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O ETERNO SONO DE AMENÓFIS IV

José Luiz Dutra de Toledo

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O eterno sono de Amenófis IV
José Luiz Dutra de Toledo
(22.12.1951–03.07.2004)

Edição
eBooksBrasil

Copyright
©2000,2006 José Luiz Dutra de Toledo


O Eterno Sono
de
Amenófis IV

[imagem]

José Luiz Dutra de Toledo


 

Í N D I C E

O Autor
A era já era
A jaca do jeca ou do jacu Joca foi parar nas fartas mesas dos militantes da J.I.C., Juventude Industriária Católica
A obscurecida presença negra na história do nordeste paulista.
A primeira noite de um deserdado.
Alfabetizar-se é aprender a articular sons e sígnos.
Alguns setores das esquerdas têm uma visão infantil do poder.
Amostras virtuais da nossa realidade sócio-cultural
Assombrantes vislumbres na visita a um museu de cera
Atos reflexos no orbe contemporâneo
Auto-retrato — 1993
Autoctonismo, provincianismo e forasteiros na historiografia sobre Ribeirão Preto-SP
Autoria coletiva e anônima
Belle-Epoque em Ouro Preto
Breve arquivo de vozes ecoantes em meados de 1999
Céu nublado e um friozinho gostoso!!..
Com rima rica, rifas e tudo mais, o michê Michel lá vai prú beleléu
Contos imaturos
Crítica sobre ensaio-crônica O Uni(verso) de Carlos "Platão" de Andrade, de Hermano Freitas, publicada na revista eletrônica Proa da palavra — ZAZ — Internet:
Deltacid não perdoa. Mata!.. ou Como fabricar socialmente serial killers
Edward Albee e Arthur Miller em luminosos neóns com os quais Picasso, em tempos pós-Paul Klee, desenhou com gestos estéticos
Enjoado de tanta lasanha, ouço Duke Ellington num fim de tarde de domingo
Entre uma Esmeralda do Pará e uma Stela da Bahia fico com as duas
Figos secos das apocalípticas figueiras da Turquia onde Absalão perdeu seu couro cabeludo, uvas do noroeste paulista, iogurte natural e fragmentos crocantes de papos pornográficos na Internet
Ideologia e racismo na história das devoções católicas brasileiras
Introdução à História da Velhice no Ocidente
Ninguém diz tudo o que pensa ou sente e se o disséssemos o mundo teria um enfarte fulminante
O Brasil diante do oco sertão empoeirado do fim do mundo num fim de tarde de domingo
O eterno sono de Amenófis IV
O medo do futuro e a necessidade de pensar um mundo que existirá além do ano 2000
O que sinto embaixo do meu pool-over de costelas


 

 

O Autor

 

José Luiz Dutra de Toledo, historiador, professor, cronista, calabora desde 1969 com vários suplementos culturais mineiros, paulistas, cearenses, sergipanos, fluminenses e do exterior.

Mestre em História pela UNESP-Franca-SP (1990), Prêmio Clio (1992) da Academia Paulistana da História. Professor da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto-SP, apreciador da música contemporânea de Zeca Baleiro, Chico Science, Banda Nação Zumbí, Tom Zé e Milton Nascimento.

Capricorniano, nasceu em 22 de Dezembro de 1951, em Tabuleiro-Minas Gerais, filho de Joaquim Ribeiro de Toledo Netto e de Sílvia Dutra Toledo; estudou no Grupo escolar Menelick de Carvalho (escola estadual de Tabuleiro-MG), no Ginásio Comercial João XXIII (escola comunitária de Tabuleiro-MG), na Escola Agrícola Federal de Rio Pomba-MG, no Colégio Estadual Sebastião Patrus de Souza de Juiz de Fora-MG; na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Universidade Estadual Paulista — campus de Franca-SP (tempo de escolaridade: 23 anos interruptos, sempre em escolas públicas, nunca estudou em escolas particulares); trabalhou em Juiz de Fora-MG, Chácara-MG, Porto Alegre-RS, Gravataí-RS, Sobradinho — Joazeiro-BA (CHESF), São Paulo-SP, Altinópolis-SP, Franca-SP e em Ribeirão Preto-SP; presidiu o Diretório Acadêmico Tristão de Atayde do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG e na mesma época (1972/1975) venceu concurso para a monitoria da disciplina História das Idéias Políticas I no Departamento de História do mesmo Instituto acima citado.

Já viveu em Rio Pomba-MG, Juiz de Fora-MG, Porto Alegre-RS, São Paulo-SP, Sobradinho-BA, Altinópolis-SP, Ribeirão Preto-SP e em Piumhí-MG em variados e diversos endereços nestas mesmas cidades, repetindo as famosas sinas de Fernando Pessoa e de Dostoievski.

Mora em Ribeirão Preto e região desde 1984. Acumula mais de 1500 textos publicados mas até hoje não tinha conseguido publicar sequer um dos seus 23 livros inéditos mas encadernados e guardados numa vulnerável arca de pó de madeira colada (compensado).

Publicou entre 1969 e 1999 mais de dois mil textos em jornais, fanzines, suplementos culturais e revistas literárias de pelo menos doze estados brasileiros e Distrito Federal; professor em escolas públicas e particulares entre 1973 e 1995; organiza desde Abril de 1995 a Hemeroteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto — Ribeirão Preto/Estado de São Paulo/Brasil.

Seus dois volumes de coletâneas de textos publicados em jornais brasileiros nos 7 primeiros meses de 1998 foram incluídos no acervo da Biblioteca Nacional do Uruguay em 18 de Janeiro de 1999.

Aprecia muito moranga cozida com rodelas de cebolas e ovos cozidos, abóbora d’água com quiabo, carne de porco, arroz, feijão e angú..."não posso comer doces mas adoro pudins dietéticos de coco, figos secos da Turquia, bolos dietéticos, gelatinas, etc.. e sou narcisista, por que não haveria de sê-lo??..."

Ama os animais e as plantas, não é esotérico, nem direitista, nem centrista, nem esquerdista, nem extremista, nem anarquista, irrotulável, mas apoiou Fernando Henrique Cardoso para o mandato presidencial (1999/2002).

Atualmente tenta implantar o seu projeto de um Centro de Expressões e Estudos sobre Imaginários, Mentalidades e Tendências Contemporâneas, um desdobramento das projeções de Ivan Illitch, educador mexicano que no CIDOC — Cuernavaca anteviu uma sociedade sem escola, na qual o conhecimento seria cultivado em pequenos grupos de interesses específicos. Mais ou menos como hoje ocorre em torno de sites e home-pages da internet. No caso, busca-se intercâmbios e formas de divulgação e registros de reflexões, estudos e manifestações inspiradas ou suscitadas por questões atinentes aos nossos imaginários, mentalidades e tendências contemporâneas. O Centro está, provisoriamente, instalado à rua Vinte e Um de Abril, número 77 — Vila Tibério — Ribeirão Preto — Estado de São Paulo — Brasil 14050460 e-mail: dutol@netsite.com.br, para o qual o leitor está convidado a contribuir.”

O professor José Luiz Dutra de Toledo faleceu em 03 de julho de 2004, aos 52 anos de idade. [N.E.]


A era já era

(....) “É. Tudo é milagre. Não precisa curar leprosos. Não preciso milagres desse tipo. A cor amarela para mim é um milagre. A percepção é um grande milagre. Poder ouvir um som, mi bemol, é um milagre. O azul, as experiências biológicas, o gosto da batata frita são milagres.”

Paulo Leminski, em entrevista a Ademir Assunção — número 6 da revista literária Medusa — Agosto/Setembro de 1999 — Curitiba-Paraná.

Angelina e seus longos cabelos anelados desconheciam as sombras das angústias que freqüentemente traziam olheiras ao semblante martirizado da sua tia que perdeu o noivo no canal de Suez. Com suas pernas à vista e seus gostosos calcanhares retidos nas coloridas fitas de couro das suas sandálias de mulher rural, ela despertava mais cobiças que as toalhas de veludo, os tapetes e os perfumes que a sua tia recebia do noivo desaparecido no canal de Suez... E tudo chega a um fim e a um ponto de sossego: casada, Angelina procriou, trabalhou para sustentar os seus, sofreu, esgotou-se, deixou de ser gostosa, envelheceu, divorciou-se, teve muitas olheiras e rugas e morreu do coração. Dizem que foi de tanto fumar.

Dom Leonardo foi um monge com barba leonina e uma canina fidelidade ao Senhor que só nominalmente possuía os bens suntuosos e pródigos de sua rica e gorda Igreja, com suas abadias, abóbadas e as abóboras colhidas pelos franciscanos na Aquitânia. Seus escuros calcanhares de homem que andava descalço por esse mundo de Deus eram tão sujos e terrenos quanto a sua alma de San Juan de la Cruz, dividida entre o gozo das tentações e a busca de aconchego na pureza de uma tremeluzente luminosidade espargida da ponta do pavio de uma vela de cera quase amarelada.

Henriqueta tinha toalhas de feltro verde bordadas com aplicações de temas florais singelos e passadeiras com desenhos mouros em sua sala perfumada. Quando eu invadia, pé ante pé, a sala muda e penumbrosa de Henriqueta, eu saqueava seus potes vítreos com frutas secas, seus drops de vitamina C com sabor laranja e seus bombons de Colônia. Ela notava os resultados das minhas incursões mas, fina e elegante, não punha a boca no trombone e, assim, acostumei-me às suas delícias e tornei-me um ladrão que só assalta salas chiques.

Gustavo era pálido e sua cabeça, coroada por uma larga testa nobre, adornada com os floreios das mechas dos seus cabelos. Gustavo puxava a cortina da porta do meu quarto de pensão e, com jeito distinto, me consultava: — ”Posso adentrar às suas viscerais intimidades intestinais?” Quando eu ria, ele nem esperava minhas palavras e ia sentar-se na beira da minha cama. Dava-me suas mãos e lambia-me com seus olhos luminosos.

A dona Violeta, esposa do Dr. Felício, dizia que sua filha era aeromoça e vivia — em plena “guerra-fria” — em Salt Lake City, nos Estados Unidos. E o Dr. Felício, comunista de carteirinha, colecionava jornais panfletários de esquerda, com fotos de mendigos bêbados e famintos vagando nos anos 50 do século XX pelas ruas de Belo Horizonte e tinha como esposa uma aristocrática Camargo.

A rosa, mimosa e formosa, almofada de pétalas, com um centro solar de pólens amarelos!... O gorjeio dos pássaros num oásis em tarde de calor... as cítaras embalam a música numa procissão indiana.. a agilidade dos neurônios dos rabos das lagartixas me levam a arrepios de fé.. a poeira que encobre o Sudão e as choupanas com suas latas de alimentos vazias ou servindo de esconderijo às baratas, também famintas, esta poeira é atemporal.. incessante.. eterna como Deus!.. Eu grito de dor e alegria não — masoquista: poesia!... As casas do sertão têm aqueles caminhos tortuosos que eu só via em meus infantis desenhos escolares de casinhas, com fumaça na chaminé e cerca de taquara seca. Depois do ano 2000, o que será de nós, homens do século passado?

(....) ”Nada aprendemos do passado; somos o passado.” (Robert Hunter).

A rosa é viçosa. “A alma é o viço dos ossos.” (Robert Hunter). O demônio é natural, divino e engraçado. O viscoso humor da rocha que baba na boca boxer da minha escura cachorra Saragoza. Pink Floyd é o grupo musical mais representativo da primeira metade dos anos 70 do século XX? Minha voz tecla, minha voz digitada se esvai pelos labirintos eróticos da internet. Só ouço agora o barulho pós-modernos dos trilhos se atritando com os trens do metrô. É fantasmagórico. Frio e sinistro. Arrepios na espinha.

Embora eu não seja amigo, nem inimigo, do ensaísta e romancista João Silvério Trevisan, e reconhecendo que todos os escritores de verdade são necessariamente controvertidos, polêmicos e donos de pujantes e pungentes almas, devo aplaudir Trevisan por ter dito, em entrevista para Wilton Rossi e Vivaldo Trindade da revista eletrônica Verbo o seguinte: “As pessoas em geral não imaginam a capacidade que a estrutura social tem de punir os desviantes. Ela é cruel e inflexível. A punição vem incessantemente, por ataques diretos, indiretos e até mesmo através do silêncio, que se torna uma verdadeira conspiração, tão bem articulado é. (....) Para ser escritor em tempo integral é necessário um bocado de coisas que eu não tenho — e que estão acima do mero talento. Ser de uma família rica e/ou tradicional, por exemplo. Ser amigo dos donos do poder. Estar inserido numa estrutura privilegiada do ponto de vista remunerativo. Ser amigo dos melhores editores do país. Gozar do beneplácito da mídia, por motivos que independem do talento. Pode ser um motivo bem fortuito: ter, por exemplo, 20 anos ao lançar seu primeiro livro, que por acaso recebe elogios de um intelectual da moda. Ou até mesmo ter um palminho de cara bonita. Funciona mais do que a gente gostaria de admitir, infelizmente.”

Sem recair na “mesquinhês de afeto que cerca um escritor”, devo acrescentar ao justo desabafo de Trevisan alguns dados sobre a sua própria trajetória pessoal e literária:

Primeiro: sua cara foi e é bonita, interessante. Segundo: seus livros foram publicados por alguns dos mais influentes editores brasileiros. Terceiro: João Silvério Trevisan trabalha ou trabalhou recentemente para o grupo mais sofisticado da mídia nacional, os d’Ávila. Quarto: este célebre escritor paulista é irmão do poderoso auditor Antonino Marmo Trevisan. Quinto: este importante escritor brasileiro da segunda metade do século XX começou sua carreira literária liderando o grupo Somos, grupo de afirmação dos direitos civis dos homossexuais (fundado entre 1977 e 1978) e lançando seu clássico Em nome do desejo (sobre relações homoeróticas entre adultos e crianças em seminários formadores dos nossos padres católicos) e, antes, o não menos clássico, Testamento de Jonathas a Davi. E, por fim, nada tenho contra tais dados complementares sobre a vida e a obra de João Silvério Trevisan.

As rosas não falam, as rosas não choram, as rosas não conspiram... as rosas perfumam, as rosas murcham, as rosas se despetalam... se submetem à voragem do tempo sem melodramas... uma rosa murcha e vermelha num copo d’água ao lado de uma caveira humana: uma alegoria barroca sobre a efêmera duração das nossas vidas. As rosas são da vida e da morte. As rosas são femininas na maciez das suas pétalas e másculas em seus galhos de espinhos e dores. A natureza é andrógina. Minha cachorra boxer não é nada feminina quando bufa que nem macho... ela chega a ser máscula quando simula masturbatoriamente uma relação sexual com as minhas pernonas musculosas. À noite, alta madrugada, converso com uma amiga que morreu recentemente com quase 90 anos em Belém do Pará e percebo que seu espírito luso-indígena também é andrógino. Hilda Hilst, embora seja uma mulherona, para mim ela é um ser andrógino, como um lírio copo de leite (flor fálica) ou como um antúrio vermelho.

Desde criança eu acho que ser rico é poder comer quantas latas de leite em pó eu queira num mesmo dia. Adoro comer leite em pó... há algo de erótico no cheiro e no sabor do leite em pó, assim como nos cheiros e nos sabores de uma maionese... num mingau de inhame, num mingau de maizena e no mingau de aveia!... Para mim tudo que é delicioso é, no fundo, erótico, sexual, espermático. Estas são as minhas bem aventuradas teses heréticas desta última e enluarada noite de Sábado de Agosto de 1999. Para quem já disse tudo, nada mais a sentir, nem a pensar: agora só o frio éter ou as escritas do absinto a clamarem para que nos ausentemos absurda e abstentemente, nos alienemos de tudo que já é nada. Somos abstentos e abstersos. Abstratos absintos, anis e anil do eterno, do além moderno. Miss, pisque os olhos para mim, para esta foto à frente da fachada do maior cassino de Las Vegas? Os cheiros das ossadas humanas não diferem essencialmente dos cheiros das demais carcaças animais.

Rinaldo é o nome do meu mais novo admirador e leitor. Eu escrevo sobre o que vivo e os que de mim se aproximam ganham voz em meus dedos digitadores.. eu sou eu e meus circunstantes.


A jaca do jeca ou do jacu Joca foi parar nas fartas mesas dos militantes da J.I.C., Juventude Industriária Católica

Texto-collage

Morreu com 94 anos, nos United States of America, uma cantora lírica brasileira, chamada Bidú Saião, que os caipiras brasileiros lamentavelmente não conheceram. Nossa pobreza cultural, nossa miséria intelectual explica também o crescimento e o fortalecimento de políticos demagogos, salvacionistas e ressentidos, “sem projetos” e com apenas algumas e surradas “palavras de ordem” simplistas, inexeqüíveis e inviáveis. Está assim produzido o fermento político mais propício ao nascimento e fortalecimento de novos Hitleres ou Stálins no Brasil. Entre os jecas, os Jocas, os Jucas e os jacus e a inteligência, a ousadia e a busca de avanços, fico com as alternativas mais lúcidas, contemporâneas e com a esperança. As possibilidades de contatos, comunicações e conexões em nossos tempos são, teoricamente e tecnologicamente, maiores e democratizantes. Um dia desses li um texto de uma revista literária mexicana sobre as peculiaridades urbanas e históricas (inclusive estéticas) da cidade de Montevideo, capital uruguaia. Anteontem e ontem li contos sobre o mundo-cão paulistano e os relatos de viagens internacionais do escritor underground das Perdizes, José Salles. Gosto de andar descalço. Só não ando descalço nos dias frios. Que são raros. Estou mudando de casa e meus livros estão encaixotados. Sinto falta deles, principalmente de Los Cantos de Maldoror de Lautréamont. Devo-lhes a tradução fragmentária do sexto canto de Maldoror. O texto sobre Montevideo me foi enviado esta semana pelo escritor montevidense, radicado em São Paulo, Alfredo de Castro Fressia y Fressia. Divulguei pela rede Internet o concurso literário da Academia de Letras de Rio Pomba-Minas Gerais. Antes, durante e depois do blecaute da noite de 11 de Março de 1999 tive que manter a calma em meio aos gritos de satisfação dos vândalos barbáricos deste final de milênio. Existe uma pulsão autodestrutiva e suicida em nossa civilização. Esta pulsão chama-se barbárie. Tem gente que ostenta a sua síndrome de pânico como uma doença chic, de gente fina. Favelados e pobres em geral são simplesmente tachados de histéricos atores da baixaria humana. Não gosto da revolta político-partidária expressa pela música Rap.

Já fiz várias tentativas de declaração de renda pela internet, todas até agora infrutíferas. Estou cansado. Meu amigo Walter ouve os Beatles cantando Yesterday, o que me faz lembrar da geladeira barulhenta e elefante branco Frigidaire da minha gorda tia Glorinha. “Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exú consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio e Exú se riu falando que isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora municipal pra casarem e Exú consentiu. Um médico fez um discurso pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exú consentiu.” (Mário de Andrade em Macunaíma — Quinta edição — Martins).

O fotógrafo octogenário Aliaúdes D. de Oliveira andou descalço enquanto pôde, inclusive em casamentos e outras festas sociais solenes e pomposas, desde o dia que, fotografando cenas de um casamento em Piau-Minas Gerais, uma mulher riu do tamanho monstruoso dos seus sapatos número 46. Tenho uma prima chamada Eva, filha do meu tio-avô Juca Dutra, que tem cara de dedão do pé ou de macarronada ou, sei lá, cara até de inhoque. E não é a toa que hoje ela tem um restaurante na beira da estrada que liga Tabuleiro a Juiz de Fora.

“E confessando, disse que haverá alguns seis anos que, estando em casa do dito seu pai e mãe, em Matoim, sendo ele de idade de alguns dez ou onze anos, dormia com seu irmão maior que ele, e mais velho que ele um ano pouco mais ou menos, chamado Antonio d’Aguiar... estando ambos sós em uma cama, e uma ou duas vezes lhe aconteceu que, alternadamente, um ao outro se cometeram com seus membros viris desonestos por seus vasos traseiros, começando e querendo penetrar, porém não penetraram, e ele confessante não tinha idade para ter polução, e de seu irmão não lhe lembra se a teve... e ele confessante, também outras três vezes pouco mais ou menos, cometeu com seu membro desonesto ao dito mameluco Marcos no seu vaso traseiro, tendo nele os ditos acessos e conatos nefandos e torpes, e de todas as vezes nunca ele confessante teve polução de semente... Confessou mais, que depois disto, sendo de quinze anos de idade, foi dormir algumas vezes na casa dele confessante, à sua cama, Antonio Lopes, bacharel em artes, natural do Rio de Janeiro, que ora nesta cidade se quer ordenar de clérigo, e duas ou três vezes ele confessante teve ajuntamento nefando com o dito Antonio Lopes, penetrando-o, ainda que não perfeitamente, e tendo no dito seu vaso traseiro polução de semente por detrás como se fora homem com mulher por diante... ... E estando assim ambas sós em casa, fecharam a porta por dentro e se deitaram sobre uma cama e tiveram ambas o nefando ajuntamento carnal, deitando-se a dita Francisca de costas e ela confessante de barriga em cima dela, e ajuntando seus vasos, sem haver outro nenhum instrumento penetrante mais que somente seus vasos um com o outro.... ...e chegaram ambas a tão desonesta amizade que duas ou três vezes, em diferentes dias, se ajustaram ambas em pé uma com a outra, com as fraldas afastadas, abraçando-se e combinando e ajuntando suas naturas e vasos dianteiros um com o outro, e assim se deleitavam como homem com mulher...” (Anais da Visitação do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa feita em 1591 à Bahia — fragmentos do livro Confissões da Bahia, organizado por Ronaldo Vainfas e editado em São Paulo, na coleção Retratos do Brasil, volume 10, pela Companhia das Letras, no ano de 1997).

“Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as cousas lúgubres da cidade — a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital, vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; os bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios e sadios...” (João do Rio — fragmentos da sua crônica Os urubús, publicada em 15 de Fevereiro de 1907 pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro). (...) “A personalidade deve aparecer nas obras literárias, e a personalidade humana não é só modelada pelo mundo exterior, também o é pela evolução espiritual das épocas.” (Sílvio Romero in: O Naturalismo em literatura).

Só fisicamente é impossível vivermos o retroceder, ou o retrocesso em um túnel do tempo... Outras vezes, temos a impressão que o passado continua, sob novas roupagens, presente. Quem vai aos hospitais e aos ambulatórios de saúde pública ainda vê no fim do século XX o que João do Rio via no início do mesmo século: um intenso comércio ambulante de alimentos ou lanches rápidos, quando não o cortejo de papa-defuntos a oferecerem coroas de flores e outros serviços funerários. Imaginariamente o retorno ao passado pode ser pleno e concreto, com ou sem as graças nostálgicas do martírio da depressão e da angústia existencial. Sou um aleatório escavador arqueo-genealógico de túneis no tempo histórico brasileiro. Quero, assim, desnudar (mesmo que só parcialmente) os 500 anos de história do Brasil. Bar, doce bar!... é do bar do Paulinho que vem aquela música sertaneja brega que canta assim...”...na sala de cirurgia, pela vidraça eu via..” É um barato, não é?

Finalmente, consegui fazer minha declaração de renda pela Internet e não serei punido pelo fisco, e nem acusado (como o foi o grande cineasta sueco Ingmar Bergman) de sonegação. Quantos ricos, irresponsavelmente, sonegam impostos neste nosso combalido e injusto país!... Que elites mais desavergonhadas as que temos!... E, assim, serei um dos primeiros assalariados brasileiros a ter restituído um valor excedente retido na fonte. Graças à Informática, meu Deus!...

Não existem campos mais verdes e lindos no Brasil além dos que temos no Rio Grande do Sul. As paisagens das serras do norte do Rio Grande do Sul são muito parecidas com os visuais de cartões postais europeus. Pelas asas da PLUNA — empresa aérea semi-estatal uruguaia com participação acionária majoritária da empresa privada brasileira VARIG — pude ver em Janeiro de 1999 o quanto são esplêndidas as coxilhas sul-riograndenses do Brasil. O padrão alimentar e de consumo de amplos segmentos das populações riograndenses do Sul brasileiro estão acima da média nacional. E nem por isso o povo gaúcho brasileiro é feliz. Elevam-se, cada vez mais, os índices de suicídios e de doenças mentais entre os que vivem em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Será que a nossa infelicidade aumenta à medida que consumimos projetos e desejos míticos de felicidade e/ou de prosperidade? A busca da liberdade na terra de Marlboro nos trouxe o caos e violência, barbárie e criminalidade organizada.

Não consigo me acostumar com os ruídos dos carros, motos, ônibus, caminhões e aviões. Me sinto incomodado e enfastiado no meio de tanto trânsito e tantos desencontros e desnorteios. É aí que percebo a superioridade da inteligência das baratas a nos driblarem com suas circunvoluções, se aproveitando dos nossos cegos raciocínios retilíneos. E as moscas, mais ainda.

Para mim, a Leila Miccollis é a grande rainha da mídia cultural eletrônica brasileira, neste fim de século XX, com o seu site e revista cultural Blocos. Ela merece muito mais que ovos de Páscoa e bacalhau na próxima semana santa!...

Suprunda Hully — Gully Baby me ensinou aquilo que o psicanalista Carl Gustav Jung nos demonstrou, em seu erudito ensaio Aion — estudos sobre o simbolismo do Si mesmo (editado no início dos anos 80 no Brasil pela Editora Vozes de Petrópolis); que as fachadas e exterioridades arquitetônicas dos templos das mais tradicionais e milenares religiões do Extremo-Oriente asiático estão fartamente decoradas com vastos e ricos painéis com cenas eróticas que os ocidentais classificariam ou censurariam como pornográficas. Tais lances arquitetônicos revelam a postura oriental frente a sexualidade humana. Para os grandes Mestres espirituais da Índia, da China, do Japão, da Indochina, da Mongólia e da Coréia, a vivência intensiva da nossa sexualidade nos coloca na ante-sala dos mistérios mais profundos do cavernoso e platônico universo humano e, tal vivência, é pré-requisito para a nossa evolução espiritual, intelectual e estética.

Rosilda!.. Ô Rosilda!.. Quer feijão cozido?

Nunca escreveria um best-seller de auto-ajuda, mas posso escrever sobre minhas experiências pessoais. E sobre estas eu tenho que dizer que o amor próprio, a auto-aceitação ou auto-estima e o delineamento flexível e dinâmico de um projeto de vida com metas e sonhos viáveis e até inexeqüíveis são ingredientes básicos nas posturas existenciais que me fortalecem e me felicitam. Gostar de si mesmo faz bem à saúde e ainda nos rende credibilidade e bom sucesso.

O toque-toque ou o toc-toc-toc dos saltos altos nos corredores da burocracia labiríntica e o coque charmoso da secretaria riopombense Maria Marotta me impressionam tanto que quase arrotei satisfação digestiva e afetiva nessas lembranças poéticas e ansiosas.

Meus antepassados mortos são páginas passadas durante a leitura do livro da minha vida. Tinha eu tanta vontade de me mudar daquela casa que, lá permanecendo, lá vivia só a escrever como se, assim procedendo, dela pudesse fugir. E do alto de um apartamento do décimo sexto andar, um amigo, recluso em seu vítreo aquário, imaginoso, olha lá de cima os que se movimentam na linda praça lá de baixo, ignorando os ácaros que dormem no tapete da sua sala.

Adoro banana maçã. E uma ventania de ventilador... ou de uma brisa que adentre pela janela, com aquela lufada aliviante. Minha boxer tigrada está alheia aos percalços pelos quais passam cotidianamente os vulneráveis seres genericamente classificados como “humanos”. De sua aristocrática e assanhada postura, essa canina criatura só pensa em brincar, comer, roer, beber, lamber e dormir. Enclausurada, a rainha de Saragoza é a própria angústia perplexa de existir barrocamente no presente e espetacular labirinto mundial. Entranhado em suas quentes peles lanudas de lobo e engraxado pela manteiga das ovelhas tributárias, o rei de Aragão persiste e persevera, entronado, há décadas. Zero vírgula trinta e oito por cento da massa financeira movimentada pela rede bancária brasileira a partir de Julho de 1999 irá para os cofres do Tesouro Nacional. Meu coração ibérico digere filé de peixe frito em azeite de oliva espanhol. Meus ancestrais mais remotos vieram de Toledo, na Espanha. O primeiro ser humano europeu proveniente de Toledo a se estabelecer por algum tempo em terras americanas foi dona Maria de Toledo, nada menos que esposa de Bartolomeu de Colombo, irmão do descobridor Cristóvão Colombo, nome da avenida portoalegrense onde ficava a sauna onde vivi os mais fartos e intensos prazeres sexuais da minha vida, lá pelos idos de 1977... 1978... bons tempos! Ótimos tempos!.. Mas não os troco pelos que estou vivendo agora, isto de jeito nenhum eu faria!..

Meus cabelos terrenos e minhas muitas perplexidades, adicionados aos prazeres de cinco planetas em coito e à preguiça adolescente da maioria dos meus sobrinhos, confluindo-se e mesclando-se em sensações e disposições, levaram-me a desnudamentos e a relaxamentos animais nesta tarde de 21de Março de 1999, às vésperas do outono e horas antes da festiva entrega do prêmio Oscar, em Hollywood.

Estrasburgo é a capital da Alsácia, região franco-alemã especializada na artesania em cristais. A internet está mandando para o passado irreversível a profissão de vendedor de enciclopédias. Rubros caquis, aprisionados na geladeira, aguardam a minha vontade de devorá-los. Preciso evitar ou diminuir o número de evaporações de minhas idéias favoritas. Mas, ao esquecê-las, talvez creia que retornem em outras circunstâncias. A mão trêmula do pálido afeto certamente não me convenceria a esquecer amargos sarcasmos ou a sopa de aspargos que eu e Walter tomamos num restaurante de Campinas no reveillon de 1984. O galo e o touro, num horizonte de ouro, exalam o otimismo piedoso dos que se emocionam com a aurora. Uma vassoura nova e loura nem sempre é mais eficaz que as desarvoradas e amassadas vassouras deterioradas pelos rituais da sagrada rotina. As planícies da fartura agrícola da Gália trans-alpina são as mais remotas pátrias de Sartre, De Gaulle e Georges Pompidou. Todos os jesuítas estavam com cólicas quando o tempo urgia e meu coração ansiava pelas chaves da biblioteca sobre a história da China. Um dos cônegos menores foi surpreendido em atos obscenos na tumba dos amantes. “Só Deus sabe quem é e quem não é hipócrita... Um ladrão se pega com outro ladrão...” (Laurence Sterne — A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy — tradução de José Paulo Paes — São Paulo — Companhia das Letras — 1998). Quando olhamos o horizonte, temos a ilusão do limite ilimitável e, assim, nos sentimos eternos filhos do ouro solar do crepúsculo que aprofunda nossa sensível alma órfã e exilada. Ovídio é eterno em meu terno peito, que há décadas não enverga um paletó de terno de linho pérola branco. Jogos de palavras são diversões neo-barrocas para nossas tonturas de peregrinos que desconfiam das saídas a nós reservadas no fim das nossas atordoantes e felizes existências. Mas deixemos de frescuras, a cultura da reclamação nos impede de ver que tudo pode estar sendo maravilhosamente divino e debochadamente espetacular e fantástico. “Toda unanimidade é burra.” — Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico.

Ribeirão Preto-SP, 21 de Março de 1999


A obscurecida presença negra na história do nordeste paulista

Texto da palestra de José Luiz Dutra de Toledo durante a Semana da Consciência Negra — 21 de Novembro de 1998 — no Salão Nobre da Câmara Municipal de Ribeirão Preto-SP, evento promovido pela Secretaria Municipal da Cultura e pelo Centro Cultural Orumilá de Ribeirão Preto-SP

É feliz para mim este momento. Vim palestrar com vocês sobre a presença negra na história do nordeste paulista.

Embora não conheça qualquer estudo sobre os negros em nossa história regional, creio ter algo a lhes dizer sobre a participação negra em nossa história regional. Pierre Verger, Jean Duvignaud, Gilberto Freyre, Décio Freitas, Abdias do Nascimento, Laura de Mello e Souza, Caribé, Milton Nascimento, Jorge Amado, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Cruz e Souza, Pixinguinha, Cartola, João do Rio, Machado de Assis, Lima Barreto são alguns dos intelectuais, escritores e artistas que se dedicaram aos vastos mistérios da alma afro-brasileira. Mulatos, negros ou brancos, cada um trouxe a sua valiosa contribuição para os estudos sobre as manifestações e as participações dos negros na formação social e cultural brasileira. No passado setecentista, Aleijadinho e muitos padres sermonistas mineiros revelaram quão expressiva era a cultura sacra e profana das elites afro-brasileiras de então.

Temos conhecimento de que o nordeste brasileiro e o corredor Minas Gerais — Rio de Janeiro basearam até a metade do século XVIII as mais numerosas populações negras do Brasil Colonial. Isto não quer dizer que não encontremos negros no sul ou no norte do Brasil ou nos sertões goianos, matogrossenses e amazônicos. Enfim, a presença negra no mapa cultural brasileiro é muito ampla e significativa, indo muito além do futebol, da capoeira, da música ou da culinária. Lacunas, silêncios e falsas ausências são ideológicas e, só assim, explicáveis.

Nem tudo na histórica presença negra em horizontes brasileiros se restringe aos mecanismos das lutas de classes. Também não creio em passivas opressões. Em tudo que estudo procuro evitar reducionismos simplistas ou esquemáticos. Para o socialista e romancista cubano Alejo Carpentier, em seu romance O Reino deste mundo, muitos negros rebelados nos canaviais das Antilhas dos séculos XVII e XVIII, tentando resgatar a floresta de símbolos africanos e outras profundas referências às suas formações e identidades, prostravam-se aos pés de altares de santos católicos em busca de forças e de proteção. No interior das Minas Gerais, na histórica São João Del Rey, corais e liras, formados predominantemente por negros, se especializaram em cantos litúrgicos dos séculos XVII e XVIII, até hoje entoados em Latim.

Segundo Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste, capítulo V, “uma das tradições mais ilustres da antiga civilização patriarcal do açúcar: do que o seu ócio e os seus vagares produziram de mais típico- desde a casa-grande de Engenho Megaípe ao poema de Maciel Monteiro ‘formosa qual pincel em tela muito fina’(diz-se que inspirado por certa iá-iá muito bonita cujo retrato pintado a óleo, ainda conhecemos na sala de visitas de velho casarão do Recife); desde o punhal fino de Pasmado à festa do Santo Cristo de Ipojuca com senhores de engenho se humilhando na presença de negros, carregando cruzes enormes de madeiras, caminhando pelas ladeiras de pé no chão e cobertos de mortalhas. Mas ao mesmo tempo pagando promessas faustosas de muitas arrobas de cera. E terminada a procissão, comendo muitos doces, muitos bolos, muita comida de açúcar. Ou mesmo comendo-os durante a procissão, como era uso desde o século XVI. Flagelando-se, mas com açúcar na boca.” (páginas 96/97 da quarta edição de Nordeste — Rio de Janeiro — Livraria José Olympio e Editora — 1967).

Esta barroca amálgama e mescla de dor e prazer, doce e amargo, purgação e redenção, pecado e santidade, perseguição e proteção, dominação e submissão, luz e sombras, sonho e realidade, vida e morte, sagrado e profano, vaidade e humilhação, glória e derrota, triunfo e massacre, poder e escravidão não se resumia apenas às características das relações escravistas de produção. Nem por isso as almas negras de Aleijadinho e dos sermonistas barrocos das Minas setecentistas e até o músico da Corte de D. João VI no Rio de Janeiro, padre José Maurício Nunes Garcia, ou os corais de negros de São João del Rey ou a música de Milton Nascimento e de muitos escritores e pintores brasileiros (como o músico e pintor de temas sacros de Itú, frei Jesuíno do Monte Carmelo) deixariam de barroquizarem ou reinventarem perspectivas barrocas em suas obras. O mulato maranhense Joãozinho Trinta seria uma espécie genial de Aleijadinho deste final de século. Este grande promotor de festas populares é um notável elo entre a faustosa prodigalidade festiva e dadivosa dos negros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Ouro Preto-MG (co-promotores do célebre cortejo do luxuoso e pomposo Triunfo Eucarístico, que em 24 de Maio de 1733 inaugurou a Matriz de Nossa Senhora do Pillar, num ritual de re-pactuação das elites mineradoras, divididas por suas crescentes ambições, agravadas com o início do esgotamento da mineração) e o esplendoroso carnaval carioca. Parafraseando o ilustre mulato maranhense, negro gosta de luxo. O conhecimento historiográfico sobre a formação sócio-cultural de vários povos africanos nos revela o luxo das cortes africanas. Ou seja, não só as monarquias européias foram espetacularmente pomposas.

Em seu livro Negros do Trombetas, guardiães de matas e rios, publicado em 1993 pela Editora Universitária da Universidade Federal do Pará, a dupla de sociólogas Rosa Acevedo e Edna Ramos Castro nos mostram o histórico papel dos negros na preservação do meio-ambiente e na relação harmoniosa entre homem e natureza. A bibliografia sobre a presença negra na história brasileira é farta e vasta. Apesar disso a historiografia sobre nossa região traz muito pouco sobre a participação negra na formação sócio-econômica e cultural do nordeste paulista. Ao mesmo tempo constatamos que os nossos historiadores se lembraram muito mais de pesquisarem sobre os entrantes mineiros, os imigrantes italianos e espanhóis, os mascates de origens turcas e sírias e a presença nipônica na história paulista deste século expirante. Relegada à obscuridade ou merecedora de referências fragmentárias quase sempre negativas, assim vem sendo depreciada a presença negra em nossa formação regional. Prisco da Cruz Prates, em seu livro Ribeirão Preto de outrora, editado pelo autor, em seu segundo volume, datado de 1956 — pág. 14 da segunda edição, se refere à fazenda do Retiro e aos seus escravos. Mas nem todos os negros que aqui chegavam eram escravos e, possivelmente, muitos vinham de povoados remanescentes de quilombos do sudoeste ou do sul de Minas ou até mesmo negros forros. A proximidade entre os numerosos quilombos do sul e do sudoeste de Minas e o nordeste paulista, bem como a indefinição das fronteiras entre São Paulo e Minas Gerais até o governo paulista de Morgado de Matheus, no fim do século XVIII, pode ter favorecido estratégicos deslocamentos de negros aquilombados de lá para cá ou vice — versa. Segundo o historiador francês Michel de Certeau, em seu clássico A Escrita da História, os santos católicos padroeiros ou oragos de vilas de populações marginais (entre as quais incluíam-se os negros aquilombados ou ex-aquilombados) tinham suas hagiografias e biografias vinculadas a processos de martírios. São Sebastião, padroeiro de Ribeirão Preto, era um destes santos mártires católicos, aos quais os negros dedicavam devoção por verem em seus sofrimentos muitos pontos em comum com os sofrimentos dos escravizados e marginalizados de então.

Na página 5 da edição de 26 de Julho de 1998 do jornal Alto S. Francisco de Piumhí — MG, nascente do rio São Francisco, e não longe de Ribeirão Preto, um anônimo cronista, tentando romancear o ciclo de colonização do sertão de Piumhí, serra da Canastra, Bambuí, Buracas de Cima e adjacências, afirma que “em 1736, quando começamos a picada, isso aqui era um inferno. Só tinha índio e bicho. E doenças também, febres que matavam muita gente. Isso aqui era o reino dos calhambolas! Tinha tanto negro fugido que o arraial do Piumhí praticamente acabou. Os que sobraram vivos dos ataques de caiapós e negros voltaram no rastro para Pitangui e a região ficou deserta. Quem se arriscava a entrar por esses lados era por falta de amor à vida. “ Perguntado um dos personagens (um sesmeiro) chamado velho Acácio sobre como conseguiu carta de sesmaria, respondeu: “A terra foi comprada de um sesmeiro que se desesperou com tantos negros fugidos e índios assaltando sua fazenda, botando fogo na casa, roubando gado e ainda lhe ameaçando a vida. Chegaram a matar um agregado seu.”(....)”Em 1743, chegou a notícia de que o governo estava preparando uma tropa para combater os negros.... capitão Vicente da Costa Chaves, o tenente Manoel Cardoso da Silva e o alferes Sebastião Cardoso de Menezes limparam esse sertão. Correu sangue prá todo lado.. não sobrou nada de negro fujão. Os índios, esses sumiram aí pelas matas. Não assaltavam mais as caravanas, não roubavam mulheres, nem animais, a coisa acalmou.”(...) Aí, perguntado sobre o destino dos negros, Acácio respondeu: ”Acabaram, mas antes eles fizeram muita estripulia, mataram muita gente. Eles e os índios. Os pretos combinavam bem com os bugres. Mesmo aí na frente, ao lado da picada, o senhor vai ver umas cruzes. É o lugar onde um grupo de índios Araxás e uns negros do tal quilombo Queimado massacraram um grupo inteirinho de bandeirantes.”

Como Ribeirão Preto (muito antes de ter este nome) estava à beira do caminho para os sertões dos Goyazes, do Mato Grosso e dos que buscavam as minas de Cuiabá, por aqui na primeira metade do século XVIII passaram bandeirantes e cartógrafos portugueses acompanhados por escravos negros e muitos guias indígenas. Mais de um século depois, o visconde de Taunay, a caminho do cenário da guerra do Paraguay, arrancharia com soldados e escravos negros em sítio próximo à atual Altinópolis, aldeia que pertencia a Mato — Grosso dos Batatais.

Também li referências de Prisco da Cruz Prates, na página 214 do livro Ribeirão Preto de outrora, sobre a fama dos negros feiticeiros, adivinhos e macumbeiros conhecidos muito além das nossas fronteiras. Um dos “indivíduos sobrenaturais” citados por Prates foi o negro Euzébio.

Neste mesmo trecho, o autor conta que o escravo Teodoro, da fazenda Santana do coronel Domingos Villela de Andrade, situada além do distrito da vila de Bonfim Paulista, negro insubordinado e de gênio irascível, carreiro da citada fazenda, e citado por Prates como “ o mais crápula e ordinário daquela propriedade”, matou o seu condieiro, o menino de 9 anos de nome Pedro, filho do casal de negros escravos João e Constância. Tal crime teria corrido quando Teodoro e Pedro, em carro de bois, levavam cargas para a fazenda Boa Vista do coronel Joaquim da Cunha. Quando atravessavam a sombria mata conhecida como mata do Quinzinho, Teodoro teria se encolerizado diante do fato de Pedro ter perdido seu picuá. Estrangulou-o e o amarrou no topo de uma árvore. Constância, a mãe de Pedro, rogou-lhe uma praga e, pouco tempo depois, terminava os seus dias com as mãos secas e alimentado pelas mãos dos outros. Um cruzeiro foi elevado no local do assassinato de Pedro, fazendo dalí um centro de peregrinações. Esta ênfase na crueldade ou na criminalidade do negro estava entre os primórdios da nacional crônica policial racista.

Em imagens mais amenas e nostálgicas sobre o cotidiano local, Prisco da Cruz Prates se recorda, na obra supra-citada, página 222, do negro Orozimbo Pimenta, chacareiro negro nas adjacências do atual Hospital São Francisco. Este sitiante promovia brigas de galos e, em feriados e nos dias 13 de Maio, promovia animados sambas, freqüentados por negros e por estudantes do Gimnásio do Estado, atual Othoniel Mota. Tomavam pinga, quentão, café e quitandas vendidas por Orozimbo. Num carrinho puxado por um cavalinho, vendia garapa, rapadura, mandioca, batatas e frutas de casa em casa.

Para Plínio Travassos Santos, em seu livro O Ribeirão Preto — Histórico e para a História, página 19, nos registros de batismos de 1850 a 1859, encontramos um número elevado de negros livres, negros de origem desconhecida ou irregular e de negros escravos.

Manoel Santos Gabarra, no seu livro Os Pioneiros, página 17, escreve: “No trajeto de Piuí à vila do Desemboque, por duas vezes a caravana foi assaltada. A primeira por índios da tribo dos Araxás e a segunda, por pretos, escravos foragidos do quilombo de Tengo-tengo. Segundo este escritor, neste quilombo todos os homens eram soldados. Se preparavam não só para se defender, mas também para atacar, para libertar os irmãos cativos e executar vinganças contra patrões. Também para Gabarra, seus roubos “mantinham as dispensas do quilombo cheias de farinha, rapadura, sal, sabão e pólvora. Os paióis viviam cheios de abóbora, arroz, milho, feijão, batatas e inhames. A iluminação era feita com tochas e óleo de palmeira. Tinham monjolos para limpar o arroz e fazer a canjica. Secavam a carne e o peixe ao sol. E passavam a maior parte do tempo no topo das árvores como vigias, procurando evitar os ataques de surpresa, e sempre que possível, atacando primeiro os inimigos, antes que eles se organizassem para a defesa.

Ainda neste livro se apresenta o arraial do Desemboque (hoje desabitado) como o primeiro núcleo civilizado a surgir no sertão adjacente à Serra da Canastra (nascente do São Francisco), entre os rios das Abelhas e Quebra — Anzol, palco das guerras entre Araxás e Caiapós. Os últimos também viviam nas terras próximas a Ribeirão Preto, onde hoje encontramos inúmeros vasos funerários.

Na obra já citada de Plínio Travassos Santos encontramos referências à ordem da Câmara Municipal para o desmancho das capelas de Nossa Senhora das Dores e do Rosário. Ordem datada em 14 de Fevereiro de 1881 e demolição ordenada “por ameaçarem ruina”. Informava ainda que a capela do Rosário, situada ao lado da casa de Antonio da Silva Vasconcelos, ameaçava cair. Hoje a igreja Matriz da vila Tibério tem como padroeira a Nossa Senhora do Rosário (tradicional devoção dos negros), mas a praça situada em frente à citada igreja de Nossa Senhora do Rosário, em vez de ser chamada praça do Rosário, ostenta o nome de Coração de Maria.

O mineiro e professor de cursinhos José Antonio Corrêa Lages, em um de seus textos sobre a história local, relacionou os primeiros moradores da região e apresentou dados gerais sobre a última década do escravismo em nossa região, principalmente em Ribeirão Preto e em São Simão. Este panorama final do escravismo no nordeste paulista está calcado em numerosos dados estatísticos sobre faixas etárias, sexos, procedências e causas da crise do escravismo nesta região.

Certamente a história do negro em nossa região não foi só violência, pinga, foices, porretes, danças marciais, capoeira, congada, moçambique, feijoadas, sangue, matanças e feitiçarias. Pedro Miranda, conhecido e empírico historiador de Ribeirão Preto, comentou comigo a presença do panfletário e polêmico jornalista Sebastião Schicino, que teria vindo da cidade mineira de Sacramento ou, para outros, de Uberaba e que, na primeira metade do século XX, se fêz arauto das idéias socialistas e anarquistas, se convertendo numa versão afro-brasileira e atualizada do seiscentista Boca do Inferno, Gregório de Mattos, um maldito personagem na cena cultural e sócio-política ribeirãopretana nas primeiras décadas do século que agora se esvai. Sebastião Schicino foi preso inúmeras vezes após entregar de madrugada, de casa em casa, seus libelos contra as classes dominantes. Sem túmulo ou sem sepultura, Schicino acabou tendo os seus despojos acolhidos no jazigo de uma rica família descendente de imigrantes italianos.

Temos ainda em nossa história regional outro caso significativo. Em Batatais, nas décadas de 30 e 40, atuou uma professora negra chamada Clarice Teixeira, solteirona que liderava a Liga do Apostolado da Oração, secretária do Monsenhor Joaquim Alves e, por sua indicação, orientadora da Catequese naquela paróquia e que lecionou no Grupo Escolar Dr. Washington Luiz. Dona Clarice veio de Guaratinguetá para Batatais, onde teve acesso aos círculos das elites locais. Em vez de morar com sua família, preferiu residir com uma sobrinha branca. Dirigiu o escritório local da Legião Brasileira de Assistência. Apesar do seu rico currículo, morta, a professora Clarice não mereceu sequer um nome de rua. Sua marcante presença na história batataense foi relegada ao esquecimento. Muito provavelmente por causa da sua condição de mulher e por sua negritude. Mesmo culturalmente branqueada, esta professora não é mais lembrada na cidade onde por duas décadas exerceu influência sobre os rumos da Educação e nas decisões paroquiais do Monsenhor Joaquim Alves.

O mesmo cronista Pedro Miranda me sugeriu a hipótese da existência, entre Ribeirão e Sertãozinho, ilhada num mar de cana, de uma comunidade negra isolada ou relativamente preservada e provável remanescente de algum quilombo do passado. De concreto, além destes fragmentos e hipóteses, pouco sabemos sobre a presença afro-brasileira na história da região de Ribeirão Preto. Conhecemos mais a arte tumular ou a resistência dos imigrantes italianos ao poder abusivo dos cafeicultores e barões do café de nossa história do que a história dos que, em muitas décadas, os antecederiam em nossas terras. Além da obscurecida presença negra na historiografia sobre o nordeste paulista, é necessário lembrar também que a presença indígena, neste mesmo cenário, também foi ignorada ou continua pouco ou ainda não estudada. Uma preferência ideológica dos historiadores? — pergunto eu.

Nas últimas décadas deste século, a região nordeste do estado de São Paulo tem recebido um número incalculável de migrantes mineiros para o trabalho em usinas e canaviais. Provavelmente tais migrantes, originários de diferentes regiões do estado de Minas Gerais (principalmente do norte mineiro e do vale do Jequitinhonha), estejam enriquecendo ainda mais o nosso complexo mapa sócio-cultural. E devemos ressaltar a predominância negra neste contingente. Tais mudanças históricas e culturais começam, tardiamente, a despertar interesse e curiosidade das comunidades acadêmicas desta dinâmica região paulista. Há 3 dias, em palestra que proferi sobre este tema, na abertura da Semana da Raça Negra na UNESP-Franca/SP, fui informado da conclusão de estudos sobre arquivos judiciais do século XIX (comarca de Franca/SP) e a presença negra em processos e inquéritos judiciais no mesmo período. Trabalhos de iniciação científica feitos por alunos deste campus universitário da UNESP já enfocam, pela primeira vez, no fim do século, a presença afro-brasileira em nossa história regional. Até que enfim. Ainda bem... antes tarde do que nunca!..


A primeira noite de um deserdado

Solidão amplíssima... perdi hoje a parte do espólio paterno a mim destinada. De meu pai ainda tenho parte da minha carga genética, memórias, imagens, experiências e vivências de variadas formas e conteúdos... Estou tristíssimo... e o pouco que me restou em dinheiro ainda nem chegou à minha conta bancária!... Na realidade a parte que me coube no espólio dos bens paternos só me trouxe ira, indignação e depressão. Preciso de uma psicoterapia, ou de uma viagem......Estou tão triste quanto Cristo no Horto das Oliveiras. Um cósmico desamparo me enreda e me deixa num beco sem saída.

No dia seguinte, continuo vivo.

Só os mortos são sexualmente apáticos. Olho no escuro e, com dificuldade, percebo vultos em ação erótica. Nos 3 pavimentos de um sobrado da rua do Pluviômetro reina a libertinagem em meio a um forte cheiro de galinhas mortas e depenadas. Num surpreendente e inexplorável labirinto de nichos de saunas a vapor e com chuveiros ou salões para sexo grupal com vídeos pornôs, cabines para encontros íntimos e ensebados colchões que aconchegam corpos ardentes convulsionados pelo prazer, não aparece sequer um fiscal das agências governamentais de vigilância sanitária para coibirem os impulsos disseminadores de doenças sexualmente transmissíveis.

Eu não posso pagar pelo comportamento de risco do outro. Muitos dos que se rotulam como soronegativos não passam de sorointerrogativos. As cortinas e as poltronas dos vários cines pornôs metropolitanos estão ensebadas, dilaceradas e depredadas pelo vandalismo orgiástico dos seus freqüentadores. Até que ponto o direito constitucionalmente assegurado de ir e de vir pode até se constituir em ameaça à vida alheia? Quais as infinitas formas sociais e interpessoais de assassinatos? Quem decretou o fim da sexualidade dos doentes? Para mim tudo precisa ficar transparente e dialogado previamente pelos parceiros, de opaca já basta a indispensável camisinha. Quando uma sociedade não consegue conversar francamente sobre estes assuntos esta estará numa rota suicida, propiciando a massificação dos flagelos das pestes.

O rock mais pesado do momento não é mais o trovão do Antigo Testamento. Nem os raios dos assírios e caldeus. É o rock da decolagem ou da aterrissagem ou, ainda, o som que vem da boca do túnel de onde sairá o próximo comboio do metrô. Do meu lado levanta-se um mendigo gordo e bichoso, além de malcheiroso, que, antes de saltar na estação São Bento, nos disse, sem mais nem menos, que ele não ganhava a vida fazendo dublagem das interpretações musicais de Ângela Maria porque não tinha cachê.

O michê, magro e mal tratado pela vida, recostado e com as pernas abertas num dos sofás de couro cru na penumbra do hall de um cine pornô, instado por um rapaz disse que era e, logo em seguida, que não era um prostituto masculino. Esfregava insistentemente uma das mãos sobre seus genitais para atrair clientes mas, depois de muito se oferecer e nada arrumar, foi embora, subindo os degraus de uma escada de espelhos. Aleph.

Nunca me esqueço do cheiro nem da marca da graxa que usava para engraxar meus sapatos de criança e de adolescente: Nugget. Acho que rimei cachê com michê e Nugget. Assim como verges, vergas, vierges, varas e taras das onze mil virgens supliciadas pela dor do martírio de santa Úrsula. Sou o Apollinaire destes pródigos e dadivosos trópicos. Também me considero herdeiro de Tennesse Williams e sou grato a Andy Warhol por esta frase: “Eu nunca caio aos pedaços porque nunca estou inteiro.”

Edinalar entrou na igreja da Consolação para se casar ao som de Pink Floyd. O debate e a polêmica dessacraliza o instituído, o estabelecido. As minorias são as oposições às maiorias numa democracia. (...) “.... a democracia é o perigo permanente da guerra civil. (...) A maior virtude de uma mulher, diz Péricles, é saber se calar.” (Jean- Pierre Vernant). Numa civilização da palavra e na qual tudo decorre daquilo que antes foi dito, à mulher coube um destino no qual nada lhe favorece.

Que tal observarmos as infinitas imagens móveis em suspensão nos cotidianos efêmeros das cidades para que possamos vislumbrar uma eternidade imóvel e neutra? Olhar o escuro sem pensar... nem imaginar que todos os prazeres advêm das trevas. Nem do mundo do “mais ou menos”. Os sofistas gregos já, há muito, diziam que dois discursos contrários se eqüivalem. Tragédias, debates, retóricas e sofismas são máquinas demolidoras das frágeis e ridículas certezas e vaidades humanas. O cobrador do trolebus que liga a Penha a Pinheiros tenta substituir a lâmpada queimada para poder voltar com maior segurança a dar o troco aos passageiros.

“Platão proscreve os autores trágicos da cidade ideal. Aristóteles, em contra- partida, ao engendrar a teoria da catarse e da purgação das paixões, é claro: o espetáculo no qual se mostra o som e a fúria do mundo tem como objetivo e fim a submersão do espectador no plano do terror e da piedade e possui um valor em si: terror, piedade, dor, sofrimento, consolação, concórdia, absurdo, deformação, distorção, ou tudo aquilo que é o cotidiano do mundo, ou seja, tudo que ao se tornar matéria de uma obra ganhe em sinergia e beleza.” (Jean — Pierre Vernant).

Por que tanto escarram e mijam na estátua de Santos Dumont em Rio das Flores, no interior do Estado do Rio de Janeiro? “A ruptura é também uma forma de herança.” (Jean Pierre Vernant). É no jogo entre memória e imaginário, entre o público e o privado, entre o medo e o poder, o centro e as periferias, o passado e o presente que se constituiu o mundo humano. O herói grego Hipólito ora aos deuses:

“— Morte às mulheres! Jamais saciarei meu ódio contra elas!...”

Será que Psístrato, seiscentos anos antes de Cristo, amou o já coroa Sólon, o legislador? Mais ou menos à mesma época, o pobre e feio Sócrates amava o aristocrático Alcibíades. Todo o livro Fedro de Platão é dedicado ao enleio entre carne e espírito. Será verdade que os antigos gregos, em suas expedições guerreiras, libertavam os prisioneiros para que não se atrasasse o avanço das tropas, o que confirma a sertaneja máxima brasileira “aonde os bois vão, os touros vão atrás” ? Nos gineceus das casas grandes do Brasil colonial, mulheres brancas e negras, sáficamente, se cafuneavam. Comadres acariciavam comadres que sentiam arrepios partindo como raios por suas espinhas, de suas nucas aos seus pés e vice-versa. Tudo é história. E a maioria dos historiadores não crê em milagres.

Na Grécia antiga, machos pisoteavam montanhas de uvas das quais jorrava o vinho com o qual se embriagavam e, amando-se, inspiraram a lenda na qual cu de bêbado não tem dono, lenda muito popular nos sertões dos tristes trópicos. Só nos dicionários cu não tem acento. Também na antiga Grécia não se via mulheres em estádios, nem nas termas nem nos ginásios. Nos cines pornôs das grandes cidades brasileiras não são vistas mulheres.

Vários países europeus e americanos estão oficializando ligações entre parceiros do mesmo sexo.

Seriam os “demos” da Grécia antiga os embriões históricos dos feudos do medievo cristão europeu?

O atleta grego Orsippos de Mégara, em 721 antes de Cristo, foi o primeiro a correr peladão durante uma prova olímpica num estádio. Alguns dizem que nem foi proposital. Foi o seu cinto-calção que rompeu-se, soltando, caindo e nos dando um Orsippos totalmente nu. Até os másculos espartanos (militaristas) se apresentavam lutando nus como os lutadores japoneses de sumô. Para Tucídides a nudez era um símbolo de civilização. Mas, hoje, a civilização estadunidense, a mais poderosa do mundo, ainda censura mostras de arte fotográfica com nus masculinos (considerados pornográficos). No entanto a maior indústria de pornografia do mundo está sediada nos Estados Unidos. Para os gregos, bárbaros e grosseiros eram os que não amavam rapazes, ou “eromènos”. Apolo amou Jacinto. Aquiles amou Pátroclo. Harmódio amou Aristogiton. Zeus amou Ganimedes. E, ontem à noite, num cine pornô paulistano, Fábio amou Waldir.


Alfabetizar-se é aprender a articular sons e sígnos

(...)“O passado passa correndo numa chuva de folhas amarelecidas.”
(Zanoto — Diversos Caminhos 2/11/1998).

Para a nossa iniciação nas linguagens eletrônicas da Informática creio ser necessário o exercício articulativo entre ícones, imagens, grafismos, sons e tempos. A arte carnal de Walter Van Beirendonck, estilista belga da W.& LT, é uma das mais expressivas criações dos nossos tempos e dos nossos universos de fetiches. Próteses e outras intervenções estéticas no próprio corpo do indivíduo que ousa, por cirurgias plásticas, submetendo o seu corpo e manipulando-o como um meio ou um campo artístico. A tecnologia médica a serviço da carnal arte, estilo que vai além dos piercings e tatuagens. Adição ao corpo humano de chifres internos, próteses sobre as sobrancelhas, grandes caroços nas testas (como nos descendentes do Neca Espanhola) e intervenções nas maçãs do rosto são exemplos de carnal arte. Corpos humanos (já cadavéricos, ou cada um com as suas veracidades anatômicas e viscerais) são expostos em grandes caixas de acrílico onde bóiam em formol, ostentando-nos seus fisiológicos tecidos envoltórios dos tórax e abdomens nos quais pulsaram vidas e sentimentos ou desejos nunca revelados. A carnal arte de Walter Van Beirendonck é uma forma de esculpirmos o próprio corpo, dando-lhe as formas que o seu dono queira. Assim já procedem, há décadas, os travestis com seus seios e ancas de silicone ou aqueles que recorreram aos mais diferentes tipos de cirurgias plásticas. Caminhamos para a era do “conhece a ti mesmo” olhando-se no espelho do próprio corpo. Os “góticos” do futuro guardarão seus olhos no fundo de cavernas guarnecidas por protuberâncias riscadas por sobrancelhas em forma de arcos ascendentes e patéticos. As malhações em academias são sacrifícios amenos e caretas aos quais se submetem os imitadores de sapos ou de rãs musculosas. Para Nietzche, alguns intelectuais fazem da ciência um abrigo contra o mundo, lembra-nos Jean Duvignaud em seu clássico livro Festas e Civilizações. É o mesmo antropólogo francês que nos revela: “ a metáfora esconde o medo.” E arremata Johann Huizinga: “ o jogo é mais antigo que a cultura.” O goleiro na hora do gol se borra todo. E eu sou compreensivo com os medrosos. Passarinho que não come pedra sabe o cú que tem. Preciso fazer uma tomografia computadorizada para detectar de onde provém este aperto angustiado e stressante em meu peito. Ouvir música italiana em tarde sonolenta de domingo é um convite à morbidez. As flores no jarro estão murchas e amanhã estarão secas. Ah, este mundo que não podemos mais destruir!... Modelemos ou esculpamos (ex-culpa-nos) então, ao menos, nossos corpos!... Dizia Hegel:” A essência de um ente é aquilo em que esse ente se transformou.” E, assim, o homem Criador se transformou em seu próprio Criador. A glória da obediência abate-se sobre os sucessivos e históricos cemitérios de rotativas e efêmeras elites. No entanto, para P. Francastel, a arte barroca parece ligada à exploração estética de esquemas labirínticos imóveis e imutáveis em nossos caleidoscópicos cotidianos, em nossos paradoxos ontológicos. Os bárbaros do fim do século XX querem acabar de destruir o que ainda pulsa no interior das cinzas e fragmentos do Ocidente cristão. O crítico marxista húngaro George Luckacs deplorou o vanguardismo fragmentário dos mais eloqüentes artistas e escritores do mundo contemporâneo. O anti-psiquiatra David Cooper observou o quanto a saúde está próxima da loucura. “Quando a cruz de um indivíduo é muito pesada, uma influência tradicional pode ajudar a carregá-la” — assevera Olavo de Carvalho em seu erudito livro Astros e Símbolos, editado em São Paulo pela Nova Stella Editorial, 1985- ano em que iniciei o meu Mestrado. É ainda de Olavo de Carvalho (in: op. cit.) a seguinte constatação:” O mundo moderno em geral perdeu esse sentido ritual e sacro da existência, e as sociedades são governadas segundo pseudo — finalidades sempre instáveis e provisórias, de invenção e instituição meramente humanas, arrastando multidões inteiras ao esforço e à morte por objetivos de pura fantasia, que se desvanecem de geração em geração, deixando um saldo negro de cansaço, de amarguras e desenganos, logo amortecido porém pela propaganda de um novo e igualmente fantástico “ideal”.” O azul ensolarado desta tarde não dissipou minhas funestas previsões ou o meu cansaço diante dos impasses aparentemente insolúveis com os quais há muito venho me defrontando. A clareza solar vespertina me estonteia, me estupora. Me estropia. Mas eu ressuscitarei. Não sei quando ou onde, mas haverei de ressuscitar num mundo sem ceticismos nem ironias. “Sabei precisamente o que é possível esperar dos homens em geral e de cada um em particular, e, em seguida, lançai-vos ao comércio do mundo!.” — La Bruyère. Eu não presto para nada. Eu não presto mas eu te amo. A barroca linguagem de Luis de Góngora, rompendo com os discursos renascentistas, mistura o “ilustre” e o “vulgar” (no dizer de L. Rosales). O barroco seiscentista espanhol foi pioneiro no espetacular lançamento da notícia — mercadoria. Por isso, em pleno livro A cultura do barroco — uma cultura massiva, de José Antonio Maravall, Thomas Hobbes proclama: “O mundo está governado pela opinião.” A guerra classista de sons e músicas estafa os meus tímpanos. Só sonho com o silêncio trevoso do infinito aconchego. Meu lar atualiza-me o ventre de onde provenho. Já sacrifiquei cinco moscas para o banquete noturno da minha irmã lagartixa, que mora atrás do nosso guarda-roupa. As lagartixas são os jacarés neste meu mundo entre quatro paredes. Mas, no dorso de uma destas cinco moscas sacrificadas, uma colônia de bactérias me lembra a constelação de Villegagnon. Desde o século XVI, Quevedo já relacionava a loucura do seu mundo com a pretensão desmedida e compulsiva que a todos impele a subir mais degraus das torres das hierarquias sociais e, depois, lá de cima se precipitam no abismo da inexistência ou do desaparecimento final. O sarcástico desfecho destas altas existências me faz ouvir Salvador Dali arrastando suas chinelas nos corredores fantasmagóricos de seu castelo de conde ou nos meus delirantes palácios de espelhos e memórias. Talvez Trillo y Figueroa tenha tido emoção ao nos propor, no século XVII, “cegar as luzes para poder ver com elas.” Abobrinha d’água com jiló e angú faz um bem!.. Adoro!...

Há menos de dois meses, a seca escreveu com os galhos das árvores do bosque, que vive na frente da janela da sala em que trabalho, uma crônica de desalento pré-fúnebre. Depois de alguns dias chuvosos, o verde fresco e harmonioso no bosque ressuscitado me leva a perscrutar a natureza mistérica dos seus fatores reconstituintes, retonificantes dos seus vivos galhos onde cantam sabiás, pássaros negros, boiadeiros e cardeais. Onde a vida verdeja e pulsa exuberante sob um sol inclemente.. dando-nos suas generosas e oásicas sombras.

Ainda nesta colcha de retalhos que cobre as vielas das minhas memórias, devo admitir que estão na minha infância as razões dos meus sonhos monarquistas (manifestos por ocasião do plebiscito de 1993) e da indiferença que sinto em relação ao futebol.

Na minha meninice, meu pai tentou evitar que eu brincasse com santos (que eu fazia com barro e com fervor barroco) e com procissões e me impôs a prática regular do futebol, chegando a pagar os moleques que jogassem comigo.

Quanto ao meu monarquismo, Lênin também o veria como uma doença infantil. Mas não foi bem assim. Como em todos os contos de fada tínhamos reis, rainhas, princesas e príncipes urdindo com sucesso grandiosos finais felizes para suas sagas, eu não poderia deixar de sonhar com o mesmo para o meu país. Além do mais, meu avô paterno chamava-se Pedro e, morando em Juiz de Fora, na rua Dom Pedro II, rua que tinha um dos portões de acesso ao riquíssimo Museu Mariano Procópio, cujo acervo exibia expressivas peças e coleções de obras de arte, objetos, documentos como roupas e móveis, fotos e a arquitetura do Brasil Imperial (século XIX) e até do Brasil Colonial (do ano de 1500 até 1822), este meu avô me abriu e me oportunizou, talvez sem o querer, perspectivas e imaginários monarquistas, instigando em mim curiosidades e vontades de estudar e conhecer melhor o nosso passado. Hoje percebo o quanto este acervo museológico me deslumbrou e me impressionou e, assim, admito a hipótese de aí estar uma das motivações que me levaram a ser agora um historiador e um cronista.

Minha mãe era tão ignorante que uma vez, ainda na minha infância, tomou-me um oratório do século XVIII, com santos feitos de pó de mármore e pintados, bem como as paredes internas e externas do mesmo (pinturas com temas da arte sacra de então) — oratório este que eu negociara com a negra Lurdes do Zé Anastácio — e rachou-o como lenha para a fornalha onde fazia sabão e ofereceu as imagens do mesmo para os meus irmãos ralá-las na escada de cimento que dava acesso à horta. Fiquei tão emputecido com esta sua autoritária e traumatizante decisão que, também neste episódio, posso ver mais uma razão para tornar-me mais tarde um historiador.

A musicalidade redentora de Tchaikovski ou de músicos barrocos das cortes absolutistas, bem como os belos retratos de nobres, clérigos e de príncipes ou de reis me traziam uma aura imponente de superioridade majestosa e um ar de solene celebração do glorioso, do vitorioso!...


Alguns setores das esquerdas têm uma visão infantil do poder

No Capitalismo, sonhar que todo o mundo seja igualmente filho do Papai Noel, como se os presentes que carrega em seu saco para distribuição “equânime e justa” não tenham custado nada, como se do céu houvessem caído, como num passe de mágica irrealizável em qualquer sistema sócio-econômico, numa mágica realização eventual da mítica igualdade a satisfazer a crescente massa de despossuídos panfletários-improdutivos,...eis aquí uma das quimeras pré-natalinas das mais babacas.

Outro dia, não, outra noite, no programa de entrevistas Roda Viva da tv. Cultura de S. Paulo, deixando escapar esta sua imagem infantil sobre o que seja poder (justo e messiânico), Marcelo Rubens Paiva, autor de Feliz Ano Velho soltou uma destas: no caso da clínica de idosos Santa Genoveva, onde muitos anciãos morriam por descaso e inanição, aquele jovem escritor sonhava com o todo poderoso presidente Fernando Henrique Cardoso mandando o Exército Nacional isolar a área daquela casa de repouso e alí descendo de helicóptero com voz de prisão para todos os responsáveis pelo que ocorria naquela espécie atual de campo de concentração.

Eu compreendo e louvo a indignação de Marcelo Rubens Paiva, mas um presidente da República não é nenhum super-herói de revista em quadrinhos, F.H.C. não é Bat-man, nem Antonio Conselheiro, nem o rei Dom Sebastião, nem o Zôrro. Além disto, tal concepção de governo é intervencionista, não se coaduna com o tão cantado mas pouco respeitado “Estado de Direito”(tão desrespeitado pelos extremistas de Direita e de Esquerda), em suma, uma idéia autoritária do que seja exercer o poder ou como se procede um governo que pretenda justiça social. Marcelo transforma os donos da Clínica Santa Genoveva em bodes expiatórios de uma sociedade hipócrita que há muito tempo vem relegando ao abandono os raros idosos sobreviventes em nosso país, descartando-os como objetos exauridos, bagaços secos e superados numa sociedade de consumo voraz e suicida, ávida por novas tecnologias para suas cavernas eletrônicas, por novas formas de usar e descartar os outros, seja em salas de bate-papo do “universo-on-line”, seja até em sua própria família, no seu partido, no seu bairro ou cidade ou na sua igreja.


Amostras virtuais da nossa realidade sócio-cultural

Creio que minhas vivências e conversas virtuais com internautas que, como eu, freqüentam salas de bate-papo da Internet sejam amostras representativas da nossa realidade sócio-cultural. No fim de 1998 não tenho mais a certeza dos que diziam que só os filhos das classes médias (?) tinham acesso à Internet. Hoje os segmentos sociais e grupos que acessam esta rede mundial de computadores teriam múltiplas orígens ou condições sócio-econômicas e culturais. Isto pode ser verificado no caos linguístico em curso nestas salas de bate-papo.. É certo que ocorre da parte do conjunto dos interlocutores alí virtualmente presentes uma certa catarse verbal e uma livre expressão de imaginários e de códigos analógicos e de simbologias, metáforas, demandas, fantasias e desleixos com as linguagens de seus grupos e segmentos sócio-culturais. Tudo flui ou estanca em silêncios dos que buscam nichos reservados. Outros fogem aterrorizados quando suas privacidades possam ser invadidas ou devassadas.

Sem qualquer ímpeto pró-censura (tecnologicamente inviável) e sem qualquer moralismo hipócrita: pelo nível barbárico dos hackers e dos bate-papos do UOL, do ZAZ, do MIX Brasil, etc... me enfastia, me enoja, me excita, me comove, me assusta, me irrita, me assombra a descartabilidade do outro e, acima de tudo, muito me preocupa ser tratado como um ser virtual, um ser fantasmático, uma alma penada migrando de sala em sala na casa global da Internet. Além dos mistérios labirínticos da Internet (e das artes naúticas bem ou mal sucedidas pelos seus mares imaginativos), creio ser necessário dizer que até nestas salas de bate-papo eletrônico e no ICQ predominam a baixaria, o terrorismo e a intolerância, a curiosidade doentia ou provocativa e toda sorte de barbáries. A estupidez mórbida, mal-cheirosa e pesadamente erótica, ou clichês desgastados de erotômanos solitários.

Djanira Pio, cansei-me das regras. Mesmo das regras que me impus. Não é anarquismo, é cansaço e enfastio mesmo. Quanto às incessantes e mesmas e míticas tentativas prometeícas tentativas de transformar o mundo e libertar Sísifo ou roubar o fogo dos deuses ou instaurar novas realidades (para mim todas as realidades são infinitamente labirínticas e estonteantemente virtuais e polissêmicas), ainda nem sequer as entendi além de simples pretensiosidades humanas. Santo Agostinho as entendeu assim. Nossas impressões digitais revelam nossas identidades labirínticas, diria Jorge Luis Borges. Eu estou mais interessado em conhecer todas as camadas arqueogenealógicas das pretensas realidades, detectar simulacros e manipulações, entendê-las e revolvê-las, duvidando da lucidez racionalista pós-iluminista (do politicamente correto) e me horrorizar com o espetáculo manipulador ao qual fomos agregados como sub-protagonistas interativos em limitados horizontes mercadológicos. Falam tanto nestes tais de Ratinho, Leão Livre, Sílvio Santos, Gugú, Angélica, Xuxa, Faustão, mas, para falarem tanto nestes astros da nossa tv é porque, queiramos ou não, envergonhadamente ou não, aos seus programas estamos assistindo. Porque esta idéia fixa de refazer, reler, recriar, rever, reescrever, relembrar e revirar o mundo sem entendê-lo e com ele viver harmoniosamente, relembrando intertextualmente tudo que nele pudermos ver, cheirar, ouvir, pensar, imaginar e sentir? Não é o Zen-Budismo, bem conhecido pela minha amiga Djanira, que nos mostra o valor de vermos e sentirmos as coisas e todos os cheiros e perfumes do mundo tal como eles se nos apresentam, ou tal como são ou estejam sendo? “Toda música é uma mutação do que já foi feito; é o que se chama de evolução. No meu universo musical, não há contemporaneidade, não há retrô.(...) Estamos tão saturados de informações e possibilidades excitantes que não existem mais revoluções. Se fôssemos, numa máquina do tempo, de 1970 a 1995, tudo pareceria totalmente revolucionário, mas, quando se presencia os acontecimentos, não existem revoluções. Revolução é o dia-a-dia.”(Beck Hansen,28 anos, cantor norte-americano). Concluindo: só em ilhas sossegadas nas quais reine a postura de ruminar e pensar mais profundamente sobre as torrentes de informações massacrantes e mal digeridas sobre nós cascateadas pelas mídias manipuladoras, só aí seria possível criarmos como nos sugeriu Virgínia Woolf. Abraços do amigo José Luiz Dutra de Toledo — sexta-feira,13 de Novembro de 1998.


Assombrantes vislumbres na visita a um museu de cera

Tentei um “Sex-fone” com uma matriarcal amiga do Norte na noite da sua última Sexta-feira da Paixão, mas sua secretária me informou que ela estava dormindo. Estranhei e fiquei frustrado em meus impulsos eróticos.

Às vezes escorrego nas sumárias e equivocadas formas de aprofundar diferenças entre os universos paulistano e carioca acreditando que o Rio seja essencialmente dionisíaco e São Paulo intrinsecamente apolíneo. Mas depois de consumar tais dualismos maniqueístas percebo que tais comparações podem ser aceitáveis só circunstancial e fragmentariamente. O Rio ficou com o espírito lúbrico cortesão/ cosmopolitano e São Paulo, além do cosmopolitismo industrial e pós-industrial, casou a sacanagem italiana com a tesão nordestina.

Macacões cinzentos de presidiários de San Quentim — Califórnia — U.S.ª esvoaçam no varal da lavanderia, como bandeirolas, saudando a próxima execução de Caryll Chesman na cadeira elétrica.

Macacões dos astronautas da missão Apollo XI estaticamente expostos no museu da NASA, como vultos fantasmagóricos da corrida espacial.

(...) “Minha dor não dói, sou marginal, sou herói...” — Rita Lee na letra da sua música Vira-lata de raça interpretada por Ney Matogrosso em seu Cd Olhar de farol ).

(...) “Malditos sejam aqueles que revelam aos loucos sua origem e sua missão... Comei e possuireis o dom da libertação das dores e a alegria da morte!...

Pelas manhãs passeio no cemitério de Montparnasse... e lá, em paz de espírito, ocorreram-me pensamentos agradáveis e experimentei um raro sentimento de contrição... Tendo chegado ao meio do caminho da minha vida, sentei-me a repousar e refletir. Havia obtido tudo o que audaciosamente desejara e sonhara. Saciado de vergonha e de honra, de alegria e de sofrimento, perguntei-me: E daí?...

.... no meu universo reina a desordem e isso é que é a liberdade.” (August Strindberg — em seu livro Inferno, traduzido por Ismael Cardim — São Paulo — Editora Max Limonad — 1982).

A agonia ansiosa e desesperada dos clientes de um movimentado hipermercado me induz a pensar que esta ânsia compulsiva em consumir seja a expressão da necessidade de se resguardar contra imprevistas emergências, salvando-se individualmente pelo excesso providencialmente acumulado. Viver é consumir vorazmente porque a vida é bela e a morte é feia. A fisionomia aflita de uma cliente na boca de um das dezenas de caixas do Carrefour de Ribeirão Preto me impressiona!...

A montanhosa Escócia foi o refúgio mais aconchegante para o espírito de William Shakespeare. Minas Gerais, a Escócia brasileira, me deu à luz e às trevas!... Andando cabisbaixo pelas calçadas do dia-a-dia me sinto num avião, eu cá em cima e meus pés lá embaixo.

(....) “.... a lagarta, na crisálida, passa pelo mesmo processo que o cadáver no túmulo, onde se transforma em gordura amoniacal... A lagarta jaz morta no casulo, transformada em gordurosa massa informe, e mesmo assim está viva e vai ressuscitar sob outra forma, de maior beleza, maior elevação, maior liberdade. (....) ... vi as glicínias e as rosas florindo no túmulo de Théodore de Banville, vi o namoro dos pombos em meio às sepulturas e, sob os ciprestes, ouvi o melro iniciar sua canção sedutora... vai morrendo o ruído das ruas que troco pela paz dos mortos... habituei-me a considerar esse lugar de refúgio como meu jardim particular... Por entre os ciprestes, contemplo milhares de túmulos cobertos de flores nascidas dessas pedras duras, alimentadas de cadáveres, regadas de lágrimas sinceras ou meio falsas. (...) Os mortos têm mau hálito, como os boêmios depois de uma noite em claro. Será que eles não dormem bem, debaixo da terra, enquanto esperam a ressurreição? (....) Um súbito clarão iluminou-me o cérebro, depois caiu a noite fechada do esquecimento e tudo escureceu. (...) ...a aparência pode ser mais que uma máscara. (...) De volta, já esquecido de tudo, ao entrar no meu cemitério, vejo na alameda principal a mesma mulher com seu ar desesperado. O perfil de seu corpo emagrecido, recortava-se ao fundo, contra uma cruz; parecia crucificada sob a inscrição: “O Crux, ave spes única!”, aproximando-me, noto a devastação feita em seu rosto nesse curto espaço de tempo. Parece-me ver um cadáver no crematório sob a alva tela de amianto: Seus traços ainda eram os mesmos, mas deles a vida, incinerada, tinha desaparecido, restava apenas um simulacro de forma humana. Posso dizer que ela estava sublime. Pelo menos, não há banalidade no sofrimento! Seu casaco desbotou ao sol e à chuva; as flores do seu chapéu feneceram como as tílias; até seus cabelos perderam a vida... E todos os dias ela está à espera. Sempre! Uma louca? Sim, vítima da grande loucura que é o amor! Vai morrer o ato que dá a vida e perpetua o sofrimento!” (August Strindberg — in op. cit).

A vida imita a morte, a morte imita a vida. Esmeralda sempre gostou de ganhar rosas mas, pouco antes da sua morte, passou a rejeitá-las!.. Strindberg, na obra acima citada, me lembra a poesia de Augusto dos Anjos, um tanto a maldita prosa poética de Lautréamont e até os ensaios dos cientificistas doutrinadores espíritas kardecistas!.. A morte nos alimenta: olha quão cheias estão as churrascarias nesta tarde dominical do dia dos Pais de 1999. O calor me cozinha vivo. Sugamos proteínas de carnes assadas. Sou um ovo cozido condenado à esterilidade protéica em intestinos humanos. O burocrata divorciado brasiliense, que faz sexo virtual nas madrugadas de internet, diz sentir prazeres mais extremados que os que sentiu ao conceber suas duas filhas!... Este gerente de moléculas da administração federal hoje vive hedonistamente, longe dos rotineiros aconchegos e sem graça de uma vida conjugal oficial. Será o fim do amor? Ou a sua alvorada? Ou as duas situações se mesclam num só caduceu: o prazer erótico como revelação de identidades entre almas que se enroscam? Acho que sim... Para o bíblico Jó uma gengivite aguda e um surto de herpes já prenunciavam o paraíso aliviante das suas incontáveis dores. Também não creio em escrita espontânea mas que ela ocorra não posso duvidar. Se esteticamente me gratifica e expressa meus fluxos e meandros não sei... mas me sinto muitas vezes compelido a praticá-la, expressando minha ontológica fragmentação de confidente e penitente.

....... “atrás de suas costas os pardais fizeram ninho.” (August Strindberg, op. cit.)

Bisneto de Ana de Jesús e neto de Joaquim Toledo (Ana e Joaquim eram os progenitores da Virgem Maria), meu pai ganhou o nome do seu avô e um corte na testa ao quedar-se à podridão de uma porteira de curral. Mais tarde, eu, seu primogênito, notei a existência de duas verrugas marrons em suas costas, das quais nunca mais esqueci. De meu pai herdei pernas musculosas e da minha aventura de ler esparramado em largas camas ganhei um par de franzinos braços. Delicados e expressivos, mas em desarmonia com as minhas pernas de Davi de Michelângelo, fortes e perseverantes como as do corpo que abrigou o espírito orgulhoso e invencível do pai que perdi há dezesseis anos, fulminado por um aneurisma cerebral, na manhã de 10 de Setembro de 1983. Caiu morto enquanto fazia a higiene bucal e, na queda, ganhou um galo na testa, na mesma região rasgada na sua infância, ao perder o pútrido sustentáculo de uma velha porteira, que já não mais suportava a rotina de abrir-se e fechar-se à passagem de gentes e animais.... Atraído gravitacionalmente ao solo ante a ruptura da podre porteira, veio ao chão na manhã da sua vida, exteriorizando nessa queda sangue em grande e impressionante profusão ou derrame. Ao morrer, seu derrame foi interno, invisível, mas fatal. Inesquecível. O corte na queda da porteira que partia marcou sua peculiar fisionomia e a sua morte marcou profundamente a formação da minha atual identidade. Nossas testas, assim, se me configuraram como cenários ou espaços reveladores das dores humanas. Por isso subsiste há tanto tempo em minha memória a imagem da expressiva obliqüidade das sobrancelhas tristes de Nossa Senhora das Dores em seu patético e trágico encontro com seu filho e Nosso Senhor dos Passos, por cuja testa escorriam rios de sangue abertos pelos espinhos da coroa feita com galhos de limoeiros encaixada à força e zombeteiramente nas bordas da sua calota craniana. Rugas são cortes, sinais de divino sofrimento, purgações existenciais visíveis, não escamoteáveis. A testa desassombrada e elegante de Gal Costa na capa do disco em que canta Vaca Profana ou as caras das meninas gorduchas e asmáticas que tomam café com leite com pão e manteiga todas as manhãs sempre me mostraram mais que traços fisionômicos, mais que máscaras ou aparências eram retratos de suas almas!... Porque será que os espíritos profundos nascem, se formam e se aninham como águias nas íngremes montanhas? Porque será que já em sua avançada ancianidade Romain Rolland ainda tentava manter suas caminhadas pelas tortuosas trilhas dos pastores dos Alpes suíços? Note-se: Romain Rolland e seu nariz longo como um cajado de um sábio pastor alpino!.. E sua testa já toda franzida por rugas e, no fundo de suas órbitas oculares, um par de olhos luminosos e cintilantes!..

Além de genitais carcomidos por doenças venéreas universais, os donos dos museus de cera do Brasil não se orientavam por critérios nacionalistas na montagem dos seus acervos: punham lado a lado o bandido da luz vermelha da Califórnia (Caryll Chesman) e o bandido da luz vermelha que aterrorizava São Paulo nos anos 60; Marylin Monroe e Carmem Miranda; Bonnie and Clyde e Lampião e Maria Bonita (com suas cabeças decepadas); Jânio Quadros e John Kennedy ; o par de botas do gigante gaúcho exposto no Museu Júlio de Castilhos de Porto Alegre e os raybans de James Dean.. tudo num mesmo ônibus de apavorantes e ambulantes imagens estacionado em pleno marco zero da praça da Sé de São Paulo, meus senhores no fim dos anos 70! Canta, Ney Matogrosso, para espantar os maus espíritos!.. Ui, a cama em que Getúlio Vargas suicidou-se! Cruz credo!..

Quando passeava agora a noite com minha cadela Saragoza, descobri uma úmida e soturna ou sombreada casa, em meio a vetustas árvores, na qual vive só um rapaz solteiro, que cria uma legião de centenas de patos e patas das quais não vende sequer um ovo ou uma pena para fazer asas de anjos que coroarão em Maio a Imaculada Conceição. Será um órfão da bossa-nova vidrado em patos e cuén-cuéns?

(....) Odeio meu inimigo com o ódio religioso do Velho Testamento... O absinto das seis horas, numa mesa de calçada do café Brasserie des Lilas, atrás da estátua do Marechal Ney, tornou-se meu único vício, minha última alegria. Depois do trabalho do dia, com a alma e o corpo esgotados, recolho-me no seio dessa bebida verde, com um cigarro, o Temps e o Débats. (...) Como é boa a vida quando a névoa de uma agradável embriagues baixa seu véu sobre as misérias da existência. “ (August Strindberg, in: op. cit.).

Uma manhã fria numa roda de chimarrão no Areião (município de São Sebastião do Caí-RS) me anima e me diverte... ouvi, numa piada ali contada, que os “ui, ui, ui, ui” que o cantor mexicano Miguel Aceves Mejia emitia durante suas musicais interpretações se devia aos puxões em seus culhões (efetuados por trás e inesperadamente) executados por seus amigos, durante as gravações de seus discos.

E como eu rolei de rir quando o Evandro Resende de Itaúna — MG me contou que uma veterana bailarina, querendo fazer bonito para suas bisnetas, dispôs-se a mostrar-lhes alguns passos do seu ballet clássico e caindo desgovernada ao chão, sentia-se presa ao encerado assoalho da sua sala, visto que a sua vagina exercia uma pressão contra o solo semelhante à exercida por um desentupidor de pia!.. Uh!!... que horror de piada politicamente incorreta, meu Deus!.. Crôzis!!..


Atos reflexos no orbe contemporâneo

Na alvorada do ano 2000, dez anos após o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e do Pacto de Varsóvia, a Rússia tenta reviver as tensões externas da “guerra fria” expulsando uma diplomata americana acusada de espionagem política e massacrando os povos da Tchechênia (acusados de terrorismo). Mas a Rússia é uma das maiores aliadas de governos islâmicos do Oriente Médio tidos pelo Ocidente como terroristas. O governo de Sadan Hussein por exemplo. Assim o Kremlin tenta ressuscitar internamente o ferido orgulho nacional russo (não mais uma potência mundial)... como uma pessoa que sofreu há vários dias a amputação de uma perna e ainda sente dores na perna perdida.

Se Marguerite Duras estava apaixonada ao proclamar que “a verdade passa pelo corpo”, eu me pergunto se os limites ontológicos do corpo biológico não são elásticos e relativos, mentais, sensoriais e, essencialmente, sensuais, fantasiosos e olfativos.

Viajar para mim é assumir o risco de me perder no tempo e no espaço e, voltando, não mais reconhecer nem ser reconhecido pelos que deixei na ida. Robert Alt, em seu livro Viagem terrível, nos diz que suicidar é uma tentativa desesperada de evitar a morte ou de tentar evitar a morte. Explica-nos Bernardo Carvalho, crítico da Folha de S. Paulo: “O homem está condenado, pela sua simples existência, a afirmar o que tenta negar, a começar pela própria morte.” Talvez porque muito falamos sobre sexo, prazeres, paraísos nunca sentimos tantos medos, tantas dores, tanto tédio, pestes e barbáries tão infernais em nossos cotidianos. A pornografia está nos fazendo mais assexuados? Para Sade a pornografia é um método de aniquilar o corpo humano. Mas a matéria prima da pornografia é a palavra aliada à imaginação fantasiosa. A censura inquisitorial e a defesa das cortes absolutistas ridicularizadas em panfletos político-pornográficos obscenos e subversivos à época da Revolução Francesa (1789) valorizaram e encareceram os impressos pornôs de então. A sensação vitalista e individualista é uma das resultantes do contato do homem moderno com a indústria cultural pornográfica.

“Ao contrário das outras palavras, a palavra obscena não só representa, mas é a própria coisa.” — Lucienne Frappier-Mazur. Com esta frase, Mazur me ajuda a provar a possibilidade fantasiosa, imaginosa e verbal do orgasmo virtual (orgasmo intermediado pela internet, pelo teclado de um micro, sem os bloqueios e a timidez possíveis numa relação corpo a corpo, ao vivo, “real”). De Johann Guttenberg a Diderot e de Sade à Internet e de Apollinaire ao cinema gay a história da pornografia celebra a fantasia e, ao mesmo tempo, um estímulo a novas fantasias e ao enterro das atuais.

Para mim e para Michel Serres nossas sabedorias são visões obtidas nos trajetos de pelo menos 3 tipos de viagens: viagens por múltiplas ciências, por diferentes paisagens e por desiguais condições sociais. Neste fim de ano, perto de uma das infinitas esquinas do sudeste de Minas Gerais, deitado enquanto caía uma chuva fininha, ouvi alguma menina pedindo a uma outra mulher um pedacinho do que ela comia. Isto me inquietou. Na volta desta região, distante mil quilômetros de onde moro, vi cidadezinhas do sul de Minas Gerais encharcadas até a alma por mais de um mês de chuvas quase ininterruptas mas profusamente iluminadas por decorações natalinas das mais singelas às mais exuberantes. Uma das imagens mais usadas nestas decorações natalinas é a da estrela guia. Num tempo de desnorteios uma estrela guia é uma salvação.

Estou muito stressado, cansado e extenuado neste fim de 1999. Esgotado. Preciso ressuscitar, ressurgir como Fênix. Uma forte depressão ou insegurança me arruina. Como se telefona nesta terra, meu Deus!!... Quer destino mais triste que o de um filho caçula de um outrora rico fazendeiro de minha terra que hoje sobrevive de explorações num lixão (ao lado do seu casebre) no qual uma indústria de frangos e lingüiças atira seus produtos com prazos de validade vencidos? Quer história mais agostiniana que a de uma filha caçula deste mesmo fazendeiro (meu parente) que, após uma juventude devassa e luxuriosa, refugia-se na vida monástica descrente dos prazeres deste mundo, tornando-se assim uma das fiéis e monogâmicas e inúmeras noivas de Jesus Cristo?

A seguir, a ladainha das citações, um dos procedimentos fragmentantes mais comuns nos meus textuais rituais. (.....) “Arte é vício: você não a esposa legitimamente; você a viola.” (Edgar Degas — 1834/1917). (...) “Morrer é arte, como tudo o mais.” (Sylvia Plath — 1932/1963). Limitar a arte à função de chocar burgueses é empobrecê-la. Agora um fragmento da crítica de Michel Foucault à racionalização da loucura: “ a psicologização da loucura é fundamentalmente o resultado de um processo de humanização dos regimes punitivos que, na época da Revolução Francesa (1789 — fim do século XVIII), instaurou novas técnicas sociais de controle e de assistência.” Os hospícios e manicômios psiquiátricos são frutos do Iluminismo e da Revolução Francesa. Em meados do século XIX, Porto Alegre — Rio Grande do Sul — Brasil, já ostentava o seu hospício São Pedro, onde foi internado o teatrólogo Qorpo Santo, precursor brasileiro do teatro do absurdo. Continuando a citação da crítica de Michel Foucault à racionalização da loucura: “Em meio ao plácido mundo da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco: há de um lado, o homem da razão, que delega a loucura ao médico, autorizando assim somente relações por intermédio da universalidade abstrata da doença; há, de outro lado, o homem da loucura, que se comunica com o outro pela intermediação de uma razão também totalmente abstrata, que é ordem, impedimento físico e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade.” (....) “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão “sobre” a loucura, só pode se estabelecer a partir de tal silêncio.” (M. Foucault). Viva o pensamento nômade!.. Vivamos os últimos dias da humanidade! Blade Runner vem aí!.. (...) “A música necessita de espaço para respirar.” — Ry Cooder, guitarrista, artista que assessorou Wim Wenders na direção do cinematográfico musical Buena Vista Social Club. (....) “Temos que voltar a encontrar o incerto na história.” — Paul Ricoeur, filósofo francês. (....) Será que o minotauro de Jorge Luis Borges se expressava pelo idioma infinito do labirinto ontológico humano? (....) “O mais urgente dos problemas de nossa época é a gradual intromissão do Estado nos atos do indivíduo; na luta com esse mal, cujos nomes são comunismo e nazismo, o individualismo argentino, acaso inútil ou prejudicial até agora, encontraria justificação e deveres.” (Jorge Luis Borges). (...) “O sonho da razão produz monstros.” — Francisco de Goya. (....) Abaixo a historiografia coisificadora ou retificadora dos mitos nacionais!!!!...... “As relações entre os seres humanos e os lugares nos quais vivem são cada vez mais frágeis. (....) As fotos não são simplesmente imagens da realidade.” — Luis Campos, fotógrafo, autor da série Transurbana — 1994, em Lisboa. O poeta peruano César Vallejo (1892/1938) — exilado em Paris, onde morreu, foi um poeta de “identidades quebradas”. É dele esta frase: “Ou melhor, sou outro, andando ao léu. Ou melhor, homem no fim.”

Viva a morbidez poética de Augusto dos Anjos!... (...) “A escola é um centro de triagem de quem vai ser cidadão ou sub-cidadão.” — Viviane Senna.

Sidney de Souza, poeta de pau duro em Camaragibe — Pernambuco, escreve com estilo parecido com o de Jomard Muniz de Britto e me escreve dizendo que, além de esperar Godot, Dom Sebastião e o juízo final, espera receber mais textos meus. “Adorei-os.” É também inspirado em Fernando Pessoa, para quem vivem em nós inúmeros eus, mais que uma alma, que me mostro e me expresso fragmentariamente. Sou um caleidoscópio labiríntico vertiginoso e caótico como o Cosmos. Viva Augusto dos Anjos! Só para quem queira saber: Eça de Queirós viveu do ano de 1845 ao ano 1900. Fernando Pessoa viveu entre os anos 1888 e 1935. E o cronista e romancista Miguel Torga viveu desde o ano de 1907 até 1995. (....) “Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim.” (Fernando Pessoa). Nunca tive qualquer simpatia por Ary Toledo nem por Juca Chaves, muito menos pelo marechal Eurico Gaspar Dutra (ex-presidente da República), dos quais nunca fui parente. Acho que os cantos litúrgicos católicos brasileiros sofreram muitas influências das musicalidades italianas e portuguesas. Assista a novela Terra Nostra e veja como tenho razão. Visitarei em Janeiro a terra de Cármen Miranda: Portugal!.. Será que existe o homem do milênio? Olhar lacana. Quem diria que René Descartes diria que “quem tem muitos vícios tem muitos mestres”?!.... As cortesãs do Ancién Régime vestiam muitas vestes para ocultarem-se pois viviam num eterno baile de máscaras... assim, gordas de tantas roupas, as cortesãs ocultavam aquilo que usavam para atrair os seus poderosos. O poder devassava o oculto naquelas devassas senhoras. E hoje onde está o oculto? Nas gordas bundas escatológicas, nas garrafas, nos corações das mulheres objetos ou nos porões oculares de cada um de nós? Ou no coração de Jesus? Ô Jorge Mautner, o universo não é um único verso. Será que todos que voam de avião são suicidas em potencial? Quem roubou o meu livro inesquecível: Romain Rolland par lui même?????............ Devolvam-mo, please.


Auto-retrato — 1993

(.....)“Não sou poeta. Sou um libertino. Não tenho qualquer método de trabalho. Tenho um sexo. [...] E se escrevo, será talvez por necessidade, por higiene, como se come, como se respira, como se canta.... / A literatura faz parte da vida. Não é qualquer coisa “à parte”. Não escrevo por ofício. Viver não é um ofício. [....] Fiz os meus mais belos poemas nas grandes cidades, no meio de cinco milhões de homens... A vida inteira não é mais que um poema, um movimento./ Amo as lendas, os dialetos, os erros de gramática...a carne das meninas, o sol, a torre Eiffel, os apaches, os bons negros, e esse astucioso europeu que zomba da modernidade. Aonde vou? Não tenho idéia, pois entro até nos museus. / Eis o que eu tinha a dizer: eu tenho febre. E eis por que amo a pintura de Delaunay, cheia de sóis, de ardores, de violências. Mme. Delaunay fez um livro tão belo de cores que o meu poema está mais mergulhado em luz do que minha vida. Eis por que me sinto feliz.”

Blaise Cendrars no periódico de vanguarda berlinense de Herwath Walden, Der Sturm em Setembro de 1913.

Sou um balzaquiano, um Flaubertiano personagem principal da novela “Um coração singelo”, sou uma Madona não pré-fabricada pela mídia; sou multifacetado, fragmentário, caleidoscópico, periscópico, micro e macroscópico, ou tudo e nada, infinito e finito, mortal e imortal a um só tempo; nostálgico e reumático ou dançarino doméstico nas tardes de Sábado; ulceroso e deprimido, lembro um pouco os poetas românticos do século passado; desbocado ou bocudo, falo o que quero e ouço o que não quero; vertical e horizontal, sinuoso e retilíneo como caibros, serpentes, pênis eretos ou pênis de homens que sofrem de excesso de ácido úrico, ou de tudo um pouco... New York ou Bom Jesús das Flores ou da Cana Verde, sou metropolitano e interiorano, cosmopolitano e rural. Sinto o desprezo pela minha pessoa (desprezo flecha preta de ciúme e adrenalina) desfechado por familiares e por autoridades educacionais mais autoridades políticas e culturais..... Sinto a discriminação social e cultural contra a minha pessoa (o que me fere). O que me cura é a audição musical da ópera Parsifal de Wagner ou o prazer de ouvir músicas de outros compositores como Nino Rota, Villa Lobos, Peter Gabriel, Erik Satie, Claude Débussy, Pergolesi, Bach, Mozart, Tchaikovski, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Mautner, Milton Nascimento, Lamartine Babo, Padre José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes, Alceu Valença, Assis Valente, Beatles, Rolling Stones, Vivaldi, Haendel, Lobo de Mesquita ou Fredéric Chopin (Noturnos de preferência). Na nossa sala vamos colocar um vaso de “comigo ninguém pode”. Como nos salões de barbeiros ou nas lojinhas de cidades do interior. Em cemitérios busco as alamedas sombreadas de ciprestes e as fotos esmaltadas dos mortos que, como se estivessem espichando seus pescoços para me verem passar, saltam das fotos e entram no meu labiríntico imaginário. Os mortos a nos olharem. Eu sou também o que colhi no meu amor pelo meu cachorro Aragão ou o que aprendi amargamente na convivência de 13 anos com o Walter. Lamento nunca Ter conhecido o maestro Leopold Stokowski da The Houston Simphony Orchestra nem ter chegado à Noruega ou à Finlândia ou à Itália do meu amado Federico Fellini, ou à Portugal dos meus ancestrais..... nunca cruzei os oceanos mas sei o quanto são profundos e tenebrosos (viva o barco doido de A. Rimbaud! ). Adoro o perfume das flores, da arruda, do manjericão, da árvore “Dama da noite” e de tudo que cheire prazer, nostalgia, saudades de Sodoma e Gomorra, cortinas de veludo sujas (?) de esperma ou de urina, lençóis úmidos após noites eróticas, cheiro de sopas de ossos em orfanatos, cheiro de aeroporto internacional, cachorros sarnentos e magros de estações rodoviárias, chaminés venenosas dos ônibus cariocas, chacinas nas favelas e florestas, as assombrantes filas de cadáveres sem rostos após violentos acidentes em estradas mineiras ou paulistas, a fidelidade do meu amigo e cachorro Aragão, o trabalho doméstico feito pelo Walter, os corruptos de todo o Brasil e do Japão, Holanda, EUA, Cuba, China, Coréias, Itália e Espanha formaram a Máfia política internacional. James Joyce, me perdoe por não ter lido integralmente nem Ulysses nem Finnegans Wake!... A toalha de renda branca cobre a estante de livros sobre barroquismos. Em cima desta toalha linda, coloquei, nas extremidades do móvel, um castiçal de cada lado e, no centro, um altar com duas imagens: a de Nossa Senhora de Nazaré e a da Imaculata Concepcione com umas jarrinhas com flores em torno da madeira dourada do altar... quarto místico.. Kyriale... Missal Romano... Casa de Ouro.. as pernas e as batatas das pernas tuberculosas e operosas das beatas fazedeiras de hóstias.. o resplendor da Virgem das Neves.. da Nossa Mãe da Boa Morte... sopa de batatas, o mingau de couve com feijão, a louridão da tia Judite Dutra, a Ave Maria de Schubert (ou a de Gounod ? Estou em dúvida.) ... o cheirinho de chulé do meu Aragão ou de todos aqueles que roncam após um dia trabalhoso com os pés presos em tênis, sapatos ou botinas ou até em chinelos de plástico ou de borracha... lixo incendiado e mal cheiroso..... fichários hospitalares, arquivos e memórias de computadores, arquivos judiciários, arquivos escolares, etc. ... Eternamente capricorniano, aniversariante em 22 de Dezembro, nunca me esquecerei da Marina do Juca Siqueira, a louca que me olhava de esgueira na soleira do portal que dava acesso à escadaria pela qual se chegava ao segundo andar do sobrado do pai da senhorita doida (ex- delegado de polícia nos anos 30), moça martirizada, do queixo fino pontiagudo, rosto triangular, deprimido. Sou herdeiro da loucura da Marina e da ninfomaníaca suicida Lurdinha, filha da professora primária desquitada Nair Salgado (anos 30/40). A senhora prostituta Maria da Pensão do Rafael, quando eu era bebê, soprava a minha barriga gorda com sua boca erótica me fazendo cócegas e quase me matando de rir. Enquanto isto, papai também rolava com a Maria da Pensão em sua cama de casal. A sagrada família prostituída: papai, dona Maria da Pensão e eu, seu primogênito. Chulé, pergunta-me Artemísia do Prado, a senhora bochecha do bairro Paraíso, chulé me lembra queijo, laticínios, cheiro de esperma melequento, secreção cotidiana, gosma da vida diária do garrão masculino ou daquelas batatas ásperas e ressecadas exibidas pelas mulheres em seus sapatos de saltos altos, sandálias de tiras de couro pretas (que nem Madonnas recatadas), o cheiro de bota militar, essência de pés adolescentes presas em tênis, ou pés adultos de machos e fêmeas em seus bem comportados sapatos de executivos e de secretárias, schoolars, etc.. etc. .. ou, simplesmente, cheiro dos pés dos Sades e Masochs da minha imaginação neo- barroca/ felliniana ou buñuelesca. Estou chorando, sou um compulsivo, um neurótico, alguém que não se descola do seu passado, um sado-masoquista, um peregrino, avesso a todos os rótulos assacados contra a minha pessoa, fiel e infiel, angelical e demoníaco, aquele que confessa o inconfessável (que cheira o suor do próprio ânus! ... e até das suas axilas, das reentrâncias flácidas das suas coxas de quarentão solitário) e sonha com nuvens de fumaça de incenso usado pelos padres católicos na hora da benção do Santíssimo. Aspira às lufadas de perfumes naturais, como aqueles que sintetizaram na fórmula do sabão líquido Aristolino usado para lavar pernas ulceradas, como aquelas vindas com os ventos aromáticos das rosas, ciprestes, alecrins e “Damas da noite”. Minhas lágrimas e meu sangue umedeceram a argamassa com a qual construi meus dilemas e delírios, meus palacianos labirintos barrocos. Meus salões de espelhos com tetos bordados com cristais pendendo de um fundo vermelho cardinal. Aquele cheiro dos montes de lixo das fábricas de adubos me lembram a pós-modernidade norte-americana de Ray Charles, Caryll Chessman e John Fitzgerald Kennedy... Adubos e esperma são igualmente fertilizantes, por isso ambos cheiram de forma semelhante ao chulé... Com Manná adubando dá. Ambos adubam covas. O primeiro aduba em covas abertas na mãe terra, o segundo em covas abertas na carne feminina. Querida Esmeralda, só agora abro-lhe os porões fantasiosos e bizarros da minha alma, o que de mais profundo e inconsciente que posso lhe revelar (como aqueles seus sonhos a mim revelados em noite de lua cheia à beira da baia de Guamá). Domo os meus monstros internos com músicas, calmantes, alimentos, arte e leituras e me ferrôo diariamente com ressentimentos, nostalgias e frustrações irremediáveis. Esmeralda, fiel e audaciosa amiga deste insolente e insólito ser humano pelado, desnudo, sem carapaças nem armaduras, uma lesma livre do caracol, sem muitas máscaras..... Bacalhoadas com azeitonas e imensas fatias de batatas cozidas avermelhadas com o suco pastoso de tomates e adornada com fatias espiraladas e mais ou menos concêntricas de cebolas e, depois, chulé de anjo (bolinhas grudentas de leite em pó amalgamado com leite condensado Moça roladas em prato com coco ralado). Delícias da minha vida gastronômica!.. Camarões são sempre benvindos, barbados, fritos, crus, cozidos ou assados. Cajuzinhos de amendoim rolados no açúcar refinado e no coco ralado ou cajuzinhos de leite em pó com abacaxi e ameixas esmagadas ou cajus de verdade, outras delícias que me levam a salivar como aqueles cachorros de Pavlov!... As pesadas cortinas de veludo e mofo dos cinemas das metrópoles pelas quais andei, seus ácidos WCs masculinos cheirando a urina, esperma, suor e medo; a luz de uma casa que vive mergulhada nas trevas das quais emergem imagens em movimento... nossas cabeças são nichos — galáxias onde os filmes mais complexos criados por Deus são, noite e dia, fluentemente projetados, inesgotavelmente revelados ou velados, avassalantemente e impressionantemente inapreensíveis em sua totalidade vertiginosa e irregistrável. Nossas cabeças, como cinemas, são cavernas labirínticas e barrocas como as igrejas nas quais somos incapazes de apreciarmos todas as imagens, adornos e estímulos sinergéticos visuais das paredes, tetos, arcos e colunas, retábulos e portais, pisos e alfaias. Cinemas são palácios draculianos para aqueles que se refugiam no escuro para driblarem a morte ou para com ela namorarem. Cinemas e basílicas barrocas são igualmente espaços lúdicos entre luzes e sombras, entre trevas e vidas. Querida Esmeralda, este texto é para você. Escandaloso, inescrupuloso, grotesco, rabelaiseano, quixotesco, ousado, agressivo, cortante, picante, nauseabundo, sincero, bergmaniano, viscontiano, zéluiziano, mas porém, todavia, contudo... lítero — cinematográfico fragmento estético do homem contemporâneo do fim do segundo milênio.. do fim do século XX. No mais, continuo sem notícias da família Dutra de Toledo; continuo indo e vindo semanalmente de Piumhí para Ribeirão Preto e vice-versa; enfrentando temperaturas de até 40 graus ou mais, tomando remédios para úlceras e tratando excesso de ácido úrico; trabalhando, escrevendo, lendo, remetendo cartas para você e para os demais amigos ou amigas e ainda mandando artigos para jornais, etc. Aguardo notícias suas e dos seus. Abraços do seu José Luiz Dutra de Toledo


Autoctonismo, provincianismo e forasteiros na historiografia sobre Ribeirão Preto / SP

Já ouvi alguns se queixarem da presença indevida de forasteiros na historiografia sobre Ribeirão Preto. Por outro lado, nas historiografias sobre vários estados brasileiros e países latino-americanos o olhar estrangeiro dos viajantes que cruzaram o Brasil Colônia e o Brasil Império e dos intelectuais franceses fundadores da USP (Rugendas, Debret, Burmeister, Antonil, Fernando Cardin, Eckardt, Saint-Hillaire e muitos mais...até Claude Lévi-Strauss, Jacques Lambert, Fernand Braudel...) sempre foi muito considerado e valorizado e contra tais testemunhos nunca foram lançadas acusações de forasteirismos e outras apropriações cognitivas indébitas sobre povo estranho ou desconhecido. Outro fantasma recorrente entre os que trabalham com historiografia no Brasil é o medo de um intelectual brilhante (francês ou brazilianista norte-americano) estar um agente da CIA ou algum tipo de espião favorável a interesses externos. Tais fantasmagorias atingiram principalmente os segmentos mais nacionalistas e das esquerdas universitárias empenhadas até recentemente na luta anti-imperialista e, agora, muito resistentes às óticas pós-modernas, neoliberais e globalizantes.

No entanto, talvez só os índios caiapós foram genuinamente ribeirãopretanos e nunca ouvi vozes reclamando o resgate e a ressurreição do império caiapó na “Califórnia” brasileira. Aliás, os índios nem existem mais em Ribeirão Preto e sobre a história indígena local nada ou quase nada sabemos. Os bandeirantes, militares e cartógrafos portugueses que por aqui passaram rumo a Cuiabá entre 1690 e 1760, assim como os mineiros que aqui se estabeleceram após 1840 e os negros (escravizados, aquilombados, forros e/ ou ex-escravos) que aqui viveram e ainda vivem ou vieram de Minas Gerais e outros lugares de São Paulo e até mesmo do Nordeste ou da África, como também os diversos imigrantes europeus e asiáticos, a cultura caipira dos que fugiam das cidades e das modernidades agrícolas do capitalismo inglês, além de grandes coronéis das elites ou do baronato do café ribeirãopretano (Schimidt, Diederichsen, H. Dumont e os Junqueiras) ou vieram da Europa ou das Minas Gerais ou até de São Paulo, vale do Paraíba e de outros lugarejos do nordeste paulista, mas certamente, tais personagens marcantes ou modestos ao longo da história de Ribeirão Preto não foram propriamente autóctones. O coronel Henrique Dumont tinha propriedades em Ouro Preto — M.G. ; fazendas entre Barbacena e Juiz de Fora (região da serra da Mantiqueira); em Rio das Flores no atual estado do Rio de Janeiro e na região de Ribeirão Preto. A expansão das fronteiras da cafeicultura paulista no Segundo Império e na República Velha (1889/ 1930) determinaram o fluxograma dos deslocamentos dos coronéis pelo mapa econômico do interior paulista e os casamentos constitutivos das elites ribeirãopretanas. Nestes cruzamentos e amálgamas históricos e cartográficos pesaram certamente também as injunções políticas e econômicas nacionais e internacionais e resíduos e valores religiosos e patriarcais do Brasil Colônia e, lógico, do Brasil Império. Estes comentários e obviedades revelam o fim irreversível de qualquer intento autóctone de escrita da história local, a fragilidade histórica das perspectivas históricas provincianas e a possível origem “forasteira” dos personagens mais poderosos e dos mais empobrecidos durante o desenrolar das cenas menos obscurecidas da nossa história. Em outros termos, de uma forma ou de outra, somos todos “forasteiros” no sertão ribeirãopretano. Antes ou depois da Mogiana, com exceção dos caiapós, todos nós viemos de outras terras e de outras gentes.


Autoria coletiva e anônima

(...) “É terrivelmente importante que grandes poemas sejam escritos, mas não faz a menor diferença quem os escreve.”
(Ezra Pound )

Rupert Sheldrake, com os seus livros A presença do passado e Sete experimentos que podem mudar o Mundo, é — sem dúvida — um dos intelectuais e cientistas mais instigantes no fim do século XX. Suas teses ricocheteam ou resvalam obliquamente em diferentes focos da elíptica paisagem neo-barroca das perspectivas ontológicas e estéticas contemporâneas.

Eu não sou só eu. Eu só não sou eu. Eu sou não só eu. Eu não sou eu só. Eu não sou só. Eu não sou. Eu não. Eu. Das antologias às apostilas de cursinhos, aos discursos improvisados nas salas de bate-papo na Internet, evolui uma literatura didatificada pouco atenta e nada respeitosa diante dos direitos autorais. A revolução tecnológica conspira contra a propriedade intelectual, contra o capital cultural? Em nossas mídias e anti-mídias tudo é triturado e digerido e ninguém se lembra nem identifica o lavrador que fez vir à luz os nossos alimentos? Como os deuses e os guerreiros de A Ilíada de Homero, somos autores anônimos de fatos e feitos talvez plagiados de quem desconheçamos pois tudo na História é citação, repetição, reprodução e quase nada é transformação ou metamorfose. Andrômaca, Hécuba e Helena, no entanto, proferiram distintas lamentações diante do cadáver do amado guerreiro Heitor, célebre domador de cavalos enaltecido na Ilíada de Homero. É do clássico poeta grego a seguinte frase: “ O navio fica todo escondido pela espuma, e um terrível sopro de vento geme na vela, e os marinheiros tremem no coração, com medo, pois por pouco se livram da morte; assim se moveu o espírito no peito dos aqueus.”

Em cada um de nós se materializaram desencontros, esquecimentos, rupturas e sucessivas gerações de medos, prazeres, perplexidades e nostalgias. Nossas arqueo-genealogias nos apontam sombrias e ignotas profundidades ermas e reticentes. Em nossas histórias vivemos e tentamos obscurecer trágicas despedidas.

Enquanto Verônica desenrolava o santo sudário cantando “ Oh vós omnes que transitis per viam... Attendite... attendite... et videti!..., o cineasta português João César Monteiro declamava: “ Micróbio a mais, micróbio a menos, da terra, de verdade, ninguém nos livra.” No entanto, em meio a tudo isso, Rosarinho permanecia sentada sobre um monte de ovos crus. Foi por isto que passei a andar para lá e para cá com um cartaz com os seguintes dizeres: “ Pelo direito ao escândalo!... “ E, sem me bandear para a face oculta do baixo-astral, me lembro de um ponto em comum entre a minha biografia e a de Fernando Pessoa: tanto eu quanto ele rompemos com nossas famílias, encaramos o exílio dos sucessivos quartos que alugamos. Ele, em Lisboa. Eu em Juiz de Fora, em Porto Alegre e em São Paulo, onde até viví no cortiço da dona Sebastiana de São Sebastião do Paraíso (rua Vitorino Carmilo, nos Campos Eliseos). “Aí dos felizes por que são só o que passa!”... (Fernando Pessoa ). “ Tudo o que não é literatura me aborrece.” (Franz Kafka). Para Kafka todas as tragédias começam de manhã (tanto em Metamorfose quanto em O processo isto é verificável ). Nossas prisões começam em nossas próprias moradias, notou F.Kafka. Nas casas dos vizinhos se instalam os primeiros tribunais e salas de audiências de nossas vidas, percebeu Kafka. Numa viagem por sucessivos pesadelos todos os nossos processos individuais, cômicos ou sérios, carecem de clareza, anotou F. Kafka em suas cotidianas reflexões. E indaga; — “ Quem é o senhor, afinal? Quer um sentido e executa a coisa mais sem sentido que existe? “. Por que investí tanto tempo da minha vida em tarefas de ensino e só agora vejo que ninguém ensina nada a ninguém?


Belle — Epoque em Ouro Preto

Uma ponte ferroviária sem os seus dormentes jaz sobre um rio de ilhotas rochosas e nostalgias tormentosas.

Uma executiva da burocracia pedagógica narra uma festa à fantasia na qual todos os participantes, inclusive seu filho, tinham cabelos verde radioativo e roupas acetinadas da mesma cor e sussurravam uns nos ouvidos dos outros: — ”Eu vou te contaminar!...Eu vou te contaminar!.....” E a burocrata educacional jurava que seu filho vivia os últimos estertores de uma juventude irresponsável para logo logo entrar, como num passe de mágica, num estágio de seriedade e amadurecimento. Quanto otimismo hipócrita, my God!

Outra alta autoridade educacional local, de formação cínica e medíocre e de condição sócio- econômica burguesa, coordenando um programa de alfabetização de adultos num país latino-americano metido a social-democrata, passa horas conferindo listas com nomes de pessoas matriculadas, enquanto ria e debochava da breguice estrangeira da maioria daqueles nomes de pobres pretensiosos nos nomes e sem futuro.

São Paulo capital, em termos arquitetônicos, é visivelmente mais pobre que Barcelona. Adoniran Barbosa foi um dos compositores populares mais fiéis às linguagens das ruas mas, nem por isso, deixou de citar em suas composições o romântico Lord Byron!...

O azul da navalha, o azul de certos peixes marinhos, o azul da lâmina Gilette, o azul dos horizontes irrecuperáveis e pouco nítidos, o azul do manto da Virgem Maria, as veias azuis, as olheiras azuis arroxeadas e a verde podridão: tudo que é profundo é azul.

(....) ”É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem alguma dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito.” — Sigmund Freud em carta a Oskar Pfister em 1910.

São deliciosamente minuciosas as anotações diárias de J. W. Goethe em suas viagens pela Itália entre 1786 e 1788, às vésperas da assombrante Revolução Francesa!... Entre essas deliciosas minúcias eu cito suas observações sobre o comércio de frutas e doces praticado entre crianças pelas ruas de Nápoles!.. Cenas maravilhosas!... E hoje, em vários países africanos, principalmente na lusófona Angola, milhares de crianças morrem de fome ou comem restos de peixes retirados de montanhas de lixo.

No fim do século XX, eu continuo apontando D. Pedro II, Juscelino Kubitschek de Oliveira, Getúlio Vargas e Campos Salles como os principais estadistas da história política brasileira. Lamento excluir desta relação o nome do atual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Em seu lugar talvez eu coloque o nome de um general ditador robespierreano: Ernesto Geisel. Mas, entre todos os chefes de Estado mais marcantes em nossa história pós-Independência eu só destaco e reverencio o Habsburgo, alto, louro, de olhos azuis e barbudo, envolto num manto de penas de galo da serra: Dom Pedro II.

Muito certamente os japoneses de 50000 anos atrás chegaram aos sertões brasileiros, muito antes dos fenícios, dos vikings, dos portugueses e dos jesuítas. Nada é absurdo num Universo infinito de possibilidades hipotéticas. Caso os cachorros acompanhem seus donos ao paraíso, como agiria São Pedro perante os vira-latas sem latas de lixo para revirar no céu do Criador? Existe lixo no paraíso de Deus também? Então o Capitalismo pode ser um tipo de céu ou paraíso?

Marquês de Sade, Lautréamont, o dadaísta Tzara, José Lézama Lima, Severo Sarduy, Joseph Brodsky, Jean Cocteau, Pier Paolo Pasolini, Octavio Paz, Tennessee Williams, Walt Whitman, Allan Guinsberg, Jean Genet, Marguerite Duras, Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Simone de Beauvoir, Albert Camus e muitos outros espíritos heréticos destes e de outros tempos agregaram-se à argamassa do meu espírito humanista universal monoglota.

De Ernest Hemingway eu só li O velho e o mar. Em 1999 estão sendo lembrados os centenários do lançamento da primeira obra da Psicanálise de Sigmund Freud, os centenários de Jorge Luis Borges, Fred Astaire, Ernest Hemingway, Alfred Hitchcock, Vladimir Nabokov, Pushkin, etc. Em meio a tantos centenários no penúltimo ano do nosso século eu me indago se agora já não estarão nascendo os/as grandes escritas e expressões artísticas do próximo século XXI. Só no fim do século XX se cumpriram integralmente as profecias contidas no filme O gabinete do Dr. Caligari dirigido em 1919 por Robert Wiene. Filme com jogos expressionistas de luzes e sombras e com muitas e apavorantes escadarias e pesadelos em seus cenários e fotografias. Minha irmã Fátima, a apocalíptica hipocondríaca, quando criancinha, tinha medo de descer e de subir escadas. Quando adulta ficou traumatizada com o desemprego do seu marido engenheiro. Numa sociedade brasileira que pensava que engenheiro nunca ficava desempregado para ela foi um trauma vexaminoso e tão apavorante quanto cair das escadas e perder status social.

Dos filmes sobre a história do “far-west” americano herdei alguns dos momentos mais emocionantes da minha infância: meus primeiros contatos com a arte cinematográfica, nos anos 50, numa pequena e recém emancipada cidadezinha do sudeste de Minas Gerais. E lá embaixo, perto do portão do escuro quartinho dos fundos lá de casa, minha irmã Fátima cruelmente me surpreendeu brincando de cinema com o filho do eletricista Walter da CFLCL (Companhia Força e Luz Cataguases Leopoldina).

Os temas barrocos do cinema de Júlio Bressane (São Jerônimo, Os Sermões do padre Antonio Vieira, Lamartine Babo/Assis Valente) levaram-me a designá-lo como o mais báquico e dionisíaco esteta do cinema brasileiro pós- Glauber Rocha. Só os críticos mais impertinentes ousam apontar conteúdos homossexuais nas literaturas de Clarice Lispector e de João Guimarães Rosa e da história do cinema hollywoodiano (dos "sissies" dos anos 20 ao épico Ben-Hur de 1959). Acho que Stewart Home tem razão quando compara os artistas vanguardistas de hoje com os hereges medievais do século XIII.

Só defendo 3 propostas do movimento letrista de Isidore Isou e de Gabriel Pomerand: palácios para vagabundos sem colarinhos brancos e para condenados à prisão perpétua; igrejas oferecendo banhos públicos e saunas e abertura, à noite, de todas as estações de metrô e dos parques públicos para legítimos rituais orgiásticos saudáveis e libertadores.


Breve arquivo de vozes ecoantes em meados de 1999

Se o prazer escorre é porque Deus quer, diziam agostinianamente várias mulheres interrogadas pelos inquisidores que acuaram a vila de Montaillou nas primeiras décadas do século XIII. Talvez tenha advinda da leitura do romance À sombra do olmo de Anatole France a idéia de Emmanuel Le Roy Ladurie escrever sobre a massacrante devassa inquisitorial na vila pirenáica e medieval de Montaillou. A trama literária de À sombra do olmo me lembra o que ocorreu em Montaillou há mais de 700 anos!...

“Dor de cotovelo, gripe, picada de inseto, burocracia, ranço, má fé, antipatia, idiotice, autoritarismo e picaretagem não são privilégios de nenhuma corrente ideológica.” — Marcelo Mário Mello in: Manifesto da esquerda vicejante.

“Os livros podem dar nascimento a homens armados.(..) No mundo concreto o bem e o mal crescem juntos e o conhecimento do bem está de tal forma envolvido e entrelaçado com o conhecimento do mal...” (trecho do panfleto Areopagita escrito em 1640 pelo poeta inglês John Milton, que viveu entre 1608 e 1674).

“As diferenças honestas de pontos de vista e o debate honesto não significam desunião. São, pelo contrário, o processo vital da política entre os homens.” — Herbert Hoover — na edição de 15 de Junho de 1956 da revista Alterosa.

(...) “Um erro de tradução pode ser uma força propulsora e gerar realidade.” (..) “Sou céptico também quanto à idéia de ser um historiador engajado.” (...) “Acredito que se deve escrever história política, se bem que de um novo modo.” (...)”Os arquivos estão cheios de histórias de pessoas desconhecidas. Então, a questão que se coloca, e que exige muita reflexão, é: por que essa história e não outra? Por que esse documento e não outro?... Se a idéia é substituir uma abordagem ortodoxa por outra, tudo se torna totalmente desinteressante. Tenho muito medo de um movimento intelectual se transformar num slogan... “ (...) “ Não gosto de pregar, e especialmente para pessoas já convertidas.” (...) “ E nada está mais distante de mim do que a idéia de ter uma audiência composta de jovens estudantes de esquerda apaixonados pela história vista de baixo e aguardando de mim uma mensagem nessa direção."”(frases do historiador marxista italiano Carlo Ginzburg em entrevista à historiadora brasileira Maria Lúcia Burke).

“O que é constrangedor é a incapacidade crescente de dizermos “não” à ordem cultural de confessar!” (frase do psicanalista Jurandir Freire Costa). Teria razão há 20 anos a psicanalista Piera Aulagnier ao dizer que o direito ao segredo é a condição de poder pensar? Entre estar ao rés do chão ou ao rés da fala, adotei a última opção. Para mim a vida nunca me sujou, limpar-me, então, para que? Por que o Rio de Janeiro ou Vassouras ainda não têm um Museu Carlos Lacerda?

(...) “O mesmo tema, tratado pelo mesmo poeta em momentos distintos, dá dois poemas diferentes...” (..) “ De fato eu cito em várias passagens versos de muitos poetas — de Eliot, de Rilke, de Murilo Mendes —, porque eles constituem minha vida...” (...) “ Na TV você tem prazo para criar, e a arte não tem prazo” (do poeta maranhense Ferreira Gullar).

Desastres estelares em torno do meu túmulo de fogo desvanecerão minha alma. “Eu acredito na liberdade individual. As pessoas têm de parar de protestar contra o mercado, a propaganda, os americanos e entender que são livres para consumir o que quiserem. Têm de parar de pensar que são crianças diante do mercado. É ele a criança, que é recompensado com o lucro quando se porta bem... O crescimento da internet e uma diminuição da importância do Estado e das fronteiras tradicionais e uma aceleração no processo de cooperação e comunicação dentro das comunidades científicas são manifestações do aumento de interconexões... Não existe sistema perfeito. Um sistema perfeito estaria morto. ... A leitura e a escrita são uma enorme tecnologia. E no fim das contas, nada dura... tudo vai desaparecer. Talvez algumas coisas tenham de ser esquecidas... Se você pensa que as outras pessoas estão erradas, mesmo que encontre pessoas de outras culturas, você não abre sua mente. Mas, se você pensa que os outros podem também estar certos, será bom para a sua mente. Assim, na origem penso que é muito positiva a fermentação de todo esse contato, essa conexão por todo o planeta.” (trechos de uma entrevista concedida pelo filósofo francês contemporâneo Pierre Lévy).

“Caravaggio é um pintor sombrio e o milagre está em que ele nunca é deprimente.” (Philip Hensher, crítico do The Spectator). (...) “E a nova filosofia a tudo questiona.” (John Donne — poeta inglês em um poema escrito em 1611). (...) “Se um homem partir de certezas, ele terminará com dúvidas; mas se contentar-se em partir das dúvidas, terminará com a certeza.” (fragmento de texto escrito em 1605 por Francis Bacon, filósofo que viveu entre 1561 e 1626). Para Richard Powers, romancista e articulista do The New York Times Magazine, Santo Agostinho insistiu em que o mundo era uma charada inescrutável inventada por Deus para levar-nos à contemplação de um universo além deste.”

Num país como o Brasil, onde nosso frágil e caótico destroço de aparelho de Estado sequer apõe qualquer arremedo de obstáculo aos poderosos interesses capitalistas internos ou externos, não percebo qualquer coerência entre assumir idéias socialistas e servir a uma burocracia estatal que só sabe inventar novos impostos sempre cobrados daqueles que menos podem pagá-los. Mas, mesmo assim, muitos moribundos carentes sucumbiriam longe das migalhas e das sombras protetoras do Estado que nos restou. Que tragédia!...

A fiel crente e irmã da Assembléia de Deus sentou-se na poltrona do trolebus reservada às gestantes e lactentes e começou a orar pelas almas dos irmãos que ainda germinam nos úteros das irmãs que ali sentaram neste dia, Senhor!...

Percebo entre os infinitos fios narrativos ou conceituais, que perpassam os discursos fragmentários, vão mensagens sub-liminares pouco sublimes. Na peça teatral AIDS nós de Roberto Vignati, encenada no teatro Auxiliadora de Ribeirão Preto na noite de 27 de Junho de 1999, percebi a prevalência e a concomitância de objetivos didáticos, brechtianos ou não. Alguns recados mais ousados foram passados muito timidamente que quase ficaram imperceptíveis. A inclusão fragmentária e um tanto relaxante de momentos menos tensos e quase bem humorados pareceu-me uma estratégia cênica para não disseminar um pânico asfixiante entre os assistentes, dando-lhes algum fôlego para assimilar um único recado: AIDS mata ou ainda é uma doença incurável, não se contamine, previna-se!..

Não contexto nenhum dos dados colocados sobre a gravidade da pandemia de imunodepressão no Brasil e no mundo. A minha preocupação não é contestar tais dados, mas, sim, contestar a eficácia da estratégia terrorista de vencer a AIDS amedrontando todo mundo. Assim como o terrorismo na propaganda contra as drogas não funcionou, o mesmo pode estar ocorrendo nas aulas teatrais contra a doença mais temida neste fim de século. Isto ocorre simplesmente por que o medo paralisa as pessoas que, paralisadas, são capturadas fatalmente em flagrantes impulsos de riscos inavaliáveis.

Imagino que dois cachorros ou duas cachorras com o mesmo fenótipo, com a mesma raça e com as mesmas cores se encontrando a passear por uma praça qualquer sejam como quaisquer compatriotas a se encontrarem num hotel de Montevideo ou numa catedral barrocada Alemanha ou até mesmo na praça de San Marco de Venecia, não?

Sim, eu escrevo e muitas vezes cito. Para que recriar com minhas próprias palavras as idéias, ao mesmo tempo, minhas e dos outros, se as posso repetir em originais enunciados? As interseções entre minhas identidades e minhas alteridades merecem ser destacadas por citações. Entre o racionalismo conceitual ou teórico e o racionalismo empiricista prefiro a poesia da perplexidade. Milton Nascimento é um dos meus intérpretes. Qual seria o cheiro dos calcanhares da cantora fluminense Ângela Maria? Viva Glauco Mattoso!..

A distância crescente entre eu e meus familiares é uma das tragédias dos nossos tempos.

Tia Julieta, a caçula, é a líder do que ficou do clã do vovô Pedro Toledo. Tia Ana é a periferia esfolada do mesmo clã. Nossos nichos espirituais têm espaços para todos os santos e para todos os bichos. O cheiro de banana madura lá na dispensa da vovó Argelina também ficou. Vivam os macacos!...

Talvez seja interessante assistir agora à noite mais uma apresentação da peça teatral sobre AIDS. Mas, o mais interessante mesmo é discutir como tocar a vida numa sociedade de risco. Helena voou. Eva viu a ema comer o ovo da Iva comedora de canjiquinha com couve. Vivam os peidos reprimidos cognominados suspiros de uma noite buliçosa !... Vivam os que não conseguem comer!..

A urina de vaca foi apontada como o melhor fertilizante agrícola do século XX. Zanoto, que tal o cheiro das fezes bovinas varginenses, hem? Zanoto, você já comeu bucho de porco recheado de carne moída e assado? Zanoto, já te confundiram com ovo zigoto? Zanoto, vamos respirar azoto? Adoro o ar fresco de Poços de Caldas!.. Vivamos nadando em águas sulfurosas!.. Vivam as Alterosas!..

Minha escrita escrota e estranha está longe de ser uma artimanha de um boi de piranha para tirar das suas devoradoras o prazer de levar sua banha. Minha escrita é a minha escuta mais profunda dos recônditos da minha labiríntica alma. Viva a Segunda feira das almas!...

Casseta ou cacêta, eis a questão! ... No mais, o direito ao escândalo também precisa ser respeitado. Se tudo fosse só bonito, o que seria do feio, coitado? Vivam os coitados!.. Morram os despeitados!.. Abraços e beijos de José Luiz Dutra de Toledo — Centro de Expressões e Estudos sobre Imaginários, Mentalidades e Tendências Contemporâneas — rua 21 de Abril, 77 — Vila Tibério — Ribeirão Preto / estado de São Paulo / Brasil 1405460 e-mail: dutol@netsite.com.br


Céu nublado e um friozinho gostoso!!..

Adoro vestir cueca samba-canção!... ainda uso as do papai, morto há quinze anos! Acho que passei a gostar deste tipo de cueca depois que assistí em 1970 à peça Tem banana na banda com a Leila Diniz e inesquecível elenco. estas cuecas me trazem conforto e são insinuantemente introdutórias.. só um movimento e o bastão mágico surge a agitar o nosso sangue.. ... Espojar na minha cúmplice cama de casal, rolando o meu corpo prá lá e prá cá, espreguiçando-me com a quase liberdade de uma cueca samba-canção é uma das delícias das minhas manhãs.. Ouvir Gal Costa é outra.. sua voz de manteiga é o que amacia o meu pão de todas as manhãs.. (...) “As crianças são a nossa fração de viver ou olhar o futuro mais embaixo.” — frase poética e filosófica de Nair de Oliveira Nunes. O auto- falante da kombi toca música caipira e chama as galinhas para comprarem milho verde granado. Elas logo surgem em seus portões com suas sacolas de rainhas da feira... O som das palmas dos que nos aplaudem é tão efêmero quanto a configuração dos ossos de nossas mãos. O calor das solas dos pés do meu jovem amante me faz lembrar que ele adveio há menos tempo que eu do infinito fogo cósmico. Só hoje eu entendí porque o vovô Antonio Dutra gostava tanto das músicas dos Demônios da Garoa: este grupo cantava uma música chamada Dor de cotovelo na qual se depreciava uma tal de Guiomar, mulher má, numa provável alusão analógica ao nome da sua mulher e minha avó e madrinha!!!... Vivendo e entendendo o mundo!!.. Emil Ciorán, Samuel Beckett, Jorge Luiz Borges, Ezra Pound, James Joyce e muitos outros escritores vanguardistas deste século foram considerados pela crítica como homens conservadores.. aliás muitos artistas barrocos também receberam a mesma avaliação .. (..) O discurso da confissão e da confidência vem quase sempre entrecortado e fragmentado por uma sucessão de silêncios, soluços, reticências.. choros.. risos.. ranger de dentes.. lágrimas e suspiros e murmúrios e sons desesperados de flautas indianas acompanhadas por cítaras meditativas e ondulantes... Clã Destino é o título do espetáculo teatral do grupo Falos & Stercus no qual se apresenta, em Maio de 1998, uma visão surrealista sobre uma família superprotetora e autocêntrica. a montagem ocorre às 22 horas na Usina do Gasômetro — avenida João Goulart,551 — terraço — Porto alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil.


Com rima rica, rifas e tudo mais, o michê Michel lá vai prú beleléu

Ela toma champagne numa taça preta de mármore de Carrara. Mas ela não é Scarlet O’Hara. Não lembro mais da minha primeira noite de condenado à morte. Só sei que nesta noite dormi numa verde cama patente de solteiro. Este é o enredo da minha história em quadrinhos: flores, vermes, músculos e ossos. Os mistérios das riquezas estão nas rotas do ouro do mapa do caos. Feijoada é uma perigosa delícia. Junte os cacos das nossas histórias fragmentadas para montarmos ludicamente o quebra-cabeça das nossas incompletas identidades. Os candidatos a governador de São Paulo mais votados no primeiro turno das eleições de 1998 foram os dois que disputavam o apoio do presidente candidato à reeleição. Candidato que um publicitário ousado chamou de Liza Refogado Cardoso. Tomara que esta maioria eleitoral não seja tão efêmera como nossos parâmetros e paradígmas...nem episódica e eventual apenas. As árvores, açuladas pelo vento, balançam e, em seus movimentos, confundem-me: não sei diferenciar o trânsito das metamorfoseantes nuvens das sutis danças dos seus galhos. O mormaço me derrete. Minha camisa rosa está encharcada. O som do ventilador me lembra O ser e o nada de Jean-Paul Sartre. Ou A Náusea do mesmo autor? Uma carta manchada de sangue. Sexus, nexus, plexus. Um longo e amplo amplexo para todos vocês. Sinto vertigens e nojo diante dos bajuladores. A maior vergonha para um ser humano é ser levado à bajulação. Eu não agüento mais esta cultura da reclamação, diria Robert Hughes...

Ainda não aprendi como costurar nexos entre parágrafos. Afinal, nossos cérebros vagueiam em tantas e dispersivas direções que as fragmentações desconexas destes meus textos nada mais revelam que nossos humanos universos são irreversíveis e caleidoscópicos labirintos proliferantes do desconhecido e da insatisfação.

Em minhas incessantes e compulsivas trocas de e-mails, acabei fascinado por um filme a mim sugerido por Olavo de Carvalho, ensaísta e crítico das revistas Bravo! e República. Ele me indicou o filme Aurora, dirigido em 1927 pelo diretor expressionista alemão F.W. Murnau. Para o jornalista Olavo de Carvalho o filme Aurora “é um filme sobre o destino e a providência: metafísica da melhor qualidade, onde até o cenário natural — chuva, bichos, pedras, árvores — se torna personagem e tudo é tremendamente impregnado de sentido. Nunca vi uma coisa tão densa, tão viva, e ao mesmo tempo tão simples e direta. Murnau elevou o cinema à mais alta dignidade. Era um artista profundo como Bergman e simples como Rosselini. Na juventude, estudei cinema, pretendia mesmo ser cineasta e esperava me tornar F. W. Murnau quando crescesse.”

Entusiasmado por este convite à profundidade estético-metafísica ví, boquiaberto, o filme Aurora. Além de admirar suas técnicas cinematográficas vanguardistas e expressionistas com jogos de luz e sombra, este filme de Murnau me pareceu um documento artístico da transição do espetáculo teatral-operístico para o espetáculo cinematográfico. Espetáculo reflexivo e filosófico precursor da resistência contemporânea à avassalante cultura de massa ou indústria cultural manipulativa e mediocrizante (popularesca) daqueles e dos nossos tempos. Percebi e senti tudo aquilo que Olavo de Carvalho me anunciara e, ainda mais, notei como na arte expressionista alemã do início do século XX continuava insolúvel o dilema ou a dialética fundada na própria gênese da alma germânica: o conflito entre a sinceridade e a pureza rústica do homem rural (sensivel e selvagem) e a mentirosa e mortal artificialidade modernosa do homem urbano. E, frente a este dilema civilizatório, F. W. Murnau deu a sua resposta estética e metafísica: o seu filme Aurora, um dos vinte filmes mais expressivos e representativos do humanismo ou do pós-humanismo ocidental no século XX. Neste filme, Murnau antecipa elementos agregáveis às teses defendidas pelo historiador Simon Schama, em seu livro Paisagem e Memória, no qual, entre muitas outras coisas, aprendi que em cada árvore, cada pedra, estão depositados séculos de memória refeitos e reformulados por uma instigante sobrevivência de mitos e arquétipos. Este livro de Schama foi editado no Brasil em 1995 pela Editora Companhia das Letras. Entre estas idéias de Schama ressalto uma: a germanidade se delineou no confronto com a latinidade. A brutal e robusta compleição física dos povos teutônicos, suas puras e rígidas disciplinas de árvores/soldados de um exército/floresta(conforme o símbolo-de-massa proposto por Elias Canetti em Massa e Poder) ou a perseverança inquebrantável e estóica dos homens de sombrios pântanos e florestas versus a retórica e a finesse das cínicas essências venenosas e mortíferas do latino urbano e charmoso, desde Roma até as mundanidades parisienses.

A única e torturante claustrofobia que sinto é quando viajo em ônibus com ar condicionado, no qual você não pode abrir a janela e sentir aquela sensação de liberdade com o vento e o tempo erodindo eroticamente sua esfinge personal. E, vamos e venhamos, nossas estradas esburacadas e estes falsos aviões rodoviários com naves herméticas nos proporcionam uma autêntica tortura de terrores e fedores. E roncares de pessoas ressonantes ou cochilantes e descabeladas. Agora, só para por um ponto final provisório neste texto: o filme Aurora de F.W. Murnau é um filme redentor, que nos sugere esperanças.

Já que estou comentando um filme, vou registrar aqui a minha decepcionada impressão ao assistir ao filme Ponto de mutação, baseado na obra de Fritjof Capra e com belíssima música de Philip Glass. As reflexões trocadas pelos personagens ou pelas personagens (uma física, um candidato derrotado numa das sucessões presidenciais estadunidenses e um poeta) nada de novo me trouxeram: só queixas ingênuas e pueris, terminologias holísticas e ecológicas chatas (reajo como a adolescente filha da personagem cientista), citações esquerdistas que vão desde críticas ao capitalismo até poemas do stalinista chileno Pablo Neruda e frases do tipo: “As pedras falam e eu me calo.” ou “É poeta, tem permissão para ser melancólico.” Horrível e sem graça... decepcionante... quase uma música de Raul Seixas versão anglo-saxônica. Isto é que é crise de percepção: ingenuidades e generosidades ecológicas e atrações fatais pela morte, como lobos famintos atrás de ovelhas...

Outra hipótese que quero agregar a este texto: a música Coração Materno, interpretada por Vicente Celestino e, depois, por Caetano Veloso, documenta a transição entre o espetáculo operístico do século XIX para a música melodramática da cultura de massa vigente e crescente ao longo do século XX.


Contos imaturos

Foi o Ulisses de Homero quem nos ensinou há milênios que sem viagens não somos modernos nem pós-modernos. Talvez o único mérito literário detectável nas leituras dos livros O Obscuro Cárcere da Solidão e Tempos de Tristeza e Rancor do jovem contista paulista José Otávio Salles esteja na coragem de encarar de frente e de pôr no papel toda ou muito da sordidez cotidiana aprisionante e viciosa da vida humana ou desumana que se desencadeia pelas paisagens desmemoriadas e memoriadas e trágicas da capital paulista.

Vivi em Sampa no fim dos anos 70 e no início dos anos 80 e, lendo os livros já citados, senti algo do tipo flash-back, um retorno repulsivo ao fedor dos banheiros públicos da praça da República, ou a volta a uma tarde de refém num apartamento decadente da avenida São João (onde fiquei retido por 6 horas por um másculo traficante de maconha e homossexual sifilítico)...tive a sensação de que Salles chovia no molhado, registrava recorrentemente o já registrado, quase de uma forma jornalística ou, também, simplistamente punk ou panfletário nas escolhas politicamente incorretas dos temas de seus contos e das suas abordagens e, assim sendo, tornava-se, algumas vezes, perfeitamente previsível, monocórdico e repetitivo. Repetir é desconhecer o que veio antes de você, é desconhecer lacunarmente o já feito. Quem disse isto, se não me engano, foi o crítico Anatol Rosenfeld.

Balzac foi financiado por seus pais e custou a decolar ou a deslanchar como um clássico e brilhante sucesso da literatura francesa e universal. Creio que José Salles ainda tenha muito mais a fazer em sua escrita do que registrar somente o sub-mundo paulistano, nele incluindo até os bastidores das já poderosas esquerdas e os antros acadêmicos da PUC. Itamar Assumpção talvez, com sua música, seja a melhor pista para esse escritor, que talvez não se contente apenas em conquistar o seu espaço enquanto escritor “marginal” das Perdizes: “São Paulo: não há saídas, só pontes, ruas, viadutos e avenidas”.

Burilar, cinzelar, polir, esculpir, montar, narrar, nuançar, detalhar, apreender em movimento os discutíveis discursos e cartografias das realidades e fantasmagorias que nos impelem ou nos incitam a respondê-los. Deixar de ser previsível e monocórdico nessas respostas é questão de vida ou de morte para a sua literatura. Falar em maturidade ou em imaturidade não significa nem implica em orientar-se por parâmetros cômodos do estabelecido como esteticamente válido. Trata-se apenas de buscar ou tentar detectar nas obras aqui criticadas as suas possíveis novidades ou contribuições estéticas para a arte de contar.

O novo é quase um ovo, diz Maria Antonieta Pereira. Bobo é ovo, você come a casca e eu como o ovo. E um começo requer fundamentalmente um impulso utópico. Começar sem utopia é repetir, é não trazer nada de novo. Não me refiro aqui às utopias estatizadas e totalitárias dos 3 últimos milênios orientais e ocidentais, mas à utopia do nunca ousado, à utopia-projeto de tessitura e bordado, viagem, narração envolvente, identificação entre leitor e autor ou, empatia pelo menos, à utopia da construção ou restauração ou desconstrução, à vontade sonhadora de dar a sua contribuição a uma arte que tanto influiu na nossa formação como a mágica arte de Scherazad evitar o desfecho inevitável inventando sempre mil e uma, ou infinitas noites de sonhos, com ou sem néon. Com ou sem nexos.

Muitas vezes o nosso ceticismo é uma forma de ocultar nossas sensibilidades, nossas leituras irreveláveis sobre nós mesmos e o mundo que mais ou menos estamos urdindo ou tramando em nossos tempos e espaços. A concepção borgiana de conto é aléphica ou labiríntica, do mínimo galgamos ao infinito.. do buraco da fechadura podemos assistir ao nunca dantes imaginado. Pretender ir além do labirinto metropolitano, deixar de ser um rato de cinema, ou de biblioteca ou de mofados porões de uma megalópole ou ameaçar sugerir e ousar desconhecer esse underground e fazer uma arqueogenealogia das faces urbanas, uma antropologia dos olhares, uma arqueologia das multidões e concentrações urbanas ou / e buscar analogias entre colônias de bactérias numa lâmina de laboratório e uma aglomeração de pessoas com roupas de casamento na porta de uma chic igreja numa noite de sábado ou semelhanças entre brotoejas de adolescentes espinhados e suas rebeldias vãs ou até avanços e cenas que deixem nos anos 70 o intimismo dos filmes existencialistas e freudianos de Arnaldo Jabour ou ir adiante dos enterros das cafetinas propostos pelos discípulos de Marcos Rey, ou pairar acima das Barrelas e noites sujas de Plínio Marcos, ou escorregar aos fundos das noites nas tavernas com Álvares de Azevedo ou caminhar marginalmente junto com os relatos saborosamente malditos de João do Rio é, no caso da escrita de José Salles, uma utópica e nova forma de estourar o ovo da serpente barbárica e reencontrar a saudável proteína espermática original da vida que pulsa em nossos corações. Sem ou com machismo. Ou melhor, com ou sem masculinidade, o que nunca foi a mesma coisa da formulação anterior. Nos disseram Leila Miccollis e a vida de quem já viveu mais de quarenta anos.

Oração anti-raio, anti-virus, anti-tudo: elementos do inconsciente coletivo brasileiro

Me esquivo dos vendedores de ursinhos de pelúcia e de coxinhas cruas prontas para fritar. Dizem que o pó que se esfarinha das asas das borboletas e as secreções esguichadas pelas pererecas e sapos cegam os seres humanos. Você tem um vaso de “comigo ninguém pode” na porta da sua sala ou na sua janela preferida, Margarida? Porque você não coloca janelas internas entre os cômodos da sua casa para combater a fragmentação individualista do seu lar? Segundo o arquiteto Carlos Alberto de Cerqueira Lemos, hoje, entre os paulistas, o melhor conceito de família é: um grupo de pessoas que detém a chave da mesma fechadura.

Presente de lenço branco é desengano. Homem de meia branca atrai a morte. Assista ao filme O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla e me dareis razão. Deixar criança dormir, quando estiver entrando o sol, faz mal. Não se pode pentear o cabelo na Sexta feira, por que Jesús não penteou. Contar 3 estrelas dá verruga na língua. Cachorro rolar de barriga prá cima: sinal de próxima recepção de visitas. Pôr chapéu de boca prá cima chama a má sorte. Briga de galinha na porta da cozinha, visita de mulher, azia ou lata de fubá vazia servindo de esconderijo para baratas cascudas. Galinha cantar como galo: mal agouro. Tal galinha deve ser morta e atirada em cruz sobre o telhado ou envergar sambenito e ser enforcada em praça pública na presença de sete mil galinhas cacarejantes e piolhentas. Tem gente que acha que cobreiro é doença transmitida aos seres humanos por sapos ou aranhas, mas os médicos atribuem a origem do cobreiro à ação virótica do herpes zóster e de outros tipos de herpes. Benzeção para cortar cobreiro: com uma embira ou com um talo de folha de mamoeiro se mede a área atingida pela infecção do cobreiro, cortando esses vegetais e dizendo: “Cobrêro brabo, se fô de sapo ou de cobra, ou outro bicho peçonhento, assim mesmo eu te corto a cabeça, o meio e o rabo.” Feixinhos de cabelo, modismos acadêmicos de pesquisar feitiçarias e bruxarias, unhas humanas, dentes de leite envoltos em bolotas de angú atirados ao telhado, agulhas em cruz, calcanhares cascorentos semelhantes a rodas de queijo parmesão, couro de sapo ou de jacaré, tamborins de couro de gato, moitas de erva cidreira, arbustos de arruda, sapatos de saltos altos e bicos finos de travestís atirados em encruzilhadas paulistanas de Moema e do Ibirapuera, velas acesas abaixo de vitrines de lojas de noivas, caixões iluminados por luzinhas azuis nos show-roons de casas funerárias, velhas roceiras ou caipiras arrepiadas de medo ou ruborizadas pela vergonha de peidar na fila da comunhão aqueles gases que cheiram aos ovos de patas fritos por elas ingeridos. Pés de moleques e lambidas nos pés de executivos da Paulista, balas de lojas de umbanda e adornos para festas de São Cosme e Damião, quadros de São Jorge e de anjos da guarda. Benzeção contra cisco nos olhos: “Corre, corre, cavaleiro, vai na casa de São Pedro buscar Santa Luzia prá tirar o cisco do seu olho.” Repita isso 3 vezes. “F..., quem te fez é Deus, quem te gerou é Deus, quem te criou é Deus, quem te pôs a mão é Deus, quem te batizou é Deus! A pedra marcelina foi achada no fundo do mar, foi coroada lá em Roma. Assim como o padre, os bispos e arcebispos não celebram missa sem a pedra marcelina e sem o vinho e a hóstia consagrada, esse mal não vai adiante. Se for quebrante, mau olhado, feitiço, inveja ou malefício, esse mal, se entrou no corpo vai sair, se entrou pela boca vai sair, se entrou pelos dentes vai sair, se entrou pelos olhos vai sair”. Reze em seguida 3 Padre- Nossos, 3 Ave- Marias, 3 Glórias ao Padre e ofereça a Nosso Senhor Jesús Cristo, a Nossa Senhora Aparecida e aos 12 Apóstolos e às 11000 Virgens e a todos os santos da Corte Celeste e às 3 Pessoas da Santíssima Trindade e complete: “Ponha a tua virtude nesta santa benção, manda esses males para as ondas do mar, para as águas salgadas, aonde não se ouve o galo nem galinha cantar e nem o filho do homem chorar, pelas chagas de Nosso Senhor Jesús Cristo, para sempre, Amém.” As pulgas pipocavam por todo o apartamento, até nas panelas vazias na cozinha. Trechos pinçados do livro Mumbuca do cônego Ivo de Matos.

(....) ”Quando criança, sonhei que passeava levado por minha irmã Clara pela praça da Purificação. Nós andávamos com muita dificuldade e medo pois o chão era feito de longas tábuas suspensas sobre o infinito vazio. Sentada num banco no outro extremo da praça, estava Norma, uma moça com quem Clara estava de mal. Estranhei que minha irmã fosse lhe falar. Os bancos, as árvores, as casas, a igreja, tudo estava precariamente elevado sobre o vazio. Ao chegarmos junto a Norma, ouvi muito bem o diálogo que se deu entre elas, embora eu, bem pequeno ainda, fosse tratado como quem nada vai entender: “Norma, o que é que você quer falar comigo?”, pergunta Clara. E Norma responde: “ Eu quero lhe dizer que eu vou me matar.” Fui acordado por ruídos em casa no meio da noite. Levantei e perguntei o que estava acontecendo, por que as pessoas estavam todas acordadas. Ninguém quis de imediato falar comigo claramente. Mas em pouco tempo fiquei sabendo que Norma, filha de seu Quinzinho, aparecera morta no corredor de entrada da casa dela, ao lado do namorado que jurava que ela havia se matado com um revólver em sua presença. Todos suspeitavam do namorado. Não tive forças para dizer que sabia que não tinha sido ele. Tive medo, mas senti também a excitação de ter vivido algo sobrenatural.” (Caetano Veloso — Verdade Tropical — São Paulo — Companhia das Letras — 1997/1998 — Quinta reimpressão — páginas 340 e 341).

Quem manda na casa é ela, mas quem manda nela sou eu. Pulei de um galho da figueira e, como um cavalo louco, disparei rumo ao cemitério dos automóveis, ao lado da fábrica de adubo derivado do lixo. E, com voz vigorosa de padre ou de Tarzan, gritei: — ”Viva a morte!” Enquanto isto, na Matriz do lusitano São Manoel de Rio Pomba — Minas Gerais, do fundo de uma caverna cheirosa formada por coroas fúnebres enlaçadas com grossas faixas roxas e dizeres em letras douradas, e acompanhado por uma multidão de mais de vinte mil pessoas, o esquife de Floripes, a Santa Lôla — que, na puberdade, caiu de um pé de jabuticaba e, nessa queda, quebrando a espinha, passou a viver acamada em seu quarto, do qual nunca mais sairia até morrer com 87 anos. Lôla por mais de 70 anos só se alimentou apenas com uma diária partícula da Hóstia Consagrada, a ela oferecida pelos sucessivos padres riopombenses. O que a sustentava era o corpo de Cristo, por ela diariamente tomado em seu leito virginal. Noiva do Filho de Deus feito homem e que habitou entre nós e em nossas entranhas e em nosso coração. Seráfica princesa dos brejos de lírios perfumados pela alvura da pureza bucólica do Éden! Enterrada está no cemitério de Rio Pomba desde o dia 10 de Abril de 1999, embora tenha morrido no dia 8.

O chamado da voz da tempestade correu pela superfície dos interesses e necessidades e me sugeriu um mundo como um todo “Onde existe uma ligação do movimento de um gato com as variações de uma sonata, do comovente olhar de um cão com a tragédia de um escritor”, disse Hermann Hesse. No museu barroco dos horrores surrealistas compreendi o conceito de “sentido” de Hermann Hesse: “é aquela unidade do múltiplo, ou aquela capacidade do espírito de pressentir unidade e harmonia na confusão do mundo”. O “sentido”, para mim, pode ser vivido numa fragmentária e sinergia de uma cena barroca. Felicidade é sorrir com Deus diante do mundo. Rirmos com o eterno riso de Deus. Como quando crianças ríamos com a felicidade trazida pelas músicas entoadas pela banda de música de nossas cidades natais. Quando não vislumbramos que tudo vá passar e nos sentimos prisioneiros do tempo ou quando nada mais paira atemporalmente diante de nossos olhares perplexos, ou desconsideramos a hipóteses das ondas do tempo e do mundo se fecharem e nos tragarem ou esquecermos de que estamos correndo o risco de nos convertermos em seres opacos e, nos punindo, recairmos na banalização da vida cotidiana, contentando-nos com palavras de dicionários ou de salas de aula, não ousarmos mais nem inventar nem variar nem derivar e nem compor mosaicos de perfumes e cores, formas e imagens, símbolos e metáforas, palavras e emoções em feixes de vivos lenhos verdes, seres estonteantemente redondos e reverberantes como o Sol, circulares como as abóbadas das catedrais ou a cúpula de um forno de confeitaria provinciana, gruta ígnea das delícias primordiais ou esquecermos as robustas curvas de uma fálica glande, em formas de luz advindas do céu e da terra como fachos da luz solar desatinante sobre multicoloridas flores, numa prolongada paz silenciosa e fria, atemporal e vítrea ou o conforto que sentimos após um banho morno... aí deixamos de ser fiéis às nossas vidas e, assim, aceleramos nossas mortes.... Para o arquiteto paulista Carlos Alberto de Cerqueira Lemos “as técnicas das paredes de taipa de pilão ou de taipa de mão — técnica da terra socada- foi levada para a Península Ibérica pelos árabes e chegou ao Brasil com os portugueses e, testada em várias regiões, foi em São Paulo que se firmou.” Os paulistas, depois disso, passaram a fazer e a vender e a apreciar paçoca de amendoim.. é gostoso prá caramba, não é mesmo?


Crítica sobre ensaio-crônica O Uni(verso) de Carlos “Platão” de Andrade, de Hermano Freitas, publicada na revista eletrônica Proa da palavra — ZAZ — Internet:

Não consigo entender porque Platão foi tão radical ao dizer que os nossos corpos sejam túmulos para as nossas almas. Provavelmente porque nossos mundanos desejos, interesses, ambições, vaidades nos levem a chafurdar na plasmável grande lama placenta dos pântanos donde emergirá a mais linda flor de Lótus. Ouço agora o cd da banda Nação Zumbi e Chico Science, adoro o Mangue Beat !... Para a gente sair da lama e enfrentar os urubus.. os de cima sobe e os de baixo desce..

Para mim, o corpo humano é o nosso labirinto e por seus nichos e vísceras navegam nossas imaginosas elucubrações, impressões, sonhos, realidades vivas, naturezas mortas e realidades virtuais, perspectivas vertiginosas e orgiásticas, nossas barbáries pós-modernas e nossos neo-barroquismos ancestrais e fantasmagóricos. Nós nos fragmentamos para nos confessar com desconexas e envergonhadas confidências e inconfidências ou somos levemente e sensualmente penetrados pelos fragmentos de nossas sombrias e metafísicas visões contemporâneas do atemporal que a todos os tempos perpassa? Terras áridas e brumosas dos confins mais recônditos de nossa imaginação, em vez de nos trazerem desalento ou pavor, nos sugerem estéticos e poéticos refúgios nos quais somos menos dilacerados. Ninhos intocáveis de eus passarinhos no meio da esotérica escrita espinhosa dos galhos do meu limoeiro de Piumhí — Minas Gerais.

Nestes recônditos brumosos de nossas imaginações peregrinas, nestes cósmicos labirintos abobadados (salpicados por pesadelos de hologramas e de museus de cera ou de circos de horrores, globos da morte de Nuremberg, touradas de aberrações açougueiras, surubas sado-masoquistas e coprofágicas ou autofágicas) elevamos nossos altares de veneração ao íntimo horror e pasmo ante o estupro da poesia dos roseirais da minha falecida avó paterna, hoje invadidos e tomados por matagais anti-nostálgicos. Os mortos nos dominam parcialmente.

Isentar-se de qualquer tipo de culpa, recusá-la, afastá-la é reconhecê-la, é temê-la. Será que Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana não gostariam de ler suas presenças nos escritos deste brilhante e sensível jovem escritor gaúcho do fim do século??... Ridicularizar as rimas me soa a uma superada esgrima estética do início do século que agora se esvai. Nossos corpos não contêm só as imundícies deste mundo. No fim do século XVI, na aurora do barroco seiscentista, Santo Ambrósio nos mostrou que as vaidades femininas de então se resumiam em expor em seus corpos coisas, bens, objetos, jóias e perfumes ou cores e fragmentos do maior número de lugares e continentes deste planeta. Quanto mais distintas fossem as procedências de suas teatrais opulências mais ricas e famosas seriam nas cortes de então. O que nos corrompe também nos ensina.

Nos perdemos, nos resgatamos e recortamos seletivamente nossas memórias. Perde o Homem que vê o mundo como ele é. É que nossos olhos são muito mais que máquinas fotográficas ou câmeras filmadoras. O orgulho narcísico próprio dos poetas está encravado em suas consciências sobre suas origens semidivinas. A pata do mundo esmaga meus ternos sonhos de guri à beira do tambo, paquerando um terneiro adolescente. A pata do mundo escoiceia-me, desmoraliza-me, achincalha-me. Quase mergulhei na tela do monitor do meu micro quando Hermano me fez lembrar, em seu texto, do triste pulo de nossas brincadeiras e jogos infantis (leia Rayuella de Julio Cortázar) para o desconcertante surgimento dos pelos púberes. Senti a mesma tristeza e vergonha em minha puberdade. Às vésperas do meu primeiro Natal pré-adolescente, meu pai me disse que eu já era um homem e, por isso, não ganharia mais brinquedos. Aproveitando-me da ingênua presença de uma tia roceira, fingi que ia suicidar e comecei a por fogo num varal com meias de nylon e a passar uma lâmina de barbear perto do pescoço. Tia Cidinha correu e foi chamar o papai que, em seguida, me aplicaria a mais longa e tormentosa surra da minha vida!!...

Os comuns mortais se perdem na pânica e perplexa fumaça ou poeira do tempo do mundo... Os espíritos aristocráticos se refugiam entre os espelhos dos caleidoscópios, nas celas dos mosteiros, nos fundos das carroças dos padeiros das fronteiras ou nos tronos dos palácios, nas paradisíacas bibliotecas ou em suas bucólicas casas de campo nas proximidades de Moscovo (chamadas de datchas), em arquivos particulares e oficiais, em meu microcosmo subjetivo, longe das causas móveis dos alaridos das sirenes de bombeiros, de ambulâncias ou das viaturas policiais, ou dos apitos de fábricas e mais longe ainda das mensagens vespertinas dos sinos das igrejas de antanho. Saudades das escadarias da igreja de Nossa Senhora das Dores lá do fim da rua da Praia, no fim do centro de Porto Alegre, quase na volta do Gasômetro, perto de uma pensão de uma espanhola e dos seus almoços regados ao mais puro azeite de oliva, cara!.. O gasoso caos universal a todos nós tritura e nos torna ao pó. Em 1492, Torquemada nos dizia: A morte é certa, só o tempo é incerto. Pó volátil, pó volúvel. Não existe o maior coração do mundo.

Não conseguiremos saborear todas as frutas do imenso pomar da existência e aqui temos uma das raízes das nossas angústias insuperáveis e infantis. Todos os terrores da voracidade se concretizam e o mundo se vinga do seu atrevimento em querer desvendá-lo. Talvez..., ... Tanto nas alegorias de Platão como nos evangelhos cristãos ou não cristãos (como os dos meus conterrâneos Murilo Mendes e Pedro Nava, juizdeforanos) algum mártir tem de morrer ou sofrer como Getúlio Vargas, Che Guevara, Lula ou São Sebastião ou Jesús Cristo...alguém ou algum tem de morrer nos redimir e nos livrar do mal, do pecado e de nossas incessantes e labirínticas assombrações cerebrais, simbólicas e viscerais. Um “big-bang’ semeador de buracos-negros para realimentar a dialética barroco-expressionista entre luz e trevas. O infinito é apenas uma expansão ilimitada do finito. Ainda não inventamos o moto contínuo. Leia os ensaios de Severo Sarduy, de José Lézama lima e de Jorge Luis Borges. Quero dialogar mais vezes com você, Hermano Freitas. Boa noite!..

Ode à minha tia-avó roqueira Dinah

Ela cobria com lençóis brancos os espelhos da sua casa na hora das tempestades com raios e trovões e invocava a proteção de Santa Bárbara e de São Jerônimo. E chamava para dentro o seu cachorro Tulim. E cantava músicas de igreja em situações de emergência. Ela gritava em altos brados os nomes de seus filhos: Luzia!.. Teresinha!.. Cecília!... Maria!.. Ana Lúcia!.. Chiquinho!... Salvador!... José!... Batista!... Geraldo!... Ela gostava de comidas apimentadas e de um bom péla-égua bem quente (nome dado na Zona da Mata mineira ao mingau de couve com fubá). E tinha dores nevrálgicas em músculos da face. Tinha uns olhinhos apertadinhos e bem vivos e brilhantes. Era uma figura diferente, alvoroçada e roqueira, levava as filhas aos bailes da Associação dos Sargentos de Juiz de Fora em plena ditadura militar. Ia às missas na igreja de Santa Teresinha, comungava só depois de se confessar. Andava de ônibus e, se fosse mais nova, voaria em cabos de vassoura ou em garupas de motos. Xingava, ria, cantava qualquer tipo de música, implorava, vociferava e, de repente, voltava ao normal. Mas ela não era nada normal. Usava desodorantes e uma blusa azul larga em seu corpo magro. Esconjurava, abençoava, visitava, vomitava, tossia, se engasgava, acolhia e afugentava, expulsava e, apesar de suas drásticas decisões, era ingênua, fingia inocência para melhor se divertir. Conheceu a fartura e o nada. A fé e o vazio. A esperança e a nostalgia..... Teve uma linda fazenda com um extenso pomar de cítricos. Ouvia programas radiofônicos de músicas sertanejas de manhãzinha e conclamava-nos a sair debaixo das cobertas e encarar nevoeiros de inverno, dizendo-me que estava encarangada enquanto enchia a sua humilde casinha branca e azul com aquele aroma de café recém-cuado. E gritava o nome de seu novo cachorro: — “Japi!..” ... “Ô Japi!” ... enquanto seus gatos lavavam as suas caras com as patinhas. Às vezes ela passava correndo pela sala (onde eu dormia) só de sutiã ou vestida com uma combinação e com os cabelos revoltos e despenteados. Com olhos de recém-acordada. Ela era demais. Inacreditável era esta ilustre viúva do sr. Joãozinho Miquita!!... Ela também gostava de dançar e de ir em festas. Uma vez ela me pediu para que vigiasse o namoro da sua Cecília com o Adilson e, meses depois, tia Dinah se preparava às pressas para receber mais um netinho e casar sua filha ansiosa. E ela nem me falou nada. Ela subiu inúmeras vezes as escadarias da igreja da Glória, quando ela morava na rua dos Artistas. Chorei mansamente quando soube da sua morte na quinta-feira 26 de Novembro de 1998. Ela merece uma novena. Ela era divertida e meio acaipirada como uma Mazaroppa que queria ser chic. Ela tinha lá as suas humanas vaidades. E isto me é compreensível.

Lembranças de fim de ano

1 — Tia Helena Loures Dutra era irmã da dona Aúrea que, por sua vez, era mãe de Antonio Olinto (imortal da Academia Brasileira de Letras e titular da famosa coluna literária Porta de Livraria em O Globo e ex-cônsul brasileiro no Senegal, em Sevilha e em Londres), marido de Zora Seljan, uma das introdutoras do yoga no Brasil. A tia Helena possuiu uma pequena fazenda (herança recebida do seu sogro Cícero, pai do seu marido Arthur Dutra), fazenda cuja sede tinha varanda com arcos românicos onde seu sobrinho Antonio Olinto ficou horas a ler e a escrever. Era um sitio localizado nas adjacências do povoado negro do Botafogo. Na casa da tia Helena em Tabuleiro-MG, vizinha à nossa, eu ouvia novelas e contos em programas da Rádio Nacional, deitado em sua linda cama com lindas colchas de crochet, enquanto tia Helena fazia sapatinhos de tricot e camisinhas para recém-nascidos de pobres famílias ou para filhos de suas amigas e parentes. Sua cristaleira era um móvel ‘art-decot’ com espelhos e elípses, onde expunha mantegueiras furta-cores, copos e louças francesas e inglesas, bandejas proustianas, jarros romanos, compotas para doces em gregos estilos, travessas com paisagens orientais ou com figuras mitológicas da bacia mediterrânea. Os primeiros picolés que chupei na minha vida saíram de sua Frigidaire. 2 — Quando papai decretou o fim da minha infância e, portanto, que eu não ganharia mais brinquedos, ele anunciou que os meus presentes no próximo Natal seriam um par de sapatos para os meus primeiros passos na vida adulta e um guarda-chuva para enfrentar as tempestades da vida. Prático, não? Faltou apenas um par de galochas. E uma lanterna. 3 — A dona Aúrea tinha crises emocionais e rompeu de vez com a lucidez. 4 — Lá em casa, a mamãe, um mês antes do Natal, (como também procedia a vovó Argelina) armava presépio e árvore de Natal. Meu pai, comerciante, enfeitava o seu Bazar São Pedro com grossos e longos cordões encorpados com fios de papel verde escuro e com bolas coloridas e espelhadas e aquelas convencionais mensagens natalinas de Feliz Natal e Um próspero Ano Novo e Boas Festas!...


Deltacid não perdoa. Mata!.. ou Como fabricar socialmente serial killers.

As balas perdidas são cometas e meteoritos com rotas incertas nos nossos universos cotidianos. Lobão é uma mistura de infantilidade e superficialidade babaca. Apesar de tudo, gostei do Lobão citar Emil Ciorán no programa Roda Viva da tv Cultura paulistana: todo processo criativo é auto-destrutivo.

Apesar das pechas de drogados, promíscuos, desregrados condenados à morte, desinformados, suspeitos de bissexualidade ou de homossexualidade, etc... os imunodeprimidos continuam sendo vistos como vítimas da falta de auto-estima, auto-destrutivos, pobres orgiásticos suicidas que, nada tendo mais a perderem (?), arriscam suas vidas e ameaçam as dos outros. Dizem que os imunodeprimidos são ignorantes, inconseqüentes e irresponsáveis serial killers... assim como os demais gays, punks, travestís, prostitutas e outros grupos estigmatizados (sado-masoquistas, coprófilos, pedófilos e necrófilos e etc...).

As esquerdas brasileiras herdaram de Carlos Lacerda a frustração indignada e o mais puro ódio ao sr. Roberto Marinho e à sua rede de jornal, revistas, rádios e televisões. Tão fanática tem sido esta raiva lacerdista contra o esquema Globo de comunicação social que as esquerdas, enfurecidas, passaram também a apedrejar a globalização, julgando-a coisa do doutor Roberto Marinho, confundindo este processo mundial com os negócios globais dos descendentes de Irineu Marinho. Caduquices das esquerdas!..

Nossas identidades nunca estarão claramente delineadas porque elas só se revelam ao longo de nossas travessias, em nossos inexatos e nebulosos pontos de partida ou de chegada temos apenas flashs do processo... nossas identidades não se revelam no isolamento de nossos diálogos com espelhos duplicantes. Nossas identidades se fazem perceptíveis é no convívio com os outros, com aqueles que nos sejam diferentes. É por isso que vejo na presente fase da globalização uma rara oportunidade histórica de nos afirmar. Mesmo que nossos perfís não sejam monolíticos e que dentro da nossa múltipla ou múltiplas identidades pululem ricas e variadas culturas e modos de viver e de ver o mundo no qual navegamos... como num imenso rio cósmico que nos abriga e amamenta em suas lácteas constelações. “O maior fundamentalismo existente no mundo é o consumo, não a religião. Há outros fundamentalismos também, visíveis nas relações sociais, como essa proclamação clara da vontade da fragmentação da sociedade.... O espaço não é feito só de coisas, mas também de homens, do que eles fizeram no passado e do que fazem agora... O espaço revela heranças.”(frases do geógrafo brasileiro Milton Santos).

Ah se eu pudesse investir em projetos para uma arqueologia dos nossos sentimentos musicais!.. A nostalgia musical da globalizante indústria de recuerdos não é mais excludente como o foram os elitistas passadismos nacionalistas anti-modernizantes, paixões e impulsos para mergulhos em túneis do tempo tão praticados por fechados grupos das velhas gerações que, assim, se defendiam das investidas ignorantes das massas desmemoriadas e incultas. Como se eleitas por Chronos estas gerações, mais recentemente, passaram a enfrentar as empresas da memória remasterizada em seus mega-projetos mercadológicos de uma experiência musical comum para as novas maiorias sem memória. Este novo fenômeno mundial para públicos de todas as idades, e sem aquele antigo ímpeto de reminiscências para maduros, foi muito bem caracterizado e analisado no último domingo de Julho de 1998, no caderno cultural do jornal Clarín de Buenos-Aires, pelo crítico Sérgio A. Pujol.

Ainda no suplemento Cultura y Nación do mesmo jornal portenho, André Glucksmann, intelectual francês também participante das barricadas do desejo do Maio de 1968, propõe que a filosofia seja o conhecimento de sí mesmo, o que eqüivale à consciência do mal que há em mim, em cada um de nós. Meu irmão caçula, gravemente doente, perguntou a Deus porque Ele não tirava a vida do seu irmão mais velho (no caso, eu) em vez de abalar a sua, na plena primavera dos seus vinte e poucos anos. Minha irmã mais generosa interveio numa família em que era escorraçada uma jovem de 37 anos, amante heterossexual em vias de se tornar uma tardia mãe solteira. Mas esta mesma irmã, boa samaritana, se sentou sobre o próprio rabo e se esqueceu de defender um de seus irmãos que, sendo homossexual e imunodeprimido, se vê ignorado e desprezado por vários dos seus irmãos. O Bem é a resistência ao Mal e não ambigüidade diante do Mal. O Mal é primitivo e original. Em meus diálogos interiores, comigo mesmo, não superei ainda a divisão da minha alma entre minha autoritária herança paterna e minha identidade crítica, intuitiva, criativa, analógica, simbólica, virtual, pós-moderna e fragmentada. Afirmar o pluralismo intelectual cinde o sistema cerceador de novas visões de mundo. Para André Glucksmann ser imoral significa afirmar que o inferno conhecido no século XX tem sido construído com boas intenções. A insuspeita e alastrante mafiosidade russa, aliada aos terrorismos da orla mediterrânea, pode ser a nitroglicerina atõmica que faltava para dinamitar o coração europeu do Ocidente. Hannah Arendt, há muito, já nos advertia sobre as banalizações do Mal e da Morte em nossa civilização. “Hitler atuou porque se lhe permitiu.”, acrescenta André Glucksmann. Como o antigo titã Tifón ameaçava o mundo e encarnava o princípio da destruição (leia a esse respeito o que nos escreveu Platão em seu livro Fedro), Hitler reatualizou o titã diabólico dos gregos. Sócrates perguntou a sí mesmo o que havia de Tifón em sua alma pois, desde então, a filosofia servia, acima de tudo, como conhecimento do Mal que existe em cada um de nós. “Os generais fascistas argentinos, durante a guerra das Malvinas, foram respaldados por Fidel Castro.” — ataca Glucksmann. Em nosso século XX os maiores massacres foram consumados em nome de classes, raças, democracia, em nome de Cristo Rei, em nome de Deus, em nome de Alá, em nome da civilização e em nome do Grande Israel. Para André Glucksmann a filosofia continua tendo como principal missão distinguir o Bem do Mal. Por isso ataca a filosofia desconstrucionista de Jacques Derrida, arauto da pós-modernidade, para quem o Mal e o Bem são indefiníveis e, conseqüentemente, (para Glucksmann), ambos acabam sendo vistos como iguais e indissociáveis. Ainda para o mesmo filósofo anti-academicista francês, no século XIX, Baudelaire, Stendhal, Flaubert, Balzac e Émile Zola estiveram centrados na perscrutação do Mal. Hoje, ou no século XX, Samuel Beckett, Eugene Ionesco e Paul Célan tiveram como objeto literário a proliferação do Mal.

(..) ”Es que en un contexto de privaciones, lo único no racionado en Cuba es el sexo, la tocadera, como decimos allá, y esto se há convertido en una forma de resolver la vida.” — afirma a escritora cubana, exilada em Paris, Zoé Valdés, autora de Café Nostalgia e outras novelas pós-proustianas. Zoé sonha com um café nostálgico no qual se misture Cuba Libre (de bloqueo ajeno y de castrismo local) com um pouco de café e que se o beba à saúde de todos, comenta em sua resenha para o mesmo suplemento cultural do maior jornal argentino, a jornalista Raquel Garzon.

A escrita como meio de dominação está clara na exigência jurídica de escrituras de propriedades, exigência feita inclusive aos iletrados não-detentores de códigos linguísticos escritos. As listagens quantitativas presentes nos sistemas de notação gráfica propiciaram o desenvolvimento das matemáticas racionalistas, das contabilidades cotidianas. Os concursos literários, segundo o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos,”a idéia de concurso é herdeira dos torneios medievais de cavalaria, nos quais participavam os cavaleiros conhecidos e os desconhecidos e nos quais cada um se confrontava com o resto para conquistar o tão difícil reconhecimento.” Durante a conquista das Américas os europeus envergaram duas armas igualmente poderosas: a força bruta dos cavalos e das armas de fogo e o poder retórico da palavra verbalizada e da palavra santificada pela escrita. Minha memória nômade se harmoniza, com dificuldade, com as tradições sedimentadas e auto-centradas. Quantos tesouros esquecidos nos sebos do Brasil!, meu Criador!.. esquecidos como certos túmulos de cemitérios- cenário indicado por Emil Ciorán aos que pensam em se suicidarem, os livros armazenados em sebos imploram aos seus freqüentadores que os reconduzam aos paraísos chamados por nós outros de bibliotecas. Nossa Senhora, Consolo dos Aflitos, rogai por nós!..

José Luiz Dutra de Toledo, 46 anos e meio de nomadismo e exílio, Prêmio Clío-1992 da Academia Paulistana de História, Mestre em História pela UNESP/Franca-SP, colabora desde 1969 com jornais e suplementos culturais de diversos estados brasileiros, organiza desde 1995 a rede de hemerotecas da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto, mantém ampla rede de correspondências e intercâmbios culturais e ama o seu cachorro Aragão, agora com mais de 13 anos de feliz existência.


Edward Albee e Arthur Miller em luminosos neóns com os quais Picasso, em tempos pós-Paul Klee, desenhou com gestos estéticos.

Embora Pablo Picasso pareça ser neste fim de século o mais consagrado artista plástico desta centúria e apesar da eclosão dos super-astros do neo-expressionismo, do abstracionismo, da arte conceitual, da arte interativa e da constelação mais recente da “pop-art” norte-americana (já ví algumas amostras de tudo isto no site do Whitney Museum de New York), mesmo assim meu coração estético pulsa mais entusiasmado quando aprecio as telas de Wassily Kandinsky (1866-1944). Dentre suas belas pinturas (consideradas pelos nazistas como “arte degenerada”), dentre suas obras figurativas destaco o trabalho a óleo sobre cartão, 50x65 cm., intitulado Interior(Minha Sala de Jantar), peça exposta na Städtische Galerie im Lembachhaus de Munique,Alemanha.A singeleza e a beleza deste trabalho tão ricamente colorido com tons azuis arroxeados,laranjas,róseos,verdes,amarelados,avermelhados e negros são indescritíveis e, não me esqueço, inclui também áreas de um colorido claro e brando chegando até ao branco. Só vendo!...Tem outra tela de Kandinsky que há muito não vejo e que muito me impressionou: A Cigana. Lindíssima!... Ainda entre suas inesquecíveis obras figurativas me encanto com outro trabalho a óleo sobre cartão, intitulado Cemitério e Presbitério em Kochel pintado no ano de 1909, com 44,4x32,7 cm. e também na mesma galeria de Munique acima citada. Já não tão puramente figurativo mas tão belamente colorido é seu Improvisação 6 (Africano) de 1909, óleo sobre tela, 107x99,5 cm. que figura no acervo da galeria alemã acima informada. Seus outros trabalhos parecidos com o anteriormente citado são igualmente esplendorosos e figuram ainda no mesmo acervo, quais sejam: Montanha (de 1909) e Igreja em Murnau (de 1910). Já os seus trabalhos abstratos que mais me chamaram a atenção são Improvisação 26 (Remo) do ano de 1912; Quadro com Borda Branca, de 1913; Improvisação Sonhadora de 1913; Improvisação Dilúvio de 1913; Composição VII de 1913; Estudo para a Composição VII (Esboço 2) de 1913; Improvisação no Desfiladeiro, de 1914; Moscovo I, de 1916; No Cinzento/Im Grau de 1919;Oval Vermelho/Rotes Oval de 1920 e Risco Branco de 1920.Não param aí os deslumbres pictóricos a nós proporcionados por Wassily Kandinsky. Capricho, 1930 (óleo sobre tela)-40,5x56 cm.; Azul Celeste (óleo sobre tela)-100x73 cm./ de 1940; Dois pontos verdes, de 1935 (técnica mista sobre tela)- de 114 por 162 cm.; Suave Elevação, de 1934 (óleo sobre tela, 80,4x80,7 cm.; Curva Dominante de 1936(óleo sobre tela)-129,3x194,3 cm. seriam incluídos á primeira e não definitiva lista que eu usaria para demonstrar como Kandinsky reagiu cromáticamente à monocromia invernal russa adicionando cores vivas e simbologias ancestrais e arquetípicas(como também o fez, porém mais tímidamente, Paul Klee).


Enjoado de tanta lasanha, ouço Duke Ellington num fim de tarde de domingo.

(..)”Os vagalumes seguiram tranqüilos o préstito das estrelas numa noite que tinha medo de sí mesma.”
(Zanoto- Correio do Sul- Diversos Caminhos- Varginha-MG).

O pânico diante do desamparo do vazio se sucede à mais profunda desilusão pela inexistência de garantias e da impossibilidade de certezas. Uma conseqüência da invasão de excitações da libido não devidamente representadas e correspondidas num plano mental? Sei lá... Para Lacan, este desamparo, pós-impotência psicomotora do bebê e no ulterior desenvolvimento de suas estruturas subjetivas, constitui um horizonte insuperável da vida psíquica. Tomando-se aí a vida psíquica, em grande parte, como um recheio de linguagem para os nossos seres. Tal desamparo engendra uma dependência absoluta da criança em relação aos seus pais. A sensação de uma falta fundamental que nenhum cuidado pode suprir, uma perda ou uma separação irreversível, o mais pesaroso e antigo desmame de um ser humano ou um drama que nenhum cuidado materno evitaria ou compensaria. Uma brecha impossível de ser apagada. A desistência em buscar objeto de importância vital e, irreversivelmente, perdido. Intratável e irremediável falta!.. Espelhar-se no descontínuo ou no Outro, a inexperiência infantil de um corpo unificado, a terrível sensação de ruptura exposta pós-parto, do ventre materno expulsa, tudo isso deixa visível a constituição imaginária do eu. Imagem do eu formada sobre a do / ou em relação ao Outro. Diálogo com o espelho que torna o indivíduo um ser para o Outro. Desestabilizada a imagem do eu, um desabamento psíquico se torna muito provável. Quando não mais traz a satisfação aguardada a mãe se torna um ser à parte, torna-se “Real”. E a criança, desmamada e desesperada, percebe que nada pode fazer. Em quem incide a falta tudo passa a ser visto como dádiva ou negação de dádivas. Nas culturas do interior da África oferecer dádivas a alguém é humilhá-la reconhecendo-a em apenas em suas carências. Dádivas enquanto símbolos de uma ausência materializada nos pedidos de amor. A realidade brutal da independência materna em relação aos desejos de um filho é insuportável para qualquer criança. D’aí a necessidade transicional de zonas de ilusão, oásis restauradores da vida desidratada e esquálida sobrevivente nos desertos da rusticidade dos afetos primários e frágeis do ser humano. Consumindo obsessivamente o objeto da necessidade quase morremos de exaustão niilista. Lasanha é carne, leite e trigo com água. E sal. Quando a criança descobre ou percebe que perdeu o seu único poder em relação a sua mãe (o de lhe conferir ou não / ou o de lhe reconhecer ou não o papel de mãe a quem de tudo e de quem tanto depende) ela se recusa a comer, numa atitude de confronto e de contestação da onipotência de uma mãe que invade suas vísceras pelos alimentos que lhe cozinhou e lhe trouxe. A mãe se vinga na sua criança, transformando-a em objeto da realização imaginária dos seus desejos. Meu cachorro ancião materializa meu desejo de imortalidade e longevidade. E ele sofre porque foi convertido impotentemente no objeto incontornável da realização dos meus desejos. Lacan também viu o desamparo que desde cedo sentimos como decorrência da opacidade do desejo do Outro. Em Totem e Tabu, livro escrito em 1912, Sigmund Freud afirmava: “O cadáver, o recém nascido e a mulher atraem por sua impotência em defender-se o indivíduo que já atingiu a maturidade e que vê neles uma fonte de novos gozos. Eis o motivo pelo qual tais indivíduos e tais estados são tabus: não convém favorecer, encorajar, a tentação.” A criança protegida pela civilização, sacralizada entre os hebreus, cristãos e indígenas brasileiros, protegida ou preservada com a criação de um tabu. A criança como um ser preservado perante os desejos excessivamente vorazes do Outro!... Defendendo-se dos imprevisíveis desejos obscuros do Outro superpotente, a criança inventa seus objetos fóbicos (proteções contra invasões de seus próprios desejos) e veste uma máscara de fisionomia desconhecida e sem conhecer sua própria aparência apresenta-se ao Outro para a continuidade dos sinistros jogos da vida, tão bem filmados por Ingmar Bergman. Em estado de abandono diante do desconhecido desejo do Outro onipotente, instala-se em nós o estado da angústia, pensava Jacques Lacan. Para ter a ilusão da superação desta angústia e tentando vencer seu pânico diante do irremediável desamparo, o homem usa e constrói o seu eu para escudar-se nele de todas as vicissitudes desencadeadas no intermezzo entre os fluxos concomitantes de sua vida e os de sua própria morte. Defende-se com a angústia contra o terror. O eu, enquanto sede da angústia (conforme sugestão de Freud) e instância imaginária, referencia e barra o desejo do Outro. A angústia é o sinal do desejo do outro. Confrontar-se, face a face, com o próprio desamparo atravessando o coração do eu com a flecha apontada na direção curativa do “além-eu”, onde não mais esperamos ajuda de ninguém. Relacionar-se consigo mesmo é sua própria morte. Não sou um jogado-no-mundo. A angústia é uma das formas de revelação do nada. A angústia humana incide sobre um objeto que escapa a toda simbolização e que se afirma como causa motora do desejo. “A organização simbólica do mundo repousa, portanto, sobre uma base de desamparo.” — concluiu o psicanalista lacaniano Mário Eduardo Costa Pereira, professor da UNICAMP, em seu útil e esclarecedor artigo intitulado O pânico e os fins da Psicanálise, publicado em meados de 1998 pela revista de Psicanálise Percurso.

Em outros extremos, confrontados com a castração de nossas mães, o afeto despertado é o do horror. Mas, mais uma vez citando Mário Eduardo Costa Pereira, “nada e sobretudo ninguém pode garantir de forma absoluta e imutável os alicerces simbólicos do mundo.” É este desamparo que escoima a própria linguagem. Ou o vazio do desamparo nos leva a suprí-lo com linguagens relacionadas aos sujeitos e objetos dos nossos mundanos e humanos jogos de desejos. Nossas mães não nos livraram deste desamparo mas nos deu uma básica palavra de mãe, autoridade guardiã dos significantes. A portadora dos conteúdos significativos. Insultar a sua mãe é insultar o sentido da sua própria vida? Eu me torno minha própria muralha contra o meu pânico diante do meu irremediável desamparo. Buscar-me inteiro, recolhendo os pedaços do meu ser no quebra-cabeça do desamparo de cada um de nós, desfecho a flecha da cura do meu pânico Maior: no jardim das Oliveiras, iluminado por um atemporal luar, em minha orfandade cósmica, encaro a minha Morte que, aos poucos, irá se consumando. Meu eu é o meu sintoma, aduziu Freud. Meu desamparo e razão do meu pânico é a minha fragmentação e desintegração em partes e partículas independentes e não integradas. Meu pânico dá início ao processo no qual eu vou me reconstruindo, me reintegrando e chegando além do meu eu, ao lugar ou ao estado no qual não sentirei mais a necessidade de pedir ajuda a ninguém. Fazer do desamparo primordial um início de viagens criativas e de auto-construção poética, estética e ontológica de uma partícula notável e brilhante no universo humano. Intensificar e aprofundar o pouco de liberdade que temos para amamentar nossos inesgotáveis desejos, ninando nossa transitoriedade desamparada e aconchegando-nos em nosso berço universal. O Real é a configuração mais concreta deste desamparo irretocável.


Entre uma Esmeralda do Pará e uma Stela da Bahia fico com as duas

Enquanto se ouvir em qualquer parte do mundo a Rhapsody in Blue de George Gershwin e/ou Wonderful World cantada por Louis Armstrong eu serei imortal e viverei naquele momento e lugar onde se façam ouvir tais canções.

Não sei porque me sinto mais atraído pelas novelas (São Julião Hospitaleiro; Herodíades e Um coração singelo) do que pelos romances (Educação Sentimental e Madame Bovary) de Gustave Flaubert. Nestas novelas (ou, para outros, contos) temas sacros se mesclam a emoções profanas.

Na belíssima novela Um coração singelo , a empregada doméstica Esperança, já bem idosa e desvalorizada por aqueles a quem servira, estirada num quarto no qual reuniu os objetos simbólicos mais reveladores da sua trajetória existencial, após sobreviver aos seus e aos remanescentes da família à qual até bem pouco servia, morria de saudade do sobrinho marinheiro que partira de Honfleur para as Antilhas (de onde não mais voltou), expirava em êxtase ontológico olhando para o que sobrara de seu papagaio de estimação, enquanto do lado de fora dos seus aposentos, um padre regendo uma benção do Santíssimo Sacramento, conduzia seus fiéis ao clímax do solar apogeu eucarístico.

Em seu conto Herodíade, Flaubert mergulha conosco nos orgiásticos bastidores dos poderes e nos incita a reflexões sobre ética e poder, sedução feminina e submissão masculina, fé e poder enquanto nos descortina o cenário e a paisagem e os personagens da trama de Herodíade e da sua filha messalina Salomé para obterem a cabeça de São João Batista.

Na novela ou conto São Julião hospitaleiro, Gustave Flaubert nos mostra a lendária e medieval biografia de São Julião, seu itinerário expiatório ou purgatório, desde as suas principescas origens, as suas doentias matanças de animais (iniciadas com a eliminação de um ingênuo ratinho branco durante uma missa dominical e culminando no extermínio de um populoso vale de cervos, recheado de carnes quentes surpreendidas traiçoeiramente em pleno sono) até a sua humilde condição de barqueiro abraçando e aconchegando em seu corpo magro e envelhecido um Jesús Cristo hanseniano em carne viva, tremendo de frio. Abraçado a Cristo é elevado aos céus.

Nestes contos ou novelas, Flaubert trabalha sobre a dualidade entre o “sacro” e o “profano” em diferentes momentos da história da humanidade. Em Herodíade trata da oscilação entre o humano e o sagrado no mundo antigo. Na biografia de São Julião, revelada em vitrais de uma igreja da sua cidade natal, Flaubert exercita um olhar medieval construindo uma ponte poética entre a Terra e os Céus. E na novela Um coração singelo, o imortal escritor francês nos incita a olhar romanticamente a trama existencial de Esperança, típica mulher do século XIX, versão flaubertiana da personagem principal do romance Justine ou As Desgraças da Virtude do insigne Marquês de Sade, violentada pelo destino e submetida à rotina doméstica, às dores e perdas inconformáveis, a nostalgias martirizantes e a expiações existenciais espiritualmente purificadoras, tia que ama um sobrinho que o Oceano Atântico não lhe devolveria (seu último parente) e alvo de ingratidões dos que exploraram seus serviços prestados ao longo de várias décadas.

Em seus romances Madame Bovary e Educação Sentimental, o eixo temático de Flaubert é outro: eu e o mundo. São romances tão autobiográficos que Flaubert teria proclamado aos quatro cantos deste orbe: “Madame Bovary sou eu.”

Mas, também em seus romances, Flaubert não se distancia da metafísica existencial do humano em sua tentativa de se elevar além ou acima do cotidiano. Em Educação Sentimental exclama:

(....) ”Pobre como era, cobiçava o luxo sob a sua mais clara forma.”

É aqui, neste fragmento romanesco, que Flaubert nos remete a uma posterior constatação de Georges Bataille, em seu clássico ensaio La part maudite:

(.....) “O primeiro trabalho fundou o mundo das coisas, ao qual corresponde geralmente o mundo profano dos antigos. A partir da posição do mundo das coisas, o homem tornou-se por sua vez uma das coisas deste mundo, pelo menos durante o tempo no qual trabalhava.” (...) “É desta perda de direitos, desta desgraça, que o homem de todos os tempos esforça-se para escapar. Em seus mitos estranhos, nos seus ritos cruéis, o homem está desde o início à procura de uma intimidade perdida.” (....) “O mundo íntimo opõe-se ao real como a desmesura à medida, a loucura à razão, a embriaguez à lucidez.” (...) “Não é a necessidade mas seu contrário, o luxo, que coloca à matéria e ao homem seus problemas fundamentais.”

E Bataille nos leva a meditar sobre o que me disse a artista plástica e escritora sergipana radicada em Salvador — Bahia Stela Fonseca: “.... é preciso dizer não à autofagia dos sentimentos que não se fazem em palavras.”

Retomando o argumento no qual afirmo que os autobiográficos romances de Flaubert são manifestações de um escritor perante o seu mundo, são até explicitações de posicionamentos políticos deste romancista frente ao estado de coisas vigente, para melhor fundamentá-lo cito mais um fragmento de Educação Sentimental, numa crítica talvez de índole monarquista:

(....) “Tivemos, desde o estabelecimento da melhor das repúblicas, duzentos e vinte e nove processos de imprensa, donde resultou para os escritores três mil cento e quarenta e um anos de prisão com a ligeira quantia de sete milhões cento e dez mil e quinhentos francos de multas.”

Madame Bovary, a Gioconda flaubertiana, merece um estudo à parte. Não posso prometê-lo, mas quero fazê-lo.

Quando a personagem principal de Um coração singelo, Esperança, morre a novela acaba. Tanto para Flaubert como para o poeta cubano judeu (descendente de imigrantes tchecos) José Kozer “ morte é carência de idioma.” Ou, “ a não necessidade de falar.” E, afirma Kozer, “ todo traslado é mascaramento.”

Adoro o inusitado, sou filho de uma perspectiva fragmentária do mundo contemporâneo e me impressiono com a minha incessante dinâmica de elaborações e anseios cerebrais, nas quais faço fluir imagens e situações virtuais visualizáveis ou não, mas carnalmente vividas sob “ a inquietude profunda, o estado de alerta e de alarme ante o mundo atual, questionando e me interessando por tudo” e, como revela José Kozer, “escrevi defecando, purificando-me, dormindo.” O sono, em minha vida e na minha morte, tem sido o berço mais reconfortante para as minhas mais profundas escrituras.

“Tudo se constrói com base em ladrilhos......” — José Kozer. E com ele grito: Viva o solto rebolado de tosas as formas de expressão!... Canto enquanto como arroz com manga e abacate amassados e esquentados com suco de limão e misturados a ovos fritos.... sonho com palmas de mãos, umbigos, axilas, barrigas de pernas, pratos, bacias, travessas, becos sem saída, cuias, gamelas, tigelas, escudelas, castanholas e castanhas do Pará, baixelas, louças francesas, sopeiras, ânforas, cálices, taças, turíbulos onde fazemos arder incensos e todas as concavidades da Mãe Dadivosa e Fértil como os estrumes de elefantes nos seios da Madona exposta no MOMA de New York!....

“Aqui está a verdadeira democracia do futuro, que se sustenta na aceitação de todas as falas, sem reprimir, nem desprezar, sem supremacias idiotas. Quando a linguagem se abrir a todas as tendências morrerá de um só golpe os fundamentalismos, o totalitarismo, nós riremos nos narizes dos policastros castradores e castrados, a castrada militância dos ignorantes que pretendem redimir os ignorados, sendo eles os primeiros a ignorar.” José Kozer falou e disse melhor até que Zaratustra. Que continua:

“Lembro-me que, desde criança, detestava a má retórica, o dizer fácil e pomposo, a falsa exuberância, o barroco mesquinho. Eu os ouvia nos discursos políticos, nas normas escolares, no lixo radiofônico e televisivo, e isso me tirava do sério...”

Concordo com José Kozer que vê, além de Quevedo, num futuro mundo melhor, uma escritura muito mais rica que a contemporânea, que iria tanto da direita à esquerda como da esquerda para a direita bem como fluiria horizontalmente diluindo maniqueísmos (como Oriente/Ocidente) e ridicularizando verticalidades hierarquizantes ou burocráticas e correndo de baixo para cima como também de cima para baixo nos oxigenando com liberdades multidirecionadas e resplandecentemente estelares.

Acho que sou um daqueles diaspóricos marginais materialmente pobres (mas espiritualmente ricos) que, como o fez o materialmente rico e polifônico espírito neo-barroco de José Kozer, preferi viver como as crianças, entre lápis e cadernos, ou seja, a vida inteira lendo e escrevendo ou desenhando..... ou terei me transformado num monge medieval que lê e escreve vinte e quatro horas por dia nos trezentos e sessenta e cinco dias de um ano.... “Desde adolescente” — confessa Kozer — “fui troglodita, omnívoro e grafômano. Um obsessivo.”

Não consigo parar de escrever, gente, o que faço? Este texto deve ser curto pois será editado na internet onde ninguém pode ler textos longos, daí a supremacia das imagens sem palavras.

O Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário Minas Gerais, nos explica em nossa ontológica obsessão: estamos presos e, ao mesmo tempo, livres numa infinita e labiríntica e veloz rede, “sem direito a poder parar de falar, primaverando-se a cada volta”, em sucessivas emoções ruidosas ou silenciosas. Reunimos em cada um de nós, seres pós-modernos(?), todos os cheiros, cores e densidades ou levezas deste mundo.

Com destinos abissalmente distantes dos destinos das almas medievais (como a de São Julião, martirizada por uma praga lançada pelo líder dos cervos exterminados ao bel prazer de um fútil principezinho desorientado) estamos condenados à liberdade e ao caos caleidoscópico da existência.


Figos secos das apocalípticas figueiras da Turquia onde Absalão perdeu seu couro cabeludo, uvas do noroeste paulista, iogurte natural e fragmentos crocantes de papos pornográficos na Internet.

Ao som da música Califórnia Dreams dos The Mamas and Papas, eu lhe confesso que gosto muito do hálito da minha bebê boxer Saragoza. “Não desdenhou-se, em todo o caso, a minha companheira/ De o ir solicitar com mão provocadora/ Mas vendo logo que de modo algum ele se erguia/ E, deslembrado de sí, continuava tombado: “Por que razão zombas de mim? “, disse:” Quem, insensato, contra a tua vontade te fez vir ao meu leito?” (Ovídio em: Poemas da Carne e do Exílio — tradução de José Paulo Paes- S.Paulo — Cia. das Letras — 1998). Para mim eu sou um labirinto que começo em minha boca e termino em meu anel de couro de másculo minotauro e, para mim, o mundo é um grande labirinto para o meu pessoal labirinto. E assim por diante.. até o caos total universal e divino. Gosto de tantas coisas, meu divino Zezé, que o melhor, para começarmos, é coçar nossas cacêtas e pô-las uma na boca do outro. Não é melhor assim, meu Édipo electrizado pelo meu caralho ainda mole? Confio em você, Zezé, arreganhe meu cuzão, cumpra sua promessa de me fazer gozar como nunca e me fazer querer abraçar o infinito com os braços e de meus gritos de prazer corarem Cicciolina de vergonha e de me possuir até o meu preguento assar-se de tanta tesão!.. Eu também sou coroa. Tenho 47 anos. Vamos coroar nossos caralhos um com a boca do outro? Arregace meu canal prepóstero de boi mineiro exilado em pastos do interior paulista!.. Nilo, prefiro conhecer este rio que você hoje pode me proporcionar em noite tão quente a nos impor nudez. — Você quer banhar-se nas minhas águas caudalosas? Olha que têm certas águas que podem ser traiçoeiras e te fazerem ficar febril por muito tempo!.. / Peter, você já lambeu alguma vez pés suados de funcionários públicos dos calcanhares cascorentos como queijos parmesão e que atravessam a praça da Liberdade alí pelas 14 horas? / Como posso, em tão pouco tempo, despertar em ti tantas curiosidades? Comece o interrogatório. Sou todo respostas... só respostas. Para mim, sexo nunca foi convencional. Sempre sexo (para mim) foi o prazer transgressor de me libertar. (..)”Não poderia eu defender costumes licenciosos/ Nem terçar armas falsas em prol dos meus vícios. Confesso os meus erros, se de algo adianta confessá-los; / E volto a neles reincidir, doido que sou. Odeio, mas não deixo de cobiçar o odiado: Ai como é duro abrires mão do que desejas!” (Ovídio — in: op. cit. — pág. 31). “Todo mundo acredita que um filho tem pai e mãe, e isso faz sentido; os católicos acreditam que Jesús teve somente a mãe, e isso, para eles, faz igualmente sentido.” (Wittgenstein). “Existem, grosso modo, 3 tipos de intelectuais: os materialistas, para os quais a matéria se explica a si mesma (Epicuro, Hume, Marx, Nietzche, Freud, Russel, Sartre); os espiritualistas, que vêm a matéria como invólucro ou fenomenologia de um espírito (Buda, estóicos, Hegel) ; os religiosos para os quais a matéria é criada por um Deus-pessoa (Agostinho, Avicena, Maimônides, Tomás e Lutero). Nas universidades do mundo, esses 3 segmentos de intelectuais estão presentes em proporção mais ou menos igual. Entre nós é diferente. O drama do Brasil é que a maioria dos intelectuais nas universidades é materialista e anti — eclesiástica. Esse sentimento passa para os estudantes, em gerações sucessivas. E, assim, na ausência da intelectualidade espiritualista e religiosa, a nação se empobrece em sua energia moral.” (Antonio Marchionni — PUC / SP — pág. 4[]3 Ilustrada — Folha de S. Paulo — 5 de Dezembro de 1998). (...) ”O cérebro é mais vasto que o céu/ Pois se os pomos lado a lado,/ Aquele o outro contém / Fácil — e a você também —/ O cérebro é mais fundo que o mar (...)// O cérebro é do peso de Deus.” trechos de um poema de Emily Dickinson, citado por Zanoto de Varginha — MG). Entre os meus sonos suaves e os meus pesadelos de açougues e os meus particulares sustos de viver, as cozinhas sempre me pareceram gordas sujas a atraírem baratas e moscas. Sol à pino me molha de suor enquanto deliro com as cítaras e guitarras de Ry Cooder, Jim Dickinson e David Lindley para a trilha musical do filme Paris-Texas de Wim Wenders. Para Lais Costa Velho (de Juiz de Fora — MG) e Jean Paul Sartre as nossas grandes indagações advêm dos nossos instintos de sobrevivência. Conscientes de que, nascidos, começamos a morrer; viver sentindo a voragem do tempo nos é impossível ou atordoante. E cada qual, inventando a sua própria saída, inventa a si mesmo, escreve Lais Costa Velho. Fracassados heróis da liberdade individual solitária, uma das melhores peças teatrais do século XX por mim lidas é Mãos sujas de Jean Paul Sartre (até hoje editada em língua portuguesa só pela editora portuguesa Europa — América). Para Marjorie Garber, sintomas são formas reprimidas de falar e cultura é algo que possa ser lido e engendrado como um sonho. Como uma colcha de retalhos de telas aciganadas de Kandinsky e inúmeros e desconexos fragmentos repetitivos de momentos ambíguos e mal entendidos dos que, por jogos de palavras, tentam disfarçar sua desorientação no labirinto (interior e exterior) no qual nos metemos. Não há como despertar do sono — cultura. Você escorrega para dentro dela e dela, nem por um momento de interpretação, se consegue sair. A aranha sonha com um grande porco em sua teia. Sonha sugá-lo por toda a Eternidade. Anúncio da gelatina americana Jell — O (anos 50): “Há uma festa escondida em sua geladeira.” A geladeira como o reino encantado de Oz. A aranha Charlotte acredita no poder da labiríntica tecelagem e tira seu vocabulário de caixas de sabão em pó ou de anúncios de revistas. “O que é grave é sabermos que atrás da ordem deste mundo existe uma outra.” (Antonin Artaud) Em busca de outras margens da linguagem, Artaud desafiou a ordem burocrática da linguagem medíocre da mesmice. E foi, por isso, que eu disse para a sra. Marchi que me interesso muito mais pelo que ocorre fora da escola. Para o filósofo francês Jacques Derrida, o texto insurgente de Antonin Artaud emerge do nebuloso pântano da significação de palavras que dão peles aos nossos corpos transitórios (em nossas buscas do subjéctil). Absorvamos a tinta — sangue das palavras em diálogos gráfico — textuais entre a imagem e a idéia. Minúcias ilusionistas barrocas em sonhos e pesadelos de Pedro Nava. Liturgias poéticas de Murilo Mendes. Tropicalismos modernistas de Raul Bopp. Para o historiador Júlio Pimentel, memória é um processo de elaboração textual, base de representações comprometidas em maior ou em menor grau com o verossímil. A poética da memória (de Jorge Luis Borges) traduz experiências pessoais e estéticas transfiguradoras. Texto e história se estranham. Talvez, diz Júlio Pimentel, o futuro seja um espelho e a memória, um labirinto. Confira lendo o livro de Pimentel: Uma memória do mundo: memória e história em Jorge Luis Borges — S. Paulo — Editora Estação Liberdade — FAPESP — 333 páginas — 1998.

Segundo o economista José Pastore, apesar de as atividades sexuais serem as mais antigas deste mundo e componham 14 por cento do PIB da Tailândia, poucos se animaram até hoje a tratar esse setor como um segmento do mercado de trabalho. As atividades de sexo, segundo este colaborador do caderno de Economia de O Estado de S. Paulo (8/12/1998), funcionam como mecanismos de distribuição de renda. A maioria das prostitutas das cidades vêm da zona rural e remetem para suas famílias uma quantidade expressiva de recursos que, em muitos casos, superam o que gastam os governos nos programas sociais. Será que, assim, poderíamos concluir que as prostitutas são santas também? Santas e angelicais distribuidoras de renda mais eficientes que os líderes políticos que se deixam corromper e que nada querem distribuir? Entre as cavernas sugadoras das nossas bocas e as contrações anais dos nossos esfíncteres um labirinto visceral e pantanoso de enzimáticos desejos nos caotizam e nos lançam de um carnaval de hormônios aos trêmulos infernos de humores e adrenalinas envenenantes. Este é o humano reino deste mundo, meu ou minha leitora!... — Garçon, traga-me uma matinal gemada peidorreira!.. Please!..


Ideologia e racismo na história das devoções católicas brasileiras.

(........) “Espírito ímpio/ por que não pensas na morte? / Saiba que ela fere/ na hora marcada.”
Zanoto — Varginha-M.G.

Nossa Senhora do Rosário era uma devoção tradicional e amplamente disseminada entre os contingentes negros desde a colonização portuguesa do Brasil. Claro, os brancos também veneravam e reverenciavam a Mãe do Rosário, devoção esta difundida pelos frades dominicanos, arautos das devassas inquisitoriais. Nossa Senhora Aparecida, embora de tez negra, é a padroeira do branco Brasil católico.

Em Ribeirão Preto-SP, a igreja do Rosário, na Vila Tibério, está localizada numa praça que, em qualquer cidade do interior do Brasil seria chamada de praça do Rosário, ali ganhou o nome de Coração de Maria.

Será que esta escolha de outro nome expressa conteúdos racistas na devoção católica da população deste bairro ribeirãopretano majoritariamente descendente de italianos?

Em Piumhi-MG, a igreja do Rosário dos Pretos, tem em seu altar-mor, no lugar de Nossa Senhora do Rosário, uma imagem da branquíssima Nossa Senhora de Fátima, a virgem-musa dos católicos conservadores brasileiros que previu o fim do comunismo no fim do século e que provavelmente ali ganhou afresco no teto, vitral e altar-mor em homenagem ao padre português Abel, vigário piumhiense nos anos 50 com índole nitidamente conservadora.

Antigamente, no dia 12 de Outubro era dia de congada e de Nossa Senhora do Rosário dos pretos e dos brancos e hoje virou dia da negra(talvez só na pele) Nossa Senhora Aparecida, antiga devoção militar medieval, hoje padroeira do Brasil branco e católico.

O espaço é infinito. Nós somos finitos. Eu sou mortal. O tempo é infinito. Nós somos finitos. Eu sou mortal. Na interseção de espaços e tempos infinitos, continuamos finitos mortais como o sapo surpreendido há pouco no meu (?) jardim. Continuamos infinitamente pequenos diante da imensidão crescente do universo e tão desprotegidos quanto uma macia e mansa cadela cor de caramelo que caminha com dificuldade (por ter uma de suas patas traseiras esmagadas e da qual pende uma enorme e surrealista unhona tipo gancho) pela estação Rodoviária de Passos — M.G. à cata de restos de salgados ao chão atirados pelos brutalizados passageiros que por ali passam. Sua meiguice é a mais convincente prova do martírio santificador dos animais deste fim de século. Os lábios ulcerados da vagina desta cachorra fizeram doer meu coração.

Em Piumhi-MG, há quase 50 anos, um adolescente carroceiro esteve envolvido no rapto da mulher do juiz e, por isso, foi sentenciado e preso. Uma reedição sertaneja do rapto de Helena de Tróia e do seqüestro das sabinas?

Quando estive, em 1990, em Diamantina-MG, um ex- motorista de J K me levou, em seu táxi, a várias cachorras que despencam em torno desta lendária cidade histórica mineira. Agora, no dia 15 de Outubro de 1999, chego a Piumhi — M.G. e sou conduzido até a nossa casa na Eduardo Heringer pelo motorista de táxi João Goulart. Com tantos ex-presidentes em meu dia-a-dia pressinto estar ficando famoso ou à beira de ir morar no Alvorada.

Por pouco, os habitantes do futuro canil do Quinto Pelotão de Polícia Militar de Piumhi- M. G. não se divertirão com os ossos de uma criança, cuja tumba veio à luz durante as escavações para o alicerce desta dependência para os aliados dos homens da lei. Tal sepultura era uma das muitas que se aglomeravam no Cemitério Eclesiástico de Piumhi, criado pelos padres Balbônios em 1828 e desativado pelo poder público municipal em 1932, quando foi aberto a toda a comunidade piumhiense o antigo cemitério dos Protestantes, que, assim, passava a ser o atual Cemitério Municipal da Saudade, no bairro das Pindaíbas, em Piumhi — M. G. .

Tal sepultura infantil ali localizada, era uma tosca construção de tijolos com dimensões aproximadas de 80 cm. X 40 cm., guardava alguns restos do caixão e restos de um anjinho. Alças metálicas cobertas de ferrugem, pregos, pequenos pedaços de ossos, vestígios de ramos de cipreste e até um pouco da mortalha que cobriu o corpo daquela criança morta era tudo que restava daquela anônima e curta história.

Recentemente, à pág. 1[] 14 Mundo — da Folha de S. Paulo, em sua edição de 8 de Outubro de 1999, informou-se que: um cemitério de crianças, que pode ser do século IX, foi encontrado em um povoado a cerca de 20 km. De Barcelona, capital da Catalunha. A escavação foi feita durante a restauração de uma igreja. Peças de cerâmica dos séculos X ao XIV e ossos de padres dos séculos XVII e XVIII também foram encontrados.


Introdução à História da Velhice no Ocidente.

(....) “A crítica é um estudo e não uma arrogância.”
Sílvio Romero

“Nosso tempo é o tempo do desprezo. Desprezo e nostalgia de eternidade”, assim Otávio Mello Alvarenga, em 1952, encerrava um ensaio sobre Baudelaire e Sartre, ensaio esse que publicaria em seu livro Mitos e Valores, editado no Rio de Janeiro em 1956 pelo Instituto Nacional do Livro.

Quase meio século depois desta constatação de Otávio Mello Alvarenga, nosso tempo aponta para questões mais trágicas e graves: a banalização do mal, a generalização da violência, o aumento de homicídios em todas as faixas etárias, a velhice tentando imitar modas da juventude, o endeusamento capitalista da produtividade da juventude e o descarte do idoso como inteligência, experiência e força de trabalho; a desvalorização da vida e a desconsideração pelo testemunho e pela vivência daqueles que não só acumularam anos de vida mas que, com o feixe do tempo, fizeram suas pontes e teias entre gerações, amigos, parentes, o céu e a terra, as sombras e as luzes, a vida e a morte.

A primeira idéia ou impressão que tive sobre a velhice foi na minha infância e não foi agradável nem atraente a imagem a mim sugerida pelos adultos a respeito desta idade humana. Diria que esta primeira impressão sobre a velhice vinha mesclada de mistérios e curiosidades sobre o passado (o que me antecedera) e, outras vezes, minha imagem sobre a velhice reproduzia a visão dos adultos, ou seja, amalgamava fantasmagorias e aspectos repelentes da decadência física humana. Na puberdade, minha imagem sobre a velhice oscilava entre uma fase de vergonhosa impotência sexual (objeto de piadas dos adultos) e a serenidade ou o desespero que antecede à morte. Na adolescência eu nunca conseguiria imaginar um ancião que fosse radical em termos ideológicos do que um jovem. Velhice era moderação. Em seguida, em contato com amostras fragmentárias de tradições espiritualistas, passei a conviver melhor com a idéia da velhice como a idade da sabedoria e da experiência. Enfim, em cada momento da minha trajetória pessoal tive um conceito e uma imagem sobre o que chamamos de velhice, seus limites e suas vivências. Creio que o mesmo ocorre ao longo da História da Velhice no Ocidente, ou seja, o conceito de ancianidade é histórico, passageiro, refletindo muito as angústias e as incertezas individuais e coletivas durante suas vigências ou hegemonias.

As estimativas e médias de longevidade em diversas espécies animais (entre as quais nos incluímos) e espécies vegetais também devem variar de acordo com as condições ambientais planetárias. Segundo dados do livro Biologia Fundamental de C. Morales Macedo, citados na página 388 do Almanaque do Correio da Manhã em sua edição de 1942, esta era, naquele ano, a longevidade previsível para as aves:

— Águia..............................104anos
— Anu branco......................25 anos
— Cardial.............................29 anos
— Cegonha...........................70 anos
— Cisne................................102 anos
— Corvo + de........................100 anos
— Galo...................................de 15 a 20 anos
— Ganso e cisnes....................100 anos
— Gaivota prateada.................44 anos
— Grou..............................40 anos
— Falcão............................162 anos
— Pombo coroado..............53 anos
— Pombo (Metriopelia aymara)........40 anos
— Papagaio + de ..................100 anos
— Saci..................................40 anos

E, ainda no mesmo Almanaque, à pág. 359, em suas Tabelas Pecuárias, estas eram as médias de longevidade atribuídas aos seguinte animais:

— Baleia.....................vários séculos, ao menos 400 anos de vida
— Elefante...................entre 100 e 200 anos
— Peixe carpa..............150 anos
— Cegonha...................mais de 100 anos
— Cavalo......................30 anos
— Jumento....................40 anos
— Mula..........................35 anos
— Boi.............................30 anos
— Carneiro.....................15 anos
— Cabra..........................15 anos
— Porco...........................10 anos
— Camelo........................40 anos
— Cão..............................15 anos
— Gato.............................12 anos
— Coelho.........................8 anos
— Cobaia.........................7 anos
— Papagaio.......................150 anos
— Galináceos....................20 anos.

Os anos de vida de muitas árvores são contáveis pelo número de anéis concêntricos visualizáveis no corte horizontal de seus troncos e não são poucas as árvores que vivem ou viviam por séculos. Após a Revolução Industrial a exploração das madeiras das árvores como matérias-primas de várias indústrias acelerou o fim das maiores florestas deste planeta.

Os anéis concêntricos destas grandes árvores ou os anéis externos nos troncos das palmeiras viraram símbolos humanos de tempo e duração de alianças matrimoniais ou de durabilidade de uma relação amorosa ou de amizade. Daí advém o humano costume de ostentar anéis em términos de estudos ou na celebração de noivados e bodas, símbolos de compromissos profissionais e de bodas que desejamos duradouras. Os anéis das árvores e os anéis dos nossos dedos aludem à evolução circular e anual da Terra em torno do Sol, fonte de luz, de calor, de vida e de fotosíntese.

Sobre a longevidade humana o autor desta mesma tabela afirma: “A maior longevidade do homem, historicamente registrada, é a de 185 anos. Chamava-se Peter Czartan esse homem, um camponês húngaro, nascido em 1539 e falecido em 1724.”

Percebemos, nessa mesma edição do Almanaque do Correio da Manhã diferentes médias de longevidade para vários animais. Por exemplo: à cegonha, em diferentes páginas, foram previstos 70 anos e mais de cem anos de longevidade.

Quanto às médias de longevidade humana também oscilam entre 70 anos e muito mais de cem anos. Também variam e são controversas. Sobre tais inexatidões, algumas vezes revestidas com teores lendários e nacionalistas (quando não nitidamente etnocêntricos), vejamos o que nos informa, no mesmo Almanaque, o artigo de Rodrigues Doria, à pág. 339, intitulado O segredo da longevidade:

“Manter a vida com saúde até pleno limite estabelecido pela natureza é uma graça que pode ser obtida dentro dos poderes de cada um.”

Explicar esta durabilidade máxima, normal ou natural, da vida humana parece ser uma pretensão carregada de conteúdos míticos, muito freqüentes nas relações entre o “Divino” e o “humano”. A busca da imortalidade pode ser um novo e atualizado capítulo da natureza prometéica deste heróico intento dos filhos dos deuses. Se a imagem divina, para vários povos formadores da bacia civilizatória ocidental, lembrava um patriarcal e barbudo ancião com ares de sábio, o espírito prometéico humano levou o Ocidente ao presente e desafiador culto à juventude.

O colecionador de casos de longevidade humana, Roger Bacon, citado por Rodrigues Doria, alude apenas a um caso brasileiro, o do Visconde de Barbacena, que morrera com 102 anos. No dia 5 de Novembro de 1941, na região de Ribeirão Preto, mais exatamente em São Carlos, Dona Ana Carolina de Melo Oliveira Arruda Botelho, Condessa do Pinhal, figura representativa da nobreza paulista, comemorava seu centenário chupando as jabuticabas da árvore que plantou ao pé da janela do seu quarto, na sua fazenda, quando do seu octogenário.

Benjamin Richardson acreditava que qualquer um, observando normas apropriadas, chegaria aos cem anos de vida, mas tais prescrições não lhe valeram pois com 67 anos veio a falecer.

Haller previu o termo da vida humana até 200 anos, dando como exemplo o caso de Thomas Parr, que morreu com 158 ou com 168 anos após indigestão em banquete em sua homenagem oferecido pela corte inglesa. Os médicos legistas, após autopsiá-lo, garantiram que ele viveria mais alguns anos se não passasse por tal distúrbio digestivo.

O outro caso citado por Roger Bacon é o de um francês que, no século XIII, dizia ter um preservativo para a sua vida, tendo, em 300 anos de vida, assistido ao Concílio de Paris, ao nascimento da Monarquia e ao batismo de Clóvis. Talvez esses casos extremos de longevidade tenham inspirado os criadores do mito do Conde Drácula, nobre da Transilvânia que ultrapassou os tempos medievais chegando ao mundo contemporâneo na condição de morto- vivo. Simone de Beauvoir, companheira de Sartre, em seu livro Todos os homens são mortais, nos fala de Fosca, personagem do século XIII, conde insatisfeito com a cidade de Carmona, prostrada a seus pés. De posse do elixir da imortalidade, o nobre medieval se frustra em suas metas, chegando aos nossos dias se debatendo entre as incertezas quanto às verdadeiras naturezas da felicidade, do destino, da liberdade e da vida. Foi também esta importante pensadora francesa do século XX que narrou em detalhes a mórbida e trágica decadência física da sua mãe e do seu companheiro, até as suas mortes.

Retomando o artigo de Rodrigues Doria, “uma velhice fisiológica, se o termo aqui é bem cabido, com um regular equilíbrio das funções que decaem, mas que ainda conservam um certo grau de exercício, é considerada por todos, em toda a parte, uma felicidade.” Mas ainda na aurora da era cristã, o estóico filósofo hispânico- romano Sêneca, secretário do imperador Nero, aconselhava os mais jovens: “Pensa mais em viver bem, que em viver muito.”

Quase todos os que atingiram avançadas idades julgaram ter um método próprio para afortunadamente viverem idades excepcionalmente próximas da longevidade do avô Noé.

Moltke, perguntado aos 90 anos, como tinha conseguido a sua saúde, respondeu: “observando em tudo grande moderação e um regular exercício ao ar livre.” A regra do célebre Cornaro era a “extrema temperança no comer, a moderação no beber, procurar sempre o que for agradável”; Chevreuil, sábio químico francês, falecido aos 102 anos, era sóbrio e cultivava o bom humor. Isaac Molden atribuía sua longevidade à alimentação, principalmente com frutas, evitando os farináceos, inclusive o pão.

Desde os bíblicos tempos do rei Davi a idade de 70 anos era considerada o termo máximo da duração da vida humana. Ao rei Davi é atribuída a seguinte observação: “Os nossos anos como a aranha são considerados, os dias da nossa vida são em si 70 anos.”

Plínio se referiu a um rei de uma desconhecida ilha chamada Loemians, que teria vivido 802 anos. Estas idades excepcionais devem ser calculadas com o uso de diferentes calendários. Ainda em nosso século, os demógrafos relacionam esperança de vida, longevidade e idades avançadas com bem estar sócio-cultural e econômico de um povo ou de um país. Mas, contradizendo os prognósticos demográficos, a maior incidência de casos de longevidade humana ocorre em regiões montanhosas entre o Azerbadjão e o Afganistão, nos Andes, no Brasil e em alguns países europeus. Na maior parte os longevos são encontrados em regiões pobres do mundo.

Segundo o satirista greco-sírio Luciano, autor de vários livros sobre fantásticas aventuras de viajantes e contundentes sátiras às vaidades humanas, homem do segundo século da era cristã cujos escritos influíram nas obras clássicas de Rabelais (século XVI) e de Jonathann Swift (século XVIII), Tirésias, homem de puros costumes, teria vivido seis séculos. Foi também Luciano quem considerou a existência humana durável até 300 anos. Finot, citando o português Faria, se referia a um macróbio de três séculos de vida.

Entre os romanos e os gregos, no entanto, não há notícias de vidas humanas excepcionalmente longas. Segundo Rodrigues Doria, os casos de longevidade são mais numerosos entre as mulheres e que a população masculina só é majoritária em países pobres. E diz mais: “O elixir de longa vida foi objeto de pesquisas científicas. Considerada a velhice como uma moléstia de natureza infecciosa, procurou Metchinikoff inutilizar a ação agressiva dos micróbios que povoam os intestinos ou o tubo digestivo. Mas o aumento da resistência aos micróbios não nos preserva da arteriosclerose e de outras alterações patológicas que são os equipolentes físicos da velhice. (...) Os progressos e o conhecimento de outras causas de moléstias, mais a educação física são fatores favoráveis à longevidade. (....) Falou-se até na hereditariedade da longevidade na septuagésima terceira reunião anual da Associação Médica Britânica, em 1905. Neste conclave médico, o Dr. F. W. Mott, referindo-se à importância do bom estado arterial, disse que o homem tem a idade de suas artérias. Aí mencionou o caso de Pierre Czortan, que morreu em 1724 com 183 anos, sendo o seu filho mais moço de 97 anos e o mais velho de 155 anos. Ainda exemplificou mais o Dr. Mott: John Surrington (da Noruega) que morrera com 160 anos tendo o seu filho mais velho com 103 anos... e o mais moço com 9 anos! Concebera o seu filho caçula com a idade de 151 anos. Também citou o caso de Thomas Parr, que morreu com 168, deixando um primogênito de 127 anos. Referiu-se também a casos de mulheres longevas: Joana Foster, de Sumberland, que morreu com 138 anos com uma filha de 103 anos. Ganini, de Roma, morreu com 138 anos e já tinha um filho com 113 anos. Outros casos famosos de longevidade citados no congresso médico britânico de 1905 pelo Dr. Mott: Henri le Boucher, de Caen, morreu com 115 anos e seu pai tinha vivido 108 anos. Jean Filleul morreu com 108 anos, seu pai com 104 anos e seu avô com 113 anos. Ana Gesuel morreu com 110 anos com todos os dentes, os cabelos pretos e não senil e seu pai morreu com 105 anos. E, finalizando sua extensa lista de macróbios, Dr. Mott citou o caso de Ana Canetina, de Dieppe, inteligente mulher centenária, cujo pai morrera com 124 anos e o tio com 163 anos.

Em várias civilizações da Antigüidade e nas hierarquias eclesiásticas do Medievo cristão europeu amplos espaços de poder foram reservados aos mais idosos. O Senado Romano, os conselhos de anciãos nas cidades- estados gregas são exemplos da valorização política dos mais velhos na Antigüidade. Mas o poeta romano Ovídio, em suas profundas e sofridas depressões de exilado, no quarto canto do seu livro de Poemas da Carne e do Exílio clamava:

(...) “O cavalo decrépito pasta nos campos.
Antes que os anos úteis findem, também o soldado
Vai depor suas armas junto aos velhos Lares.
Ora que me alquebra a velhice e diminui-me as forças,
Já era tempo de a dispensa me ser dada;
Tempo de não mais definhar sob um céu estrangeiro,
De mitigar a sede em seca fonte gética,
Mas sim de recolher-me, em ócio, aos jardins que já tive
E na cidade retomar o trato humano.”

Nosso interesse pela durabilidade de uma vida humana está muito envolvido com a antiga e metafísica questão do tempo, sobre a qual Heráclito relacionava mobilidade, efemeridade e a essência de um ser, de um ente, de um rio.

No limiar da Idade Média, em suas Confissões, Santo Agostinho é outro momento profundo na histórica inquietação humana diante do fenômeno metafísico da temporalidade. Vejamos este fragmento do bispo de Hipona: “....esse som vibra e vibrará, porque a parte que passou soou; a que ainda resta, soará, e dessa maneira chegará a seu fim, enquanto a atenção presente vai fazendo o futuro passar para o passado e o passado enriquecer-se com a parte que lhe é deixada pelo futuro, até que, esgotando-se o futuro, não haja mais que passado.”

É na Idade Média, entre as conexões das várias lendas de cavaleiros, que ressurge o intento subversivo e mítico de Prometeu, configurado na figura lendária do Doutor Fausto que, depois de velho, negocia com o diabo e reconquista a juventude, acumula bens e “governa seu espírito com uma compreensão quase divina”, comenta Jean Pierre Bayard, em sua clássica História das Lendas.

Já no século XVI, Montaigne usava uma espirituosa observação de Filotas sobre a quimérica pretensão de imortalidade do vaidoso imperador greco-macedônico Alexandre. Dissera Filotas a Alexandre: “— É porque te submetes aos deuses, que comandas os homens.” Para Montaigne, aquilo que consideramos mais elevado é o que está mais perto do chão.

E, com ceticismo e galhofas, no século XVIII, no verbete sobre Ressurreição do seu Dicionário Filosófico, assim concluía Voltaire: “Enfim, sempre disputamos sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que seremos.”

Quando jovens, não entendemos porque os idosos insistem em contar suas memórias aos mais novos, como se lhes passassem o bastão da história... Se estivesse vivo, Jorge Luis Borges estaria comemorando seu centenário. Viveu mais que oitenta anos e pôde falar o que achava da velhice:

“A velhice é uma forma de solidão. Resignei-me à velhice e à cegueira, do mesmo modo com que se resigna à vida, que é o mais grave e difícil. Não a aconselho a ninguém, mas se ela chega, é melhor se resignar. Quanto à História de que o país tem velho demais, tentarei morrer o mais breve possível, mas não tenho culpa disso. Agora que sou velho é mais fácil ser feliz, ou pelo menos mais tranqüilo do que quando era moço, pois os moços cultivam o desespero; querem ser os personagens de romance russo; e agora tento buscar — e às vezes encontro — a tranqüilidade. Não é necessário cultivar a desgraça, pode-se encontrá-la só. Na minha idade, conhecem-se os próprios limites...”

E sobre a questão da imortalidade, Jorge Luis Borges concorda com William James: “Deus é o produtor da imortalidade, compreendida em caráter pessoal.”

Para Platão, o tempo é a imagem móvel da eternidade, ou seja, tempo é sucessão. Mas, indago, se o tempo é sucessão, o que sucederia ao tempo? Aí voltamos aos impasses e às perplexidades de Santo Agostinho diante do tempo. “Que é o tempo? Se não me perguntam eu sei. Se me perguntam, eu ignoro.” Borges herdou do pensamento de Agostinho a idéia de memória do esquecimento.

Antes da literatura e do pensamento borgiano, o romancista francês Marcel Proust e o filósofo Henri Bergson teceram suas marcantes e notáveis reflexões sobre a evolução dos tempos, nossas memórias e nossas velhices. Proust, no primeiro dos sete volumes da sua monumental obra romanesca Em busca do tempo perdido, se empenha em nos mostrar que nossas solidões são cíclicas, provindas das nossas necessidades.

É aqui que dou voz ao proustiano Legrandin:

(....) “Olha, meu filho, chega na vida uma hora, de que estás muito longe, em que os olhos não toleram mais que uma luz, a que uma linda noite como esta prepara e destila na escuridão, em que os ouvidos já não podem escutar outra música a não ser a que executa o luar na flauta do silêncio.”

Antes de Proust, no início do século XIX, o poeta e místico inglês William Blake via o progresso como um castigo de Deus e a velhice como uma progressiva perda dos aúreos valores da infância.

Para o biólogo Dastre, “ a passagem da vida à morte é tão natural no fim da vida como o sono no fim do dia.” Para Schaffer, outro cientista, a morte natural, não acelerada por dolorosas moléstias nem por acidentes, será um fenômeno quieto, se fará gradualmente pela sucessão regular das fases, de modo que, ao se consumar, “não haverá lamentações da barra quando sairmos para o mar largo.”

Em A Náusea, romance do filósofo Jean Paul Sartre, está clara a idéia deste marcante pensador do século XX acerca da velhice: “a idade em que nos enternecemos com a juventude dos outros.”

Se somos — como pensava Sartre — cada um de nós, um homem inteiro feito de todos os homens, que se eqüivale a todos e que vale por cada um, somos o curso e o estuário de inúmeros seres humanos que viveram suas velhices ou que, antes de envelhecerem, deixaram este mundo. Por isso nos situamos, perplexamente, entre o conhecido e o desconhecido, entre a serenidade e o temor, entre a penumbra e o luar que assistiram a agonia de Cristo no horto das Oliveiras. E no intrincado bosque da existência, Proust vislumbra uma clareira, que põe um pouco de azul num céu algodoado de nuvens. E, assim, há milênios, experimentamos “as mesmas esperanças, as mesmas angústias, inventamos os mesmos romances, pronunciamos as mesmas palavras”, os mesmos jorros de desejos, semelhantes desilusões e cerimoniosas partidas....


Ninguém diz tudo o que pensa ou sente e se o disséssemos o mundo teria um enfarte fulminante.

Crônica de: Neo- barroco

(...)”Toda pessoa que diz sempre a verdade acaba sendo apanhada em flagrante.”
(Oscar Wilde)

O que eu digo é verdade e várias vezes realmente fui flagrado. Mas, como homem moderno (ou pós-moderno) omito um “mea culpa”. “Tem hora que a gente tem de se fazer de boba”, diz Diva. Departamento de Investigação da Vida Alheia. Ativando a circulação dos meus demônios através dos meus circuitos de neurônios, eu os deixo estafados e me torno angelical. O bíblico cinismo divino hoje é “evangélico”. Uma ex — adolescente disse na televisão: “se tem uma coisa que não muda é o fato de que todos os dias mudamos algumas coisas em nossas vidas. A boca do céu seria tão platônica quanto o céu da boca? O futuro será passado, o presente já foi futuro e o passado teria sido o nascedouro de muita coisa e de muitos seres que nem chegaram a nascer, abortados por desencontros imprevisíveis e, muito menos, começaram a existir e a prosperarem. E tudo se quebrou e virou um quebra-cabeça no qual cada um de nós tenta montá-lo à sua maneira. Eu aqui me limito a revelar cacos amontoados em minha labiríntica trajetória. Meu primeiro livro de cabeceira não foi da coleção Livro de Cabeceira do Homem da editora Civilização Brasileira de Ênio Silveira (coleção lançada no fim dos anos sessenta), mas, sim, o meu primeiro livro de cabeceira foi Romain Rolland par lui même, traduzido para o português, e comprado numa livraria da avenida Amaral Peixoto, no centro da então capital fluminense, Niterói. No passado, no presente e no futuro brilham os “luminosos lírios das estrelas”(Cruz e Souza), desabrochados em “faustosos brocados do Firmamento”(Cruz e Souza) como se extasiados diante das trevas que suportam “pós de lua e úmida terra”(José Lézama Lima) com o beneplácito omisso do Superior. Paul Valéry só admitia a beleza leve da pluma se a mesma ainda estivesse viva no dorso da ave que a fez brotar do inexistente. Meu vôo alienado e aleatório é um passeio pelo que me constituiu. Como a José Lézama Lima, arrepiam-me “a firmeza mentida do espelho” e o canto gregoriano do rio-enxurrada que busca o poente da foz sem gritos para ajudar na “fuga do dormir”. E acrescenta Cruz e Souza:”.... após o esmaecer da luz, a Via Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a Lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho”. Minha língua é uma labareda em desesperada busca de alívio e serenidade. O mais expressivo artista plástico brasileiro do século XX é um outro mulato, como o Aleijadinho dos séculos XVIII e XIX, chamado Antonio Bispo do Rosário, e eu sou seu Arcipreste, a regar os ciprestes dos jardins das cinzas. Meus sapatos são de um couro cinza camurçado como os pêlos de um rato comum do dia-a-dia. “Ninguém nos molda de novo com terra e barro, ninguém evoca o nosso pó. Ninguém. (..) Louvado sejas, Ninguém. Por ti queremos florescer/ Ao teu encontro.” (Paul Celan traduzido por Cláudia Cavalcante)... Só em parte concordo com Allen Ginsberg (1926/ 1997): “ o método deve ser a mais pura carne” assada com molho simbólico de champignons, mostarda, aspargos e uma pitadinha do mais autêntico curry (tempero indiano)..... regada a “raros relatos crus”. Com menos de cinco anos de idade cai sobre estacas de pés de tomate na horta da minha casa e quase furei meu olho esquerdo. Minha sala de psicanálise é na cozinha do meu local de trabalho: lá tempero alfaces calmantes com minhas lágrimas salgadas. Fui Édipo, hoje sou Saturno. É profunda e irreversível a minha descrença em relação a todas as formas e atitudes revolucionárias. Para mim o que se busca é só uma suspeita viração de mesa, quem não está no poder ou quem partilha fatias de poder (por eles consideradas insatisfatórias), assume o mando da nação totalitariamente, só isto. Eu gostava muito de inhoque e há mais de um ano não preparamos tal massa aqui em casa. Me dás champanhe em uma taça no formato de seios maternos? Minha loucura expressa me consola. Edith Piaf canta La vie en rose, mas eu prefiro outra canção do seu repertório: Non je ne regrette rien. Gosto mais desta sua canção. Hoje vou comer bolo dietético de chocolate. Há muito tempo não vejo um jogo de futebol na roça, nem vejo alguém com gumex no cabelo e nem tento mais saltar do bonde em movimento, nem existem mais bondes!.. Será que estou ficando no passado? ...

Eu gosto de mingau de fubá com couve rasgada, uma pimentinha malagueta, e feijão preto e, suando, e tomando pratadas desse mingau, muitas mães amamentavam seus bebês louros ao mesmo tempo que portavam bolsas de couro cru cheias de fraldas e babadores. Adoro até hoje a essência do talco Johnson’s. Reminiscências olfativas e proustianas da minha infância. Um mar de fé oculta anônimos naufrágios. Estudantes revolucionários da União Nacional dos Estudantes e, provavelmente da Juventude Universitária Católica, em Setembro de 1959, quando eu voltava de trem da minha Primeira Comunhão em Congonhas do Campo — Minas Gerais, ao entrarmos num túnel (e eu nunca tinha visto a escuridão de um túnel), começaram a gritar que estava ocorrendo um desastre ou que estava acabando o mundo. Danei a gritar aterrorizado. Papai custou a conter meu pânico e minha mãe, envergonhada, ria sem graça e me beliscava, dizendo: — ”Fica quieto, bobo!”.. Estes estudantes me introduziram no mundo do medo e, talvez por isso, até hoje associo arquetipicamente revolução e terror, medo e fim do mundo, modernidade e bagunça... talvez eu seja descendente de algum inconfidente mineiro ou de algum revolucionário francês guilhotinado ou tenha tido algum dos meus milhões de ancestrais sacrificados à beira de algum caminho pelos soldados de Carlos Magno.. não sei.. só sei que algo profundo me ocorreu a partir daquela desrespeitosa e agressiva instalação do medo de um desastre final em minha sobressaltada alma infantil.

Chegar ao lugar ao qual nos destinamos é um milagre, partir é um gesto de esperança.. fluxos e refluxos em nossas dores, festas, chegadas e partidas, viagens.. Minha literatura é um “ex-voto” de gratidão pela continuidade da minha vida num mundo no qual a vida tem cada vez menos valor ou sentido. Estórias votivas ouvidas num labirinto repleto por uivantes peregrinos a baterem desesperadamente nas portas de basílicas, mesquitas e sinagogas fechadas por títeres de estados ateus. Impedidos de ingressarem naqueles espaços sagrados, banquetearam em frente de uma deslumbrante cachoeira, em torno da qual comiam, cantavam, estalavam os dedos como castanholas, dançavam e lavavam seus corpos e suas almas com água diamantina, ovelhas assadas oferecidas em lindas e longas mesas forradas com toalhas brancas ou pretas salpicadas com multicoloridas e perfumadas flores, ao ritmo de músicas dos povos do Cáucaso.

Encostado a um muro de uma fábrica desativada, e vestindo calça e jaqueta de “jeans”, sou cortejado pelos homens que passam em carros ou em motocicletas... eles admiram o meu estilo pós-moderno diante do mundo contemporâneo, no qual volto para casa em ônibus super- lotado por aflitos seres genericamente designados como humanos. O século e o milênio estão se esvaindo na ampulheta do deus Chronos....

As eventuais festas e comemorações suspendem as agruras do cotidiano. Ao luar, em seus reflexos sobre nuvens em formatos de carneirinhos prateados, Jesús apascenta suas ovelhas, enquanto lhe escapam, para regiões trevosas, as desgarradas de seu celestial rebanho de almas. Duas horas antes, Ângela Maria e Pery Ribeiro cantavam a Ave Maria Brasileira.. Emocionante!.. O patriarca ortodoxo, embora seja a favor do ditador da Iugoslávia, nos abençoa com o seu cajado de ouro de pastor dos eslavos cristãos e a sua capa de ouro cheira incenso e mirra da Pérsia, após décadas de rituais em meio a fumaças e odores místicos, que em formas aleatórias ascendem aos céus dos retábulos em estilo Pedro, o Grande, adornados com colunas salomônicas. Nesta hora, em minha casa russa, eu lavava meus pés em água morna, tomava leite aquecido sobre uma camada de açúcar tostado e preparava-me para dormir com os anjos num quarto com paredes da cor de salmão com arabescos dourados. Em meus sonhos, uma voluptuosa cobra ostentava um couro de onça com manchas de ouro de dezoito quilates. E quando fumei maconha pela primeira vez me imaginei sob uma chuva de pingos luminosos de ouro mineiro e na mais profunda e serena solidão.

Enquanto no Brasil quase todos os projetos de resssocialização de pessoas idosas levam a bailes aparentemente animados por lances quase jocosos, na Inglaterra uma parcela expressiva das pessoas com mais de sessenta e cinco anos de vida, abandonadas por suas famílias, começam a consumir drogas e, outras, a praticarem assaltos à mão armada em bancos e supermercados. A caravela com a qual este Ulysses joyceano singra os mares de vinagre do mundo pós-moderno é semelhante ao arcabouço de um avestruz. Uma vez em terra, corro para a minha caverna eletrônica para navegar ao sabor das ondas da internet. E quando estou no epicentro verde azulado de um deserto de água salgada, quero caminhar a pé até os confins desse ovo planetário. Um novo golpe de estado no Quênia nem sequer alterou o fluxograma das rotas aéreas africanas. “Quando o açúcar elaborado nos caules surge no fundo das flores, como xícaras mal lavadas — um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam vôo.” (início do texto poético A borboleta de Francis Ponge — 1899/1988). As barbáricas violências nos estádios de futebol ingleses e holandeses me levam a pensar na hipótese spengleriana de decadência do ocidente ou de declínio da civilização européia, agora tão violenta quanto os povos empobrecidos e marginalizados da Ásia, da África e da América Latina e de outros guetos de descendentes de indígenas, hispano-americanos, asiáticos e negros nas sociedades norte-americanas. Diante da ameaça de ruína que paira sobre a civilização que ainda precariamente ordena esse mundo sinto pavor diante da possibilidade de um vácuo civilizatório ou diante da emergência de despotismos fundamentalistas e ideológicos a sucederem o legado que orientou o desenvolvimento histórico ocidental após a decadência do Império Romano e a hegemonia da Igreja em questões do poder temporal medieval.

(...) “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi.” — Caetano Veloso, na letra da sua música Sampa. Tanto me excitam nossa cumplicidade e sensualidades diante dos nossos cheiros e formas culturais de existir nos trópicos brasileiros!.. A santa rebola em cima do andor ao som do dobrado da banda de música Santa Cecília, de Tabuleiro — Minas Gerais. Se a Bahia é o nosso berço, Minas é o nosso oratório, Pernambuco foi o nosso engenho, de onde saiu grande parte do açúcar que condimentou nosso sonho brasileiro. O Rio de Janeiro é a festa, a algazarra de papagaios carnavalescos. E o Rio Grande do Sul é a mais saudável configuração do vigor e virilidade da alma brasileira. O Paraná é a terra da pinha e da erva-mate dos nossos chás com torradas em nossos dias de crianças classe média com diarréia. O Mato Grosso do Sul é o cenário mais deslumbrante do paradisíaco casamento entre a terra e a água. O Mato Grosso do ouro de Cuiabá, a terra que lembra Rondon, o amigo dos índios... O Acre que foi boliviano.. o Amazonas dos bois de Parintins e da nossa mais profunda alma cabocla, o Pará da Virgem de Nazaré... O Maranhão dos babaçuais.. o Piauí, nosso berço pré-cabralino? O Ceará dos jangadeiros e do padre Cícero.. O Rio Grande do Norte dos cajueiros e de Luiz da Câmara Cascudo.. a Paraíba de Ariano Suassuna e da minha cunhada Alda... Goiás da Cora Coralina e seus tachos de goiabada e mangada.. as Alagoas de Graciliano Ramos, o Sergipe e sua Aracajú.. a Nossa Senhora da Penha de Vila Velha do Espírito Santo e suas areias monasíticas de Guarapari e os barriga-verdes de Santa catarina, litorânea e interiorana, turística e industrial, germânica e brasileira.. E São Paulo do mundo encantado de Monteiro Lobato e das prostitutas com meias de seda preta e fábricas e rodovias super-modernas... São Paulo dramática, violenta e arrojada!..

Quando sumirmos neste mundo, alguns dirão que cavamos covas profundas e nelas nos metemos em espirais sem fundo, sem fim. Atrás de Paul Celan. Foi lá em Conceição do Formoso que se deu a concepção de Joaquim meu pai, filho de Argelina com Pedro o formoso. Meu avô paterno se parecia um bocado com o ex-governador paulista Adhemar de Barros. Os paulistas sempre me lembram também dos bombons brigadeiros, das paçocas de amendoim de Campinas, do café de Ribeirão Preto, de Batatais, Altinópolis e de Franca e, como New York nos lembra o Empire State, Sampa nos encanta e nos amedronta com o seu altíssimo edifício do BANESPA, ou o apavorante restaurante de vidro no terraço do edifício Itália.. Brasil.. meu Brasil brasileiro!.. Meu mulato inzoneiro!..


O Brasil diante do oco sertão empoeirado do fim do mundo num fim de tarde de domingo

A poeira do tempo colore as fotografias e envolve os móveis e os adornos, telas, pastas, livros e vasilhas. A poeira acumulada atesta tudo diante do nada que se abateu sobre este nosso cenário. Os sons constantes ao longe ecoam inconseqüentemente. Tudo vai, tudo vem, nada muda, a paisagem é estática e perplexa e na hora do Ângelus tudo está consumado e precede às trevas o mesmo Amém de todas as bocas da noite. As árvores floridas no inverno se cobrem mais cedo com o longo manto da penumbra que antecede à ausência de formas e de cores. Tudo é tristeza ou promessa de um futuro melhor ou conformada desesperança. Comparado a uma cachorra me sentí elogiado. Se J. S. Bach assistisse ao que assisto, nada acrescentaria à sua obra. O tempo é unicamente o movimento do pó. Um dia, cinco décadas depois que Rimbaud voltou moribundo da empoeirada Etiópia, mamãe me anunciaria ao sacerdote que, mais tarde, assim me doutrinaria: “Sois pó e ao pó retornareis.” Ao lado de santo Agostinho, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e muitos mais, estou cada vez mais propenso ao recolhimento dos que se desiludiram com certas utopias, com certas ambições ou vaidades doentias. Quero viver, mas este excesso de pretensões me impede de gozar serenamente o fluxo da vida. O tempo esvazia aceleradamente o significado das palavras e eu não sei viver sem os significados e os ícones sugeridos pelas nossas míticas e totêmicas palavras. Faço parte de uma espécie em extinção? Muitas vezes me insurjo contra os idólatras do mundo atual por considerar uma absurda injustiça que desconheçam a obra cinematográfica do transgressor russo Sergei Paradjanov. Ele foi um dos cem homens mais representativos do século que dentro de dois anos, ou menos, terá o seu fim. Ao lado de Mikhail Gorbatchev, Churchill, Hitler, Nureyev, Jung, Einstein, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti, José Lézama Lima, Salvador Allende, Eduardo Frei, Juscelino Kubitschek, Fidel castro, John F. Kennedy, Franklin D. Roosevelt, Gamal Abdel Nasser, Jorge Luis Borges, Mao Tsé Tung, Hiroito, Mishima, Bem Gurion, Moshe Dayan, Adler, Freud, Kafka, Antonim Artaud, João Paulo II, Lênin, Mahatma Gandhi, De Gaulle, Sartre, Jean Genet, Jean Cocteau, Salvador Dalí, Fernando Pessoa, Miguel Torga, José Saramago e muitos mais, Paradjanov emitiu um dos gritos mais estranhos e misteriosos dos homens deste século.. um grito ou um uivo?... Lá do alto, a bordo de grandes aviões, também podemos verificar que nossa pequenês verminal não é só aparente: é escandalosamente brutal e destruidora. Os sertões ressequidos são, antes de tudo, fortes suportes paisagísticos da ávida vontade humana de estar ligada umbilicalmente às orígens de sua cosmovisão. Getúlio...Stalin, Porfírio Diaz, Zapata, neozapatistas, Trotsky.. todos passaram ou passarão.. Elvis Presley, Louis Armstrong, Pelé, Miguel Aceves Mejia, Miguel Angel Asturias, Ruben Dario, Frank Sinatra, Tennessee Willians e Selassié ou Lumumba todos passaram ou passarão.. Quanto mais vivo mais me convenço de que nossos projetos de vida e nossos sonhos amorosos são definitivos fatores de longevidade. Apesar de algumas árvores floridas, vivemos uma tristeza sertaneja em clima de véspera de inverno e um sentimento paradoxal de quem vive nostalgicamente boquiaberto este fim de milênio e o anúncio de novos tempos.. novos tempos se sobrepondo a nossas cascas de passado.. tempos que superarão o atual presente... mas alguma coisa permanecerá latente e insuperável no fundo das cavernas de nossos peitos.. nossos corações nunca secarão....


O eterno sono de Amenófis IV

Tudo que é eterno é invisível. Vem das confederações idiossincráticas ibéricas a incompatibilidade entre a aridez rural dos planaltos centrais ibéricos e o progresso mercantil de suas periferias litorâneas. Depois de milénios de combates contra celtas, romanos, berberes, alanos, suevos, godos, visigodos e muçulmanos, mouros e chacinas de judeus, além de enlaçar suas histórias com as histórias das Itálias e do sul da França, aos espanhóis só restaram as tarefas de combater e abater touros. Sonhadores combatentes nostálgicos, passionais e aventureiros, recusam-se a abdicar da façanha de lutar contra o destino de pobreza e isolamento os conterrâneos dos imperadores Trajano e Adriano!...

“Pode-se dizer que os momentos de maior harmonia que a Espanha viveu aconteceram durante o século XIII. Em Castela, de 1230 a 1252, reina São Fernando, não menos cristão que o seu primo São Luiz, de França, mas mais realista, porque limita a idéia de Cruzada aos horizontes espanhóis, e de espírito mais aberto, já que se diz “rei das três religiões” (cristã, islâmica, e judaica). Em Aragão reina o vigoroso catalão “Em Jaume”, o Conquistador, guerreiro e poeta, violento e galanteador sem escrúpulos, mas rodeado de santos: Raimundo de Penyafort, Pedro Nolasco e o extraordinário Raimundo Lúlio. O Islão recua e erguem-se as catedrais. É o triunfo geral do mundo cristão.” (parágrafo escrito pelo historiador marxista francês Pierre Vilar em seu clássico livro (censurado durante a Era Franquista) História de Espanha — Lisboa — Livros Horizonte — Coleção Europas — 1992 — página 25).

O eterno sono do africano faraó egípcio Amenófis IV, ou melhor, da sua impressionante múmia em desintegração, é observado por um menino louro de seis anos com uma japona de nylon e uma bandeira dos Estados Unidos no alto do braço esquerdo. O mesmo menino que vi sonolento, estirado no "hall" de uma moderna agência bancária de Dallas, no Texas, à espera de seu pai. Cena do filme Paris — Texas de Wim Wenders. Vejo ainda Rimbaud numa cozinha enfumaçada e empoeirada, com baratas esvoaçando em latas de cereais vazias, em pleno sertão da Etiópia, no fim do século XIX.

Se pensarmos bem, concluiremos que foi descontínua e efêmera a colonização portuguesa no Brasil. Entre 1500 e 1530 os portugueses desprezaram a idéia de investir na colonização do Brasil pois exploravam muito lucrativamente os mercados das Índias e do Oriente. Por volta de 1530 os árabes tomam dos portugueses tais mercados indianos e, assim, os portugueses voltam suas vistas para o Brasil. Entre 1532 e 1580 começaram os portugueses a colonizarem o Brasil. Mas, em 1580, Portugal perde o seu rei Dom Sebastião e, assim, é incorporado ao crescente e ascendente Reino da Espanha, do qual se independentizara no século XIV. Entre 1580 e 1640, portanto, durante a questionável União Ibérica, o Brasil é colônia da Espanha que, em guerra contra a emancipacionista Holanda, cria motivos para a invasão do nordeste açucareiro do Brasil pelos holandeses. Em 1640 Portugal rompe com a União Ibérica, ajuda os pernambucanos a expulsarem os holandeses do nordeste do Brasil.... Mas Portugal já não era tão próspera e burguesa nação mercantil quanto o fora até meados do século XVI e, já no século XVIII, mais exatamente em 1707, assina com os ingleses o mal fadado Tratado de Methuen, o que compromete definitivamente o desenvolvimento das finanças do Reino Português e arruina de vez o seu sonho imperial nos trópicos brasileiros, abrindo e acelerando assim o processo histórico no qual o Brasil, em 1822, se torna independente de sua antiga e lusitana Metrópole e cada vez mais dependente da Inglaterra.

Na vã tentativa de unificar religiosa e politicamente a Espanha, em 1391, no centro e o leste espanhóis ocorreram matanças de judeus e, mais tarde, com os Reis Católicos Fernando e Isabel, no ano da chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo, em 1492, ocorrem expulsões em massa de cristãos novos de Castela. Contra os camponeses mouros, servos de nobres cristãos, a pressão política e religiosa para se converterem ao Cristianismo espanhol incluía campanhas escolares e lingüísticas, propaganda anti-mouros, separação de pais e filhos, repressão policial e inquisitorial e confisco de bens de famílias descendentes de sarracenos, de berberes e de islamitas.

No reino fantasmagórico de Aragão, terra que pariu o pintor Goya e o cineasta Luis Buñuel, mais exatamente em sua antiga capital Huesca, no século XII, o rei Ramiro, cansado da insolência dos nobres mais influentes em sua Corte, convoca-os para que possam ver fundir um grande sino que seria ouvido em todo o seu reino. Reunidos os nobres, o rei manda decapitá-los e dispõe suas cabeças em círculo e uma das suas pernas é colocada no centro deste macabro círculo como se fosse um badalo. Naturalmente, a atroz notícia logo foi conhecida em todo o Reino. Os restos do palácio dos reis de Aragão onde ocorreu este episódio conhecido popularmente como La Campana de Huesca estão hoje agregados ao espaço arquitetônico do Museu Provincial de Huesca.

Os normais são seres mediocremente monstruosos, só cumprem ordens e reproduzem corpos, valores, mores e bocas com amargor de fel, secas e asquerosas. Minha religião é a religião da sensualidade, da tesão, do prazer, da orgia, dos banquetes e da devassidão e de Dionisios e de Saturno. Roberto Piva foi um dos meus sacerdotes. Rolo no chão de tanto gargalhar de prazer com os ataques desferidos por Piva contra nossas elites acadêmicas e nos professores universitários “com os seus cálculos discretos ocupando o mundo do espírito”, anjos de Rilke dando o cu no Trianon, ou lavando suas imaculadas bundas em pias batismais seculares. Cheiros de corda de bacalhau, alpargatas, chulé e de suor de estivador afugentam manequins numa paisagem configurada pela morfina e pela conjuntivite. Arranha-céus de carniça, redes de esgotos para esgotonautas e pornógrafos tarados e embriagados 24 horas por cheiros de pés e de órgãos genitais. Lambamos piedosamente as góticas hemorróidas das beatas e asperjamos nosso mal hálito em baforadas de ulcerosos terminais que viveram mais de sessenta anos incensando o Corpo de Cristo, durante as arquidiocesanas bênçãos do Santíssimo, ao som do Tantum Ergo. Pendurarão o meu pênis em pleno Largo do Paissandú?

No início do século XIII, subjugada ao apogeu de Castela, quase toda Portugal morria de fome enquanto em Pernambuco gigantescas tachas derramavam rios contínuos de larva de melado de cana de açúcar.


O medo do futuro e a necessidade de pensar um mundo que existirá além do ano 2000

Certamente não ficaremos para sementes e o mundo não acabará com as nossas imprevisíveis mortes. Também é certo que o nosso mundo continuará existindo depois do ano 2000. O nosso medo do futuro está oculto nas festividades e eventos programados para este final de milênio e de século. O filme Blade-Runner é um painel de nossas amedrontadas ante­visões sobre o futuro próximo. A ficção científica do século XIX está realizada. Júlio Verne e Albert Einstein ou Stanley Kubrick estão a exigir novas ficções científicas. Um pastor protes­tante norte-americano que se apresenta como um estudioso da Bíblia prevê um holocausto nu­clear entre os anos 2000 e 2006. O general oposicionista russo Lebed vai à imprensa anunciar os múltiplos riscos de atentados terroristas com armas nucleares.. É numa perigosa anarquia sem causa que vivemos. Cientistas políticos alardeiam tormentas sociais para um mundo exau­rido por autoritarismos, racismos e perigosos problemas ambientais. Mais do que nunca a História confirma as teses de John Kenneth Galbraith: ou seja, a História tem muitos motores: a luta pelos poderes, a busca dos prazeres, a curiosidade e o interesse pelo conhecimento e a constante relutãncia animal e humana de não aceitarmos a perspectiva de morte, de fim. E du­rante a ditadura militar brasileira (1964—1985) o futuro ‘só a Deus’ pertencia. Assimilando per­das; vivendo e criando possibilidades e convivendo com as impossibilidades futuras: eis o tri­nômio mais doloroso e pragmático que conheço. Anunciaram a internacionalização do socia­lismo e isto não se deu. Anunciaram que o mundo ia se acabar, beijei na boca de quem não de­via, e o mundo não se findou. Anunciaram the day after mas ainda estamos before Apo­calypse’s. (?) A Rosa de Hiroshima, a rosa hereditária, pensem nas meninas cegas, inexatas...Pensem nas mulheres, rosas alteradas... A rosa radioativa, estúpida e inválida, a rosa com cirrose, pensem nas crianças mudas telepáticas...as feridas como rosas cálidas...a anti-rosa atõmica, sem cor, sem perfume, a rosa sem nada!....A rosa atômica de Hiroshima implodiu to­das as factibilidades de nossos prognósticos existenciais mais comuns.O antever do futuro nunca estará livre das incertezas e sempre nos imporá as dimensões limitadas e imprevisíveis do humano. O medo do futuro é medo do nada, é o medo do desconhecido, o medo do fim dos parâmetros dentro dos quais sempre oscilaram nossas consciências, é o medo de amar, é o medo da morte, o medo da solidão, o medo do desemprego, o medo do desamparo, e — acima de tudo — o medo de ser descartado na vida ou definitivamente descartado na lixeira de algum micro-computador. A descrença no progresso instalou mais uma forma de nostalgia na alma humana neste final de século. A barbárie antevista pelos Frankfurtianos continua factível.


O que sinto embaixo do meu
pool-over de costelas

Eu sei porque os políticos que se lançam candidatos em pleitos teoricamente livres não se referem aos dez por cento (no mínimo) de homossexuais presentes em nosso colégio eleitoral: até hoje o espírito inquisitorial nos aterroriza. Veja o que ocorre no país mais rico e tecnologicamente mais avançado do mundo em plena virada de século e de milênio: um presidente da República fustigado pelas suas relações extraconjugais por um juiz inquisidor. Parece até que os EUA estão vivendo um novo macartismo: uma caça às bruxas que optaram por uma vida prazerosa. Por isto e enquanto isto, aqui no Brasil e em muitos outros países, candidatos a deputados ou a governadores são identificados pelos mais entendidos como gays enrustidos e que seriam capazes até de hostilizarem as minorias das quais façam parte. As mídias ou os órgãos mais poderosos da chamada grande imprensa acusam certas tendências do movimento gay (nacional e internacional) de iniciarem uma onda de caça aos homossexuais enrustidos ao dedarem os que insistem em se manterem longe das polêmicas suscitadas por estas tendências mais radicais do movimento em defesa dos direitos civis dos homossexuais. Outros porta-vozes mais ressaltados destes segmentos mais poderosos das nossas(?) mídias responsabilizam as feministas pela onda contra o assedio sexual que agora culmina no moralismo republicano anti-Clinton. Complexo, não?

Compreeendo que todos nós temos preconceitos. Até os mendigos estirados em calçadas discriminam, escolhem aqueles aos quais pedirão esmolas. Mas, no que tange ao silêncio, omissão ou esquecimento das discriminações ou segregações de homossexuais no cenário sócio-político brasileiro, vale notar que tal postura ideológica está presente tanto nos partidos das estereotipadas direitas quanto nos grupelhos sectários das estigmatizadas esquerdas. Em tempos já distantes, quando ainda se dava crédito aos arautos de um modo de vida libertário, deixamos de reivindicar direitos que até naqueles tempos seriam vistos como esdrúxulos: os direitos ao escândalo e o direito a ter e expressar os nossos preconceitos. Pois só superaremos os nossos preconceitos quando os mesmos forem livremente expressos, naturalmente afirmados, pensados, questionados e exorcizados. “No fim das contas, há mais alguma coisa?” — indaga Peter Sellars.

É tão pequena a glória dos que voam que custo a enxergar, entre os galhos desfolhados das árvores do Alto de São Bento, o boeing que me sobrevoa. Olho para o infinito e só ouço um zumbido. Em torno da lâmpada voam insetos, como se fossem planetas girando em volta de seus astros.

“No Brasil, os temas de consumo, digestão, magia e poder localizam-se no âmago de sua condição moderna...O antropólogo Claude Lévi-Strauss chamou de “bricolage” o processo de construção de coisas novas a partir de partes canibalizadas de outras; ele ocorre na arte de todas as culturas. É aleatório e flui livremente, sem respeitar regra nenhuma de poder, riqueza ou colonização. Nenhum artista é capaz de viver e trabalhar no vácuo.” (David Elliott no texto Quem come quem? incluído no Catálogo da XXIV Bienal Internacional de Artes de São Paulo, a ser aberta em Outubro de 1998). Ainda não entendi porque os antropólogos e os críticos das culturas ainda não se referiram, ao longo do debate sobre antropofagias e do antropofagismo modernista brasileiro ao conteúdo canibalístico do ritual eucarístico cristão-católico. Em seu clássico tratado sobre Massa e poder o pensador búlgaro Elias Canetti analisa os rituais das refeições como momentos de ostentação de poder: poder e força maxilar e dental de dilacerar carnes, mostrando dentes vigorosos, dentes-grades de uma última prisão: a boca pela qual deglutiremos o derrotado ou o que colhemos.

Emília, a saltitante personagem de Monteiro Lobato, é a nossa Alice no país das maravilhas. A única revolução que eu apoiaria neste mundo seria a revolução dos bichos contra a ordem antropomórfica e antropocêntrica em que vivemos. Nossa moral herdada das dualidades papai/mamãe; sol/lua; bem/mal; democracia/conservadorismo; ciência/fé; razão/inconsciente; alter-ego/super-ego não tem futuro. Sou um semeador de silêncios que gritam. “Uma pintura é uma alma trêmula, uma erva nascida no jardim de um mosteiro e um desespero sombrio no momento em que se perde algo que chegou demasiadamente perto. A pintura é fracasso.” — Kuutti Lavonen em seu texto Sonhos e fugas sobre a pintura da finlandeza Leena Luostarinen. Observando mais atentamente os trabalhos de artistas do norte da Europa e citando ainda as imagens impressionantes do texto de Kuutti Lavonen, fico a conjecturar ou a admitir que só os nórdicos egressos dos mundos das trevas acreditam na possibilidade de se descobrir, na mais escura sepultura, ouro brilhando “como os raios de alguma estrela brilhante numa noite límpida, na geada.” O artista sul-africano William Kentridge acredita numa arte política de gestos incompletos, de finalizações incertas, numa arte e numa política nas quais o otimismo permaneça em xeque e o niilismo à deriva. Tanto os artistas da serena Finlândia quanto os da atormentada e estigmatizada Palestina tentam ir além dos estereótipos e buscam sintonias que harmonizem adagas e feridas, sacrificado e sacrificador. Será que um velho pele-vermelha nunca andará em fila indiana? A eterna bondade do Inconsciente recobre o ataúde do bruxo evangelizador dos povos que se distanciaram do Totem crucificado, assim o artista plástico venezuelano Mário Abreu alude ao valor dos sagrados fragmentos empoeirados pelos tempos e tradições. Na obra de Abreu a arte serve como altar para momentos de vivências atemporais.

O artista francês Pierrick Sorin nos propõe um ser autárquico capaz de retomar, rever e reviver desejos de infância, impulsos arcáicos e de regressão, vivências ingênuas e idiotas, o prazer inocente dos jogos e cantigas, as cócegas e arremedos de orgasmos de nossas primeiras masturbações, a satisfação de uma ocupação egoísta, vontades criativas não-intencionais e improdutivas, inúteis, não-pragmáticas, sem fim, sem claro destinatário e de anônima e sócio-cultural entidade remetente. O resgate das imagens postas às margens do rio da vida. “O olho, como extensão da boca, se torna um abismo negro que engole, absorve o indivíduo e a imagem.” — Stéphanie Moisdon Trembley. Ainda persiste o sonho de coadunarmos o mundo industrial com o mundo natural nas novas maneiras de navegar entre as ilhas individuais e culturais do fragmentário universo caótico atual. Sensualidades viscerais expressas em nossos exercícios rituais identificatórios. As contínuas diásporas individuais no mundo contemporâneo... o homem querendo comer e devorar frutos e produtos de todas as partes do mundo.. o homem contemporâneo realizando os sonhos de consumo das mulheres barrocas que vaidosamente ousavam adornar os seus corpos e se maquiarem e se perfumarem com peles russas, pérolas das Filipinas, essências indianas, plumas americanas, ouro africano, couros da Abissínia, camafeus egípcios, talcos ingleses, fragmentos valiosos de todos os rincões deste mundo(anotou Santo Ambrósio).

Já o artista angolano Fernando Alvim vê as culturas dos povos como medidas das suas capacidades de prevenir conflitos, antecipando-se às tragédias, anulando “seus feitiços malignos”. Elke Krystufek elimina radicalmente a dualidade pós- Ancién-Régime entre “público” e “privado”. Na primeira metade do século XVIII Jonathan Swift, in: Dublin, propunha a venda de gorduchos bebês com um ano de vida para serem servidos como peças de jantares de proprietários que exploravam a capacidade de trabalho dos pais destas saudáveis e bem amamentadas crianças apetitosas. Pedofilia e antropofagia ironicamente entrelaçadas nas histórias de nossas civilizações, insinuava Swift.

A cultura brasileira perdeu no domingo 13 de Setembro de 1998, em Montes Claros, no norte de Minas Gerais, Zé Côco do Riachão, o Beethoven do Sertão (segundo críticos musicais da Alemanha, que cá vieram fazer documentário para uma rede de televisão alemã). Virtuose da viola e da rabeca, fazia ao mesmo tempo solo e acompanhamento...compôs lundús, mazurcas, dobrados, guaianos, corta-jacas, calangos e maxixes... tocava também sanfona, violão, cavaquinho, caixa de folia, pandeiro e foi criativo artesão de instrumentos musicais e de outros trabalhos, foi marceneiro, ferreiro, sapateiro, fazedor de cancelas, construiu engenhos e carros de bois e rodas de ralar mandioca. Tocava em Folias de Reis e se chamava José dos Reis Barbosa dos Santos, tendo nascido em Janeiro de 1912 na zona rural, num lugarejo do sertão mineiro conhecido como Brasília de Minas. Descoberto por Téo Azevedo quando já tinha vivido por mais de 70 anos, gravou só 3 discos: Brasil puro, 1980; Zé Côco do Riachão, 1981; Vôo das garças em 1987. Muitas de suas peças musicais se perderam (não foram gravadas ou desapareceram por aí). Zé Côco sonhava possuir uma fazenda com o que ganharia com sua música, mas morreu pobre, após um derrame incontornável. Sua filha, Luisa Soares, moradora em Montes Claros, guarda em sua casa uma caixa com mil cds não vendidos por seu pai. Viva a Globalização cultural!...


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