KOREAEBOOKDOCUMENT1.3.0 O Segredo do Duende Filipe Marinho de Brito eBooksBrasil eBooksBrasil ;para.xml capa.jpg normal.sty para.xml * smaller.sty small.sty normal.sty + large.sty
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O Segredo do Duende
Filipe Marinho de Brito
Edição
eBooksBrasil
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Fonte Digital
Documento do Autor
Copyright:
© 2001 Filipe Marinho de Brito
filipeu@uol.com.br
ÍNDICE
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O Autor
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Capítulo I – Minha Família e eu
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Capítulo II – O Início
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Capítulo III – A Viagem
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Capítulo IV – Enfim, Chegamos
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Capítulo V – O Verdinho Começa a Aprontar
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Capítulo VI – Que Noite!
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Capítulo VII – Na Caverna Encantada
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Capítulo VIII – Sobrou Pra Mim
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Capítulo IX – A Pedra do Desejo
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O AUTOR
Filipe Marinho de Brito, natural do Rio de Janeiro, reside em Goinia, á Rua Serra dos Javaés, Quadra 10, Lote 22, Cj. Sonho Verde – CEP: 74-730-550 – Telefone: (0xx62) 284-0317 – e-mail: filipeu@uol.com.br. Atualmente, freqüenta o 2o. ano secundário, no Colégio Militar de Goiás.
Jardim de Infncia
– Colégio Sagres, no Rio de Janeiro. Destacava-se como o melhor aluno da turma. Entusiasta em tudo o que fazia, era geralmente o líder em seu grupo.
Iniciação Esportiva
: começou a fazer jud no Convento dos Capuchinhos, no Rio de Janeiro, aos quatro anos de idade. Ganhou vários troféus, em competições naquela cidade.
Primário
: Colégio Sete de Setembro, em Caldas Novas – GO. Veio para Goiás com sua família que se mudava do Rio de Janeiro devido a injunções políticas. Não sofreu descontinuidade no ensino, porque o Colégio Sete de Setembro tem excelente direção e bons professores. Ficou muito amigo e gosta muito do Prof. John Woody Jr., o Prof. J, como é conhecido, e da Prof. Lygia, esposa deste. Estudou, ainda, no Colégio do Prof. Pedro, o Colégio Anglo Jr, do qual não esquece do Maracapó, o campo de futebol em terra batida e onde a poeira era tanta que, vez por outra, o jogo tinha de ser interrompido para que os jogadores pudessem deixar a poeira assentar a fim de poderem ao menos se enxergarem.
Em Caldas Novas freqüentou todos os clubes e ficou amigo de quase todos os donos deles. No Priv de Caldas fez jiu-jitsu com o Professor Paulo, participou do Primeiro Tornei de Jiu-jitsu de Caldas Novas, onde ganhou medalhas. Também disputou natação pelo clube e ganhou medalha em primeiro lugar. Foi a partir dos treinos com o prof. Paulo, um excelente instrutor de artes marciais, que o autor ganhou gosto pela luta de solo.
Primeiro Grau
: veio para Goinia em 1995, janeiro. Estudou inicialmente no Colégio Máximo, depois fez concurso para a Escola Emmanuel, foi aprovado e está cursando ali o primeiro grau. Gosta muito da escola e tem bons amigos lá. É “caxias” ao extremo e os colegas confiam muito nele, quando tm de apresentar trabalhos em grupo.
Amigos Marcantes
: além dos já citados, marcou muito a amizade que fez com o dono do Hotel Parque das Primaveras, em Caldas Novas, o Eng. Rodolfo Rohr. Este adotou-o como sobrinho postiço e ambos fizeram uma amizade muito forte. As histórias contadas por Rodolfo, quando andou perambulando pelo Brasil a fora e descobriu as águas quentes, em Goiás, incentivaram a cabecinha fértil do menino. Rodolfo, por sua vez, dá-lhe presentes sempre úteis, como um microscópio que por uns tempos fez que o autor virasse cientista louco. Foi a época de terror para aranhas, formigas, moscas, baratas, sapos e quantos mais caissem sob seus olhos.
Esportes
: nunca deixou de querer fazer jiu-jitsu e tanto pediu que seus pais procuraram a academia do Prof. Hugo Nacamura. Agora, o autor é aluno de Mestre Hugo. Gosta muito dele e se esforça para ser um campeão. Andou ensaiando capoeira e karat, mas desistiu. Gosta mesmo é de “luta de cachorro” (modo como um prof. chins de TAI-CHI definia as lutas de solo).
Cultura Geral
: o autor é muito versátil. Pena que o tempo não chega para tudo o que quer fazer. No momento faz canto coral, na Escola Veiga Valle, como integrante do grupo CORAL PEQUENAS VOZES. Além disto, também faz iniciação musical na mesma escola. Esteve aprimorando sua natação, no ano passado, na Faculdade de Educação Física de Goinia. Não continuou este ano por absoluta falta de tempo.
Pais
: Psicólogos, dramaturgos e romancistas, os pais de Filipe sempre foram incentivo primordial para seu apego ao conto e às lutas marciais. Seu pai escreve romances que l para os filhos, quando não está lendo livros de outros autores. Isto sempre incendiou a imaginação tanto dele quanto de sua irmã, Suzana Marinho de Brito.O primeiro romance de grande porte que ouviu foi O FORTIM, de S. Paul Wilson. Foi um marco impressionante. Não conseguia dormir pensando no monstro do romance – Molasar/Rasalom. Depois deste, seguiu-se uma coleção de romances publicados para jovens em sua idade e até mesmo em idade mais avançada. Isto tudo contribuiu para que resolvesse seguir as pegadas de seus pais e colocasse suas fantasias em forma de livro.
Goinia, 05 de junho de 1997
O SEGREDO
DO DUENDE
Filipe Marinho de Brito
CAPÍTULO I
MINHA FAMÍLIA E EU
Creio que é preciso que eu me apresente e a minha família, porque ficará mais fácil entender minha aventura estranha. Chamo-me Eduardo, tenho quase 12 anos e sou um típico morador de apartamento em São Paulo. Minha família é da chamada classe média alta, embora, com a situação do país, sei não.
Tenho uma irmã que me torra a pacincia, e é mais nova que eu 2 anos. E tenho um irmãozinho de 4 anos, o quindim de meus velhos. Meu pai é comerciante – tem um negócio de alimentação a quilo e minha mãe o ajuda no restaurante. Não vivemos mal, não. Eu estudo num colégio muito legal, com muitas menininhas que já não são tão apegadas a bonecas, mas que adoram
bonecos
, se me entendem. Eu sou meio tímido e não sei namorar, por isto meto a cara nos livros e me dou mal com a galera. Me chamam de c.d.f. – que eu não sabia o que era e, agora que sei, preferia não saber. Sou branquelo, magrelo e de cabelos arrepiados. Por mais que faça, o danado não assenta na cabeça. Parece que eles e o meu couro cabeludo andam de turra desde que nasci. Para piorar minha auto-estima já esfarrapada, eu tenho sardas por todo o corpo. Na parte que a roupa cobre eu não me importo, mas no rosto e nos braços... bem, as sardas são minha tortura. E pensam que a coisa pára por aí? Enganam-se. Eu sofria de rinite alérgica, aliás, quem não sofre morando numa cidade que é campeã em poluição aérea? Minha família toda tem alegria. Meu irmãozinho é alérgico a leite, a lã, a pó e a frio. Eu sou alérgico a pó, a tinta de qualquer espécie, a perfume, a cnhamo e a alguns temperos. Um dia peguei meu pai confessando a minha mãe que temia que eu viesse a me tornar alérgico a rabo-de-saia. Aquilo me chateou de verdade. Acho que é porque minha irmã já anda toda assanhada atrás de seu
boneco
, enquanto eu ainda não consegui me deixar ser o
boneco
de nenhuma. Eu não sei como dizer isto, mas fico todo sem jeito quando uma menina engraçadinha se aproxima de mim. E se ela fr bonita, aí mesmo é que o caldo entorna.
Eu fantasio muito. Sou um super-herói em minhas fantasias, mas na realidade sou um fracasso. Este ano, para piorar minha desdita, entrou pra minha sala de aula um menino muito bonito. Tem minha idade, só quatro meses mais velho que eu, é moreno, olhos negros, cabelos negros, corpo proporcional e forte, pois faz karat.
Bom, eu disse que sou tímido e fujo de meninas bonitas, mas isto não me impede de sonhar com a Mirna. Ela é a coisinha mais engraçadinha que eu já vi na vida. Tem umas bochechas rosadas, cabelos encaracolados e castanhos-claro. É branquinha, mas não uma
banana descascada
como eu. Tem um narizinho arrebitado que é uma graça. Mãos e pés rechonchudos e é muito bem proporcional de corpo, ao contrário da Anabela que é uma gordinha batatuda. O que eu mais gosto na Mirna são os olhos caramelados. Eles olham todo pra gente. Quando digo todo, quero dizer que os olhos de Mirna olham pra gente de frente, firme e sem malícia. Acho que ela é um pouco parecida comigo. Gosta de brincar de boneca, de pular-corda, de pique-esconde e de pular amarelinha, mas não é nem um pouquinho preocupada em encontrar aquele que vai ser o seu
boneco
. Ela é uma menina menina, enquanto as outras são meninas metidas a mulheres. Estas, quando olham pra gente, tm um qu esquisito, malicioso no olhar. Acho que é tudo culpa da televisão. A Mirna, não. Ela tem a inocncia teimosa da criança que as telenovelas ainda não envenenaram.
Há muito tempo que eu penso e repenso num modo de me aproximar de Mirna, mas esta minha timidez é um porre. Toda vez que eu chego perto dela e ela me olha com aquele olhar de
que é que voc quer
? eu fico entupido. Eu acho que não tenho vergonha dela, não. Tenho vergonha é do que eu penso. Gostaria de contar isto a alguém e perguntar se estou certo, mas o diabo é que tenho vergonha de falar de meus sonhos. Isto não é um porre?
Pois muito bem, Mirna caiu nas graças do Bruno, o tal menino porreta do karat. O intrometido anda todo assanhado pro lado dela e eu morro de ciúmes e de... de medo. Tenho uma vontade danada de amassar o nariz do infeliz, mas quando penso no meu próprio recebendo uma karatecada no lombo, desanimo. Um dia destes dei uma narigada na quina da mesa. Diabo, como doeu! Imagine eu levando uma porrada firme do punho do Bruno. Nem consigo pensar. Mas eu me vingo é à noite, quando estou na segurança de minha cama e sob os lençóis branquinhos e cheirosos que me cobrem. Aí, sim, dou cada surra no Bruno que é de meter inveja ao Bruce Lee.
Apesar de meus complexos, tenho uma vantagem: sou melhor que o Bruno em todas as matérias. Minhas notas nunca desceram a menos de oito, enquanto as dele não conseguem passar do seis. Mas esta vantagem não é grande coisa, pois me borro de medo de dar cola. Vai daí que meus colegas me acham metido a besta e esnobe. Dizem que eu não coopero com ninguém, mas não é isto. Eu não consigo dar cola porque tenho sempre a impressão de que a professora tem mil olhos e eles estão todos grudados em mim durante uma prova. Mas como é que eu vou dizer isto pr’aquelas toupeiras? Eu não sei explicar em palavras o que sinto sem me achar ridículo e, por isto, sou o antipático da sala. Todos me evitam e as meninas, quando podem, me dão lingua e fazem careta. Fico emburrado e acho que faço cara feia, o que piora sensivelmente as coisas pro meu lado.
Semana passada aconteceu um incidente horrível. Recreio é a coisa mais esperada na sala de aula por todos, menos por mim. Não me aceitam no
foot-ball
porque sou um tremendo perna-de-pau. Não me aceitam no basquete porque não dou uma dentro. A turma diz que se o aro fosse do tamanho do pneu de uma jamanta eu, ainda assim, ía errar a bola com certeza. Acho que é exagero deles, mas não tenho como provar porque não há aros deste tamanho...Ou há? Eu nunca vi um assim. A turma também não me aceita no pique esconde porque me acha desajeitado e grande demais para me esconder. Não pulo amarelinha porque vão-me chamar de mariquinhas. Bem, o certo é que eu me sinto um peixe fora d’água no recreio. Pois bem, semana passada aconteceu um incidente horrível. Eu vinha correndo pelo corredor das salas do andar de cima. Quando cheguei bem na descida da escada dei um bruto esbarrão no Bruno que vinha subindo por ela. O desgraçado desceu rolando até lá embaixo. Eu devo ter ficado mais amarelo que manga madura. E se o Bruno tivesse quebrado o pescoço?
Juntou um monte de garotos e garotas em volta dele. No chão, o Bruno se torcia e gemia, segurando o braço. A inspetora e quis saber o que tinha acontecido. Aí, eu não sei por qu, os garotos me apontaram dizendo que eu tinha empurrado o coitado escada abaixo. Fiquei tão espantado que não consegui falar nada. Fui levado para a Diretoria e me deram tremenda reprimenda. Caí nos olhos de raiva e de vergonha de mim mesmo, por não saber me defender. Íam-me dar uma baita suspensão, quando, para minha surpresa, o Bruno, que teve o braço esquerdo destroncado na queda, me defendeu dizendo que eu não o tinha empurrado. Ele escorregara e rolara a escada sozinho. Como eu estava chegando junto dele no momento do escorregão, os outros meninos tinham pensado que eu havia dado um empurrão nele. Aí, vieram os pedidos de desculpas da Inspetora e da Diretora. Ligaram para o “seo” Álvaro, meu pai, e desdisseram tudo o que haviam dito, antes.
Pasmo, fiquei olhando nos olhos do Bruno sem saber o que entender daquilo. Eu pensava que ele não me tolerava tanto quanto meus outros colegas, mas se isto era verdadeiro, então, por que me defendera quando todos estavam a me acusar? Era a oportunidade dele se vingar de mim. Na última prova, de matemática, ele estava no sufoco e me pediu cola. Eu fiz que não tinha ouvido e não dei nem um espirro. O coitado tentou de tudo, mas eu não me movi nem para coçar o pé. Saí mais duro que cassetete de policial em briga no Pacaembu.
Bruno me olhava como se eu não estivesse ali em sua frente. Não sei porque eu me senti uma barata. Também não sei explicar porque me sentia envergonhado e raivoso ao mesmo tempo. Raivoso contra o Bruno, mais do que contra os amigos-da-onça que me apontaram para a Inspetora como o culpado de um acidente proposital.
A partir daquele dia, entrar em sala de aula era uma tortura. Agora, os mil olhos não estavam na professora em dia de prova, não. Estavam espalhados pela sala, os miseráveis. E só olhavam para mim.
Anteontem aconteceu uma coisa estranha e...dolorosa. Eu sento na quarta carteira da fileira da esquerda. Pois bem, anteontem, aula do professor de portugus, o mais caxias que eu já vi, cheguei atrasado e entrei em sala tropeçando nos calcanhares. Quando fui sentar senti uma dor danada no traseiro. Dei um pulo e soltei um grito inesperado. O professor me olhou de cara feia e disse: “Além de chegar atrasado voc ainda me perturba a aula? Sente-se e fique de boca fechada, senão eu o mando para a Diretoria.” Enquanto eu gaguejava um “sim, senhor” estropiado, passei a mão pelos fundilhos e encontrei uma tacha cabeçuda enterrada na minha bunda. Arranquei a peste fazendo uma careta de dor. Pois não é que o professor pensou que eu o estivesse careteando? O homem ficou vermelho como uma cereja madura e deu um berro para cima de mim que num instante eu esqueci da dor no traseiro.
Bom, isto sou eu e minha família... Acho que falei demais de mim e esqueci de falar de minha irmã e de meu irmão caçula. Bem, minha irmã, como eu já disse, enche minha pacincia e se eu pudesse botava a danada dentro de um saco de lixo e deixava o caminhão levar. Mas não posso, né? Ela me dedura toda vez que eu estou torturando as bruxas dela. Há coisa de uns trs dias eu estava assando devagarinho a Barbie só pra ver como é que ela ía ficar depois de um calor brabo. A boneca já estava começando a ter a cara encompridada e ía ficando muito gozado. Um olho veio parar perto do nariz e este, caiu sobre a boca. A boca, por sua vez, ficou troncha e a Barbie de bonitinha estava ficando uma diaba. Eu ‘tava me divertindo à bessa e já imaginava a cara de babaca que o Dr. Ken ía ficar quando desse com a namorada dele toda torta e aí minha irmã chegou. Foi o diabo, cara. A pestinha botou a boca no mundo. Berrou como se eu estivesse pregando o pé dela no chão a marteladas. Minha mãe veio pra cima de mim como uma arara e eu tive de agüentar uns puxões de orelhas daqueles. Tenho a impressão de que quem está troncho, agora, sou eu. Minha orelha direita ainda me dá a impressão de que virou uma batata no lado de minha cabeça. Eu não sei porque a Laís gritou tanto. Afinal de contas, ela tem cinco Barbies. Não custava nada deixar eu fazer algumas experincias com uma delas, não é? É bem verdade que quando ela pegou meu carrinho de plástico e sentou o Jumbo de madeira que lhe deram de presente no seu aniversário em cima dele fazendo com que ficasse amassadinho, amassadinho, eu danei. Falei, chorei, esperneei e ela terminou tomando uma reprimenda do papai e ficou sem ver a novela das seis – ela é apaixonada por aquelas baboseiras idiotas – por uma semana. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu só tenho dezoito carrinhos e nenhum deles é igual ao outro. Não posso perder um, mas ela pode perder uma Barbie. São todas iguais, ora bolas!
Tá, tá bom, vocs acham que eu sou egoísta, não é? É, vocs e meus pais tm a mesma opinião. Mas eu não ligo. Acho que estou certo e tenho certeza de que estou certo e pronto. Pra falar a verdade, não sei porque na família da gente nascem meninas. Seria bem melhor que só nascessem nas famílias dos outros. Principalmente na família de meninos bestas como o Bruno. Eu ía adorar saber que ele tinha uma irmã danada como a que tenho. Bem, mas chega de irmã. Não vou dar cartaz a ela falando dela deste modo.
Agora, deixem-me falar do Júnior. Tem só quatro anos, mas eu gosto muito dele. É meu companheiro para brincar com os carrinhos e leva cascudos meus sem chiar como faz a peste da minha irmã. Outro dia eu resolvi que ele era o Robin e eu, o Bat-Man. Nos fundos do condomínio onde moramos há uma jaqueira deste tamanho. Eu peguei uma corda e amarrei num dos galhos da jaqueira e a outra ponta eu amarrei na cintura do Júnior. Aí, subi na jaqueira e fui para outro galho. Então, puxei o Júnior para perto de mim e combinei que ele ía voar até o outro lado. Ele ficou muito contente. Aí, eu soltei ele, mas acho que a corda era de borracha, pois o Júnior, em vez de passar voando acima do chão, enterrou o nariz na areia e sumiu. Eu só fiquei vendo as pernas dele se agitando no ar. Puxa vida, nunca mais vou esquecer da surra que tomei de meu pai.
Mas o Júnior também apronta pra cima da Laís. Na semana passada, era perto de duas da manhã, ele ps todo mundo em polvorosa. De repente, sem mais aquela, ele pulou da cama gritando feito um condenado e correu pro quarto de nossos pais. A Laís acordou assustada e também saiu gritando atrás dele. Nossos pais acordaram assustados e vieram socorrer os dois. Pensavam que alguma coisa horrível tinha acontecido com o Júnior e a Laís e mamãe quase teve um troço no coração. Quando tudo se acalmou e papai quis saber porque o Júnior estava gritando, ele disse que tinha tido um pesadelo. Quando perguntaram à Lais se ela também tinha tido um pesadelo ela respondeu que não, que acordou com os berros do Júnior e como ele corria e gritava, ela também saiu atrás gritando de medo do medo dele.
Papai é novo. Tem só quarenta anos. Gosta de uma pelada e de empinar papagaio. Fora isto, gosta de fazer passeios pela mata. Já minha mãe é pacífica dona de casa. Nada muito bem e quando não tinha a gente com ela, conta que chegou a ser campeã de natação pelo Palmeiras.
Muito bem, acho que já dá pra conhecer a gente. Somos assim. Como bons membros da grande família paulistana trabalhadora, vivemos apavorados com a violncia que assola nossa cidade.
Eu gostaria de fazer uma luta marcial, como o Bruno, mas como sou alérgico a poeira e nas academias há muito disto, meus pais se recusam a me matricular em uma delas. Assim, passo meus dias somente sonhando que sou um irmão mais forte do Bruce Lee.
Bom, acho que chega de nós. Vamos ao que eu estou doidinho pra contar. Juro que não é invenção minha, até porque não sou muito de inventar coisas, não. E não invento porque não sou um bom mentiroso, sabem? A gente, para mentir, tem de ter uma memória de elefante e eu tenho a minha igual à de uma minhoca. Se inventasse alguma história agora, daqui a dois dias eu não ía mais saber contar a mesma história. Por exemplo: se tivesse um cachorro doberman na minha mentira na primeira vez que eu a contasse, é certo que o desgraçado apareceria como um gatinho manhoso e malhado na segunda versão. E como eu já quebrei a cara com uma mentira deste tamanho e passei uma vergonha de lascar, jurei que nunca mais ía mentir. É por isto que posso afirmar com todo o coração que o que vou contar não é mentira, não. Mesmo quando falar das coisas que me ferem e em envergonham, juro que falo a verdade. Vocs acreditem se quiserem. Eu não me importo.
CAPÍTULO II
O INÍCIO
Hoje é um dia muito especial. Vai haver uma gincana no meu colégio. Eu participo do campeonato de xadrez. Neste jogo sou o melhor, mas estou um tanto medroso porque vamos disputar com cinco colégios e eu soube que as equipes deles são muito boas.
Em casa mamãe fala pelos cotovelos. Está muito eufórica, acho que lembrando dos tempos em que ela disputava campeonatos de natação. Meu pai tenta me infundir calma e coragem, mas eu acho que ele não está conseguindo muito, não. Mesmo assim, estou confiante, embora meu coração teime em ficar fora do peito e batendo na goela. Eu desconfio que ele é que é o maior covardão dentro de mim.
A Laís está toda faceira. Ela vai cantar no coral e vai apresentar um número de dança. Minha irmã gosta muito de sapateado, sabiam? Pois é. Ela tem pés de mola, gente. Quando começa a fazer trac-trac com os sapatos no chão, eu fico me lembrando do Pinóquio quando ainda não era gente.
Bom, finalmente, depois de muita bronca por causa dos dentes que mamãe sempre acha que nós não escovamos direito e nos impõe uma segunda sessão de esfrega-esfrega das escovas nos coitados, lá vamos nós para o automóvel. Aí é a vez do papai danar. O carro, diz ele, está uma lixeira. Tem papel de bala por todos os lados e pelo do Teimoso até no teto. Quem é o Teimoso? Ora, nosso cãozinho de raça indefinida. É peludo, amarelo, com cara de sem-vergonha e que usa uma orelha de pé e a outra deitada. Laís está no colo de mamãe que vai dando os últimos retoques nos cabelos dela – eu acho até um exagro, pois a diabinha está muito bem penteada, sim senhor – enquanto papai reclama que lugar de criança é no banco de trás e diz que mamãe está arriscando ele levar uma multa por causa da Laís.
Sabem o que eu acho? Eu acho que minha família tem mais boca do que outra coisa. Como falam, p! Tem horas que minhas orelhas ficam cansadas só de ouvir o falatório deles.
Afinal, chegamos. Tem carro pra todo lado no estacionamento e meu pai sua para encontrar uma vaga. Vai à frente e dá uma trombada na traseira de um felizardo que já está estacionado. Depois, vem de costas e dá uma bundada no parachoques de outro infeliz. Finalmente, depois de muita reclamação e irritação – que ele desabafa dizendo palavrões que se fosse eu teria as orelhas avermelhadas na hora –, nosso automóvel consegue espremer-se no espaço que sobrou.
— Estamos com sorte, Álvaro – diz mamãe alegremente. – Veja lá! Aquele coitado não conseguiu vaga e vai ter de deixar o carro aberto para poder ser empurrado pra frente e pra trás, pelo guardador. Eu detestaria que fssemos obrigados a fazera mesma coisa.
— Eu também – ironiza o papai. – Detesto ficar empurrando o carro dos outros.
— Ora, voc me entendeu! – exclama a mamãe, de bom-humor.
E aí começa uma coisa que eu detesto. Mamãe se gruda na gente. Parece até querer-nos colocar debaixo das suas saias.
— Laís! D a mão ao seu irmão. Não se separem. É perigoso. Lembrem-se que há bandidos roubando crianças para médicos sem escrúpulos extrairem seus órgãos. Júnior! Onde voc vai, menino? Volte aqui, Júnior! Se não se comportarem eu juro que volto para casa daqui mesmo e não tem mais diversão, estão entendendo?
Não sei porque aquele falatório todo, pois estamos juntos, ora. O Júnior não é besta de se perder novamente. A última vez que ele fez isto foi lá em São Conrado, no Rio de Janeiro. A praia estava atulhada de banhistas e o pestinha de meu irmão saiu catando conchas e desapareceu. Eram as dez horas da manhã e nós só fomos encontrá-lo às 16h. Mamãe chorou tanto que eu acho que o mar subiu trinta centímetros de tanta lágrimas. Agora, depois que tudo passou, ela deu umas tremendas chineladas no bum-bum do mano. Não entendo. Se estava com raiva dele, como é que ficou chorando e gritando “eu quero o meu filhinho”? Eu, quando estou danado da vida com alguém, quero mais é que leve a breca, ora essa.” Mas mãe é mesmo um bicho esquisito. Puxa nossas orelhas até quase arrancá-las e diz que é pro nosso bem. Eu, hein! Que bem mais besta, rapaz. As minhas, cara, quando eu fr adulto, vou ter de mandar consertar, pois de tanto levarem puxões vão ficar mais ou menos do tamanho das orelhas do Dumbo. O que me irrita mesmo é que eu sou quem mais apanha, lá em casa. Minha irmã é a bonequinha mimada. Faz tudo muito direitinho, anda sempre certinha e é o tempo todo admiradinha... Que merda! Se eu tivesse mais coragem e não temesse encontrar os tais médicos ladrões de órgãos, já tinha-me mandado lá de casa só pra castigar os meus pais. Mas como o mundo anda mesmo às avessas, é melhor ficar quieto e agüentar o tranco. Afinal de contas, pesando prós e contras, meus pais tm saldo positivo comigo. Não são como os pais do Fernando, outro colega meu de sala de aula. O pai bebe feito um gambá e a mãe vive reclamando de tudo. Ele, sim, é um azarado de ter tido pais daquele tipo. Quando o velho dele chega porrado, a primeira coisa que faz é meter uns cascudos na cabeça do coitado. O Fernando, eu acho, tem tantos galos debaixo dos cabelos que o barbeiro deve se recusar a lhe cortar a juba. Creio que é por isto que ele usa aquela cabeleira piolhuda e desalinhada.
E por falar nele, olha só quem vem lá! É o próprio. Rapaz, está irreconhecível! Tem roupas e sapatos novos e os cabelos, quem diria, foram cortados. O carão vermelho do pai dele, hoje, está mais vermelho do que nunca. Acho que já entornou uns gorós que é pra poder agüentar a emoção de ver o filho se danar na corrida de sacos.
Ei, cad meus pais? MÃÃÃÃEEEEE!!! Onde está voc? Aí, meu Deus, eu perdi minha mãe... MAMÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃEEEEEEEEEEE!
— Que gritaria é essa, garoto? Nós estamos aqui atrás, comprando pipoca!
Graças a Deus é a voz dela. Eu prefiro ficar levando puxões de orelhas a vida toda a me perder desta mulher, cara. Eu juro! O que faria sem ela em minha vida? Nada, ora essa. Ela enche o saco, é verdade, mas me protege como ninguém e isto é muito gostoso.
E lá vamos nós todos de mãos dadas para o meio da balbúrdia, da gritaria, da correria da petizada e pelo meio de um milhão de bandirinhas coloridas. Encontramos com Da. Zica, a professora de Cincias. Ela cumprimenta meus pais e me olha nos olhos. “Pronto, é agora. Ela vai dizer a eles que eu não sou muito bom na matéria dela, a desgraçada!” Mas não é nada disto o que acontece. Da. Zica passa a mão pelos meus cabelos e diz:
— Edu, eu vou torcer por voc! Mas se perder, não tem importncia,entendeu? O que vai valer é a sua disputa. Lute duro. Não d mole para seus adversários.
E não é que a Da. Zica é uma coroa legal, gente? E eu que sempre achei que ela era uma bruxa velha... Acho que vou aprender a gostar da velhota.
Entramos no colégio. ‘Tá uma confusão dos diabos, cara. A gente não se entende. Meus pais estão preocupados em conseguir lugares para sentar. Alguém me pega pelo ombro e me arrasta para o meio dos que formam a equipe de xadrez. Quando fico sem meus pais a coisa fica preta. Toda a coragem se esvai como garoa quando vem o sol. Somos levados para um lugar privilegiado e dali podemos não somente ver a platéia – é enorme e eu fico pensando que nunca mais vou ver meus pais. Eles estão perdidos lá naquele mar de gente – como podemos assistir às competições. Mas eu só consegui assistir a quatro delas. A corrida com obstáculos, em que nosso colégio ficou em terceiro lugar. O cabo de guerra, onde o Bruno foi o destaque e praticamente ganhou sozinho o primeiro lugar (e eu morri de inveja por isto). E, finalmente, a corrida de bicicleta, onde ficamos com o primeiro e o quarto lugares. Aí nós fomos levados para o salão onde estavam as outras equipes e eu terminei por me ver tão envolvido na disputa que me desliguei do resto. O tempo foi passando e eu ganhei na primeira e no segunda chaves. Depois ganhei a terceira e fiquei pronto para a semi-final. Foi quando notei que estava com muita fome e vi no relógio que eram as 13h. Graças a Deus os juízes resolveram dar um intervalo. Saímos direto para a cantina e eu pedi um bauru com um refrigerante. Enquanto esperava, chegou um dos meninos que haviam jogado contra mim e perdido. Tinha sido uma disputa acirrada e com uma torcida muito forte a favor dele. Era um menino moreno, parrudão e com cara de poucos amigos, que já foi chegando e me provocando. Ele me deu um encontrão e me fez deixar cair o copo de refrigerante. Eu reclamei e o cara me deu um empurrão violento. Desta vez, caiu o meu bauru no chão. Eu olhei para ele fulo de raiva, mas ele táva mais fulo que eu e me disse:
— Vai encarar, vai?
Fiquei sem saber o que fazer. Ah, se papai estivesse ali... Mas eu estava sozinho, cara. E de repente o menino parecia dez vezes mais forte que o próprio Maciste. Para piorar a história, juntaram-se a ele mais quatro, todos do mesmo colégio – o dele – e começaram uma zorra dos diabos, me chamando de maricas e outras coisas que não vou contar nem que me capem. Gente, eu sentia as pernas tremendo tanto que pensei que ía cair. E agora, o que eu ía fazer? Estava encurralado contra o balcão, sem saída. Meus olhos buscavam alguém que pudesse me socorrer, quando viram minha adorada Mirna. Ela vinha correndo para o balcão em companhia de mais duas meninas, uma delas a Laís. Mirna me viu e foi a primeira a me apontar para a Laís. Minha irmã veio em nossa direção, mas estacou assim que viu em que camisa de onze varas eu estava metido.
— Ei – gritou a Laís – o que vocs estão fazendo com o meu irmão?
— Cai fora, boboca! – rugiu o menino Maciste. – Cai fora senão eu te dou uns cascudos!
— É isso aí! É isso aí! – gritaram em coro os outros imbecis.
— Eu vou chamar o papai! – disse a Laís e se voltou para correr em busca de socorro, mas um dos atentados foi mais rápido e arrastou ela e a Mirna para perto de mim. Agora, éramos trs em apuros e o pior era que de homem só tinha eu... Na verdade, creio que eu era somente um quinto de homem, pois eles eram cinco.
O garoto começou a dar cascudos na gente e eu não sei quem começou a chorar primeiro, se eu ou se as meninas. Foi quando ouvi a voz autoritária do Bruno dizendo:
— Larguem eles! Larguem, ou vão-se haver comigo.
Os cinco arruaceiros se viraram contra o meu detestado parceiro e tentaram dar cascudos nele também. Aí a coisa ficou preta pro lado dos atentados. O Bruno danou a distribuir ponta-pés a torto e a direito e o berreiro logo veio dos garotos, todos rolando no chão e se contorcendo. O Bruno pegou o Maciste pelos cabelos e disse:
— Voc vai pagar o bauru e a bebida dele, está entendendo?
— T, t, eu pago, eu pago. Me larga! – gritava o valentão com os olhos cheios de lágrimas.
— E vai pagar também pra mim e pr’as meninas – ordenou o Bruno.
Os carinhas da outra escola trataram de se coçar e pagaram tudo o que a gente pediu. Eu me impanturrei de verdade. Mas aquela comida eu comia era de raiva. E não era só raiva dos meus agressores, não. Era raiva também do Bruno que virara herói para a minha musa encantada.
Ganhei o campeonato de xadrez e tive torcida até do Bruno, para o meu desgosto. Já não bastava ter sido humilhado por ele, agora ele vinha torcer por mim? Era demais! Pelo menos era o que eu pensava, mas o pior estava para vir. Nossos pais se conheceram, os meus, os de Mirna e os do Bruno. Fizeram uma festa porque cada um de nós, seus filhos, foi campeão na modalidade em que tinha competido. Mirna fazia ballet e deu um show no Lago dos Cisnes. Laís foi aplaudida de pé com o seu trac-trac sem graça e o infeliz do Bruno bateu em todo mundo e ganhou a copa de karat-do.
Apesar de eu ter sido também campeão, ele é que tinha a maior torcida junto das meninas. Para o meu desespero, Mirna era toda
chocolate derretido
pro lado do desgraçado. Aquilo é que dava os outros colégios só terem mandado uns bananas podres para lutar contra o Bruno. Não tinha tido um que tivesse sido capaz de abaixar o topete do infeliz. Dali em diante o dia perdeu a graça, pois aonde a gente ía, lá íam também os pais do Bruno e ele junto. Por mais que eu torcesse para que ele se perdesse no meio da multidão, o peste não desgrudava da gente.
Dei graças a Deus quando tudo terminou e a gente veio pro carro. Mas aí, o carro enguiçou. Ficava somente no rom-rom-rom e não saía do lugar. Todo mundo já estava se retirando e nosso carro teimava em ronronar como uma gata no cio, mas não pegava, o desgraçado!
— Vamos empurrar – disse meu pai, colocando a mamãe na direção e descendo conosco para fazermos força. Eu estava amaldiçoando o automóvel por nos fazer de trouxa, quando, vejam que droga, a família do Bruno vinha passando no carro deles. Ao nos verem naquela entaladela, pararam e se ofereceram para ajudar. Mas eles também entendiam tanto de carro quanto eu de parto e só fizeram acrescentar mais barulho à confusão. Finalmente o pai do Bruno se ofereceu para nos dar uma carona. Meu pai deixaria o automóvel no estacionamento e, de casa, pediria o socorro de um reboque para levar o merdão para a oficina. E lá fomos nós aboletados como sardinha em lata no carro do pai do Bruno. Aquele não era mesmo o meu dia, estão vendo?
Foi a partir daquele dia que nasceu uma amizade muito forte entre nossos pais. Passamos a freqüentar os mesmos clubes, a ir às mesmas festas – quando as crianças podiam ir juntas –, ou a ficarmos todos num mesmo lugar, quando só os adultos tinham direito de se divertir.
Os pais do Bruno eram muito amigos dos pais de Mirna e estes logo, logo, vieram integrar o grupinho alegre.
Só eu é que não estava nada contente com aquilo, pois via a Mirna continuar toda
chocolate derretido
pro lado do desgraçado tarado do karat. Confesso que comecei a detestar a idéia de nos encontrarmos com eles. Detestava até mesmo o encontro com os pais de Mirna, pois era um tormento ver como ela ficava que ficava pro lado do monstro.
Aí, um dia em que estávamos sob a barraca de praia lá em Guarujá, os pais do Bruno tiveram a idéia que nos enroscou todo numa aventura de arrepiar.
Ele começou falando que conhecia um lugar muito bonito, chamado Chapada dos Guimarães. O tal lugar ficava lá pras bandas de Cuiabá, em Mato Grosso. Ele pintou o lugar com tantas cores bonitas que meus pais se assanharam todo para irmos até lá na companhia deles, nas próximas férias.
Era só do que se falava lá em casa, a partir daquele fim de semana.
CAPÍTULO III
A VIAGEM
Finalmente chegaram as provas finais. Eu já estava aprovado há muito tempo
e o Bruno teve de suar a camisa para não pagar vexame e ficar em recuperação, o que teria jogado tudo por água abaixo.
Eu não dei nenhuma mãozinha a ele. Estava ainda muito despeitado e rancoroso porque ele havia sido o escolhido para servir de
boneco
para a Mirna. Pelo menos era assim que eu via as coisas. O que mais me enfezava era que o Bruna parecia não ligar muito para minha ranzinzice. Ele se virava como podia e ía em frente, apesar de toda a minha torcida em contrário.
O dia da viagem amanheceu chuvoso e frio. Eu estava com uma preguiça danada e não queria sair da cama de jeito nenhum. Por mim, todo mundo adiaria a viagem para quando o sol estivesse mais atentado e nos desse uma manhã mais quente, mas ninguém concordava comigo, exceto, é claro, meu irmãozinho, mas este ía dormindo mesmo.
Como sempre, era aquela correria e aquela balbúrdia. Onde está minha escova de dentes? Quem pegou a escova de cabelos? Edu, onde foi parar os chinelos de seu pai? Quem mexeu no tubo de pasta de dentes e deixou destampado? Gente, não vão esquecer dos casacos de frio. Dona Ana, a mãe do Bruno, disse que lá na chapada a temperatura muda bruscamente. Desce dos trinta graus aos dois ou trs em pouco menos de noventa minutos. Laís, coloque suas bonecas mais preferidas. Nada de levar tudo, não. A gente vai andar muito por lá e não temos tempo de... Larga de minha saía, Piunga! (Piunga é o apelido de meu irmãozinho). Álvaro, me ajuda. Faz a aveia do Piunga, bota ele pra escovar os dentes e dá o mingau pra ele comer. Edu, voc não vai levar este carro de controle remoto coisa nenhuma. E também não vai levar bola, menino. Onde já se viu jogar bola no meio do mato? Álvaro, não esquece do spray anti-mosquito. Ah, vamos levar os comprimidos antialérgicos. A Laís é muito sensível a picada de mosquito.
— Ih, a maninha vai se danar na picadura do mosquito – disse o Piunga sem malícia, mas a mana não gostou e reclamou que ele estava dizendo indecncia com ela. Resultado: o Piunga botou a boca no trombone quando a mamãe pendurou na orelha dele.
Vara de pescar, chumbadas e iscas falsas; binóculos, faca de esfolar peixe, chapéu contra o sol causticante da Chapada, roupa de lã contra o frio enregelante da Chapada, soro contra picada de cobra, aspirina, cibalena, lanterna de foco de longo alcance para explorar cavernas, botas de alpinista, frango assado, farofa, muito refrigerante, maçã, laranja, pão-de-forma, biscoito a dar com o pau – doce, salgado, salobro e aguado (aguado é aquele biscoito sem graça que as mães teimam em nos dar quando a gente está doente). Botijão de gás, lamparina a gás para acampamento, macarrão, panelas, pratos, talheres e colheres, temperos e muito sal, uma barraca de acampamento para seis pessoas e mais tralha que eu não me lembro.
Finalmente, comidos e devidamente vestidos e repreendidos a granel, lá fomos nós ao encontro dos pais do Bruno. Quando chegamos lá, já encontramos os pais da Mirna e a própria na casa do tarado do karat. O carro deles era uma D-20 incrementadona, enquanto o nosso era uma pick-up Ford F-1000, muito confortável. Tinha até ar refrigerado e televisão no teto. Meu pai comprara a bicha só para fazermos a tal viagem. Estava pagando uma nota mensal por ela, mas valeu a pena. Já pensou a vergonha se a gente chegasse à casa deles em nosso velho Del Rey? A camioneta de “seo” Pacheco, o pai de Mirna, era também uma D-20, mas era mais velha que a do “seo” Antnio, o pai do Bruno. A velha D-20 estava com um pneu arriado. Meu pai foi com “seo” Pacheco comprar pneus novos. Enfim, quando a camioneta estava de cascos novos e tudo arrumadinho, pusemos-nos na estrada. A chuva engrossara e a gente teve de viajar com tudo fechado e o aquecedor ligado, pois fazia um frio danado. Ainda bem que podíamos assistir à televisão. Secretamente eu estava muito contente. Vira a admiração nos olhos do Bruno e nos de Mirna. Nossa camioneta era a única que tinha televisão com vídeo e som leiser. Mas depois de quatro horas de viagem sempre sentado no mesmo lugar aquilo encheu o saco. A chuva havia ficado para trás e meu pai dizia que tão logo encontrássemos um bom posto de gasolina, com restaurante, nós pararíamos para esticar as pernas e tirar água do joelho. Só se fosse do joelho dele, pois eu queria mesmo era mijar à vontade. Minha bexiga estava como uma bola. Quem tinha sorte era o Piunga. Ele molhou os fraldões que mamãe lhe colocou duas vezes antes da parada.
Finalmente, quando eu já pensava que ía molhar o banco novinho em folha e ter uma de minhas orelhas arrancadas, chegamos a um big posto com um restaurante incrementadão. Estávamos cansados e com fome e tratamos de ir ao banheiro em primeiro lugar, e nos aboletarmos no restaurante, em segundo. Almoçamos e desceu uma lombeira daquelas. Ainda bem que quem dirigia era o papai. Antes de embarcarmos, contudo, nossos pais resolveram encher os tanques das viaturas e nós ficamos perambulando por ali, como quem não quer nada querendo. O Bruno me chamou para debaixo de umas árvores e me mostrou sua atiradeira. Uma arma e tanto, rapaz. Eu fiquei com inveja, mas quando o Bruno colocou uma pedra nela e fez pontaria numa rolinha a inveja se foi. Por que apedrejar a coitada? Eu não acreditei que ele fosse matar o passarinho, mas ele atirou e acertou bem na cabecinha da coitada. A avezita caiu silenciosa, sem um pio. O Bruno correu para apanhar o seu trofeu e eu fiquei olhando para o ninho onde algumas cabecinhas apareciam de biquinho aberto. Que maldade! Eu fiquei pensando que se fosse minha mãe eu ía estar desesperado.
Enquanto eu ficava ali, parado, olhando cheio de dó para os pequeninos órfãos, Bruno corria para seus pais com o passarinho morto nas mãos, seguido das duas meninas bobocas que o viam como um verdadeiro herói. “Quem vai alimentar os coitadinhos?” eu me perguntei sentindo o coração apertado. Não sei porque comecei a chorar e foi entre lágrimas que me pareceu ver um homenzito lá perto do ninho. Ele se vestia como os bufões de antigamente. Tinha um chapéu de pano verde e muito comprido, cuja ponta caía até seu ombro esquerdo e tinha um guizo que fazia um barulhinho muito esquisito. Eu esfreguei os olhos para ver melhor e o homenzinho lá estava. Ele me olhou com um olhar raivoso e eu tremi de medo. Ele era muito menor que o Piunga, tinha pernas tortas e calçava sapatos de couro macio com gozados bicos levantados para o alto. O cano dos seus sapatos eram em forma de pontas e íam até o meio das canelas. Sua calça era apertada nas pernas tortas, verdes e com um cinto de couro marrom, onde uma fivela muito amarela brilhava estranhamente. Vestia uma camisa amarelo-mostarda, também colada ao corpo e de mangas compridas em cujos punhos havia uns tufos de lã. Suas mãos eram estranhamente grandes para ele e tinha dedos com unhas muito compridas. Usava uma barba negra e muito longa, que chegava até quase seu umbigo. Tinha olhos negros e olhar carregado de raiva. O bigode era espesso e cobria a sua boca. Era um homenzinho muito feio.
Ouvi a voz do pai do Bruno repreendendo-o por ter matado a rolinha, mas não consegui despregar os olhos daquela visão.
— Edu! – ouvi papai me chamando. – Vamos, filho. Estamos prontos!
O homenzinho olhou para nossos carros e depois voltou a olhar para mim. Então, apanhou as avezitas do ninho e saltou para o chão, desaparecendo antes de tocar o solo relvado.
— Edu! Vamos, o que está esperando?
Eu saí andando para os carros sem saber o que dizer aos outros. Será que eu tinha mesmo enchergado aquele homem esquisito?
Dali em diante, a viagem para mim foi silenciosa. Não sei dizer porque a imagem do ódio nos olhos do homenzito me perseguia sem cessar. Limeira, Rio Claro, São Carlos e Araraquara ficaram para trás. Todo mundo papagueava, menos eu. Mamãe notou meu silncio e me perguntou o que eu tinha. Só pude responder “nada”, mas ela não se convenceu. Então, como continuasse a insistir, terminei por contar o que tinha acontecido. Quando acabei, minha mãe colocou a mão em minha testa e ficou sentindo meu pulso. Perguntei o que ela queria e me respondeu que achava que eu tinha febre, mas não tinha. E se não tinha, estava inventando aquela história. Danei.
— Se fosse a Laís que contasse voc acreditaria – falei, amuado.
— Eu não ía contar uma história destas. Eu não minto! – disse a petulantezinha metida a besta de minha irmã. Ah, tive vontade de arrancar o nariz dela com um alicate.
— Não é o caso de chamar seu irmão de mentiroso – repreendeu papai. – Ele pode estar cansado, como todos nós estamos. Pode só ter imaginado o que pensa ter visto.
— Não foi imaginação, papai – protestei. – Eu vi o homenzinho lá. Ele apanhou as rolinhas e desapareceu com elas nas mãos antes de tocar o chão. E estava fulo da vida comigo, mas eu não fiz nada. Quem fez, foi o Bruno.
— Eu sei, eu sei – rebateu papai com um aceno paciente de cabeça. – Mas se quer um conselho, esqueça esta história. Nossos amigos iriam ficar muito preocupados com a sua sanidade mental... está-me entendendo?
— Hum-hum – respondi, olhando nos olhos de meu pai. Ele tinha razão. Se o Bruno tomasse conhecimento do que eu tinha contado, na certa ía espalhar pelo colégio inteiro e eu não sei se suportaria a gozação.
Já era noite quando passamos por Araçatuba, mas meu pai não parou. Prosseguimos ainda por um tempo que me pareceu eterno e fomos dormir na cidade de Trs Lagoas, logo depois que atravessamos o rio Paraná. Estávamos bem na fronteira de Mato Grosso do Sul com São Paulo.
O hotel não era lá essas coisas, mas tinha um conforto aceitável, principalmente para quem estava estourado, como eu. Jantei pouco e dormi feito uma pedra, mas fui o primeiro a acordar. Eram as cinco horas da manhã, o céu apenas ficava azul-roséo e a noite retirava-se com preguiça. Nuvens pesadas podiam ser vistas lá ao longe, mas prenunciavam um dia com chuva. Fiquei na cama tentando saber porque estava tão esperto a ponto de ser o primeiro a acordar. Não era o meu normal. Meu pai sempre me gozava dizendo que o travesseiro era melhor de jud que eu, pois todo dia me imobilizava – até podia ser, eu nunca fiz jud. Foi quando ouvi alguma coisa tamborilando no vidro da janela. Olhei para lá e vi o homenzito verde. Ele apontava o seu dedo de unha de gavião pra mim e, então, virava o polegar para baixo, no típico sinal de morte que se v nos antigos filmes sobre as arenas romanas. Desta vez fiquei olhando diretamente para ele. Não era produto de minha imaginação, mas se eu falasse dele novamente era certo que ía arranjar dor-de-cabeça, pois ninguém estava disposto a me dar crédito. Meu coração acelerou e eu fiquei pensando o que fazer. Na cama ao lado o Bruno roncava feito locomotiva. Na outra, o Piunga também dormia serenamente. Fiquei um tempão olhando para a estranha aparição, que repetia aquele sinal irritante sem parar. Então, tomei uma decisão. Estirei-me na cama e toquei o pé do Brno que estava fora do lençol. Puxei o dedão dele com força. Ele resmungou, girou o corpo para o outro lado e continuou a roncar. Tentei de novo e nada. Então, pulei para a cama dele e dei-lhe uns tapas leves nas bochechas. O Bruno acordou estropiado e ficou me olhando com aquele olhar de bobão que a gente fica quando acorda sem acordar.
— Olha a janela! – murmurei para ele.
— O... o que? – perguntou ele, sonolento.
— Olha a janela! – insisti.
O Bruno ainda ficou a me olhar atarantado, mas virou-se e olhou para onde eu estava apontando. também olhei. O
desinfeliz
verde-amarelinho tinha desaparecido.
— O... O que tem a janela? – perguntou o Bruno voltando a me olhar.
— Bem... é o céu – gaguejei eu, atrapalhado. Nunca me passara pela cabeça que o nanico não quisesse ser visto a não ser por mim. Mas por que ele cismara comigo, se quem havia matado o passarinho fra o Bruno?
— E o que tem o céu? – perguntou o Bruno sentando-se. Estava desperto, agora.
— Bem, voc já viu o amanhecer lá fora? – perguntei para inventar alguma coisa.
— Não. Por que? – interessou-se o Bruno.
— É muito bonito – disse eu.
— Então, vamos sair para olhar melhor – e o garoto pulou da cama pondo-se a se vestir. Que péssima idéia, a minha. Não estava com nenhuma vontade de ir lá fora e dar de cara com o tal verde-amarelinho, mas não podia deixar de acompanhar meu companheiro incidental. Assim, também me vesti e saímos. Estava um friozinho gostoso e vi algumas vacas pastando lá ao longe. O cheiro do capim orvalhado chegou forte aos nossos narizes. De algum lugar vinha uma algazarra de passarinhos e eu procurei por eles.
— Caramba! – exclamou o Bruno, excitado. – Olha lá! que pássaros são aqueles?
— Eu não sei – respondi, olhando a nuvem de pássaros pretos que voavam e faziam uma algazarra enorme.
— Ah, se eu tivesse mais tempo... – murmurou o Bruno.
— Mais tempo para que? – eu quis saber.
— Para ir atrás deles, ora. Com minha atiradeira, ía fazer um festa. V só, quantos são? Eu caçaria pelo menos uma dúzia.
Olhei para o Bruno. Como é que ele podia pensar em matar as aves? Elas estavam saudando o amanhecer com uma festa de meter inveja a qualquer um. E se eu soubesse cantar igual a elas, também estaria lá no seu grupo, fazendo coro com seus pios altissonantes.
— Escuta, Bruno. Por que voc caçaria uma dúzia daquelas aves? – perguntei lembrando do verde-amarelinho.
— Ora... Para caçar, ora. Atiradeira foi feita para caçar passarinho, não foi? – Ele me respondia sem tirar os olhos assassinos de cima dos pássaros. Eu tive vontade de discordar dele, mas tive medo de o aborrecer. E se ele, depois, me metesse uma pedrada na cabeça?
— Bruno...
— O que é?
—Voc come os passarinhos que mata?
— Não. Eles não servem para comer.
— Então, o que faz com eles?
— Bom...às vzes eu dou eles pro meu gato. Outras, jogo fora. Eles só servem para eu afiar a pontaria.
— E... e para que voc quer uma pontaria afiada?
— Ora, que pergunta mais besta, Edu. Eu quero minha pontaria afiada porque eu quero e pronto. Sei lá se um dia vou precisar usar um revólver para me defender?
— Mas voc não faz karat para isto?
— Faço. Mas karat não serve de nada quando a gente tem de enfrentar bala, tá sacando? Contra bala, só outra bala, ora bolas.
Fiquei calado. O céu estava clareando rapidamente, agora. Os pássaros pretos podiam ser enchergados com nitidez e a nuvem voava em nossa direção.
— Veja, Edu! Eles estão vindo para cá! Vou buscar minha atiradeira.
— Espere! – Mas antes que eu dissesse o que quer que fosse, ele tinha sumido lá para dentro. Diabo, ele ía matar novamente.
Os pássaros pousaram na grande mangueira que havia ao lado do hotel. Piavam alegremente e eu gostaria de poder espantá-los antes que o Bruno voltasse, mas não sabia como conseguir isto. Apanhei uma pedra e joguei na mangueira. Foi como jogar um cascalho no lago. Não fez efeito. Bruno voltou. Trazia a maldita atiradeira e já com uma pedra dentro dela.
— Vem – chamou ele. – Vem ver só que tiro. Eu não vou errar mesmo, desta distncia.
“
Não mata ele! Não mata o coitadinho
!” eu suplicava em pensamento, enquanto me deixava levar pelo braço, puxado com determinação pelo Bruno.
— Olha lá! Vai ser aquele que está na ponta daquele galho seco. Tá se oferecendo, o safadinho crioulo!
Meu coração acelerou e eu rezei para que o pássaro voasse dali, mas o infeliz se mantinha lá, soltando agudos trinados de alegria. Sua cabecinha voltada para o sol nascente parecia querer cumprimentar o Astro Rei antes dos demais irmãos dele. “
Ah, meu Deus, faz ele voar dali! Faz! Faz!
” eu orava angustiado. Bruno aprontou a atiradeira, esticou os elásticos, dormiu na pontaria e disparou. Foi certeiro. A pedra atingiu a cabecinha cantante e cortou um trinado pela metade. O pássaro rodopiou no ar e caiu batendo as asinhas nas vascas da morte. Uma gota de seu sangue inocente manchou minha camisa e eu senti as lágrimas turvarem minha vista.
— Viu só como eu sou bom nisto? – exultava o peste a meu lado. – Acertei na primeira. Vem!
— Não – consegui murmurar sufocado.
— Vem, sim. Vamos enterrar ele antes que papai acorde e veja isto. Ele vai-me dar uma bronca daquelas. Anda! Se der tempo, eu ainda acerto outro.
“
E voc bem que merece a bronca, desgraçado
” disse eu, em pensamento. Mas ainda que revoltado com o que meu companheiro havia feito, eu o segui calado. Temia irritá-lo contra mim. Eu não era páreo para os socos e os ponta-pés que ele sabia dar.
— Cava o buraco bem ali! – ordenou o Bruno.
— Por que eu? – perguntei, agastado.
— Porque eu vou procurar outro, ora bolas. Se perder tempo cavando uma covinha de nada, eles vão embora e pronto. Fico sem a chance de treinar.
E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, lá se foi o Bruno, pé-ante-pé, olhos fixos na folhagem fechada da mangueira, procurando divisar mais uma vítima. Eu permaneci ali, feito um dois de paus, olhando impotente para a atiradeira assassina. Ah, se eu pudesse queimar aquela arma infeliz...
O Bruno parece que viu outro pobre passarinho, pois retesou o corpo e cuidadosamente levantou o braço armado. Devagarinho foi estirando os elásticos. A angústia dentro de mim cresceu insuportavelmente. Eu senti que ía gritar e me apavorei com a idéia. Se espantasse os pássaros, o karateca certamente ficaria danado comigo e ía bater-me, com certeza. Levei a mão à boca e forcei a palma contra meus lábios, para selá-los. Foi então que o verde-amarelinho apareceu. Surgiu por detrás do tronco da mangueira e me olhou com uma ira inaudita. Estava furioso comigo! E eu não fizera nada para aquilo. Como um esquilo ele subiu na árvore e eu o vi ir direto para perto do pássaro no qual o Bruno mirava. Chegou perto e soltou um trinado semelhante ao que o passarinho soltava. Este, virou a cabecinha assustado e olhou para baixo. Foi quando o Bruno disparou o tiro. A pedra ía certeira na cabeça do pássaro, mas o verde-amarelinho esticou a mão e desviou-a alguns milímetros em sua trajetória. O projétil só tirou penas da ave, e ela voou rápido soltando pios agudos. Foi como um alarma. Todo o bando voou atrás dela, para longe.
— Que pena, guri! – exclamou um homem que nos observava sem que nós o tivéssemos visto. – Só acertou um.
— Quem... quem é o senhor? – balbuciou Bruno, assustado. Temia que o homem pretendesse contar tudo a seu pai.
— Sou o dono destas terras – respondeu o homem apontando circularmente para o vasto terreno agreste diante de nós. – Eu esperava que voc matasse pelo menos uns dez destes pássaros danados.
— Por que o senhor quer os pássaros mortos?
Minha pergunta foi feita cheia de espanto. Eu não podia acreditar que um adulto incentivasse uma criança a matar passarinhos. Logo ele, que era do campo! Aquilo não fazia sentido para mim.
— São pássaros-preto – respondeu o homem. – Eles caem no milharal e no arrozal e arrazam com tudo, garoto. A gente se endivida para fazer a plantação e os infelizes vm e arrazam com nosso lucro. Ficamos no prejuízo, entende?
Então, matando aquele pássaro, o Bruno tinha feito uma boa ação. Afinal, se eles prejudicavam as lavouras nada mais certo que eliminá-los.
— Escute, moço – falei aliviado –, quer dizer que o senhor também mata aqueles pássaros?
— Mato quantos posso – respondeu o homem aproximando-se e colocando a mão sobre os ombros de Bruno. – Semana passada eu coloquei furadan numas sementes e espalhei pelo campo. Quatro horas depois recolhi dois carrinhos-de-mão cheios desses malditos. Mas eles parece que surgem da terra, rapazinho. Todo dia é isso que voc viu aí. Eles vm aos bandos.
Meu pai apareceu na porta e veio juntar-se a nós.
— O que estão fazendo acordados tão cedo? – perguntou ele, dando um beijo em minha cabeça.
— Eu... eu vim olhar o amanhecer – respondi.
— E voc, Bruno, veio ver o amanhecer, também? – perguntou papai abraçando a mamãe pela cintura. Ela acabava de chegar e juntar-se a nós.
— Não. Eu vim trazido pelo Edu. Mas resolvi ajudar o moço aqui – respondeu o Bruno, todo contente.
— Como assim? – perguntou meu pai.
— Eu matei um pássaro-preto – respondeu Bruno – apontando a ave caída no chão.
— Meu Deus! – horrorizou-se mamãe, indo apanhar o pássaro nas mãos. Estava com as asinhas arrepiadas e todo ensangüentado. – Bruno, que horror! Como pde fazer uma barbaridade destas?
— Ele não fez nada de mais, dona – disse o homem em defesa do acabrunhado Bruno. – Ele até nos ajudou. Eu estava contando para eles que na semana passada eu matei um montão colocando veneno nas sementes. Tirei dois carrinhos de mão cheio deles.
— O senhor fez... fez uma maldade destas?
Mamãe olhava com horror para o homem e vi que meu pai estava desconcertado.
— Não é maldade, não, dona – disse o homem de cara amuada. – Maldade é o que eles fazem com nossas plantações de grão. São uma praga pior que os gafanhotos.
— Não! – protestou mamãe, enérgica. – São aves canoras, senhor. Eles cantam e tm uma razão para existirem. Deus não os teria colocado no mundo somente para estragar as plantações dos humanos. Já pensou nisto?
— Pode ser que não – respondeu o homem sem se dar por achado. – Mas para que servem estes danados, pode-me dizer?
— Senhor – disse mamãe depois de um momento de silncio em que olhou demoradamente para o homem diante dela –, eles estavam aqui antes de nós, humanos brancos e que nos dizemos civilizados, chegarmos. Eles tinham comida à vontade nas árvores e na grama. Gente como o senhor veio para cá e desmatou tudo. Arrancou as árvores de onde eles tiravam o alimento e passou a plantar grãos. Sem comida, o que poderiam fazer? Se o senhor fosse um deles, faria o que, pode-me dizer?
— Senhora – disse o homem, pigarreando –, são nossos grãos do campo que vão alimentar os doutores como os senhores lá na cidade. Se deixarmos que os pássaros nos estraguem as lavouras, quem vai ficar em apuros são os senhores. O que me diz?
— Digo que o senhor não tem o direito de matar – respondeu mamãe indignada. – Nós, humanos, a primeira coisa que pensamos quando surge um problema com outra espécie é eliminá-la. Nós, que nos dizemos os senhores da Terra, não temos capacidade de repartir.
— Repartir?! – estranhou o homem. – Repartir o qu, moça?
— O campo, senhor – e mamãe estava com as faces afogueadas. Meu pai, observei, parecia estar muito mal dentro das calças.
— Ah, sei... o campo – disse o homem passeando os olhos pelo terreno descampado e cheio de capim. – A senhora diz que eu devo repartir o campo com as aves, é?
— É isso aí – respondeu mamãe olhando a ave morta em sua mão.
— E o que eles fariam com o seu padaço de campo, senhora, pode-me dizer? – e o homem soltou uma cusparada daquelas, amarelada pelo fumo que mascava.
— Talvez criassem mais pássaros para alegrar os campos. Talvez comessem mais gafanhotos, grilos e lagartas que também são pragas que atacam suas lavouras, não são? – respondeu mamãe sem se deixar vencer.
— Moça, já vejo que a senhora não entende nada de aves. Quem come isto são os anus, não os pássaros pretos – e o homem sorriu complascente.
— É, o senhor tem toda a razão – falou meu pai pela primeira vez. – Mas os pássaros-preto são a razão da existncia dos tucanos. Estas aves alimentam-se dos filhotes dos pássaros-preto e põem um controle natural na reprodução deles. Eu acho que não há necessidade de matar as aves como diz que fez, senhor.
— E o que sugere que nós, fazendeiros, façamos? – e o homem olhou interrogativamente para meu pai.
— Bom... vejamos, minha mulher falou em repartir o campo. Acho que o senhor não entendeu bem o que ela estava querendo dizer.
— Então, explique-me, por favor – e havia uma nota de gozação na voz do fazendeiro.
— Onde os bois come, senhor? – perguntou meu pai serenamente. O homem arqueou o sobrecenho demonstrando estar estranhando aquela pergunta despropositada de meu pai.
— Em cochos... grandes cochos... Por que pergunta?
— Bom, eu sugeriria que os fazendeiros colocassem uns trs... talvez cinco cochos perto de árvores grandes, como esta mangueira. Os pássaros-preto gostam das árvores altas, não é? Pois bem, dentro dos cochos os senhores colocariam umas duas ou trs sacas de arroz com casca. As aves se acostumariam a se alimentar ali e certamente não atacariam o campo. Aí, os senhores fazendeiros e agricultores ficariam em paz com eles e... com Deus. Eu creio que isto é repartir o pão da terra com todos os seus filhos, independentemente da forma que tm seus corpos. O que o senhor me diz?
O homem ficou calado, olhando demoradamente para meu pai. Então, rodou nos calcanhares e foi postar-se perto da cerca de arame farpado. De repente pareceu ter esquecido de nossa presença.
— Vamos entrar? – convidou papai.
— Não – recusou-se mamãe. – Eu sugiro que o Bruno enterre o pássaro primeiro.
E ela estendeu a mão com a ave morta dentro para o Bruno. Meio sem graça, o meu infeliz parceiro foi fazer o que ele me tinha ordenado fazer antes. Ficamos vendo o seu trabalho e eu vigiava com o canto dos olhos o homem parado lá na cerca. Ele, porém, nos ignorava.
Quando o Bruno acabou, voltamos todos para dentro do hotel. Eu estava aliviado porque com a chegada dos outros o verde-amarelinho desaparecera de vista. Pelo menos de minhas vistas, já que ninguém mais o enchergava.
Tomamos café em silncio. Quando falaram, nossos pais não tocaram no assunto do pássaro-preto, para alívio do Bruno e tristeza minha. Eu gostaria de ver como é que a mãe dele pendurava na orelha do safado.
Pegamos a estrada estava perto das nove horas. Eu esperava encontrar uma grande mata luxuriante, mas fiquei profundamente decepcionado. O nome daquele estado estava totalmente errado. Não havia mato nenhum, quanto mais “mato grosso.” O que eu via eram intermináveis fieiras de arame farpado que pareciam cercar o mundo de um lado e de outro da estrada. E dentro do espaço que elas delimitavam o que se via era um campo a perder de vista. Ora era um campo de terra vermelha e lamacenta devido à chuva, ora era um tapete verde de soja ou de milho. Mas não havia árvores. Quase nenhuma árvore. Eu fiquei pensando no que mamãe dissera. Realmente, de onde os pássaros-preto poderiam retirar alimento, se não fosse dos campos plantados? Aqui e acolá bem longe eu podia ver, vez que outra, um capão de mata nativa. Mas era tão pequenininho, tão insignificante... Como as aves todas poderiam encontrar alimento naquele cocoruto de mato cercado de grãos por todos os lados? Nós estávamos cruzando a terra dos antigos Tupis, Araguaias e Tocantins, nações de verdadeiros brasileiros, orgulhosos e indmitos senhores de Pindorama, como chamavam a isto aqui. Agora, o que eles diriam se pudessem ver o que nós, homens ditos brancos, fizemos com suas matas? Chorariam na certa... Ou talvez tocassem a inúbia chamando para a guerra contra os desertificadores desalmados vindos do outro lado do mar... Essas palavras bonitas eu li em meu livro de História. Ainda não sei bem o que querem dizer, mas posso ver nos campos sem árvores e sem pássaros que se trata de uma coisa horrível. Meus olhos cansaram daquela paisagem monótona e eu voltei minha atenção para um filme que passava na televisão. Era um vídeo do Conan que eu já tinha visto mais de dez vezes, mas preferi ver de novo o bárbaro fantástico a ficar olhando o desfilar eterno do arame farpado.
Ao meio-dia chegamos a Água Clara, nas margens do Rio Verde. Apesar do nome, ele é muito é barrento, isto sim. Almoçamos numa pousada simpática e seguimos direto para Ribas do Rio Pardo. Paramos só pra fazer xixi e colocar combustível nas viaturas e seguimos para Campo Grande. Chegamos na bela capital de Mato Grosso do Sul já era noitinha. Nós nos hospedamos num hotel quatro estrelas, no centro mesmo da cidade. Antes de nos recolhermos ainda ficamos vendo as notícias na TV... isto é, nossos pais ficaram lá, pois nós nos reunimos para brincar no parquinho de diversões que havia no hotel para as crianças. Mirna estava uma graça, mas parecia só ter olhos pro peste do Bruno. Em dado momento ele começou a contar como havia matado o pássaro-preto e o fazia como se tivesse cometido um ato heróico. Eu não me conformei e me meti na história dele.
— Não foi assim, não – disse imprudentemente. – O homem estava errado. Não se deve matar os passarinhos.
— O que voc está dizendo? – e Bruno parecia espantado comigo.
— Estou dizendo que não é certo matar passarinho. Mamãe disse...
— Sua mãe não sabe de nada – disse Bruno com desprezo. – O homem falou que os pássaros-preto estragam nosso alimento e que é preciso eliminar todos eles. Eu fiz um favor aos fazendeiros matando aquele lá. Pena que foi um só.
— Não fez favor nenhum! – falei irritado porque vi que minha irmã e a Mirna tinham-se colocado ao lado do karateca e lhe seguravam os braços como se se apoiassem neles.
— Eu fiz, sim senhor – gritou Bruno com raiva. – Voc é que é um maricas e não consegue acertar nem num elefante a dois metros de distncia. É por isto que está defendendo o pássaro-preto.
— Não senhor! – gritei perdendo a pacincia. – Eu defendo o pássaro-preto porque acho que não devemos matar os passarinhos. E se voc tivesse visto o homenzinho verde...
Parei de sopetão. Não devia ter dito aquilo, mas agora era tarde. Bruno franziu a testa e ps as mãos na cintura.
— O que voc está dizendo? – perguntou sem entender nada.
— Esquece! – eu disse e me voltei para me retirar.
— Ele ‘tá falando de um homenzinho verde que ele inventou – falou rápido a Laís intrometida.
— Espera aí! – gritou o Bruno correndo em minha direção e me sustando pelo braço. – Que história é essa de homenzinho verde?
Agora não adiantava negar e eu contei tudo, tim-tim-por-tim-tim, ao Bruno assassino de passarinhos. Quando terminei minha história, o karateca ficou a me olhar com um riso brincando nos lábios. Depois, dobrou-se numa gargalhada escandalosa.
— Homenzinho Verde, hein? Mas que história fantástica, Edu! Vai ver, ele ‘tava cagado com o coc de seu irmão, não ‘tava? Era por isto que era verde!
E o Bruno se dobrava de rir. Eu fiquei fulo da vida e lhe dei um empurrão. Ele perdeu o equilíbrio e quase mergulhou dentro do tanque onde havia um lindo repuxo cujas águas apareciam coloridas devido às lmpadas que tinham colocado nele. O Bruno ficou sério de repente. Endireitou-se e avançou para mim. Antes que eu pudesse correr, ele me aberturou pelo colarinho e quase me levantou do chão.
— Escuta aqui, carinha, não faz mais isto não, ‘tá sacando? Não faz não que eu te amasso todo!
— Tá... tá bem, des... desculpa! – tartamundeei tremendo de susto.
O Bruno me soltou com um empurrão e eu caí ao chão de areia me lambuzando todo. Ele pegou nas mãos das meninas e foi para o escorrega, me deixando ali, estendido de pernas abertas na areia seca como um boneco desconjuntado.
CAPÍTULO IV
ENFIM, CHEGAMOS
A cama era bem mais confortável do que aquela do hotel anterior, mas eu não consegui dormir. A proximidade do Bruno me fazia mal. Além disto, ele passou o resto daquela noite, enquanto estivemos acordados, fechado para meu lado. Toda vez que me olhava, olhava de cara amarrada. Além do mais, fazia um calor danado e o ar refrigerado não foi ligado porque o Piunga era alérgico a ele. A gente suava, pelo menos eu, sob os lençóis. Lá pelas tantas o Bruno soltou um ‘pum’ danado de fedorento. Eu me levantei e fui abrir a janela. Nosso quarto era no terceiro andar. Saí para a sacada pisando macio para não acordar ninguém e fiquei olhando para o bonito jardim lá em baixo. Ali fora a brisa noturna acalmava um pouco o calor do quarto, embora deixasse entrar os pernilongos que, aqui, chamam de muriçoca. E olha, rapaz, põe muriçoca nisso. É cada uma parrudona! Acho que é de tanto sugar sangue de boi. As bichinhas, quando ferroam, ferroam pra valer. Fazem cada calombo em nosso corpo que é de meter inveja ao Mike Tyson. É, eu disse Mike Tyson, sim senhor. Ele não consegue fazer um calombinho sequer, no queixo de seus adversários. Derruba a todos, é verdade, mas não cria calombos neles, não é?
Tomei um susto danado quando me voltei para entrar no quarto e dei de cara com o verde-amarelinho de pé, a meu lado, me olhando com aquele olhar de raiva na cara. Ele me disse um monte de coisas agitando furiosamente os braços, mas eu não entendi patavina do que falava. E o homenzinho tirou o chapéu de pano verde, deixando ver uma calva reluzente, e o jogou no chão pulando sobre ele raivosamente.
— Bruuuunoooooo! – berrei sem vergonha de pedir socorro ao peste. – Bruuuunooooo! Acorda! Me acode! O homem verde está querendo brigar comigo e eu não sei lutar! Socooooorrrrrrooooooo!!!
Quem primeiro entrou disparado no quarto foi o meu pai. Ele me levantou no colo me sacudindo e mandando que eu acordasse. Só que eu estava muito bem acordado, sim senhor.
— Filho, o que houve? Voc está despertando todo o hotel!
— O... o homenzinho verde... Ele... ele...
Eu olhava para todo lado, mas o desgraçadinho tinha sumido.
— Foi só um pesadelo, filho. Volte para a sua cama. Eu vou levar o Piunga lá pro nosso quarto, assim vocs podem ligar o ar refrigerado, tá bom?
— Mas estava aqui! – protestei. – Eu olhava lá pra baixo, lá pro jardim do hotel e quando me virei...
— Que jardim? Este hotel não tem jardim, Edu – disse meu pai com um sorriso no rosto.
— Tem sim – teimei. – Olhe lá pra baixo. Vai ver o jardim e é muito bonito.
O Bruno debruçou-se sobre o gradil e olhou para a rua. Lá em baixo só havia a calçada, um poste e o asfalto preto e deserto. Nada mais.
— Eu não ‘t vendo nenhum jardim – disse com voz de gozador.
— E não há – confirmou papai vindo colocar-me novamente na cama. Eu estava aturdido e assim que ele se retirou, levantei-me e fui olhar lá fora. Realmente, não havia nenhum jardim. Como é que eu tinha visto um inda agorinha mesmo? Voltei pra cama duvidando de que estivesse mesmo acordado. Mas não dormi. O Bruno, desperto, passou um bom tempo me gozando. Quando, finalmente, cansou-se de rir de minha cara e dormiu, eu fiquei acordado chorando de raiva debaixo dos lençóis.
Pela manhã, na hora do café, os risinhos do Bruno e de Mirna, a quem ele contara o ocorrido, me punham acabrunhado. Eu me sentia o ser mais infeliz da terra. Por mim, voltaríamos correndo para São Paulo e deixava que eles seguissem em frente sozinhos.
Saímos muito cedo de Campo Grande. Passamos por Jaraguari, Bonfim e Bandeirantes e todas estas vilas me pareceram iguais. Eram de casinhas antigas, teto baixo, paredes velhas e ruas de paralelepípedos. Todas com aquelas palmeirinhas magrelas – a tal de guariroba, cujo palmito amargo é muito apreciado na região – que não dão sombra nenhuma. O sol daquela região é esquisito demais. Queima literalmente a pele da gente. Queima muito mais do que o sol da praia. A gente sente a pele enrrugar devido ao calor. Acho que é por isto que as mulheres de lá tm a pele feito maracujá de gaveta. Novas, são até bonitinhas, mas quando ficam mais velhas ficam feias. A pele branca fica gretada como o solo de Marte... Eu acho que lá é assim. Não sei porque não plantam árvores copadas, como os oitizeiros do Rio de Janeiro. Eles dão mais sombra e protegem mais do que a tal guariroba. Nas praças eles usam a cibipuruna, uma árvore de folha miudinha, que tem uma copa larga e dá flores amarelas em cachos pequenos e de cor brilhante. Mamãe não gostou quando eu disse que as flores da cibipuruna parecem com a teta das mulheres. São bicudas e antes das flores abrirem ficam marronzadas. Mas ela não pendurou em minha orelha, como geralmente gosta de fazer quando discorda de mim em alguma coisa.
Até antes daquela noite em Campo Grande eu ansiava por estar perto de Mirna. Mas depois de t-la ao lado do Bruno me gozando, estava, agora, dando graças a Deus pelo carro de seu pai vir em terceiro lugar e ela estar bem longe de mim. Agora, eu torcia para que a viagem não tivesse mais fim. Passamos por Capim Verde e costeamos a cidadezinha de São Gabriel do Oeste até chegarmos a Rio Verde de Mato Grosso. Estávamos costeando o famoso Pantanal Matogrossense. Descemos para descansar um pouco e eu fui bisbilhotar a loja de badulaques que sempre existe na beira das estradas. Queria ficar bem distante da Laís, do Bruno e da Mirna. Levei o Júnior pela mão. Vimos os já comuns carros de madeira imitando as jamantas dos caminhoneiros e brinquedos que não nos interessaram. Aí, vi uma coisa assombrosa. Um inseto do tamanho de um dos caminhões de madeira. Mas um insetão deste tamanho, cara. E o bicho era horrível, pode crer. Tinha as asas quase pretas, patas peludas e uma cabeça nojenta, com olhos enormes.
— O que é isto? – perguntei à dona que estava atendendo no balcão.
— É uma barata – respondeu ela.
— Uma o que? – eu me espantei de verdade.
— Uma barata, menino. Voc não é daqui, é?
— Não, senhora. Sou de São Paulo.
— Bem vi logo. Isto aí é uma barata do pantanal. Não é das grandes. Tem umas que são bem maiores.
Uma barata! Uma barata que media quase trs palmos meus de comprimento e um e meio de altura.
— Tem certeza de que isto é uma barata, dona? – duvidei. A mulher sorriu e me disse:
— Tenho, menino. E sabe quanto esta aí pesava?
— Quanto?
— Um quilo e cem gramas – respondeu a dona toda sorriso. Eu não acreditei. Não era possível que existissem baratas tão grandes. Eu só imaginava o berrão que minha mãe daria se visse um bichão destes voando em direção a ela. “
Eu acho que ela enchia as calcinhas, de tanto medo
” pensei.
— Quer levar ela para presente? – perguntou a mulher vindo pra perto de mim.
— Quem, eu? Deus me livre! – disse me afastando do balcão e me persignando.
— Só pra dar um susto em sua mãe... ou na empregada de vocs, lá em São Paulo, que tal? – insitiu a mulher. – Escute, muitos turistas compram as baratas para levar como prova de que não estão mentindo. Dizem que se contarem que aqui existe baratas de até dois quilos, ninguém de sua terra vai acreditar.
— Eu estou vendo e ainda não acredito! – disse eu, olhos presos no inseto feioso. – Parece ser feito de madeira...
— É porque nós envernizamos suas asas e seu corpo para que não descasque – informou a mulher pegando aquele bicho asqueroso nas mãos. Assim, com as patas pro alto, ele era mais repugnante ainda. A mulher fez que ía jogar a barata em cima da gente e o Piunga saiu gritando feito um possesso. Desta vez quem correu atrás dele aos gritos fui eu. Nossos pais vieram ver o que estava acontecendo e quando tomaram conhecimento da barata só acreditaram porque foram lá dentro olhar o bicho.
— ‘Tão vendo só? – perguntei. – Vocs viram que a tal barata gigante existe. Por que não acreditam no homem verde?
— Porque ele não existe – disse mamãe. – Só voc o v.
— E só por isto ele não existe? A senhora não v a água em Marte, mas acredita nela só porque os tais cientistas dizem que existe. Por que acredita neles e não em mim?
Mamãe ficou me olhando com aquele ar de espanto de quando é pegada de surpresa, mas terminou soltando uma gargalhada.
— Ora, filho, não é a mesma coisa. Eles são cientistas e merecem toda a creidibilidade.
— Ah, sei... Então, quando eu crescer, vou ser cientista. Assim, ninguém vai duvidar de mim quando eu contar que vi um homem verde.
— Não, não. Só vão pensar que voc está vendo macianos – comentou meu pai.
— E os marcianos são verdes? – perguntei espantado.
— Pelo menos é no que o imginário popular acredita – respondeu papai, rindo.
Até agora eu acho que meu pai estava era me gozando ao dizer aquilo. Mas naquele momento fiquei meio barro meio tijolo, e à noite eu me peguei olhando para o planeta Marte, lá no céu, piscando avermelhado e fiquei me perguntando: “
como é que os marcianos são verdes, se o planeta deles é vermelho?O tal de imaginário tá mesmo é espalhando boato, isto sim.
”
Enquanto estivemos parados em Rio Verde do Mato Grosso eu procurei manter-me prudentemente perto dos adultos e evitei ao máximo aproximar-me de árvores, arbustos ou jardins. Enquanto isto, o Bruno se esbaldava na companhia da Laís e de Mirna. Corriam pelos matos próximos, exercitavam a atiradeira com ele como professor. Eu os olhava e me sentia uma formiga bem pequenininha. Senti vontade de ir até eles e me juntar na brincadeira, mas havia dois impedimentos muito fortes. Primeiro, o peste verde. Eu ía detestar dar com ele me olhando com aquele olhar raivoso. Segundo, a atiradeira. Eu tinha uma aversão, um nojo natural pela coisa. E tinha mais um senão: eu não ía aceitar o Bruno me ensinado a atirar com aquela geringonça.
Finalmente voltamos a encarar a estrada. E tome chão. Gente, como o tal de Mato Grosso é grande. A genta roda, roda, e roda e não chega onde se quer. A gente enjoa e desenjoa dentro do carro e não v o final da viagem. Tem de ter é saco para agüentar aquilo. Eu já pensava que este negócio de ser gente grande não presta, não. Vejam só, o papi só havia aceitado aquela viagem ao infinito porque queria pescar e subir morros. Ora essa, isto ele bem podia fazer ali mesmo, em São Paulo. A TV deixou de pegar bons programas e só pegava, agora, a televisão do Amazonas, a Amazonsat. E ela só transmite imagens de rios, cachoeiras, onças, pacas, aves, tudo secundado pelas músicas regionais que giram sempre em torno do Amazonas. É um porre. Nossa F-1000 vencia galhardamente a distncia comendo chão, mas a gente não encontrou mais nada pela frente. Era só chão seco, árvores intanguidas e arame farpado dos dois lados da estrada. E tome chão! Atravessamos uma vilazinha pobrezinha, pobrezinha, chamada Coxim, bem nas margens do rioTaquari, que vem do Pantanal e desemboca no rio Coxim, próximo à vilazinha que lhe deu o nome. Passamos batidos pela vila e seguimos a mais de cem por hora. A estrada era cheia de buracos, mas acho que meu pai também estava ficando impaciente com tanto chão. Atravessamos o rio Piquiri e fomos cercados sobre a ponte por indiozinhos que nos vendiam por cinco centavos sacos de frutos da região, como o piqui, a guariroba, o açaí, o bacuri... Papai teve de comprar de quase todos eles e os outros que vinham atrás, também, caso contrário não conseguiríamos prosseguir a viagem. Tive pena dos indiozinhos. Barrigudos, mal-trapilhos, mais parecendo mendigos de São Paulo do que índios. Pelo menos não aparentavam nada com os que a gente se acostuma a ver nos cinemas. E eles surgem de repente diante dos carros. Ficam escondidos debaixo das pontes. A gente, de longe, não v nada, mas quando o carro já está em cima da ponte – de madeira e muito mal conservada – aí, vupt! Ei-los como moscas varejeiras. Adiante encontramos outra ponte, esta, sobre o rio Correntes. E lá estavam os indiozinhos novamente. Papi não quis comprar nada, mas deu setenta reais em notas de um real para eles. Foi uma farra daquelas.
Anoiteceu e o papi continuou sem esmorecer. Chão e mais chão deserto pela frente. De repente ele teve de dar uma freiada brusca. Advinhem o que estava na estrada? Eu duvido que vocs advinhem... Pois era uma enome pintada... Isso mesmo, um jaguar ou uma onça, como a gente chama por lá. O bicho ficou atarantado com as luzes dos faróis e perdeu-se todo, não sabendo se ía para um ou para o outro lado da pista. Papai deu uma bruta buzinada e a onça resolveu-se no susto. Sumiu com um salto de meter inveja ao Bat-Man. Aquilo despertou todo mundo e o carro do pai do Bruno passou à nossa frente. Acho que eles queriam ser os próximos a encontrar outra onça no caminho, mas em vez disto deram de cara com um baita tamanduá bandeira. O bicho era um macho parrudo. Assim que o farol bateu nele, ele se ps de pé e se voltou direto para o carro. Abriu os braços como se quisesse abraçar a camioneta. O bicho era alto, mais alto que um homem. Todos tivemos de parar os carros, pois ele não arredava pé. O pai do Bruno deixou que todos chegássemos e, então, ordenou que apagássemos os faróis, deixando somente as lanternas. Todos fizemos isto e, então, o tamanduá desarmou-se e encaminhou-se lentamente em direção ao arame farpado. Não vi por onde, mas ele logo estava do outro lado e não demorou a sumir no capim alto.
— Por que ele ficou daquele jeito? – a Mirna perguntou.
— Por que é o seu modo de se defender. Se um homem ou um bicho qualquer grande, como uma onça, cai entre seus braços está morto. Ele possui garras fortíssimas e afiadas. Quando ele fecha os braços, as grandes garras se fecham em torno da cabeça ou do pescoço da vítima e esfacela o que estiver ali. O macho que acabamos de ver deve pesar mais ou menos uns cem quilos.
— Tudo isto? – admirou-se mamãe.
— Sim. Eles são animais grandes. Contudo, são absolutamente inofensivos. Não tm dentes e seu focinho longo pode ser facilmente quebrado. Sua única defesa é aquela posição. Quando dorme, para evitar ataque de onças, joga o rabo sobre o corpo de tal modo que não é possível saber onde é a cabeça. Isto faz o felino desistir do ataque, porque se erra de lado morre na certa. É dificílimo escapar do abraço do tamanduá.
— Ouvi dizer que lá para os lados de Goiás os fazendeiros e os motoristas irresponsáveis jogam as viaturas sobre os pobres bichos só pelo prazer de matar. Isto é verdade? – quis saber meu pai.
— Infelizmente, sim. Muitos rapazes sem conscincia ecológica cometem este crime irreparável. Os tamanduás acabam com os cumpinzais e matá-los é deixar que as térmites se multipliquem sem controle. Houve uma época em que se encontrava tamanduá bandeira em qualquer lugar, no cerrado. Hoje, eles são raros e isto é lamentável – informou “seo” Antnio, o pai do Bruno.
— Que lástima – lamentou Da. Ana.
— Bom, os ecologistas desenvolvem esforços digno de nota para trazer ao rude homem do cerrado a conscincia da necessidade de preservar a vida animal. Esperemos que consigam isto antes que seja tarde demais.
— Duvido – disse meu pai, pessimista.
— Eu também – ecoou “seo” Antnio, – mas eu faço parte do pequeno grupo que luta contra a maré. Sou como aquele beija-flor que tentava apagar o incndio com seu biquinho. Não conseguirá jamais, mas terá a conscincia tranqüila de que fez a sua parte.
Um buliço no mato e surgiu a fmea com trs filhotes. Passaram mansamente diante de nós e seguiram atrás do grande macho.
— São tão bonitos – disse mamãe, enternecida.
— São, sim. Vamos? Ainda temos muito chão pela frente – falou “seo” Antnio.
Voltamos às nossas camionetas e seguimos viagem. Dali em diante foi interessante e todos ficamos despertos. As camionetas eram dirigidas devagar e isto evitou que matássemos cobras, tatus, pequenas corujas conhecidas como caburés e dois belíssimos gatos-do-mato que comiam suas caças bem no meio do asfalto. Vimos uma família de lobos guarás. Também eles, para minha surpresa, ficaram apalermados com os faróis dos carros. Só quando as luminárias foram apagadas é que se orientaram. Chegamos a Rondonópolis madrugada avançada. Caímos nas camas e “dormimos como umas pedras”. Fomos acordados pelos nossos pais já eram nove horas. Ainda estramunhados fizemos a higiene matinal e tomamos café. Muita fruta e uma qualhada especial. Queijo era o que mais tinha. Pusemos-nos a caminho e passamos por cidadezinhas que pareciam ter saído do passado, tão antiquadas eram suas casinhas. Santa Elvira, Juscimeira, São Pedro do Cipa, Jaciara, São José da Serra e São Vicente, onde paramos para abastecer os carros. Estávamos eufóricos e falávamos sem parar sobre os bichos. Mamãe nos surpreendeu com o vídeo que gravou da maioria deles. Faltou só a onça. Piunga, Laís, Mirna e Bruno vieram para a nossa F-1000 e dali em diante prosseguimos todos juntos. Nosso farnel há muito tinha acabado e nós paramos para almoçar em Águas Quentes. A cidadezinha tem esse nome porque lá existe realmente um rio cujas águas são quentes. Eu me lembrei da Pousada do Rio Quente, em Goiás, perto da cidade de Caldas Novas. Mas nós não fomos tomar banho no tal rio, não. Passava um pouco do meio-dia, o calor estava sufocante e os motoristas resolveram descansar e só prosseguir após as trs horas.
— Daqui a Cuiabá não vamos levar mais que duas horas e trinta minutos – informou “seo” Antnio. – Entre cinco e trinta, e seis da tarde estaremos na capital. Lá faz mais calor que no Rio de Janeiro no verão. Vamos para o centro. A gente entra pela Travessa Comendador Henrique, pega a Av. Ten. Coronel Duarte, à direita e, depois, à esquerda, seguimos a Av. Isaac Póvoas até a praça Rachid Jaudy. Seguimos em frente nesta avenida e vamos direto para o Eldorado Cuiabá. É o melhor hotel da cidade, pelo menos para mim. A comida é excelente. Vou pedir anta assada. Eles preparam este prato de um modo todo especial.
Aqui já havia mata, não uma mata cerrada, fechada, como aquelas que se v nos velhos filmes de Tarzã, não. Mas já dava para se ver árvores grandes e tucanos à vontade. Também vimos muitas emas. Elas andam em bandos e tm olhos tão cndidos que é uma graça. Mas é bom ficar longe de seu bico, pois é duro como pedra e quando ela bica arranca pedaço mesmo. Se lança o bico contra a cabeça da gente, pode até fazer-nos desmaiar – avisou “seo” Antnio.
Agora, eu não gostei mesmo foi de uma tal de mutuca. É uma mosca que tem dentadura, gente. Ela vai pousando e vai cravando os dentes na perna da gente. E onde a peste morde vira ferida. Papi afirma de pés juntos que a mutuca não tem dentes, mas sim um ferrão por onde injeta uma tal de enzima na gente. Pra mim, ela tem mesmo é dente e pronto. Uma das fulanas pregou uma dentada na perna do Piunga que foi um Deus-nos-acuda. Ele berrou como bezerro no matadouro e sua perna ficou vemelhona como se tivesse uma lmpada lá dentro. E como esquentou, caramba! A tal mutuca deve ser a mosca do inferno, garanto. O Piunga teve febre e meu pai ficou preocupado. Disse que era uma forte reação alérgica contra a picada do bichinho safado.
Eu tinha-me esquecido do verde-amarelinho e fui andar pelas ruas de paralelepípedos da cidade de antanho. Íamos todos juntos. As pessoas deste tipo de cidade antiga é pacífica, desconfiada, agastada diante de forasteiros e simplórias, quase inocentes. Pelo menos para mim. Terminamos por desembocar na praça central, onde uma grande torre sustentava uma enorme caixa-d’água e tinha um baita relojão que soava as horas com marteladas porretas. A pracinha era uma graça e tinha muitas flores. Laís e Mirna correram para arrancar uma margarida e eu fiquei olhando para elas. Quando Laís tocou a flor e puxou o talo, vi o verde-amarelinho sentado bem debaixo dos arbustos e ele olhava com raiva para minha irmã. Dei um grito, um agudo “NÃO!” e corri para as meninas. No meu impulso, tropecei e caí sobre elas. Mirna foi a mais atingida e foi jogada bem em cima do homenzinho verde, mas para minha surpresa ele rolou para dentro da moita e sumiu antes que minha paixão tocasse nele. Ela, coitada, caiu dentro de um espinheiro e botou a boca no mundo com quanta garganta tinha.
Não adiantou eu explicar o ocorrido. Levei uma tremenda bronca, um tremendo puxão de orelhas e perdi a companhia de Bruno e Mirna. Do primeiro até que não reclamei, mas afastar a Mirna de nossa camioneta...
Chegamos a Cuiabá com todos alegres, menos Mirna, que estava ferida e ainda sentia a ardncia dos espinhos no rosto, e eu, que estava sob a ameaça de meu pai que prometia levar-me a um psiquiatra se eu não parasse imediatamente com a história do tal homenzinho verde.
Fui com eles a todos os lugares que “seo” Antnio tinha predito, mas só fiquei feliz mesmo quando me deitei com o ar refrigerado ligado e a bendita escuridão me ocultando do resto. Fiz voto de silncio. Daquela noite em diante eu não falaria com ninguém, exceto com meus pais e assim mesmo só o estritamente necessário. E se o peste verde aparecesse, eu manteria absoluto silncio e não diria a niguém o que ele quisesse aprontar.
Amanheceu. Tomamos o desjejum – gostoso, rico em coalhada, queijos e frutas, principalmente melancia e mamão. Terminado o repasto não tivemos tempo de zanzar pela cidade para conhec-la. Partimos imediatamente para Buriti, um vilarejo já dentro da Chapada dos Guimarães. A estrada era asfaltada e a viagem foi relativamente boa. Mas não paramos no vilarejo, como eu esperava. Seguimos em frente e desta vez por uma estrada de terra batida. As camionetas sacolejavam com vontade e nós tínhamos de ficar fechados o tempo todo porque lá fora uma poeira vermelha cobria tudo. Foi mais noventa minutos para conseguirmos chegar à vilazinha denominada Rio da Casca, último marco da civilização dentro da região. Sinceramente, eu não achei nada uma grande coisa. A tal Rio da Casca só tem poeira e casitas pobres. As árvores são entanguidas e a maioria é piquizeiro e capim. Luz elétrica nem de longe. Tinha acontecido um incndio criminoso e os postes, de madeira, haviam sido atingidos. Os fios derrubados e partidos não conduziam a eletricidade até a vilazinha. Mas a gente chegou de dia e só sentiu a falta d’água gelada. Ficou acertado entre nossos pais que dormiríamos na vilazinha e só partiríamos no dia seguinte, descansados da longa jornada. “Seo” Antnio contratou um velho guia seu conhecido e a quem chamava de Fuzó. Fuzó era um mestiço legítimo de índio com branco. Pele avermelhada, olhos amendoados, barba ralíssima, só com uns fios espetados na ponta do queixo e nos cantos da boca de lábios finos. Nariz grosso e olhos escondidos sob salientes ossos orbitais cobertos de uma leve penugem à guiza de sobrancelha. Fuzó tinha belos dentes alvos e um jeito muito arredio de lidar com a gente, mas naquele seu jeito de matuto, ele era simpático e observador como ninguém. Bruno logo entabolou uma conversa com o guia, mas este era muito silábico. Ele parecia me observar com muito interesse, porém eu estava firmemente decidido a manter meu voto de silncio e não puxava conversa com ninguém. Depois de nos conhecer e ouvir os desejos de grupo quanto à expedição, Fuzó sumiu como fumaça no ar. Eu me mantive afastado das outras crianças e não foi difícil, pois eles mesmos me evitavam.
Bruno pegou sua atiradeira e foi para os arredores da vilazinha seguido das meninas. Voltaram com cinco calangos, quatro rolinhas e trs carriças mortos a pedradas. Deram tudo aos dois gatos da pousada e fizeram isto às esconças.
Eu vi o homenzinho verde acompanhando os trs para onde quer que eles fossem e quando eles entregaram os bichinhos mortos para os gatos comerem, o verde-amarelinho ficou de pé ali perto, olhando para aquilo com uma cara muito séria. Depois, ele veio postar-se diante do Bruno e fez uns gestos esquisitos com as mãos. Com a direita fez trs círculos no ar e gerou pequenos círculos de luz laranja, que, pegou com a esquerda e lançou nos punhos de Bruno. Aqueles círculos se prenderam nos braços do karateca como se fossem algemas, mas ele não demonstrou ter sentido nada. A seguir o verdinho vez uma estrela de cinco pontas com a mão esquerda em cor vermelho-escuro e jogou uma no peito do Bruno, uma no peito de Laís e uma no peito de Mirna. Aquilo grudou neles e eu não sei porque ficou parecendo a cabeça de um bode. Tinha duas pontas para cima e uma para baixo. Depois ele me olhou com raiva e me jogou uma espécie de flecha de luz verde-musgo, mas errou. Eu me abaixei e a seta espatifou-se na parede atrás de mim. Corri pra dentro da pousada sufocando um grito de medo para não despertar a atenção dos adultos e a gozação de meus companheirinhos de aventura. O verdinho não me perseguiu.
No dia seguinte bem cedo, o sol mal roseava o horizonte, o Fuzó chegou. Trazia uma corda de couro trançado enrrolada e atravessada no ombro, um grande facão de mato na cintura e um chapéu de palha na cabeça. Estava descalço. Fomos de carro até bem próximo do plat. Dali em diante tinha de ser a pé.
Nós estávamos todos com calças jeans, tnis, camiseta e bonés. Os homens levavam tanta coisa que eu não sei como é que podiam andar. Nossas mães não ficavam atrás e cada uma delas levava uma mochila volumosa nas costas. Fuzó ficou encarregado do lampião de gás para o acampamento. Quanto à comida, ele só permitiu que levássemos um quilo de sal, ovos cozidos e alguns pacotes de macarrão. Nada de latas ou garrafas de bebidas alcoólicas ou refrigerantes. Beberíamos água natural, das inúmeras fontes que ele asseverou que íamos encontrar lá em cima.
Bruno colocou a atiradeira na cintura, debaixo da camisa, e procurou ficar sempre para trás do grupo.
O sol estava esfuziante e o céu azul anil. Era muito cedo, ainda, mas já sentíamos os efeitos de seus raios.
Diante de nós havia um paredão que me pareceu intransponível. A cada momento em que nos íamos aproximando dele, mais e mais aquilo parecia crescer e crescer. Avançávamos devagar porque o peso nas costas fazia com que os adultos perdessem a velocidade e o chão sempre em aclive dificultava a caminhada. O suor já fazia as camisetas colarem nos corpos e a respiração ficava arfante a cada passada na senda que ía, a pouco e pouco, tornando-se mais e mais difícil. Estreitava-se e tinha momentos em que as pedras ameaçavam nossos tornozelos com torcicolos monumentais. Após uma hora de caminhada todos estávamos sendentos. Fuzó era o único que não suava e andava tão lépido como se passeasse na Av. Paulista. Então, a senda passou a ser paralela ao paredão, distando talvez uns trezentos metros dele. Houve um momento em que descia. Que alívio. Surgiu uma mata cerrada e nós nos embrenhamos por ela. Fuzó parou e apontou para o chão.
— A trilha que estamos seguindo é feita por onças – disse. – Foi um alvoroço entre as mulheres. O mestiço sorriu um sorriso leve e seus olhos me fitaram como se querendo dizer alguma coisa, mas eu desviei o olhar. No íntimo estava grato à sombra fesca das árvores e bem gostaria de saber quando é que íamos encontrar uma fonte para saciar nossa sede, mas mantive meu voto de silncio. Principalmente porque eu desejava que fossem o Bruno e as meninas a pedirem arrego primeiro. Mas eles não faziam isto e eu tinha de me agüentar o quanto podia.
À medida em que avançávamos a mata ia ficando mais e mais fechada. As árvores tornavam-se grandes e muito copadas, fechando a passagem dos raios solares. Todos passamos a sentir frio devido às camisas suadas em nossos corpos. Andamos por mais meia-hora alí por dentro e o papaguear das mulheres foi diminuindo devido ao cansaço. No alto, uma algazarra enorme de pios de aves descia sobre nós. Vi o Bruno disparar sua atiradeira uma dúzia de vezes e tive a satisfação de v-lo errar todas as pedradas. Currupiões pretos de asas e bicos amarelos-vivo trinavam alegremente. Pica-paus de corpos pretos e cabeças vermelhas com uma coroa de penas amarelas na cabeça bicavam as árvores fazendo um ruído estranho, como o de uma porta enferrujada que estivesse sendo aberta. A sinfonia da mata era inebriante. E foi quando a gente menos esperava que surgiu o regato.
CAPÍTULO V
O VERDINHO COMEÇA A APRONTAR
O regato tinha águas frescas e transparentes e cantarolava por entre as pedras com um barulhinho de ninar. Tudo parecia uma sinfonia de Deus. Corremos para ele, mas Fuzó nos parou antes que nos metssemos na água.
— Esperem! É desta água que vamos beber – disse ele. – Primeiro a gente recolhe a água na folha orelha-de-elefante. Se trazem cantis, encham.
Antes que perguntássemos o que era aquilo, ele já estava arrancando uma folha larga, em forma de coração e muito forte. Dobrou em forma de cone e recolheu a água que bebeu para nos mostrar como fazer. Logo, todos estávamos bebendo. A água estava gelada e era muito gostosa e leve. Não tinha o sabor pesado da água tratada da Bilings que abastecia São Paulo.
— Mais adiante tem um poço – informou Fuzó. – Podem tomar banho lá, se quiserem.
— Eu quero – disse mamãe toda assanhada.
— Acho que todos queremos – falou “seo” Pacheco, pai de Mirna.
— Então, vamos em frente – disse Fuzó e se ps a andar. Todos o seguimos. Agora as mulheres voltavam a conversar com novas forças nas linguas tagarelas. O Bruno cercava Fuzó fazendo mil e uma perguntas sobre as árvores e os pássaros e o guia respondia com frases curtas. Mirna e Laís caminhavam de mãos dadas e juntas a papai, que levava sobre os ombros, confortavelmente instalado, o Piunga.
Vinte minutos de caminhada por entre cipós e pedras redondas, ouvindo o delicioso marulho das águas do riacho e chegamos a um lugar cinematográfico. Descendo pela mata que ascendia um paredão de barro e pedras negras, o riacho se despencava de uns cinco metros de altura, formando uma lagoa de uns quatro metros de dimetro com água cristalina espumejante.
Enquanto todos se afanavam para encontrar um lugar onde trocar de roupa, homens para a esquerda e mulheres para a direita da mata, eu permaneci ali, olhando para as águas claras. O fundo do lago era de uma cor ferrugem e emprestava à água límpida um colorido de sangue em algumas partes. Fuzó aproximou-se de mim e colocou sua mão áspera sobre meus ombros.
— Não vai mergulhar? – perguntou.
Eu o olhei e fiz uma negativa com a cabeça.
— Não fala? – tornou ele a perguntar olhando para mim.
Tornei a menear negativamente a cabeça.
— É por causa do Duende Verde, não é?
Tomei um danado de um susto com a pergunta de Fuzó. Então, ele também conhecia o verde-amarelinho, afinal de contas. Não me contive e perguntei:
— Voc também conhece o homenzinho verde?
— Claro que sim – respondeu Fuzó sorrindo com os olhos vivos para mim. – Agora, diga, o que ele fez a voc?
— Nada. Ele só parece estar zangado comigo, só isto – respondi.
— Então, por que está assim, chateado?
— É que ninguém acredita que eu vejo o talzinho, ora. Papai anda me ameaçando com um psiquiatra, se eu insistir em dizer que vejo o homem verde.
— Não sei o que é o tal de psiquiatra, mas não deve ser algo bom, já que fez voc se calar deste modo. Quanto ao Duende, ele está zangado, sim, mas não é com voc, não.
— E com quem é, posso saber?
— Acho que é com o seu amiguinho, o garoto chamado Bruno. Ele anda com uma baladeira matando o que v pela frente, não é?
— Sim, anda.
— Escute, é bom avisar ao Bruno que isto é muito perigoso por estas bandas. Os duendes não toleram os seres humanos e gostam menos ainda daqueles que adoram matar animais e aves inocentes.
— Eu não vou falar com ele coisa nenhuma. Ele está de mau comigo. Além disto, ele luta karat e eu tenho medo de apanhar dele.
— Ah... E o que é karat? – perguntou Fuzó.
— Uma arte de lutar com mãos limpas – respondi.
— Estranho – disse Fuzó após ficar olhando com o cenho franzido para a água cor de ferrugem. – Não sabia que existia uma luta na qual a gente tem de limpar as mãos antes de começar a distribuir pancada nos outros. Vocs, da cidade grande, inventam cada uma...
E o guia afastou-se de mim meneando a cabeça, incrédulo.
Os outros começaram a chegar e se atirar dentro do lago numa grande algazarra. Eu me afastei dali e entrei na mata. Fui andando, andando... E de repente não estava mais ouvindo o barulho do pessoal na água nem o ruído da cachoeira. Parei para tentar ouvir e nada. Só uma grande algazarra de aves na copa das árvores. Olhei para cima e tomei um susto danado, gente. Lá em cima, de mistura com as aves, estava um batalhão de homenzinhos verde-amarelos. Eles falavam na linguagem das aves com elas e entre si. Pareciam não ter notado minha presença no lugar. Eu procurei uma moita e me agachei atrás dos arbustos. Dali pude ver o meu amigo careca contando alguma coisa a todos. Aves e homenzinhos estavam muito atentos ao verdinho de minha agonia e ele parecia estar mais zangado que nunca. Senti uma pressão em meu ombro e me virei assustado. Dei com o Fuzó que me olhava e me impunha silncio com um dedo sobre os lábios.
— Venha, vamos voltar. Não é prudente ficar longe do grupo. Aqui tem muita onça suçuarana. Elas não costumam atacar adultos, mas crianças podem ser uma grande tentação.
Ele pegou minha mão e nos afastamos em silncio. Eu cheguei a apontar para o alto, mas Fuzó não olhou para cima. Simplesmente me puxou de volta. Andamos um bocado até chegar ao lago novamente. Eu não tinha idéia de que tivesse me afastado tanto, palavra. Quando chegamos, encontramos todos aflitos com o meu desaparecimento e foi só quando meu pai falou da hora que eu me toquei. Estivera fora quase duas horas e, no entanto, tinha a nítida impressão de que só me ausentara uns poucos minutinhos.
Quando, finalmente, todos se acalmaram após muita repreensão pra cima de mim, Fuzó anunciou:
— De agora em diante nós vamos começar a subir. Só à noitinha é que chegaremos no alto do plat. Com o atraso que tivemos por causa do Edu – alguém dissera a ele o meu nome – acho que chegaremos com o céu estrelado. Ponham roupas grossas e de mangas compridas. Os mosquitos vão estar sedentos.
Fuzó iniciou a caminhada e todos o seguimos. Ele puxava no passo e logo todos começamos a resfolegar. A mata foi sumindo e um paredão arenoso começou a dominar a paisagem. A subida se tornava íngrime e cada vez mais e mais difícil. A senda foi-se estreitando e ao nosso lado direito um abismo começou a tomar vulto. Agora, as copas das árvores ficavam lá embaixo, formando uma massa compacta. Arbustos duros, às vezes espinhosos, ladeavam o chão ou saiam do paredão de terra seca em que vez por outra éramos obrigados a buscar apoio para os dedos.
Andamos, andamos, andamos, e nada de a subida acabar. O sol já não clareava diretamente a gente e uma sombra incmoda começava a dificultar nossa visão do cenário gigantesco que se descortinava ali de cima. As copas das árvres, agora, não eram mais assim tão visíveis e eu tinha a impressão de que lá embaixo havia um gostoso colchão verde chamando por nossos corpos cansados.
— Ainda está muito longe? – ouvi a voz de mamãe, arfante, fazendo a pergunta.
— Sim, está – foi a resposta de Fuzó.
— São quase cinco horas, Álvaro. Será que vamos continuar a subida à noite, também? – falou ela para o meu pai.
— Sim, querida, vamos. Não temos como acampar aqui na trilha. Além de estreita ela deve ser passagem de onças e outros animais selvagens. Agüente firme.
Aquilo deu forças redobradas à mamãe. Ela tremia só de ouvir a palavra onça. Para ela, todas eram famintas, assassinas e gulosas.
Homens, mulheres e crianças, todos tínhamos trocado os tnis pelas botas de alpinismo com cravos nos solados, exceto Fuzó que andava descalço. No princípio eu achei aquilo muito incmodo, mas agora, quando a pista era muito estreita e arenosa, abençoei o guia por ter mandado que trocássemos os calçados. Os tnis escorregariam ali facilmente e nenhum de nós tinha asas para planar até o falso colchão verde lá embaixo.
Agora, só o céu estava avermelhado pelos últimos raios do sol que se deitava para o sono repousante. Os homens distribuiram lanternas de focos potentes entre si. À frente ía Fuzó, sem qualquer luminária nas mãos e com o Piunga nos ombros. Atrás dele, papai com uma lanterna. Depois, mamãe, Laís e eu. Aí vinha “seo” Pacheco com outra lanterna, seguido de dona Sílvia, Mirna, dona Ana e Bruno. Fechando o grupo vinha “seo” Antnio com outra lanterna. Todos estávamos amarrados uns aos outros pela corda que Fuzó havia trazido. Caminhávamos, agora, muito mais lentamente, pois a visão da senda era muito difusa e isto tornava a subida bem mais perigosa. De repente uma lua gigantesca, a maior lua que já vi na minha vida, surgiu adiante de nós, como se saindo de detrás da curva do paredão a uns duzentos metros de onde estávamos.
— Apaguem as lanternas – ordenou Fuzó.
Os homens obedeceram e todos paramos para acostumar nossos olhos à mudança de luz. E foi lindo. Jamais pensei que a Lua iluminasse tão fortemente no sertão. A senda surgia claramente sob nossos pés e pudemos continuar a avançar com desenvoltura.
Estávamos todos alegres com aquele encanto, quando ouvimos pela primeira vez o miado da suçuarana. Um silncio pesado caiu no grupo.
— É onça? – perguntou com voz sussurrada a mãe de Mirna.
— É – respondeu alguém no mesmo tom.
— Não temam – gritou Fuzó. – É só uma suçuarana. Está à nossa frente e já nos farejou. Ela não virá contra nós. Está subindo a senda para se afastar. As onças, mesmo as pintadas, não gostam dos seres humanos e só atacam se se encontrarem acuadas ou paridas. A que está à nossa frente é um macho.
— Como sabe? – perguntou papai, admirado.
— Pelo miado – respondeu Fuzó. – Pelo miado e pelo tamanho do rastro no chão.
Olhei para a senda e não consegui ver coisa nenhuma. Certamente Fuzó via as pegadas da bicha porque ía na frente de todos. Não havia ninguém para apagar o rastro diante dele.
A senda foi-se estreitando até desaparecer. Estávamos, agora, diante de rochas arenosas e em fila sobre um precipício de mais de duzentos e cinqüenta metros de altura a nossos pés.
— Desamarrem-se e me dem a corda – ordenou Fuzó, colocando Piunga cuidadosamente no chão. Fizemos o que ele mandava e lhe passamos a corda. Fuzó enrolou-a de través no ombro e como um macaco começou a subir pelas rochas com uma rapidez assombrosa. Logo desapareceu de nossas vistas e eu fiquei me sentindo estranhamente sozinho, apesar de estar na companhia de tanta gente. Não sei quanto tempo demorou para o ouvirmos gritar de algum lugar lá em cima.
— Amarrem o garotinho na corda. Eu vou puxá-lo!
Papai fez como era ordenado, apesar da aflição de mamãe e o Piunga lá se foi subindo até desaparecer também. Então a corda voltou a ficar dependurada bem diante de nossos narizes.
— Amarrem a menina menorzinha! – gritou Fuzó. Era a Mirna. Ela esperneou e chorou, quando começou a ser içada. Agarrou-se na corda e procurou afastar o corpo das rochas com os pés. E lá se foi ela gritando e fazendo um montão de cascalho com areia cair em cima da gente. Depois foi a vez da Laís e logo a seguir, a minha vez. Subi arrastado por uns vinte metros e até que aquilo não foi mau. Dava um arrepiozinho de medo na coluna vertebral, mas ficar dependurado sobre o vazio até que era bom. Foi uma grande surpresa quando cheguei até os outros. Lá em cima não havia uma trilha, mas quase uma estrada de tão larga que era a pista. Fuzó pediu nossa ajuda para segurarmos a corda enquanto os homens subiam. Finalmente, juntando forças, eles içaram as mulheres. A alegria foi geral quando todos comprovaram o que eu já havia visto – a trilha era, agora, uma agradável estrada que subia num aclive menos íngrime.
— Que tal a gente acampar aqui e prosseguir amanhã? – sugeriu Da. Ana.
— Não – respondeu Fuzó. – Por aqui costumam andar cascavéis e não é nada bom ter uma em nossos lençóis. Elas são atraídas pelo calor dos corpos vivos. Não vem nem ouvem, mas tm grande sensibilidade no corpo para calor e vibração do solo, entendem?
A alegria acabou rapidamente. Todos queríamos sair dali o mais depressa possível. Cobras são piores que onças. Andam em silncio e a gente nunca sabe de onde estão vindo.
A luz da lua era esfuziante, mas as mulheres tinham as lanternas acesas e clareavam o chão como se procurassem agulha na terra solta. Acho que cada uma queria encontrar uma cobra primeiro que a outra, mas não deram sorte. Não apareceu nem mesmo um piolho durante a caminhada final.
Final? Conversa, gente. Aquela caminhada era o início de tudo.
CAPÍTULO VI
QUE NOITE!
Acendemos os lampiões e rapidamente armamos as barracas. As muriçocas estavam atentadas e não respeitavam nem o repelente. A mãe de Mirna, Da. Sílvia, foi quem mais se ferrou. Ela não estava com calças compridas porque não tinha trazido duas e a que trouxera estava muito suja e suada. Teimou em colocar vestido e meias longas e passar o repelente. Não adiantou de nada. Levou cada ferroada de amargar. Eu bem gostaria que as diabinhas zumbidoras afiassem seus biquinhos infernais nas pernas e braços do Bruno, mas elas ignoravam solenemente o peste.
Quando nós, homens, acabamos de armar as barracas, as mulheres tinham aprontado uma gostosa macarronada. Comemos até rachar e foi só aí que eu descobri que minha dorzinha de cabeça era de fome.
Ninguém tinha nenhuma disposição para mais nada. Estávamos todos estourados e cada qual se meteu na barraca para dormir. Os miados das suçuaranas e os ruídos esquisitos dentro da noite já não assustavam mais. Eu não sei se dormi de imediato, mas sei que dormi muito. Acordei com um ruído indefinido bem perto de meu ouvido. Fiquei quieto prestando atenção naquilo até que identifiquei o que era. Alguém arranhava a barraca de leve pelo lado de fora. Vi a silhueta recortada contra a lona por causa do lampião que foi deixado aceso. Era o karateca desmiolado. O que diabo estaria fazendo ali fora àquela hora da noite? Que eu soubesse, à noite só corujas e morcegos voam. Será que o atentado estava querendo pregar umas pedradas nestes notívagos?
A mão do Bruno voltou a arranhar a lona bem próximo a mim. Fiquei intrigado. Como é que ele podia saber que eu estava deitado justamente ali? Com cautela eu me sentei. Aí, vi a mão do Bruno fazendo sinais de quem está chamando alguém lá pra fora. Com muito cuidado eu me ergui e passei pé-ante-pé por cima da Mirna e do Piunga. Depois passei sobre as cabeças de mamãe e de papai e desamarrei a porta da barraca. Desci o fecho e saí o mais cuidadosamente que pude, fechando logo a saída para que as muriçocas não entrassem lá e fizessem um estrago nos outros. Procurei o Bruno com os olhos e o vi lá embaixo da rampa que ía dar direto na pista larga que tínhamos subido para chegar até ali. Ele me acenava chamando. Apesar do medo das onças que eu ouvia miando algures por ali, corri para onde ele estava, mas o diabo do karateca não esperou que eu chegasse até lá e sumiu entre os arbustos. Parei hesitante e olhei para trás. Tomei um susto danado. Laís estava correndo em direção contrária. Que raio de coisa ela estava fazendo? Para onde ía daquele jeito? Eu ía gritar por ela quando vi a Mirna sair de dentro de sua barraca e também correr na mesma direção onde minha irmã acabava de sumir. Larguei do Bruno e corri atrás delas. Eu estava muito longe, uns setenta metros de onde elas tinham acabado de desaparecer, e corria barranco acima, escorregando e caindo. As duas tinham sumido dentro de uma touceira de mato muito verde. Cheguei lá esbaforido e pondo os bofes pela boca. Não vi nada. Não tinha viv’alma nem ali, nem até onde minha vista podia alcançar. Olhei bem dentro da moita, afastando os galhos e só vi um baita formigueiro em grande atividade. Eram saúvas que, em Goiás, chamam de cabeçudas.
— Laís! Mirna! Onde estão vocs?
Ninguém me respondeu. Tornei a gritar, desta vez o mais alto que pude. Nada. Quer dizer, quase nada. Um miado forte de uma onça me fez dar um pulo. A peste estava muito perto de mim. Disparei na corrida de volta para o acampamento e escorreguei no meio da ribanceira. Desci o resto de roldão e gritando feito um desesperado pelo Fuzó, que passou por mim feito um raio soltando estranhos sons e agitando alguma coisa nas mãos que, só depois, vim a saber ser um relho – um pedaço de couro com as pontas abertas em cinco, amarrado num pequeno cacete e que o pessoal do mato usa para bater nos burricos e incentivá-los a andar mais depressa. Cada uma das cinco pontas tem um nó bem no fim, de modo que quando batem na barriga do animal deixam uma marca muito feia. Deve doer pra diabo, aquilo. Pus-me de pé a tempo de ver o relho do Fuzó acertar o focinho da suçuarana. A onça, que eu conhecia como o famoso puma dos filmes de cawboys na TV, soltou um miado desesperado e ergueu-se nas patas traseiras tentanto gadanhar o relho sem sucesso. O Fuzó era muito rápido com aquilo e estalou uma tremenda relhada bem na barriga da bichona. Ela deu um pinote danado de alto e soltou um berro de dor. Quando caiu já estava disparando rumo ao alto e sumiu como por encanto. Fuzó veio em minha direção e o resto de todo o acampamento, pois meus gritos tinham acordado a todos.
— O que faz aqui fora? Por que se distanciou do acampamento assim, sozinho?
Fuzó falava sem censura nenhuma na voz. Apenas curiosidade. Já minha mãe, não. Vinha destrambelhada e se agarrou comigo como se eu fosse o último ser vivo da terra.
— Meu filho, meu filhinho, que bom que o Fuzó ps a onça pra correr!
Mamãe chorava e ria ao mesmo tempo. Eu estava zonzo. Queria falar, mas todo mundo falava junto e não dava para eu ser ouvido. Só pude ouvir o Fuzó explicar que acordou com os meus gritos e quando me viu, eu estava rolando a ribanceira com a suçuarana no meu encalço. Ele mal teve tempo de pegar o relho e correr em meu socorro.
— Se fosse uma pintada, ele ‘tava frito – terminou o Fuzó, meneando a cabeça desolado. E foi aí que minha orelha esquerda esticou como se fosse de borracha. Aquilo doeu pra burro, rapaz. E não é que era a peste da mamãe? Ela passava do amor desesperado para uma raiva imbecil e, como sempre acontece quando ela fica com raiva, minha orelha predileta foi esticada sem dó nem piedade. Soltei o mais altissonante grito que pude. Não só de dor e surpresa, mas de raiva. Caramba, rapaz, como eu queria ficar bem maior do que ela e pendurar na sua orelha para ouvir-lhe o grito de dor. Como se não bastasse, minha mãe me desceu trs cascudos no alto do cocoruto de dar inveja ao Mike Tyson. Foi “seo” Álvaro que me tirou das mãos da... deixa pra lá! Se eu disser o que tenho vontade de dizer acho que vou ficar sem ambas as orelhas de uma só vez.
— Calma, dona Sueli! Vai terminar conseguindo uma inflamação de ouvido para o garoto.
— E isto não resolve nada – completou o Fuzó me puxando para o lado dele.
— É que ele me deixou nervosa – balbuciou mamãe, sem graça.
— Mas nenhuma orelha é remédio para nervosismo, dona – disse Fuzó friccionando a
vermelhona
ao lado de meu rosto.
— Des... desculpem... – e mamãe estava toda sem graça diante da censura que havia nos olhos de Fuzó.
— Vamos rapazinho – falou meu pai. – Quer-nos dizer o que fazia aqui fora?
— Eu... O Bruno me chamou. Eu vim atrás dele e...
— Qu? – espantou-se Da. Ana. – O Bruno também está aqui fora...?
— Bem, eu vi ele correndo lá pra baixo. Aí fui atrás dele, mas quando estava perto ele sumiu. Eu me voltei para olhar pras barracas e vi Laís correndo em direção àquela moita lá! Eu ía chamar por ela quando vi a Mirna saír da barraca dela e correr atrás da Laís. Eu, então, corri atrás das duas. Quando cheguei lá em cima, olhei pra todo lado e não vi mais nenhuma delas. Olhei dentro da moita e não vi nem sombra das duas. Foi quando a onça miou muito perto, eu me assustei e corri de volta. Escorreguei, caí, gritei pelo Fuzó e ele veio me salvar.
Quando terminei de falar e me virei para olhar os outros, estava sozinho da silva. Todo mundo tinha corrido de volta às barracas e me tinham esquecido ali, à merc das onças. Pode, uma coisa destas? Gente grande é difícil de compreender. Até minha mãe se escafedera gritando pela Laís, fazendo coro com Da. Ana e Da. Sílvia, que berravam em dueto pelos seus respectivos rebentos. E quando viram que os trs realmente tinham sumido foi um salve-se quem puder. Gritos, choros, chamamentos histéricos, correria, lanternas... um fuzu dos diabos. As mulheres gritavam, choravam e puxavam os cabelos, enquanto os homens gritavam ordens desencontradas. E eu fiquei ali, aparvalhado, vendo o desespero deles totalmente esquecidos de mim. Só o Fuzó parecia calmo. Ele estava bem perto de minha barraca e estudava o chão cuidadosamente. Caminhei até ele, que me olhou com o cenho franzido e fazendo sinais para que eu não me movesse. Ele veio seguindo alguma coisa no chão que eu não conseguia ver e caminhou em direção à barraca dos outros. Eu o acompanhei, procurando ficar bem atrás dele para não atrapalhar fosse lá o que fosse que estivesse fazendo. Então o Fuzó ficou de pé e coçou a cabeça com ar preocupado.
— O que foi? – perguntei curioso.
— Foi Kiztishimanncommun – murmurou ele olhando de cenho franzido para o vazio da noite.
— Quem? – perguntei eu sem entender o que ele havia dito.
— Foi o seu homem verde, garoto. O nome dele é Kiztishimanncommun. Ele veio buscar vocs para encantar.
Encantar? Que negócio era aquele que o Fuzó estava falando? Não fazia sentido para mim.
— O que quer dizer com isto? – perguntei abobalhado.
— Para onde é que eles pensam que vão? – falou Fuzó entredentes e correndo em direção a meu pai e os outros que, de lanternas acesas, já se dirigiam para o alto da ribanceira dispostos a vasculhar a região em busca dos outros.
— Corra para a sua barraca, garoto – ordenou Fuzó olhando-me nos olhos com uma expressão de meter medo. – Fique bem perto de seu irmãozinho e aconteça o que acontecer, não saia de lá nem deixe que ele saia, está compreendendo? O duende não vai desistir de apanhar ele também.
Duende...? Mas que história de duende era aquela? Ele vinha falando de duendes há algum tempo, mas é claro que estava querendo me gozar. Duendes só existem nos livrinhos de histórias para crianças bobinhas como o Piunga. Pelo menos era o que o meu pai sempre dizia. Fui andando para a nossa barraca ainda duvidando da sanidade do Fuzó. Só mesmo um homem simples como ele podia acreditar em duendes. Entrei na barraca e encontrei o Piunga chorando a bom chorar. Estava com muito medo e nem mamãe nem papai tinham dado qualquer atenção ao seu choro. Eu me abracei com ele e ele foi-se acalmando. Ficamos quietos ouvindo o Fuzó que gritava lá fora.
— Voltem todos! Voltem, não vão encontrar nada aí. Nem que vasculhem debaixo de cada pedra na Chapada ou dentro de cada moita não vão encontrar nada. Não vai ser assim que vamos encontrar os desaparecidos. Voltem e me ouçam!
Ouvi um leve arranhar na lona da barraca e me voltei para lá. Era o peste do Bruno... Ou será que não?
— Fique aqui, Piunga. Não saia, está entendendo?
— Hum-hum – fez ele acenando com a cabecinha.
— Eu vou pegar o falso Bruno que está lá fora. Fique aqui!
Eu saí e vi o Bruno afastando-se em direção da ladeira novamente. Apanhei uma pedra e corri atrás dele, mas não cheguei a dar mais que uma dezena de passos quando o Bruno desapareceu atrás de umas pedras. Foi aí que ouvi o grito do Piunga. Virei-me e vi o Bruno correndo com ele dependurado debaixo do braço como se fosse um boneco desengonçado. Não era o Bruno. Era o tal duende!
— Volta aqui com o meu irmão, Kizmanchum! Larga o Piunga, duende de uma figa! MAMÃE! O DUENDE ‘TÁ ROUBANDO O JÚNIOR! MAMÃE, PAPAI, FUZÓÓÓÓÓÓ!!!
Ninguém me ouvia. Eles estavam numa acirrada discussão com o Fuzó porque este tentava impedir que fossem atrás dos outros. Corri até eles e puxei a mão de papai.
— O que é? – gritou ele, raivoso.
— O duende verde acaba de roubar o Piunga, pai!
Fez-se um silncio súbito e todos olharam para mim.
— O que voc disse? – perguntou mamãe avançando em minha direção. Tratei de proteger as orelhas com as mãos sobre ela e recuei até encontrar as pernas do Fuzó.
— Kiztshimanncommun levou o seu irmão, também? – perguntou Fuzó.
— Levou, sim. Ele veio como Bruno e...
— Eu sei, eu sei.
Fuzó desceu para junto das barracas me levando pela mão. Parecia estar desanimado e muito preocupado.
— ESCUTEM TODOS! – berrou ele a plenos pulmões. Surtiu efeito. Todo mundo parou a algazarra e se virou para ouvir o guia.
— Quero que venham até aqui perto de mim, vamos ficar bem junto do lampião. Preciso ver a cara de cada um, quando falar – ordenou o Fuzó. Não sei porque, mas ele me pareceu muito grande, maior que todo mundo, naquele momento.
Todos obederam à ordem imperiosa e dada em tom de quem não admite questionamentos. Quando se formou um círculo em torno do guia, ele pigarreou e preparou um cigarro de palha que acendeu pacientemente. Então, depois de duas baforadas, estendeu aquilo pra mim e me ordenou que fosse colocá-lo sobre uma pedra logo adiante.
— Por que faz isto? – perguntou “seo” Álvaro, curioso.
— Entre os índios – começou Fuzó – é costume fumar um cachimbo quando se deseja obter a paz com o visitante. Este costume eles aprenderam com os Duendes e os Gnomos, principalmente com estes últimos. Eu estou pedindo paz aos duendes.
— Duen... Mas o que está dizendo, homem? Voc acredita mesmo em duendes?!
Era “seo” Pacheco, pai de Mirna, que era mais ateu do que uma pedra.
— Escute aqui, senhor – disse Fuzó enquanto eu voltava a me postar perto dele, após ter colocado o cigarro onde ele mandara colocar. – Os duendes existem quer o senhor acredite neles ou não. É como o Sol. Ele existe independente do cego de nascença negar de pés juntos que exista, compreende?
Foi o olhar duro mais do que as palavras de Fuzó que fizeram “seo” Pacheco calar a boca.
— Muito bem, agora, escutem todos. Nenhum de nós pode fazer absolutamente nada para salvar as crianças roubadas pelo duende. E ele fez isto porque está raivoso contra o menino Bruno.
— E por que ele está zangado com meu filho? – perguntou Da. Ana com angústia na voz.
— Porque ele andou matando pássaros e calangos sem haver nenhuma necessidade para isto.
— Quer dizer, então, que o tal homenzinho verde que o Edu tem jurado que v existe mesmo? – perguntou mamãe, perplexa.
— Sim, senhora.
Exultei. Agora, os grandões tinham a prova de que eu não estava doido e precisando de psiquiatra, não.
— Meu Deus... – murmurou Da. Sílvia levando a mão à boca.
— Mas... O que vamos fazer? – perguntou “seo” Antnio. – Eu não vou ficar parado e deixar que meu filho suma assim, sem mais aquela, ora bolas!
— Não adianta espernear, doutor – sentenciou friamente o Fuzó. – O Bruno, principalmente ele, dificilmente voltará, eu lhe garanto.
— E... e o que vai acontecer ao meu filhinho...? – Dona Ana começou a chorar desconsoladamente no que foi acompanhada por todas as outras mulheres.
— Bem... é muito provável que seja transformado numa ave... um pássaro preto ou uma rolinha, e será colocado diante de outro menino tão mau quanto ele para que morra com uma pedrada na cabeça, tal como matou as avezitas, antes – disse Fuzó sem qualquer piedade na voz. O berreiro aumentou.
— E minha Mirna? Ela não matou bicho nenhum, a pobrezinha! – choromingou dona Sílvia.
— É verdade. Nem ela, nem a Laís, nem o Piunga. Mas os duendes estão zangados com os pais das crianças, porque não ensinaram a elas a respeitar a vida. Assim, se eu conheço bem o chefe deles, os trs serão transformados em calangos e colocados em casas onde hajam gatos. Fatalmente serão caçados e devorados pelo bichano, tal como os calangos que o Bruno matou e deu a comer ao gato lá da pensão – disse Fuzó com um suspiro e olhando desanimado para a escuridão da noite. – Quando eles forem devorados as mães vão sonhar com seus filhos sendo comidos por uma onça... ou um bicho parecido. Será a comunicação dos duendes a elas sobre o destino dos seus filhos. O sonho será levado até cada uma delas pelo Curupira, que é muito amigo dos duendes. É assim que é o encanto.
As mulheres berravam desesperadas, cada qual chamando pelo seu filho. Os homens entreolhavam-se incrédulos.
— Isto é um pesadelo – disse meu pai, passando a mão pela cabeça e olhando Fuzó nos olhos. – Não pode estar acontecendo. As crianças saíram e estão em alguma gruta, por aí...
— Realmente, o senhor acertou em cheio – falou Fuzó, chamando a atenção de todos para si. – Elas foram levadas para uma gruta. É nas entranhas da terra que vivem os duendes...
— Ótimo! – exultou “seo” Pacheco. – A gente só tem que encontrar a tal gruta e...
— Não vão encontrar – cortou Fuzó. – É uma gruta encantada, compreendem? A entrada dela é aberta onde os duendes querem. Depois, eles fecham e pronto. Quando o Edu correu para a moita onde viu as meninas desaparecerem é porque os duendes tinham aberto a porta de sua gruta justamente ali, perto da moita. Agora que tm as crianças dentro da terra, fecharam a entrada. Ninguém pode chegar lá sem que tenha a permissão do chefe dos duendes.
Novo silncio só cortado pelo pranto das mães desconsoladas. Eu senti as lágrimas subirem aos meus olhos. Agora, eu descobria que amava minha irmã e não queria que ela fosse comida por um gato, não. Principalmente o pobre do Piunga. Ele era tão bobinho!
— Fuzó – chamei com a voz sufocada. – Por que o duende verde não me levou também?
— Eu não sei. Voc devia ter sido levado. Eles não costumam perdoar nenhuma criança, quando resolvem punir um grupo. Talvez porque voc não tenha participado dos assassinatos que o Bruno cometeu...
— Meu filhinho não é um assassino! – gritou dona Ana fora de si.
— Sinto muito, senhora, mas para os duendes ele é, sim. E será punido como tal, pode acreditar.
— Não, e não! – gritou “seo” Antnio revoltado. – Nenhum duendezinho de nada vai fazer mal a meu filho. Eu não vou deixar!
Fuzó olhou para “seo” Antnio, em silncio. Sua expressão era por demais expressiva e ele parecia estar perguntando: “como?” com os olhos. “Seo” Antnio olhou para cada um de nós e recuou pondo as mãos no rosto e desatando num choro convulsivo. Ele caiu de joelhos e foi acompanhado por dona Ana, que se abraçou aos prantos com o marido.
— Espere aí, Fuzó – falou papai, respirando fundo. – Voc é daqui. Vive aqui há muito tempo. Sabe... tem conhecimento de coisas que nós da cidade nem desconfiamos. Deve conhecer um meio... alguém que possa chamar os duendes... Conhece, não conhece?
— Não, senhor Álvaro, infelizmente eu não sei de ninguém que possa chamar os duendes. Eles... eles não atendem aos humanos, não. E não pensam nem sentem como nós. A Lei deles é seca e dura, não é como a dos homens. Entre nós, um bom advogado com muita lábia pode transformar um criminoso em vítima e livrá-lo da pena. Mas entre os duendes...
Fuzó voltou-se para dona Ana e lhe passou a mão pela cabeça.
— Eu gostaria muito de poder fazer alguma coisa pelo seu filho, senhora, mas não é possível. Sinto muito...
Foi dona Sílvia que deu o alarma.
— Olhem lá! É uma onça bem perto de nossas barracas!
Sim, havia um puma rondando a barraca deles. O bicho parecia ignorar os lampiões e não se mostrava alarmado com o fogo. “Seo” Antnio sacou de uma pistola e apontou para a fera, mas antes que disparasse Fuzó segurou-lhe o pulso e gritou um “NÃO!” com toda a garganta que tinha.
— E por que não? – perguntou “seo” Antnio forcejando para soltar o braço sem o conseguir.
— Porque ela é o animal de tiro do duende chefe – respondeu Fuzó. – Se acertar nela, vamos todos ser punidos também.
— Ótimo! – gritou “seo” Antnio. – Se vão-nos levar para a tal gruta onde estão nossos filhos, então eu vou matar a onça, sim senhor!
— Não! Nós não seremos levados para a gruta encantada. Só crianças entram lá. Nós teremos nossa punição é aqui fora, mesmo – explicou Fuzó segurando a mão de “seo” Antnio sem largar.
— E qual seria esta... punição? – perguntou “seo” Pacheco.
— Não sei. Eles nos podem fazer perder a direção e morrer de sede bem perto de um regato. Ou podem fazer com que despenquemos pelos paredões rochosos, quando resolvermos voltar... Ou podem fazer o capim seco pegar fogo e nos matar queimados... Eles podem qualquer coisa. Estamos nas suas mãos. Acreditem, não podem ferir a onça.
— Mas se a onça é a montaria do duende chefe, então isto quer dizer que ele está por aqui, não é? – perguntou papai.
— Eu creio que sim. Ela só se aproximaria do fogo se viesse trazida pelo seu dono – explicou Fuzó. – O problema é que nenhum adulto tem o direito de ver um duende, assim, não sabemos como falar com ele...
— O Edu v o duende. Ele pode falar com o homenzinho verde! – gritou mamãe, esquecendo-se de que ela mesma fora a primeira a duvidar de mim.
— Quem eu?
Eu estava assustado de verdade. Se os diabinhos verdes podiam fazer os adultos de gato e sapato, o que dirá de mim.
— Tem razão. Vá lá, Edu, aproxime-se da suçuarana. O duende chefe deve estar montado nela – mandou Fuzó, mas ele devia estar ou de gracinha pra meu lado, ou pirado de vez. Querer que eu fosse assim, de peito aberto, pra perto da onça era o mesmo que mandar um rato fazer carinho nos bigodes de um gato esfaimado.
— Mas nem que a vaca tussa e o boi cuspa, meu! – gritei. – Ficou doido, é? Eu não vou virar comida de onça, não.
— Não tenha medo. Ela não vai-lhe fazer mal, eu juro! – afiançou Fuzó, mas sem sucesso. Eu não ía mesmo me aproximar da tal onça.
— Eu posso ir com ele? – perguntou papai.
— Acho bom, não – respondeu Fuzó. – O senhor é...
zafrum
.
— Eu sou... o qu? – perguntou papai sem entender o que era aquilo.
—
Zafrum
. É assim que os duendes chamam as pessoas das cidades.
Zafrum
quer dizer fedorento. Os senhores comem muita carne vermelha e muito tempero, compreende? Bebem vinho, whiskey e outras bebidas alcoólicas. Fumam cigarro e vivem zangados, estressados, agoniados. Isto suja suas auras e faz com que sejam mal-cheirosos para os seres das matas. Às narinas deles as auras das pessoas das cidades fedem como cadáveres em decomposição.
— Mas se um adulto não acompanhar o Edu ele não vai e eu lhe dou toda a razão. Há pouco escapou das presas de uma onça igual àquela lá – obtemperou papai.
— Tem razão... – concordou Fuzó e resolveu. – Bom, eu vou com ele. Não tenho vícios, não mato animais nem para comer e não causo dano às matas. Talvez o duende chefe me aceite.
— E se ele não aceitar voc? – perguntei.
— Então vou ter de lutar com a onça a mãos limpas – respondeu Fuzó tranqüilamente.
— E voc agüenta? – perguntei admirado.
— Eu não sei. Mas saberei, se tiver de brigar com a danada. Vamos?
Eu fiquei embasbacado. O Fuzó era bem mais valente do que eu podia imaginar. Como é que, sabendo que corria o risco de ter de se atracar com uma onça, não estava tremendo nem na voz e falasse comigo como se a gente fosse passear pela Av. Paulista ao meio-dia?
Ele me tomou a mão e se encaminhou em direção à onça com passos firmes. Eu estava fazendo força para não sujar as calças, principalmente quando os olhos amarelos do grande gato fulvo se fixaram em nós e ele arreganhou a bocarra mostrando os dentes ponteagudos.
— Fuzó – falei baixinho. – Acho melhor mudar de idéia. Aquela onça não parece estar querendo a gente por perto, não. E eu não estou vendo nenhum verdinho montado nela, Fuzó!
Mas o guia me ignorou e apertou minha mão na dele para evitar que eu fugisse apavorado. Chegamos a menos de dois metros do grande animal. A onça, apesar de esguia, era quase de minha altura. E tinha umas patonas de meter medo, meu. Eu tremia todo e queria ver um de vocs no meu lugar. Quando eu estava a ponto de me urinar, ouvi uma vozinha roufenha e asquerosa que vinha do lado direito da gente.
— Por que veio com o pirralho?
Era o duende chefe. Era feio como o diabo em pessoa. Tinha um nariz comprido e seco como um galho cortado fora. E era um nariz todo torto e cheio de calombos. A mãe dele devia ser parenta distante da minha e devia também gostar de dar cascudos só que não na cabeça, mas no nariz do infeliz. O duende era vesgo, gente. Um dos olhos dava a impressão de querer sair na porrada com o outro e só não fazia isto devido à intromissão do narigão entre eles. O feioso não tinha um dos dentes da frente, o que fazia que assoviasse ao pronunciar as palavras. Tinha na cabeça não o barrete verde, mas uma bela coroa toda de ouro amarelinho, amarelinho. Era a única coisa bonita nele. Os olhos do homenzinho eram muito maus e olhavam com aquela raiva que já me parecia ser característica deles. Deviam nascer xingando as mães por t-los parido, os feiosos. A gente não sabia para onde o rei dos duendes estava olhando, ainda que ele falasse conosco. Ele estava sentado numa pedra e não media mais que um palmo de altura. Era bem menor do que o verde-amarelinho que vinha me perseguindo desde o momento em que o Bruno teve a infeliz idéia de apedrejar a rolinha.
— Se eu não viesse com o menino, ele não teria vindo. Tem medo de vossa montaria – respondeu Fuzó calmamente.
— E tem razão de ter medo – riu o feioso. – Meu gatinho gosta muito de carne tenra, mesmo que seja de humanos.
— O que desejais aqui? – perguntou Fuzó. – Por que viestes em pessoa, quando podíeis mandar um súdito vosso?
— Porque tenho um assunto real a resolver e vai depender deste... deste mirrado aí de seu lado – respondeu o reizinho abusado.
— E em que o garoto pode ajudar a Vossa Magestade? – perguntou Fuzó. Eu não sabia onde ele havia aprendido a falar daquele modo empolado, mas se falava a um rei, falava corretamente.
— Sentem-se – ordenou o petulantezinho de meia-pataca.
— Obrigado, magestade – disse Fuzó, inclinando-se.
— Voc faz jus a esta minha magnanimidade – disse o homenzinho chato. – Voc não é mau como aqueles lá – e apontou com um dedinho cheio de anéis reluzentes para nossos pais, que nos olhavam sem entender com quem falávamos. Fuzó sentou-se e quando eu fui fazer a mesma coisa o reizinho rabujento vociferou um “não” raivoso.
— Voc fica de pé, meninozinho imprestável! – gritou ele paroxístico.
— Mas... – tentei protestar, porém Fuzó deu um puxão em minha mão mandando que eu me calasse. Fiquei de pé danado da vida com o baixinho safado e metido a besta. Bem que eu gostaria de ter em mãos a atiradeira do Bruno. Daria uma pedrada bem na testa do reizinho de m...
— Não daria não, “seo” estrume de minhoca – disse o homenzinho, mostrando que sabia ler pensamentos. Eu teria de ter cuidado com o que pensasse na frente do peste.
— Estamos ouvindo. Quando quiserdes... – disse Fuzó.
— Muito bem. Minha filha, a princesa Zistrazummun, foi roubada pelo gnio da montanha. Ele quer casar com ela, mas eu não aceito isto. Ele não tem sangue real e não pertence a nenhuma família de duendes. Mas é muito poderoso e nós não temos meios de dobrá-lo. Ele gosta dos filhotes de humanos, por isto, este aí – e me apontou com aquele dedinho petulante – vai lá e dá um jeito de trazer Zistrazummun de volta.
— E o que eu ganho com isto? – perguntei esquecendo que falava a um Rei. E um reizinho muito enfezado.
— Calado! – gritou o projeto de gente. – Calado ou eu ordeno à Catrum que coma voc.
— E se ela me comer sua adorada filhinha vai ficar lá na montanha. Eu vou gostar muito, sacou? – falei sem poder me conter de raiva. Quem o encolhido pensava que era? Podia ser rei, mas lá pro seu povinho de anões. Comigo não, jacaré!
— Petulante! Arrogante! Sem-vergonha! – esbravejou o reizinho pondo-se de pé. Olhei para Fuzó e me perguntei se ele se atracaria com a onça, caso o furibundo rei mandasse que ela me devorasse.
— Não! – gritou o vesgo. – Seu parceiro não vai brigar com Catrum por sua causa, não. Se ele se meter, eu jogo um encanto sobre aqueles
zafruns
lá! Vai ver só o que acontece com eles.
— Pois jogue! – desafiei. – Jogue e verá que eu não vou buscar sua feiosa lá na montanha. E aí, vai encarar?
Fuzó me olhou espantado. Não compreendia de onde me vinha coragem para desafiar o baixinho atrevidão.
O reizinho pulava e saltava feito doido sobre a pedra. Danou a falar num idioma gozado, cheio de assovios e trinados, rugidos em miniatura e chiados que mais pareciam uma chaleira em ebulição.
— É... voc irritou o rei pra valer – disse Fuzó me olhando admirado. – Mas ele sabe que está em suas mãos. Tem de negociar com ele.
— Negociar o qu? – perguntei.
— Negociar a salvação de seus companheiros, ora. Se o rei quer muito de volta a sua Zistrazummun, então, exija dele que liberte seus companheiros.
Legal! Genial! Como é que eu não tinha pensado naquilo?
— DE JEITO NENHUM! – gritou o reizinho furioso e saltando da pedra pra cima do lombo da onça. – DE JEITO NENHUM! ELES VÃO SER PUNIDOS.
— Calminha, meu velho, calminha – falei eu. – Não vai querer a sua adorada Zebrinha casando com o gnio, não é?
— Zebrinha? Que zebrinha, petulante? – fuzilou o reizinho.
— A sua filha. Não é zebrinha o nome dela?
— Não! Zebrinha é o nome da louca que pariu voc, homenzinho fedorento – exasperou-se o rei. – Minha filha se chama Zistrazummun, entendeu?
— Se tem listras, é zebra, ora – disse eu com um muxoxo.
— Quem disse que minha filha tem listras? Só o vestido dela é que tem e isto tem de ser assim e pronto.
— Bom, acho melhor a gente largar da barra da saia de sua filha e tratar de assunto mais sério, não é, magestade?
— Bom... quer dizer... Está bem. Que assim seja – concordou o tortinho, para meu espanto.
— E então, como ficamos? Sua filha pelos outros meninos... menos o Bruno, é claro – propus eu.
— Ei, não pode negociar pela metade! – gritou Fuzó, pondo-se de pé e me sacudindo pelos ombros.
— Mas eu não gosto dele, ora bolas. Ele é mau! – arrazoei.
— Concordo com o humaninho fedorento – meteu-se o reizinho feioso.
— Eu não preciso de sua ajuda – gritei por minha vez para ele.
— Fique quieto! – bradou Fuzó. – Ou voc negocia a volta de todos, ou fica lá também.
— Eu não. Eu não matei nenhum passarinho, ora.
— Ele tem razão! – rugiu o baixinho saltando no lombo da onça e fazendo que ela coçasse a barriga, incomodada com os pezinhos arreliando seus pelos.
— Não se meta, verruguento! – gritei tentando soltar-me das mãos do guia.
— Escute aqui, menino – falou Fuzó chegando a cara bem junto da minha e me olhando com um olhar cheio de raiva. – Ou voc aceita trazer todos, inclusive o Bruno, ou eu não mais o defendo junto ao rei. Voc não sabe o que ele pode fazer com meninos burros como voc está sendo, entendeu?
— Quem é burro, heim? – gritei zangado.
— Voc! – e Fuzó espetou um dedo no meu peito. Doeu como o qu, meu. – Duende detesta falta de companheirismo e se voc abandonar o Bruno lá, vai ser considerado traidor pelo reizinho ali. Aí, então, receberá um castigo pior do que o do Bruno, está compreendendo?
Aquilo não me agradou nem um pouco. Olhei para o safado com a coroinha na cabeça e vi que ria e torcia as mãos de satisfação. É, ele queria mesmo que eu abandonasse o karateca lá e lhe desse um motivo para me castigar também. Eu estava começando a detestar mais o tortinho ali do que o Bruno.
— Tudo bem. Eu liberto a princesa e Vossa Magestade liberta os outros meninos, inclusive o imbecil do Bruno.
— Não!
— Sim!
— De jeito nenhum!
— Então, mande fazer a sua roupa de casamento porque vai ter um genro arreliado – gritei eu.
— Eu não vou, não! – exasperou-se o rei.
— Vai e vai – gritei mais alto que ele. – Ou liberta todo mundo, ou vai ter de levar sua filha pelo braço pra entregar pro gnio.
Aquilo fez o rei parar e arregalar seus olhos tortos. Levar a sua adorada feiosa pelo braço para o altar? Mas aquilo era até impensável!
— Está bem. Eu concordo. Mas voc tem de partir agora.
— E por que?
— Por que o casamento vai ser depois de amanhã, ora bolas.
— Mas eu...
— Não discuta – cortou Fuzó. – Voc marcou um tento e tanto. Falando do rei levar a filha pelo braço ao poço de casamento, voc tocou fundo o coração dele. Como pai, ele não pode deixar que outro faça isto. Como rei, é obrigado a executar o cerimonial. Parabéns! Voc conseguiu.
Eu não entendia o que era que eu tinha conseguido, mas logo fiquei de pelo em pé. O reizinho mandava imperiosamente que eu subisse no lombo de sua estranha montaria.
— Quer que eu monte em Catrum? Mas nem pensar! – gritei apavorado.
— Vai sim! – exclamou Fuzó e antes que eu pudesse dizer alguma coisa ele me levantou e me escanchou na onça. A fera deu um salto e mergulhou na escuridão comigo berrando desesperado e dependurado nas orelhas dela. Finalmente eu tinha um par de orelhas para puxar, embora não tivesse sido o par com que sempre havia sonhado...
CAPÍTULO VII
NA CAVERNA ENCANTADA
Eu não faço idéia de quanto tempo a onça ficou correndo pelo meio daquele matinho rasteiro, fazendo o capim me lanhar as pernas e vez que outra arranhar meu rosto. Custou um bocado para eu ouvir os gritos furiosos do reizinho feioso que mandava que eu largasse as orelhas de Catrum. Ela não conseguia encontrar a entrada da caverna porque eu puxava as suas orelhas peludas com tanta força que a cara da bicha estava ficando triangular.
— E eu vou segurar aonde, pode me dizer? – gritei sem afrouxar as mãos.
— No pescoço dela, “seo” palerma! Segure no couro do pescoço dela, boboca!
E o reizinho continuava a pular feito um doido no lombo da onça. O mais engraçado é que ele não se segurava em nada.
Soltei uma das mãos e fisguei os dedos na pele do pescoço coberto de pelo liso e escorregadio da parda. Deu certo. Soltei a outra mão e afundei os dedos no pescoço dela. A bicha parou de saracotear e correr feito alucinada e passou a andar suvemente pelo meio do mato ralo. Não era nada fácil manter-me equilibrado no seu lombo, por isto optei por descer e andar ao lado do animal.
— Por que, raios, não fez isto no início? – peguntou o reizinho furioso.
— Porque não pude, ora. O Fuzó me escanchou no bicho e ele saiu danado pulando.
— Mas a Catrum pulou porque voc grudou nas orelhas da coitada, droga! Não faça mais isto. Eu não gosto de ver minha querida em sofrimento.
— Nem eu. Só que não sou acostumado a montar onças. Pra dizer a verdade, esta foi a primeira vez e eu espero que seja a última.
— Vai andar um bocado e vai ter de nadar um bocado, também – anunciou o baixinho rabujento.
— Desde que eu não tenha mais de montar na sua Catrum, tudo bem – concordei enquanto observava o grande gato pardo de focinho branco e olhos aureolados em preto andando naturalmente a meu lado. “
Se eu contar na minha escola que andei ao lado de uma onça onde o rei dos Duendes ía montado ninguém vai-me acreditar. Eu estou aqui e não estou acreditando
!”
Caminhamos em silncio por um longo tempo e minha esperança de encontrar com o meu pessoal foi-se apagando na medida em que a paisagem ía-se modificando. O mato ralo com arvorezinhas intanguidas foi sendo substituído por cipós e árvores frondosas à sombra das quais eu quase não via o caminho.
— Segure no rabo da Catrum – ordenou o reizinho.
— Para qu? – perguntei ressabiado.
— Para não se perder, otário – foi a resposta desaforada. – Daqui a pouco a copa das árvores vai tapar a luz da lua de tal modo que isto aqui dentro vai ficar um breu. Só um felino consegue enchergar neste lugar e voc não é um, graças a Deus.
Não obedeci. Não estava disposto a...
E veio a escuridão. Caramba, era mais escuro do que o intanguido tinha acabado de falar. De repente tudo sumiu – rei, onça e chão.
— Baixinho! – gritei – Onde está voc e sua montaria?
— A seu lado, pestinha abjeto. Faça o que mandei ou vai ficar perdido aí até o meio-dia de amanhã. É só quando aqui aparece uma leve claridade e ela só dura por duas horas.
Tateei no escuro e toquei o pelo da onça. Deslizei a mão pelo seu lombo e bati em alguma coisa dura. Antes que eu conseguisse encontrar o rabo da bichona, ouvi o grito do reizinho bem debaixo de mim.
— Socorro! Voc me derrubou da Catrum!! Fique parado para não me pisar, ‘seo’ imprestável!
Segurei o rabo da fera, mas ela não se zangou como eu esperava. Tinha parado e pelo movimento do corpo me pareceu que farejava o solo. Abaixei-me e comecei a raspar o chão com a palma da mão, tentando encontrar o zangadinho de m... antes que as formigas o comessem.
— Pare com isso, desmiolado! – ouvi a ordem imperial. – Quer me esmagar, é? Faça isto e a onça vai estraçalhar voc!
Eu nunca vi alguém tão pequenininho e tão presunçoso quanto aquele projeto de gente. Fiquei de pé, ainda agarrado ao rabo da onça, e meti a mão no bolso da calça. Foi aí que senti o isqueiro que meu pai me dera para segurar depois que havia acendido os lampiões a gás. Ele não fumava e trouxera o isqueiro para acender os lampiões e o fogão de acampamento. Tirei o objeteo do bolso e o acendi. Então, tudo aconteceu muito depressa. Vi num lampejo o reizinho tentando subir pelo focinho da onça e vi os olhos amarelos fitarem a pequena chama. A onça arreganhou os dentes, soltou um rugido feroz e se voltou para a frente, jogando o reizinho bem longe. Ele caiu sobre um monte de folhas secas, gritando “nãos” desesperados.
— Apague isto! Não faça fogo! Não faça fogo aqui, ‘seo’ pequeno desmiolado humano imprestável!
A onça deu um salto e sumiu no escuro. Assustado, apaguei o isqueiro.
— Porqueira! ‘Seo’ tamanduá cego! O que pensa que fez, hein? Acenda este negócio de uma vez, humaninho imprestável!
— Mas Vossa Magestade mandou que eu apagasse! – protestei sem compreender o baixinho intratável.
— Mandei, antes. Agora, quero que acenda, ouviu?
— Tudo bem. Aí vai!
Dei na pedra e a labaredazinha apareceu. Catrum, por sua vez, tinha desaparecido como se tivesse sido tragada pela terra. À minha frente estava o reizinho pulando feito maluco sobre as folhas secas onde havia caído.
— Idiota! imbecil! Qualquer um sabe que as onças temem o fogo. Que lhe deu na cabeça para acender isso aí em sua mão? E como é que consegue esta mágica? Eu sou um Duende. Tenho poderes muito grandes e não consigo fazer fogo em meus dedos. Como é que voc toca fogo nos seus e não se queima?
O metidinho a sabido e todo-poderoso era um ignorante, mesmo. Ótimo. Eu tinha um trunfo.
— Não sou rei, mas sou um mágico, sabia? E se voc não parar de me xingar deste jeito, eu asso voc, sacou?
— Como se atreve a me fazer ameaças? Eu sou um rei! Nenhum plebeu ameaça um rei sem ser punido. Cuidado, rapazinho, ou eu o transformo num sapo cururu.
Bom, eu gostava de pegar pererecas e meter dentro de caixas de fósforos para deixar sobre a mesa de minha professora. Ela tomava cada susto danado. Mas virar um sapo e ficar comendo moscas e mosquitos na beira da lagoa; correr o risco de ser apanhado por um morcego e virar jantar do bicharoco, isto não me agradou de jeito nenhum.
— Tudo bem, tudo bem, desculpe-me. Mas me diga uma coisa: como é que a Catrum não teve medo dos lampiões lá do acampamento e, agora, borrou-se toda de medo da chamazinha do isqueiro?
— Catrum estava sob o meu poder hipnótico, ‘seo’ tolo. Além do mais, lá, não havia chama. Apenas luz clara. Aqui, não. No escuro, a chama ficou bem mais marcante para ela. É fogo e isto a Catrum sabe identificar muito bem. Quando ela olhou para a chama desfez-se meu encantamento e ela voltou a ser uma onça. Agora, vai dar um bruto trabalhão capturar a danada e tudo por culpa sua!
— Bem... eu só queria ajudar. Eu tinha derrubado Vossa Magestade e quis encontrá-lo antes que fosse pisado inadvertidamente por mim – desculpei-me sem jeito.
— Agora, não adianta lamúrias. Vamos, ponha-me no seu ombro e ande. Temos de sair daqui.
Era só o que faltava. O intanguido tinha perdido a onça e, agora, queria fazer de mim a sua montaria.
— Peraí, chapinha. Que negócio é este de mandar que eu o coloque em meu ombro? Por acaso...
— CALE A BOCA, estrume de minhoca! – gritou o reizinho enfezado. – Obedeça-me ou eu o transformo no cururu e é já!
Sapo, não. Eu me abaixei e peguei o reizinho de m... com a mão. Ele parecia um de meus X-Men de plástico. A diferença é que se movia e dava ordens a torto e a direito. Como era fraquinho! Se eu apertasse os dedos... puf! Lá se ía um rei desta para melhor... Mas e o sangue dele espirrando em minha mão? Não, eu não ía suportasr isto. Além do que, o intanguido deveria gritar de dor e eu não queria passar a vida ouvindo o seu grito de agonia. Assim, coloquei o rei sobre meu ombro direito e ele, vejam só, segurou-se logo em minha orelha – a predileta de mamãe.
— Aí, não. Segure-se na gola de minha camisa – protestei.
— Não senhor. Eu vou-me segurar aqui. E agora, trate de andar.
— Não vou andar enquanto voc não segurar na gola da camisa e largar minha orelha – emburrei.
— Não largo! – teimou o rei.
— Então eu não ando.
— Voc segurou as orelhas da Catrum. Por que não posso segurar na sua?
— Porque ela é a predileta de minha mãe e eu fico com raiva quando alguém me lembra do que a mão dela faz aí – falei de mal-humor.
— Está bem, moleque. Eu seguro na gola de sua camisa, mas trate de andar. Este local não é bom para nós.
— Por que? – perguntei curioso.
— Não lhe interessa. Saiba apenas que se ficar aqui nunca mais vai voltar a ver os seus parentes.
Com aquele aviso eu comecei a andar. A luzinha do isqueiro mal iluminava a senda e eu tinha muita dificuldade em me movimentar naquele breu. Agora, também eu sentia falta da Catrum.
Andei por quase duas horas, eu acho. E quando já estava entregando os pontos, saímos da mata bem diante da grande entrada de uma caverna.
— E agora? – perguntei.
— Entre na caverna – ordenou o reizinho que até ali viera de boca fechada.
Era uma coisa descomunal e eu não entendia como é que anõezinhos daquele tamanhinho podiam abrir e fechar uma coisa tão grande como aquela caverna. A entrada tinha uma altura de quase vinte metros e a largura da boca era de uns cento e cinqüenta metros. Lá em cima uma cipoeira enorme dependurava-se no vazio e balançava como bigodes numa grande boca escancarada. Ao nosso lado enormes pedregulhos, caídos na era dos dinossauros de tão velhos que aparentavam ser, cobertos de musgo verde-escuro refrescavam mais ainda o ar frio que saía das entranhas da Terra e pareciam gigantescos biscoitos de pedra na iminncia de serem mastigados pela bocarra aberta. O chão era arenoso, pelo menos ali, no início. A claridade foi diminuindo enquanto nós adentrávamos a goela do gigante de granito, barro e... morcegos. Centenas de bichinhos pretos que se arrastavam de cabeça para baixo no teto alto, entre as estalactites e as agulhas de calcário. De lá pingavam algumas gotas de água gelada que me faziam arrepiar o pelo do corpo.
— Este negócio está escurecendo – disse eu apreensivo para o reizinho encarapitado em meu ombro. – O que faremos quando isto aqui estiver um breu?
— Nada, porque não vai ficar um breu, ‘seo’ desmiolado – respondeu o intanguido abusado. – As paredes contm magnesita e isto é luminoso. Voc verá, pirralho.
Eu começava a achar que tinha um certo reizinho que ía sofrer um acidente e muito em breve. Eu ía dar um jeito de fazer que ele caísse de meu ombro. Era a mesma coisa que eu caindo do oitavo andar de um edifício. O safadinho petulante ía ficar quebradinho, quebradinho.
— Se fizer o que está pensando – disse o reizinho ao meu ouvido –, meus súditos farão voc cair no poço sem fundo. Vai ver como é ruim a sensação de cair eternamente, sem encontrar um fundo no buraco.
— Não pode existir um poço sem fundo porque a Terra é redonda, meu chapa. Se eu cair num buraco, tenho de bater no fundo dele. Ninguém pode atravessar a Terra e sair do outro lado simplesmente porque o magama que existe no centro dela atrai tudo o que está na periferia para lá. Eu não sou mau aluno de geografia, não, sacou?
— Pois eu lhe digo que existe, sim. Lá, no meu país, há o buraco sem fundo. O que cai lá dentro não chega no fundo, nunca – teimou o reizinho.
— Bom, como dizem lá na superfície: “cada terra com seu uso e cada doido sem o seu parafuso” – comentei jocoso.
— Está insinuando que eu sou um desparafusado, é? – rosnou o reizinho rabujento.
— Quem, eu? Mas de jeito nenhum, magestade. Quem sou para tamanha insolncia? – gozei dele.
— Ainda bem que sabe onde é o seu lugar, imprestável. Agora, fique atento ao caminho. Vai descer pela esquerda e a trilha é muito escorregadia. Cuidado para não cair.
O caminho tornou-se muito sinuoso, ora dobrando para a direita, ora para a esquerda, ora subindo, ora descendo, ora seguindo em frente. De tantas voltas eu creio que me atrapalhei e em vez de descer pela direita, desci pela esquerda. Para complicar mais ainda, paredes, chão e teto eram todos iguais e todos muito úmidos. Eu me preocupava em não escorregar e o reizinho enfezado, em se segurar como podia para não despencar de meu ombro.
— Raios! – esbravejou ele – eu prefiro mil vezes o lombo da Catrum. Voc é um desastre ambulante, menino. Estou ficando tonto de tanto ser balançado de um lado para outro com seus movimentos desengonçados.
— Nem vem – discordei. – A Catrum saracoteia bem mais do que eu.
— Só quando tem as orelhas esticadas por mãos estúpidas como as suas. Mas ela, mesmo pulando e correndo, é harmoniosa nos movimentos. A gente sempre sabe como vai-se mexer e tem como equilibrar-se lá em cima. Já no seu ombro é uma doideira. Voc é muito desengonçado, pestinha. Não sei mesmo como é que consegue andar. Mas não podia ser diferente, não é? Voc é um humano!
— E o que tem isto? – grilei, pois não gostei do tom de voz dele.
— Humanos são a coisa mais ruim que já sucedeu à Mãe Terra. Ela está doente por causa de vocs. Emporcalham o ar, emporcalham os rios e os mares, empobrecem o solo e esculhambam com a fauna e a flora. Vocs são... são... são humanos. Não há palavra pior do que esta para se designar um ser vivo.
— Para mim, Duende é que é a palavra pior do mundo – resmuguei eu. E no exato momento em que o reizinho ía esbravejar protestando contra minha opinião, escorreguei. E escorreguei feio, rapaz. Caí de bunda na rampa escorregadia e desci aos trambolhões, batendo ora de um lado, ora de outro da estreita passagem que nos levava direto para algum lugar no centro da terra. Perdi o reizinho de vista, embora lhe escutasse os gritos e os impropérios raivosos pelo meu desajeitamento. O escorrega terminou abruptamente e eu despenquei no vazio. Gritei apavorado. Será que eu tinha caído no tal buraco sem fundo?
Gritava eu e gritava o rei.
E foi gritando que nós dois nos estatelamos dentro de um rio de águas geladas pra burro! Fui até o fundo e vi o projeto de gente rodopiando nas volutas da água que meu corpo fazia ao afundar. Ele ía morrer na certa, pois não tinha físico para safar-se daquilo. Estendi a mão e o segurei cuidando para não apertar muito e abreviar a agonia do coroado. Agitei as pernas e os pés furiosamente e subi para a superfície. Mal pus a cabeça de fora e fui puxado pelos cabelos. Que dor, meu! Algum safado parece que tinha predileção por escalpos louros de meninos magros. E eu era exatamente isto.
Não pude gritar porque tinha boca e olhos cheios de água. Eu tossia e tentava limpar as vistas. Esquecido do rei em minha mão, esfreguei o coitado contra meu rosto e quase lhe quebro o pescoço.
Alguém se ps a andar me arrastando pela cabeleira. Que troglodita, meu! Gritei, esperneei e consegui, com muita dificuldade, ficar de pé.
— Me larga, ‘seo’ bruto! – berrei a todo pulmão. – Larga de meu cabelo, diabo!
Mas quem quer que fosse não estava a fim de me soltar e eu fui arrastado por um bom tempo daquele modo altamente desconfortável. Então aquilo parou e eu pude ver um monte de buracos nas paredes do enorme salão da caverna que se abria diante de meus olhos.
— Amaldiçoado seja voc e toda a sua geração! – praguejou o reizinho em minha mão. – Eu disse que voc dobrasse à direita, imbecil. O que pensa que fez, hein?
— Eu não penso nada, droga. Nem sabia para que lada estava indo, ora essa. Voc era quem devia ir adiante me mostrando o caminho, ao invés de ficar gritando ordens nos meus ouvidos. Onde estamos?
— Na terra dos gnios, ‘seo’ desastrado. Foi justamente para cá que voc me trouxe. Logo para cá, onde eu não sou bem-vindo – lamuriou-se o reizinho.
— E por que não é bem-vindo aqui?
— Eu não quero deixar que minha filha case com o rei deles, esqueceu?
— Pois acho que esta é uma excelente hora para mudar de idéia, não é? – sugeri.
— Não, não e não! Mil vezes não! Ele não é de família de duendes.
E o enfezado danou a saltar em minha mão.
— Se olhar lá pra baixo eu creio que voc vai parar de saltar como um maluco – disse-lhe. E ele olhou. E ao olhar se apavorou porque deu conta de que estava muito alto para a sua estatura. Parou e agarrou-se em meu dedo indicador com quanta forças tinha.
— Me ponha no chão! – gritou.
— Primeiro, mande o cara grandão aqui ao lado largar de meus cabelos. Eu não posso nem mexer a cabeça, que dirá abaixar-me.
— Droga! – gritou o reizinho fungando o narigão magricela. – É o gnio guardião do escorrega. Ele não vai soltar seus cabelos até que chegue seu chefe.
— Então ordene ao brutamontes que grite pelo chefe dele. Senão, vou ser o primeiro garoto careca do planeta e acho que minha mãe não vai gostar nem um pouco da idéia.
Justo naquele momento um som cavo cresceu e estrondou a caverna.
— O que é isso? – perguntei apavorado.
— Eles batem os pés no chão quando o chefe está chegando. Depressa, esconda-me! – pediu o reizinho afobadamente.
Escond-lo aonde? Eu bem que gostaria era de me esconder, isto sim.
— Me esconda! Faça alguma coisa! Eu não posso ser visto pelo meu inimigo deste modo. Seria o fim da picada, garoto.
Decidi-me rapidamente. Meti o reizinho no bolso da calça. Era grande e fundo o bastante para o atentado ficar lá dentro. Mal fiz isto e uma figura hilariante surgiu de um buracão ao rés do chão da caverna. O sujeito tinha quase dois metros de altura, tinha um barrigão enorme de grande e ombros muito estreitos para os braços estupendamente musculosos. Lembrava levemente o Obelix, companheiro de Asterix, o Gauls. Só lhe faltava aquele calção listrado. Ele veio bamboleando até perto do Guardião e olhou para mim. Então, soltou uma gargalhada de fazer tremer o mundo e se ajoelhou para me olhar de frente. Era feio como um demnio, o sujeitão, rapaz. E era vesgo dos dois olhos. Eu não sabia para onde ele olhava, apesar de que tivesse a face voltada direto em minha direção.
— Um filhote de humano, ora se é. Como veio até aqui, rapazinho?
Falava minha lingua! Aquilo me espantou de verdade.
— Eu... não sei bem como aconteceu. Estava andando pela caverna e escorreguei. Aí vim rolando e caí no rio. Aí o grandão aqui do lado me pegou pelos cabelos e me arrastou até aqui.
— Ora, ora, ora. O grandão é Putzgrill, o guardião do escorrega. Agora, guri, me diga como encontrou a caverna encantada.
— Primeiro, dá pra pedir ao Putzgrill que largue de meus cabelos? Isto dói!
— Creio que voc pode largar os pelos do pequenino, Putzgrill. Ele não tem mesmo nenhuma condição de fazer nada de mal, não é?
— Não tenho e não quero – disse eu.
— Agora, que está livre, diga: como é que descobriu a entrada da caverna encantada?
— Ué, e esta caverna é encantada, é? – fingi espanto. Não podia dizer a verdade, mesmo porque o peste do reizinho cravou os dentes em minha bunda e eu compreendi que se falasse ía acontecer um desastre nadegal pra valer.
— Menino – disse o rei dos gnios endireitando o corpanzil – ninguém entra nesta caverna a não ser que seja convidado por mim ou pelo meu futuro sogro.
— Eu não vou ser sogro de um imbecil qualquer! – gritou o reizinho saltitando dentro de meu bolso e me fazendo cócegas. – Não vou, não vou e não vou!
— Ele está aqui! O rei dos duendes está aqui! Que ótimo! Vamos logo resolver esta pendncia, magestade. Apareça de uma vez e deixe de se fingir de fantasma – e o grandalhão começou a fungar feito cão perdigeiro. Parecia querer encontrar o faro do enfezado. Eu não conseguia me controlar e caí na gargalhada. Sem notar, levei a mão ao trazeiro e isto foi um erro. Rápido como uma cobra o grandalhão me pegou e me virou de bunda pro alto. O reizinho despencou no chão gritando feito um condenado. Mal tive tempo de segurá-lo antes que se esborrachasse sobre a pedra.
— Gostei! Gostei de verdade. Essa de se esconder no trazeiro do garoto foi genial! – gritou o grandalhão tomando o reizinho de minhas mãos e me soltando sem a menor consideração. Caí de cabeça e rolei pela lage. Raios, como doeu, meu!
— E agora, vamos aos preparativos – gritou o Grandalhão.
— Não vai preparar nada porque eu não estou de acordo, droga! – esbravejou o pequenino, que na palma da mão do gigante ficava ainda mais pequeno.
— Ah, vai sim. Ficou combinado que assim que Vossa Magestade viesse a este reino os preparativos para o casamento teriam início. Não esqueceu disto, não é?
— Eu não vim por minha vontade. O pirralho errou tudo, ora! – protestou o enfezado.
— Não interessa. Não há nenhuma cláusula de excessão no nosso contrato. Ele reza somente que assim que Vossa Magestade aqui chegasse os preparativos teriam início. Agora, vão ter.
O gigante assoviou e uma multidão de gnios apareceu. Saíam dos buracos como se fossem formigas gigantes.
— Meus súditos – gritou o grandalhão. – Meu futuro sogro finalmente decidiu-se a vir ter conosco. O grande dia da união entre nossas famílias vai começar. Este menino foi quem deu carona ao rei dos duendes, por isto eu o escolho para...
— Pode parar! – gritou o reizinho sapateando na palma da mão do gigante. – O pirralho é meu!
— Se está em meu território, é meu! – bradou o rei dos gnios fazendo cara de poucos amigos.
— Eu falei que ele é meu, voc é surdo? – provocou o reizinho atrevido.
— Quer ser esmagado, é? Não duvide que eu faça isto, porque faço mesmo – ameaçou o grandalhão. Eu fiquei preocupado. Já estava gostando do enfezado e não me agradava a idéia de v-lo esmagado. E para isto o gigante só tinha de bater palmas. Por isto, intervi na discussão.
— Hei, que negócio é este de esmagar o seu futuro sogro? Já começa seu casamento com um assassinato?
O gigante me olhou torto, como sempre, e coçou a cabeça.
— O guri tem razão – trovejou ele. – Mas mesmo assim, se teimar em me contrariar voc corre perigo de ser esmagado.
— Tente, se tem coragem! – bradou o enfezado pondo as mãos desafiadoramente na cintura. Devia estar louco ou bbedo. Como é que pensava poder enfrentar o brutamontes?
— Vossa Magestade está-me provocando. Isto não é nada bom para a sua saúde... – ameaçou o grandalhão.
— Podem parar os dois! – gritei num impulso. – Eu não sou de ninguém daqui deste buraco. Eu sou de minha mãe e de meu pai e estamos conversados.
— É, ele tem razão – concordou o enfezado, para meu espanto. – E se o pirralho está com a razão nós dois estamos discutindo à-toa.
— Como sempre – aproveitei eu para dizer.
— O que quer dizer com isto, pirralho? – e o grandão me olhou com uma expressão de gato que v passarinho no chão. Fiquei todo arrepiado de medo.
— Quero dizer que... que... que... – o medo não me deixava mais pensar e eu engasgei. Foi aí que o reizinho trapalhão veio em meu socorro.
— Ele quer dizer que nós só nos encontramos para discutir, ora. Qualquer um que tenha miolos pode compreender isto. Mas como voc não tem...
— Quem não tem miolos, eu? – espantou-se o gigante.
— Claro! Quem mais poderia ser, se não um gnio cabeça dura? – provocou o baixinho petulante.
— Eu não sou cabeça dura e entendi perfeitamente o que o menino aqui quis dizer, ora se entendi.
— Muito bem, muito bem – disse eu aproveitando a confusão que o baixinho provocara na cabeça do vesgão. – Que tal a gente falar, agora, da princesa?
— O que tem minha noiva? – perguntou o grandão olhando pra todo lado.
— Ela não é sua noiva, eu já disse! – esbravejou o enfezado azedando o caldo novamente.
— Calma, calma. Primeiro, vamos chamar a moça até aqui, sim? – pedi.
— E pra que? – quis saber o grandalhão.
— Pra saber dela uma coisa muito importante, ora.
— Que coisa? – desconfiou o vesgão.
— Se a pergunta é pra ela, por que voc quer saber? Não vai ter a resposta certa – disse eu piscando um olho pro enfezado que sorriu esfregando as mãos satisfeito.
— Está bem. Putzgrill, vá buscar minha noiva – ordenou.
— C’os diabos! – esbravejou o tampinha saltitando furioso e pisoteando o pobre capucho. – Eu já disse pela milésima vez que Zistrazumunn não é sua noiva. Não é e não vai ser nunca, palavra de duende.
— Eu vou achatar Vossa magestade – gritou o grandão vesgo.
— A princesa! – gritei apontando para a saída de um dos buracões no paredão rochoso da gruta. Realmente, Zistrazumunn vinha sendo trazida pelo guardião do escorrega. Claro que ela vinha andando com suas próprias perninhas e o grandão que a acompanhava tinha de dar um passo e ficar esperando que a pequenininha avançasse até chegar onde ele estava para, então, dar outra passada.
— Minha filha! – gritou o tampinha saltando na palma da mão do gigante. – Ponha-me no chão, aleijão da Natureza – ordenou ao gigante.
O rei dos gnios não gostou da ordem. Com um berro de raiva ele bateu palmas com tanta força que fez a caverna tremer. No momento mesmo em que suas mãos se íam chocar, Zistrazumunn fez um gesto com a mãozinha poderosa e um raio rapidíssimo chispou de seu dedo indicador e atingiu o pai dela. Ele virou um espinho muito ponteagudo e o rei dos gnios teve uma surpresa muito desagradável quando as palmas de suas mãos se chocaram. Cara, era de ver o bocão do vesgo quando ele soltou o berro de Tarzã ao ter as mãos traspassadas pelo enfezado espinhento. Ele arrancou o espinho e o jogou longe, enquanto pulava de um pé para o outro agitando as mãos feridas.
Mas a surpresa maior quem teve fui eu. Quando Zistrazumunn chegou perto de nós eu vi que ela era nada mais nada menos que a Mirna, pode?
CAPÍTULO VIII
SOBROU PRA MIM
Eu fiquei embasbacado. Era a Mirna, sim senhor. Só que eles tinham encolhido ela. Estava tão pequena que o guardião do escorrega dava uma passo e tinha de esperar que ela desse mais de dez até ficar ao lado dele.
— Mirna?! O que vocs fizeram com ela? Como foi que intanguiram a coitada daquele jeito?- perguntei, perplexo.
— Cuidado com a língua, menino! Voc está falando com a princesa Zistrazumunn, minha filha – gritou o reizinho enfezado.
— E minha noiva! – bradou o rei dos gnios ainda sacudindo as mãos feridas.
— Não é, não! – esbravejou o intanguido dando pulinhos furiosos.
— É sim. Eu vou casar com ela, quer Vossa Magestade queira, quer não – ripostou o gigante teimosamente.
— Esperem! – gritei. – Como é que voc, intanguidinho safado, ousa chamar de sua, a filha de ‘seo’ Pacheco e dona Sílvia? E como é que o zebu ali pensa em se casar com uma gatinha angorá que ainda nem cresceu? Não vem que isto não pode dar certo, seus jumentos!
— Escute aqui, ‘seo’... – começou a protestar o enfezado, mas eu o cortei furioso. Não suportava ver minha musa encolhida daquele jeito.
— Escute voc! – bradei. – Trate já de fazer a Mirna voltar ao normal. Trate de desentangui-la, senão...
— Quem é intanguida aqui?
Aquela vozinha era da minha Mirna e como era feia, rapaz.
— Voc, Mirna. O que foi que eles lhe fizeram? – exclamei condoído.
— A mim, nada, mas eu vou fazer a voc. Não gosto de falar com gente maior do que eu.
E a entanguidazinha apontou para mim aquele seu dedinho perigoso. Percebi um clarão rapidíssimo vindo em minha direção, depois tudo ficou azul faiscante e eu... eu encolhi, rapaz. A traidora da Mirna se virava contra mim, pode? Como é que eu podia estar parado na dela?
Olhei-me sem acreditar no que tinha acabado de acontecer. Agora, eu media um palmo e dois dedos apenas. Era somente quatro dedos mais alto do que o reizinho enfezado de uma figa. Não agüentei e abri o maior bocão do mundo.
— Me devolve meu tamanho, já! – berrei a todo pulmão. – Anda, me dá meu tamanho de volta! Eu não quero ficar entanguido deste jeito, droga!
— Só há um modo de voc voltar a ter o seu tamanho novamente, filhote de homem – disse o rei dos gnios abaixando-se para falar comigo. Como é que o peste ficou grande, meu. Parecia a Torre Eiffel de tão comprido.
— E qual é? – gritei ansioso.
— Tem de ir buscar para nós a Pedra do Desejo – respondeu ele com os olhos brilhantes.
— Não vá não, menino idiota. Ele quer a pedra para me forçar a deixar que a princesa Zistrazumunn se case com ele – gritou o rei dos duendes.
— Eu ‘t me lixando para a sua princesa – disse eu, furioso. – E quero é que se dane voc e o jumento aí! – e apontei com o meu dedinho mirrado de anão para o vesgo que olhava para mim sem olhar para lugar nenhum. – Vou até o inferno, mas quero o meu tamanho de volta.
— Ótimo! – disse o vesgão duma figa me apanhando em sua mão. Rapaz, os dedos dele pareciam enormes sasichões gordos ou... ou minhocas gigantes. – Então, vá buscar a Pedra do Desejo para nós – pediu ele me levando até perto de sua carantonha.
— E onde está este troço? – perguntei cheio de raiva e tentando me manter de pé entre os dedos dele. Não consegui. Escorreguei e caí.
— Na Caverna do Pavor – respondeu o gigante.
— E onde fica isso? – tornei a perguntar e tornei a escorregar e cair.
— Depois da Ponte do Horror! – gritou a traidorazinha safada lá de baixo.
— E onde fica este negócio? – voltei a perguntar e a cair entre os dedões do vesgão.
— Sobre o rio do Medo – falou o enfezado.
— E então, vai ou não, buscar a Pedra do Desejo para nós? – e o vesgão continuava com a carantonha voltada para mim sem conseguir me convencer de que estava realmente me olhando.
— Vou – respondi num impulso de raiva. A idéia de ficar miudinho não me agradava de jeito nenhum. – Onde é o caminho?
— Está vendo aquela caverna, lá? – e o gigante apontou para um buraco ao longe. – É ali que começa sua jornada. Lá é o Arco da Mudança. Mas fique sabendo que quando passar por ele só poderá regressar se trouxer a Pedra do Desejo.
— Ponha-me no chão – ordenei ainda irado e revoltado com o que tinha-me acontecido. O gigante obedeceu. Quando acabei de descer daqueles dedões de salsicha a traidorazinha estendeu a mão para mim.
— O que é isso? – perguntei desconfiado.
— Tome – disse a Mirna entanguida.
Olhei para a mãozinha dela e vi trs pílulas cr-de-rosa.
— Para que isto? – perguntei arreliado.
— Guarde. Não deixe que se perca. Tome uma sempre que a situação fr conveniente.
— E como é que vou saber quando a situação é conveniente?
— Saberá.
Coloquei as trs pílulas no bolso e corri o fecho-eclair. Não tinham como cair dali. Então, comecei a caminhada e foi quando descobri as desvantagens de ser um entanguido. As pedras que eu pisava sem nem mesmo notar, agora eram pedregulhos que me atrapalhavam e dificultavam o andar.
— Hei, voc! – gritei para o vesgão.
— O que é, menino? – e ele se abaixou para melhor me ouvir.
— Não pode-me dar uma ajudazinha? – pedi.
— O que quer? – perguntou ele.
— Quero que voc me apanhe e me ponha berm perto do tal Arco da Mudança – respondi.
— E por que eu faria isto? – perguntou o burraldo.
— Para economizar tempo, ‘sua’ anta batizada! – respondi de mal-humor. – Se eu fr andando vou levar o dia inteiro, ora.
O gigante não gostou do desaforo. Ficou de pé e sentenciou:
— Vá andando. Faz bem às pernas.
— Imbecil! desmiolado! Vesgão safado! burro! burro! burro!
E eu dei de saltar miudinho tal como o enfezado fazia quando ficava fulo dentro das calças.
— Ah, ah, ah! – riu a Mirna entanguida. – Voc fica uma gracinha saltitando deste jeito.
Parei de sopetão. Não queria de modo algum virar duende, mas para meu espanto estava me comportando como um deles.
— E voc fica uma porcaria de menina entanguida desse jeito, ‘sua’ traidora! – resmunguei irritado e fui andando. Demorei um bocado para chegar ao Arco da Mudança. Olhei lá pra dentro. Era escuro como breu e uma lufada de vento me trouxe um fedor de lascar. Parecia que algum dos gigantes tinha comido alguma coisa estragada e estava soltando “puns” envenenados lá no centro da terra. Credo, como fedia aquilo, meu.
“
Raios! E não me deram nem um Bom-Ar para eu perfumar o ambiente
” pensei fungando e tapando o nariz. “
Parece até que se trata de uma fossa... Fossa? E se aquele buraco fosse o esgoto dos gigantes
?” Aquele pensamento me alarmou. Se eu entrasse ali ía tomar um banho de merda, na certa.
— Eu não vou entrar nesse negócio, mesmo! – gritei e me voltei para correr dali. Mas o medo é o pior companheiro do mundo, meu. Na pressa de me afastar não prestei atenção ao chão e pisei descuidado na areia solta que havia no caminho. Escorreguei e bati com o queixo no chão. Fiquei vendo um monte de estrelas acendendo e apagando dentro de minha cabeça, enquanto escorregava direto para o Arco da Mudança. Quando, finalmente, dei por mim, já estava descendo de barriga para dentro daquele lugar horrível. O caminho se tornou muito úmido e era fofo. Eu tentava freiar a descida enfiando os dedos naquela coisa viscosa, mas eles não se prendiam e eu descia cada vez mais e mais. De repente o caminho parou de ser uma rampa e ficou reto. Pude ficar de pé, mas não enxergava nada. Tudo estava escuro como breu, gente. Abri os braços para ver se tocava em alguma parede, mas tive a impressão de que o mundo todo havia sumido. Só ficamos eu e o chão que pisava sem enxergar. Saí tateando e de olhos esbugalhados sem ver nada. Não sei quanto tempo andei assim, mas repentinamente vi uma luzinha lá ao longe. Tratei de ir para ela, escorregando, caindo, me levantando e caindo de novo e xingando Deus e o mundo pelo que estava me acontecendo.
Finalmente cheguei lá na tal luzinha. Agora eu podia ver que se tratava da boca da gruta que abria para um jardim maravilhoso. Não sei de onde vinha a luz, mas era a luz de uma manhã de primavera. Havia muitas aves piando e voando entre as árvores e um jardim fabuloso se descortinava diante de mim. Gente, era incrível, mas existia um jardim muito bonito ali em baixo. E o jardim tinha flores em profusão, meu. Lilases, amarelas, roxas, vermelhas, azuis e negras. Sim, flores negras, sim. A planta que dava as estranhas flores, que lembravam uma tulipa, tinha as folhas verde-escuro e o talo vermelho quase roxo. Ela sobressaía dentre as demais por estas características. E foi pelas flores pretas que eu fiquei apaixonado. Eram tão negras que pareciam feitas de veludo. Fui direto para o arbusto que, devido ao meu tamanho, parecia uma árvore amaznica de tão grande. E foi aí que notei que estava menor do que antes e fiquei preocupado. Agora, eu media menos de meio palmo de altura. Será que ía continuar encolhendo daquele jeito?
Eu estava maravilhado olhando aquele monte de flores e borboletas e resolvi arrancar uma das pretas. Dirigi-me para a planta, quando ouvi alguém que me gritava:
— Edu! Não toque nela! É perigoso!
Parei assustado. Era a voz do Bruno com certeza. Onde é que ele estava? Olhei para todos os lados sem ver o karateca desmiolado.
— Bruno?! Bruno, é voc? – gritei com o coração acelerado.
— Sou, sim – ele respondeu.
— Onde voc está?
— Aqui em cima, na teia! – foi a resposta. Olhei para cima e fiquei sem voz. O coitado do Bruno estava literalmente crucificado numa enorme teia de aranha, cujos fios brilhavam como feitos de prata aos raios da luz que invadia o lugar. Eu mal o via de tão alto que estava e, na verdade, só conseguia ver com clareza os tnis do karateca maluco. Como é que ele tinha-se metido naquela enrascada?
— Bruno! Como foi parar aí em cima? – perguntei pondo as mãos em concha na boca para melhor ser ouvido.
— Foi o duende Kiztishimanncomunn que me trouxe para cá – respondeu o karateca. – E ele disse que eu morreria quando voc chegasse aqui.
— E por que? – perguntei espantado.
— Porque voc despertaria a aranha – respondeu o Bruno com voz de medo.
Aquilo era horrível. Olhei assustado para todos os lados. Meus pelos estavam de pé de tanto medo. Minhas pernas tremiam tanto que eu quase não podia ficar em pé. Onde estaria a tal aranha? Meu coração disparou como se estivesse apostando uma corrida de fundo. Fiquei zonzo e tudo pareceu escurecer.
— Edu! – ouvi o Bruno gritar com voz angustiada.
— O...o que é? – consegui perguntar, embora minha voz estivesse a ponto de fugir primeiro do que eu.
— Me tira daqui, pelo Amor de Deus! Eu não quero morrer comido por uma aranha! – a voz dele mostrava o desespero de quem se v sem salvação.
E agora? O que fazer, meu Deus? Eu queria mais era sair correndo dali. Eu poderia também cair na tal teia e aí... Tornei a olhar para cima. O Bruno estava lá, crucificado naquela coisa. Ele ía servir de jantar para uma aranha e isto era horrível. respirei fundo várias vezes e me decidi. Eu ía lá em cima tentar salvar o Bruno e se bem pensei, melhor o fiz. Comecei a subir pelo galho que parecia não ter fim. Os talos das folhas me pareciam grossos galhos, tal era o tamanho diminuto em que eu me encontrava.
Subi, subi e subi. Já estava de lingua de fora e não chegava na teia de aranha. Será que ela realmente existia? olhei para cima e a vi. Agora, o Bruno era mais visível e a sua situação surgiu muito mais feia do que eu podia imaginar olhando lá de baixo. Ele flutuava no espaço, braços e pernas abertos e aprisionados naqueles fiozinhos finos cor de prata. Aí eu me dei conta do grande problema. Como é que eu ía chegar até ele? Se tocasse na teia certamente ía ficar prisioneiro também e, aí, a aranha teria dois bobocas para comer.
Finalmente cheguei até a haste da folha onde um dos fios da teia se prendia. Nossa, como era grosso, rapaz! E parecia feito de vidro. Fiquei a olhar para ele sem saber o que fazer. Temia tocar naquilo e ficar com a mão presa. Olhei para cima. A teia só começava a uma distncia que, dali, dava a impressão de estar a cinco metros acima de minha cabeça. Eu teria que subir pelo cabo uns cinco metros, para poder chegar nos primeiros fios que realmente faziam o trançado da teia. Não tinha outro meio de chegar até o Bruno, a menos que eu tivesse asas, coisa que não tinha. E agora? Fiquei um tempão olhando para a descomunal rede de pescar aberta lá em cima e com o Bruno preso nela como um peixe indefeso. Os cabos que sustentavam a teia se estendiam até os galhos de outra planta, tão distante que desanimava. Eles eram em número de doze. Lá bem no alto, no fim do galho em que eu me encontrava, um fio se prendia na folha de uma das plantas e outro, noutra folha justamente no galho em que eu me encontrava. Eles puxavam as folhas de tal modo que elas quase se tocavam. “
Vou subir até lá no alto. Talvez de lá eu possa ver melhor e tenha uma idéia de como ajudar o Bruno
” pensei e fiz. Subi mais e mais. Numa parada para descansar dei uma olhada pra baixo e fiquei de cabelo em pé. Como eu estava alto, meu. O capim parecia pequenas touceiras de bambus feitos só de folhas longas. Eu nunca tinha observado que a folha do capim era coberta de um pelo curto e muito fino. Acho que era aquilo que dava coceira, quando a gente deitava nele. Engoli em seco e voltei minha atenção para a subida. Achava melhor não olhar novamente para baixo. Talvez que o medo me fizesse mudar de idéia. E foi quando eu já estava quase chegando onde queria que o vento soprou. O galho balançou violentamente e eu me grudei nele com pernas e braços, meu. Que sensação danada de ruim. O vento soprou mais forte, o galho balançou mais e eu fiquei tonto vendo o mundo todo rodar. Agarrei-me como uma lagarta no galho e acho que naquela hora nem um gavião conseguiria me arrancar dali. Quando a ventania amainou eu comecei a me arrastar do modo como estava, grudado no galho. Quem me visse pensaria que se tratava de uma estranha lagarta de roupa e com quatro pernas somente. E lá se foi a lagarta humana, que era eu, subindo teimosamente, polegada a polegada, resfolegando mais do que Maria Fumaça em ladeira. Tinha meio-metro de lingua de fora e o coração parecia querer sair pela boca. Meus braços doíam de tão cansados, mas isto só me fazia agarrar com mais força o galho que balançava suavemente.
— Edu! – ouvi o Bruno me chamando.
— O que é? – respondi arfante.
— Onde está voc? – ele não podia mexer a cabeça para me olhar. Ela estava toda enleada nos fios grudentos da rede.
— Estou subindo – respondi com dificuldade por causa do flego curto.
— Pra onde?
— Lá pra cima – arfei.
— O que vai fazer lá?
— Vou tentar soltar voc. E v se cala a boca, droga! Voc está-me cansando mais do que já estou, ‘tá bom? Se ficar sem flego eu não chego lá e não solto voc.
— É que estou com medo da aranha! – falou o Bruno angustiado. – O duende verde disse que ela viria quando estivesse com fome.
— Fica quieto. Eu t subindo, p!
Aquilo era uma agonia danada. Finalmente, molhado de suor, cheguei onde queria... para nada. Agora, eu via a cabeça do Bruno lá em baixo. Eu estava no topo do mundo, mas de pouco aquilo adiantava, pois continuava tão longe dele quanto antes. A folha de onde saía outro dos grossos cabos que sustentavam a teia era enorme e eu podia até sentar sobre ela e foi o que fiz. Fiquei sentado olhando o Bruno lá no centro da teia, escandalosamente exposto à luz de um sol que eu não via. Que sadismo imoral da aranha. Ela ía devorar o coitado assim, exposto à vista de todos os bichinhos do jardim. Aquilo era cruel.
— Edu! – ouvi o Bruno chamando novamente por mim.
— O que é?
— O que voc está fazendo?
— Estou pensando – respondi.
— Em qu?
— Num meio de tirar voc daí.
— Encontrou?
— Ainda não.
— Pois anda logo. Pára de pensar e age. A aranha pode vir a qualquer momento.
— Voc já viu ela? – perguntei para dizer alguma coisa que não fosse confessar minha impotncia.
— Não. Kiztishimanncommun disse que quando eu a vir é porque está na hora de morrer – falou o Bruno quase chorando.
— Então fecha os olhos – recomendei.
— Pra que?
— Pra voc não ver a aranha. Se não olhar para ela, não morre, não é?
— Não, não é isto, Edu. É que eu só vou ver a bicha quando ela estiver com fome e vier para me comer.
— Ah... Bruno!
— O que é?
— Há quanto tempo voc está aí?
— Sei lá! Acho que faz muito tempo e é isto o que me mete medo. A aranha já deve estar perto de vir para me devorar. Já pensou num meio de me tirar daqui?
Não respondi. Olhei em volta e foi quando vi a monstra. Era enorme e meus cabelos se eriçaram. Meu coração endoidou de vez e veio socar furiosamente o cocuruto de minha cabeça. Dava tanta porrada nele que eu esperava ver o medroso sair voando por ali a qualquer momento. Quis falar, mas a minha voz já se mandara há muito tempo, rapaz. A aranha tinha uma bunda enorme, toda pintada em vermelho, amarelo, branco e preto. Ela estava de cabeça para baixo e parecia estar vigiando o pobre karateca que, para felicidade dele, não podia ver sua algoz. Eu estava tão duro de medo que nem saliva tinha para engolir.
— Edu! – gritou o Bruno.
“
Cala a boca, pelo amor de Deus
!” – pensei, pois não conseguia falar.
— Edu! O que voc está fazendo? – tornou a berrar escandalosamente o karateca desmiolado.
“
Não grita! Não grita, droga! Vai acordar a monstra
!” Ah, como eu queria minha voz de volta naquele momento. Acho que queria mais ela de volta do que o meu tamanho. Meu terror ainda não tinha sido todo assimilado e meus olhos já captavam movimentos na bundona bem na minha frente, no outro galho. A aranha deu início a uma dança esquisita, subindo e descendo o enorme abdmen nervosamente.
“
Ela acordou. Vai atacar o Bruno. Meu Deus, o que posso fazer
?” A bichona moveu-se. Tinha pernas tão grandes que se ela fosse do tamanho de um adulto aquelas pernas iriam de um a outro quarteirão. Ela colocou uma das patas cabeludas sobre o cabo grosso que segurava a teia e sacudiu-o com força. A teia toda se balançou e eu ouvi o Bruno gritar com espanto.
— Edu! O que voc está fazendo, cara? Pára de balançar a teia que ela está grudando mais no meu corpo!
A aranha moveu-se para o lado e colocou a pata peluda sobre outro cabo. Fez a mesma coisa de antes. Olhei para baixo e vi o Bruno sendo jogado violentamente para a frente e para trás. O cabo que a aranha agitava passava sob uma de suas pernas e eu vi os fios da teia se enrolarem na perna do coitado.
— Edu! Droga, cara, eu já falei para voc não agitar esta porcaria de teia. V se pára ou eu vou arrebentar voc a porrada quando sair daqui!
Coitado. Ele ainda pensava que ía sair dali. Se visse o monstrengo que estava fazendo a teia balançar certamente desmaiaria de pavor.
A aranha moveu-se novamente e quase que fica de frente para mim. Tomei um susto danado. A bicha era mais feia do que eu podia imaginar. Tinha mandíbulas brilhantes, espinhosas e pretas, e tinha o corpo todo recoberto de pelos duros e eriçados como os espinhos de um ouriço do mar. E olhos, gente. Aquilo tinha milhões de olhos na carantonha demoníaca. Engoli em seco e fui escorregando de fininho, descendo para o talo da folha e dali, para o galho vermelho-escuro, rezando para que aquela coisa infernal não me visse. Eu preferia que ela ficasse mesmo com o Bruno, confesso. Fui escorregando pelo talo liso com a conscincia pesada. Eu estava abandonando o karateca a um destino cruel. Mas o que podia fazer?
Meu pé bateu num dos cabos que sustentavam a teia da aranha. Fiquei lívido. Agora, eu também estava preso. Puxei o pé com força e para meu espanto ele veio facilmente. Então, compreendi que aquele cabo não tinha o visgo que os fios da teia possuíam. Era por isto que a aranha podia andar pela teia sem ficar presa nela. O movimento que fiz com a perna me chamou a atenção para uma coisa dura no bolso de minha calça. Meti a mão lá dentro e retirei o isqueiro de papai. Que bom! Agora, eu tinha fogo. Olhei para a aranha, agora um pouco acima de mim, e fiquei apavorado. A danada, agora, estava sobre a teia e balançava o bundão de modo mais violento naquela dança macabra. Aquilo fazia o coitado do Bruno ser jogado pra cima e pra baixo mais rapidamente e os fios da teia íam grudando nele cada vez mais. A bichona deu dois passo mais e tornou a parar para sacudir a bunda e agitar a teia. O Bruno estava rouco de gritar por mim e pedir que parasse com o balanceio. Ele ainda não desconfiava que os solavancos eram obra da convidada pro jantar macabro, onde o prato principal era justamente ele.
Tomei coragem. Não ía conseguir viver comigo mesmo, se deixasse o Bruno morrer daquele modo. Ou tudo, ou nada. E assim pensando, agarrei-me ao cabo da teia que, para minha surpresa, apesar de parecer vidro, não era liso como este material. Ao contrário, era áspero e dava para a gente firmar bem as mãos nele. Comecei a me arrastar para baixo, em direção ao Bruno, rezando inutilmente para que a aranha não me visse. É claro que ela viu, pois mal avancei uns dois metros e os sacolejos pararam de repente. Vocs não fazem idéia do que é a gente ter de se arrastar a uma altura de uns quarenta metros do chão, solto praticamente no espaço e tendo atrás, nas costas, um monstro pronto a nos estraçalhar. Um frio indescritível passeava em minha coluna vertebral e vinha gelar minha nuca. Era a expectativa de que a qualquer momento a coisa ía atacar. Procurei não pensar na bicha e continuar descendo, polegada a polegada, em direção à teia. Cheguei, graças a Deus, sem nenhum ataque da aranha. Pelo canto dos olhos o Bruno me viu e espantou-se.
— Edu! o que está fazendo aqui? Volte! Vai ficar preso também e aí lá se vai minha esperança de salvação...
— Conversa, cara. Eu estou aqui pra salvar voc. Agora cale a boca e fique quieto. Eu vou tocar fogo na teia.
— O qu? – e o Bruno agitou-se todo. – Ficou doido, é? Eu vou despencar lá em baixo. Voc já viu o quanto isto é alto?
Não perdi tempo discutindo ou explicando a situação. Até porque achei melhor que ele não soubesse que a morte já havia despertado há muito tempo e estava na sua paquera. Acendi o isqueiro e cheguei a chama a um dos fios da rede. Beleza pura! O fio pegou fogo rapidamente como se fosse um pavio. Mas eu não tive tempo de comemorar. O cabo onde eu estava foi sacudido com violncia e eu despenquei dele, ficando dependurado apenas com uma das mãos. Quase que minhas pernas se grudavam nos fios da teia. Isto só não aconteceu porque eu havia queimado um deles, o que me distanciou do próximo. Mas o isqueiro saltou de minha mão e só não despencou lá pra baixo porque ficou preso num fio bem próximo da mão do Bruno. Este, gritou com voz esganiçada de medo.
— Edu! O que está acontecendo? Quem está balançando a teia?
— É a dona dela! – gritei tentando desesperadamente me segurar no cabo. Era difícil, pois rodava toda vez que eu tentava voltar pra cima dele.
— Bruno! – gritei desesperado. De onde estava, eu podia ver que a aranha vinha descendo em nossa direção. Abria e fechava as mandíbulas com estalos estranhos e terrificantes.
— O que é? – perguntou ele, angustiado.
— Tente pegar o isqueiro bem perto de sua mão esquerda! – gritei eu. – Depressa, Bruno. A aranha está vindo pra cima de nós!!!
Aquele aviso deu forças fora do comum ao karateca. Ele se estirou como pde e conseguiu pegar o isqueiro. Com muita dificuldade fez fogo e queimou os fios que lhe prendiam a mão. Logo tinha soltado o braço. A aranha, ao ver o fogo, recuou de volta para seu abrigo lá no alto, sob as folhas. Eu consegui voltar ao cabo justo quando o Bruno conseguia soltar uma das pernas. O fogo estava destruindo a teia e nós estávamos alegres e trabalhando ansiosamente para cair fora dali o mais depressa possível. Mas minha alegria acabou quando um fio grudou bem perto de minha mão. O Bruno, que só estava preso por uma das pernas, recebeu outro fio bem nas costas. Ele estrebuchou tentando alcançar aquilo e logo outro fio grudou nele. O krateca gritou de susto.
— Socorro, Edu. Ela está me prendendo de novo!
— Eu estou vendo, cara. Me dá o isqueiro, depressa!
O karateca me passou o isqueiro justo quando outro fio grudou, desta vez em meu braço. Toquei fogo nele e o fogo subiu direto para a aranha. Ela espertamente cortou o fio e colou a ponta na folha. Agora era guerra de verdade. A gente queimava os fios e a aranha lançava outros. E ela estava ganhando. Jogava quatro fios enquanto eu só conseguia queimar um. A bicha tinha preferncia pelo Bruno e ele já estava ficando todo branco de tanta teia. Gritava feito um desesperado e se sacudia como podia, mas quanto mais se agitava, mais enleado ía ficando. A aranha avançou para cima de nós, mas eu toquei fogo no cabo por onde ela descia e isto fez que recuasse de novo. A situação estava ficando insustentável e eu tratei de cair fora dali. Se não saísse rápido, ía ficar também aprisionado. Nem me lembrava mais da altura em que estava. Deslizei até o tronco da folha em que o cabo se prendia e fiquei olhando impotente o Bruno ser coberto pelos fios pegajosos que a aranha lançava da bunda. Um isqueiro era muito pouco. O que eu podia fazer? Sem prestar atenção, apoiei a mão num galhinho seco e quase caí quando ele vergou. Aí tive uma idéia. O galhinho seria insignificante se eu tivesse meu tamanho normal. Mas naquele tamanhinho ele era ideal. Quebrei um pedaço dele, tirei minha camisa e rasguei uma tira de pano. Rapidamente fiz um arco. Outro pedaço do galho seco me serviu de flecha. Amarrei alguns fios de minha camisa na ponta da flecha e enrolei neles um fio da teia da aranha. Agora, estava armado. E já não era sem tempo, pois a aranha estava bem em cima do casulo em que encerrara o Bruno e trabalhava rapidamente com as patas e a bunda, enrolando cada vez mais o pobre do karateca. Eu já não conseguia ouvir os gritos dele. Procurei um lugar onde pudesse apoiar o corpo e mirei a aranha. Parou de jogar fios sobre o casulo e endireitou a bunda que ficou bem na minha direção. Agora, abaixava-se sobre a teia e estendia duas patas para a frente, puxando o casulo para a boca. Ía começar a comer o Bruno. Era agora ou nunca! Toquei fogo na ponta da flecha e mirei bem no fio-fó da monstrenga. A flecha cravou justamente ali. Fui lindo, cambada! A aranha deu um salto e saiu correndo de volta ao seu abrigo com o trazeiro em fogo. Eu arrastei-me até o casulo onde o Bruno estava preso e toquei fogo nos fios. É claro que ele ficou todo chamuscado, mas antes isto do que virar coc de aranha.
Livre do seu caixão de seda, Bruno me seguiu e nós descemos rapidinho pelo galho até o chão. Quando chegamos lá em baixo, disparamos na carreira e só fomos parar quando já estávamos do outro lado do jardim, na entrada da continuação da gruta pela qual eu chegara até ali. Era alto. Virei-me e olhei para a planta de onde tínhamos acabado de sair. Vi a aranha dando voltas e mais voltas em torno de si, tentando arrancar a flecha do fio-fó cauterizado. De repente fiquei com pena da pobre coitada. Ela não era má. Somente queria comer, como qualquer ser que tem fome. Nós éramos somente comida para ela. Uma comida um bocado indigesta, mas apenas comida. Era a sua natureza prender as presas na rede de caçar e devorá-las para poder sobreviver. Assim tinha sido criada e somente assim é que podia cumprir com o seu destino. Era feia? Bom, era, de meu ponto de vista, mas aposto que para outra aranha ela até podia ser muito engraçadinha.
— Estou com pena dela – murmurei para o Bruno.
— Como é que é? – estranhou o karateca. – Está com pena da aranha, é?
— É.
— Pois eu quero mais é que ela se dane. Que morra, a desgraçada. Quase me comeu, esqueceu? – gritou ele , raivoso.
— Não. Mas é a natureza dela, Bruno. Nós éramos apenas comida. Lutamos por nossas vidas como qualquer outro bichinho que caia ali. Só que tivemos mais sorte, fomos mais inteligentes e tivemos melhores meios à nossa disposição, para azar da coitada.
— Coitada?! – espantou-se o Bruno me olhando de frente. – Coitada uma ova, cara. A desgraçada quase me jantou, ora essa. Se eu tivesse a minha atiradeira dava era uma pedrada bem nas fuças da peste. Ela ía ver só com quantos paus se faz uma canoa, ora se ía.
Olhei para o Bruno com um sentimento que não sei dizer o quer era. Mas identifiquei uma tristeza muito grande em mim.
— Voc não muda nada, não é? Continua o mesmo...
— O que quer dizer com isto? – perguntou ele sem entender minha expressão.
— Voc só pensa em matar. Resolve tudo na porrada e na pedrada, não é?
— É claro que sim. Se eu tivesse minha atiradeira matava aquela diaba a pedrada, sim senhor. Ela ía aprender a não ser tão malvada.
— A aranha não é malvada, Bruno. Nós, humanos, sim, é que somos maus. Ela só cumpre com o seu destino. E este é bem pobre. Ela fica na teia todo o tempo. Passa a vida ali. Há coisa mais triste que isto? Eu, se tivesse podido escolher, não teria ferido a coitada. Talvez que não consiga sarar e voltar a fabricar fios par a teia antes de morrer de fome. E morrer de fome é mais cruel que morrer envenenado por uma picada de aranha, não é?
— Não. Pra mim, ela não presta e pronto. Não sei para que aquelas coisas existem na natureza, ora.
Fiquei olhando o Bruno com um sentimento de desnimo. Então, virei-me e me pus a andar. A senda mergulhava para dentro da terra e eu ía por ela pouco me importando com o karateca revoltado. Ele me chamou.
— Hei! Edu, onde voc está indo?
— Sigo meu caminho – respondi sem parar.
— Para onde? – insistiu ele.
— Vou cumprir com uma promessa – disse eu parando e me voltando para olhar o karateca. Ele estava parado lá na entrada da gruta.
— O que pretende fazer? Sabe para onde leva o caminho que voc está seguindo?
— Não – respondi.
— O Kiztshimanncommun disse que ele leva direto para o Inferno. Volta! É muito perigoso ir em frente.
— Tenho de cumprir com minha promessa – gritei-lhe.
— E qual é ela? – quis saber o karateca.
— Tenho de encontrar a Pedra do Desejo e trazer de volta para o rei dos gnios. Ela vai resolver o problema do casamento dele com a Zistrazumunn.
— E quem é a distinta? – tornou a perguntar o Bruno.
— É a Mirna que foi encolhida e transformada em filha do rei dos duendes.
Respondi e retomei meu caminho. O Bruno calou-se e ficou lá na entrada da gruta recortado contra a luz que eu não descobri de onde vinha.
O caminho seguia cada vez mais escuro e cada vez mais para dentro da terra. Era curioso, mas eu não sentia mais medo.Só pensava em chegar logo na tal pedra, apanhá-la e voltar. De repente a gruta abriu-se num lugar muito feio. Uma luz prateada, como se tivesse um luar, coisa que era impossível, pois não podia haver lua dentro da terra, iluminava o ambiente. Pedras de todas as cores, cinzentas, pretas, amarelo-ocre... Madeira podre por todo os lados e muita folha seca sobre um terreno úmido e escorregadio. Onde eu estava era alto e pude ver, lá em baixo, uma ponte comprida sobre um rio de águas escuras. “
A Ponte do Horror sobre o Rio do Medo
”, pensei e me pus a descer para lá. O lugar fedia um pouco a mofo e a umidade e era muito desagradável. Cheguei perto da tal ponte e fiquei estarrecido. Ela era feita de costelas humanas. Uma grande quantidade de costelas que se estendiam como dormentes de estrada de ferro sobre o rio negro. Olhei para baixo e vi que o rio era de sangue cheio de ilhas de coágulos. Dali subia um odor desagradabilíssimo. Cheio de nojo e fazendo das tripas coração eu me aproximei da ponte macabra. As costelas sangravam e a carne gordurosa parecia estar tremendo. A amurada era feita de braços longos, magros, de mãos ossudas e dedos nodosos cheios de unhas pontudas e sujas.
“
Como é que vou passar sobre isto
?” eu me perguntei horrorizado. Com muito cuidado pus um pé sobre a primeira costela. Ela era escorregadia. Não dava para firmar o peso ali. Forcei um pouco e a ponte soltou um gemido tétrico, que me fez os cabelos ficarem de pé. Dei um salto de volta para a segurança do chão firme.
— Caramba! – gritei. – Este negócio está vivo! Eu não vou passar por aí. Não mesmo!
Ía voltar para a gruta, quando ouvi um barulho esquisito. Eram estalidos, milhares deles. De onde vinham? Procurei com os olhos por todos os lados, sem identificar nada. Mas quando olhei lá para cima da trilha que tinha acabado de descer, vi uma multidão de coisas escuras que avançava em minha direção. Subi a trilha cautelosamente e quando cheguei perto daquilo meus cabelos se eriçaram. Eram centenas de escorpiões negros, amarelos e vermelhos que vinham descendo e estalando as pinças. Traziam os ferrões brilhando ao alto, na luz cibelina do lugar. Dei um berro de medo e desci correndo em direção da ponte. Mas não podia subir nela. Não tinha como. Fiquei paralizado e fui cercado pelos animaizinhos mortais. E agora? Estava assim, sem saber o que fazer, quando ouvi o choro do Piunga. Vinha lá do rio. Olhei para aquele lado, ansioso, e vi meu irmão pendendo sob a ponte de costelas. Sua cabeça estava a meio-metro do rio de sangue e ele estava amarrado por uma perna somente. Não sei quanto tempo estava assim, mas seu rosto estava congestionado e seus braços e mãos, também. Acho que se demorasse mais um pouco naquela posição estranha morreria na certa.
O que fazer?
CAPÍTULO IX
A PEDRA DO DESEJO
Nossa situação, do Piunga e minha, era das piores possíveis. Como já disse, não sei há quanto tempo ele estava daquele jeito, mas sua face congestionada me fazia desconfiar de que ele estava perto de esticar as canelas. Pelo menos o seu chro já era só um gemido e seus braços não se agitavam mais. Tinha as mãos inchadas pelo acúmulo do sangue e a perna solta pendia sobre o abdomem de um modo esquisito. Mesmo que não houvesse os tais escorpiões, eu duvido muito que conseguisse andar sobre aquelas costelas sangrentas. Elas tinham carne e gordura e isto fazia que ficassem muito escorregadias.
Comecei a sapatear desesperado, esmagando quantos escorpiões podia, mas aquilo não resolveu meu problema. Eles davam a impressão de surgirem do solo. E foi dali que repentinamente apareceu um bichão descomunal. Os pequeninos afastaram-se imediatamente de mim e permaneceram quietos, ferrões no ar e pinças abertas ameaçadoras. Entre as pinças do monstrengo eu vi a face de um duende. Era horrível e asquerosa. Boca negra, dentes ponteagudos, olhos vermelhos como brasas e o característico nariz de graveto cheio de calombos. Aquilo me olhou com um olhar maldoso e soltou um risinho de deboche.
— Então, Edu, está ferrado, não é? Sabe que não tem escapatória. Quais são as suas últimas palavras?
Eu não tinha nenhuma e mesmo que tivesse não diria, pois minha voz, mais uma vez, tinha-se mandado para algum lugar que eu desconhecia.
— Não me responde, mal-educado? – e o bicho demoníaco soltou uma gargalhada indiscritivelmente feia. – Eu vou fazer-lhe uma proposta. Se aceitar, meus bichinhos de estimação voltam para seus lugares, desaparecem, e voc pode voltar para o local de onde veio. Aceita?
Pensei em dizer que sim e acenei afirmativamente com a cabeça, mas ergui a mão antes que o bicharoco dissesse alguma coisa. Pigarreei e consegui trazer minha voz de volta, ainda que soasse estranha a mim mesmo.
— Espere – disse eu. – Só aceito a proposta se meu irmãozinho também fr libertado.
— Voc não está em situação de impor condições. Por que se preocupa com ele? é a sua vida que interessa, não é? – a coisa parecia subitamente enfurecida.
— É. Mas não vou voltar deixando ele daquele jeito. Vai morrer e eu não vou conseguir viver com a culpa em minha conscincia – respondi.
— Culpa de qu, idiota? Como poderia sentir-se culpado de salvar a própria vida, heim, estúpido? – e o coisa ruim avançou pra cima de mim estalando as pinças ameaçadoramente. Eu recuei assustado e quase meti o pé dentro do rio de sangue. Então, da ponte veio um longo gemido e uma voz cavernosa gritou:
— Cuidado, menino, não toque o rio do Medo. Seu sangue será drenado e se juntará ao sangue dos milhões de covardes que nunca ajudaram a ninguém na vida. Sua alma ficará aprisionada na ponte e voc sofrerá a dor da Culpa pela eternidade...
— Cale-se! – rugiu o bicho correndo até a ponte da dor e cravando as pinças em suas costelas. A ponte gritou agoniada e o rio agitou o caudal de sangue escuro. – Não se meta onde não é chamada, entendeu? Eu posso piorar mil vezes a sua situação! O menino é covarde. O lugar dele é aqui, com voc.
Eu, covarde? O que aquele negócio esquisito estava dizendo de mim? Se eu fosse um covarde não teria encarado a aranha e salvado o Bruno.
— Covarde é voc, bicho feioso! – gritei com raiva. – Por que não encara sozinho o seu adversário, hein? Com todo esse tamanho e tem necessidade de vir cercado de milhares de pequeninos que morrem tentando fazer o que voc poderia fazer sozinho. Quem é covarde aqui, hein?
O escorpião gigante voltou-se para mim com um olhar maligno.
— Eu sou cada um dos que voc chama de pequeninos, imbecil! – rugiu ele voltando em minha direção. – Agora, diga, aceita ou não minha proposta?
— Primeiro, diga qual é ela. Não vou aceitar nada sem saber do que se trata.
— Voc é muito petulantezinho, menino mal-criado. Mas vou dizer. Quero uma das trs pílulas que Zistrazumunn lhe deu.
As pílulas! Eu tinha-me esquecido delas. O que foi mesmo que a Mirna entanguida tinha dito? “
tome quando chegar a ocasião necessária.
” Eu não sabia para que aquilo servia, mas se havia uma ocasião em que qualquer ajuda era bem-vinda era esta em que eu me encontrava. Nervosamente abri o bolso da camisa e catei uma pílula lá dentro. Apanhei-a e sem mais conversa engoli-a.
— O que está fazendo? – gritou o animalejo brandindo desesperadamente as pinças gigantes sobre a cabeça.
— Eu tenho trs. Tomo uma e dou-lhe outra, está certo? – respondi, embora não tivesse a intenção de dar nenhuma pílula para a coisa. Se estava querendo uma certamente é porque sobraria pra mim. E fosse lá o que fosse, eu não queria que sobrasse pro meu lado.
— Não, ‘seo’ idiotazinho de merda! A pílula que eu queria é justamente essa aí, que voc acaba de engolir.
E foi então que aconteceu algo fantástico. Eu flutuei no ar como um balão, frustando todos os esforços do bicho feio para me agarrar. Desejei ir até o Piunga e no mesmo instante flutuei até ele. Com facilidade desamarrei sua perninha e o segurei nos braços. Os escorpiões atiraram-se furiosos para a ponte, mas ela desabou e foi levada pela corrente. Os bichos não tinham como atravessar o rio de sangue. Então eu flutuei para o outro lado, de costas para olhar para o bichão feio e lhe dar lingua. Eu estava muito feliz e contente e o Piunga se agarrava no meu pescoço e ria de alegria por estar salvo. Então, vi que as pinças do bicho feio endureceram, estalaram e caíram, esfacelando-se no chão e virando pó. E foi assim com todo ele. Os milhares de escorpiões também foram-se desfazendo em pó. A luz do lugar mudou para uma luz clara de manhã de primavera e uma linda mata com pássaros coloridos surgiu onde só havia feiúra e medo.
O rio de sangue vivo e coágulos transformou-se em rio de águas cristalinas e uma ponte de madeira muito limpa e polida surgiu no lugar daquela outra horrorosa que havia ali.
— Diga-me, Piunga, quem o colocou na ponte feia? – perguntei.
— Foi o homenzinho verde – respondeu ele.
— E como ele chegou até lá? – tornei a perguntar.
— Andando sobre a ponte – foi a resposta espantosa. – Aquela lá, está vendo?
— Aquela?! Mas não era uma ponte feia, feita de costelas?...
O Piunga ficou calado olhando para mim com ar de quem não entendia nada.
— Não, Du (era assim que ele me chamava). – Era aquela ponte lá! – e ele tornou a apontar para a bela e florida ponte de madeira sobre o rio cristalino. – Ele me deixou lá naquele balancinho!
Olhei e vi um balancinho feito cadeira que pendia de sob a ponte. Fiquei boquiaberto. O que havia acontecido ali?
— Piunga – disse eu –, está vendo aquele jardinzinho lá? – mostrei um agradável jardim onde havia um parquinho de diversões com muitos brinquedos.
— Estou! – exclamou o capetinha já disparando a correr para o lugar. Fui atrás dele e quando chegamos ao parque eu peguei a mãozinha de meu irmão e lhe disse:
— Vou ter de ir buscar uma pedra que está lá adiante. É longe e voc iria se cansar muito, se fosse comigo. Então, espere aqui, sim?
— ‘Tá! – disse ele tentando correr para o escorrega.
— Escute. Não saia daqui de jeito nenhum. Se quiser beber, tem água lá naquela biquinha, está vendo?
— ‘T.
— Voc promete esperar aqui, por mim?
— Prometo. Posso ir, agora?
— Pode. Até logo.
Eu me afastei com certo receio, mas não podia levar o Júnior comigo. Eu não sabia que coisas monstruosas íam acontecer, quando chegasse à Caverna do Pavor. Era melhor estar sozinho do que arriscar a vidinha dele.
O caminho foi-se estreitando e perdendo o calçamento. Logo não passava de uma trilha arenosa que mudou para um caminho de barro escorregadio e lamacento. Eu suspirei. Ía começar tudo de novo. O mais estranho é que já não sentia medo, mas só uma curiosidade de saber o que me esperava. Estava tão absorto em recordar das coisas estranhas que tinha acabado de vivenciar, que não vi quando o caminho sujo e lamacento acabou na boca de um buraco. Caí lá dentro e me estabaquei num charco de lama. Saí dali xingando deus e o mundo. O lugar era escuro, fedorento, ameaçador. Soprava um vento frio e cortante. Eu comecei a andar às apalpadelas e tiritando. E foi porque estava tremendo tanto que quase não conseguia ficar de pé, que eu me apoiei num bloco de pedra redondo bem à altura de minha cabeça. A pedra cedeu e eu caí. Olhei espantado para o alto e fiquei de cabelos em pé. Um enxame de maribondos quase de meu tamanho cobria a casa e zumbia ameaçadoramente os ferrões perigosos. Pois não é que eu metera a mão justo naquele troço? Comecei a me arrastar de mansinho pelo chão e minha mão tocou em alguma coisa fria, mole e escorregadia. Olhei rápido para aquilo e fiquei de pé num salto e com um berro de meter inveja a Tarzã. Era uma cobra gigantesca e de olhos verdes. A bichona estava dormindo, mas com o meu grito acordou e começou a rastejar em minha direção. Não contei conversa e saí em disparada. Já não mais sentia frio, principalmente tendo o enxame de maribondos furiosos zumbindo no meu encalço. Os bichinhos zumbidores já estavam sobre mim e eu não encontrava lugar onde me meter para escapar das ferroadas. E foi quando já desesperançava que dobrei uma curva do caminho e dei de cara com uma cortina de chamas.
— Ih, danou-se! – gritei agoniado. O calor era de lascar e creio que foi isto que sustou o ataque dos bichinhos perigosos e da cobra gigante. Mas se eu ficasse ali é certo que ía assar. Estava assim, entre a cruz e a caldeirinha, quando ouvi o choro desesperado de Laís.
— Laís? – chamei com medo de que ela me respondesse. Mas foi justamente o que aconteceu. Lá do meio do fogo veio o grito de agonia de minha irmã.
— Edu? É voc, manhinho? Pelo amor de Deus, diga que é voc que veio me salvar!
Raios! Era a Laís, sim. Como é que foi parar lá no meio do fogaréu?
— Laís! Sou eu, mana. Agüente firme que vou tirar voc daí!
Esta era uma promessa que até eu tinha curiosidade de saber como ía ser cumprida. O calor era de esturricar qualquer coisa. Minha pele enrrugava e eu ainda estava a quase cinco metros do fogaréu. Mas se eu tinha salvado o Bruno e o Piunga, então, salvaria minha irmã a qualquer preço. Olhei para trás e vi os maribondos enxameando por todos os lados e, no chão, a cabeçorra da cobra com a lingua bífida saltando pelo orifício da boca fechada. Os olhos verdes do réptil estavam fixados em mim.
— Que belo! – exclamei agoniado pelo calor que me fazia suar em bicas. – De um lado, ferrão de maribondo e goela de cobra. Do outro, fogo do inferno. E agora?
— É o que eu gostaria de saber, garoto – ouvi a voz rascante e silvante atrás de mim. Voltei-me novamente e vi a cobra erguer-se até ficar de minha altura e falar. ‘Tão pensando que é mentira, é? Pois num lugar demoníaco daquele, cobra fala sim senhor.
— Quem é voc? – perguntei perplexo.
— Eu sou a Inveja, garoto. Voc é meu. Todo meu.
— Uma ova! – exclamei raivoso.
— É, sim senhor. Está vendo aqueles maribondos acima de nós? Eles são seus pensamentos invejosos que ferroam os outros, donos do que voc não tem, mas que cobiça em silncio. E está vendo aquele fogo? Pois ele é o seu egoísmo. Um egoísmo que sempre quis afastar sua irmã de perto de voc e deixar seus pais e seu irmão só para si. Voc sempre quis todo o espaço só para si, menino invejoso. Como v, nós somos voc e voc é nós. Não tem como se livrar da gente, garoto.
— Se vocs são eu, então, por que me atacam? – perguntei.
— Porque é de nossa natureza atacar a tudo e a todos, menino burro. Nós somos o produto de sua maldade. Somos seus filhos, pequeno imbecil. Agora, voc é todo nosso...
E a cobra verde danou a gargalhar. Era tão gozado ver aquela boca sem lábios soltando uma gargalhada. Parece que o riso saía daquela caverna hiante vindo de algum lugar das entranhas do réptil.
“
Eu não sou destes monstros. Não pertenço a eles nem eles a mim. E vou mostrar já, já, a essa cobra metida a besta como é que vou sair desta situação.
” Meti a mão no bolso e apanhei uma pílula. Levei-a à boca, mas aí aconteceu algo muito esquisito. A pílula cresceu e eu não consegui engolí-la. O que estava acontecendo? Será que na pressa eu pegara a pílula errada?
— Não, pequeno idiota – falou a cobra que leu meus pensamentos. – Ela não vai descer porque voc não tem um sincero desejo de se livrar de nós. A inveja e o egoísmo dominam todas as crianças de sua idade. Só quando crescem e sofrem muito é que aprendem a se conformar com o que tm e a repartir o que possuem com os outros. Voc é um pirralho egoísta e invejoso e não vai se livrar de nós só com uma pílulazinha qualquer.
Eu ouvia a cobra e tentava de todos os modos engolir a pílula teimosa. Ela inchava como borracha e eu não conseguia nem mesmo mastigá-la. E essa, agora?
— Pelo Amor de Deus, Edu, me salva. Eu estou assando viva!
Era a Laís. Era minha irmã, minha única irmã. Se ela morresse, como é que mamãe iria sentir-se? E meu pai? E eu? Apesar do que a cobra tinha dito, eu amava a minha irmãzinha. Ela não tinha culpa de ter nascido mulher, ora essa. Tinha sido um azar, mas para ela, não para mim.
Cuspi a pílula fora com um palavrão. Se não queria descer, que se danasse. Eu ía entrar pelo fogo a dentro de qualquer modo. O que não suportava mais era ficar olhando para aquela cobra indecente e ouvindo os pedidos de socorro de minha irmã. Corri em direção ao fogo protegendo os olhos com o braço. Senti as picadas aradentes das labaredas antes mesmo de pular para dentro delas. O fogo chamuscou meus cabelos e minhas pestanas viraram cinzas. As pontas de minhas orelhas doeram uma dor aguda, como se milhões de ferroadas de maribondos estivessem sendo aplicadas ali e a ponta de meu nariz sofreu a mesma coisa quando meu corpo passou voando sobre o chão em chamas e mergulhou nas ondas de fogo. “
Vou morrer
!” pensei apavorado, mas sem poder mais recuar. Uma dor infernal me invadiu da ponta de cada dedo e não consegui inspirar o ar porque ele estava fervendo e ardia como pimenta em minhas narinas. Aquilo foi a experincia mais pavorosa que eu já experimentei na vida. Mas só durou o tempo em que eu cruzava a cortina de fogo. Assim que saí do outro lado tudo cessou. Caí rolando sobre um lajedo e fui parar bem perto da Laís que estava amarrada a uma pedra ponteaguda.
— Edu! – gritou ela, surpresa.
— Eu disse que vinha, não disse? – respondi batendo as mãos na cabeça para apagar o fogo que queimava meus cabelos.
— Mas foi pura burrice o que voc fez. Agora, nós dois vamos ficar prisioneiros aqui e morrer queimados.
— Não. A gente vai sair – respondi me levantando e correndo a desamarrar as mãos dela. – Pronto, voc está livre.
— E de que adianta isto? – perguntou a Laís com um misto de raiva e frustração. – O fogo está em torno de nós dois e vai do chão ao teto. Não temos como passar por ali.
— Sairemos do modo como eu entrei, ora bolas. Vamos queimar um pouco, mas é melhor do que ficar aqui dentro, assando devagarzinho – disse eu agoniado pelo tremendo calor que fazia minhas queimaduras arderem como doidas e tornava o ar quase irrespirável.
— Voc não viu não, é? – perguntou a Lais cobrindo o rosto com as mãos para se proteger do calor.
— Não vi o qu?
— O fogo surge em espiral, Edu. Ele está cada vez mais e mais se aproximando daqui. Isto quer dizer que a parede de chamas que voc atravessou já está no mínimo o dobro do que era. Nós não vamos conseguir saltar de volta, ‘seo’ bobo.
Era por isto que o calor aumentava cada vez mais. O fogo estava fechando o círculo. O que eu podia fazer? Minha camisa em tiras quase que incendiava quando passei através da muralha de fogo. Ela não me serviria de nada... Mas espere! Havia ainda uma pílula! Não hesitei. Retirei a última pílula e estendi a mão para a Laís.
— Tome! – gritei.
— O que é isso? – perguntou ela com dificuldade de abrir os olhos por causa do calor.
— É uma pílula mágica. Engula e avance para o fogo – respondi tapando o rosto com o braço. O calor era infernal.
— Eu não preciso de pílulas. Eu preciso é de... – começou a dizer minha irmã, mas eu a cortei bruscamente.
— Tome a droga da pílula, Laís. Pelo menos uma vez na vida veja se faz o que mando, merda!
Espantada com minha reação, Laís engoliu a pílula.
— E agora? – gritou ela aturdida.
— Vá para a cortina de fogo! – gritei me contorcendo de dor pelas queimaduras que ardiam como se um ferro em brasa estivesse tocando ali.
— Não! – gritou ela com medo.
Não pensei duas vezes. Dei-lhe um bruto empurrão e ela, gritando desesperada, sumiu dentro das chamas. Pelo menos ela se salvava...
Então tudo cessou.
Sumiram as chamas, sumiu o calor terrível e sumiram a cobra e os maribondos. Diante de nós dois estava um lago de águas límpidas e azuis como se um pedaço do céu tivesse caído ali dentro.
E no meio do lago estava uma pedra redonda, cor-de-rosa, transparente e do tamanho de uma bola de beisebol.
— Meu Deus! – exclamei contente – A Pedra dos Desejos...
Laís aproximou-se de mim assustada. Olhava para todos os lados sem entender o que havia acontecido. Eu, não. Já me acostumara com as coisas inexplicáveis que aconteciam ali dentro.
— O... O que aconteceu? Onde... Onde está o fogo? – perguntava ela sem acreditar no que via.
— Sumiu. Foi coisa da pílula. Eu disse que era mágica, não disse? – respondi.
— Então... Estamos livres?! – perguntou minha irmã, incrédula.
— Estamos. Pelo menos do encanto do fogo, da cobra e dos maribondos. Agora, tenho de apanhar aquela pedra lá – e apontei para a Pedra dos Desejos que repousava em um nicho no meio da rocha que sobressaía bem no centro do lago.
— E como vai chegar até lá? – perguntou Laís.
— Nadando. Esqueceu que sou bom nadador?
— Não. Mas veja, a água do lago começa dois metros abaixo de nós. Ele é redondo e não há praias nem escadas. Na verdade, ele é mais um poço do que um lago. Como é que vai sair da água, depois que mergulhar?
Laís tinha razão. Fiquei parado olhando cuidadosamente por todo o lago. Não havia como, uma vez caído dentro de suas águas límpidas, sair de lá de dentro. E agora? Então, lembrei-me de que a pedra que eu ía buscar chamava-se a Pedra dos Desejos. E se tinha este nome é porque na certa tinha o poder de realizar os desejos de quem a possuísse. Contei à Lais o que deduzira, mas assim que acabei de falar, do fundo do poço surgiu uma sereia. Tinha cabelos verdes, olhos verdes, pele branco-rosada e escamas furta-cor na metade do corpo de peixe.
— Quem é o mensageiro? – perguntou ela lá do meio das águas.
— Sou eu – respondi. – Por que?
— Porque eu vim avisar que voc não pode expressar nenhum desejo à Pedra. Se fizer isto, ela perde os poderes.
— Mas que droga! – gritei frustrado. – E por que eu não posso fazer um desejo?
— Porque a Pedra só pode ser despertada por um ser encantado e voc não é isto.
E essa, agora? Eu estava justamente dando tratos à bola sobre o problema novo, quando ouvi a Laís perguntar à sereia.
— E voc é um ser encantado, sereiazinha?
— Sou – respondeu ela fazendo evoluções dentro d’água.
— Diga, sereiazinha, voc pode atender a um pedido meu?
— Poder, eu posso sim. Mas o que vou ganhar em troca?
— Que tal um espelho e um pente?
— Não interessa, ora. Eu tenho o espelho do lago e pente feito de conchas.
— Bem, então... Que tal minha bolsinha? – e Laís mostrou à sereia a sua bolsa de moedas.
— Para que serve isso?
— Para colocar dinheiro, ora.
— E o que é dinheiro?
— É... é... – Laís olhou para mim, atrapalhada e pedindo socorro. Ela não sabia dizer o que era dinheiro e, pensando bem, eu também não.
— Então, eu não quero – gritou a sereiazinha dando um pulo dentro d’água.
— Voc não quer o qu? – estranhou minha irmã.
— O tal de dinheiro. Se vocs nem sabem o que é, como é que vão saber para que serve?
— Não, espere, a gente sabe para que serve o dinheiro, sim – protestou a Laís.
— E para que serve?
— Ora, para comprar tudo o que se deseja.
Foi a resposta mais burra que a Laís podia ter dado.
— Então, se com o dinheiro vocs conseguem comprar tudo o que desejam, para que estão querendo a Pedra dos Desejos?
A diabinha verde nos punha em uma entaladela por causa daquela resposta besta. Minha irmã tinha aquela bobeira de falar sem pensar.
— Não é para nós. É para o rei dos gnios – gritei eu.
— Ah, não. Para aquele monstro? – e a sereiazinha parou de dar pinotes e fazer evoluções e ficou olhando para nós com expressão muito séria.
— Bom... foi ele quem mandou eu vir buscar a tal pedra – respondi meio sem graça.
— E para que ele quer a Pedra?
— É para casar com a princesa Zistrazumunn.
— E o rei dos duendes concorda com isso? – espantou-se a sereiazinha.
— Bem, pra falar a verdade, o entanguido discorda em prosa e verso.
— Então, por que voc vai levar a pedra para o rei dos gnios?
— Por que só assim eu vou recuperar meu tamanho verdadeiro que a tal princesa me roubou.
— Esperem, quem é esse tal rei dos gnios? – era a Laís.
— Ora, é o rei dos gnios. Qual é a dúvida? – foi a sereiazinha quem respondeu.
— E esse sujeito tem nome? – peruntou a Lais.
— Tem.
— E como se chama ele?
— É Zuffbaruffpum.
— É.. O qu? – perguntou Laís começando a rir.
— É Zuffbaruffpum...
— ZuffbaruffPUM?! É PUM mesmo? Tem certeza?
— Claro! – respondeu a sereiazinha sem entender a minha irmã.
— Tá me dando uma vontade enorme de rir...
E minha irmã estourou numa gostosa gargalhada. A seriazinha gritou desesperada, saltando feito louca dentro do lago.
— Não ria, não ria, não riaaaa! Não se pode rir do nome do Rei dos Gnios!
— Mas quem não ri de um nome destes, gente... – e Laís se dobrava de rir.
— Mande a menina parar de rir. Eu atendo o pedido que vocs quiserem, mas mande que ela pare, já!
— Laís – gritei eu. – Se voc não parar de rir eu conto para a sereia o seu apelido lá na escola.
Foi como pisar no freio. Laís parou de sopetão.
— Arre! – exclamou a sereiazinha. – Espero que ele não tenha ouvido isso, senão seria um desastre. Agora, o que voc quer de mim?
— Quero que voc construa uma escada bem aqui, para o Edu conseguir descer ao lago e sair dele, quando voltar lá da pedra.
— É pra já!
E a sereiazinha sacudiu a cabeleira verde rodando a cabecinha como se fosse a pá de um ventilador. Imediatamente uma escada surgiu na pedra bem perto de nós. Eu desci e me atirei nas águas. Que delícia. Nadei vigorosamente até o outro lado e quando subi na rocha para alcançar a Pedra dos Desejos, maravilha! Estava totalmente curado de todas as queimaduras e arranhões que trazia no corpo. Apanhei a pedra, meti-a dentro das calças e voltei para a escada. Assim que saí da água a escada sumiu e, com ela, a sereia.
— Bom, voc tem a pedra. E agora? – quis saber Laís.
— Vamos voltar.
Apanhamos o Piunga e o Bruno no caminho de volta. Eles estavam nos mesmos lugares onde eu os havia deixado e a volta foi fácil. O caminho estava muito mais claro e muito mais fácil de ser feito a pé. Quando finalmente passamos sob o Arco da Mudança, encontramos todos os gnios no vasto salão da gruta onde moravam e estavam todos espantados. Nenhum esperava nos ver de volta.
Aproximamos-nos do Rei dos Gnios, que segurava o Rei dos Duendes na palma da mão e eu lhe estendi a Pedra dos Desejos.
— Aqui está a Pedra. Agora, devolva meu tamanho – pedi.
— Voc merece mais do que isto, garoto.
E o Rei dos Gnios tomou a pedra nas mãos, eufórico. Olhei para o entanguido e o vi com uma cara de meter medo até no Myke Tyson.
— Veja, Rei dos Duendes. Agora, posso casar com a Princesa.
— Voc só venceu porque o filhote de humano me traiu – resmungou o reizinho sentando-se com um suspiro de tristeza.
Senti pena dele, mas não podia fazer nada. Eu tinha de ter meu tamanho de volta ou jamais retornaria para a companhia de meus pais. E ficar ali era o que eu menos desejava em minha vida.
Zistrazumunn foi chamada pelo pai que lhe ordenou que me devolvesse o tamanho natural. Ela estendeu seu dedinho para mim e naquele instante o Rei dos Gnios gritou:
— Não! O garoto fica do tamanho que está. Ele se mostrou digno de ser um escravo meu. Agora, tenho mais vinte e uma missões para ele.
Fiquei sem fala. O cretino do vesgão me queria como escravo. Em pleno limiar do Século XXI e o carcamano me queria fazer de seu escravo, era possível aquilo?
— ‘Tá de gozação pra cima de mim, não está? – gritei.
— Não. Voc vai ser o meu escravo. Voc e toda a corte de Duendes. De agora em diante, eu mando em todo o país dos encantados.
— Viu só o que voc foi arranjar, desmiolado? – falou o Rei dos Duendes.
— Mas sua filha... – disse eu. – A princesa Zistrazumunn tem poderes...
— Que serão anulados pela Pedra dos Desejos assim que o Rei dos Gnios fizer o pedido – completou o reizinho com outro suspiro ruidoso.
— E... e meus irmãos? E o Bruno? – perguntei num fio de voz.
— Ficarão aqui, também. Serão transformados em gnios serviçais – respondeu o reizinho resignadamente.
— E nossos pais? – perguntei com os olhos cheios de lágrimas.
— Serão encantados pelo Zuffbaruffpum em pedras e ficarão pra sempre lá na Chapada.
— Não! Eu não quero isso para meus pais! – gritei furioso.
— Mas voc não gosta de sua mãe? – estranhou o reizinho.
— Eu não gosto dos puxões de orelhas, mas isto não quer dizer que eu não ame minha mãe. Se o vesgão se meter a besta de fazer alguma coisa com ela e com meu pai...
— Vai fazer o qu? Voc será o escravo dele, meninozinho imbecil. Trate de se acostumar com a idéia.
Naquele momento o vesgão ergueu a Pedra dos Desejos e disse com o seu vozeirão:
— Eu desejo que Zistrazumunn se torne de meu tamanho para que nós possamos casar-nos!
Uma grande gargalhada estourou no ambiente. Uma gargalhada de deboche, volumosa, que enchia todos os cantos da enorme gruta. De onde vinha? Da Pedra do Desejo.
O Rei dos Gnios deu um berro de raiva que tremeu a terra.
— Que negócio é esse de rir numa hora destas? Ordeno que pare, já!
Mas o riso contagiou a todos. Os gnios rolavam de rir pelo chão. Nós, também e até o enfezado deu de rir às gargalhadas. Aquilo ps Zuffbaruffpum maluco da vida. Ele começou a gritar com um vozeirão terrível, que foi ficando fraco e fino e cada vez mais fraco e fino até que não passava de uma vozinha tão fraquinha que quase não era ouvida. E aconteceu uma coisa gozada. Todos os gnios começaram a encolher, a encolher e a encolher até que todos não eram mais do que duendes.
— Eu perdi! Eu perdi! Droga, eu perdi! – gritava o anãozinho que já fora um rei gigante vesgo.
Então, o Rei dos Duendes se levantou e bateu palmas por trs vezes. Todos pararam de rir e se juntaram em sua volta.
— Meus amiguinhos, enfim, estamos livres da maldição de nosso ex-feiticeiro-mór. Conforme rezava a lenda, quando um grande covarde virasse herói e abdicasse de si mesmo em benefício dos outros diante dos maiores perigos da Terra, então, nosso reino voltaria a ser nosso, novamente. Tudo se cumpriu. Venha cá, Edu.
Eu me aproximei de queixo caído. Aquilo não estava no script, irmão. Não estava mesmo.
— Espero que voc tenha aprendido a lição, garoto. Não deve temer o que lhe parece ameaçador, porque sempre que isto acontece, o que é ameaçador só é assim porque voc coloca nele a força de seu medo. E esta força trabalha contra voc mesmo. Agora, venham até aqui, todos. E o reizinho se levantou e nos conduziu até um lugar alto, de onde podíamos ver uma porta por onde entrava uma luz muito forte.
— Vão. Estão livres. Vocs podem voltar para seus pais. Aquela porta lá é a saída.
Não contamos duas vzes. Corremos para a porta, cada um doido para abraçar seus pais. Mas quando atravessamos a tal porta, caímos num lugar que parecia não ter fundo. Eu gritei...
— Edu! Acorda, Edu!
Alguém me sacudia pelos ombros. Abri os olhos e vi meu pai.
— Voc está gritando há quase um minuto, filho. Acorde. Acho que teve um pesadelo. Vamos, levante-se. Está na hora.
— Na... Na hora de... de que? – perguntei ainda sob o inpacto do sonho.
— de se preparar para sair. Vamos encontrar os outros para irmos para a Chapada, esqueceu? Só falta voc e o Júnior.
Dei um pulo da cama e fiquei de pé, com os olhos arregalados.
— Pai... Nós ainda não fomos lá, não?
— Claro que não, ora. O Antnio e sua mulher, don Ana, estão na sala com o Bruno e esperam por nós.
Saí correndo e dei de cara com o Bruno na sala. Todos me olharam espantados. Eu ainda estava de pijama e tinha os cabelos em desalinho.
— Bruno! – chamei. – Onde está a sua atiradeira?
— O... o qu? – tartamundeou ele, olhando de esguelha para seus pais.
— A atiradeira. Me dá ela, agora – respondi.
— Mas... mas eu...
Não esperei nem mais um segundo. Avancei para ele e meti a mão em seu bolso trazeiro. Ela estava lá, a danada causadora de toda aquela confusão. Todos ficaram sem compreender como é que eu sabia da atiradeira do Bruno, se ninguém mais tinha conhecimento de que ele trazia a arma assassina escondida no bolso das calças. Deixei todos atarantados e fui direto para o meu quarto. Apanhei a tesoura da mamãe e piquei aquela coisa de matar até que não sobrasse nem um taquinho aproveitável de suas borrachas.
Quando descemos para nossos carros, ao lado do prédio onde moro, eu ouvi um bem-te-vi cantando. Parei e fiquei olhando para ele e vi um homenzinho verde bem ao lado da avezita feliz. Ele me olhava e eu acho... acho não, tenho certeza de que havia um sorriso malicioso no seu rostinho travesso e feio.
Meu pai me chamou e eu entrei rindo na F-l000.
— Do que ri, Edu? Achei muito feio o que voc fez com o coitado do Bruno – censurou minha mãe.
— Pois eu achei lindo o bem-te-vi cantando livre de uma pedrada traiçoeira lá no alto daquela árvore – respondi feliz.
Todos me olharam com uma interrogação na face, mas eu não me importei. Também eu estava livre como o bem-te-vi. Livre do medo, da inveja e do egoísmo que até aquele dia me tinham transformado a vida num inferno...
E tudo graças aos duendes...
Será que eles existem mesmo?
Eu não sei de vocs, mas eu acredito neles.
F I M
©2001 — Filipe Marinho de Brito
filipeu@uol.com.br
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__________________
Novembro 2001
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