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BACANTES
Ayahuaska no Teatro Oficina

Ana Vitória Vieira Monteiro


 

Bacantes — Ayahuaska no Teatro Oficina
Ana Vitória Vieira Monteiro

CRÉDITOS
Primeira gravura autoria de LÍBERO MALAVOGLIA
Segunda gravura autoria de CELSO PIERRE

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Documento da Autora

© 2000,2006 Ana Vitória Vieira Monteiro
maraka@zaz.com.br


Í N D I C E

A Autora
BACANTES — AYAHUASKA no TEATRO OFICINA
CONVERSANDO um pouco com você
O TEMPO de I Ó
Eu e as Bacantes no Teatro Oficina — meu texto original
NO TEATRO RESGATANDO A TRADIÇÃO
TEMPO
RODA DE FOGO
TEMPO
Ponderações finais


 

A Autora

HISTÓRICO DE ANA VITÓRIA

Nasci em 2-2-45. Devido à vitória dos aliados na guerra recebi o nome de VITÓRIA, na cidade de São Carlos. Aos 5 anos junto com minha a família vim para São Paulo e aqui permaneci, estudando piano, fazendo os estudos primários e secundários no bairro da Penha, FUI trabalhar no jornal da Penha onde tinha uma coluna para jovens, FUI para a Radio Marconi, casei com o radialista jornalista Gil Gomes indo morar no Jardim da Saúde, tivemos três filhos, estudei astrologia e pintura, tapeçaria espanhola e 14 anos depois nos separamos — estudei Acupuntura, Shiatisu, Doin e Parapsicologia, abri a Clinica Vitalísta para Celso como terapeuta acupunturista — recomecei a escrever editando jornais alternativos – participei de movimentos de Ecologia de preservação animal e vegetal, dei palestras por todo o Brasil — fechei o consultório depois de 12 anos e FUI realizar meu sonho — ser escritora — meu filho primogênito Guilherme Gil Gomes que trabalhava com o pai veio a falecer prematuramente de hepatite C — Daniel entrou para a faculdade de direito e se casou, me deu três netas, a Vilma se formou advogada e casou — embalada por impulsos interiores tive a loucura de não desistir até que este sonho virasse realidade!

Escrevi para TEATRO e foram encenados — O DISCO SOLAR — CHICO MENDES e o ENCANTADO — BRASIL OUTROS 500 — VIZINHA de NOÉ.

Inéditos — MÃE da MINHA MÃE — PRATOS LIMPOS — FOGO ETERNO

Entre no meu SITIO na net onde você pode saber mais sobre a Ayahuaska:
A Arte do Êxtase
www.maraka.atfreeweb.com
ou
http://membro.intermega.com.br/maraka


 

BACANTES

AYAHUASKA
no
TEATRO
OFICINA

Ana Vitória Vieira Monteiro


 

A primeira grande dificuldade enfrentada é saber com clareza e precisão o que buscamos. Só quem sabe o que procura pode encontrar.
(Princípio filosófico da Lei sobre o uso do oráculo)

Dedico este Conto à deusa Mãe.
Confio aos que ouviram e falaram com os deuses sempre vivos, e aos que com eles convivem.


 

CONVERSANDO
um pouco com você

A experiência com AYAHUASKA no TEATRO — especialmente no TEATRO OFICINA — foi um acontecimento único que exigiu coragem, determinação e bênção, motivadas pelo desejo forte e pela certeza de estar prestando uma contribuição significativa a muitas pessoas.

O ser humano moderno, preocupado com os avanços científicos e tecnológicos, está entrando agora em confronto com os valores vindos do passado remoto da humanidade. Estes ressurgem com força suficiente para abalar as sólidas estruturas do inconsciente coletivo, interferindo na sociedade em atual transformação.


 

O TEMPO de I Ó

Curiosa como sou, fui a São Lourenço visitar o Templo Vitória, num dia especialmente belo em que o céu estava sem uma nuvem, azuladamente claro. Chegando na praça onde havia um pilar que me fez lembrar uma cidade romana, notei que nele havia uma inscrição curiosa:

Lado ocidental:
"Glória a todos aqueles que chegaram a este lugar. Está localizado entre o 22º e 23º grau da latitude sul, no trópico de Capricórnio por Lei traçado. É a demarcação do final de um ciclo e início de outro. Acompanhando tais pessoas os gêmeos espirituais, o parelha manusica, através do Itinerário de IÓ — INRI – SL/SP".
Lado oriental:
"Glória do mesmo modo àqueles vindos de todas as partes do globo, que assim o fizeram devido às excelsas irradiações que este lugar emana. É o Templo dedicado ao supremo arquiteto manifestado no Avatar Cíclico, conhecido como Maitréia. Aos mesmos, a Lei que a tudo e a todos rege, faculta o insigne privilégio de serem considerados como sementes da nova civilização".

O oriente se volta para o ocidente.
AUM*

Olhando no vazio de meus pensamentos pensei quase descrédula de verdade, no que queria dizer aquilo na realidade: Ser semente de uma nova civilização?

Mas... — acreditei.

__________________
* — Representa o som primordial, o verbo do universo = Amém


 

Como terapeuta às vezes alguém me dá coisas diferenciadas para ler e muitas vezes me fazem depositária de escritos "importantes" — um dia um rapaz meu amigo não muito dado a confidências e arredio a visitas sociais, apareceu em meu consultório sem aviso me pedindo para guardar uns escritos que ele havia "roubado" de alguém; notei que estavam cuidadosamente guardados em uma caixa de papelão grossa e embrulhados em papel acetinado vermelho com delicados desenhos de flores amarelas, pediu que somente abrisse dali a quatro anos. Relutante acabei guardando; só depois que ele morreu vítima de uma doença incurável no princípio do ano 2000, é que lembrei e fui ler pensando se tratar de um testamento, "as suas últimas vontades" ou documentos comprometedores.

Abri a caixa. Antes mesmo de ler o seu conteúdo na primeira página me surpreendi: a letra dos papéis era a minha — eu conhecia, eram coisas minhas, era eu quem havia escrito!

Pensei em falsificação ou coincidências da vida e me emocionei. Depois de reler rapidamente, não restava a menor dúvida, ninguém poderia inventar aquelas coisas por mais imaginação que tivesse.

Por que ele fizera aquilo, dar para mim os meus próprios escritos dizendo que havia roubado, sendo que eu nunca notara falta de papel algum no meu escritório...

Mesmo assim corri para minhas pastas e lá estava o meu caderno, comparei os dois escritos exatamente iguais, com uma diferença, o que ele me dera estava em tempo passado como um relato que alguém havia visto e o meu no presente. Tentei relacionar os fatos dos escritos com ele e nada achei que os ligasse e nem razão para tal procedimento pois nada do que estava ali tinha a haver com a sua pessoa, e naturalmente pensei que era uma brincadeira bem humorada.

Muito curioso tudo isso — decidi mostrar o caderno tal como este meu amigo me entregou e o faço em sua homenagem.

A escrita começa sem nenhum prólogo nem justificativa mas o meu tem algumas anotações anteriores aos fatos, com a diferença que os títulos e as primeiras letras estavam desenhadas como a minha avó fazia nos diplomas escolares, ele jamais poderia saber disso, além do mais quando me entregou os papéis eu havia acabado de ir a São Lourenço, achei que uma coisa deveria ter relação com a outra. Visto que IÓ é uma divindade feminina grega.


 

 

Eu e as Bacantes no Teatro Oficina — meu texto original

Tinha marcado hora com aquele astrólogo cubano de olhos azuis, radicado no Brasil. Toquei a campainha do apartamento e ele surgiu sorridente e já íntimo.

— Buenas tardes!

— Posso entrar?

— Entre — Acabei de estudar seu mapa astrológico. Sente-se.

— Estou preocupada com a passagem de Saturno na casa doze em Peixes — iniciando a conversa diretamente ao que me levara até ele.

— Melhor deixar Saturno sossegado, ele só está terminando um ciclo. Trata-se de um período de trabalho de clarificação das dimensões transcendentes e sutis. Elas constituem a fonte de força mais oculta, que vai ajudar a superar os obstáculos da vida. O importante aqui, "guruga", é Urano em trânsito por seu Mercúrio natal, no ponto superior da abençoada Estrela de Davi. Prepare-se para dar passagem a conhecimentos de poder para todos. "Hasta la Victoria, siempre, para trás ni para coger impulso".

— Estou confusa, sinto um certo isolamento interior.

— Eu sei, mas você vai conseguir. Maria José (nossa amiga comum) disse que você está fazendo um bom trabalho com o Santo Daime (eu havia recebido dez litros do Peru através de um amigo xamã). Com este mapa astral maravilhoso, você é quem eu procuro, a pessoa certa para ser mensageira do "Novo Vinho" no Teatro Oficina — olhe que coincidência – no dia em que estava pensando nisso recebi seu telefonema! Está pronta para ouvir uma linda proposta?

— Estou, acho. (olhando automaticamente para o cartaz da peça de Oswald de Andrade, Mistérios Gozosos encenado no OFICINA meses antes pendurado numa das paredes) mas deixe-me corrigi-lo, não é Daime é Ayahuaska, pois Daime é o nome de uma religião que usa Ayahuaska, como a UDV, que diz que a bebida Ayahuaska é um vegetal, o que eu tomo é Ayahuaska, sem religião.

Ele sem me ouvir continuou: Que tal um grupo de bons atores, cabeças abertas, fazendo um grande ritual no teatro? Trata-se da obra do ano 400 a.C.escrita por Eurípedes, que exilou-se na Macedônia e foi viver perto de um grupo das sacerdotisas de Dionísio conhecidas como Bacantes, sendo aceito em seus rituais. Acabou se convertendo ao culto deste deus e escreveu "As Bacantes", sua última obra trágica, contando a história de Dionísio e suas sacerdotisas e do estraçalhamento de seu primo Penteu (confidenciando em voz baixa, inclinando-se mais perto de mim e acrescentou) dizem até hoje que foi morto por elas ao querer revelar o culto que era secreto, seu corpo foi achado todo estraçalhado, parecendo coisa de cachorros ferozes (visualizei o corpo do dramaturgo todo ensangüentado no chão, e pensei ser um preço alto por uma boa história).

— Dionísio é a mesma divindade asiática, da cidade de Nise, na atual Índia. "Dionísio" é o deus nascido duas vezes, que é cultuado no teatro até hoje, não é?

— Exatamente! Bacantes conta a sua história. Está sendo ensaiada no Oficina pelo Zé Celso. Desde que cheguei ao Brasil estou esperando por isso, olhe que lá vão 13 anos. Houveram várias tentativas de encená-la lá no Oficina, mas sempre acontece alguma coisa que atrapalha. Vamos levar o Daime — a AYAHUASKA — às Bacantes! Somente assim se poderá realizar um ritual sagrado.

— Você já tentou pedir o chá aos grupos religiosos de São Paulo do Daime?

— Já, mas eles só concordam se os atores forem até a igreja do Daime. Três atrizes foram e gostaram, mas o que nós queremos é tomar durante os ensaios, fazer o rito dionisíaco nosso.

— E o que posso fazer? O pouco de Ayahuaska que tenho não dá para um grupo inteiro de TEATRO, não sou daimista nem pertenço a UDV, gosto de tomar Ayahuaska para meu auto-conhecimento, que utilidade teria para vocês?

— Além de levar Ayahuaska você precisa estar lá presente, coordenar o ritual, dar segurança ao atores.

— Vocês são loucos?

— Loucos coroados graças ao Deus.

— Só Saturno para me meter numa coisa destas, com esta idéia tirar-me mesmo que por minutos da depressão e o próprio astrólogo me dizer que esta era a minha solução (considerei a hipótese).

— Minha linha filosófica é de raiz, sou terapeuta acupunturista (considerando que o Teatro OFICINA é um lugar de idéias inovadoras...)

— Guruga, Dionísio é Tradição, em seu nome instituiu-se a religião dos MISTÉRIOS anterior a Cristo, é importante, estão dispostos a se dedicar, tenho certeza que vai chegar mais Ayahuaska na tua mão guruga, se não chegar eu aceito que não devemos fazer isso, está bem?

— Para mim está bem, deixemos que a vida faça seu jogo final, é o tempo de Saturno passar.


 

Semanas depois o Hector veio em minha casa para continuar a conversa sobre Bacantes:

— Sei que está preparada, guruga! Há muitos anos você se dedica a tratar de pessoas, e tem astral e energia especiais. Na Grécia, cantavam em coro as Boas Novas nos Evangelhos de Dionísio, todos os anos, até que um sacerdote, na força do deus, declarou em transe: "EU SOU DIONÍSIO". Nesse momento nasceu o primeiro ator. Depois as pessoas puderam assistir às celebrações dionisíacas, como platéia. Essa passou a ser a forma de ensinar os não iniciados. O teatro estava construído em uma praça que recebia a proteção de Apolo, mas o interior do teatro em si pertencia a Dionísio!

— Ouvi dizer que os cantos dessa peça são palavras dos Evangelhos de Dionísio. Eles estão seguindo isso?

— Todinho, vinte e cinco cantos. É o que conduz a peça.

— E qual é o objetivo?

— Realizar um ritual em homenagem ao deus do TEATRO, do Vinho e da REPRESENTAÇÃO, levando de verdade as BOAS NOVAS, assim como ele fazia ao chegar na cidade com o seu cortejo, no solstício de inverno. Seria soberbo limpar no astral a deturpação que houve do verdadeiro sentido de sua festa, em Roma. Lá ele recebeu o nome de Baco, virou sinônimo de alcoolismo e orgias sexuais, o que provocou a queda do império!

— Você disse Baco...

— Ele ficou com essa imagem no mundo todo. Suas festas são celebradas até hoje, principalmente no Brasil: a origem do nome Carnaval é o "carro-naval" com que o deus chegava às cidades vindo do MAR!

A minha cabeça tonteava — entusiasmei-me, ele continuou — O teatro e o sagrado sempre estarão ligados.

— Faremos o trabalho sem platéia, um ritual verdadeiro. Além do mais o Teatro Oficina foi construído especialmente para encenar Bacantes. Conhece essa história guruga?

— Não. Conte, por favor, (sabia somente que o Oficina foi um pólo importante da resistência na época da ditadura, encenou peças importantes como o Rei da Vela, e que grandes atores passaram por lá.)

— Sim, depois pegou fogo. Reconstruíram com uma arquitetura própria para Bacantes: teto móvel, uma fonte de água, uma pira de fogo no meio da pista onde acontecem as cenas, um canteiro com terra e árvores plantadas.

— E a platéia onde fica?

— Dos lados, como nos peitoris como de um navio, tudo em canos de ferro azul, dando a sensação que estamos no mar.

— Sei que os atores conhecem o transe da representação, mas não conhecem o transe da AYAHUASKA. Isso assusta um pouco. Os cantos já estão ensaiados?

— Acho que quase.

— Quando eles estiverem prontos, avise!

— Obrigado pela compreensão, Ana. Ninguém fez isso antes. Trabalhar com Dionísio não é uma tarefa fácil, só mesmo quem tem a ver com ele.

— Não tenho a menor dúvida.


 

 

NO TEATRO
RESGATANDO A TRADIÇÃO

Neste ínterim por razões que somente Deus é capaz de explicar "alguém" me ofereceu 20 litros de AYAHUASKA (senti com isso que tinha licença espiritual para levar ao teatro), mas não tinha dinheiro para pagar; pedi três dias de prazo. Na mesma semana meu filho mais velho Guilherme, me deu esta quantia como presente de aniversário atrasado pois já tinha passado quatro meses do mês de fevereiro.

Aqui começa o texto de meu amigo:

Um segundo de concentração teve o peso da eternidade. Os atores, já com seus figurinos desceram para o penúltimo ensaio geral, fazendo um círculo no meio do teatro, numa pista de terra batida. Confiro o relógio que marca 20hs e 30, a lua estava crescente no signo de aquário.

Ana respirou profundamente, colocou o manto pérola sobre os ombros, entrou na roda, acendeu a vela e a levou para o canto do jardim, contemplando os rostos ansiosos que a olhavam curiosos, coroados com folhas de era na cabeça e tirsos nas mãos, inevitavelmente pensou na antiga Grécia, quando esta mesma cena provavelmente teve lugar.

Serviu então a dose do Vinho Novo a cada ator, músicos, contra-regras, técnicos de luz e som, o pessoal da produção; tomou a sua dose (pensando em dizer algo depois das explicações preliminares, sentiu que não controlava o que dizia e falou):

— Estamos fazendo hoje um resgate. (estabeleceu-se um silêncio, olhares se encontrando, o diretor apontou para o alto e todos subiram as escadas cantando) "chegou, chegou, chegou, afinal que o dia dela chegou" um frio percorreu a sua espinha".

Primeiro sinal — Procurou um lugar e sentou.

Segundo sinal — A luz apagou.

Terceiro sinal — A porta da frente abriu – Cronos (Saturno "o quê este deus está fazendo na história de Dionísio?"se pergunta perplexa) entra e toca o berrante, entram todos com tirsos e coroa de hera gritando a saudação de Dionísio: IÓ, IÓ, IÓ!

A platéia de 20 pessoas, os fiéis amigos que chegaram quase sem fazer barulho (e também tomaram AYAHUASKA) responde IÓ, IÓ, IÓ! — Evoé, Baco!

O teto móvel se abriu, fogos de artifícios pipocaram, anunciando a chegada do DEUS (num segundo esqueceu Saturno) trazendo todo o seu cortejo e cantando dentro dum carro-naval aberto prateado:

"Das terras da Ásia, das Santas
Montanhas floridas do Tímolo,
Eu chego com o deus do barulho. IÓ! IÓ! IÓ!
A dor é doce, o fardo leve.
Cantando, Evoé Baco Evoé!!!"

 

A noção de tempo começou a desaparecer, estavam entrando em outro estado de consciência. Ela olhou em volta, Hector sorriu e abaixou os olhos; sozinha fez as suas orações, lentamente observou os atores, que não se perderam nem por um minuto, não erraram nem a marcação. Rapidamente criaram agilidade, ritmo e leveza, ao som de lindas melodias de louvação a Dionísio, que na voz e no corpo de um ator, declara para a eternidade (esta tragédia é encenada a mais de dois mil anos, e por esta repetição tem força de rito sagrado):

— "Cheguei. Vim da Ásia, mudei a minha forma divina para a forma humana, SOU DEUS FEITO HOMEM!".

Reverenciou o Deus: Misericórdia. Naquele momento VIU a DIVINDADE da representação. Num impulso irresistível, Héctor, Roman e ela beijaram o chão. A tempo ainda de ouvir os gritos do deus no ator soarem por todo o TEATRO:

— "Esta cidade vai aprender, queira ou não, que precisa de iniciação em meus rituais. Vim defender a causa de minha mãe".

Ana olhou para o último andar e não viu o operador da iluminação junto aos holofotes. Foi procurá-lo, e encontrou-o vomitando no banheiro.

— Estou passando mal, que crime eu cometi? – disse ele, em prantos.

— Respire, respire e veja aonde deve reconstituir sua realidade, rompida em algum lugar do tempo.

— A minha espontaneidade acabou, e o prazer de viver também — disse ele, olhando na direção da pista e começando a pedir perdão.

Quando ela teve certeza de que o técnico estava bem, abriu a porta do banheiro, deu descarga e limpou o chão. Acendeu um incenso para amenizar o odor que impregnava o local.

Ana desceu as escadas na hora em que Dionísio festejou com seus adeptos. Entrou no coro e dançou com as Bacantes junto a os Sátiros num só impulso.

"Penteu chega e não aceita o novo deus — seu primo. Tirésias e Cadmos alertam o jovem governante de sua loucura em não aceitar a presença do deus em suas terras".

Percebeu que uma das atrizes do CORO de BACANTES não estava bem. Subiu novamente aos camarins, e encontrou uma Bacante lacrimosa:

— Não podem fazer isso com ele, não podem prendê-lo.

Chorando se revoltava com a prisão de Dionísio – Ana pensou — está captando o passado.

Ouviu Penteu falar a Dionísio:

—"Quem te tirou da masmorra?"

— "Aquele que traz a vinha".

O ator que representava Dionísio olhou para ela, que entendeu que ele queria o "Vinho Sagrado" — a AYAHUASKA na taça. Largou a bacante e levou a ele, que levantou o cálice e a consagrou. Uma luz dourada riscou no espaço do teatro, Ana levantou os olhos na contemplação de tão maravilhosa visão. As poucas pessoas da platéia se mexiam como se estivessem levando chicotadas, alguém jogou-se no chão, outros sussurraram alguma coisa.

Todos tomaram novamente um pouco mais de AYAHUASKA.

A moça ao lado estende os braços, e de suas mãos saíam fachos de luz abençoando a todos. O operador de pim-bim continuava chorando e pedindo perdão. Cupido dança, flechando algumas pessoas com seu amor.

O Mensageiro fala:

— "Penteu, aceita este novo deus nas suas terras"! Descreve as maravilhas e também as barbaridades que as Bacantes fazem, estraçalhando os bois que encontram (pegam alguém na platéia, que, com o olhar, concorda em ir fazer o papel de boi).

No último ato Dionísio se apresenta aos olhos de todos na sua forma divina, vestido de touro preto com chifres. Saúda Pã, leva o primo Penteu para espiar as Bacantes, que em companhia de Agave e Hino dançam para o deus cantando:

"Qual é o mais
lindo presente
Que os deuses dão
para os mortais
É o que é mais lindo!
É o que é mais bonito!
Ter a cabeça do inimigo nas mãos
E a sabedoria de tocar
Para ele ver de pé a nossa VITÓRIA!!!"

Agave o confunde com um animal e o mata. Dionísio assiste ao estraçalhamento feito pelas Bacantes impassível. (os atores costumam dizer que Dionísio, ou seja, o Teatro, estraçalha o mau ator, aquele que não tem a adoração pelo personagem que representa no coração, devido a este fato é que o Teatro é considerado um templo sagrado).

Pegando o coração do primo, Dionísio vai embora para a Porta do Sol com APOLO. Cadmos continua sua cena contando à filha Agave o que ela própria fez com seu filho; segue-se o doloroso arrependimento desta rainha enquanto Dionísio, antes de ir embora, os expulsa do Teatro, por não saberem RECONHECE-LO COMO DEUS.

Na encenação concebida por Zé Celso o ator que acabara de representar o Deus volta vestido de todas as cores do Arco-Íris e começa a esmagar uvas com os pés, convidando todos a imitarem o gesto.

Ana tirou os sapatos e esmagou as uvas, dançando alegremente, depois de oito horas de ensaios dionisíacos, do que foi para ela um BATISMO de FOGO nos ritos do deus do Transe da Representação DIONÍSIO

               IO
IO
                    IO
                         IO Semele a grande Mãe!


 

 

TEMPO

No dia seguinte escreveu: "Peço perdão a Dionísio que desejou que no planeta Terra toda matéria fosse.

estraçalhada ou morta por doenças e velhice.
Mergulhada
Sinto que os enganos da vida são fatais.
Necessito para ver,
escrever e morrer!"

 

Meditou muito sobre os efeitos daquele RITO no Teatro, os atores não passaram mal, não incorporaram nada, ao contrário — tiveram que ficar presentes como atores vivendo seus personagens com intensidade, esbarrando na perfeição — cada gesto, cada olhar, cada palavra era exata, trazendo ritmo para a peça e fazendo-a acontecer de fato. Ana Vitoria tivera o privilégio de assistir o melhor do que eles puderam fazer.

No decorrer da temporada houve muita especulação a respeito desse fato, alguns atores chegaram a se indispor com jornalistas por não revelar como foi esta experiência no Teatro.

Tomaram ou ainda estão tomando Ayahuaska? — era a pergunta que não ousavam fazer a não ser aos sussurros.

Apareceram as mães de santo, os pastores e os padres, as putas e os loucos, todos querendo ver com os olhos que a terra há de comer a heresia, o sacrilégio pagão. E quando algum ator de Bacantes caía ou se cortava em cena se via na platéia gente se benzendo. Até carro da polícia entrou em cena com os atores, tinha até fila de carros querendo participar das cenas. Todos os dias mais e mais pessoas traziam flores para ofertar a Dionísio.


 

 

RODA DE FOGO

Ficou amiga de todos, passando a ver sempre que podia as apresentações. Sugeriu que o teatro fosse incensado em todos os dias de representação, já que se tratava de um ritual. Uma amiga passou também a fazer energização prânica em todos, com imposição das mãos. Surgiram depois massagistas, aroma-terapeutas, gente que colaborou naquela maratona que foi a temporada das Bacantes.

A cada quinzena os atores se reuniam em sua casa para uma vivência. Depois ficavam em volta da fogueira, conversando no jardim. Soube da difícil situação da produção artística no Brasil. A arte de representar, o controle da emoção, a disciplina. Teve oportunidade de aprender muito com todos eles:

— A arte é um poderoso veículo de transformações, pois chega a todos, indistintamente. No caso de Bacantes, vi no teatro uma escola espiritual importante, uma verdadeira aula de filosofia e história. O teatro sempre foi usado para ensinar o povo. Aqui no Brasil os jesuítas o usaram bastante.

Uma das atrizes, contou que ao beber o chá durante o ensaio vivenciou a morte e o renascimento, que viu o sagrado e compreendeu o real papel dos atores no teatro.

Senti que foi como no princípio do teatro, quando o ator recebia a iniciação dionisíaca ao tomar o vinho sagrado. Naquele dia eu fiz a minha iniciação, estraçalhando o Penteu interno e entregando meu coração a Dionísio, descobrindo o Deus em mim e adorando-o no outro. Aprendi que isso é necessário cada vez que se entra em cena.

Agora que já temos a possibilidade de encontrarmos o Mestre interno, a arte servirá como fonte de inspiração, religando o ser humano ao divino.

Depois de ter relatado as coincidências que a levaram ao teatro, Ana ressaltou o cuidado que sempre tivera com a bebida sagrada, e a dificuldade em obtê-la, pois na cidade é impossível fazer o cultivo das plantas. Têm que vir de algum lugar, em geral distante. É o preço da civilização. Temos que ter critérios, ponderação e bom censo para oferecê-las a alguém, mesmo se tratando de grupos tão seletos como o dos artistas. Falou da consulta de astrologia, sobre a passagem de Saturno pela casa doze, indicando uma fase difícil. Disse que estava achando melhor passar este tempo ouvindo as Boas Novas de Dionísio no teatro, resgatando a alegria de viver.

— Cada vez que revejo a peça, sinto algum aspecto meu em um dos personagens. Cheguei até a tomar o floral do deserto Agave, que tem o mesmo nome da mãe de Penteu.

— Para que serve esse floral? — perguntou uma atriz.

— Para ter domínio sobre si mesma, e evitar enganos.

— Eu também quero! — disseram todos, quase em coro. Senti que o floral Agave ia ser o segundo sucesso da temporada.

A mãe de Ana que ouvia em silêncio, comentou:

— Sinto que a Arte ainda é a grande saída instintiva da humanidade. Cumpre sua função preservando a cultura do povo. Sem artistas nenhuma religião ou governo se seguraria.

*

Aqui pararam os escritos de meu amigo, mas os meus continuaram com observações que se seguem no TEMPO PRESENTE


 

 

TEMPO

A Tragédia de Eurípedes levou-me a refletir sobre condição humana e sua relação com o Universo. Começamos a mexer o caldeirão da mistura de culturas com todos ingredientes genéticos, nos três níveis. Resultará num novo povo, uma raça, com todas as cores do Arco-íris, provando assim a Unidade do Divino, a Luz do Sol, que ilumina a Lua e a Terra.

Silenciosa,
quase com medo
de que ouçam meus pensamentos.
Ouso pensar
nos estraçalhamentos da vida,
nos amigos de juventude mortos
por defesa do ideal.
No marido comunicador
com tanta dificuldade de se comunicar.
A Neta, o Filho
os antepassados
que fizeram sua Caminhada Sagrada
à terra sem males.
Vivo, entendo,
agradeço,
o que aprendi
com as Plantas da Floresta
pelo toque que recebi do alto astral.

No último dia do Urubusal, minhas mãos libertaram as pétalas de rosas que caíam suavemente sobre Dionísio. Faltavam três dias para o natal — aniversário de mais um filho de Deus. Este grande homem também fez seu vinho. Descendo as escadas, murmuro sua oração automaticamente: "Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome, vamos nós ao vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixai cair em tentação, livrai-nos e protegei-nos de todo o mal. Amém. Amém. Amém."

Várias vozes silenciosas perto de mim, respondem: Amém.

Abri os olhos e vi o Urubusal se retirando, depois de comerem a carne de Penteu, oferecida pelas Bacantes. Um novo tempo começou, olhou as BACANTES estraçalhando Penteu. Curvei-me aos PODERES de IÓ sem duvidar de sua pureza nem da origem divina de seu FILHO — Em Adoração respondo ao grito do velho Sacerdote TIRÉSIAS: IÓ! — que estava ainda perto do corpo de Penteu, e olhando para cima gritou:

VITÓRIA

RIA!
"VITÓRIA, VITÓRIA DA MINHA PAIXÃO !!!"

Soltei o cesto que continha rosas de todas as cores em homenagem a TIRÉSIAS e às BACANTES, joguei um beijo para SEMELE e ainda pude ver a sombra de Dionísio saindo do palco; comigo choraram de emoção todos da platéia, logo depois os atores já estavam recebendo os agradecimentos no segundo andar, não pareciam mais deuses, mas simplesmente atores. No chão algumas pessoas choravam de joelhos, a banda continuava a tocar, enquanto outros pegavam respeitosamente as pétalas do chão como lembrança eterna de um momento mágico.


 

 

Ponderações finais

Demorei muito para ter coragem de ler novamente, mas um dia peguei os dois escritos e resolvi mostrar ao público estes fatos. Não achava adequada nenhuma linguagem que pudesse expressar realmente o que se passou, tentei escrever em forma de livro, que deixou de ser editado por parecer auto biográfico demais segundo o editor.

Para mim que temia a passagem de Saturno na casa doze acabei encontrando Plutão na representação de DIONÍSIO, o deus das surpresas, e descobrindo a função de Kiron no meu mapa de nascimento, aprendendo a duras penas a não me identificar mais com os mitos astrológicos — mas respeitá-los como sinais de aviso — mudei de calendário, hoje sigo o calendário MAIA onde o ano termina em JULHO.

Fiz um saite sobre xamanismo com razoável aceitação pública e concluí que a internet era a linguagem que estava me faltando pois o site é na realidade um grande livro de folhas soltas com a vantagem que podem ser revisadas a qualquer momento — editei virtualmente "O Disco Solar", gostei, e hoje coloco à disposição na net esta anotação que não deixou de ser minha pois está com a minha letra.

No cemitério onde meu amigo — o "Comandante Fênix" — como era conhecido entre os motoqueiros devido à tatuagem de fênix que tinha no ombro está enterrado, me ajoelhei e orei muito por ele na esperança de receber intuitivamente a razão de seu curioso procedimento. Nada intuí. Mas ao voltar para casa recebi de uma companhia aérea o aviso de que havia um bilhete de ida e volta em aberto para a Grécia que ele havia deixado paga para ser entregue no dia 22-2-2000.

Quando cheguei na Grécia descobri que havia mais escritos sobre o dia em que a Ayahuaska entrou no Teatro Oficina portanto se você tem algum relato a fazer ou esteve presente neste dia por favor envie sua história para podermos saber tudo o que aconteceu.

E-mail — maraka@zaz.com.br

 


 

© 2000 — Ana Vitória Vieira Monteiro
maraka@zaz.com.br

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