KOREAEBOOKDOCUMENT1.3.0 O Horror de Plastico Daniel Cavalcante Daniel Cavalcante Daniel Cavalcante `>para.xml plastico.jpg normal.sty
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O Horror em Plástico
Daniel Cavalcante
CARO SAM,
Recebi sua carta, um tanto surpreso com o quanto os boatos voam rápido. Sei o que deve estar pensando de mim neste momento, e sei o quanto tudo isso parece ridículo. Sim, eu tenho pavor incontrolável de bonecas. Parece uma piada que um homem que outrora fora intrépido apreciador da arte macabra possa sofrer de um mal tão vergonhoso. Deixarei que todos pensem que é tudo loucura, idiotice, senilidade ou o que lhes apetece. Mas a você, meu caro Sam, a você faço questão de mostrar como tudo começou.
Suponho que ainda se lembre de Plínio, aquele louco excêntrico do Necro-Art Club - bem, não me lembro de ninguém que não fosse excêntrico naquele lugar fétido, escuro, mórbido, barulhento e escondido da civilização a vinte metros abaixo do solo. Mas o fato é que Plínio sempre chamou atenção por seu grande talento e seu insuperável conhecimento no que diz respeito à coisas profanas e proibidas. Não era um gótico como o resto de nós, Sam, e você deve ter percebido isso. Plínio era apenas um curioso, um estudioso, que aproveitava tudo para acrescentar conhecimento e novas influencias para suas obras pitorescas. Ainda assim, seu trabalho sempre surpreendeu todos os freqüentadores do Necro-Art, por se tratar de uma arte macabra e profundamente assustadora. Ainda posso me lembrar de Alice, aquela ruiva que saiu com metade dos homens do clube. Ela deixou de freqüentar o Necro-Art assim que visitou a casa de Plínio - mesmo a contragosto por parte dele. Eu ficava imaginando o que acontecera por lá, e confesso que suspeitei da índole do homem, presumindo uma tentativa de agressão ou algo pior. Sabemos como Alice era sedutora e, principalmente, esnobe. Admito que realmente acreditei que algo nesse sentido ocorrera, mas, céus, Deus sabe o quanto me enganei!
Minha aproximação a Plínio se dera em circunstâncias inusitadas. Você se lembra quando ele declamou suas poesias no sarau naquela madrugada de sábado para domingo. O clima causado pelas palavras sussurradas por Plínio foi quase sobrenatural. Me lembro de ter comentado mais tarde com Flávio sobre o assunto. Flávio admitiu que sentira coisas inexplicáveis, como se uma horda de seres invisíveis passeasse pelo salão naquele momento de silêncio fúnebre, como se aquelas palavras tivessem invocado das trevas tais seres. Você se lembra de como as luzes toscas se agitaram, apagaram, e se acenderam novamente? Você se lembra daqueles versos? Creio que sim, e mesmo que me pedisse, eu não ousaria repeti-los aqui. Eram tão horríveis, com palavras cuja sonoridade não era nem um pouco poética. O formato era ilógico; tudo era horrendo demais para uma poesia. E no entanto, nada disso foi demérito do poeta. Tudo foi proposital.
Bem, mas isso não é o ponto. O que quero dizer é que naquela madrugada eu fui persuadido por algum diabinho ou pela ironia do destino a falar com Plínio após aquele sarau. Aquele homem, quando não estava declamando suas poesias ou explicando suas obras a alguém, estava sempre sozinho na mesa mais afastada do salão, a bebericar vinho. Foi a primeira vez que trocamos palavras, e a minha admiração por ele foi imediata. Ele me mostrou uma pasta repleta de seus desenhos mórbidos, horrendos; algumas vezes esdrúxulos, outras incrivelmente detalhados. Demônios e criaturas oníricas tão reais quanto eu e você, Sam. Mas eis porque eu lhe disse antes que o homem não era exatamente um gótico. Durante nossa longa conversa, ele me explicava a filosofia de sua arte.
"O que você vê de mórbido e gótico" disse ele, "é simplesmente uma influência que a companhia de vocês, no Necro-Art, me concederam - influencia bem-vinda, claro. Mas este não é o espírito do meu trabalho. Você pode perceber, entre os cemitérios que formam o cenário de meus desenhos, entre as brumas e toda a sorte de elementos sombrios e depressivos, sempre há o que eu cultuo e faço questão de representar - o feio".
De fato, o feio não é uma característica da arte gótica, como eu disse a ele; pelo contrário, o que há de mais mórbido, fúnebre, monstruoso, brumoso e espectral na arte gótica é também o que há de mais belo. Nós encaramos a depressão e a morte como sendo tão belo quanto é o pôr do sol para o tipo de pessoa que não expõe seus trabalhos em um clube gótico a vinte metros abaixo do chão.
Foi então que Plínio me convidou a visitar sua casa e apreciar a sua verdadeira arte, livre de influências exteriores, obras que ele não ousaria a expor no Necro-Art. Plínio sempre dizia que as pessoas daquele clube eram tão superficialmente góticas quanto ele. E, realmente, Sam, acredite-me. Se aquelas pessoas vissem o que eu e Alice vimos, certamente desistiriam de suas vidas góticas, assim como Alice desistiu. Ninguém ali jamais soube o que é realmente ser necrófago.
Aquela casa era puro lixo escatológico. Ao menos era assim que seu dono o definia. Ainda assim, eu prefiro pensar nele como "artistico" - é mais fácil continuar vivendo com este pensamento. Havia todo tipo de tralha empilhada e arranjada de modo que fazia lembrar vagamente uma obra de arte. Revistas e livros mais velhos que minha avó empilhados, com suas páginas amarelas carcomidas pelo tempo.
Havia muitos quadros, espalhados por todo lugar. Todos de sua autoria. Havia também algumas esculturas repugnantes. Eu me lembro bem de uma fonte esculpida, que ficava em um canto, mostrando uma espécie de demônio de cuja boca jorrava não água, mas um líquido vermelho viscoso, que escorria pelas garras do demônio, passando por pedras, formando uma espécie de cascata, para até então formar um lago purpúreo.
É muito estranho pensar que coisas assim possam ser encaradas como obra de arte.
E isso não era tudo. Quero atentar-lhe para uma espécie de trabalho que ali havia em grande proporção. Estavam dispersas por todo lugar, em todas as paredes, nos sofás, nas estantes, mesas, teto, janelas e onde mais você imaginar. A princípio, imaginei que fossem esculturas bizarras e pequenas, imitando uma espécie de forma humana, mas, observando de perto, percebi que eram nada mais que bonecas manipuladas de forma grotesca; o bizarro em forma humanóide. Você já deve ter visto este tipo de trabalho. Alisson Gothz faz isso, Dani Moreira faz isso, Adriana B - a Necrobarbie - faz isso. É uma atividade que vem crescendo até mesmo no meio gótico. Eles costumam criar criaturas repulsivas, mutiladas e deformadas. Não é algo exatamente novo, e você há de prever que não foi exatamente essa visão na casa de Plínio que me chocou.
As primeiras bonecas que observei eram bonecas de plástico barato. Estavam logo na parede ao lado da porta. Algumas estavam penduradas pelo pescoço por uma corda que pendia do teto, mostrando enforcamentos. Elas eram aberrações vindas de algum lugar de Salém, pois, na mesma parede, havia uma plaqueta com a inscrição "Bruxas na Inquisição". Aquilo era uma surpresa para mim, pois nunca imaginei que Plínio apreciaria esse tipo de trabalho, ao meu ver, um tanto vulgar e barato. Sempre questionei esse tipo de arte, me perguntando o que há de valor em algo que foi comprado pronto e simplesmente manipulado, sem exigir qualquer tipo de técnica, estética e conhecimento artístico. Basicamente é o mesmo que manipular uma estátua de Michelangelo à sua maneira. Que mérito tem esse tipo de "artista"?
Mas ao entrar naquela casa, meu conceito se encontrou abalado. Plínio era o tipo de artista que não se contentava em apenas pintar, vestir e mutilar bonecas. Não, Sam, o homem era um gênio. Havia ali algo fantástico, talvez o ambiente criado na casa, que dava veracidade às criaturas de plástico. Ali na estante, entre os livros, estava um bebê com olhar maligno e chocante, com uma faca manchada de sangue, ao lado do que supus que tenha sido sua mãe, mutilada e parcialmente devorada. Ao lado da estante havia uma espécie de cúpula virada para baixo, feita de modo que associei a alguma experiência de ficção cientifica, onde jazia um bebê anômalo. Eram gêmeos siameses que do pescoço pra baixo dividiam o mesmo corpo. Uma das cabeças estava totalmente deformada e o crânio aberto, expondo uma repulsiva e ínfima massa cefálica. A outra cabeça era intumescida, como se o cérebro tivesse se desenvolvido além dos limites. Parecia que a cabeça estava prestes a explodir; como um balão sendo enchido de ar até seus limites de resistência. Os olhos estavam saltando das órbitas. O corpo que as duas cabeças compartilhavam também estava extremamente inchado, principalmente o tronco. O cordão umbilical ainda não fora cortado e estava ligado à cúpula, assim como vários fios conectados ao corpo da criatura.
Não tenho palavras competentes para expressar o horror ali retratado. Parecia um pesadelo fugido das cavernas insanas da mente doentia de Merilin Manson. Ali próximo à porta de entrada prevaleciam os bebês deformados e mutilados, mas logo à frente vislumbrei um tipo diferente de bonecas que Plínio usou para suas manipulações, e que pareciam ter sido frutos da maior verve do artista. Eram bonecas que me fizeram lembrar Barbies. Elas eram transformadas em coisas difíceis de encarar. Em destaque, haviam três, crucificadas, vestidas de roupas pretas, cabelos horríveis, rostos putrefatos e com expressão de horror e maldição. Outras estavam mutiladas e com seus membros espalhados e devorados por canibais necrófagos.
Preciso respirar fundo nessa parte da narrativa. Mas ainda não cheguei onde meus nervos se entregaram à loucura e à fobia patética. Talvez Alice teria chegado apenas até este ponto. Sabe, aqueles pseudo-góticos do Necro-Art, com suas músicas tediosas e suas roupas caras, realmente não estavam preparadas para conhecer o trabalho de Plínio, é o homem foi sensato em escolher a dedo seus apreciadores. Não é à toa que ele tivesse insistido à Alice para que ela não o visitasse. Quando tento imaginar a reação daquela paty diante do freak show de Plínio, quase tenho um acesso de riso.
Quando me recompus do choque inicial e passei a melhor apreciar o trabalho de Plínio, perguntei a ele sobre a diferença entre esculpir um ser grotesco e apenas manipular uma simples boneca. Ele me explicou mais detalhadamente o que significava, para ele, sua arte.
"Não teria significado algum esculpir essas criaturas em argila ou o que quer que seja", disse ele. "Quando manipulo bonecas, estou deturpando a beleza perfeita que elas representam, questionando conceitos, derrubando barreiras, agredindo a hipocrisia da sociedade. Todos tem medo do feio porque sabem que ele é mais forte. E é exatamente esse o motivo pelo qual eu o cultuo. Além disso, esteticamente uma escultura não seria suficientemente chocante e bizarro. É impossível conseguir igual resultado de outra forma senão a manipulação. Você se interessa por esse tipo de coisa, e creio que posso lhe mostrar minha obra máxima sem que você aja como a maioria das pessoas. Fica logo ali, na porta dos fundos".
O lugar que ele me mostrou era um quarto médio, com pouco mais de quatro metros quadrados, com uma luz tosca e tremulante. Quando aquela luz se acendeu, fui atacado por uma torrente de pesadelos. A sala arrancou-me um grito de repulsa, e se eu não tivesse me segurado na maçaneta da porta, teria desmaiado. Ali haviam coisas maiores. Manequins, suponho, manipulados, destroçados, mistificados e mutantes. Oh, Sam, posso vê-los ainda! Era um cenário misto, composto por vários elementos desconexos que poderiam ter sido concebidos pela imaginação de Dante. Um deles parecia uma espécie de tribo canibal que se devoravam uns aos outros. Quase todas as coisas estavam destroçadas e comidas, e, seus restos, vivos, gritaram e choravam de enlouqueçedora dor, implorando por piedade e pela morte rápida. Eu quase podia sentir o cheiro da carnificina naquele lugar! Outra parte da cena mostrava uma cruxificação horrenda! Eram três, com corpos e rostos que outrora foram perfeitos; a primeira estava crucificava de cabeça para baixo, a segunda estava crucificada apenas pelas mãos e o abdome rasgado, deixando as tripas caindo e tendo seu corpo todo envolvido por uma linha fina e brilhante; e a última mostrava o que aconteceria com a segunda: a linha fina e brilhante, ao ser puxada pelo carrasco, degolara e mutilara todos os seus membros. O sangue - ou a substancia vermelha usada pelo artista - era tão real que senti náuseas e senti que vomitaria se não fechasse os olhos e respirasse fundo.
Havia ainda outro painel, com outra cena crua, que mostrava cinco corpos empalados de todos os modos concebíveis. De alguma forma, aquela cena sugeria algo de necrofilia, embora nada fosse explícito - apenas sugestionado.
Mas não pense que foram as cenas deploráveis, o sangue ou a crueldade ali exprimidas. Eu não sou nenhum maricas, como pensam nossos colegas que conhecem minha nova fobia. E creio também que Alice não faria o que fez por tão pouco. O que me derrubou foi a veracidade no olhar daquelas coisas de plástico, Sam! Não sei que diabos aquele homem fez, mas havia algo muito forte naqueles olhos malignos e sofridos. E não só nos olhos, mas em toda a face! O sorriso nefasto dos carrascos monstruosos e a dor das vítimas torturadas eram reais! E especialmente as figuras dentro do quarto eram demasiado perfeitas. Eu poderia jurar que aquelas coisas eram modeladas, dos pés à cabeça, para ficar exatamente como ele queria, e não manequins manipuladas.
Por Deus, Sam, sonhei com essas faces muitas vezes. No entanto, esse ainda não é o motivo pelo qual me afastei do Necro-club e causou minha aversão a bonecas. Há ainda algo maior.
Como Plínio me dissera, eu havia mesmo me interessado pelo seu trabalho. Ora, mesmo com toda a repulsa que eu sentira, eu admirava a qualidade das obras; afinal, o objetivo era mesmo chocar. E eu conheço o trabalho de artistas como o Alisson Gothz, e o que essas pessoas fazem não chegam perto do que Plínio fez. E digo mais, se alguém consegue realmente chocar o público a ponto de fazê-lo quase vomitar e desmaiar, usando inocentes e simplórias bonecas, é porque tal artista realmente merece seus louros.
Chego agora à parte mais difícil de minha narrativa. Suponho que a notícia do que aconteceu com Plínio não chegou aos ouvidos dos góticos do Necro-Art, ao contrário das notícias sobre Alice.
Foi exatamente quando chegava a notícia do suicídio de Alice que Plínio alterou sensivelmente seu comportamento. Taciturno e desconfiado, não trocava palavras com ninguém além de mim e suas aparições no Necro-Art eram cada vez mais raras. Sussurrava palavras estranhas e olhava de soslaio, como se sentisse perseguido por alguma sombra inominável fugida de seus próprios pesadelos abissais. Para minha surpresa, eu era a única pessoa em quem confiava; talvez por termos nos identificado, ou talvez por eu ser aparentemente o único a compreender seu trabalho. O fato é que freqüentei sua casa funesta mais do que eu gostaria.
Ainda me lembro de quando, pela primeira vez, me contou os horrores que povoavam sua mente atormentada.
"São aquelas coisas", dizia ele. "Eu não sei... não posso lhe contar como as fiz... não ouso contar... mas elas são odiosas... céus, como não percebi antes? O que eu fiz? O que eu fiz?"
Apesar do mistério oculto nas palavras, eu sabia do que se tratava. Provavelmente Plínio se impressionara demais com suas próprias obras, convivera demais com pesadelos e sandices, e agora estava a beira de um colapso nervoso. Insisti veementemente que procurasse tratamento psicológico, mas ele relutou.
"Você não entende... e ninguém entenderia... eu acabaria sendo considerado louco... não por meu estado atual, afinal, estou mesmo à beira da loucura... mas ninguém entenderia o que está acontecendo...". Após algum tempo de silêncio, anunciou, o rosto entre as mãos: "Não posso mais permanecer por muito tempo nesta casa; no entanto, não posso fugir... meu destino é certo..."
Meu amigo não tinha mais condições psicológicas para sair de sua casa. Sua mente era consumida por alucinações bizarras, pesadelos horripilantes; seus nervos estilhaçavam-se em meio a um pandemônio diabólico de monstros antediluvianos que povoam e assombram a consciência dos artistas sensíveis paranóicos e lunáticos.
Era evidente, em sua expressão lívida, seu estado físico caótico e sua estabilidade abatida, que Plínio estava prestes a um ataque apopléctico. Espasmos violentos eram cada vez mais freqüentes. Assim sendo, eu o visitava quase todos os dias, para tranqüilizai-lo ou acudi-lo em alguma emergência. A porta estava sempre aberta, e sempre que eu entrava, Plínio lá estava, com sua roupa de dormir, sentado no sofá, encarando suas criações necrófogas com olhar estupefato e aparente em estado de choque ou autismo. Depois de alguns minutos, balbuciava algumas palavras que eu raramente entendia, mas percebia que o homem estava, felizmente, em seu estado normal de consciência; ou seja, ainda não perdera a sanidade.
Ele falava de coisas que aconteceriam em breve e me suplicava que eu não o visitasse mais.
"Morrerei", dizia, "morrerei neste deplorável estado, nesta casa, cercado por essas abominações, e minha alma está condenada à danação... e, céus, levarei comigo este fantasma para me perseguir por toda a eternidade: o medo! Oh, Leo, é tarde demais... tarde demais tardedemaistardedemaistarde..."
Quando não alucinava, embora sempre encarando uma de suas manipulações pitorescas, conversava comigo sobre assuntos casuais ou ficávamos em silêncio durante longo tempo. Foi em uma dessas oportunidades que eu percebi, ou julguei ter percebido, com horrenda armadilha do acaso, o que provavelmente levara aquele homem equilibrado à beira de um colapso nervoso. Seus olhos, como nas outras ocasiões, estavam vidrados em uma de suas bonecas manipuladas, e eu, muito por acaso, olhei para a direção de seus olhos. O que vi, ou imaginei, era algo impossível de se conceber em lugares reais, fora dos domínios dos pesadelos.
Ele olhava para o bebê que segurava uma faca ao lado de sua mãe mutilada e devorada. Ao olhar para ele, meu coração disparou, pois, eu tinha certeza que quando o vi no primeiro dia que entrara naquele antro de blasfêmias, ele olhava para o que restara da mãe, os olhos pintados como se olhasse para baixo e levemente para o lado direito. No entanto, agora ele, ainda na mesma posição de antes, olhava diretamente para nós - mais precisamente para Plínio. Os olhos estavam ainda virados para baixo, mas agora para a esquerda. Desviei então a vista para os gêmeos siameses deformados, e estremeci diante o olhar maligno e enfurecido, diretamente apontado para meu amigo insanável. Olhei para outras bonecas, as crucificadas tinham expressão de horror odioso, como se, incapazes de morrer, deixavam o ódio misturar-se à dor infinita, e olhavam para Plínio; algumas outras degoladas retorciam-se para olhar para o mesmo alvo. Ao lado de uma massa vermelha, que eram os restos derretidos de uma boneca que simulava um cadáver praticamente virado ao avesso, havia um olho fora de sua órbita, jazendo no chão. Eu me lembrava desse olho, mas não como estava agora - olhando para Plínio.
Dei um sobressalto, levantando-me do sofá onde estava. Meu amigo permanecia inerte quando disse com voz débil: "Eu avisei... não venha mais aqui..."
Eu o repreendi, acusando-o de autor de algum teatro diabólico para me enlouquecer e depois rir às minhas custas, mas eu sabia que Plínio era inocente, o que sua apatia diante minhas acusações provou.
Plínio riu ensandecido quando um som gutural fez-se ouvir através daquela porta infernal, a porta do quarto, onde manequins representavam as maiores danações imagináveis. Só então percebi que tal porta fora trancada com correntes e cadeados. O som se tornou estrépido, um som que certamente não era humano; risadas sádicas e infernais competiam com o ululo e os gemidos inexprimíveis de infelizes que pareciam vir dos abismos do infernos ou do lago de fogo e enxofre. Um caos pareceu se formar ali e, por um instante, pensei ouvir a porta chacoalhar.
Deus, eu me lembro do olhar do homem à minha frente! A histeria completa se apossou de vez de meu amigo. Tentei arrastá-lo, mas ele apenas ria, insano, e se recusava sair dali. Larguei-o então e corri o máximo que pude, deixando a porta aberta, na esperança de que ele voltasse a si e fugisse também.
A lua despontou quando ganhei as ruas e corri alucinadamente, sem rumo, até minhas forças se esgotarem, tremendo e sobressaltando-me ao me deparar com toda e qualquer sombra ou som das ruas.
Sei que tudo isso é fantástico demais para ser considerado por homens racionais como você, - eu mesmo ainda me pergunto se realmente vi o que vi ou ouvi o que ouvi - mas pasme, isso ainda não é tudo, ainda que seja o suficiente para explicar e justificar minha aversão a bonecas. Minha aventura e envolvimento com as entranhadoras forças malignas que escapam para nossa dimensão teriam terminado por aqui... se eu não tivesse voltado na semana seguinte para aquela casa onde reina o horror de plástico.
Eu precisava voltar, pois Plínio não atendia o telefone e não aparecera nas reuniões do Necro-Art. Supus que teria fugido para longe, e assim esperava, mas eu não ficaria tranqüilo enquanto não o confirmasse - lembre-se, fui eu quem o deixou à mercê das hordas diabólicas que se apossaram daquela casa.
Fui até a casa de Plínio pelo caminho costumeiro, e logo percebi que a porta estava trancada. Toquei a campainha três vezes e não obtive resposta. Arrombei, então, a maldita porta, e lá estavam as bonecas depravadas, todas em suas posições originais, tais como quando as vi pela primeira vez. Respirei aliviado, no entanto, uma sensação de torturante apreensão me possuiu. Chamei por Plínio, mas novamente não obtive resultados. Atravessei a sala, onde tudo se encontrava na mais perfeita ordem e me dirigi para aquela porta, que outroura esteve acorrentada e trancada a cadeados, e que agora estava apenas encostada. Demorei alguns minutos antes de escancarar a porta do inferno.
Não me peça para explicar ou dizer o que penso a respeito. Você sabe muito bem o que eu conjeturei. Tire você suas próprias conclusões sobre a COISA que vi antes de atear fogo naquela casa para exterminar o mal indizível.
As bonecas-manequins ali também estavam na mais perfeita ordem. Havia apenas uma coisa diferente, alguma coisa a mais. Outrora, a nenhuma criatura da tribo de canibais comia um coração, ou uma cabeça cheia de horror. E só haviam cinco corpos empalados, e não seis. O produto que Plínio usara para simular o sangue de suas criaturas era seco; então, como poderia agora haver um líquido vermelho e viscoso escorrendo das garras e da boca de cada uma daquelas abominações de plástico? O que Plínio fizera, em segredo aterrorizante, para criar tais aberrações? Porque, por Deus e tudo o que há de sagrado, aquelas blasfêmias canibais seguravam, cada uma, um órgão que pareciam tão reais e que ainda pulsavam? O QUE era aquela massa pastosa, deformada e repugnante empalada juntamente com os bonecos? Porque um dos bonecos segurava uma cabeça decapitada, com rosto cheio de horror, diabolicamente idêntico ao de Plínio?
Sobre o Autor
Aficcionado pelo extinto terror genuíno, Daniel Cavalcante pretende reerguer as pedras das cavernas mais sombrias do horror já expressado na literatura, não se conformando com a banalização do tema e as novas tendências resultantes de conceitos deturpados nas últimas décadas. Daniel tenta desvincilhar o horror sombrio, tétrico e gutural da simples sede de sangue que resulta em filmes e livros que não procuram o medo e o horror, mas sim apenas uma chacina inconsequênte e deliberada. Daniel buscou em autores como Allan Poe e Lovecraft (este último sua maior influência) a fórmula e a técnica para criar não apenas uma história de terror, mas tembém um cenário macabro, personagens problematicos, fatos sobrenaturais e todo o desconhecido que sempre amedrontou e ao mesmo tempo fascinou o homem.
Nascido em São Caetano do Sul, SP, mudou-se logo para Goiás, onde passou toda sua infância e adolescência, fase marcada por sua depressão que o acompanhou desde criança. Era recluso e portador do mal conhecido por fobia social, o que o afastava do contato com pessoas, inclusive de sua família. Mas foi nessa solidão que descobriu seus dons artísticos como as letras e o desenho. Filho de escritor, se interessou desde os 10 anos pela literatura, mas esse interesse foi esquecido devido à depressão. Voltou a escrever apenas aos 20 anos, dois anos depois do divórcio de seus pais e de sua volta à SP, sendo reacendida a chama da paixão pelas letras ao ler Noites Brancas, de Dostoiévsky.
Em seus contos a solidão, a depressão, o desespero, a tragédia e a morte estão sempre presentes. Ao passo que seus personagens enfrentam entidades misteriosas e acontecimentos sobrenaturais, passam também pelo verdadeiro e real horror do homem moderno: a solidão e o desespero. Sofrem calados, morrem solitários.
Atualmente vive em São Paulo, capital, onde trabalha em seu primeiro romance.
Contato:
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