei a ele;
E se inda essa piedade, Dom Sancho, vos durar,
Heróica, e livremente me podereis vingar.

D. SANCHO
De vossos pés me aparto, já menos descontente;
Por hora tão ditosa espero impaciente.

CENA III

XIMENA e ELVIRA


XIMENA
Sós estamos, Elvira, abrir meu coração
Te quero, e minhas mágoas dizer sem sujeição;
E dar a meus suspiros tal ou qual desafogo:
Lágrimas só não podem apagar tanto fogo.
     Meu pai é morto, e o fio da vida lhe cortou
O ferro, que primeiro aquele braço armou:
Metade da minha alma, oh céus! que atrocidade!
Debaixo do sepulcro pôs a outra metade:
E obriga-me a vingar, por ser-me mais funesta,
Essa, que já não tenho, nestoutra que me resta.

ELVIRA
Sossegai-vos, Senhora.

XIMENA
E com que indiscrição
Me falas de sossego na força da aflição!
Se aborrecer não posso a mão, que ma causou,
Como queres que saia do delírio, em que estou?
E de um tormento eterno, eterno, e furioso:
Seguindo a acusação, e amando o criminoso!

ELVIRA
Ele vos mata o pai, e vós inda o amais?

XIMENA
Mui pouco disse, Elvira: adoro-o, que inda é mais.
A meu dever se opõe minha paixão constante;
Unidos vejo nele inimigo, e amante.
E contra a natureza tal é de amor o efeito,
Que às mãos com meu pai sinto Rodrigo no meu peito,
Investe, cede, torna; e vejo-o num instante
Tímido, forte, débil; vencido, e triunfante.
Mas no fatal combate da honra, e da paixão,
Do coração triunfa, mas da grande alma não.
E posto que inda amor tenha em mim tal poder,
Será independente sempre do meu dever.
Eu corro sem tropeço onde a honra me arrasta,
Mui caro me é Rodrigo, mas isso não lhe basta.
Sim tomo o seu partido, mas deixo o amor absorto:
Eu sei quem sou, Elvira, e vejo meu pai morto.

ELVIRA
Perseguireis Rodrigo?

XIMENA
Como quereis que não?
Ah cruel pensamento! fatal obrigação!
Eu peço a sua cabeça, tremo de a conseguir!
Morrerei se ele a perde; e quero-o ver punir!

ELVIRA
Deixai, deixai, Senhora, tão trágica mania:
Requerestes justiça, dispensai na porfia.

XIMENA
Matando ele meu pai! E quase à minha vista!
Fá-lo-ei enquanto viva, e enquanto ele exista.
Meu coração levado de um vergonhoso amor,
Crera que satisfaço com o primeiro horror!
E poder-lhe-ei salvar a honra, e a minha glória
Sem fazer, com a morte, a vingança notória?

ELVIRA
Vós logo a requerestes; bastante tendes feito;
O mais toca a el-rei... Não desistais do efeito,
Mas não vos obstineis em seguir, em clamar.

XIMENA
Dirão que amo Rodrigo, se o não precipitar:
Acusa-me a verdade, e só desminto assim
A infâmia da suspeita, que tenho contra mim.
A almas vulgares valem desculpas amorosas,
Mas cobrem de vergonha as almas generosas.

ELVIRA
Mas tendes esperanças de vi-lo a aborrecer?

XIMENA
Nenhuma.

ELVIRA
Então, Senhora, que pretendeis fazer?

XIMENA
Persegui-lo, perdê-lo, e morrer depois dele.

CENA IV

D. RODRIGO, XIMENA, ELVIRA


D. RODRIGO
Matai-o já, senhora, não receeis que apele
Dessa alma nobre, e justa ao coração traidor,
Que intenta suborná-la, comprado pelo amor.

XIMENA
Elvira, aonde estamos? Podes vender-me assi?
Rodrigo nesta casa? Como Rodrigo aqui?

D. RODRIGO
Fiel vos é, Senhora; foi minha a confiança;
Vim por facilitar vossa heróica vingança.

XIMENA
Oh céus!

D. RODRIGO
Escutai.

XIMENA
Morro. Não há maior tormento!
Vai-te, que expiro.

D. RODRIGO
Ouvi-me... Escutai-me um momento;
E não me respondais senão com esta espada.

XIMENA
Do sangue de meu pai ainda ensangüentada?

D. RODRIGO
Cara Ximena.

XIMENA
Tira, tira esse objeto odioso
Diante dos meus olhos, desgraçado, e aleivoso.

D. RODRIGO
Por excitar-te a cólera to mostro desta sorte,
Farta a tua vingança, apressa a minha morte.

XIMENA
Faz-me horror o meu sangue.

D. RODRIGO
Pois banha-o já no meu,
E faze-lhe perder a tintura do teu.

XIMENA
Oculta esse instrumento fatal, cruel Rodrigo.
Tu queres que te escute, e acabas comigo.

D. RODRIGO
Já faço o que me mandas, mas não julgues perdida
A única esperança, que me conserva a vida:
Que é vê-la co’este ferro, assim ensangüentado,
Pagar nas tuas mãos as culpas do meu fado;
Tão cru, e tão fatal, que nem sofre a paixão
O arrependimento daquela ingrata ação.
     De uma prontidão cega o efeito irreparável,
Quando meu pai desonra, faz-se em mim mais notável.
Espelho da vergonha sabes que os rostos são,
E como a mancha neles um aceno, uma ação.
Meu pai não tinha forças, sobrando-lhe valor;
Eu sem valor nem forças busquei o agressor,
Como quem busca a morte; a desgraça não quis:
Ele tinha o partido, e foi o infeliz.
Mas antes de buscá-lo, meu amor contra mim,
Contra meu pai, com que ânsia combatia por ti!
E tanto combatia, e com tal confiança,
Que esteve largo tempo sem pender a balança:
Tal era o seu poder, que de resolver temo,
Se deverei vingar-me; reduzido ao extremo
De te desagradar, ou ficar ultrajado!
Sentia o braço pronto, mas de amor subornado,
De ingrato me acusava tão fero, e tão ardente,
Que terias triunfado, Ximena, certamente...
Mas tua mesma virtude, me clamava, e dizia,
Que um homem sem vergonha te não mereceria.
Perderia o conceito, que tinha em teu agrado,
Desprezar-me-ias infame, se me estimaste honrado;
Que dar a amor ouvidos, e cegar-me da paixão
Fora infamar indigno tua mesma eleição.
     Inda to digo, ó cara, sempre o repetirei,
No último suspiro expirando o direi:
Eu te fiz uma ofensa, mas devia-a fazer;
Para desafrontar-me, para te merecer:
Cumpri coa minha honra, e com meu pai cumpri,
Falta-me unicamente satisfazer-te a ti.
Com este fim, Ximena, entrar aqui me atrevo,
O que devia fiz, faço agora o que devo.
O sangue de teu pai uma vítima pede,
Vinga-te, sacrifica-a: que te obsta, que te impede?
Imola àquele sangue, sangue que te é sagrado,
Estoutro, que faz glória de havê-lo derramado.

XIMENA
Ah Rodrigo! É verdade que aquela ação me obriga
A ser tua cruel, e eterna inimiga:
Mas condenar não devo, inda em tanta aflição,
A quem sair da infâmia por uma honrada ação.
Por mais que a minha dor se queixe, clame, e faça,
Rodrigo, eu não te culpo; sigo a minha desgraça.
Eu sei o quanto a honra, depois de um tal ultraje,
Deve esperar do ardor de um homem de corage.
Fizeste o que devias, quero-to conceder,
Mas deste-me um exemplo do que eu devo fazer.
O teu valor funesto me instrui, e a tua vitória:
Ele vingou teu pai, susteve a tua glória:
No mesmo caso estou; pois tenho, a meu pesar,
Que suster minha glória, e meu pai que vingar,
E contra quem, oh céus! Quem mo diria a mim!
Por ser mais infeliz! Se o não perdera assim,
Minha alma encontraria no gosto de te ver
Toda a consolação, que poderia ter.
Então benigna, e cara meu pranto enxugaria
A mão, que mais amava depois da que perdia.
Mas é força perder-te depois de o ter perdido:
À honra, e ao decoro tanto esforço é devido:
E a mesma natureza me estimula, e me ensina
A que por minha glória maquine a tua ruína.
E não esperes nunca tibieza, ou frouxidão,
Fiado no infeliz, magoado coração.
Se na paixão te imito, pois chego a suportar-te,
Na generosidade também hei-de imitar-te.
Mostraste-te, ofendendo-me, muito digno de mi,
Eu mostrar-me-ei, vingando-me, muito digna de ti.

D. RODRIGO
Vinga, e vinga-te já: tua honra o ordena,
Minha cabeça pedes, aqui a tens, Ximena:
Separai-a; nem o amor se queixará da ofensa,
São-me igualmente caros o golpe e a sentença.
Da lenta execução não dependa a vitória,
Quanto tarda o suplício, se atrasa a tua glória;
Dá-me uma doce morte, e não cruel, e atroz.

XIMENA
Sou tua parte, ingrato, e não o teu algoz.
Ofereces-me a cabeça? Eu posso-a receber?
Eu devo persegui-la, deve-la defender.
Eu devo em vez da tua, obtê-la de outra mão:
Por força hei-de acusar-te, porém punir-te não.

D. RODRIGO
Se na paixão me imitas, pois chegas a escutar-me,
Na generosidade prometeste imitar-me.
E valer de outro braço para o golpe fatal,
Perdoa-me, Ximena, é imitar-me mal.
Vingou meu grande pai a minha mão somente,
E vingar deve o teu a tua unicamente!

XIMENA
Cruel! Por que em tal ponto te chegas a obstinar!
Sem vantagem triunfaste, e pretendes-ma dar?
Teus passos seguirei, ganharei a vitória,
Sem consentir que tenhas parte na minha glória:
E sem que deva nada a essa subtileza
Da desesperação, ou da tua fineza.

D. RODRIGO
Ponto de honra cruel! E nem por mais que faça,
Ximena, poderei obter aquela graça!
Por teu defunto pai, por tão cara amizade,
Cara Ximena, mata-me; mata-me por piedade.
Teu desgraçado amante mil mortes vê na pena
De conservar a vida em ódio de Ximena.

XIMENA
Não tem ódio a Rodrigo.

D. RODRIGO
Mas deve.

XIMENA
É impossível.

D. RODRIGO
E por teu pundonor olhas tão pouco? É crível!?
Sabido o meu delito, e que inda a paixão dura,
Que não dirá de ti a inveja, e a impostura?
Põe-lhes silêncio, põe: Rodrigo é quem te infama,
Tira, tira-lhe a vida; salva, salva a tua fama.

XIMENA
Maior será seu brado, não te tirando a vida:
Quero que a mesma voz da inveja mais crescida,
Meu nome ao céu eleve, e meu fado lastime;
Sabendo que te adoro, e que acuso o teu crime:
Vai-te, vai-te, que aumentas a minha triste dor,
Quanto mais encareces a perda ao meu amor.
Mas olha como sais, previne-te, e discorre...
Conhecendo-te, o risco, que meu pundonor corre.
Se algum motivo pode ter a maledicência,
E ver que sofri esta horrorosa indecência.
Por minha virtude olha: a noite escura está.

D. RODRIGO
Mas enfim tua virtude, Ximena, que fará?

XIMENA
Fará a pesar do afeto, que vês, e te entreteve,
Por bem vingar meu pai, tudo quanto ela deve;
Tudo quanto ela possa: mas Ximena magoada
Deseja unicamente que ela não possa nada.

D. RODRIGO
Oh prodígio de amor!

XIMENA
Não te detenhas mais.

D. RODRIGO
Ah que ânsias, que aflições nos custam nossos pais!

XIMENA
Dirias tal, Rodrigo?

D. RODRIGO
Quem tal crera, Ximena?

XIMENA
Que à pressa tanto gosto mudado em tanta pena!

D. RODRIGO
Tocando quase ao porto; céu claro, e mar bonança:
Levanta-se a borrasca; vai a pique a esperança!

XIMENA
Tristes, cruéis memórias!

D. RODRIGO
Inúteis, e mortais!

XIMENA
Vai-te, vai-te, Rodrigo: eu não te escuto mais.

D. RODRIGO
Adeus! Mas crê, tirana, que se vivo, é por não
Frustrar o fim heróico da tua persecução.

XIMENA
E tu, ingrato, crê: que mal o conseguir,
Um instante, um momento não tardo em te seguir:
Vai-te já, temerário; cuida em que te não vejam.

ELVIRA
Males, que os céus enviam por maiores que sejam...

XIMENA
Também tu me importunas? Vai-te também, avia:
Da noite e do silêncio só quero a companhia.

CENA V

Rua. Vê-se parte da Catedral

D. ÁRIAS e D. DIOGO


D. ÁRIAS
Alegria perfeita não tem a natureza:
Ou não dura, ou envolve amargura e tristeza.
Qualquer cuidado sempre, ou acontecimento,
Vem perturbar o mais puro contentamento.

D. DIOGO
E como o sinto, amigo! Pois no prazer maior,
Nadando em alegria, me cubro de terror;
Pois vi morto o inimigo, que tanto me ultrajou;
E não sei se verei a mão, que me vingou.

D. ÁRIAS
Diogo, já vos disse o que me parecia;
E que aquele incidente, por desgraça, viria
A ser-vos favorável: e depois do que el-rei
Me disse, mais um passo por vosso filho dei.

D. DIOGO
E eu como que estivera na flor da minha idade,
Trôpego, como sou, corri toda a cidade;
E consumi sem fruto esse tal qual vigor
De meus caducos anos atrás do vencedor.
Porém depois de noite me figuro encontrá-lo
Em toda a parte; e quando vou contente a abraçá-lo,
Abraço sombras vãs, que me enchem de terror,
E aumentam as suspeitas do paternal amor.
E como não encontro vestígios da fugida,
E vejo morto o Conde, tremo pela sua vida:
Receio os seus amigos.

D. ÁRIAS
Tudo isso é ilusão.

D. DIOGO
Não é; ou não respira, ou se acha na prisão.

D. ÁRIAS
Preso, não: jurá-lo-ei. Sossegai, Dom Diogo:
Adeus; vou à muralha, e ver-nos-emos logo.

D. DIOGO
Mas outra sombra vejo! É sombra, ou evidência?
Não é sombra, é Rodrigo; não me engana a aparência.
É sem dúvida. Os céus meus votos escutaram:
Dissipou-se o receio; meus temores cessaram.

CENA VI

D. DIOGO e D. RODRIGO


D. DIOGO
Enfim, permite o céu que te veja, Rodrigo?

D. RODRIGO
Inda mal! Tão cruel tem sido o céu comigo!

D. DIOGO
Deixa que tome alento a fim de te louvar:
Teu valor não te deve, filho, descontentar.
Bem imitaste o meu, e ingrato te arrependes?
Causas inveja àqueles heróis, de quem descendes.
Por minha boca a glória da família te fala;
Pois teu primeiro golpe todos os seus iguala.
E esse ardor nativo, que a mocidade inflama,
Se leio no futuro, já assombra a minha fama.
Chega a meus braços, chega, apoio da cansada,
Inválida velhice, que viste desonrada.
Beija, filho, esta face, que tu desassombraste;
As cãs, que tu, só tu de vergonha tiraste.

D. RODRIGO
Sendo de vós nascido, e por vós educado,
Podia fazer menos? Não vos houvera honrado?
A natural cegueira do paternal amor,
Em vós a aprovação confunde co louvor.
Mas não fiqueis zeloso se vires que por fim,
Como vos satisfiz, me satisfaço a mim.
O meu heróico amor forçoso é que dê brado;
E que de mim me vingue, por vos haver vingado.
Da grande ação, se a fiz, não me arrependo, não:
Mas dai-me, dai-me o bem, que me tira essa ação.
Esse dever sagrado, que o débil braço armou,
Da melhor parte da alma, rebelde me privou.
E não me obrigueis, não, a suspender o estrago,
Pois quanto vos devia bem vô-lo tenho pago.

D. DIOGO
Faze mais dignos, faze, os frutos da vitória:
Eu a vida te dei; e tu me deste a glória.
De quanto a honra, filho, é mais cara que a vida,
De tanto és credor à minha já perdida.
Mas não fales de amor: vê, filho, que te infamas!
Olha que a honra é uma: infinitas as damas.
A honra é uma virtude; amor uma fraqueza.

D. RODRIGO
Fraqueza?

D. DIOGO
E vergonhosa, depois de tal proeza.

D. RODRIGO
Em meu amor se vinga minha honra ofendida;
E se em mim vingo amor, tenho a honra perdida?
É igual a infâmia, e segue tão constante
O guerreiro cobarde, como o pérfido amante.
Tão clara é minha honra, como meu amor puro:
Sofrei-me generoso, sem me fazer perjuro.
E não deveis tratar de ociosa a vingança;
A fé inda me obriga, se caduca a esperança.
E se deixar não posso, nem possuir Ximena,
A morte salva a fé, e adoça a minha pena.

D. DIOGO
Mancebo louco. El-rei precisa do teu braço:
Serás com amor pródigo, e com a Pátria escasso?
A armada, que esta tarde das alturas se viu
Cruzar na embocadura aí do nosso rio,
Ou eu me engano, ou ela não tarda em vir a terra:
Pois guerra de piratas foi sempre aquela guerra.
E o mesmo fluxo, e a noite por instantes, Rodrigo,
A seu salvo nos metem em casa o inimigo:
Inimigo infiel, ressentido, e feroz;
No porto, e no país prático, como nós.
Dom Árias preveni, que a ele é que mandou
El-rei dobrar as guardas; mas cuido que tratou
De pânico terror minha desconfiança,
Segundo da ignorância da resposta se alcança:
Pois diz se não atreve com este sobressalto
Consternar a cidade, duvidoso do assalto.
Se se verificar dirá que o não cuidou;
Que à risca executara o que el-rei lhe mandou:
E que nisto se salva!... Mas nunca louvarei
Aquele capitão, que diga: não cuidei.
     Porém, filho, o SENHOR, que os reis, e seus Estados
Defende por uns meios totalmente ignorados,
Nesta fatalidade, que choraste comigo,
Lhe facilita o meio de expulsar o inimigo.
Bom número de ilustres cavaleiros, e honrados
Deixei em casa, filho, valentemente armados.
Mal lhes constou a afronta, todos num corpo unido
Correram por vingá-la no sangue do atrevido:
Se tu te antecipaste, por acabar a ação,
Com muito maior gosto contra os mouros irão:
E que se perde, enfim, se acaso não vierem?
O incômodo de mais tarde se recolherem?
     À sua frente marcha, Rodrigo; assim to mando:
Só tu és digno cabo do generoso bando.
Ceda a teu braço invicto, o inimigo forte:
E se queres morrer, olha que bela morte!
Não poupes, não, a vida; será infâmia tê-la,
Se a glória do teu rei depender de perdê-la.
Mas torna vencedor, não limites a tua,
A vingar uma afronta, que nos era comua.
A Pátria, o rei, meu filho, são mais que honra, e que pai;
Vai desafrontar ambos; anda, Rodrigo, vai.
Obriga, obriga assim, pois a glória to ordena,
O monarca ao perdão, a silêncio Ximena.
E se reconquistar queres seu coração,
Outro meio não tens, se te foge esta ação:
Quisera que voasses; o tempo é precioso:
E sou quem te detenho; creio que de invejoso.
Faze, sim, que pasmado repita el-rei consigo,
Nada perdi no Conde, que não ache em Rodrigo.


FIM DO ATO TERCEIRO


ATO QUARTO

CENA I

Quarto de Ximena

XIMENA e ELVIRA


XIMENA
Não seja isso voz vaga: sabe-lo bem, Elvira?

ELVIRA
Vós delirais, Senhora! Como há-de ser mentira;
Se de um constante grito pelo prazer comum,
Coas lágrimas nos olhos exulta cada um!
E adora a Sacrossanta Divina Majestade
Exposta já nos templos a corte, e a cidade;
Que votos pelo herói repetem, pois perdida
Se vira, e com a mágoa de não ser defendida.
E da mais triste noite, seu braço, e sua estrela
Fizeram a mais célebre nos fastos de Castela.
Os mouros aparecem só para sua afronta;
Se é pronto o desembarque, a fugida é mais pronta
E dentro num instante viram nossos guerreiros,
Os mais valentes, mortos; e dois reis prisioneiros.

XIMENA
E tudo se deveu ao braço de Rodrigo?

ELVIRA
É essa a voz do povo, por sua boca o digo;
E pela dos dois reis, que assim o prolataram,
Quando Rodrigo os vence, ou eles se entregaram.

XIMENA
Mas tu não os ouviste.

ELVIRA
Ouço as aclamações
Do povo, e pelo efeito considero as ações:
Raio de Espanha o chama, e de África terror:
Seu anjo tutelar, e seu libertador.

XIMENA
E sabes tu se el-rei o louva, ou recompensa?

ELVIRA
Rodrigo inda não ousa ir à sua presença:
Mas em seu nome o pai conduz maniatados
Ao pé do trono os dois cativos coroados;
E espera que se digne o príncipe indulgente
De ver também Rodrigo imediatamente.

XIMENA
Dizem se está ferido?

ELVIRA
Falam só do valor:
Recobrai-vos, Senhora: ides perdendo a cor!

XIMENA
Minha cólera, Elvira, é que devo acender:
Que me não lembre dele, sem de mim me esquecer.
Ouço louvá-lo, e ouço-o com plácido semblante!
Cala-se a honra, e exulta o coração amante!
Silêncio pois, amor; vós cólera, falai:
Se ele dois reis venceu, ele matou meu pai.
E vós tristes ornatos, que me cobris de horror,
Devidos às ações fatais do seu valor;
Que faca mil proezas; que a Pátria, o rei o estime,
Vós, fúnebres objetos me sois só do seu crime.
Vós, que aumentais estímulos a meus ressentimentos,
Vestidos, crepes, lutos, lúgubres ornamentos;
Pompa, de que me adorna a primeira vitória,
Contra minha paixão sustende a minha glória.
E logo que amor queira mostrar maior poder,
Lembrai à minha honra o seu triste dever.
Vencei, e triunfai daquela mão triunfante.

ELVIRA
Moderai-vos, Senhora; aí vem a Infante.

CENA II

INFANTA, XIMENA, LEONOR, ELVIRA


INFANTA
Não venho consolar-te, chorar venho, Ximena,
Mostrar-te a grande parte, que tenho na tua pena.

XIMENA
Mostrai a que vos toca na comum alegria.
Assim o quer a Pátria, e o céu, que vô-la envia.
A isso vos comove o passado perigo,
E assim o merece o valor de Rodrigo.
Eu infeliz, eu só; sem escandalizar,
Só hoje o privilégio tenho de suspirar.
Ele seu rei serviu; salvou esta cidade;
A mim só é funesta a sua heroicídade.

INFANTA
Obrou, minha Ximena, prodígios de valor.

XIMENA
Molesto se me faz seu público louvor;
Se a todos igualmente se faz também constante,
Que tão guerreiro é, tão infeliz amante.

INFANTA
Tu sentes que o louvem, devera-lo estimar:
Pois um guerreiro louvam, que te soube agradar,
Por quem gostosa sentes ferido o coração;
Louvando o seu valor, louvam tua eleição.

XIMENA
Os mais, que louvá-lo ouvem, terão contentamento,
Mas eu nos seus louvores tenho um novo tormento.
Agravam minha dor, aumentam o meu mal,
Porque tanto mais perco, quanto mais sei que val.
E por mais que se abrase, conhece quem bem ama,
Que se os louvores crescem, cresce também a chama.
Porém o amor de filha será sempre o mais forte,
E nunca cessarei de instar pela sua morte.

INFANTA
Na corte a tua constância fez tão grande impressão,
Teu magnânimo esforço tão alta estimação
Te conseguiu, Ximena, que te enche de louvores:
Admira a tua coragem, lastima os teus amores.
Mas quererás ouvir uma fiel amiga?

XIMENA
Ouvir, e obedecer-lhe: fazer quanto me diga.

INFANTA
O que foi justo, e a tempo, minha Ximena, então;
Será estranho agora, e fora de sazão:
Apoio de Castela, as delícias, o amor
Chama o povo a Rodrigo; e de África terror:
O mesmo diz el-rei, e só neste soldado
Presume ver o Conde teu pai ressuscitado.
E não posso explicar-me, Ximena, de outra sorte:
Quer a ruína pública, quem quer a sua morte.
E por vingar um pai, que lei manda, ou ordena,
Sacrificar Estados, ou expô-los, Ximena?
Contra nós teus recursos nunca serão ouvidos:
Temos parte no crime para sermos punidos?
Isto não é dizer-te que podes esposá-lo,
Ele matou teu pai, deves repudiá-lo:
Com ele sê tirana, coa Pátria agradecida.
Priva-o do teu amor, deixa-nos a sua vida.

XIMENA
Eu tenho tal poder? Limite, nem razão
Não tem minha vingança, nem a minha paixão.
Inda que o povo o adore, que o acaricie el-rei,
Inda que vendo-o morto, matar-me saberei:
Que rodeado o veja de lanças, e guerreiros
Irão os meus espíritos murchar os seus loureiros.

INFANTA
É generosidade de uma alma a mais constante,
Vingar um pai na vida de um tão querido amante;
Muito maior porém, e mais digna parece
Ceder a bem do público, do sangue o interesse.
E crê, Ximena, crê, que vendo-se privado
Do teu amor, assaz será teu pai vingado.
Repara que a tua Pátria te prescreve esta lei,
E não julgues que nela dispensará el-rei.

XIMENA
El-rei pode-o fazer, mas eu devo clamar.

INFANTA
Repara antes, Ximena, no que deves obrar:
Medita, escolhe, observa, antes de resolver.

XIMENA
Depois de meu pai morto, não tenho que escolher.

CENA III

Sala de audiência

D. FERNANDO, D. DIOGO, D. ÁRIAS, D. RODRIGO,
D. SANCHO


D. FERNANDO
Herdeiro generoso do sangue, e da estrela
De heróis, que foram sempre a glória de Castela:
Afortunado neto, que tanto os imitaste,
Que na primeira ação com eles te igualaste,
Vê-la-ás sem recompensa, com meu ressentimento:
Maior que o meu poder é teu merecimento.
Salvar os meus Estados, meu cetro segurar:
Suster minha coroa, e sustê-la no ar:
As africanas luas cortar, e desfazer:
Antecipar-me ao susto o gosto de vencer:
Serviços são, Rodrigo, que não despacharei:
Nem co seu mesmo cetro bem os paga o teu rei.
Porém a tua ação será tua recompensa:
Seu Cid te nomearam, e na minha presença
Os dois cativos reis... Quero que o teu valor
Use daquele título, que quer dizer Senhor.
Serás desde hoje o Cid: dou-te tal nome, ou cedo:
Terror será um dia de Granada, e Toledo.
E mostrará também, a dizê-lo me atrevo,
O muito, que me vales, e o muito, que te devo.

D. RODRIGO
Mas eu posso aceitar de Vossa Majestade
Por tão fracos serviços, tão alta dignidade,
Sem me cobrir de pejo (inda que vão mancebo)
De merecer tão pouco a honra, que recebo?
Ao bem da Pátria devo o último suspiro,
E o sangue, que me anima, e o mesmo ar, que respiro;
E se chegar por ela nas veias a esgotá-lo,
Como cidadão cumpro, cumpro como vassalo.

D. FERNANDO
Porém a maior parte assim o não conhece,
Nem no valor te imita, nem no desinteresse:
E só quando um, e outro chega a tocar no excesso,
Aparece no mundo um tão raro sucesso.
Consente que te louvem: mando-to; e da vitória
Conta-me, Cid, agora mais por extenso a história.

D. RODRIGO
Senhor, não ignorais essa fatalidade,
Que quando em tal perigo meu pai viu a cidade,
Juntava em sua casa bom número de gente,
Armada, generosa, atrevida, e valente:
Mas desculpai, Senhor, minha temeridade,
Se ousei servir-me dela sem vossa autoridade:
Ardente a tropa vejo, temo que o risco cresça;
Talvez na corte visto exporia a cabeça.
E se perdê-la havia, por mão de infame algoz,
Mais doce era perdê-la combatendo por vós.

D. FERNANDO
A teu ardor desculpo a vingança da ofensa;
O Estado, que salvaste, me fala em tua defensa.
Mas rei benigno, sempre Ximena hei-de escutar,
Por não desatendê-la, só pela consolar.
Prossegue.

D. RODRIGO
À minha voz a tropa ardente avança,
Na fronte leva escrita a honra, e a confiança:
E tal valor infunde em tudo quanto vimos,
Que não sendo quinhentos os que juntos saímos,
Tal número concorre, que achei contente, e absorto
Três mil e tantos, quando o pé firmei no porto.
E tanto pôde o exemplo, e o valor conhecido,
Que fez valente o fraco, o tímido atrevido.
Escondo, apenas chego, nas naus, que ali se achavam,
Dois terços desta tropa, a mais a invejavam.
O resto, cujo número se aumenta a cada hora,
Comigo deixo, e ardente mal sofria a demora:
Mas passa a maior parte de uma tão bela noite
De bruços sobre a terra, sem que a arquejar se afoite,
O mesmo fez a guarda por meu comandamento,
O exemplo daqueles me serve de argumento:
Pois resoluto disse, sem deter-me em apodos,
Que el-rei me dera a ordem, que distribuo a todos.
     A morta claridade, que raia nas estrelas,
A mui pouca distância deixou ver trinta velas,
Presságio foi tal vista do gozo, e do conforto,
Que sinto, quando a armada chega a montar o porto.
Passar se deixa toda em tal tranqüilidade,
Que viram ermo o porto, e os muros da cidade.
O profundo silêncio os tem tão enganados,
Que nem duvidar ousam de estarmos emboscados.
Abordam sem temor, ferraram, e desceram,
E presa são das mãos, que sôfregas a esperam:
Movemo-nos então, e aos golpes primeiros
Um grito levantámos, que soa nos outeiros:
Os nossos, dos navios maior terror infundem;
Armados aparecem; os mouros se confundem.
Não bem desembarcados, do medo possuídos,
Antes de combater se deram por perdidos.
Corriam à pilhagem, encontraram a guerra,
Batemo-los no mar, batemo-los na terra:
E rios de seu sangue fizemos que corressem,
Antes que resistissem, ou que se defendessem.
Porém logo os seus príncipes, bem a nosso pesar,
Espírito lhe infundem, e os fazem pelejar.
Contém sua desordem, restaura-lhe o valor,
O pejo, e a vileza de morrer de terror.
Valentes a pé firme arrancam dos traçados,
E morrem a pé firme os mais bravos soldados.
E foram mar, e terra, não campo de Mavorte,
Patíbulo de horrores, onde triunfa a morte.
     E quantas, grande príncipe, quantas ações de glória
Obradas nesta noite ficaram sem memória!
Onde eram testemunha do que o valor fazia
A mão, que dava o golpe, o peito, que o sentia.
Por animar os nossos a toda a parte acudo,
Pois era quem devia responder-vos de tudo.
Fazia avançar uns, outros conter fazia,
Porém debalde foi té que nascesse o dia,
Querer sair, Senhor, da dúvida, em que estava,
E conhecer por quem a sorte se inclinava.
A claridade enfim, mostrou nossa a vantagem,
Os mouros vêem sua perda, e perdem a coragem,
Temendo outro reforço, que nos vem socorrer,
E cedem a disputa ao susto de morrer.
Ganharam os navios, as amarras picaram,
E a gritos espantosos com tal temor largaram,
Que nem um só minuto se ousaram demorar,
Por ver se os reis consigo poderiam salvar.
E água, que já descia, também lho aumentou,
Se o fluxo os conduziu, o refluxo os levou.
     E posto que os seus reis, e mui poucos soldados
Cos nossos estivessem às mãos inda empenhados,
E vendam suas vidas mui valerosamente,
A render-se os convido: mas foi inutilmente,
Mais o traçado apertam, nem querem dar-me ouvidos:
Mas vendo os seus soldados todos aos pés caídos,
Prudentes conheceram, como em vão se defendem;
Perguntam pelo chefe; nomeio-me, e se rendem.
Ambos no mesmo instante vos fiz, Senhor, presentes;
E cessou o combate, faltando combatentes.
Assim por vós o braço, e a fraca mente ordena...

CENA IV

D. FERNANDO, D. DIOGO, D. RODRIGO, D. ÁRIAS, D. AFONSO, D. SANCHO


D. AFONSO
Justiça vem pedir-vos segunda vez Ximena.

D. FERNANDO
Coisa não há que mais importuna me seja.
Obrigá-la não quero, Rodrigo, a que te veja,
E mando-te sair por agradecimento,
Porém quero abraçar-te, demora-te um momento.

D. DIOGO
Ximena, se o persegue, morre pelo salvar.

D. FERNANDO
Todos assim me dizem, façamo-la explicar:
Mostrai-vos pesaroso.

CENA V

D. FERNANDO, D. DIOGO, D. ÁRIAS, D. SANCHO, D. AFONSO, XIMENA


D. FERNANDO
Vós vindes magoada?
Alegrai-vos, Ximena: sabei que estás vingada.
O infeliz Rodrigo, que os mouros nos venceu,
Expira das feridas mortais, que recebeu.
As graças ao céu dai; ele é que vos vingou.
Não vedes, como já de todo a cor mudou?

D. DIOGO
Mas vede que desmaia, temei a conseqüência;
Desenganai-a, dai por feita a experiência.

XIMENA
Como... Rodrigo é morto?

D. FERNANDO
Não é, recobra a cor;
Pois vive, e te conserva fiel, constante amor:
Torna do sobressalto, certa da sua fineza.

XIMENA
Mata a grande alegria, como a grande tristeza.
Um excesso de gosto, não sendo prevenidos,
Porque a alma nos suspende, nos embarga os sentidos.

D. FERNANDO
Queres que a teu favor se creia o impossível?
Fez-se a tua paixão demasiado visível.

XIMENA
Juntais a meu tormento por fim mais esse horror!
Chamai ao meu delíquio pesar, angústia, dor;
Que tudo em mim causou aquele susto falso;
Sua morte a sua cabeça roubava ao cadafalso:
E dando pela Pátria a criminosa vida,
Ficara sem a vítima a vingança perdida;
E a glória, que alcançava, me fora injuriosa;
A sua morte peço, porém não gloriosa.
Não lá nesse teatro, que é leito do valor,
Porém no vil patíbulo do réu, e malfeitor.
Não morra pela Pátria, morra sim por meu pai,
E morra infame: assim, justo rei, o mandai.
Morrer pela sua Pátria é uma triste sorte?
É imortalizar-se pela mais bela morte.
Tenho na sua vitória satisfação legítima,
Pois defendendo o Estado, conserva a minha vítima
A mais nobre, e famosa entre os grandes guerreiros;
E coroada em vez de flores, de loureiros:
Numa palavra, rei, magnânimo escutai,
Digna, enfim, de imolar-se aos manes de meu pai.
     Porém de que esperanças me deixo lisonjear?
De mim que tem Rodrigo, que tem que recear?
Lágrimas desprezadas podem-lhe dar cuidado,
Se em todo o vosso império tem um lugar sagrado?
Se tudo lhe permite vosso favor, e abrigo,
Triunfará de mim, como do inimigo.
Se no seu sangue a santa justiça contra o réu
Se afoga; o vencedor terá mais um troféu.
E lhe aumentará a pompa em desprezo das leis,
Ao carro maniatada no meio dos dois reis.

D. FERNANDO
Muita violência tem, Ximena, a tua vingança:
Quando um rei faz justiça, põe tudo na balança:
Teu pai foi morto, sim; mas foi o agressor.
O primeiro culpado.

XIMENA
Perdoai-me, senhor,
Se vós tratais de culpa uma simples ação,
Que mais diríeis se ela passara à execução?
As leis, oh grande rei, procedem de outra sorte:
Querer matar, senhor, nunca foi dar a morte.
Vós nelas contemplais, legislador perfeito,
Os fatos, não desejos; nem ações sem efeito.
Dos reis, dos soberanos a pessoa sagrada,
É desta lei constante somente excetuada.

D. FERNANDO
Querer matar, Ximena, não é tirar as vidas,
Porém matam a honra ações tão atrevidas.
E nos mortais, que a tem, se faz tão melindrosa,
Porque sem ela a vida seria vergonhosa.
Vede que equivocada estais no pensamento;
E vede contra vós voltado o argumento:
Ele tirou-lhe a vida, mas não lhe tira a honra;
E a ação de vosso pai Dom Diogo desonra.

D. DIOGO
Aos que seu braço espanta, não desculpeis tão bem,
Deixai o campo aberto: não entrará ninguém.
Depois do que Rodrigo fez a passada noite,
Não temais, não, Senhor, que nem um só se afoite.
Quem quererá opor-se a um tal adversário?
Quem será o valente, ou quem o temerário?

D. SANCHO
Mandai abrir o campo: vedes o combatente:
Eu sou o temerário; ou dizei o valente.
Não demoreis a graça, o meu ardor me apressa:
Generosa Ximena, cumpri vossa promessa.

D. FERNANDO
Consentes de vontade constante, livre, e sã?

XIMENA
Prometi-o, Senhor.

D. FERNANDO
Está pronto amanhã.

D. DIOGO
Não demoreis, Senhor, a meu filho a vantagem:
Esteve sempre pronto todo o que tem coragem.

D. FERNANDO
Se depois da batalha inda não respirou?

D. DIOGO
Rodrigo tomou fôlego, quando vo-la contou.

D. FERNANDO
Quisera que duas horas ao menos descansasse,
E que em exemplo um tal combate não passasse;
E por mostrar a todos que bem a meu pesar
Consinto num costume, que devo reformar:
Nem eu, nem inda a corte a ele assistiremos:
Unicamente a vós, Dom Árias, confiaremos
A exata observância do que manda o valor.
E finda que a ação seja, trazei-me o vencedor,
Que da minha mão quero presentá-lo a Ximena.
Qualquer dos dois que seja por ser igual a pena,
A mesma recompensa boa lhe faz el-rei.

XIMENA
E deverei cumprir uma tão dura lei?

D. FERNANDO
Tu queixas-te, porém na queixa não consente
Tua alma, antes faz votos pelo que é delinqüente,
Cessa de murmurar; porque o vitorioso,
Seja dos dois qual for, será o teu esposo.


FIM DO ATO QUARTO


ATO QUINTO

CENA I

Quarto de Ximena

XIMENA e D. RODRIGO


XIMENA
Que audácia! Em claro dia ousas vir ter comigo?
Olha por minha honra: retira-te, Rodrigo.

D. RODRIGO
Vou a morrer; e mandam-me os tristes fados meus,
Antes do mortal golpe, dar-vos o último adeus.
Inda este amor presume fazer-vos uma ofensa,
Se ousa aceitar a morte sem vos pedir licença.

XIMENA
Tu vais morrer?

D. RODRIGO
E corro atrás desse momento,
Que extingue contra mim vosso ressentimento.

XIMENA
Tu vais morrer? Eu pasmo! Como! Dom Sancho é crível,
Que assuste o teu magnânimo coração invencível?
Quem te tornou tão fraco? Quem lhe deu tal conforto?
Vai combater Rodrigo, e dá-se já por morto!
Esse, que não temeu nem meu pai, nem os mouros,
Vai combater Dom Sancho cheio de tais agouros?
Quando te é mais preciso o teu valor se abate?

D. RODRIGO
Para o suplício vou, e não para o combate;
Minha fidelidade é que me não convida,
Quando me quereis morto, a defender a vida.
O mesmo valor tenho, porém não tenho espada,
Que possa defender o que vos desagrada.
Já na passada noite lhe houvera dado fim,
Se, como pela Pátria, combatesse por mim.
Mas quando recorria aflita ao meu valor,
Defendendo-me mal lhe seria traidor.
E não me causa a vida tal desesperação,
Que queira sair dela por uma negra ação.
Agora, que se trata de mim, e só de mim;
E vós a perseguis; já corro a dar-lhe fim.
E como não mereço morrer da vossa mão,
Quereis que a que escolhestes, escolhêsseis em vão?
Eu devo respeitar a quem por vós combate,
E descobrir-lhe o peito, por que logo me mate:
Levado dessa imagem, que a fé me representa;
Que vossa honra é quem as armas lhe sustenta.
E posto que do golpe soberbo o deixe, e vão,
A vossa, que me perde, adora na sua mão.

XIMENA
Se com tanta veemência, contra o que tanto quero,
Me obriga a perseguir-te o meu destino fero:
E a tanto a lei tirana de amor te força, e abate,
Que tolhe defender-te de quem por mim combate:
Em toda essa cegueira não tires da memória,
Que na vida te vai tanto, como na glória.
E que apesar de toda a com que tens vivido,
Quando te virem morto, te julgarão vencido.
A honra te é mais cara, se te é cara Ximena;
No sangue de seu pai ela a vingar-te ordena;
E a perder também, na força da paixão,
As doces esperanças da minha possessão;
Porém tão pouco caso te vejo fazer dela,
Que sem a defender te animas a perdê-la:
Que humilha a tua virtude? Por que a tiveste então?
Ou por que não a tens já? Ximena é a razão.
Tu és só generoso, só para meu ultraje,
Se não é contra mim não sabes ter corage.
E chegas a tratar meu pai com tal rigor,
Que depois de vencê-lo sofres um vencedor?
Deixa que te persiga, sem que queiras morrer.
E defende a tua honra, sem que queiras viver.

D. RODRIGO
Depois do Conde morto, e dos mouros desfeitos;
Precisa a minha glória inda de heróicos feitos?
Deixarão tais ações nunca de a defender?
Sabe-se que Rodrigo ousa tudo empreender:
E qual seu valor seja; e que amante, ou zeloso
Nada como a sua honra, nada lhe é precioso.
Não, não; neste combate ceder pode a vitória,
Rodrigo morrer pode sem arriscar a glória;
Sem que ousem acusá-lo de falta de valor;
Sem passar por vencido, nem sofrer vencedor.
Porque dirão somente: Adorava Ximena,
Em seu ódio vivia... e morreu desta pena.
Ele mesmo entregou a vida à dura sorte,
Que obriga a infeliz a pedir a sua morte:
Queria a sua cabeça, e o triste amante entende
Cometer novo crime, se a nega, ou se a defende,
Por vingar sua honra perdeu sua querida,
E por vingá-la a ela perdeu a sua vida;
Constante preferindo a esperança à pena,
Ximena à sua vida, se sua honra a Ximena
.
E assim vereis, senhora, que a morte em tal combate
invejada glória exalta, e não abate.
E é consolação na mágoa de perder-vos
O ver que nenhum outro pôde satisfazer-vos.

XIMENA
Se pois para conter tão insano furor
Tua vida, e tua honra não têm nenhum valor;
Se alguma coisa pode Ximena inda contigo,
Por tirar-me a Dom Sancho, defende-te, Rodrigo:
Caro Rodrigo, sim, defende aquela mão,
A que chamavas tua, da triste condição,
Que me obriga, infeliz, por modo tão fatal,
A dá-la ao que aborreço mais que a nenhum mortal.
Que mais posso dizer-te! Pões sem fazer proeza
Silêncio à minha honra, e às leis da natureza.
E desse amor, que exaltas, mostras mui pouco apreço,
Quando vencer não queres, sendo Ximena o preço.
Adeus: morro de pejo.

D. RODRIGO
Demorai-vos, senhora:
Que braço, que inimigos posso temer agora!
Ousados castelhanos, navarros, turco, e mouro,
Aparecei no campo, vereis vosso desdouro.
Formai-vos num exército: sem conhecer perigo,
Vos hei-de acometer. Para vencer Rodrigo,
Ou tirar-lhe Ximena, vereis que inda sois poucos.
Foram sempre os amantes valentes, como loucos.

CENA II

Quarto da Infanta

INFANTA, só


INFANTA
Escutar-te-ei, prezado, digno sangue real?
Que desta paixão formas um crime tão fatal?
Escutar-te-ei amor? Cuja doce esperança
Contra aquele respeito pode tomar vingança?
Pobre princesa! a qual, a qual deves ceder?
A qual dos dois tiranos, que te querem render?
De mim já eu Rodrigo menos digno julguei,
Porém por ser valente não é filho de rei.
Desgraçada fortuna: a daquelas invejo,
Que não vêem desunidos a glória, e o desejo.
A discreta eleição de virtude tão rara,
É possível, é crível que me custe tão cara?
Oh céus! Em que tormento será forçoso ver
Meu coração ferido, e ferido a morrer:
Se conseguir não posso depois de tal paixão
Nem extinguir o amor, nem aceitar a mão?
Mas nem razão, nem sangue é justo que me tolha
A vaidade, e a glória de uma tão digna escolha.
As heroínas seguem só da virtude as leis,
Posto que o nascimento só me destine a reis.
E se venceste dois, também posso esperar
Que a tua heroicidade te deva coroar.
De Cid o grande nome, sem revolver nos fados,
Também me dizem já onde são teus Estados.
     Ele é digno de mim; porém é de Ximena:
E aquele dom, que fiz, é minha maior pena.
Tão pouco entre eles pôde de um pai a crua morte,
Que bem que o sangue clame, o amor é mais forte.
Morre, paixão, que o meu destino te condena,
A não esperar fruto do crime, nem da pena:
Destino, que permite, (tais são os seus castigos,)
Que se conserve amor entre dois inimigos.

CENA III

INFANTA, LEONOR


INFANTA
A que vens?

LEONOR
A aplaudir aquela doce calma,
Esse repouso enfim, que já torna à vossa alma.

INFANTA
Donde me podem vir esperanças tão belas?

LEONOR
De as veres já perdidas, e amor morrer com elas.
Rodrigo já não pode vir-vos ao pensamento;
O fim deste combate finda o vosso tormento:
Dá-se por infalível prêmio do vencedor
Ximena: e assim, Senhora, cesse o vosso temor.
Nem Rodrigo vos lembre, porque ou casa, ou perece,
Morre vossa esperança, vossa alma convalesce.

INFANTA
Inda não morre.

LEONOR
Como! que podeis pretender?

INFANTA
Até as esperanças tu me queres tolher?
Se Rodrigo combate com essas condições,
Para impedir o efeito faltar-me-ão invenções?
Amor, esse ardiloso autor de meus suplícios,
Facilita aos amantes agudos artifícios.

LEONOR
Se morto o pai se estimam, sabereis dividir
Peitos, que aquele horror não pôde desunir?
Acaba de mostrar-nos Ximena claramente
O quanto a seu pesar persegue o delinqüente:
Ela um combate obteve, e sem mais consultar
Aceita o que primeiro se quis apresentar;
E em vez de recorrer às mãos mais generosas,
Cujo valor distinguem façanhas gloriosas,
Dom Sancho lhe bastou, que preferiu talvez,
Porque se vai armar pela primeira vez:
Seu combatente o faz sua pouca experiência;
Pois como não tem nome, não tem conseqüência:
E tal facilidade dá bem a entender
Que quis este combate só por satisfazer;
E por que o seu Rodrigo vença sem arriscar-se,
E ela ache um pretexto para jamais queixar-se.

INFANTA
Assim o considero, porém o meu amor
A Ximena infiel lhe inveja o vencedor.
Amante desgraçada, e Infanta, que farei?

LEONOR
O que deve fazer uma filha de um rei.
A outro o céu vos dá; vós amais um vassalo.
Nem deveis pensar nele; e menos nomeá-lo.

INFANTA
Já não amo Rodrigo, um simples cavaleiro,
Amo um herói, Leonor, um famoso guerreiro,
O valeroso Cid, que cedo dará leis;
O açoute dos mouros, o senhor de dois reis.
     Mas vencer-me-ei contudo, não já por minha fama,
Mas sim por não turbar uma tão bela chama.
E inda que hoje mesmo o visse coroado,
Não tornara a tirar um bem, que tinha dado:
E como do combate triunfará sem pena,
Volto, como de novo, a dá-lo inda a Ximena.
E tu vem recobrar-te dos sustos, que te dei;
E ver-me-ás acabar como principiei.

CENA IV

Quarto de Ximena

XIMENA, ELVIRA


XIMENA
Tudo chego a temer, não tem minha aflição,
Nem de esperanças vãs, a vã consolação.
Apenas faço um voto, apenas me arrependo,
Nem bem consinto nele enquanto o estou fazendo.
Àqueles dois rivais tomar as armas fiz,
E da ação desconheço o êxito feliz:
Porque aflita verei, por último conforto,
Ou meu pai por vingar, ou meu amante morto.

ELVIRA
E eu de toda a sorte vos vejo consolada;
Porque ou sois de Rodrigo, ou vos vedes vingada.
Por mau que seja o vosso destino, e rigoroso,
Sustém a vossa glória, ou vos dá um esposo.

XIMENA
O objeto do meu ódio, ou o meu inimigo:
De um pai o assassino, ou bem o de Rodrigo:
E de uma, e de outra sorte, tinto verei o esposo
Do sangue, que no mundo me foi mais precioso.
Rebelde contra ambos se volta o coração,
E temo mais que a morte o fim da decisão.
E vós, vingança, amor, que assim me perturbais,
Fugi de mim; nenhuma consolação me dais.
Poderoso motor de meu destino, e ultraje.
Terminai o combate sem nenhuma vantage,
Sem que um, nem outro fique vencido, ou vencedor.

ELVIRA
Seria eternizar vosso tormento, e dor;
E não pôr nunca fim à molesta aflição
De pedirdes justiça, seguir a acusação,
E com ressentimento clamar a cada instante
Pela execução da morte de um amante:
Mais val que o seu valor o seu contrário afronte,
Vos imponha silêncio, coroando-lhe a fronte.
Que cedam vossas lágrimas deste combate à lei,
Que disfarceis a vossa na vontade del-rei.

XIMENA
Eu devo sujeitar-me, inda que el-rei me mande?
Sagrado é meu decoro, e a minha perda grande,
Para que nunca bastem a prescrever-lhe a lei
O arbítrio do combate, a vontade del-rei:
Vencer pode Dom Sancho sem triunfo, nem pena,
Mas não vence com ele a glória de Ximena.
Se el-rei mal a contempla no prêmio dos perigos,
Ela fará ao Cid mil outros inimigos.

ELVIRA
Temei como castigo desse orgulho indiscreto,
Que o céu chegue a vingar-se por fim no vosso afeto.
Não vos contentais inda, vendo salva a aparência,
Podendo-vos conter com decoro, e decência?
Que mais pretendereis? Que podeis querer mais?
Com a morte do amante o pai ressuscitais?
Não basta aquele golpe, que os olhos fez em água,
Mas perda sobre perda, e mágoa sobre mágoa!
Não sois por obstinada, nem de compaixão digna,
Nem mereceis o amante, que a sorte vos destina.
Temei que o céu irado, depois de tão piedoso,
Vos deixe por sua morte Dom Sancho por esposo.

XIMENA
Bastantes penas tenho para me atormentar,
Sem com tão triste agouro me vires funestar:
Ambos salvar quisera; porém se o não consigo,
Tem todos os meus votos o infeliz Rodrigo;
Não porque esse amor louco por ele inda suspira,
Mas porque se não triunfa, dão-me a Dom Sancho, Elvira!
Desta apreensão somente se forma o meu desejo...
Verificou-se o agouro... Desgraçada!... que vejo?

CENA V

D. SANCHO, XIMENA, ELVIRA


D. SANCHO
Sou obrigado a pôr a vossos pés a espada...

XIMENA
Do sangue de Rodrigo fumando ensangüentada?
Aparta-te, cruel, foge do meu furor:
Caro Rodrigo, objeto fatal do meu amor...
Do meu constante amor! Que tenho que temer?
Meu pai está vingado: por que me hei-de conter?
Salvou a minha glória a tua atrocidade;
Pôs minha alma em furor, o amor em liberdade.

D. SANCHO
Por que chorais? Se o vosso...

XIMENA
Perguntas por que choro?
Execrando assassino de um herói, que eu adoro,
Pérfido! À falsa fé mataste um tal guerreiro,
Traidor te descobriste no combate primeiro:
Em lugar de obrigada me dou por ofendida,
Pois crendo que me vingas, me vais tirar a vida.

D. SANCHO
Se em vez de me insultardes quisésseis escutar...

XIMENA
Queres que da sua morte te sofra vangloriar?
Que satisfeita ouça na triste relação
Meu crime, sua desgraça, e a tua traição.

CENA VI

D. FERNANDO, D. DIOGO, D. ÁRIAS, D. SANCHO, D. AFONSO, XIMENA, ELVIRA


XIMENA
Cessou enfim a causa de vos dissimular
O que por mais que fiz, vos não pude ocultar.
Amava: mas enquanto a meu pai não vingasse,
Mostraria que nada importara que amasse.
E Vossa Majestade dirá, pois o alcançou,
Se cumpri, como filha, e filha de quem sou.
Enfim Rodrigo é morto: e amante consternada
Me vejo, se inimiga até aqui declarada.
Cumpri, como devia, com meu pai, e comigo:
Deixai que cumpra agora co que devo a Rodrigo.
Dom Sancho me perdeu, indo em minha defensa,
Do braço, que me perde, serei a recompensa?
     Se lágrimas abrandam o coração de um rei,
Revogai, por piedade, uma tão dura lei.
Por preço da vitória, em que tudo perdi,
Todos meus bens lhe cedo, e desista de mi.
Meus olhos chorarão, e num claustro observante,
Até que a morte os cerre, meu pai, e o meu amante.

D. DIOGO
Senhor, ela ama-o; e já sem pejo, e sem rancor,
Não só confessa, ostenta daquele heróico amor.

D. FERNANDO
Sai, filha, desse engano: Dom Sancho é o vencido:
Se te disse o contrário, logo o verás corrido.

D. SANCHO
Enganou-se ela mesma, e bem a meu pesar;
Pois me não quis ouvir o que vos vou contar.
O valente guerreiro, por quem se transportou,
Não temas, Sancho, disse quando me desarmou:
Primeiro deixaria ser por fraco infamado,
Que derramasse um sangue por Ximena arriscado:
Mas como daqui parto direito aos pés del-rei,
Vai à sua presença, eu depois o farei;
E mostra-lhe em meu nome vencida a tua espada.

Deixou-a a vista dela logo tão perturbada,
Que foi a sua cólera traidora ao seu amor,
Rodrigo deu por morto, e crê-me vencedor.
Loquaz, desesperada, cheia de impaciência,
Nem para duas palavras me dá breve audiência.
Mas apesar de um prêmio, que me deixa invejoso,
E inda que vencido, me dou por venturoso:
Ficara mais sentido se fora o vencedor:
Malograra o mais fino, o mais heróico amor.

XIMENA
E meu pai por vingar!... E ostento de paixão!
Oh céus! Morro de pasmo! Morro de confusão.

D. FERNANDO
Não deve ter rubor da sua amante chama
Quem como tu, Ximena, precipita quem ama.
A sua glória salva, salva o teu pundonor,
E satisfaz teu pai o louvável rancor.
Com que expões tantas vezes a vida de Rodrigo;
Daquele involuntário, infeliz inimigo.
Mas bem vês como o céu não quer a sua morte,
Conforma-te com ele, e com a tua sorte.
E não sejas rebelde ao que teu rei te ordena.
Aceita-o para esposo; e peço-to, Ximena.

CENA VII

D. FERNANDO, INFANTA, D. DIOGO, D. ÁRIAS, D. RODRIGO, D. AFONSO, D. SANCHO, XIMENA, LEONOR, ELVIRA


INFANTA
As lágrimas enxuga; recebe sem tristeza
O caro vencedor das mãos da tua princesa.

D. RODRIGO
E desculpai, Senhor, se o tendes por ofensa,
Ver-me aos pés de Ximena na vossa real presença.
     Não venho a que me façam boa a fatal promessa,
De novo oferecer venho a minha cabeça.
Ximena, em meu abono valer nunca farei,
Nem já leis de combate, nem palavras de rei.
Se inda a vingança justa reputas imperfeita,
Declara o que lhe falta, e serás satisfeita.
Se queres que combata com mil, e mil guerreiros,
Que vá nos fins da terra plantar os meus loureiros;
Xue de Hércules se esqueçam trabalhos gloriosos,
Que iguale, e exceda a fama dos heróis fabulosos;
Se a mancha do meu crime se pode assim lavar;
Ousado empreendo tudo, e tudo hei-de acabar.
     Porém se o teu rancor coa morte do culpado,
E não com outras vítimas, deve ser expiado,
Não armes contra mim, cara Ximena, não,
Estranho braço; vinga-te, morra pela tua mão.
Só ela tem direito de vencer o invencível,
As mais, que o tentarem, tentam o impossível.
Mas com a minha morte acabe a tua vingança:
Bastar-me-á não ser-te de odiosa lembrança.
E já que ela conserva, Ximena, a tua glória,
Conserva em recompensa minha triste memória;
E dize tal qual voz maviosa, e enternecida:
Se ele me não amara, inda teria vida.

XIMENA
Levanta-te, senhor, fingir é escusado:
Para me desdizer, disse-vos demasiado.
A virtude aborrece quem o aborrecer;
E quando pede um rei, é pouco obedecer.
Não sou rebelde, não: Rodrigo não é réu.
Mas podem vossos olhos ver um tal himeneu?
E quando me obrigais, senhor, a tal fazer,
Credes que vão de acordo a justiça, o poder,
Dando Ximena ao mundo o escândalo imortal
De haver manchado as mãos no sangue paternal?

D. FERNANDO
Costuma o tempo às vezes legitimar, Ximena,
O que à primeira vista se estranha, e se condena:
Rodrigo te ganhou, e tu és de Rodrigo
Desde que triunfou do último inimigo:
Mas sê-lo-ia el-rei também da tua glória,
Se lhe entregasse logo o prêmio da vitória.
A posse deferida não vai contra essa lei,
Sem determinar tempo, tua mão lhe destinei.
     As armas é preciso que ele de novo tome,
Que nossos inimigos persiga, vença, e dome.
Que atalhe os mais desígnios, assim como atalhou
Aquele com que o mouro nossas praias buscou.
Que vá levar às suas o terror, e a guerra;
Queimar no porto as quilhas, e assolar-lhe a terra.
Do Cid ao nome invicto de medo tremerão,
Senhor te nomearão, seu rei te quererão.
Conserva-te fiel sempre a Ximena bela:
E volta, se puderes, inda mais digno dela:
E por teus grandes feitos faze de ti falar,
De sorte que ela faça glória de te esposar.

D. RODRIGO
Por possuir Ximena, por vos servir, Senhor,
Que deixarão de obrar meu braço, e meu valor!
Se longe de seus olhos me demora a vitória,
O poder esperar me basta para glória.

D. FERNANDO
Em teu valor confia, e na minha promessa,
E na fé, que Ximena te guarda, e te professa.
E por salvar do pejo a melindrosa lei,
Verás o que obra o tempo, o teu nome, e o teu rei.


FIM



Notas:

* — Conservou-se, por fidelidade à edição digitalizada, e provavelmente ao próprio Tradutor, “PAGE”, “corage”, em vez de “PAJEM”, “coragem”, etc. [N.E.]

NOTA: Devo advertir que fiz esta tradução segundo o Teatro de Corneille da edição de Paris de MDCCLV, e que não pude achar a primeira, em que entrou o “Cid”, para falar sobre as observações de Scuderi, e os Sentimentos da Academia com toda a precisão: e devo dizer também que prescindi da tradição, e memórias, que desculparão talvez a fraqueza do papel da Academia: bem mostram os cinco meses, que levou em compor-se, que meditavam mais no que a Política mandava calar, do que nas decisões, que a Poética lhes metia pelos olhos, e mandava escrever, à vista do maravilhoso efeito do Poema. [N.T.]


 

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