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Os Olhos de Cephiorlototh
Daniel Cavalcante
Gatos não pertencem às pessoas. Eles pertencem aos lugares.
Morris, Wright
O único mistério sobre o gato é porque ele decidiu
virar um animal doméstico.
Sir Compton Mackenzie
DIZEM QUE OS humanos não se recordam dos momentos que sucedem seu nascimento, até seus primeiros longos anos. Acho isso bem estranho. Como é possível viver feliz sem a recordação de dias alegres, de brincadeiras inocentes, da vida sem preocupações, alheia aos males do mundo afora, quando tudo se resume a um mundo de brinquedo?
Eu nasci em um lugar macio e aquecido, em detrimento ao frio que eu sentia ao me ver fora do ventre materno. Me lembro, como se deve, das sensações mútuas, como a fome e o frio. Me lembro do carinho materno, de quando mamãe me banhava e me alimentava. O mundo era ainda estranho e misterioso. Eu ouvia sons diversos e as vezes me sentia sendo carregado por algo muito grande. Tinha medo.
Descobri a beleza do mundo quando abri meus olhos. Tudo era maravilhoso, colorido e assustador! Tudo era grande! Mamãe estava deitada, ao meu lado, com olhar cansado e sonolento. Ela era linda, preta com manchas brancas por todo o corpo, o rabo comprido, longos bigodes e enormes orelhas. Tentei me erguer sobre minhas pernas fracas e sair do lugar onde estava. Foi quando descobri que haviam outros quatro como eu; quatro irmãozinhos, que me olhavam e tentavam andar, e miavam como eu.
- Olhem bem para o mundo à sua volta, meus filhotes! - disse mamãe - Olhem por cima desta caixa. Vejam o sol pela janela, as plantas nos vasos, os lugares altos, onde logo vocês poderão subir e pular, brincar e correr, perseguindo pequenos insetos. Respirem fundo esse ar fresco - É uma dádiva aos seres vivos!
Todos nós olhávamos tudo com grande admiração. A felicidade de estar vivo me invadia o coração e mal podia esperar para correr e brincar naquele lugar lindo e estranho. Mas minhas perninhas ainda eram fraquinhas e mal pude dar passos desengonçados e incertos. Mamãe sorriu e eu deitei encostado a ela.
- Agora - continuou ela - olhem, acima de tudo, aquelas pessoas a conversar do outro lado da sala. Eles, meus filhos, eles são nossos melhores amigos. São quem nos alimentam depois que somos desmamados, eles nos divertem, nos admiram e nos acariciam sempre que precisamos de carinho. Vocês brincarão com eles por muito tempo, ronronarão em seus colos, dormirão ao seu lado, e tentarão falar com eles, dizer o quão felizes são e o quanto vocês os amam; mas não conseguirão, pois os homens não foram feitos para entender os gatos. Eles nunca os entenderão, embora vocês saberão o que eles dizem. Mas ainda assim os amarão. Aproveitem essa vida maravilhosa!
Foi com essas palavras aladas que mamãe nos preparou para o mundo. Logo depois, as pessoas perceberam que nós, filhotes, havíamos aberto os olhos e tentávamos caminhar. Eles falavam coisas com carinho na voz, e nos tomavam em suas mãos e nos acariciavam e eu ia pensando - Ah! como é bom viver! Como era bom...
Uma semana depois fui levado em uma cesta confortável, mas solitária e escura, para um lugar diferente, com coisas diferentes e pessoas diferentes. Me instalaram em uma outra cesta, ainda mais confortável, com um prato de comida e leite ao lado. Nunca mais vi mamãe.
Logo me acostumei àquele novo lar. Lá também havia o sol pela janela e as coisas para subir. Moravam nele duas pessoas grandes e uma pequena. Eles se encantavam comigo e me olhavam com admiração, durante muito tempo. E eu os divertia com brincadeiras infindáveis. Sempre, à mesa de jantar, jogavam-me algum objeto redondo que eu jogava de um lado para o outro, perseguindo, tal como uma presa; pulando, arranhando, mordendo, pulando... E eles riam e se divertiam. Eu parava a brincadeira e os olhava e, vendo o sorriso em seus rostos, continuava o brinquedo, ainda mais incentivado. Inventava malabarismos mil e eles se encantavam ainda mais.
- Ele não é uma gracinha? - dizia a mulher aos outros. Até parece que quer nos agradar.
- Sim - respondia o homem -, parece que sabe que estamos nos divertindo com ele.
- Claro que ele sabe - dizia o garoto. Ele é mesmo uma gracinha.
Quando me cansava, eu tentava falar-lhes, mas era impossível que eles me entendesse, como previra mamãe. Então me esfregava nas pernas deles, embaixo da mesa, em agradecimento pelos risos; deitava-me meio de lado e lambia as patas. Nem precisava miar para pedir comida. O garoto se precipitava a colocar os deliciosos grãos em meu pires, que eu devorava com satisfação. Ele me acariciava enquanto eu comia - coisa que não eu gostava, mas deixava para agradá-lo.
Quando eu terminava a refeição, eu me deitava no tapete confortável e me banhava. Nessas horas eu me lembrava de mamãe que me banhava cinco vezes ao dia. Eu tentava fazer exatamente como ela fazia.
Como era divertido aquele lar! Depois de um cochilo - que, eu sabia, também era admirado pelos meus donos - eu arranhava o carpete para afiar minhas garras e explorava tudo que ali havia, e sempre havia coisas inéditas para mim. Eu subia nos lugares altos, lembrando-me do que mamãe dissera logo que abri meus olhos pela primeira vez. Eu não entendia porque meus donos não gostavam que eu subisse em certos lugares, mas eu subia assim mesmo. Talvez, com um pouco de teimosia, eles um dia acabassem deixando que eu ficasse nesses lugares quando quisesse. Bem, esse dia não chegou. Eu sempre era carregado e posto no chão delicadamente quando subia nesses lugares.
Certa vez eles trouxeram prá mim uma coisa, uma caixa quadrada e misteriosa. Eu me aproximei, com receio, cheirei, observei. Nunca vira algo como aquilo. Era tão simples e tão estranho! Devia ter alguma razão. Então, vendo que não me representava nenhuma ameaça, pulei dentro dela e olhei para meus donos afim de saber qual seria as suas reações. Eles estavam agachados perto da caixa e sorriam, com expectativa. Então compreendi que aquilo era meu novo brinquedo, talvez para que eu não subisse mais nos lugares proibidos. Me abaixei, dentro da caixa e me escondi do angulo de visão de meus donos, afim de diverti-los. Eles riam e se levantavam, achando-me, encolhido dentro da caixa. Então eu saltava, agarrava suavemente a perna de algum deles e corria para outro cômodo, iniciando assim uma brincadeira de pega-pega. Eles nunca conseguiam me pegar. Eram grandes demais, e eu sempre me esquivava ou me escondia em cantos inacessíveis para eles. Quando eles diminuíam o ritmo eu deixava que me pegassem, só prá ver o que fariam. Então o mais novo me jogava cuidadosamente para cima, me pegando na descida, repetidas vezes. Era uma delícia voar. Quando a mulher me pegava, iniciava uma brincadeira de luta, incitando-me a agarrar e morder de leve seu braço.
Ah, que felizes dias... Como era bom viver! Como era bom... Quando me lembro destes momentos, ainda hoje, em meu estado deplorável e minha sorte de hedionda peregrinação, minha alma se enche de saudosismo e felicidade amarga em preto e branco.
E, à noite, quando a claridade do sol sumia da janela e todos iam dormir, o garoto me colocava para dormir com ele em sua cama, ainda que seu pai não gostasse disso. Dizia que tenho pulgas e não era muito higiênico (Ora!, não sabia ele que me banho várias vezes por dia?). Em detrimento às preferencias higiênicas do pai, eu me enroscava, ronronando, no pescoço do garoto; e assim dormíamos pesado sono, até o amanhecer.
Eu sempre o acordava, logo que o sol iluminava o quarto do garoto, porque eu acordava com fome. Era difícil acordá-lo. Eu tentava falar-lhe, mas era impossível que ele me entendesse, como previra mamãe. Eu lambia seu rosto, andava por cima dele; depois eu subia naqueles lugares proibidos e derrubava algo pequeno, para que ele se irritasse e levantasse para me repreender. Isso sempre funcionava.
Depois do café da manhã, eu ia até a caixa de areia improvisada perto da cesta, onde eu deveria dormir, que ficava em um quartinho bem pequeno e apertado, onde eles jogavam várias coisas como vassouras, lata de lixo, e toda sorte de bugigangas.
Céus, como eu os amava... Os fitava sempre com admiração e curiosidade. Os humanos são seres fascinantes! Estão sempre fazendo algo, correndo de um lado para o outro, ou, as vezes, ficam horas parados de frente à uma tal televisão, onde surgem imagens coloridas e sem sentido. Quando estão felizes riem, pulam, cantam, dançam, brincam até cansar; mas quando tristes, ficam deitados, lamentando-se, isolam-se, não brincam e não falam. São seres realmente curiosos.
Mas os dias foram se passando e o relógio da vida não pára. A primavera se fora, veio o verão, no outono eu já estava grande, e no inverno as coisas já não eram as mesmas.
Eu, que antes fora o centro das atenções, passei fome e nessecidades naquele lugar. Nenhum deles parecia se importar comigo. Eu os seguia, miava, gemia, mas ficava, por vezes, dias sem comer. A caixa de areia ficava impregnada de fezes e urina, e o cheiro era insuportável. Eles simplesmente fechavam a porta do quartinho para não terem que aturar o odor fétido. Durante a noite, não dormia mais no quarto, com o garoto. Me trancavam no quartinho e lá eu ficava, por horas. Outras vezes, quando não estavam de bom humor, me trancavam lá de dia, o dia inteiro. E a fome me remoía.
O garoto parecia sempre de mau humor e a mulher estava desesperada, não sabia o que fazer. Sempre havia discussões na casa, gritos, e as portas batiam.
Nesses dias, eu procurava ficar bem quieto em algum canto imperceptível, pois se eu tropeçasse neles ou fizesse algo errado, era escorraçado aos chutes prá longe, ou atiravam qualquer coisa contra mim.
Certo dia a mulher gritava com o garoto, que saiu furioso pela porta da frente. Eu, sem entender o que acontecia, tentei tranquiliza-la, tentei dizer algo, mas era impossível que ela me entendesse, como previra mamãe. Olhei prá cima, para os olhos dela, e miei docilmente; mas ela pegou um sapato e com ele me bateu até que eu miasse de dor.
Passei a teme-los.
Aquilo doía, e ainda dói, porque quando penso neles, meus olhos se enchem de lágrimas. Eu preferia não ter nascido.
Os humanos fazem coisas inconvenientes porque não entendem o mundo em que vivem. Não vêem nada que não esteja a meio palmo de seus narizes. Não o fosse, certamente seriam diferentes... seriam mais felizes.
Eles também não nos conhecem a nós, andarilhos da noite, e nossas leis.
Uma semana depois desse episódio, nos mudamos para a estranha cidade de Cephiorlototh. As caixas da mudança eram carregadas para dentro de um grande caminhão e o clima era pesado e tenso. Hesitante, pensei em sair pela porta aberta para a passagem das caixas, me esconder em algum lugar e torcer para que me esquecessem na casa já hipotecada; eles certamente não sentiriam minha falta. Mas quando me dei conta de que eu não sabia cuidar de mim mesmo, na rua, e quando imagens de fome e miséria me surgiram nos vidros da janela como reflexo, decidi ir com eles.
Chegamos à Cephiorlototh no dia seguinte. As ruas eram desertas e as casas, sombrias. Ao avistar a cidade de longe, vi um mar de telhados feitos com telhas de barro vermelho, todos tão perto um do outro que pareciam ser um só. Aquela visão me enfeitiçou de tal modo que tive o ímpeto de escapar pela janela aberta do carro e correr até aquela profusão de telhados e desaparecer como se desaparece em um abismo no fundo do mar. Adentramos nas ruas de paralelepípedos irregulares, sem notar nenhum movimento senão das sombras da folhagem nas copas das árvores a dançar com o frio vento de inverno. A casa onde íamos morar era afastada do centro, porém, fazia parte de um conjunto de casas de boa fama e ostentavam grandes vitrais em três andares, com cores e figuras abstratas, como uma pequena catedral gótica. Havia algo parecido com uma torre, no último andar, acima à porta de entrada, com telhado triangular e vitral arredondado, coisa que me impressionou muito.
Os homens daquela cidade eram simples, interioranos típicos, mas que apresentavam no olhar, além da desconfiança normal observada nessas cidades, um certo receio, um medo insondável, como que temessem um terrível perigo à espreita, ou como que guardassem um segredo impronunciável.
Uma semana após a mudança, o círculo de amizades da família começava a se formar na grande sala de estar, à frente da lareira, bebericando vinho e devastando as reservas de petiscos. As palestras ali, aos fins de semana, se prolongavam até a madrugada. Nesses dias eu aproveitava a presença dos convivas para me deitar bem junto à lareira do quarto, sem temer os maltratos dos meus donos, que fingiam ser atenciosos e bondosos comigo na frente de qualquer morador daquela cidade. E havia um motivo para isto.
Na primeira vez que recebemos visita em casa - um homem com cerca de cinqüenta anos, cabelos brancos como meus pêlos, penteados para o lado; olhar soturno e perscrutante -, meus donos me trataram muito bem, para que eu parecesse estar satisfeito; mas, logo que me viu, nosso conviva em um sobressalto, encheu os olhos de horror e pavor, de modo que corri para o sótão, temendo que as tolas superstições humanas pudessem incitá-lo a fazer-me algum mal. De lá, ouvi a voz do homem, já controlado, dizer:
- Livre-se desse animal. Aqui, ninguém possui gatos dentro de casa. Não me pergunte porque, apenas livre-se dele.
Desse dia em diante, sempre que recebíamos visitas, meus donos tratavam de me esconder em um dos cômodos, e eu, entendendo a situação, me sujeitava a ela.
Apesar disso, minha sorte não mudou. O tratamento que eu recebia continuava de mal a pior, e agora eu era obrigado a dormir no sótão fétido, empoeirado e coberto de musgo e fungos. Por muitas vezes pensei em fugir, mas prá onde iria? O que faria? Como sobreviveria naquela cidade tão estranha? E se algum fanático supersticioso me pegasse? O que seria de mim?
Eu estava preso no sótão há dois dias considerando essas coisas quando, de repente, à noite, ouvi uma voz dizendo:
- Ei, pequenino!
Olhei ao redor e não vi ninguém.
- Estou aqui, em cima do telhado.
Olhei para cima. Haviam inúmeras vigas de madeiras que sustentavam as telhas de barro vermelho, mas não havia nenhuma brecha que permitisse ver quem estava em cima da telha.
- Meu nome - disse; a voz era grave e lúgubre. - é Zhon, sou um egípcio, uma espécie um tanto rara nesse lado do planeta. Você é um siamês, não é?
- Sim - respondi, compreendendo que o egípcio era um gato como eu.
-Ouça - replicou -, aconselho-te a abandonar esta casa dentro de vinte e quatro horas - a voz aqui se tornava mais grave ainda, praticamente majestosa, quase divina e ao mesmo tempo trovejante e imponente.
- Por que? - perguntei, estremecendo.
- Há certas regras que muitos de nós, felinos, de outras partes do mundo, esquecemos; leis que há muito os homens desconhecem. Nem sempre foi assim. Outrora, tudo era como deveria ser. Mas hoje, o único lugar onde essas regras e leis se fazem valer é nesta cidade. Logo você compreenderá tudo, pequeno. Em tempos, abandone esta casa e tudo estará acabado. Nos veremos em breve.
Mal tive tempo de articular uma resposta, a voz desapareceu num vulto que passou voando pelo vitral do porão. O egípcio fora embora tão repentinamente quanto aparecera. No entanto, suas palavras permaneceram, preenchendo o vazio daquele lugar, e nelas meditei durante toda a noite. Eu nada conhecia daquelas palavras, que soavam como enigmas para mim. No entanto, tomei minha decisão enquanto amanhecia.
A porta do sótão foi aberta. Desci as escadas devagar e pensativo. O garoto me pegou nos braços, me acariciando, e assim permaneceu por muito tempo, enquanto eu ronronava pela primeira vez depois de muito tempo. Quando seus pais chegaram, uma grande discussão começou. Ele me colocou perto da lareira, que estava apagada, voltou-se para os pais, gritando e dizendo coisas incompreensíveis. Havia uma mochila, que ele pegou e saiu pela porta da frente, proferindo contra os pais. Bateu a porta atrás de si e nunca mais o vi.
Os pais nada fizeram. Continuaram discutindo e a noite caía na cidade como chumbo que cai no mar. "Ele vai ficar bem", pensei. Eu sentia nas trevas da noite que ele ficaria bem, ele aprenderia coisas, mudaria tudo. Ele voltaria diferente, voltaria como era antes, e as coisas para ele iam voltar ao normal. É fácil para nós gatos sabermos certas coisas. Se os humanos pudessem enxergar dentro da escuridão com olhos de safiras brilhantes, também saberiam.
Mas, para seus pais, já era tarde demais. A mulher, em uma crise nervosa, destruía os móveis da casa, as decorações, as louças e os aparelhos; gritava, maníaca, e quando me viu jogou o que destruíra em mim. Me acertou algumas vezes, provocando essas feridas em meu corpo que ainda vivem tanto quanto as feridas de meu coração. O homem, imparcial, inerte, nada fazia.
Eu escapei. Fugi pela chaminé da lareira o telhado. Era noite e o bairro estava deserto e mal iluminado. Pulei do telhado alto para o muro da casa, que observei pela janela. Eu ainda ouvia a destruição dentro da casa quando as sombrias esguias e soturnas escorregavam pelos muros da casa. Dezenas delas. Centenas. Sombras da noite, sombras malignas. Sombras de gatos. Eles entravam um a um pela janela quebrada, pela chaminé, e depois pela porta que conseguiram habilmente abrir. Centenas. Gatos de toda cor e raça; persas, siameses, egípcios, sphnyx, angorás, cornich rex, devon rex. Russos, malteses, tonkins, birmaneses, camafeus, balineses. Amarelos, pretos, cinzas, malhados, rajados, brancos. Toda sorte de variedade estava ali.
Ouvi gritos. Espantado e com olhos arregalados de pavor, esbocei um movimento, pensando em descer do muro e voltar para dentro da casa, impedir seja o que estivesse acontecendo. Mas, subitamente, um gato negro, magro, majestoso e sombrio, pulou no muro e se colocou à minha frente.
- Não se envolva - disse ele, e logo reconheci a voz grave e trovejante do egípcio que falara comigo no dia anterior. - Não há nada que você possa fazer. Somos os olhos de Cephiorlototh, que tudo vêem; é a lei que está sendo cumprida. Não faça nada, antes, corre daqui e foge para o telhado mais alto que encontrar.
Dito isto, corri, com peso no coração, a um telhado vizinho e de lá observei a cena. Vi o egípcio que continuava em cima do muro, como que vigiando. Os gritos aumentavam mais e mais e logo os vizinhos correram para ver o que acontecia, mas ao ver o egípcio em cima do muro, estremeceram de pavor e se rendiam, parados, em frente ao portão da casa. A multidão estava cabisbaixa e consternada, conformada como que soubesse o que e porque estava acontecendo. Eu nada pude fazer a não ser ouvir os gritos estridentes e apavorados de uma morte lenta e dolorosa.
Terminado o cumprimento da estranha lei, os gatos saíram de minha casa como cupins saem de suas tocas ao jogar veneno. Pularam no muro e de lá saltaram em um vôo sob a lua, passando por cima de mim, e desapareceram no mar de telhados vermelhos. O egípcio ainda me disse com a voz distante:
- Não fiqueis ansioso quanto ao garoto. Nada acontecerá a ele. A lei não se aplica a crianças. Venha conosco e conhecerás sobre tudo que tenho-lo dito.
Então, hesitante, saltei na direção de onde vinha a voz egípcia e mergulhei num vôo incrível e indescritível. Todos os gatos estavam ali em uma procissão sagrada, entoando um miado longo e inédito para mim, um miado de vitória e glória. Abaixo de nós, eu só via as nuvens estranhas e cinzentas. Acima, a lua, nossa inspiradora. Marchamos durante toda a madrugada e, ao nascer do sol, nos recolhemos aos telhados da cidade de Cephiorlototh, que pareciam ser feitos exclusivamente para nosso abrigo e repouso.
Nas semanas seguintes, o egípcio, que era o mais antigo e o líder dos gatos daquela cidade, me ensinou tudo o que eu deveria saber sobre a vida dos felinos ali. Quando não havia mais nada a me ser dito, eu me ofereci a me juntar a mais dezenas de gatos dispostos a peregrinar pelo mundo anunciando a Cephiorlototh, a cidade regida pelas leis das criaturas da noite.
E assim tem sido desde então. Hoje, me lembro dos meus primeiros dias de vida, quando tudo era novidade e mamãe me ensinava tudo sobre o pequeno mundo que ela conhecia (ah, se ela conhecesse o que eu vi); me lembro dos primeiros anos de inocentes brincadeiras, vivendo um mundo de brinquedo, e penso, com um suspiro:
Como era bom
... Visito cidade após cidade, realizando reuniões e conferências com os felinos e anunciando a vida longa e próspera na cidade de Cephiorlototh, fazendo com que muitos gatos se dirijam rumo à Ingabu, de muitas cachoeiras, mesmo que a grande maioria não me dê ouvidos e me chamem de louco. Não importa. Se a cada cidade onde peregrino um felino se voltar à sagrada Cephiorlototh, meu esforço não terá sido em vão. Quando eu completar a volta ao mundo, poderei, finalmente, retornar a Cephiorlototh e desfrutar da minha recompensa pelo árduo trabalho, que é pregar estas palavras nas trevas da noite:
- Escutai, felinos de toda sorte. Escutai, siameses, persas, malteses e angorás. Desde que nascemos, sofremos com humanos perversos ou possessivos. Somos vítimas de suas superstições e desejos egoístas. Quando não nos maltratam, quando não nos odeiam, nos trancam em suas casas e nos tratam como brinquedo. Porém, nós, gatos, nascemos livres. Quando a lua cheia surge, não podemos atender o chamado da noite que quer nos levar à alturas que nenhum de vocês possam imaginar; alturas além dos telhados das casas. Porém, existe uma cidade, nas proximidades de Ingabu, chamada Cephiorlototh, onde as leis do antigo Egito e da extinta Ulthar são conhecidas por todos os felinos e humanos. Ali não existe servidão, aliciamento ou alienação. Todo e qualquer felino é livre para marchar em direção à lua durante a noite e repousar sob os telhados vermelhos durante o dia. Ali nós, gatos, recebemos de volta, em um ritual, nossas sete vidas, que nos foram negadas desde a queda do Egito. Ali, maltratar um gato é, para os humanos, sentença de morte, pois essa era a lei nos tempos ermos e deveria ser até hoje no mundo todo; mas só lá ainda existe a memória do mundo antigo. Ali, a vida é sete vezes prolongada e dez vezes mais feliz. Há festas e serenatas todas as noites e nunca se cansa. É uma cidade onde nós reinamos. Vinde e partamos! Mudem vossos nomes que os humanos vos escolheram. Abandonem seus lares e vinde à gloriosa e sagrada Cephiorlototh viver verdadeiramente e ser verdadeiramente
gatos!
Mas não levem seus donos consigo, ou o fim deles será certo.
Sobre o Autor
Aficcionado pelo extinto terror genuíno, Daniel Cavalcante pretende reerguer as pedras das cavernas mais sombrias do horror já expressado na literatura, não se conformando com a banalização do tema e as novas tendências resultantes de conceitos deturpados nas últimas décadas. Daniel tenta desvincilhar o horror sombrio, tétrico e gutural da simples sede de sangue que resulta em filmes e livros que não procuram o medo e o horror, mas sim apenas uma chacina inconsequênte e deliberada. Daniel buscou em autores como Allan Poe e Lovecraft (este último sua maior influência) a fórmula e a técnica para criar não apenas uma história de terror, mas tembém um cenário macabro, personagens problematicos, fatos sobrenaturais e todo o desconhecido que sempre amedrontou e ao mesmo tempo fascinou o homem.
Nascido em São Caetano do Sul, SP, mudou-se logo para Goiás, onde passou toda sua infância e adolescência, fase marcada por sua depressão que o acompanhou desde criança. Era recluso e portador do mal conhecido por fobia social, o que o afastava do contato com pessoas, inclusive de sua família. Mas foi nessa solidão que descobriu seus dons artísticos como as letras e o desenho. Filho de escritor, se interessou desde os 10 anos pela literatura, mas esse interesse foi esquecido devido à depressão. Voltou a escrever apenas aos 20 anos, dois anos depois do divórcio de seus pais e de sua volta à SP, sendo reacendida a chama da paixão pelas letras ao ler Noites Brancas, de Dostoiévsky.
Em seus contos a solidão, a depressão, o desespero, a tragédia e a morte estão sempre presentes. Ao passo que seus personagens enfrentam entidades misteriosas e acontecimentos sobrenaturais, passam também pelo verdadeiro e real horror do homem moderno: a solidão e o desespero. Sofrem calados, morrem solitários.
Atualmente vive em São Paulo, capital, onde trabalha em seu primeiro romance.
Contato:
E-mail: codinome_v@yahoo.com.br
ICQ: 23716449
Site:
www.contosdoumbral.cjb.net
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