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O ESTADO AUTORITÁRIO E A REALIDADE NACIONAL

Azevedo Amaral

—Ridendo Castigat Mores—


 

O Estado Autoritário e a Realidade Nacional
Azevedo Amaral

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Fonte Digital
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“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

© 2002 - Azevedo Amaral


ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia

O Estado Autoritário e a Realidade Nacional
PREFÁCIO
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
I. Antecedentes do Estado Novo
II. Fase de Transição.
III. A Primeira Constituição Brasileira
IV. O Estilo do Regime.
V. A Nação e o Estado
VI. Organização Econômica.
VII. Autoridade e Liberdade

NOTAS


O ESTADO AUTORITÁRIO
E A
REALIDADE NACIONAL

Azevedo Amaral


APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

Há um hábito, entre os “letristas” (refiro-me aos formados em Letras), de procurar desvendar, em cada livro, o que o autor “pretendeu dizer”. Um escritor quer dizer exatamente o que diz, ou não é escritor.

É o caso de Azevedo Amaral. Seu trabalho é de uma clareza límpida, só mesmo um “letrista” poderia querer descobrir o que mais ele tencionou afirmar.

Um texto de extraordinário valor histórico, que contém os principais argumentos que pretendiam justificar a ditadura estadonovista. Fica apenas uma dúvida: porque Azevedo Amaral o escreveu? Pode ter sido por dinheiro (os poderosos do Estado Novo pagavam bem aos escritores que produzissem obras enaltecendo o regime e seu chefe). Talvez possa ter sido envolvido pelo contexto político e econômico mundial, em que a palavra de ordem passou a ser o combate aos anarquistas, anarco-sindicalistas e comunistas. Nem se pode descartar a hipótese de ingenuidade.

O fato é que o livro elogia escancaradamente o Estado Novo, Getúlio Vargas, a Carta Constitucional de 1937 (que Amaral insiste em chamar de Constituição).

A obra desenvolve inúmeras linhas para explicar que o regime do Estado Novo era autoritário mas não totalitário que, no caso, não fazia a mínima diferença. Trechos enormes se esmeram em esclarecer que o Estado Novo não sofreu influência do fascismo italiano ou do nazismo alemão. Sofreu sim. Era uma cópia “tupiniquim” que restringiu a liberdade dos cidadãos, extinguiu as instituições democráticas.

Afirma que foram preservadas as liberdades individuais, mas restringia-se quaisquer manifestações indesejadas através de perseguições, exílios, prisões e torturas. Insiste-se em que havia liberdade de expressão, mas lançaram Jorge Amado e Graciliano Ramos no calabouço, porque escreviam o que pensavam.

Em suma, trata-se de uma obra de inestimável valor histórico, mas mentirosa e, por que não dizer, beirando o cinismo.


Azevedo Amaral

O ESTADO AUTORITÁRIO
E A
REALIDADE NACIONAL


PREFÁCIO.

 

Este livro foi escrito em obediência a razões da mesma natureza, que induziram o autor a produzir, desde 1930, vários ensaios sobre os problemas da atualidade brasileira. Na elaboração desses trabalhos anteriores houve uma tentativa de interpretar as condições que ora se nos deparam no conjunto da realidade nacional, pela investigação das determinantes sociológicas do nosso desenvolvimento histórico. O pensamento de tornar uma vida menos inútil pela contribuição de um esforço honesto para o bem do Brasil, foi sem dúvida o motivo da coordenação nos estudos dados à publicidade dos resultados da pesquisa e da meditação em torno daqueles problemas. Mas se as finalidades dos livros aludidos eram certamente coloridas por preocupações promanadas de um coração brasileiro, o método adotado na análise sociológica das questões nacionais caracterizava-se por um sentido inconfundivelmente objetivista.

Tentando esclarecer por um processo racional e lógico assuntos de vital interesse nacional, o autor tratou deles em uma atitude que, sem pretensioso pedantismo, julga poder qualificar de inspirada pela orientação científica, a cuja disciplina sempre procurou submeter o seu espírito. As páginas, que se seguem foram escritas sob o mesmo ponto de vista.

A finalidade deste livro não é fazer a apologia da nova ordem estabelecida no Brasil pela Constituição de 10 de Novembro. Aliás, o autor poderia desassombradamente contentar-se em aplaudir as novas instituições. Em quatro volumes aparecidos durante os últimos sete anos — “Ensaios Brasileiros”. “O Brasil na Crise Atual”, “A Aventura Política do, Brasil” e “Renovação Nacional” — e de modo particularmente explícito nos três primeiros, foram avançadas sugestões construtivas, algumas: delas rigorosamente coincidentes e todas de um modo geral consonantes com as idéias concretizadas no novo estatuto nacional e com o sentido ideológico do Estado agora instituído no Brasil. Mas o conceito que o autor forma do aproveitamento do tempo e do razoável emprego das suas energias, te-lo-ia inibido, de escrever centenas de páginas, para dizer aquilo que poderia ser expresso em uma lacônica fórmula de aplauso. Assim, o livro que vai ser entregue ao público representa mais um ensaio crítico, tendo por finalidade prosseguir no encadeamento de estados sociológicos e políticos em torno dos problemas brasileiros, cujo poder de fascinação empolgou por tal forma o espírito do autor, que ele sucumbiu à ilusão de conseguir abordá-los com alguma probabilidade de êxito relativo.

A natureza mais acentuadamente política do assunto tratado neste volume, que sem o desarticular dos que o precederam lhe imprime contudo fisionomia especial, justifica-se em face da ambiência nova criada pelo advento do Estado autoritário. Política era, no regime em que vivemos até dois meses atrás, terreno esotérico, defendido ferozmente contra as incursões dos profanos pela vigilância dos hierofantes. Abordar temas políticos, procurando aplicar-lhes quaisquer aptidões da inteligência ou os frutos do esforço para a aquisição da cultura, era uma extravagância severamente reprimida. Além disso, tratar de política sem ser senador ou deputado constituía evidentemente uma anomalia no regime, em que cuidar da coisa pública era um ofício especializado como o de barbeiro ou de engraxate.

O Estado Novo realizou a esse propósito uma transformação radical imediata. A nação não é mais o pasto rebanho, cujo destino era apenas pagar impostos e levar às urnas os nomes ilustres dos dinastas da República. Nação e Estado estão hoje identificados e, com o desaparecimento dos políticos profissionais, a Política tornou-se matéria sobre a qual cada cidadão, por mais humilde que seja, tem não apenas o direito, mas o dever de formar opiniões e de pronunciar-se, com a esperança de atuar na direção do Estado com a parcela mínima dos frutos da sua experiência pessoal.

Escrever portanto um livro exprimindo opiniões políticas individuais é uma forma normal de intervir na vida pública do país, posta ao alcance de qualquer cidadão. Quanto ao valor intrínseco das idéias apresentadas, é evidentemente matéria que só o leitor poderá decidir. Nenhum esforço foi feito pelo autor para granjear um veredicto favorável. A esta atitude não foi levado por falta de apreço pela sentença do leitor, mas pela convicção de que, para ser digno da atenção do público, o escritor deve despreocupar-se das reações que as suas idéias possam provocar.

AZEVEDO AMARAL.
Rio de Janeiro, 20 de Janeiro de 1938


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

 

A história de qualquer nação é sempre um encadeamento de experiências, em cujo insucesso se reuniram os elementos básicos para a tentativa subseqüente de dar à coletividade uma organização política correspondente às injunções das realidades de todo gênero, que tinham de ser levadas em conta na obra construtora. Realmente, o desenvolvimento histórico não é, em última análise, mais que a correção sucessiva de erros, o reajustamento de situações desarmoniosas, uma série de mutações visando sempre maior adaptação das formas estruturais da sociedade e do seu organismo político às condições traçadas pela inexorável pressão da realidade. Nada distingue os povos privilegiados, que vêm a representar papéis de primeira ordem no cenário onde se desdobra o drama da civilização, das coletividades inferiores ou medíocres, que não deixam vestígios apreciáveis da sua passagem, senão a capacidade maior ou menor de entendimento do seu próprio determinismo sociológico e a aptidão para organizar-se adequadamente em função desses fatores fundamentais.

O processo de adaptação a que acabamos de nos referir é necessariamente longo e penoso. Para atingir um estado relativamente satisfatório de equilíbrio entre as instituições políticas e a organização social e econômica, de um lado, e as injunções imperiosas de condições que não podem ser modificadas, de outro, os povos que revelaram as mais notáveis qualidades para o sucesso histórico tiveram de percorrer lentamente sucessivas etapas de desenvolvimento, que foram outras tantas experiências na plasmagem progressiva de uma estrutura mais consentânea com as expressões do dinamismo da coletividade.

O esforço adaptativo que um povo realiza por meio dessas experiências, em busca de formas de organização social e política que melhor se coadunem com as suas tendências e com as circunstâncias em que vivem, envolve a solução de múltiplos e complexos problemas. A compreensão do meio físico e das questões de ordem material daí derivadas, a familiaridade cada vez maior com as características do seu, psiquismo, a verificação das repercussões no plano sociológico dos fatores étnicos entrados na formação nacional e, finalmente, as influências promanadas de modelos exóticos constituem, em síntese, os elementos com que, consciente ou inconscientemente, tem de lidar um povo empenhado na obra do seu próprio desenvolvimento histórico.

A focalização, que acabamos de fazer, dos pontos capitais do problema da elaboração de formas orgânicas da sociedade põe logo em destaque um aspecto fundamental da questão aqui examinada. Procurando consciente ou inconscientemente criar instituições que mais se prestem à afirmação e expansão da sua personalidade coletiva, um povo tem de abordar duas categorias distintas de elementos a serem discutidos. A primeira e mais evidente necessidade é estabelecer a maior harmonia possível entre a forma de organização que se elabora e as configu. rações da realidade ambiente. Estruturas exóticas e estilos de arquitetura sociológica e política importados de outros meios dificilmente se ajustam aos alicerces em que têm de se apoiar, sob pena de darem à sociedade e às suas instituições uma instabilidade, que torna precária toda a obra realizada.

Mas o imprescindível predomínio dos elementos inerentes às condições intrínsecas da sociedade e ao meio em que ela se encontra, não exclui a influência de correntes provindas do exterior e que, com maior ou menor intensidade, atuam na orientação do desenvolvimento histórico de qualquer coletividade. Exceto em circunstâncias extremamente peculiares, nenhum povo jamais conseguiu imunizar-se completamente da infiltração de idéias e exemplos que vieram a ser assimilados, integrando-se na plasmagem evolutiva das suas instituições.

Casos ocorrem em que, sob a pressão de causas especiais, a marcha do desenvolvimento nacional é de certo modo invertida, no tocante à influência respectiva dos fatores surgidos da própria sociedade em apreço e dos elementos de origem externa. Se quando se trata de uma população autóctone, que evolui sob o estímulo das suas próprias necessidades e da ação de forças ambientais, a contribuição de elementos exteriores é sempre relativamente pequena, o inverso acontece quando a coletividade nacional em apreço se originou em uma formação colonial. Populações transplantadas de países já em estado de adiantado desenvolvimento e trazendo portanto um psiquismo bem definido e no qual se acentuam as características derivadas das influências que atuaram na evolução metropolitana, são em geral pouco influenciadas pelos fatores mesológicos no, seu novo habitat. Uma colônia é um enxerto sociológico que se fixa no ambiente onde o inserem, cria ali raízes, absorvendo vitalidade das forças circundantes, mas conservando com extraordinária tenacidade a sua autonomia psíquica.

Este traço peculiar da formação e progresso dos núcleos coloniais, que se vêm a transformar depois em entidades individualizadas e independentes, exerce através de todo o seu processo histórico ulterior efeitos profundos, que diferenciam inconfundivelmente a evolução institucional dos povos de origem colonial das nações que surgiram no próprio solo nativo. As últimas procedem, nas suas experiências políticas e sociológicas, de acordo com o que se poderia chamar de harmonia preestabelecida entre elas e o seu meio físico e os problemas especiais por ele apresentados. Por outro lado, os povos de formação colonial tendem invariavelmente a se organizar, seguindo preponderantemente e não raro exclusivamente mesmo as diretrizes decorrentes das tradições trazidas da pátria metropolitana.

Este fato é particularmente acentuado nos casos em que entre o habitat colonial e a ambiência metropolitana existem diferenças profundas de configuração geográfica, de clima e de formas de produção. O contraste chocante entre o meio tradicional da raça e as condições profundamente diversas do ambiente novo parecem provocar reações psíquicas de defesa da mentalidade histórica do grupo colonial, que, por assim dizer, se entrincheira nos traços do seu psiquismo, recusando-se subconscientemente às adaptações que as condições exigiriam e o próprio bom senso aconselhava.

Somente ao cabo de longos lapsos de tempo e após sucessivas tentativas infrutíferas de organização, em conformidade com os tipos importados da sociedade originária, consegue uma nação de origem colonial elaborar instituições e formas estruturais de existência coletiva em harmonia com as realidades que a cercam. Muitos exemplos poderiam ser citados em apoio do que acabamos de dizer, seriam, porém, supérfluos e melhor é abordar logo a análise do caso brasileiro, na qual teremos ensejo de verificar de modo bem característico a aplicação do princípio geral que focalizamos.

***

Entre as formações coloniais de que temos conhecimento através dos tempos históricos, as nossa distingue-se por um aspecto peculiar, de que só encontraremos paralelos nos estabelecimentos mercantis fundados na antigüidade pelos navegadores fenícios e cartagineses. Todos os outros casos de colonização refletiram, por parte das metrópoles donde eles se originaram, preocupações de domínio político, militar ou espiritual, quando não representaram deslocamentos de populações determinados por causas demográficas ou de outro gênero, que tornavam a vida desagradável aos elementos emigrantes. Em todas essas espécies aludidas notava-se contudo um traço comum. As colônias eram estabelecidas com o objetivo de ocupação permanente, isto é, de tornarem-se núcleos do desdobramento ulterior da sociedade metropolitana. Não foi isso entretanto que se observou na antigüidade com os estabelecimentos comerciais fenícios e cartagineses, como também nos tempos modernos com a colonização portuguesa durante a sua fase inicial.

Tivemos ocasião de estudar os antecedentes do descobrimento e da colonização inicial do Brasil, pondo em evidência, com argumentos que nos parecem conclusivos, a natureza e as finalidades da expansão marítima de Portugal. (1). 0 grandioso movimento, cujo ponto de partida foi a fundação da Escola de Sagres e as primeiras conquistas lusas em Marrocos, originou-se em preocupações nitidamente econômicas. O plano elaborado pelo Infante D. Henrique de cercar o continente africano com uma cadeia de feitorias destinadas a promover o comércio com o hinterland e a drenar para Portugal as riquezas que se supunham existir no interior da África era uma reprodução do antigo método púnico de colonização. Aliás, como tivemos ocasião de mostrar no livro acima citado, nessa política colonial refletia-se inequivocamente a influência dos elementos semitas, que desde a ascensão da dinastia, de Avis adquiriram em Portugal muito considerável importância econômica e também social.

O Brasil, como as outras terras descobertas pelos navegadores lusos, representava para a corte de Lisboa uma fonte de riqueza a ser explorada com objetivos predominantemente econômicos, senão as finalidades políticas da ocupação encaradas apenas em função das precípuas preocupações mercantis. E quando ao cabo de trinta anos de desinteresse pelo Brasil, eclipsado pelo deslumbramento das riquezas da Índia, o governo português cogitou de organizar um sistema de colonização em nosso país, o processo das capitanias adotado por D. João III enquadrava-se rigorosamente na idéia formulada mais de um século antes pelo Infante D.Henrique para a exploração comercial da África.

O fracasso desse sistema, dando lugar dezesseis anos mais tarde ao estabelecimento do Governo Geral na Baia, ainda obedeceu a planos econômicos de exploração das riquezas minerais que se julgavam existir no interior do continente e para cujo aproveitamento se compreendia agora ser necessário desenvolver uma ocupação muito mais ampla, envolvendo naturalmente operações militares e exigindo portanto maiores cuidados com os aspectos políticos da colonização do Brasil. Não caberiam no plano deste livro mais extensas considerações sobre o assunto que acabamos de esboçar e sobre o qual, aliás, o autor já teve ensejo de discorrer mais amplamente e com suficiente minúcia.

O fato que desejamos fixar e acentuar é que as origens de nossa formação colonial, foram de molde a não permitir o desenvolvimento precoce de aptidões políticas, que facilitassem aos colonos promover experiências frutíferas, no sentido do estabelecimento de instituições e de métodos de governo em harmonia com as realidades do ambiente onde ia surgindo a estrutura embrionária da futura nacionalidade brasileira.

***

Embora a marcha do desenvolvimento dos domínios portugueses na América tivesse progressivamente afastado a organização administrativa da vasta colônia do modelo inicial e simplista determinado pelos objetivos originais da conquista, o governo português sempre se orientou, em relação ao Brasil, por um critério preponderante senão quase exclusivamente ditado por considerações econômicas e financeiras, divisão do território em províncias, que se achavam em maior intimidade com o governo de Lisboa que com o governador geral e depois com o vice-rei, inspirava-se evidentemente no conceito da conveniência de utilizar-se com a maior eficácia possível das riquezas do Brasil, sem facilitar ao mesmo tempo a eclosão de uma consciência política tendente à unificação da colônia.

Semelhante orientação da metrópole não podia deixar de contribuir decisivamente para retardar o enraizamento dos colonos no país em que se iam fixando e em relação ao qual a sua atitude continuava a ser preponderantemente a de exploradores das possibilidades econômicas da terra. Durante mais de dois séculos a situação das populações distribuídas pelo território já ocupado no Brasil foi assim nitidamente a de simples colonos empenhados em aproveitar as riquezas naturais do país, sem quaisquer preocupações sérias de constituírem uma coletividade coordenada por vínculos políticos e assim unida em um bloco capaz de tornar-se a base de uma verdadeira nacionalidade.

O traumatismo exercido diretamente sobre as populações nordestinas pela tentativa de conquista holandesa e a sua repercussão no resto do país foi certamente o primeiro fator determinante da formação do que se poderia, embora, vagamente qualificar de consciência nacional embrionária. Entretanto esta só aparece, de modo a tornar-se uma realidade inconfundível, cerca de cem anos mais tarde, quando no altiplano a mineração proporcionou a eclosão de uma ambiência econômica e social propícia ao surto do espírito político. Assim, com o desenvolvimento dá mineração é que surge a primeira concepção da nacionalidade brasileira, reunindo em uma visão de conjunto as preocupações até então exclusivamente regionalistas, que absorviam as províncias concentradas em torno de atividades de caráter meramente econômico. A demonstração do que acabamos de afirmar, e que aliás o autor já teve ocasião de fazer, (2) levar-nos-ia para além dos limites do que é necessário assinalar nesta introdução. Mas prosseguiremos, no correr deste ensaio, analisando a evolução política do Brasil como tendo tido o seu ponto de partida no período de culminância da atividade mineira, em meados do século XVIII. (3)

O surto de preocupações políticas e de aspirações coloridas por um sentido acentuadamente nacionalista foi pouco depois consideravelmente influenciado, de modo perturbador, por circunstâncias que tenderam a deslocar os elementos mais adiantados, a quem cabia a direção espiritual da colônia, de um conveniente contato com as realidades do ambiente brasileiro. Diversos foram os fatores desse gênero a serem considerados na análise do que então se passou e cujos efeitos se fizeram sentir dai em diante no desenvolvimento político da nacionalidade.

Antes e acima de tudo, destaca-se na reconstituição histórica a que estamos sumariamente aludindo a própria natureza das relações entre os elementos que formavam a classe produtora da colônia e o Estado então existente. Desde a restauração da independência portuguesa, em 1640, múltiplas condições, que seria impossível examinar aqui, levaram o Estado metropolitano a preocupar-se com o Brasil, de um ponto de vista por assim dizer exclusivamente fiscal. No Brasil o governo de Lisboa via apenas uma fonte de receita e era particularmente da exploração do ouro e dos diamantes que esperava, a melhor parte dos recursos necessários ao custeio das despesas da monarquia. Em troca do que Brasil lhe dava,. a metrópole pouco retribuía. O desenvolvimento material e o adiantamento social da vasta colônia americana procediam quase que apenas das iniciativas dos próprios colonos. Mesmo no tocante à defesa, eram eles que arcavam com o peso das responsabilidades da proteção de tão extenso território. A luta com os holandeses já fora sustentada com os elementos de que o Brasil então dispunha e o caráter local daquela primeira guerra importante, em que se empenharam brasileiros, teria sido exclusivamente local, se não fora a ação da frota espanhola na decisiva batalha naval de 1640. As campanhas ulteriores que se desenrolaram no sul foram igualmente pelejadas por elementos coloniais quase exclusivamente. (4).

Em tais circunstancias, a eclosão da consciência política nacional, determinada nas primeiras décadas do século XVIII, tornou, como se poderia esperar, a forma bem característica de uma reação hostil à organização estatal, cujas relações com o país se pautavam por diretrizes acentuadamente em desarmonia com, os interesses deste. Daí decorreu uma deformação mental, de que ficou sofrendo a classe dirigente do Brasil desde aquela grande época do nosso desenvolvimento histórico. Os homens que organizavam e dirigiam a economia nacional nascente, tanto, na mineração como na lavoura e nas indústrias agrícolas a ela associadas, adquiriram o hábito de encarar o Estado como entidade adversa e a verem na autoridade pública uma força permanentemente contrária aos seus legítimos interesses. As conseqüências desse estado de espírito ainda se fazem sentir de modo inequívoco nas gerações atuais.

Outro fator de importância não menor, e cuja repercussão no desenvolvimento histórico da nacionalidade teve alcance ainda mais profundo talvez, foi o aparecimento, na época a que nos reportamos, de uma classe acentuadamente inadequada ao exercício de funções políticas e que, entretanto, se tornou uma espécie de nebulosa sociológica, donde saíram elementos que exerceram enorme influência na evolução brasileira. Em conseqüência da facilidade com que ocorria a miscigenação entre colonos portugueses e mulheres ameríndias e sobretudo de origem africana, avolumou-se nas regiões do país, para onde as atividades econômicas faziam concentrar elementos das duas últimas raças, uma classe de mestiços, que desde a primeira, metade do século XVIII já constituía um grupo muito ponderável da população.

Gilberto Freyre (5) assinalou a importância social desse elemento formativo no nosso desenvolvimento nacional e o autor teve ocasião de analisar a significação e o alcance desses componentes parasitários no processo de plasmagem da mentalidade política e das instituições brasileiras. (6). Imune do trabalho pesado que incidia sobre os escravos, esses elementos, protegidos pelo sentimento paternal do português passaram a constituir na sociedade brasileira uma categoria especial de indivíduos, que gravitavam para o exercício de funções parasitárias, tanto no setor propriamente econômico, como na esfera administrativa, onde iam encontrando emprego em cargos subalternos do Estado.

Não eram raros nessa classe os homens dotados de faculdades intelectuais brilhantes, muitos dos quais representaram papel de primeira ordem no nosso desenvolvimento cultural. Mas seja devido à influência de fatores de ordem étnica, seja como efeito do psiquismo gerado pelas funções em que se especializaram na sociedade, aqueles indivíduos tinham certas tendências peculiares, que deveriam repercutir, desvantajosamente na plasmagem da mentalidade política nacional. Afastados do trabalho disciplinado e produtivo, ganhando a vida parasitariamente no exercício das funções a que acima aludimos e não podendo, portanto, erguer-se acima do nível de um parasitismo medíocre, que agravava outros aspectos da sua inferioridade social, tais elementos tinham forçosamente de desenvolver tendências a uma insubordinação, crônica contra todas as formas de autoridade disciplinadora.

Certas condições proporcionavam um ambiente propício à intervenção cada vez maior da classe de que nos ocupamos nas atividades públicas. Os altos cargos da administração eram em geral reservados a funcionários vindos, de Portugal e que faziam apenas um estágio no Brasil. Os elementos superiores da sociedade colonial não se conformariam com o exercício de funções mais modestas na administração e, além disso, não tinham mesmo pendor a se deslocarem da esfera econômica, que constituía, o seu plano tradicional de ação. Assim, os empregos públicos subalternos iam cabendo àqueles elementos colocados como categoria intermediária entre o grupo servil e a classe que constituía a, aristocracia colonial. Uma burguesia urbana, que exercesse as funções de classe média, não existia para representar papel político. O comércio era exercido, em geral, por portugueses, que para aqui vinham não com intuitos de se fixarem no país, mas com intenções de regressarem à metrópole depois de terem feito fortuna Além deles, eram estrangeiros os negociantes em todas as praças do Brasil.

Outra circunstância, cujo alcance não deve ser esquecido na interpretação das anomalias que caracterizaram a evolução política do Brasil, foi a coincidência do surto das primeiras preocupações cívicas com o movimento intelectual francês, que teve por epílogo a grande., revolução do fim do século VIII. A situação econômica conquistada pela classe dirigente, do Brasil naquele século e a concentração das atividades dela na esfera da produção permitiam a muitos dos seus membros consagrar tempo e energia à aquisição da cultura. Viajantes ilustres que visitaram o Brasil na segunda metade do século XVIII e em princípios do século XIX, registraram as suas impressões de surpresa, se não quase de espanto, diante do nível cultural da camada superior da sociedade colonial, que acompanhava atentamente e em geral muito bem informada a marcha das correntes intelectuais e políticas que então agitavam a Europa e particularmente a França.

Os efeitos desse contato espiritual com o velho mundo foram de todo vantajosos sob o ponto de vista da orientação do pensamento político brasileiro. As idéias francesas, que representavam uma expressão continental do que já se solidificava na Inglaterra em tradições políticas, exerceram uma influência profunda, quase mesmo esmagadora, sobre a mentalidade dos homens que, pela sua inteligência, cultura e posição social, estavam naturalmente predestinados a serem os guias do movimento nacionalista que então começava a esboçar-se em nosso país. A independência dos Estados Unidos ,e a organização política das colônias inglesas, convertidas em república federativa também exerceram papel importante na plasmagem da consciência política que se ia formando entre nós. O caso da Inconfidência Mineira documenta de modo bem característico tudo que acabamos de afirmar.

Semelhantes influências não podiam deixar de deformar o espírito brasileiro, orientando-o em direções que de modo algum se conformavam com os rumos naturalmente indicados ao desenvolvimento da futura nacionalidade. As instituições parlamentares britânicas, que ao cabo de mais de quatro séculos de lenta e acidentada evolução se haviam firmado definitivamente com a revolução de 1688, bem como a ideologia política francesa, concretizada na obra revolucionária de 1789 e de 1792, não continham nada que as pudesse tornar modelos adequados a qualquer plano de organização nacional brasileira.

Na Inglaterra, o movimento iniciado no século XIII, com a reação da nobreza contra a autoridade régia, adquirira no século XVII, com a resistência armada do Parlamento, o caráter de um esforço da burguesia para conquistar situação cada vez mais forte na direção dos negócios públicos. A revolução de 1688 estabilizara de certo modo esse estado de coisas, com uma espécie de aliança entre nobres e burgueses em torno do poder real, convertido em símbolo e ao mesmo tempo eixo eficiente de um aparelho político peculiar e apenas adaptável às condições especiais da sociedade britânica.

A Revolução Francesa, influenciada ideologicamente pela organização política da Inglaterra no tocante ao movimento ascensional da burguesia, era uma reação violenta desta contra as prerrogativas da nobreza e contra a monarquia no que ela tinha de solidário com a aristocracia feudal.

Mais não precisamos acrescentar para mostrar que em ambos os casos as correntes políticas renovadoras visavam destruir o sistema feudal e substitui-lo por uma organização, em que coubesse à burguesia urbana a supremacia na direção da vida nacional. Ora, tais diretrizes não tinham aplicação alguma aos problemas de organização política que se iam apresentando no Brasil. Em primeiro lugar, nunca existira aqui feudalismo e, mesmo na metrópole européia da nacionalidade nascente, o regime feudal nunca passara de uma exteriorização sem alma e sem eficácia do sistema, que na Idade Média prevalecera no resto da Europa. Portugal não teve feudalismo e pode-se mesmo afirmar, como já tivemos ocasião de fazê-lo, (7) não teve propriamente Idade Média na integral acepção sociológica, com que esse termo é empregado em relação aos outros países europeus. A unificação das monarquias, que na Inglaterra já se delineia de modo completo no reinado de Eduardo III, no século XIV, e em França só vem a realizar-se com Luiz XI, na segunda metade do século XV, aparece em Portugal desde os primeiros tempos da dinastia borguinhona, ainda no século XII. As influências culturais características da fase medieval também só se fizeram sentir na monarquia lusitana por uma forma de certo modo superficial.

Assim, o Brasil, tanto pelos antecedentes históricos dos seus primeiros séculos de existência como pelas tradições legadas pelo passado da metrópo1e,nada tinha de comum com as sociedades onde o progresso político tinha de tomar logicamente a forma de uma rebelião da burguesia contra o feudalismo. Acresce ainda a circunstância de inexcedível relevância de que não havia entre nós, como acima observamos, uma burguesia em condições de exercer função na plasmagem da organização política nacional. A classe dos proprietários rurais, tanto nas zonas da lavoura como nas regiões da pecuária, constituíam o único grupo em condições de assumir a direção da sociedade. Os novos elementos enriquecidos pela mineração incorporaram-se também a esse patriciado e, tanto na sua vida econômica quanto na sua fisionomia social, nada tinha que os assemelhasse a uma burguesia.

***

Ao tempo em que ocorreu a Independência, a ação deformadora do curso natural do desenvolvimento histórico do Brasil, exercida pelos antecedentes que esboçamos sucintamente, fez-se sentir de modo decisivo. E duas circunstâncias, uma de ordem econômica e a outra de aspecto social, concorreram para agravar o efeito perturbador daqueles fatores.

Os dois elementos a que aludimos convergiram no sentido de reduzir a força e a autoridade moral da classe que, pelas condições já mencionadas, era a única capaz de imprimir à organização das instituições nacionais uma fisionomia objetiva e mais ou menos em harmonia com as nossas realidades. Desde a chegada da corte portuguesa ao Brasil a expansão dos serviços públicos proporcionou nas cidades, principalmente no Rio de Janeiro oportunidades de ascensão social e econômica aos membros do grupo parasitário, a que já tivemos ocasião de nos referir. Essa classe, alheia às atividades produtoras da sociedade colonial e associada já ao Estado pelo exercício dos cargos subalternos da administração, começou a partir de 1808, a ocupar posições de muito maior destaque na maquinaria do serviço público, que se ia incessantemente expandindo. Assim, a classe que até então fora mantida em um plano inferior, não podendo atuar de modo significativo na vida pública do país, passou a tornar-se um dos elementos dirigentes da coletividade E quando em 1821 a corte regressou a Lisboa e a questão da Independência foi posta em foco, o grupo parasitário, no qual aliás figuravam muitos homens inteligentes e cultos, teve forçosamente de desempenhar um papel relevante no drama nacional que se iniciava.

Enquanto, em conseqüência do fato apontado, aquela classe conquistava no cenário político da nação uma influência que de então em diante nunca deixaria mais de exercer, os elementos tradicionalmente predominantes na sociedade colonial e que nela representavam uma espécie de aristocracia melhor aparelhada para tomar o encargo da orientação política, perderam até certo ponto a força e o prestígio que anteriormente desfrutavam. Dois atos de ordem econômica determinaram esse declínio da classe superior do país. A decadência da mineração do ouro, que se iniciara desde o princípio da segunda metade do século XVIII e se fora acentuando rapidamente durante o último quartel da centúria, fizera baixar o nível econômico do mercado interno do país, acarretando assim um empobrecimento progressivo dos produtores. Esse estado de coisas veio a ser enormemente agravado no princípio do século XIX pela crise que sobreveio à lavoura, da cana e à indústria açucareira, como resultado do, emprego, na Europa, da beterraba como matéria prima para o fabrico do açúcar. A ação acumulada desses dois fatores fez com que os proprietários territoriais perdessem de certo modo a posição de independência e de predomínio, que lhes conferira tanta influência na sociedade brasileira do século XVIII, e os colocou em posição de precisarem da proteção do Estado.

A nossa organização nacional no momento crítico da Independência foi portanto elaborada sob a pressão de várias forças sociais e influências culturais, que tendiam a imprimir à plasmagem das instituições políticas do Brasil um cunho de artificialidade, em que se refletia mais o espírito de imitação de modelos exóticos que os frutos da análise objetiva da realidade nacional. Poder-se-ia ainda acrescentar que as causas aludidas, cujo efeito global foi a eclosão de uma demagogia desorientada e a que não escaparam mesmo algumas das maiores figuras da época, foram complicadas ainda pelo surto do militarismo que, desconhecido, no Brasil durante os séculos anteriores, fora aqui introduzido na segunda década do século XIX pelas divisões auxiliares portuguesas, profundamente contaminadas da demagogia revolucionária difundida na metrópole depois da invasão francesa. (8).

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Nascidas sob maus auspícios, as nossas instituições políticas, longe de se adaptarem às condições objetivas da estrutura nacional e das manifestações do seu dinamismo, afastaram-se cada vez mais da realidade. O golpe militar de 7 de Abril de 1831 veio favorecer de modo brusco e decisivo a expansão do poder político da classe parasitária a que já temos tido ocasião de nos referir e que, concentrada nas cidades, vivia da exploração direta ou indireta do trabalho nacional, sem colaborar com os elementos produtores da riqueza da nação. Passada a fase tempestuosa da Regência e evitados quase milagrosamente os perigos de dissolução da nacionalidade pela nefasta ação combinada da demagogia e dos regionalismos separatistas, a política brasileira veio a coordenar-se em duas formações partidárias, que correspondiam mais ou menos autenticamente às configurações reais ,da nossa sociedade naquela época.

Conservadores identificavam-se com as forças produtoras representadas principalmente pela lavoura nordestina da cana de açúcar, e já, em proporções apreciáveis, pelos cafezais do vale do Paraíba. Em campo oposto estavam os liberais, genuínos expoentes do espírito demagógico que se elaborara no seio da classe, que pouco ou nenhum contato tinha com as realidades da vida econômica do país. Do período da Regência já sobrevivida, como funesta conquista desta última corrente, o Ato Adicional de 1834, que golpeara a unidade nacional como estímulo do particularismo político das províncias, agravando assim as conseqüências econômicas disruptivas do sistema administrativo adotado nos séculos anteriores por Portugal, com o objetivo, aliás bem compreensível, de evitar uma coesão colonial capaz de ameaçar Os vínculos unitivos à metrópole.

A história do segundo reinado pode ser resumida em uma palavra: progressivo afastamento da realidade nacional sob a influência combinada do espírito de imitação do parlamentarismo inaplicável às nossas condições e das correntes de um pseudo-liberalismo demagógico, inspirado pela erudição livresca fora do contato dos fatos e dos problemas que se deparavam na evolução brasileira. É apenas um ato de justiça reconhecer que a ação pessoal de D. Pedro II atenuou até certo ponto os efeitos maléficos daquelas forças, realizando uma relativa adaptação de instituições impróprias ao país aos casos concretos que inconfundivelmente se apresentavam no seu governo. Entretanto, as correntes divorciadas da realidade nacional foram ganhando terreno e impeliram gradualmente o desenvolvimento político na direção de reformas, que ainda mais deslocaram o Estado do terreno sólido em que ele se deveria apoiar. A repercussão, entre nós, de acontecimentos desenrolados na Europa e a infiltração, nas forças armadas, do espírito da demagogia caudilhesca sul-americana, com que se haviam infectado as nossas classes militares durante as guerras do Prata e do Paraguai, foram intensificando as tendências ao surto de ideologias, cujo caráter abstrato teria forçosamente de imprimir à nossa vida política um cunho de ainda mais acentuada irrealidade. Em 1878, a queda do ministério Caxias levava os liberais ao poder, com um programa de substituição do sistema de representação indireta pelo processo do sufrágio direto, o que, foi imediatamente executado.

O espírito demagógico e a falta cada vez maior de contato com os problemas nacionais caracterizam a última década da monarquia. Um apriorismo teórico e um sentimentalismo pseudo-liberal dominam, deformando o curso normal da solução de problemas da maior gravidade. A questão abolicionista é deslocada para um plano em que são esquecidos os aspectos econômicos e as possibilidades sociais daquele tremendo problema. Os verdadeiros estadistas, que tentam introduzir um elemento racional no encaminhamento da crise, são apontados como retrógrados e reacionários. O caso de Cotegipe, a maior inteligência política da época, é exemplo característico. O afastamento da realidade nacional, diríamos melhor o desdém pelo Brasil e pelos seus problemas, patenteia-se no leitmotivo da propaganda republicana. O Brasil, afirmava-se, devia republicanizar-se pelo simples motivo de que as instituições desse tipo estavam adotadas nos outros países do continente: Quintino Bocaiúva convertia ao credo republicano os leitores dos seus esplêndidos artigos, apontando o exemplo do México de Porfirio Diaz, como se entre o Brasil e o país azteca houvesse alguma coisa de comum...

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Entretanto, e por forma que se diria paradoxal, o movimento republicano apresentava nas correntes profundas que o propeliam um sentido nitidamente realístico e nacionalista. Havia um contraste altamente interessante entre as razões determinantes da onda anti-monárquica e a demagogia superficial, que se estendia efervescente na sua crista. Eram forças autenticamente representativas dos interesses vitais da economia brasileira, que se insurgiam contra o império em uma reação salvadora do próprio instinto de conservação nacional.

A monarquia desarticulava-se da realidade nacional, fascinada sempre pelos ídolos exóticos do parlamentarismo e do livre-cambismo. Em associação extravagante no seu ilogismo, a demagogia e as correntes retrógradas penetravam no organismo debilitado do império, apressando-lhe a decomposição e ameaçando o país com a perspectiva das mais imprevisíveis situações. Os interesses da economia nacional iam ficando cada vez mais a cargo das próprias forças sociais interessadas na produção. Assim, surge o republicanismo nas regiões economicamente mais adiantadas e onde portanto a necessidade de um Estado forte e capaz de amparar o desenvolvimento da riqueza pública se fazia sentir por forma mais direta e premente. Em S Paulo e no Rio Grande do Sul, elabora-se o pensamento republicano construtivo, que, embora alheado à demagogia pseudo-democrática dos agitadores da propaganda em outras zonas do país, é contudo dela inconfundivelmente diferenciado.

O regime criado pela revolução de 1889e cristalizado na Constituição de 1891 representou indiscutivelmente um progresso considerável no sentido da aproximação da ordem política à das realidades nacionais. Isto não implica em dizer que a intervenção de outros elementos perturbadores não tivesse imprimido ao estatuto, político da primeira República defeitos gravíssimos que, como era inevitável, acabaram precipitando a destruição do regime com ele identificado. Sob certos pontos de vista, pode-se dizer mesmo que a ordem política estabelecida em 1891 veio agravar males surgidos durante o período monárquico.

A este respeito, contudo, convém observar que a nosso ver tem havido erro, exagero e injustiça em certas críticas freqüentemente repetidas à obra dos constituintes de 1891. Assim, atribui-se sempre a eles a responsabilidade pela intensificação de tendências regionalistas, que chegaram a inspirar aos mais criteriosos e patrióticos observadores sérias apreensões acerca das possibilidades de desintegração da nacionalidade. Divergindo radicalmente dessa opinião, já tivemos ensejo de mostrar que ao período imperial e particularmente ao Ato Adicional de 1834 cabem as maiores responsabilidades pelo estímulo das forças centrífugas e disruptivas da nacionalidade. (9)

Organizando a nacionalidade sob a forma federativa, os fundadores da primeira República obedeciam sem dúvida às tendências que haviam caracterizado o que podemos chamar de corrente construtiva na propaganda republicana. A reação contra o regime imperial não provinha, na parte nela representada pelos elementos identificados com a produção e que constituíam por assim dizer as forças vivas do republicanismo, tanto de um antagonismo à forma monárquica de governo, como do descontentamento com a intolerável centralização administrativa absurdamente mantida pelo Império, em detrimento dos interesses regionais e, em última análise, com prejuízo para as conveniências do bem geral da nação. O erro mais grave e, diríamos mesmo, imperdoável da monarquia, cuja expressão máxima se concretizou no Ato Adicional de 1834, foi inverter a ordem lógica do desenvolvimento nacional no tocante ao duplo problema da autonomia administrativa e da centralização política.

Historicamente, as províncias originaram-se em imperativos de ordem econômica e a sua função na vida nacional tinha forçosamente de ser desempenhada nesse setor. Por outro lado, o município era a célula em que se gerava o espírito nacional e tinha como predestinação um papel político a representar. Cabia-lhe servir de núcleo das atividades políticas e, assim a organização municipal representaria na vida das províncias um instrumento de ação centrípeta, robustecendo e consolidando os vínculos da unidade nacional. A Constituição de 1824 permitia o desenvolvimento de um sistema, baseado nessa distribuição da função política e da atuação econômica, em que o município e a província cooperariam sinergicamente, o primeiro, animando a expansão da consciência política do Brasil unido, e a segunda, tornando-se propulsora eficiente das forças econômicas do país. O Ato Adicional veio dar às províncias a função anti-nacional de núcleos políticos regionais. Na tradição administrativa que se firmou no Império, a centralização excessiva do controle das questões econômicas negava às unidades provinciais a liberdade de ação nessa matéria, tolhendo-lhes assim as iniciativas, precisamente no plano em que lhes devia caber a maior autonomia possível.

Tendência a uma perigosa acentuação dos particularismos políticos e recusa férrea a conceder às províncias a necessária liberdade administrativa, foram os característicos principais da política imperial. O resultado de semelhante orientação foi o estímulo dos regionalismos, em cujo fundo uma análise cuidadosa revelaria a presença dos germens do separatismo. E, ao mesmo tempo, o descontentamento dos elementos produtores das províncias prejudicados nos seus legítimos interesses por uma centralização administrativa causadora de nefastos efeitos econômicos.

Em tais circunstâncias, os legisladores constituintes de 1891 não podiam evitar, na organização federativa, certas concessões excessivas no tocante à autonomia dos Estados, em que se transformavam as antigas províncias. Mas é preciso reconhecer que tais concessões, inevitáveis no momento de violenta reação contra o centralismo imperial, tiveram a vantagem de fixar, de cristalizar por assim dizer, as tendências centrífugas, condutivas ao separatismo. Júlio de Castilhos, que se nos afigura ter sido o maior estadista da geração que fundou a primeira República, patenteou a sagacidade da sua lúcida visão política ao afirmar que a centralização era o separatismo, ao passo que a federação consolidaria a unidade nacional. Realmente, em face da situação que então se delineava, os constituintes de 1891 detiveram, com a outorga de uma ampla autonomia às províncias, a ação dissolvente das forças disruptivas da nacionalidade.

Isto não importa contudo em dizer que, mais tarde, o que fora benéfico em 1891 não viesse a tornar-se um elemento ameaçador à unidade nacional, justificando a reação contra os excessos de autonomia, que surgiu no fim da primeira República e foi um dos traços característicos do espírito revolucionário de 1930. O estudo deste, que passamos a fazer rapidamente, representa a preliminar necessária à compreensão das causas que prepararam a profunda transformação institucional operada com a Constituição de 10 de Novembro. O novo Estado brasileiro, que nos propomos a examinar sob diferentes pontos de vista neste livro, não é, como esperamos poder prová-lo, uma criação arbitrária violentamente imposta à nação. Pelo contrário a sua estrutura decorre de antecedentes registados na história recente do país e o seu sentido é a diretriz definida que se nos depara como resultante das forças indecisas e das aspirações mal formuladas, senão mesmo apenas vagamente apreendidas e que no seu conjunto formaram a onda que, em outubro de 1930, fez ruir a primeira República.


I. ANTECEDENTES DO ESTADO NOVO.

 

Dissolução da primeira República — Fatores políticos e econômicos — As oligarquias — Decadência parlamentar — As sucessões presidenciais — Surto revolucionista — Aparecimento da questão social — A revolução de Outubro — Confusão do após revolução — Influência pessoal do Presidente Getúlio Vargas — A Constituição efêmera e os problemas novos.

 

A organização da nacionalidade, nos moldes estabelecidos pela Constituição de 1891, correspondia até certo ponto às realidades que se apresentavam no Brasil ao tempo da queda da monarquia. Os erros daquele estatuto político promanavam da transplantação, para o meio brasileiro, de instituições que, haviam sido criadas em uma ambiência social e sob as injunções de problemas políticos profundamente diferentes dos nossos. Entretanto, uma vez que os fundadores da primeira República haviam permanecido sob a fascinação da idéia de imitar modelos exóticos, que se enraizara na nossa consciência política durante o período imperial, a cópia das instituições dos Estados Unidos foi o que de mais realístico e de menos nocivo se poderia ter feito na organização da ordem republicana.

Não obstante profundas diferenças, relativas tanto às condições respectivamente encontradas nos dois meios sociais, como à natureza dos problemas políticos e econômicos que em cada caso se apresentavam, havia incontestavelmente algumas analogias entre o quadro geral das situações americana e brasileira. Assim, seria grave injustiça histórica mostrar muita severidade na crítica da orientação adotada pelos fundadores da primeira República, na elaboração do estatuto político que consolidou a obra revolucionária de 1889. E a experiência, que em política e, de um modo geral, em tudo que se vincula à organização da sociedade é sempre a distribuidora das responsabilidades pelos erros e acertos, justificou as decisões da nossa primeira Constituinte republicana.

Grandes foram realmente os serviços prestados à nacionalidade pelo estatuto elaborado por aquela assembléia. Além de sustarem o fluxo da desagregação nacional, pela fixação das tendências separatistas no círculo limitado e definido das autonomias, estaduais, os Constituintes de 1891 tornaram-se credores à perpétua gratidão nacional, pela profunda sabedoria política que revelaram, repudiando o parlamentarismo legado pelo Império e fundando a organização estatal republicana no princípio da ascendência do poder presidencial.

A adoção do presidencialismo, a que foram levados os autores da primeira Constituição republicana pelas lições da experiência dos Estados Unidos, prestou ao Brasil dois serviços de inexcedível relevância. O primeiro foi tornar. possível a consolidação da República e impedir que, na confusão criada pela revivescência dos saudosismos monarquistas e das ambições caudilhescas, se precipitasse uma crise de inevitável desagregaç5o da nacionalidade. Sem o sistema presidencial, Floriano não teria salvo a República em 1893 e, mais tarde, Prudente de Morais não poderia também ter conseguido consolidar a república civil, impedindo o retrocesso do Brasil às vicissitudes das aventuras militaristas, que haviam caracterizado a evolução política de outras repúblicas latino-americanas.

A segunda conseqüência do estabelecimento do presidencialismo, a que acima aludimos, foi a possibilidade, que fora dele não teria existido, do desenvolvimento de uma ação administrativa que, apesar de erros e desfalecimentos ocasionais, permitiu uma extraordinária avançada no progresso econômico do país. Fora dos moldes presidencialistas, Campos Salles debalde teria tentado a reconstrução financeira, que determinou o reerguimento do nosso crédito e proporcionou os meios de realizar empreendimentos que assinalaram os governos das seus sucessores.

Mas, se o regime instituído em 1891 correspondeu de um modo geral às realidades nacionais e às necessidades práticas do desenvolvimento do país durante cerca de um quarto de século, as contradições entre aquela organização e as condições objetivas que se apresentavam na vida nacional começaram desde então a esboçar-se e foram progressivamente se acentuando. Várias causas concorreram para esse processo, que afinal tomou a forma inconfundível de dissolução da primeira República. Algumas tinham uma fisionomia inequivocamente política, enquanto outras eram de natureza nitidamente econômica.

A principal razão política da crescente incompatibilidade da Constituição de 1891 com a solução satisfatória dos problemas nacionais e até com a própria segurança da unidade do Brasil estava contida no jogo das forças geradas no desenvolvimento natural da ordem estabelecida, O regime federativo, tal qual o delineara o estatuto de 1891 e que então representava, como dissemos, a fórmula mais adequada à salvaguarda da unidade nacional, resultou em um rápido desenvolvimento das forças econômicas das antigas províncias. Essa expansão dos elementos da riqueza regional se, por um lado redundava na elevação global da potência econômica da nação, por outro envolvia o perigo de uma exacerbação do espírito regionalista, principalmente nos Estados mais prósperos e ricos. Assim, surgiam problemas novos, envolvendo perigos que precisavam ser enfrentados por medidas tendentes a contrapor à força econômica dos Estados a autoridade coordenadora e unificadora de um poder nacional com prerrogativas mais amplas que as a ele atribuídas pela Constituição de 1891.

Esta baseara a unidade nacional em elementos de força, cuja eficiência, em última análise, dependia do assentimento dos Estados. O legislador constituinte de 1891 criara dois instrumentos de unificação nacional, um, de natureza preponderantemente moral, e o outro, de ação material O poder judiciário federal e as forças armadas nacionais eram essencialmente os dois órgãos de articulação e de coesão das unidades federativas no todo constitutivo da nacionalidade.

Teoricamente, essas duas forças poderiam representar, como aconteceu no caso dos Estados Unidos, elementos suficientemente garantidores da integridade da pátria comum. Mas, circunstâncias inerentes à organização federativa adotada entre nós e outras, decorrentes de condições peculiares ao caso brasileiro, reduziram aqueles dois instrumentos unificadores a uma eficácia muitíssimo menor, que o haviam previsto os fundadores da primeira República.

Comecemos pelo elemento material garantidor da coesão federal.

A divisão das fontes de receita, respectivamente atribuída pela primeira Constituição republicana à União e aos Estados, determinou para aquela uma situação de permanentes dificuldades financeiras. O Estado brasileiro, que o atraso econômico da nação condenava a uma condição de pobreza, ficou ainda mais pobre com a perda das fontes de receita que passaram para as unidades federativas. É certo que a estas também ficou cabendo a responsabilidade por serviços públicos, anteriormente de caráter nacional. Mas dando-se o balanço dos ônus e das vantagens, verificar-se-ia facilmente que, financeiramente, as antigas províncias saíram ganhando com a distribuição de rendas e de responsabilidades administrativas, feita entre elas e a União.

Em tais circunstâncias, o poder federal, sobrecarregado com a manutenção de extensos e custosos serviços, não podia evidentemente consagrar às forças armadas nacionais somas suficientes para, equipá-las com elementos capazes de — assegurar-lhes uma ação amplamente eficiente. Enquanto o Exército e a Marinha tinham assim de ser mantidos em limites de organização, que tornavam a sua capacidade para o desempenho das funções que lhes estavam confiadas consideravelmente reduzida, ocorria nos Estados, principalmente nos mais ricos e populosos, um fenômeno inverso. Dispondo de recursos financeiros que lhes asseguravam desafogo, as unidades federativas, notadamente as que se achavam nas condições citadas, desenvolviam um prurido de expandir o seu aparelhamento militar. Forças, cuja finalidade dentro do espírito da Constituição deveria ser restritamente policial, foram se transformando pouco a pouco em verdadeiros exércitos, com material bélico desmedidamente superior às necessidades da função policial e, por vezes mesmo, adestrados por missões militares estrangeiras.

Evidentemente, em tais circunstâncias, o poder militar que a Constituição conferira à União, não só para a defesa externa do país, como para a garantia da unidade nacional, ia perdendo relativamente a sua eficácia sob o último ponto de vista. Ao vínculo federativo faltava cada vez mais a base material, expressa na eficiência das forças armadas da nação. Diante do armamento cada vez maior dos Estados e do relativo enfraquecimento militar da União, era claro que a organização federal se ia convertendo gradualmente, na prática, em uma confederação de Estados, mantidos no concerto nacional antes pelo assentimento à União que pela subordinação ao ritmo coordenador de um poder nacional armado com elementos de força para impor a vontade coletiva da nação a qualquer recalcitrante.

O poder judiciário federal — o outro instrumento unificador da nacionalidade — embora houvesse desempenhado a sua função com uma certa eficácia até o colapso da primeira República, também na prática do regime não realizou o que dele se havia esperado, A duplicação da justiça, que tem funcionado por forma tão satisfatória na evolução política dos Estados Unidos, não deu, no caso brasileiro, resultados que mesmo de longe se pudessem comparar aos do exemplo americano. E se não se pode dizer que a justiça federal não prestou durante quarenta anos serviços relevantes como órgão de unificação, é por outro lado incontestável que a sua atividade coordenadora estava longe de constituir uma força capaz de neutralizar com eficácia os elementos de ação centrífuga, que iam tendendo a afrouxar os laços da unidade nacional.

Completando os efeitos dos fatores que acabamos de assinalar e exercendo uma influência desagregadora, menos perceptível talvez na aparência, mas de resultados muito mais profundos e irreparáveis, ocorria uma causa de ordem econômica de formidáveis possibilidades. O erro mais grave e mais imperdoável dos constituintes de 1891 foi não terem assegurado por meio de um dispositivo explícito a unidade do mercado interno nacional. É difícil compreender como os homens, entre os quais alguns verdadeiramente notáveis, que orientaram a elaboração da primeira Constituição republicana e que se mostraram tão influenciados pelo modelo dos Estados Unidos, se tivessem dele apartado no tocante à mais sábia talvez das deliberações do Congresso de Filadélfia.

Não é possível estudar-se a história dos Estados Unidos, sem chegar à conclusão de que o colosso americano não teria atingido as suas proporções atuais, se a previdente sagacidade de Alexandre Hamilton não houvesse imposto aos seus pares a decisão incluindo no estatuto da República o dispositivo que proíbe todas as restrições diretas e indiretas ao comércio interestadual e intermunicipal. O traço peculiar da evolução da economia americana e ao qual deve ela tanto a sua assombrosa capacidade de expansão e desenvolvimento, como a considerável independência das flutuações do comércio exterior, é a existência desse vasto mercado interno, que tem permitido aos Estados Unidos constituírem a maior aproximação do ideal de uma autarquia, com uma economia altamente diferenciada e complexa. O Brasil, sob esse ponto de vista, apresenta grandes e profundas analogias com a República americana. Tudo aconselhava portanto que, ao instituir-se o regime federativo, fossem asseguradas medidas eliminatórias de todas as restrições ao intercâmbio interno. O erro injustificável que então se cometeu, só veio a ser corrigido agora, pelo dispositivo do art. 25 da Constituição de 10 de Novembro.

A dissolução da primeira República veio assim se processando durante quase vinte anos, através de manifestações progressivamente mais inquietadoras da ação dissolvente dos fatores disruptivos da nacionalidade. A União, sobrecarregada pelas crescentes responsabilidades de uma administração que se expandia e se tornava mais complexa, com a multiplicação das funções que tinha a desempenhar, via-se defrontada pelos núcleos de força regional em formação nos Estados mais importantes, cada vez melhor aparelhados militarmente para atitudes de resistência e de rebeldia. Os efeitos econômicos das restrições ao comércio interestadual acanhavam o movimento de expansão do mercado interno, cujo alcance econômico entretanto aumentava, à medida que fatores em ação na economia mundial iam avolumando os obstáculos à colocação dos nossos produtos exportáveis nos mercados estrangeiros.

A incompatibilidade entre a organização nacional e os problemas de mais vital relevância que se deparavam na vida do país, tornava-se portanto, de dia para dia, mais evidente. O mal estar que se estendia a todas as camadas da população, refletindo-se em uma atitude generalizada de alheamento e mesmo de declarado antagonismo ao poder público, era a reação, na maioria dos casos indecisa senão inconsciente, do instinto de conservação nacional em face de perigos que surgiam, ameaçando a estrutura do Brasil unido, e de obstáculos que se opunham em proporções cada vez maiores ao surto das forças econômicas da nação.

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Além dessas causas, facilmente perceptíveis na sua atuação pelos observadores mais esclarecidos outro fator, talvez ainda mais profundo e de repercussões mais vastas, ia contribuindo para acentuar as contradições e as anomalias que, no funcionamento do regime, patenteavam a sua crescente divergência da realidade nacional. Inspirada na ideologia democrático-liberal, em plena ascendência ao tempo da sua promulgação, o estatuto de 1891 adotara o sistema representativo direto pelo sufrágio universal, como base da organização política do Brasil. Aliás, essa forma de intervenção do povo na direção do país já se achava integrada nas instituições do Império, desde o fim da década de 70 do século passado. A preocupação de dar ao estilo do Estado brasileiro formas liberais que se julgavam as mais adiantadas expressões do pensamento político, havia feito com que os estadistas do período monárquico abandonassem o método de representação indireta, adotado pela Constituição de 1824 introduzindo o sufrágio direto.

Os efeitos desse método de representação fizeram-se sentir dentro em breve e se não foram reconhecidos e apontados, deve-se atribuir semelhante falta de verificação ao estado de espírito em que, tanto a classe dirigente do Estado, como os elementos sociais cultos que se mantinham afastados da vida cívica, se encontravam, sob a influência de ideologias predominantes na época. A democracia liberal ainda imperava na consciência política dos povos de civilização ocidental. E as primeiras manifestações de uma reação contra tais convicções, que já se iam esboçando em alguns países, nenhuma influência ainda exerciam sobre a mentalidade das nossas elites, completamente empolgadas pela confiança na definitiva aceitação dos regimes liberais, que se lhes afiguravam destinados a não poderem mais sofrer um retrocesso.

O sufrágio universal associado ao sistema de eleição direta, tinha forçosamente de produzir no Brasil efeitos ainda mais prejudiciais à eficiência do Estado, à boa orientação legislativa e ao funcionamento adequado da maquinaria administrativa do governo. À flagrante disparidade entre as condições reais de cultura da enorme maioria da nossa população e um sistema representativo, baseado na hipótese da capacidade do eleitorado para exercer com discernimento a prerrogativa cívica, apreciando problemas por vezes muito delicados, criava um obstáculo irremovível ao êxito do método sobre o qual se baseava ~a nossa organização democrática.

Nos países anglo-saxônios, onde se originou o sistema representativo, depois transplantado para ambiências sociais profundamente diferentes, o sufrágio promíscuo e a eleição direta nunca apresentaram os seus mais graves inconvenientes, porque uma condição peculiar à mentalidade daqueles povos modificava radicalmente, na prática, a significação do sistema representativo adotado entre eles. Nada caracteriza talvez melhor a mentalidade anglo-saxônia, que a disciplina na ação coletiva e o pendor inato para aceitar sem relutância, o comando de um chefe. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como em alguns países europeus de raça nórdica, a democracia liberal perdeu, com a organização coesa de partidos e a direção das massas por pequenas minorias pensantes, o seu caráter de perturbadora confusão, que tão claramente se manifesta em nações de outra formação étnica, que erradamente copiaram as instituições do tipo inglês.

Na sua terra originária e nos países a ela sociologicamente semelhantes, a democracia liberal é uma forma de organização política que se presta a simbolizar admiravelmente o conceito da nação soberana na auto-determinação dos seus destinos, sem prejuízo da eficácia de uma direção segura dos negócios públicos pelas minorias a que, pela sua superioridade cultural e maior amplitude de interesses na vida nacional, não pode deixar de caber a responsabilidade do controle do Estado. Distribuídas e organizadas em formações partidárias, rigidamente disciplinadas, as massas eleitorais atuam na vida cívica como verdadeiros exércitos, cujos sufrágios se encaminham docilmente na direção determinada pelos seus chefes. Cada eleitor tem implicitamente a sua liberdade de decisão política limitada pela organização hierárquica da maquinaria partidária.

Em tais circunstâncias, o sufrágio promíscuo e a eleição direta funcionam satisfatoriamente, porque a disciplina dos partidos exclui a influência apreciável das perturbações decorrentes das peculiaridades da rebeldia individual. O eleitor inglês conforma-se com a sua predestinação de votante no candidato do seu partido, representando na comédia democrática o seu papel, com a mesma perfeição com que o soberano exerce a sua função simbólica de chefe do Estado. A única liberdade real de escolha que o eleitor tem, é de mudar de partido, uma vez que toda a ação individual isolada é, no terreno político, para ele impossível e mesmo inconcebível.

Não é difícil compreender-se que um sistema baseado em ficções delicadas e apenas possíveis de determinar resultados práticos em conseqüência de uma psicologia coletiva peculiar, é intransplantável para outras ambiências sociológicas. Fora do solo originário e de um ou outro caso especial, em que idêntica era a isotérmica política a democracia liberal do sufrágio promíscuo e da eleição direta redundou invariavelmente em lastimável falência A crise que agita a Europa continental, dando lugar à eclosão de sucessivos regimes ditatoriais, é o epílogo de um século de esforços baldados para enraizar instituições inaclimatáveis. Aqueles regimes ditatoriais não representam, por certo, cristalizações definitivas de uma nova ordem política e não passam de organizações efêmeras e transitórias, surgidas sob os imperativos da salvação pública sobre as ruínas da democracia liberal, que não pode sobreviver ao traumatismo da guerra. Os ditadores das nações totalitárias devem ser, assim, encarados como verdadeiros síndicos das massas falidas, a que se reduziram as instituições criadas em desafio às realidades sociais e psicológicas daquelas nações.

Aos motivos que impediram o funcionamento normal da democracia liberal na maioria dos países da Europa continental, acresceram outras razões, para tornar essa forma de organização estatal uma farsa caricata na América Latina, inclusive no Brasil. No dia. em que se tiverem dissipado completamente do nosso espírito as últimas névoas formadas pela ilusão democrático-liberal, sentiremos acanhamento, senão positiva vergonha, ao lembrarmo-nos que assistimos, durante tantas dezenas de anos, ao grotesco funcionamento de um simulacro de sistema representativo, tão alheio às nossas realidades nacionais, que não sabíamos sequer executar fielmente a imitação das suas exterioridades.

A prática do sufrágio universal e da eleição direta no Brasil fornece realmente assunto mais adequado a servir de matéria prima ao humorista, que ao estudo sério do historiador. Esses pleitos, em que a voz oracular da soberania nacional saia de urnas onde se acumulavam as cédulas, lançadas por eleitores muitos dos quais ainda não sabiam bem se o Brasil era uma república ou ainda uma monarquia, caracterizam de um modo impressionante e quase trágico a situação anômala em que nos mantivemos, sem contato com a realidade nacional, durante a nossa pitoresca aventura política.

Mas a força de uma idéia profundamente enraizada no espírito é tal que sob o seu domínio permanecemos insensíveis às impressões objetivas dos sentidos e paralisamos a capacidade crítica da razão. Dissolvia-se gradualmente a primeira República. As contradições aumentavam e agravavam-se na vida política nacional. Todos sentiam, como o personagem shakespeareano, que alguma coisa apodrecia neste reino republicano. Ninguém porém queria orientar a investigação, no sentido para onde certamente nos encaminharia um olfato político não corrompido. Atribuía-se os males do país às causas mais fantásticas e extravagantes. Acusava-se caluniosamente os homens públicos de delapidar a fortuna da nação e descurar os seus interesses. A sensibilidade política corrompera-se de tal modo, sob a influência do teorismo democrático-liberal, que se encarava como causas dos males que afligiam o país os sintomas da reação instintiva do organismo nacional para defender-se da anarquia dissolvente e da morte.

Desde 1910 o “slogan” de todos os salvadores da pátria era o combate às oligarquias. Na presidência Hermes levou-se por diante a derrubada geral dos grupos dominantes nos Estados do norte e a cuja influência maléfica se atribuíam os infortúnios do setentrião. Entretanto, essas oligarquias tão malsinadas e que uma vez demolidas foram imediatamente substituídas por outras, tendo os mesmos defeitos e não possuindo algumas das qualidades das suas antecessoras, constituíam um fenômeno interessantíssimo e no qual a sagacidade de um patologista político teria encontrado um elemento para o prognóstico favorável sobre o futuro do Brasil

Agora que os bárbaros saídos das trincheiras da grande guerra, para destruir ilusões e reavivar na consciência política da Europa o senso das realidades, nos estão abrindo os olhos, podemos ver através da fantasmagoria democrático-liberal e começamos a descobrir de novo aquilo que os nossos antepassados do período proto-histórico reconheceram, logo que se formaram as primeiras coletividades humanas e de que ninguém duvidou durante dezenas de milhares de anos, até que a lucidez da inteligência francesa foi perturbada pelos encantadores entorpecentes fermentados no cérebro peculiar do grande Jean Jacques. Esse postulado, que foi a primeira noção sociológica intuitivamente adquirida pelo homem, é o conceito de que o poder promana de quem governa e não pode portanto, sem flagrante absurdo, ter a sua origem atribuída à vontade dos que são governados.

No decurso da evolução histórica, com a crescente complexidade dos fenômenos sociais e com a elevação relativa dos níveis culturais dos diferentes grupos da sociedade, a questão naturalmente assumiu formas menos ostensivas, surgindo nas diversas modalidades de estrutura do Estado processos de adaptação do fato essencial às condições especiais de cada caso. Mas a realidade fundamental permaneceu idêntica através do desenvolvimento histórico e as ficções da democracia liberal no século XIX não fizeram mais que permitir o exercício de um poder anônimo, por elementos freqüentemente os menos capazes de desempenhar a função de domínio em benefício da coletividade.

Retornando, ao exame do que se passou entre nós na dissolução da primeira República, concluiremos sem dificuldade que a eclosão das chamadas oligarquias foi a maneira única como o organismo nacional pode reagir à ameaça de morte criada para ele pelos efeitos da democracia liberal e, particularmente, do sistema representativo baseado no sufrágio promíscuo e na eleição direta. Até onde nos teriam levado essas instituições, não apenas incompatíveis com a realidade nacional, mas positivamente antagônicas à segurança do Estado e da sociedade, se no dinamismo coletivo não se houvessem formado correntes que, por mais desorientadas que fossem, obedeciam contudo aos imperativos primaciais do sentido hierárquico da organização do Estado? A prática efetiva do regime democrático-liberal ter-nos-ia arrastado a uma situação de anarquia política e de caos social. A este propósito cumpre dissipar uma idéia errônea, freqüentemente reiterada por comentadores superficiais da história política do Brasil.

Aludimos à afirmação de haver sido praticado no Império um sistema de governo, cujo funcionamento se adaptava, pelo menos nas suas linhas gerais, ao parlamentarismo liberal. A verdade é que durante todo o período imperial, tal qual aconteceu depois na fase republicana, nunca tivemos mais que simulacros de eleições. Pleitos em que, de certo modo, as situações dominantes consentiam no pronunciamento livre do eleitorado e se abstinham de adulterar pela fraude os resultados apurados nas urnas, foram exceções em toda a nossa história política. As primeiras eleições verídicas que nela se registram foram incontestavelmente os dois pleitos realizados depois da revolução de1930, no regime do voto secreto e sob os auspícios da justiça eleitoral. Aliás, como veremos ulteriormente, essas duas experiências, satisfatórias sob o ponto de vista da técnica do sistema representativo, deram resultados políticos apenas demonstrativos das possibilidades temíveis da democracia liberal entre nós.

Quanto à prática do parlamentarismo no Império, não passou ela de uma imitação das exterioridades das instituições exóticas que havíamos copiado. Encerrado o período mais ou menos anárquico da Regência, logo nos primeiros anos do reinado do segundo Imperador, começou este a exercer uma ditadura que, embora disfarçada habilmente pelo funcionamento da maquinaria constitucional, apresentava os mais inconfundíveis sinais demonstrativos da ação do poder pessoal, que era em última análise a força dirigente da política e da administração pública.

A implantação do regime republicano não podia evidentemente alterar a mentalidade que se formara no decurso do longo período monárquico. As próprias realidades sociais do país tornavam inevitável a aplicação, na nova ordem política, dos métodos que se haviam integrado na prática das antigas instituições. Certas modificações entretanto ocorreram, devido em parte à organização federativa e, por outro lado, ao desaparecimento da autoridade central coordenadora personificada no Imperador. Mais tarde, ao cabo de vicissitudes diversas que caracterizaram os primeiros períodos presidenciais, a autoridade dos presidentes da República passou a tornar-se suficientemente forte para exercer influência sobre as unidades federativas e assumir mesmo as proporções de poder esmagador no caso dos Estados menores. Entretanto, na fase inicial da primeira Republica, a reação centrípeta determinou nos Estados um aumento considerável de força dos elementos regionais, que se constituíram assim em núcleos autônomos de atividade política

Tais elementos correspondiam mais ou menos aos remanescentes dos antigos partidos monárquicos e, no caso das províncias mais atrasadas, eram limitados ao circulo acanhado de um pequeno número de famílias mais ou menos entrelaçadas e formando no seu conjunto o que se chamou a oligarquia. O papel desempenhado por esses núcleos oligárquicos na vida dos Estados e, pela sua ação combinada, no cenário nacional, teria sido integralmente nocivo, se fôssemos aceitar sem restrições e sem exame tudo que se disse e se escreveu a esse respeito. A convicção criada sob a influência da propaganda jornalística e dos desabafos violentos dos grupos oposicionistas regionais, era a da incompatibilidade do desenvolvimento normal do país com a continuação do predomínio daquelas minorias, apontadas como causadoras de todos os infortúnios e responsáveis pelo atraso político, que ia tornando cada vez menos real o contato entre as instituições e a opinião pública.

Assim, a derrocada geral das oligarquias na presidência Hermes foi o resultado imediato e direto da agitação promovida pela campanha que precedera a eleição e na qual se haviam formado correntes novas insistindo sobre a necessidade de uma aplicação mais autêntica do regime constitucional desvirtuado. As deformações deste não redundavam entretanto das causas aparentes a que eram atribuídas e nas quais se deveria antes ter visto sintomas das inevitáveis contradições entre a ordem política estabelecida e a realidade nacional. Os grupos oligárquicos, existentes em escala mais ou menos acentuada em todos os Estados e naturalmente assumindo proporções mais impressionantes nas unidades federativas fracas e atrasadas, não eram a origem, mas o efeito da imposição de uma organização política inadaptável às condições sociais e econômicas do país Se o governo de uma coletividade tem forçosamente de apoiar-se, em última análise, no predomínio efetivo dos elementos sociais mais aptos ao exercício do poder por forma consentânea com os interesses gerais, é evidente que quando a forma de organização política, pela sua desarmonia com a realidade social, não permite a ascendência espontânea dos que preenchem aquelas condições, torna-se fácil a grupos menos capazes de servir o bem publico, e até a aventureiros, a captura da maquinaria governamental. Um fenômeno desta natureza ocorreu entre nós como conseqüência da tentativa de implantar no Brasil instituições democráticas de um tipo irreconciliável com os múltiplos aspectos sociais, econômicos e até geográficos do problema da organização nacional.

As oligarquias destruídas em 1911 e 1912, embora passíveis de muitas das criticas que contra elas se articularam, constituíam verdadeiras expressões de reação orgânica da sociedade no sentido de estabelecer uma forma de ordem política, que substituísse o caos a que fatalmente seríamos arrastados, se não surgissem núcleos de força para orientar coletividades incapazes de seguir diretrizes próprias no jogo de instituições, que não conseguiam assimilar e que a grande maioria dos seus membros não podia sequer compreender. Por outro lado, aquela formações oligárquicas tinham todos os defeitos derivados da sua origem anômala e do caráter de elementos dirigentes de emergência, cuja função só se justificava pela impossibilidade de dar à sociedade uma efetiva dentro dos moldes do estatuto básico que lhe fora arbitrariamente imposto.

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Com a derrubada das oligarquias, a situação política do país, longe de melhorar, agravou-se. A necessidade imperiosa de núcleos de força, que fizera surgir espontaneamente os grupos oligárquicos, afinal destituídos do poder, determinou o aparecimento imediato de novas formações políticas do mesmo gênero. As novas oligarquias mostraram-se, de um modo geral, inferiores às suas predecessoras. E o fato nada tinha de surpreendente. Constituíam os antigos grupos oligárquicos elementos dotados já, senão de autêntica educação política, pelo menos formados pelo auto-didatismo do exercício do mando. Além de conhecerem, por esse motivo, os problemas mais salientes da administração dos Estados, os oligarcas da primeira turma eram em geral pessoas com experiência das questões da economia regional e ligadas a ela por interesses permanentes. Assim, essas oligarquias, promovendo as medidas que serviam aos interesses dos seus membros, concorriam por via de regra para amparar as forças econômicas, de cuja atividade e rendimento dependia o bem estar da coletividade.

As novas oligarquias, que substituíram logo as decaídas, não traziam hábitos de governo e a grande maioria dos que as compunham eram elementos desligados dos interesses da produção regional. Daí, nenhuma melhoria e, pelo contrário, em geral, agravação dos defeitos da administração pública e o desenvolvimento de um parasitismo ainda mais extenso e caracterizado pela apropriação dos dinheiros públicos, em benefício de um grupo privilegiado. É claro que estas considerações são de caráter genérico e não excluem o reconhecimento de casos excepcionais, que aliás apenas vieram tornar mais nitidamente perceptível o que constituía a regra geral.

A substituição das primeiras oligarquias republicanas, em um grande número de Estados, por outras do tipo que acabamos de esboçar sucintamente, repercutiu em breve, de um modo significativo, no conjunto da política nacional. Quem se der ao trabalho de estudar a composição da representação nacional no antigo Congresso, analisando o valor individual das personalidades que ali apareciam, verificará que a presidência Hermes marca uma espécie de linha divisória no tocante à qualidade dos elementos que representaram, antes e depois, os Estados.

Enquanto as unidades federativas mais adiantadas e onde não ocorrera a subversão das situações dominantes continuaram a mandar para o Congresso figuras mais ou menos idênticas em valor às que ali anteriormente as haviam representado, os Estados onde haviam tido lugar as chamadas “salvações” passaram a ter na Câmara e no Senado representações sensivelmente inferiores. Ainda neste caso, uma ou outra excepção individual não constitui argumento a ser tomado em consideração.

O abaixamento de nível da representação nacional, flagrantemente demonstrado pelos anais das duas casas do Congresso, teve os seus efeitos políticos acentuados ainda por um fator de decisiva importância O poder presidencial aumentava e ia tendendo mesmo a hipertrofiar-se simultaneamente com a decadência parlamentar. Durante o primeiro decênio republicano o poder presidencial fora consideravelmente contraditado e, até certo ponto, efetivamente equilibrado pela força dos governadores. O próprio Floriano, que no período mencionado foi o chefe da Nação que maior poder concentrou em suas mãos, viu-se sempre na contingência de levar em conta os elementos de força representados pelos dirigentes das unidades federativas. Prudente de Morais sofreu uma oposição vigorosa e desassombrada dos governos de diversos Estados e notadamente do Rio Grande do Sul.

Campos Salles, absorvido pela execução do seu plano de restauração financeira e aproveitando com a sua grande prudência política, a lição do quadriênio anterior, recorreu ao expediente de um acordo com as situações estaduais, a fim de garantir ao seu governo a liberdade de ação de que precisava na esfera administrativa. A chamada política dos governadores, estabelecida por aquele grande presidente em 1900, foi ainda uma demonstração da força de que então dispunham os dirigentes dos Estados Mas em troca dá liberdade ilimitada conferida aos governadores para dirigirem a política regional e designarem os respectivos representantes na Câmara e no Senado, o poder presidencial adquiriu na esfera administrativa uma força, que pouco a pouco se foi tornando um elemento de domínio sobre os Estados.

O desenvolvimento econômico do país, que começou a acentuar-se em marcha progressivamente acelerada desde que o cumprimento do primeiro funding acarretou, em 1901, o reerguimento do nosso crédito externo e a facilidade de importação de capitais estrangeiros, foi outro fator da acentuação dos meios de influência e de domínio do Presidente da República sobre os Estados. No caso das unidades federativas de maior importância de recursos econômicos mais amplos e portanto capazes de desfrutar um crédito próprio, esse elemento de ação do poder central foi menos perceptível. Em todo o caso, ela não deixou de ser exercida, como se poderia provar pela citação de vários episódios da nossa história administrativa, bastando lembrar apenas as vicissitudes dos sucessivos planos de valorização do café. Mas, em relação aos Estados menores, a dependência econômica e financeira colocou-os gradualmente em uma posição de subalternidade cada vez maior relativamente à União.

O desenvolvimento econômico e o progresso social por ele determinado contribuíram, ainda de outro modo para acentuar a decadência do Parlamento nacional, enquanto se reforçava o poder presidencial. Insensivelmente, e sob a pressão de circunstâncias que se apresentavam em todos os setores da vida da nação, o trabalho legislativo foi assumindo caráter mais complexo e envolvendo, em escala cada vez maior, a solução de problemas técnicos de crescente delicadeza. A influência desses fatores, fazendo-se sentir, por toda a parte, já havia feito com que em vários países se introduzisse na prática um processo de legislar, em que o trabalho de elaboração das leis cabia de fato ao Executivo, com a colaboração dos órgãos técnicos da administração. Os projetos de lei assim preparados eram submetidos aos parlamentos, que os aprovavam como expressão de confiança nos governos por eles apoiados, sendo poucas e raras as emendas introduzidas no texto da medida governamental, As condições da política brasileira nos dois últimos decênios da primeira República criavam uma situação, em que esse método de legislar tinha de ser aplicado ainda por forma mais radical.

Em vez de assumir a responsabilidade da redação das leis que tinham exatamente maior importância sob o ponto de vista dos interesses vitais da coletividade, o antigo Congresso foi pouco a pouco delegando ao Executivo função legislativa por meio de autorizações. Estas nem sequer fixavam os princípios fundamentais da medida a que se referiam e quase invariavelmente tomavam a forma de carta branca dada ao Executivo para elaborar, por meio de decretos, o que obviamente devia ser matéria da alçada legislativa. Mas não era nessas delegações de poder que o Congresso manifestava, por forma mais característica e desmoralizadora, a abdicação das suas prerrogativas. Todas as. medidas patrocinadas pelo governo corriam os trâmites da elaboração legislativa nas duas casas do Congresso, sem debate a que se pudesse aplicar semelhante termo, e eram aprovadas em obediência às ordens do poder predominante, com uma docilidade e presteza, que dava bem a medida do aniquilamento moral e político da representação nacional.

No tocante às funções fiscalizadoras que a Constituição lhe atribuíra o Congresso mostrava a mesma passividade e uma absoluta incapacidade de revelar qualquer interesse pelos negócios públicos capaz de causar incômodo ao Presidente e aos seus ministros. Cumpre observar que semelhante estado de coisas, em torno do qual se agitava a opinião pública em atitude de antagonismo cada vez maior à ordem política existente, não deixava de ter algumas vantagens sob o ponto de vista dos interesses nacionais. A idéia vulgar era sem dúvida encarar o aumento incessante do poder presidencial como causa precípua de todos os males que afligiam o país. Semelhante opinião, porém, resultava de uma observação superficial e defeituosa, que de modo algum correspondia à realidade. A hipertrofia da autoridade presidencial na primeira República apresentou certos inconvenientes, alguns dos quais um tanto graves. Mas isso corria exclusivamente por conta do fato de não se harmonizar essa expansão do poder executivo com o conjunto das instituições e de ser em grande parte empregada em objetivos que não coincidiam com os interesses nacionais.

Pode-se entretanto afirmar que, em tudo que se fez de bom no Brasil naquela época e em todos os males que se evitaram, iremos encontrar precisamente os efeitos da atuação do poder presidencial, ao passo que os fatores de desmoralização do regime e os elementos perturbadores do progresso normal do país promanavam invariavelmente da atmosfera criada pela decadência parlamentar. O instinto popular foi intuitivamente compreendendo isso e, nos últimos anos da primeira República, já não era o Presidente o alvo da animosidade pública, que convergia preponderantemente para o Congresso, cujos membros eram objeto das expressões mais cáusticas da antipatia geral.

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A importância absorvente e, por fim, quase exclusiva da autoridade presidencial no jogo da política nacional; na elaboração das leis, na orientação da vida interna de quase todos os Estados e na própria rotina da administração pública, imprimiu ao problema quadrienal da escolha do Chefe da Nação proporções de uma temível crise. Até certo ponto o fato era normal e inerente ao próprio funcionamento do sistema presidencial, como amplamente o demonstrava a experiência dos Estados Unidos. Mas circunstâncias especiais tornavam, no nosso caso, aquelas crises periódicas incomparavelmente mais graves.

Não se tratava aqui de campanhas eleitorais no sentido de agitação política e de publicidade partidária, com o objetivo de induzir o eleitorado a preferir um ou outro candidato. Ninguém entretinha ilusões sobre o valor real dos pleitos. Todos sabiam perfeitamente que as eleições seriam realizadas com os habituais processos de compressão e de fraude e que em cada Estado apareceria com maioria de sufrágios o candidato patrocinado pelo governador. Assim, a campanha sustentada pela facção que não dispunha da maquinaria do governo visava fins inequivocamente revolucionários. A idéia de apelo à força não ocorria a posteriori quando os atos de compressão da situação dominante justificavam o receio do desvirtuamento da decisão do eleitorado nas urnas. Desde o início da campanha já se elaboravam, mais ou menos precisamente e de modo mais ou menos ostensivo, os planos para criar o caso que pudesse servir de ponto de apoio para uma perturbação da ordem.

As campanhas presidenciais eram, portanto , preâmbulos políticos de uma crise revolucionária conscientemente premeditada. Aliás, não se pode ser muito severo na crítica de semelhantes processos para a conquista do poder. As condições reinantes no Brasil tornavam absolutamente impossível a qualquer grupo político em oposição, deslocar os seus adversários situacionistas, senão por meio de golpes de força. O caráter de irrealidade das instituições, inadaptáveis à ambiência social, e a impossibilidade absoluta de tirar do funcionamento das engrenagens dessa maquinaria política inadequada os resultados teoricamente previsíveis, não deixavam aos adversários das situações dominantes outra alternativa senão a de preparar revoluções. Fora aliás esse o método empregado nas outras nações latino-americanas e que continuava a ser usado na maior parte delas, devido exatamente à mesma causa: a desarmonia entre as formas de organização política e as condições reais do meio social.

Se a nação brasileira tivesse decaído ao ponto de perder a capacidade de reação contra a forma imprópria de organização política que lhe haviam imposto e que a impedia de seguir o curso normal do seu desenvolvimento progressivo, as coisas teriam ficado indefinidamente no pé em que pareciam ter se estabilizado, uns trinta anos depois da proclamação da República. Períodos quadrienais de estagnação política seriam intercalados por meses de efervescência e agitação. Tais crises prejudicariam a marcha da vida econômica do país, provocariam sobressaltos revolucionários, sempre recalcados pelos governos, cuja força de repressão e compressão ia naturalmente aumentando com a própria duração do regime. Mas o Brasil não chegara ao torpor, que certos sintomas poderiam induzir a crer que dele se tivesse apoderado.

Várias razões concorriam para entreter no organismo nacional uma vitalidade garantidora da sua capacidade potencial de reação. Em primeiro lugar, possuíamos uma tradição política. Certamente não se tratava de um patrimônio cívico integrado na consciência das massas. Estas nunca haviam representado papel de espécie alguma na evolução política da nacionalidade que fora desde o período colonial, através de toda a nossa história, dirigida exclusivamente pelas sucessivas elites, que dominaram o cenário brasileiro e que nele atuaram, tirando partido da receptividade das forças armadas às influências demagógicas. Mas nessas elites e também no meio militar, onde as circunstâncias históricas haviam criado uma mentalidade inequivocamente política, mantivera-se um espírito cívico por vezes perturbado e muito confuso, que persistia contudo na afirmação de aspirações tendentes à realização de um ideal nacional. Por entre as dúvidas e apreensões que as condições políticas do país despertavam naqueles elementos constituintes da nossa classe dirigente, subsistia com tenacidade a esperança de uma regeneração, que nos trouxesse ao contato das realidades adivinhadas por todos, embora muito poucos formassem delas uma idéia clara.

Essas reservas de espírito cívico e de ideal patriótico foram robustecidas pela influência de causas materiais, que atuaram na vida brasileira desde o começo deste século. O progresso econômico e o desenvolvimento de formas superiores de civilização, determinados pela intensificação das atividades em conseqüência do grande afluxo de capitais ao país, principalmente nos dez últimos anos precedentes à grande guerra, representaram um fator decisivo de estímulo da consciência nacional. O surto da industrialização iniciada logo nos primeiros anos do regime republicano e intensificada depois pela proteção aduaneira estendida às mecanofaturas nacionais pelas pautas de 1897 e de 1905 e, mais tarde, vigorosamente propelida pelas circunstâncias decorrentes da grande guerra, imprimiu à mentalidade política brasileira novas energias e uma capacidade de reação como nunca tivera.

Realmente, sem a influência desses fatores econômicos, que atuaram não apenas nas elites, mas repercutiram também nos elementos mais adiantados das massas populares, que começaram a formar um operariado urbano teria sido impossível a eclosão do revolucionarismo que acabou destruindo, em 1930, a primeira República. O estudo desse fenômeno, que infelizmente teremos de fazer de modo extremamente sucinto aqui, é preliminar imprescindível ao entendimento do novo Estado brasileiro, criado agora pela Constituição de 10 de Novembro.

A desproporção entre os episódios de rebeldia que assinalaram o ciclo de preparação revolucionária, iniciado em 1922, e a natureza profunda das causas desses incidentes era tal, que a maioria dos políticos, inclusive homens de considerável sagacidade e lucidez intelectual, não conseguiram nunca atribuir aos fatos aludidos o alcance de sinais premonitórios dos grandes acontecimentos que se preparavam. Havia ainda uma circunstância que inibia a maioria dos observadores de avaliar devidamente a significação do surto revolucionista que se ia delineando. Como aliás acontece freqüentemente em casos análogos, os vanguardeiros da revolução, cujo determinismo se operava no subconsciente nacional, eram os mais incapazes de apreender a amplitude e a profundeza da mutação política de que se estavam tornando historicamente os pioneiros inconscientes. Não era entretanto muito difícil perceber naquela agitação ainda tão desorientada as diretrizes traçadas por um ímpeto irresistível de renovação necessária. Assim, tivemos ocasião de apreciar as correntes revolucionárias latentes, meses antes do movimento de 1930, insistindo em acentuar que os elementos empolgados pela idéia da revolução refletiam na sua atitude a influência do instinto de conservação nacional, que reclamava uma transformação completa da organização do Brasil. (10).

O primeiro ponto, portanto, a fixar-se na análise do surto revolucionário que culminou na insurreição de outubro é o seu, caráter instintivo. As revoluções, a nosso ver, são invariavelmente movimentos partidos de pequenas minorias de elite,, que influenciam, educam e organizam as massas para a realização dos seus objetivos. Há pois em todas as revoluções um movimento intelectual originário, que é o ponto de partida dos episódios que ulteriormente se encadeiam até a conflagração subversiva. Os antecedentes da revolução brasileira de 1930, cujos objetivos construtivos, como teremos ocasião de mostrar ulteriormente, só começaram a realizar-se com o golpe promulgador da atual Constituição, colocam-nos em face de uma exceção curiosa à regra geral acima apontada.

Não houve no nosso caso trabalho intelectual de preparação das bases espirituais da revolução. Por certo, na produção cultural brasileira dos vinte anos que precederam o início do ciclo revolucionário, encontram-se, aqui e acolá, o que poderemos chamar talvez de sinais luminosos, indicando esta ou aquela direção a seguir-se no encaminhamento da renovação nacional.

Mas tudo isso não representava mais que elementos desarticulados e com os quais não seria possível tecer a estrutura de uma base lógica da revolução brasileira. As origens desta promanaram do instinto, e as primeiras iniciativas precipitadoras da onda revolucionária partiram de homens moços, na sua maioria militares, mais identificados com a ação material e com as expressões da energia emotiva que com a meditação serena e a análise intelectual dos problemas políticos e sociais.

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A corrente revolucionista, que se tornou o centro para onde convergiram o descontentamento generalizado e as esperanças que uma grande parte da nação depositava na transformação violenta da ordem vigente, não tinha, como acabamos de ver, nenhum sentido ideológico. Era um movimento puro e simples de antagonismo aos detentores do poder, e os expoentes das aspirações revolucionárias teriam sido incapazes de esclarecer a, curiosidade de quem tivesse procurado indagar dos seus planos para quando realizassem ambicionada conquista do poder.

A ausência de qualquer programa construtivo tornava a corrente revolucionária não apenas desorientada no prosseguimento dos seus objetivos, como também a predispunha a absorver todas as idéias políticas ou de outro gênero, que sobre ela pudessem exercer alguma influência. Essa receptividade extrema do revolucionismo brasileiro, que surgira em 1922, tornava-se particularmente importante e, sob certos pontos de vista, muito perigosa diante da situação geral do mundo e da efervescência das doutrinas mais contraditórias, que se patenteava por toda a parte como efeito das causas múltiplas postas em ação pela guerra e suas conseqüências. Os problemas políticos assumiam no pós-guerra um caráter peculiar que lhes era impresso pelos fatores econômicos em jogo e pelas repercussões por eles determinadas. Tanto o exemplo russo, como o caso do fascismo italiano, provavam a impossibilidade de uma revolução manter-se estritamente dentro da órbita da renovação política, sem envolver também transformações econômicas e sociais de grandes proporções, A tentativa fracassada dos liberais russos que, derrubando o tzarismo, em vão procuraram substitui-lo pela democracia liberal e ao cabo de oito mexes haviam sido deslocados do poder por uma revolução econômica e social, não fora, como dissemos, demonstração isolada da impossibilidade de revoluções meramente políticas na época atual. O fascismo, surgido como expressão confusa da resistência da sociedade italiana à infiltração mista do bolchevismo e do anarco-sindicalismo oriundo das tradições revolucionárias do país, não tardou em assumir o aspecto de uma revolução nitidamente econômica e social. Divergindo do comunismo russo, mas tendo com ele traços inequívocos de íntimo parentesco, o fascismo, sob a forma do Estado totalitário, desenvolveu uma transformação gradual, mas bastante rápida da estrutura econômica e da configuração social da nação italiana. Não iremos aqui além no exame desse ponto, porque em outro capítulo teremos de voltar a uma análise mais cautelosa da essência e do sentido do fascismo, quando mostrarmos que ele nada tem de comum ou de semelhante com a organização do novo Estado brasileiro.

O fato que nos importa fixar bem por enquanto é que a corrente revolucionária brasileira, de cuja ação persistente resultaram os acontecimentos de 193O, foi, como não podia deixar de ser, fortemente influenciada pelas ideologias econômicas e sociais, que, ao tempo se difundiam pela atmosfera intelectual e moral do mundo. Essa influência exerceu-se em circunstâncias extremamente peculiares e de que deveriam resultar efeitos muito apreciáveis depois da vitória revolucionária.

Desprovidos quase todos de uma cultura mais ou menos sólida, que os habilitasse à assimilação proveitosa das influências ideológicas que sobre eles atuavam os revolucionários brasileiros sofreram ação irresistível das tendências de todo o gênero que se faziam sentir no momento. E o fato de se terem ido refugiar em Buenos Aires e Montevidéu as principais figuras dos movimentos ocorridos desde 1922, contribuiu para que, sobre aqueles elementos, maior fosse ainda a influência das correntes ideológicas em cuja absorção os exilados, pelo motivo apontado não podiam contar com a ação discriminadora de uma censura intelectual adequada. As duas capitais platinas, pela típica formação cosmopolita das suas populações, eram centros de confluência de todos os revolucionismos e anti-revolucionismos que agitavam a Europa e se propagavam à América. E vivendo ali como ostracisados, os revolucionários brasileiros, homens muito moços e colocados pelas circunstâncias em condições econômicas e sociais propícias a submetê-los ao ritmo do pensamento que, em falta de melhor expressão, se poderia qualificar de esquerdista, seguiram o curso ideológico que assim lhes estava naturalmente traçado. Alguns deles avançaram na lógica da situação em que se encontravam, até se integrarem na forma extrema do comunismo marxista. Os outros, sem chegar tão longe, adquiriram contudo a convicção de que a revolução, de que eram expoentes, teria de realizar uma obra de renovação econômica e social fortemente colorida pelo exemplo dos modelos que os impressionavam.

Estes, que formavam a maioria do grupo revolucionário, parecem ter atingido, sob a influência contraditória das doutrinas com que se iam familiarizando no exílio, a uma ideologia em que se embrulhavam postulados comunistas e conceitos associados ao totalitarismo fascista. A síntese incoerente de todas essas idéias, acumuladas sem coordenação sistemática, criava nos futuros orientadores da revolução vitoriosa uma concepção meramente subjetiva dos problemas brasileiros e à qual se opunha a realidade nacional, de que aqueles jovens entusiastas não tinham senão uma noção vaga e muito imperfeita.

Reduzidas às suas verdadeiras proporções e observadas com um critério objetivista, as condições econômicas e sociais do Brasil eram tão profundamente diferentes das que haviam gerado as doutrinas em ação e em conflito na Europa, que aplicar-se ao nosso caso o termo já estereotipado de questão social ultrapassava as raias do absurdo. Certamente ocorriam em nosso meio questões sociais, mas não havia nada que se assemelhasse à questão social, como a entendiam as sociedades onde ela surgira e viera a assumir proporções mais ou menos alarmantes.

A idéia de descobrir no dinamismo da sociedade brasileira a questão social do tipo europeu foi um reflexo da influência dos postulados teóricos do marxismo. A redução do processo sociogênico a uma fórmula ampla e simplista, abrangendo a evolução de todos os grupos humanos e não levando em conta as condições particulares de ação decisiva em cada caso, representou uma das conseqüências da cultura abstrata e unilateral de Marx. O criador da doutrina comunista moderna tinha graves deficiências de equipamento cultural no tocante aos aspectos biológicos e psicológicos dos problemas da sociologia, bem como em relação à influência da ambiência geográfica na orientação da marcha evolutiva de cada grupo humano.

Tais deficiências, longe de serem atenuadas, foram agravadas ainda pelas proporções geniais do espírito de Marx, e da sua extraordinária capacidade dialética. Da análise da fase de evolução do regime capitalista que então se apresentava na Inglaterra, o país de mais adiantada industrialização naquela época, o autor do Capital induziu uma teoria geral do desenvolvimento do capitalismo, postulando a sua generalização a todos os meios sociais.

Entretanto, não somente os fenômenos observados por Marx constituíam apenas um conjunto de fatos decorrentes das condições especiais do momento e do ambiente particular em que ele se achava, como ainda não correspondiam às realidades do processo sociológico em países cujas circunstâncias eram diferentes. Os acontecimentos desmentiram os prognósticos do teorista do comunismo. A evolução do capitalismo não prosseguiu nas linhas por ele previstas e, em vez da concentração progressiva do capital, o que se verificou foi exatamente o contrário, isto é, uma difusão cada vez maior da riqueza e um levantamento progressivo do nível econômico e das condições de vida das massas trabalhadoras. Não menos mal sucedidas foram as idéias de Marx no tocante ao caráter geral por ele atribuído à sua teoria. A experiência do período que se seguiu à publicação de “O Capital” tem evidenciado que, longe de obedecer à fatalidade do determinismo expresso em uma lei única, o desenvolvimento econômico e as repercussões sociais dele derivadas variam profundamente em cada ambiência social, sob a influência das condições peculiares que ali atuam.

Marx idealizara uma teoria abstrata do desenvolvimento econômico, ao passo que este, na realidade, é determinado em cada caso particular pela ação de vários fatores, tais como o meio físico, a raça com as derivadas psíquicas a ela associadas, episódios históricos acidentais, influências culturais e até a ação individual de personalidades excepcionais, que formam em conjunto os elementos do determinismo que se patenteia em cada caso nacional, orientando a evolução econômica. Assim, a doutrina que empolgou tantos espíritos e fascinou tantas inteligências, tornando-se para as massas a força inspiradora de uma utopia, levada pelo fanatismo às proporções de um credo religioso, ficou reduzida afinal, diante da demonstração trazida pelos fatos, a uma simples hipótese, não confirmada em face da experiência.

Quando surgiu no Brasil a corrente revolucionária, precipitada. em 1922 pela campanha presidencial da sucessão Epitácio Pessoa, o marxismo já ia perdendo, nos próprios círculos do socialismo europeu, o prestígio com que impressionara as gerações anteriores. Mesmo na Rússia bolchevista já se esboçava a reação que ulteriormente iria concretizar-se em modificações do inicial regime revolucionário, incompatíveis com a ortodoxia marxista. E nos outros países europeus, os socialistas, em número crescente, afastavam-se da velha teoria e dos seus corolários, manifestando tendência cada vez mais acentuada a substituir a luta de classes e a finalidade revolucionária do movimento por planos práticos de reforma progressiva dentro dos próprios quadros do capitalismo.

A dissolução do marxismo, sob a pressão irresistível da análise objetiva das realidades econômicas e também sob a influência do exemplo da tentativa fracassada da sua aplicação na experiência russa, imprimiu ao socialismo europeu, logo nos primeiros anos do após-guerra, o colorido novo a que acabamos de aludir. Os trabalhistas ingleses, que nos últimos anos precedentes ao grande conflito europeu haviam começado a ser profundamente dominados pela ideologia marxista, foram os primeiros a retroceder ao seu primitivo ponto de vista, assumindo uma atitude prática acentuadamente conservadora. Em 1926, as principais figuras do partido trabalhista britânico proclamavam a necessidade de estudar o desenvolvimento do capitalismo americano, com o propósito de reajustar o programa partidário, conformando-o com atividades práticas que permitissem a elevação gradual do nível econômico e social das massas trabalhadoras dentro da realidade capitalista.

Anos mais tarde, no socialismo belga, surgia uma nova corrente, interpretando o movimento de reivindicações sociais em termos distintamente destacados do ponto de vista marxista. Henry de Man, que no princípio da sua carreira fora marxista ortodoxo, evoluiu das suas primeiras idéias até atingir uma posição intelectual essencialmente anti-marxista. Encarando a teoria deste e as categorias e tábuas de valores por ela envolvidas como simples derivados da ambiência e da mentalidade geradas pelo capitalismo no regime da democracia liberal, de Man reinterpretou as aspirações e as reivindicações das massas trabalhadoras em um conceito humano, dentro de cuja órbita os postulados do socialismo revolucionário se tornam automaticamente insubsistentes e anacrônicos. (11). As idéias de Henry de Man, concretizadas nas teses por ele apresentadas no congresso de Pontigny e incorporadas no Plano de Trabalho adotado pelo partido socialista belga, modificaram tão profundamente a ideologia, as tendências e os métodos daquele partido, que logo em seguida se tornou viável a estreita e permanente colaboração entre socialistas e católicos, que caracteriza o governo da Bélgica até o momento presente.

Em França, a mesma evolução se operou no partido socialista, sendo dele expurgados os elementos intransigentemente apegados ao marxismo, que passaram a formar um grupo comunista separado. Entre este e o partido socialista, as divergências ideológicas e táticas são absolutas e inconfundíveis. A própria cooperação ocasional dos comunistas com os seus antigos correligionários na formação parlamentar da Frente Popular, apenas tem servido para pôr em relevo o afastamento cada vez mais acentuado entre os socialistas, que se integram progressivamente na realidade nacional, e os comunistas apegados ao marxismo e influenciados por elementos e correntes promanados de fora da França.

O rápido retrospecto, que acabamos de fazer, da transformação operada nos próprios meios socialistas em relação ao marxismo, evidencia que quando esta doutrina veio a infiltrar-se no Brasil, influenciando a corrente revolucionária, já havia perdido a sua vitalidade intelectual. Mas a América Latina, e particularmente o nosso país, por motivos diversos, parece sujeita à fatalidade de absorver idéias, que chegam aqui como resíduo último da elaboração mental de outros povos. Essa velha tendência a copiar modelos já a serem abandonados em outras terras patenteou-se de modo muito significativo no êxito relativo que o proselitismo comunista teve em diversas camadas da sociedade brasileira Se a infiltração tardia da doutrina marxista não houvesse coincidido com uma grave crise nacional, como a da revolução de 1930, conseqüências importantes não teriam redundado de semelhante importação ideológica. Mas o traumatismo sofrido pela nação, com ,o desmoronamento súbito da estrutura política com que ela se identificara durante quarenta anos, criou uma receptividade peculiar a todas as correntes que podiam atuar sobre a mentalidade coletiva. Além disso, como veremos em seguida, circunstâncias de grande repercussão complicaram enormemente as perturbações inerentes à crise revolucionária.

***

A revolução de 1930 trouxe a prova mais impressionante do caráter irreal da organização política que foi imposta à nação e que se mantivera durante quatro decênios sem se enraizar na consciência pública. Quarenta e um anos antes do movimento de Outubro, o país assistira a outra derrocada institucional ainda mais dramática e menos compreensível a quem, aplicando métodos lógicos, tivesse analisado os acontecimentos sem ir procurar o seu determinismo mais profundo nas contradições entre a organização nacional e as realidades em que ela se deveria alicerçar. A primeira República surgira de um golpe militar decorrente do mal estar criado entre a oficialidade da guarnição do Rio de Janeiro, por certos atos do Presidente do último Conselho de Ministros da monarquia, a quem se atribuía intuitos hostis ao Exército. Entre o movimento que criara a ordem republicana e a ideologia com ela identificada não existia nenhuma correlação apreciável. A maioria dos militares que tomaram parte na proclamação da República não eram republicanos, achando-se nessa situação o próprio marechal Deodoro que, a despeito da lenda sentimentalmente formada em torno do seu nome, só parece ter-se fixado historicamente como fundador da República porque o soberano, em um lapso da sua habitual argúcia política que a moléstia comprometera, convidou para organizar ministério, em substituição ao gabinete deposto, um rancoroso inimigo pessoal do chefe do levante militar.

A derrocada da primeira República não ocorreu em circunstâncias muito diferentes das que haviam caracterizado o seu nascimento. Saída de uma quartelada a que o povo, na linguagem pitoresca de um dos protagonistas do drama, assistira bestializado, a ordem política instituída em 1889 ruiu em Outubro de 1930, menos sob a pressão do movimento insurrecional deflagrado em vários pontos do país que do efeito imediato do levante de tropas na capital da República.

A analogia entre as duas revoluções, separada por quatro décadas uma da outra, não se limita ao aspecto dramático e a encenação militar do seu episódio decisivo. Existe ainda uma série de fatores semelhantes, que atuaram nos dois casos como determinantes do colapso das instituições. Em 1889, haviam-se acumulado contra a monarquia forças econômicas a que já tivemos ocasião de aludir e cuja atividade representou papel decisivo na destruição dos alicerces do regime, que teria subsistido se contra ele atuassem apenas as correntes superficiais da propaganda ideológica e sentimental que impressionava, com as manifestações da sua hostilidade verbal, às instituições imperiais, mas que realmente nenhum efeito profundo produzia nos meios sociais de que realmente dependia a orientação política do país não muito diferente foi a fisionomia da situação que se delineou em 1930

Nesse ultimo caso, porém, o quadro de elementos em jogo na precipitação da crise revolucionária foi mais complexo que por ocasião do colapso do regime monárquico. Três correntes destacam-se nitidamente como outros tantos fatores do movimento de Outubro. Uma onda de oposicionismo indefinido e sem sentido ideológico preciso, mas caracteristicamente animada pelo pensamento de que a salvação nacional exigia uma transformação da ordem política vigente, avolumara-se durante os últimos anos da primeira República. A essa corrente, cuja atuação se vinha tornando progressivamente mais forte pelo incremento incessante de novos aderentes, associou-se em 1929 o elemento representado por forças políticas até então integradas no situacionismo e que deles se separaram por divergências relativas à escolha do candidato à presidência da república.

Até ai a crise de sucessão, em torno da qual se organizou a Aliança Liberal, não divergia das duas outras registradas na história republicana. O movimento civilista de 1909, chefiado pela grande personalidade de Rui Barbosa e a Reação Republicana, dirigida por Nilo Peçanha haviam apresentado exatamente os mesmos característicos da agitação promovida em torno da candidatura do snr Getúlio Vargas, como expoente das correntes anti-situacionistas. Um traço diferencial profundo e inconfundível distinguia entretanto a crise de 1929, de que redundaria a revolução de 1930, das duas agitações precedentes. Enquanto em 1909 e em 1921 a efervescência política, que aliás nesses dois casos assumira proporções de maior intensidade ainda, era desacompanhada de fenômenos econômicos tendentes a agravar a situação, em 1929 o Brasil entrara bruscamente na mais grave crise da sua história econômica recente. O civilismo e a Reação Republicana haviam sido episódios meramente políticos, ocorrendo em épocas não só de normalidade econômica como mesmo de relativa prosperidade. A agitação suscitada pela sucessão do snr. Washington Luis coincidiu com a queda catastrófica dos preços do café e, desde logo, se patentearam indícios inconfundíveis do inevitável colapso da política monetária que se tornara a finalidade precípua do quatriênio a expirar.

Não pode haver hesitação em concluir-se que as crises políticas anteriores, que haviam sido mais graves, sobretudo a de 1921, complicada por sérios aspectos militares, não haviam redundado na deflagração de um movimento revolucionário eficiente exatamente por terem faltado naqueles casos os elementos de natureza econômica que, em 1929, imprimiram à situação uma fisionomia sob certos pontos de vista muito semelhante ao quadro da queda da monarquia. Contra esta insurgiam-se, nas províncias de economia mais adiantada, as forças associadas à produção, que reclamavam uma reforma profunda do sistema de administração centralizada e rotineira, acusada de responsável pelas dificuldades que embaraçavam o surto das atividades econômicas. Em torno da primeira República, desmoralizada e impopularizada, formou-se o vácuo pela retirada dos apoio que lhe havia sido prestado pela classe agrícola em troca das medidas de proteção com que o Estado amparava a lavoura, e particularmente a produção cafeeira, nas crises que sucessivamente interrompiam o curso normal da economia brasileira. Sem a crise do café, sobrevinda em princípios de outubro de 1929, o movimento entretido em torno da Aliança Liberal teria tido o epílogo dos episódios políticos de 1909 e 1921. A força de inércia teria assegurado a estabilidade da ordem constituída. A comédia eleitoral acabaria conforme as regras já consagradas na nossa prática democrática. O candidato situacionista reconhecido pelo Congresso tomaria posse e os seus adversários disputariam uns com os outros a precedência no reconhecimento amável do fato consumado.

Far-se-á, entretanto a objeção de que as condições profundas da sociedade brasileira, ao tempo em que se deflagrou o movimento de Outubro, correspondiam à formação do determinismo de uma autêntica crise revolucionária. Em páginas anteriores reconhecemos esse fato, que não pode realmente ser contestado por quem tenha analisado os fenômenos que se manifestaram no ultimo decênio precedente ao colapso da velha República. Mas é preciso imediatamente acrescentar que os elementos determinantes da mutação política, que já podia ser então prevista, estavam longe de representar núcleos de força capazes de deflagrar uma revolução vitoriosa. Foram os fatores econômicos que tornaram possível o colapso do regime que nele se apoiava. Antes de acentuarmos ainda esse aspecto da derrocada da primeira República convém examinar outro fato novo que entrou em jogo na crise de 1929, imprimindo-lhe traços sensivelmente peculiares e profundamente diferentes das situações surgidas anteriormente a propósito de sucessões presidenciais.

As duas campanhas desse gênero travadas anteriormente haviam apresentado um cunho inconfundivelmente nacional. Tanto no movimento civilista como na Reação Republicana, as forças políticas se tinham dividido em correntes centralizadas cada uma nas personalidades dos candidatos em luta, sem que nessa distribuição se pudesse observar qualquer influência apreciável de interesses ou de sentimentos regionalistas. Os situacionismos estaduais colocados em oposição ao candidato da maioria das forças políticas nacionais não haviam manifestado preocupações associadas a qualquer expressão de particularismo local. A Nação, em ambas ocasiões, dividira-se em massa, apresentando as campanhas um aspecto de homogeneidade nacional, que excluía por completo qualquer possibilidade de resultar do desfecho antagonismo entre unidades federativas ou oposição de correntes regionalistas em um conflito perturbador da unidade moral da nacionalidade.

Nitidamente diferentes foram as condições em que se travou a luta entre as candidaturas do snr. Júlio Prestes e do snr. Getúlio Vargas. A acentuação progressiva de tendências regionalistas, que se vinham formando como efeito do desvirtuamento do sistema federal na aplicação da Constituição de 1891, patenteou na crise de 1929 os primeiros sinais verdadeiramente graves dos perigos que se iam acumulando no sentido de comprometer a solidez da unidade nacional. A Aliança Liberal, embora apresentasse um aspecto de complexidade que tornava difícil definir precisamente as idéias pelas quais se orientavam os que nela comparticipavam, tinha contudo um traço predominantemente característico. Apesar de desdobrada por todo o território nacional, em formações associadas ao combate sustentado contra a candidatura oficial, aquela organização partidária de emergência era essencialmente um pacto entre os governos de três Estados, coligados para uma luta que visava combater o governo federal e o Estado de S. Paulo, cujo predomínio político na União constituía o mais forte estimulo à reação em favor da candidatura do presidente do Rio Grande do Sul.

Certamente a verificação do fato que acabamos de assinalar e que não nos parece passível de contestação, não implica em afirmar que os organizadores e chefes da Aliança Liberal, bem como os elementos que nela se integraram para a campanha, tivessem deliberadamente quaisquer intuitos antagônicos ao sentimento da brasilidade e à idéia nacional. Mas esta circunstância não modifica a significação pouco tranquilizadora da tríplice aliança firmada pelos governos do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e da Paraíba, coligação que logicamente continha a previsão de uma guerra civil de cujas possibilidades ulteriores não se podia excluir de todo a eventualidade de conseqüências capazes de fazer surgir uma situação secessionista. Mesmo quando semelhante hipótese não fosse incluída nos cálculos dos que assumiam a responsabilidade da campanha travada naquelas linhas de conflito inter-estadual e de luta com o poder central, as circunstâncias imprimiam à crise um sentido inequivocamente ameaçador à coesão política da nacionalidade.

O conflito eleitoral, que desde o seu início continha a perspectiva da guerra civil, foi, como acima observamos, imediatamente complicado pela intervenção de fatores econômicos da maior relevância, representados pelo colapso da posição comercial do principal produto do país. Este elemento novo, que determinou repercussões cujo efeito veio a tornar possível o êxito do golpe revolucionário que debalde fora tentado oito anos antes por ocasião da sucessão do snr. Epitácio Pessoa, teve também uma influência considerável no sentido de alterar a fisionomia inter-estadual apresentada pela luta na sua fase inicial.

A crise em que se viu lançada a lavoura cafeeira, a partir do último trimestre de 1929., envolveu logo um abalo profundo na coesão política de S. Paulo O núcleo de oposicionismo que ali se formara anos antes com a organização do Partido Democrático, transformou-se em extensa corrente de descontentamento. S. Paulo, contra cuja hegemonia se formara a tríplice aliança Rio Grande-Minas-Paraiba que teria certamente acentuado os seus sentimentos regionalistas diante de um movimento tão nitidamente contra ele dirigido, perdeu em grande parte a exaltação que poderia ter tornado coesa aquela unidade federativa em face do combate à candidatura Júlio Prestes.

A divisão de S. Paulo, pelo considerável aumento da corrente identificada com a Aliança Liberal em conseqüência do mal estar causado pela crise da lavoura cafeeira, teve dois resultados de grande importância. O primeiro foi tornar consideravelmente maiores as possibilidades de um golpe de força para impedir que o candidato situacionista chegasse à presidência da Republica O outro efeito do que se passou em S Paulo foi retirar da Aliança Liberal o caráter de uma luta, entre Estados, dos quais alguns se insurgiam contra a longa ascendência política desfrutada por um deles.

Formou-se assim um conjunto de condições particularmente favoráveis ao êxito de um golpe revolucionário. Para este não concorria entretanto uma atmosfera de exaltação emotiva semelhante à que caracterizara as duas crises presidenciais anteriores. A agitação promovida pela Aliança Liberal não atingiu nos seus resultados demagógicos o que fora realizado nas campanhas do civilismo e da Reação Republicana. As massas populares não chegaram ao mesmo nível de incandescência facciosa tão impressionantemente manifestada nas lutas eleitorais de 1909-10 e 1921-22. Contra o candidato ostensivamente patrocinado pelo snr. Washington Luis não se formaram ondas de antagonismo popular comparáveis às que se haviam oposto ao marechal Hermes e ao snr. Artur Bernardes.

A relativa serenidade da campanha, que não deixou de subsistir a despeito de alguns episódios de violência isolados, pareceria à primeira vista constituir um elemento neutralizante do vigor revolucionário dos adversários da candidatura Julio Prestes. Semelhante previsão, que a lógica poderia justificar, perdia contudo o seu valor aparente diante de certos traços peculiares da política brasileira. No nosso meio, as situações políticas não correm tanto risco da veemência da oposição contra elas dirigida, como da fraqueza resultante do vácuo formado ao redor do regime constituído pela apatia e indiferença da opinião pública. As revoluções entre nós tornam-se vitoriosas não pela violência com que assaltam o poder mas pela dissolução das forças que mantinham a autoridade constituída em existência. Este fenômeno peculiar à política brasileira foi admiravelmente apreendido por um dos nossos maiores estadistas, o Barão de Cotegipe, que, interrogado uma vez em palestra pelo propagandista republicano Silva Jardim acerca de quando supunha que viria a República, respondeu com a sua fina ironia: — “Não é a República que vem, é a Monarquia que vai”. Realmente a história brasileira é uma sucessão de abdicações de homens e instituições que se deixam ir embora, arrastados pelo medo ou pela displicência não um encadeamento de assaltos enérgicos e vencedores.

O episódio de Outubro de 1930 não divergiu da forma clássica dás nossas revoluções. A primeira República, com quarenta anos apenas de existência, já se arrastava patenteando os mais inequívocos sinais de avançada senilidade. A dissolução da estrutura política do país desarticulara os seus elementos de força e de resistência. A deflagração dos levantes no Norte fez cair, um após outro, os governos representativos das oligarquias estaduais, como se fossem árvores podres que um vento um pouco mais rijo lança por terra. O resto que tinha de acontecer estava na lógica de uma situação previsível até pelos menos sagazes observadores. A agonia do poder federal, que se ia isolando como núcleo sobrevivente de uma ordem política que se desmoronava por todo o país, foi encerrada pelo tiro de misericórdia da insurreição de 24 de Outubro. A deposição do snr. Washington Luis foi apenas o funeral militar de um regime que entrara em decomposição antes de morrer...


II. FASE DE TRANSIÇÃO

 

Uma vitória sem finalidade — Forças contraditórias no campo revolucionário. — Obstáculos a uma obra construtiva. — Ação pessoal do Presidente Getúlio Vargas — A Constituinte e a confusão Ideológica — inviabilidade do regime de 1934 — Reabertura da agitação revolucionária — Suicídio do Parlamento.

 

Conquistado o poder, viram-se os dirigentes do movimento de Outubro em uma situação de manifesta incapacidade para converter a vitória em ponto de partida de uma reconstrução nacional. A parte destrutiva da obra de uma revolução exige sempre o desprendimento de energias maiores que as requeridas mais tarde para a edificação da nova ordem social e política promanada do triunfo das idéias que haviam servido de força propulsora do ímpeto revolucionário. Realmente, é mais difícil, ou pelo menos reclama maior soma de energia, a desarticulação da estrutura de um sistema político que através da sua existência adquirira, pelo próprio efeito das sedimentações acumuladas pelo tempo, solidez e coesão para resistir a embates violentos dos seus adversários, que erguer depois uma nova construção sobre as ruínas do regime decaído. Assim não aconteceu porém no caso da revolução brasileira de 1930.

Os chefes daquele movimento conseguiram, com esforços relativamente pequenos e sem sacrifícios apreciáveis, destruir em três semanas uma ordem política que havia subsistido por quarenta anos Como mostramos no capítulo anterior, os revolucionários outubristas não tiveram, na realidade, de conquistar o poder pela força: A ação bélica dos combatentes foi meramente simbólica e a vitória revolucionária consistiu apenas em ocupar o terreno que os seus antigos detentores não souberam ou não puderam defender.

Semelhantes condições deveriam facilitar enormemente a tarefa de reconstrução nacional em que as energias da revolução poderiam ser empregadas quase intactas. E da facilidade com que haviam atingido o objetivo da etapa inicial do movimento renovador, resultara ainda uma conseqüência altamente valiosa sob o ponto de vista da simplificação da obra construtiva do novo regime.

A frouxidão da resistência oposta à arrancada revolucionária pelos defensores da velha República, tendo reduzido consideravelmente e na realidade quase ao mínimo o choque entre os beligerantes, destruíra o epílogo da luta dos aspectos de amargura e ressentimento que invariavelmente caracterizam o fim das guerras civis. Os vencedores não precisavam ter preocupações sérias de aplacar por meio da generosidade de uma anistia os rancores e a combatividade saudosista dos adversários esmagados. Realmente, tão nítida era no espírito dos novos dominadores do país a convicção de que não tinham inimigos, que foram induzidos a estimular ódios por meio de medidas de gratuita desforra, cuja significação não podia ser outra senão a do reconhecimento de que um novo regime estabelecido pela força perderia a auréola do triunfo, se não tivesse pelo menos como força hostil alguns milhares de indivíduos irritados pela perda de cargos rendosos e pela ameaça de serem chamados a contas por supostos crimes cometidos contra a fazenda pública.

O ambiente da pós-revolução era portanto o mais propício a um trabalho fecundo de reorganização, estendido a todos os setores da administração pública e aos múltiplos planos da vida nacional. A invejável situação dos vencedores era entretanto compensada e neutralizada por uma circunstância que convertia todas aquelas vantagens em quantidade desprezível na discussão do problema da reconstrução do Brasil.

A revolução afortunada, a quem os seus próprios inimigos haviam dado de mão beijada a vitória, achava-se entrincheirada no poder e descobria agora que o seu ímpeto irresistível não tivera outra finalidade além da conquista pura e simples do governo da Nação. O que afirmamos não implica em negar individualmente a algumas e mesmo talvez a muitas das figuras representativas do movimento de Outubro os mais elevados intuitos de tornar a vitória revolucionária o ponto de partida da renovação progressiva do Brasil. A maneira como alguns daqueles homens procuraram ulteriormente servir os interesses nacionais, realizando mesmo em certos casos uma parte considerável dos seus propósitos, bastaria para demonstrar quanto seria injusto interpretar naquele sentido o que dissemos sobre a falta de finalidade construtiva da revolução de 1930.

Esta ausência de rumos previamente demarcados e de alvos visados como objetivo da trajetória revolucionária não era o resultado as atitudes individuais dos promotores do movimento. Tratava-se de uma conseqüência inevitável da complexidade das causas determinantes da insurreição e da heterogeneidade quase macabra dos elementos que se haviam incorporado às hostes beligerantes da Aliança Liberal. No capítulo anterior apontamos fatos comprobativos e explicativos da primeira parte desta asserção. Aqui aludiremos apenas ao que se relaciona com o mosaico de descontentamentos que formava a legião dos vencedores de Outubro. Quando se lança um golpe de vista retrospectivo sobre os elementos políticos e militares que acamparam com o exército conquistador em torno do ambicionado Catete, não pode deixar de acudir-nos ao espírito o panorama daquelas invasões que vinham do centro da Ásia em marcha sobre a Europa, engrossando na caminhada as suas colunas com os contingentes adventícios de raças e de línguas diferentes.

Em Novembro de 1930, o chefe civil da revolução, investido dos mais amplos poderes discricionários que já foram confiados a um brasileiro através de toda a nossa história, se porventura pensou logo em encetar uma obra reconstrutora, deve ter chegado sem demora ao melancólico desapontamento dos arquitetos babélicos. A própria massa popular que aplaudia delirantemente o ditador instituído pela revolução triunfante era uma expressão microcósmica do turbulento caos de idéias e tendências contraditórias que fervilhavam no caldeirão revolucionário. Havia comunistas que sonhavam com o advento do milênio marxista. Liberais democratas e crentes ingênuos na sabedoria oracular das urnas antecipavam a vinda dos tempos de pureza eleitoral e de acertada direção dos destinos nacionais, assegurada pelo voto secreto. Reacionários de diferentes matizes imaginavam que das ruínas da velha República se ergueriam antigas instituições fazendo o país retrogradar a um meridiano espiritual transposto desde a queda da monarquia. Finalmente, não deixavam de comparecer à consagração cívica do regime nascente os que não viam salvação para o Brasil fora das configurações da ditadura militar, que se haviam habituado, a encarar como único remédio seguro para os males crônicos ,da nacionalidade.

Poucos meses após aqueles momentos de exaltação dionisíaca de esperanças tão diversas e tão contraditórias, o snr. Oswaldo Aranha pronunciava uma frase celebre sobre a pobreza de valores humanos e a aridez ideológica do novo regime. a tão ilustre revolucionário gaúcho, apesar da sagacidade penetrante da sua clara inteligência, parece-me não ter apreendido bem a natureza do mal que, se não paralisou a atividade renovadora da revolução, pelo menos tornou atáxica a sua marcha. A revolução brasileira de 1930, longe de sofrer os efeitos da falta de homens e da pobreza de idéias, foi imediatamente prejudicada na realização de uma obra construtora pela superlotação dos quadros revolucionários e pela verdadeira congestão de idéias irreconciliáveis, que se misturavam em uma coreografia delirante de contradições surpreendentes e perturbadoras.

Nesse conjunto caótico de aspirações divergentes seria impossível ao mais arguto conhecedor dos segredos da mecânica social traçar a resultante que exprimisse o sentido global da obra revolucionária. As tendências, as aspirações e talvez mesmo as ambições eram tantas e tão incoerentes que a revolução vencedora ficou parada por não poder encontrar a sua finalidade.

***

Entre os gritos de guerra com que os chefes da Aliança Liberal haviam conclamado os descontentes de todo o país para a investida contra o velho regime, nenhum soara mais alto que o clamor para o combate ao personalismo. Contra o snr Washington Luis, que por erros gravíssimos de uma política monetária irracionalmente concebida e executada com impressionantes requintes de inépcia se tornara merecedor de um severo libelo oposicionista, era articulado quase exclusivamente o fato das suas tendências a imprimir um cunho personalista a todos os atos de seu governo. Nem se discutia, como deveria ter sido o caso, a circunstância especial de que as limitações da personalidade do respeitável presidente deposto constituíam razão suficiente para que a influência por ela exercida fosse prejudicial aos interesses nacionais. O ponto único alvejado pela crítica dos que agitavam o país era o princípio da incompatibilidade da ação pessoal dos governantes com o que se proclamava ser essencial à pureza ortodoxa do regime democrático.

Conforme a teoria que naquela campanha presidencial era sustentada em frases elegantes por oradores cultos e reduzida aos termos simplistas de um “slogan” de publicidade na prosa rebarbativa dos articulistas de meia força, era necessário abdicar, a personalidade por parte de quem fosse investido de autoridade pública e era crime de lesa-democracia cometido pelo homem de Estado imprimir o cunho da sua ação pessoal ao funcionamento das engrenagens do poder que manipulava. O Estado, conforme esses ,preconizadores de uma espécie de política do anonimato, deveria funcionar não sob a direção consciente de uma vontade humana seguramente orientada, mas pela misteriosa projeção de forças imponderáveis por cujos efeitos ninguém poderia nunca ser responsabilizado.

Não é contudo possível opor-se indefinidamente às realidades que, por mais recalcadas que sejam, reagem afinal acabando por impor-se vitoriosamente. O Estado desarticulado dos elementos humanos, que, em última análise, são a força motriz das suas engrenagens, não pode ser um aparelho meramente mecânico funcionando automaticamente como o imaginam os utopistas de um impersonalismo irrealizável. O mal da velha República não havia sido o excesso de poder pessoal, mas exatamente a fraqueza da maior parte das personalidades que deveriam ter exercido aquele poder, para o qual não se achavam preparadas com os elementos de sagacidade política e de esclarecida experiência.

O advento do novo regime, que havia sido anunciado como tendo por finalidade precípua o combate ao personalismo, caracterizou-se logo pela concentração da política nacional na pessoa do ditador civil, investido de ilimitado poder discricionário. Desde os primeiros dias de Novembro de 1930, começa a evidenciar-se que a orientação da obra revolucionária na sua etapa construtiva dependia exclusivamente de um fator que sobrepujava todos os outros: — a ação pessoal do chefe do governo provisório. Várias circunstâncias concorriam para investir o Presidente Getúlio Vargas de uma função histórica, que ultrapassava a órbita alias extraordinariamente ampla das atribuições que lhe, haviam sido conferidas pelo estatuto de emergência promu1gado em 11 de novembro do ano revolucionário.

Não era realmente como órgão executivo da situação excepcional criada pela revolução que o presidente discricionário enfeixava nas mãos poderes ditatoriais sem precedente na história política do Brasil. A ditadura do governo provisório era a expressão da harmonia determinada espontaneamente pelos acontecimentos entre os traços característicos da personalidade do ditador e a natureza especial dos problemas surgidos da crise e cujas incógnitas desafiavam soluções de que dependia literalmente o futuro da nacionalidade.

A revolução de Outubro tivera causas profundas associadas ao curso normal da evolução brasileira e a mutação política por ela precipitada refletia os efeitos do trabalho instintivo de renovação nacional, que vinha sendo preparada de há anos por um conjunto de fatores cujas manifestações ostensivas se patenteavam no crescente descontentamento generalizado com os métodos e os homens da primeira República. Mas, embora sob esse ponto de vista a revolução pudesse ser considerada como fenômeno autêntico de transformação progressiva na vida nacional, as circunstâncias da sua deflagração e o momento em que ela ocorreu tinham sido os mais inoportunos que se poderia imaginar. Daí o perigo da pós-revolução vir a tornar-se o ponto de partida de uma confusão perturbadora e capaz de envolver verdadeiro caos com as mais graves conseqüências para a segurança da sociedade e para a unidade nacional.

Em todas as revoluções, encerrado o episódio decisivo da conquista do poder, surge um perigo cuja neutralização é a missão precípua dos estadistas que se incumbem da reconstrução da ordem política em conformidade com os novos ideais e com o sentido peculiar do movimento vencedor. Este traz do preparo intelectual que o precedeu diretrizes definidas, e a tendência dos elementos radicais, que assumem a ascendência na fase da investida contra as velhas instituições, é sempre a ir o mais longe possível no esforço para dar ao novo estilo político da nação uma fisionomia acentuadamente extremista. O papel do estadista, em tais circunstâncias, é refrear os entusiasmos, moderar a exaltação renovadora e fazer com que o trabalho reconstrutor se realize sem perda completa de contato com as bases históricas integradas na tradição nacional. Benito Mussolini exprimiu uma vez, de modo lapidar, essa missão do estadista revolucionário, dizendo que não bastava ter coragem para reformar, mas que era também preciso a coragem de conservar.

Quase século e meio antes, outro grande revolucionário, Danton, tivera bastante independência intelectual para enfrentar o radicalismo da Convenção francesa de 1792, afirmando que não se destruía senão aquilo que se podia substituir.

No caso da revolução brasileira de 1930, o ditador investido do poder discricionário viu-se defrontado por um problema muito mais complexo que a simples defesa dos elementos vitais da tradição nacional contra a onda renovadora a cuja impetuosidade era preciso opor os diques de um conservantismo construtor.

Causas postas em foco no capítulo precedente tinham sobrecarregado as correntes incorporadas no movimento outubrista das mais diferentes e contraditórias tendências ideológicas. As forças revolucionárias apoderando-se do poder apresentavam o aspecto de um tão extravagante mosaico de idéias e de inclinações doutrinárias disparatadas, que seria baldado o esforço para submetê-las ao ritmo de um único sentido construtor. Em tais circunstâncias o problema que se apresentava não era moderar o ímpeto de uma corrente radical, mas encontrar no meio da confusão dos antagonismos ideológicos uma fórmula que permitisse evitar simultaneamente os excessos do entusiasmo inovador e a força reacionária dos elementos empenhados em transformar a revolução em um movimento regressivo da vida nacional.

Condições peculiares da personalidade do chefe do governo discricionário permitiram-lhe desenvolver uma ação pessoal, que redundou na mais satisfatória solução possível para um problema que se poderia ter julgado superior às forças de qualquer homem de Estado.

Não caberia nos limites do estudo visado neste livro a análise da personalidade do Presidente Getúlio Vargas, para cujo conhecimento faltam também ao autor elementos suficientemente esclarecedores. Mas, do que se pode avaliar pelo que é do domínio público acerca da atuação do chefe da revolução de Outubro, é possível definir certos traços da sua personalidade que explicam os resultados da ação pessoal por ele desenvolvida durante os últimos sete anos e notadamente na fase extremamente crítica da pós-revolução.

De tudo que os observadores colocados à distância podem depreender da atividade política do Presidente Getúlio Vargas, há três pontos de capital relevância na interpretação da sua obra de renovação nacional. Um deles, sem dúvida o fundamental, é a extraordinária capacidade de análise objetiva dos acontecimentos e dos homens. O Presidente parece realmente dotado de um poder excepcionalmente desenvolvido para apreciar nos fatos e na psicologia das pessoas o que há de essencial e de permanente. O exercício dessa faculdade é que tem permitido ao Presidente Getúlio Vargas resolver problemas e enfrentar situações, que pareciam extremamente difíceis e perigosas, com resultados surpreendentemente felizes. Onde a maioria dos observadores se deixava empolgar por um conjunto de aspectos superficiais, que justificavam as mais diversas previsões, o Presidente Getúlio Vargas parece ter conseguido quase invariavelmente dissociar a realidade dessas aparências ilusórias e determinar a significação real dos acontecimentos e o valor e as possibilidades exatas dos homens com que lidava.

O outro traço da sua personalidade, a que deveu o Presidente Getúlio Vargas a possibilidade de realizar como orientador da revolução o que pareceria superior ao engenho de um estadista, é a ausência da preocupação de obter efeitos dramáticos imediatos. Neste, como em relação à característica que anteriormente assinalamos, o Presidente Getúlio Vargas apresenta traços psicológicos que o diferenciam da grande maioria dos brasileiros. A imunidade contra as influências da sedução da vaidade e a despreocupação daí resultante das gloríolas do sucesso imediatista e efêmero, conferiram ao Presidente Getúlio Vargas elementos de força pessoal para atingir os objetivos por ele visados, sem se deixar transviar para pequenas manobras laterais em que os nossos homens de governo sempre inutilizam a melhor parte das suas energias.

Finalmente, a circunstância de não ser acessível à ação de sentimentos de ódio e de desejosos de vingança, concorreu decisivamente para libertar o Presidente de obstáculos, que cerceassem a plenitude dos seus movimentos no sentido de dar as soluções que desejava aos problemas com que entrava em contato. Essa benignidade de temperamento, revelada até em casos que se poderiam considerar como as mais árduas provas em tal terreno, simplificou ainda o exercício do poder pessoal do Presidente Getúlio Vargas pela eliminação de resistências que teriam sido certamente provocadas contra quem, investido de tão ampla autoridade, tivesse métodos menos suaves de ação e de repressão e não se mostrasse tão alheio a sentimentos de hostilidade individual contra quem quer que fosse.

Ao lado desses traços da sua personalidade, o chefe do governo discricionário revelou uma tendência cujo alcance foi inexcedivelmente valioso na realização da obra que as circunstâncias lhe impuseram. Sem mostrar inclinações muito acentuadas no sentido de qualquer orientação ideológica especial o Presidente Getúlio Vargas patenteou entretanto a mais coerente e firme direção do seu espírito na afirmação invariável de uma forte consciência nacionalista. Quer se tratasse de atitudes assumidas na órbita da política externa, quer se ocupasse de assuntos em que estavam em jogo interesses regionais, o ditador instituído pela revolução demonstrou sempre a preocupação de fortalecer a posição do Brasil e de submeter os particularismos estaduais ao ritmo da idéia nacional. Semelhante atitude não somente granjeou ao Presidente Getúlio Vargas a confiança do povo e o prestígio necessário ao reforço da sua autoridade pessoal, como lhe permitiu resolver os problemas criados pelo choque das correntes contraditórias que, depois da vitória revolucionária, dominavam o cenário político brasileiro por forma a evitar que as divergências e atritos se convertessem em lutas dilaceradoras da nacionalidade.

O problema geral que esse conflito de idéias, de sentimentos e de interesses gerava era dos mais difíceis que se poderia imaginar. A etapa construtiva da revolução brasileira diferenciava-se das fases análogas a que acima aludimos por um aspecto peculiar e do qual redundava enorme agravação da tarefa do estadista incumbido de orientar a marcha dos acontecimentos. Não se tratava apenas de conter entusiasmos exaltados e de obrigar aspirações radicalistas a se conformarem com as imperiosas injunções da realidade. O ditador, se tinha de conter os que queriam avançar em marcha demasiadamente acelerada, precisava também resistir aos que insistiam em imprimir à obra construtora da revolução um rumo retrógrado.

Os últimos representavam talvez os elementos mais perigosos, por isso que podiam reunir em apoio das suas tendências forças de opinião representadas pela grande massa que formava a maioria da população. O descontentamento provocado nos últimos anos da velha República determinara na mentalidade do povo brasileiro uma inclinação cuja interpretação psicológica a tornava facilmente compreensível. O espírito popular sofre invariavelmente de uma incapacidade de criar imaginativamente um futuro melhor que o presente. Assim nas épocas de desânimo e de descontentamento o sentimento público regride ao passado em uma ânsias romântica de encontrar alívio aos seus infortúnios no ressurgimento de formas arcaicas de organização social e política que, coloridas pela distância, se lhe afiguram haver-lhe proporcionado tranqüilidade e bem estar.

Não admira pois, que ao pós-revolução fosse fácil aos românticos de vários matizes inculcar na opinião popular a convicção de que o Brasil, para salvar-se, tinha de recuar através de toda a distância percorrida durante os últimos quarenta anos.

Adversários do federalismo preconizavam o retorno aos métodos de centralização rígida do Império. A liberdade religiosa conquistada pela primeira República era denunciada por outros, que pleiteavam o restabelecimento disfarçado de uma religião oficial. Aos românticos que se voltavam em busca de soluções salvadoras, para etapas anteriores da evolução nacional, juntavam-se os elementos influenciados por modelos exóticos de organização política que, desde o fim da guerra, iam surgindo em diferentes países. Comunistas e fascistas compartilhavam da mesma fé ingênua na eficácia da transplantação das instituições e dos regimes que os fascinavam e revelavam a mesma incapacidade de compreender a natureza peculiar dos problemas brasileiros.

Através das dificuldades e perigos derivados dessa perturbadora confusão de correntes contraditórias, foi o país conduzido durante três anos pela ação pessoal do Presidente Getúlio Vargas. Nessa árdua tarefa o ditador não teve colaboradores políticos. Os outros protagonistas da revolução cooperaram apenas, algum deles, em setores administrativos restritos e, de um modo geral a atividade política por eles desenvolvida deve ser incluída entre os fatores de complicação e agravação das dificuldades com que lutava o Presidente A crise precipitada pela insurreição paulista de 1932 e que ameaçava criar uma situação de imprevisíveis possibilidades para o novo regime não teve contudo os efeitos que dela se poderiam esperar. Nesse caso ainda a ação pessoal do Presidente, que aplicou medidas repressivas, caracterizadas por extraordinária benignidade, foi ainda o fator determinante do encerramento rápido, quase imediato mesmo, das conseqüências daquele conflito, cuja natureza justificara os temores de um abalo profundo e prolongado da unidade nacional.

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As medidas preparatórias para a convocação da Assembléia Constituinte caracterizaram-se pela sua convergência no sentido de assegurar a organização de instituições inequivocamente definidas em conformidade com os mais ortodoxos postulados da democracia liberal. Pode-se ter o direito de suspeitar que um homem com a clara inteligência política, a capacidade de observar e apreciar as realidades e a sagacidade do Presidente Getúlio Vargas já houvesse adquirido a convicção da necessidade de uma reorganização profunda da vida nacional, por forma a emancipar-nos das ilusões e dos erros que durante mais de um século haviam atrasado o desenvolvimento do Brasil. Mas fossem quais fossem os pensamentos íntimos do chefe do governo provisório, é indiscutível que ao elaborar as preliminares da Constituinte ele agiu por forma a assegurar ampla oportunidade para que a Nação se organizasse em um regime tipicamente democrático-liberal.

Seria impertinente fazer conjeturas sobre os intuitos de semelhante atitude. É possível que O presidente Getúlio Vargas entretivesse a esperança do êxito do regime para o qual estava contribuindo com a organização de um sistema eleitoral capaz de proporcionar o pronunciamento livre nas urnas e a apuração imparcial dos resultados do pleito por um aparelho judiciário especializado. Não se pode, por outro lado, excluir a hipótese de que todas essas precauções para que a Constituinte fosse uma assembléia autenticamente representativa do eleitorado refletissem o desejo de cercar uma grande experiência política de condições tão assecuratórias do seu êxito, que o fracasso ulterior das instituições assim originadas servisse de demonstração impressionante da urgência de uma renovação nacional em linhas radicais.

A Constituinte da segunda República foi incontestavelmente o primeiro exemplo, em toda a nossa história política, de uma assembléia cujos membros podiam ser encarados como autênticos representantes do eleitorado. O elemento de fraude que porventura maculou o processo eleitoral foi tão diminuto que de modo algum afetou o caráter verídico do pleito considerado em conjunto. A Nação teve assim oportunidade de poder apreciar e julgar o valor da democracia do sufrágio universal promíscuo e, da eleição direta em condições que, para o meio brasileiro, podiam ser consideradas ideais Além das garantias de independência proporcionadas ao eleitor pelo voto secreto e pela atitude de impecável imparcialidade do governo durante o pleito, bem como da apuração honesta dos resultados das urnas pela justiça eleitoral, outro fator imprimira à eleição da Constituinte um caráter inequivocamente democrático, no sentido dado à expressão pelos partidários da democracia liberal. O eleitorado fora consideravelmente reforçado e as facilidades ao alistamento ex-oficio ainda engrossaram as fileiras dos cidadãos habilitados a levar os seus sufrágios às urnas.

Apenas uma inovação fora introduzida pelo chefe do governo provisório, que não se enquadrava nas configurações clássicas da democracia do sufrágio universal e da eleição direta. Uma interessante experiência da representação profissional, por meio de delegados dos sindicatos de empregados e empregadores em pé de igualdade, refletia no plano político as grandes reformas anteriormente realizadas na esfera trabalhista pela respetiva legislação.

A Constituinte, saída de um pleito que permitiu ao eleitorado o pronunciamento livre e cujos resultados foram devidamente apurados pela justiça eleitoral, vinha proporcionar à Nação oportunidade para apreciar até que ponto se justificavam as afirmações, atribuindo os seus males à falta de observância dos princípios ortodoxos da democracia liberal. Haviam sido anunciados os prodígios que eleições verídicas viriam a operar. Os partidários do voto secreto garantiam que a sua panacéia seria bastante para corrigir os defeitos que viciavam a nossa vida pública. Uma assembléia cujos membros fossem legítimos mandatários do povo, eleitos em um pleito imune de fraudes, iniciaria uma era nova em que a Nação compreenderia enfim tudo que a democracia do sufrágio universal lhe poderia oferecer.

Não poderia ter sido mais cruel o desapontamento reservado aos que ingenuamente acreditavam que, para resolver os problemas de que depende o futuro do Brasil, seria suficiente pôr em prática as doutrinas e os métodos do sistema representativo preconizado pela democracia liberal. A Constituinte de 1933, foi a primeira assembléia política que em toda a nossa história refletiu de modo autêntico a vontade das massas eleitorais expressa nas urnas. Os seus membros não eram, como os antigos deputados e senadores, pessoas designadas para ocupar cadeiras no Congresso, mas cidadãos em torno de cujos nomes se havia de fato reunido nas urnas a maioria de sufrágios escrupulosamente apurados pela judicatura eleitoral. Entretanto, essa assembléia, que concretizava a realização das aspirações no sentido de dar ao país um sistema representativo em rigorosa conformidade com os postulados democrático-liberais, ultrapassou todas as suas antecessoras na demonstração de lastimável incapacidade para o desempenho da função legislativa.

O estatuto político de l6 de Julho de 1934 elaborado por aquela Constituinte, tão inequivocamente representativa da vontade das massas eleitorais expressa em sufrágio direto, é um monstro em que, aliás como se poderia prever, se amalgamaram em verdadeiro pandemônio ideológico as doutrinas mais, contraditórias as tendências mais antagônicas e os pontos de vista mais irreconciliáveis. A Constituição de 1934 reúne de fato, na mais estranha convivência, as correntes de pensamento político mais disparatadas. Individualistas, cujas idéias teriam sido julgadas impecáveis pelos mais intransigentes manchesterianos, podiam satisfazer o seu paladar com alguns dispositivos daquele estatuto eclético, onde socialistas não teriam, por seu turno, dificuldade em encontrar dispositivos que mereceriam o apoio de qualquer congresso coletivista internacional. Os partidários do regime unitário e os federalistas ortodoxos eram igualmente atendidos pela solicitude do legislador constituinte. Em um dos seus dispositivos a Constituição de 1934 definia o caráter leigo do Estado. Em outros artigos estabelecia um regime de aliança entre o poder temporal e o espiritual, que facilmente se transformaria, na prática, no reconhecimento de uma religião oficial que poderia ser até financeiramente apoiada por aquele curioso Estado leigo. Assuntos que pela sua natureza se acham deslocados da esfera de ação do poder estatal foram incluídos nas deliberações da Constituinte saída das urnas com todas as garantias de um sistema eleitoral pautado pelos mais rigorosos preceitos da ortodoxia liberal-democrática. A Constituição elaborada por aquela assembléia não era um estatuto orgânico nacional, mas uma espécie de tratado que abrangia na sua órbita enorme todas as coisas divinas e humanas. Realmente, a Constituição de 16 de Julho, que começava ocupando-se de teologia, encerrava a sua interminável cadeia de artigos prescrevendo regras ortográficas...

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O regime instituído em 1934 evidentemente não podia subsistir. Do caos ideológico reinante na assembléia que o ela o elaborara e da falta de contato dos membros desta com a realidade dos problemas nacionais resultara uma organização, por tal forma desarticulada, que esse sistema ineficiente e claudicante não poderia funcionar sequer a título de experiência. Mesmo em condições de perfeita normalidade e em épocas nas quais não se apresentassem problemas particularmente complexos e delicados como os que se esboçam em todos os setores da vida social nos dias atuais, um Estado organizado pela forma delineada no estatuto de 1934 estaria fatalmente condenado à falência política quando a sua maquinária fosse posta à prova na prática do governo. Mas dadas as circunstâncias peculiares do momento histórico que atravessamos, a inviabilidade de um regime em tão flagrante contradição com a realidade nacional e cheio de desarmonias dentro da sua própria estrutura podia ser prevista com absoluta segurança. Foi o que aconteceu alguns meses após a promulgação da lei básica de 1934, logo que se esboçaram os primeiros sinais de recrudescência da agitação revolucionária.

As condições econômicas do país haviam melhorado sensivelmente depois de passada a fase mais áspera da crise iniciada em 1929. A repercussão desta no nosso parque industrial, que determinara em 1930 uma situação de falta de trabalho como ainda não se apresentara na nossa vida mecano-fatureira, cedera lugar a um reajustamento positivamente favorável à posição das indústrias. Alem disso, a legislação trabalhista promulgada durante o período do governo discricionário criara para o operariado uma situação decididamente vantajosa e eliminara os motivos de inquietação social. Não havia portanto razão válida para que se manifestassem no país tendências à formação de correntes animadas pela idéia de subverter a ordem política e social, transplantando para o Brasil ideologias extremistas

Não obstante essa ambiência econômica e social tão pouco propícia à formação de correntes daquele gênero, persistiam núcleos de irradiação da ideologia comunista, que se introduzira no país não tanto como um movimento de caráter propriamente operário, mas como tendência doutrinária inspirada inspirada por alguns intelectuais, cuja influência se fez sentir principalmente nos círculos da mocidade. Tudo parece justificar a opinão de que esses núcleos marxistas teriam persistido restringidos a um círculo de ação quase platônica e puramente ideológica, sem envolver perigo sério de infiltração capaz de promover movimentos proletários ameaçadores da segurança do Estado e da sociedade. Ocorreu entretanto um fato novo que transformou a fisionomia daquele movimento comunista, imprimindo-lhe um aspecto menos tranquilizador.

Entre as múltiplas correntes ideológicas surgidas na confusão perturbadora da pós-revolução, destacava-se uma caracteristicamente inspirada pela preocupação de imitar o modelo de organização política adotado pelo fascismo italiano. Durante cerca de três anos os que se achavam influenciados por essa idéia tentaram repetidas vezes debalde coordenar os seus elementos de modo a formar um centro de propaganda no Brasil. Em 1933, finalmente, surgiu sob a direção do snr. Plinio Salgado um movimento que, afirmando a princípio visar a solução dos problemas nacionais por métodos tipicamente brasileiros é não ter nenhum parentesco com os fascismos europeus, tornou-se entretanto ao cabo de algum tempo, uma força partidária inequivocamente fascista.

Não incide na órbita deste livro investigar as origens do integralismo nem desvendar o que há certamente de misterioso na rápida expansão desse movimento. Assinalaremos apenas que certas atitudes, ulteriores dos seus dirigentes e notadamente a estranha e inexplicável propaganda anti-semita, que vem a tornar-se a principal, senão a quase exclusiva finalidade das atividades integralistas, induzem a uma razoável suspeita de que apesar da insistente proclamação da natureza nacionalista daquele movimento, entre ele e certas forças internacionais, que têm representado ultimamente papel de grande destaque na política mundial, existiam afinidades que seria impossível dizer se permaneceram apenas no campo ideológico ou se chegaram mesmo a tornar a forma concreta de uma cooperação efetiva.

O fato que nos interessa sob o ponto de vista das considerações que aqui estamos encadeando é que o movimento integralista introduziu no Brasil um fator exótico no modo de encarar a questão social. As relações do operariado com a classe patronal e com o Estado haviam sido sempre entre nós caracterizadas por aspectos, que davam aos nossos problemas dessa categoria natureza completamente distinta da chamada questão social que se apresenta em outros países. E a legislação trabalhista do governo provisório, assegurando ao operariado ampla garantia dos seus direitos e interesses, permitira um reajustamento que excluía pelo menos por muito tempo o perigo dos conflitos sociais. O integralismo começou uma propaganda que não tinha contato com a realidade naciona1 e exprimia apenas a imitação dos métodos determinados na Europa por condições que não existiam entre nós

Querendo criar um estado de pânico que induzisse as classes capitalistas e a pequena burguesia a apoiá-los nas suas pretensões de conquista do poder, os promotores e dirigentes do integralista inventavam perigos imaginários de que, segundo afirmavam, o Brasil só poderia salvar-se pelos processos fascistas que preconizavam.

O resultado dessa propaganda foi alarmar as massas trabalhadoras criando nelas uma receptividade às influências das correntes extremistas. Como se poderia prever, os comunistas tiraram partido da situação criada pela propaganda integralista e tentaram transformar o movimento marxista, até então meramente platônico, em forma organizada de atividade revolucionária Não parece, pois, injustiça para com os integralistas, responsabilizá-los pela agitação política e social cujo epílogo foram os motins extremistas de 1935.

Surgiu assim no país uma situação grave em que a defesa da ordem pública, a segurança do Estado e a tranqüilidade social exigiam medidas de caráter excepcional. Imediatamente se patenteou a impossibilidade da aplicação das providências exigidas pela grave anormalidade que ocorrera dentro da órbita das instituições, criadas em 1934. 0 reconhecimento desse fato e as alterações feitas às pressas e como medida de emergência no texto constitucional eqüivaleram a uma declaração de falência da ordem estabelecida pela Constituinte da segunda República.

O Parlamento que assim desfechara sobre as instituições estabelecidas em 1934 um golpe mortal, aliás tornado imperiosamente necessário diante da imprestab11idade das garantias proporcionadas pelo regime vigente para a defesa do Estado e proteção da sociedade, continuou ulteriormente no que se poderia chamar uma política de suicídio. No decurso dos dois anos que se seguiram ao movimento subversivo de Novembro de 1935 o Poder Legislativo em uma série de episódios comprometedores foi demonstrando a sua incapacidade de afirmar-se como órgão de orientação política e ao mesmo tempo que patenteava sua falta de independência para assumir atitudes que divergissem dos desejos do Executivo, o Parlamento, no tocante às medidas relativas à ordem econômica e a administração pública, tornava-se um obstáculo à realização das mais urgentes reformas imperiosamente reclamadas por interesses nacionais de evidente relevância.

A democracia liberal cuja experiência fora feita nas circunstâncias mais favoráveis para eliminar todas as causas que pudessem embaraçar o seu êxito, aparecia diante da consciência nacional com os traços inconfundíveis de uma forma de organização estatal inadaptável. ao meio brasileiro. Dentro das configurações do regime democrático-liberal, com o seu sistema representativo baseado no sufrágio universal e na eleição direta e envolvendo restrições e embaraços permanentes à ação do Executivo, não era possível defender a Nação contra os perigos que a ameaçavam. O Estado, qual o organizara a Constituinte de 1934 mostrava-se impotente para assegurar a unidade nacional e afastar da sociedade brasileira os perigos que ameaçadoramente se iam esboçando com possibilidades imprevisíveis de alarmante confusão social É claro que esse Estado, incapaz de desempenhar as funções mais simples e essenciais de toda a organização política não conseguiria nunca enfrentar e resolver satisfatoriamente os problemas que se acumulavam no plano econômico e dos quais dependia o progresso material da nacionalidade e indiretamente a estabilidade da organização política e social do país.

A segunda república, que não conseguira realizar obra construtora da revolução de 1930 e que não se submergira na anarquia devido apenas à ação pessoal do Presidente Getúlio Vargas, exercida a princípio sob a forma ditatorial e depois dentro da órbita da Constituição de 1934, ia evidentemente dissolver-se. A campanha da sucessão presidencial ao cabo de poucos meses assumira o aspecto de um conflito entre correntes facciosas a cujo choque a Nação se conservava alheia, acompanhando as peripécias da luta com crescente ansiedade pelos efeitos que inevitavelmente sobreviriam, fosse qual fosse o desfecho do pleito.

Nessa indiferença da grande maioria da Nação e particularmente das classes oneradas por maiores responsabilidades na vida nacional, patenteava-se a expressão tácita da atitude da verdadeira opinião pública, que após tantas vicissitudes perdera afinal toda a esperança do país retomar o curso do seu desenvolvimento normal sem uma reforma do Estado que lhe alterasse por completo o seu estilo democrático liberal. A incompatibilidade do regime com a realidade nacional era tão evidente que a derrocada das instituições podia ser prevista para o momento, que poderia estar bem próximo de qualquer golpe aventureiro, que já não era aliás matéria de simples conjetura desde que se revelaram os, propósitos caudilhescos para a conquista do poder nacional.

O golpe de Estado de 10 de Novembro representou, em tais circunstâncias, uma iniciativa do Chefe da Nação para precipitar, com a urgência que o caso exigia, a mutação política que tornara não apenas imperiosamente necessária mas inevitável. A ordem que existia tinha forçosamente de ruir A alternativa que se apresentava ao Brasil era apenas a de uma escolha entre a derrocada da democracia liberal, em condições que permitissem a ocorrência de uma situação de anarquia e de desintegração nacional, e a substituição do Estado corrompido, que se desarticulava, por uma nova ordem baseada nas realidades do meio brasileiro e Capaz de proporcionar à Nação os meios de salvar-se e de iniciar pela primeira vez uma obra de organização política e econômica racionalmente orientada.

O Presidente Getúlio Vargas preferiu a segunda solução Foi sem dúvida um gesto audacioso envolvendo riscos e desafiando possibilidades temíveis. Mas, em geral, para enfrentar grandes perigos vencedoramente é preciso correr todos os riscos. No caso da instituição do Estado Novo, os acontecimentos mais uma vez trouxeram a prova de que nas crises de extrema gravidade a audácia é a forma mais segura da prudência.


III. A PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.

 

Organização estatal e realidade nacional — Mais de um século de digressões fora da objetividade brasileira — Caráter realístico da Constituição de 10 de Novembro.

 

Não há exemplo de uma Nação que tenha conseguido impor-se historicamente pelas suas realizações e pelas contribuições por ela trazidas para o progresso da humanidade, em cujas instituições e leis fundamentais não se encontre uma correlação direta com as realidades da ambiência nacional. Mesmo quando certas influências exóticas hajam atuado na plasmagem da organização estatal desses povos superiores, o elemento inequivocamente promanado das realidades ambientais aparece sempre como esmagadoramente predominante. São os povos inferiores e medíocres, as coletividades predestinadas a uma passagem efêmera no cenário histórico ou condenadas à permanente subalternidade diante de grupos humanos mais favorecidos, que se comprazem em modelar as formas da sua organização política copiando servilmente modelos exóticos.

Há ainda outras nações que, embora possuam qualidades capazes de assegurar-lhes desenvolvimento e expansão em vários sentidos, são contudo subordinadas a influências estranhas que perturbam por muito tempo o curso natural da sua evolução. Este parece ter sido o caso do Brasil, reduzido durante mais de um século à posição desvantajosa de uma profunda desarmonia entre as instituições artificialmente impostas e as necessidades criadas pelos problemas peculiares que a Nação tinha a enfrentar e resolver. Desde a Independência, fatores múltiplos atuaram sobre a mentalidade da elite dirigente, levando-a a preocupar-se muito mais de imprimir às instituições nacionais os estilos exóticos que, um após outro, eram considerados como expressões máximas de sabedoria política.

A nossa primeira Constituição, outorgada em 1824 por D Pedro I, refletia a ideologia política que então se elaborava na Europa continental, como resultante de uma adaptação do parlamentarismo britânico à atmosfera criada pelas doutrinas da Revolução Francesa Assim, a carta política que durante mais de seis decênios serviria de norma ao Império era muito menos um plano de organização nacional calcado nas realidades do meio brasileiro, que um programa de educação política com que os autores daquele estatuto esperavam plasmar a nacionalidade nascente nas formas que no Velho Mundo começavam a ser idealizadas, para permitir o desenvolvimento da democracia liberal dentro das configurações da monarquia hereditária.

A reforma parcial da Constituição de 1824, concretizada no Ato Adicional promulgado dez anos mais tarde, também refletia a mesma tendência a receber influências do pensamento político em ascendência nos países onde se buscava inspiração. O conceito das autonomias locais, que era uma modalidade do nacionalismo surgido na Europa com a independência da Grécia e, poucos anos depois, com o movimento de que emergiu a Bélgica como nação soberana, foi evidentemente o elemento ideológico que induziu o legislador de 1834 a transformar a módica autonomia administrativa concedida às províncias pela Carta de 1824 em um regime que continha em germe a essência do federalismo político. Nesse caso ainda, a preponderância das idéias exóticas sobre a análise objetiva da realidade nacional caracterizou-se por forma inequívoca.

A tradição integrada na formação nacional atribuía inconfundivelmente às províncias uma função precipuamente administrativa e econômica, enquanto ao município coubera representar papel decisivo na plasmagem de uma consciência brasileira, cuja sentido era unificar a nacionalidade. O Ato Adicional de 1834 inverteu a ordem histórica da nossa evolução. Com a transformação dos conselhos provinciais, estabelecidos pela Constituição de 1824, em assembléias regionais de caráter nitidamente político, aquela reforma criou os núcleos de particularismo local que se foram ampliando e reforçando até ameaçarem, nos últimos anos, a coesão do Brasil. Era pois o efeito da transplantação para o nosso meio de idéias em curso então na Europa e que aqui se procurava aclimatar com grave prejuízo para o mais essencial interesse da Nação, que era evidentemente a consolidação da sua unidade.

Sob certos pontos de vista, como já tivemos ocasião de acentuar em páginas anteriores, a Constituição de 1891 aproximou-se mais da objetividade brasileira. Entretanto, as influências dos modelos estrangeiros e das correntes ideológicas provindas de fora das nossas fronteiras neutralizaram muito consideravelmente o espírito nacionalista que de certo modo é bem perceptível na atmosfera em que se elaborou o estatuto da primeira República.

Fatores estudados em um dos capítulos precedentes atuaram de modo análogo sobre a Constituinte da República surgida da revolução de 1930, determinando efeitos ainda mais graves no sentido de uma contradição entre o estatuto saído daquela assembléia e a realidade nacional. Seria difícil encontrar prova mais instrutiva dos inconvenientes e dos perigos da elaboração de leis por assembléia numerosas e eleitas pelo sufrágio universal em e1eição direta, que no caso da Constituição de 1934.

Não se poderia contestar que o ambiente onde se elaborou aquele estatuto político era caracterizado por um acentuado predomínio da idéia nacional. Divergindo uns dos outros em relação aos mais essenciais problemas da organização do Brasil e apresentando no seu conjunto o espetáculo perturbador de uma heterogeneidade ideológica anarquisante, os constituintes da segunda República comungavam todos na aceitação do credo nacionalista. Havia na Assembléia Constituinte instalada em 15 de Novembro de 1933 um consenso de opinião acerca da necessidade de dar ao Brasil um estatuto orgânico calcado na realidade nacional. E havia também não menos coesa unanimidade quanto à aceitação de princípios que assegurassem o robustecimento dos vínculos da unidade brasileira.

Apesar dessas boas intenções, a Constituição elaborada divergiu ainda mais profundamente que as suas predecessoras do quadro da objetividade brasileira. A congestão de idéias freqüentemente contraditórias que imprimiu à lei básica da segunda República um cunho de abstração e de irrealidade tão chocante, redundou em que o plano orgânico que se procurou realizar era antes uma espécie de enciclopédia informativa das doutrinas políticas da atualidade de que uma Constituição no sentido autêntico da palavra. E quanto às garantias da unidade nacional a obra da Constituinte de 1933 não teve nenhuma eficácia prática, por isso que a mesma incoerência que se patenteia em todo o seu texto tem uma das expressões mais significativas na coincidência de certos dispositivos asseguradores da ascendência do poder nacional, com a manutenção de outros que já na Constituição de 1891 representavam elementos comprometedores da coesão da nacionalidade.

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O traço diferencial que distingue inconfundivelmente a Constituição de 10 de Novembro dos três estatutos pelos quais anteriormente se pautara a vida política do Brasil é o caráter realístico da lei básica do Estado Novo. Pela simples leitura do texto da atual Constituição se tem logo como primeira impressão dos seus dispositivos e da doutrina em que eles se apoiam, bem como do próprio estilo em que o legislador constituinte exprimiu o seu pensamento, tratar-se de um estatuto político elaborado sob a influência da análise objetiva das nossas realidades. Enquanto as outras Constituições poderiam ter sido redigidas por comissões de especialistas em direito público e estudiosos de questões sociológicas, vindos dos mais diferentes países, o estatuto de 10 de Novembro traz inequivocamente impresso o sinete da brasilidade dos seus autores.

Como teremos ocasião de mostrar em capítulos subseqüentes, houve evidentemente na elaboração da nossa terceira Constituição muito pouca preocupação teórica de imprimir às novas instituições brasileiras o estilo imposto pelas ideologias peculiares de qualquer escola e mesmo pelo ajustamento de diferentes doutrinas ao caso particular da organização do Estado que se vinha estabelecer no Brasil. Sem dúvida há por parte do legislador constituinte a manifestação de pontos de vista doutrinários. Aliás seria impossível realizar uma obra concatenada de plasmagem da estrutura estatal sem obedecer a uma orientação doutrinária definida. Desprovido de semelhante rumo ideológico e sem possuir uma base filosófica que lhe servisse de alicerces para o edifício político que procurava erguer, o legislador não poderia ter conseguido imprimir ao Estado Novo coesão e harmonia.

Não se pode também negar que em vários pontos a Constituição revela influência da preferência dos seus autores por uma ou outra idéia adotada em Constituições estrangeiras promulgadas depois da grande guerra. Mas nesse caso também cumpre admitir que o fato não é surpreendente. A necessária precaução contra os exotismos em matéria de organização política não pode chegar ao extrema da exclusão sistemática de tudo que procede da experiência estrangeira, uma vez que a transplantação seja aconselhada pela analogia do caso nacional em foco com o que foi solucionado do mesmo modo em outros países. Levar o nacionalismo em matéria legislativa ao exclusivismo de renunciar às vantagens do estudo da legislação comparada seria prova de fanatismo irracional e incompatível com a atitude de um legislador culto.

Esses reflexos de instituições estrangeiras são contudo tão escassos e, de um modo geral, adaptam-se tão naturalmente aos problemas nacionais sobre os quais incidiram, que nem mesmo a mais severa crítica poderia explorá-los como argumento depreciativo do cunho realístico e inequivocamente brasileiro do conjunto da Constituição. Na elaboração desta não se observa de fato desvio apreciável da preocupação constante de imprimir aos dispositivos da lei básica do novo regime a possibilidade de ação eficaz na solução dos problemas práticos a que se acha vinculado o futuro da nacionalidade.

A insistência em manter os preceitos constitucionais em contato com as bases ideológicas do regime que se instituía, não parece ter prejudicado o senso realístico do legislador ao abordar sucessivamente questões de ordem prática, em cuja solução os princípios vinculados à ideologia do Estado Novo tinham necessariamente de amoldar-se a condições peculiares e a pontos de minúcia cuja relevância não podia ser esquecida.

Em obediência ao conceito nacionalista, que forma uma das colunas mestras da estrutura constitucional, ressalta do texto do estatuto de 10 de Novembro o intuito de articular a nova ordem política com corrente histórica das tradições brasileiras. Nesse particular não era muito fácil a tarefa do legislador constituinte. A formação da nossa nacionalidade ocorreu através de vicissitudes cuja complexidade resultou em um acúmulo de elementos contraditórios e na justaposição de autênticos elos tradicionais e de acréscimos acessórios que, embora por vezes encarados como tradições reais, não devem contudo ser levados em consideração ao tratar-se de reviver e animar os fatores vitais do passado do Brasil.

De um modo geral, o legislador constituinte manteve o seu ponto de vista tradicionalista evitando o erro a que aludimos. Em tudo que no texto da lei básica do novo regime exprime o pensamento de fidelidade à tradição nacional, não há margem para controvérsia. Foi evitado um excesso de passadismo que teria redundado na confusão de realidades históricas com ficções e lendas sem ponto de apoio profundo em fatos concretos da evolução nacional.

A harmonia entre as novas instituições e a situação atual da sociedade brasileira veio a ser alcançada por forma a dar-nos a impressão de um ajustamento naturalmente obtido na aplicação da ideologia do regime aos aspectos peculiares dos diferentes casos em apreço. Prosseguindo a análise nessa direção, verificaremos, por exemplo, provas características do espírito realístico que presidiu à elaboração constitucional. Mas o exame de tais minúcias. seria aqui descabido, por isso que terá de constituir matéria a ser abordada em capítulos ulteriores.

Por enquanto, o que já salientamos parece-nos bastante para comprovar a afirmação de que o estatuto básico do Estado Novo veio marcar na nossa história política um acontecimento sem precedente. Pela primeira vez foi feita uma tentativa de organizar a Nação em linhas traçadas de acordo com um critério realístico e em obediência a um pensamento de dar ao Brasil uma Constituição brasileira.


IV. O ESTILO DO REGIME.

 

Realidade e aparência — Circunstâncias ocasionais dificultando a compreensão do sentido do golpe de Estado — Ausência de qualquer afinidade do novo regime com o fascismo — Autoritarismo e democracia — Equilíbrio entre o passado e o futuro — Traços essenciais do Estado Novo.

 

Desde 1930 vivera o Brasil envolvido em uma atmosfera de confusão ideológica, no meio da qual era difícil determinar o verdadeiro sentido das correntes que se contraditavam e apreciar com acerto as tendências pessoais dos homens representativos da situação surgida do movimento de Outubro. Nunca havíamos experimentado, através de todo o nosso passado nacional, semelhantes condições de perturbadora anarquia de idéias e de falta de orientação dos elementos que personificavam as forças dirigentes da política nacional As expressões clássicas de direita e esquerda e os rótulos ultramodernos de escolas e doutrinas da atualidade podiam ser distribuídos quase ao azar, tão rápidas e surpreendentes eram as evoluç6es em que as peças do jogo político se deslocavam de um campo para outro sob a pressão de circunstâncias ocasionais e de incidentes efêmeros.

Longe de diminuir com o correr do tempo e com a organização constitucional do regime derivado da revolução de 1930, o estado de confusão agravou-se ainda mais após a promulgação do estatuto de 1934. Como mostramos em um dos capítulos anteriores, a segunda Constituinte republicana elaborara uma lei básica por tal forma destituída de unidade ideológica e de contato com a realidade brasileira, que a situação confusa dos primeiros anos da pós-revolução veio a transformar-se, no período constitucional, em uma espécie de anarquia progressiva.

Quem quiser reconstituir a história daquela fase, buscando elementos informativos nos anais parlamentares e nas coleções da imprensa, será forçado a encarar a época em apreço como uma etapa de provisoriedade política em que tanto a Nação como os protagonistas do drama nacional permaneciam indecisos e perturbados, à espera de que se dissipasse o nevoeiro que envolvia a nacionalidade. As atitudes individuais, em tais circunstâncias, tinham forçosamente de pautar-se por considerações de um mero oportunismo imediatista em que debalde se procuraria qualquer traço de uma orientação ideológica. E semelhante atitude não indicava, por parte de todos que a assumiam, incapacidade de abordar os problemas nacionais segundo as linhas de uma ideologia coordenada e racionalmente orientada.

A causa dessa espécie de impotência generalizada para formular um pensamento político claro, poderíamos encontrá-la sem dificuldade na repercussão moral de um sistema de instituições dentro de cuja órbita todo o esforço racionalizante era descabido, senão mesmo impossível. Para raciocinar politicamente, nas condições impostas ao país pelo regime da Constituição de 1934, era preciso assumir preliminarmente uma atitude anti-constitucional. E como semelhante alvitre repugnava aos espíritos conservadores capazes de avaliar as tremendas possibilidades imprevisíveis de qualquer perturbação violenta da ordem constitucional, somente as mentalidades de tipo extremista poderiam idealizar qualquer atitude que se caracterizasse por um sentido doutrinário definido.

Assim, passados alguns meses da promulgação do estatuto de 1934, delineou-se na política brasileira uma situação significativa da natureza transitória das condições reinantes no país.

A quase totalidade do povo e os elementos políticos representativos do pensamento médio da Nação deixaram-se ficar perplexos na posição de quem espera inevitável mutação de um estado de coisas que tem os seus dias contados. Contrastando com essa atitude, as correntes extremistas da esquerda e da direita, respectivamente representadas por comunistas e fascistas, tornaram-se as forças ativas, cada uma das quais procurava investir contra a ordem política estabelecida, na esperança de conquistar o poder.

Os levantes de Novembro de 1935, imprimindo ao comunismo um cunho de um perigo imediato, determinaram medidas repressivas enérgicas por parte do governo. O efeito das providências tomadas para a defesa da ordem pública e do Estado acarretaram, ao cabo de algum tempo, a desarticulação do movimento comunista até destituí-lo de qualquer capacidade ofensiva séria.

A luta contra o extremismo marxista proporcionou por dois motivos ao extremismo fascista oportunidade para passar rapidamente da relativa obscuridade em que até então estivera a uma situação de verdadeiro destaque nacional. Dado o perigo imediato concretizado na atividade comunista, o governo, segundo a lógica da situação e em obediência a sentimentos compreensíveis, era naturalmente levado a tolerar e até a animar uma corrente que no momento podia ser aproveitada para a defesa da ordem e da segurança do Estado. Essa tolerância do poder público, chegando talvez mesmo a tomar a forma concreta de um favoritismo particularmente vantajoso nas circunstâncias anormais em que se achava o país, teve decisiva influência vitalizadora sobre o movimento fascista representado pelos integralistas.

O outro fator do rápido desenvolvimento dessa corrente desde o levante comunista de Novembro de l935,fol o reforço das suas fileiras por elementos de duas categorias, cuja influência se poderia considerar, à primeira vista, paradoxal. Enquanto elementos da burguesia, atemorizados pela perspectiva da recrudescência de motins comunistas, gravitavam para o campo integralista, que se inculcava como o centro de resistência ao marxismo, contingentes comunistas para ali também se dirigiam, provavelmente movidos por duas ordens de razões facilmente compreensíveis. Em muitos casos, a incorporação às legiões comandadas pelo snr. Plinio Salgado devia ser apenas um expediente aconselhado pela prudência. Vestir a camisa verde era uma garantia contra os riscos que a repressão policial envolvia para os que anteriormente haviam professado o credo vermelho. Ao lado desses convertidos por considerações de segurança pessoal, provavelmente apareciam elementos que aceitavam o fascismo como um sucedâneo do seu ideal marxista cuja realização se lhes afigurava impossível diante da forte reação nacional contra o comunismo

Semelhante possibilidade de um movimento fascista, como o integralismo, absorver facilmente numerosos elementos comunistas, pode parecer coisa estranha e surpreendente aos que se acham sob a influência da interpretação vulgar e simplista dos fenômenos que se apresentam nas sociedades contemporâneas. Aos que se deixam ficar nessa atitude a essência do conflito que abala o mundo é, em última análise, uma luta que culmina no choque entre o comunismo e o fascismo.

Entretanto, essas duas modalidades de antagonismo às formas de organização econômica, social e política que têm caracterizado a civilização ocidental, desde a eclosão do capitalismo no início da época moderna, estão longe de representar a polarização de tendências irreconciliáveis. Apesar de aspectos diferenciais impressionantes, o bolchevismo russo e o fascismo italiano são ligados um ao outro por afinidades profundas e por inequívocos sinais de uma origem comum de parentesco próximo. Exorbitaria dos objetivos deste estudo estender o exame da questão aqui focalizada, de maneira a oferecer comprovação exaustiva da tese que acabamos de formular. Mas uma ligeira análise do assunto poderá trazer elementos convincentes no sentido do apoio ao nosso ponto de vista.

No bolchevismo e no fascismo deparam-se-nos os mesmos traços essenciais e característicos. Por certo, as circunstâncias peculiares aos ambientes nacionais em que cada uma dessas duas doutrinas foi aplicada como base da organização estatal determinaram, em cada caso, particularidades de estilo que dão a impressão ilusória não apenas de diversidade estrutural, como de irreconciliável oposição ideológica. Trata-se, porém, de superficialidades que, embora tenham enorme alcance prático, não alteram as analogias fundamentais entre os dois sistemas.

Tanto o bolchevismo como o fascismo caracterizam-se pelo mesmo conceito do Estado, idealizado como órgão de expressão das tendências de um grupo social em detrimento dos outros e instrumento de atuação da vontade ditatorial dessa classe. Os regimes russo e italiano, reduzidos às linhas essenciais do seu sentido doutrinário, são governos de classe. No sistema russo, o predomínio social é atribuído ao proletariado; na organização italiana, a classe que imprime à sociedade o ritmo predominante é a pequena-burguesia. Além da estreita afinidade derivada do caráter de ditadura de classe, que em ambos se patenteia, o bolchevismo e o fascismo apresentam ainda outros pontos de contato bem significativos da aproximação ideológica que assinalamos.

Em ambos os casos, o conceito do Estado totalitário, aparece como expressão inequívoca da compressão das iniciativas e da liberdade do indivíduo pela força coercitiva de uma organização estatal absorvente e que se torna a única razão de ser da própria nacionalidade. A este ponto teremos de voltar quando, mais além, acentuarmos que o novo Estado brasileiro não tem na sua fisionomia, nem nas suas bases doutrinárias e no seu sentido, qualquer analogia com os princípios do fascismo.

Mas voltemos ao fim das considerações que íamos desenvolvendo. A desarticulação completa dos elementos comunistas, em conseqüência da repressão policial posta em prática depois dos motins de Novembro de 1935, fez; como acima dissemos, que muitos extremistas de colorido marxista se fossem incorporar às fileiras integralistas, onde uns encontravam abrigo contra a possível perseguição policial e outros se sentiam à vontade diante dos pontos de identidade que encontravam entre as suas próprias idéias e o credo dos fascistas brasileiros capitaneados pelo snr. Plinio Salgado.

Essas circunstâncias permitiram ao integralismo assumir pouco a pouco, e principalmente nos meses que precederam o golpe de Estado, uma posição que a muitos deu a impressão de representarem eles uma grande força política nacional. Várias circunstâncias concorreram para criar essa ilusão, que também servia para atrair ao campo integralista os indivíduos, aliás numerosos, que tendem habitualmente a solidarizar-se com as causas que julgam vitoriosas. Dispondo de recursos financeiros evidentemente consideráveis e cuja origem não incide no nosso objetivo investigar aqui, o integralismo conseguiu elaborar um sistema de publicidade ruidosa, por meio da qual criava a impressão de uma força numérica que não possuía e de um prestígio em certos círculos, principalmente entre as classes armadas, que não passava também de ficção mantida por processos de dramatização demagógica, aliás simplistas e ingênuos.

Essa força aparente do integralismo e a tolerância que o governo mostrava por esse grupo anticonstitucional, atitude esta que se explicava provavelmente por conhecerem as autoridades o caráter inofensivo do movimento integralista, fizeram com que uma parte da opinião pública passasse a encarar as legiões do snr. Plinio Salgado como uma espécie guarda pretoriana do governo. Convém notar que semelhante opinião provinha em grande parte das freqüentes e espetaculosas afirmações do chefe integralista no sentido de um incondicional apoio que se comprometia aprestar ao Presidente da República em todas as circunstâncias. Dadas as condições delicadas da situação política, principalmente depois de encetada a campanha da sucessão presidencial, bem se compreende que o governo consentisse em deixar passar como seus partidários e aliados os membros daquele movimento

Assim se veio a criar a lenda de uma ligação entre o integralismo e o Presidente Getúlio Vargas, lenda que os integralistas se esforçavam por difundir propalando histórias, algumas das, inverossímeis, acerca das intimidades que diziam existir entre o governo da República e o seu movimento. O efeito desses rumores, que foram curiosamente postos também em circulação no estrangeiro, o que parece envolver um índice significativo de ligações internacionais do fascismo brasileiro com partidos análogos de outros países, fez-se sentir no momento da promulgação da nova Constituição. O desconhecimento generalizado entre nós das correntes políticas contemporâneas facilitou em certos meios uma confusão, aliás completamente destituída de fundamento, entre o caráter autoritário da nossa nova ordem política e o estilo das instituições do fascismo. E a este respeito foi particularmente interessante o que ocorreu fora do país.

Os jornais italianos e alemães, mas sobretudo e de, modo muito mais acentuado os primeiros, apressaram-se em anunciar que o Brasil se incorporara ao circulo do fascio e que a nova Constituição brasileira era uma espécie de edição sul-americana da organização fascista. O entusiasmo da imprensa cujos editoriais são inspirados pelo governo de Roma chegou ao ponto de traduzir-se em afirmações de que o Brasil rompera com a política pan-americanista, que é uma tradição brasileira mesmo antes da existência do pan-americanismo sob a sua forma atual, para associar-se ao grupo internacional Berlim-Tóquio-Roma.

Essa ruidosa algazarra jornalística, em que vibraram os prelos, dos Alpes ao estreito de Messina, e na qual não é possível deixar de ver o índice de uma certa deficiência do serviço de informações internacionais da imprensa fascista, fez com que em outros países, sobretudo nos Estados Unidos, o estilo do novo regime brasileiro não fosse no primeiro momento bem entendido. Mesmo entre nós o efeito de retorno dos noticiários flamejantes do jornalismo italiano produziu uma certa perturbação no espírito de muitos brasileiros. Por outro lado, os integralistas, que haviam sido como toda gente surpreendidos pelo alvorecer do Estado Novo, incumbiram-se de propalar as mais extravagantes notícias sobre a suposta comparticipação do seu chefe na elaboração da nova ordem política em que, conforme diziam, o candidato a Condestável da terceira República estava. sendo solicitado a cooperar com as luzes da sua sabedoria e o esforço do seu engenho administrativo...

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Entretanto não seria preciso mais que saber ler para chegar à conclusão de que a Constituição promulgada pelo Presidente Getúlio Vargas em 10 de Novembro, nenhum parentesco ou mesmo remota afinidade apresentava com o tipo de instituições elaboradas sob a influência do fascismo. O erro em que a esse respeito incidiram muitos no primeiro momento, e no qual ainda persistem talvez alguns cuja atividade cerebral é mais lenta, promanava da confusão que se tem feito entre o conceito do Estado autoritário e a ideologia fascista.

Como já tivemos ensejo de observar em páginas anteriores, a associação das idéias de governo e de autoridade data de tempos imemoriais e é de fato coeva das primeiras formas de organização social. Dela só se apartaram os povos ocidentais, e não todos entre eles, a partir da segunda metade do século XVIII sob a influência do pensamento peculiar mas extremamente fascinante de Jean Jacques Rousseau. A noção de um governo sem autoridade não faz parte da tradição da democracia moderna, que procede da evolução política da Inglaterra. O direito público inglês que, apoiando-se em idéias incorporadas mais ou menos vagamente no direito costumeiro dos saxônios, concretizou desde a Magna Carta, no primeiro quartel do século XIII, as bases do sistema representativo, jamais associou ao conceito de representação a idéia de limitação da autoridade do poder público, exceto no tocante à administração do dinheiro posto à disposição do Estado pelos cidadãos que pagavam impostos.

A correlação entre o tributo e o direito de fiscalização da administração financeira constitui a única base de limitação da autoridade governamental em que se alicerça toda a estrutura da autêntica democracia moderna. Fora da órbita financeira, os mandatários do povo estão investidos de uma autoridade, cujo exercício pleno não envolve nenhuma restrição do que há de essencial no sistema democrático. O autoritarismo, que mais de uma vez insistiremos em afirmá-lo — é da própria essência da organização estatal e não pode ser divorciado do exercício do governo, aparece em todas as formas de organização política normais como condição imprescindível à ação eficiente do Estado no desempenho das funções que são a razão de ser da sua própria existência.

Somente o desconhecimento completo da história política pode explicar a opinião de que o autoritarismo seja uma criação do regime fascista ou pelo menos uma idéia por ele revivida no mundo contemporâneo. Autoritários em maior ou menor escala são todos os governos onde o conceito da autoridade estatal oblitera-se de modo acentuado, a confusão política e a ataxia dos movimentos de administração pública patenteiam-se logo, como sintoma mais ou menos alarmante de uma situação anômala.

Certamente os enxertos que se fizeram na doutrina da democracia, principalmente desde a revolução francesa, desvirtuaram e corromperam, no chamado regime democrático-liberal, o conceito da autoridade. Mas ainda sob a influência mais acentuada das correntes do liberalismo, a noção da autoridade governamental sobreviveu, afirmando-se de modo particularmente característico em todas as ocasiões de dificuldade política ou de sérios problemas nacionais. Certos exemplos típicos comprovam bem essa asserção.

A terceira república francesa, que pode ser aliás apresentada como um dos casos mais expressivos da influência devastadora das heresias democráticas geradas sob a pressão do liberalismo, não perdeu, no meio das anarquisantes peripécias do parlamentarismo, o sentido salvador do princípio, da autoridade. Nas crises mais graves que se delinearam em França durante os últimos quarenta anos, os problemas que se apresentavam foram solucionados por governos, cuja autoridade real constituía uma espécie de intervalo realizador na melancólica fluência da esterilidade parlamentar. A inteligência e o senso de proporção do francês prevaleceram sobre as formas ineficazes da prática parlamentarista da democracia liberal e, dentro das aparências de uma normalidade constitucional, os ministérios de salvação pública puderam atuar livremente como governos autoritários.

Assim aconteceu em 1901, diante da ameaça criada para a República pelas conseqüências políticas da questão Dreyfus, quando durante quatro anos os gabinetes Waldeck-Rousseau e Combes governaram com a mais plena e irrestrita autoridade. Em 1906, o ministério Clemenceau, que se manteve no poder até 1909, tornou-se também em larga escala um governo de fisionomia autoritária, podendo abordar com ampla liberdade de ação o problema da defesa nacional, graças à força da formidável personalidade do seu chefe. Sem falar no que se passou durante a guerra, encontraremos em França, depois da paz, um tipo ainda mais acentuado de governo autoritário, organizado em Julho de 1926 sob a presidência de Raymond Poincaré. A crise do franco, que em poucos meses devorara sucessivos gabinetes, alarmava a França, com a perspectiva de uma terrível catástrofe monetária. O antigo presidente da República foi então investido de uma autoridade, que não seria exagero dizer-se que se avizinhava do poder discricionário, para resolver a situação financeira e estabilizar a moeda.

Na Inglaterra, onde uma tradição política, mantida através de séculos pelo sadio instinto de um povo predestinado a lidar com os problemas do Estado, nunca permitira que a ideologia da democracia liberal obliterasse o conceito da autoridade governamental, encontramos durante os últimos trinta anos sinais interessantes do robustecimento do autoritarismo. E foi exatamente quando a mais acentuada intervenção das massas populares na vida política determinou, nas eleições de Fevereiro de 1906, a formação da mais numerosa maioria democrática que jamais dominara a Casa dos Comuns, que teve início essa reação autoritária.

Tendo a realizar um vasto programa de reformas financeiras, econômicas e sociais, o partido liberal sentiu a necessidade de alterar os métodos de funcionamento da Casa dos Comuns, introduzindo no regime dos debates e da votação dos projetos de lei uma série de inovações, acompanhadas por outras tantas alterações das regras da disciplina partidária, de que redundaram na prática o estabelecimento de uma autoridade extremamente ampla do gabinete e, mais que isso, uma espécie de disfarçado predomínio ditatorial do primeiro ministro na própria elaboração das leis. Os precedentes firmados a esse respeito pelos ministérioS Campbell-Bannerman e Asquith consolidaram-se e ampliaram-se durante a guerra, acentuando-se depois desta talvez ainda mais o sentido autoritário na prática do governo britânico.

Nos Estados Unidos, desde a presidência de Theodoro Roosevelt, o conceito da autoridade presidencial, inerente à própria essência do presidencialismo, mas que fora de certo modo sempre restringido na prática constitucional pela influência das tendências liberais que persistiam na evolução política da República, como legado do pensamento jeffersoneano, tem vindo gradualmente se afirmando de modo progressivo. E desde 1933, Franklin Roosevelt, com a sua corajosa política de ação direta e pessoal sobre a legislação e em todos os setores da vida americana, iniciou na grande república a fase de um autêntico presidencialismo, cuja característica inconfundível é a afirmação da autoridade do presidente, como força predominante no jogo das atividades políticas da nação e na escolha dos rumos do seu desenvolvimento.

O conceito do governo autoritário não pode ser portanto encarado como inovação do fascismo Realmente neste o autoritarismo, não somente não é um elemento caracteristicamente peculiar do seu estilo institucional como ocupa mesmo posição relativamente secundária em relação a outros aspectos, que muito mais individualizam o sistema fascista.

Estes traços, pelos quais se pode acertadamente atribuir o caráter fascista a uma forma de ,governo resumem-se em uma palavra o totalitarismo. O Estado totalitário não é, como se poderia julgar à primeira vista, aquele em que a organização estatal abrange na sua esfera de atuação o conjunto da vida coletiva da nação. Semelhante extensão da autoridade estatal torna-se cada vez mais necessária, em face dos imperativos ditados pelas condições econômicas das sociedades contemporâneas. Por outro lado, ela corresponde também à necessidade de coordenação espiritual da nação, que se impõe sob a influência do reconhecimento cada vez mais inequívoco do primado das forças intelectuais e morais no jogo do dinamismo coletivo.

O que define o totalitarismo, no sentido peculiar que a, essa expressão lhe deu o fascismo, não é portanto a extensão do poder estatal, mas a natureza compressiva, absorvente, aniquiladora da personalidade humana, que imprime às instituições fascistas um aspecto repelente, tornando-as tão incompatíveis com todos que prezam a dignidade do espírito. A submissão dócil à autoridade do Estado não repugna, nem pode repugnar aos indivíduos normais, que intuitivamente compreendem que um povo, para se transformar em uma nacionalidade, precisa organizar-se em uma estrutura hierárquica, cuja solidez e funcionamento eficiente exigem a atuação de uma autoridade capaz de tornar-se a força coordenadora e orientadora dos elementos que se justapõem na sociedade. Mas esse conceito do Estado autoritário, decorrente das condições naturais da plasmagem das sociedades, e não envolve o aniquilamento da personalidade humana acarretado pelo totalitarismo fascista.

O Estado autoritário baseia-se na demarcação nítida entre aquilo que a coletividade social tem o direito de impor ao indivíduo, pela pressão da maquinária estatal, e o que forma a esfera intangível de prerrogativas inalienáveis de cada ser humano Assim, enquanto o Estado fascista, igualando-se nesse ponto essencial ao Estado comunista, encara os indivíduos como meras unidades a serem, utilizadas na organização estatal como elementos destituídos de iniciativa e de liberdade, o Estado autoritário do tipo instituído entre nós pela Constituição de 10 de Novembro obriga apenas o cidadão a entregar-se à coletividade no que deve e não pode deixar de pertencer a ela, mas deixa-lhe intacta a órbita em que impera soberana a sua consciência pessoal e na qual se concentram os interesses especiais que só a ele dizem respeito.

A diferença que daí decorre entre um Estado totalitário, fascista ou comunista, é um Estado autoritário é profunda e inconfundível. No primeiro caso, a coletividade nacional reduz-se a uma massa de escravos. Hitler há pouco exprimiu com admirável sinceridade esse ponto de vista, dizendo em um comício de lavradores alemães que o nacional-socialismo não visava fazer homens livres, mas apenas um Estado livre. Na Rússia e na Itália, Stalin e Mussolini, sem porem em palavras a coisa tão clara, têm, cada um pelos seus métodos peculiares, realizado na prática a fórmula do Führer germânico.

No Estado autoritário, porém, não há compressão do indivíduo ou cerceamento das suas iniciativas e atividades, por forma a submeter a coletividade nacional à ação arbitrária do poder público em condições praticamente equivalentes a um regime de escravidão. Tanto no plano espiritual como na esfera econômica, a autoridade do Estado do tipo agora adotado no Brasil faz-se sentir sob a forma de coordenação e reajustamento das atividades dos indivíduos e dos grupos sociais, bem como pela intervenção protetora que visa preencher, pela assistência estatal, as deficiências e lacunas verificadas no tocante a assuntos que normalmente devem permanecer na órbita das responsabilidades individuais.

A atual Constituição define com precisão os pontos que acabamos de assinalar, estabelecendo nas questões atinentes à ordem espiritual e à ordem econômica um equilíbrio entre a função estatal e o papel reservado ao indivíduo nesses assuntos. O critério da intervenção do Estado no regime autoritário é promover primacialmente o bem público, mas sem comprimir ou reduzir as iniciativas e liberdades individuais além do ponto em que elas entrem em conflito com o interesse coletivo. Assim, as garantias asseguradas ao indivíduo em matéria de independência intelectual e de livre expansão das suas tendências culturais são amplas e excluem qualquer receio razoável da autoridade estatal vir a tornar-se um instrumento de compressão do espirito e um obstáculo às manifestações espontâneas de todas as expressões da cultura. Na esfera econômica, a subordinação dos interesses dos indivíduos e dos grupos ao ritmo imposto pelas considerações do bem geral, não passa de limites que bastam para deixar às iniciativas privadas campo livre onde se poderão desenvolver sem encontrar oposição do poder público.

Em capítulos subseqüentes teremos de examinar mais detidamente esses aspectos da nova organização nacional. Por enquanto, quisemos apenas focalizar bem aqui a ausência completa de quaisquer afinidades entre o conceito do Estado autoritário e a doutrina elaborada pelo fascismo. Há, porém, ainda um ponto acerca do qual cumpre dissipar possíveis confusões.

Na letra a) do art. 61 da Constituição, define-se como uma das atribuições do Conselho da Economia Nacional promover a organização corporativa da economia brasileira Assim, o atual estatuto político prescreve como finalidade do Estado Novo, na ordem econômica, o estabelecimento de um regime corporativo. Esse dispositivo constitucional induziu muitos a crer que, nesse particular, havíamos assimilado um dos aspectos principais do fascismo O erro, que reflete falta de familiaridade com o desenvolvimento do corporativismo contemporâneo, pode ser facilmente esclarecido e rebatido. Do mesmo modo que não foi o fascismo que reabilitou, no século XX, o conceito do Estado autoritário, eclipsado na centúria passada pelas perversões demagógicas com que a democracia liberal desvirtuou o sentido do autêntico regime democrático, também não é verdade corra por conta da ideologia do fascio o movimento para a organização econômica em bases corporativas.

A idéia corporativista, cujas origens históricas são remotas, não nos cabendo aqui examiná-las, reapareceu no mundo contemporâneo há muitos decênios em conseqüência de fatos de duas categorias. Preliminarmente deve-se lembrar que as organizações corporativas, destruídas em França pela revolução de 1789 e desaparecidas nos países latinos pela repercussão que neles teve a grande crise francesa do século XVIII, nunca haviam cessado de existir na Inglaterra.

Nos últimos anos do século passado e mais acentuadamente no princípio do atual, a história, do período medieval começou a ser feita de modo muito mais sério que até então. Em torno daquela época se haviam formado idéias errôneas, convergentes todas para a conclusão de que a Idade Média fora apenas um período de, superstição, de ignorância, de peste, lepra, queima de feiticeiras e outras coisas, que se enquadravam em um conjunto sinistro de obscurantismo, crueldade e sofrimento humano. Hoje, somente ignorantes repetem essas calúnias acerca de uma das fases da história do Ocidente que, sob vários pontos de vista, contém as expressões mais nobres e mais enérgicas do gênio da Europa. Entre as descobertas que a pesquisa erudita do último meio século veio pôr em foco, uma das mais interessantes sem dúvida é a concernente à organização da economia medieval.

Em muitos dos seus aspectos e, particularmente, no sentido que a orientava, a economia medieval foi organizada de modo mais humano e mais inteligente do que ocorreu no período da pós-renascença e, sobretudo, no de transição do início do grande capitalismo, começada com a revolução industrial do século XVIII. O eixo daquela organização econômica, que corresponde de um modo tão curiosamente preciso às mais modernas e avançadas idéias do economismo social contemporâneo, (12) era a corporação profissional. O individualismo que se vem expandindo desde a Renascença, hipertrofiando-se até culminar nos excessos do “laissez faire” manchesteriano, obliterou por tal forma o conceito da solidariedade econômica coletiva, que o século XIX, entre as suas mais graves heresias, incluiu a idéia de que a corporação medieval era um fóssil sociológico, ao qual se devia atribuir a lentidão do progresso econômico da Idade Média. Nas páginas do livro de Henri de Man a que acima aludimos, está contida réplica adequada a essa opinião tão infundada, mas que foi repetida como matéria de fé até os primeiros anos do século XX.

O despertar do interesse histórico pelo corporativismo medieval havia sido precedido, de algumas dezenas de anos, pela eclosão do moderno sindicalismo. As Trade Unions inglesas, desde meados do século XIX, se tinham tornado não somente poderosos instrumentos de defesa de classe, como pouco a pouco haviam desenvolvido atividades políticas, assegurando a eleição parlamentar de representantes sufragados pelo voto dos seus membros. Em França, a reação contra o anti-corporativismo, no período da grande revolução, crescera até impor, em 1884, o reconhecimento legal dos sindicatos. O mesmo acontecia em outros períodos europeus e, nos Estados Unidos, a organização corporativa progredia também, encaminhando-se para ter como expressão máxima da sua força uma formidável associação, a American Federation of Labour. Ao mesmo tempo irrompia um movimento intelectual com múltiplas correntes, variando desde o preconício romântico do restabelecimento do “guild” medieval puro e simples, até o de formações com caráter acentuadamente anarquista. O sentido de todas essas tendências aparece, na sua expressão máxima, através da obra de George Sorel, que marcou o ponto de partida de uma nova fase na orientação filosófica das correntes coletivistas modernas.

Ao lado desses fatores preponderantemente culturais, aos quais se juntavam, é claro, as razões de ordem econômica e política, surgiram determinantes da renascença do corporativismo, promanadas exclusivamente de imperiosos motivos de natureza econômica. A expansão incessante do individualismo, estimulado pelas idéias liberais e constituindo mesmo um dos elementos inerentes à essência do regime democrático-liberal, precipitou a ação de causas, que na lógica do seu encadeamento conduziram as nações ocidentais e depois outros países do mundo a uma situação em que todas se viram defrontadas pela perspectiva do comunismo revolucionário e destrutivo. Como alternativa a essa ameaça, que atingia nas suas possibilidades os próprios fundamentos da civilização irradiada da Europa, o surto do neocapitalismo caracterizado pela produção em massa, tornada possível pelos enormes e incessantes aperfeiçoamentos da técnica mecânica das indústrias, podia sem dúvida oferecer uma alternativa salvadora.

Condições inerentes à própria natureza essencial do capitalismo da produção em massa vieram anular o valor teórico e o alcance prático da doutrina de Marx sobre o caráter irredutível da luta entre o capital e o trabalho. Em vez de um conflito perpétuo e cada vez mais acentuado entre empregados e empregadores, o que veio a ocorrer em conseqüência do surto do grande capitalismo da produção em massa foi a identificação dos interesses do operariado e do patronato. O trabalho, que a economia clássica, nos termos das bem conhecidas idéias de Ricardo, encarava como uma mercadoria pela qual o empregador tinha interesse em pagar o mínimo possível, apareceu, no jogo da economia contemporânea, com um aspecto que o famoso elaborador da teoria do fundo de salário não pudera imaginar.

No sistema da produção em massa, os trabalhadores formam em conjunto a melhor parte do mercado consumidor da produção. Em tais circunstâncias, longe de ter interesse em pagar salários baixos, o patronato tem necessidade de elevar ao mais alto nível possível a remuneração dos seus empregados, a fim de que, em um regime de salário alto e generalizado, aumente proporcionalmente o poder aquisitivo do mercado que deve absorver a formidável massa de artigos produzidos. Assim, o castelo teórico, edificado por Marx sobre a base efêmera de uma experiência econômica limitada à situação da Inglaterra de meados do século passado e que se articulava todo em torno de idéias econômicas, tornadas mais tarde obsoletas, ruiu fragorosamente. O marxismo não foi destruído pela argumentação dos seus adversários. Caiu por terra sob a pressão irresistível dos progressos da técnica industrial, que tornaram possível a produção em massa.

Mas se o marxismo, que os fascistas dizem estar hoje empenhados em combater quando ele já se acha há muito morto e mumificado como um fóssil sociológico, desapareceu no conjunto dos problemas da vida moderna com o surto do neocapitalismo, outras questões persistiam, exigindo soluções novas. Um dos efeitos da expansão do capitalismo da produção em massa foi o deslocamento da ação do capital da esfera individualista, que lhe fora circunscrita na órbita traçada por Adam Smith e os seus imediatos continuadores, órbita fechada em configurações ainda mais rígidas pelo comunismo dos dias de Richard Cobden, que levaram as idéias do fundador da economia clássica até limites que o autor da “Wealth of Nations” nunca previra. Dessa esfera, em que o individualismo tresloucado dos fanáticos liberais da escola de Manchester destituíra o jogo das forças econômicas dos elementos humanos e éticos, tão claramente perceptíveis nas idéias de Adam Smith, a ação do capital foi transferida para um plano de cooperação corporativista, de que o trust se tornou o órgão característico.

O capitalismo corporativo surgira, porém, com diretrizes traçadas exclusivamente por preocupações inerentes aos interesses particulares dos grupos que se associavam nos trusts. A estrutura do liberalismo econômico desconjuntara-se, não podendo resistir à ação contraditória dos egoísmos individuais com que a tinham argamassado os utopistas do laissez faire. A organização das corporações capitalistas foi imposta pelas necessidades econômicas, que exigiam a correção dos efeitos ruinosos do esbanjamento de energias em uma concorrência desbragada e de outros aspectos de desorganização anarquisante da produção e da distribuição, operadas em um regime de individualismo sem limites.

Esboçava-se, contudo, um perigo novo e, sob certos pontos de vista, não menos grave que a confusão precipitada pelos excessos da economia liberal. O capital organizava-se em formações próprias, ao mesmo tempo que o trabalho consolidava e aumentava a eficiência econômica e política das suas corporações Era a perspectiva de uma luta industrial, em que forças igualmente poderosas e temíveis, e ambas organizadas para se defrontarem, iriam empenhar-se em conflitos, cuja repercussão sobre a economia das coletividades nacionais e sobre a segurança dos Estados poderia acarretar efeitos destrutivos de incalculável alcance.

Foi da previsão das possibilidades do conflito entre as combinações capitalistas e as corporações trabalhistas que surgiu a idéia de uma renovação profunda do conceito do Estado, para elaborar em torno de organizações estatais, preparadas para intervir com eficácia na esfera econômica, um sistema corporativista de produção e de distribuição da riqueza. Essa idéia, que o legislador constituinte brasileiro introduziu como uma das finalidades do Estado Novo organizado pelo estatuto de 10 de Novembro, não é portanto nada que constitua uma característica do regime fascista. Aliás, ninguém melhor que um fascista, o insuspeitíssimo G. de Michelis (13), estudou e focalizou o caráter universal das causas e tendências do corporativismo contemporâneo, por forma a tornar inadmissível a opinião de que a adoção de um sistema de economia corporativa e a fisionomia corporativista de um Estado indiquem qualquer afinidade com as doutrinas do fascio.

Mas antes de deixarmos este assunto, ao qual teremos entretanto de voltar em um dos capítulos ulteriores, cumpre-nos fazer uma observação de grande relevância. Longe de poder ter a seu crédito a criação do Estado corporativo, o regime fascista corrompeu, desvirtuou e anulou na Itália o sentido da organização corporatista. O princípio sobre o qual se baseia a idéia do Estado corporativo é o da representação da sociedade por meio dos órgãos que constituem os núcleos dos grupos econômicos e profissionais. De acordo com esta teoria, é dos sindicatos que devem partir, para convergirem no Estado, as expressões múltiplas das correntes que formam, no seu conjunto, a vontade nacional e podem ser consideradas como autênticas forças representativas da nação.

Na Itália, a índole ditatorialista do snr. Mussolini e a fisionomia ultra-estatista da organização fascista inverteram o sentido do corporativismo. Em vez do Estado ser a expressão orgânica e dinâmica da nação, que nele atua através dos órgãos representativos das suas atividades econômicas e espirituais, torna-se a única realidade o propulsor exclusivo do dinamismo nacional, que é apenas um reflexo da vontade despótica do detentor da maquinaria estatal. O sindicato não é ,o núcleo donde promana para o Estado a energia da vontade nacional. E apenas um tentáculo burocrático, por meio do qual o Estado exerce o seu poder arbitrário dos múltiplos setores da nacionalidade comprimida e asfixiada nas malhas da organização totalitária.

Felizmente a organização corporativa da economia nacional, preceituada como uma das finalidades primaciais do Estado Novo nos termos da letra a) do art. 61 da Constituição, nada tem de comum com o corporativismo espúrio que se encontra no regime fascista.

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O estilo do Estado Novo brasileiro acha-se, portanto, imune de quaisquer contaminações das influências dos regimes totalitários, tanto comunista como fascista. Não tem, é claro, nenhum parentesco também com as formas da democracia liberal, em cujo círculo o Brasil foi detido durante mais de um século, dissociado das raízes vitalizadoras do passado nacional e, ao mesmo tempo, inibido de acompanhar o sentido do progresso humano no conjunto da civilização universal, em harmonia com as condições determinadas pelos traços peculiares da sua formação e da sua realidade. Mas, emancipada das ficções e dos erros da ideologia liberal-democrática, a nova organização nacional é rigorosamente a de uma democracia autêntica, que se alicerça nas bases supridas pela nossa fisionomia coletiva peculiar, sincronizando-se ao mesmo tempo com o ritmo do pensamento democrático nas suas mais puras e elevadas expressões.

A compreensão deste fato, aliás intuitivamente alcançado com surpreendente clareza pelo espírito público logo após o golpe de Estado de 10 de Novembro, é embaraçada em certos espíritos pela influência perturbadora das sedimentações de erros que se acumularam, encobrindo os traços essenciais do regime democrático. Sob o peso dessas perversões da doutrina fundamental, acreditou-se que era inerente à essência da democracia um certo número de idéias e de práticas que nada têm de comum com as origens, o sentido e as finalidades das instituições democráticas.

Assim, a eleição direta, a imprescindível e indiscriminada temporariedade dos mandatos, as restrições da autoridade executiva, a ficção da divisão dos poderes e outras noções enxertadas na doutrina fundamental da democracia representam ainda, para muitos, traços individualizadores característicos desse sistema de organização política. Em. tudo isso há confusão e sugestão determinada pela longa persistência de idéias errôneas, que se infiltraram nas inteligências, criando uma mentalidade pseudo-democrática.

A representação é por certo um postulado fundamental da democracia. Mas a representação é coisa muito diferente das modalidades técnicas adotadas na prática do sistema representativo. Não passa de uma superstição ingênua supor que o método pelo qual a vontade nacional se exprime através da maquinaria do Estado constitui coisa essencial no conceito do sistema representativo. O ponto vital nessa matéria é que o Estado e a Nação se identifiquem, isto é, que a última possa realizar os seus desígnios e seguir os rumos traçados pela sua vontade coletiva, através do exercício das funções do poder público. O método preferível para assegurar essa identificação do Estado e da Nação, que é em última análise a finalidade do sistema representativo, deve ser aquele que mais se conforme com as realidades da situação apresentada em cada caso nacional. ~

Assim, o critério no julgamento dessa matéria tem forçosamente de ser imposto por considerações de ordem objetiva. Um método de representação que pode dar em um país resultados satisfatórios, tem em outro de acarretar inevitavelmente a perversão, na prática do conceito de representação. Foi o que aconteceu entre nós com o processo de eleição indireta, pelo sufrágio universal promíscuo. Aliás esse método de representação tem dado por toda a parte resultados que estão provocando a sua condenação universal. As exceções que podem ser assinaladas, como os casos da Grã-Bretanha, Países Escandinavos, Holanda, Suíça e, até certo ponto, os Estados Unidos, decorrem de condições particularíssimas e impossíveis de serem verificadas fora da ambiência peculiar daquelas nações.

Entre nós, os resultados de semelhante método de representação foram na prática tão pouco satisfatórios que se torna surpreendente a tenacidade com que nos apegamos a um erro evidenciado por forma tão impressionante. A semelhança do que acontecera em outros países e tendo ainda os seus efeitos agravados por circunstâncias peculiares ao meio brasileiro, a eleição direta pelo sufrágio universal redundou na impossibilidade de praticar-se o sistema representativo. A grande maioria do eleitorado, formada por indivíduos destituídos de capacidade para opinar conscientemente sobre as questões em torno das quais deveriam versar os pleitos e não tendo mesmo competência para discriminar entre os candidatos que se apresentavam, tinha forçosamente de ser manobrada por um pequeno grupo de manipuladores da política. Os defeitos dos métodos de representação inerentes à democracia liberal apresentavam-se assim no Brasil sob uma forma extrema.

A representação, viciada em todos os países liberais pela intervenção dos grupos ligados a interesses especiais, que dirigiam as campanhas eleitorais assegurando a formação das assembléias saídas das urnas de acordo. com os seus objetivos restritos, tornou-se entre nós uma adulteração, que não era sequer disfarçada, das instituições do sistema representativo. Os políticos que se candidatavam a cargos eletivos preocupavam-se apenas em conseguir dos dirigentes dos partidos dominantes a sua inclusão nas chapas eleitorais. Ninguém se preocupava propriamente com os sufrágios, concentrando-se todas as atenções na atitude dos manipuladores da maquinaria política, de quem dependia exclusivamente a posse final do almejado posto parlamentar. O processo eleitoral não passava de um conjunto de formalidades, por meio das quais os designados pelas situações entrincheiradas no poder vinham a tornar-se efetivos ocupantes das cadeiras do Congresso com as aparências de observância dos princípios e regras do sistema representativo.

Houve, sem dúvida, uma profunda alteração dos nossos costumes eleitorais, em conseqüência das reformas realizadas nesse setor depois da revolução de 1930 Mas seria erro grave exagerar o alcance prático do voto secreto e do próprio estabelecimento da justiça eleitoral. A última eliminou certamente os antigos escândalos que caracterizavam o reconhecimento de poderes pelas próprias assembléias políticas. O voto secreto, entretanto, só correspondeu praticamente ao que dele teoricamente esperavam os seus entusiastas nos centros populosos mais adiantados e, de um modo geral, apenas nos casos dos grupos eleitorais colocados em um nível mais elevado de cultura. A massa do eleitorado continuou a votar nas mesmas condições de inconsciência em que sempre o fizera. Ora, como essas massas constituíam a esmagadora maioria do corpo eleitoral, é claro que o voto secreto só acarretou modificação nos resultados dos pleitos, em uma escala que não podia afetar a fisionomia de conjunto das assembléias assim constituídas.

Mas este aspecto da questão não é ainda o de mais vital importância. Mesmo quando as condições sociais, econômicas e culturais do país permitissem ao eleitorado exercer o sufrágio em circunstâncias que excluíssem as causas de desvirtuamento inerentes à situação atual do Brasil, ainda assim a eleição direta por meio do sufrágio universal não permitiria uma representação autêntica da Nação.

Uma das perversões da doutrina democrática que, se enxertou na prática desse regime corrompendo ao mesmo tempo um dos aspectos essenciais da ideologia democrática, isto é, o conceito da representação, foi a extensão irracional do critério majoritário. A idéia de que a vontade, as aspirações e as tendências da coletividade são invariavelmente expressas pela maioria de indivíduos que formam a população, envolve uma ilusão aliás fácil de dissipar. Em uma coletividade nacional o que constitui as forças ativas de cujo dinamismo resultam as manifestações características da vida social, econômica, cultural e política não é a totalidade das massas formadoras da população. Nestas, cumpre discriminar os elementos que intervém direta e ativamente no jogo do dinamismo coletivo e que, na realidade têm concentradas na sua órbita de atividade as responsabilidades e as iniciativas vinculadas a propulsão e à orientação da nacionalidade. Ao lado dessas forças sociais reúnem-se outras que, embora tenham também incontestavelmente um papel a representar, não atuam senão como instrumentos de realização dos objetivos dos grupos dirigentes cujas tendências, ajustando-se em um sistema coordenado sob o ritmo da idéia nacional, imprimem o verdadeiro sentido da vida coletiva.

O conceito da democracia, na sua acepção autêntica, envolve logicamente essa organização hierárquica da sociedade, fora da qual, aliás, não se pode conceber a existência coletiva senão em uma forma de confusão incompatível com a afirmação de uma idéia nacional orientada para finalidades precisas e claras. Supor que a democracia se baseie na igualdade real e prática das unidades componentes do corpo social é uma idéia não somente ilusória em contradição com a realidade objetiva, mas também irreconciliável com o conceito de uma organização nacional concretizada na existência do Estado, O erro equalitário promanou da confusão da verdadeira igualdade inerente ao regime democrático e dele inseparável; que é a igualdade de oportunidade, com uma igualdade imaginária em oposição às condições determinadas pelas visíveis e mesmo enormes diferenças de nível dos valores humanos.

Uma forma de representação fundada na noção falsa da igualdade real de todos os indivíduos e na negação do fato evidente de que as responsabilidades e a capacidade de ação deles na vida nacional são profundamente diferentes em vulto e em significação, não pode portanto resultar senão em uma caricatura do autêntico sistema representativo. É o que ocorre com a aplicação do sufrágio universal, no processo de eleição direta.

Por outro lado, a eleição indireta, mesmo com um sufrágio extensivo às massas globais da população, atenua consideravelmente os efeitos do que há inevitavelmente de fictício e mesmo de falso na teoria do sufrágio universal. A escolha de um número limitado de pessoas, que serão incumbidas de eleger os membros das assembléias políticas, está ao alcance da mentalidade e da cultura média da grande maioria dos eleitores. Estes podem, de fato, apreciar no círculo limitado do município o valor relativo das figuras de destaque, o que lhes permite escolher com suficiente discriminação um pequeno colégio eleitoral a que caberá a atribuição de eleger, por seu turno, os representantes do povo.

Semelhante método de técnica do sistema representativo foi adotado na Constituição de 10 de Novembro por uma forma muito adequada às tradições políticas do Brasil e que servirá também para a educação cívica das massas populares. O corpo eleitoral, constituído por todos cidadãos qualificáveis, toma parte direta na escolha da Câmara Municipal e dos dez cidadãos eleitos na mesma ocasião e que, conjuntameute com os vereadores, serão os eleitores dos deputados enviados pela unidade federativa ao Parlamento Nacional. Com esse dispositivo do art. 47 da Constituição, fica restituída ao município, a nossa organização política, a função histórica por ele representada através da formação da nacionalidade como núcleo plasmador do espírito brasileiro Assim, no processo de eleição indireta adotado pelo legislador constituinte foi também introduzido o princípio nacionalista que virá tirar ao Parlamento o caráter de um mosaico de delegações regionalistas, dando-lhe o cunho de uma representação verdadeiramente nacional, isto é, do povo brasileiro tomado em conjunto.

A Constituição, consagrando o processo da eleição indireta tanto para a escolha dos membros da Câmara Naciona1 como para indicação do Presidente da Republica, que será eleito por um colégio eleitoral formado por delegados das câmaras municipais, nos termos da letra a) do art. 82 — reservou, contudo, um método de pronunciamento direto das massas eleitorais para o caso dos plebiscitos. A incoerência que se poderia alegar a esse respeito é entretanto apenas aparente. Ao preceituar que nos plebiscitos a Nação se pronunciará em massa pelo sufrágio universal em votação direta, o legislador constituinte mostrou a preocupação de manter ilesa a idéia democrática e não infringiu a lógica das considerações que justificam a eleição dos representantes da Nação e do Presidente da República.

O pronunciamento plebiscitário incide na categoria dos casos em que a massa do eleitorado pode conscientemente manifestar-se, sendo mesmo altamente conveniente que assim aconteça. Em um plebiscito, o eleitor tem colocadas diante de si, nitidamente, duas alternativas, o que lhe permite fazer a sua escolha sem ter necessidade de entrar na análise de fatos e de idéias que poderiam estar acima da sua capacidade de julgamento. Alem disso, o plebiscito deverá sempre ter lugar a propósito de questões que, não obstante poderem ser da máxima relevância nacional, contudo simples e concretas, o que torna naturalmente fácil a decisão de qualquer eleitor. Finalmente, a intervenção das massas eleitorais na direção da nacionalidade, por meio dos pronunciamentos plebiscitários, servirá para desenvolver nelas a consciência cívica e o autêntico espírito democrático.

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A análise, que acabamos de fazer, dos traços característicos do estilo do novo regime brasileiro traz-nos a duas conclusões que nos parecem suficientemente fundamentadas. A primeira é que o Estado Novo é essencialmente uma organização de tipo incontestavelmente, democrático. A adoção do princípio autoritário como postulado básico da organização estatal não contradita a fisionomia democrática do regime. Acreditamos ter demonstrado em páginas anteriores que entre as idéias de autoridade e democracia não existe nenhum antagonismo. Tanto na lógica da sua teoria como em face da experiência histórica do regime democrático, o conceito do Estado autoritário integra-se harmoniosamente. Aliás, as condições peculiares das sociedades contemporâneas são de molde a tornar tão necessários os governos autoritários que, se estes fossem inadaptáveis ao regime democrático, seria a democracia que teria de ser sacrificada porque o autoritarismo se tornou uma questão de salvação coletiva nas circunstâncias do mundo atual.

Felizmente, porém, o Estado autoritário pode harmonizar-se perfeitamente com o estilo essencial do regime democrático. E podemos ir mais longe afirmando que somente uma forma de governo autoritário é capaz de permitir o desenvolvimento normal da ,democracia e das suas instituições, de modo a torná-las adequadas às soluções dos problemas cada vez mais complexos que surgem em todos os setores da vida das nações contemporâneas.

Um exemplo significativo dessa verdade, temo-lo no próprio Estado Novo organizado pela atual Constituição brasileira. Estávamos caminhando para uma situação extremamente perigosa, na qual a falência ruidosa das ficções democrático-liberais e a demonstração impressionante da impossibilidade de defender a sociedade brasileira e de promover o surto das forças econômicas do país dentro da órbita das instituições impregnadas dos erros e das ilusões do liberalismo, arrastavam-nos para o abandono do regime democrático. Iríamos em breve apelar para as panacéias custosas e contraproducentes das ditaduras desorientadas ou abrigarmo-nos à sombra das fantasias mórbidas dos misticismos políticos personificados no iluminismo suspeito dos falsos profetas.

O golpe de Estado de 10 de Novembro, protegendo o Brasil contra perigos imediatos que a demagogia estimulada pela campanha da sucessão presidencial ameaçava precipitar, salvou também o regime democrático, evidentemente o único compatível com as condições da realidade nacional e com os imperativos das tradições brasileiras. O estilo do Estado Novo define-se por duas características inconfundíveis. É democrático e é nacionalista. Estes dois traços conjugam-se em uma unidade harmoniosa que representa o equilíbrio entre os elementos da formação brasileira e o sentido histórico do nosso futuro. O Estado Novo é democrático porque é nacionalista. E somente corresponde à idéia nacional por ser democrático. A plasmagem da nossa nacionalidade realizou-se sob a influência do espírito da democracia, que já nos veio da metrópole européia onde ele emergira desde o século XV em afirmações significativas e que anteciparam no Velho Mundo os surtos da idéia democrática, preludiados em outros países pela grande revolução religiosa do século XVI. A Constituição de 10 de Novembro, desembaraçando-nos dos enxertos que deformaram e viciaram a essência da democracia, imprimiu às novas instituições brasileiras um cunho tão nitidamente nacionalista, precisamente porque nelas se reafirma a histórica fisionomia democrática do nosso povo e das nossas tradições.


V. A NAÇÃO E O ESTADO.

 

Identificação do povo e da organização política nacional — A união consubstancial da Sociedade e do Estado tornam no novo regime supérfluos os órgãos intermediários — Eliminação necessária dos partidos — Caráter peculiar da político no Estado autoritário.

 

O estilo do Estado Novo, cujos traços inconfundíveis foram sucintamente delineados no capítulo anterior, reflete-se na organização nacional imprimindo-lhe um cunho democrático incomparavelmente mais puro que o dos regimes anteriormente estabelecidos pelas Constituições de 1891 e de 1934. Na atmosfera de desvirtuamento da democracia, que os erros doutrinários e as perversões introduzidas pelos costumes demagógicos criaram depois da revolução francesa sob as aparências democráticas, destacava-se um fato bem significativo da deformação do que havia de essencial no regime. A democracia não se caracteriza essencialmente por nenhum desses traços que as heresias democrático-liberais apresentavam como elementos individualizadores daquele regime. As idéias de igualdade, de temporariedade dos mandatos e de certas limitações da esfera de atribuições do poder público, mesmo quando expurgadas dos erros que em torno de tais conceitos se haviam acumulado, não constituíam mais que aspectos secundários sobrepostos à natureza intrínseca dos fundamentos da democracia. O que caracteriza este regime de modo inconfundível, distinguindo-o das outras modalidades de organização política, é a identificação da Sociedade e do Estado. Essa união indissolúvel entre a coletividade nacional e a organização estatal é que torna o conceito da representação a base fundamental, necessária e insubstituível do regime democrático. Onde o Estado não é a expressão orgânica da representação da democracia. Ampliando a fórmula restrita dos primeiros democratas da Inglaterra medieval, que afirmavam não poder haver tributação sem representação, resumiremos o critério identificador do regime de que nos ocupamos dizendo que sem representação não há democracia.

No capítulo anterior expusemos o que se nos afigura ser o verdadeiro conceito da representação e julgamos ter demonstrado que a representação autêntica só pode ser conseguida por processos que assegurem a manifestação verídica da vontade e das tendências dos elementos que constituem as forças dirigentes da vida social. O método demagógico de representação adotado na democracia liberal e nela considerado como o mais perfeito, isto é, o do sufrágio universal com eleição direta, não permite nem pode permitir a representação, autêntica das forças ativas da sociedade. Por outro lado, o processo de eleição indireta adotado pela nova Constituição brasileira e sobretudo com a associação de um sistema de representação das forças econômicas e profissionais, também prescrito pelo atual estatuto nacional no art. 58, oferece garantias amplas de uma representação real da Sociedade no Estado.

O regime hoje vigente entre nós tem, pois, por alicerces um método de representação que proporciona a comparticipação de todos os cidadãos na direção do Estado. Não se trata da comparticipação utópica, contraditória com a realidade social e inviável na prática, que os teoristas da democracia liberal imaginaram conseguir com o sufrágio universal e a eleição direta partindo do postulado falso e mesmo absurdo da igualdade efetiva de todos os indivíduos que compõem a sociedade. A comparticipação assegurada a todos os brasileiros na direção do Estado, conforme os termos da Constituição de 10 de Novembro apoia-se no critério objetivista do reconhecimento de realidades insofismáveis e permite a cada um intervir na direção da vida nacional, segundo a medida da sua capacidade das responsabilidades de qualquer natureza com que se acha onerado no jogo das forças sociais Cada cidadãs será representado no Estado e essa representação não será uma fórmula fictícia, mas a expressão de um fato real, por isso que a parcela de atuação cívica de cada um corresponde tão exatamente quanto possível à função desempenhada no dinamismo coletivo.

Um dos problemas mais importantes e também de mais empolgante interesse técnico no tocante à organização política é, sem dúvida, a questão das relações entre a Sociedade e o Estado. Pode-se mesmo dizer que a teoria do Estado tem por ponto de partida a determinação de conceitos claros e positivos acerca desse assunto fundamental.

O conceito do Estado deduzido, da ideologia liberal-democrática reduzia a organização estatal a uma espécie de instrumento especializado da vontade social. E esta era compreendida como a resultante da soma das forças representadas por cada membro individual da coletividade. Assim, o Estado não era mais do que um aparelho cujas funções se limitavam a coordenar ou, mais exatamente, a estabelecer uma certa harmonia entre os interesses e as iniciativas individuais, no exercício de atribuições que se restringiam ao círculo judiciário e policial. Além de tais funções, cabia apenas ao órgão estatal agir em defesa da coletividade nacional contra inimigos externos e desempenhar no tocante a certos setores um papel, em que era aliás a sua atividade apenas tolerada, como sucedâneo da ação desenvolvida pelas iniciativas privadas.

Em tais condições, o Estado constituía apenas, como dissemos, um órgão da coletividade nacional, ocupando, portanto, em relação à Sociedade uma posição relativamente reduzida é inequivocamente subalterna. O conceito do Estado no século XX é radicalmente diferente. A tendência do pensamento político contemporâneo orienta-se no sentido da coincidência da esfera estatal como círculo da atividade social. A teoria totalitarista, inerente tanto ao comunismo como ao fascismo, leva essa idéia ao último extremo, atribuindo ao Estado todas as funções da Sociedade, que, nos regimes totalitários, passa a ser na realidade um simples apêndice da organização estatal que absorve e concretiza toda a realidade social.

Entre esses dois conceitos extremos, isto é, entre o Estado meramente regulador das atividades individuais, conforme a doutrina da democracia liberal e o Estado totalitário, comunista ou fascista, destaca-se o Estado autoritário, tal qual existe hoje no Brasil e, que nada tem de comum com qualquer das duas modalidades em que se polariza a idéia da organização política. Tanto o Estado liberal como o Estado totalitário correspondem a conceitos igualmente fictícios. e utopistas da correlação entre a sociedade e a organização estatal. No caso do Estado baseado no princípio individualista, a teoria não leva em conta a existência da Sociedade como fato real e concreto, pois abstrai de uma série de fenômenos complexos que caracterizam o dinamismo social e cuja repercussão no funcionamento e no sentido da maquinaria estatal não pode deixar de ser considerada. O conceito do Estado totalitário é viciado pelo erro oposto, que consiste em eliminar a realidade irredutível representada pela personalidade humana, entre cujas manifestações se encontram atividades de caráter psicológico e de natureza material, sobre as quais o controle estatal não se justifica e, quando exercido sob a pressão de imperiosos motivos de interesse coletivo, deve ser sempre muito moderado e discreto.

O caráter complexo da realidade social e a impossibilidade de comprimi-la na sua totalidade dentro da órbita da ação estatal são reconhecidos por alguns dos mais sagazes pensadores políticos contemporâneos, dos quais merece especial destaque Harold Laski. (14). O Estado autoritário brasileiro conforma-se com esse critério humano e realístico, definindo em relação à ordem social, à organização econômica e à ordem espiritual as linhas separativas entre a ação estatal e as iniciativas próprias do indivíduo e dos grupos que se formam no conjunto da coletividade.

Mas a distinção nítida entre o que pertence ao Estado e à esfera de atividade social, econômica e cultural em que o indivíduo se deve sentir livre, não envolve nenhuma restrição do que dissemos no início deste capítulo acerca da identificação do Estado e da Nação em uma unidade coesa e indissolúvel. A manutenção de uma órbita reservada à ação individual e às iniciativas privadas, tanto em assuntos de ordem material como em questões de natureza espiritual, longe de criar sulcos que desarticulem a unidade harmoniosa do Estado e da Nação, ainda reforçam a coesão entre ambos. Realmente, as liberdades asseguradas ao indivíduo no plano econômico e na esfera psicológica apenas determinam uma comparticipação mais consciente, espontânea e eficaz de cada unidade humana no conjunto da vida coletiva e, portanto, também, nas atividades do Estado.

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Da identificação absoluta do Estado com a Nação promana logo uma conseqüência da maior relevância política. O Estado deixando de ser uma entidade distinta da coletividade nacional e passando a coexistir com ela em uma coincidência rigorosamente definida é claro que os aparelhos de ligação entre a Nação e a organização estatal se tornam automaticamente supérfluos. No regime, da democracia liberal, a Nação não podia ter contato com a maquinaria estatal senão por intermédio de órgãos peculiares que eram os partidos políticos Na realidade, no regime liberal-democrático, não havia nunca identificação da coletividade nacional em conjunto com o aparelho do Estado. O conceito do sistema representativo identificado com o liberalismo fazia, como tivemos ocasião de mostrar em capítulo anterior, com que o Estado fosse o instrumento de poder capturado pelo partido que conseguira vencer na última eleição. Assim, jamais a Nação se identificava com o Estado, que era apenas o instrumento de um grupo social de que o partido vencedor era o órgão de expressão política. Em tais circunstâncias, a existência dos partidos estava indissoluvelmente vinculada à própria natureza do regime.

No Estado autoritário, que é um Estado nacional em que todos. os indivíduos e todos os grupos, sociais, sejam quais forem o credo e as opiniões que professem, estão identificados com ele como parte integrante que são da coletividade nacional consubstancialmente unida à organização estatal — a situação que nos depara é diametralmente oposta. Os partidos, cuja superfluidade é evidente, constituiriam também elementos perturbadores, incompatíveis com a marcha normal da vida da nacionalidade.

Chegamos aqui ao ponto talvez mais interessante na análise das características peculiares da organização do Estado em linhas autoritárias. Em um regime como o que ora se acha estabelecido no Brasil, o Estado atribui aos indivíduos e aos grupos especiais por eles formados na sociedade uma órbita muito ampla de liberdade de iniciativa. Essa liberdade é particularmente extensa no tocante à elaboração das idéias e à manifestação das expressões do pensamento em qualquer plano de atividade intelectual. Teremos ocasião, em um dos capítulos subseqüentes, de abordar mais detidamente esse assunto. Por enquanto vamos apenas examiná-lo na sua relação com os métodos peculiares da política no Estado autoritário.

A garantia assegurada às liberdades individuais, especialmente em matéria, de consciência e de opinião, não pode contudo comprometer um ponto essencial na estrutura do regime e no sentido ideológico do Estado autoritário. Na lógica da sua organização e das diretrizes que o encaminham para as suas finalidades nacionais, o Estado Novo, instituído pela Constituição de 10 de Novembro, não poderia consentir que a liberdade de consciência e de ampla expressão do pensamento fosse interpretada por uma forma latitudinária envolvendo o consentimento em atividades de caráter político incompatíveis com a segurança da organização estatal e com o seu sentido ideológico. Teremos ensejo de aprofundar mais a análise deste ponto, que certamente requer uma certa sutileza no seu esclarecimento. Mas considerações de ordem prática, que passamos a formular, bastarão para tornar desde já suficientemente clara a distinção sobre a qual teremos ulteriormente de insistir.

O Estado autoritário sendo essencialmente nacional, o que eqüivale a dizer que ele e a Nação constituem pela sua união consubstancial um todo perfeito e indissolúvel, desobedeceria aos imperativos do instinto de conservação nacional se tolerasse qualquer atividade política dirigida contra sua existência, estabilidade e pureza O sentido do Estado autoritário coincide com as diretrizes traçadas pelos antecedentes históricos e pelas realidades atuais da Nação. A plasmagem dessa forma de organização estatal obedeceu ao conceito de que no prosseguimento daquelas diretrizes, e somente assim, atingiremos os objetivos visados para o desenvolvimento e engrandecimento do Brasil. Nessa convicção encontra-se a parte fundamental da ideologia do Estado Novo.

Dir-se-á que, semelhante convicção é matéria de fé. Poderíamos replicar que a base doutrinária da nossa nova organização nacional é perfeitamente suscetível de uma análise racional que nos conduziria à demonstração lógica das razões que a justificam. Mas não é preciso tanto. O reconhecimento de um postulado teórico, fundamental, estabelecido como ponto de partida para a elaboração de uma ideologia política, não é menos legítimo pelo fato dele promanar de um processo intuitivo. O excesso de racionalismo, que um dos maiores mestres da ciência experimental já estigmatizava como irracional no campo da biologia, é ainda menos defensável no campo da sociologia e da política.

Os sistemas de organização das sociedades humanas e as formas de plasmagem política das coletividades nacionais não são criações elaboradas com os recursos da lógica formal pela inteligência no exercício de uma espécie de racionalização geométrica dos fatos sociais. O conceito bergsoniano do processo da evolução criadora e do papel nele respectivamente desempenhado pelo ímpeto vital e pela razão sistematizadora ressalta em uma demonstração impressionante através da. experiência histórica. As nações que souberam organizar-se para as vicissitudes de uma longa viagem vitoriosa para o futuro, foram as que obedeceram às intuições claras do gênio político. Os Estados que sobreviveram e se afirmaram historicamente no esplendor das suas realizações tiveram todos os alicerces traçados por um seguro instinto das adaptações do povo às imperiosas contingências das realidades que os enfrentavam. O papel da razão e da lógica só vem a ser desempenhado no trabalho posterior de interpretação, de desenvolvimento e coordenação dos elementos essenciais introduzidos na plasmagem da organização nacional pelas intuições do espírito político.

Não há, portanto, motivo para nos sentirmos acanhados em admitir que a ideologia do Estado Novo tenha os seus fundamentos na obra criadora de uma lúcida intuição política. O nosso mal, no passado, consistiu exatamente em sufocarmos as aptidões espontâneas da nossa capacidade criadora para elaborarmos instituições coligindo, pelos artifícios de uma lógica formal, idéias apanhadas aqui e acolá, enquanto nos descuidávamos de abrir os olhos para buscar inspiração na análise objetiva da realidade brasileira. A Constituição de 10 de Novembro, como já o dissemos em páginas anteriores, representa o primeiro marco da nossa emancipação espiritual na esfera política. Os fundamentos do novo regime são profundos e sólidos precisamente por não serem construções puramente racionais realizadas no plano das abstrações, mas na rocha viva a que chegamos mergulhando como brasileiros na essência da brasilidade.

Admitidos o caráter intangível dos alicerces do Estado Novo e a natureza definitiva do sentido que ele imprime ao futuro desenvolvimento histórico da nacionalidade, é evidente que a organização estatal, no cumprimento da sua finalidade precípua que é a defesa da Nação, não pode tolerar no campo das atividades políticas práticas qualquer agrupamento que contradite a ordem estabelecida como base da existência nacional.

O Estado autoritário tem uma doutrina em torno da qual podemos postular a existência de um consenso de opinião nacional, mesmo antes do pronunciamento plebiscitário, tantas e tão claras já têm sido as expressões de acordo sobre esse ponto. Consentir em atividades políticas contrárias a essa ideologia seria um ato de suicídio, uma lamentável manifestação de imbecilidade política. Toda a ação cívica tem, no novo regime, a sua órbita nitidamente demarcada. Mas essa delimitação das atividades políticas não implica em restrições ou acanhamento das possibilidades de cada um, porque o círculo traçado pela unidade de pensamento em torno do Estado abrange a totalidade da existência nacional. O único partido admissível no atual regime é o partido do Estado e, como este se acha identificado com a coletividade nacional esse partido é constituído pela própria Nação.

Outro corolário decorre das configurações especiais do novo Estado brasileiro. Se a Nação e a organização estatal formam um todo indissolúvel e se o Estado é o órgão de expressão da consciência e da vontade do corpo nacional, e claro que dele deve partir a direção da política. Mas, no Estado autoritário, o eixo da sua organização estrutural e o foco de irradiação do seu dinamismo é o próprio Chefe da Nação.

A unidade de orientação política, cujas perturbações viriam determinar o abalo da coesão entre o Estado e a Nação, que forma a própria essência do regime, exige que o ritmo da política nacional seja dado pelo Presidente da República. Este ponto de inexcedível alcance para o funcionamento normal das instituições e para o equilíbrio da organização nacional no seu conjunto foi acertadamente previsto no art. 73 da Constituição, que enfeixou nas mãos do Presidente da República a suprema direção da política brasileira.


VI. ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA.

 

O Estado coordena mas não comprime as iniciativas privadas — O indivíduo é o fator principal na produção da riqueza, coletiva — Economia equilibrada e economia dirigida — O novo regime brasileiro é no plano econômico essencialmente capitalista — Significação e alcance do corporativismo — Capitalismo e organização corporativa da economia — Nacionalismo econômico — Transigências do legislador constituinte com certas correntes de opinião — A imigração e a expansão econômica do país — Planificação.

 

Os mesmos traços diferenciais profundos, nítidos e inconfundíveis, que verificamos existir entre o novo Estado brasileiro e as organizações políticas do tipo totalitário, comunista ou fascista, iremos encontrar em relação à estrutura e ao sentido da organização econômica prescrita pela Constituição de 10 de Novembro. O Estado totalitário, em qualquer das suas modalidades, é invariavelmente orientado pela idéia da subalternização das atividades econômicas ao ritmo do poder político, decorrendo desse princípio fundamental do totalitarismo a redução maior ou menor da esfera das iniciativas e das atividades individuais no que se relaciona com a produção e distribuição da riqueza.

Realmente, o que caracteriza a organização econômica do Estado totalitário é o postulado da negação implícita do direito dos indivíduos ou dos grupos formados na sociedade a desenvolver qualquer forma de atividade produtora fora da órbita traçada pelo Estado. Em uma sociedade submetida ao comunismo ou ao fascismo, toda a atividade econômica pertence virtualmente ao Estado e o que é deixado como campo da ação individual o é a título precário. De fato, as liberdades concedidas ao indivíduo e às organizações privadas representam apenas uma tolerância, uma situação transitória admitida como conseqüência da incapacidade temporária do Estado de ocupar-se diretamente daquele setor particular da economia.

Tanto na Rússia bolchevista como na Itália fascista, deparam-se-nos confirmações do que acabamos de dizer. Se no primeiro dos casos citados a extensão do poder estatal ao campo econômico foi realizada de modo mais acelerado e abrangendo desde o início um círculo muito mais amplo de atividades, na Itália, o processo de subordinação das iniciativas e dos interesses privados à órbita da ação do Estado, por ser mais lento e desenvolvido com mais prudência, nem por isso deixou de patentear de modo análogo a identidade de orientação do fascismo e do comunismo em matéria de organização econômica. Não é inoportuno acrescentar que a acentuação desse movimento para, a absorção, pelo Estado, de esferas cada vez mais variadas e importantes da atividade privada tem sido ,muito considerável na Itália durante os últimos anos. E quando o Estado fascista não incorpora certos setores da economia nacional à órbita da sua ação direta, a compressão por ele exercida sobre as atividades ali desenvolvidas representam de modo inequívoco a crescente subordinação da economia privada ao controle esmagador do poder público.

Nada disso encontraremos no Estado autoritário instituído no Brasil. O princípio fundamental, pelo qual se orientou o legislador constituinte na elaboração dos dispositivos atinentes à ordem econômica foi o da intervenção estatal nessa esfera com o objetivo de coordenar os interesses privados em um sistema equilibrado no qual sejam antes e acima de tudo salvaguardadas as conveniências do bem público. Cabe ao Estado atuar no jogo das relações econômicas que se processam na vida social, corrigindo abusos, reajustando situações prejudiciais ao interesse coletivo, amparando certos grupos de interesses contra a pressão exagerada de outras forças econômicas que os poderiam prejudicar injustamente. A função estatal na ordem econômica obedece portanto às diretrizes derivadas do postulado básico da ideologia do novo regime, isto é, que o Estado, sendo a expressão orgânica da Nação, está investido de autoridade absoluta para coordenar, ajustar e equilibrar as correntes de qualquer natureza que se justaponham no jogo do dinamismo social.

Mas, nessa aplicação aos fatos econômicos do princípio que define o traço mais característico do poder estatal e da sua função, nada há que implique na compressão esmagadora das iniciativas e das atividades individuais. Destacando-se inconfundivelmente do ponto de vista em que se colocam as organizações nacionais totalitárias em face dos problemas contidos na ordem econômica, o Estado Novo brasileiro, explicitamente e até com certa solenidade, consagra no art. 135 da Constituição o princípio do valor primacia1, do indivíduo como elemento produtor da riqueza.

Os termos em que essa idéia é ali definida são tão significativos e insofismáveis que é interessante citar textualmente o aludido dispositivo constitucional: “Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional”. Seria impossível exprimir em linguagem mais clara os elementos essenciais do conceito individualista da ordem econômica criada pelo estatuto de 10 de Novembro.

Mas o reconhecimento do indivíduo como base de todo processo de produção da riqueza e de desenvolvimento da prosperidade é, no texto citado, sujeito logo a uma ressalva que atribui ao bem público relevância superior a quaisquer outras considerações ditadas pelas conveniências do interesse privado. A Constituição atribui ao indivíduo um papel precisou e insubstituível no encadeamento orgânico da economia nacional. Entretanto, as aptidões individuais, mencionadas como fatores primaciais em todo o jogo das atividades econômicas, só podem ser exercidas nos limites do bem público.

A doutrina fundamental da ordem econômica do Estado Novo está assim condensada e expressa naqueles termos do art. 135 da Constituição. O poder estatal nenhum embaraço opõe ao surto livre das atividades individuais e reconhece que as faculdades aplicadas no exercício daquelas atividades representam os fatores insubstituíveis no determinismo da expansão da riqueza coletiva. Fica, contudo, desde logo afirmado que os indivíduos, atuando isoladamente ou em grupos, têm de subordinar as suas aptidões e os seus interesses ao ritmo imposto pelo bem geral de que o poder publico é o assegura.. dor permanente.

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A falência da economia liberal, de que já tivemos ocasião de nos ocupar em um dos capítulos precedentes, criou desde a época da grande guerra um estado de coisas em que todas as nações se debatem à procura de diretrizes novas para uma reconstrução econômica consentânea com as realidades postas em foco durante os últimos vinte anos por uma série de problemas prementes e perturbadores.

As lições da experiência e os resultados da análise procedida em múltiplas direções por economistas ligados às escolas mais diferentes redundaram em uma conclusão que se pode considerar hoje ponto pacífico. As condições que o liberalismo econômico estabeleceu no século XIX não poderão mais ser restauradas. Uma organização econômica baseada no conceito da ilimitada liberdade da ação individual, deixando que os problemas concretos sejam resolvidos pelo jogo das forças econômicas em obediência às supostas leis naturais que os economistas da escola clássica pensaram ter induzido é, nos dias atuais, uma impossibilidade pura e simples. Discutir portanto vantagens ou desvantagens do velho regime do “laissez faire” pode ser quando muito um passatempo intelectual. Sob o ponto de vista prático, tal questão não interessa o economista nem o estadista, da escolha das formas preferíveis de intervenção do poder estatal na coordenação das atividades econômicas da sociedade.

Como se poderia prever, as opiniões variam no terreno teórico em uma escala que oferece margem para as mais diversas soluções. Um exame crítico das idéias em curso no momento atual sobre as numerosas modalidades da economia dirigida exorbitaria evidentemente dos limites do estudo que estamos fazendo acerca da ordem econômica estabelecida pela nova Constituição brasileira. Para esclarecer o assunto em foco, é bastante assinalar que o dirigismo econômico pode, de um modo geral, ser dividido em duas categorias correspondentes respectivamente a dois pontos de vista fundamentais no apreço da função estatal e das iniciativas privadas em matéria econômica.

Que ao Estado cumpre assumir a função de órgão supremo de dirigente das atividades econômicas é ponto por todos admitido. Mas, enquanto uma corrente de partidários da economia dirigida, fortemente influenciada pelas idéias que geraram o conceito do Estado totalitário, insiste em que o processo de direção econômica deve refletir o pensamento e a orientação do órgão estatal, outros economistas colocam-se em posição muito menos radical.

As idéias da primeira das escolas citadas vêm tendo há anos aplicação concreta na Rússia Soviética e em menor escala na Itália fascista e na Alemanha social-nacionalista. O outro conceito da organização da economia dirigida a que nos referimos e cuja execução prática está sendo exemplificada, nos Estados Unidos, pela política de reconstrução econômica do Presidente Roosevelt, melhor se definiria como o de uma economia equilibrada. Há realmente uma distinção que se nos afigura bem nítida entre as idéias de economia dirigida e de economia equilibrada.

O característico da primeira é a ação do poder estatal impondo às forças associadas à produção e à distribuição da riqueza diretrizes ,técnicas, econômicas e comerciais derivadas de um plano de conjunto elaborado pelo poder público, com o objetivo definido de atingir certas finalidades julgadas convenientes aos interesses globais da Nação. A economia dirigida nesta acepção do termo, que é aliás a única consentânea com o conceito do dirigismo integral, pressupõe para a sua aplicação a existência do Estado ,totalitário.

A economia equilibrada, que pode ser definida como uma forma de dirigismo econômico compatível com a manutenção de uma considerável liberdade assegurada às iniciativas privadas, não apresenta na sua fisionomia, nos seus métodos e nas suas finalidades, qualquer correlação com a idéia do totalitarismo. O Estado democrático, desde que seja organizado em linhas autoritárias, como é o caso do Estado Novo brasileiro pode tornar-se o órgão eficaz de um sistema de economia equilibrada.

Longe de envolver a compressão das iniciativas individuais da atividade privada, a economia equilibrada implica logicamente no reconhecimento preliminar de que a produção da riqueza deve permanecer como um fato inerente à órbita daquelas iniciativas e atividades Assim, o legislador constituinte obedeceu à lógica do princípio consagrado como postulado básico da ordem econômica no art. 135 do novo estatuto nacional preparando os elementos para a organização de um sistema de economia equilibrada.

O eixo desse sistema e o instrumento por meio do qual a ordem econômica idealizada virá a ser uma realidade completa é o Conselho de Economia Nacional Não entraremos aqui no exame da posição interessantíssima que esse Conselho deverá ocupar na elaboração das leis concernentes a assuntos econômicos, tanto na fase inicial em que atuará no exercício de função consultiva, como mais tarde quando estiver transformado por um pronunciamento plebiscitário do eleitorado em parte integrante do Parlamento Nacional. O que nos interessa, dentro dos objetivos deste capítulo, é focalizar o papel que o Conselho da Economia Nacional desempenhará na elaboração da futura ordem econômica do país como promotor da organização corporativa preceituada pela letra a). do art. 61 da Constituição.

Em torno do corporativismo têm se formado nos últimos anos idéias diferentes, não raro contraditórias e quase sempre em dissonância com a realidade nessa matéria. Há, por exemplo, quem imagine ser a organização corporativista da economia um dos aspectos do fascismo. Muitas vezes observa-se mesmo que Estado corporativista e Estado fascista parecem ser, para muita gente, expressões mais ou menos sinonímicas. Entretanto, e já tivemos ocasião de mostrá-lo em um dos capítulos anteriores, o Corporativismo é muito mais antigo que o fascismo, não tendo este feito mais que incluir no seu sistema a organização corporatista que, aliás, desvirtuou por completo invertendo a ordem lógica e natural das relações entre o Estado e os sindicatos econômicos e profissionais.

Seria erro não menos grave acreditar que o corporativismo tenha afinidades especiais e características com qualquer escola política ou social, inclusive o sindicalismo revolucionário, o chamado anarco-sindicalismo do tipo espanhol. Em todos esses casos, como tal qual acontece em relação ao fascismo, não há mais que uma apropriação com finalidades particulares da idéia corporativista surgida, como já vimos, da ação exclusiva de fatores econômicos em ação no mundo contemporâneo. Nem se pode mesmo atribuir a propagação da idéia corporativista em nossos tempos às influências culturais associadas com um estudo mais criterioso e aprofundado das organizações corporativas medievais, ponto este também já examinado em páginas precedentes.

A natureza preponderantemente senão exclusivamente concreta e, por assim dizer, especializada e mesmo restrita das determinantes do surto contemporâneo do corporativismo, acha-se claramente definida pelos trabalhos dos estudiosos que têm analisado esse aspecto relevantíssimo é tão empolgante da crise de transição ora atravessada pelos povos civilizados. A este propósito, é particularmente interessante a contribuição trazida por Pierre Lucius (15) que põe em evidência, com inexcedível nitidez, o caráter inconfundivelmente econômico e concreto das razões que estimulam o desenvolvimento do corporativismo. E, se fosse necessário apelar para mais uma autoridade no assunto, bastaria recorrer ao trabalho de G. de Michelis (16) acerca da questão de uma generalização mundial do sistema corporativista.

Desembaraçado o nosso caminho dos erros e falsas interpretações que se acumularam em torno da idéia corporativista chegaremos à conclusão de que ela não se acha vinculada a nenhuma doutrina política especial nem corresponde também necessariamente a nenhuma forma particular de organização do Estado. É claro que entre o conceito da economia em linhas corporativistas e o Estado liberal-democrático não podia existir associação. O postulado básico do corporativismo é a noção da subordinação dos interesses e pontos de vista individuais às considerações e ao sentido do bem coletivo. Há, portanto, uma contradição irreconciliável e um antagonismo irredutível entre a democracia liberal e a idéia da organização corporativista da economia nacional. Mas, abstraindo-se da forma liberal-democrática de Estado, o corporativismo pode incluir-se na estrutura orgânica de qualquer regime político, uma vez que nele se reconheça o princípio fundamental da preponderância da coletividade sobre o indivíduo e do bem público sobre os interesses particulares de cada membro da sociedade.

No curso da análise que estamos fazendo do sistema corporativista em função do preceito da nova Constituição brasileira, que estipulou a ulterior organização da economia nacional em bases corporativistas, chegamos agora a uma questão vivamente interessante e que pode oferecer ensejo a controvérsia. Trata-se da determinação das relações entre a idéia corporativista e o regime capitalista. Segundo a opinião predominante nas correntes populares e mesmo conforme os pontos de vista sustentados por muitos teoristas da organização corporatista, haveria entre esta e o capitalismo uma oposição ideológica que se refletiria em incompatibilidade prática. Afigura-se-nos, porém, haver a esse propósito uma confusão decorrente da falta de devida apreciação dos aspectos atuais do sistema capitalista O suposto antagonismo entre o corporativismo e o capitalismo exprime o resultado do confronto entre a organização corporativa e o regime capitalista da época ultra-individualista. Se nos deslocarmos das configurações hoje passadas do capitalismo do século XIX para as realidades atuais do neocapitalismo promanado da produção em massa, seremos levados a concluir que uma organização corporativista da economia nacional, como a prescreve a Constituição de lO de Novembro no art. 14O e na letra a) do art.61, não e de modo algum compatível com esse moderno capitalismo. Longe disso, há mesmo entre as tendências do neocapitalismo e o sentido do corporativismo afinidades facilmente perceptíveis e das quais deve redundar fácil combinação harmoniosa dos dois sistemas na orientação das atividades econômicas do país.

O que tornava o antigo capitalismo individualista antinômico do corporativismo e fazia com que este não se pudesse adaptar à estrutura do Estado liberal-democrático era precisamente com a falta de identificação da economia liberal com o conceito da coordenação dos interesses individuais sob o ritmo predominante da ascendência do bem coletivo. Ora, o neocapitalismo surgido como efeito dos aperfeiçoamentos da técnica industrial, que determinaram a produção em massa, foi forçado pelos imperativos das condições econômicas inerentes à sua própria natureza a tomar como característica mais significativa da sua fisionomia um sentido nitidamente corporativo.

A etapa individualista do capitalismo já foi definitivamente transposta e é hoje apenas, uma fase passada no ciclo moderno da evolução econômica. Falar-se em individualismo, na acepção, que essa palavra tinha na linguagem dos economistas clássicos e dos seus continuadores ,da última metade do século XIX, é usar um vocábulo que perdeu a sua significação em face das situações criadas pelas realidades atuais. No jogo das forças do grande capitalismo contemporâneo, o indivíduo e as organizações particulares do empreendimento privado acham-se articulados em um sistema coordenado, cujas engrenagens funcionam segundo diretrizes traçadas em proveito de interesses incorporados nas órbitas de grupos associados para uma finalidade comum.

O trust, que como observamos em um dos capítulos anteriores foi uma das expressões iniciais do pensamento corporativista contemporâneo, já não constitui a forma final do sentido corporativista imposto ao grande capitalismo da produção em massa pelas injunções das novas técnicas de produção e distribuição da riqueza. Uma compreensão mais profunda e mais clara dos problemas que se apresentam naqueles setores, trazendo melhor conhecimento da correlação entre as condições da produção e os fenômenos observados nas situações dos mercados, levou o capitalismo contemporâneo a ir além do trust, nos seus métodos de coordenação nitidamente corporativista. As combinações tendentes a enfrentar vários aspectos dos problemas da economia das indústrias e a afastar as causas de perturbações comerciais representam, na realidade, um autêntico esboço de organização corporativista orientada pelos princípios da racionalização e do dirigismo econômico.

Poderíamos desenvolver este assunto acrescentando considerações e argumentos que viriam fortalecer o ponto ,de vista aqui afirmado. Mas parece-nos não ser necessário prosseguir, com risco de uma digressão demasiadamente longa, para consolidar a prova que julgamos ter dado de não existir entre o corporativismo e o neocapitalismo contemporâneo, que bem pode ser qualificado de capitalismo corporativo, nenhuma oposição ou incompatibilidade. Assim, a nova Constituição brasileira que, definindo os postulados da ordem econômica que estabelece, não se afasta das configurações do regime capitalista, é perfeitamente coerente com essa orientação ao prescrever que a economia nacional deverá ser organizada em bases corporativistas.

A organização corporativista da economia nacional seria, sem dúvida, irreconciliável com o individualismo inerente ao liberalismo econômico, do qual se encontram sobrevivências românticas em certas excentricidades contemporâneas, entre as quais basta mencionar o distributismo como uma das mais extravagantes características da mentalidade que tenta debalde reagir contra o sentido imposto à civilização pelos progressos da técnica científica. Mas a nova Constituição baseia-se em ideologia completamente diferente. O indivíduo, cujo valor e prerrogativas são reconhecidos explicitamente no texto constitucional, deve contudo submeter-se ao ritmo do interesse coletivo. Este postulado fundamental do Estado autoritário é também o princípio basal tanto da organização corporativa da economia como da estrutura do neocapitalismo da produção em massa. Não há pois contradição ideológica ou obstáculos práticos que venham a dificultar a evolução do regime capitalista no Brasil dentro da órbita de uma economia organizada em linhas corporativistas.

Encerrando as considerações sobre esse ponto, devemos observar tratar-se de matéria de natureza inteiramente nova e na qual as realizações futuras dependerão das lições da experiência, da análise cautelosa das realidades verificadas pelo exame objetivo do ambiente nacional e dos reajustamentos que dai resultarem para a solução dos problemas concretos da organização econômica. Não é possível fazer aprioristicamente programas completos sobre tal assunto. E o legislador constituinte mostrou claramente formar uma idéia lúcida de semelhante questão ao contentar-se em traçar diretrizes definidas deixando que as soluções concretas viessem a ser tomadas em harmonia com as realidades que se forem evidenciando.

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Um dos aspectos mais complexos e mais melindrosos na elaboração da ordem econômica, principalmente em se tratando de um país nas condições do Brasil, é a extensão da influência que as idéias nacionalistas podem exercer em um trabalho construtivo dessa natureza. As dificuldades a que aludimos são particularmente acentuadas na época atual, quando as correntes nacionalistas se manifestam por toda a parte com uma intensidade que repercute de modo profundo e, por vezes mesmo, perturbador no encaminhamento de todos os problemas políticos, econômicos e sociais.

Questão que sempre, sob uma forma ou outra, se apresentou em todos os tempos e em todas os lugares através do desenvolvimento histórico, o nacionalismo, com a fisionomia que atualmente lhe conhecemos, originou-se no início do período moderno com a unificação das monarquias européias Mas a idéia nacional, a princípio quase sempre identificada a peculiares interesses dinásticos, torna-se preponderantemente democrática da revolução francesa. É a partir da segunda crise revolucionária, que irradia ainda da França em 1848 o conceito nacionalista toma definitivamente a forma política do princípio das nacionalidades.

Sob a influência dessa doutrina, que se torna uma espécie de dogma na política internacional e em torno do qual se congregam os povos privados no todo ou em parte das suas prerrogativas nacionais, apoiados pelos Estados interessados em uma redistribuição do poder político, o mundo assumiu aspectos novos. Dois grandes Estados — a Itália e a Alemanha — unificaram-se, diversas nacionalidades balcânicas foram-se destacando do império otomano, as populações submetidas contra a sua vontade ao domínio de grandes nações desenvolveram uma consciência nacionalista que lhes viria assegurar, por ocasião do desfecho da guerra mundial, a situação de entidades políticas e independentes.

O ambiente em que, em 1919, a Europa foi reconstruída por uma série de tratados de paz, caracterizava-se pela nota de intenso nacionalismo que repercutia em todas as direções. Nacionalidades que se julgavam definitivamente extintas ressurgiram como nações soberanas. Os territórios foram reajustados de acordo com o critério da autodeterminação das respectivas populações, consagrado como princípio fundamental do novo direito internacional pelo Covenant da Liga das Nações. O espírito nacionalista manifestava-se com tal força que sob a sua influência se operavam verdadeiros prodígios, como o do reconhecimento do direito do povo de Israel a reconstituir na Palestina o seu lar nacional ao cabo de quase dois mil anos de dispersão.

A exaltação da consciência nacional caracterizou-se ainda pela acentuação em escala enorme de um traço peculiar ao nacionalismo contemporâneo. Até o fim do ciclo de afirmação das nacionalidades, iniciado no período napoleônico e tornado mais definido a partir de 1848 em face do chamado princípio das nacionalidades, as aspirações nacionais apresentavam um cunho exclusivamente político. Não havia entre a idéia da organização independente dos Estados, em harmonia com a fisionomia peculiar das suas etnias nacionais, qualquer conceito de isolamento econômico. Pelo contrário, as correntes intelectuais e políticas que propugnavam a causa dos nacionalismos achavam-se em geral associadas ao pensamento liberal ainda intimamente ligado às doutrinas livre-cambistas promanadas do economismo inglês que, desde a década de 40 do século XIX, adquirira ascendência na Grã-Bretanha com a vitória das idéias de Cobden, Peel e outros expoentes da escola de ~ Manchester.

Mas, já nos últimos anos do decênio de 70, Bismarck com a sua política de proteção aduaneira preludiava o que mais tarde evoluiu até as formas atuais do autarquismo e do quase-autarquismo. O exemplo da política alfandegária dos Estados Unidos, onde a importância esmagadoramente preponderante do mercado interno conduzia a uma situação justificativa de preocupações predominantes sobre a defesa contra a concorrência das importações estrangeiras, influenciou profundamente os economistas e estadistas da Europa continental, induzindo-os a uma orientação cada vez mais protecionista.

Esta corrente foi se avolumando em tais proporções que reagiu sobre a opinião inglesa e determinou no principal reduto do livre cambismo o surto de um movimento protecionista coordenado em 1903 por Joseph Chamberlain, sob a forma de um programa político prático. No seu famoso discurso pronunciado em Birmingham em Outubro daquele ano, Chamberlain, com o seu plano de solidariedade econômica de todas as partes do Império Britânico, formulou o primeiro programa autárquico.

Havia, pois, na atmosfera da Europa um conjunto de condições acentuadamente propicias à eclosão de um nacionalismo econômico ainda mais fortemente estimulado pelas paixões inflamadas durante os quatro anos de guerra. Esse nacionalismo atingiu, entretanto, proporções que se teriam julgado absurdas poucos anos antes. A experiência do prolongado conflito armado intensificara na consciência de todos os povos beligerantes e mesmo dos neutros o sentimento da relevância dos aspectos econômicos da atividade militar. Sem dúvida em todos os tempos esse fator entrara como elemento de grande peso na solução dos conflitos armados. Mas na guerra de 1914-18 a importância esmagadora do fator econômico patenteou-se de modo impressionante. Tão decisivo fora esse elemento no desfecho do conflito que um almirante inglês não hesitou em afirmar que a vitória fora alcançada pelas forças desarmadas, isto é, pelas forças de ordem econômica.

Era, portanto, natural que reconstituindo as peripécias da guerra cada nação cogitasse de organizar a sua economia por forma a assegurar-lhe na eventualidade de um novo conflito independência dos suprimentos de produtos de todo o gênero. A idéia autárquica tornou-se assim parte integrante das preocupações da defesa nacional. Mas não foram somente as grandes potências que se deixaram influenciar por essa preocupação de organizarem-se formando, tanto quanto possível, sistemas verticais de produção que lhes permitissem obter, dentro dos seus próprios territórios, o encadeamento de todos os elos do processo produtivo. Pequenas nações tentaram imitar essa política de isolamento econômico e, dentro em breve, a Europa apresentava o aspecto estranho de um mosaico de Estados separados uns dos outros por intransponíveis barreiras aduaneiras, reforçadas ainda por métodos de quotas de importação e pelas restrições do mercado cambial. As conseqüências anarquizantes de semelhante situação, contra a qual já estão reagindo os mais lúcidos economistas e homens de Estado, não poderiam ser aqui examinadas sem imperdoável desvio do rumo traçado neste livro.

Mas o que nos interessa assinalar é que, como todos os países civilizados e mesmo aqueles que ainda se acham no limiar da civilização, o Brasil sofreu a repercussão dessa ideologia que deslocava para o plano econômico o conceito político do nacionalismo. Infelizmente, todas as nossas condições atuais e as diretrizes que forçosamente temos de seguir para aprove1tar com eficácia o potencial econômico do nosso país estão em irreconciliável contradição com esse nacionalismo econômico.

O problema da expansão econômica do Brasil pode ser resumido na solução das dificuldades criadas pela desproporção esmagadora entre os nossos recursos de população, de capital e de capacidade técnica e as enormes possibilidades contidas na terra brasileira. A esse respeito os estadistas do Império compreenderam perfeitamente o que cumpria fazer afim de assegurar o desenvolvimento relativamente rápido das nossas forças econômicas potenciais. Sob a influência das idéias e da personalidade do grande Irineu Evangelista de Souza, depois Barão e Visconde de Mauá, (17), por volta do ano de 1850 foram adotadas várias leis e medidas tendentes a animar o afluxo de capitais estrangeiros ao país. Dessa política que o Império seguiu desde então e da qual a primeira República também não se afastou, e da entrada de imigrantes europeus em número que, a partir da década de 80 do século passado, se tornou bastante considerável, resultou o progresso econômico que conseguimos realizar nos últimos 90 anos.

As razões que justificavam semelhante política econômica eram decisivas e promanavam da análise objetiva das realidades contidas nos problemas práticos do nosso desenvolvimento nacional. Mas a lição da experiência foi, sobre esse ponto, tão esmagadoramente convincente que o Brasil não tem o direito de errar deixando-se empolgar por idéias surgidas no ambiente confuso e tempestuoso do pós-guerra como expressões efêmeras de uma exaltação temporária do que há de real e permanente no conceito do nacionalismo.

Entretanto, não seria justo mostrar excessiva severidade para com o legislador constituinte de 1937, por haver transigido com certas tendências desse exacerbado nacionalismo econômico de que não escapamos, porque é impossível evitar a contaminação de uma pandemia mundial.

Por certo as condições que ora se apresentam, impondo à organização do Estado alguns aspectos inteiramente novos e que têm de ser necessariamente adaptados a realidades de que outrora não se tinha uma consciência nítida, impõem precauções tendentes a salvaguardar os interesses especiais da economia nacional. Assim, há restrições que se enquadrando nas configurações das idéias do nacionalismo econômico são indiscutivelmente justificáveis. E cumpre também observar que medidas aparentemente inspiradas por preocupações de particularismo nacional em matéria econômica são de fato apenas providências razoáveis de caráter prático que visam amparar acertadamente interesses da nossa economia.

Neste caso, por exemplo, está o dispositivo do art. 145 da Constituição de 10 de Novembro determinando a nacionalização efetiva dos bancos de depósitos e das empresas que operam em seguros. Em ambos os casos a medida adotada pelo legislador constituinte vem defender legítimos interesses nacionais, impedindo a continuação de um estado de coisas que nenhuma razão válida justifica. Os bancos de depósito não operam com capital subscrito pelos seus acionistas, mas coletam no país capitais aqui produzidos para com eles fazerem as suas operações de desconto. É evidente que não temos interesse algum em que tais estabelecimentos de crédito sejam estrangeiros, por isso que eles não trazem para aqui capitais e, pelo contrário, retiram do país, para distribuir em dividendos pelos seus acionistas estrangeiros, os lucros resultantes das operações bancárias realizadas no nosso território. Não se deve esquecer que o dispositivo do art. 145 da Constituição afeta exclusivamente os bancos de depósito. Há, portanto, ampla liberdade para o estabelecimento no Brasil dos banco de inversão, isto é, de estabelecimentos bancários que venham operar com capitais próprios, aplicando-os em empréstimos às indústrias, à lavoura e a outras formas de atividade produtora.

O caso das empresas de seguro não reclamava menos a medida concretizada no citado dispositivo constitucional. Nenhuma vantagem resulta para o país das operações de seguros realizadas por empresas com sede no estrangeiro e que têm aqui apenas sucursais, ostensivas ou disfarçadas. Longe de cooperarem para o progresso econômico da nação, tais empresas representam verdadeiras sanguessugas, que drenam para fora das nossas fronteiras os avultados lucros que auferem aqui.

Igualmente merecedora de louvor é a medida contida no art. 149 que assegura a nacionalização efetiva da nossa marinha mercante. Além da parte daquele dispositivo que atende a uma questão de justiça para com os brasileiros que trabalham como embarcadiços e aos quais é necessário garantir oportunidade de emprego, há uma questão nacional da maior relevância, que não pode ser esquecida. Para o Brasil, é assunto de vital importância possuir uma frota mercante, que não somente nos proporcione meios eficientes de transporte marítimo de cabotagem e fluvial, como também suficiente tonelagem mercante de longo curso para a exportação de uma quota substancial das mercadorias que enviamos ao estrangeiro.

Este último aspecto da questão justifica cabalmente o legislador constituinte, ao exigir que os proprietários e armadores sejam brasileiros natos. Não basta realmente que uma empresa de navegação seja organizada como entidade nacional, para termos segurança de que os seus dirigentes não manobram muitas vezes em detrimento dos interesses comerciais do país, a fim de servir a conveniências de outras nações.

Não menos importante é a questão dos comandantes dos navios mercantes que arvorarem a bandeira nacional. As funções que esses comandantes terão de exercer no tocante à defesa nacional, em caso de emergência, bem como os inconvenientes que podem advir do emprego de pessoas que não inspirem implícita confiança no desempenho daqueles postos, bastam para justificar o dispositivo constitucional que tornou imprescindível o requisito de brasileiro nato para os capitães da nossa frota mercante.

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Não é possível encarar com a mesma simpatia outros dispositivos constitucionais versantes ainda sobre a organização econômica e nos quais transparecem os efeitos da condescendência do legislador para com certos preconceitos que nos últimos anos têm ,tido curso entre nós, com graves inconvenientes para os mais altos interesses do país. Desde a revolução de 1930, ao lado de manifestações de um sentimento nacionalista, em que se traduzia o sadio despertar da consciência da brasilidade, surgiram correntes, entre as quais algumas positivamente extravagantes, animadas todas por ostensiva ,ou disfarçada hostilidade ao capital, ao empreendimento e ao trabalho estrangeiros. ~a. Na Constituinte que elaborou o estatuto de 1934 essas tendências tiveram forte repercussão, vindo a refletir-se em dispositivos da lei básica de que nos achamos hoje felizmente desembaraçados. Desses dispositivos, um — o do §1o. do art. 119 da antiga Constituição — estipulava que as autorizações para a exploração de minas e quedas de água só seriam conferidas a brasileiros ou a empresas organizadas no Brasil. Outra determinação daquele estatuto nacional — a do § 6o. do art. 121 — preceituava que a entrada de imigrantes ficasse sujeita ao regime das quotas, não podendo exceder anualmente de dois por cento do total de indivíduos de cada nacionalidade, introduzidos no país durante os últimos cinqüenta anos.

Examinemos esses dois pontos, cuja relevância sob múltiplos aspectos não precisa, ser acentuada. Em ambos os casos, o legislador constituinte de 1937 transplantou para a nova organização nacional os dispositivos da lei básica que a precedera.

A restrição imperativa da exploração das minas e das quedas d'água, como fontes de energia hidroelétrica, a brasileiros e a empresas estrangeiras foi tornada ainda mais severa pelo §1o.do art. 143 da nova Constituição, que não se contenta em prescrever que as empresas concessionárias devam ser organizadas no Brasil, mas exige explicitamente que sejam brasileiros os acionistas de tais empresas. O legislador constituinte conformou-se nesse ponto com as tendências mais radicais do nacionalismo econômico no tocante à matéria em apreço. Vejamos se o dispositivo naquele texto constitucional se justifica por injunções ditadas pelos interesses e pela segurança da Nação e se da aplicação de tal preceito advirão vantagens para o desenvolvimento da economia brasileira.

A exploração das reservas minerais contidas no subsolo do país e o aproveitamento das fontes de energia hidroelétrica na medida que o reclamarem as necessidades crescentes do consumo da eletricidade são elementos básicos para o prosseguimento de um esforço concatenado e racionalizado de expansão da riqueza e de elevação do nível cultural e social da nacionalidade. Reconhecida como axiomática essa verdade, cumpre indagar quais os meios ao nosso alcance para promover a exploração das minas e o aproveitamento das quedas de água.

A solução de ambos os problemas depende evidentemente da inversão de capitais e do emprego de atividades técnicas de caráter especializado. Ora, não dispomos no Brasil de reservas capitalistas que, mesmo quando mobilizadas com a máxima eficácia, possam nos fornecer os capitais requeridos para a mineração intensiva e para a utilização técnica das fontes de energia concretizadas nas quedas de água. Em tais circunstâncias, não é possível abordar satisfatoriamente os dois problemas em foco sem recorrermos à colaboração das reservas capitalistas existentes em outros países, sendo também altamente improvável que possamos dispensar o concurso do empreendimento e da competência técnica de estrangeiros.

Esquivarmo-nos a reconhecer essas verdades eqüivale a nos afastarmos da atitude objetivista em face da realidade nacional, que caracteriza a ideologia do Estado Novo e imprime um sentido prático inconfundível ao regime que acaba de ser estabelecido, Compreende-se que na democracia liberal o legislador se visse coagido a transigir com preconceitos difundidos na opinião pública. Isso era inerente à própria natureza do regime liberal. Mas o Estado autoritário foi exatamente organizado para que a influência perturbadora de idéias errôneas, estimuladas pelas manobras da demagogia, não desviasse o Estado das diretrizes traçadas de acordo com a análise racional dos problemas que tinham de ser solucionados. E é forçoso confessar que, cedendo à pressão de um radicalismo fanático em matéria de nacionalismo econômico, o legislador constituinte de 1937 incluiu no novo estatuto da República, com o dispositivo do §1.° do art. 143, um obstáculo gravíssimo à expansão econômica do Brasil.

Em uma fase de renovação nacional como aquela em que estamos entrando e na qual a cada cidadão cumpre cooperar com o melhor dos seus esforços para a obra de que o Estado Novo é o instrumento de realização, parece-nos que não é lícito a ninguém relutar em pronunciar-se com sinceridade e clareza sobre assuntos de que literalmente depende o êxito do novo regime. O Brasil, dentro das configurações que lhe traçou a Constituição de 10 de Novembro, tem, como nunca teve através de toda a sua evolução, possibilidades de progredir com segurança, desenvolvendo-se nas múltiplas expressões da sua atividade coletiva. Mas não nos iludamos sobre a natureza crítica da grande experiência que o Presidente Getúlio Vargas teve a coragem de iniciar tornando-se credor do reconhecimento nacional pela firmeza com que se sobrecarregou de uma tremenda responsabilidade histórica.

O Brasil vai finalmente pôr à prova a sua capacidade de tirar partido dos elementos potenciais de grandeza que possui para tornar-se a Nação poderosa, rica, próspera e culta tantas vezes idealizada pelo patriotismo dos bons brasileiros. O êxito dessa experiência decisiva está vinculado ao sucesso do Estado Novo. Mas este, para identificar-se definitivamente com a Nação nos termos delineados pela ideologia do regime, precisa no mais próximo futuro dar a medida das suas possibilidades através de realizações demonstrativas da eficácia da nova maquinaria governamental.

A obra do Estado Novo é certamente complexa e abrange tanto problemas de ordem material como questões colocadas no plano da cultura e das expressões do espírito. Mas seria quase pueril o esforço, para disfarçar os traços inconfundíveis do problema geral que nos defronta, ocupando na sua extensão todo o quadro panorâmico da atualidade brasileira.

A questão imediata que se apresenta hoje neste país, reclamando pronta solução, é a do desenvolvimento intensivo das nossas atividades produtoras e a coordenação destas, de modo a que possamos passar quanto antes a um nível econômico superior. Os problemas que se inserem na ordem espiritual, o aperfeiçoamento cultural e social das massas e o próprio saneamento das nossas populações desvalorizadas pelas endemias e pela subalimentação, são outros tantos casos que só poderão ser abordados com êxito depois de termos nos emancipado das condições econômicas inferiores em que vivemos. Debalde contestarão esta verdade primacial os pseudo-idealistas que querem construir começando pela cumeeira do edifício.

A passagem de uma economia de escassez para uma economia de abundância é a preliminar necessária ao impulso das outras atividades que realizam, no plano cultural e social, a obra da civilização e do progresso espiritual. A própria segurança do Estado e da sociedade acha-se vinculada a essa transformação do tipo econômico. Não é mero acidente fortuito a diferença que notamos entre a maneira como, nas nações de economia adiantada, se desenvolvem as oposições dos interesses sociais sem que se precipitem crises violentas, e o modo invariavelmente tempestuoso em que se manifestam análogos choques nos países economicamente atrasados. Aliás, o determinismo do que acontece respectivamente nos dois casos foi lucidamente analisado por um dos mais sagazes expoentes da nova escola de economistas americanos. (18).

O Estado Novo contém na sua ideologia e nas possibilidades dinâmicas da sua estrutura orgânica as melhores promessas de manutenção da estabilidade política, da ordem social e do progresso moral da nacionalidade. Para que isso entretanto se torne uma realidade é imprescindível que passemos da pobreza em que nos estamos atrofiando e perdendo as maiores oportunidades para ascendermos ao plano superior de uma economia de abundância.

Mas esse progresso econômico só o poderemos realizar promovendo o afluxo de capitais estrangeiros explorando por meio dele as riquezas naturais do país até, que, como forçosamente terá de acontecer, formemos as nossas próprias reservas capitalistas, o que nos permitirá então dispensar a colaboração de estranhos. Embaraçar, no momento atual da evolução brasileira, a entrada livre de capitais e a ação ampla do empreendimento estrangeiro é criar obstáculos irremovíveis, não apenas ao nosso progresso material, social e cultural, como também impedir que se removam as causas de instabilidade política e de insegurança da sociedade. Restrições ao capital e ao empreendimento estrangeiros, como as que decorrem do dispositivo do §1o. do art. 143 da Constituição, têm um efeito duplamente negativo sobre a propulsão do nosso desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, reduzem, ao ponto de anulá-las praticamente, as possibilidades de exploração das reservas minerais e do aproveitamento que no futuro for necessário das fontes de energia hidroelétrica. Realmente, não havendo no Brasil capitais para tais empreendimentos é claro que sem o concurso da cooperação estrangeira eles serão irrealizáveis. Além desse efeito imediato, temos a considerar a repercussão que um preceito constitucional tão eivado de acanhado nacionalismo econômico virá forçosamente a ter fora das nossas fronteiras, dando ali uma impressão, aliás falsa, de hostilidade brasileira ao capital e ao empreendimento estrangeiros.

Não poderemos, entretanto, nos queixar desse efeito nocivo e do qual redundará certamente a relutância no encaminhamento do capital de outros países para serem invertidos aqui nas aplicações a que não se opõem obstáculos constitucionais. Nada tem realmente de surpreendente que se encare no estrangeiro como sintoma de uma fobia ao capital alienígena o fato de um país que não tem reservas capitalistas opor embargo ao emprego de capitais exóticos na exploração de riquezas cujo aproveitamento deve constituir a base fundamental da sua expansão econômica.

Contrariando interesses vitais da economia nacional aquele dispositivo constitucional não se justifica por nenhuma razão atinente à segurança do país. A aplicação de capitais estrangeiros na exploração de minas, na utilização de quedas de água bem como nas indústrias básicas não pode em circunstância alguma imaginável criar dificuldades ou perigos. O controle exercido pelo Estado, ainda mais fácil nas condições do atual regime autoritário, assegura a todo tempo ação fiscalizadora eficaz para a salvaguarda dos interesses de ordem econômica ou de outra natureza que a Nação pudesse ter em jogo na matéria em apreço. Teria sido conveniente e mesmo necessário que se exigisse, para os casos citados, a exploração por empresas organizadas sempre no país, sob o regime das nossas leis. Bastaria esta medida para que com o correr do tempo e com a formação das nossas próprias reservas capitalistas, o que adviria certamente da expansão econômica determinada pelo afluxo de capitais estrangeiros, aquelas empresas viessem a ter as suas ações absorvidas por brasileiros. O exemplo da história econômica dos Estados Unidos é suficiente para demonstrar ser esse o curso normal de transformação econômica que se opera nos países cujo desenvolvimento é realizado pela importação de capitais.

Não se pode, portanto, deixar de lamentar que o legislador constituinte tivesse transigido com os preconceitos do nacionalismo econômico, incluindo no texto do novo estatuto nacional um dispositivo que poderá embaraçar consideravelmente a obra reformadora e construtora do Estado autoritário. É certo que, tanto no espírito da Constituição de 10 de Novembro como em explícitas declarações do Presidente da República, têm se patenteado pela forma mais inequívoca as disposições acolhedoras do novo regime para com os capitais estrangeiros. Mas, das citados dispositivos constitucionais e, até certo ponto, também do que preceitua o art. 144, deduz-se que para transpor o obstáculo decorrente do excesso de nacionalismo econômico será o próprio Estado que terá de levantar capitais para explorar, diretamente, ou por intermédio de empresas nacionais, aquelas atividades econômicas básicas. O primeiro desses alvitres ofereceria graves inconvenientes. O Estado autoritário do tipo estabelecido hoje entre nós é intervencionista na esfera econômica, mas, como se infere de sua natureza e também de dispositivos explícitos na Constituição, o poder estatal reserva-se a exercer, no plano das atividades econômicas uma função complementar além do papel coordenador que lhe cabe precipuamente Não se acha portanto em harmonia com esse conceito da missão do Estado em assuntos econômicos conferir-lhe funções industriais, senão nos casos especiais em que os interesses públicos o aconselham.

Assim, a idéia da exploração direta de minas, fontes de energia hidroelétrica e da indústria pesada pela administração nacional infringiria o plano geral de organização econômica delineado no estatuto de 10 de Novembro e que se baseia nas iniciativas privadas, sobre as quais cumpre ao Estado, entretanto, exercer o controle inerente a uma das suas primaciais finalidades. Além de implicar, por esse motivo, em uma queda da harmonia do regime, imprimindo-lhe uma fisionomia de certo modo afim do tipo das organizações totalitárias, há a considerar-se os defeitos inseparáveis da administração estatal em matéria industrial. Temos o direito de esperar e podemos mesmo depositar confiança nos resultados das reformas que o regime autoritário tornará possíveis e das quais redundará sem dúvida muito maior eficiência no funcionamento de todas as engrenagens administrativas do Estado. Mas, ainda em tais condições, o rendimento econômico das citadas explorações industriais será muito acentuadamente reduzido se as iniciativas privadas forem substituídas pela ação direta do governo.

A segunda alternativa, isto é, a organização de empresas nacionais a que o Estado supriria recursos obtidos pelo apelo ao crédito do país será incontestavelmente muito preferível. Não se deve contudo esquecer que em semelhante hipótese teríamos de retornar ao antigo sistema dos empréstimos externos realizados pelo poder nacional. Ora, razões de ordem prática facilmente apreciáveis e sobretudo as lições da nossa história financeira tendem a aconselhar que se prefira sempre evitar empréstimos públicos no exterior, deixando que os capitais estrangeiros venham a inverter-se no país sob a forma de aplicações no empreendimento privado.

Os dispositivos constitucionais que criticamos nas páginas precedentes impedirão pois o aproveitamento em maior escala, e sob a forma mais desejável dos capitais estrangeiros, que nos são imprescindíveis para promovermos a expansão econômica do país. Esse fato é tanto mais lastimável quanto a situação política e social criada agora pelo advento do Estado autoritário é de molde a incentivar em proporções muito maiores que no passado o afluxo de capitais estrangeiros ao Brasil.

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Não menos infeliz foi outra transigência do legislador constituinte em relação aos preconceitos inspirados por uma perversão da idéia nacionalista no tocante ao problema da imigração. Razões de ordem étnica, motivos políticos, sociais e econômicas e considerações atinentes à segurança nacional impõem ineludivelmente certas medidas que afastem possíveis inconvenientes e perigos decorrentes da imigração não fiscalizada. Encarando a questão sob o ponto vista eugênico, quando este assunto ainda não interessava à opinião pública, como aconteceu mais tarde, tivemos ensejo de pleitear a adoção de providências que assegurassem o controle efetivo do poder federal sobre a entrada de imigrantes no país. (19). Mas há uma enorme diferença entre a determinação de regras restritivas do afluxo de imigrantes indesejáveis e a oposição sistemática de barreiras a elementos de que carecemos imperiosamente não apenas como unidades trabalhadoras mas, em escala não menos considerável, como fatores necessários no processo de caldeamento em que se está formando a etnia brasileira.

A entrada de correntes imigratórias de origem européia é realmente uma das questões de maior importância na fase de evolução que atravessamos e não é exagero afirmar-se que do número de imigrantes de raça branca que assimilarmos nos próximos decênios depende literalmente o futuro da nacionalidade.

Sob o ponto de vista econômico, valor do imigrante europeu não pode mais ser matéria de controvérsia. Uma análise retrospectiva do desenvolvimento da economia brasileira desde o último quartel do século XIX põe em evidência um fato que aliás nada tem de surpreendente porque nele apenas se reproduzia, em maiores proporções ainda, o que já ocorrera em fases anteriores da evolução nacional. As regiões para onde fluíram os contigentes de imigrantes europeus receberam um impulso progressivo que as distanciou de tal modo das zonas desfavorecidas de imigração, que entre as primeiras e as últimas se formaram diferenças de nível econômico e social, cujos efeitos justificam apreensões políticas. Enquanto nas províncias que não recebiam imigrantes em massa se observava marcha lenta do desenvolvimento econômico e social, quando não positiva estagnação do movimento progressivo, as regiões afortunadas a que iam ter em caudal continua as levas de trabalhadores europeus foram cenário de surpreendentes transformações econômicas de que temos. os exemplos mais impressionantes em S. Paulo e no Rio G. do Sul. Aliás, aconteceu entre nós o mesmo que por toda a parte onde nações novas surgem e prosperam com a cooperação de elementos colonizadores vindos de países mais adiantados e habitados por povos de raças antropologicamente superiores.

No Brasil, como acima observamos, os efeitos da recente fase imigratória constituíram repetição do que já se passara durante o período colonial. O primeiro surto de progresso verificado no Brasil depois da etapa inicial da colonização foi ,o resultado ,do afluxo de imigrantes atraídos para aqui, desde meados do século XVII, sob a influência da fascinação exercida pela mineração do ouro e dos diamantes. A atividade trabalhadora e ao espírito empreendedor dos elementos que caracterizaram a fase de colonização a que aludimos deveu o Brasil um surto de progresso cujas verdadeiras proporções não nos parecem terem sido ainda devidamente avaliadas pelos nossos historiadores. Os imigrantes que, atravessando o oceano, seguiam para trabalhar como garimpeiros e faiscadores no altiplano não restringiam a influência benéfica do seu trabalho civilizador aos limites da província das Minas. Dali irradiou por todo o Brasil um espírito novo, que deu um impulso notável às formas de produção peculiares às outras regiões do país.

Diante de exemplos remotos e de lições tão recentes do valor da imigração, seria supérfluo insistir sobre este tema. A. questão porém, apresenta outro aspecto de alcance ainda maior. Primando sobre todos os problemas que se entrelaçam com os destinos da nacionalidade, aparece destacada a incógnita da nossa formação étnica. Somos por enquanto apenas uma população que representa os elementos donde surgirá, após o torturante trabalho do caldeamento, a futura etnia brasileira. Antecedentes históricos de caráter inevitável, e circunstâncias múltiplas que se encadearam no decurso da nossa evolução imprimem hoje ao problema da plasmagem da etnia nacional aspectos perturbadores e nos quais se inserem imprevisíveis possibilidades. O homem branco, que em quatro séculos de desenvolvimento da nacionalidade tem sido o fator preponderante ou antes quase exclusivo da obra civilizadora, está em concorrência, no processo de caldeamento étnico, com os elementos representados por duas raças profundamente diferentes dele. E esses elementos não são apenas divergentes, mas visceralmente antagônicos aos valores europeus personificados no Brasil pela raça fundamental que imprimiu os traços primaciais do estilo da nacionalidade e nos deu o sentido do progresso que temos realizado.

O problema étnico brasileiro — chave de todo o destino da, nacionalidade — resume-se na determinação de qual virá a ser o fator da tríplice miscigenação que aqui se opera a que caberá impor a ascendência no resultado definitivo do caldeamento. É claro que somente se tornará possível assegurar a vitória étnica dos elementos representativos das raças, e da cultura da Europa se as reforçarmos pelo afluxo contínuo de novos contingentes brancos. Os obstáculos opostos à imigração de origem européia constituem portanto dificuldade deliberadamente criada ao reforçamento dos valores étnicos superiores de cujo predomínio final no caldeamento dependem as futuras formas estruturais da civilização brasileira e as manifestações do seu dinamismo econômico, político, social e cultural.

Não podemos, pois, deixar de lamentar que o legislador constituinte, com o dispositivo do art. 151, que é aliás a reprodução do que já havia sido erradamente estipulado no § 6.° do art. 121 ,da efêmera Constituição de 1934, estabelecesse o regime das quotas, inteiramente inadequado às condições do caso brasileiro. e impróprio para solucionar os problemas imigratórios especiais que nos devem merecer atenção

O regime das quotas, como se pode depreender do simples exame da questão, pressupõe a formação completa, ou pelo menos muito adiantada, de uma etnia nacional definida. Exatamente da análise da comparticipação percentual de diferentes correntes raciais na plasmagem dessa etnia, é que se deduz quais devam ser as quotas com que, de certo momento em diante, cada uma das raças formadoras contribuirá para a população nacional. O objetivo desse sistema é evidentemente impedir que um desequilíbrio entre as novas quotas de cada grupo de imigrantes acarrete uma alteração indesejável nas proporções dos elementos constituintes da etnia nacional. Foi com esse critério, por exemplo, que nos Estados Unidos se estabeleceu o regime das quotas.

No caso brasileiro, tal sistema não pode ter aplicação. A nossa etnia está ainda longe do período final de cristalização. E, como acima ponderamos, os mais altos interesses nacionais impõem que se faça entrar no país o maior número possível de elementos étnicos superiores, a fim de que no epílogo do caldeamento possamos atingir um tipo racial capaz de arcar com as responsabilidades de uma grande situação.

Além do erro fundamental contido na transplantação de uma idéia que nenhuma correlação apresenta com as condições do nosso problema imigratório, há no art. 151 da Constituição outro erro, em que já havia incidido a Constituinte elaboradora do estatuto de 1934. 0 regime das quotas, inaplicável ao Brasil. repetimo-lo ainda uma vez, torna-se mais absurdo no nosso caso pela adoção de um padrão uniforme para todos os grupos imigratórios. O período de cinqüenta anos dado como base de cálculo foi exatamente aquele em que mais avultada foi a imigração subsidiada, redundando daí a entrada em larga escala de imigrantes de certas nacionalidades. Com a aplicação aos regimes das quotas, esses imigrantes, que em certos casos não são sob o ponto de vista étnico e mesmo político mais desejáveis que outros, entrarão no país em número preponderante. Basta dizer que os portugueses, evidentemente os melhores elementos imigratórios que podemos receber, ficarão em posição inferior a elementos colonizadores de outras nacionalidades.

A política imigratória, definida no art. 151 do novo estatuto nacional, prejudica interesses econômicos e representa um embaraço ao encaminhamento satisfatório do nosso caldeamento racial Sob este último ponto de vista, aquele dispositivo peca ainda por não armar o poder nacional com meios eficazes para aplicar medidas especiais de defesa contra correntes imigratórias inassimiláveis e que politicamente podem vir a constituir perigo para a integridade nacional.

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Antes de encerrarmos as considerações tecidas neste capítulo em torno da organização econômica definida pela nova Constituição, devemos tocar em uma questão de intensa atualidade. No meio da efervescência de idéias e sugestões inspiradas pelas, correntes econômicas e políticas, orientadas no sentido do dirigismo, o papel do Estado na planificação das atividades produtoras dá nação ocupa lugar muito saliente.

A idéia de planificação pode ser encarada como a mais ampla expressão das tendências do dirigismo econômico. Em outras palavras e exprimindo melhor o pensamento, poderemos dizer que na planificação se sintetizam todos os objetivos para os quais convergem as tendências e os esforços dos que pleiteiam a passagem de uma economia empírica para um regime de sistematização racionalizada na produção da riqueza e na sua distribuição.

Desde que as sociedades humanas transpuseram o círculo primitivo de uma vida simples, na qual a produção era promovida exclusivamente pela consciência da necessidade de suprir o grupo com as coisas de que carecia, um fator novo apareceu como força motriz da ação econômica. A especialização de funções, no seio de uma sociedade que evoluía assumindo forma mais complexa, determinou na esfera da economia a eclosão de atividades peculiares exercidas em torno da produção com o objetivo precípuo de obter lucros da satisfação das necessidades do consumo coletivo.

Todo o desenvolvimento econômico através do longo processo da evolução humana girou invariavelmente em torno da idéia de lucro associado à produção e distribuição das coisas que eram procuradas para consumo e uso pela coletividade. Aplicando-se aos fenômenos econômicos a noção hegeliana do desenvolvimento dialético, deveremos qualificar essa fase da expansão e complicação crescente das atividades da produção e da distribuição da riqueza como a etapa antitética da situação inicial em que o sentido da economia primária era nitidamente caracterizado pela finalidade de servir aos interesses sociais. Com a marcha progressiva do movimento de plasmagem de organizações humanas cada vez mais extensas e complexas, a idéia do lucro, isto é, do aproveitamento das necessidades econômicas da sociedade em benefício dos indivíduos e dos grupos empenhados no trabalho produtivo da riqueza e da sua distribuição, assumiu ascendência incessantemente maior. O epílogo dessa marcha evolutiva da economia das nações foi o individualismo, que se tornou, no século XIX, um dos aspectos essenciais do regime liberal-democrático.

Com a reação anti-individualista e anti-liberal que vem caracterizando o pensamento sociológico do século atual, delineia-se uma tendência inequívoca ao retorno à atitude originária do espírito humano em face das atividades econômicas Em um plano superior voltamos ao conceito da produção em benefício da coletividade e não mais como meio de proporcionar apenas lucros aos que se acham empenhados na produção e distribuição das coisas que a sociedade usa e consome

A diferença radical entre o ponto de vista em que ora se colocam os expoentes das tendências atuais e aquele em que se achavam os economistas, e a opinião pública do século passado define-se em um fato inconfundivelmente, significativo A produção era, para os homens das gerações anteriores, o aspecto exclusivamente importante do processo econômico. O consumo só valia em função das reações; que determinava sobre os interesses e conveniências dos grupos produtores. Por certo, esta idéia ainda impera refletindo-se em todos os aspectos da economia contemporânea, e uma parte ainda preponderante das preocupações do dirigismo orienta-se em sentido claramente associado ao conceito do predomínio dos interesses da produção sobre os da coletividade consumidora.

Entretanto, como base lógica das atuais idéias sobre planificação econômica, o que já se destaca é uma inversão da ordem estabelecida através de um processo muitas vezes milenário e culminada nos tempos modernos pela forma que acima apontamos. O conceito fundamental da idéia de planificação é submeter as atividades produtoras ao ritmo determinado pelas necessidades de consumo e por conveniências particulares da coletividade social

Este ponto de vista não promanou de uma elaboração ideológica que tivesse transformado o ambiente em que atuava o pensamento econômico. Foram, antes os efeitos exercidos pela pressão de condições que se vêm agravando há muitos anos, assumindo desde a, crise de 1929 a forma de dificuldades ameaçadoras, que impeliram tanto os teoristas, como os economistas práticos e os estadistas, a compreender a necessidade urgente da passagem de uma situação cheia de possibilidades anarquizantes para um regime de racional, adaptação da produção às necessidades sociais. O reconhecimento desses aspectos imediatos dos problemas práticos da economia contemporânea impressionou sobretudo a plêiade de novos interpretadores dos fenômenos econômicos, surgida nos últimos decênios nos Estados Unidos.

Originada sob a influência do formidável trabalho criador: com que Thorstein Veblen abalou a estrutura das idéias clássicas do economismo americano, essa escola, que é antes uma brilhante falange de choque de inteligências vibrantes e renovadoras, está hoje imprimindo o sentido das suas tendências como diretrizes da política de reconstrução econômica à cuja frente se acha o Presidente Franklin Roosevelt. O sentido. desse movimento de transformação da velha tábua de valores orienta-se inconfundivelmente para a idéia da planificação como conceito básico da reorganização das atividades econômicas com a finalidade superior do bem público. Racionalizar para organizar e organizar para que se estabeleça uma correlação harmônica entre o esforço produtor e as conveniências da coletividade é, em última analise, o programa da obra reconstrutora com que se identificou o grande estadista que governa os Estados Unidos.

O “New Deal” destaca-se assim no mundo contemporâneo como a mais completa e audaciosa experiência planificadora até hoje tentada dentro das configurações do regime capitalista. E nada é mais característico da mentalidade de Franklin Roosevelt e, podemos acrescentar, também da atmosfera atual dos Estados Unidos do que a repercussão direta, imediata e inequívoca das idéias dos expoentes da nova economia na obra renovadora da administração americana. (20).

Com a revolução assim operada na estrutura econômica e no dinamismo das atividades produtoras dos Estados Unidos, a economia planificada integrou-se definitivamente como método normal de organização da produção e da distribuição da riqueza no mundo contemporâneo. De ora em diante poderão contraditar-se fórmulas especiais relativas aos programas de planificação. Mas a idéia do plano econômico está definitivamente firmada na consciência universal. Ao empirismo da economia prática opõe-se agora incontrastavelmente vencedor o conceito de uma planificação racionalizada, que deverá criar a ordem onde impera o caos, expressão final dos efeitos sucessivamente acumulados pela ação do individualismo liberal na esfera econômica

A planificação, que a circunstância de haver sido iniciada na Rússia Soviética generalizara a impressão falsa da sua inadaptação às condições do regime capitalista, não depende das configurações peculiares de qualquer organização econômica ou da forma estrutural do Estado. Sem dúvida, certos reajustamentos tornam-se necessários para harmonizar as diretrizes de um plano econômico com as condições especiais da organização nacional a que ele se adapta. Mas, como o “New Deal” americano o está demonstrando, esse processo de adaptação não reclama alterações do estilo de economia com que se tem de lidar.

Há, porém, um ponto essencial. Qualquer planificação exige forçosamente um órgão central coordenador, suficientemente poderoso e capaz de atuar em todos os setores das atividades econômicas e sociais, de modo a assegurar o êxito do plano elaborado. Essa força dirigente da planificação só pode ser o Estado.

Mas, se ao Estado deve ser atribuído um papel insubstituível em qualquer planificação da economia, é preciso não perder de vista os inconvenientes que resultariam da concentração de todas as atividades coordenadoras no círculo exclusivo da ação estatal As experiências totalitaristas a que já tivemos ocasião de aludir devem ter trazido a todos os estudiosos destes assuntos a convicção de que, por mais imprescindível que seja a intervenção do poder público na esfera econômica, não lhe é possível solucionar os problemas que nela surgem por uma forma arbitrária e à revelia das forças que ali representam as iniciativas privadas. Assim, a planificação só pode ser elaborada em harmonia com os elementos supridos pela realidade da vida econômica. nacional se entre o Estado e as entidades representativas do empreendimento privado se estabelecer um entrelaçamento de esforços orientado para a solução dos problemas especiais em apreço. Essa cooperação é imprescindível para o êxito de qualquer planificação, seja esta restringida. a um setor da produção apenas ou se trate de um plano econômico em linhas nacionais. Apoiando-nos em uma das maiores autoridades, nesta matéria, o economista inglês Cole, (21), podemos, portanto, aceitar como princípio básico da planificação o reconhecimento de que sem a intervenção do Estado qualquer coordenação econômica, tendo por finalidade o desenvolvimento de um plano de produção racionalmente encadeado, não pode ser encarado como viável. As idéias de planificação figuraram entre as que na Constituinte da segunda República mereceram ser adotadas e concretizadas em dispositivos do estatuto de 1934. Assim, o art. 16 das Disposições Transitórias da antiga Constituição prescrevia a elaboração imediata de um plano de reconstrução econômica nacional.

Esse preceito, como tantos outros que figuravam naquele estatuto político, dava bem a medida da ausência de realismo que caracterizou de um modo geral a ação dos constituintes que elaboraram a lei básica de 1934.

Realmente, estipular em termos vagos o preparo imediato de um plano de reconstrução nacional bastava para revelar, por parte dos autores desse dispositivo, a incompreensão da extrema complexidade e das enormes dificuldades apresentadas por um trabalho daquela natureza. Um plano de organização econômica nacional é um dos empreendimentos para o qual o Brasil não se acha no momento atual equipado com os elementos imprescindíveis para a realização de obra de tais proporções. Planificar em conjunto a economia brasileira exigiria o balanço do nosso potencial econômico, o que implica em uma determinação mais ou menos precisa dos recursos e das fontes de riqueza existentes no país. Igualmente necessário seria coligir dados estatísticos de ordem econômica que pudessem trazer esclarecimento mais ou menos completo dos meios de que dispomos para abordar os problemas atinentes à exploração dos recursos naturais do país. Seria supérfluo argumentar para pôr em evidência a desproporção entre a nossa capacidade atual e esses trabalhos preliminares a qualquer empreendimento de planificação racional da nossa economia.

Assim, como se devia esperar, o artigo constitucional que mandava elaborar imediatamente o plano de reconstrução econômica foi relegado ao esquecimento a que antecipadamente se podia prever estar destinado. Que nos conste, apenas dois membros da Câmara dissolvida trouxeram contribuições individuais em que se reflete distintamente o pensamento de atender de certo modo ao imperativo preceito constitucional sobre a organização de um plano sistemático de reconstrução econômica. Um deles foi o deputado Artur Neiva que, em relatório apresentado em Setembro de 1935 à Comissão Mista de Reforma Econômico-Financeira (22), coligiu idéias relativas a vários dos nossos mais prementes problemas econômicos, formulando sugestões muitas das quais de grande interesse e algumas de indiscutível valor. Outra iniciativa análoga correu por conta do representante classista, snr. Roberto Simonsen, (23) que, em discurso pronunciado no plenário da Câmara em 11 de Setembro de 1935, esboçou com a sua reconhecida competência em assuntos dessa natureza uma análise dos aspectos capitais da nossa atualidade econômica, adiantando também idéias construtivas coordenadas sob a inspiração de uma orientação sistemática definida. O problema de uma planificação econômica, dentro de cuja órbita venha a tornar-se possível o desenvolvimento racional e coerente das forças produtoras do país, apresenta a mais viva atualidade diante das possibilidades que o Estado Novo oferece para a solução de questões desta categoria. O legislador constituinte de 1937 demonstrou, a esse propósito, uma compreensão realística das condições objetivas da vida nacional que o distingue nitidamente da atitude utopista dos que preceituaram, em 1934, a planificação imediata das atividades econômicas do Brasil. Não há no texto da Constituição de 10 de Novembro um dispositivo aludindo explicitamente à coordenação de esforços especializados no sentido da elaboração de um plano econômico Mas em todo o capítulo concernente à organização da economia nacional articulam-se dispositivos que, embora aparentemente não tenham relação direta com as idéias de planificação, representam contudo os elos de uma cadeia que no seu conjunto virá a formar a série de elementos convergentes para a realizarão de um plano construtivo sistemático

Um plano econômico pressupõe a organização prévia de uma ordem racionalmente coordenada e sobre a qual se deverá apoiar o conjunto de medidas tendentes à planificação das atividades produtoras. Foram esses alicerces que a Constituição de 10 de Novembro acertadamente lançou e, uma vez desenvolvidas as possibilidades potencialmente contidas nas medidas ali prescritas e reunidos os elementos de outra natureza que o empreendimento requer, o preparo de um plano econômico poderá ser levado por diante com firmeza e esclarecida orientação racional.

Entretanto cumpre observar que, a garantia de uma coordenação coerente de todas as medidas que se relacionam com as atividades econômicas do país, o que já representa um ponto de partida sólido para trabalhos de planificação ulterior, é assegurada pelo dispositivo do art. 65 da Constituição, que prescreve a intervenção invariável do Conselho da Economia Nacional como elemento técnico colaborador das leis que se enquadram no setor econômico.


VII. AUTORIDADE E LIBERDADE.

 

Conceito da liberdade — Liberdade individual e interesse coletivo — Liberdade no plano econômico — A prerrogativa do espírito — Liberdade e a função educativa do Estado.

 

Todas as teorias do Estado concebidas aprioristicamente como um plano sobre o qual se devem moldar as instituições em obediência a configurações ideológicas previamente traçadas e definidas, postulam o estabelecimento de certas relações entre o indivíduo e a sociedade, dando lugar a uma situação permanente de equilíbrio que o legislador deve tornar estável por meio de instituições assecuratórias de uma ordem tão inalterável quanto possível. Pondo de parte modelos que iríamos encontrar através da história da civilização, exemplificando organizações desse tipo elaboradas pelos povos mais diferentes, examinaremos apenas o que se passa em nossos dias, fixando a atenção sobre formas de estrutura estatal contemporâneas, que divergem sensivelmente no estilo mas que obedecem, na essência da sua configuração estrutural, à influência do apriorismo doutrinário a que aludimos.

Tanto no Estado soviético como no Estado fascista, dois tipos inconfundivelmente característicos de organizações políticas rigorosamente adaptadas à órbita intransponível de uma ideologia rígida, as relações entre o indivíduo e a sociedade acham-se predeterminadas pelo conceito dogmático de uma ordem insustentável fora das condições de equilíbrio assim fixadas. Dentro de uma organização totalitária de qualquer daqueles dois tipos, o equilíbrio político e a ordem social dependem implicitamente da subalternização completa dos componentes individuais da sociedade ao ritmo ditado pelo interesse coletivo e cuja manutenção invariável constitui a suprema finalidade do aparelho estatal.

No totalitarismo bolchevista ou fascista, não surge nem pode surgir o problema da liberdade individual. O Estado dirige a Nação e atende a tudo que aparece no seu dinamismo, obedecendo apenas às injunções de uma consciência coletiva cuja existência é teoricamente postulada e cujas expressões perceptíveis se traduzem exclusivamente através do pensamento, das emoções, das aspirações e das tendências do indivíduo ou indivíduos que no momento personificam a organização estatal. Se é certo que na prática uma atenuação relativa desse ponto de vista fundamental tem forçosamente de ocorrer sob a pressão irresistível das realidades da natureza humana, que contradizem violentamente esse conceito extremo do absolutismo estatal, em teoria, pelo menos, o que dissemos corresponde ao conceito ideológico do Estado totalitário. Na Rússia Soviética e na Itália Fascista — formas gêmeas em que se polariza a idéia totalitária — o ditador, como personificação do organismo estatal, tem virtualmente o monopólio da liberdade. Dele, e somente dele, promanam as volições que movimentam as engrenagens da maquinaria governamental e, através destas, irradiam, como tentáculos compressores, sobre cada indivíduo integrado no corpo social. Qualquer divergência do ritmo imposto por essa vontade dominadora envolve uma rebeldia pessoal contra o funcionamento predeterminado do sistema orgânico da nação. Stalin e Mussolini, reprimindo cada um pelos métodos peculiares à ambiência em que respectivamente se encontram todas as manifestações de, divergência com o seu pensamento e com as diretrizes da sua vontade, não fazem mais do que obedecer aos imperativos da ordem que personificam.

Como acima dissemos, no Estado totalitário não pode haver problema da liberdade. Esta cessa de existir para o indivíduo, como conseqüência lógica da sua incorporação a um sistema político em que do supremo órgão do Estado procedem exclusivamente as deliberações e os atos de vontade executiva que orientam o dinamismo nacional e aplicam as suas energias para as finalidades coletivas, julgadas convenientes pelo único árbitro da nação. A tolerância do exercício de qualquer liberdade, de que se possa razoavelmente prever repercussões na marcha dos negócios públicos, seria um contra-senso com a ideologia fundamental do totalitarismo, comunista ou fascista.

Se nas modernas organizações totalitárias temos exemplos característicos de regimes políticos construídos de acordo com um plano ideológico apriorístico e nos quais as relações entre os elementos individuais da sociedade e o Estado se estabilizam pela supressão de toda liberdade pessoal, na democracia liberal iremos encontrar um sistema diametralmente oposto mas que apresenta com o totalitarismo o parentesco filosófico derivado de uma análoga origem apriorística. No liberalismo, a base lógica da teoria do Estado é o conceito do indivíduo como realidade essencial, enquanto a sociedade, que na ideologia totalitária é tudo, passa a ser apenas a fórmula de expressão necessária da soma dos valores individuais. A teoria do Estado totalitário é nitidamente dedutiva, por isso que parte da definição racional de uma entidade abstrata, a sociedade, ao passo que a democracia liberal é teoricamente induzida da análise das relações entre os indivíduos, empiricamente verificadas pela observação direta.

O problema da liberdade, que, como vimos, não pode sequer ser formulado nas condições do regime totalitário, também não se apresenta na democracia liberal, podendo ser considerado como antecipadamente resolvido pelos postulados fundamentais desse regime. Se não é possível cogitar-se de liberdade individual em uma ordem política construída sobre a idéia de que o Estado é a única realidade absoluta em toda a organização social, nas condições diametralmente opostas do regime democrático-liberal aquela questão deixa de ter oportunidade de ser formulada, por isso que todo o sistema político neste caso se funda na extensão indefinida da liberdade pessoal a que só se admitem as restrições impostas pela necessidade de assegurar a mesma liberdade às outras unidades componentes do corpo social.

Das considerações que acabamos de fazer, infere-se logo uma distinção importante entre os dois regimes de que nos ocupamos. Tanto no tocante à questão da liberdade como, de um modo geral, em todos os problemas que se apresentam no dinamismo social, o totalitarismo relega a um plano de ínfima subalternidade as relações entre os indivíduos, só admitindo como relevantes as que se processam entre eles e a coletividade, cuja expressão concreta é sempre o Estado. O regime democrático-liberal, mais complexo na sua ideologia básica e na sua estrutura, tem de considerar tanto o jogo das relações individuais no seio da sociedade como a interdependência desta com os seus elementos componentes.

No Estado autoritário e nacional do tipo instituído no Brasil pela nova Constituição, o problema da liberdade aparece com aspectos intensamente diferentes do que se passa no totalitarismo e no caso da democracia liberal. O primeiro ponto a considerar-se decorre das características essenciais da concepção ideológica de uma organização estatal da categoria do atual Estado brasileiro.

Distinguindo-se inconfundivelmente das formas de organização política emergidas de um plano subjetivamente elaborado e no qual se traçam aprioristicamente as bases de uma construção estatal idealizada em abstrato, o novo Estado brasileiro, conforme se depreende da análise do texto constitucional e do exame das circunstâncias históricas determinantes da reforma nacional precipitada pelo golpe de Estado de 10 de Novembro, concretiza uma ordem política, social, econômica e espiritual erguida sobre os fundamentos objetivos da realidade. A renovação estrutural da Nação e o sentido do regime adotado não procederam de um trabalho intelectual teórico orientado com a finalidade de impor ao país instituições preferidas pelo legislador constituinte. Este submeteu-se à realidade nacional, tanto nos seus aspectos históricos como nos fatos atuais.

Sendo, portanto, um tipo de Estado rigorosamente realístico, isto é, uma organização que não visa encaminhar a Nação para configurações orgânicas aprioristicamente determinadas por esta ou aquela teoria política, mas que representa apenas a adaptação de novas instituições aos imperativos de realidades econômicas, sociais, culturais, políticas e históricas, o Estado autoritário brasileiro não fixa princípios abstratos em relação a nenhum problema encontrado na vida social país. Assim ocorre precisamente quanto às questões que se desenrolam ao redor do conceito da liberdade.

***

O primeiro ponto a ser assinalado vincula-se a um dos aspectos típicos da nossa atual organização estatal. O Estado Novo, afastando-se tão radicalmente do conceito totalitarista como da ideologia democrático-liberal, diverge do primeiro pelo acatamento que consagra à posição do indivíduo como elemento irredutível na organização social e opõe-se à segunda pelo reconhecimento da supremacia do interesse coletivo sobre as conveniências dos componentes individuais da Nação. Assim, o Estado brasileiro é, ao mesmo tempo, individualista e coletivista.

O seu primeiro aspecto é expresso nos dispositivos constitucionais que explicitamente ou por forma indireta, mas não menos inequívoca, afirmam caber ao indivíduo uma função primacial na ordem social, na organização econômica e no conjunto das atividades espirituais do corpo coletivo. A esse sentido individualista do regime contrapõe-se, entretanto, moderando e restringindo as suas conseqüências, o princípio da preponderância do bem público, que transparece da letra e do espírito do estatuto constitucional.

Dessa combinação harmoniosa da aceitação dos postulados individualistas e do reconhecimento da idéia coletivista da ascendência necessária do interesse social redunda a apresentação do problema da liberdade sob um ponto de vista peculiar e mais complexo. Ao lado das limitações necessárias da liberdade individual, como efeito da interferência do exercício da liberdade pelas outras unidades componentes da sociedade, questão precípua no apreço do conceito da liberdade dentro das configurações do liberalismo, concorre a solução do outro problema que é o da demarcação da esfera dos direitos e das iniciativas do indivíduo em obediência às injunções do bem coletivo. O primeiro caso não oferece relevância maior, por isso que já se acha resolvido dentro da órbita jurídica estabelecida e que a nova Constituição não veio alterar em nenhum dos seus pontos essenciais. Basta, portanto, que nos ocupemos do conceito da liberdade em função das exigências do interesse coletivo.

Nas organizações totalitárias, o indivíduo não tem direito a liberdade alguma, porque só há uma entidade livre que é o Estado. A democracia-liberal postula a extensão da liberdade individual até o ponto em que ela vem a ser automaticamente neutralizada pelo direito que ao exercício da mesma liberdade têm os outros indivíduos. No novo regime brasileiro, o indivíduo possui, como na democracia liberal, uma esfera de liberdade delimitada pela ação igualmente livre dos outros cidadãos. Sobrepujando, porém, essas relações individuais está o bem coletivo, diante do qual nenhuma liberdade e nenhum direito podem subsistir.

Aparentemente, a doutrina da Constituição imprime um certo aspecto de precariedade às liberdades individuais, colocadas todas na dependência das reações que possam vir a ter sobre o interesse comum da sociedade. Mas essa precariedade é apenas ilusória e na realidade o Estado autoritário não restringe nenhuma liberdade, mas apenas adapta o exercício das atividades de todo gênero de cada indivíduo ao círculo naturalmente traçado pela capacidade que cada um tem de atuar espontaneamente sem comprometer o funcionamento eficiente da organização nacional. Limitações da liberdade existem, como vimos, dentro da órbita mais ampla do liberalismo e, estipulando que o bem coletivo é suficiente para traçar o circulo além do qual não subsistem direitos e liberdades individuais, o novo regime não veio criar um fator de compressão do indivíduo, mas apenas demarcou a este a posição que ele tem forçosamente de ocupar em um sistema no qual todas as atividades se coordenam para um objetivo supremo, representado pela segurança tranqüilidade e prosperidade da Nação.

Para que se possa compreender claramente o sentido da liberdade assegurada ao indivíduo, na ordem política hoje vigente no Brasil, é preciso examinar a própria essência do conceito de que nos ocupamos. Em uma sociedade organizada sobre as bases de um individualismo radical, a idéia de liberdade identifica-se com a da ação isolada e mais ou menos independente de cada unidade social. Mas em um regime como o que acaba de ser adotado entre nós e no qual o indivíduo, embora conservando na sua plenitude todas as prerrogativas da personalidade humana e tendo um campo extenso de atividade desembaraçada, é contado política e socialmente encarado como um elemento integrante da coletividade nacional coexistente com o Estado, achamo-nos defrontados por um conceito inteiramente diferente de liberdade.

Em tais circunstâncias, que são precisamente as que se nos deparam no regime atual, a liberdade individual tem forçosamente de coincidir com a capacidade de exprimir a sincronização da ação do indivíduo com o ritmo da vontade coletiva e com os interesses nacionais. A verdadeira liberdade, qual a entendemos em uma organização do tipo autoritário, pode ser definida como equivalente ao exercício normal e sadio das aptidões e faculdades do indivíduo dentro da órbita de atividade de todo o gênero que ele tem a desempenhar na realização da sua função social de elemento componente da entidade nacional, cujo órgão de expressão ativa é o Estado.

A manutenção dessa harmonia, de que dependem a segurança, o bem estar e o progresso da Nação, é para o indivíduo uma condição imprescindível à realização do seu próprio destino. Assim, nenhum indivíduo normal pode sentir impulsos que o levem a exercer a sua liberdade em sentido contraditório ao funcionamento regular do organismo coletivo em cujo dinamismo ele desempenha um papel definido pelas diretrizes de um sentido social nitidamente caracterizado. Entre a vontade nacional expressa pela autoridade do Estado, e a esfera de liberdade e iniciativa traçada ao cidadão, vem a estabelecer-se, na lógica dos princípios básicos do regime, uma harmonia cujo rompimento não pode deixar de constituir um desvio da ação individual em detrimento do interesse comum. Admitir, portanto, que o Estado não inclua entre as suas atribuições precípuas a vigilância para evitar a ocorrência de semelhantes desarmonias seria negar os próprios fundamentos ideológicos do regime.

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Esse conceito da liberdade, inseparável da configuração ideológica do Estado autoritário, reflete-se nos diferentes planos em que as iniciativas, as atividades e os interesses do indivíduo têm de ajustar-se ao bem público. Passemos a examinar imediatamente a maneira como esse ajustamento se processa, no caso da ordem econômica, conforme os preceitos da atual Constituição.

No capítulo em que anteriormente estudamos a organização da economia nacional no Estado Novo, tivemos ensejo de abordar todos os aspectos principais da distribuição de esferas de competência entre o poder público e os indivíduos e os grupos particulares por estes formados para finalidades especiais. Do que foi então assinalado resulta esclarecimento suficiente das linhas gerais que demarcam os métodos adotados no novo regime para conciliar a ação econômica individual com as diversas modalidades de intervenção estatal. Basta, portanto, na análise da liberdade assegurada pela ordem vigente no plano econômico, examinar aqui essa questão sob o ponto de vista da organização corporativa visada como uma das finalidades precípuas do novo Estado brasileiro, nos termos do art. 140 e da letra. a) do art. 61 da Constituição.

Na ordem econômica, a corporação reflete na sua estrutura, nos processos do seu funcionamento e nos objetivos que por meio dela se pretende realizar, exatamente tudo aquilo que o Estado autoritário tem por finalidade alcançar no conjunto da vida nacional. Da verificação deste fato deduz-se que a organização corporativa da economia é, no regime atual, não apenas aconselhada por iniludíveis imperativos de conveniência técnica na coordenação das atividades empenhadas na produção e na distribuição da riqueza. Ao lado dessas injunções de natureza econômica atuam ainda decisivos motivos de ordem política, derivados dos postulados básicos da organização estatal.

Esses princípios repercutem profundamente no dinamismo econômico das nações contemporâneas, dando lugar a reações que se orientam no sentido de determinar a necessidade de métodos de organização da produção e do comércio em harmonia com o que Manoilesco classificou de imperativos da solidariedade nacional. (24). Realmente, em concomitância com outras injunções decorrentes das transformações que no século atual se vão acentuando no jogo das forças econômicas, tanto no círculo interno de cada nação como no plano do intercâmbio internacional, aparecem influências de ordem ideológica impondo formas especiais de coordenação das atividades produtoras e dos métodos de circulação dos produtos.

As configurações da economia corporativa fixam, no tocante ao exercício da liberdade individual naquela esfera da vida coletiva, delimitações análogas e, como observamos, expressivas da repercussão, nesse setor especial, do mesmo conceito preponderante na ordem política. Enquanto a organização econômica peculiar à democracia liberal contém apenas elementos de direção decorrentes das convergências, atritos e choques das múltiplas manifestações da atividade privada, atuando cada um em obediência aos seus próprios desígnios, o sistema corporatista logicamente associado ao Estado autoritário substitui esse conflito de forças independentes por uma sistematização racional visando o bem coletivo. A idéia de ordem na economia individualista do liberalismo tem como expressão lógica a ação de supostas leis econômicas, que os doutrinadores da escola clássica induziram dando-lhes a forma solene de postulados científicos. O valor de tais leis acha-se hoje enormemente depreciado diante da experiência da economia prática, que as reduziu às proporções modestas de meras fórmulas de significação apenas aproximativa no apreço dos fenômenos econômicos.

O neocorporativismo contemporâneo, que o legislador constituinte de 1937 adotou como princípio orientador dos esforços para a organização da economia brasileira sem desconhecer o valor relativo dos postulados clássicos que norteiam a economia liberal, emancipa-se, entretanto, da idolatria daqueles princípios. Em vez de submeter-se ao fatalismo das supostas leis econômicas, sob cujo domínio a luta entre os interesses privados se foi acentuando até produzir efeitos positivamente anarquizantes, o corporativismo contemporâneo aborda os problemas da organização econômica do ponto de vista voluntarista.

Nada talvez caracterize melhor o pensamento novo, cuja elaboração se tem ativado principalmente depois da grande guerra, do que a tendência a deslocar a solução dos problemas sociais, políticos e econômicos do plano de um determinismo inexorável para o campo onde o fator representado pela vontade humana aparece como elemento de incalculável relevância. Esse sentido voluntarista, que se reflete em todos os aspectos da vida contemporânea, pode ser apontado como traço mais característico da idéia central do corporativismo.

O mecanismo do entrelaçamento das forças produtoras em estruturas sindicais, a coordenação das atividades em um sistema de economia equilibrada por compensações, o conceito da subordinação dos interesses restritos de indivíduos e de grupos ao critério geral do ajustamento da produção em benefício da coletividade nacional são outros tantos lados do corporativismo em que iremos encontrar o cunho inconfundível do sentido voluntarista que anima e orienta a totalidade desse conjunto orgânico.

A idéia de liberdade aparece, portanto, em uma ordem econômica do tipo corporativista, qual a prevista na nova Constituição brasileira, sob o mesmo aspecto em que delineamos ao examinar essa questão no plano da organização política. Cada unidade do sistema de produção e distribuição da riqueza é livre nas suas iniciativas e nos seus movimentos realizadores, bem como na obtenção dos proveitos da sua atividade, até o ponto em que o exercício dessas prerrogativas pessoais não contradita a boa ordem do funcionamento da economia coletiva. E tal qual acontece no tocante à liberdade no plano político, o indivíduo, em obediência ao instinto de conservação e à salvaguarda dos seus próprios interesses, não tem nem pode ter vantagem em pretender exercer a sua liberdade pessoal além do círculo demarcado pela natureza do sistema em que ele se acha integrado. Uma vez admitida a organização corporativa como a única consentânea com a expansão sadia das forças econômicas é claro que, somente dentro da sua órbita, isto é, ajustando o exercício da liberdade individual ao funcionamento global do sistema, cada unidade produtora poderá comparticipar dos resultados benéficos da ação corporatista. Não há, pois, no novo regime, sacrifício da liberdade na ordem econômica. Ha apenas uma reinterpretação do seu conceito em termos que se harmonizam com o sentido e os métodos da economia corporativa.

Tanto no caso especial da organização corporativista de que nos ocupamos, como em outros aspectos da ordem econômica prescrita pela Constituição, é inevitável uma série de reajustamentos da liberdade individual às injunções de um sistema, cujo funcionamento eficiente depende da subordinação dos elementos componentes do todo a certas condições essenciais à realização das finalidades. visadas. Nada disso envolve, porém, um afastamento das normas características do regime democrático. A democracia, em escala ainda maior que qualquer regime no qual a massa da coletividade não tenha comparticipação tão direta no Estado, exige coordenação das iniciativas e das atitudes individuais sob o ritmo de um sentido comum da vida nacional. Isto já havia sido reconhecido e praticado no plano político, mas fora descurado em relação à ordem econômica, devido ao ultra-individualismo predominante nesta esfera, em conseqüência das idéias do liberalismo.

Hoje, porém, assistimos ao inicio de uma fase nova da evolução das instituições democráticas. Como o Presidente Roosevelt observava no discurso pronunciado em Julho de 1936 no Congresso do Partido Democrático, da etapa da democracia puramente política passamos neste momento para a da democracia econômica. Em outras palavras, a órbita dos fenômenos atinentes à produção e à distribuição da riqueza torna-se o campo de aplicação de princípios de ordem e de sistematização, envolvendo forçosamente um ajustamento das liberdades desfrutadas pelo indivíduo na ordem econômica às necessidades superiores dos interesses da coletividade nesse setor. A inevitabilidade de uma adaptação dos direitos individuais aos imperativos de uma organização econômica racional está sendo reconhecida no país onde mais pura é ainda a fé nos postulados ortodoxos do regime democrático. E entre os que, nos Estados Unidos, proclamam a conformidade dessa adaptação do indivíduo ao interesse coletivo na esfera econômica, figura Walter Lippmann, o mais intransigente campeão contemporâneo da estrita observância das idéias liberais que se enxertaram no regime democrático. (25). Não poderíamos encerrar melhor estas considerações sobre o conceito da liberdade na ordem econômica instituída pelo Estado Novo, do que aludindo à opinião daquele autorizado e insuspeitíssimo partidário do liberalismo.

***

Considerada na sua essência, a liberdade é preponderantemente de ordem subjetiva. As expressões materiais em que ela se traduz em múltiplos aspectos da vida social têm o seu valor dependente, em última análise, da atitude psicológica do indivíduo em relação ao que lhe é permitido fazer e ao que as restrições impostas pelo ambiente o inibem de praticar. Mas há ainda outro lado da questão no qual o aspecto essencialmente subjetivo da liberdade, ou melhor, o seu exercício no plano espiritual assume primacial relevância. Como Harold Laski observou (26), o sentido político da liberdade traduz-se principalmente na aspiração do indivíduo a fazer com que o Estado assimile a parcela de experiência com que ele pode contribuir pessoalmente para a vida nacional. Assim, se torna fundamental assegurar ao indivíduo os meios de afirmar as suas idéias e os seus pontos de vista e de procurar influenciar os seus semelhantes de modo a agirem de acordo com os resultados do que ele acumulou na órbita da sua experiência pessoal.

A liberdade espiritual na acepção mais ampla do termo, isto é, o direito de pensar e de apreciar todos os aspectos do mundo exterior de um ponto de vista independente de qualquer limitação traçada por uma autoridade alheia à sua consciência, constitui uma esfera em que o indivíduo tem necessariamente de permanecer intangível e inviolável sob pena de sacrificar com as prerrogativas do espírito o que há de mais essencial e característico da personalidade humana. Mas não basta para que o homem possa tornar-se consciente da posse e do gozo das predicados de que o investe a situação por ele conquistada na escala da evolução da vida. Sob o ponto de vista sociológico, ou em outras palavras, para o homem considerado em grupo, é preciso que a liberdade de pensar seja completada por outra, a de expressão livre do seu pensamento.

Aqui estamos em terreno onde a confraternização e cooperação de democráticos autoritários e liberais é somente possível. mas inevitável. O traço mais inconfundivelmente divisório entre o Estado democrático autoritário do tipo atualmente existente no Brasil e o Estado totalitário, comunista ou fascista, é exatamente a atitude respectivamente assumida por cada uma dessas formas de organização estatal em face da liberdade espiritual.

Nos regimes totalitaristas, o Estado assume a posição de entidade monopolizadora, não apenas de todas as iniciativas políticas, econômicas e sociais, como também do privilégio de organizar, manter e dirigir as atividades espirituais da Nação. O pensamento torna-se uma função estatal nos regimes totalitários. Está, portanto, na lógica da ideologia dessas organizações determinar os limites além dos quais o indivíduo não pode ir, no exercício das prerrogativas do espírito. Não dispondo de meios para perseguir os refratários à disciplina espiritual, dentro do reduto inexpugnável da consciência de cada um,.

o Estado totalitário impede a irradiação das idéias que julga inconvenientes comprimindo todas as manifestações do pensamento e submetendo as que tolera a um processo rigoroso de vigilância e censura. Isto, ninguém ignora, é o que se passa na Rússia Soviética, na Itália fascista e na Alemanha nazista, para não citar imitadores secundários e terciários do totalitarismo.

Nada de comum com essa atitude repressiva e compressiva da liberdade de pensamento existe no Estado autoritário-democrático em matéria de liberdade espiritual. O conceito de liberdade subordinada aos imperativos de interesse coletivo só é válido em uma organização estatal do tipo que se mantém dentro da órbita democrática, quando restringido ao tocante às que o exercício da liberdade pelo indivíduo possam ter sobre a segurança do Estado e da Nação ou no plano das atividades concretas de ordem política, social e econômica. Para que a liberdade possa ser limitada no Estado autoritário-democrático é preciso que as suas manifestações se traduzam em efetividade de ação material ou na possibilidade de tal ação poder ser razoavelmente previsível.

Esta questão, como acabamos de formular, pode parecer um pouco sutil, mas analisando-a mais detidamente sem dificuldade verificaremos como é sempre possível na prática determinar as características de uma expressão concreta do exercício da liberdade em relação à qual se justifica a ação coercitiva e repressiva do Estado. Este, no desempenho da sua função precípua de reprimir tudo que compromete a segurança ou a boa ordem no funcionamento dos órgãos da vida nacional, tem de intervir coibindo qualquer abuso de liberdade donde possam redundar conseqüências da natureza apontada. Aplicando este conceito ao caso tão delicado da atitude estatal em face das prerrogativas do espírito diremos que o critério a ser usado na matéria deve ser exclusivamente o da possibilidade de resultarem ou não, do exercício de uma certa liberdade, efeitos indesejáveis para a segurança do Estado e tranqüilidade e prosperidade da Nação. Exemplos concretos podem esclarecer melhor o caso.

Assim um panfletário, que, em linguagem inflamada e vibrando notas sentimentais que ferem a sensibilidade e estimulam as emoções das massas, faz uma propaganda anti-religiosa, pode ser o objeto da ação do Estado no cumprimento da sua missão de evitar a inquietação social e de fazer respeitar todos os credos.

Entretanto, as mesmas idéias expostas por um pensador, que se mantivesse no plano filosófico ou no terreno da pesquisa histórica e cujos argumentos se dirigissem à inteligência e não fossem de molde a excitar paixões sociais perigosas, deveriam ser consideradas invioláveis e o Estado exorbitaria das sua atribuições cerceando a difusão do livro ou de outra forma de publicidade, por meio da qual tais idéias fossem propagadas. Um opúsculo incendiário, que sirva de veículo às doutrinas marxistas em tom capaz de estimular nas massas tendências à atuação violenta no sentido preconizado pelo autor, incide na órbita da vigilância que o Estado pode exercer em matéria de liberdade de expressão do pensamento. Mas impedir a venda e a leitura dos livros de Marx não se justifica, porque. sendo tais obras apenas acessíveis às mentalidades em um nível mais ou menos elevado de desenvolvimento e de cultura e não podendo da familiaridade com elas resultar para os leitores um estado emotivo que os transformem em possíveis elementos de perturbação da ordem, o Estado autoritário-democrático não tem razão para interessar-se por esse assunto.

Poderíamos multiplicar exemplos análogos em apoio da nossa tese, que, para maior clareza, definiremos em poucas palavras. O Estado democrático do tipo autoritário, qual existe hoje no Brasil, tem o dever de exercer vigilância sobre as expressões do pensamento. No exercício dessa função inerente às finalidades precípuas da organização estatal, o poder público deve adotar como critério prático a verificação da possibilidade ou não de resultarem perigos para o Estado e para a sociedade da expressão particular de pensamento em apreço Finalmente, completando esse critério prático, pode-se admitir como postulado fundamental na matéria que o exercício da liberdade de exprimir o pensamento por qualquer forma deve ser diretamente proporcional à elevação intelectual e ao grau de apuro cultural da forma dada ao pensamento expresso. Em outras palavras, a liberdade de exprimir o pensamento não pode ser igual para todos. Ela tem de ser maior ou menor, conforme a capacidade mental cultural de cada um. Um rabiscador de desenhos obscenos é um caso de policia. Um grande artista no exercício das prerrogativas do espírito não pode submeter a sua inteligência criadora e as formas peculiares da sua estesia aos limites traçados pelas injunções do pudor.

Poderá ser alegado que o ponto de vista em que nos colocamos no exame deste assunto é incompatível com o conceito da igualdade. Sem dúvida o é. Em um dos capítulos precedentes, julgamos ter demonstrado que a idéia de igualdade não é essencial ao conjunto ideológico em que se apoia a democracia. Esta postula apenas a igualdade de oportunidade mas não uma igualdade efetiva dos indivíduos que envolve um absurdo em contradição flagrante com a realidade evidente. E no caso particular de que neste ponto nos ocupamos, cumpre acrescentar que as idéias de liberdade e igualdade são irreconciliáveis. Há vinte e cinco séculos Platão já definia, com aquela precisão lapidar dos seus conceitos, essa incompatibilidade, dizendo que nada havia de mais injusto que igualar os desiguais. Nos tempos modernos Lord Acton exprimiu um pensamento semelhante por forma não menos feliz, ao dizer que a paixão da igualdade torna vã a esperança da liberdade (27). Colocar a questão da liberdade em função da utopia equalitária é realmente destruir todas as possibilidades de uma liberdade real e estabelecer o mais sombrio regime de escravidão do espírito.

Para compreender-se o sentido e o alcance do que acabamos de dizer basta analisar o que significa uma liberdade conseguida em termos iguais a todos os indivíduos que constituem a sociedade e que são evidentemente desiguais pela sua capacidade intelectual, nível cultural e aspirações peculiares. O critério da liberdade, em tais condições, teria forçosamente de ser abaixado ao nível ínfimo, o que estaria na lógica de semelhante situação ou, pelo menos, colocado em um plano médio obrigando os elementos superiores da coletividade a descer muito abaixo da altitude espiritual que já haviam atingido. Semelhante solução do problema da liberdade espiritual não envolveria apenas uma injustiça enorme aos indivíduos superiores, mas também grave prejuízo para a sociedade, acanhando-lhe ao círculo da mediocridade as possibilidades criadoras nela contidas e personificadas no potencial das inteligências altamente desenvolvidas.

Temos a considerar ainda um aspecto muito relevante da liberdade espiritual no Estado autoritário. A observância rigorosa dos dispositivos constitucionais atinentes a esse assunto e que em termos explícitos cercam as prerrogativas do espírito de garantias suficientes ao seu livre exercício, tem um grande alcance sob o ponto de vista de uma das funções principais da atual organização estatal brasileira. A ideologia do Estado Novo envolve a determinação de certas finalidades para onde deve encaminhar-se a Nação, o que implicitamente acarreta para o Estado uma função educativa no sentido mais amplo de tal expressão. E, se o Estado tem como uma das suas atribuições mais importantes orientar a formação mental e moral elementos componentes da coletividade, e isto não apenas na restrita acepção pedagógica da função educadora , mas no sentido da plasmagem de uma consciência cívica caracterizada pela identificação com a ideologia do regime, é claro que o papel reservado à elite espiritual da Nação e em tais circunstâncias de inexcedível relevância.

Em uma organização nacional com tais finalidades, os elementos que imprimem ao pensamento coletivo o cunho das suas elaborações espirituais têm forçosamente de ficar onerados com as responsabilidades de orientar o Estado na realização da missão que lhe é reservada no trabalho educativo de integração do povo na órbita do regime. Aos expoentes da inteligência e da cultura do país incumbe assim tornar a Nação consciente das diretrizes que lhe estão traçadas no prosseguimento da obra que é a razão de ser do Estado Novo. Seria errôneo supor que o papel da elite intelectual será impor à coletividade nacional um certo número doutrinas e de tendências ideológicas A função das elites culturais não é propriamente criar uma tábua de valores que sirva de norma à conduta cívica e as atividades sociais e políticas das massas da população. A missão dos intelectuais é mais sutil. Emergidos da coletividade como expressões mais lúcidas do que ainda não se tornou perfeitamente consciente no espírito do povo os intelectuais são investidos da função de retransmitir as massas, sob forma clara e compreensível, o que nelas é apenas uma idéia indecisa e uma aspiração mal definida. Assim, a elite cultural do país torna-se no Estado Novo um órgão necessariamente associado ao poder público como centro de elaboração ideológica e núcleo de irradiação do pensamento nacional que ela sublima e coordena.

Sem essa cooperação permanente das forças intelectuais e culturais, o Estado autoritário correria o risco de transformar-se em um maquinismo automático de aplicação empírica de princípios considerados como dogmas finais de uma ideologia política estacionária. Ora, o Estado autoritário instituído pela nova Constituição é essencialmente realístico e somente desse realismo promana a afinidade com o sentimento nacional que em torno dele se vai organizando em uma auspiciosa coesão de forças morais. Mas por ser realístico, o Estado autoritário tem forçosamente de ser progressivo A realidade em qualquer plano em que a examinemos corresponde ao fluxo incessantemente mutativo dos fenômenos que se encadeiam na série infinita das durações sucessivas. As idéias de realidade e fixidez são antinômicas. Tudo que não é ilusão tem por característica um dinamismo incessantemente transformador.

As organizações estatais criadas aprioristicamente por um trabalho subjetivo que constrói no plano das abstrações, sem levar em conta as realidades históricas e atuais da ambiência social, têm na lógica da sua origem um caráter essencialmente estático. Mas um Estado surgido do esforço para adaptar instituições à realidade nacional integra-se na corrente da vida. Não é uma forma cristalizada de pensamentos mumificados. É um organismo vivo sujeito ao impulso transformador do ímpeto vital, em cujas instituições estão implicitamente contidos os germes de futuras formas orgânicas que a sociedade terá de plasmar à medida que circunstâncias novas lhe impuserem a necessidade de adaptar a sua estrutura a outros sentidos do dinamismo coletivo.

Em outras palavras, o Estado Novo é essencialmente progressivo. Sobre a sua ideologia não pairam as influências do espírito de fixidez que é o espírito da morte. Neste ponto mais que sob qualquer outro aspecto, a nova organização nacional se distingue radicalmente dos totalitarismos contemporâneos que são concretizações do pensamento de fixar a órbita da vida social no perímetro de uma construção política adotada como definitiva.

Mas, para obedecer ao sentido essencialmente progressista que o caracteriza, o Estado Novo não pode prescindir da influência permanente das forças intelectuais e culturais que representam os elementos de dinamismo espiritual da coletividade. E o papel dessas forças não deve ter o cunho de subalternidade pela limitação das suas atividades ao desempenho de uma função meramente interpretativa da ideologia básica da organização nacional. Ao lado dessa missão, a elite intelectual tem a exercer outra ainda mais profunda e de muito maior alcance nas suas finalidades. Cumpre-lhe revelar ao próprio Estado as possibilidades de desenvolvimento, incluídas como forças latentes no estilo atual das instituições.

Se os intelectuais têm a exercer a função exclusiva de tornar a Nação e o Estado conscientes da sua própria realidade e dos rumos que têm a seguir para desenvolver as possibilidades contidas nas instituições nacionais, é claro que as prerrogativas espirituais da elite não podem ser sujeitas a quaisquer restrições. O Estado que, na lógica das suas funções de defesa da sociedade e de manutenção da ordem em todas as suas modalidades, tem o dever iniludível de exercer a vigilância sobre as expressões vulgares e medíocres de idéias veiculadas sob formas coloridas pela exaltação passional, comprometeria os interesses vitais do futuro da Nação se embaraçasse por uma intervenção arbitrária qualquer manifestação superior da inteligência.

Mais uma vez insistimos sobre a impossibilidade de reconciliar a idéia de igualdade com o conceito de liberdade. No exercício da mais delicada das suas atribuições na ordem espiritual, o Estado tem de discriminar entre as categorias aliás inconfundíveis das manifestações turbulentas do pensamento demagógico e as expressões claras da inteligência superior adestrada pela disciplina da cultura. Dir-se-á que problemas difíceis se apresentam em semelhante discriminação. Mas o exercício de todas as funções estatais envolve dificuldades e exige aptidões que não se encontram senão em indivíduos mais ou menos invulgares. Aliás, o reconhecimento desta verdade é postulado pelo Estado autoritário através dos processos de seleção para o governo, que se inspiram exatamente na preocupação de que a investidura da autoridade recaia sobre quem tenha capacidade para arcar com os ásperos problemas da direção nacional.

Iremos ao encontro de outra objeção admitindo logo que, na aplicação prática do princípio que justifica em certos casos restrições das manifestações do pensamento enquanto em outros não permite qualquer limitação nesse terreno, ocorrerão por vezes erros lamentáveis. Mas a possibilidade de um erro não autoriza a sociedade a renunciar a medidas cuja vantagem na generalidade dos casos é indiscutível.

Resumindo as considerações desenvolvidas neste capítulo, poderemos encerrar o ensaio que tentamos em torno da nova organização estatal brasileira, sintetizando o conceito de autoridade com a idéia de liberdade. Longe de se apresentarem em contradição antinômica as noções de autoridade e de liberdade polarizam-se como desdobramentos do pensamento fundamental sobre que se alicerça toda a organização social. A formação de um grupo humano orgânico apresenta duas finalidades aparentemente divergentes mas que de fato são complementares, não podendo nenhuma delas ser atingida isoladamente. A felicidade do indivíduo e a segurança da coletividade entrelaçam-se em uma interdependência indissolúvel. Sem a expansão da personalidade humana, o todo social fica restrito nas suas possibilidades de desenvolvimento e contém em si elementos permanentes de instabilidade e de fraqueza. Somente nas organizações sociais e políticas sólidas e fortes o indivíduo pode encontrar as condições imprescindíveis à realização das suas aspirações de felicidade pessoal.

Cada uma dessas finalidades da organização nacional está ligada a uma das idéias que se defrontam como colunas mestras do edifício político. A autoridade é a expressão dinâmica da vontade coletiva compelindo as forças da iniciativa individual a manterem-se dentro de limites compatíveis com a segurança estrutural do sistema. A liberdade é a energia contraditória que se manifesta na ação do indivíduo resistindo ao poder compressivo da autoridade. Todo o jogo do dinamismo social e político consiste no perpétuo conflito entre essas duas correntes que pelo seu atrito permanente asseguram a continuidade da estrutura orgânica da sociedade. O enfraquecimento de uma dessas forças além de certos limites acarretaria automaticamente a decadência e a morte do organismo social, fosse pelo esmagamento das unidades que o vitalizam, fosse pela subversão do vínculo de solidariedade coordenadora sob a pressão da rebeldia individualista.

O equilíbrio necessário entre os dois fatores, que, pela sua ação polarizada, plasmam e mantêm a sociedade, só pode ser alcançado pelo predomínio do ritmo unificador da vontade social sobre a multiplicidade de energias promanadas de cada componente do corpo coletivo. Há muito mais perigo de desorganização do todo pela rebeldia das partes que da compressão excessiva destas por um poder desmedido da coletividade. Assim, para que uma nação se organize com probabilidades de enfrentar vitoriosamente as vicissitudes com que o futuro a pode surpreender, o conceito de liberdade tem de ajustar-se aos imperativos da sobrevivência, que impõem a necessária ascendência de um ritmo unificador expresso na idéia de autoridade.

Este é o conceito da organização nacional a que a humanidade civilizada está chegando no século XX, após as amargas desilusões da sua melancólica peregrinação pela democracia-liberal. Com uma interpretação realística do verdadeiro sentido da democracia, restaura-se por toda a parte o prestígio do autoritarismo.

Ainda bem que o Brasil, antes de se ver irremediavelmente assoberbado por problemas insolúveis e perigos inevitáveis, despertou à consciência da realidade nacional e, dentro da órbita do seu passado e do seu presente, adotou uma forma de organização estatal que lhe poderá permitir o desenvolvimento progressivo dos seus recursos potenciais de grandeza. Para assegurar o futuro da Nação não basta por certo termos criado o Estado Novo. Mas no rumo que só poderemos seguir pelas normas da democracia autoritária estão as perspectivas da consolidação da nacionalidade, da expansão das suas forças econômicas e do apuro da sua cultura. O golpe de Estado de 10 de Novembro foi a nossa primeira revolução construtiva. Por enquanto estão aí apenas os alicerces da nova estrutura nacional. A obra a ser realizada é evidentemente imensa. Mas as possibilidades dinâmicas do Estado autoritário, como órgão das energias criadoras de uma verdadeira democracia, podem justificar a esperança de estarmos, afinal, no começo da construção do Brasil engrandecido pelo aproveitamento das suas riquezas e pela expressão autêntica do gênio peculiar do seu povo.


NOTAS.

 

(1) “A Aventura Política do Brasil” — Azevedo Amaral — Rio de Janeiro, 1935.

(2) “Ensaios Brasileiros” — Azevedo Amaral, Rio de Janeiro, 1930.

(3) A tentativa frustrada de Bernardo Vieira de Mello em Pernambuco, em 1710, foi apenas a expressão individual de tendências que subsistiam no Nordeste, como efeito ainda da influência do domínio holandês a que acima nos referimos.

(4) “A Aventura Política do Brasil” — Azevedo Amaral — Rio de Janeiro, 1935

(5) “Casa Grande & Senzala” — Gilberto Freyre. Rio de Janeiro, 1933.

(6) “A Aventura Política do Brasil” — Azevedo Amaral — Rio de Janeiro, 1935.

(7) “Ensaios Brasileiros” — Azevedo Amaral, Rio de Janeiro, 1930.

(8) “A Aventura Política do Brasil” — Azevedo Amaral — Rio de Janeiro, 1935.

(9) “O Brasil na Crise Atual” — Azevedo Amaral. S. Paulo, 1914.

(10) “Ensaios Brasileiros” — Azevedo Amaral. Rio de Janeiro, 1930.

(11) “L’Idée Socialiste” — Henry de Man — Paris, 1934.

(12) “L’Idée Socialiste” — Henri de Man.

(13) “La Corporation dans le Monde” — G. de Michelis — Paris, 1935 — Tradução francesa da “La Corporazione nel Mondo” — Milão, 1934.

(14) “Grammaire de la Politique” — Harold Laski. (Tradução francesa).

(15) “Une Grande industrie dans la Tourmente — Le Corporatisme devant les réalités” — Pierre Lucius.

(16) “La Corporation dans le Monde” — “Economie Dirigée Internationale”. — G. de Michelis, Paris, 1935. (Tradução francesa do “La corporazione nel mondo”, Milão, 1934).

(17) “Mauá” — Alberto de Faria — Rio de Janeiro, 1927.

(18) “The Economy of Abundance”. — Stuart Chase. New York, 1934.

(19) “O problema eugênico da imigração” — Azevedo Amaral, tese apresentada ao primeiro Congresso de Eugenia. Rio de Janeiro, 1929.

(20) “A New Deal” — Stuart Chase, New York, 1934.

(21) “Practical Economics”, de G. D. H. Cole, Londres, 1937.

(22) Relatório do deputado Arthur Neiva á Comissão Mista de Reforma Econômico-Financeira, 1935.

(23) “Aspectos da Política Econômica Nacional”, Roberto Simonsen, S. Paulo, 1935.

(24) “Le Siècle du Corporatisme”, Mihail Manoilesco. Paris, 1936. “0 Século do Corporativismo”, trad. de Azevedo Amaral, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1938.

(25) “The method of freedom”, Walter Lippmann, New York, 1935.

(26) “Liberty in the modern State”, Harold Laski, Londres, 1937.

(27) “History of Freedom”, Lord Acton, citado em “Liberty in the modern State”, Harold Laski, Londres. 1937.


 

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Julho 2002

 

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