KOREAEBOOKDOCUMENT1.2.0 Seis Histrias Sobre as Sombras da Noite Mcia Rodrigues eBooksBrasil eBooksBrasil U=para.xml capa.jpg normal.sty / ] para.xml { Q smaller.sty X Q small.sty Q normal.sty Q large.sty K Q larger.sty cC capa.jpg 0 1.jpg / N 2.jpg } T 3.jpg ! 4.jpg d6
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Sumßrio
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Primeira Sombra:
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A escadaria
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Segunda Sombra:
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Akira
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Terceira Sombra:
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O Cão e a garota perversa na porta do correio
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Quarta Sombra:
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Kam
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Quinta Sombra:
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A circunstância
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Sexta Sombra:
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A lagartixa
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Posfácio
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Sobre a autora
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Sobre o ilustrador
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Seis Histórias Sobre as Sombras da Noite
Mécia Rodrigues
Ilustrações: Serjo Robert
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Fonte Digital
Documento da Autora
© 2002 - Mécia Rodrigues
jornaleco@terra.com.br
Sumário
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Primeira Sombra:
]
A escadaria
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Segunda Sombra:
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Akira
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Terceira Sombra:
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O Cão e a garota perversa na porta do correio
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Quarta Sombra:
]
Kam
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Quinta Sombra:
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A circunstância
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Sexta Sombra:
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A lagartixa
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Posfácio
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Sobre a autora
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Sobre o ilustrador
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Seis histórias sobre as sombras da noite
Mécia Rodrigues
Ilustrações: Serjo Robert
Agradecimento:
ao carinho da Lidia, Olgierd e Serjo que sempre estiveram presentes
e a Lorival Pariz
A escadaria
para Narzi Minhone
As noites de inverno na Paulista parecem ser mais frias do que em outros lugares porque a avenida e muito aberta, e fica em um lugar bem alto. Nada consegue amenizar o vento que penetra por todos os poros e gela todos os ossos. Que passa levantando a poeira das calcadas, arrastando jornais, papeis, copos plásticos. Conforme a noite avança e os ruídos habituais das ruas vão diminuindo, ouve-se com mais nitidez o seu assobio.
Sibilino.
Desco do ônibus e começo a andar bem rápido, um pouco por medo de ser assaltada, um pouco para chegar logo em casa, tomar um banho quente, tirar o cansaço do corpo, deitar e dormir. Todas as noites, durante a semana, faço o mesmo trajeto ao voltar da faculdade. Atravesso as ruas do Morro dos Ingleses abracando bem apertado livros e cadernos como se assim eles pudessem me aquecer. Enquanto caminho assopro o ar para ver a fumaça saindo da minha boca — acho divertido fazer isso — e para aliviar minha inquietação.
Penso que alivia.
Andando me divido em duas. A que está indo para casa e a que paira no alto alertando-lhe (alertando-me) sobre os perigos. Dou uma olhada para o alto, para aquela que flutua, sorrio confiante e começo a assobiar. E assobiando, disputando um espaço sonoro com o vento, chego à escadaria que liga a rua dos Ingleses à Treze de Maio e paro em frente a ela. Atrás de mim, na calçada oposta, está o Hospital Infantil Menino Jesus, do mesmo jeito como foi construído, há meio século.
Olho para trás, para os lados, para baixo, faço uma pequena pausa, respiro fundo e começo a descer. Bem devagar.
Ao pisar o primeiro degrau um arrepio percorre meu corpo. A folhagem começa a se mexer em câmara lenta, lembrando o cenário de um filme noir da década de 50. No meio da escadaria, surge um espectro embaçado e cercado por uma luz azulada. É o vulto de um homem, vestindo um casaco cinza comprido, a gola levantada encobrindo o pescoço, um cigarro aceso na mão direita. Ele olha para cima, seus olhos brilham, atravessam o vazio e chegam até onde estou. E ao olhar na direção dele, meio hipnotizada, ouço uma voz vinda de muito longe:
“Verenaaaaaaaaaaa.....”
A primeira vez que isso aconteceu levei um susto enorme, minha boca secou, meu coração começou a bater muito rápido, minhas mãos ficaram úmidas, as pernas tremeram, quase perdi o equilíbrio. Apreensiva, olhei para cima, para baixo, para os lados, mas não vi ninguém.
Então me ocorreu que tanto o espectro quanto a voz, poderiam, e deveriam ser, criações da minha imaginação. Alguma coisa que retornava, um mau pedaço do meu passado que aliado à minha solidão, me fazia ver esse vulto na escada:
“Verenaaa....”
Quem me chamava assim, desse jeito abafado e sussurrante? Vasculho memória, lembranças, fatos e não encontro nada. Percorro toda minha vida e acabo fazendo uma pausa longa e dolorida nos meus vinte anos: eu morava com a minha avó e quando ela morreu fechei a casa, esta casa em que moro hoje e que foi dela, parei de estudar, peguei minhas coisas e fui para Porto Alegre. Lá fiz um monte de bobagens que nem gosto de lembrar. Muitos anos depois, cansada e sem dinheiro, voltei. Foi extremamente difícil reestruturar a minha vida e, falar a verdade, ela nem está totalmente em ordem. Prestei vestibular outra vez, consegui entrar na faculdade, arrumei um emprego razoável e retomei antigos hábitos: aos sábados comer um cabrito assado acompanhado por um bom vinho na Taberna do Júlio, comprar leite na padaria que fica logo depois da igreja e varar noites conversando com a Sandra, minha amiga de infância.
“Verenaaaaaaaa....” Meu corpo ficou entorpecido, o ruído suave dos meus sapatos pisando as folhas secas do chão, a respiração presa e ofegante. “Verenaaaaaaaa....” repetiu o vento, a noite, as pedras da escada, o mistério e a solidão. Senti um perfume adocicado que não sei dizer do que é, e não devia ser nada de especial, só um perfume comum.
Olhei para a árvore aonde o espectro costumava aparecer, mas não tinha nada lá.
2
Meia-noite e quarenta. É a hora em que eu costumo chegar em casa. Tenho demorado meia hora, ou mais, para descer as escadas. Sem a menor consciência do que possa ter ocorrido nesse tempo. Parece que demorei apenas os cinco minutos habituais. Se eu descesse muito devagar levaria oito minutos para chegar à Treze de Maio. Com pressa, pulando os degraus de dois em dois, uns três minutos. É. Ando saindo do ar.
“Verenaaaaaaa....”
Dessa vez, a voz era real e estava bem atrás de mim. Levei um susto e ao virar, com a chave já na fechadura, dei de cara com a Sandra, mancando e fazendo uma careta:
— Me faz um favor, Verena?
— Faço, claro. O que aconteceu? Vamos entrando rapidinho que eu preciso irão banheiro u-r-g-e-n-t-e. Vai falando.
E pá! fechei a porta do banheiro.
— Eu estou com muita febre, acho que o corte da perna infeccionou. Inchou muito e está saindo pus, ai, Verena, será que vai acontecer alguma coisa ruim? Você se incomoda de ir comigo ao pronto-socorro?
— Nem um pouco, respondi saindo do banheiro. Chamo um táxi?
— Táxi? Não podemos ir com meu carro?
— Podemos, mas eu vou guiando.
— Tá. Toma a chave. Olha, vamos ao pronto-socorro do Hospital Meninos Jesus mesmo, que é na rua de cima.
— Mas Sandra, lá é hospital infantil! Tem dúzias de hospitais por aqui... o Santa Catarina, o Oswaldo Cruz, o Nove de Julho, o Igesp.
— Nenhum desses que você falou é filiado ao meu convênio médico. O máximo que vai acontecer é a gente chegar no Menino Jesus e o médico não querer atender. Aí a gente vê o que faz.
— Legal. Vamos então.
Estacionei em frente ao hospital, travei a minha porta e dei a volta para ajudá-la a descer. Ela riu:
— Ainda dá para andar.
— É que tem uns degraus meio chatos aqui.
Não havia ninguém na rua. Entramos no saguão encolhidas de tanto frio e rangendo os dentes. Rangendo os dentes é exagero, claro.
Gosto desse hospital, pensei. Gosto porque ele pertence a um tempo em que médicos eram médicos, sabiam muito mais sobre medicina além de ler exames e decorar nomes de remédios. Sobretudo, sabiam tratar de doentes.
Nenhum problema na recepção. O médico ia atender sim. Sandra preencheu a ficha, me deu uma piscada quando seu nome foi chamado e sumiu dentro do pronto-socorro.
Fui até a porta e fiquei lá fumando, olhando a noite fechada e misteriosa, seus silêncios quebrados pelo barulho de uma brecada ao longe, adivinhando uma lua aonde só existia nuvens. Fixei os olhos na escadaria lá do outro lado da rua. Vista daqui, deste outro ângulo, me pareceu meio assustadora. A escadaria que eu subi e desci milhares de vezes, a escadaria da rua dos Ingleses, ao lado do teatro, com seus degraus altos, cheios de mofo. Fiquei na ponta dos pés para ver se o vulto de casaco cinza estava vagando por lá. Não estava. Claro que não. E se estivesse, da porta do hospital, não daria para ver pois ele aparecia no meio da escada. E no meio da escada, à essa hora, teria, no máximo, uns dois ou três adolescentes se entupindo de drogas. Puxa vida! Meia hora para descer essa porcaria de escada toda noite. Meia hora e quando chego à Treze de Maio não sei se parei mesmo, aonde parei, o que eu possa ter feito por lá, nada. Absolutamente nada. Vou ter de procurar ajuda médica se isso continuar.
Nisso um ruído atrás de mim provocou uma considerável descarga de adrenalina. Mas foi só o susto. Uma enfermeira sorridente parou ao meu lado:
— Que bom! Tenho companhia para fumar.
Daí me olhou de cima a baixo, apertando os olhos e franzindo as sobrancelhas:
— Espera...eu conheço você!
— Conhece? perguntei tentando me lembrar se eu já a teria visto em algum lugar. Decididamente não.
— Vejo você passar por aqui todas as noites, do outro lado da rua. Você desce aquela escada.
— De fato, mas olhando daqui para o outro lado da rua não daria para ver o meu rosto. Pode ser outra pessoa.
— Reconheci pelo suéter vermelho. É a hora em que eu venho fumar aqui fora.
A conversa começou a me incomodar, me senti vigiada, observada, e detesto isso:
— Não devo ser a única pessoa que passa por aqui de suéter vermelho.
— Você anda sempre com pressa, carregando muitas coisas. É você sim!
E a Sandra que não saía nunca. Se eu jogasse o cigarro e entrasse, provavelmente a pentelha da enfermeira entraria atrás de mim.
— E o seu namorado, sabe...
— Namorado?
— É, o seu namorado. Vejo ele passar por aqui todas as noites também.
Ai, meu saco.
— Olha...
— Antes mesmo de vocês namorarem eu via ele por aqui. Sempre com o mesmo casaco cinza no inverno, o mesmo jeito de andar. Uma noite ele até parou aqui e pediu o isqueiro do porteiro emprestado. Achei ele tão lindo que não resisti e fiquei olhando para ver aonde ele ia e vi que ia descer a escada. Fui atrás bem devagar...e ele lá parado no meio dela, olhando para cima...Agora tenho visto você com ele lá todas as noites...
Deixei o cigarro cair e caminhei vagarosamente na direção da escadaria.
Akira
“A doença é uma cidadania mais onerosa”
Susan Sontag — A doença como metáfora
E aí o vôo 545 aterrissou.
Larguei a mala no hotel, um hotel pequeno, velho, decadente e barato, no centro da cidade e fui andar um pouco. O calor ardido e pesado do meio da tarde me deixava preguiçosa, sonolenta e pesada. Nenhuma nuvem no céu, nenhum sinal de chuva, mas era um alívio estar em Porto Alegre. Tomei toneladas de sorvete, café e água gelada, debaixo dos trinta e oito graus centígrados de janeiro. Quando o sol fez uma curva esférica no horizonte, diluída e quase aquosa, resolvi voltar.
Depois de tomar um banho e jantar saí de novo e encontrei Akira.
Ele estava jogando pôquer nos fundos de um bar que fica na primeira esquina depois do hotel. Onde de vez em quando aparece a polícia e leva todo mundo. Achei suspeito um homem que mal falava português em um lugar daqueles e quase fiz da suspeição um relato leviano, porque imediato, mas me lembrei a tempo que a articulação e a linguagem do jogo são específicas em qualquer lugar.
Chegar lá foi bem fácil. Bastou uma indicação do gerente do hotel e me mostraram uma porta que dava para uma escada de uns oito degraus até a sala de jogo, na verdade um porão mal iluminado, esfumaçado e quase sem ar, não fosse um ventilador de ferro, enferrujado, preso à parede. Às vezes uma barata passava corrndo pelo chão.
Akira me viu entrar, sentar, beber, jogar, ganhar. Impressionado com a minha habilidade e destreza ao manusear o baralho. E por causa de um cisco, ao sairmos de lá, paramos estrategicamente ao lado de um poste onde a luz, mesmo precária, parecia iluminar um pouco mais. Reclinei a cabeça, sentindo sua respiração sobre o meu rosto e ao senti-la assim tão próxima, a minha se alterou. Akira era uma composição devassa e assimétrica de climas e regiões abandonadas. Um fio do seu cabelo encostou no meu rosto, ele levantou com delicadeza minha pálpebra, assoprou e o cisco saiu. Dei um suspiro.
Mais tarde adormeci no corpo de Akira, naquele hotel vagabundo e barulhento, a escada prestes a desabar e uma lâmpada bruxuleante no corredor. Quarto 202, a porta rangeu devagar ao ser fechada, da janela entreaberta vinha uma luz violácea e voluptuosa, ele se despiu com a graciosidade da lua se movendo no céu. A calça cuidadosamente dobrada em cima da cadeira, o ar úmido, pegajoso e conflitante daquele verão, o suor molhando minha testa, a nuca entorpecida, a camiseta vermelha jogada no chão, o desejo inequívoco, as mãos dele no meu rosto, cintura, vagina. Longas, densas, profundas. Numa transversal cheia de ócio, cigarros, mosquitos.
2
Rapidamente percebi que Akira bebia, jogava, amava alucinadamente e se metia em confusão como ninguém. Não raro andava pelas imediações do hotel, a pretexto de comprar sanduíches e coca-cola, puxando conversa com todas as moças. Esse tipo de coisa gerou uma briga e tanto. No meio dela dei-lhe uma solene e barulhenta bofetada e ele parou, mais surpreso do que bravo, e prometeu que da próxima vez que eu ousasse fazer alguma coisa semelhante me daria uma magnífica surra. De deixar marca. Entendi e pedi desculpas. No mesmo dia, horas depois, quando atravessei o salão um homem sussurrou uma gracinha. Não tão sussurrante, assim. Vi o corpo de Akira atravessar o ar e depois o corpo do sujeito fazer a mesma trajetória e se estatelar no chão.
— Páraaaa, Akiraaaaaa!!!
Jogo, paixão, brigas, calçadas andadas até a exaustão, latinhas de cerveja geladas no frigobar e uma garrafa de uísque vazia jogada no chão. Me dei conta de que estava relegando a um segundo plano o motivo que me trouxera a Porto Alegre. Duas horas da tarde, ouvi um trovão ao longe, fui até à janela, olhei as nuvens e seus desenhos, o céu rapidamente ficando cinza, voltei, sentei na cama ao lado de Akira e encostei minha boca nas suas costas:
— Tenho de ir a Santa Maria.
— Fazer o quê?
— Ver meu irmão. Ele é militar. Foi transferido para lá há três anos e agora está doente. É meu irmão gêmeo.
3
Fiquei sabendo pelo telefone, no final do ano passado. Ele me contou com cuidado, escolhendo criteriosamente as palavras para não me assustar e deixando muita coisa no ar. Entendi que ele não queria, ou não podia, se deter no assunto. Mas estava óbvio do que se tratava. Fiquei muda por um minuto, sem ar, e um ponto de pânico oscilou dentro de mim. Fui girar o anel no dedo, um gesto habitual nas horas de preocupação ou medo, mas não havia anel nenhum. Cadê meu anel? Mais tarde procurei por todos os cantos e nada do anel.
— Li num livro, faz tempo, que achar uma coisa perdida é sinal de boa sorte.
— Vamos achar esse anel, falou Akira. Vou com você a Santa Maria.
Mordi de leve a sua orelha, ombro, axila, peito, desci lentamente, subi mais lentamente ainda, um relâmpago, um luzir de lâminas, fagulhas, desejos e excessos, olhei as paredes descascadas do hotel e por um momento fiquei distante e subterrânea. Tive a sensação de que ficaria pouco tempo ao lado dele e procurei tirar isso rápido da cabeça, me concentrando no seu calor, no seu cheiro, as roupas sempre bem dobradas na cadeira, a garrafa vazia ainda no chão, calçadas tão conhecidas, outro relâmpago lá longe.
— Amanhã nós vamos então. Pegamos o primeiro ônibus, ele disse.
E tudo que ele dizia, dizia devagar, com longas pausas entre as frases, temendo errar o português e esse jeito soava como calma e tranqüilidade. Talvez fosse mesmo. A toalha desbotada aos pés da cama, o tempo escasso, a pretensão da certeza, tive medo de querer Akira muito, de querer para sempre, fosse onde fosse, o brilho dos dentes acariciando a minha pele, as tardes quentes, a noite atravessada por estrelas ocultas e tempestades, a lua pelo céu como ele pela terra, uma substância orgânica inexeqüível e imensurável.
Pensei de novo em meu irmão e de novo rodei o anel inexistente no dedo: antibiograma, quimioterapia, plasma, líquido da medula, agulhas, náusea, tristeza, soluço.
O fato aprisionado pela linguagem que o adjetiva “real”, transforma-se com muita velocidade em uma outra coisa, diferente daquela que lhe conferiu uma forma ao adjetivá-lo. Essa outra coisa, de um outro ângulo, interfere na minha história pessoal, que por sua vez é uma criação da minha mente. Todas as imagens que passam por ela, só existem porque meu olho emitiu um impulso eletromagnético ao meu cérebro. Não existe eletricidade sem magnetismo e vice-versa. Isso faz com a emoção tenha sido equiparada a um impulso. A ilação da emoção à uma imagem provocou o sentimento. E tudo, absolutamente tudo, é circunstancial e episódico. A doença é uma cidadania mais onerosa, um país aonde um dia podemos ter de nos identificar como cidadãos. Uma zona intermediária, cuja passagem de um lado a outro, desapropria-nos de nossos nomes e identidades. Uma zona muito estreita, mas solidamente fixada. A combustão do injustificável que destrói passados e retalha crenças. A ciência não sabe, eu disse, contundente, para o meu irmão e acho que ele não prestou atenção porque limitou-se a dizer, indiferente à minha observação: estou comendo um chocolate com recheio de creme de avelã. Escutei, do outro lado da linha, o barulho do papel sendo amassado.
4
Respirei um ar mais solto nos trezentos e tantos quilômetros até Santa Maria, duas paradas, biscoitos e café. Para minha surpresa, Akira tomou dois copos de leite. Mesmo assim ele continuava cheirando a álcool. Quando abri os olhos, de manhã, ele estava sentado sobre os calcanhares, de costas para mim, em frente à uma vela acesa e recitava qualquer coisa monocórdia em japonês. Penso que era japonês. Fiquei deitada, sem me mover, tentando não interferir naquele momento que era só dele e não poderia ser compartilhado com ninguém.
— Como é Okinawa?
— É um conjunto de oitenta pequenas ilhas a l.500km de Tókyo, ele disse, debruçado na janela do hotel de Santa Maria, absolutamente simpático e familiar. Uma planície colorida e sobre ela um texto antigo ainda sendo escrito. Diferente do resto do Japão, aonde no inverno cai neve e desabrocham cerejeiras. Lá é suavemente quente, um lugar cheio de pássaros fantásticos e espíritos que vagam pela terra. E saiu para comprar cigarros. Da janela vi Akira andando pela rua e me dei conta de que ele era muito bonito, incrivelmente bonito, um fiapo de luz se desprendendo do sol, uma linha alaranjada de final de tarde, cheia de extremos e rumores. Havíamos bebido, jogado, brigado e amado ininterruptamente em Porto Alegre, num quarto minúsculo e devassado e eu não sabia nada sobre ele, que por sua vez parecia saber tudo sobre mim, no seu jeito de recolher e recompor fragmentos sem ele mesmo se fragmentar. Debrucei um pouco mais na janela e Akira não estava mais na rua. Debrucei mais ainda e esperei que a noite chegasse.
5
Os olhos infixáveis, alongados, o abajur aceso no meio da noite, a noite sobre todas as coisas e todas elas silenciosas.
— Como está seu irmão?
— Magro, muito magro, pálido, e deprimido. Ele é a minha cara...continua a minha cara, mesmo consumido assim pela doença. Continua com o meu jeito. E vai ficar aqui, em Santa Maria, fazer o tratamento inteiro aqui. Eu viajei tudo isso para tentar fazer com que ele voltasse comigo para São Paulo, mas não tem jeito. Respirei fundo e pensei que eu voltaria para São Paulo e Akira para Okinawa.
— Tenho de voltar para São Paulo.
Não me foi possível nenhuma leveza naquele momento, tateei fendas, passagens escuras, longínquas, ilhas submersas, zelos e dúvidas.
Eu não diria/diríamos amor. Diríamos/diria ele, no seu mau português: combinação de pólos, de íons, magnetismos, substâncias químicas e oníricas. Um fio de prata brilhando, escorrendo, dissolvendo caules, polens, fricções, indumentárias, um zunir de destinos e devaneios, a propriedade das coisas ubíquas: aonde quer que Akira circulasse, mantinha sobre tudo e todos um olhar agudo e ácido, sábio e crítico, uma rota imaginária de princípios. Um registro de voz facilmente identificável, nomeando e numerando gemidos e mansuetudes. Caso eu abrisse a janela naquele momento o céu me devolveria uma poeira de zonas de resistência, corações cheios de estratégias e invólucros. Desejo de que um outro momento estivesse se formando. Deitei pesada no colchão, afundei e dormi, dormi, dormi.
6
No outro dia, ao acordar, não vi Akira. Sobre a cama, aonde ele deveria estar, estava apenas o meu anel, aquele que eu havia perdido. De ouro, duas cobras entrelaçadas, a alquímica serpente ouroboros e seu duplo e no meio delas uma pedra verde, uma esmeralda.
Um anel é um pacto. Que amolda-se ao nosso dedo em um primeiro momento e amolda-o a ele, anel. Que significa pacto e ciclo. Depois torna-se um cúmplice. Possui um próprio e peculiar código cromático, que vibra, expande e esconde um segredo: um ideograma, uma folha seca, uma xícara de porcelana, o arvoredo impresso na noite, a força e consistência da temperatura que esculpe um esboço de desejo, dissolução de metáforas, ciclo de desertos, uma caravançará ao longe, o som de uma flauta, imperfeições e obstinações.
Olhei para o anel, perplexa. Ainda deitada, peguei e coloquei-o no dedo. Então Akira havia achado meu anel? Era o sinal de boa sorte que eu tanta queria. Estava um pouco amassado do lado e meio sem brilho, mas era o meu anel de pedra verde, com meu nome gravado dentro. Debaixo dele, um bilhete de Akira. Levei cinco minutos para entender o que dizia: “precisei ir para Porto Alegre cedo. Espero você lá”. Lá aonde? Porto Alegre é enorme.
Que coisa maluca. O anel e o bilhete, os dois ali, do meu lado. Liguei para o aeroporto para reservar a passagem para São Paulo, até Porto Alegre eu iria de ônibus. Tomei banho, café, peguei minhas coisas, pus rapidamente na mala e fechei a porta atrás de mim. A conta estava paga.
O real, que foi um fato diante de mim e não um fato contado para mim, essa diferença é significativa, de repente se esvaía e era tão bom olhar o ar luminoso, rodando o anel no dedo, que nem me perguntei o que havia levado Akira a ir embora e não me chamar.
7
Porto Alegre me parecia diferente, talvez mais rápida, mais ágil, mais cheia de gente. Provavelmente Akira estaria no mesmo hotel em que estivéramos antes, ou até mesmo jogando no bar da esquina. Tomei um táxi até lá. No caminho, olhando o asfalto quente, o rio e os prédios, percebi que estava muito cansada. Nem sorri ao entrar na recepção e perguntar por ele. O mesmo gerente, sentado ao lado do ventilador, me respondeu:
— Japonês? Com a senhora? Mas a senhora estava sozinha!
— Não...Estava com ele...inclusive nós íamos sempre a aquele bar ali na esquina.
— Olha, naquela esquina ali não tem mais bar nenhum. O que tinha foi demolido faz cinco anos.
Não devo ter dito mais nada.
Estava quase na hora do meu vôo sair e eu não podia perder o avião.
O cão e a garota perversa na porta do correio
Lá embaixo um rio, e sobre ele uma ponte envolta por uma névoa cinzenta. Uma moça pensativa, segurando uma sombrinha rendada, olha para o infinito. Esse é o desenho do cartão, printed in Cingapura, que acabo de receber:
“Chicago me oprime, me deixa amargurado e melancólico, a cidade sempre escura e as noites enormes, angustiantes”.
O carimbo pegando um pedaço do selo e da última letra do meu nome. Que é Hélène.
Todas as tardes, duas a três vezes por semana, cartas e cartões são colocados embaixo da minha porta: “Você vai bem? Eu não deveria ter deixado o Brasil, foi uma grande bobagem. Há outro em sua vida? por favor, diga a verdade, eu preciso saber”. E uma florzinha perfumada, amarela, azul, laranja, roxa, ao final da página, enfeitando o papel.
Acho que vou bem, sem muita certeza, leio o cartão com acentuada indiferença, levo-o comigo para o quarto e deixo-o em cima da cama. Abro a porta do armário do meio e um espelho grande e ousado me encara: Lena, você está magra, pálida, abatida, cansada e com olheiras. Estou? Está. E também triste.
Ponho uma jaqueta justa de couro, troco as pilhas do walkman, o pente de balas da automática, prendo os cabelos em um rabo-de-cavalo, pego o capacete, as luvas e saio. Acelero e subo a rampa da garagem, atravesso ruas, viadutos, sistemas de conexão inimagináveis há seis meses, acelero mais, cada vez mais, procuro uma vaga na Vila Madalena, Itaim, Jardins, Augusta. Que me viu adolescente, subir e descer, descer e subir, atravessar sextas de madrugada, sábados e domingos, grifes&lojas, cinemas&perfumes adocicados, lanchonetes&sorveterias, discotecas&banheiros sujos e apertados, dores e desapontamentos, iras e aconchegos.
Passo faróis amarelos, verdes e vermelhos, ilusões pouco a pouco destruídas, luas similares, visões, vultos, as rodas marcando vigorosamente o asfalto, a cada curva quase toco o chão, brilham faíscas e meu corpo pega fogo.
2
“Lena, eu quero voltar, juro que quero, logo estarei aí. Não vou ficar aqui para o resto da vida. Você esqueceu de me responder se há outro homem na sua vida, eu perguntei isso tantas vezes. Morro de saudades de você. Acredite, por favor”.
3
Mentira. Não morre. Isso foi apenas a frase final, sempre a final, quase obrigatória, já lida tantas vezes em tantas outras cartas & cartões, o canto direito do envelope um pouco amassado porque atravessou continentes e terremotos. Abro a porta do terraço da sala para entrar o ar cálido e repousante da tarde, sento em frente à uma chávena de chá, espirro e puxo um lencinho de papel da caixa azul com desenhos de borboletas esvoaçantes. Em relevo. Depois começo a escrever:
4
“Desculpe, em primeiro lugar, a ironia e o sarcasmo. Eu não pretendia, mas também não consigo evitar. Desculpe, em segundo lugar, a acidez. Não deixe de desculpar, por último, a perceptível falta de vontade de escrever. Vamos às amenidades antes de mais nada: hoje é quinta-feira, dia de uma prosaica feira na rua detrás, chafurdei por pastéis e copos plásticos com caldo de cana, comprei cravinas de várias tonalidades, do rosa-claro ao escuro. Quando eu terminar de escrever para você vou ao posto lavar a Harley, incluindo o motor e suas muito potentes e queridas cilindradas. Adoro a Harley, agora tenho uma XL 883, e pintei no tanque um dragão verde. À noite, quando alguns gatos são pardos, ela voa sobre a cidade: the road starts here. It never ends.
Mas vamos ao pedaço que interessa, que você quer, de fato, saber. O mau pedaço. Eu teria de chegar a ele. Histórias que não deram certo, abandono, tédio, rios de lágrimas amargas em travesseiros, almofadas e carpetes, ferimentos, prostração, pesadelos, suores, febres e pactos. Só me resta então, a seu pedido, revisitar tudo isso. Tudo bem, sem problemas, as coisas terminam. Nós dois terminamos, não foi? Você atravessou a sala do apartamento, carregado de malas, rumo à outra vida, em outro país. Prometendo escrever de vez em quando, claro. Eu só não esperava essa enxurrada de cartas & cartões cheios de saudade & preocupação & curiosidade & ciúmes. ‘Existe outro em meu lugar?’ Sempre existe alguém no lugar de alguém, sempre outras coisas começam no lugar das terminadas. Nem melhores, nem mais fortes, nem mais completas. Apenas começam porque esse é o destino do mundo.E às vezes continuam. Você quer mesmo saber o que aconteceu depois da sua partida? Então vamos lá.
Eram três horas da tarde, uma tarde imersa em um calor pavoroso, no meio de um cais marroquino, atulhado de contêineres, lixo, moscas, cães sarnentos e rapazolas árabes à cata de um americano rico. Não gostei do cenário. Vou tentar outro: eu estava às margens do Tâmisa, olhando sua eterna e vaporosa bruma, quando vi um corpo boiando ao longe. Que fora largado ali propositadamente, por um dos asseclas de Fu-Manchu, com o intuito de desviar a atenção da polícia, fazendo com que ela se concentrasse no cadáver e se esquecesse do chinês, permitindo assim que ele, mais uma vez, pusesse em prática um dos seus infalíveis métodos de fuga, e desse jeito conseguisse, mais uma vez, trocar de esconderijo. Eu ali parada, vendo o corpo ser retirado do rio, enquanto o resgate apontava suas lanternas para todos os lugares. Não. Não ficou bom.
Chega de veleidades pretensamente literárias e vamos à história concreta: Foi em fevereiro, três dias depois de eu ter feito uma tatuagem de orquídea no ombro esquerdo. O tatuador não era lá essas coisas, fiquei sabendo depois, e não deve ter limpado direito a agulha. Essa leviandade me custou uma infecção, uma caixa de antibiótico e uma coisa borrada na pele, que estava longe de parecer uma simples flor do campo, quanto mais uma orquídea.
Eu estava indo ao correio e levava Lancelot comigo. Lancelot é um pastor castanho e branco, de pêlo áspero, covarde como um vira-lata e mau-caráter como num chacal, que eu achei na rua e adestrei. Alguns cães, como algumas pessoas, são fáceis de serem adestrados, sobretudo os mais metidos. Um dia enjoei dele e doei-o à minha vizinha, gorda e mal casada, que aliás, só estava esperando a doação, fazendo gracinhas o dia todo em volta dele, chamando-o de Lancelotizinho e fingindo gostar de mim apenas por causa dele.
Voltando à história, eu estava indo ao correio e levava envelopes marrons, fitas gravadas, cartinhas coloridinhas e meigas. Ao chegar à agência, abaixei um pouco o corpo para prender a coleira de Lancelot na grade e quando levantei vi, de relance, a minha imagem refletida no vidro da porta. Eu ainda era tão loira quanto a adolescente de outrora que subia e descia a Augusta, usando um suéter Yves Saint-Laurent com uma boca vermelha bordada nele. Exposta às radiações & demências da cidade, que me vitimariam tempos depois. Loiríssima, o cabelo com cheiro de xampu de amêndoas, a pele suave, o jeito gracioso de andar e falar. O vidro me devolveu a imagem de uma mulher loira & linda, na porta do correio, com a orquídea infeccionada e escondida. Lancelot irritado, rosnando preso à grade. Tive de esperar vinte minutos na fila, vinte maçantes e tediosos minutos, até chegar a minha vez de ser atendida, e quando chegou, a moça do correio postou tudo, pegou o dinheiro e perguntou: posso dar o troco em selos? Claro, querida. Em selos, envelopes, cola, chicletes, lixas de unha, cartões telefônicos, palitos de dente e balas. Ela me olhou muito espantada e devolveu sessenta centavos em moedas.
No final de fevereiro, como você deve saber, o verão começa a se despedir com grande estardalhaço, traduzido por tempestades, ruas alagadas, enchentes, carros carregados pelas águas, desabrigados, caos. E quando eu saí do correio, dei de cara com um dilúvio que me obrigou a ficar parada na porta, esperando que passasse ou, pelo menos, acalmasse um pouco. A blusa molhada, um vento muito forte batendo no meu rosto, Lancelot cada vez mais inquieto, encostado às minhas botas pretas que ele tanto gostava.
Nisso um carro escuro estacionou na outra calçada. E dele desceu um homem que, indiferente à chuva e ao lodo no meio-fio, atravessou a rua calmamente e veio se abrigar ao meu lado. Muito próximo. De mim, das minhas botas pretas, de Lancelot rosnando, da orquídea borrada, dos meus desejos sombrios e do meu coração perverso. Com ele vieram os jogos de azar, dos dados aos eletrônicos, passando por cassinos clandestinos e pelo periódico ajuste de contas. Porque elas existem e precisam ser acertadas, mesmo quando estamos distraídos, sentados à mesa da sala, pensando em começar a rabiscar um rascunho de carta. Como esta. Que pelo que tenho a contar promete ser longa.
Vou fazer uma pausa no relato para explicar uma coisa: o jogo só é fascinante quando se aposta na sorte. A perícia, a técnica, o raciocínio e a previsibilidade não interessam. Não dão a mesma emoção que a sorte. Ou o azar.
Me apaixonei perdidamente por ambos. Pelo jogo e pelo homem do carro escuro. E do mesmo jeito calmo com que atravessou a rua ao meu encontro, um dia ele desatravessou-a e foi embora. Depois dele vieram os outros: garotões ociosos que vivem pelos bares, esportistas e policiais. Adquiri um jeito que atrai policiais. Devo ter pontos de identificação com eles, é isso. Também vieram as outras, claro: mocinhas sonhadoras, cantoras de boate do centro da cidade, gatinhas que cacei em chats da internet. Só que um dia tudo isso me enjoou e eu quis aquele homem de volta. Não sei bem porquê, mas quis. Capricho, grana, sociopatia, não importa. Era um desejo fundo e forte e estou acostumada a ver meus desejos serem satisfeitos. A qualquer preço. Continuando...”
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“Lena, eu vou voltar. Já te disse isso em outra carta. Dois anos não são uma eternidade e um já foi. Chicotes, dentes de ouro, harleys e juventude transviada podem ser esquecidos. Mesmo com tudo que há para ser lamentado, mesmo com as suas olheiras, dívidas, hematomas, montes de caixas de lenços de papel espalhadas pela casa. Eu precisava fazer esse MBA. Não era o fim do mundo. Mas, ao contrário de você, eu não mudei. E, falar a verdade, li um zilhão de vezes a sua última carta e não consigo acreditar no que está escrito lá”.
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“Não consegue acreditar porquê? Você também deve ter seus desejos, suas putinhas, suas perversões e desequilíbrios. Dois anos, de fato, não são uma eternidade, como você bem disse. Se passados entre grandes goles de uísque e beijos com cocaína. Se nada der errado, nos reencontraremos e tomaremos um chá no próximo inverno. Se houver próximo inverno, é claro. Porque uma vez despertada a nossa perversidade, perdemos o controle sobre ela. Aconteceu comigo. Sei que um dia isso vai acabar: a tarde pelo apartamento, correntes e chicotes na gaveta do armário, finais de noite vomitando, algumas idas ao pronto-socorro, quase uma parada cardiorrespiratória. Não adianta você me dizer: Lena, você mentiu demais, bebeu demais, cheirou demais, trepou demais. E agora está aí sozinha, nervosa, doente. Agora é um pouco tarde. Já foi. Já fiz tudo isso e mais alguma coisa.”.
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“Mais? Tem mais para contar?”
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“Tenho. Eu quis aquele homem de volta. Invoquei todas as forças da natureza, todas elas, e pedi que o trouxessem de volta, a qualquer preço. Sublinhei: a qualquer preço. Me disseram então, para tatuar, no lugar da orquídea borrada, uma estrela invertida, isto é, um pentagrama invertido, com a ponta principal virada para baixo. Tatuei, óbvio.”
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“Você tem idéia do que fez?”
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“E o que importa isso? Importa que ele voltou. Diferente, mas voltou. Cheio de desejos estranhos que primeiro me deixaram com medo, depois me excitaram. Acostumei a apagar o cigarro na virilha dele, bem perto do pênis e em cima de uma outra queimadura, invariavelmente feita no dia anterior. Não dói nada. Apenas excita e dá um prazer enorme, a quem sente e a quem faz...”
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Nem cartão de ponte, nem carta com florzinha. Nada embaixo da minha porta.
Kam
Diz a lenda que quando uma pessoa morre, um corvo levará sua alma para a terra dos mortos. Mas às vezes, somente às vezes, o corvo pode trazer essa alma de volta. — O CORVO
Mata-me com teus beijos, mas depois, um outro dia, uma outra vez, pensei olhando Kam. Ele virou o rosto em câmera lenta, como num filme, deixando de ser um perfil e se tornando Kam. Claro que eu já o conhecia, claro que eu já o havia visto milhares de vezes em vários lugares e países, com diferentes nomes, rostos e roupas. E naquele dia, naquela quinta-feira às onze da noite, vinte e cinco de setembro, ele se despiu de seus outros rostos, nomes e roupas, e se tornou definitivamente Kam. Os cabelos lisos e negros, o corpo grande: alô!
Fui além de pensar: mata-me com teus beijos. Disse, ainda que para mim mesma, baixinho, imperceptível, apenas os lábios se movendo: mata-me com teus beijos, Kam. Atravessei o bar, passei pelo balcão, paguei minha conta, que era pouca, entrei na porta giratória e cheguei à rua. Ele saiu atrás. Andei alguns quarteirões chutando tudo que via no chão, como faz a molecada, os olhos vasculhando a calçada à procura de uma pedra arredondada, fácil de ser atirada longe, que descrevesse um semicírculo no ar e sumisse no bueiro. A noite abafada grudava-se à minha pele, entrava pelo vão da minha roupa e desenhava uma gota de orvalho no meu peito. Ao longe, muito ao longe, o som de alguns trovões.
Kam me seguia à uma distância razoável, disfarçando, mas quando parei na porta de um prédio qualquer, acho que ele pensou que eu morasse ali, então deu uma corrida e segurou meu braço de leve: você precisa entrar agora?
Estremeci com o toque e pisquei os olhos lentamente.
Não, não vou entrar em lugar nenhum, sorri, girei a catraca do relógio, passei a mão na nuca, puxei um fio da franja e levantei a cabeça: vai chover daqui a pouco. Mas não vai chover para sempre, ele respondeu. O corpo grande, os cabelos lisos, os olhos macios, a boca muito próxima da minha.
Alguns pingos esparsos começaram a cair, passei a mão na nuca de novo, olhei Kam e atrás dele a luz cor-de-rosa de um raio: não gosto de calor, falei. Nem eu, ele respondeu.
E cada raio era um fotograma cuidadosamente desenhado, a cada clarão no céu eu me via bem mais jovem, sentada na cama de um quarto de hotel, segurando um cachimbo. Em menos de um segundo o céu se fechava, apagando a luz rosa e eu voltava à rua escura, rodando a catraca do relógio e mexendo na franja.
Então começou a chover mesmo, uma chuva forte que ia virar uma tempestade de primavera dali a pouco, Kam sorriu, os dentes brilhantes: vamos dar uma volta por aí? Você se parece com uma moça que eu amava muito e que se matou. Espera que eu vou pegar o carro. Não demoro nada.
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Uma moça que se matou.
Esse é o código de acesso, a identificação, a passagem. Ficou próximo do verdadeiro.
3
Dragões tatuados passeando por pequenas lojas montadas em porões, terminais de ônibus barulhentos e esfumaçados às seis da tarde, telhados e gatos sobre eles, cópias malfeitas de Magritte, uma papoula no centro do universo. Estiquei o braço e aumentei o volume do rádio: pequeno mapa do tempo, Belchior, encostei a cabeça no vidro, distraída, os olhos acompanhando as gotas de chuva que escorriam do lado de fora. Ele guiava devagar e com bastante cautela: aonde você quer ir? A um hotel pequeno e vagabundo. Ele riu.
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Às vezes as madrugadas ficam mais receptivas, mais maleáveis, mais próximas, mais súbitas. Emergem, põem cicatrizes a descoberto, penetram, corrompem. Depois silenciam. Ando por elas com um pássaro no ombro, escalo prédios pelas paredes externas, atiro facas, uso uma capa de chuva cinza-chumbo e um batom vinho que acentua e destaca minha boca bonita recortada no meu rosto pintado de branco. Que parece o rosto de um ator nô ou kabuki. Os cabelos molhados de chuva e gel.
Nessas vezes as madrugadas se transformam em outra coisa que não o que são, ou o que deveriam ser, ou o que fingem ser. Alongam-se, espaçam-se, formam superfícies borbulhantes. Atravessam bares, portas giratórias, luzes, ruas escuras e sussurram: a baía e o seu corpo caído no chão, nunca esqueça disso.
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Lembra da baía, Kam? Ele estremeceu e estacionou o carro.
6
Olhei para a entrada do hotel, um hotel na parte alta de Pinheiros, perto do Hospital das Clínicas, velho e sujo, com as paredes descascadas e manchadas. Subi a escada devagar, os degraus rangiam a cada passo e da única lâmpada no corredor caíam pequenas gotas de água. Abri a porta do quarto, entrei, e acendi o abajur. Minha sombra tremulou na parede. Brumas, asperezas, umidades, tempos paralelos. Sentei na cama.
Kam foi até a janela, abriu uma folha e pôs a cabeça para fora, talvez procurando as luzes e a brisa da baía, mas só havia à sua frente a rua estreita e escura. E nela um pássaro voava abrindo suas asas. O pássaro que me trouxe até aqui.
7
Os ônibus subindo a Teodoro Sampaio deixavam um rastro de fuligem, chiado e fumaça. Kam acendeu um cigarro e me olhou, indeciso quanto ao que fazer ou dizer.
— Fecha a janela, Kam, está começando a esfriar.
A minha vontade de deter ou precipitar acontecimentos, o poder que eu gostaria de ter sobre os fatos e a minha extensa duplicidade retransmitindo suas variáveis e artifícios. Kam fechou a janela e sentou-se ao meu lado, na cama, inquieto e tenso.
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Lembra, Kam? Do hotel na baía? Era um lugar parecido com este, cheio de prostitutas, a porta dando direto para a rua, a rua cheia de lixo, de restos de verduras e frutas, de moscas. E acima da porta ficava o letreiro colorido, piscando, a escada que rangia, as lâmpadas amareladas e bruxuleantes, as goteiras no corredor.
Não lembro disso, ele disse, jogando o cigarro no chão e amassando a ponta com a sola do sapato.
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Eu estava com um pijama vermelho de seda, peguei o cachimbo que você havia colocado na mesa de cabeceira e acendi. Um vento quente entrava pela janela e acariciava meu rosto. Meu cabelo estava tão perfumado e macio, enfeitado com uma flor rosa. A baía, lá fora, toda iluminada, eu gostava de ver o movimento dos barcos. Sabe? barcos são transitórios e passageiros, vão e vêm e nunca são os mesmos e nisso está o encanto deles. Então, por curiosidade, eu peguei seu cachimbo e acendi. Eu sabia que era a quantidade exata que você precisava, mas eu apenas acendi. Me deu vontade de fazer isso, de acender. Nada além. Você começou a gritar comigo, desesperado, enlouquecido, mas ninguém se incomodou porque em um hotel como aquele as brigas eram freqüentes. Ninguém prestou atenção. Ninguém entendeu que eu estava pedindo socorro. Nisso a lâmina de um punhal, longa e afiada, brilhou no ar, acima da minha cabeça. Isso é a última coisa que consigo me lembrar. Ou que me é permitido lembrar. Então me trouxeram de volta.
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Na rua tirei um cigarro do maço e acendi. Subi bem devagar a Teodoro Sampaio. Olhando a fumaça dos ônibus que, na verdade, parecia sair do asfalto. Conforme fui subindo comecei a respirar melhor. De um jeito mais ameno. Atravessei a Dr. Arnaldo inteira, olhei as flores e acabei entrando na faculdade de medicina. Andei por todos aqueles prédios e jardins até me cansar deles. Depois voltei à avenida. As bancas de flores do outro lado da rua, muito iluminadas, continuei andando até chegar à passagem subterrânea da Consolação, onde um pássaro negro, o meu pássaro, grasnou no ar, voou em círculos e pousou no meu ombro.
A Circunstância
Eu gosto do Poder, disse ele, pertíssimo da Esplanada dos Ministérios, numa noite quente de fevereiro. Uma linhagem de caprichos e a opacidade da fala. Tenho ódio do Poder e de tudo aquilo que o representa. Girei o dial, não consegui sintonizar nenhuma estação, olhei o que há poucas horas deveria ter sido um imenso céu vermelho e nada mais. Dei de ombros, entediada. Desvestidas as más intenções, fixei os olhos no escuro à minha frente e afundei a cabeça no encosto. Chão de amianto, de cádmio, gotejar denso de fatalidades, inquietações, milhas aéreas, aventuras. Continuei girando o dial, São Paulo às vezes distante mas litografada na minha epiderme, a fogo e paixão, pulsando veloz: sussurros e vaidades, acelerações e insubordinações. Passei o dedo no vidro, alheia ao planalto, ao seu xadrez abjeto, seu ócio e indiferença. A ciência da chuva me constrange. Anos com o nariz na vidraça e, pingo a pingo, cresci. Conseqüentemente, o mundo diminuiu. Cresceu o cerrado, perdeu um pouco da sua área verde e virou capital do país.
Flor dos tempos, das espécies submersas, o que você dizia, dizia a mim? toda a eletricidade da terra ativada, uma vez acionado um ponto, ele libera uma faísca e todas as coisas correlatas são também acionadas e postas em contacto. E se encaixam, resultando nisso que chamamos destino. Que supomos, erroneamente, poder comandar. Como as conspirações.
Chão de chuva, de cádmio, de amianto, poucos faróis na outra pista, o ploc da chuva e o ruído que vinha do rádio quando eu girava o dial. Nenhum outro som.
Quando passamos em frente ao Palácio da Justiça, bem em frente, eu disse: não dá mais para continuar, Marcos. Cresceu o assobio do vento, atravessou e rasgou o cerrado.
Confins.
O barulho da chuva na capota do carro parecia uma rajada de metralhadora, tive de aumentar a voz: não é mais possível, Marcos não dá mesmo. Acabou. Ele deu uma brecada, parou o carro no meio da pista, soltou o volante, segurou meu rosto com as mãos trêmulas, olhou firme nos meus olhos e disse: Não, Lu, não acabou. Nem pense em tentar me deixar.
A chuva, pingo a pingo, cresceu.
2
Todas as vezes que um avião alinhar a asa vindo do planalto central, abaixo das nuvens, a cidade se mostra inteira, na mansuetude e no empenho, na ânsia e na ambição, no desembaraço e na audácia. As longas filas de carros e caminhões nas Marginais, as chaminés do Brás, o jardim do Museu do Ipiranga, os toriis e lanternas brancas nas ruas e viadutos da Liberdade, a faculdade de medicina da USP, a assinatura de Ramos de Azevedo nos prédios mais bonitos e representativos, as árvores seculares de Higienópolis, o Pátio do Colégio, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, os luminosos piscando, as bandeiras tricolores no Morumbi, as outras no Pacaembu, as xadrezes em Interlagos. São Paulo me consolidou o caráter, tornou-se a minha segunda voz, minha pele e referência, minha interlocutora mais próxima e atenta, mais severa e complacente.
As pontes e os dutos do Tietê, o verão em que eu ouvia, com certa preocupação, o boletim meteorológico no rádio. Soube que Guarapiranga estava com o nível baixo, quase vazia. Racionada a água, cheguei em casa no final da tarde, odiando as poucas chuvas, o meu rosto cheio de sardas, os meus cabelos compridos.
Dei de cara com a resistência do chuveiro queimada e àquela hora não havia mais nenhum eletricista trabalhando. Só me restava comprar outra e tentar trocá-la.
3
Meu irmão estava estudando numa cidade do interior, pacata e quieta. Como ele. Havia me dito que ficaria por lá nas férias, mas chegou inesperadamente quando eu acabara de entrar. Pôs as malas no quarto, trocou de roupa, reclamou do trânsito e do calor.
— O seu mau-humor tem algum motivo específico ou é apenas o de sempre?
— É o de sempre, acrescido do fato de eu ter ficado de dependência em Resistência dos Materiais.
— De novo?
— Como assim, de novo? De Resistência dos Materiais é a primeira vez.
— Falar em resistência, a do chuveiro queimou. Você sabe trocar? Eu já comprei uma nova. É esta daqui.
— Sei. Se você me fizer um sanduíche eu troco.
Fiz. Com alface, queijo, rosbife, ovo cozido, orégano, maionese. Uma coisa muito parecida com um beirute, mas não era. Ficou enorme. Quando estava quase pronto, percebi que alguma coisa se mexia no fogão. Olhei. A coisa fez vupt! e sumiu por um dos bicos.
— Joãooooooooooooo...corre aqui! Ele entrou na cozinha pingando água:
— O que foi?
Apontei o fogão com cara de pavor:
— Tem um monstro lá dentro!!!
João examinou cuidadosamente o forno, a parte detrás, os bicos, limpou o óculos na camiseta imunda e olhou pra mim muito sério:
— Passa o sanduíche.
Nisso a coisa se moveu de novo.
— Olha lá João!!! É um rato gigante!!!
— Aquilo é um camundongo, não um rato gigante, ele disse. E saiu da cozinha, com o sanduíche e uma coca-cola, olhando para mim com ar de desprezo.
— É...foi isso que eu disse...um camund...
E o camundongo, outra vez, sumiu pelo bico do fogão, saiu por baixo do forno e deu uma corrida pela cozinha até a geladeira.
4
Conheci Marcos na manhã em que voltava de Buenos Aires. Uma Buenos Aires que prossegue nas músicas de Suzana Rinaldi e Nacha Guevara, no gosto das médias lunas da Avenida de Mayo y Peru, nas fotos que tirei do porto e das calles elegantes, no pente colorido que carrego sempre na bolsa: hecho a mano. E, principalmente, nos poemas portenhos de Borges:
“Buenos Aires eu sigo caminhando,
por tuas ruas sem porquê nem quando”
Entrei no avião e meu corpo era um recorte de fuga, um astrolábio antigo e enferrujado, uma lentidão infinita de aranha, margeando tudo, feroz e indisciplinada, retendo espectros, engendrando rotas e bifurcações. Muitas ciladas me circundam e acuam, mas não caio em nenhuma delas.
Marcos sentou na poltrona ao lado da minha, a voz modulada grave, a postura das pausas, a respiração longa, a pontuação. A voz o futuro não diria nada de muito significativo, a não ser que istava do Poder, mas isso eu já supunha, só que verbalizado jogaria por terra minhas últimas esperanças de decência. Minha voz respondeu à altura, sedutora, insana e aventureira. Pedi um café forte.
Qando o avião pousou em São Paulo ele pôs a mão no meu braço:
— Vem comigo para Brasília?
Um dia eu até vou.
Trovões e relâmpagos, turbulências, cintos apertados, tramas, fios invisíveis, acordos, rum com coca-cola e charutos adocicados, acenei para a janela do avião que já estava taxiando pela pista, uma interrupção na corrente elétrica conhecida para que uma outra, com maior potência e empenho, sobreponha-se à primeira. Fios mais grossos e mais bem encapados. São Paulo só é possível íntegra para quem nela nasceu e sempre viveu.
5
João pediu um monte de sorvete com uma tonelada de cobertura. Em um bar dos Jardins, na descida da Hadock Lobo, nem tão cheio nem tão chato quanto parecia do lado de fora. Com a boca lambuzada de chantilly, ele falou da faculdade, do tédio que é uma cidade pequena, da namorada que morava numa chácara e criava coelhos, da vida monótona, da resolução de voltar para São Paulo, e da saudade dos seus tempos de cinéfilo:
— Lembra quando nós fomos ver o Império da Paixão? Esse filme tem um lado psicológico muito bem sacado. Para se punir ela cega, e...
— Aquilo não tem nada de psicológico, João.
— Claro que tem! Era a consciência dela. Ela havia matado o marido, lembra?
— No Japão alguns fantasmas costumavam, ou ainda costumam, não tenho certeza, cegar os criminosos com uma vareta de aço semelhante ao hashi.
— Uma casta de fantasmas, você quer dizer?
— Não quero dizer casta coisa nenhuma, quero dizer fantasmas apenas. Procure ser mais simples.
— Mas se eram só “alguns”, como você disse, está na cara que era uma casta.
— Ai, ai, ai.
6
O quarto grande no meio da manhã, as cortinas brancas, o ruído do jornal sendo manuseado, Marcos cortou um pedaço de queijo e disse: preciso fazer regime. Olhei para a barriga dele e pensei: precisa mesmo. Mas não disse nada. Não era da minha conta. Afundei no travesseiro de pena de ganso, liguei a tevê, puxei o lençol e a caixa de chocolates. O prazer da aventura apenas. Marcos sentou na beirada da cama e segurou minha mão: Lu, quero que você mude pra cá. Estremeci.
7
À noite peguei as cópias de contacto do filme que bati do meu irmão trocando a resistência do chuveiro, a lente, e estava sentada à mesa da sala, muito concentrada, quando tocaram a campainha. Nem me mexi.
— Quem será? Você pode atender, João?
Ele estava assistindo um filme de suspense, pôs na pausa a contragosto, foi até a porta e espiou pelo olho mágico.
— Não é ninguém, deve ser a molecada da rua que passa por aqui de bicicleta e de sacanagem mete o dedão na campainha.
— Estou com vontade de tomar uma coca gelada.
—Eu também, Lu. Pena que a geladeira está tão longe...
— Longe?
Tocaram de novo a campainha.
— Vai lá João, que eu estou cortando uma tira aqui.
— Já fui uma vez.
— Não pode ir de novo?
— Certo. Eu vou.
— Aproveita e me dá essa régua que está aí do lado do telefone.
— Esta daqui?
Tocaram outra vez.
— Atende, João.
— Ou eu atendo ou pego a régua.
— Os dois, mas primeiro me dá a régua.
Ele pegou e trouxe até a mesa.
— O que é isso aí nessa foto?
— Não respira em cima da lente que embaça.
— Legal essa lente, onde você comprou?
— Tem alguém aí dentro? gritou Marcos do lado de fora.
Mas como das outras vezes não era ninguém.
8
El dia que me quieras tendrá más luz que junio, Marcos parado na soleira da porta com um ar cansado, a curva da narina que costumava inflar quando ele ficava tenso ou nervoso, os olhos temerosos e rápidos, a vegetação que a luz da rua recorta e contorce, as sombras caminhando sobre meus braços, olhei a chuva que começava a cair, como naquela noite, flor dos tempos, do planalto, verões e relâmpagos, bandeiras e carícias.
Ele entrou e pediu alguma coisa para beber, um suor imenso se alastrou pelo meu rosto, o movimento e a ciência da chuva me excitam, Marcos passou a mão na minha nuca:
— Lu, está muito difícil sem você.
No dia seguinte, quando um sol vermelho e ardido entrou pelas frestas da persiana, abri um único olho e bocejei:
— Marcos, foi a última vez.
E levantei de mau-humor.
9
João pegou o jornal do chão, fechou a porta e sentou ao meu lado para tomar café:
— Não acho legal essa trepação a noite toda, no dia seguinte você acorda azeda e manda o cara embora.
— Não mandei ninguém embora, ele precisava ir. Sempre fui mau-humorada de manhã e nunca escondi isso.
— De qualquer forma você fica alimentando essa relação. Sabe o que eu acho, Lu? Que você é inconseqüente pra caramba. Termina de uma vez então, não faz o cara sofrer, não trata ele desse jeito.
— As coisas não são assim, João. Você não sabe de nada. Não dá para terminar de repente. Estou tentando já faz bem uns quatro meses. Todas as vezes que eu começo a falar sobre isso ele faz umas ameaças veladas, diz umas coisas dúbias, fica violento.
— Violento? O Marcos? Você está brincando?
— Não estou, olha aqui.
Mostrei dois hematomas enormes: um na perna e outro no ombro.
— Ele fez isso???
— Calma, João...
— Lu, me responde...foi o Marcos quem fez isso?
Rolou uma lágrima:
— Esquece, tá?
...el dia que me quieras será de plenilúnio.
10
A 100 km de São Paulo, mais ou menos, está o Observatório do Capricórnio, estação astronômica localizada no monte Urânia, a 1050m de altitude. Para chegar lá é preciso atravessar metade de Campinas, depois pegar uma vicinal, estreita e deserta, com um bom trecho de terra. Cuja iluminação é fraca, antiga e precária. Teoricamente, o Observatório está fechado ao público durante a semana e visitas noturnas nem pensar, mas João havia telefonado no fim da tarde e dito que éramos jornalistas e que precisávamos fechar a matéria sobre o cometa aquele dia.
— É a única maneira da gente ver o cometa à noite, justificou. Se ninguém pedir credenciais, ótimo.
Ninguém pediu.
A estação astronômica está em um terreno grande, limpo e bem cuidado, cercado de arame farpado. O Observatório é uma construção redonda, de tijolos. Lá venta tão forte que parece que as árvores vão cair, de tão vergadas. Não achamos nenhuma campainha. Buzinamos, acendemos os faróis e ninguém saiu do Observatório. Estacionamos o carro na rampa de acesso e pulamos a cerca, acompanhados por três cachorros vira-latas que fizeram o maior estardalhaço tão logo nos viram.
O astrônomo nos recebeu simpaticamente, perguntou se queríamos café e nos mostrou aquele lugar bonito e solitário:
— Pena mesmo que vocês vieram à noite.
O céu, lá em cima, explodia estrelas e cometas sobre as nossas cabeças.
Aí fomos colocados em frente a um telescópio profissional e ficamos sabendo que aquela nebulosa, ali à direita, era o cometa. De binóculo daria para ver somente a cauda, mas no telescópio dava para ver o núcleo. Posição no céu: continua na constelação de Sagitário. Localize a constelação mais alta, a leste, que é Escorpião. Abaixo de Escorpião acha-se um corpo brilhante que é Saturno, tendo abaixo e um pouco à direita Marte. É fácil, Marte é avermelhado. Logo abaixo de Marte se acha o Cometa. Viram? Velocidade em relação à Terra: 43,19km/seg. Brilho integrado (núcleo mais cauda): da ordem da magnitude 2,0. Declinação: 28°19'. Ascensão em linha reta: 19h32m. Distância da Terra: 0,74 UA (unidade astronômica). Distância do Sol: 1,04 UA. Velocidade de deslocamento em direção ao Sol: +26,63km/seg. Entenderam?
Claro. E adoramos. A única coisa chata, na volta, foi a hora em que furou o pneu do carro, quando ainda estávamos na estrada de terra. Para cúmulo do azar o estepe estava vazio e o João teve de ir a pé até Campinas buscar socorro. Quando me vi ali sozinha, fiquei meio insegura, tive medo e abri o porta-luvas atrás do revólver. Pela primeira vez na vida achei ótimo a arma existir e estar ali com a caixa de balas. Fiquei com ela na mão, no caso de aparecer algum assaltante. Desnecessário dizer que não passou ninguém. Andei um pouco pela estrada e quando bati os olhos numa placa de sinalização, meio escondida pelo mato alto, não resisti: pá, pá, pá. Será que alguém ouvira? Olhei para os lados. Nada. Coisa nenhuma. Ninguém. Pa, pá, pá. Descarreguei e recarreguei o revólver várias vezes. Fiz um barulhão.
João chegou umas duas horas depois, rodando um pneu:
— Que cheiro de pólvora é esse? Você andou usando meu revólver?
— Atirei numa placa de sinalização. Para espantar o medo.
— Qual placa?
— Ali na frente, acho que daqui não dá pra ver.
— Você é louca! Onde já se viu fazer uma coisa dessas? E se acerta em alguém?
— Não tem ninguém por aqui a esta hora. Onde você achou o pneu?
— Num borracheiro. Eu tentei explicar a situação, mas o cara estava tão bêbado, mas tão bêbado, que nem reparou que eu saí com o pneu.
E abaixou:
— Me passa a chave de roda.
Las estrellas celosas nos mirarán pasar. Nem tanto por nós. É que elas tem de estar lá mesmo, no céu, e não podem escolher quem ou o que irão olhar.
11
O fio da minha espada foi afiado dia a dia, todos os dias, sem pular nenhum. No Observatório olhei para o céu através do telescópio e achei que tudo nele se movia bem mais do que eu pudera, até então, supor ou perceber. Centelhas, convergências, fuligens, chamas, labirintos. Um fio forte e invisível havia me ligado ao Marcos: minha poderosa imaginação. Que ignorou os seus deslizes e caprichos. Minha alma foi seviciada noite após noite até que eu disse:
— Chega, não quero mais! Acabou!
Ele pegou meu rosto com as mãos trêmulas, olhando firme nos meus olhos:
— Não Lu, não acabou. Você ainda me quer.
Todas as idas ao ponto mais distante de mim mesma deixaram a sombra de uma cicatriz, para me assustar às vezes, outras para me prevenir. No meio do planalto a voz que eu conhecia tão bem, continuava ecoando, mediando destinos e corrompendo integridades. Quando ele parou o carro em frente ao Palácio da Justiça, me dei conta de que tudo que eu tinha era uma noite ilhada e sufocante, lúgubre e obcecada. Girei o dial e pensei ter fechado um ciclo ao dizer:
— Chega, Marcos!
Mas ele respondeu:
— As coisas não acabam assim, Lu, com essa simplicidade. Elas são mais complexas.
12
Dois dias depois de voltarmos do Observatório, João me acordou com um safanão:
— Acorda Lu, e olha isso daqui! O Marcos morreu.
Pulei da cama assustada:
— Quem morreu? O quê que aconteceu?
— O Marcos. Está aqui no jornal.
— Deixa ver...Não acredito! Quem matou ele?
— Está escrito que foi um acidente.
— Dá isso aqui!
Li uma, duas, três vezes. Incrédula.
— João...foi na estrada do Observatório. Na mesma noite que a gente foi lá. Olha só. E bem na hora que você foi atrás do estepe. Que coisa esquisita...porque será que ele desceu armado do carro? O revólver disparou...Mas ele estava com o revólver apontado para si mesmo? Diz que tinha resíduos de pólvora no dedo dele, o revólver foi disparado...Que coisa estranha...
— Olha, Lu, eu sabia que essa coisa ia terminar mal. E ainda por cima, você ali perto, com o meu revólver, que é da mesma marca e do mesmo modelo...Eu disse que foi uma temeridade sair pela madrugada atirando a esmo...
— João... você não está insinuando que eu matei o Marcos, está?
— De jeito nenhum. Mas pode até ser que ao atirar naquela placa, você, sem querer, é claro, s-e-m q-u-e-r-e-r, veja bem...
— Todos os tiros que eu dei foram na placa e eu ouvi o barulho. De todo jeito eu devo estar bastante complicada com a polícia.
— Está nada. Você é inocente não é? E foi um acidente, não foi? Mesmo que não tivesse sido, ninguém suspeitaria de você.
— Como não? Nós passamos por lá à mesma hora, esqueceu?
— Nós não, dois jornalistas. Com nomes bem diferentes dos nossos, e cariocas ainda por cima. Estacionamos o carro na rampa, lembra? Ninguém viu a placa, aliás nem o próprio. Olha, não esquenta mais que eu vou sumir com os dois revólveres.
— Dois???
— É. Eu sempre ando com dois. Um você usou e o outro estava comigo.
Fui pra cozinha e peguei uma maçã. Pelo vitrô olhei os passarinhos, o sol, o gato da vizinha deitado no muro. Entrei e tomei uma aspirina.
13
Meu coração é um demônio semi-domado, o retrato de um ancestral desconhecido, um contorno de estrelas espatifadas ao acaso, uma silhueta cheia cavidades luminosas, órbitas, gravitações,
os sinos da Sé ao meio-dia, o mau cheiro das galerias da José Paulino, o Mercado Municipal, o Jardim da Luz, o órgão do Mosteiro de São Bento, o pico do Jaraguá, as luzes do Jóquei, as flores do Largo do Arouche, as chaminés da Moóca, o Martinelli e o Copan, as bancas de jornais, as estátuas de pedra, as sirenes e a música da minha vida tocando no ar da cidade,
líquidos de caleidoscópios, as pontes da Marginal passando por mim, becos me espreitando, taludes naturais, itinerários e forças, Marcos era uma noite ilhada e sufocante e passei ter fechado um ciclo na minha vida, quando disse: chega, Marcos. Lento, ele pegou meu rosto com as mãos de paixão e desespero:
— Não, você não vai embora.
14
— Sabe Lu...
— O quê João?
— Antes de me tornar um rastafari, e abandonar este mundo cruel e sórdido, vou passar uns dias na ilha de Santa Lúcia. É uma ilhota ridícula do Caribe aonde há pestes, maremotos, erupções vulcânicas, estado de sítio, ditadores e vodu.
15
Os cabelos molhados depois do banho, a lisura e a certeza das coisas, dragão chinês rasgando os céus, das minhas sete vidas resgatei uma, a garganta em pânico, transpirei verões, deslealdade e descumprimento de códigos, ajudei João a arrumar as malas, e chamei um táxi para levá-lo ao aeroporto.
16
Quando o táxi chegou ele desceu correndo a escada, tropeçou e caiu. Quando caiu, bateu o pé na mesa que fica na entrada de casa. Em cima dela havia um vaso com vários hashis. Voou tudo pelos ares e um deles alojou-se no olho direito de João, cegando-o. Dei um grito muito alto e ele ficou ali no chão, desmaiado.
Mas foi tão precisa a trajetória do hashi que parecia que uma mão invisível havia segurado-o e colocado-o ali. Pensei isso com horror e uma sombra passou pelo lado de fora da janela.
A lagartixa
Para o Fábio, que ainda me protege dos demônios
“Ora, tenho tido tão inteira confiança no poder da palavra que, por momentos, acreditei possível dar corpo, na sua própria imaterialidade, às fantasias que tentei descrever”. Edgar Allan P÷e
Logo depois do almoço peguei minha mochila cor de melancia, um monte de filmes de diferentes asa, duas máquinas, pus a jaqueta cáqui de capuz e atravessei, de ônibus, boa parte do centro da cidade para chegar até aqui.
Garoava muito, uma garoa antiga e ininterrupta. E era sexta-feira. Há uma agitação maior no ar às sextas-feiras. O trânsito fica mais pesado e lento, há mais gente circulando, com ou sem chuva.
Parei em frente ao hospital infantil que existe na rua dos Ingleses, ali, aonde ela alarga dando lugar à uma espécie de praça, na verdade apenas um canteiro maior do que o comum, aonde se concentram os vendedores de comida. E do outro lado, está a escadaria que liga esta rua à Treze de Maio. E à esquerda da escada o Teatro.
Olhei a sujeira que os ambulantes fazem vendendo pastéis, pizza, doces, pipoca, hot-dog e fiquei mal-humorada. Se fosse apenas um vendendo doces, ou o pipoqueiro, tudo bem. Mas, não. São vários. O que significa vários cestos de lixo. E o excesso que deles cai, espalha-se pelo chão, provavelmente criando vários focos de infecção.
Eu tinha de fotografar um poste antigo de São Paulo, desses que foram colocados no século passado em substituição aos lampiões de gás. Ao pensar isso, século passado, uma atmosfera antiga, terna e intimista me invadiu. Escolhi este local por causa da escada que acentua o clima romântico que eu procuro. O centro da cidade está cheio desses postes, mas aqui, dispostos ao longo das escadas, dão uma sensação de quietude e de coisas sussurradas. Abri a mochila, tirei a Asahi e comecei, click, click, desviando do lixo, atenta ao barulho do filme girando, mas sem deixar de ouvir, ao longe, o murmúrio de vozes abafadas no saguão do hospital. Fiquei perambulando por ali, click, click, olhando torto para os ambulantes e suas pilhas de lixo, que são o mais perfeito retrato do caos desta cidade. De quem nela habita e de quem a governa.
Troquei o filme, a garoa apertou, pus o capuz e me senti feliz por estar no meio do frio e da umidade. Achei que o verão ia durar para sempre e a sensação de calor eterno, até uns dias atrás, havia me apavorado. Meus lábios estavam ressecados, a garoa apertou mais um pouco, o dia escureceu muito e uma fumaça suave, de filme europeu, passou por mim. Ou, o que é mais provável, pela minha imaginação.
Click, click, a placa: rua dos Ingleses. Talvez essa metodologia seja um ranço da historiadora que eu nunca fui mas que existiu na minha juventude, quando eu me imaginava fazendo pesquisas em grandes bibliotecas. Daí ter ficado esse interesse pela toponímia que me faz sair fotografando sempre as placas das ruas. Click, click, girei o corpo e no visor apareceu um mendigo encostado no poste ao lado da escada. Como é que ele foi parar ali? Droga. Esperei um pouco, quem sabe com a garoa aumentando ele ia embora logo. De fato, dez minutos depois, ele se foi. Enquadrei de novo o poste e quando fiz click um pedaço de maçã passou voando pela frente do visor. Olhei para o lado de onde tinha vindo a maçã e um menino de uns seis anos mais ou menos, repreendido pela mãe, fazia cara de choro. Me aproximei mais do poste e do começo da escada, agora de olho na mureta de pedra e nos galhos secos das árvores, ambos molhados de chuva. Quando encostei a máquina no rosto, o celular começou a tocar. E meu celular está programado para tocar bem alto e fazer muito barulho.
— Lídia? Lídiaaaaaaaaaaa! Fala mais alto!
A rua inteira olhou para mim. Disfarcei e virei a cabeça para o alto, para o cartaz do teatro, Only You, Consuelo de Castro, a moça que se apaixona por um escritor em crise. A voz da Lídia vinha entrecortada e a minha devia estar do mesmo jeito:
— Você chegou agora? Olha, estou na rua dos Ingleses. Vou te esperar numa lanchonete que fica ao lado do teatro. É um lugar pequeno, parece uma caverna.
Guardei o celular e peguei a máquina de novo. Assim que consegui um enquadramento que me pareceu quase, mas quase perfeito, um caminhão de bebidas estacionou no meio-fio e encobriu o poste.
Desisto. Fica para amanhã.
Entrei na lanchonete-caverna, pedi um café e sentei à uma mesa perto da entrada. Tão logo me acomodei o caminhão descarregou os dois últimos engradados e se preparava para sair. Fiz menção de levantar mas parei, com a xícara de café na mão a meio caminho da boca: por hoje chega mesmo, não fotografo mais nada. Tomei o café sem pressa, sossegada, cheia de prazer. Depois tirei da mochila meu caderno de anotações, um lápis, e comecei a desenhar a rua, imaginando-a sem os ambulantes, sem aquela sujeira de gordura, lixo e molhos caídos no chão. Olhei o desenho. Ficou bom. Fechei o caderno e quando abaixei para guardá-lo, dei de cara com uma pequena lagartixa. Completamente alheia a mim e a tudo, ela subia pela parede. Em silêncio, quase sem respirar, peguei a máquina de cima da mesa e click! Apenas a parede, nada além da parede. Até eu ajustar o foco, a lagartixa se fora. Se a Asahi estivesse no automático ou se eu estivesse com a automática por perto não teria perdido a foto da lagartixa. E ela era tão bonita, tão familiar, até achei que ia conversar comigo.
Nisso Lídia chegou.
Com seus cabelos claros, lisos e finos, de uma cor indefinida, que sugerem um campo de trigo ao pôr-do-sol no outono. Visto na tela de um cinema, claro. Ela sorriu e gritou:
— Oi, brima!
Ajeitou o óculos no nariz, gesto esse que caracteriza e ressalta seu ar inteligente e atento:
— Demorei?
— Não, acho que não. Falar a verdade nem percebi o tempo passar. Foi bem de viagem?
— A estrada estava legal, mas o trânsito aqui, para variar, horroroso.
— Achei que você fosse chegar mais tarde. Cadê a sua mala?
— E ia mesmo, mas acabei vindo antes. Mala? Para passar dois dias e meio? Eu trouxe só as coisas imprescindíveis: três calcinhas, três meias, escova de dentes e duas camisetas. Qualquer emergência eu uso uma roupa sua.
— Claro. Usa minhas roupas, fuma meus cigarros, dorme na minha cama....
— Acaricio seu gato e namoro um pouco seu namorado.... Rá!Rá!Rá! Vou pegar um café. O seu acabou? Quer outro?
— Quero.
Ela foi buscar os nossos cafés e eu sabia a pergunta que viria a seguir, quando ela voltasse com as xícaras:
— Como vai o Tomás?
Fiz uma pausa longa e constrangedora, olhei para o vazio, prendi a respiração, apertei os lábios e abaixei a voz:
— Acabou, Lídia.
— Acabou? Como assim, acabou? Não acredito! Me recuso a acreditar nisso!
Meu espírito desapareceu dali e vagou pela cidade inteira, por todas as suas ruas e vielas, pelo sol às vezes implacável de janeiro, pelas noites cálidas de março e abril, pelo vento do outono, pela umidade do inverno. Aonde estaria Tomás? Começou a doer, a sangrar, quis sair dali correndo para algum lugar, mas não sabia que lugar seria esse.
— Acorda, Júlia! Como assim acabou?
— Assim, Lídia. Acabou.
— Porque, posso saber?
— Não sei direito, Lídia, não sei mesmo.
— Acabou e você não sabe dizer direito porquê?
— É. Não sei.
Nem olhei para o cinzeiro em cima da mesa. Joguei a bituca do cigarro no chão e amassei com o tênis. A imagem de Tomás estava ali, flutuando na fumaça do café. Etérea. Lídia suspirou fundo, enrolou o cachecol e olhou para a mesa:
— Este cigarro mentolado é seu?
— É. Acabo de ficar viciada nele de novo. A primeira vez foi quando comecei a fumar, aos dezessete anos. Agora voltou de novo essa coisa. Estou fumando duas marcas alternadamente. Três carltons e um mentolado.
— Vou perguntar pela terceira vez: porque acabou?
juro que vou amar você sempre, e um trompete tocou tão sussurrado e tão gostoso que a resposta de Tomás ao que eu havia acabado de jurar se perdeu. Ouça, ele disse, é Chet Baker tocando Retrato em branco-e-preto, afastei a cortina um pouco, uma madrugada luminosa começou a entrar no terraço daquele apartamento antigo. Passei a ponta do indicador na parede, muito de leve, como se com ela eu fizesse um risco alongado e sinuoso, continuei o risco invisível no lençol e depois pelas costas de Tomás, um cheiro bom e forte de tabaco na respiração, um perfume de gardênia no ar, ele apertou minha cabeça no seu peito e riu: puxa, Júlia! sempre quero acariciar seus cabelos e nunca acho muita coisa, porque você deixa assim tão curto? Passei a mão neles, claros, densos, cheios de histórias e segredos, de trajetos, lacunas e perspectivas. E também de enganos. Jura que você nunca vai me abandonar? e ele beijou a ponta do meu nariz, um pouco inseguro, não vou, juro que não vou, juro mesmo, porque eu te abandonaria? Ele me apertou mais forte e começou a amanhecer de um jeito sorrateiro naquele terraço, naquele quarto, naquele apartamento, árvores seculares e frondosas lá embaixo, os postes antigos debaixo delas, as folhas secas caídas pela calçada e levadas pelo vento suave da primeira hora da manhã.
— Você tinha de insistir na pergunta, Lídia?
Fiz uma cara tão infeliz que ela ficou meio constrangida. Peguei a mochila do chão e tirei de dentro dela o caderno de anotações, numa tentativa de mudar de assunto:
— Dá uma espiada, é um esboço que eu fiz deste trecho da rua, sem os famigerados ambulantes, os carros estacionados e esse lixo todo esparramado pelo chão. Ela observou por alguns minutos, entortou a cabeça um pouco para o lado, me olhou por cima do óculos, muito compenetrada, e falou:
— Parece um mapa rodoviário.
Peguei o caderno da mão dela e guardei.
A garoa aumentou e o silêncio momentâneo que pairou no ar fez com que os sons do interior da lanchonete ficassem mais audíveis: clec de latas de refrigerante sendo abertas, plunc da porta da geladeira fechando, tsssss de um hambúrguer na chapa, chec de guardanapos sendo amassados. Até então estávamos só nós duas sentadas, mas aí entrou um pessoal que havia acabado de sair do teatro, rindo e falando alto, provavelmente estavam ensaiando alguma peça e tinham feito uma pausa para tomar lanche. Com a chegada deles a lanchonete-caverna, que já era pequena, ficou menor ainda.
O lugar era aconchegante embora cheirasse a mofo e chuva, a lembrança de Tomás ia e vinha, em ondas, intensa e dolorida, mordi os lábios esperando e querendo que amenizasse, a tarde escorrendo entre meus dedos e se alojando na fímbria da minha calça jeans. Fiz um esforço enorme para dizer alguma coisa culta, inteligente e interessante. Não saiu nada.
— Lídia, tenho de ir ao Itaim entregar estas fotos. Vamos?
Pagamos e saímos. Ela olhou em volta:
— Onde está seu carro?
— Não vim de carro. Vamos pegar o ônibus na Treze de Maio.
Começamos a descer a escadaria e enquanto descíamos ela olhou para trás várias vezes.
— O que foi, Lídia?
— Tive a impressão de ter visto alguém atrás de você.
Instintivamente olhei para trás mas não vi ninguém.
— Já senti isso, Lídia. Aqui mesmo.
— Quando?
— Faz uns dez dias. Eu vim ao teatro e na saída fiquei parada no topo da escada olhando para baixo. Então desci uns quatro degraus, nem sei porquê, e senti algo atrás de mim. Alguém, alguma coisa, não sei dizer o que era. E o ar foi ficando denso, compacto, pesado. Um calor danado. Aí eu voltei e a sensação desapareceu.
Nisso o ônibus entrou na Treze de Maio. Corremos meio quarteirão para chegar no ponto ao mesmo tempo que ele.
Sorte que estava meio vazio e tinha lugar para sentar.
O Itaim deve ser o único bairro em São Paulo que ainda tem um cinema na rua. O pequeno Lumière, na Joaquim Floriano, resistiu heroicamente sem nenhuma reforma ou modernização que houvesse descaracterizado o seu jeito de cinema antigo. Pela janela do ônibus dá para ver a cara da bilheteira, atrás do vidro, olhando a garoa com ar de enfado.
— Mas vai ser por pouco tempo, eu disse assim que descemos. Logo ele desaparece. Odeio andar de ônibus quando está garoando. As pessoas têm o péssimo hábito de fechar todas as janelas e fica irrespirável lá dentro. Aliás, para que janela? Daqui a pouco serão substituídas por aqueles vidros fumês que não abrem.
— Adoro seu mau-humor.
— Não estou mal-humorada. É este o prédio. Nem vou subir. Vou deixar na portaria mesmo.
Entreguei, atravessamos a rua e fomos para o Joakin’s comer.
Sentamos à uma mesa do lado da janela, aquela que não abre, e pedimos toneladas de hambúrgueres com cebola crua, maionese, batatas fritas e milkshake.
— Lídia, você continua trabalhando no mesmo lugar?
— Não. Deixa eu terminar de comer que já te conto.
— Entendi. Mudou de emprego de novo.
Lídia sempre teve a enorme vocação para nunca ficar mais de três meses no mesmo emprego, largar as coisas pela metade, mudar de casa e de cidade freqüentemente, sumir e reaparecer uns tempos depois. Quando ela morava em São Paulo eu me dava ao luxo de reclamar bastante e de encher bem a sua paciência, quase que todos os dias. Depois que ela mudou para a Ilha a distância suprimiu minhas rabugices ou quem sabe foi o tempo que me acrescentou um pouco de sabedoria e serenidade.
— Você? Sábia e serena? Rá! Rá! Rá!
— Eu não disse que sou. Eu disse t-a-l-v-e-z.
— Mesmo esse talvez, em você, é muito pretensioso.
2
Conheci Tomás nesta rua, faz um ano. Ele atravessou correndo, sem olhar para lugar nenhum e quando chegou na calçada deu um encontrão em mim. E lá se foi para o chão tudo que eu carregava: fichário, caderno, agenda, guarda-chuva, livros. Mas o pior mesmo foram os milhões de papeizinhos que estavam dentro disso tudo e que voaram pela rua. Ele pediu um monte de desculpas e abaixou depressa para tentar pegar o que havia caído, meio atordoado, sem saber por onde começar. Abaixei junto, admirando sua elegância e sobriedade num terno de linho impecável, os cabelos perfumados, quando acabamos de pegar tudo ele se desculpou mais uma vez e foi embora. Três semanas depois encontrei-o casualmente na rua Marconi, engraxando os sapatos. Sentado naquelas cadeiras altas de engraxate, lendo o jornal, coisa meio antiga isso de engraxar o sapato no meio da rua lendo o jornal, me lembrou meu tio, fiquei olhando de longe, durante um bom tempo, até que resolvi fazer uma foto e na ponta do pé fui me aproximando um pouco, peguei a máquina com cuidado, click, virei de lado, click, me aproximei mais, click, click, ele me viu, deu um pulo da cadeira e veio até onde eu estava com cara de quem ia dar uma solene bronca. Tirei a máquina do rosto, ele me olhou com os olhos semicerrados, franzindo a testa. Não agüentei e caí na gargalhada.
— Eu acho que conheço você, ele disse.
— Do Itaim, faz uns vintes dias. Você derrubou minhas coisas no chão.
— Isso mesmo. Tudo bem? Você é fotógrafa?
— Sou sim.
Então fomos tomar uma coca-cola em um bar ali perto e ficamos meio embaraçados olhando um para o outro porque assim começam os grandes amores. Estava calor, eu suava muito, a boca seca, ele passou o dedo no meu rosto:
— Júlia, quero você.
3
— Esta é a minha nova casa, Lídia.
Abri a porta do apartamento, no último andar de um prédio velho mas confortável e arejado, deixando que ela entrasse primeiro. A janela da sala escancarada, as folhas secas da floreira esparramadas pelo chão, o sofá bege com uma manta xadrez em cima, a luminária amarela na prancheta. Pela janela as luzes da rua, fracas e escassas em tempos de racionamento, o vento assobiando e a lua amarela semi-oculta pelas nuvens. Peguei a correspondência do chão, que não era muita, coloquei em cima da mesa e fui à cozinha fazer chá.
— Açúcar, Lídia?
— Só um pouco.
Ela pegou a xícara e sentou no sofá, pondo os pés em cima da mesa, as meias um pouco grandes. Ela lembra Mia Farrow quando Mia Farrow tinha trinta e cinco anos:
— Agora conta do Tomás.
Olhei para fora, o peito apertado, os maxilares duros, pus o dedo na boca e arranquei um pedaço da cutícula:
— Não tenho a menor vontade de falar sobre esse assunto.
— Você quer que eu fique aqui mais dois dias fingindo que não aconteceu nada? Já fiz isso hoje a tarde inteira.
Suspirei:
— Não sei porquê aconteceu tudo. Não sei mesmo. Eu tive uma fase séria de instabilidade.
— E aí?
— Eu andava nervosa, as coisas não estavam indo bem, eu dormia mal, passava o dia mal, tinha pesadelos e aí comecei a brigar com Tomás por qualquer coisa. Todo dia tinha uma discussão.
— E foi você quem terminou?
— Foi. Mas ele já devia estar cheio de mim.
— Falou com ele depois?
— Tentei. Deixei um monte de recados que ele nunca deu retorno. Para falar com ele em casa tem de passar pela secretária eletrônica e no trabalho pela secretária não eletrônica. Se eu ligar para o celular cai sempre na caixa postal.
Olhei de novo para a janela, para o escuro lá fora, para lugar nenhum, alcancei um pacote de bolachas que estava em cima da mesa, peguei uma e esfarelei-a, lentamente, no cinzeiro:
— Não sei o que dizer Lídia. Não entendi o que aconteceu. E eu queria tanto saber o que foi.
— Olha para mim, Júlia, e presta bastante atenção: eu moro em uma Ilha quase selvagem. Nela conheci e contatei a alma das coisas ditas invisíveis e inanimadas e aprendi que todas elas, sem exceção, estão vivas apesar das aparências em contrário. E todas têm o seu lado negro. Quando mudei para lá eu não conhecia ninguém, não tinha com quem conversar. Fora de temporada a Ilha parece ser um lugar meio desabitado. Daí que eu ficava andando à toa, de madrugada, pelas praias. Não existe o mais remoto risco de assalto, por um motivo muito simples: a única saída para o continente é pela balsa. E na entrada da balsa está o posto policial.
Ela pegou um cigarro e continuou:
— Aqui em São Paulo você sai, encontra amigos, ri, brinca, e até se refugia de si mesma se for o caso. Lá não. Você está sozinha com você. Então aprendi a conversar com a natureza. Isso aguçou meus ouvidos, abriu minha visão, ativou minha percepção. Não sei se você entende isso.
— Entendo.
— Hoje à tarde, quando a gente estava descendo a escada para pegar o ônibus, vi uma sombra atrás de você que se assemelhava a um demônio. Não me pergunte como eu sei que era um demônio, eu apenas sei. Aquele não era o momento de falar sobre demônios, por isso eu não estiquei a conversa.
— Lídia, eu não acredito muito em demônios, ou melhor, não acreditava. Antes do Tomás aparecer na minha vida eu passei por uma zona tenebrosa. Uma dark zone. É esse o nome, em homenagem ao Stephen King.
— E o que era essa dark zone?
— Foi um pedaço da minha vida difícil e tortuoso, pontilhado de sensações físicas muito ruins, enjôos, febres, pequenos acidentes caseiros, infecções. E sobretudo por coisas que não davam certo nunca.
Levantei e fui até à janela:
— Eu fiz uma bobagem naquela época. Me envolvi com um cara que, em um primeiro momento, parecia ser muito legal mas depois percebi que não era bem assim, que o que ele gostava mesmo era de coisas e situações conturbadas, que andava com pessoas cuja moral e ética, se é que tinham alguma, eram bastante discutíveis. Havia duas mulheres, amigas dele...e uma delas, ou as duas...Bom, eu fui avisada para me afastar desse pessoal, mas não liguei...Demorei muito para romper o envolvimento.
— E depois ele sumiu da sua vida?
— Sumiu. Mas quando eu vi já estava impregnada daquela coisa viscosa que ele e elas carregavam e só me dei conta disso quando ele se foi de uma vez por todas. Foi a época dos mal estares. Pressenti que alguma coisa havia ficado e precisava ser eliminada.
— Pelo menos o cara desapareceu.
— Impressionante, Lídia...algumas pessoas carregam consigo a marca, a respiração de um demônio, a energia de um demônio, senão o próprio demônio mesmo. Um demônio antigo que devasta cidades, mares, montanhas, continentes. Que vive nas trevas, como é próprio desses seres, e que destrói tudo que pode. E parece que essa gente deixou um demônio circulando por aqui.
Respirei fundo, voltei a sentei em frente à ela:
— Não entendo muito bem isso...porque algumas pessoas se comportam assim...
— É a única maneira delas viverem, Júlia, e passa pelo mal absoluto. Mas, olha, vamos destruir essa sombra que eu vi hoje, essa coisa.
— Vamos.
— Pega um lápis, um papel, e desenhe um demônio como você imagina que ele deve ser.
— Nem preciso pensar. Um cão preto, grande, de olhos vermelhos. Sentei à prancheta, peguei um canson e comecei a desenhar, sem nenhuma pressa. Quando ficou pronto levei um susto com o que vi e entreguei o papel à Lídia. Ela pegou, puxou a luminária e examinou-o atentamente:
— Você o criou, Júlia, deu-lhe uma forma e um espaço físico. Agora ele não é mais a sombra que eu vi á tarde, agora ele é este cão aqui. Queime o desenho. É assim que se destrói demônios. Aí ele desaparecerá da sua vida. Mas tem de queimá-lo fora de casa. Em qualquer outro lugar que não seja aqui.
— Entendi. Em qualquer lugar que eu ache conveniente?
— Isso mesmo. Não precisa ser agora. Qualquer dia. Ah..! E nunca olhe diretamente nos olhos dele depois da meia-noite, caso você o encontre por aí, tá?
— Não olhar nos olhos dele???
— Quando a luz dos olhos de uma criatura das trevas é muito intensa, pode te cegar. Agora põe o cd novo da Zélia Duncan que eu ainda não conheço. Uáááá..que sono....
4
As manhãs de inverno nesta cidade já foram bem mais frias e enevoadas.
Abri a porta do terraço do quarto com a manta nas costas e uma xícara de café bem quente na mão. Acendi um cigarro e fiquei ali fumando, os olhos fixos no fragmento de cidade à minha frente, como se eu temesse perdê-la e precisasse decorar cada detalhe.
— Quer um pedaço de bolo?
Levei um susto desnecessário. Era a Lídia, claro, e ela bem que podia ter feito algum ruído para avisar que estava chegando.
— Que susto, Lídia! Aonde você achou bolo?
— Muito bom esse bolo...hum...bom mesmo. Eu que fiz.
— Ah...tá...Bom, eu prefiro pãozinho. Com manteiga.
— Mal-educada.
— Aliás nem pão eu vou comer porque já está quase na hora do almoço. Acho melhor almoçar de uma vez e depois ir fazer aquelas fotos que eu não fiz ontem. Você vem comigo?
— Vou, claro.
Almoçamos, pegamos o carro e saímos.
— Vou fazer as fotos na praça Ramos de Azevedo.
— Porque não na rua dos Ingleses?
— Acho que o “meu” demônio está rondando aquele lugar. Só volto lá para matá-lo.
— Você está brincando?
— Claro que estou, Lídia.
Não estava. Nunca falei tão sério em toda minha vida como naquela hora.
— Ah, bom.
— Deixa ver se acho uma vaga por aqui pra estacionar.
— Ali tem uma.
— É mesmo.
A luz estava perfeita, do jeito que eu queria. Click, click. Ramos de Azevedo visualizou, traçou e erigiu a imponência desta cidade. Fez da sua alma um pedaço da dela quando desenhou-a com delicadeza e sobriedade. Um século depois São Paulo se vulgarizou, cheia daqueles prédios medonhos da Avenida Paulista e adjacências, com janelas estreitas, que não abrem, vidros fumes ou azuis, de extremo mau gosto. Ramos de Azevedo era genial na sua mistura de estilos. Ele vivia num tempo mais denso e menos fútil.
— Do jeito que as coisas vão, Lídia, honestamente, às vezes fico com medo de acordar e ler no jornal que vão aterrar o vale do Anhangabaú ou demolir a Galeria Prestes Maia.
— Eu também.
Click, click.
— Vou fazer umas fotos com a Leica porque ela tem uma definição extraordinária.
— Você deve ser a única pessoa deste hemisfério que ainda fotografa com uma Leica.
— O que você tem contra a Leica? Ela te fez alguma?
Click, click, click.
— Acabei, podemos ir.
Ao nosso lado passaram duas moças varrendo a calçada, o caminhão jogando água na ruas, os vagabundos e bêbados habituais dos sábados à tarde, os cães magros do centro da cidade que acompanham os catadores de papéis e latas.
Lídia fechou a porta do carro e abriu o vidro:
— Ainda prefiro os postes daquela escada.
Fingi que não ouvi e liguei o carro.
5
E me vi num outro sábado à tarde, sentada no chão com um livro aberto sobre os joelhos, lendo alto distraídamente, enquanto Tomás arrumava os papéis da gaveta da escrivaninha. De repente ele parou a arrumação e começou a prestar atenção no que eu lia. Então veio até onde eu estava, ajoelhou ao meu lado e ternamente tirou minha franja da frente dos olhos, ajeitando-a do lado:
— Promete que vai me amar pra sempre Júlia?
6
— Vou amar ele pra sempre, Lídia.
— Pára naquele boteco para eu comprar cigarro que o meu acabou.
Parei. Assim que ela entrou no bar ouvi um barulho esquisito. Olhei para os lados e nada. Mas quando bati os olhos no retrovisor vi, a meio quarteirão, um cão preto rosnando. As orelhas em pé, os olhos vermelhos faiscando, como eu o havia desenhado. Olhei de novo pelo espelho e tive uma tontura forte, uma mistura de ansiedade, medo e mais alguma coisa que não consegui identificar. Minha cabeça pesou, a rua saiu do lugar, parecia que eu estava escorregando do assento para o chão, agarrei a direção e grossas gotas de suor escorreram pela minha testa.
— Abre a portaaaaaü!
O grito da Lídia fez com que tudo voltasse ao normal e a tontura passasse instantaneamente.
— Júlia, o que aconteceu?
Olhei para trás. Não havia mais nada. Coisa nenhuma. Ele se fora.
— O cachorro, Lídia...
— Que cachorro?
— Como, que cachorro? Aquele que eu desenhei, claro. Aonde ele foi parar? Estava aí até agora.
— Calma, Júlia.
— Você tem certeza de que não viu ele?
— Eu não poderia vê-lo de jeito nenhum. É o seu cão. Só você o vê.
— E agora? O que eu faço? Parece que ele se materializou. E eu que não estava levando a sério essa história. E agora?
— Destrua-o.
7
Parei no meio da sala, olhei para fora e com uma voz que nem parecia ser a minha, falei pausadamente: acabou, Tomás. Ele estava de costas para mim, debruçado na janela, imóvel. Continuei: vou embora, Tomás. Ele não disse nada, não fez nenhum gesto para me deter, olhei os livros no sofá, o cachimbo, a lata de fumo da Virgínia, o isqueiro, que embora dele, tinha o meu nome gravado, o cálice de licor, o jornal já lido, a lata de coca vazia em cima da mesa, minha cabeça começou a pesar, eu queria que ele dissesse: Júlia, fique comigo, ele não disse nada. Lá fora me esperava um céu de tempestade, pesado, silencioso, peguei minha bolsa, abri a porta,e quando cheguei à rua as nuvens compactas se abriram sobre mim, molharam meus cabelos, minhas roupas, meu rosto, meu tênis. Uma chuva insidiosa e negra, grossos pingos de carbono deslizaram sobre os meus braços, grossos pingos de óleo saíram dos meus olhos, um contacto de crateras ferruginosas e ácidas, a poética linguagem da garoa da cidade se esvaiu de vez, um lento rio de lodo descia sobre o meu rosto, estranhei as pessoas andando ao meu lado, como se eu estivesse em outra cidade, outro país, outro tempo, os prédios mudando de lugar, vagarosos, calcinados, incinerados, apenas esqueletos de prédios e entre eles eu passava com o corpo doído, dilacerado, cinzento. Andei muito, andei a noite inteira e adormeci em um terreno baldio nos arredores da cidade. No dia seguinte acordei suja, machucada e febril.
8
Fiz uma bagunça pela casa à procura do desenho do cão. Abri armários, gavetas, tirei coisas e espalhei pelo chão, esparramei pastas e envelopes na mesa, as narinas abrindo e fechando num movimento de fúria: então é verdade...ele existe mesmo! Um calor crescia no meu peito, os dentes cerrados: cadê o desenho? Minha cabeça pesava uma tonelada, os músculos enrijecidos, de repente uma queda de voltagem, as luzes do apartamento diminuíram, aumentaram, diminuíram outra vez:
— Júlia, olha! Achei!
E lá veio minha prima com o desenho.
— Aonde ele estava?
— Dentro de um livro, em cima da mesa. Vi uma borda do papel aparecendo, abri o livro e lá estava ele.
Olhei atentamente.
— É.
Era igual ao cão que eu vira parado na calçada. Peguei a mochila e coloquei o papel dentro do caderno de anotações. As luzes diminuíram outra vez e um clarão vermelho iluminou a sala. Dei um grito:
— Lídia, o que foi esse clarão?
— Clarão???
— Entendi. Está na hora. Eu desenhei um demônio e agora tenho de destruí-lo.
— Júlia, olha...
Eu tremia de raiva. Peguei a mochila e as chaves do carro que estavam em cima da mesa.
— Vou dar um fim nele. Já volto, Lídia.
— Ô...espera aí...Você não vai medir forças com ele, vai? Quando eu disse destruir, eu quis dizer PÔR FOGO NO PAPEL. Só isso. Entendeu?
— Não tem como destruir sem medir forças. Isso não existe. Um demônio é um demônio, uma vez que sou forçada a admitir sua existência. Seja lá como for ou quem for essa criatura, vou resolver isso hoje! Agora!
Abri a porta e chamei o elevador.
— Júliaaaaaaa..espera aí, que eu preciso...
— Eu já volto.
Entrei e apertei o botão da garagem.
9
Quando saí com o carro vi o cão do outro lado da rua. Ele olhou de relance para os faróis e nesse instante um curto-circuito queimou os dois. Olhei para ele espumando de raiva.
Mesmo com as lâmpadas dos faróis queimadas atravessei avenidas e viadutos até chegar à rua dos Ingleses. Que estava cheia de carros por causa da segunda sessão do teatro. Olhei o relógio do painel: mais uma meia hora para terminar. Aí então...
Estacionei e lá estava ele, o demônio veloz, de olhos faiscantes, esperando por mim. Sentado sobre as patas traseiras, o pêlo brilhando, o dorso ereto e altivo, os caninos à mostra. Chegara antes do que eu. De perto parecia bem maior do que o cão que eu vira à tarde pelo retrovisor do carro. Quando acabasse a sessão, as pessoas pegariam seus carros e iriam embora e aí, sim, eu ia ficar cara a cara com ele.
Já que eu ia ter de esperar a rua esvaziar fui tomar um café na lanchonete-caverna. Resolvi ficar na mesa perto da porta. Pus a mochila numa cadeira e me preparava pra sentar na outra, quando senti alguma coisa se movendo atrás de mim. Virei, olhei para a parede e dei de cara com a lagartixa. Tive absoluta certeza de que era a mesma do dia anterior. Gostei de reencontrá-la, parecia uma velha amiga:
— Oi, lagartixa!
Vagarosamente fui até o balcão e ela me acompanhou pela parede. Quando percebi que eu não a assustava, cheguei mais perto. Quando me aproximei bastante vi que ela segurava alguma coisa na boca. Que brilhava. Peguei o café, voltei bem devagar, e a lagartixa voltou comigo. Quando sentei e pus a xícara em cima da mesa, ela abriu a boca e soltou um alfinete dourado que caiu no chão. Não acreditei. Abaixei para pegá-lo e vi que era de ouro puro. Como coubera na sua boca tão pequenina? Segurei-o com cuidado e espetei-o na camiseta. Acho que entendi que era para mim, um presente da pequena lagartixa. Passei o dedo carinhosamente pelas suas costas geladas e ela sumiu por uma fresta da parede.
Do lado de fora o cão rosnava baixinho, inquieto, farejando o ar. Há quanto tempo seus olhos vermelhos me seguiam pelas ruas? Há quanto tempo brilhavam pelas noites paulistanas atrás de mim, sem que eu percebesse?
Acabou a segunda sessão, as luzes do teatro se apagaram, os carros foram saindo aos poucos, o empregado da lanchonete passou por mim com uma vassoura, o pipoqueiro pegou seu carrinho, desceu a rua e os ambulantes habituais também já estavam a caminho das suas respectivas casas.
Fui até a porta.
Lentamente.
Quando a rua ficou totalmente deserta, me dirigi devagar até o patamar da escadaria e tomei fôlego antes de começar a descê-la. Atrás de mim, vinha o cão. Ia começar o meu encontro com o espírito das trevas.
Dali para a frente eu não poderia mais olhar para trás senão correria o risco de ficar cega com o brilho dos seus olhos. Pelo menos foi o que a Lídia dissera. Ou não dissera nada e eu estava imaginando isso?
Comecei então a descer. Devagar. Temerosa. O coração disparado. Nisso vi a lagartixa passar pelo corrimão de pedra e tive certeza que ela passou para sinalizar que tudo estava indo bem.
Depois de um pequeno lance a escadaria se bifurca em duas, uma à direita e outra à esquerda. Aí chega-se a um segundo patamar aonde elas continuam bifurcadas e só no último unem-se e dão lugar à uma magnífica e imponente escada de pedra, larga e ladeada por oito postes antigos. Nos cantos escuros dos degraus, alguns mendigos dormiam embrulhados em cobertores imundos e malcheirosos.
O celular tocou, deixei que caísse na caixa postal. Tocou mais uma vez. Desliguei.
Quando comecei a descer o segundo lance senti um arrepio que percorreu todo o meu corpo. Imagens desconexas começaram a aparecer diante dos meus olhos: pessoas desfocadas, esquálidas, gritando e segurando o rosto com as duas mãos. Impressionante, mas não o suficiente para me fazer desistir. À minha esquerda, uma luz muito forte foi acesa. Momentaneamente fiquei cega e cobri os olhos com a mão. O cão, lá no alto, rosnou de prazer. A luz vinha de uma casa antiga, cujas janelas, que são muitas e em vários andares, dão para a escada. Uma construção típica do começo do século XX, em um bairro, hoje considerado, de classe média baixa. O pé direito bem alto, um corredor estreito e comprido, cheia de janelas laterais. Então caí em mim e percebi que a luz não vinha da casa coisa nenhuma. Que eram apenas os olhos daquela criatura que os vidros refletiam e projetavam. Me deu vontade de olhar para trás e ver se ele havia se transformado. A julgar pela sombra, sim. Mas eu não podia fazer isso.
Depois de um segundo de silêncio o cão começou a uivar. Primeiro baixo, depois foi gradativamente aumentando. Devia ser meia-noite e meia.
O céu começou a ficar denso, pesado, e dali a pouco ia começar a chover. Pingos grossos começaram a cair, aqui e ali. E se tudo desse errado? Se as coisas não saíssem como eu havia imaginado?
Um rosnado muito alto veio de uma noite ancestral, antiqüíssima, que existia dentro de mim. Fiquei atordoada. Abaixei, peguei o caderno que estava na mochila, tirei de dentro dele o desenho e tentei protegê-lo da chuva colocando-o nas dobras do casaco. Um urro medonho estremeceu a escadaria. O cão, que até então estivera parado no topo, começou a descer os degraus. Vinha ao meu encontro. Eu via seu corpo refletido nas janelas e, olhando para elas, acompanhava seus movimentos. Ele estava perigosamente perto e eu não podia mais protelar o que tinha de fazer.
Abaixei outra vez, acendi o isqueiro e pus fogo no papel. Apesar da chuva, as chamas subiram. Enormes.
Ouvi outro urro. Mais demorado e mais próximo. O cão deu um salto no espaço, foi ficando bem maior, projetou-se pelas vidraças, cada pedaço do corpo ocupando uma delas, depois os vidros começaram a se quebrar, um a um, e os estilhaços foram caindo pelos patamares, corrimões e degraus da escada, fazendo com que os mendigos ali deitados, se levantassem depressa, assustados, e saíssem correndo.
Quando vi os cacos de vidro a meus pés, entendi que ali a coisa estava terminando. E que, talvez, eu não tivesse mais saída.
Trêmula, tirei o alfinete da camiseta e cravei no desenho em chamas, bem no meio dos olhos do cão. Um barulho ensurdecedor ecoou pelo bairro inteiro. Um barulho que vinha da terra, como se ela estivesse se abrindo. Senti um hálito quente no meu pescoço e uma gota de saliva escorreu por ele. Gritei. Alto e forte. Muito alto e muito forte.
E me virei.
No alto da escadaria Tomás segurava um revólver: pam, am, pam.
O papel terminou de queimar, a lagartixa passou rápida, abocanhou o alfinete de ouro e levou-o com ela.
Fui abaixando devagar, tremendo muito e sentei em um dos degraus. Dei um tapa com força numa poça ao meu lado. A água espirrou longe.
Tomás desceu correndo e me abraçou:
— Júlia, eu estou aqui. Vamos embora senão você vai pegar uma gripe.
Levantamos e começamos a subir a escada, tomando o cuidado de desviar do cão morto morto.
Posfácio
Quando escrevi este livro tive em mente que seriam histórias de fantasmas e que fantasmas são fantasmas e não metáforas do mal, arquétipos, ou qualquer outra coisa semelhante, como gostariam algumas pessoas ainda presas ao reducionismo que o Iluminismo trouxe e também à lamentável obsessão pela explicação, fenômeno restrito ao Ocidente.
Todos os contos têm elementos em comum e isso é proposital. Tive o cuidado, ou o capricho, de aludir às mesmas circunstânicas — tempestades, chuva — para criar um elo entre as histórias. Como se fantasmas vagassem apenas por determinados elementos. De certa forma, é verdade. Creio que só em algumas ocasiões, estamos suficentemente conectados a eles.
Mécia Rodrigues
São Paulo, 17 de junho de 2002
A autora
Mécia Rodrigues é paulistana, formada em Letras e Jornalismo pela USP. Trabalhou, entre outros lugares, para a D.P.A, Agência Noticiosa Alemã.
Fez resenhas literárias para o Diário do Grande ABC durante seis anos e escreveu crônicas para vários jornais do país através da Agência Planalto, aonde foi colaboradora nos anos 90. Também escreveu crônicas para o Jornal do Bom Retiro.
Atualmente é editora do Jornaleco: www.jornaleco.vpg.com.br
Tem os seguintes livros publicados:
Estrela Vulgar a Vagar, poesia, RG Editores, 1999
Délhi-Desejo, romance, RG Editores, 1999
Vista para a baía de Hong Kong, Editora Traço, novela, 1992
e-mail para contato: jornaleco@terra.com.br
O ilustrador
Serjo Robert é carioca, artista plástico, trabalhou em todas as áreas de artes gráficas.
e-mail para contacto: jornaleco@terra.com.br
©2002 — Mécia Rodrigues
jornaleco@terra.com.br
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
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Junho 2002
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