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EU SOU VIDA;
EU NÃO SOU MORTE

José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo

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Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte [1866]
José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo [1833-1883]

Versão para eBook
eBooksBrasil.org


Fonte Digital:
Janer Cristaldo
cristal@altavista.net

Fonte original:
LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo). "Um Credor da Fazenda Nacional". Teatro Completo, Guilhermino César (org). Rio de Janeiro : Serviço Nacional de Teatro/ Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 137-145 (Clássicos do Teatro Brasileiro, 4)

Copyright
©2000-2006 José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo


 

ÍNDICE

ATO PRIMEIRO
ATO SEGUNDO


EU SOU VIDA;
EU NÃO SOU MORTE

Comédia em dois atos

JOSÉ JOAQUIM DE CAMPOS LEÃO
QORPO-SANTO


PERSONAGENS

Lindo
Linda
Rapaz
Manuelinha, filha de Linda.


 

ATO PRIMEIRO

LINDO, LINDA [E UM RAPAZ]

 

LINDA (cantando)
Se não tiveres cuidado,
Algum cão danado
Te há de matar;
Te há d’estraçalhar!

LINDO
Eu sou vida;
Eu não sou morte!
É esta minha sorte;
É esta minha lida!

LINDA
Ind’assim, toma sentido!
Vê que é tudo fingido;
Não creias algum louvor:
Sabei: – Te trará dor!

LINDO
Se desrespeitará
A vida minha?
A desse, asinha,
- Ao ar voará!

LINDA
Não te fies, meu Lindinho,
Dos que te fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos, e não coram!

LINDO
Sabei, ó Lindinha:
Os que me maltratam
A si se matam:
Tu ouves, Anjinha!?

 

LINDA — Meu Lindo, tu sabes quanto te amo! Quanto te adoro! Sim, meu querido amigo, quem melhor conhece do que tu o amor que neste peito mortal, mas animado por esta alma (pondo a mão na testa) imortal, te consagro!? Ninguém, certamente. (Pegando-lhe na mão.) Adoças-me pois sempre com tuas palavras; com teus afetos; com teu amor ainda que fingido! Sim, meu querido amigo, bafeja-me sempre com o aroma de tuas palavras; com o perfume de tuas expressões! Sim, meu querido, lembra-te que hei sido baixel, sempre batido das tempestades, que por cinco ou seis vezes quase há soçobrado; mas que por graça Divina ainda viaja nos mares tempestuosos da vida.

LINDO — Ah! minha adorada prenda, tu que foste a ofrenda que me fez o Criador, em dias do mais belo amor, que pedes? Como pedes àquele que tanto te ama; mais que a própria cama?!

LINDA — Há! há! há! meu queridinho; quanto me deste; quanto me felicitaste com as maviosas expressões desses teus bofes, ou pulmões – envoltórios dos corações!

LINDO — Estimo muito. E eu não sabia que tu tinhas o dom de adivinhar que sempre que vou apalpar, sinto bater neste peito – pancadas de ambos os lados; isto é, do esquerdo e direito. O que por certo convence que neste vácuo estreito abrigo dois grãos corações.

LINDA — Há! há! há! Eu não digo (à parte) que este figo me foi enviado por cão danado? Quer me fazer crer que tem dois corações. (A ele:) Amiguinho, ainda não sabes de uma cousa. Queres saber? Eu vô-la digo. Hem? não responde!

LINDO — O que é; o que é, então!!?

LINDA — Ora o que há de ser! É que tu tens dois corações dentro do peito, eu tenho duas cabeças por fora dos largos seios.

LINDO — Tu és o diabo! Ninguém pode contigo! És tripa que nunca se enche, por mais que dentro se lhe bote. És vasilha que não chocalha. És... o que eu não quero dizer, porque não quero que se saiba.

LINDA — Pois já que me fazes comparações tão sublimes, eu também vou te fazer uma de que muito te deves agradar. Sabes qual é, não? Pois eu te digo: és o diabo em figura de homem! És... és... (atirando com as mãos e caminhando de um para outro lado) és... és! és! E então, que mais queres!? Quero comparacões mais bonitas; mais finas; delicadas; e elevadas; ao contrário, ficaremos – figadais inimigos. Tem entendido, Sr. Sultãozinho? Pois se não tiver entendido, entenda!

LINDO — Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante, crescente, e algumas vezes até demente – ocorrem! La vai uma: A Sra. é pera que não se come!

LINDA — Essa não presta!

LINDO (batendo na testa) — E preciso arrancar desta cabeça, ainda que seja com – algum gancho de ferro – uma comparação que satisfaça a esta mulher; ao contrário é capaz de...

LINDA — E não se demore muito com as suas reflexões! Quero a comédia.

LINDO — Qual comédia, nem comédia! O que me comprometi a fazer-lhe foi comparação bonita; e não comédia. Espere, portanto. (Torna a bater na cabeça, mais no crânio. À parte:) Já que da testa não sai, vejamos se tiro do crânio! Ah! sim; agora aparece uma; e que bela; que interessante; que agradável; que bonita; que delicada; que mimosa – é a comparação que vou fazer da Sra. D. Linda! É mesmo tão linda como ela! Tão formosa, como a flor mais mimosa! Tão rica, como a jorrosa bica! Tão fina, como a ignota sina! Tão, tão... tão... Quer mais? Quer melhor? não lhe dou; não lhe faco: não quero! (A correr em roda dela:) Não lhe dou; não lhe faço: não lhe dou; não lhe faço; não quero; não posso; já disse. (Repete duas vezes esta última negativa.)

LINDA — Este menino é o diabinho em figura humana! Dança, salta, pula, brinca... Faz o diabo! Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio; enfim, o que terá ele naquela cabeça!? (Lindo medita em pé e com uma mão encostada no rosto.) Pensa horas inteiras, e nada diz! Fala como o mais falador, e nada expressa! Come como um cavador, e nada obra! Enfim, é o ente mais extraordinário que meus olhos têm visto, que minhas mãos têm apalpado, que meu coração tem amado!

LINDO — Senhora: vou me embora (Voltando-se rapidamente para ela, com aspecto muito triste, e salpicado de indignacão:) Vou; vou, sim! Não a quero mais ver; não sou mais seu!

LINDA (com sentimento) — Cruel! Tirano! Suíço! Lagarto! Bicho feio! Mau! Onde queres ir? Por que não te casas, inda que seja com uma negra quitandeira?

LINDO — Tãobém eu direi; Cruel! Ingrata! Má! Feia!! Por que não te ligas ainda que seja a um preto cangueiro?

(Entra um rapaz todo paramentado, bengala, óculos, etc.)

[O RAPAZ] (para um, e depois para a outra) — Vivam, madamas; mais que todos!

LINDO (pondo-lhe as mãos, e empurrando) — O que quer pois aqui!? Não sabe que esta mulher é minha esposa!?

O RAPAZ — Dispense, eu não sabia! (Voltando-se para Linda:) Mas Sra., parece-me...

LINDA — O que mais?! Não ouviu já ele dizer que sou mulher dele!? O que mais quer agora? Agora fique solteiro, e vá casar com uma enxada! Não quer acreditar que não há direito; que ninguém faz caso de papéis borrados; que isso são letras mortas; que o que serve, o que vale, o que dá direito – é a aquisicão da mulher!? Que quem se pega com uma, essa tem, e tudo o que lhe pertence! Sofra agora o isolamento, e na obscuridade! Seja solitário! Viva para Deus. Ou meta-se num convento, se quiser companhia. Não vá mais à reunião de outros homens.

O RAPAZ (muito admirado) — Esta mulher está doida! Casou comigo o ano passado, foram padrinhos Trico e Trica; e agora fala esta linguagem! Está; está! Não tem dúvida!

LINDO — Já lhe disse (muito formalizado) que fiz esta conquista! Agora o que quer?! Conquistei – é minha! Foi meu gosto: portanto, safe-se, senão o mato com este estoque! (Pega em uma bengala e arranca um palmo de ferro)

LINDA — Não precisa tanto, Lindo! Deixai-o cá comigo... Eu basto para nos deixar tranqüilos!

O RAPAZ — O Sr. tem estoque, pois eu tenho punhal e revólver! (Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver.) Agora, de duas uma: ou Linda é minha, e triunfa o Direito, a Natureza, a Religião – ou é tua, e vence a barbaria, a natureza em seu estado brutal, e a irreligião!

LINDA (para o rapaz) — Mas eu o não quero mais; já o mandei para o leilão três vezes! Já o vendi em particular – quinze! Já o aluguei – oito! E já o libertei, seguramente por dez vezes! Não quero nem vê-lo, quanto mais tê-lo!

(O rapaz, gaguejando, querendo falar, e sem poder.)

LINDA — Até a voz de sabiá, lhe tiraram! Até o canto de gaturama, lhe roubaram! E ainda quer se meter comigo!

O RAPAZ (fazendo trinta mil caretas para falar, e sem poder; ultimamente, desprende as seguintes palavras) — Ah! Mulher! mulher! diabo! diabo! (Atira-se a ela, o revólver cai no chão; passa a derramar lágrimas, com os braços nos ombros dela, por espaço de cinco minutos.)

LINDO (querendo levantar o revólver, que estava perto do pé do rapaz; este dá-lhe um couce na cara) — Safa! Pensei que a mulher já o tinha matado com o abraço, metendo-lhe nas entranhas todo o veneno da mais venenosa cascavel; e ele ainda dá ares de vida, e de força, pregando-me na cara a estampa de seus finos pés! É um morto que vive! Bem dizia certo médico que era capaz de conservar vivo um cavalo depois de morto, por espaço de oito meses, sempre a andar; e creio que até a rinchar! – Demo! (Atirando com a bengala.) Não quero mais armas!

O RAPAZ e LINDA (desprendem-se dos braços um do outro; desce então uma espécie de véu, de nuvens, sobre os dous. Lindo quer abrigar-se tãobém, e não pode: chora, lamenta; pragueja. Levanta-se rapidamente a nuvem, torna a descer sobre os três; mas separando aquele. Ouve-se de repente uma grande trovoada; vêem-se relâmpagos; todos tremem, querem fugir, não podem. Gritam:) — Punição Divina! (E caem prostrados de joelhos.)


 

SEGUNDO ATO

Cena Primeira

(Uma jovem vestida de negro com uma menina por diante. Atravessa um cavalheiro.)

 

A JOVEM (para este) — Senhor! Senhor! por quem sois, dizei-me onde está o meu marido, ou meu esposo, o meu amigo! (O cavaiheiro embuçado numa capa desembuçando-se) Esquecestes que ainda ontem aqui o assassinastes com os horrores de tuas crueldades!?

ELE — Mulher! tu me conheces! Sabes quem sou, ou não sabes? (À parte:) Pérfida, cruel, ingrata! Vê seu marido diante de si, e apresenta-se a ele vestida de negro, luto que botou por sua morte.

ELA (afastando-o com as mãos, como querendo fugir) — Quem sois vós, ingrato, que assim me falais!?

ELE — Ainda perguntas. (Sacudindo a cabeça.) Ainda respondes. Quem sou eu? Desconheces o Lindo, teu afetuoso consorte, e ainda perguntas?!

ELA — Tirano! Foge de minha presença! Desprezaste os meus conselhos, não quiseste ouvir-me, e queixas-te. Bárbaro! Cruel! Eu não te disse que te não fiasses de pessoa alguma! Por que te fiaste!?

ELE — E tu, Maga Circe: para que me iludiste! Para que me disseste que eras solteira, quando é certo eras casada com o mais belo rapaz!?

ELA — Eu... eu... não disse: mas você... não ignorava; bem sabia que eu era mulher de seu primo! Ignorava? Penso que não! Para que me botou fora! Para que me procurou?

ELE — Não sei onde estou, não sei onde me acho, não sei o que faça. Esta mulher (atirando-se, como para agarrá-la) é o demo em pessoa; é o ente mais admirável que eu tenho conhecido! É capaz de tudo! Já não digo de revolucionar uma província, de pôr em armas e mesmo de destruir um Império! Mas de revolucionar o mundo, de fazer, de converter os grãos em terras e as terras em águas; de, se tal tentasse, fazer do globo que habitamos – peteca!

ELA — É muito exagerado. Que atrevido conceito de mim forma! Que audácia! Nem ao menos quer ver que fala diante de uma filha de nove a dez anos!

ELE — Que fazeis por estas paragens, onde não vos é mais dado vir, porque já vos não pertencem?!

ELA (com ar satírico e mordaz) — Procuro-vos, cruel.

ELE — Sim: procuras-me para de novo cravar-me o punhal da traição! És bem má... és muito má!

A MENINA — Papai! (Aproximando-se dele.) Que tem? Está doente? Me conte: – o que lhe aconteceu? O que foi? Diga, Papai, diga, diga! Eu o curo, se estiver doente. E se não estiver, a Mamãe há de curar!

ELE (tomando a menina nos braços; abraçando-a e beijando-a) — Minha querida filha! Quanto adoçam a minha existência tuas ternas e maravilhosas palavras! Quanto transformam os furores de meu coração, as doçuras de tuas meigas expressões. (Para ambas.) Quanto apraz-me ver-vos! (Para a menina:) Ah! sim! Tu és o fruto de um amor... Sim, és! Tua mãe, sem que eu soubesse, depois casou; procurou juntar-se a mim... iludia-me! Mas, querida filha, sinto uma dor neste peito. (Despren­dendo-se da filha.) Este coração parece tras­passado de dor. Esta alma, repassada de amar­gura. Este corpo, um composto de martírios! Céus... (Arrancando os cabelos) eu tremo! Vacilo!..

ELA — Célebre cousa! Quem havia de supor que este pobre homem havia de ficar no mais deplorável estado! Seu juízo é nenhum! Sua vista... não tem; é cego! Seus ouvidos, não têm tímpanos; já não são outra cousa mais que dois formidáveis buracos! Que hei de eu fazer dele!?

(Entra o Rapaz armado, vestido de militar, e com a mão no punho da espada)

O RAPAZ — Hoje decidiremos (à parte) quem é o marido desta mulher, embora esta filha fosse fabri­cada pelo meu rival. (Desembainha a espada e pergunta para o rival:) A quem pertence esta mulher? A ti que a roubaste... que lhe deste esta filha? Ou a mim que depois com ela liguei-me pelo sangue; pelas Leis civis e eclesiásticas, ou de Deus e dos homens!? Fala! Responde! Ao contrário, varo-te com esta espada!

LINDO — Ela quis; e como a vontade é livre, não podeis ter sobre ela mais direito algum!

O RAPAZ — Em tal caso... e se ela amanhã disser que não quer? E se o mesmo fizer no dia seguinte para com outro? Onde está a ordem, a estabili­dade em tudo que pode convir às famílias e aos Estados!? Onde iríamos parar com tais doutri­nas!? O que seria de nós? de todos!?

LINDO — Não sei. O que sei é que as vontades são livres; e que por isso cada qual faz o que quer!

O RAPAZ — Pois como as vontades são livres e cada qual faz o que quer; como não há leis, ordem, moral, religião!... Eu também farei o que quero! E porque esta mulher não me pode pertencer enquanto tu existires – varo-te com esta espada! (Atravessando-o com a espada; há aparência de sangue.) Jorra o teu sangue em borbotões. Exausto o corpo, exausta a vida! E com ela todas as tuas futuras preten­sões e ambições! Morre (gritando e arrancan­do a espada), cruel! e a tua morte será um novo exemplo – para os Governos; e para todos os que ignoram que as espadas se cingem; que as bandas se atam; que os galões se pregam; não para calcar, mas para defen­der a honra, o brio, a dignidade, e o interesse das Famílias! A honra, o brio, a dignidade, a integridade Nacional!

(Lindo cai sobre um cotovelo; a mulher co­bre-se com um véu e fica como se estivesse morta; a menina olha admirada para tão triste espetáculo.)

O RAPAZ (voltando-se para a mãe e a filha) — De hoje em diante, Senhora, quer queiras quer não, serás minha mulher, consorte, esposa! E tu, minha querida menina, continuarás a ser a mimosa dos meus olhos, a flor que aromatiza; a santa que me diviniza! Eis como Deus ajuda a quem trabalha! Depois de milhares de traba­lhos, incômodos, perdas e perigos! Depois de centenas de furtos: roubos; e as mais negras atrocidades! Depois de uma infinidade de in­sultos; penas; crueldades; o que não pude ven­cer, ou fazer triunfar com a pena, razões, dis­cursos, acabo de fazê-lo com a espada!

(Estende esta; e assim deve terminar o Segun­do Ato; e mesmo findar a comédia, que mais parece – Tragédia)

Maio 16 de 1866. Por José Joaquim de Campos Leão Qorpo­-Santo.

*

Já se vê pois que a mulher era casada, foi antes desflorada, depois roubada ao marido pelo desflorador, etc.; que passado algum tempo encontrou-se e juntou-se a este; que o marido sentou praça como oficial; e finalmente que para reaver sua legítima mulher, foi-lhe mister dar a morte física ao seu pri­meiro amigo, ou roubador.
São portanto as figuras que nela entram:
Lindo, roubador.
Linda, mulher roubada.
Rapaz ou Japegão, legítimo marido.
Manuelinha, filha.


 

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