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BUROCRATAS & BUROCRACIAS

Levi Bucalem Ferrari

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Burocratas & Burocracias
Levi Bucalem Ferrari

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Editora Semente, São Paulo, 1981

© 2006 — Levi Bucalem Ferrari


ÍNDICE

Agradecimentos
Prefácio — Bolívar Lamounier
Apresentação
Primeira Parte. Burocratas
Capítulo I: O Funcionário na Organização: O ingresso
     1. Segurança no Emprego
     2. Peculiaridades do Recrutamento e Seleção
     3. Outros Aspectos de Atração do Emprego Público
     4. Conclusões
Capítulo II: O Funcionário na Organização: Convivendo com a Disfunção
     1. Ausência de Mobilidade
     2. Política Salarial e de Benefícios
     3. Burocracia e Insuficiência de Recursos
     4. Conclusões
Capítulo III: Insatisfação e Conflito
     1. A Imagem da Instituição
     2. Imagem e Auto-Imagem do Funcionário
     3. A Permanência Forçada
     4. Conflito
Capítulo IV: O Funcionário Público e o Privado

Segunda Parte. Burocracias
Capítulo V: Burocracia e Comportamento
     1. Acepções do Termo Burocrático
     2. A Burocracia Racional
     3. Disfunção da Burocracia
     4. Comportamento Organizacional
     5. Relações de Poder na Organização
     6. Conclusões
Capítulo VI: Burocracia e Burocracia
     1. A Burocracia Pública e a Privada
     2. A Burocracia Patrimonial Antiga
     3. Feudalismo e Patrimonialismo Moderno
     4. As Duas Burocracias de Estado na Europa e a Nova Burocracia Privada
Capítulo VII: Burocracias na Experiência Brasileira e Paulista
     1. A Herança Colonial
     2. Configuração no Império
     3. A Descentralização Republicana
     4. A Configuração Definitiva
     5. São Paulo: Do Isolamento à Aspiração Hegemônica
     6. São Paulo: Diferenciação Estrutural e Alternativas de Participação Política
Capítulo VIII: A Administração Isolada
     1. A Convivência das Duas Burocracias em São Paulo
     2. O Quadro de Isolamento
     3. Desintrodução ou Relevâncias Tardias
     4. Em Busca da Luz no Fim do Túnel
Bibliografia Citada
Notas
O Autor


À Lily, professora primária.


 

AGRADECIMENTOS

 

Somente o estímulo e a colaboração de algumas pessoas e instituições, em diferentes aspectos, tornou possível a realização deste trabalho. Eis alguns exemplos:

Fernando deu o tom e participou das decisões relativas à pesquisa primitiva. Laís e Gigi “mal secreto”, além disso, e da amizade, participaram das pesquisas e redigiram comigo a segunda interpretação dos dados. Rosa, Marisa e Nelson, da Axioma, foram os responsáveis pela montagem e coordenação dos grupos e pela primeira interpretação. A Fundação do Desenvolvimento Administrativo — FUNDAP — através de seu Presidente, Pedro Celidonio, ofereceu as condições para a consecução do trabalho em todas as fases. Bolívar Lamounier demonstrou, além da habitual competência, ser o orientador seguro e flexível. Eduardo Kugelmas, Sérgio Cavalcante, Drago, Felicíssimo e Bilotta contribuíram com observações que levaram ao aperfeiçoamento do texto. Ou seja, qualquer coisa, a culpa também é deles. A revisão do vernáculo ficou por conta de Dirce Lorimier, que não deve ser responsabilizada pelos erros que cometi posteriormente.

Mas, tudo isto não bastava. Outro tipo de apoio foi necessário:

Carmem Junqueira deu broncas e incentivos, ambos com eficiência. Quanto aos incentivos, fui ajudado por muitos: Carmute, Fred “seriedade/sisudez”, Téo “pelo passado e pelo futuro”, Humberto “das meninas do PT” Lago, Dada, Teca, Regina e Martha.

Ah! o Buck me trouxe de volta aos estudos e à convivência com toda essa gente... Outros garantiram a infra-estrutura eficiente, como Lilian, Dorothy, Márcia, Aparecido e seus asseclas, e Adyr e seu séquito de belezas puras “...meus olhos, porém, não perguntam nada”.

Ainda, há pessoas que ajudam até pelo simples fato de saberem coexistir com sabedoria: Quartim boa gente, Luís da Libido, Eugênio Carlos, o incorruptível cavaleiro de la Mancha, Walter Bonini, Tomas, Aírton Brock, Magda, Paulo Eduardo, Bacchetto, Christina e o poeta Reinaldo, claro.

Numa outra, há uma história mais remota, e tão próxima, das coisas que determinam o caráter. Guido e Chaim, meus maiores, me ensinaram tantas... assim como Rosa, Ângelo e Martha. E, mais recentemente, Dona Yoshie e Sr. Kusano.

Sem falar no outro lado, o negativo: as coisas como estão e estiveram esse tempo todo, o Getúlio Vargas, o Golbery, o Delfim, D. Pedro II e Pedro Álvares Cabral, que inventou tudo isso. Mas, principalmente, as mulheres que me disseram não.

O antídoto tem sido o que está lindamente presente em Carlos, Paulo, Leonice e Helena que ensinam, perguntando:

“Por que perder-se na miragem do longe e do depois quando algo sopra infinito no perto e arde em silêncio no agora?”

Mais do que todos, Akemi, naturalmente.


 

PREFÁCIO

 

À primeira vista, pelo menos, o estudo do chamado “fenômeno burocrático” tem uma importante tradição na Ciência Política brasileira. Nas reflexões sobre a formação histórica do Estado brasileiro, pode-se mesmo dizer que é uma constante. Grande parte da discussão gira em torno do poder inibidor que, há quase cinco séculos, a burocracia patrimonial estaria exercendo sobre as raízes democráticas também existentes em nossa formação social. Deste contraste entre o Estado (burocrático, centralizado, autoritário) e a Sociedade (dispersa, disforme, anárquica, eventualmente democrática) não há como fugir. Alguns, como Raymundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958) viram a formação da burocracia brasileira como um verdadeiro transplante, ou seja, como um galho inteiro que aqui se implantou desde o descobrimento, com suas idiossincrasias e seu modus operandi já plenamente configurados. Outros, como Azevedo Amaral (A Aventura Política do Brasil, 1935), ao contrário, vêem na vinda da Corte, em 1808, o momento nefasto que liquidou, talvez definitivamente, nossas veleidades de progresso e autonomia, na exata medida do novo alento que proporcionou à burocracia colonial, cujas tendências fiscalistas e clientelistas já não se sustentavam frente ao dinamismo social.

Mas o relevo dado em nossa historiografia à burocracia e à centralização pode levar a conclusões equivocadas no que se refere à situação corrente das pesquisas sobre o tema. Poder-se-ia inclusive perguntar se a amplitude das teses clássicas não terá exercido um efeito inibidor sobre as atuais gerações universitárias. Obras de grande porte, como as de Faoro e de Azevedo Amaral, sem dúvida estimulam o gosto pelas grandes sínteses históricas, mas não necessariamente o apetite pela pesquisa. E se essa passividade diante de construções portentosas é um mal, muito piores são os efeitos da reverência frente à nova escolástica que se vem propagando nas ciências sociais. Para esta, a chamada “questão do Estado” não raro se exaure num debate abstrato, que, ao ver dos novos escolásticos, pode e deve ser travado sem qualquer referência a dados concretos. O máximo que se admite, nesta ótica, são alusões um tanto reiterativas aos “aparatos” repressivos e ideológicos e à sua função de “reproduzir” um esquema institucional cujo funcionamento se dá de antemão como conhecido. Tal como acontece em algumas abordagens que se pretendem históricas, também aqui a burocracia é vista como uma constante, ou seja, é descartada como um possível objeto de pesquisa histórica e empírica.

Se esse estado de coisas prevalece, não é por falta de bons modelos. Não é verdade que nossa Ciência Política tenha ignorado o tema da burocracia.

Alguns estudos recentes prestaram-nos a decisiva contribuição de retirar o tema do terreno especulativo em que se encontrava, mostrando, através de pesquisas minuciosas, as etapas e os mecanismos através dos quais se expandiu a máquina burocrática brasileira. No que diz respeito ao Império, a referência obrigatória é um pequeno ensaio de José Murilo de Carvalho, publicado na revista Dados n.° 21 sob o título de “A Burocracia Imperial: Dialética da Ambigüidade”. Para o período posterior a 1930, e sem a mais remota intenção de exaurir o assunto, eu citaria os trabalhos de Mário Wagner Vieira da Cunha, O Sistema Administrativo Brasileiro, 1930-1950 (MEC-INEP, 1963); de Maria do Carmo C. de Souza, Estado e Partidos Políticos no Brasil (Alfa-Ômega, 1967), cujo capítulo 4 é um importante estudo sobre a centralização levada a cabo sob o Estado Novo; de John Wirth, The Politics of Brazilian Development (Stanford University Press, 1970), sobre a expansão da capacidade decisória do Estado na área econômica; e de Edmundo Campos Coelho, Em Busca da Identidade: O Exército e a Sociedade na Política Brasileira (Forense, 1976), que é, sem dúvida, o mais importante estudo de que dispomos sobre o crescimento e a auto-identidade da organização militar.

Burocratas e Burocracias, de Levi Bucalem Ferrari, inscreve-se nesta linguagem. Como os trabalhos acima citados, procura deslocar a discussão para um terreno mais firme, e o faz recorrendo a dados novos (na primeira parte) e a uma elucidativa revisão da literatura (na segunda). Há, porém, uma importante diferença de enfoque, expressa nos dois plurais do título. Os dados novos a que me referi são, neste caso, entrevistas com burocratas de carne e osso, pessoas comuns que sobrevivem como funcionários da administração pública paulista. Explorando, com notável habilidade, pesquisas de cunho prático, quase diríamos “terapêutico”, Ferrari nelas discerne, e transforma em objeto central, as diferenças entre as várias burocracias. Primeiro, o contraste entre a burocracia pública, com suas mazelas e sua marca patrimonial, e a burocracia das grandes empresas privadas, que podem não ser um paraíso, mas que contém em sua estrutura suficientes estímulos para tornar plausível o sonho weberiano de ascensão, de progresso por mérito — numa palavra, de mobilidade social através da “carreira”. (Plausível, pelo menos nos tempos do “milagre econômico” e do otimismo empresarial). Em segundo lugar, o contraste que já se tornou clássico na bibliografia especializada: burocracia racional, weberiana, versus burocracia patrimonial. Reencontramos, aqui, a grande tradição a que fizemos referência no início: os estudos sobre a formação do Estado brasileiro e sobre o antagonismo entre a burocracia patrimonial e as nascentes tendências democráticas. Mas com um aspecto original, que é exatamente a tentativa feita por Ferrari de caracterizar o que esse antagonismo tem de peculiar no caso paulista. No diagnóstico tradicional, representado por autores tão diversos como Oliveira Vianna, Nestor Duarte e Sérgio Buarque de Hollanda, a democracia começa a morrer quando recebe o abraço nefasto do patrimonialismo. Sua gestação é impedida pela insuficiente distinção entre as esferas pública e privada. Daí concluímos, talvez ilegitimamente, que a crescente racionalização da burocracia, no sentido weberiano, seria suficiente para desfazer aquele antagonismo. O principal mérito da segunda parte deste livro é, a meu ver, o de haver reposto esta discussão em bases mais complexas, beneficiando-se, é claro, dos progressos feitos no estudo do fenômeno burocrático e das próprias lições da experiência política brasileira, desde os anos trinta. Seria imperdoável exagero pretender extrair deste livro de Levi B. Ferrari uma palavra final sobre as intrincadas relações entre burocracia e democracia. Afirmo apenas que são poucos os textos que tratam o tema de maneira tão clara e abrangente. E em português tão escorreito.

Bolívar Lamounier


 

APRESENTAÇÃO

 

O presente trabalho está dividido em duas partes. A primeira, que abrange os capítulos l a 4, apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre funcionários públicos e privados do Estado de São Paulo, em 1977, sobre suas atitudes acerca de seu trabalho e das organizações a que estavam vinculados. Esta pesquisa fez parte de um conjunto de trabalhos realizados pelo Grupo de Estudos de Administração de Pessoal — GEAP — constituído no final do ano anterior pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo — FUNDAP — com o objetivo de identificar os principais problemas de recursos humanos da administração pública estadual, e indicar alternativas fundamentadas para definição de uma política de administração de pessoal pelo Governo do Estado de São Paulo.

Tais estudos, consubstanciados no Relatório Final do GEAP e seus anexos (GEAP, 1977, a) resultaram em um Projeto de Lei, posteriormente Lei Complementar n.° 180 de 13/05/78, que instituiu o Sistema de Administração de Pessoal do Estado. A Lei Complementar 180/78, desde a fase de elaboração do Projeto, causou certa movimentação e polêmica entre os funcionários e suas entidades de classe, ocupando, inclusive, algum espaço na grande imprensa. Muitas dessas entidades participaram da fase final de elaboração. Oliveira (1979) apresenta uma análise preliminar desse processo, bem como das diferentes pressões das entidades de classe e de funcionários que ocupavam posições-chave, sobre os atos de regulamentação da Lei. Outra interpretação, também preliminar, é oferecida por Eid e Freund (1979, a) que se preocupam com o processo decisório e atribuem à desconsideração pela alteração da conjuntura político-sucessória as causas da não implantação de alguns institutos da Lei. Ainda Eid e Freund (1979, b) criticam o processo de transposição de técnicas de gestão privadas para o setor público, que teria caracterizado os trabalhos do CEAP.

A pesquisa que mencionamos aparece como Anexo l do citado Relatório e intitula-se “Estudo Qualitativo: Atitudes e Comportamento do Funcionário Público” (GEAP, 1977, b). Para sua execução, o GEAP contou com a colaboração de Axioma — Serviços de Pesquisa que, entre outras atividades organizou e coordenou as reuniões de grupos, realizou as entrevistas e apresentou uma primeira interpretação dos dados (Axioma, 1977).

Quanto ao GEAP coube-lhe elaborar o projeto, acompanhar e orientar o trabalho de execução e, finalmente, apresentar uma segunda interpretação, mais abrangente, dos dados obtidos.

Dito isto é possível esclarecer que a primeira parte deste trabalho é, em certo sentido, uma terceira interpretação dos dados. Propositalmente, foram efetuadas poucas mudanças, incluindo-se uma nova disposição do texto e algumas referências a contribuições de outros estudos realizados na mesma área de interesse. Em algumas passagens foi necessário um reexame das entrevistas, e em outras, uma redação mais explícita, posto que o relatório destinava-se a um público restrito representado por pessoas afetas à administração de pessoal do Estado.

No primeiro capítulo serão apresentados os motivos que levam pessoas a se tornarem funcionários ou servidores públicos. Tenta-se uma caracterização do Estado enquanto empregador a partir das qualidades que lhe são atribuídas dentre as alternativas de emprego. A questão que se propõe é a de se conhecer até que ponto essas qualidades, na medida em que levam pessoas à busca de um emprego público, contribuem para caracterizá-las como portadoras de características especiais, sejam individuais ou sociais.

O convívio com a organização levará à consolidação ou alteração da imagem que se fazia da mesma anteriormente. A organização passa a fazer parte do cotidiano do funcionário traduzida em rotinas, qualidades e condições de trabalho, retribuições salariais e outras, e oportunidades de desenvolvimento profissional e pessoal. Tais aspectos serão analisados no capítulo 2.

As principais características do Estado-empregador, sejam anteriores ao ingresso ou acrescidas pela convivência, são motivos de satisfação ou insatisfação para o funcionário. Confirmada a segunda hipótese, há uma propensão do funcionário a deixar a organização. Entretanto, as dificuldades neste sentido levam-no ao conflito e a comportamentos daí resultantes. Esse processo será objeto do capítulo 3.

Finalmente, no capítulo 4, tenta-se uma caracterização do funcionário público através da comparação de suas atitudes com as dos funcionários do setor privado. A comparação será enriquecida com a imagem que cada um dos dois tipos de burocrata tem de si próprio e do outro. Conclui-se, resumidamente, pelo alto grau de insatisfação do funcionário público e por significativas diferenças de atitude em relação ao trabalho e à organização, entre este e o funcionário do setor privado.

A segunda parte do trabalho, que compreende os capítulos 5 a 8, tenta interpretar os resultados da pesquisa à luz de algumas contribuições teóricas e empíricas sobre comportamento burocrático, tipos de burocracia e sua evolução histórica no Brasil e no Estado de São Paulo.

No capítulo 5, propõe-se um esquema classificatório dessas contribuições, a partir das diferentes acepções do termo burocrático e de sua aplicabilidade, ora ao Estado, ora às organizações em geral. Segue-se uma descrição resumida dos estudos sobre comportamento em organizações burocráticas com o objetivo de localizar aqueles que mais adequadamente sirvam à compreensão dos comportamentos observados.

A procura de uma explicação para as diferenças de comportamento entre burocratas do setor público e burocratas do setor privado, em um mesmo contexto sócio-econômico-cultural, leva ao relacionamento entre tais comportamentos e a qualidade das respectivas organizações burocráticas.

As diferenças entre estas não se esgotam apenas no fato de serem públicas ou privadas, e, portanto, de buscarem diferentes fins e se orientarem por diferentes valores. Razões históricas e circunstâncias políticas contribuem para acentuá-las. Assim, no capítulo 6, são abordados os diferentes tipos de burocracia a partir de suas origens históricas e conceituais. Já no capítulo 7, tenta-se compreender a origem e evolução desses tipos de burocracia no Brasil e no Estado de São Paulo. No caso da burocracia pública, procurar-se-á relacioná-la à evolução do sistema político e às características do Estado brasileiro. Além disso, serão abordadas as especificidades de natureza política da formação sócio-econômica de São Paulo e sua experiência organizacional pública e privada.

O capítulo 8 apresenta uma síntese dos principais pontos dessa segunda parte e uma proposta para a compreensão da administração pública paulista e do comportamento de seus membros. Esta proposta tenta considerar: a) a centralização político-administrativa nacional e suas conseqüências para a administração estadual; b) a defasagem entre as normas legais, inspiradas em modelos burocráticos modernos, e a realidade das práticas impostas pelo caráter patrimonial do Estado brasileiro e pelo regime político de cooptação; e c) o isolamento da administração estadual em relação à experiência organizacional de São Paulo e à própria capacidade de articulação política de sua população.

Finalmente, convém dar alguns esclarecimentos quanto à forma de realização da pesquisa primitiva.

Seu objetivo geral era o de detectar e analisar as atitudes e comportamentos do funcionário público estadual em relação à sua categoria. Especialmente, constituíram áreas de interesse as seguintes:

A amplitude dos objetivos e do universo a ser pesquisado (300 funcionários na ocasião) exigiria a adoção de diversas técnicas de pesquisa em diferentes etapas. Entretanto, a limitação de tempo forçou a opção por métodos qualitativos que pudessem dar conta dos problemas mais gerais e comuns a este universo.

As técnicas utilizadas foram as de Discussão em Grupo e entrevistas de profundidade, abrangendo cerca de 140 funcionários públicos e privados das mais diversas profissões.(*)

Tais técnicas possibilitaram que os aspectos mais significativos para os entrevistados pudessem emergir naturalmente na forma como eram percebidos. Desta forma, permitiram generalizações a partir de uma amostra relativamente pequena ao mesmo tempo que dificultaram a caracterização mais rigorosa de uma estratificação interna ao funcionalismo.

Pode-se concluir, como orientação ao leitor, que o funcionário retratado na primeira parte é muito provavelmente um funcionário “modal” (técnicos e administrativos de 2.° e 3.° grau). Exclui-se assim as chamadas elites burocráticas, de um lado e os funcionários de escalão inferior (ou braçais) de outro. Quanto aos últimos, entretanto, serão feitas algumas referências no decorrer do texto.


PRIMEIRA PARTE

BUROCRATAS


 

CAPÍTULO l

O FUNCIONÁRIO NA ORGANIZAÇÃO: O INGRESSO

 

Os estudos sobre a integração da burocracia com a personalidade significam, segundo Merton (1970), uma importante contribuição ao conhecimento da estrutura social. A partir desse pressuposto, o autor propõe algumas questões fundamentais que deveriam orientar aqueles estudos. Entre elas, destacamos aqui as que poderiam ser classificadas como relativas ao recrutamento de pessoal para a burocracia. Ei-las:

a) “Até que ponto os tipos de personalidades são selecionados e modificados pelas várias burocracias (empresas privadas, serviço público, a máquina política quase legal, as ordens religiosas)?;

b) Na medida em que a ascendência e a submissão são consideradas como traços de personalidade, apesar de sua variabilidade em diferentes situações de estímulo, será que as burocracias selecionam personalidades de tendências particularmente submissas ou ascendentes?; e

c) Os vários sistemas de recrutamento (por exemplo, patrocínio, competição aberta envolvendo conhecimento especializado ou capacidade mental geral, ou experiência prática) selecionam diferentes tipos de personalidade?” (p. 282)

Antes de tentarmos desenvolver alguns aspectos destas questões, dedicar-nos-emos a uma descrição dos dados no que se refere aos motivos que levam os elementos da amostra a buscarem emprego no serviço público.

Neste aspecto foi possível observar que algumas características do Estado como empregador constituem fatores peculiares de estímulo para o ingresso.

A procura do emprego público é referida com maior freqüência a dois conjuntos de aspectos que seriam particularmente atrativos. O primeiro destes conjuntos é o relativo à necessidade de segurança no emprego que estaria sendo preenchida por algumas características do Estado-empregador como veremos adiante. Um segundo conjunto prende-se às peculiaridades da forma pela qual o Estado recruta seu pessoal. Outros aspectos de atração do emprego público serão ainda referidos sem contudo destacarem-se na mesma proporção dos anteriores.

1. SEGURANÇA NO EMPREGO

A segurança é mencionada como uma necessidade pessoal e que compete ao emprego satisfazê-la. Ao serviço público são atribuídas diversas características que preenchem esta necessidade.

Segundo Merton, a maior parte dos cargos burocráticos envolve a expectativa de emprego vitalício. Além disso, a burocracia leva ao máximo a segurança vocacional. Neste aspecto Merton lembra que “E. G. Cahen-Salvador sugere que o pessoal das burocracias é constituído, em grande parte, por indivíduos que colocam a segurança acima de tudo” (p. 272).

Aceita esta premissa, é possível levantar a hipótese de que dentro do funcionalismo se dá o encontro, em diferentes graus, de um grande número de pessoas portadoras de certas características com uma instituição que reproduz a estrutura social ideal para elas. Tais características seriam pessoais na linha de Cahen-Salvador ou seriam relativas às camadas sociais de origem como o quer Bourdieu:

“...é fácil mostrar que estes traços (comuns aos burocratas) podem ser encontrados fora da situação burocrática, exprimem ... o sistema de valores implícitos ou explícitos ou as virtudes... que os membros das camadas inferiores das classes médias (onde são recrutados os pequenos funcionários) derivam de sua posição (definida dinamicamente) na estrutura social e que seriam suficientes para fazer com que se dispusesse a aderir aos valores do serviço público e às virtudes exigidas por uma burocracia...”(1)

Em nossa amostra, os aspectos visualizados como preenchendo a necessidade de segurança seriam: a estabilidade no cargo público, a relativa permissividade da instituição, e a impessoalidade do empregador.

A. Estabilidade no Cargo

A estabilidade no cargo público é o aspecto que se mostra mais presente, comentado, e mais claramente visto como responsável pela obtenção de segurança. Pode-se dizer mesmo que esta estabilidade parece ter vínculos diretos com a imagem da instituição e do próprio funcionário público.

Posto tratar-se de uma estabilidade garantida por lei, significaria uma garantia de não demissão, até mesmo em casos de “faltas graves”.

“O problema de mandar embora não existe” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“A não ser que roube, mate, que seja processado. Do contrário ninguém põe na rua” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 2.° grau).

Decorre daí, no caso dos funcionários efetivos, um sentimento de posse em relação ao cargo, o que já não se observa no caso dos temporários.

“O efetivo não sai porque ali ninguém pode ser mandado embora. A cadeira é da gente, ninguém tira” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“...dei graças a Deus no dia que me efetivei para me liberar de certas pessoas lá dentro” (mulher, 30 a 40 anos, classe A, nível universitário).

A sensação de não demissão é reforçada pela imagem do empregador. Este é visto como uma força onipotente, algo indestrutível e economicamente muito forte. Esta imagem tende a se acentuar em momentos de crise econômica que atingiriam muito mais o setor privado.

“Funcionalismo dá idéia de segurança. O governo não vai falir, não tem perigo, como firma particular...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“Um indivíduo que é muito inteligente, que está na iniciativa privada, corre o risco da firma ir à falência. O Estado quando for à falência, é o fim”. (homem, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

Este último aspecto encontra ressonância nas conclusões de Aracky Martins Rodrigues (1980) em sua pesquisa sobre funcionários públicos de baixa renda para os quais “o Estado é uma entidade onipotente, todo-poderosa, onipresente...” (p. 49). Segundo a autora,

“Nenhuma injunção pesa sobre as decisões governamentais; o governo pode fazer tudo o que quiser, desde que se proponha a isso. Baixar o custo de vida, por exemplo, apresenta para o governo o mesmo grau de dificuldade (quer dizer, nenhum) do que abordar a lei que autoriza o divórcio: “Se eles abordassem um assunto... um tipo de decreto... decreto assim para não deixar o custo de vida subir, era mais importante que o divórcio. Porque não subindo muito o custo de vida, muita gente melhorava a situação”. (SIC). Segundo outro entrevistado, “até o governo é pequeno diante de Deus” (idem, idem).

B. A Permissividade da Instituição

Em geral, os funcionários públicos representados na amostra sentem-se na instituição com uma liberdade relativa, representada pela possibilidade de faltar ou chegar atrasado sem conseqüência de descontos ou perda de mérito; pelas licenças médicas e condições para o exercício de outras atividades, sobrepondo-se ao horário de trabalho.

As licenças médicas seriam obtidas com extrema facilidade, já que não há um critério uniforme.

“...tirei oito meses para tratamento de saúde, não tinha nada, nunca tive ... quando arrumo meus serviços extras, estou apertada de dinheiro, tiro licença, estou passando mal, acabou” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“No funcionalismo, se meu filho estiver doente, posso ficar em casa” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Esta liberdade relativa também é sentida no que se refere à qualidade e quantidade de produção exigidas, o que confere à instituição um caráter de permissividade.

Além de reforçar a imagem de segurança, a permissividade seria por si só um fator de estímulo ao ingresso no funcionalismo principalmente para os que têm ou visualizam outras atividades, incompatíveis com um emprego mais exigente. Tais atividades incluem afazeres domésticos, estudos, outros empregos.

C. Impessoalidade do Empregador

O controle exercido pela administração é tido como impessoal. Esta impessoalidade ocorre na medida em que a figura do chefe é vista como tendo seus poderes diluídos pela burocracia e pela hierarquização muito ampla. Tal fato dificulta-lhe condições de aplicar reforços positivos ou negativos imediatos ou de estabelecer e usar critérios de avaliação mais próximos, como estaria ocorrendo na empresa privada.

“Acontece muito no funcionalismo se você trabalha, se mata, no meu caso, se bater dez processos por dia tudo bem; se bater um por dia também tudo bem, se ficar o dia inteiro fazendo crochê tudo bem, não tem problema, não adianta nada” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“Trabalhou, trabalhou, não trabalhou ganho do mesmo jeito” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

O funcionário sente-se seguro, desta forma, em seu relacionamento pessoal com a hierarquia, cuja dinâmica não o afetaria até o limite da perda do emprego, o que ocorreria com freqüência na empresa privada.

2. PECULIARIDADES DO RECRUTAMENTO E SELEÇÃO

As formas pelos quais o Estado recruta e seleciona seu pessoal também contribuem para que se dê em seu seio o encontro já mencionado de pessoas com certas características comuns.

Por enquanto, tanto a sub-hipótese de que tais características seriam pessoais, como a de que estão referidas às origens sociais dos candidatos, encontrariam apoio. Para tanto, na primeira linha de explicação arrolaríamos argumentos relacionados ao caráter de universalidade do concurso público. De fato, tidos como suficientemente abrangentes e impessoais, os concursos caracterizam-se pela abertura de oportunidades iguais para todos, sem discriminação de sexo, classe social, raça, etc.

O Estado, quando comparado à empresa privada, parece privilegiar, em sua seleção, o fator escolaridade em detrimento da experiência anterior. Os salários iniciais pagos pelo Estado são iguais para todos os admitidos em um determinado cargo, independentemente de sua experiência e habilidade. Ainda, seriam raros alguns procedimentos seletivos usuais na empresa privada que personalizam o candidato, com testes psicotécnicos, entrevistas, etc.

“...porque muitas vezes o concursado pode ser muito inteligente; passa, mas não tem conhecimento da matéria, e é uma necessidade” (mulher, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

Todas estas características estimulam o ingresso no serviço público de pessoas portadoras de uma, ou mais, das seguintes qualidades: recém-formados, em qualquer nível, com pouca ou nenhuma experiência profissional; pessoas que sofreram algum tipo de restrição dada pelos critérios de seleção da empresa privada (sexo, cor, idade, características de personalidade, etc.).

Neste último conjunto de qualidades, as pessoas voltam a se aproximar do grande apelo que significa a segurança empregatícia oferecida pelo Estado. Esta já seria dada pela não existência de restrições, ou quiçá, preconceitos, desde o momento da seleção.

“Fora a gente ganha mais, né, mas não tem segurança. Quem tem que sustentar casa e filhos precisa de emprego seguro” (mulher, 51 anos, servente).

Como vimos, há uma outra forma de compreender a questão, ou seja, a de que o Estado proporciona o encontro consigo de pessoas com características comuns porque tais pessoas seriam recrutadas em segmentos sociais determinados onde a visão do Estado, como estrutura social ideal, coincide com os valores destes segmentos.

Embora os dados não nos autorizem a confirmar tal assertiva com segurança, é possível admitir que há muito de socialmente comum entre os candidatos mesmo antes de seu ingresso. Neste sentido, são inúmeras as referências ao fato de que o candidato soube do concurso por intermédio de parentes ou amigos que já trabalhavam no serviço público.

“...no meu caso foi necessidade. Estava seis meses desempregado. Tenho um irmão que trabalhava lá dentro. Falou-me: faz concurso de escriturário. Fiz, entrei, estou há 3 anos...” (homem, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

“...entrei também por acaso. Trabalhava como vendedora em lojas, me matava de trabalhar para tirar aquele ordenadinho que não dava pra nada, monte de problemas, ajudar a família, essas coisas todas. Uma vez uma amiga minha convidou para fazer concurso, prestei, comecei a trabalhar...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

Em outra pesquisa realizada em 1979 entre os funcionários do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, constatou-se que quase a metade destes funcionários soube do concurso através de outros funcionários, sendo a grande maioria destes do próprio Tribunal (Cf. Fundap, 1979).

Em seu trabalho já citado, Aracky Martins Rodrigues constata que os funcionários que ingressaram através de concurso geralmente souberam do mesmo por intermédio de amigos ou parentes que trabalhavam numa determinada repartição(2).

3. OUTROS ASPECTOS DE ATRAÇÃO DO EMPREGO PÚBLICO

Além dos apelos representados pela segurança e pelas peculiaridades do recrutamento e da seleção, existem outros fatores de ordem mais objetiva, relacionados às características do Estado dentro do mercado de trabalho.

De fato, o Estado detém o monopólio total ou virtual como empregador de algumas profissões (policiais, professores, pesquisadores, etc.).

“...não teve opção, era formar e ir mesmo para o Instituto de Pesquisa da Secretaria da Agricultura ser funcionário público...” (mulher, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

Além disso, fora dos grandes centros urbanos, a carência de outras oportunidades de trabalho aumenta a importância relativa do Estado enquanto empregador.

Deve-se considerar também que este oferece oportunidades de trabalho socialmente consideradas como mais adequadas para o sexo feminino.

“...Sou de cidade do interior, cidade do interior é normal, é o que tem de opção ligada à família, é ser professora...” (mulher, 30 a 45 anos, nível universitário).

Convém ressaltar que o Estado remunera na mesma medida homens e mulheres, enquanto que no setor privado há uma tendência discriminatória em relação ao salário da mulher. O Estado é visto como “sem preconceitos” neste aspecto.

“...Existia e existe um certo preconceito contra a mulher, eles acham que a gente não faz o serviço do homem, que não tem capacidade do homem para executar, de modo que a única opção mesmo é o funcionalismo público...” (mulher, 30 a 40 anos, classe A, nível universitário).

4. CONCLUSÕES

As questões amplas formuladas por Merton relativas ao recrutamento pela burocracia puderam aqui ser simplificadas operacionalmente em duas hipóteses de trabalho. A primeira, já explicitada, é a de que dentro do funcionalismo se dá o encontro, em diferentes graus, de um grande número de pessoas portadoras de certas características, com uma instituição que reproduz a estrutura social ideal para as mesmas.

Esta estrutura ideal estaria centrada na idéia de segurança, garantida pelo Estado empregador, principalmente através da estabilidade no cargo, da permissividade e da impessoalidade. O processo de seleção basicamente utilizado pelo Estado, por seu caráter de universalidade, reforça esta visão de estrutura ideal. Ninguém será discriminado por um critério pessoal desde seu ingresso. E, posteriormente, não será pelo menos até o limite representado pela demissão.

Do conjunto de características que os funcionários atribuem ao Estado como empregador, foi possível deduzir que as pessoas que o procuram: a) valorizam em alto grau a segurança; b) possuem outras atribuições incompatíveis com empregos mais exigentes; c) julgam-se inexperientes ou discriminadas em outros mercados de trabalho; d) exercem profissões de emprego exclusivo — ou quase — no Estado; ou e) residem em regiões onde o mercado de trabalho privado é incipiente.

Tais características não são mutuamente excludentes. Ao contrário, é possível supor que guardam uma certa coerência entre si embora os dados disponíveis não nos permitam afirmá-lo. Da mesma forma, os dados não nos autorizam afirmar que elas sejam definidas estruturalmente, típicas deste ou daquele segmento social. Apontaria para esta direção, sem contudo precisá-la, o fato de que há um inequívoco paroquialismo na divulgação de fato dos concursos. Propondo-se a ser universal, sem discriminação, rigorosamente formal em todas as suas fases, o concurso público, ou qualquer outra forma de ingresso, passa a ser do conhecimento de pessoas que muito provavelmente já mantinham alguma relação pessoal prévia com algum funcionário.

A segunda hipótese é a de que as características atribuídas ao Estado e que funcionam como fatores de atração para a procura do emprego público, reforçadas neste sentido pelos procedimentos usuais no Estado de recrutamento e seleção, condicionarão em grande parte o comportamento futuro do funcionário.

Mais do que isso, para o que nos interessa, ajudarão a compor a problemática básica do funcionalismo em torno de problemas como satisfação, imagem, auto-imagem, conflitos, etc. Esta hipótese deverá ser desenvolvida nos próximos capítulos.


 

CAPÍTULO 2

O FUNCIONÁRIO E A ORGANIZAÇÃO: CONVIVENDO COM A DISFUNÇÃO

 

Algumas características atribuídas ao Estado pelos funcionários preexistiam a seu ingresso e estavam, como vimos, relacionadas a esta decisão. Outras surgem como resultado da convivência dos indivíduos com a organização e serão objeto do presente capítulo.

Como a mão na luva, a hipótese que nos ocorre é a de que o funcionário descobre as disfunções da burocracia. E não gosta.

O conceito de disfunção, como desenvolvido por Merton, é construído a partir da idéia elementar de que há um exagero no esforço de conformar a burocracia às normas e valores necessários à burocracia:

“Há uma margem de segurança... na pressão exercida por tais sentimentos (os de limitação da autoridade e da competência de cada um, e a metódica execução das atividades de rotina), sobre o burocrata, para conformá-lo às suas obrigações modeladas, que muito se parece com as tolerâncias de estimativa de precaução feitas por um engenheiro quando calcula os suportes de uma ponte” (Merton, 1970:275).

Esta superconformidade às normas distancia os elementos dos fins organizacionais, comprometendo-os. Seguem-se o formalismo e o ritualismo. A cada procedimento intermediário entre o esforço despendido e os fins, é menor a eficiência organizacional.

Merton não avança em direção ao que tais dispositivos significam em termos de satisfação do funcionário.

Ao contrário, os conceitos — base de incapacidade treinada, psicose organizacional e de deformação profissional, e o posterior de superconformidade, aliados aos incentivos que são oferecidos (carreira, promoção por antigüidade, aumentos de salários, aposentadoria, etc.) levariam o funcionário a adaptar... “suas idéias, sentimentos e ações à expectativa desta carreira” (idem, idem).

Entretanto, os estudos posteriores demonstram que esta adaptação não significa a inexistência de insatisfação ou conflito. Ao contrário, se reduzirmos operacionalmente o conceito de disfunção ao seu principal resultado, ou seja, a distância crescente entre as rotinas de trabalho e os fins organizacionais, temos aqui um importante fator de insatisfação (Cf. Lawler e Porter, 1978).

Mas nem só de disfunção se alimenta a insatisfação do funcionário. Outras causas relacionadas a fatores organizacionais e circunstanciais dispõem-se na travessia empreendida por nossos personagens. Como veremos.

1. AUSÊNCIA DE MOBILIDADE

É marcante, na imagem que o funcionário público tem da instituição, a impossibilidade da evolução profissional principalmente no que se refere à ascensão hierárquica. Esta impossibilidade é freqüentemente atribuída à impessoalidade do empregador, ao não aproveitamento de cursos realizados, ao desconhecimento dos critérios ou não credibilidade em relação aos mesmos, e ao protecionismo.

A impessoalidade do empregador é sentida através da pouca autonomia das chefias para premiar o melhor desempenho, através de uma eventual promoção funcional. De fato, as poucas oportunidades de mobilidade legalmente existentes dependem muito pouco da decisão dos superiores imediatos.

A ausência de mobilidade é sentida também quanto aos cursos efetuados, que não trazem ao funcionário nenhuma conseqüência prática em termos de promoção funcional. No setor privado, ao contrário, sente-se um estímulo e a valorização do desenvolvimento profissional.

“O funcionalismo não dá promoção, mesmo que faça curso” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1° e 2° graus).

O setor privado, ao contrário,

“...dá muita oportunidade. Se está na faculdade vai deslanchar” (bancário, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Se esta constatação se aplica inclusive aos cursos oferecidos pelo próprio Estado, compreende-se porque a maioria dos funcionários não se interessa pelos cursos oferecidos ou não procura fora do Estado cursos que possam lhe dar melhor aperfeiçoamento na função. O esforço despendido não seria retribuído em termos de ascensão profissional, remuneração, prestígio, etc.

“...as especializações só contam para título. Para padrão de referência e ordenado, fica sempre na mesma” — (homem, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

Tanto no que diz respeito à promoção salarial, como quanto às raras oportunidades de ascensão funcional, há um desconhecimento dos critérios que se regem, e paralelamente um sentimento de desconfiança em relação aos mesmos.

“Botaram gente, precisavam de gente para substituir os que tinham saído. Tinham que pôr gente no lugar do chefe. Não entendi o critério porque puseram Fulano e não Sicrano”. (homem, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2° graus).

“...para mudar de letra eu não sei o que tem que fazer, depende da diretoria... atendente não tem carreira” (mulher, 30 a 45 anos, atendente).

A mobilidade funcional é então atribuída ao protecionismo e a outros fatores não diretamente vinculados ao seu desempenho, potencialidade, e mesmo à natureza de seu trabalho.

“...é revoltante de ver, fiz tudo por aquela Secretaria, quem não fez nada é chefe, aquele que sabe fazer continua sendo escriturário” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2° graus).

É voz corrente que dentro do funcionalismo atuam freqüentemente os manejos políticos. Para que uma pessoa seja nomeada ou promovida, a explicação que surge é de apadrinhamento e proteção:

“...que tem padrinho tem” (mulher, 24 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“...única e exclusivamente proteção, porque é da mesma panela” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 2.° grau).

Tal traço decorre da não percepção de critérios explícitos e genéricos de ascensão dentro da instituição. Por outro lado, ainda que existam critérios, a impressão é de que eles não estão sendo utilizados, em função do protecionismo. Surgem assim entre os funcionários sentimentos de que estão sendo lesados, o que gera intensa insatisfação.

A mobilidade hierárquica possível é reduzida aos chamados cargos de confiança que, por serem de livre provimento, não possuem critérios expressos de escolha do ocupante.

Além disso, esse tipo de mobilidade é caracterizado pela alteração do “status” do funcionário de forma não definitiva, posto que este pode voltar ao cargo de origem a qualquer momento por critérios muitas vezes alheios ao seu desempenho. Isto atua como fator de insegurança, ocasionando reflexos não só de ordem financeira, mas também de ordem psicológica, para aqueles que de certa forma “retrocederam” na carreira.

“...por ocasião da reforma fui chutada. Sendo supervisora de equipe técnica seria de caráter CD-10, passei para a referência 18 novamente de professora normal... frustradíssima, abaladíssima e decepcionada” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

“...servente recebendo como chefe técnico ‘23’, faz seis anos que recebe como chefe, é servente contínuo. Não tira férias nada, sabe que se tirar férias, quando voltar, perdeu”.

A ausência de outros mecanismos de mobilidade tem gerado pressões para criação de novos cargos de provimento em comissão, e pedidos de transferências (como uma alternativa ilusória de mobilidade).

A inexistência de mobilidade e a falta de recursos humanos suficientes, devido ao excessivo “turn-over” de determinadas profissões, criam necessidades de atendimento que são preenchidas através do deslocamento de funcionários dos cargos originalmente exercidos. Estes aceitam desempenhar novas funções, como forma de ascender funcionalmente ou levados pela necessidade objetiva do trabalho. Isto ocorre principalmente em determinadas Secretarias ou unidades que prestam serviços diretos à população, como hospitais, escolas, etc.

“...Então, é obrigada dentro de sua função a fazer dois, três serviços ao mesmo tempo...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2° graus).

“...A gente dentro de um hospital... o principal de um hospital é o doente. Aplica injeção, faz curativo, faz tudo. Não tem gente! Se precisar limpeza, vai limpar. Não é porque bate a máquina que é só aquilo...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B1, 1.° e 2.° graus).

“...Ela trabalha em hospital e eu em Escola do Estado. Acontece a mesma coisa. Se precisar limpar o chão, a gente limpa. Escola com dois mil alunos e dois secretários e uma secretária. Não tem condições. Tem-se que fazer de tudo...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B1, 1.° e 2.° graus).

A promoção salarial não chega a ser percebida como fazendo parte do processo de mobilidade; ela representa apenas um reflexo do tempo de permanência e constitui-se numa recompensa pouco significativa para o funcionário. Além do mais este “tão pouco” ainda sofre os trâmites do excesso de burocracia.

A evolução profissional é vista como mais acessível no setor privado. Ela é a conseqüência do esforço (cursos, estudo) e mérito por produtividade. Estes não são reconhecidos no Estado.

Todo este contexto indicaria uma instituição estática e rígida na qual não teriam lugar processos dinâmicos. Neste sentido a acomodação do funcionário é uma decorrência, e uma forma de adaptação.

“Hoje já não almejo nada, só uma aposentadoria” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“A minha licença está acumulada, dos 15 anos... vou aposentar pela compulsória aos 70 anos” (mulher, 25 a 40 anos, atendente).

“Eu espero ganhar como porteiro, que apareça alguém na administração e repare este erro, e espero aposentadoria” (homem, 48 anos, porteiro).

“A mobilidade é coisa que... Parece uma entidade feudal. É um perfeito feudalismo... não apresenta característica de uma sociedade industrial, onde se vê mobilidade de classe...” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 2.° grau).

O funcionário se acomoda de diferentes formas: aceitando a situação e produzindo o mínimo necessário para manter o emprego; tendo fantasias de saída do serviço público, criando expectativas de mudanças da instituição; criticando violentamente a instituição; ou passando a aguardar a aposentadoria como objetivo de vida.

2. POLÍTICA SALARIAL E DE BENEFÍCIOS

Há, entre os funcionários, um consenso de que o Estado remunera mal a maioria das profissões em comparação com a empresa privada. Mesmo para as profissões que não possuem similares na empresa privada, os funcionários buscam comparações baseadas em anos de estudo, experiência, etc.

Tal percepção leva os funcionários a considerar a instituição insuficiente como emprego, e a buscar fora outras atividades que possam complementar a baixa remuneração obtida.

Esta insuficiência é sinalizada pela percepção do funcionário público como tendo ou necessitando ter outras atividades.

Tais “bicos” visariam à suplementação do emprego em termos econômicos e de evolução e/ou satisfação profissional.

A instituição é vista como facilitando a atividade suplementar e, desta forma, endossando a sua própria insuficiência como emprego.

Ao nível individual, o fato de assumir um emprego insuficiente é passível de crítica, que se acentua ainda mais pela falta de perspectivas, tanto em termos salariais como de evolução e/ou realização profissional.

“Funcionalismo público vive de rolos. O ordenado não dá, faz rolos, quebra galhos aqui e ali. Senão morre de fome.” (homem, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

“Tem gente em repartições que assina o ponto, vai embora, faz serviço externo. Trabalha duas horas para o Estado e seis para outra firma” (homem, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

A ausência de perspectivas de melhoria salarial também é percebida pelo funcionário, agravando o quadro existente. As perspectivas deixam de existir tanto no que diz respeito a aumentos salariais satisfatórios, como possibilidades de ascensão pessoal.

“O funcionalismo público — penso que estou falando por todos — ninguém pensa em ganhar muito, porque nunca vai ganhar. Está sempre aquém do necessário” (homem, 25 a 40 anos, classe A, nível universitário).

A par disto, os funcionários ressentem-se agudamente da compressão salarial que vêm sofrendo a partir dos últimos anos. Nesse sentido, além da significativa queda do poder aquisitivo, associa-se a ela um aspecto mais estrutural: a deterioração de sua posição na estrutura social.

Quanto ao sistema de benefícios, observou-se que o mesmo não se faz presente nos comentários com a mesma intensidade do problema salarial e da ausência de mobilidade. Aparentemente isto se relaciona ao fato de que tais aspectos não têm muito significado dentro da problemática do funcionalismo, apesar de reconhecer-se que o Estado seria, de um modo geral, mais generoso que a empresa privada, neste campo.

Tal generosidade, entretanto, reveste-se de certa ambigüidade, na medida em que alguns funcionários consideram que o Estado utiliza deliberadamente os benefícios, como forma de compensar os baixos salários, o que contribui para mantê-los nesse nível.

“É que dentro da administração, em vez de propiciar a devida remuneração, vai dando paliativos, quais sejam: qüinqüênios, sexta parte, licença-prêmio, falta remunerada. Vão dando uma série, que eles chamam de vantagens, e que a princípio a gente não vê a real necessidade. Quando o tempo passa a gente vê que tudo aquilo é engodo” (homem, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

“Então, por causa dessa estafa, como não pedi essa licença, foram os médicos que me deram, perdi o mérito por excesso de mérito; de tanto trabalhar, perdi meu mérito” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Entre os benefícios, os mais citados são: o qüinqüênio, licença-prêmio, as faltas abonadas e a licença-médica.

O qüinqüênio é considerado, enquanto benefício, pouco significativo.(3) Representaria um prêmio desproporcional à exigência em tempo feita para obtê-lo e tido como de baixo valor econômico. Entendido como benefício automático (já que o critério é tempo), não tem como contra-partida, para sua obtenção, um maior desempenho do funcionário.

A licença-prêmio é percebida como punitiva na medida em que obriga a um comportamento difícil de ser mantido. Mais ainda que o qüinqüênio, seria um benefício desproporcional à exigência e conquistado à custa de muito sacrifício. Nestas circunstâncias, assume mais o caráter de um benefício para o empregador do que para o funcionário. Além de tudo é tido como benefício desigual.(4)

“Não é vantajosa, ter que se esforçar tanto...” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“Se é um prêmio, deveria poder tirar quando quisesse, se a gente tivesse chance de viajar... Mas não. É a critério da Administração. Se achar que tem muito serviço, não pode tirar”. (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“Não podemos dar mais de 31 faltas, licença ou falta, se der 31 já perde. Então aí é que está o problema, que estão falando que não é vantagem porque escraviza a gente a não faltar. Para o Governo é bom” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Aparece com freqüência uma associação entre licença-prêmio e 13.° salário, sendo este mais valorizado.

As faltas abonadas, por sua vez. revestem-se de um caráter de direito do funcionário, mais do que um sentido de recompensa. Elas, muitas vezes, adquirem aspectos negativos na medida em que tal direito deve ser comprovado através de atestado médico.

“No magistério, tínhamos 12 faltas que podíamos abonar durante o ano inteiro. Fomos tão auxiliados que caíram para 6” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 2.° grau).

No que se refere às licenças-médicas, estas seriam obtidas, segundo os entrevistados, por critérios uniformes, dando margem à possibilidade de uma percepção de desonestidade. São bastante freqüentes comentários da concessão não adequada da licença-médica: em muitos casos, seria excessiva e, em outros, mesmo quando necessária, seria negada.

“O Departamento Médico, para certas coisas, tem uma dificuldade, a pessoa está apodrecendo é dificuldade para tirar licença, outras vezes dão de mão beijada, não se sabe bem como funciona”. (Mulher, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

“Você está doente, vai lá, está realmente doente o médico diz que você não está, nega a licença e fim de papo. Outras pessoas que sabem que não estão doentes, vão e conseguem” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

Além disto, a licença médica chega a ser usada, pelo funcionário, como instrumento de agressão à instituição.

“...o negócio é encostar ou dar uma de louco e tirar licença de um ano e vou fazer de novo. Vou fazer por muito tempo. Era ‘aquele funcionário’, chegou o ponto que vi que o negócio é encostar, vou ficar em casa direto”. (homem, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).

É em termos de atendimento médico que se observa um maior nível de satisfação do funcionário público. O Hospital do Servidor Público aparece nos comentários como bastante valorizado: bem equipado e com profissionais especializados. Todavia, existe um certo temor de que isto não se mantenha a partir da percepção da existência de muitos estagiários e da demora do atendimento. Comparativamente ao INPS, é tido como de melhor padrão.

“...o melhor tratamento possível. Os meus filhos, qualquer coisinha que acontece, levo lá, fazem exame dos pés à cabeça” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Em resumo, pode-se dizer que, exceto a assistência médica, os benefícios e vantagens citados ora são plenamente insatisfatórios, ora se revestem de um caráter ambíguo ou por serem mais castigos do que prêmios, ou porque serviriam para justificar os baixos salários.

Por este motivo, observa-se uma atitude de expectativa de melhoria mais significativa neste campo. Atitude esta, por sua vez, também ambígua, já que a perspectiva de concretização disto parece ser mínima do ponto de vista dos funcionários.

Pode-se dizer mesmo que os projetos de possíveis reformulações são fontes de frustração por serem vistas como não capazes de ultrapassarem o plano de promessas.

“Porque o funcionalismo público vive de promessa. Para o ano, faz promessa que vai melhorar, que vamos ter isto, aquilo. Somos os últimos que não temos 13.° salário que é exigido para todas as firmas” (homem, 25 a 40 anos, classe B, nível médio).(5)

3. BUROCRACIA E INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS

Estes dois aspectos serão tratados conjuntamente porque, em geral, estão associados pelos entrevistados. A insuficiência e, mais ainda, uma inadequação dos recursos seriam em grande parte conseqüência da excessiva burocratização da organização, muito embora ocorram casos em que a insuficiência aparece também como característica isolada.

O mencionado excesso de burocracia é sentido em diversas circunstâncias como impedindo ou dificultando o desempenho das funções. Traduz-se ainda por uma demora ou dificuldade na obtenção dos recursos e torna-se particularmente dramático quando dificulta o atendimento ao público e/ou a vida funcional do servidor (atraso no pagamento, demora nas promoções, etc.).

O funcionário percebe, à sua maneira, a disfunção burocrática, particularmente no que diz respeito ao formalismo que desencadearia uma segmentação de tarefas extremamente rígida. Isto teria como conseqüência, de um lado, a percepção de gastos excessivos e desnecessários e, de outro, uma constante necessidade de aumento do número de funcionários sem redundar em melhoria dos serviços.

“O que mata no funcionalismo é a burocracia... é papel, querem fazer economia em determinadas coisas, gastam um dinheiro incrível com burocracia. Ficam inventando moda, dificultando o máximo possível” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“...o Estado tem 480 mil funcionários, quando poderia trabalhar com 200 mil” (homem, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

São inequívocas as relações feitas entre uma estrutura “velha”, “arcaica”, “ultrapassada”, em uma palavra, “burocrática”, e a má alocação dos recursos, sejam humanos ou materiais. Isto levaria, por um lado, ao desperdício e, por outro, a uma desnecessária carência.

Quanto aos recursos humanos, aparece ainda outra explicação para uma alocação irracional e excessiva: a política. Outras relações serão feitas entre esse excesso de pessoal e a manutenção dos baixos salários.

“O grande mal do funcionalismo é realmente uma série de pessoas para uma determinada função” (homem, 30 a 45 anos, classe A, nível universitário).

“...Todas as repartições, sabemos disso, poderiam trabalhar com ‘xis’ número de funcionários, mas a política começou a inflacionar, começam a colocar extra-numerários, os atendentes, não sei mais o quê, a caráter temporário. Então, realmente o serviço não melhorou, houve uma impossibilidade de o próprio Estado remunerar o seu servidor, acompanhando em certos casos os da empresa privada” (homem, 25 a 40 anos, nível universitário, classe A).

No que se refere às condições materiais, a situação é mais problemática ainda. Existe a percepção de que tanto os elementos instrumentais, quanto às condições físicas ambientais de trabalho (salas, iluminação, etc.) são bastante precárias.

Entre os professores, as queixas são mais constantes e específicas quanto à falta de material:

“Não adianta fazer planejamento fantástico se não tem condições de executar, ninguém tem condições de dar recursos para este professor” (mulher, 30 a 40 anos, classe A, nível universitário).

“Dizem para trabalharmos e temos que comprar material do nosso bolso para podermos trabalhar” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“O professor tem que trabalhar com papel recortado de revistinhas” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 2.° grau).

Assim, o Estado padeceria de uma constante falta de recursos nem sempre por não tê-los, mas principalmente porque os aloca mal. Isto não ocorreria na empresa privada onde, ao lado de uma suposta abundância, haveria uma alocação mais criteriosa. Aqui surgem comparações que atribuem as melhores condições de funcionamento do setor privado à racionalidade com que cuida de seus recursos, principalmente os humanos. A administração destes contraporia a rigidez burocrática do Estado à flexibilidade do setor privado. Esta última permitiria ainda o exercício de um certo grau de criatividade e participação.

“...não pode fazer nada diferente, não pode dar opinião, sugerir nada, tudo a mesma coisa, e parece que vai assim por muito tempo se não piorar um pouquinho” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1° e 2.° graus).

“No setor privado há mais condições ... dependendo da firma, a chefia tem condições de você chegar, expor as idéias, criar alguma coisa, organizar, dar sugestões...” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“...eles estão humanizando o serviço para aumentar a produção, a empresa aumenta melhor suas condições” (homem, 25 a 40 anos, Classe A, nível universitário).

4. CONCLUSÕES

Às características atribuídas ao Estado pelo funcionário, no momento de seu ingresso, somam-se outras que advêm da maior convivência com a organização. Se no primeiro caso o Estado representava um emprego, se não ideal, pelo menos repleto de características positivas, a convivência fez surgir características ora marcadamente negativas, ora ambíguas.

As características que constituíram fator de atração para o emprego (como a segurança, os critérios de seleção e remuneração inicial, a impessoalidade, entre outras) não deixaram de existir. Continuam, como veremos, a serem aspectos constantemente referidos, em geral como positivos, no Estado. Entretanto, cederão o lugar que ocupavam de forma absoluta no rol de características, a outras cujas conotações tendem a representar uma imagem mais negativa da organização: ausência de mobilidade funcional, baixos salários, benefícios insuficientes ou ambíguos, excesso de burocracia e carência de recursos.

A emergência de tais características negativas, além de embaraçar o quadro anteriormente positivo, faz surgir inevitáveis associações entre os dois conjuntos. Assim, o emprego que era estável e, conseqüentemente seguro, é também o emprego imóvel, sem perspectivas de progresso. A impessoalidade que defenderia o indivíduo de qualquer arbitrariedade subjetiva, passa a representar a ausência do empregador, a distância de a quem recorrer em casos imprevistos. A relativa liberdade (de chegar atrasado, faltar, etc.), o que o Estado permite, é ao mesmo tempo a permissividade que provoca sentimentos de inutilidade, por um lado, e explica em boa parte a constante carência de novos recursos humanos, por outro.

Seria exaustivo enumerar outros exemplos. O que podemos afirmar é que os funcionários descobrem entre o ingresso e um momento qualquer de sua convivência com a organização, à sua maneira, todas as vicissitudes do desfuncionamento burocrático.

As características percebidas e as relações entre elas compõem uma imagem da instituição e dos próprios funcionários que terá um papel essencial na problemática do comportamento ora estudado.

Amplia-se, destarte, a hipótese explicitada nas conclusões do capítulo anterior: As características atribuídas ao Estado — que levaram ao ingresso e que surgiram da convivência — compõem uma imagem única, ainda que repleta de ambigüidades da instituição, que condiciona a imagem que o funcionário faz de si mesmo e, assim, seu comportamento individual e funcional, suas representações e relacionamento com outros setores.


 

CAPÍTULO 3

INSATISFAÇÃO E CONFLITO

 

1. A IMAGEM DA INSTITUIÇÃO

As diversas características atribuídas ao Serviço Público, analisadas nos capítulos precedentes, compõem para o funcionário o que poderíamos chamar de imagem da instituição. Tais características, tenham conotações positivas ou negativas, apresentam-se bastante interligadas, resultando em um conjunto tido, em geral, como negativo. No processo de composição da imagem organizacional é possível observar que características, tidas isoladamente como positivas, revelam suas contra-partidas problemáticas quando relacionadas ao todo. Revestem-se, desta forma, de tal ambigüidade que resultam, quase sempre, como fatores mediatos e mais complexos de insatisfação.

Como vimos, a organização apresenta-se para o funcionário com algumas características imediatamente negativas tais como: ausência de mobilidade; baixos salários e falta de perspectivas; poucas oportunidades de desenvolvimento profissional; excesso de burocracia; e insuficiência de recursos.

Outras características apresentaram-se, em algum momento, como atrativas e, portanto, positivas. Sem que tenham perdido em todos os casos tal qualidade, em uma análise mais profunda, revelaram alguns aspectos problemáticos. A segurança, sentida através da estabilidade no cargo, da impessoalidade e da permissividade, principal atrativo no emprego público, revela-se agora como algo bastante associado a uma organização estática, indiferente às qualidades e problemas do funcionário, e que não valoriza seu trabalho.

A estabilidade pressupõe uma baixa mobilidade funcional, traço marcadamente negativo na instituição. As oportunidades de ascensão a um cargo hierarquicamente superior estão limitadas pela estabilidade de seu ocupante. Neste aspecto, atribui-se ao setor privado um número maior de oportunidades de ascensão, relacionado ao fato de que os inadequados são demitidos.

A impessoalidade do empregador significa também a ausência de um julgamento mais imediato do trabalho e assim as dificuldades de um esquema de esforço e recompensa proporcionais. Nota-se a pouca autonomia das chefias para premiar ou punir, considerar um problema pessoal não previsto nas normas, etc.

Enfim, a relativa liberdade representada pelo fato de faltar ou chegar atrasado sem grandes prejuízos configura a instituição como permissiva. Esta permissividade favorece o aparecimento de sentimentos de inutilidade. Na medida em que, na prática, sua presença pode ser percebida como indiferente e, também, porque a qualidade e quantidade de sua produção não alcança repercussão, o trabalho do funcionário pode ser conotado como de baixo significado e sua participação como prescindível. À permissividade associa-se ainda o aumento das necessidades de pessoal para as mesmas tarefas, um dos fatos aos quais se atribui, como já vimos, a baixa remuneração.

A problemática representada pela ambigüidade da segurança e seus aspectos não se esgota aí. Como veremos adiante, será essencial na composição da imagem e auto-imagem do funcionário.

As vicissitudes do processo de seleção e recrutamento praticados pelo Estado apresentam também sua outra face. A instituição que foi impessoal na seleção através do concurso público, talvez tenha exagerado nesta impessoalidade ao colocar, quiçá definitivamente, o candidato em um posto de trabalho incompatível com suas habilidades e expectativas. Recrutando pessoas com pouca ou nenhuma experiência anterior, o Estado faz com que o recém-ingressado conviva apenas com profissionais que desenvolveram sua experiência no Estado. Cristaliza-se a cultura. Tal aprendizado terá pouco ou nenhum valor em outros mercados de trabalho. À segurança no emprego, contrapõe-se uma insegurança na profissão.

Todos esses aspectos explicam o alto grau de insatisfação manifestado pelos entrevistados. Além disto, consolidam para os mesmos uma imagem negativa da instituição que terá reflexos em seu comportamento.

Por outro lado, alguns entrevistados acusam uma insatisfação em relação às atividades propriamente ditas. Para estes, o trabalho apresenta-se excessivamente rotineiro, dando poucas oportunidades de criatividade. Em todo caso, sempre estiveram mais presentes os fatores de insatisfação vinculados à organização que às tarefas. Isto se explica não só pela imagem institucional altamente negativa, como também pelo fato de que o Estado abriga, mais que o setor privado, algumas profissões que apresentam um menor grau de fragmentação (como, por exemplo, pesquisa, magistério, justiça, polícia, etc.). Tais elementos, presentes à amostra, mas não discriminados, fazem diluir a insatisfação proveniente da tarefa, manifestada pelos demais.

2. IMAGEM E AUTO-IMAGEM DO FUNCIONÁRIO

“É acomodado, servidor público é acomodado” (homem, 30 a 40 anos, classe A, nível universitário).

O aspecto mais marcante da imagem do funcionário é o representado pela acomodação. Para os burocratas do setor privado presentes na amostra, a acomodação vista no funcionário está ligada à troca feita por ele entre a segurança do emprego público e o risco do setor privado.

Explica-se. Valores socialmente considerados como positivos tais como a evolução profissional, a evolução salarial, a competição, o assumir riscos, não são percebidos nos funcionários públicos como decorrência da opção feita.

Na base destes valores individuais estão valores sociais: as pessoas, especialmente o homem, devem buscar independência, ter iniciativa, “personalidade forte” para a realização profissional. Estes valores aparecem como incompatíveis com o funcionário público. O setor privado como o referencial de comparação torna-se o representante destes valores.

Bastante associada à idéia de acomodação surge a de desinteresse que atribui ao funcionário a qualidade de pessoa que não gosta do que faz, não se identifica com suas funções e com seu empregador.

Percebe-se que o funcionário público como que incorpora todos os traços que compõem a imagem da instituição e de seus funcionários. Esta incorporação resulta numa auto-imagem bastante negativa.

Ele reconhece, na vivência cotidiana com seu trabalho e no contato com a imagem externa do funcionalismo, aspectos desta problemática: imobilidade, não participação, excessiva burocracia, etc.

Na medida em que ele convive com as facetas negativas de sua escolha profissional, a incorporação se processa e se agrava a contradição presente na sua opção de trabalho.

3. A PERMANÊNCIA FORÇADA

Insatisfeito com o trabalho e com a instituição, sem vislumbrar, a não ser fantasiosamente, perspectivas de melhoria, o funcionário estaria propenso a deixar a organização. Tal decisão, entretanto, é dificultada, de um lado, pela inconversibilidade entre os sistemas previdenciários públicos e privados e, por outro, pela imagem que o funcionário faz do setor privado.

A inconversibilidade entre os sistemas previdenciários, ou seja, o fato de que o tempo de serviço prestado em um setor (público ou privado) não é considerado no outro para efeito de aposentadoria, representa o maior entrave à saída do funcionário. Tal fato, cuja gravidade é diretamente proporcional ao tempo de serviço prestado ao Estado, representa um bloqueio a uma aspiração de melhora, constituindo-se também numa justificativa conveniente para não enfrentar o temor da troca. De qualquer forma, o funcionário sente-se lesado em função da sensação de aprisionamento, atribuindo ao Estado a responsabilidade pela não realização de mais uma aspiração.

“e quando quer ver os frutos da retribuição está com 10-15 anos de serviço. Ele fala: vou jogar isso fora, meu Deus? Tenho família, tenho filhos, isto, aquilo. Para começar do zero? (homem, 25 a 40 anos, B1, nível médio).

“Acho um desaforo sair e deixar 22 anos para o Estado que dei na raça” (mulher, 25 a 40 anos, classe A, nível universitário).

Por certo, o problema é menor entre os que têm menos tempo de serviço. Estes procuram utilizar o funcionalismo como um trampolim para sua evolução profissional. Visualizam sua saída geralmente através de estudos.

“Quando terminar meu curso, vou procurar local onde possa ganhar mais” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

“Quem tem um pouco de estudo sai, porque é lógico, moça nova não fica, só ficam os mais velhos, mesmo assim vão estudando, tem muita ‘coroa’ estudante” (mulher, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2.° graus).

Outro fator de retenção do funcionário no Estado é sua imagem ambivalente do setor privado. Por um lado, conteria traços positivos de imagem tais como evolução profissional, salarial, maior reconhecimento pessoal, etc.; por outro, significaria menor segurança em função da possibilidade de ser demitido, do controle mais imediato e personalizado da quantidade e qualidade de produção, e maior exigência em termos de responsabilidade.

Pode-se dizer que o funcionário público encara o setor privado com um certo temor, havendo receio de se expor ao risco. O temor tornar-se-ia mais acentuado, quanto mais negativa a imagem construída sobre o funcionário público.

“Você fica quieta, vai provar que trabalha como, se já fizeram essa imagem do funcionário público? (mulher, 25 a 40 anos, classe B1, nível médio).

Esta auto-imagem com conotações negativas favorece ainda a percepção de uma dificuldade de ingresso no setor privado; este não aceitaria com facilidade a experiência do funcionalismo como adequada e suficiente.

“Quem trabalha para o Estado, funcionário no meu caso, que estou cansado de rodar agências, empresas, falou que é funcionário público, que trabalha na Secretaria da Educação ou qualquer outra é uma barreira que se põe à frente. Para firma particular, funcionário público não faz nada. Ora, o serviço que eu faço só interessa lá dentro” (homem de 25 a 40 anos, classe B1, nível médio).

Em geral, os homens dão a impressão de menor adaptação e acomodação ao funcionalismo que as mulheres. Mostram-se mais críticos e competitivos. Isto ocorre especialmente entre os de maior grau de instrução e os que ocupam cargos de maior salário e hierarquicamente mais elevados.

Nas classes mais baixas, homens e mulheres não vêem o setor privado da mesma forma. Ele definitivamente não é uma alternativa, transparecendo em muitos casos a consciência de imobilidade profissional para estas classes dentro ou fora do funcionalismo. Por outro lado, muitos aqui procuram alguma melhora relativa dentro do Estado. Acreditam que através da complementação da educação básica poderiam obter alguma promoção salarial.

“A única coisa que quero conseguir é minha classificação” (que o coloquem em folha como porteiro, ganharia Cr$ 200,00 a mais) (homem, 20 anos, porteiro).

“Eu quero estudar, para mudar de cargo, porque só tenho primário, porque se não estudo não vou sair dessa” (mulher, 19 anos, faxineira).

“A gente se acomoda, fica por uma coisa ou outra, buscando vantagens” (homem, 25 a 40 anos, classe B, 1.° e 2° graus).

“Artífice é artífice para o resto da vida, não tem direito de subir, não tem aproveitamento para ele” (homem, 40 anos, pintor).

Dependendo também da faixa etária em que o funcionário público se encontra, ele se mostra mais ou menos acomodado à instituição. Pessoas mais velhas apresentam maior acomodação e consciência de sua necessidade de estabilidade em todas as classes sociais, dentro do funcionalismo.

Além dos já mencionados, outros fatores dificultam a saída do funcionário do serviço público. Um deles seria o já comentado fato de o Estado ser o empregador monopolista de algumas profissões.

Há que se considerar também algumas especificidades do sistema de benefícios do Estado que se apresentam vantajosas em comparação ao setor privado. Dentre elas os funcionários destacam a assistência médica considerada superior à do INPS. E deixam transparecer que as promoções alcançadas por tempo de serviço não seriam recuperadas em um novo emprego.

Por fim, como conseqüência natural de uma permanência prolongada num determinado ambiente de trabalho, surgem laços afetivos que contribuem para fixar o funcionário. São constantes os comentários que refletem uma ligação afetiva com os colegas da repartição e com o serviço público. Com menor freqüência surgem demonstrações de ligação com a natureza do trabalho e/ou com o próprio público, como é o caso de alguns professores.

4. CONFLITO

A ausência de mecanismos compensadores ao esforço despendido leva à propensão a deixar a instituição. A tendência permanece ainda que tal esforço seja uma representação do funcionário. Neste caso, suas atribuições estariam aquém de suas capacidades, causando-lhe problemas em relação à auto-estima. Entretanto, a decisão de retirar-se dependerá, ainda, de fatores externos, como o mercado de trabalho, e das condições individuais. Estas podem ser objetivas, como formação profissional, experiência, etc., ou subjetivas, como a capacidade de correr riscos e adaptar-se a novas organizações. (Cf. Cerqueira, 1972)

Quando isto ocorre entre funcionários do setor privado, trata-se apenas da decisão de trocar uma organização por outra, submetida às mesmas leis gerais de mercado e, em quase tudo, guardando mais semelhanças que diferenças. Para o funcionário público a decisão é mais grave. Mudar de repartição, mesmo quando isto implica servir em outro Poder ou esfera administrativa, não é a rigor deixar a organização. Em sentido lato continua no funcionalismo, no Estado. Deixar a organização significaria passar para o setor privado.

As dificuldades que se colocam para o funcionário público em relação a deixar o funcionalismo, já apontadas no item precedente, o levam a conviver com um conflito permanente. De um lado, o funcionalismo enquanto instituição é percebido como representando segurança, sinônimo de emprego seguro. Isto parece constituir, grosso modo, o apelo mais relevante e genérico para os seus membros. Por outro lado, alguns aspectos problemáticos se contrapõem ao apelo da segurança.

A necessidade de segurança, quando explicitada, é um valor socialmente negativo, na medida em que se contrapõe à capacidade de correr riscos, de competir. No limite, segurança confunde-se com acomodação.

A instituição que oferece segurança deixa de oferecer outras recompensas ao esforço do funcionário, como salários compatíveis, evolução profissional, etc. Sua imagem de ineficiência junto ao público acarreta para o funcionário uma auto-imagem que tende a ser negativa.

Assim, tornar-se funcionário público significa, ao mesmo tempo, a satisfação da necessidade de segurança e a assunção dos aspectos problemáticos inerentes ao funcionalismo. Desta forma, se configura um conflito pela presença simultânea de aspectos desejáveis e indesejáveis.

Permanecer funcionário tende a ser percebido como uma opção com reflexos negativos ao nível individual e social: em troca de segurança ele se envolve com os aspectos problemáticos concomitantes. A cada momento este conflito está presente na medida em que vivencia e constata os elementos desta contradição mantendo a insatisfação de maneira contínua.

Além disso, este conflito permanece em aberto porque, de um lado, a necessidade de segurança não pode ser plenamente assumida como justificativa pelas conotações negativas que carrega, isto é, é difícil assumir que a segurança é o que se procura no emprego. De outro lado, o funcionário não percebe no próprio sistema empregador aspectos que possam se constituir em justificativas, ainda que racionalizadas, como altos salários, por exemplo.

Talvez para alguns seja possível assumir um ou ambos dos aspectos acima, o que lhes facilita a atenuação ou dissociação do conflito. Não é o caso da maioria, que só poderia buscar saída considerando os dois pólos da questão. Esta encontrará formas específicas de resolução ou desenvolverá comportamentos típicos do conflito como indiferença ou agressão. (q.v. Argyris, 1957).

Entre os primeiros há os que encontram no tipo de trabalho exercido, por considerá-lo socialmente relevante, a justificativa de sua escolha e permanência no funcionalismo. É o caso, por exemplo, de professores, médicos e outros. Evidentemente, em muitos casos, tal valorização é autêntica. Mas ela pode, ao mesmo tempo, estar a serviço do processo de resolução do conflito gerado pela necessidade de segurança.

Outros atenuam a necessidade da segurança apelando para condições específicas que o emprego público oferece. Assim é, por exemplo, o caso da mulher que necessita de um emprego de meio período em função do papel de dona de casa. Ainda pode ser este o caso das profissões que teriam um mercado de trabalho bastante reduzido fora do funcionalismo.

Em não conseguindo mascarar ou atenuar o conflito, este permanece forte. Isto gera comportamentos que vão desde a indiferença total em relação ao trabalho, até o ponto de tecer tais críticas à instituição, que ficaria difícil entender a sua permanência no funcionalismo, a não ser pelo peso implícito da segurança.

Ao lado destas manifestações agressivas há, de um lado, uma espera por melhorias e, de outro, uma preparação por vezes sonhadora e irreal para sair do serviço público em busca de melhores alternativas. Esta ação não se concretiza e os planos para sua execução não parecem coerentes pois, com o passar do tempo, a ligação com o funcionalismo torna-se mais forte, e a saída mais remota.

Se, para a maioria dos funcionários públicos, a instituição oferece apenas segurança e assumi-la significa assumir todos os aspectos negativos já mencionados, há uma pequena parcela que consegue obter da instituição, além da segurança, outras recompensas, tais como prestígio, poder ou facilidades na consecução de objetivos de trabalho pessoais.

De fato, o Estado oferece, em algumas circunstâncias, condições excepcionais em comparação com a empresa privada, mesmo para ocupantes de cargos considerados hierarquicamente médios ou inferiores. Quanto ao poder, ora se tem algum acesso aos centros de decisão (cargos de assessoramento e assistência), ora se exerce de fato algum poder sobre comunidades locais (delegados de polícia, investigadores, fiscais de renda). Os cargos de direção de unidades prestadoras de serviços como escolas, centros de saúde, institutos, etc. parecem conferir algum prestígio ao seu ocupante dentro e fora do funcionalismo.

Por fim, o Estado parece oferecer mais que a empresa privada facilidades para o trabalho de pesquisa científica não diretamente vinculada à produção.


 

CAPÍTULO 4

O FUNCIONÁRIO PÚBLICO E O PRIVADO

 

Nos capítulos precedentes foi possível detectar que as críticas que o funcionário público dirige à instituição tinham quase sempre como ponto de referência o setor privado. Particularmente no capítulo 3, analisamos o que o setor privado representa para o funcionário enquanto alternativa empregatícia. Mesmo quando tal decisão é com freqüência escamoteada pelos riscos que acarreta, o setor privado permanece como repleto de características positivas, erigindo-se em padrão ideal de organização. Nesse processo, o funcionário elimina do setor privado seus eventuais defeitos, transformando-o no paraíso perdido, tão perfeito quanto impossível de ser alcançado. Assumir seus riscos para desfrutar de suas benesses seria a conduta necessária aos candidatos a santos.

Agora preocupamo-nos com os principais traços diferenciados entre o funcionário público e o privado presentes em nossa amostra. Desde a comparação que ambos traçam dos dois tipos de empregador, muitos aspectos se tornam mais evidenciados, permitindo assim uma melhor compreensão do próprio funcionalismo. Ressalta-se, destarte, que as características presentes no universo do funcionalismo público são bastante específicas e peculiares. Ou seja, a forma como percebem a relação com o trabalho, e particularmente com o empregador, mostra-se muito diferenciada daquela observada nos comentários dos funcionários do setor privado.

O funcionalismo teria características de um sistema fechado e estático em contraposição ao setor privado que se configuraria como aberto e dinâmico. O Estado, como já vimos, bloqueia, em diversos níveis, a mobilidade de seus membros, seja internamente, seja por fixá-los ao próprio sistema, não permitindo a saída. A excessiva burocratização, a rigidez da hierarquia, a constante carência de recursos, e a predominância de procedimentos tidos como mais arraigados, reforçam seu caráter estático.

Ao contrário, o setor privado caracterizar-se-ia por uma maior mobilidade de seus membros em vários níveis: hierárquico, salarial e funcional. Tal mobilidade não se esgotaria sequer no âmbito de uma organização, uma vez que o funcionário privado poderia mudar de uma empresa para outra sempre que estivesse insatisfeito ou prejudicado. Essa mobilidade chegaria mesmo a ser utilizada como um instrumento de consecução dos objetivos da própria empresa, que fixaria comportamentos desejáveis através de promoções ou demissões.

Um outro aspecto diferenciador seria o risco pessoal decorrente do próprio processo de mobilidade, uma vez que deste implica uma certa instabilidade. Em outras palavras, haveria ao nível individual um risco maior do funcionário privado. Nesta medida, ele assumiria tanto a possibilidade de ser promovido como de ser demitido. Aumentaria, com isto, o nível de responsabilidade pessoal. Assim, o funcionário do setor privado tenderia, por conseqüência, a associar sua promoção ou demissão, não só à instituição mas também à sua capacidade e desempenho.

A empresa privada estaria sendo mais eficiente na utilização de mecanismos que transformam a necessidade de produzir em impulso interior, vinculando o valor do indivíduo ao seu êxito profissional. Sua tarefa passa a ser a de utilizar favoravelmente sua potencialidade, posto que é o principal responsável pelo seu progresso na empresa. Uma evidência disto é a constatação de que os funcionários do setor privado investem mais que o funcionário público em seu próprio treinamento. Buscam cursos mais diretamente relacionados ao aumento de sua produtividade, na certeza de que esta será reconhecida.

“Considero o Itaú uma escola. Inclusive esta semana separei circulares de cursos. Fazendo os cursos, já me deu alguma coisa que eu não sabia”... (homem, 25 a 40 anos, classe B1, nível médio).

“Para Banco e área administrativa é necessário que o cara tenha treinamento administrativo” (homem, 25 a 40 anos, classe B1, nível médio).

Por outro lado, no funcionalismo público, a não mobilidade, a estabilidade, o baixo risco trariam como conseqüência uma menor exigência e responsabilidade individual. Quando se acrescentam a este quadro os traços de imagem negativos percebidos na instituição, vemos que o funcionário público acaba por se sentir não responsável pela sua carreira dentro do funcionalismo, gerando isto um eventual não envolvimento com a tarefa que desempenha. A organização passa a assumir assim toda a responsabilidade de sua situação profissional. A ascensão dar-se-á por critérios alheios ao seu desempenho, por protecionismo ou casualmente quando ocorrerem oportunidades de substituição, criação de novos cargos de confiança, etc. Assim, o treinamento, por exemplo, não é encarado como instrumento de melhoria do desempenho. Antes, estuda-se para a obtenção de títulos que predispõem formalmente o funcionário para a candidatura a uma das oportunidades acima.

Um outro aspecto contrastante das duas estruturas, associado aos anteriores, refere-se ao processo de identificação com os objetivos da organização. Este seria baixo ou quase inexistente no funcionalismo, enquanto que no setor privado o processo de identificação estaria facilitado já a partir do fato de que o indivíduo assume maiores responsabilidades pelo seu progresso na empresa. Além disto, a empresa privada utiliza códigos, discursos, práticas de pessoal e símbolos que reforçam a identidade. No setor privado nota-se uma certa personalização das relações entre o burocrata privado e seu empregador o qual tem sido eficaz neste sentido.

Já no funcionalismo público, as características de impessoalidade dificultam a identificação. O poder difuso, atribuído à entidade abstrata que é o Estado, supõe uma gestão operacionalizada através da legislação, para muitos intrincada e minuciosa, que tenderia a facilitar a omissão e a irresponsabilidade.

“...o subordinado não conhece a figura de direito público que é o Estado, que é o patrão que ele não vê... então quem é o patrão? São leis: eles aplicam simplesmente as leis” (homem, 30-45 anos, classe A, nível universitário).

As próprios chefias estariam submetidas a essa legislação, bem como a sua relação com os subordinados. Há muito pouco que fazer quando se trata de premiar ou punir. Além disso, tais práticas revestem-se de tantas formalidades que diluem seus objetivos. O tamanho organizacional e o excessivo número de graus hierárquicos contribuem para dificultar o papel de representação da chefia.

Em alguns casos pode ocorrer um deslocamento da identificação, para com situações mais próximas, como a repartição, entendida como o grupo de pessoas que trabalham no mesmo local. A partir daí funcionam mecanismos de redução ao comportamento do grupo com tendências quase sempre conservadoras, de permanência da situação que propicia a sobrevivência da repartição e de seus membros.

Em muitos casos essa identificação de situação vai se transformando cada vez mais em sentimento de passividade. A ânsia de ser aprovado pelos demais, de não sobressair-se, o levam a ter medo de tomar decisões: se não toma decisões não erra, e se não erra, não é punido.

Todas as justificações e elaborações a respeito de sua inércia e improdutividade são conseqüência da função que desempenha, pertencem a essa função. O resultado negativo pode ser colocado por conta do grupo, não precisa ser assumido individualmente. A ausência do chefe dissolve uma relação que poderia ser mais pessoal (como parece ser o caso da empresa privada), e a busca da aprovação dos demais significa seu ajustamento a um modelo comum. Na medida em que ninguém cobra, os acertos também não lhe trazem recompensa material ou moral, contribuindo para acentuar a insatisfação em relação a um trabalho que já é pressentido como não valorizado.

“Na entidade privada é o patrão que vê. O patrão vê ele e ele vê o patrão. Então, aquilo que ele produz, o patrão exige que ele produza, aparece. No Estado, não” (homem, 30-45 anos, classe A, nível universitário).

Surgem ainda outros tipos de identificação: com o trabalho propriamente dito, ou com os objetivos sociais do mesmo. Entretanto, tal identificação não se transfere à instituição. É atribuída ou à personalidade do funcionário, ou ao tipo de profissão que exerce. Entre este grupo de funcionários não é raro encontrar-se algumas alusões à identificação com o trabalho “apesar do Estado”.

A permissividade seria ainda outro fator que dificulta a identificação no funcionalismo público. A empresa privada seria muito mais rigorosa em relação ao desempenho de seus membros, o que também pode ser interpretado como um atestado de capacidade. A permissividade do serviço público torna dispensável a contribuição de seu funcionário levando alguns a comportamentos como o descrito abaixo:

“Deveria ser um emprego e o tempo livre para quebra-galho. Passou a ser quebra-galho, e fora o emprego” (homem, 25-40 anos, classe B1, nível médio).


SEGUNDA PARTE

BUROCRACIAS


 

CAPÍTULO 5

BUROCRACIA E COMPORTAMENTO

 

1. ACEPÇÕES DO TERMO BUROCRÁTICO

De qualquer ponto de partida para um estudo dos fenômenos burocráticos, é preciso levar em conta a considerável quantidade de diferentes abordagens teóricas e um número ainda maior de contribuições empíricas. Classificar tais estudos seria tarefa por demais ampla para os limites deste capítulo. Principalmente quando sabemos que muitas classificações já foram feitas e, assim, torna-se cada vez mais difícil uma abordagem compreensiva do assunto.

Abarcando uma área tão vasta de investigação, os estudos sobre burocracia exigem, segundo Crozier (1972) uma definição da própria acepção que atribuem ao termo. De fato, para ficarmos apenas nos prolegômenos, o termo burocracia serviria tanto para designar a racionalização das atividades através do estabelecimento de regras impessoais em busca da eficiência, como o seu contrário, ou seja, uma distância cada vez maior entre meios e fins, numa palavra, a ineficiência. Ao fazer a distinção entre estas duas acepções contraditórias, Crozier admitiria uma anterior a ambas, e mais utilizada pela ciência política, segundo a qual:

“...burocracia é o governo por meio de escritórios, ou seja, um aparelho de Estado constituído por funcionários nomeados, não eleitos, organizados hierarquicamente e dependentes de uma autoridade soberana; o poder burocrático nesta acepção implica o reinado da ordem e da lei, porém ao mesmo tempo um governo sem participação do cidadão” (v. 1 — p. 12).

A primeira parte da afirmação acima é bastante clara e contém até mesmo indicadores para a análise de Estados burocráticos. Entretanto, a segunda parte permite uma distinção entre, pelo menos, dois tipos de Estados burocráticos. No primeiro caso, a burocratização do Estado resulta de um processo originado na sociedade, e é conseqüência da necessidade de articulação dos diversos interesses de grupos sociais em busca de expressão política. O outro caso apresenta uma burocratização anterior gerada no próprio Estado e imposta sobre a sociedade.

A administração pública pode representar ora um ora outro tipo de Estado. Além disso, enquanto organização, a ela também se aplicam as acepções anteriores de racionalidade ou disfuncionamento.

As principais características e circunstâncias históricas dos tipos de burocracia de Estado serão abordadas no próximo capítulo. Nesse, tentaremos uma descrição esquemática de algumas concepções teóricas e linhas de pesquisa sobre burocracia e comportamento em organizações latu sensu.

Nosso ponto de partida seriam as acepções sugeridas por Crozier, às quais acrescentamos um desdobramento da aplicável ao Estado. Se reduzirmos o processo de burocratização a uma de suas principais variáveis — o estabelecimento de normas — teremos esquematicamente:

 

Acepções do termo burocrático

SentidosÂmbito de Aplicação
 Sociedade e organização em geralEstado
OriginalNormalização Racional e EficienteNormatização resultante de articulação de interesses sociais
ContrárioNormatização excessiva, comportamento disfuncional e ineficiênciaNormatização feita pelo próprio Estado

 

Nossa proposta é a de que estas principais acepções podem ser consideradas como critérios para uma classificação experimental das contribuições teóricas e empíricas que serão abordadas neste e no próximo capítulo.

2. A BUROCRACIA RACIONAL

O sentido original aplicado de forma generalizada a qualquer tipo de organização seria, segundo Crozier, a acepção proveniente de Weber, e empregada sobretudo por sociólogos e historiadores.

“Para quem adota este uso, burocratização é a racionalização das atividades coletivas, manifesta entre outras coisas na concentração desmedida das unidades de produção e, em geral, de todas as administrações, e no desenvolvimento, dentro das mesmas, de um sistema de regras impessoais, tanto no que se refere a definição de funções e distribuição de responsabilidades, como ao ordenamento das carreiras” (idem, idem).

Para compreender o conceito weberiano de burocracia torna-se necessário, como sugere Mouzelis (1972), localizá-lo no contexto mais geral da teoria weberiana da dominação. Daí deriva o caráter histórico do conceito. Outro ponto fundamental, e de caráter metodológico, é que se trata de um tipo ideal, um constructo itálico que não será encontrado de forma pura nas organizações e na sociedade. A desatenção para estes pressupostos tem gerado, sempre segundo Mouzelis, a maior parte das dúvidas quanto a uma correta interpretação do conceito weberiano de burocracia.

Definido por Weber, o poder como a capacidade de imposição do arbítrio de uma pessoa sobre outra, chega-se à dominação sempre que as pessoas que impõem ou aceitam a imposição do arbítrio acreditam ser seu direito ou dever agir de uma ou de outra forma. A crença, assim, torna-se o primeiro elemento fundamental, determinando a legitimidade do exercício do poder, a relativa estabilidade dos sistemas de dominação, bem como retratando as diferenças básicas entre tais sistemas.

O segundo elemento fundamental é o do aparato administrativo, ou seja, pessoas e organizações que executam as ordens e servem de ligação entre governantes e governados.

Crenças e aparatos variam historicamente. Da combinação destas variações são extraídos pela teoria weberiana os tipos ideais de dominação: carismática, tradicional e legal.

Por enquanto, apenas esta última nos interessa. A crença que a sustenta é a da justiça das leis que seriam promulgadas a partir de um procedimento tido como correto. Estas leis visam, segundo Weber, “... a fins utilitários ou valores racionais — ou ambos” (1976:15). Estão integradas e hierarquizadas de forma coerente, pretendem obediência no âmbito de aplicação (organização, estado, área territorial) e seguem o princípio da universidade, ou seja, devem se aplicar de igual modo a casos semelhantes. Os governantes são, por sua vez, ocupantes de cargos e suas atividades estão subordinadas a uma ordem impessoal: seus poderes são, portanto, limitados por leis. A obediência é devida pelo governado apenas nesta qualidade e, ao governante, enquanto ocupante do cargo, “... dentro da esfera racionalmente delimitada de autoridade que, em termos de ordem, lhe foi conferida” (p. 16).

O aparato administrativo que corresponde ao tipo legal de dominação é o que Weber chama de burocracia. De forma simplificada, um conjunto de funcionários, distribuído em cargos hierarquizados e especializados, cujas funções são especificadas por normas impessoais, bem como a forma de relacionamento entre os mesmos.

Estas e outras características da burocracia foram bastante explicitadas por Weber e muitas delas mereceram estudos específicos posteriores. Acreditamos não ser o caso de se proceder à sua transcrição aqui. Além do texto já citado de Weber, pode ser visto o trabalho de Hall que oferece uma classificação de outros oito estudiosos do fenômeno (Hall, 1976).

Convém, entretanto, chamar a atenção sobre três delas que ora interessam mais proximamente. A primeira seria a da racionalidade, ou seja, ao considerar as decisões quanto a suas finalidades e quanto aos meios para atingi-las, a burocracia eliminaria todos os resquícios da tradição, bem como não comportaria neste processo as dimensões afetiva e emocional. A partir de fins tidos como utilitários, a ênfase seria dada na busca da eficiência, a escolha dos melhores meios para atingir tais fins. Tudo o mais seria sacrificado neste mister. Desta característica fundamental surgiriam outras como o recrutamento baseado na competência técnica, a divisão do trabalho, etc..

A segunda característica que gostaríamos de destacar é a da normatização que regula o exercício dos cargos burocráticos. Weber já fazia a distinção, sem contudo explicitá-la, entre regras técnicas e normas. Na nota de rodapé, acrescida na edição americana e assinada por Parsons (Weber, 1976: 17), pretende-se que Weber entenderia por “regra técnica”:

“...provavelmente, um curso prescrito de ação que visa, principalmente, a eficiência na execução de funções imediatas”. Já as “normas” seriam “provavelmente, regras que norteiam a conduta em outros terrenos que não o da eficiência. Evidentemente, em certo sentido todas as regras são normas enquanto prescrições para a conduta, sendo problemática a conformidade a elas”.

Assim, poderíamos afirmar que “normas” fariam parte do controle necessário à burocracia. Estariam dentro de sua dimensão de dominação. A distinção entre elas e as “regras técnicas” permite-nos inferir que, por um lado, a burocracia busca adequar comportamentos ora à lógica da eficiência imediata, ora à lógica da dominação e, por outro, que, havendo uma suficiente coerência entre tais normas, toda normatização serviria, em última instância, à dominação. Segundo Prates (1980), a teoria organizacional — e a própria moderna empresa industriai— ao propor a adequação de comportamentos às normas internas das organizações estaria conformando tais comportamentos ao sistema de controle macro-societal. Tais regras seriam apresentadas como sendo “racionais”, “modernas” e “eficientes”. Este processo seria facilitado pela crescente homogeneização das práticas produtivas e administrativas — conseqüentemente, das normas — entre estas grandes empresas modernas.

Outra característica a ser ressaltada é a que diz respeito à separação entre o funcionário da burocracia e a propriedade dos meios de produção e administração(6). O burocrata não é proprietário dos meios que utiliza e, assim, em princípio, recebe em dinheiro ou espécie pelos serviços que presta, os quais, por sua vez, são avaliados e controlados hierarquicamente. Esta característica confere à burocracia sua maior consentaneidade com o modo de produção capitalista. Se este, em sua forma pura, pressupõe a total separação entre força de trabalho e propriedade dos meios de produção, historicamente (vale dizer, no domínio do impuro) teria que procurar as formas organizacionais mais ágeis para tal desidério. Assim, a organização do trabalho na empresa capitalista tenderia a ser crescentemente burocrática (q.v. Salm, 1980). A destruição do pequeno produtor independente, se bem que ditada pela maior capacidade de acumulação da grande empresa, reforçaria tal tendência.

Se, por um lado, a separação entre o funcionário e os meios de produção confere tal contemporaneidade à burocracia, por outro, tal característica, isoladamente, não é exclusiva da dominação legal. De fato, ela coexistiu com formas tradicionais de dominação no chamado modo de produção asiático. O próprio Weber falaria de centralização burocrática no Egito e na China, a partir do controle da irrigação de terras pelo Estado, processo que propiciou a substituição de antigos senhorios locais por funcionários (Tragtenberg, 1974:27). A propriedade, aqui, é do soberano, e o que confere credibilidade ao sistema é a religião ou a tradição, daí surgirem expressões como Estado patrimonial-burocrático, burocracia teocrática, burocracia tradicional, etc..

3. DISFUNCOES DA BUROCRACIA

Segundo Crozier outra acepção da palavra burocracia corresponde ao seu uso vulgar e popular:

“...que evoca a lentidão, o peso, a rotina, a complicação dos procedimentos, a inadaptação dos organismos burocráticos, às exigências que deveriam satisfazer, e as conseqüentes frustrações nas pessoas que os compõem, e em quem deve utilizar seus serviços...” (1972 v.2:13)

Esta acepção difundiu-se de tal forma, que qualquer passo ou procedimento exigido a alguém, sem que para esta pessoa fique clara a sua razão, é imediatamente chamado de burocrático. Nesta acepção fica um pouco mais clara a predominância da burocracia pública sobre a privada, pois, quando se fala de proliferação de procedimentos burocráticos no seio das grandes empresas modernas, em geral refere-se, segundo Crozier, à tradição das burocracias de Estado e aos protestos que suscitam.

A transformação da burocracia, de aparato administrativo caracterizado pela eficiência, em seu próprio antônimo, deve-se, segundo Merton, ao que chama de disfunções da burocracia. Estas surgiriam a partir do comportamento que a burocracia exige do burocrata. Tendo como pontos de referência os conceitos de (a) “incapacidade treinada” de Veblen, (b) de “psicose organizacional” de Dewey, e (c) de “deformação profissional” de Warnotte, Merton chega ao seu de “super conformidade”, segundo o qual haveria algum exagero de adequar o comportamento do burocrata para cumprir as normas prescritas para seu cargo (Merton, 1970).

De um lado, é intrínseco à burocracia a confiança na adequação já resolvida entre meios e fins, através das normas, bem como a separação entre o estabelecimento das normas e a sua execução. De outro, os executores serão treinados diretamente e induzidos através de diversos mecanismos organizacionais (prêmios, promoção, carreiras, identificação, etc.) a considerarem as mesmas normas como aplicáveis a quaisquer circunstâncias. Tais mecanismos conduzem a um exagero na estrita observância das normas. A esfera afetiva, ausente no tipo ideal de burocracia, desloca-se para este campo do comportamento do burocrata. Cumprir normas é valor pessoal. Como conseqüência surgiriam, segundo Merton, o conservantismo e o tecnicismo.

Por outro lado, a crescente identificação entre os burocratas e a relativa ausência de competição entre os mesmos, levá-los-ia a desenvolver um “espírito de grupo” que passaria a preocupar-se mais com a defesa de seus interesses do que com o público ou seus superiores eleitos. O burocrata teria receio das coisas que pudessem alterar seu modo de vida, daí a resistência à mudança.

Merton lembra ainda a ênfase que é dada na impessoalidade, o que traz aborrecimentos para o público que desejaria uma atenção pessoal e individualizada.

Em resumo, o comportamento burocrático faria disfuncionar a burocracia tornando-a lenta em seus procedimentos, excessivamente formal, resistente às mudanças e hostil ao seu público e aos governantes eleitos. O exagerado apego às normas distanciaria o comportamento burocrático dos fins organizacionais trazendo, por fim, a ineficiência.

Seguem-se aos de Merton inúmeros estudos e contribuições feitos na área do comportamento burocrático, a partir do patamar oferecido pela teoria das disfunções. Tais estudos seguirão duas linhas relativamente distintas, a primeira com um enfoque predominantemente teórico, procurando explorar os conflitos existentes na teoria de Weber, e a segunda, com a predominância de estudos empíricos, procurando esclarecer aspectos do comportamento humano em organizações burocráticas. Tal distinção, enfatizamos, é meramente de enfoque, posto que uns e outros procurarão, em geral, referir-se mutuamente. A propósito, Crozier, apoiando-se em March e Simon, capta “uma ligação lógica entre a maneira de raciocinar em que se apóiam as diversas teorias sobre relações humanas e os fundamentos da teoria das disfunções burocráticas” (1972 v. 2:60).

Para o autor tais escolas colocam em xeque a idéia de que a eficácia de uma organização possa resumir-se na combinação de capacitação, impessoalidade e hierarquia do “tipo ideal”.

Na linha do que estamos chamando de estudos predominantemente teóricos sobre os conflitos na teoria weberiana a partir da teoria das disfunções — ou de alguma forma referidos a ela — estariam arrolados, por Crozier, autores como Bendix, Blau, Dublin, Selznick e Gouldner, dos quais os dois últimos apresentariam as teses mais precisas. Em síntese, Selznick preocupar-se-ia mais com a capacitação e a condição do burocrata especializado, e sua tendência a criar um espírito de casta, com a conseqüente busca de aliar-se aos interesses que se cristalizam em torno dos papéis fragmentados pela burocracia. Para impedir que tal processo caminhe além de seu controle, as organizações contariam, principalmente, com dois mecanismos:

“...o da cooptação, que consiste em que participem do poder de decisão os representantes dos interesses especiais e os dos grupos de especialistas; e a doutrinação ideológica, graças à qual se obtém um mínimo de lealdade em todos os degraus da escada” (Crozier, 1972:63).(7)

Já Gouldner, a partir da concepção weberiana de burocracia como uma organização bifacial — por um lado, baseada na especialização, por outro, na disciplina —, apoiando-se em Parsons, na distinção que faz entre a autoridade que repousa na atribuição de um cargo legalmente definido e a autoridade baseada na competência técnica, conclui que Weber teria descrito implicitamente dois tipos de burocracia. Para Gouldner,

“Um desses tipos pode ser chamado de forma representativa da burocracia, baseado nas normas estabelecidas por acordo, regras que são tecnicamente justificadas e administradas por pessoal especialmente qualificado... um segundo padrão que pode ser chamado de burocracia ‘punitiva’ é baseado na imposição de normas e na obediência pura e simples” (Gouldner, 1976:64)

Assim, as disfunções previstas por Merton e referidas ao caráter manifesto de racionalidade da burocracia podem transformar-se em funções latentes quando se referem ao seu caráter punitivo, baseado na obediência.

Por esta senda, podemos perguntar até que ponto o incentivo ao comportamento manifestamente disfuncional não seria um treinamento constante para a obediência pura e simples a qualquer tipo de ordem referida à esfera da dominação. Sentimentos e valores individuais sucumbiriam com maior segurança, sempre que algum conflito se delineasse. Nas corporações militares são corriqueiras as informações sobre ordens propositalmente sem sentido a serem executadas por recrutas e soldados. À eventual desobediência segue-se algum tipo de castigo. Assim, os aprendizes estariam sendo treinados para, quando for o caso, responder prontamente, sem crítica ou reflexão, a ordens que, em outra circunstância, conflitariam com seus sentimentos, valores, concepções e até com o instinto de sobrevivência, como matar e arriscar a vida, por exemplo.

Voltando a Goldner, a preponderância que atribui à burocracia-punição leva-o a questionar na teoria weberiana as contribuições que os métodos burocráticos fazem para a organização como um todo:

“Mas fornecem as burocracias veículos igualmente eficientes para a realização dos objetivos de todos os estratos da organização? As normas de fábrica, por exemplo, capacitam os operários a predizerem coisas de maior interesse para eles? Poder-se-ia ver que sob determinadas circunstâncias as normas de fábrica tornam normalmente difícil ou impossível a predição para os estratos pessoais mais baixos; porque dada a implícita mas penetrante suposição de que a ansiedade e insegurança são motivadores efetivos, levando invisivelmente os homens a obedecerem, os empregadores tenderão a deixar em estado rudimentar aquelas normas que reforçariam a predicabilidade e segurança dos trabalhadores” (idem: 67).

4. COMPORTAMENTO ORGANIZACIONAL

Outra linha de estudos, que pode ser relacionada à teoria das disfunções e dentro da qual predominariam as contribuições empíricas, é a caracterizada por uma preocupação centrada na unidade organizacional. Sua motivação básica será a de conhecer os processos, normas, procedimentos e formas administrativas gerais que acarretam o sucesso ou o insucesso das organizações em assegurar, ampliar ou manter sua sobrevivência, lucratividade, prestígio e privilégios dentro de padrões internos de consentimento e integração, implícitos ou explícitos, a este propósito. Assim, nesta perspectiva de estudos estes passam a ser os objetivos da organização em torno dos quais vai se constituir toda a estratégia administrativa, intencional ou não.

É neste contexto que o comportamento burocrático interessa menos como fenômeno social e histórico e mais como algo a ser adequado às exigências organizacionais.

Hugo Münsterberg, da escola de Psicologia da Universidade de Leipzig, e que pode ser considerado um dos precursores deste tipo de abordagem, assim define seus objetivos:

“...escolhemos três principais propósitos da vida dos negócios, propósitos que são importantes no comércio, na indústria e qualquer empresa econômica. Indagamos como podemos encontrar os homens cujas qualidades mentais os tornam mais apropriados para o trabalho que tem a fazer; em segundo lugar, em que condições psicológicas podemos obter a maior e mais satisfatória produção de trabalho de cada homem; e, finalmente, como podemos produzir mais completamente a influência nas mentes humanas desejadas nos interesses do negócio.”(8)

Esta vertente fortaleceu-se historicamente a partir da reação capitaneada por Elton Mayo e seus seguidores da escola de relações humanas aos métodos estão vigentes, particularmente na grande empresa industrial, cujos parâmetros poderiam ser localizados em Taylor e Fayol, respectivamente no que se referem à organização do trabalho e à administração da empresa. Tais métodos pressupunham uma total impessoalidade da organização, os funcionários reduzidos exclusivamente a seu papel. A partir de tais pressupostos, as preocupações reduzem-se ao incremento das condições de eficiência, tanto no que diz respeito à organização minuciosa do trabalho (organização e métodos, fluxos, tempo, etc.), quanto à rede de relações funcionais e hierárquicas relacionada — as funções administrativas, como são conhecidas hoje.

Vale registrar que a reação representada pela escola de relações humanas não será a primeira e nem a mais importante. Particularmente em relação ao taylorismo ou, em um sentido mais amplo, ao excessivo parcelamento da tarefa, as primeiras reações partirão dos próprios operários e, no que diz respeito à teoria, serão os marxistas, embora não exclusivamente, os que darão mais atenção a tais problemas(9). Por enquanto, interessa-nos mais diretamente a reação de E. Mayo por seu pioneirismo e representatividade em relação a um tipo de literatura que estamos querendo caracterizar.

Resumidamente, a escola de relações humanas pregava a importância de se considerar que, mesmo assumindo os papéis previstos na organização, as pessoas não se despem de suas característica individuais e grupais anteriores, que vão permear as relações previstas nas normas organizacionais, tornando mais complexas a rede de relações funcionais e hierárquicas. Os agrupamentos que ocorrem em organizações com base em critérios de afinidade, proximidade, interesse e outros que não os funcionalmente definidos constituem, dentro da organização formal, uma outra organização informal com segmentação e hierarquia próprias, e lideranças representativas de valores não referidos necessariamente à produção. Isto exprime certas necessidades humanas que não foram compreendidas, incorporadas e equacionadas pela prática administrativa anterior.

A partir de tais constatações, a escola de relações humanas passou a defender posições cada vez mais normativas, de respeito e incentivo às relações e aos grupos informais no sentido de motivá-los para a obtenção de um nível ótimo de satisfação (de necessidades) de tal forma que o consentimento fosse mais facilmente alcançado.

Se admitirmos uma homologia entre os aspectos descritivos do tipo ideal de burocracia de Weber e as posturas operacionais de Taylor e Fayol, teremos uma analogia simétrica entre as reações apresentadas respectivamente por Merton e Mayo a cada um dos níveis de análise dados como ponto de partida.

É por esta razão, provavelmente, que boa parte deste tipo de literatura sobre comportamento em organizações, mesmo quando consideradas as mais significativas discordâncias, se filia de alguma forma aos pontos representados pela teoria das disfunções, em um nível, ou à escola de relações humanas, em outro. Convém observar, entretanto, que as analogias acabam por aí, posto que as posições de Mayo tiveram menor consistência e mais curta história.

Não obstante, é a partir da escola de relações humanas, ou da crítica à mesma, que se pode localizar todo um campo de pesquisa que Strauss (1978:18) chama de Comportamento Organizacional. Apesar do nome

“...o Comportamento Organizacional dá relativamente pouca atenção ao comportamento das organizações como entidades — e refere-se primeiramente ao comportamento de pessoas dentro das organizações, especialmente dentro de organizações orientadas por tarefas e, ainda mais, orientadas pelo lucro” (p. 19).

A partir de contribuições vindas sobretudo da Psicologia e da Sociologia, e mais recentemente da Ciência Política, o Comportamento Organizacional constitui-se cada vez mais em campo próprio de pesquisa, em contraposição, por um lado, às posições normativas de Administração de Pessoal e Relações Humanas, e, por outro, aos estudos de Relações Industriais, influenciados mais proximamente pela Economia (p. 66). Classificando as contribuições anteriores como “psicológicas” (necessidades e motivação; estilo de supervisão e clima organizacional; e desenvolvimento organizacional) e “sociológicos” (transação e barganha; relações laterais; e estrutura, tecnologia e ambiente), Strauss constata conclusivamente que, se os primeiros estudiosos, através de diferentes meios e posturas, procuravam o “único melhor método” de supervisão ou organização, os estudos mais recentes tenderiam a enfatizar os aspectos contingenciais de cada método, examinando variáveis como estrutura, tecnologia, meio ambiente, personalidade e cultura e seu impacto sobre o resultante comportamento das pessoas (p. 48 a 54). Coerentes com as demais contribuições desta linha, as pesquisas mais recentes seriam então motivadas pelo objetivo, mais ou menos explícito, de procurar a melhor equação entre as variáveis acima e as respectivas formas de controle — de modo a alcançar-se o comportamento mais produtivo. Tal motivação seria provavelmente a responsável pela limitação básica deste tipo de teoria, espelhada na excessiva normatização a que tende. Prates (1980), ao criticar a teoria das organizações, empresta-nos a expressão necessária à análise de uma limitação em tudo semelhante.

“O legado weberiano à teoria da burocratização e controle organizacional não foi incorporado pela teoria das organizações. De acordo com as proposições básicas da Teoria Weberiana, o fenômeno da burocratização implica, como estratégia de controle, uma dupla face — eficiência técnica e eficiência do controle (dominação) — regida por uma mesma lógica: a racionalização da estrutura social. A teoria organizacional contemporânea, em suas ramificações mais centrais tem sistematicamente omitido, nas pré-definições deste problema, a face do controle como dominação, em favor de uma super-ênfase sobre a face do controle como critério de eficiência e “performance” organizacional. Esta postura, denominada “bias organizacional”, determinou, em grande parte, o tom normativo que caracteriza os estudos realizados dentro desta temática” (p. 11).

Há que se reconhecer, todavia, que muitas das pesquisas incluídas neste conjunto auxiliaram na superação do paradigma anterior representado por Taylor e Fayol, além de desfazer a postura eufórica dos seguidores da escola de relações humanas. Pesquisadores como Serzberg, Argyris, Likert e R. Mills, entre outros, ao sugerirem a importância de fatores como o enriquecimento da tarefa, participação nas decisões, etc., contribuíram de alguma forma para uma maior compreensão do fenômeno burocrático. Se, de um lado, suas conclusões levariam à proposição da chamada “democracia industrial”, cujos limites são observados por Dantas (1980), por outro, contribuíram, direta ou indiretamente, para uma efetiva melhoria nas condições de trabalho em algumas organizações. Ainda que seja difícil precisar o quanto tais melhorias são devidas ao interesse dos que detêm o poder organizacional (objetivando neste caso um aumento da produtividade e/ou uma maior conformidade da força de trabalho) ou às pressões e reivindicações dos trabalhadores, elas serão sempre fundamentais, posto que permanecem um dos mais importantes desafios da humanidade, em qualquer sistema sócio-econômico, como bem nos demonstra Friedman (1972:9-17).

Será oportuno esclarecer, neste ponto, que, em larga medida, a evolução das teorias de comportamento organizacional deve-se, contraditoriamente, a dois fatores mutuamente excludentes na aparência:

a) à codificação de uma prática dominante como forma de sua conservação e institucionalização em norma reguladora das relações de trabalho. Isto confere um caráter de naturalidade (inversamente à sua extensa arbitrariedade) a essas relações, que passam a ser, assim, objeto de “princípios” e “leis” de uma “ciência administrativa”;

b) à apropriação dos avanços e conquistas do trabalho na direção da melhoria das suas condições que são incorporadas como “inovações”, “antecipações”, indução de futuras adaptações por que terá que passar o sistema de trabalho nas organizações — e, portanto, definindo à teoria um papel de vanguarda da mudança.

Nesta dupla face contraditória se constitui o papel da teoria do comportamento organizacional, quer pela conservação das práticas dominantes quer pela incorporação das práticas emergentes como forma de adaptação estratégica.

Finalmente, a superação dos principais pressupostos das teorias de comportamento organizacional — e mais claramente de democracia industrial — ocorre, na prática, nos momentos em que compete a algum setor da organização decidir sobre o avanço das condições de trabalho e participação dos demais. Os impasses surgidos remetem a atenção de volta ao problema da dominação em cujo âmbito as prioridades serão definidas e as decisões tomadas.

5. RELAÇÕES DE PODER NA ORGANIZAÇÃO

As assertivas anteriores remeteram pesquisadores como Crozier a uma preocupação mais detida com o estudo das relações de poder dentro das organizações. Partindo do axioma segundo o qual

“toda ação cooperativa coordenada exige que cada participante possa contar com um grau suficiente de regularidade de parte de outros participantes”... conclui que “...toda organização, qualquer que seja a sua estrutura, quaisquer que sejam os seus objetivos e a sua importância, requer de seus membros uma quantidade variável, mas sempre importante de conformidade”. (Crozier, 1972, v. 2. pg. 65).

Tal conformidade será obtida pelas organizações até o começo do século XX, mediante a coerção direta, incluindo-se o uso do terror e da violência. Aos poucos, tais formas de coerção vão cedendo lugar a outras menos visíveis, representadas, de um lado, pelo desenvolvimento da capacidade das organizações modernas de prever, controlar e tolerar os comportamentos desviantes e, por outro, pela existência de mecanismos de formação — internos e externos à organização — de comportamentos conforme a disciplina exigida. Nestas condições é que se dá o moderno equilíbrio burocrático dentro do qual grupos e pessoas procuram desenvolver estratégias para a conquista ou manutenção do poder. Crozier localiza a luta destes grupos dentro de um sistema de equilíbrio que permite, ao mesmo tempo, a manutenção da conformidade necessária e margens de manobra onde os conflitos, pressões e barganhas podem ocorrer. Crozier aponta quatro traços essenciais de tal sistema:

a) a extensão do desenvolvimento das regras impessoais;

b) a centralização das decisões;

c) o isolamento de cada estrato ou categoria hierárquica e o crescimento concomitante da pressão do grupo sobre o indivíduo; e

d) o desenvolvimento de relações de poder paralelas em torno das zonas de incerteza que subsistem.

Quanto ao traço relativo ao desenvolvimento das regras impessoais, além do já descrito no tipo ideal weberiano — e cujas conseqüências comportamentais foram exaustivamente analisadas pela literatura posterior — Crozier acrescenta que as regras, ao mesmo tempo em que protegem o membro da organização do arbítrio de seus superiores e das pressões de seus subordinados, o levam ao isolamento e o privam de toda iniciativa. Liberado de qualquer vínculo de dependência pessoal, o funcionário, neste sentido, é quase tão independente como se não fosse assalariado.

As regras tenderiam a deixar previstas todas as relações entre membros, eliminando a necessidade de negociação. Entretanto, tal situação nunca é plenamente atingida. Restam áreas de incerteza que permitem aos protagonistas confrontar-se e exigir a negociação. (v.2, p. 73/74).

Por outro lado, a existência ou aparecimento de áreas não regulamentadas exigem decisões em cada caso ou a criação de novas regras. Isto leva ao segundo traço essencial: a centralização das decisões. O poder de legislar ou de arbitrar sobre a aplicação das regras existentes tenderá a ser exercido na cúpula da organização, onde, mais distantes das pressões dos eventuais afetados pelas decisões, conserva-se o ideal da impessoalidade e a coerência com os fins organizacionais. Este mecanismo traz como conseqüência uma maior rigidez, pois os que decidem não conhecem diretamente os problemas e os que executam e estão em contato direto com eles não têm o poder de experimentar adaptações e inovações, (v.2, p. 74-75).

O terceiro traço seria para Crozier uma conseqüência dos dois primeiros. A regulamentação visando suprimir o arbítrio dos superiores e as pressões dos subordinados cria, para cada categoria hierárquica, barreiras protetoras que impedem o estabelecimento de relações informais entre membros de estratos diferentes. A centralização das decisões reforça esta tendência. Ocorre, portanto, um isolamento de cada categoria hierárquica no interior das quais surge um espírito de casta e aparecem normas protetoras em relação às demais. Os indivíduos são pressionados no sentido de conformarem-se aos valores do grupo, e a aderirem e defenderem estas normas que se sobrepõem às regras impessoais da organização para interpretá-las e complementá-las.

O isolamento e a pressão do grupo desempenham ainda um papel assaz importante no “deslocamento de fins”. Permitem a cada estrato controlar perfeitamente o que é de sua incumbência e ignorar os fins gerais da organização. Assim, tendo em vista o êxito de suas negociações com o resto da organização, cada estrato deve pretender que sua função particular constitua um fim em si. Desta forma, o ritualismo de seus membros converte-se em um elemento importante da estratégia do grupo, pois, afirma-o como grupo diferente permitindo-lhe aspirar a que seus objetivos particulares se transformem em gerais, ou pelo menos que sejam objetivos intermediários decisivos para o cumprimento dos gerais.

Finalmente, por mais que se multipliquem as regulamentações e se centralizem as decisões, restarão sempre zonas de incerteza em torno das quais se desenvolve o quarto traço essencial do fenômeno burocrático para Crozier: as relações de poder paralelas e os conseqüentes fenômenos de dependência e conflitos.

“Os indivíduos ou grupos que controlam uma fonte permanente de incerteza, em um sistema de relações e atividades em que a conduta de cada um possa prever-se com antecipação, disporão de um determinado poder sobre aqueles cuja situação possa afetar-se por tal incerteza” (p. 78).

Quanto menor for o número de fontes de incerteza, melhor será a posição estratégica dos que as controlam e, conseqüentemente, maior o seu poder. Isto explica o fato de que nas organizações mais burocráticas é possível encontrar-se com maior freqüência o caso de funcionários de escalões inferiores que, ocupando uma posição estratégica, desempenham um papel decisivo na solução de assuntos importantes. Isto acarreta-lhes privilégios exorbitantes onde a regra seria a igualdade. Essas relações de poder paralelas podem desenvolver-se dentro da hierarquia normal, mas o mais provável é que se desenvolvam fora dela. Os “padrinhos” mais fortes colocam-se além do superior imediato, de preferência mais próximos dos grandes centros de decisão e, mais ainda entre os peritos — em nosso caso, assessores — cujas tarefas não podem ser especificadas e controladas de maneira precisa. Tais peritos conseguem, assim, um alto grau de autonomia, tanto maior quanto mais regulamentada e rígida for a organização.

Estes quatro traços essenciais, pelos problemas de comportamento que acarretam, tendem a favorecer o surgimento de novas pressões no sentido de maior impessoalidade e centralização.

Face aos problemas resultantes relativos ao deslocamento dos fins como a impossibilidade de relacionar-se satisfatoriamente com os clientes, de comunicar-se eficazmente com o ambiente externo, dificuldades para cumprir as tarefas previstas, diminuição da produtividade, etc., o único meio de ação visualizada pelos dirigentes consiste em elaborar novas regras e aumentar a centralização.

Por outro lado, as pessoas que estão submetidas às regras, ao invés de pressionarem no sentido de obter uma maior autonomia através da diminuição das mesmas, temem o que isto poderia significar em termos do aumento das relações pessoais de dependência. Por isso, procuram uma maneira de utilizar-se das disfunções a que estão submetidos para melhorar sua posição diante do público e dentro da organização, o que resulta numa pressão de preservar e aumentar a rigidez que as protege.

“A rigidez com que se determina o conteúdo das tarefas, as relações entre as tarefas e a rede de relações humanas necessária ao seu cumprimento, tornam difícil a comunicação dos grupos entre si e com o mundo circundante. As dificuldades que daí resultam, em lugar de impor a modificação do modelo, são usadas pelos indivíduos e pelos grupos para melhorar sua posição na luta pelo poder no seio da organização. Tal conduta provoca novas pressões pela centralização e pela impessoalidade, pois estas oferecem, em um sistema assim, a única solução visível para contrapor-se e neutralizar os abusivos privilégios que aqueles indivíduos e aqueles grupos adquiriram em semelhantes circunstâncias anteriores” (v.2, p. 81).

Crozier observa finalmente que este seu esquema de interpretação não se fundamenta — como seria o caso de Merton e seguidores — nas reações passivas do fator humano. Ao contrário, é a sua índole ativa que procura, de todas as maneiras e em todas ocasiões, obter o melhor proveito possível de todos os meios dos quais possa dispor.

6. CONCLUSÕES

Partimos das três acepções do termo burocrático constatados por Crozier, duas delas referentes à sociedade e às organizações em geral, e uma outra ao Estado. As primeiras guardam entre si uma contraposição que pode ser resumida em racionalidade e eficiência para uma, e ineficiência para a outra. Quanto à acepção aplicável ao Estado propusemos o seu desdobramento que resultou, por sua vez, em nova contraposição, a qual será objeto do próximo capítulo.

Foi proposto também que estas acepções poderiam ser consideradas como critérios para uma classificação esquemática de contribuições teóricas e empíricas ao estudo da burocracia. Neste capítulo foi possível examinar algumas delas que se aplicam à sociedade e às organizações em geral.

A partir do tipo ideal de burocracia proposto por Weber, centrada na idéia de racionalidade, da qual deriva o que Mouzelis chama de aspectos empíricos do modelo, chegamos às disfunções de Merton, dadas a partir de problemas relativos ao comportamento do burocrata. O comportamento disfuncional e suas conseqüências constituem de plano uma imagem correspondente à acepção vulgar ou popular de burocracia na classificação de Crozier.

De um lado, a disfunção burocrática contrapõe algumas das características empíricas do tipo ideal ao seu conceito central de racionalidade, dando o ponto de partida — pelo menos do ponto de vista teórico — a toda uma literatura aqui nomeada de Comportamento Organizacional, cuja preocupação tem sido a de procurar os melhores meios de adequar comportamentos a objetivos organizacionais. Tal literatura, além de não absorver em seus pressupostos o conceito de burocracia-dominação, como sugeriu Prates, incorre ainda na confusão anunciada por Mouzelis de isolar cada característica, de um modelo ideal construído para servir a uma análise histórica comparativa ampla dos sistemas administrativos.

De outro lado, porém, na esteira da teoria das disfunções ou bem próximo a ela, foi possível ampliar-se a compreensão do fenômeno burocrático através das análises de Parsons e Gouldner ao ressaltarem a distinção entre eficiência e dominação presentes na racionalidade burocrática ou as de Merton e Selznick chamando a atenção, entre outros, para fenômenos como o surgimento de novos grupos societários no seio — e por causa — da organização burocrática.

Finalmente, Crozier ressalta que o comportamento tido como disfuncional por Merton resulta de uma sempiterna luta de homens e grupos por melhores posições de poder. Mecanismos como a regulamentação e a centralização são constantemente reforçados para proteger estes mesmos indivíduos e grupos, de pressões, dependências pessoais, ou mudanças, que arriscariam as posições sedimentadas, a partir das quais traçam sua estratégia de obtenção de maior poder.

Quanto ao estudo contido na primeira parte, diríamos que o mesmo parte de uma concepção correspondente ao uso vulgar do termo burocrático. No capítulo 2, por exemplo, explicita-se até o excesso de burocracia como uma característica importante da organização pública. Ali entende-se também que esta seria a concepção dos próprios entrevistados.

A disfunção não é colocada como algo que se refere e se contrapõe ao tipo ideal weberiano de burocracia. Ela se dá ora na defasagem entre o comportamento do funcionário público e os objetivos explícitos da administração, ora na comparação entre um comportamento desviado na administração pública e o padrão representado pela empresa privada.

Quanto ao primeiro caso, foi possível observar algumas vicissitudes que levam o funcionário a desenvolver comportamentos distanciados das finalidades de sua repartição. Estas seriam, portanto, as responsáveis pela disfunção.

A excessiva preocupação em relação ao distanciamento entre objetivos organizacionais explícitos e os comportamentos desenvolvidos pelos funcionários, que perpassa toda a primeira parte, é característica, como vimos, dos estudos sobre comportamento organizacional, cujas limitações foram delineadas neste capítulo. Igualmente — e aqui a congruência parece ser ainda maior — é preocupação deste tipo de literatura o conhecimento dos fatores de satisfação e insatisfação dos elementos da organização. Quando tal interesse é justificado por impulsos terapêuticos, podemos afirmar então que se está partindo de um dos axiomas prediletos da escola de relações humanas, segundo o qual o elemento mais satisfeito será mais produtivo.

Outro fator que aproxima bastante o presente estudo da linha predominante em comportamento organizacional é a prevalência da explicação psicológica sobre as demais, de resto coerente com a preocupação terapêutica acima. Entretanto, o estudo procura outras explicações para o comportamento observado quando o relaciona à estrutura organizacional, às regulamentações — especialmente às referentes à administração de pessoal, aos usos e costumes que configurariam uma cultura ou subcultura específica, à tecnologia, e ao ambiente externo, encaminhando-se para as tendências mais recentes, ainda que dentro do escopo das teorias de comportamento organizacional.

O Estudo apenas se aproxima de esquemas explicativos mais abrangentes quando tenta a caracterização objetiva do funcionalismo público como grupo social específico em contraposição ao funcionário privado, buscando as relações entre cada tipo de comportamento e suas respectivas estruturas burocráticas. De passagem, oferece ainda — apesar de não se propor a isto — algumas evidências relativas a possíveis clivagens internas ao funcionalismo. Em ambos os casos, o esquema explicitativo de Crozier poderia auxiliar sobremaneira em uma melhor interpretação dos dados. A administração pública paulista apresentaria, em relação às empresas privadas presentes na amostra, um grau maior de rigidez burocrática traduzido por uma maior extensão do desenvolvimento das regras impessoais, uma maior centralização das decisões, etc. De um lado o solo estaria fértil para o desenvolvimento das relações de poder paralelas e o conseqüente surgimento das inúmeras “panelas” ou “igrejinhas”, o que explica a dificuldade de compreensão, por parte do funcionário comum, dos critérios de distribuição das poucas benesses organizacionais (ver referências a apadrinhamentos, protecionismo etc., principalmente nos capítulos 2 e 3). De outro, constata-se um grande isolamento de cada categoria hierárquica o que explica as não projetadas evidências de segmentação interna. As conseqüentes pressões dos grupos sobre os indivíduos no sentido de conformá-los aos valores grupais são também indicadas na primeira parte sob a forma de diferentes fontes de satisfação (prestígio, poder, o próprio trabalho, a repartição, etc.). Insere-se nesta linha de explicação o relativamente baixo índice de identificação do funcionário com os objetivos da organização. Como vimos, para Crozier, os objetivos da categoria hierárquica sobrepõem-se aos da organização, daí uma identificação maior para com o grupo. Em nosso caso, tal fenômeno aflora inequivocamente quando se menciona um “... deslocamento da identificação para situações mais próximas como a repartição, entendida como o grupo de pessoas que trabalham no mesmo local...” e, logo em seguida, “...mecanismos de redução ao comportamento do grupo com tendências quase sempre conservadoras...” (p. 47).

A partir de tais evidências, é possível supor que os círculos viciosos que levam a uma crescente regulamentação e centralização previstos por Crozier possam ser responsabilizados também pelo alto grau de diferenciação constatado entre o comportamento do funcionário público e o do setor privado presentes no estudo em questão.

Entretanto, ainda que se considere a capacidade conservadora destes círculos viciosos, os mesmos devem ter uma origem, um ponto de partida a ser localizado historicamente. Em nosso caso, tal tarefa é tão mais importante quando consideramos que (a) os dois tipos de organização estão situados em um mesmo contexto econômico, social, cultural, etc.; (b) não se trata de uma simples diferença entre duas organizações, mas de diversas organizações públicas de um lado, e algumas organizações privadas de outro, reforçando a configuração de tipos diferentes de burocracia para cada conjunto; e (c) que a burocracia privada representa tanto para seus membros como para os funcionários públicos — e nas próprias tentativas de reforma administrativa do serviço público — um padrão repleto de características positivas a ser alcançado.

Tais considerações remetem-nos, ao mesmo tempo, à busca de uma explicação para a coexistência em um mesmo contexto destes dois tipos de burocracia, e para o fato de que uma — a pública — sendo considerada, e considerando-se a si mesma, como ultrapassada, permanece praticamente incólume, apesar das diversas tentativas de aproximação, através de reformas.

Por mais explicativos que sejam, não serão apenas os fatores de ordem intra-organizacional de cada um destes tipos de burocracia os responsáveis por tantas e tais discrepâncias, mas qualquer coisa relacionada à quantidade principal de cada um dos tipos, ou seja, o fato de serem públicos ou privados e, conseqüentemente, do tipo de relação diferenciada que mantém com a sociedade como um todo.

Este tipo de explicação exige outros modelos além do oferecido por Crozier. Aliás, é o próprio autor quem demonstra a preocupação com os limites de seu método. Para ele,

“...uma perspectiva funcionalista é um momento necessário de qualquer investigação sociológica, (...) particularmente para uma disciplina em que a maioria dos problemas ainda está em sua fase exploratória. Porém, esta necessidade metódica comporta um risco: a passagem do método funcionalista, instrumento necessário de toda sociologia racional, para uma filosofia funcionalista, aprovação complacente das interdependências que tenham vindo à luz. É fácil deixar-se levar até essa complacência, crendo haver explicado definitivamente fenômenos que apenas foram descritos em seu estado momentâneo” (Crozier, 1972, v. 1:19).

De um outro ângulo, Lamounier (1966:88) chega a uma conclusão muito próxima a respeito da abordagem funcionalista quando conclui por sua capacidade de oferecer descrições fundamentais sem, entretanto, produzir explicações genuínas.

Finalmente, para Lapassade (1977:154), Crozier, ainda que avançando significativamente em relação a outros estudiosos do fenômeno burocrático, não apresenta uma perspectiva histórica. A burocracia continua como “natural” em sua essência.

Em nosso caso, a compreensão da coexistência de dois tipos de burocracia, orientados por valores diferentes e diferentemente posicionados em relação à sociedade — sendo que um deles serve diretamente à sociedade política — exige uma abordagem histórica.


 

CAPÍTULO 6

BUROCRACIA E BUROCRACIA

 

1. A BUROCRACIA PÚBLICA E A PRIVADA

No capítulo precedente sugerimos, a partir das três principais acepções do termo burocrático propostas por Crozier, que às mesmas correspondem diferentes abordagens teóricas e orientações para a pesquisa empírica. As duas primeiras acepções, aplicáveis às organizações em geral e à sociedade, serviram de roteiro para a abordagem de algumas daquelas principais teorias e orientações.

Por outro lado, foi proposto também um desdobramento da acepção que Crozier aplica ao Estado, distinguindo-se uma normalização resultante da necessidade de articulação entre os diferentes interesses sociais, da normalização imposta anteriormente pelo Estado (ver quadro no capítulo V).

Por fim, verificamos que algumas das abordagens teóricas aplicáveis às organizações em geral podem ser instrumentos úteis para a compreensão do comportamento de pessoas em organizações burocráticas. Entretanto, quando se trata de tentar explicar diferenças de comportamento entre funcionários do Estado e funcionários de empresas privadas situados no mesmo contexto sócio-econômico-cultural, são necessárias outras abordagens que nos auxiliem a entender, inclusive, a diferença entre esses tipos de organização.

Da clivagem proposta (sociedade e organizações em geral, de um lado, e Estado, de outro) é possível deduzir que as diferentes abordagens correspondentes dão-se também pela própria especificidade do objeto ao qual se aplicam. Assim, a preocupação por uma crescente burocratização da sociedade e de suas instituições, já demonstrada por Weber, bem como a que permeia os posteriores estudos sobre burocracia nas organizações, particularmente privadas, é diferente da que a ciência política demonstra em relação à burocratização do Estado. Esta última, além de refletir algumas das características da primeira, diz respeito ainda a uma mudança na qualidade do relacionamento entre o Estado e a sociedade civil. Em outras palavras, é necessário distinguir a burocratização do Estado e suas agências, enquanto organizações, da burocratização do Estado como expressão da sociedade política, com as conseqüentes restrições à participação dos cidadãos.

No primeiro caso, os processos não seriam muito diferentes quer tratássemos de organizações públicas ou privadas, enquanto que, no segundo, seriam específicos do Estado.

Esta última afirmação nos reconduz à necessidade de uma abordagem histórica da burocracia como as anteriormente cobradas por Mouzelis e Lapassade (ver Cap. 5).

De fato, a revolução industrial, ao alterar significativamente o panorama cotidiano e cultural do ocidente, introduziu, entre outras coisas, “...a generalização do molde organizacional”, fazendo substituir a organização política do feudalismo pelo estado burocrático moderno. Este guarda, enquanto organização, similitude e contemporaneidade com as demais organizações surgidas no bojo desta revolução descrita “...como uma burocratização no mundo e da vida” (Lapassade e Lorau, 1972:112).

Entretanto, já se tinha conhecimento da existência, no passado, de grandes estados burocráticos de tipo “asiático”, no Peru, no Egito, na China, em Bizâncio.

A diferença é que “...nesses impérios, as organizações envolviam apenas minoria da população, ao passo que o conjunto do povo permanecia no quadro de pequenas comunidades submetidas à escravidão política (A. Smith).. Na sociedade burocrática moderna, pelo contrário, todas as atividades essenciais são organizadas segundo um modelo racionalizado”.

2. BUROCRACIA PATRIMONIAL ANTIGA

Ao dissertar sobre o Modo de Produção Asiático; Tragtenberg (1974) afirma que o mesmo

“...surge na sociedade quando aparece o excedente econômico que determina uma maior divisão de trabalho separando mais rigidamente agricultura e artesanato, que reforçam a economia consuntiva (para Weber sinônimo de economia natural — N. do A.), à qual se sobrepõe o poder representado pelo chefe supremo ou uma assembléia dos chefes de família. Dá-se a apropriação do excedente econômico por uma minoria de indivíduos com retribuição à sociedade. Daí a exploração assume a forma de dominação, não de um indivíduo sobre outro, mas de um indivíduo sobre a comunidade. A necessidade da cooperação simples, onde a máquina tem papel secundário e a divisão do trabalho é incipiente para a realização de obras que sobrepassam as comunidades, vai requerer uma direção centralizada para coordenar seus esforços. Na medida em que isso se dá, unido à eficiência do trabalho, é possível a transformação do sentido funcional da autoridade superior em instrumento de exploração das comunidades subordinadas, quando se dá a apropriação da terra pelo Estado, que mantém a propriedade comunal. O indivíduo continua na posse da terra como membro de sua comunidade particular”(p. 26).

Para o autor, é no modo de produção asiático, sob a forma de dominação burocrático-patrimonial, que a burocracia surge como classe dominante, (detentora dos meios de produção) e elemento de mediação com a sociedade global, exercendo assim o poder político. Concretamente, é com a invenção da escrita nas primeiras cidades sumerianas que se desenvolve, em torno do rei, uma burocracia para gerir-lhe a fortuna, organizada hierarquicamente sob a forma de pirâmide, até as vilas, cujos prefeitos são nomeados pelo rei. “Os assuntos da sociedade são considerados menos importantes que os do príncipe que encarna o Estado no plano político” (p. 30).

A partir daí, Tragtenberg arrola uma seqüência histórica das formações onde predominou o modo de produção asiático, que nos permite observar, ao mesmo tempo, as vicissitudes da consolidação daquele tipo de burocracia, e algumas das características que, sendo comuns às diversas formações, integram o modelo.

Tais características guardam semelhança com o conceito weberiano de dominação tradicional em sua forma patrimonial como interpretado por Mouzelis (1972). Mantendo a distinção entre os dois elementos fundamentais de qualquer tipo ideal de dominação (crença e aparato administrativo), no tipo tradicional, a legitimação do poder vem da crença na eternidade da ordem social, na justiça e na pertinência da maneira tradicional de agir. O líder tradicional é o Senhor, que comanda em virtude de seu status de herdeiro. Suas ordens são pessoais e arbitrárias, mas têm seus limites fixados pelo costume. Seus súditos obedecem-no seja por lealdade pessoal, seja por respeito a seu status tradicional. Quando este tipo de dominação se estende sobre uma população e um território relativamente grandes, o aparato administrativo decorrente pode tomar duas formas ideais: a patrimonial e a feudal.

No primeiro caso, os funcionários do aparato são os servidores pessoais do senhor — empregados, parentes, favoritos, agregados, etc. — habitualmente dependentes deste. No segundo, há uma maior autonomia de cada instância do aparato. Seus membros, habitualmente, dispõem de seus próprios domínios administrativos e não são dependentes de seus superiores no que tange à remuneração e à subsistência. Os vassalos são aliados por uma espécie de contrato, expresso, em geral, sob a forma de juramento de fidelidade.

À descrição acima, a abordagem mais genética de Tragtenberg acrescenta, além de uma congruência entre o modo de produção asiático e a burocracia patrimonial, outras características politicamente relevantes, como a contribuição desta burocracia, em muitos casos, para a formação do Estado.

Através da organização e utilização em larga escala do trabalho humano, o Modo de Produção Asiático desenvolveu grandes obras — desconhecidas pelo feudalismo — como irrigação, vias e meios de transporte, silos para armazenamento, etc. Tais empreendimentos e a organização necessária à sua execução e manutenção propiciaram à burocracia as condições para a liquidação da autonomia das cidades, o controle ou extinção das aristocracias e dos pequenos senhores de terra, e a submissão das corporações e das profissões em geral.

As religiões que atribuem um caráter de divindade ao soberano e elegem como valores a obediência, a submissão, o culto aos antepassados, etc., facilitaram a interação dos impérios e a imposição de uma ordem única, embrião do Estado. Isto se traduz, por exemplo, no caso da China — tido como forma acabada do M.P.A. (p. 32) — no monopólio e/ou tributação de diversos artigos de consumo em massa, no monopólio da educação, na regulamentação das construções públicas e privadas e dos principais ritos. Também foi na China que a burocracia patrimonial adquiriu um alto grau de autonomia em relação ao próprio soberano, com “...o direito de destituí-lo do cargo, direito esse delegado pelo céu ao povo revoltado, conforme fórmula datada de 372-289 A.C.”. A burocracia passou a ser “...intérprete dos signos de descontentamento popular” (p. 33). Esta autonomia é reforçada ainda pelo recrutamento por meio de exames, e pelo sistema de títulos. Tais mecanismos, aliados, de um lado, às restrições à educação(10) e, de outro, às restrições à hereditariedade, explicam, a um tempo, a ausência de mobilidade inter-classes e a impossibilidade do surgimento de feudos. Numa palavra, a consolidação da burocracia patrimonial como classe autônoma, impermeável e permanente.

Para Tragtenberg, foi Hegel quem operacionalizou, no plano lógico, o conceito burocracia, tanto em nível do Estado, como da corporação privada. Sua concepção teria origem, direta ou indiretamente, nas concepções pioneiras de Aristóteles, Maquiavel, Hobbes e Montesquieu (p. 45). Da análise destas concepções, e das posteriores de Stuart Mill, de Marx, e do próprio Hegel (também citadas por Tragtenberg), apesar das peculiaridades de diferenças de conteúdo ou de ênfase, é possível extrair uma congruência entre as mesmas, no que diz respeito a:

a) O papel do Estado na economia

Trata-se de um modo geral de uma presença mais constante do Estado como empreendedor — monopolizador das principais atividades econômicas e regulador absoluto das demais. Dá-se a apropriação do excedente econômico pelo Estado, bem como há uma dependência da classe comerciante em relação à burocracia (Mills). Marx acentua a importância das grandes obras hidráulicas e a pilhagem interna e externa pela burocracia como origem dos recursos para construí-las. Montesquieu nota a ausência da propriedade privada na terra.

b) O tipo de aparato administrativo

Este é representado por uma burocracia tradicional, relativamente extensa, hierarquizada e normalizada. Organizada para gerir os negócios do soberano, que são ao mesmo tempo os do Estado, ela adquire maior autonomia e permanência quando passa a representar o interesse geral (Hegel) e quando utiliza mecanismos que restringem a ação pessoal do soberano (caso da China). A burocracia impõe-se sobre as demais classes, incipientes e fragmentadas.

c) Os sistemas de legitimação

Os sistemas de legitimação são tidos como eficientes e permanentes e colocam o Estado como ordem superior e absoluta, senão única. A legitimação baseia-se na tradição e conta com o apoio de religiões que divinizam o monarca, e cuja estrutura confunde-se ou subordina-se à do Estado. Na concepção socialmente predominante, o Estado aparece como representante do interesse geral e a burocracia como mediadora (principalmente para Hegel). Aristóteles admitiria uma tendência natural dos povos bárbaros e asiáticos à servidão. Montesquieu atribuiria tal índole a razões climáticas.

d) O caráter do Estado

O poder é exercido de forma tirânica e arbitrária, apesar de sua base legal e voluntária, o que distingue esse regime das tiranias resultantes de conquistas (principalmente para Aristóteles).

O Estado impõe-se como ordem superior sobre as classes dominantes (aristocracias) ou conta com sua inexistência. Para Maquiavel, ao contrário dos principados ocidentais, não existiria entre os principados orientais uma classe social dominante que aceita ou rejeita certas formas tirânicas. Para Hobbes, os povos bárbaros adquirem seu déspota, ao contrário do ocidente onde a classe dominante institui o poder do Estado.

Tais caracterizações do despotismo asiático, Estado oriental, modo de produção asiático ou burocracia patrimonial, fazem ainda ressaltar a diferença entre esse tipo de organização política e outros. Nesta distinção, colocaríamos, de um lado, formas primitivas pré-estatais, e as tiranias carismáticas e usurpadas e, de outro, impérios ocidentais escravagistas que contavam com poderosa aristocracia e conviviam com a propriedade privada, e o Estado feudal. Nestes últimos, o Estado tem seus poderes limitados pela existência da aristocracia hereditária, pelo enfeudamento, pelas corporações privadas, pela relativa pujança dos interesses setoriais, e pela autonomia da organização religiosa, entre outros.

3. FEUDALISMO E PATRIMONIALISMO MODERNO

Provavelmente, é na comparação com o Estado feudal, principalmente na forma como se desenvolveu na Europa Ocidental, que ficam mais nítidas as diferenças a que nos referimos anteriormente. Além do que já foi dito, acrescente-se a multiplicidade de ordens que se entrecruzavam, cada uma delas com seus valores e códigos: o rei, o senhor feudal, a corporação, a Igreja, a cidade, etc. Considerando-se ainda que o âmbito de jurisdição territorial de cada uma era bastante diverso — e, em alguns casos, impreciso — só se poderia supor sua coexistência mediante a celebração de inúmeros contratos. A alternativa a isto seriam as constantes guerras que, por sua vez, exigiam alianças e, não raro, resultavam em novos contratos.

A própria relação rei/suserano/vassalo era, como já visto, uma relação basicamente contratual, sujeita portanto a alterações. Ainda que a quebra de um juramento de fidelidade pudesse significar quase sempre um alto custo, ela ocorrerá com certa freqüência, como concretamente sugerem os inúmeros rearranjos entre senhores feudais e reis durante as guerras medievais.

Em resumo, o Estado Feudal seria virtualmente um Estado contratual, se comparado ao despotismo oriental descrito por Tragtenberg. Tal virtude decorre basicamente da existência de fontes autônomas de poder em relação ao Estado central, com as quais este terá que negociar. Tais fontes abrangem não só os direitos hereditários da nobreza feudal sobre a terra, quanto a existência de interesses organizados fora da estrutura do Estado: além de seus limites territoriais, como era o caso da Igreja Católica, ou no seio da sociedade civil, como as corporações, por exemplo.

Ao estabelecer a distinção entre as duas formas típico-ideais de dominação tradicional (patrimonialismo e feudalismo) Weber afirma:

“a estrutura das relações feudais pode ser contrastada com a ampla gama de discricionaridade e correspondente instabilidade das posições de poder sob o regime de puro patrimonialismo. O feudalismo [ocidental] [Lehensfeudalitat] é um caso marginal de patrimonialismo que tende para relações estereotipadas e fixas entre senhores e vassalos. Da mesma forma que a unidade doméstica e seu comunismo patriarcal se transformam, na época da burguesia capitalista, em empresa associada baseada em contratos e direitos individuais específicos, assim também as grandes propriedades patrimoniais tendem a conduzir aos vínculos igualmente contratuais das relações feudais na idade da Cavalaria Militar”.(11)

Ao comentar a citação acima, S. Schwartzman (1975) nota que ... “o que diferencia patrimonialismo e feudalismo é um elemento de poder, consubstanciado na existência ou não de um contrato de fidelidade e relações recíprocas entre superiores e inferiores, líderes e liderados, senhores e vassalos” (p. 39).

Em seguida, Schwartzman chama a atenção para o fato de que Weber estaria sugerindo, neste texto, uma evolução dos sistemas patrimoniais para os feudais, estes resultantes de uma desagregação daqueles, evolução que estaria inspirada na experiência européia vivida após o fracionamento do Império Romano.

“O que fica de fora — e nos traz ao centro de nossas preocupações — é a evolução dos grandes estados patrimoniais que não se fracionaram, para os quais o problema da manutenção do poder patrimonial é de fundamental importância” (idem, idem).

A preocupação central em Schwartzman, em relação ao poder patrimonial, baseada na realidade das formações deste tipo que não evoluíram para o feudalismo, encontrará ressonância, por exemplo, em abordagens como a de Tragtenberg, em relação ao crescimento e cristalização das modernas burocracias de Estado, particularmente nos países do Leste Europeu e China Continental.

O tema amplia-se quando consideramos, principalmente, a possibilidade de convivência entre relações feudais e patrimoniais mesmo em períodos e formações onde as primeiras predominaram. Isto teria garantido uma sobrevivência de formas de poder patrimonial na Europa durante todo o período em que predominou o feudalismo, e o seu ressurgimento ainda que parcial sob a capa de algumas Monarquias Absolutas no início do período Moderno.

Outro corolário é dado pelo fato de que o feudalismo não se desenvolveu com a mesma intensidade e as mesmas características em todos os países europeus. Numa primeira clivagem é possível separarmos as Ilhas Britânicas do restante do Continente, pois neste o sonho pela restauração do Império Romano do Ocidente nunca se desfez. Posteriormente, é possível destacar deste conjunto a Península Ibérica — particularmente Portugal — onde foi prematura e eficiente a constituição de governos centralizados, cercados de uma burocracia que impunha os interesses do soberano e do Estado sobre os típicos da multiordenação feudal.

É certo que esta burocracia patrimonial moderna já não possui muitas das características tradicionais dos antigos impérios patrimoniais. Em boa parte a tradição vai cedendo lugar à codificação característica dos Estados modernos. Além disso, no que diz respeito à consolidação do poder, alguns contratos são necessários, como, por exemplo, os do rei com a burguesia mercantil.

O que julgamos importante notar é o retorno de uma burocracia que responde pelo interesse geral, e que participa do poder com base em tal identificação, e não mais por direitos hereditários sobre porções de terra. Isto nos conduz, finalmente, a outro corolário da preocupação central manifesta por Schwartzman, ou seja, a permanência de relações patrimoniais de poder em formações economicamente distintas, sob a égide de outros sistemas de legitimação e sob o feitio de diferentes estruturas políticas formais.

Tal tese será central também na obra de Faoro (1976) que a postula da seguinte forma:

“O capitalismo politicamente orientado — o capitalismo político ou o pré-capitalismo —, centro da aventura, da conquista e da colonização, moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência, o capitalismo moderno de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo — liberdade de negociar, de controlar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi” (p. 733).

Este patrimonialismo que resistiu a enormes transformações sócio-econômicas, gerou, no dizer de Faoro, um estamento burocrático, que apesar de não contar com a hereditariedade das funções, mantém-se como comunidade, dentro da qual aquelas funções são cambiáveis, garantida a permanência do mesmo estrato nas posições de poder.

O patrimonialismo moderno não será exatamente o mesmo dos antigos impérios asiáticos. A tradição já não tem tanta força legitimadora e o Estado aprende a conviver com interesses privados que surgem fora dele. O que se mantém intacto, entretanto, é o tipo de relação de poder que o caracteriza, como pode ser visto na definição de Schwartzman:

“Nos sistemas patrimoniais tradicionais não havia diferença entre as esferas política e econômica da sociedade. A ligação íntima entre estes aspectos é também uma característica predominante de sociedades em que o aparato estatal é grande e multifuncional e antecede, historicamente, ao surgimento de grupos de interesse autônomos e articulados. Nestes contextos, a busca do poder político não é simplesmente feita para fazer prevalecer esta ou aquela política, mas visa a posse de um patrimônio de grande valor, o controle direto de uma fonte substancial de riqueza” (1975:20).

4. AS DUAS BUROCRACIAS DE ESTADO NA EUROPA E A NOVA BUROCRACIA PRIVADA

Enquanto Portugal e Espanha definiam-se prematuramente por governos centralizados e burocráticos, em condições que serão analisados mais à frente, o restante do continente europeu permanecia atado às instituições feudais que dificultavam a unificação de seus Estados. Algumas destas instituições, arraigadas de tal forma como fontes autônomas de poder, resistiriam à Monarquia Absoluta que se impunha, e conviveriam com ela durante todo o período moderno. No início do processo revolucionário francês — basicamente contra uma Monarquia Absoluta amadurecida e que já demonstrava sinais de cansaço histórico — algumas das reivindicações dos revoltosos se referiam a privilégios medievais da aristocracia feudal. Mais eloqüentes talvez sejam os exemplos dados pela Itália e Alemanha que só se unificaram no período contemporâneo.

Não só a defasagem temporal na constituição dos Estados modernos na Europa, mas também as vicissitudes sob as quais os processos ocorreram em cada caso condicionaram o tipo de burocracia que surgiria em cada um deles.

Na impossibilidade de nos debruçarmos à análise de cada caso, limitar-nos-emos a uma descrição sucinta e tipificada das linhas gerais deste processo.

Uma primeira clivagem distinguiria Portugal e Espanha dos demais países europeus, como Estados que se constituíram no início dos tempos modernos, em função do mercantilismo e da expansão ultramarina.

Neles o feudalismo nunca foi tão arraigado como no restante da Europa, mesclado com as instituições e a cultura patrimonial árabe, palco que foram durante boa parte do medievo das inúmeras investidas, e dos duradouros domínios territoriais, por parte do Império Muçulmano. O próprio reino de Portugal, forjado nestes e em outros embates — e por causa dos mesmos — como bem nos demonstra Faoro (1976:3-32), bem cedo limitaria as pretensões e es direitos de sua aristocracia rural sobre a terra. Esta será sempre uma concessão do rei ao senhor que a domina, mas não a governa.

Estes dois países, que já terão sua unidade garantida no alvorecer da Idade Moderna, terão condições — particularmente Portugal — de serem os pioneiros da expansão ultramarina. Como nos sugere Novaes (1977) esta exige esforços e recursos que só os governos centralizados terão condições de mobilizar. Neste processo — e nos lucros que daí resultam — tais governos se fortalecem por sua vez. Na aliança com a burguesia mercantil, forjada por tais empreendimentos, a Coroa terá predomínio, através do monopólio do comércio colonial. O empreendimento colonial — mercantil ou agrícola — será quase sempre uma concessão da Coroa.

Em síntese, a Península Ibérica substituiu prematuramente suas instituições feudais débeis, por um patrimonialismo real forjado nas guerras e no convívio com a cultura muçulmana. Este seria condição da posterior expansão ultramarina que, por sua vez, reforçaria o poder real e permitiria o desenvolvimento de uma burocracia de Estado com características patrimoniais.

Diferentemente, nos demais países europeus, a estabilidade das instituições feudais retardou a constituição das Monarquias Absolutas e forçou a uma convivência entre ambas. Os interesses feudais e outros fazem-se representar através das assembléias estamentais, e sobreviverão, pelo menos, até o século XVIII. A burocracia que surge em torno do rei conserva muitas de suas características aristocrático-feudais: a hereditariedade dos títulos; o domínio sobre porções de terra; o direito a um tratamento não diretamente hierárquico-funcional. Mantidos os privilégios e interesses individuais pré-burocráticos de seus membros, dificultou-se a homogeneização desta burocracia. As chamadas guerras religiosas em França — fossem quais fossem seus resultados — demonstram a capacidade de persistência da nobreza de espada feudal, e as dificuldades da nobreza togada burocrática de impor-se como classe hegemônica.

A segunda clivagem diz respeito à forma pela qual os países onde o Estado Moderno se constituiu posteriormente resolveram seus problemas de representação política. Aqui a Inglaterra, como caso típico, se distinguirá dos demais.

Huntington (1972:92-130), ao comparar os processos de modernização política da América e da Europa, admite três pautas principais para este processo: a racionalização da autoridade; a diferenciação de estruturas; e a expansão da participação política.

Quanto à racionalização da autoridade, processo que ocorreu na Europa durante o século XVIII, teria consistido na substituição da ordem pluralista medieval pela do Estado Moderno. Ela resultou na concentração do poder nas mãos do monarca, no continente, e no Parlamento, na Inglaterra, como representantes do interesse geral da nação.

No que diz respeito à diferenciação de estruturas, Huntington nota que na Inglaterra, mais que no continente, deu-se o surgimento de corpos governamentais especializados, subordinados de uma forma ou outra ao poder político, delimitado, por sua vez, com clareza crescente, entre o Monarca e o Parlamento.

Finalmente, a expansão da participação ocorreria por último devido à relativa persistência de interesses divergentes (locais, regionais, étnicos, sociais e religiosos), alguns dos quais remanescentes da antiga ordem feudal. Seu início se dá a partir da reação das antigas assembléias de estamentos feudais e foi mais intensa onde o absolutismo menos poderoso não destruiu tais instituições. Isto teria ocorrido, segundo Huntington, apenas na Inglaterra e na Suécia. Nos demais países, ao contrário, a Monarquia Absoluta, ao destruir as formas de participação feudais, fez com que o ressurgimento das pressões por participação fossem sempre fator de instabilidade.

Do que foi visto poderíamos concluir que a destruição prematura dos interesses múltiplos da ordem feudal resultou em governos burocrático-patrimoniais, enquanto que a permanência daqueles interesses, seus rearranjos com a Monarquia Absoluta, e a posterior expansão destas incipientes formas de participação resultaram em governos que se mostrariam mais aptos posteriormente a experimentar um alto grau de desenvolvimento econômico e político. Para Schwartzman,

“As ‘sociedades hidráulicas’, os antigos impérios burocráticos e centralizados estavam muito acima da Europa Medieval segundo quase todos os padrões de desenvolvimento, mas é como se eles não tivessem podido se adaptar à moderna sociedade industrial. Enquanto isto, países com passado feudal (sendo o Japão o único país asiático que está mais próximo disso) foram muito mais capazes de adotar formas modernas e eficientes de organização. Portanto, e contrariamente ao que é algumas vezes sustentado, o feudalismo não parece ter constituído historicamente um fator de subdesenvolvimento, mas é a sua ausência, e o predomínio de um Estado burocratizado e excessivamente grande, que parece ter sido um dos seus determinantes (1975:38).

O que foi dito acima sobre as sociedades hidráulicas aplica-se de um modo geral a todas as sociedades em que o aparato estatal, grande e multifuncional, antecede historicamente ao surgimento de grupos de interesse autônomos e articulados. De um modo particular, podemos considerar ser este também o caso de Portugal e Espanha, se considerarmos seu comportamento econômico e político posterior. E, da mesma forma, deve ser esta a verdade dos Estados que surgiram dentro do sistema colonial capitaneado pela Península Ibérica, em boa parte pelas vicissitudes deste próprio sistema, como veremos.

Por enquanto, interessa-nos concluir que a forma pela qual se constituíram os Estados modernos na Europa é o ponto de partida para o entendimento dos tipos de burocracia pública e privada que predominaram em cada um deles.

Uma classificação esquemática permitiria o estabelecimento de um continuum em cujos extremos estariam, de um lado, Portugal e Espanha, com suas burocracias patrimoniais, representantes do interesse geral e, de outro, a Inglaterra, com uma burocracia funcional subordinada aos corpos políticos representativos, encarregados da articulação dos interesses setoriais autônomos.

O fundamental, entretanto, é que a qualidade da burocracia não está em sua organização interna, práticas, rotinas, etc., mas na forma como se subordina a regimes políticos mais ou menos representativos. Faoro faz uma distinção entre a burocracia “...camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração (...) um aparelhamento neutro, em qualquer tipo de Estado ou sob qualquer forma de poder... e o estamento burocrático (ou estamento político) (...) que nasce do patrimonialismo e se perpetua noutro tipo social, capaz de absorver e adotar as técnicas deste como meras técnicas”. O primeiro tipo será “... a expressão formal do domínio racional, própria ao Estado e à empresa modernos...” (1976:738).

É esta burocracia instrumental, que vai do Estado Moderno do século XVII para as grandes corporações capitalistas do século XIX, a burocracia característica da “revolução anteriormente sugerida por Lapassade e Lorau (1972) como uma burocratização do mundo e da vida. Desta forma ela faz com que a noção de organização, no dizer destes autores, signifique não só a designação... de conjuntos práticos tais como as fábricas, os sindicatos, os bancos, associações diversas, isto é coletividades que perseguem objetivos...” como também “...certas condutas sociais, certos processos sociais: o ato de organizar essas atividades diversas, a mobilização dos meios para atingir os objetivos coletivos...” (p. 113).

O conceito moderno e instrumental de burocracia, quando aplicado ao Estado, servirá para designar, a um tempo, tanto o aparato administrativo característico do tipo de dominação legal para Weber (cf. Mouzelis, 1972), quanto o instrumento político pelo qual a burguesia exerce sua dominação econômica, conquistada antes, na esfera das relações de produção, para a teoria marxista.

No seio da organização privada, a burocracia manterá basicamente tais características, que se operacionalizarão como métodos racionais e eficientes de produção (em Taylor) e gestão (em Fayol). Servirá também para garantir a conformidade necessária de seus membros, conforme Crozier. E ainda ao controle, à submissão e desqualificação do trabalho, em proveito de uma maior concentração do capital, na explicação marxista (q. v. Salm, 1980).

A partir de tais parâmetros, e juntamente com o desenvolvimento da moderna burocracia privada nas grandes corporações da Inglaterra e dos Estados Unidos, desenvolvem-se a teoria organizacional e os estudos sobre comportamento em organizações, analisados no capítulo anterior. Agora convém observar que os avanços destas teorias, ocorridos no seio da moderna empresa privada — tendo-a, portanto, como modelo — tendem a fazer com que a eficiência burocrática proceda a um caminho inverso ao de sua história, ou seja, da organização privada para a pública, na tentativa de aperfeiçoar o aparato administrativo desta.


 

CAPÍTULO 7

BUROCRACIAS NA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA E PAULISTA

 

1. A HERANÇA COLONIAL

Pioneiros, como vimos, na centralização do Estado e na submissão dos demais interesses aos da coroa, os países da Península Ibérica constituíram-se em metrópoles do antigo sistema colonial em cujo contexto forjaram-se a maioria das sociedades americanas, entre as quais, o Brasil. Segundo Novaes,

“...é na história do sistema geral de colonização européia moderna que devemos procurar o esquema de determinações dentro do qual se processou a organização da vida econômica e social do Brasil na primeira fase de sua história, e se encaminharam os problemas políticos de que esta região foi o teatro” (Novaes, 1977:47).

As determinações a que alude Novaes seriam antes conseqüências da própria forma como se organizaram a expansão, o comércio e a agricultura coloniais, ou seja, sob a égide da coroa, em aliança com a burguesia comercial. Daí resulta primeiramente o monopólio régio sobre todas as formas de exploração ultramarina, indicando e reforçando o patrimonialismo português. As atividades mercantis ultramarinas, bem como todas as demais atividades econômicas coloniais quando feitas privadamente serão concessões da Coroa e taxadas nesta condição. A administração destas atividades justificará um amplo aparato fiscal, que se estende da Metrópole para a Colônia, e nesta se expande juntamente com a expansão dos negócios. Seus membros, gozando de privilégios na condição de representantes da Coroa, zeladores de seu patrimônio, serão o embrião do futuro estamento burocrático.

Em segundo plano, aparece o caráter de complementaridade da agricultura colonial em relação à produção européia, como requisito de um comércio mais lucrativo. A busca de amplas margens de lucratividade levaria ainda à adoção do escravismo, cujo tráfico transformar-se-ia em importante atividade comercial. As grandes inversões exigidas pela produção levaram à organização de grandes empresas e à estrutura agrária fundada no latifúndio:

“Daí decorre também o atraso tecnológico, o caráter predatório, o ‘cíclico’ no espaço e no tempo, que assume a economia colonial. A sociedade se estamentiza em castas incomunicáveis, com os privilégios da camada dominante juridicamente definidos, que de outra forma seria impossível manter a condição escrava” (Novaes, 1977:52).

Tal quadro, dentro do qual se deve, segundo Novaes, compreender nossa história colonial, e mesmo os seus prolongamentos e resistências até os dias atuais, completa-se com as concessões que Portugal teria que fazer à Inglaterra após a Restauração de 1640. Se para Novaes “...de fato, se procurou constantemente contornar a execução das cessões consignadas nos tratados...” (p. 53), para Schwartzman (1975) tais concessões levariam a uma associação cada vez mais íntima entre o patrimonialismo português e os interesses econômicos da Inglaterra. Tal associação resultará, para Celso Furtado(12), na renúncia ao desenvolvimento de uma indústria portuguesa, e à transferência à Inglaterra do impulso dinâmico criado pela produção de ouro no Brasil. Para a Coroa portuguesa significa a obtenção do apoio inglês para a manutenção de seu domínio político.

Tais vicissitudes, aliadas à rápida decadência econômica experimentada por Portugal e sua então mais importante colônia, a partir da segunda metade do século XVIII, reforçariam os laços de dependência do Brasil para com Portugal, e deste para com a Inglaterra, resultando, conforme Schwartzman, em um sistema que combinava patrimonialismo político e dependência econômica. A centralização política em relação à Colônia e o rigor do aparato fiscal aqui instalado crescem quase que na mesma proporção da decadência econômica. O Brasil entraria no século XIX apresentando um quadro de

“...dependência política derivada do status colonial, subordinação econômica a Portugal e Inglaterra, e centralização burocrática para a exploração de uma economia em decadência. ..” (idem: 103).

A preocupação deste autor passa a ser a de compreender o comportamento da administração e do comércio no momento em que a economia açucareira, e posteriormente a de mineração, regridem a um tipo de economia de subsistência. Sua hipótese explicativa é a de que

“...mais provavelmente (...) na medida em que os grupos comerciais mais dinâmicos partiam, a administração governamental se retraía a um tipo de ritualismo burocrático que era tão familiar, de resto, à estrutura altamente centralizada e formal da administração portuguesa” (idem: 104).

2. CONFIGURAÇÃO NO IMPÉRIO

Os principais eventos políticos do início do século XIX, como a abertura dos portos e a emancipação política, não alterarão substancialmente o quadro anterior. Tornam mais diretos os laços de dependência econômica em relação à Inglaterra e proporcionam uma substituição gradativa entre os membros do estamento político dominante. A anterior transferência da Corte teria facilitado um processo de relativo amalgamento das elites burocráticas.

Gerada em tais condições, a administração pública brasileira ganhará contornos mais definidos no Segundo Reinado, caracterizando-se, sistematicamente, por um aparato administrativo centralizado, imperando desde os centros urbanos criados pelo mercantilismo colonial, inflado desde a transferência da Corte, e pela organização do exército a partir das guerras do Prata e do Paraguai, sobre uma sociedade desarticulada, em cujos limites mais remotos esta burocracia não podia se fazer presente. Ali, onde predomina uma agricultura de subsistência, os senhores de terra e de escravos é que exercerão um tipo de poder ainda não suficientemente caracterizado: feudal ou semi-feudal, para uns, e patrimonial privado para outros.

Entre os últimos, destaca-se Uricoechea (1978) que veria na Guarda Nacional o elo de ligação e de cooptação pela burocracia imperial destas elites locais.

Criada em 1831 para garantir a defesa do Império em relação à restauração da dinastia portuguesa, a Guarda Nacional assume aos poucos praticamente todas as funções administrativas locais: além da defesa, a polícia, a justiça, a fiscalização, etc. Até 1873, a Guarda Nacional substitui a polícia na grande maioria do território.

Através da análise de farta correspondência entre os diferentes escalões da Guarda Nacional e entre esta e o governo, Uricoechea percebe a paulatina consolidação de um sistema abstrato de justiça que vai prevalecer sobre o juízo arbitrário da autoridade constituída. Isto o levaria a concluir por uma convivência entre um aparato administrativo controlado burocraticamente pelo Estado e outro, paralelo, controlado patrimonialmente pelas classes sociais. O primeiro pressionando por uma burocratização total do governo, e o segundo por uma prebendalização dos cargos. O predomínio do primeiro fez com que a Guarda Nacional acabasse por cumprir mais efetivamente seu papel de cooptação, impedindo que se consolidasse no Brasil uma ordem senhorial, baseada em uma nobreza estratificada segundo os princípios da honra e do privilégio, e apoiada no monopólio da posse da terra.

Em uma outra visão, mais preocupada com os aspectos de composição, organização e funcionamento internos da burocracia imperial — sem descuidar, contudo, de suas relações com a sociedade — Murilo de Carvalho (1980) sugere que

“...a burocracia imperial era fruto de contradição entre um Estado, cujas bases se enraizaram na sociedade agrário-escravocrata, mas cuja administração se constituía na principal fonte de emprego para os rejeitados dessa sociedade” (p. 26).

Reproduzindo a sociedade escravocrata, cuja agricultura de exportação o sustentava, o Estado fechava outras alternativas de ascensão, para os homens livres, além do emprego público. Desta contradição surgiram duas posições aparentemente contraditórias sobre a burocracia e o Estado imperiais. A primeira, representada no caso por Joaquim Nabuco, vê o Estado imperial submetido à propriedade da terra, seja através da classe latifundiária em geral, seja através de oligarquias regionais ou de clãs locais. A segunda, entre cujos adeptos se destaca Faoro, vê no Estado imperial um Leviatã presidindo aos destinos de uma sociedade inerte.

Com base na contradição sugerida anteriormente, Carvalho considera ambas as interpretações como lados da mesma moeda, e desenvolverá sua argumentação através da demonstração dos seguintes pontos:

“1) a burocracia imperial era heterogênea, dividida horizontal e verticalmente; não se constituía em estamento;

2) a burocracia era macrocefálica: concentrava-se no topo da administração, traduzindo o pequeno alcance do poder público nas extremidades;

3) a fraqueza do Estado levava-o a utilizar-se, nas localidades, dos serviços litúrgicos, dos senhores rurais;

4) a burocracia possuía ainda ingredientes patrimoniais, que a vinculavam profundamente à política, dando-lhe um sentido que extrapolava o de máquina administrativa;

5) a burocracia em parte constituía, e em parte refletia, a ambigüidade do Estado imperial que, por sua vez, afetava a atitude que perante ela assumiam os cidadãos”. (p. 26)

Acreditamos que para uma visão sucinta da configuração da burocracia no império nos basta por ora a fixação nestes aspectos essenciais apontados por Uricoechea e Carvalho dentro do quadro seqüencial mais amplo anteriormente indicado por Schwartzman. Para fazermos justiça a Faoro, sua tese de um Estado forte impondo-se sobre a sociedade não se desfaz com a constatação da dependência econômica deste em relação à agricultura exportadora: De um lado, pelos processos de cooptação por parte do Estado das elites rurais; De outro, pela distinção, já explicitada, entre o segmento político dominante da burocracia e seu segmento instrumental. As próprias clivagens procedidas por Carvalho na estrutura da burocracia imperial permitem a configuração desse segmento político. Além disso, Carvalho oferece-nos dados bastante eloqüentes sobre a super-representação destes funcionários na Câmara (de 32% a 60% entre 1834 e 1869), no Senado (83% no período 1831-1840), e no Conselho de Ministros (93% entre 1822 e 1831).

Finalmente, data também do Império o início de um processo que assumiria formas mais acabadas na Primeira República, e animaria o debate revolucionário de 1930: a superposição de uma estrutura formal burocrática de governo, à semelhança dos modelos racional-legais europeus, sobre uma base factual de poder que permanecia patrimonial e oligárquica. Aquela superestrutura, que incluía a divisão dos poderes, formas incipientes de representação política democrática, etc. animava a retórica liberal do discurso político, que não encontrava ressonância na forma como as decisões eram de fato tomadas: no ajuste entre o império patrimonial e as elites locais em processo de cooptação.

3. A DESCENTRALIZAÇÃO REPUBLICANA

A República Velha assistirá a cristalização da dicotomia anteriormente apontada entre a superestrutura formal e a base de poder real, sob o impacto ainda de duas variáveis a um tempo conflitantes e complementares.

A primeira diz respeito à anatomia dos Estados, de interesse das oligarquias regionais, na razão direta de sua prosperidade econômica. Assim, ela será cobrada e exercida sempre, em primeiro plano, pelo Estado de São Paulo na proteção dos interesses ligados à cafeicultura e na alocação dos recursos daí provenientes.

A segunda é referente à constante e crescente presença do setor militar da burocracia na vida política em seu plano nacional. Caracterizando-se cada vez mais como setor autônomo em relação aos demais setores da burocracia, o militar, particularmente o Exército, vai substituir a instituição imperial no que esta representava de unitária em relação à extensão do poder privado, e à própria burocracia.

A dinâmica entre estas duas tendências agindo sobre o pano de fundo da dicotomia formal/real caracterizará o primeiro período republicano no que diz respeito à evolução da burocracia pública no Brasil.

Graças à autonomia dos Estados surgirão as administrações públicas estaduais em substituição à administração imperial nas províncias. Nos Estados mais ricos ou politicamente importantes elas revelar-se-ão instrumentos hábeis para a articulação das oligarquias regionais, primeira instância para a rearticulação nacional. Embora isto seja verdadeiro também para os demais Estados, o que ressalta nestes últimos é o aspecto caricatural de suas administrações, adotando estruturas e ritos relativamente sofisticados, para gerir os parcos recursos gerados em seu território ou obtidos através da União. Transformando tais recursos geralmente em empregos no serviço público, para atender demanda semelhante à anteriormente indicada por Carvalho para o período imperial, estas administrações instituirão práticas que tornarão mais nítidas a dicotomia entre a estrutura formal e a base de poder real.

As diferenças do comportamento das administrações estaduais refletem provavelmente ainda o caráter das alianças oligárquicas regionais, os interesses aos quais estas estão ligadas, e os diversos regionalismos que se tornam mais nítidos neste período. Sobre este último aspecto, a literatura consultada(13) indica, em síntese:

a) predominância dos interesses ligados ao café em S. Paulo, projetando-se com maior ou menor sucesso em direção ao poder central na busca e manutenção de uma política protecionista para o produto, e de autonomia administrativa;

b) predominância de interesses mais especificamente políticos em Minas Gerais, cujos esforços são canalizados para a manutenção de uma super-representação nos organismos decisórios federais e na conseqüente apropriação dos recursos redistribuídos;

c) consolidação da aliança civil-militar no Rio Grande do Sul; predominância ali dos interesses ligados à defesa, pela histórica situação de fronteira e pela grande proporção de oficiais gaúchos no Exército;

d) decadência econômica e dependência política em relação ao poder central nos demais Estados, que barganham seu apoio ora com um, ora com outro dos principais atores.

O governo federal, centro do sistema, refletirá, de um lado, as articulações destes interesses regionais e, de outro, a atuação de sua própria burocracia, inchada e macrocefálica desde o Império. É importante frisar que a articulação central de interesses regionais não se refere a interesses econômicos do mesmo peso. Excetuado São Paulo, os demais atores representam muito mais a si próprios como segmentos político-burocráticos.

Desta ausência de qualquer outro interesse especificamente econômico de vulto, além do ligado à cafeicultura, resulta a falsa impressão de um predomínio econômico e político paulista durante o período. Na verdade, a participação de São Paulo na condução dos negócios nacionais foi sempre proporcionalmente inferior à sua importância econômica. A política de proteção ao café é desenvolvida pelo governo federal porque a exportação deste produto era a base econômica de sustentação de sua burocracia.

Os militares serão ideológica e factualmente os principais contestadores da política das oligarquias regionais que o sistema de barganhas político-econômicas entre Estados autônomos proporcionava. Em contraposição aos aspectos mais aparentes deste sistema — manipulação eleitoral, corrupção, desmoralização da administração federal, etc. — justificar-se-á o florescimento de um pensamento autoritário, centralizador e modernizante que, como observa Lamounier (1977) será fundamental no entendimento do discurso e da realidade do período posterior.

4. CONFIGURAÇÃO DEFINITIVA

A revolução de 1930 daria um fim à República Velha e à sua experiência federalista, promovendo novamente a centralização. Esta desenvolver-se-á, entretanto, sob a égide de princípios diferentes dos que a justificavam no período imperial: Trata-se agora de construir um Estado moderno e eficiente, ao molde das burocracias racional-legais, infenso aos interesses oligárquicos regionais e capaz de gerir a contento os superiores destinos da nação.

Tal intento será realizado apenas parcialmente, como veremos. Por enquanto, é interessante notar que ele reflete, de um lado, a predominância da corrente autoritária no fértil debate ideológico do período, e, de outro, a participação hegemônica gaúcha no bloco militarmente vitorioso. Esta traz consigo a tradição guerreira, a aliança civil-militar regional, e a super-representação gaúcha no Exército, que dariam a tônica ao modelo de organização política a ser lapidado nos anos imediatamente posteriores.

Para Schmitter (1971), é neste processo que se consolida um modelo de organização estatal e de relacionamento Estado-sociedade com contornos mais ou menos definitivos desde então. Os interesses autônomos no seio da sociedade civil, incluindo-se desde oligarquias regionais a movimentos sociais, serão inicialmente cooptados ou reprimidos conforme o caso. Posteriormente se estabelece uma pauta de critérios para sua reorganização sob a tutela do Estado. A mesma pauta servirá ainda para a cooptação, desde sua emergência, de novos grupos de interesse. Os sistemas decisórios e políticos partidários darão sustentação a este caráter básico de relacionamento Estado-sociedade como nos sugerem, respectivamente, Schmitter (op. cit.) e Maria do Carmo C. Souza (1976).

Este teria sido o arranjo peculiar brasileiro de constituir um Estado grande e multifuncional que antecede, ou cria sob sua tutela, grupos de interesses representativos do tecido social. A introdução de inovações em relação aos modelos patrimonialistas de Estado asiático e ibérico, garantiria a contemporaneidade do Estado patrimonial brasileiro, capaz, como sugere Faoro (1976), de absorver técnicas sem mudar seu caráter. Daí sua capacidade de sobrevivência e até de fortalecimento sob intempéries várias como a diferenciação estrutural, a industrialização, a urbanização, a dependência e as crises econômicas, entre outras.

Além das inovações já mencionadas, o Estado resultante da revolução de 30 tentará implantar uma burocracia funcional semelhante, no discurso, ao modelo racional-legal weberiano, e razoavelmente compatível com o ideal modernizante do período revolucionário. Entretanto, as alianças pré-revolucionárias, a cooptação posterior das oligarquias regionais e a excessiva centralização estadonovista conduzem a um distanciamento do modelo e à constituição de outro mais compatível com o caráter do Estado. Segundo Maria do Carmo C. Souza.

“...as mudanças político-institucionais iniciadas com a revolução de 1930 redundaram, de modo geral, na criação de uma extensa máquina burocrática não controlável por um legislativo ou por qualquer tipo de organismo representativo da ‘sociedade civil’” (1976: 103).

Para a autora, essa autonomia burocrática não provém de sua eficiência racional-formal segundo o paradigma weberiano de organizações burocráticas. Ao contrário, tem seus fundamentos no fato de que a expansão e a centralização burocrática se deram sob o signo da absorção ou cooptação dos agrupamentos de interesses regionais e funcionais. Quanto aos primeiros, Souza enfatiza a recomposição das oligarquias regionais através das interventorias e da vinculação ao sistema burocrático governamental, processo do qual resultaria o Partido Social Democrático. Em relação aos interesses funcionais, surgem os organismos econômicos com atuação semilegislativa ou semirepresentativa que institucionalizam e legitimam a atuação direta dos interesses econômicos junto à burocracia, inibindo suas formas de representação autônomas.

Em todo caso, a representação ideológica de uma burocracia ideal com fins utilitários e métodos racionais, será mantida e iluminará as práticas internas da administração pública. Da defasagem entre os modelos formais e as bases de sustentação e articulação sócio-políticas, resultarão, como nos aponta Graham (1968) as lacunas entre normas e realidades em nossa administração pública. Tais lacunas serão quase sempre o ponto de partida para as inúmeras tentativas de reforma administrativa, enquanto que o não reconhecimento daquela defasagem será sempre a causa do fracasso das mesmas.

Para esse autor, a centralização estadonovista far-se-ia relativamente propícia para a implantação de modernas técnicas de administração no serviço público. Como vimos, a nova tecnologia administrativa desde há muito fazia seu caminho de volta das empresas privadas para o setor público, processo que nesta época se fazia mais efetivo nos Estados Unidos, graças ao desenvolvimento do taylorismo e seus desdobramentos naquele país. Acordos de cooperação técnica e de treinamento para funcionários públicos brasileiros serão celebrados entre o Brasil e Estados Unidos, no período.

Entretanto, a implantação de uma administração “científica” encontraria no serviço público brasileiro duas espécies de resistência. Uma interna, por parte dos próprios funcionários, preocupados em proteger seus direitos individuais contra o Estado como empregador. Esta atitude consolidara-se no sistema legal de administração de pessoal do serviço público, de evidente inspiração francesa, vigente desde os fins do império e durante a primeira república. Outra resistência se encontrava na própria base de sustentação do poder, pela cooptação das oligarquias regionais e lideranças emergentes. Isto levava ao afrouxamento dos critérios da administração científica em relação à lotação numérica das unidades, seleção dos funcionários, aplicabilidade das normas, etc. Tais resistências serão em boa parte contidas ou contornadas pelos diversos mecanismos de normatização centralizadora instituídos pelo Estado novo.

Para Demange (1980) esses mecanismos visavam à centralização do controle burocrático dirigido para as necessidades de controle interno do próprio Estado. Fariam parte de um processo de reorientação... “da organização burocrática na direção de uma transição capitalista do Estado. Esta reorientação visou afastar o Estado, mesmo que parcialmente, das formas administrativas pré-capitalistas vigentes anteriormente” (p. 62).

Para o autor, os principais instrumentos burocráticos criados para esse fim, na segunda metade da década de 30, concentraram-se no Conselho Federal do Serviço Público (CFSPC), instalado em 1936, que se transforma no Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1938. Este último estendeu o controle burocrático e ideológico sobre a força de trabalho já exercido pelo CFSPC, aos meios materiais, organizacionais e orçamentais, incumbindo-se, inclusive, de “auxiliar o Presidente da República no exame dos projetos de leis submetidos à sua sanção”(14). Logo, essa função passou a estender-se também ao assessoramento burocrático dos Interventores estaduais mediante a padronização e controle dos Departamentos do Serviço Público (DSP) estaduais, ampliando o seu papel centralizador. Além do fato de o Presidente do DASP integrar a Comissão de Estudo dos Negócios Estaduais, muitos dos problemas administrativos dos Interventores nos Estados eram levados diretamente ao DASP na esperança de sua orientação.

Além da centralização, o mecanismo hierárquico de decisão formado pelo eixo DASP-DSP proporcionou uma homogeneização organizacional e normativa entre as administrações federal e estaduais. No que diz respeito às normas de pessoal, esse processo se completaria com o Decreto-Lei n.° 3070 de 1941 que exigia dos Estados o envio ao DASP dos projetos de Estatutos para os seus respectivos servidores públicos estaduais, onde receberiam as alterações por ele propostas.

Para Graham (1968) as mudanças políticas formais de 1945 (federalismo, bicameralismo, pluripartidarismo, democracia política), mantidos os objetivos do sistema político, fariam ressaltar a mencionada defasagem entre normas e realidade em nossa administração pública.

As resistências antes mencionadas far-se-iam mais presentes. De um lado, os funcionários obtiveram mais facilidades para fazer prevalecer seus direitos individuais diante do Estado como empregador. Além disso, como um conjunto numericamente expressivo, sua importância eleitoral resultou em um poder de barganha para a conquista de muitas reivindicações. Por outro lado, os governos sentiam a necessidade de usar mais amiúde as administrações por causa dos processos eleitorais, o que dificultava o cumprimento das normas impessoais, principalmente quanto à seleção de pessoal.

Enquanto isso, os mecanismos centralizadores implantados no Estado Novo mantiveram-se em funcionamento sem maiores alterações. Como já fui visto, era difícil controlá-los de fora. O afrouxamento das normas, de maior utilização no período, continuou a ser uma concessão do governo, uma vez que alterações estruturais ou legais de grande monta não se registraram. O continuado uso de concessões levaria por seu turno à dificuldade de controle da administração pelo próprio governo. Quando a este escasseia apoio político, algumas instâncias da administração demonstrarão sua independência. O que já era difícil controlar de fora — por mecanismos de representação civil — torna-se também difícil de controlar por dentro.

O novo regime político, instaurado a partir de 1964, promoverá uma nova centralização, utilizando-se ora dos mecanismos já existentes ora criando outros novos e mais adequados(15).

Neste processo é possível notar que, de um modo geral, os mecanismos pré-existentes se mostraram mais adequados e muitas vezes suficientes para o controle pelo Estado dos setores da sociedade civil com alguma capacidade de contestação ao regime. Neste caso se inclui a repressão aos sindicatos feita por dentro da própria estrutura sindical, sem alterá-la e utilizando-se de procedimento legais, na maior parte das vezes, já existentes.

Ao contrário, o controle da própria burocracia, tanto para fazê-la funcionar a contento na implementação dos projetos governamentais, quanto para sanear áreas de resistência ou oposição, exigiria outros mecanismos. Aqui incluem-se, por exemplo, o novo Ministério Extraordinário do Planejamento e Coordenação Econômica, o Decreto-Lei n.° 200 de 25-02-67 e até o Ato Institucional n.° 5.

O AI-5 visaria, entre outras coisas, a submeter ao comando governamental, de forma direta: as instâncias burocráticas que conservassem alguma autonomia administrativa e funcional (Universidades, Conselhos, etc.); os poderes legislativos e judiciários, através de seus membros; e o conjunto de funcionários de quaisquer níveis e instâncias até então protegidas por seus estatutos.

O Ministério do Planejamento se aplica à definição da política econômica do país e à coordenação dos demais órgãos nesse aspecto, e à orientação da reforma administrativa do aparelho estatal. É nesta que se insere o Decreto-Lei n.° 200/67, que trai a intenção de trazer para dentro da administração pública as técnicas administrativas vigentes na moderna empresa privada. Este processo complementa, no plano interno, o já iniciado através da expansão das empresas mistas e estatais onde as práticas de gestão privadas predominam.

A “privatização” da administração pública, através dos processos indicados acima, permite também ao governo dispor, sem necessidade de maiores formalidades, de um expressivo número de cargos de nomeação direta, com salários que escapam das normas vigentes para o funcionário comum. Os novos salários atrairão a oficialidade militar, executivos privados e parte da intelectualidade acadêmica. A essa nova forma de cooptação segue-se a cristalização de uma tecnocracia que será em grande parte o responsável pela condução da administração pública até os dias de hoje.

Conforme fizera o Estado Novo, o governo autoritário subordina as administrações estaduais à federal, permitindo àquelas uma autonomia meramente formal ou nos setores não essenciais. O processo que se inicia pela nomeação dos governadores e indicação ou veto sobre seus auxiliares diretos se estende às práticas administrativas e, para o que nos interessa, à administração de pessoal.

Surgem também as tecnocracias regionais, às quais se subordinam os escalões médios e inferiores da burocracia que se distinguirão pelos baixos salários, por vínculos contratuais “arcaicos”, e por nenhum acesso às decisões sobre as atividades que executam. A isto se acrescenta a observação de Demange (1980) sobre a administração federal de que a tecnocracia imputa ao custo do pessoal subalterno a causa da ineficiência da administração pública. Tudo isto contribui seguramente para fixar uma imagem e auto-imagem negativas do funcionário público constatada em nossa pesquisa.

5. SÃO PAULO: DO ISOLAMENTO À ASPIRAÇÃO HEGEMÔNICA

A partir da análise da literatura sobre o patrimonialismo e sobre as experiências históricas dos Estados patrimoniais, Schwartzman (1975:38-43) propõe alguns critérios para o estabelecimento de clivagens regionais derivados das seguintes principais características dos grandes impérios patrimoniais do passado:

1.°) Os Estados patrimoniais tendem a se desenvolver como civilizações urbanas (a capital do império e/ou cidades-Estado, com interesses comerciais e militares fora de suas fronteiras) o que leva ao surgimento de uma aristocracia urbana lotada nos escalões da burocracia governamental, e à necessidade de manter satisfeitas as consideráveis massas urbanas, que aí se aglomeram;

2.°) À medida que cresce o domínio patrimonial, também cresce a necessidade de se delegar poderes e autoridade, ao mesmo tempo que se reduz a factibilidade do controle central e direto. Assiste-se a uma busca de autonomia por parte de prepostos, instâncias ou regiões, e constantes tensões neste sentido;

3.°) À eventual conquista militar de novas regiões habitadas seguem-se o saque e a escravização de parte destas populações. Entretanto, a manutenção da produção nas mesmas, para que rendam tributos e impostos ao Estado patrimonial, leva a um padrão de interação que, em geral, inclui a manutenção das classes dominantes locais em suas posições. A manutenção desse tipo de autonomia local significa também que algum poder permanece fora do Estado central e que tensões e conflitos podem ocorrer.

Como variação desta última característica, Schwartzman admite o surgimento de algumas formas de atividade autônoma dentro do domínio patrimonial, com ou sem consentimento ou intenção do governante.

“Neste caso, um padrão seria o surgimento de uma indústria ou agricultura voltada para o mercado externo, que pague pesados impostos ao Estado. O Estado estimula a sua atividade, ao mesmo tempo em que funciona como um parasita, limitando e, eventualmente, aniquilando a atividade autônoma” (idem: 42).

Tais características seriam o ponto de partida para a proposta de Schwartzman de quatro principais regiões no caso brasileiro, que serão aqui comentadas resumidamente.

A primeira seria a sede do governo, inicialmente Salvador e depois Rio de Janeiro, centros do sistema, áreas de urbanização pré-industrial onde se concentra a elite governamental dominante, e uma extensa burocracia de pequenos funcionários. A atividade política e o emprego burocrático têm prioridade sobre eventuais atividades econômicas autônomas. Estas, ao contrário, cederão lugar às de prestação de serviços à burocracia e seus componentes.

A segunda região constitui o inverso da capital burocrática e urbana. É a sua periferia dependente e submissa. No caso brasileiro, esta região “tradicional” apresenta algumas peculiaridades pelo fato de ter experimentado surtos de prosperidade econômica no passado, como o do açúcar no Nordeste e o da mineração em Minas Gerais. Isto legou a estas regiões, além de uma grande população economicamente marginal e concentrada nos centros urbanos, uma estrutura burocrática de herança portuguesa sem atividades econômicas significativas a fiscalizar. Esta burocracia sobreviverá como intermediária entre o centro e os difusos focos de poder local, garantindo àquele o apoio coeso de sua região em eventuais embates em outras órbitas.

A terceira região, constituída por São Paulo, é a que desenvolve atividades próprias não diretamente relacionadas ao centro, e que buscará sempre garantir sua relativa autonomia, principalmente no plano econômico. Seus embates com o centro revestir-se-ão sempre da defesa deste tipo de interesse. A prevalência de atividades autônomas retardariam o processo de urbanização, que ocorrerá mais acentuadamente no período industrial. A partir de marcantes derrotas nos planos político e militar, as relações de São Paulo com a vida política do país, caracterizar-se-ão por uma participação sempre inferior à sua importância econômica. Daí o conseqüente isolamento e o exercício de uma certa autonomia nos campos onde a mesma é possível.

A quarta região proposta por Schwartzman é o Rio Grande do Sul que sempre desempenhou um papel político no sistema nacional bastante desproporcional ao seu tamanho e importância econômica. Diferentemente da região tradicional, nunca experimentou significativa prosperidade econômica, nem a conseqüente decadência. Sua importância política advém de sua posição geográfica fronteiriça, historicamente o limite e principal fonte de atrito entre os impérios coloniais português e espanhol. Esta posição manter-se-á nos posteriores conflitos com a Argentina. A importância estratégica, a desproporcional presença de gaúchos no Exército, e o poderio militar da região, seriam utilizados politicamente por aquele Estado para garantir sua autonomia em relação ao poder central, para impor-se a ele, e, finalmente, para empolgá-lo a partir de 1930.

Schwartzman acrescenta a esta clivagem regionalista retirada das mencionadas características históricas dos grandes impérios patrimoniais do passado, um segundo nível de análise, especificamente político, que servirá para caracterizar ainda mais a posição única de São Paulo no conjunto representado pelo Estado nacional. Trata-se de distinguir entre cooptação e representação como diferentes “sistemas” ou “estilos” de participação política.

Resumidamente, no sistema de representação os grupos de interesse que se forjam em torno de suas posições na esfera econômica (ou outras) se articulam, e procuram fazer-se representar junto às instâncias às quais competem as decisões sobre assuntos que lhes interessam. Este sistema supõe a existência de interesses significativos anteriores à arena política, e uma relativamente forte capacidade de articulação dos grupos em torno dos mesmos. Ao contrário, o sistema de cooptação refere-se a uma participação débil, dependente e controlada hierarquicamente, de cima para baixo. Este sistema supõe, de um lado, a existência de lideranças ou grupos com pequena capacidade de articulação querendo participar e, de outro, um poder político com capacidade para comprar os primeiros ou, de alguma forma, incorporar estes esforços de participação, de tal maneira que vínculos de dependência sejam estabelecidos entre os detentores do poder e as lideranças políticas emergentes. Desta forma,

“...a participação política deixa de ser um direito e passa a ser um benefício outorgado e, em princípio, revogável” (idem: 22).

Representação e cooptação como estilos de participação política não são exclusivos deste ou daquele tipo de Estado, mas tendem a predominar, respectivamente, nas sociedades onde a articulação de interesses antecede ou não a constituição do Estado.

Uma estrutura de poder patrimonial cuja dinâmica se opera através do mecanismo de cooptação, conceito resumido por Schwartzman em sua expressão de “patrimonialismo político”, seria a explicação deste autor para o Estado brasileiro. Entretanto, as mesmas vicissitudes que moldaram desde cedo o regionalismo paulista, contribuiriam para fazer surgir neste Estado formas ainda que incipientes de representação política.

A história da capitania de São Vicente registra seu desenvolvimento autônomo e independente da administração central, realizando um movimento da costa para o interior na captura de índios e, posteriormente, de ouro e pedras preciosas. O ímpeto empresarial do bandeirante pode ser explicado primeiramente pelo tipo de imigrante que se fixou nesta capitania, preocupado em obter os maiores lucros a mais curto prazo, e sem vínculos com a burocracia ou com as atividades mercantis diretamente controladas por ela. Outro fator teria sido a sua distância dos centros administrativo e econômico, situados, respectivamente, em Salvador e na costa nordestina.

A região não mereceria maiores atenções da coroa portuguesa até fins do século XVII, quando a extração de ouro em Minas Gerais adquiriu maior significado. Este período coincide com o apogeu da expansão paulista no período colonial e o início de sua decadência, após a guerra dos emboabas. Esta significou o confronto entre os pioneiros paulistas e os novos exploradores de minas procedentes das regiões centrais. Os primeiros, descalços, brasileiros de algumas gerações, mestiços em boa parte, desenvolviam suas atividades sem maiores vínculos com o sistema de monopólios mercantis, ou com a hierarquia burocrática e fiscal, Já os emboabas, na maioria portugueses, eram ligados ao centro administrativo e comercial litorâneo, do qual obtinham concessões sobre áreas de mineração e sobre o comércio de produtos de consumo, e facilidades de crédito e escravos para seu empreendimento.

O desenvolvimento do conflito, que não será analisado aqui, oferece outras evidências de um confronto entre os dois “estilos”. De um lado, os representantes da coroa e de sua ordem. De outro, “bandidos” que nada respeitavam senão suas próprias leis de convivência em função de interesses econômicos mais claramente assumidos.

A derrota dos paulistas significou historicamente a extensão do domínio patrimonial à região das minas e sua costa litorânea. E, concretamente, levou os paulistas a um retraimento em relação à vida política do país até a expansão da cultura do café no século XIX.

A forma como o café progride em São Paulo ao mesmo tempo em que decai no Rio de Janeiro e em Minas Gerais é também sintomática das diferenças antes apontadas. Nas últimas províncias os empresários do café obtêm maiores facilidades de financiamento junto aos intermediários do produto no Rio. Isto os leva a um crescente endividamento, que dificulta seu poder para resolver problemas que se tornariam cruciais, como o da mão-de-obra. Com o fim da escravidão, as fazendas de café nestas províncias adotam o sistema de parceria. Através da combinação da agricultura de exportação com a de subsistência garantem sua sobrevivência, mas tem reduzida sua capacidade de acumulação e reinvestimento.

Os cafeicultores paulistas, ao contrário, desde logo se unem em torno de uma política ativa de atração de imigrantes da Europa, que seriam submetidos a um sistema de exploração do trabalho bastante intenso, de características semelhantes às do capitalismo industrial em seus primórdios. Superado o problema de mão-de-obra, estes cafeicultores passam a concentrar-se no problema dos preços no mercado internacional, o que conduz ao acordo de Taubaté em 1906. O trabalho assalariado tornou a agricultura paulista mais vulnerável às flutuações de preços, daí as pressões exercidas por São Paulo para uma intervenção governamental (federal) na economia do café.

Nestas iniciativas e em outras tomadas pelos paulistas no período, transparece um padrão de participação junto ao governo federal muito próximo ao do sistema de representação. Postularão cargos e posições não como prêmios por si mesmos, como seria o padrão dominante. Mas pela possibilidade de influir favoravelmente a seus interesses econômicos.

A autonomia dos Estados advinda com a República revelar-se-ia bastante adequada aos padrões de atuação econômico e político predominantes em São Paulo, tendo sido desde antes a tônica do discurso republicano neste Estado. A posição de São Paulo e suas relações com o Estado nacional na primeira República, serão assim sintetizados por Schwartzman:

“O sistema republicano de 1889-1930 iniciou-se, assim, com uma considerável descentralização de poder e com um Estado-líder que começava por enfeixar em suas mãos a administração de seus interesses no campo do suprimento da força de trabalho, controle da produção e assim por diante. No resto do país, entretanto, outros padrões de participação social e política garantiam que esta liderança econômica não fosse muito longe, em termos políticos” (idem: 101).

6. SÃO PAULO: DIFERENCIAÇÃO ESTRUTURAL E ALTERNATIVAS DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

A centralização ocorrida após a revolução de 1930 levaria São Paulo a um novo isolamento em relação ao poder político nacional, interrompido apenas circunstancialmente com a meteórica presidência de Jânio Quadros em 1961.

As relações entre este Estado e o poder revolucionário pós 1930 serão dificultadas, não só pelo fato de São Paulo ter estado no lado perdedor da Revolução, mas, principalmente, pelas divergências de interesses entre os dois lados.

A primeira destas divergências ocorre no campo econômico. O governo federal tendia a desenvolver uma política de eventual apoio às demandas populistas que em nada agradavam aos setores industriais de São Paulo. A crescente intervenção do governo na vida econômica far-se-á muitas vezes naquela direção. Posteriormente, a partir de 1937, quando o governo adota uma política explícita de industrialização, prefere tomar ele mesmo a iniciativa e mantê-la sob controle, a apoiar o sistema industrial paulista. Os recursos humanos e técnicos existentes em São Paulo levariam a uma aproximação entre o governo e os setores industriais, sempre sob o comando do primeiro.

A segunda principal divergência, mais especialmente política, diz respeito à perda da autonomia política e administrativa do Estado, que não só seria uma das principais causas da chamada “revolução constitucionalista” de 1932, como levaria a uma convivência quase sempre difícil entre as interventorias e as elites políticas paulistas.

Do ponto de vista administrativo, São Paulo sempre procurou manter alguma autonomia, ainda que setorial, em relação aos processos de centralização e homogeneização já delineados. Entretanto, não deixaria de assistir à implantação de uma nova administração pública estadual bastante atrelada à federal, semelhante a ela e à de outros Estados, cujas diferenças com a situação econômica de São Paulo se faziam evidentes.

O regime instituído a partir de 1945 não alterará significativamente o grau de relacionamento de São Paulo com a vida política nacional. Mas trará algumas diferenças de qualidade neste relacionamento. Além disso, introduzirá novos elementos nas políticas internas dos Estados, que se comportarão de forma peculiar em São Paulo. O pós-guerra trouxe à moda os regimes democráticos na América Latina. No Brasil, isto se somou a uma sociedade urbanizada, mobilizada pelo incremento das comunicações, e majoritariamente distribuída no eixo urbano-industrial.

Com uma estrutura de governo, grande e centralizada, difícil de ser controlada por qualquer órgão externo representativo, nossa democracia caracterizar-se-á pela intensa mobilização eleitoral dirigida de cima para baixo pelos grandes partidos e nomes nacionais ligados à estrutura burocrática de poder.

O grande aumento do número de votantes e as novas regras eleitorais dificultam a manipulação dos votos e conseqüentemente exigem novos mecanismos para garantir um mínimo de possibilidade quanto aos resultados. Na ausência de canais autônomos articulados na sociedade civil, a popularidade eleitoral se forja através do uso dos cargos e mecanismos proporcionados pela máquina administrativa estatal. Assim, diversificam-se os segmentos a cooptar e as formas de fazê-lo. O “coronelismo” subsiste nas áreas rurais decadentes como forma de cooptação das elites locais. O PSD é o grande partido oficial que funciona como canal de articulação entre as oligarquias regionais e o governo federal. A UDN tenderá a aglutinar as oposições oligárquicas e parcela dos segmentos superiores do eixo urbano-industrial. Finalmente, o PTB e a estrutura sindical mobilizam de cima para baixo as massas populares urbanas.

Alguns autores, entre os quais Schmitter (1971), vêem na coalizão PSD-PTB, o simulacro do partido único típico de alguns regimes autoritários. Sua função é a de combinar internamente interesses do governo e de diferentes setores sociais, legitimando as políticas do primeiro, amortecendo conflitos e inibindo mecanismos autônomos de aglutinação. O gradativo aumento da mobilização das massas a partir de 1945 conduziria a uma eventual inversão do papel do PTB e do Ministério do Trabalho junto aos sindicatos, que a partir dos anos 60 passam a exercer pressões e algum controle sobre os primeiros. Para Schmitter, isto levaria à ruptura da coalizão PSD-PTB e ao impasse resolvido com o golpe militar de 1964.

Em São Paulo, os grandes partidos nacionais nunca tiveram a mesma expressão. Da mesma forma, a cooptação das elites ou das massas deste Estado pelo governo federal sempre foi incipiente. As elites permaneceram a maior parte do tempo afastadas da política nacional, mais preocupadas com seu patrimônio econômico privado do que com o patrimônio burocrático-estatal. Os empresários mantiveram-se de alguma forma articulados em torno de seus órgãos de representação por setor que, ainda quando fundidos com a estrutura corporativa oficial (é o caso FIESP-CIESP) sempre mantiveram razoável autonomia em relação às respectivas confederações. Nos casos em que a fusão não ocorreu, os organismos originais (Associação Comercial e Associação Rural) sempre foram mais representativas e politicamente atuantes que as correspondentes federações. Partidariamente, o PDC, partido de expressão local, parece ter sido o representante político mais próximo dessas elites.

Por outro lado, a estrutura sindical e a mobilização eleitoral petebista não apresentaram em São Paulo a mesma tendência à simbiose, predominante no Rio de Janeiro e em outros centros urbanos. A expressão política das massas canalizava-se, ou através de partidos de esquerda mais independentes (PCB, PSB), ou através de lideranças carismáticas (Jânio Quadros, Adhemar de Barros).

O PSP somava ao carisma de seu líder uma estrutura e formas de funcionamento no plano estadual algo próximos às da coalizão PSD-PTB no plano nacional. Entretanto, sempre que se propunha em eleições nacionais exibia um regionalismo que dificultava sua perfeita comunhão com aqueles grandes partidos.

A vitória de Jânio Quadros com a UDN, em 1960, além de se dar no contexto da ruptura da coalizão dominante, é sintomática da necessidade de suporte de um partido nacional à sua liderança carismática de origem marcadamente regional. Sua renúncia e a crise que se seguiu trairiam a fragilidade daquela aliança, e a ausência de alternativas fora da coalizão PSD-PTB, da qual São Paulo não participava.

O fechamento político a partir de 1964 devolve São Paulo à situação de isolamento e pouca representação no governo federal. Seu crescimento econômico se mantém, é claro, bem como sua participação relativa na geração do produto nacional. Isto se dá apesar dos contínuos esforços do governo federal de desconcentração industrial e dos maciços investimentos em planos de desenvolvimento de outras regiões.

O crescimento contínuo de São Paulo, aliado à internacionalização da economia, ao caldeamento de velhas e novas correntes migratórias, e à urbanização, mantém uma estrutura social bastante diferencida cujos segmentos só genericamente encontram correspondência em outras regiões.

Se bem que as dificuldades de organização e representação dos setores menos privilegiados sejam uma constante para todo o país no regime autoritário, é em São Paulo que os conflitos daí resultantes se fazem mais agudos, e formas alternativas, como os movimentos sociais urbanos, serão desenvolvidas. É neste contexto que se inclui a renovação do movimento sindical, o surgimento de suas novas lideranças e a forma como estas se relacionam com suas bases.

Quando os conflitos trabalhistas conseguem vir à tona, a partir de 1978, ficam evidentes as dificuldades do governo federal em solucioná-los. Sua atuação não terá sequer a unanimidade do empresariado, boa parte do qual passa a exigir a negociação direta, proposta inicialmente pelos trabalhadores.

Durante todo o período do bipartidarismo, o partido da situação, Arena, não possuía entre suas lideranças figuras paulistas de maior expressão. Não é preciso dizer que esse partido era um importante instrumento de cooptação. O partido de oposição, ao contrário, sempre distante das benesses da máquina administrativa federal, foi quase sempre dirigido por paulistas.

Quanto aos novos partidos, apesar de ser muito cedo para se tirar conclusões, pode-se lançar a hipótese de que quanto mais independentes forem do poder executivo — e nesta mesma medida mais dependentes do apoio de grupos sociais autônomos — mais tenderão a ter suas principais bases neste Estado.


 

CAPÍTULO 8

A ADMINISTRAÇÃO ISOLADA

 

I. A CONVIVÊNCIA DAS DUAS BUROCRACIAS EM SÃO PAULO

As peculiaridades da formação sócio-econômica paulista, delineadas no capítulo anterior, bem como suas relações políticas com o Estado Nacional, as características deste, e de sua burocracia de Estado, permitem-nos estabelecer a hipótese de que coexistiriam em São Paulo dois tipos diversos de burocracia. Um predominante nas organizações econômicas privadas, e outro mais característico da administração pública.

O primeiro seria uma manifestação do modelo típico-ideal weberiano característico da dominação legal, cuja matriz histórica poderia ser localizada no Estado pós-absolutista europeu. Daí essa forma de organização estendeu-se às grandes corporações industriais e à esfera das relações sociais, transformando-se ao mesmo tempo em modelo ideal para estruturas organizacionais concretas, e padrão de comportamento grupal para todas as situações de adequação de meios para a conservação de objetivos (cf. Lapassade e Lorau, 1972).

No seio da organização econômica privada, particularmente nos Estados capitalistas avançados, a burocracia tem sido objeto de uma evolução constante. A busca de solução para os problemas que surgem nas modernas organizações complexas tem suscitado um volume significativo de estudos que levam ao aperfeiçoamento não só dos processos de produção propriamente ditos, como também de todos os fatores organizacionais e comportamentais relacionados a ele.

Tais estudos e aperfeiçoamentos consubstanciam-se em teorias e modelos que se difundem para outros tipos de organização burocrática. Aqui se incluem, de um lado, as organizações econômicas menos complexas e/ou situadas em Estados capitalistas menos avançados, e, de outro, as burocracias públicas. Através da experiência de indivíduos e grupos em organizações, complementada por processos de difusão cultural, esses modelos abrangem também a esfera das relações sociais em geral.

O principal pressuposto desse tipo de burocracia é a sua racionalidade, que se opera tecnicamente através da adequação mais eficiente entre meios e fins, e se refere a fins, que são, por sua vez, também racionais e utilitários. Suas formas mais acabadas se dão, portanto, em sociedades temporais, onde os valores utilitários predominam sobre os tradicionais.

O segundo tipo de burocracia surge como evolução do aparato administrativo característico das formas tradicionais (patrimoniais) de dominação, cujas origens históricas remontam aos antigos impérios asiáticos. Seus pressupostos básicos são, além da tradição que a legitima, a unicidade do soberano com o Estado, e a prevalência dos interesses desse sobre outros quaisquer.

Durante seu percurso histórico da antiga Ásia até os dias atuais, a burocracia patrimonial adapta-se a diferentes sistemas econômicos e culturais. Aprende a conviver com a iniciativa econômica privada no antigo sistema colonial, e ainda com a dependência econômica externa no Brasil imperial. Sua convivência com os interesses que surgem fora de seu âmbito se dá através da cooptação, uma forma de participação política concedida e controlada hierarquicamente.

A consolidação de uma burocracia patrimonial no Brasil pode ser considerada como herança do patrimonialismo português através das relações do antigo sistema colonial cujas atividades eram monopólio da coroa. Desta forma, atividades dirigidas e/ou controladas pelo Estado antecedem historicamente ao surgimento de grupos sociais articulados de forma autônoma.

Durante o império, a burocracia patrimonial articula-se com as elites locais através da Guarda Nacional, garantindo assim a integração de focos incipientes de poder local sob o controle do Estado centralizado. Outro mecanismo de cooptação utilizado desde então tem sido o empreguismo.

As alterações políticas ocorridas em nossa história, ainda que significativas sob diversos ângulos, não alteraram o caráter básico do relacionamento entre o Estado e a sociedade: O comando desta por aquele através de uma extensa burocracia.

Essa burocracia tem-se expandido não apenas para atender ao cumprimento das “funções” de Estado (defesa, segurança, fiscalização, justiça, etc.) ou por causa da extensão dos serviços públicos (saúde, educação, etc.). Sua expansão mais característica é dada, de um lado, pelo caráter empreendedor do Estado na economia, e de outro pelo uso da burocracia na cooptação de lideranças emergentes. Pode-se dizer que há uma tendência a um movimento do tipo pendular, que intercala períodos em que o controle da burocracia se dilui entre os principais segmentos por ela cooptados — oligarquias regionais, grupos funcionais, instâncias semi-autônomas — seguidas por períodos de extrema centralização dos controles. Nesses períodos os controles se estendem às administrações estaduais e há uma tendência à homogeneização.

Os períodos de centralização mais recentes (1930 a 1945 e 1965 a...) correspondem a períodos de modernização administrativa baseados nos modelos organizacionais americanos, cujos paradigmas teórico e político podem ser encontrados, respectivamente, no modelo típico-ideal weberiano, e nos Estados pós-absolutistas europeus. Tais modelos não se coadunam com a infra-estrutura do sistema político brasileiro, mas constituem mesmo assim as normas legais da administração pública. A conseqüente distância entre normas e realidade acentuou o ritualismo e o formalismo, e é fonte de insatisfação e conflito para os funcionários que não vêem utilidade em seu trabalho.

Esta capacidade da burocracia patrimonial de absorver, ainda que formalmente, as técnicas desenvolvidas pelas formas racionais de burocracia, culmina em uma segmentação do aparato administrativo. Em baixo, uma estrutura burocrática à semelhança, ou caricatura, das estruturas organizacionais privadas e estatais desenvolvidas, que executa as funções de Estado e os programas de Governo. No comando, a burocracia patrimonial propriamente dita — os “donos do poder”, para Faoro. Este segmento constituiria, na expressão de Schucking e Márquez (1979), uma “comunidade” dentro da qual se dá a distribuição dos cargos importantes e a articulação entre os interesses do Estado e os interesses particulares.

O Estado de São Paulo, desde os primórdios, caracterizou-se como região isolada em relação aos grandes empreendimentos coloniais monopolizados pela coroa. Sua posterior expansão realiza-se independentemente, e às vezes, contra o Estado patrimonial. Sua economia caracterizar-se-á como mais próxima de um modelo capitalista privatista. Isto ensejou o surgimento de elites e lideranças autônomas e formas embrionárias de representação política que não se coadunam com o sistema de cooptação predominante no plano nacional. Daí seu relativo isolamento e sub-representação nos órgãos decisórios nacionais. Finalmente, fatores mais recentes, relacionados ao crescimento econômico paulista, asseguram uma constante diferenciação estrutural, e segmentos que buscam novas formas de participação.

A administração pública paulista seria, nos quadros do sistema administrativo nacional, delineado acima, uma burocracia executora subordinada ora a um corpo político mais ou menos representativo das forças socialmente hegemônicas no Estado, ora aos prepostos do poder central. Graças aos sucessivos processos de centralização e homogeneização administrativa, ela se assemelha à burocracia executora federal e a ela também se subordina nos períodos de maior centralização. Aos problemas da administração federal resumidos na defasagem entre normas racionais e práticas patrimoniais, a paulista acrescenta o de inserir-se em um contexto sócio-econômico, cujos segmentos tradicionalmente dominantes não são representados a contento junto ao poder patrimonial central(16). Quanto aos demais segmentos, na medida em que conseguem articular-se e obter expressão na sociedade civil, buscam alguma forma de participação mais ambiciosa que a proporcionada pela cooptação.

Por sua história de expansão independente e por sua posição atual de pólo industrial desenvolvido, o Estado de São Paulo apresenta, no plano da atividade econômica, a infra-estrutura necessária para o surgimento de organizações econômicas privadas, racionalmente burocratizadas. A implantação e difusão de novos modelos organizacionais é feita atualmente através das inúmeras empresas multinacionais sediadas neste Estado.

Ainda que autores como Bertero (1980) identifiquem uma defasagem entre as técnicas mais modernas da empresa multinacional e as mais patriarcais da empresa nacional, é lícito supor-se um tendência ao predomínio das primeiras quando consideramos: (a) a relação entre crescimento organizacional e burocratização; (b) a busca da melhor relação entre custo e benefício levando à adoção de técnicas de gestão mais avançadas; (c) a difusão especializada através das agências formadoras dos quadros administrativos; e (d) a difusão cultural a que já nos referimos.

2. O QUADRO DE ISOLAMENTO

O quadro delineado até aqui remete a administração pública paulista a uma situação de isolamento em relação ao contexto sócio-político e organizacional que a circunda. Em síntese, tal isolamento tem sido acentuado pelos seguintes fatores:

a) o anacronismo da administração pública paulista em relação a formas mais avançadas de organização no mesmo contexto sócio-econômico e cultural.

b) seu formalismo caricatural resultante da defasagem entre as normas técnicas e legais que a inspiram, e a forma de dominação político-patrimonial que de fato representa.

c) seu baixo grau de absorção e representação dos interesses surgidos na estrutura social. Explica-se: sua autonomia é demasiado pequena para proporcionar uma articulação satisfatória entre os grupos de interesse locais, para traduzi-los em políticas públicas concretas ou representá-los junto à administração federal. Esses grupos, quando têm poder de articulação suficiente, e estão dispostos a uma participação controlada de cima, tendem a dirigir-se diretamente às instâncias centrais do poder.

Acreditamos que o isolamento da administração pública, assim caracterizado, constitui a principal explicação para o alto grau de insatisfação constatado entre os funcionários públicos paulistas, bem como para as diferenças de atitude entre estes e os do setor privado presentes em nossa amostra.

Obviamente outros fatores apresentam-se como causas mais imediatas dos comportamentos observados. Estes, entretanto, ou se articulam com o quadro de isolamento como derivações de seus fatores básicos, ou não são específicos da organização objeto de nosso estudo.

Entre os primeiros poderíamos arrolar, por exemplo, a impressionante queda do poder aquisitivo do funcionário público paulista nos últimos anos. De 1970 a 1976, os vencimentos do funcionalismo cresceram 292% enquanto que o salário mínimo regional cresceu 407% e o índice do custo de vida em São Paulo 491% (cf. Fundap, 1977 a). Este fato relaciona-se, de um lado, à diminuição das receitas estaduais em virtude da centralização dos instrumentos de política tributária, e de outro, à política salarial inspirada nos conceitos monetaristas da tecnocracia. Como vimos, a tecnocracia atribuía ao custo do pessoal subalterno a causa da ineficiência da administração pública. Tal postura, além de sua conseqüência salarial óbvia, resultou ainda em outros problemas para os funcionários. De fato, ajudou a consolidar a imagem da administração pública e do próprio funcionário como ineficiente. Como pudemos verificar anteriormente, os funcionários presentes em nossa amostra incorporavam, de certa forma, o raciocínio tecnocrático, quando aceitavam que a ineficiência do funcionalismo levava ao aumento excessivo do número de funcionários, o que, por sua vez, era uma das causas do rebaixamento salarial.

Por outro lado, como vimos, a tecnocracia provém de setores diferenciados da administração — o militar, o acadêmico — ou do setor privado. Sua legitimação não se dá através de eleições ou de quaisquer outros processos de representação política. Ela se impõe sobre a burocracia executora como corpo técnico capaz de dirigi-la, orientá-la, torná-la “eficiente”. Além disso, a tecnocracia surge no bojo de processos de ampliação da administração descentralizada — empolgando seus principais cargos — e nos processos mais recentes de reforma administrativa da administração direta. Em ambos os casos, constata-se uma tentativa de privatização da administração pública, que torna mais obsoletas as rotinas até então impostas aos funcionários. Estes, circundados por um ambiente organizacional privado mais desenvolvido, dirigido por uma tecnocracia que o “representa”, aviltados salarial e profissionalmente, tendem a manifestar o tipo de comportamento detectado na pesquisa. Entende-se assim, inclusive, a imagem, sob muitos aspectos fantasiosa, que o funcionário público constrói das organizações privadas.

Ainda no quadro de determinações expresso no isolamento da administração pública paulista inserem-se outros exemplos de causas mais imediatas da insatisfação dos funcionários, tais como: uma política de pessoal obsoleta e autoritária que não prevê a negociação entre as partes e a representação sindical; a impotência no atendimento da demanda pela expansão e melhoria dos serviços públicos expressa na constante carência de recursos, principalmente nas unidades mais próximas do usuário — e mais distantes dos gabinetes; e muitos outros.

A análise de cada um desses fatores, dentro do quadro de determinações proposto, resultaria, a nosso ver, em um melhor conhecimento de nossa administração estadual. É neste contexto que reside a sua especificidade. Os modelos de análise organizacional e comportamental discutidos no capítulo 5 são instrumentos eficientes de diagnóstico para intervenção terapêuticas imediatas e localizadas. Como tal, estão incorporados à cultura das organizações contemporâneas. Seu poder explicativo, entretanto, é bastante limitado, como de resto toda a análise funcionalista que os inspira, como vimos.

3. DESINTRODUÇÃO OU RELEVÂNCIAS TARDIAS

“Enfim a minha vez”, pensou, já cansado de esperar na longa fila em frente ao guichê n.° 32. Apressou-se em abrir a pasta e apresentar o requerimento devidamente selado. Do outro lado, uma expressão indecifrável passeou os olhos sobre o papel.

— Não é aqui.

— ..............

— Deve ser no Departamento de Insignificâncias. Talvez seja lá... O próximo!

Não saiu sem antes tentar decifrar a expressão da esfinge guardiã do guichê. Coisa já vista, antiga e, no entanto, indecifrável: Sempre.

Departamento de Insignificâncias, rua tal, esquina com, perto não-sei-de-onde, lá vai ele. Outra fila, felizmente menor, sua vez se aproximando. A ansiedade se desfaz discretamente em sorriso ao ouvir o tranqüilizante “é aqui sim senhor”.

— ...!

— Mas, infelizmente, está faltando a guia de abdicações.

— Guia de quê?

— Abdicações e Transitoriedade Indelével. Olhe, o mais fácil é ir até aquele escritório. Está vendo? Eles fazem num instante. Depois volta aqui, não precisa entrar na fila.

Domingo de sol claro, céu azul, e as pessoas desfilando roupas leves e coloridas. “Ah, o verão”, consolou-se, “a culpa é do verão”.

A mãe saiu levando a menina que acabara de tomar a quarta vacina. E ele não conseguia esquecer o decote que se fez mais generoso no momento em que a mãe segurou a criança para a aplicação. “Assim está bom” — e enquanto dizia à criança as palavras de consolo de sempre, seus olhos desobedientes procuravam paraísos sonhados.

Agora era preciso concentrar-se, pois estava diante de um caso mais complicado. A pessoa apresentava sintomas de uma reação alérgica à vacina e, segundo a recomendação médica, deveria receber doses menores e mais espaçadas. E esse controle competia a ele, o atendimento de plantão.

O doente, um rapaz com cara de cansado, não perceberia que, à falta de agulhas adequadas, o atendente seria obrigado a se esforçar muito mais para evitar uma aplicação dolorosa. Terminada a aplicação, agradeceria como se lhe tivessem salvo a vida. Ou nem tanto.

Dois outros pacientes aguardavam sua vez enquanto se procedia a esterilização das seringas. Aproveitou esse momento para dirigir-se à escrituraria e fazer a pergunta de sempre. Nem foi preciso. Quase sem tirar os olhos do Diário Oficial ela disse:

— Ainda não saiu.

O atendimento perdia a esperança. Há três meses substituía o auxiliar de enfermagem que conseguira emprego num hospital particular. Aguardava uma diferença de vencimento que poderia não sair. Alguém lhe disse que o diretor estava enganado quando permitiu que assumisse as atuais funções. Auxiliar de enfermagem é profissão regulamentada, exige diploma e coisa e tal. Não pode ser substituído assim, sem mais.

“Se pelo menos me aumentassem...”, pensou enquanto caminhava para a sala de aplicações. O pior era que um próximo concurso colocaria em seu lugar um auxiliar de enfermagem inexperiente e que o abrigaria a retornar às tarefas burocráticas e braçais, típicas de seu cargo.

Sorriu ao ver aquele menino que nunca chorava ao tomar as vacinas. Ao contrário, ria muito e o chamava de tio. Ao preparar a seringa, pensava novamente no decote.

John Rehfuss, no primeiro capítulo de seu estudo de 1973 sobre Administração Pública, afirma que “a solução final para a questão judaica em Buchenwald foi levada a efeito por burocratas impessoais. Tais atos eram claramente políticos, ainda que os advogados de defesa em Nuremberg apelassem para o fato de que eles estavam meramente cumprindo ordens”. Para o autor não há dúvida de que o “Comportamento administrativo nas agências públicas é melhor compreendido como comportamento político” — ainda que a literatura existente sobre comportamento administrativo raramente preste a devida atenção a este fato (1973:1).

O comportamento administrativo consolida procedimentos e rotinas que terão seu peso relativo na tomada de decisões políticas. As grandes decisões, ainda quando tomadas no parlamento e, desta forma, submetidas ao exame público, apenas ganham forma quando se materializam em condições menores, novas operações inseridas nas rotinas preexistentes.

Por outro lado, quando a proposta de legislação parte das próprias agências executivas, ela muito provavelmente traz a marca da cultura que a gerou, congruente com as rotinas e o comportamento administrativo.

Para Rehfuss, entretanto, “o comportamento administrativo tem mais que um impacto acidental, ou mesmo substancial, sobre a tomada de decisão política. O ato administrativo cria, de muitas maneiras, expectativas sobre o que o governo deve e pode fazer. As atitudes do cidadão acerca de lei e ordem são formadas mais pelo comportamento do policial de tráfego e do Juiz do Tribunal, que pelos debates políticos entre candidatos a cargos” (idem, idem).

4. EM BUSCA DA LUZ NO FIM DO TÚNEL

Constatamos dois problemas considerados como relevantes para os estudiosos de ciência política e de administração pública no Brasil. Trata-se, respectivamente, da ampliação da participação política, e da eficácia da administração pública. Propomos que os problemas sejam considerados como faces da mesma moeda.

O primeiro tipo de preocupação é claramente manifesto por Lamounier quando considera como oportuno e necessário que se busquem formas “...de tornar mais densos os canais de representação e encontrar fórmulas de participação mais ágeis, capazes de suplementar, não de substituir, a participação através de eleições clássicas (Lamounier, 1978:56).

Por outro lado, o aperfeiçoamento dos sistemas eleitoral e partidário, e da composição do poder legislativo, se bem que necessário, não seria suficiente. A crescente importância do executivo, não só como fenômeno nacional, e as tendências oligarquizantes que, muitas vezes, acompanham os partidos políticos e o próprio poder Legislativo, exigem a adoção de formas ou canais suplementares de representação. Para Lamounier,

“É além disso, necessário que o legislativo e os partidos se modernizem para que sua atuação não se limite à função clássica de legislar, mas, ao contrário, se exerça também como poderes de fiscalização e de denúncia. Esta última consideração parece essencial, não só em vista da importância decisiva do executivo no mundo de hoje, mas também porque não se configuraram ainda fórmulas satisfatórias de controle direto da população sobre as burocracias (quer públicas, quer privadas)” (idem: 53).

Para o autor, os canais suplementares de representação poderiam concretizar-se através de medidas como “...ouvir diretamente a população em questões regionais...”, “...tornar obrigatória a recepção pelos poderes públicos de petições encaminhadas...” e “fazer eleições mais freqüentes e aumentar o número de cargos eletivos” (idem: 54-55).

Quanto à administração pública, não é difícil constatar sua imagem de ineficiência junto à população. Como vimos na primeira parte, parece ser esta também a opinião de muitos funcionários. Finalmente, as diversas reformas administrativas, os vários órgãos encarregados de implementá-las, o recente Ministério Extraordinário de Desburocratização, etc, atestam essa preocupação por parte do governo.

As mais recentes reformas caracterizam-se por uma tentativa de aproximar as políticas e práticas de gestão públicas das vigentes no setor privado. São iniciativas governamentais e, não raro, traem uma expansão da própria burocracia. Além disso, excluem qualquer possibilidade de aumento do controle da sociedade civil sobre a administração pública.

Com um parlamento já inibido diante de um Executivo que, de fato, legisla sobre os assuntos mais importantes, assistimos, de um lado, uma administração emperrada insistindo em solucionar tecnicamente seus problemas de eficiência e, de outros, sua imunidade e recusa em ampliar seus canais de comunicação com a sociedade civil.

Isto acentua seu isolamento da maioria da população, que nem sempre encontra formas sequer de fornecer informações imprescindíveis ao planejamento dos serviços públicos.

A realidade nega a racionalidade autoritária baseada na suposta necessidade de não ingerência de um público disforme e incompetente nos assuntos governamentais de alta complexidade técnica. Ao contrário, notamos que tais assuntos têm sido mal diagnosticados e pessimamente solucionados justamente porque nesse processo falta participação popular. O autoritarismo tem sido, além de tudo, ineficiente.

Quanto aos funcionários públicos, é preciso lembrar que boa parte de sua problemática se relaciona com a imagem anacrônica e ineficiente da administração pública, como vimos. Outros aspectos centrais, como desenvolvimento profissional e perspectivas salariais, dizem respeito a uma política de pessoal decidida unilateralmente, fruto também da ineficiência autoritária.

Tal configuração é parte do quadro mais amplo do isolamento da burocracia executora paulista proposto no item 2 deste capítulo. Seu rompimento dar-se-ia pela ampliação da participação política inclusive sob a forma de canais diretos junto aos órgãos do poder executivo. Além disso, soluções mais específicas para a problemática do funcionalismo público deveriam ser buscadas, através de métodos mais democráticos de gestão e do fortalecimento de suas entidades de representação.

As soluções técnicas, sem a alteração do quadro na direção proposta, mostraram seus limites.


 

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Notas

 

(*) Quanto ao detalhamento da amostra, técnicas e procedimentos veja-se Axioma, 1977 — GEAP, 1977.

(1) — Bourdieu, Pierre — Condições de classe e posição de classe. In: Miceli, Sérgio, ed. — A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Perspectivas, 1975. Citado em Rodrigues (1980). p .48.

(2) — Cf. Rodrigues (1980: 48). A outra forma de ingresso que a autora observa — nomeação por influência política — ao nosso ver só faz ressaltar o quanto há de paroquial no conhecimento das oportunidades de emprego público.

(3) — 5% de aumento a cada cinco anos de exercício.

(4) — Sua obtenção exige que não haja mais de 30 faltas no período de cinco anos, o que é mais difícil para os que assinam ponto.

(5) — À época da pesquisa não havia 13.° salário para os funcionários públicos estaduais. Foi introduzido em 1978.

(6) — Weber, 1976. Posteriormente surge a separação ainda entre propriedade e administração na moderna empresa privada. Em alguns trabalhos empíricos (p. ex. Hall, 1976), provavelmente confunde-se as duas formas de separação, aparecendo apenas a última.

(7) — Um excelente estudo sobre formas e mecanismos de doutrinação ideológica pode ser encontrado também em Pagès (1978).

(8) — Hugo Münterberg, Psychology and Industrial Efficiency (Boston e Nova York, 1913) — citado em Braverman (1980:127).

(9) — cf. H. Braverman (1980), S. Weil (1979) e G. Friedmann (1972).

(10) — “A ciência na China é reservada ao funcionário do Estado”. Hegel, “Principes de la Philosophie du Droit”. Paris. (Gallimard, 1940). Citado por Tragtenberg (1972).

(11) — Max Weber, “Economy and Society”. New York. (Bedminster Press: 1968) — citado por S. Schwartzman, 1975, p. 39.

(12) — C. Furtado — “Formação Econômica do Brasil”. São Paulo (Nacional: 11a. ed.) — Citado por Schwartzman (1975).

(13) — Além de S. Schwartzman (op. cit), q. v. M.C.C. Souza (1977), J. Love (1975: a e b), J. Wirth (1975) e R. Levine (1975).

(14) — Cf. Decreto-Lei 579 de 30.07.38, art. 2.°, alínea g. Citado por Demange (1980: 71).

(15) — A análise de tais mecanismos poderá ser vista em N. J. Demange, 1980, principalmente cap. IV.

(16) — Não desconsideramos o fato de que alguns desses segmentos têm sido os principais beneficiários de políticas econômicas do governo, sobre as quais conseguem influir através dos inúmeros “anéis burocráticos”. Entretanto, tal influência se exerce, na maior parte das vezes, através de relações individualizadas entre os interessados e funcionários em posições-chave, caracterizando uma participação débil, sob controle, e sujeita a alterações por parte do governo. Ver a esse respeito F.H. Cardoso, 1975, p. 201-209.


 

O Autor

 

Levi Bucalem Ferrari (levi@mhd.org) — Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor da Universidade Católica de Santos. diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos. Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana-Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo. Presidente da UBE.

Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.

Conhece burocratas e burocracias profundamente. Foi Coordenador da Implantação do Sistema de Administração de Pessoal do Estado de São Paulo, Diretor de Operações do CENAFOR, Professor e Diretor do ensino de primeiro grau. Coordenador Técnico do Programa Estadual de Desburocratização e perito em projetos da UNESCO, OIT, OEA, BIRD E BID.


 

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Julho 2006

 

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