Trabalhos de Amor Perdidos - William Shakespeare capa

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TRABALHOS DE AMOR PERDIDOS

(Love’s Labour’s Lost)

William Shakespeare

—Ridendo Castigat Mores—

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Trabalhos de Amor Perdidos
(Love’s Labour’s Lost)
William Shakespeare

Edição
Ridendo Castigat Mores

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Fonte Digital
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“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


 

TRABALHOS DE AMOR PERDIDOS
(Love’s Labour’s Lost)

imagem

William Shakespeare


 

ÍNDICE

imagem

ATO I
Cena I
Cena II

ATO II
Cena I

ATO III
Cena I

ATO IV
Cena I
Cena II
Cena III

ATO V
Cena I
Cena II


 

Personagens

 

FERDINANDO, rei de Navarra.
BIRON, nobre da corte do rei
LONGAVILLE, nobre da corte do rei.
DUMAINE, nobre da corte do rei.
BOYET, nobre da corte da princesa.
MERCADE, nobre da corte da princesa.
DOM ADRIANO DE ARMADO, espanhol fantástico
SIR NATANIEL, cura.
HOLOFERNES, mestre-escola.
DULL, oficial de justiça.
COSTARD, bobo.
MOTH, pajem de Armado.
Um guarda-caça.
A PRINCESA DA FRANÇA.
ROSALINA, fidalga da corte da princesa.
MARIA, fidalga da corte da princesa.
CATARINA, fidalga da corte da princesa.
JAQUENETA, camponesa.
Oficiais e criados do rei e da princesa.


 

ATO I
Cena I

 

O parque do rei de Navarra. Entram o rei, Biron, Longaville e Dumaine.

 

REI — Possa a Fama, que em vida todos buscam, gravar-se em nossos túmulos de bronze e amparar-nos da Morte perniciosa, quando, apesar da ação voraz do Tempo, nos propiciar o esforço do presente a honra que há de embotar-lhe o alfanje agudo e nos fizer herdeiros incontestes de toda a Eternidade. Por tudo isso, bravos conquistadores — sim, que o sois, vencendo as vossas próprias afeições e a força incalculável dos desejos que o mundo vos desperta — por tudo isso, o nosso edito agora publicado em todo o seu rigor será mantido. Navarra vai tornar-se o grande assombro do mundo; nossa corte, uma pequena academia, calma e circunspecta no que tem relação com a arte da vida. Vós três, Biron, Dumaine e Longaville, jurastes que haveríeis de comigo viver aqui três anos, quais colegas de escola, e de observar os estatutos que se acham consignados nesta cédula. Já o jurastes; agora assinai todos, para que a própria mão desonre o nome do que violar qualquer destes artigos. Se jurar e fazer é um só momento, mostrai-vos ora fiéis ao juramento.

LONGAVILLE — Quero ver: é jejum só de três anos; folga o espírito, embora o corpo sofra. Ventre grande é sinal de espírito oco; quando a gordura é muita, o senso é pouco.

DUMAINE — Dumaine, meu senhor, se mortifica; deixa as maneiras rústicas dos gozos deste mundo aos escravos vis e baixos deste mundo grosseiro. Eis o programa: morrer para a riqueza, o amor e o viço, e na filosofia herdar tudo isso.

BIRON — Meu caro soberano, só me cabe repetir os protestos deles todos, pois o jurei, de aqui estudar três anos. Mas outras observâncias rigorosas cumpre atender também: que não vejamos mulher alguma nesse tempo todo, o que, penso, não foi aqui anotado; nada comer num dia da semana e uma só refeição fazer ao dia, o que penso, não foi aqui anotado; depois, dormir três horas só por noite, sem cabecear de dia um só momento e eu que nunca pensei durante a noite e meio dia em noite transformava — o que, penso, não foi aqui anotado. Nessa viagem de estudos, que de abrolhos: não ver mulher, jejuar, não pregar olhos!

REI — Jurastes cumprir todos esses pontos.

BIRON — Perdão, milorde; só se formos tontos. Eu só jurei que em vossa companhia três anos cá na corte estudaria.

LONGAVILLE — Jurastes sim, Biron, o rei não mente.

BIRON — Então foi por brinquedo, unicamente. Se não, dizei: com o estudo, que queremos?

REI — Ora! aprender o que ainda não sabemos.

BIRON — O que o senso comum pegar não pode?

REI — Sim, que o poder de cima nos acode.

BIRON — Vejamos: vou jurar precisamente conhecer o que está proibido à mente. Por exemplo: onde achar um bom pitéu, muito embora a jejuar seja obrigado; ou como transformar a terra em céu, com bela amante, o que nos é vedado; ou como a juramento seja infido, sem que como perjuro fique tido. Se do estudo esse é o grande galardão, saber o que não sabe ainda a razão, — juro também, pois nunca direi Não.

REI — Essa é a imensa vaidade que hoje em dia do estudo o nosso espírito transvia.

BIRON — Vaidade é tudo, então; mas a suprema vaidade é a que conosco em dor se extrema, como a mente nos livros mergulharmos em busca da luz pura que, magana, nos cega, sem de nós nos importarmos. Anelando mais luz, a luz se engana. Assim, querendo achar no escuro a luz, acabais por não ver: prêmio de truz! Ensinai-me, ao invés disso, como a vista possa em olhos fixar de extremo encanto, que, ofuscando-a, lhe valha por conquista tão radiosa que à mente causa espanto. Comparo o estudo aos raios do sol claro que perscrutar não pode o olhar mesquinho; sempre foi despiciendo o lucro avaro que nos vem de alfarrábio ou pergaminho. Os padrinhos terrestres da luz pura, que aos astros sabem dar nomes em messe, não têm nas belas noites mais ventura do que o pastor que a todos desconhece. Saber muito é de nomes ser zeloso, trabalho de padrinho carinhoso.

REI — Como é sábio em defesa da ignorância!

DUMAINE — Das trevas, que de amor, quanta ganância!

LONGAVILLE — Para ele o trigo é nada, o joio é certo.

BIRON — Calma! O tempo dos ovos já está perto.

DUMAINE — A que vem isso?

BIRON — Hei de serrar de cima.

DUMAINE — Não tem lógica.

BIRON — Então pode ter rima.

REI — Biron é tal qual geada vastadora que destrói a esperança do colono.

BIRON — Pode ser; mas é certa essa lavoura se, mudo, o passaredo ainda tem sono? Por que ficar alegre antes do dia? Jamais desejei flores no Natal, ou neve em maio, tempo da Bíblia; tudo tem seu período natural. A idade mais estudos não comporta; pulais o muro, em vez de abrir a porta.

REI — Adeus, Biron; contigo eu serei mudo.

BIRON — Perdão, milorde; eu lembro-me de tudo. Falei só como bárbaro sincero quanto aos sábios presentes ofendeu mas cumprir a palavra agora quero de abjurar por três anos o meu eu. Dai-me o papel; desejo conhecê-lo para em todos os pontos pôr meu selo.

REI — Recuaste a tempo, ouvindo o nosso apelo.

BIRON () — “Item: Nenhuma mulher poderá chegar a menos de uma milha de nossa corte.” Isso já foi proclamado?

LONGAVILLE — Há quatro dias.

BIRON — Vejamos qual é a penalidade: “Sob pena de perder a língua”. Quem teve essa idéia?

LONGAVILLE — Eu, decerto.

BIRON — E por que tanta crueldade?

LONGAVILLE — O remédio eficaz não tem piedade.

BIRON — Para a galantaria que maldade! “Item: Se dentro do prazo de três anos for visto algum homem a conversar com uma mulher, sofrerá a humilhação pública que a corte achar conveniente.” Este artigo, senhor, nos causa susto, que o rei da França à corte nos envia por vos falar, sua própria filha, augusto modelo de beleza e cortesia. Vem pleitear para o pai, velho e acamado, a entrega da Aquitânia. É, pois, patente, ou que este artigo em vão será aprovado ou que a princesa aqui virá vãmente.

REI — Como nos esquecemos desta parte?

BIRON — Zelo demais transcende o engenho e a arte; querendo conquistar o que deseja, descura da porção mais benfazeja, e ao contemplar a esplêndida conquista no fim só fogo e ruínas é o que avista.

REI — É forçoso essa parte pôr de lado, pois o pacto não pode ser quebrado.

BIRON — Em três anos, assim, perjuraremos três mil vezes. Nascemos com pendores que vencer as mais vezes não podemos sem a Graça, o só bálsamo das dores. Se eu faltar num só ponto, pressuroso direi como desculpa: foi forçoso. Posso, pois, subscrever tudo sem medo, (Assina.) porque quem perjurar um só dos pontos sem honra viverá, como em degredo; não devo ter mais medo do que os tontos. Mas embora revele repugnância, estou certo de que hei de ter constância. Mas não há diversão em perspectiva?

REI — Há, pois não? Nossa corte ora se aviva com um viajante de Espanha, refinado que a moda sempre traz em roda-viva e de frases o cérebro enxertado, a quem a fala vã causa deleite como a mais agradável harmonia, verniz por fora, apenas, mas aceite como árbitro em questiúnculas do dia. Esse Armado, da fábula nascido, vai contar-nos em termos rebuscados quanto a morena Espanha tem crescido nos feitos de seus homens olvidados. Não posso predizer se haveis de amá-lo; enquanto a mim, agrada-me escutá-lo e como cantor meu ora empregá-lo.

BIRON — Armado é um cavalheiro muito ilustre, cheio de termos novos e de lustre.

LONGAVILLE — Ele e Costard! O pacto já está feito; três anos serão curtos desse jeito.

(Entram Dull, com uma carta, e Costard.)

DULL — Qual é a própria pessoa do rei?

BIRON — Esta, amigo. Que desejas?

DULL — Eu mesmo represento sua pessoa, por ser o oficial de justiça de Sua Graça; mas desejo ver a sua pessoa em carne e osso.

BIRON — Aqui está ele.

DULL — O signior Arm... Ami... se recomenda. Está havendo vilania por aí; esta carta vos dirá melhor o que há.

COSTARD — Senhor, o assunto desta carta me diz respeito.

REI — Uma carta do magnífico Armado!

BIRON — Por mais insignificante que seja o assunto, confio em Deus que vamos ouvir termos alevantados.

LONGAVILLE — Uma grande esperança para céu tão baixo! Deus nos proveja de paciência.

BIRON — Para escutar ou para não rir?

LONGAVILLE — Para ouvir com paciência, senhor, e rir com moderação, ou para nos livrarmos de ambas as coisas.

BIRON — Dois pararemos, senhor, onde o seu estilo nos atirar.

COSTARD — O assunto é comigo, senhor, e diz respeito a Jaqueneta. O caso é que eu fui apanhado no próprio caso.

BIRON — Que caso é esse?

COSTARD — No caso e na forma seguinte, senhor, sem faltar um só dos três: eu fui apanhado com ela no castelo, sentado junto dela, segundo a forma, e fui visto, quando a seguia para o parque, e isso, em conjunto, foi da maneira e da forma seguintes: quanto à maneira, senhor, foi da maneira por que um homem fala com uma mulher; quanto à forma.., foi de qualquer forma.

BIRON — E a conseqüência, senhor?

COSTARD — A conseqüência é a minha correção. Deus defenderá o Direito!

REI — Quereis ouvir com atenção a leitura desta carta?

BIRON — Como ouviríamos a palavra da própria Sibila.

COSTARD — É isso mesmo; basta um sibilo para que a gente saia correndo atrás da carne.

REI () — “Grande governador, vice-regente do firmamento e dominador exclusivo de Navarra, deus terreno de minha alma e mestre alimentador do meu corpo...”

COSTARD — Sobre Costard nenhuma palavra até agora.

REI — “Foi assim...”

COSTARD — Pode ser que tenha sido assim; mas se ele diz que foi assim, dizendo a verdade, ele é apenas assim, assim.

REI — Paz!

COSTARD — Para mim e para todos os que têm medo de briga.

REI — Nem mais uma palavra!

COSTARD — Acerca dos segredos dos outros, posso asseverar-vos.

REI — “Foi assim: vencido pela melancolia de cor negra, eu entregava o humor escuro e deprimente ao tratamento salutar de tua atmosfera reconfortante, e tão certo como ser um gentil-homem, pus-me a passear. Em que momento? Pelas seis horas, quando o gado gosta de pastar, os pássaros bicam de melhor grado e os homens se sentam para tomar o alimento a que dão o nome de sopa. Isso quanto ao tempo em quê. Agora, quanto ao terreno sobre quê, quero dizer, sobre que eu me movia: tem o nome de teu parque. Quanto ao lugar em quê, digo, em que eu descobri este acontecimento altamente obsceno e despropositado, que arranca da minha pena branca como neve a tinta de cor de ébano que aqui vês, observas ou percebes. No que respeita ao lugar em quê, ficar a nor-nordeste e a este do ângulo oeste de teu jardim curiosamente inextricável. Foi aí que eu vi a esse estúpido pastor, a esse mesquinho gobião que te faz rir...”

COSTARD — Eu!

REI — “...essa alma iletrada e ignorante..”

COSTARD — Eu!

REI — “....esse vaso de pouco fundo...”

COSTARD — Ainda eu!

REI — “...que, se não me falha a memória, tem o nome de Costard...”

COSTARD — Pobre de mim!

REI — “...unido e reunido, contrariamente ao edito estabelecido e proclamado e aos cânones continentes com... com... Oh! com quem só de dizer me faz revolta...”

COSTARD — Com uma rapariga.

REI — “...com uma filha de nossa avó Eva, uma fêmea, ou, por maneira mais adequada ao teu entendimento, uma mulher. Obediente às injunções do meu sempre comprovado dever, para que receba o castigo merecido envio-te esse tal pelo oficial de tua doce Graça, Antônio Dull, pessoa de bom nome, boa conduta, bons costumes e grandemente estimado.”

DULL — Sou eu, com vossa permissão; Antônio Dull sou eu.

REI — “Quanto a Jaqueneta — que assim se chama o fraco vaso que eu surpreendi com o referido pastor — conservo-a como vaso para a fúria de tua lei, pronto a levá-la para o julgamento ao menor sinal de tua doce notícia. O teu, com todos os cumprimentos de um coração devotado e ardoroso do desejo de cumprir o dever, Dom Adriano de Armado.”

BIRON — Não é tão bom como eu esperava, mas é o que de melhor já ouvi no gênero.

REI — Sim, o melhor do pior. Mas vós aí, amigo, que dizeis disso tudo?

COSTARD — Senhor, eu confesso a rapariga.

REI — Não ouvistes a proclamação?

COSTARD — Confesso que ouvi falar muito dela, mas não lhe dei grande atenção.

REI — A proclamação fala em um ano de prisão para quem quer que fosse visto com uma mulher.

COSTARD — Eu não fui visto com nenhuma mulher, senhor; eu fui apanhado com uma donzela.

REI — Seja; a proclamação dizia “donzela”.

COSTARD — Não era donzela também, senhor; era virgem.

REI — Abrangia tudo; foi proclamado também “virgem”.

COSTARD — Se é assim, nego-lhe a virgindade; fui apanhado com uma rapariga.

REI — Essa rapariga não vos servirá de nada, senhor.

COSTARD — Essa rapariga vai servir-me de muito, senhor.

REI — Senhor, vou pronunciar vossa sentença: sereis obrigado a jejuar durante uma semana somente a pão e água.

COSTARD — Preferira rezar um mês com sopa e carne de carneiro.

REI — Dom Armado vai ser o vosso guarda. E ora, milordes, vamos dar começo à jura que entre nós já está firmada.

(Saem o rei, Longaville e Dumaine.)

BIRON — Perderei a cabeça, sem pôr preço, se não for dar tudo isso em patuscada. Vamos, malandro!

COSTARD — Eu sofro pela verdade, senhor; porque a verdade é que eu fui apanhado com Jaqueneta e Jaqueneta é uma rapariga verdadeira. Por isso, seja bem-vinda a amarga taça da prosperidade! Algum dia ainda poderá sorrir-me de novo a aflição. Até lá, tristeza, toma conta de mim!

(Saem.)


 

Cena II

 

O mesmo. Entram Armado e Moth.

 

ARMADO — Pequeno, que quer dizer um homem de espírito elevado ficar melancólico?

MOTH — Quer dizer muita coisa, senhor; que ele fica com aparência triste.

ARMADO — Ora essa, garoto; tristeza é a mesma coisa que melancolia.

MOTH — Não, não! Oh senhor! Não!

ARMADO — Como poderias da tristeza separar a melancolia, meu brando juvenal?

MOTH — Pela familiar demonstração de seus resultados, meu coriáceo senhor.

ARMADO — Por que coriáceo senhor? Por que coriáceo senhor?

MOTH — Por que brando juvenal? Por que brando juvenal?

ARMADO — Empreguei a expressão “brando juvenal” como epíteto congruente, que vai bem com os teus dias moços, a que podemos dar o nome de tenros.

MOTH — E eu “coriáceo senhor”, como título adequado ao vosso tempo velho, que podemos chamar de coriáceo.

ARMADO — Bonito e adequado.

MOTH — Que quereis dizer com isso, senhor: eu sou bonito e meu dito é adequado, ou eu sou adequado e meu dito é bonito?

ARMADO — Tu és bonito por seres pequeno.

MOTH — Então, por ser pequeno, sou pouco bonito. E por que adequado?

ARMADO — Por seres vivo.

MOTH — Dizeis isso em meu louvor, mestre?

ARMADO — Em teu condigno louvor.

MOTH — Pois com esse mesmo louvor eu elogiaria uma enguia.

ARMADO — Como! Chamando a enguia de engenhosa?

MOTH — Não; chamando-a de viva.

ARMADO — O que eu quero dizer é que és vivo nas respostas; aqueces-me o sangue.

MOTH — A resposta já foi dada, senhor.

ARMADO — Não gosto de ser cruzado nas minhas perguntas.

MOTH (à parte) — É o inverso, justamente: os cruzados é que não gostam dele.

ARMADO — Prometi estudar durante três anos com o duque.

MOTH — Poderíeis fazer isso em uma hora, senhor.

ARMADO — Não é possível!

MOTH — Quanto são três vezes um?

ARMADO — Em matéria de conta eu não sou muito forte; isso é mais para o espírito de caixeiros de taberna.

MOTH — Sois cavalheiro e jogador, senhor.

ARMADO — De acordo; são qualidades que constituem o verniz do homem completo.

MOTH — Nesse caso, tenho certeza de que sabeis a quanto monta o total de ás e dois.

ARMADO — A um mais do que dois.

MOTH — A que o vulgo imundo dá o nome de três.

ARMADO — Justamente.

MOTH — Pois então, senhor, estudar é tão difícil assim? Aí está como estudamos o três em menos tempo do que o necessário para piscardes três vezes. O cavalo que dança vos dirá como é fácil juntar “anos” à palavra “três” e estudar três anos em duas palavras.

ARMADO — Bonita imagem!

MOTH (à parte) — Que a zero vos reduz.

ARMADO — Nesta altura desejo confessar que estou apaixonado; e como amar é indigno de um soldado, estou apaixonado de uma rapariga indigna. Se fosse bastante sacar da espada contra o humor da afeição, para livrar-me de seu pensamento réprobo, eu aprisionaria o Desejo e o trocaria com qualquer cortesão francês por um cumprimento da moda. Considero humilhante suspirar; penso que é meu dever abjurar de Cupido. Conforta-me, pequeno: quais são os grandes homens que se apaixonaram?

MOTH — Hércules, mestre.

ARMADO — Dulcíssimo Hércules! Mais uma autoridade, meu querido; cita-me outras, doce menino, mas que sejam de boa reputação e de bom porte.

MOTH — Sansão, senhor; foi pessoa de bom porte, grande porte, até, porque fez o porte dos portões da cidade, no dorso, como um carregador. Ele também era apaixonado.

ARMADO — Ó Sansão bem ajustado! Sansão de juntas fortes! Ultrapasso-te tanto com o meu espadim, como me ultrapassaste carregando as portas. Eu também estou apaixonado. Quem foi a amada de Sansão, querido Moth?

MOTH — Uma mulher.

ARMADO — De que cor era ela?

MOTH — De todas quatro, ou de três, ou de duas, ou de uma das quatro.

ARMADO — Dize-me exatamente qual era a sua cor.

MOTH — Verde-mar, senhor.

ARMADO — Essa é uma das quatro cores?

MOTH — A melhor de todas, senhor; pelo que tenho lido.

ARMADO — De fato, verde é a cor dos amantes; mas quero crer que Sansão não tinha motivo para ter amante dessa cor. Certamente o que ele mais apreciava nela era o espírito.

MOTH — É isso mesmo, senhor; o espírito dela era verde.

ARMADO — A minha amada é imaculadamente branca e vermelha.

MOTH — Essas cores, senhor, escondem os pensamentos mais imaculados.

ARMADO — Explica isso, explica isso, infante bem educado.

MOTH — Espírito de meu pai e língua de minha mãe, valei-me!

ARMADO — Doce invocação de uma criança, belíssima e patética.

MOTH — Se ela for granada e neve, ninguém a entende por fora; quando erra, cora de leve; quando se assusta, descora. O que seja culpa ou medo, quem poderá descobrir? No rosto esconde o segredo, quer fique triste ou a sorrir. Rima perigosa, mestre, contra a razão do branco e do vermelho.

ARMADO — Não existe uma balada, menino, denominada “O Rei e o Mendigo”?

MOTH — Há cerca de três gerações o mundo perpetrou a falta de semelhante balada; quero crer, porém, que hoje ninguém mais se lembra dela; mas mesmo que se lembrasse, não prestaria para nada, nem como texto, nem como música.

ARMADO — Vou mandar fazer uma composição sobre esse mesmo tema, para justificar com um precedente alevantado a minha digressão. Pequeno, amo a camponesa que encontrei no parque com o animal racional do Costard; ela o merece.

MOTH (à parte) — Merece mas é ser açoitada e ter amante melhor do que o meu mestre.

ARMADO — Canta, pequeno; com o amor, o espírito se me toma pesado.

MOTH — O que é muito de admirar, por amardes uma rapariga leviana.

ARMADO — Canta, é só o que eu digo.

MOTH — Esperai um pouco, até acabar de passar essa companhia.

(Entram Dull, Costard e Jaqueneta.)

DULL — Senhor, a vontade do duque é que fiqueis como guarda de Costard e que não lhe permitais nem alegria nem penitência, sendo ele obrigado a jejuar três dias na semana. Quanto a esta donzela, vai ficar no parque com a encarregada do leite. Passai bem.

ARMADO — Eu mesmo me traio com o rubor. Rapariga!

JAQUENETA — Homem!

ARMADO — Hei de visitar-te em teu cubículo.

JAQUENETA — Fica perto daqui.

ARMADO — Sei onde é.

JAQUENETA — Oh, Senhor! Como sois sábio!

ARMADO — Hei de contar-te maravilhas!

JAQUENETA — Com essa cara?

ARMADO — Amo-te.

JAQUENETA — Já mo dissestes.

ARMADO — Então, adeus.

JAQUENETA — Que depois de vós faça bom tempo.

DULL — Vamos, Jaqueneta; toca a andar!

(Saem Dull e Jaqueneta.)

ARMADO — Vilão, antes de seres perdoado, terás de jejuar por causa de tuas ofensas.

COSTARD — Muito bem, senhor; espero fazê-lo com o estômago cheio.

ARMADO — Vais ser severamente punido.

COSTARD — Ficar-vos-ei mais obrigado por isso do que os vossos servidores, que são levemente pagos.

ARMADO — Levai daqui esse vilão e ponde-o na grade.

MOTH — Vamos, escravo transgressor; toca para a frente!

COSTARD — Não me deixeis preso, senhor; eu saberei jejuar muito bem se ficar forro.

MOTH — Não, senhor; isso seria comer à tripa forra. Terás de ficar na prisão.

COSTARD — Está bem; mas se eu tomar a ver os belos dias da desolação que já vi, alguém há de ver...

MOTH — Que é que alguém há de ver?

COSTARD — Nada, nada, mestre Moth, a não ser o que ele enxergar. Não orna aos prisioneiros serem muito calados em seus discursos. Por isso não direi mais nada. Dou graças a Deus por ser dotado de tão pouca paciência como qualquer pessoa. Daí poder ficar tranqüilo.

(Saem Moth e Costard.)

ARMADO — Chego a venerar o próprio solo vil em que os seus sapatos, mais vis ainda, guiados pelos pés, que são vilíssimos, se locomovem. Serei perjuro — grande prova de falsidade — se me apaixonar. Como pode, então, ser verdadeiro o amor que principia com falsidade? O amor é um duende familiar; o Amor é um demônio; não há outro anjo do mal além do Amor. Contudo, Sansão foi tentado, com ser de força extraordinária; Salomão também foi seduzido, apesar de todo o seu entendimento. A flecha de Cupido é dura demais para a clava de Hércules, e, por isso mesmo, superior à espada de um espanhol. A primeira e a segunda razão não são válidas no meu caso, porque nem ele respeita estocadas, nem dá atenção a duelos. Sua desgraça consiste em ser chamado menino, mas sua glória em dominar os homens. Adeus, valor! Enferruja-te, espada! Cala-te, tambor! que vosso dono se encontra apaixonado. Sim, está amando. Que venha em meu auxílio qualquer deus improvisador de rimas, porque tenho certeza de que acabarei como sonetista. Inventa, espírito! Escreve, pena! que me acho com disposição de produzir fólios inteiros! (Sai.)


 

ATO II
Cena I

 

O parque do Rei de Navarra. Um pavilhão e tendas a distância. Entram a Princesa da França, Rosalina, Mari Catarina, Boyet, nobres e gente do séquito.

 

BOYET — Ora, Princesa, despertai o espírito, considerai quem vosso pai envia, a quem o faz e o fim desta embaixada; sois vós, preciosa aos olhos do universo, que ora vindes falar com o único herdeiro de quantas perfeições o homem se possa jactar: o inigualável rei navarro. O assunto, não menor que o da Aquitânia, dote digno, por certo, de rainha. Despendei ora graças a mãos-cheias, como convosco fez a natureza, quando vos adornou com tantas graças, privando delas o universo inteiro para prodigamente conceder-vo-las.

PRINCESA — Meu bom lorde Boyet, minha beleza, ainda que muito escassa, não precisa dos adornos de vossos elogios. A beleza é julgada pelos olhos de quem compra, jamais pelos reclamos convencionais do vendedor estulto. Tenho menos prazer em ver meus dotes louvados do que vós em ostentar argúcias, despendendo vosso engenho no elogio do meu. Mas designemos tarefa ao conselheiro: bom Boyet, como o sabeis — pois a falante Fama se incumbiu de o espalhar — Navarra se acha preso ao voto de que mulher alguma poderá aproximar-se de sua corte silenciosa, sem que ele tenha gasto três anos em estudos cansativos. É imprescindível, pois, ficar sabendo de suas intenções antes de as portas defendidas transpormos. Para tanto vos escolhemos, visto conhecermos vosso merecimento, a fim de serdes o eloqüente patrono desta causa. Dizei-lhe, pois, que a real filha de França, por assunto importante e muito urgente deseja conversar com Sua Graça. Ponde pressa no caso; aqui esperamos, como cliente humildosa, seu despacho.

BOYET — Vaidoso com a missão, vou de boamente.

PRINCESA — Só é vaidade legítima a consciente. (Sai Boyet.) Meus senhores, quais são os companheiros desse duque virtuoso?

PRIMEIRO LORDE — Longaville é um deles.

PRINCESA — Conhecei-lo, porventura?

MARIA — Eu o conheço, senhora. Nos festejos do esposório entre a herdeira incomparável de Jaques Faulconbridge e o grande lorde de Perigort, na Normandia havidos, vi esse Longaville, cavalheiro perfeito no consenso dos seus pares, conhecedor das artes e famoso na carreira das armas. Tudo quanto determina fazer, faz com capricho. A única jaça no fulgor de sua virtude — se é que mácula haver pode no fulgor da virtude — é certo espírito muito afiado, de par com uma vontade, digamos, rude; aquele corta fundo, esta nunca se abate, não poupando quem quer que dentro do âmbito lhe caia.

PRINCESA — Grande trocista, sim, não é verdade?

MARIA — O mundo assim o diz sem falsidade.

PRINCESA — Gênio vivo emurchece em pouca idade. Quais são os outros?

CATARINA — Dumaine, um moço muito bem dotado, amado por quem quer que ame a virtude, com poder para o mal, sem conhecê-lo, por ser de tanto espírito, que as coisas feias deixa aprazíveis, e de forma capaz de conquistar só por si mesma. Vi-o em casa do Duque de Alençon; muito pouco, em confronto com o muitíssimo que me foi dado ver, é quanto agora poderia eu dizer para elogiá-lo.

ROSALINA — Acompanhava-o, então, outro dos nossos estudantes, se nisso não me engano, Biron de nome. Nunca me foi dado conversar com ninguém de mais espírito sempre dentro dos lindes do decoro. Os olhos não cessavam de aprestar-lhe pábulo para o espírito: o que viam era por este logo aproveitado para assunto de alegre brincadeira, que a língua habilidosa, expositora de sua inteligência, apresentava com palavras tão justas e graciosas, que os velhos se detinham para ouvi-las e os moços se quedavam fascinados; tão doce e fluente a fala lhe safa.

PRINCESA — Deus abençoe as minhas damas de honra! É preciso que amando elas estejam, para que tais encômios todas elas despendam no louvor dos seus eleitos.

PRIMEIRO LORDE — Aí vem vindo Boyet

(Entra Boyet.)

PRINCESA — Dizei-me logo, senhor, como seremos recebidas?

BOYET — Navarra já tivera a alta notícia de vossa vinda. Com seus companheiros de juramento estava justamente para vir encontrar-vos, gentil dama, quando me recebeu. Pelo que pude saber, ele prefere ora hospedar-vos no campo, como a amiga que aqui houvesse vindo para assediar-lhe a própria corte, a ter de ser perjuro, consentindo que em sua casa deserta penetrásseis. Navarra vem chegando.

(As senhoras põem máscaras.)

(Entram o rei, Longaville, Biron e séquito.)

REI — Bela princesa, sede bem-vinda à corte de Navarra.

PRINCESA — “Bela” eu vos devolvo; quanto ao “bem-vindo”, ainda não me pertence: o teto desta corte é por demais alto para ser vosso, e uma saudação em campo raso muito estreita para ser minha.

REI — Sereis muito bem-vinda à minha corte.

PRINCESA — Conduzi-me até lá, que me apraz vê-la.

REI — Ouvi-me, por favor; fiz uma jura...

PRINCESA — Nossa Senhora ampare ao meu senhor, que ele vai ser perjuro!

REI — Pelo mundo todo, nunca o serei conscientemente.

PRINCESA — Haveis de revelar vontade disso.

REI — Ignora Vossa Alteza o juramento.

PRINCESA — Se milorde ignorasse desse modo, fora sua ignorância muito sábia, pois é forçoso que o saber, agora, ignorante de todo se revele. Ouvi dizer que Vossa Graça havia jurado viver vida solitária. É pecado mortal essa promessa, meu príncipe, como o é, também, violá-la. Perdão, sou muito ousada, por querer dar lições a um professor. Dignai-vos ora ler o fim precípuo de minha vinda, e concedei-me pronto despacho à petição que vos entrego. (Dá-lhe um papel).

REI — Fá-lo-ei, senhora, logo que o puder.

PRINCESA — Obrigada; porque, como mulher, vos farei perjurar se aqui estiver.

BIRON — Certa vez não dançamos em Brabante?

ROSALINA — Certa vez não dançamos em Brabante?

BIRON — Tenho certeza.

ROSALINA — Então por que essa inútil pergunta?

BIRON — Não deveis ser tão vivaz.

ROSALINA — Sois culpado, esporeando-me desta arte.

BIRON — Cansa depressa o espírito ligeiro.

ROSALINA — Mas, antes joga ao solo o cavaleiro.

BIRON — Que horas são?

ROSALINA — As horas que o bobo diz.

BIRON — Que disfarce feliz!

ROSALINA — Feliz é o rosto oculto.

BIRON — Deus vos aumente o culto.

ROSALINA — Se não entrardes nele.

BIRON — Já me acho fora dele.

REI — Senhora, vosso pai aqui reclama o pagamento de cem mil coroas, que a metade somente representam dos gastos de meu pai nas guerras dele. Mas dado que meu pai ou eu tivesse recebido essa soma — o que é inverdade — faltaria pagar ainda outro tanto, cem mil coroas, em penhor das quais nos foi entregue parte da Aquitânia, muito embora avaliada em menor preço. Se vosso pai quiser, pois, restituir-nos a metade que a nós ainda é devida, cedemos-lhe o direito da Aquitânia e amizade firmamos com Sua Graça. Mas parece que disso ele não cura, pois exige de novo o pagamento de outras cem mil coroas, sem mostrar-se disposto a restituir essa importância para direito ter sobre a Aquitânia, que de grado entregáramos, no caso de ele nos ressarcir dos gastos todos de nosso pai, para deixar de vê-la, como está, mutilada. Mas, querida Princesa, se a requesta não se achasse tão longe da razão, vossa beleza razões ensejaria contra as minhas razões, para que alegre e satisfeita voltásseis para a França.

PRINCESA — Constitui ofensa ao rei meu pai e ao vosso nome, negar o pagamento de quantia que por maneira leal já vos foi feito.

REI — Juro que nunca ouvi falar sobre isso. Se o provardes, tereis de novo a soma ou a Aquitânia de novo.

PRINCESA — Satisfaz-nos quanto dizeis. Depois, Boyet, mostrai-lhe os recibos da soma incriminada, com a firma de oficiais autorizados do Rei Carlos, seu pai.

REI — Dai-me esse gosto.

BOYET — Perdoe-me Vossa Graça, mas o embrulho em que esses documentos todos se acham não chegou; amanhã podereis vê-los.

REI — Será o bastante. Nessa conferência saberei acatar razões plausíveis. Entrementes, aceita as gentilezas que sem desar algum possa minha honra tomar dignas do teu merecimento. Não vos peço os portões, bela princesa, franquear, mas aqui fora recebida de tal modo ides ser, que heis de julgar-vos hospedada em meu peito, muito embora me negasse a aceitar-vos sob meu teto. Que vossa inteligência me desculpe. Adeus; amanhã volto a visitar-vos.

PRINCESA — Que o bem-estar de vós nunca se aparte.

REI — Desejo-te outro tanto em qualquer parte. (Sai o rei e o séquito.)

BIRON — De vós ao coração direi primores.

ROSALINA — Sim; não vos esqueçais; ficarei multo contente em conhecê-lo.

BIRON — Desejara que o vísseis suspirar.

ROSALINA — Está doente o bobinho?

BIRON — Sofre do coração.

ROSALINA — Coitado! Uma sangria.

BIRON — Algum bem lhe faria?

ROSALINA — Entendo de curar.

BIRON — Picai-o com o olhar.

ROSALINA — No point; com faca afiada.

BIRON — Deus vos faça ajuizada.

ROSALINA — E a vós, de muito preço.

BIRON — Depois vos agradeço. (Retirando-se.)

DUMAINE — Por obséquio, que nome tem aquela?

BOYET — É Catarina, de Alençon a herdeira.

DUMAINE — Agradecido; atraente e verdadeira. (Sai.)

LONGAVILLE — E aquela ali de branco, quem será?

BOYET — Uma mulher; o sol vo-lo dirá.

LONGAVILLE — Luz na luz; mas que nome tem concreto?

BOYET — Só tem um, que não digo; sou discreto.

LONGAVILLE — Por obséquio, senhor, de quem é filha?

BOYET — De sua mãe, não duvido.

LONGAVILLE — Que barbado atrevido!

BOYET — Não vos zangueis, senhor, mas ela é a herdeira de Faulconbridge.

LONGAVILLE — A zanga é passageira. Dama graciosa e linda!

BOYET — Seu louvor nunca finda.

(Sai Longaville.)

BIRON — E aquela de chapéu, que nome tem?

BOYET — Rosalina, senhor, se vejo bem.

BIRON — É casada ou solteira?

BOYET — O que ela mesma queira.

BIRON — Vossa vinda é alegria para nós.

BOYET — Posso dizer o mesmo a todos vós.

(Sai Biron; as senhoras tiram as máscaras.)

MARIA — Esse é o alegre Biron, que nunca se amofina; cada palavra sua é uma pilhéria fina.

BOYET — E cada brincadeira é uma palavra só.

PRINCESA — Fizestes muito bem malhando-o assim, sem dó.

BOYET — Com tal ímpeto a nau me veio ele abordar, que a sua, a muito custo alfim eu pude entrar.

MARIA — Que dois carneiros sois!

BOYET — Contudo, pouco sábios; salvo se para nós, ovelha, esses teus lábios servirem de alimento.

MARIA — Eu, serei a pastagem; vós, carneiros no pasto. Aclara-se a paisagem?

BOYET — Se o consentirdes, sim. (Fazendo menção de beijá-la.)

MARIA — Não, não, meu gentil bruto; isto é particular, não é comum produto.

BOYET — A quem pertence o pasto?

MARIA — A mim e à minha sorte.

PRINCESA — O espírito vivaz, em discussões é forte; o mais calmo é cordato. É claro que esta guerra civil da inteligência achara melhor terra na corte de Navarra e em todo o bando fútil dos sábios na escritura; aqui no campo é inútil.

BOYET — Se a minha observação, que muito raramente me engana, desta vez também não me desmente, Navarra está infectado.

PRINCESA — E a doença, por favor?

BOYET — O mal é conhecido; é simplesmente amor.

PRINCESA — Vossas razões?

BOYET — Todo o seu ser, agora, aos olhos se acolheu, de cuja corte espia, ansiando um mundo seu; vaidoso o coração com vossa efígie amada, aos olhos uma luz transmite inusitada. Por só poder falar, a língua, aborrecida, deseja também ver, caindo na corrida. Nos olhos se concentra a turba dos sentidos para a beleza ver que os traz tão confundidos, como jóias de preço em límpido cristal que deseja adquirir um comprador real, e que com brilho novo esplendem no mostruário convidando o transeunte a um gasto extraordinário. As notas marginais do rosto a toda gente revelam quanto a vista em confessar consente. Dar-vos-ei a Aquitânia e o que do rei quiserdes, se, acorde com meu gosto, um beijo nele derdes.

PRINCESA — Vamos ao pavilhão; Boyet se acha disposto.

BOYET — Mas para ler, somente, o que ele traz no rosto. O que fiz foi só dar-lhe aos olhos uma boca que, embora mui loquaz, jamais se mostra louca.

ROSALINA — O intermediário é bom; não seja a Sorte mouca!

MARIA — Ele é avô de Cupido e anda com ele em cochicho.

ROSALINA — Vênus à mãe saiu, que o pai parece um bicho.

BOYET — Louquinhas, escutais-me?

MARIA — Oh, não!

BOYET — Não podeis ver?

ROSALINA — A estrada larga, sim.

BOYET — Sois bem duras de roer.

(Saem.)


 

ATO III
Cena I

 

O parque do rei de Navarra. Entram Armado e Moth.

 

ARMADO — Canta, menino; encanta-me o sentido da audição.

MOTH (cantando) — Concoline!...

ARMADO — Que ária dulcíssima! Vai, delicadeza jovem; toma esta chave, solta o pastor e o traze sem demora à minha presença. Preciso dele para mandar uma carta para o meu amor.

MOTH — Mestre, desejais conquistar vossa amada com uma dança francesa?

ARMADO — Que queres dizer com isso? Que devemos brigar?

MOTH — Não, meu mestre acabado; o que é preciso é modular-lhe uma cantiga na ponta da língua, dançar para ela ver uma canária na ponta dos pés, animá-la revirando os olhos; suspirar uma nota e cantar outra, algumas vezes pela garganta, como se engolísseis o amor cantando o amor; outras vezes pelo nariz, como se aspirásseis o amor só com cheirá-lo; com o chapéu no jeito de beirada de casa sobre a loja dos olhos; os braços sobre o ventre minguado, como lebre no espeto; as mãos nos bolsos, como nos retratos antigos; e tudo isso rápido; bastará uma pequena amostra. São esses os dotes e os talentos com que a gente apanha as raparigas ariscas, que só desejam, aliás, ser apanhadas sem nada disso, e que fazem notados — estais me ouvindo? — os que os possuem.

ARMADO — Como compraste essa experiência?

MOTH — Com o meu vintém de observação.

ARMADO — Pois oh! Pois oh!

MOTH — “O cavalo de pau ficou esquecido!”

ARMADO — Chamaste a minha amada de cavalo de pau?

MOTH — Não, mestre; o cavalo de pau não passa de um potro; ao passo que a vossa amada talvez só seja égua de aluguel. Mas já vos esquecestes de vossa amada?

ARMADO — Quase, em verdade.

MOTH — Que estudante negligente! Aprendei-a de cor.

ARMADO — Amo-a de cor, menino, e com todo o coração.

MOTH — E também fora de coração, mestre; posso provar-vos todos três.

ARMADO — Que pretendes provar?

MOTH — Um homem, se eu viver; o que farei agora mesmo, de cor, com todo o coração e fora dele. Vós a amais de cor, porque vosso coração não pode ir para onde ela está; é com todo o coração que a amais, por estar o coração apaixonado por ela; e é fora de coração que a amais, por ser coisa assentada que não podeis possuí-la.

ARMADO — Encontro-me nos três casos.

MOTH — Ainda que estivésseis em mais de três, não valeríeis mais por isso.

ARMADO — Traze-me logo aquele labrego; preciso dele para mandar uma carta.

MOTH — Tudo combina muito bem na mensagem, realmente: um cavalo a servir de embaixador para um asno.

ARMADO — Ah, ah! Que foi o que disseste?

MOTH — O que eu disse, senhor, foi que deveríeis mandar o asno montado no cavalo, por ser ele bastante lerdo. E com isso, me vou.

ARMADO — A distância é curta; vai depressa.

MOTH — Tão rápido quanto o chumbo, senhor.

ARMADO — Que queres tu provar, meu jovem verdadeiro? Não é chumbo metal pesado e bem ronceiro?

MOTH — Minime, honesto mestre; ou melhor: mestre, não!

ARMADO — Digo que o chumbo é lento.

MOTH — Isso é veloz sermão. É lento, acaso, o chumbo em forma de uma bala?

ARMADO — Que retórica excelsa! O canhão, serei eu; ele a bala, decerto: atiro-te no tal.

MOTH — E eu vôo em campo aberto. (Sai.)

ARMADO — Jovem de engenho agudo e graças de crescença! Com ter favor, ó céu! suspiro em tua presença. Foi-se a melancolia; o brio é de nascença. Eis que retoma o arauto!

(Volta Moth, com Costard.)

MOTH — Eis um costado, mestre, agora a claudicar!

ARMADO — Temos enigma; a glosa é que eu possa achar.

COSTARD — Qual migna, nem glosa, nem coisa nenhuma. Glosa quer dizer ungüento, senhor? Mas não é nada disso, senhor; não passa de tanchagem.

ARMADO — Pela Virtude! tu me forças a rir; divertes-me com o teu cérebro acanhado; movimentando-se-me, os pulmões me obrigam a uma risada ridícula. Perdoai-me, estrelas minhas! Este insensato toma glosa por ungüento e ungüento por glosas!

MOTH — Como pensa o sábio a esse respeito? Glosa não significa isso?

ARMADO — Não, pajem; é discurso ou epílogo, que apura a significação de alguma frase obscura. Vou dar-te um exemplo: Um pato, uma galinha e um garnizé pedrês jamais formavam par por serem sempre três. Essa é a moral; vejamos agora a glosa.

MOTH — Eu quero dizer a glosa; repeti a moral.

ARMADO — Um pato, uma galinha e um garnizé pedrês jamais formavam par por serem sempre três.

MOTH — Até que aparecesse a pata no quintal e desfizesse o terno, azando outro casal. Agora eu vou dizer a vossa moral e vós a completareis com a minha glosa: Um pato, uma galinha e um garnizé pedrês jamais formavam par por serem sempre três.

ARMADO — Até que aparecesse a pata no quintal e desfizesse o terno, azando outro casal.

MOTH — A glosa é magnífica; termina com uma pata. Que mais podereis desejar?

COSTARD — Comprou-vos o rapaz uma bem gorda pata. Senhor, foi bom negócio; o bicho é pura nata. Difícil é comprar na feira sem ter nada. Queríeis glosa gorda? A pata é bem pesada.

ARMADO — Parai! Deixai-me ver: de onde partiu tudo isso?

MOTH — Falei-vos de costado, ao vê-lo claudicar. Quisestes logo a glosa.

COSTARD — E eu de tanchagem, mestre; e vós a discursar. Depois ele vos deu uma bem gorda pata, arrematando o caso.

ARMADO — Mas explicai-me como quebrou ele a perna, para mancar desse jeito?

MOTH — Vou contar-vos por maneira sensível.

COSTARD — Não tens sentimento para essas coisas, Moth, sou eu que quero dizer a glosa: Eu, Costard, a correr dei grande canelada; por não ficar em casa, a perna vi quebrada.

ARMADO — Bem, não falemos mais dessa matéria.

COSTARD — Até que haja mais matéria na perna.

ARMADO — O fato, Costard, é que desejo emancipar-te.

COSTARD — Oh! Casar-me com uma francesa? Isso está me cheirando a outra glosa, no jeito da pata.

ARMADO — Pela minha suave alma, o que tenciono fazer é dar-te a liberdade, desvencilhar a tua pessoa; encontras-te emparedado, fechado, cativo, amarrado.

COSTARD — É certo; é certo; e por isso, quereis servir-me de purgante e relaxar-me.

ARMADO — Dou-te a liberdade, retiro-te do cárcere, impondo-te, em compensação, apenas o seguinte: Leva esta mensagem à camponesa Jaqueneta. (Dá-lhe dinheiro.) Aqui está a tua remuneração, porque nada confirma tanto a minha honra como recompensar os que me servem. Moth, segue-me! (Sai.)

MOTH — Tal qual a conclusão. Signior Costard, adeus.

COSTARD — Minha oncinha de carne, entrego-te aos judeus. (Sai Moth.) Agora vou contemplar a sua remuneração. Remuneração! Oh! É a palavra latina para três pences: três pences, remuneração. “Qual é o preço desta fita?” “Um pêni.” “Não, dou-vos uma remuneração”, e, pronto, fico com ela. Remuneração! É mais bonito remuneração do que coroa francesa. Daqui por diante não comprarei nada sem esse nome.

(Entra Biron.)

BIRON — Que belo encontro, meu bravo Costard!

COSTARD — Por obséquio, senhor, quanto de fita encarnada a gente pode comprar com uma remuneração?

BIRON — Que é remuneração?

COSTARD — Quatro pences menos um, senhor.

BIRON — Nesse caso, poderás comprar três pences de seda.

COSTARD — Muito obrigado, senhor; Deus seja convosco.

BIRON — Espera, homem; desejo ora ocupar-te; se queres conquistar a minha graça, faze-me, bom rapaz, um grande obséquio.

COSTARD — Para quando quereis isso, senhor?

BIRON — Para esta tarde.

COSTARD — Fá-lo-ei sem falta, senhor; passai bem.

BIRON — Ora essa! Se tu não sabes ainda o de que se trata!

COSTARD — Sabê-lo-ei, senhor, depois de feito.

BIRON — É preciso que o saibas primeiro, idiota.

COSTARD — Então eu procurarei Vossa Senhoria amanhã pela manhã.

BIRON — Mas é preciso que a coisa seja feita hoje à tarde. Escuta lá, maroto; trata-se do seguinte: Pretende vir caçar aqui a princesa. Uma dama gentil vem no cortejo. Quando bem docemente as bocas falam, pronunciam-lhe o nome: Rosalina. Informa-te qual seja, e nas mãos brancas entrega-lhe o segredo aqui selado. Vai depressa. Eis a tua recompensa. (Dá-lhe um xelim.)

COSTARD — Recompensa. Ó doce recompensa! Melhor do que remuneração; melhor onze pences e meio. Ó recompensa adorada! Farei, senhor, como se fosse impresso. Recompensa! Remuneração! (Sai.)

BIRON — Ora vede! Será possível? Eu, apaixonado! Eu, que fui sempre o açoite de Cupido, verdadeiro carrasco dos suspiros amorosos, o crítico, ou melhor: guarda-noturna sempre de vigília, severo preceptor desse menino, mortal cheio de empáfia como poucos! Esse chorão de cueiros, rabugento, menino-velho, míope, anão-gigante, Dom Cupido, regente dos sonetos amorosos, senhor de mãos vazias, ungido soberano dos suspiros e gemidos, de todos os madraços e descontentes, príncipe temido das saias, rei de todas as braguilhas, único imperador, grande caudilho dos meirinhos vagantes. Oh, meu pobre coração! Ficar eu como seu cabo! Terei de usar-lhe as cores como simples saltimbanco? Eu, a amar? Fazendo a corte? Procurando uma esposa? E logo qual? Verdadeiro relógio da Alemanha, que em conserto está sempre e desmanchado e que horas não dá certas, salvo quando vigiado, para andar sempre no passo. E o que é pior: tornar-me, assim, perjuro! E mais, ainda: amar a pior das três! aquela bicha branca, de sobrolhos de veludo, que, em vez de olhos, ostenta duas bolas de piche, sim, que, certo, há de realizar o feito, embora tenha como eunuco o próprio Argo de vigia. A suspirar por ela! Estar de guarda! Rezar por ela! Vamos! o castigo que Cupido me impõe, por eu ter feito pouco caso de seu onipotente pequenino poder. Mas, que tem isso? Hei de amar, escrever, fazer a corte, gemer e suspirar. Alguém teria de escolher minha dama; serei eu; para Joana há de haver algum sandeu. (Sai.)


 

ATO IV
Cena I

 

Entram a princesa, Rosalina, Maria, Catarina, Boyet, lordes, séquito e um guarda-caça.

 

PRINCESA — Era o rei que por modo tão violento esporeava o ginete, para àquela culminância forçá-lo?

BOYET — Não estou certo; mas quero crer que não.

PRINCESA — Fosse quem fosse, revelou-se de espírito altanado. É assim, senhores: vamos obter hoje nosso despacho. Voltaremos sábado para a França. Meu caro guarda-caça, onde fica a tal mata, em que devemos permanecer, no jeito de assassinos?

GUARDA-CAÇA — Aqui perto, beirando aquela corte. O ponto é bom; fareis mui bela caça.

PRINCESA — É por me veres bela na caçada, que ora me falas de melhor caçada.

GUARDA-CAÇA — Desculpai-me; não foi essa a intenção.

PRINCESA — Como! Desfazes tudo com esse não? Adeus, vaidade! É que eu sou feia, então.

GUARDA-CAÇA — Sim, senhora; belíssima.

PRINCESA — Não mintas; não se encobre a feiúra só com tintas. Toma, meu bom espelho. (Dá-lhe dinheiro.) És verdadeiro; para palavras feias, bom dinheiro.

GUARDA-CAÇA — Tudo quanto há em vós é belo e emérito.

PRINCESA — Ora vede! Salva-se ora a beleza pelo mérito. É digna deste tempo essa heresia. A mão que dá, formosa é como o dia. Vamos, o arco! A brandura vai dar tiros; ação boa é causar dor e suspiros. Desta arte a fama padecer não há de. Se o tiro errar, dirão que foi bondade; se acertar e matar, cala a censura: apenas quis mostrar-me, não sou dura. Muitas vezes, assim é o que acontece: do delito é que a glória nasce e cresce, quando, para alcançarmos fama e estima, nos mostramos infiéis à voz de cima. Assim sou eu: louvores, tão-somente, procuro, quando a morte dou a inocente.

BOYET — E acaso não será também por fama que muita esposa ruim, que o mundo chama de megera, os maridos apoquenta?

PRINCESA — Por fama, tão-somente; porque aumenta de muito seu prestígio, e com razão, sabemos que ela o esposo traz à mão.

(Entra Costard.)

BOYET — Aí vem um membro ilustre da república.

COSTARD — Deus dê boa tarde a todos vós. Por obséquio, qual é a dama capital daqui?

PRINCESA — Poderás ficar sabendo isso, amigo, examinando as que estiverem decapitadas.

COSTARD — Qual é a maior senhora, a mais alta?

PRINCESA — A mais grossa e mais comprida.

COSTARD — Mais grossa e mais comprida? É certo. Se a cintura, tivésseis ora igual à minha luz tão rara o cinto de qualquer daqui vos abarcara. Não sois vós a princesa? A maior sois, decerto.

PRINCESA — Que desejais, amigo? Que desejais?

COSTARD — Mensagem de Biron para uma Rosalina.

PRINCESA — Deixa-me a carta ver; já sei que é papafina. Aguarda, portador. Boyet, sabeis cortar; trincha-nos o capão.

BOYET — Fá-lo-ei sem vacilar. A dona não está aqui; houve erro de endereço: é para Jaqueneta.

PRINCESA — Embora; dai começo, quebrando o lacre logo; ouvir-vos apeteço.

BOYET — “Pelo céu! que és bela, é infalível; verdadeiro, que és linda; e a verdade verdadeira, que és encantadora. Ó tu, mais bela do que bela, mais linda do que linda, mais verdadeira do que a própria verdade, apiada-te do teu heróico vassalo! O magnânimo e ilustríssimo rei Cofétua lançou as vistas sobre a perniciosa e indubitável mendiga Zenelofon, o mesmo que, por direito, poderia ter pronunciado a frase: Veni, vidi, vici, que significa, anatomizada em vulgar — ó baixo e obscuro vulgar! — videlicet: chegou, viu e venceu. Chegou, um; viu, dois; venceu, três. Quem chegou? O rei. Para que chegou? Para ver. Para que viu? Para vencer. Para quem veio ele? Para a mendiga. A quem viu ele? A mendiga. Quem venceu ele? A mendiga. A conclusão é a vitória. De que lado? Do lado do rei. A presa se enriqueceu. De que lado? Do lado da cativa. A catástrofe é um casamento. De que lado? Do rei? Não; de ambos os lados em um, ou de um lado em dois. Eu sou o rei, como o exige a metáfora; tu, a mendiga, que assim dá testemunho a tua humildade. Mandarei em teu amor? Posso fazê-lo. Forçarei o teu amor? Poderia, se o quisesse. Solicitarei o teu amor? Assim o desejo. Que terás em troca desses trapos? Vestes. E em vez da tua pouquidade? Títulos. E em lugar da tua pessoa? A minha. Desse modo, aguardando resposta, profano os lábios em teus pés, os olhos em tua imagem e o coração em toda a tua pessoa. O teu, no mais entranhado desejo de dedicação Dom Adriano de Armado. Eis o leão de Neméia, que aterrora com seu rugido a mísera ovelhinha; cai-lhe submissa aos pés, sem mais demora, que ele a ti talvez dobre a altiva espinha. Mas se renuis, coitada, que te espera? Ser presa e pasto, apenas, dessa fera.”

PRINCESA — Qual foi o cata-vento autor dessa missiva? Já vistes uma fala assim, pomposa e altiva?

BOYET — Conheço o estilo duro; a menos que me engane.

PRINCESA — Decerto o conheceis; é de pontal imane.

BOYET — Armado é um espanhol que faz colheita opima junto ao rei de Navarra e os sócios que ele anima, um monarco esquisito.

PRINCESA — Amigo, sem pequice, revela o autor da carta.

COSTARD — É o meu senhor, já o disse.

PRINCESA — A quem se destinava?

COSTARD — A certa senhorita.

PRINCESA — Que senhorita? E o dono?

COSTARD — Do meu senhor Biron a uma senhora fina de França, que ele diz chamar-se Rosalina.

PRINCESA — Trocaste a carta, então. Vamos, senhores! Fica com esta, minha bela; a tua está na bica.

(Saem a princesa e séquito.)

BOYET — Que caça ele visou?

ROSALINA — Quereis resposta na hora?

BOYET — Sim, beleza sem par.

ROSALINA — A que o arco enfeita agora. Bem respondido.

BOYET — Cornos caça a princesa; aposto cem, contudo, que com teu casamento enseja-se um cornudo. Melhor resposta, a minha.

ROSALINA — Eu sou, pois, caçadora.

BOYET — E a quem quereis pegar?

ROSALINA — Se o chifre é tudo, vós; que vejo um belo par. Melhor resposta, ainda!

MARIA — Boyet, se a provocais, a fronte protegei.

BOYET — Mais baixo hei de atingi-la; o tiro foi de lei?

ROSALINA — Queres que eu jogue sobre ti um dito antigo, que já era homem feito, no tempo em que o Rei Pepino de França ainda era criança, com relação a acertar no alvo?

BOYET — Só assim eu responderei com uma velha rima, que já era mulher feita, quando a rainha Genebra da Bretanha era pequena, com relação a acertar no alvo.

ROSALINA — Bater não podes, bater, bater, meu bobo alegre, no alvo distante.

BOYET — Caso eu não possa bater na mira, há de alcançá-la qualquer tunante.

(Saem Rosalina e Catarina.)

COSTARD — Que grandes brincalhões! Como eu me divertia!

MARIA — Bateram bem na marca; ambos têm pontaria.

BOYET — Marquemos essa marca; a marca não destoa; mas falta-lhe um ponteiro; assim ficará boa.

MARIA — Falhou-vos longe o tiro; estais fixa de mão.

COSTARD — Urge atirar de perto; assim, é esforço vão.

BOYET — Estou fora de mão. Então me ensinai a arte.

COSTARD — Cuidado! que o ponteiro, assim, racha e se parte.

MARIA — Os lábios vos macula essa linguagem suja.

COSTARD — Jogai a bola; nisto, ela vos sobrepuja.

BOYET — Receio colisão. Adeus, bela coruja.

(Saem Boyet e Maria.)

COSTARD — Por minha alma, um simplório! Um pateta chapado! Como o trouxemos, eu e a dama, num cortado! Que espírito vulgar, que brincadeira fina, tão natural, obscena, e tudo sem verrina! De um lado, Armado, o herói, conquistador pachola, que da dama a que segue empunha a ventarola. E como a mão lhe beija! E as juras que amontoa! E o pajem, do outro lado, o espírito em pessoa! Jamais vi lêndeas tais, caterva assim tão boa. (Ouvem-se tiros.) Olá! Olá! (Sai correndo.)


 

Cena II

 

O mesmo. Entram Holofernes, Sir Nataniel e Dull.

 

NATANIEL — Exercício muito digno, em verdade, e praticado com o testemunho de uma boa consciência.

HOLOFERNES — O cervo, como o sabeis, estava sanguis, em sangue; maduro como uma maçã d'água, que pende, tal qual uma jóia, da orelha do coelo, do céu, do firmamento, para cair, de súbito, como uma maçã brava, na face da terra, o solo, o continente.

NATANIEL — Realmente, mestre Holofernes, variais os epítetos com muita graça, como o fazem os eruditos; mas posso asseverar-vos, senhor, que se tratava de um cabrito legítimo.

HOLOFERNES — Sir Nataniel, haud credo.

DULL — Não era haud credo, não senhor; era um cervato.

HOLOFERNES — Oh intimação bárbara! espécie de insinuação, por assim dizer, in via, de passagem, no jeito de uma explicação, para facere, por assim dizer, uma replicação, ou melhor, ostentare, mostrar, como quem diria, sua inclinação, segundo uma maneira sem trato, sem polimento, sem cultivo, sem educação, sem cuidados, ou melhor, sem letras, ou melhoríssimo, sem ratificação, que o leva a inserir o meu haud credo no lugar de um cervo!

DULL — O que eu disse foi que não era um haud credo, mas um cervato.

HOLOFERNES — Simplicidade duas vezes cozida, bis coctus! Quão deformado te mostras, ó monstro de estulta ignorância!

NATANIEL — Nada sabe ele, senhor da beleza da douta elegância. Por assim dizer, ele nunca comeu papel, nem bebeu tinta; não tem o intelecto saturado, não passando de um animal, sensível apenas nas partes mais grosseiras, uma das plantas estéreis, que causa nos são de ledice, por nos sentirmos fecundos e estremes de tanta alarvice. Fora tão fora de jeito mostrar-me indiscreto ou ridículo, como querer que um pascácio consiga brilhar no currículo. Mas, omne bene, é o que digo seguindo o saber de um esperto: muitos que o vento arrenegam, o tempo suportam de perto.

DULL — Sois eruditos; dizei-me quem era da idade de um mês, quando Caim era criança, e inda agora isso conta, talvez.

HOLOFERNES — Dictina, meu caro Dull; Dictina, meu caro Dull.

DULL — Que é Dictina?

NATANIEL — É a designação de Febe, de Luna, a Lua.

HOLOFERNES — Não tinha um mês ainda a lua no tempo em que Adão não nascera; cinco semanas não tinha quando ele cem anos vivera. A alusão nada perde com a troca.

DULL — Com efeito, a colusão é a mesma.

HOLOFERNES — Deus te reforce a capacidade; o que eu disse foi que a alusão nada perde com a troca.

DULL — E eu disse que a confusão é a mesma, porque a lua nunca tem mais de um mês, e torno a dizer que a princesa matou um cervato.

HOLOFERNES — Sir Nataniel, quereis ouvir um epitáfio extemporâneo sobre a morte do cervo? Para condescender com a ignorância, dei o nome de cervato ao cervo que a princesa matou.

NATANIEL — Perge, bom mestre Holofernes; com isso elevais toda a escurra.

HOLOFERNES — Jogo farei com as palavras, que o espírito em mim se empanturra: Célere, a seta da grácil princesa o cervato atravessa. Chamam-lhe gamo, por causa da gama das dores que sente. Ponde-lhe um L na fronte, e um galheiro a correr se arremessa. Gamo, ou cervato, ou galheiro, a alegria de todos é ingente. Com um L apenas fazemos cinqüenta veados galheiros; com outro L teremos um cento de cervos ligeiros.

NATANIEL — Que talento, para brincar com os pés dos versos!

DULL (à parte) — Se em vez de pés, o talento tivesse patas, dar-lhe-ia mas era uma formidável pateada.

HOLOFERNES — É um dom que nasceu comigo, muito simples, muito simples, um espírito extravagante e aloucado, cheio de formas, de figuras, de imagens, de objetos, de idéias, de apreensões, de moções, de revoluções, engendrados no ventrículo da memória, nutridos na matriz da pia-máter e dados à luz na maturidade da ocasião. Esse dom é de grande vantagem nas pessoas em que atinge o acume, motivo por que rendo graças de possuí-lo.

NATANIEL — Senhor, eu rendo louvores a Deus por vossa causa, como o fazem, também, os meus paroquianos, por estarem sendo os seus filhos bem educados por vós e aproveitarem bastante suas filhas sob vossa direção. Sois um digno membro da comunidade.

HOLOFERNES — Mehercle! Se os seus filhos forem inteligentes, não lhes faltará instrução; se suas filhas puderem conceber, não deixarei de aproveitá-las. Mas, vir sapit, qui pauca loquitur. Uma alma feminina vos saúda.

(Entram Jaqueneta e Costard.)

JAQUENETA — Deus vos conceda bom dia, mestre cura.

HOLOFERNES — Mestre cura, quase curado, como quem diz, furado. Qual será de nós dois o que vai ser furado?

COSTARD — Ora, senhor mestre-escola, o que mais se parecer com uma pipa.

HOLOFERNES — Furar uma pipa! Ótima fagulha de inteligência num pedaço de terra, bastante fogo para um calhau, pérola para porcos. Admirável, sem dúvida; muito bem!

JAQUENETA — Senhor cura, tende a bondade de ler-me esta carta; foi-me entregue por Costard, da parte de Dom Armado. Lede-ma, por obséquio.

HOLOFERNES — “Fauste, precor gelida quando pecus omne sub umbra Ruminat...” e assim por diante. Ó meu bom velho Mantuano! Posso dizer de ti o que de Veneza disse o viajante: Venetia, Venetia, Chi non te vede, non te pretia. Velho Mantuano, velho Mantuano! Quem não te compreende não te ama. Ut, ré, sol, lá, mi, fá. Se o permitis, senhor, que contém ela? Ou melhor, como diz Horácio no seu... Com a breca! Serão versos?

NATANIEL — Sim, senhor, e muito eruditos.

HOLOFERNES — Fazei-me ouvir uma estrofe, uma estância, um verso; lege, domine.

NATANIEL () — Se o amor me faz perjuro, amar ser-me-á possível? Ah! só pode haver fé no culto da beleza! Infiel a mim, ser-te-ei no amor indefectível; o que me pesa no ombro, em ti só tem leveza. Dos olhos teus o estudo o livro faz divino, sede das perfeições que na arte em vão buscamos; possuir-te é alcançar logo o fim de todo o ensino. A língua que te louva é pródiga em recamos; bem bronco é quem te vê sem revelar espanto. O que mais me enaltece é ter-te alfim achado. Na voz tens o trovão, no olhar o raio santo; mas, calma, és a harmonia, a luz, do olhar agrado. Por seres divinal, perdoa-me este ousio, que todo o meu louvor ainda é terreno e frio.

HOLOFERNES — Não encontrais as apóstrofes; por isso, errais os acentos. Deixai-me dar uma vista d'olhos pela cançoneta. Só estão certas as quantidades; mas no que respeita à elegância, à fluência, de par com a cadência de ouro da poesia, caret. Ovídio Naso, sim, que era o homem para isso. E por que Naso, pergunto, se não por saber ele sentir as flores odoríferas da fantasia e os saltos da invenção? Imitari, só, não é nada; o cão imita o amo; o macaco, seu guardião; o cavalo ornado de fitas, o cavaleiro. Mas, virgem damosela, isto vos foi dirigido?

JAQUENETA — Sim, senhor; foi mandado por um tal monsieur Biron, fidalgo da rainha estrangeira.

HOLOFERNES — Examinemos o sobrescrito: “Para as níveas mãos da belíssima senhorita Rosalina”. Quero ler, também, o intelecto da carta, para ver a denominação da parte de quem escreve para a pessoa a que se destina: “Devotado a qualquer serviço de Vossa Senhoria, Biron”. Senhor Nataniel, este Biron é um dos companheiros de juramento do rei; vemo-lo aqui a confeccionar uma carta para uma das damas da companhia da rainha estrangeira, a qual se extraviou por acidente ou por via de progressão. Corre, minha querida; entrega este papel nas reais mãos de Sua Majestade; pode ser de relevante importância. Não percas tempo em cumprimentos; dispenso-te dessa obrigação. Adeus.

JAQUENETA — Vem comigo, meu bom Costard. Deus vos proteja, senhor.

COSTARD — Irei contigo, menina.

(Saem Costard e Jaqueneta.)

NATANIEL — Senhor, procedestes religiosamente; no temor de Deus. Como disse certo padre...

HOLOFERNES — Não me faleis de padre, senhor; tenho horror a enfeites enfeitados. Mas, voltando aos versos, não vos agradaram, Sir Nataniel?

NATANIEL — Quanto à composição, maravilhosos!

HOLOFERNES — Vou jantar em casa do pai de um meu discípulo. Se antes do repasto for de vosso agrado gratificar a mesa com um benedicite, eu poderia, valendo-me do privilégio de que desfruto junto dos pais do supracitado filho ou discípulo, encarregar-me de dar-vos um ben-venuto. Então, pretendo demonstrar-vos que esses versos nem são eruditos, nem sabem a poesia, a espírito e invenção. Faço muito empenho de vossa companhia.

NATANIEL — Agradeço-vos; porque a companhia, como diz a Escritura, é a felicidade da vida.

HOLOFERNES — Sem dúvida alguma; trata-se de uma conclusão irrefutável da Escritura. (A Dull) Senhor, convido-vos, também. Na da de recusas. Pauca verba. Vamos! Os fidalgos estão caçando; tratemos, também, de divertir-nos.

(Saem.)


 

Cena III

 

O mesmo. Entra Biron com um papel.

 

BIRON — O rei está caçando cervo; eu me açulo a mim próprio; eles põem visgo na armadilha; eu me deixo prender no visgo que suja a gente. Sujar! que termo horroroso! E agora, como dizia o louco: acomoda-te, tristeza! Assim digo eu também, que não sou menos louco. Boa conclusão, espírito! Pelo Senhor! este amor é tão furioso quanto Ajaz; mata carneiros, como me mata; logo, não passo de um carneiro. Mais uma boa conclusão. Não quero amar; se o fizer, que me enforquem. Palavra de honra, não o quero. Ah! mas aqueles olhos. Por esta luz, se não fossem os olhos, não a amaria. Sim, é só por causa daqueles dois olhos. O certo é que não faço outra coisa no mundo, se não mentir pelos gorgomilhos. Pelo céu, estou amando! e com isso aprendi a rimar e a ser melancólico; aqui está parte das rimas, e aqui a melancolia. Bem; a estas horas ela já está de posse de um dos meus sonetos; o bobo o levou, o louco o escreveu, a senhorita ficou com ele. Caro bobo; mais caro louco, ainda; caríssima senhorita! Pelo mundo! Daria tanto apreço a isso como a um alfinete, se soubesse que os meus companheiros se encontram no mesmo caso. Aí vem vindo um deles, com um papel na mão. Deus lhe conceda a graça de suspirar. (Sobe a uma árvore.)

(Entra o rei, com um papel.)

REI — Ai de mim!

BIRON (à parte) — Ferido, pelo céu! Avante, querido Cupido! Derrubaste-o com uma pelotada no peito esquerdo. Como! Segredinhos?

REI — O sol de ouro não dá tão doces beijos pela manhã na rórida bonina, como no rosto meu os benfazejos raios do teu olhar, luz peregrina. Nem a prateada lua brilha tanto no seio transparente do mar fundo, como teu rosto esplende no meu pranto. Cada lágrima é um sol para outro mundo; cada gota te serve de carruagem, onde, a triunfar, de minha dor, exultas. Contempla esta inefável homenagem, que quanto mais eu peno, mais te avultas. Mas não te mires muito, é o que aconselho, que de tanto chorar parte-se o espelho. Ó rainha imortal! Teu elogio transcende à voz e ao pensamento frio. Como ela há de ficar, sabendo disso? Deixo o papel aqui. Folhas bondosas, amparai a loucura. Mas, que vejo? (Esconde-se.) Longaville também? E a ler! Ouçamo-lo!

(Entra Longaville, com um papel.)

BIRON (à parte) — Mais um louco nos chega, igual aos outros.

LONGAVILLE — Ai de mim! Sou perjuro!

BIRON (à parte) — Sim, carregas, como os perjuros, um letreiro às costas.

REI (à parte) — Armado! Ó companheiro de vergonha!

BIRON (à parte) — Num ébrio o outro não vê sorte medonha.

LONGAVILLE — Terei sido o primeiro a ser perjuro?

BIRON (à parte) — Consola-te; mais dois far-te-ão bom muro. Vens completar a trempe; és o caçula da forca, onde a tolice se estrangula.

LONGAVILLE — Receio que estes versos sejam frios. Ó Maria, meu bem! Que de arrepios! Prefiro a prosa; a rima já não brilha.

BIRON (à parte) — Rima serve a Cupido de braguilha; não lhe estragues as calças.

LONGAVILLE — Pois que seja! A retórica, apenas, dos teus olhos, ante a qual todo o mundo se submete, me cria ao coração tantos escolhos. Por ti eu perjurara vezes sete. Jurei não ver mulher. Oh triste sina! Mas és deusa; não falto ao juramento. Terrestre era a promessa; tu, divina; tua graça me salva num momento. O juramento é um sopro, e este é vapor; por isso, ó sol da minha terra! vem absorvê-lo, alumiando a minha dor, que, perjurando, eu possa acabar bem. Que louco não mostrara muito siso, se perjurasse em troca do paraíso?

BIRON (à parte) — Endeusar tanto a carne! Oh idolatria! Pensar que é deusa uma boneca fria! Deus nos mostre de novo o bom caminho.

LONGAVILLE — Como enviar-lhe isto? Oh céus! não estou sozinho. (Esconde-se.)

BIRON (à parte) — Brincando de esconder! Todos de um ninho. Eu, como um deus que se compraz na altura, devasso destes dois toda a loucura. (Entra Dumaine com um papel.) Mais sacos para o moinho! Oh céus, que vejo! Dumaine! Agora estamos a varejo.

DUMAINE — Ó Quetinha divina!

BIRON (à parte) — Ó bobinha profana!

DUMAINE — Pelo céu! Maravilha dos mortais!

BIRON (à parte) — Pela terra! Corpórea, nada mais!

DUMAINE — O ébano seus cabelos deixam feio.

BIRON (à parte) — Um corvo da cor do ébano. Que anseio!

DUMAINE — Esguia como um cedro.

BIRON (à parte) — A espádua, acaso, não está de esperança sem ter prazo?

DUMAINE — Tão bela quanto o dia.

BIRON (à parte) — Sim, conforme; quando não brilha o sol um tempo enorme.

DUMAINE — Ah! Se meus votos fossem realizados!

LONGAVILLE (à parte) — E os meus!

REI (à parte) — E os meus, também!

BIRON (à parte) — Fosse dos fados que alcançassem juízo os namorados!

DUMAINE — Como esquecê-la? É febre que me agita todo o sangue; não pode ser proscrita.

BIRON (à parte) — Febre no sangue? Então, uma sangria; se na taça correr, logo ele esfria.

DUMAINE — Vou ler mais uma vez a minha endecha.

BIRON (à parte) — E eu vou ver quão maluco o amor te deixa.

DUMAINE — Certo dia — até desmaio! — o Amor, que sempre está em maio, na brisa viu uma rosa que se embalava donosa. Invisível, beija-a o vento, recobrando e dando alento. Com ciúmes, o namorado se queixa do triste fado: Beija-te a brisa vaidosa — Ó brisa, é minha essa rosa! — mas jurei jamais deixar-te de teus espinhos à parte. A mocidade não jura privar-se, assim, da ventura. Não me desprezes sem pausa, que eu perjurei por tua causa. Por ti Júpiter jurara que Juno é uma negra ignara, do Olimpo o trono abdicando para em ti ter sempre o mando. Vou mandar-lhe este escrito e algo mais claro que me pinte o sofrer profundo e raro. Se o rei, Biron e Longaville amantes também fossem! O mal de quantos antes eram sãos, nos livram dos apodos. Deixa de haver culpados onde erram todos.

LONGAVILLE (avançando) — Dumaine, teu amor não tem piedade, pois deseja viver em sociedade. Empalidece, sim; eu coraria, se me visse alvo, assim, da zombaria.

REI (avançando) — Corai, senhor, então, que vossa falta é igual à dele; em nada vos exalta. Longaville jamais fez um soneto em louvor de Maria... É bem faceto! Nem nunca o alvoroçado coração procurou acalmar assim com a mão. De meu esconderijo a ambos eu via, enrubescendo ante essa hipocrisia. Que de rimas absurdas, que de gestos, suspiros lá do fundo, o peito em estos! Um clamava por Jove, o outro gritava; os olhos são cristal, a coma é fiava. (A Longaville.) Queríeis perjurar pelo paraíso. (A Dumaine.) Para vós até Jove perde o juízo. Que vai dizer Biron, quando notícia tiver do acontecido! Que delícia para seu fino espírito! Como há de desprezar-nos, triunfar, rir com maldade! Por quanto há neste mundo, não quisera ser alvo de sua crítica severa.

BIRON (descendo da árvore) — Já é tempo de baixarmos da atmosfera, para dar corretivo à hipocrisia. Perdão, meu soberano! Como eu ria, vendo-te verbear estes coitados! Não recebeste sorte igual dos Fados? Não fazem vossos olhos a proeza de servirem de coche a uma princesa; não sois perjuro — ó críticos perversos! — somente os saltimbancos fazem versos. Não vos envergonhais — a todos falo — de me ensejardes ora este regalo? No olho do outro cada um só vê o mosquito; eu, vossas traves vejo — ó céu bendito! — Que cena eu contemplei, que patuscada! Dor, gemidos, suspiros por nonada. Quanta paciência, Ó céus! me foi precisa para ver um monarca de camisa; Hércules a brincar com uma bexiga, o sábio Salomão dançando giga; Nestor, junto com crianças, joga bola; Timão rindo a bom rir, como um pachola! Onde te dói, Dumaine? Longaville, de onde queres que a dor eu te destile? E vós, senhor! Sofreis todos no peito? Caldo, olá, para três!

REI — É duro o pleito. Traiu-nos teu espírito mordaz?

BIRON — Um só traído há aqui, se vos apraz; eu, que sou honesto, e nunca um juramento quebrei, como palavra solta ao vento. Sou eu o traído, sim, por ser decente; de homens mortais não deve fiar-se a gente. Quando é que me vereis compondo rimas, ou gemer por Joaquina, ou as mais opimas horas passar no espelho? Quando, acaso, já me vistes subir até o Parnaso, para decantar pés, braços, cabeça, mãos, o porte elegante, a coma espessa, o busto, as sobrancelhas...

REI — Mais de espaço! Quem corre desse jeito, acaba lasso. És malfeitor ou gente de confiança?

BIRON — Quem se esquiva do amor jamais se cansa.

(Entram Jaqueneta e Costard.)

JAQUENETA — Deus abençoe o rei!

REI — Que presente me trazes?

COSTARD — Alta traição, senhor.

REI — Vê lá como é que a fazes.

COSTARD — Eu, não! Ninguém aqui!

REI — E então? Mais essa, agora! Se não temos traidor, retira-te em boa hora.

JAQUENETA — Dignai-vos, meu senhor, em ler esta missiva; é traição, diz o cura, ou coisa subversiva.

REI — Lede a carta, Biron. (Entrega-lha.) De quem a recebeste?

JAQUENETA — De Costard.

REI — De quem a recebeste?

COSTARD — De tom Atramádio; tom Adramádio.

(Biron rasga a carta.)

REI — Que foi que aconteceu? Que é que vos desagrada?

BIRON — Qual traição, coisa alguma! O assunto é de nonada.

LONGAVILLE — Mas irritar-se assim por coisa tão de nada?

DUMAINE (juntando os pedaços da carta) — A letra é de Biron; seu nome está no fim.

BIRON (à Costard) — Idiota de uma figa, humilhares-me assim! Não prossigais, milorde; eu sou culpado inteiro.

REI — Culpado, de que jeito?

BIRON — Os bobos eram três; faltava um companheiro. Aquele e vós, milorde, aquele outro e eu, também, somos ladrões do amor; a culpa é de ninguém. Mandai a estes embora; o mais, direi depois.

DUMAINE — Ora o número é par.

BIRON — É certo: dois a dois.

REI — Ide-vos logo.

COSTARD — A gente honesta se retira; com traidores viver, é cultivar mentira.

(Saem Costard e Jaqueneta.)

BIRON — Abracemo-nos todos, meus amigos, por nos mostrarmos fiéis ao nosso sangue; luzeiros há no céu; no mar, perigos; a mocidade nunca será exangue. Impossível nos é fugir dos Fados, perjuros vamos ser e namorados.

REI — Os versos eram teus? Cumpriu-se a sina?

BIRON — Se eram meus? Ó divina Rosalina! Quem te vê, que faça como o bronco selvagem, quando o sol nasce no oriente, que, humilde, a fronte baixa, encurva o tronco, e o chão beija, mostrando-se obediente? Qual é a águia que se fia na acuidade da visão e se atreve a contemplá-la, sem que se cegue em sua alta majestade?

REI — Que zelo, que furor assim te abala? Como a lua, graciosa é a minha amada; um satélite é a tua, sem luz própria.

BIRON — Então não sou Biron, não vejo nada; a luz é trevas, a abundância, inópia. Como em feira animada, as belas cores dão relevo aos seus traços de candura, formando um só conjunto de primores em que o Desejo encontra o que procura. Emprestai-me os recursos da oratória... Sai, Retórica estulta! Rosalina te dispensa. Isso fora arte irrisória, só digna de letreiros de vitrina. Um centenário asceta, encarquilhado, cinqüenta anos ganhara ao contemplá-la, que a beleza o teria remoçado, restituindo-lhe, a um tempo, a força e a fala. É o sol que empresta ao mundo luz fagueira.

REI — Da cor do ébano é o rosto de tua amada.

BIRON — O ébano é assim tão belo? Oh! que madeira! Quem me dera uma esposa em ti lavrada! Quero jurar — trazei-me o livro santo — que a beleza é feiúra, se ainda ignora como olhar com metade, só, do encanto daquela escuridão, que é uma outra aurora.

REI — Oh paradoxo! Negra é a cor do inferno, das prisões e da noite tempestuosa. A beleza há de ter fulgor eterno.

BIRON — Pode o demo assumir forma radiosa. Se a fronte dela na cor preta esplende, é de luto, por ver como aos amantes os artifícios prendem facilmente. É nela as trevas o que a luz era antes; a moda, agora, vai mudar de aspeito: as cores naturais parecem tinta; o vermelho, corrido de despeito, vai tingir-se em cor negra bem retinta.

DUMAINE — Quão belo é um limpador de chaminé!

LONGAVILLE — E os mineiros, agora, que brancura!

REI — Como é formosa a gente de Guiné!

DUMAINE — Dispensa a noite archotes; é luz pura.

BIRON — Vossas amadas nunca apanham chuva por medo de perder a bela cor.

REI — Pode ser; mas a tua, aposto a luva, se a água busca, se esquiva do calor.

BIRON — Até ao dia de Juízo hei de exaltá-la.

REI — Então, ela há de ser bruxa medonha.

DUMAINE — Como ele com a feiúra se regala!

LONGAVILLE (mostrando o sapato) — Meu sapato é sua linda carantonha.

BIRON — Se a rua com teus olhos se calçara, ainda fora muito áspera para ela.

DUMAINE — Ó louco! A rua, assim, a devassara, sem que para isso usasse de cautela.

REI — Estamos, afinal, apaixonados?

BIRON — Nada mais certo; e, assim, perjuros todos.

REI — Silêncio, então! Biron, prova aos culpados que amar é estar acima dos apodos.

DUMAINE — Para o mal nos arranja um lenitivo.

LONGAVILLE — Alguma autoridade, ou sutileza com que o diabo passemos pelo crivo.

DUMAINE — Remédio de perjuros!

BIRON — Bela empresa! Guerrilheiros do amor, toda a atenção! Refleti na tarefa que, primeiro, jurastes realizar: estudar muito, jejuar, não ver mulher... traição patente contra o domínio real da mocidade. Podeis jejuar? Dizei. Sois ainda jovens; engendra muitos males a abstinência. Quando jurastes estudar, senhores, abjurastes do livro verdadeiro. Podeis sonhar sem pausa, prestar sempre muita atenção e a vista manter fixa? Milorde, e vós, e vós, como é possível investigar a fundo a alta excelência dos estudos, privados sempre e sempre da beleza de um rosto de mulher? De seus olhos eu tiro esta doutrina: Os livros eles são, os fundamentos, a Academia de onde nasce o fogo vivo de Prometeu. Trabalhar muito corrompe nas artérias os espíritos sutis, tal como andar sem ter parada cansa o vigor nervoso dos viajantes. Ora, quando jurastes não ver rosto de mulher, abjurastes simplesmente do uso dos olhos, sim, do estudo, objeto de vosso juramento. Existe, acaso, no mundo algum autor que, como os olhos da mulher nos ensine o que é a beleza? O saber é tão-só o complemento de nós próprios, que se acha onde estivermos. Quando nos belos olhos de uma jovem nos miramos, não vemos, por acaso, também nosso saber? Fizemos voto, milordes, de estudar, mas repudiamos com o juramento os verdadeiros livros. Milorde, e vós, e vós, quando acharíeis — dizei-me — com o pesado raciocínio, a inspiração com que vos opulentam os olhos das cultoras da beleza? As outras artes todas se confinam no cérebro; por isso, os seus adeptos estéreis mal alcançam uma colheita mesquinha, após trabalho fatigante. Mas o amor, aprendido de começo nuns olhos de mulher, não se empareda na cabeça; senão, com a agilidade de todos os espíritos, se espalha com a rapidez do pensamento em nossas faculdades, a todas redobrando de potência e deixando-as muito acima de seus próprios ofícios e funções. Visão mais nobre aos olhos ele empresta; o amante vê mais longe do que as águias; o amante escuta os sons que o próprio ouvido do ladrão cauteloso não percebe; possui tato mais fino e delicado do que os cornos sensíveis das serpentes de concha; o paladar do amor demonstra que Baco é um grosseirão no que aprecia. Não é o amor, em ousadia, um Hércules, nas árvores trepando das Hespérides? Sutil como uma esfinge? Doce e músico como a lira de Apolo, com seus próprios cabelos temperada? Quando fala o amor, na voz dos deuses acalenta todo o céu com harmonia irresistível. Não devera escrever nenhum poeta, sem que primeiro a tinta temperasse nos suspiros do amor. Só então seus versos até ouvidos selvagens prenderiam e infundiriam brandos sentimentos de humildade no peito dos tiranos. Dos olhos da mulher eu deduzo isto: São eles que irradiam a fagulha viva de Prometeu; as artes todas e os livros eles são, a academia que abrange, explica e nutre o mundo inteiro. Sem eles nada pode haver perfeito. Fostes loucos, portanto, ao renunciardes estas mulheres, e o seríeis, ainda, se a jura formulada mantivésseis. Pela sabedoria, pois, que é termo que todos amam; ou, melhor: em nome do amor, que palavra que ama a todos; ou no nome dos homens, os criadores das mulheres; ou, ainda, em nome delas, por quem somos quem somos: esqueçamos o juramento, a fim de nos salvarmos; se não, nos perderemos, para sermos fiéis ao juramento. A religião nos manda ser perjuros neste caso; a própria Caridade a lei nos dita. E quem conseguiria separar da Caridade o Amor?

REI — Por São Cupido! Soldados, à batalha!

BIRON — Os estandartes para a frente, e sobre elas, cavalheiros! Derrubemo-las todas. Mas, cuidado! É preciso evitar o sol no rosto.

LONGAVILLE — Falando francamente: está assentado que faremos a corte a essas meninas que da França nos vieram?

REI — Não só isso; devemos conquistá-las. Cogitemos de algo que em suas tendas as distraia.

BIRON — Primeiro, retiremo-las do parque; depois, cada um conduza a bem-amada pela mão até casa. Pela tarde, cuidaremos de alguma diversão, conforme o tempo escasso nos permita, que festas, jogos, máscaras e flores devem cobrir a estrada dos amores.

REI — Nada de perder tempo, namorados! Avante! Não fiquemos mais parados.

BIRON — Allons! Não vem do joio o belo trigo, a Justiça usa sempre igual medida; os perjuros merecem bem castigo; com o que temos, ganhemos a partida.

(Saem.)


 

ATO V
Cena I

 

O parque do Rei de Navarra. Entram Holofernes, Sir Nataniel e Dull.

 

HOLOFERNES — Satis quod sufficit.

NATANIEL — Eu rogo a Deus por vós, senhor; vossas razões à mesa eram agudas e sentenciosas; agradáveis sem grosseria, espirituosas sem exagero, audaciosas sem impudência, eruditas sem presunção e estranhas sem heresia. Conversei num destes, quondam, dias com um dos companheiros do rei, chamado, denominado ou intitulado Dom Adriano de Armado.

HOLOFERNES — Novi hoininem tanquan te: é de humor pomposo, conversação peremptória, língua afiada, olhar ambicioso, andar majestoso e atitude vã, ridícula e trasônica. É muito caprichoso no trajar, muito embonecado, muito afetado, muito original, por assim dizer, ou, como eu lhe chamaria, peregrino.

NATANIEL (tirando o caderno de notas) — Epíteto singular e bem escolhido.

HOLOFERNES — Ele deixa mais fina a sua verbosidade do que o permitem os fios de seus argumentos. Não suporto esses fantasmas arrogantes, esses sujeitos insociáveis e meticulosos, esses torturadores da ortografia, que pronunciam, por exemplo, anhelo, em vez de anelo, adatar, em vez de adaptar, com todas as letras, a-da-ptar; que emprestam ao l sempre o som de u: auto e sau, em vez de alto e sal... Oh! É abominável! Eles diriam: abomináveu! Deixam-me louco. Anne Intelligir, domine? É de deixar lunático, frenético.

NATANIEL — Laus Deo bone intelligo.

HOLOFERNES — Bone? Bone, em vez de bene. Arranhais um pouquinho Prisciano; mas isso passa.

(Entram Armado, Moth e Costard)

NATANIEL — Videsne quis venit?

HOLOFERNES — Video et gaudeo.

ARMADO (a Moth) — Maroto!

MOTH — Quare maroto e não maroto?

ARMADO — Bom encontro, homens de paz.

HOLOFERNES — Salve, militaríssimo senhor!

MOTH (à parte, a Costard) — Eles estiveram em um banquete de línguas, de onde roubaram as migalhas.

COSTARD — Oh! Há muito que vivem do saquinho de esmolas de palavras. Admira-me que teu amo não te haja ainda comido, tomando-te por uma palavra, pois não és mais longo da cabeça aos pés do que a palavra Honorificabiitudinitatibus. És mais fácil de engolir do que uva de snap-dragon.

MOTH — Caluda! Vai começar o estrondo.

ARMADO (a Holofernes) — Não sois literato, monsieur?

MOTH — Como não? Ele ensina cartilha às crianças. O que é que diz e — b, soletrado de trás para diante, com um chifre na cabeça?

HOLOFERNES — Bé! pueritia, com o acréscimo do chifre.

MOTH — Bé! carneiro tolo de chifres. Já vistes qual seja o seu preparo.

HOLOFERNES — Quis, quis, consoante?

MOTH — A segunda e a quinta vogais, se as pronunciardes de uma vez.

HOLOFERNES — Como! A segunda e a quinta vogais? Vamos ver... A... e... u... Eu!

MOTH — Justamente; mas se for eu que as disser, não dará certo.

ARMADO — Pelas salgadas ondas do Mediterrâneo, bem tocado! Um bote espirituoso. Tic, tac, rápido e preciso! Isso me alegra o intelecto. Espírito de verdade, que brota da cabeça.

MOTH — Oferecido por um menino a um velho que tem brotos na cabeça.

HOLOFERNES — Qual é a figura? Qual é a figura?

MOTH — Cornos.

HOLOFERNES — Discutes como criança; vai brincar com o pião.

MOTH — Emprestai-me vossos chifres, para que deles eu faça um pião e rode vossa infâmia circum circa. Um pião feito do chifre de um cabrão!

COSTARD — Ainda que eu só tivesse de meu um vintém, eu to daria para comprares bolo de gengibre. Toma lá a remuneração que meu amo me deu. És, realmente, um cofrezinho de espírito, um ovozinho de discrição. Oh, se tivesse sido da vontade do céu que tu fosses ao menos meu bastardo, que pai alegre terias feíto de mim! Vai, vai! Tens espírito adunco, como se diz, até na ponta dos dedos.

HOLOFERNES — Oh, oh! Isto está me cheirando a latim falso! Adunco, em lugar de ad unguem...

ARMADO — Homem letrado, proembula apartemo-nos dos bárbaros. Não educais a mocidade na escola pública do topo da montanha?

HOLOFERNES — Mons, monte.

ARMADO — Como vos aprouver, em lugar de montanha.

HOLOFERNES — Educo, sans question.

ARMADO — Senhor, é da afeição e do prazer mais agradáveis do rei felicitar a princesa em seu pavilhão, no posterior do dia, a que a multidão ignara dá o nome de tarde.

HOLOFERNES — A expressão “o posterior do dia”, generosíssimo senhor, é congruente, conveniente e adequada à tarde; é muito bem escolhida, doce e expressiva, posso assegurar-vos, senhor, posso assegurar-vos.

ARMADO — Senhor, o rei é um nobre cavalheiro, meu familiar, posso asseverar-te, amicíssimo meu. Não falemos no que se passa interiormente entre mim e ele... Por obséquio, nada de cerimônias... Por obséquio, põe o chapéu na cabeça... além de outras coisas importantes e sérias, que ele usa, sim, de grandíssima importância. Mas deixemos isso. Só te direi que por vezes Sua Graça se compraz — por esta luz que nos alumia! — em apoiar-se neste pobre ombro e com o seu real dedo brincar assim com a minha excrescência, o meu mustachio. Mas não falemos também disso, meu coração. Pelo mundo! não estou contando histórias: aprouve a Sua Grandeza conferir honras especiais a Armado, o soldado, o viajante que já percorreu o mundo. Mas não falemos nisso. O principal — isto muito em segredo, meu coração! — é que o rei deseja que eu mimoseie a princesa, sua franguinha do peito, com algum espetáculo delicioso, pantomina, mascarada, parada grotesca ou fogo de artifício. Ora, sabendo eu que tanto Vossa Doçura como o senhor cura são entendidos nessas ocupações e, por assim dizer, explosões súbitas da hilaridade, vim procurá-los para pedir auxílio.

HOLOFERNES — Senhor, podeis representar para a princesa os nove Heróis. Sir Nataniel, trata-se de um passatempo, um espetáculo no posterior do dia, que deverá ser representado para a princesa com o nosso auxílio, por ordem do rei e deste galantíssimo, ilustríssimo e ilustrado cavalheiro. Para mim, não poderemos encontrar nada mais conveniente do que a representação dos nove Heróis.

NATANIEL — E onde encontrareis pessoas suficientemente heróicas para representá-los?

HOLOFERNES — Vós fareis o papel de Josué; eu, o do cavalheiro falante, Judas Macabeu; o pastor aqui presente, de membros compridos e junturas fortes, ficará muito bem no papel de Pompeu, o Grande; o pajem fará de Hércules...

ARMADO — Perdão, senhor, há engano; o pajem não tem quantidade nem para o polegar desse herói; não chega a ser do tamanho da extremidade de sua clava.

HOLOFERNES — Conceder-me-ão audiência? Ele representará Hércules em sua menoridade. Sua entrada e saída consistirá em estrangular uma serpente. Vou escrever uma apologia para esse fim.

MOTH — Ótima idéia! Desse modo, se algum dos assistentes sibilar, podereis gritar: “Muito bem, Hércules! Estrangulaste a serpente!” Será o melhor jeito de deixar graciosa uma ofensa, coisa que bem pouca gente será capaz de fazer.

ARMADO — E para os outros heróis?

HOLOFERNES — Só eu me incumbo de representar três.

MOTH — Oh! cavalheiro três vezes heróico!

ARMADO — Posso dizer-vos uma coisa?

HOLOFERNES — Estamos ouvindo.

ARMADO — Se isso não der certo, aprontaremos uma parada. Posso assegurar-vos; vinde comigo.

HOLOFERNES — Via, compadre Dull; não disseste uma só palavra durante todo este tempo.

DULL — Nem entendi nenhuma, senhor.

HOLOFERNES — Allons! Vamos dar-te ocupação.

DULL — Arranjarei uma, dançando; ou então tocarei tambor para que os Heróis dancem a camponesa.

HOLOFERNES — Pesadíssimo Dull, ombros à empresa!

(Saem.)


 

Cena II

 

O mesmo; diante do pavilhão da princesa. Entram a princesa, Catarina, Rosalina e Maria.

 

PRINCESA — Minhas queridas, ficaremos ricas antes de nos partirmos, se os presentes continuarem a vir como até agora. Uma dama cercada de diamantes! Vede o que o amado príncipe me enviou.

ROSALINA — E afora isso, senhora, que mais veio?

PRINCESA — Nada mais; digo mal: amor em versos, que mal cabia numa folha, escrita dos dois lados, incluindo ambas as margens, e em que ele desejara pôr o selo de Cupido.

ROSALINA — Se o deus a par crescesse com os versos, fora bem; que o pobre é criança desde cinco mil anos.

CATARINA — É um maroto de primeira, que forca merecia.

ROSALINA — Tendes-lhe inimizade por ter ele matado vossa irmã.

CATARINA — Deixou-a triste, melancólica e séria; e assim morreu. Fosse ela como vós, de gênio alegre, buliçoso e assim vivo, e não teria morrido sem deixar muitos netinhos, que é o que convosco se vai dar, pois vive vida longa quem tem coração leve.

ROSALINA — Minha ratinha, essa palavra leve que escuro significado acaso encerra?

CATARINA — Numa beleza escura, luz radiosa.

ROSALINA — Fora mister mais luz para entendê-la.

CATARINA — Mais luz vos deixaria muito acesa; que fique, pois, no escuro esse argumento.

ROSALINA — Escolheis sempre o escuro para tudo.

CATARINA — Sois leviana demais; não tendes medo da claridade.

ROSALINA — É certo; não vos peso: daí ser eu leviana.

CATARINA — Se o meu peso não tomais, é que pouco eu vos importo.

ROSALINA — Claro! Barriga cheia, pé na estrada!

PRINCESA — Boas respostas todas; um torneio de espírito elevado. Mas dizei-me, Rosalina: ganhastes um presente. Quem vos deu? De que consta?

ROSALINA — Calculava que já o soubésseis. Se eu tivesse o rosto tão belo quanto o vosso, o meu presente teria sido igual. Vêde-lo aqui. Também recebi versos; agradeço-os a Biron. Quanto às sílabas, corretos. Se o mesmo fosse dito do conteúdo, eu seria a mais bela das deidades, pois me compara a vinte mil belezas. Na carta vem pintado o meu retrato.

PRINCESA — Parece-se com a dona?

ROSALINA — Nas letras, sim; o encômio é exagerado.

PRINCESA — Tão bela como tinta; techo esplêndido!

CATARINA — Tão bela quanto o B no alto da página.

ROSALINA — Não ficarei calada, meu tesouro, maiúscula vermelha, letra de ouro... Se cheio de ós o rosto tu tiveras!

CATARINA — Que brincadeira! Ao diabo essas megeras.

PRINCESA — Por Dumaine não fostes presenteada?

CATARINA — Sim, senhora; esta luva.

PRINCESA — Sem mais nada?

CATARINA — Um par, senhora minha, e de crescença uns mil versos em que ele o amor condensa, extensa tradução da hipocrisia, compilação mal feita e algaravia.

MARIA — Com pérolas mandou-me Longaville milhões de longos versos em desfile.

PRINCESA — Já o esperava. Não fora mais louvável longo colar e carta curta e amável?

MARIA — De mãos postas ficara eu imutável.

PRINCESA — Rindo deles, mostramo-nos sensatas.

ROSALINA — São todos desmiolados. Que bravatas as de Biron! Como eram caricatas suas declarações! Se uma semana tão-somente o tivesse, qual tirana procedera, obrigando-o a suplicar-me, a fazer-me as vontades sem alarme, submisso a todo o instante, panegíricos cansativos compondo em versos líricos. Em suma, de tal modo o empregaria, que vaidoso o deixara a zombaria, transformando-o, no fim de muito ensino, num tolo que em mim visse o seu destino.

PRINCESA — Ninguém fica mais preso, quando preso, do que o sábio demente, pois o vezo que o saber das escolas acalenta traz consigo ilusória vestimenta.

ROSALINA — O sangue moço nunca faz loucura como o velho que perde a compostura.

MARIA — Nos tolos a tolice é mais discreta do que no sábio que virou pateta, porque este nada faz com maior gosto do que provar que é um bobo bem disposto.

(Entra Boyet.)

PRINCESA — Boyet nos vem trazendo alguma ameaça.

BOYET — Morro de tanto rir... Que é de Sua Graça?

PRINCESA — Que há de novo?

BOYET — Senhoras! Ó senhoras! As armas! Preparai-vos! Vencedoras precisais ser do Amor que se aproxima para vos atacar com prosa e rima. A postos vossas graças! Ao combate! Ou fugi, se é que o medo vos abate.

PRINCESA — São Dionísio, valei-nos! Dize, espião, que rastos divisaste pelo chão.

BOYET — Tencionava eu tirar a minha sesta debaixo da figueira, na floresta, quando, oh céus! perturbando-me o descanso, vi o rei e os companheiros no remanso que para isso escolhera. Pressuroso, me esgueirei para um ponto mais sombroso, tendo ouvido o que passo a revelar-vos: Pretendem, disfarçados, visitar-vos; como arauto, lhes serve um belo pajem, que vos dirá de cor uma mensagem. Ensinam-lhe os acentos e a postura: “Fala assim; não me faças má figura”, mostrando logo todos o receio de que vossa presença o deixe em meio. “Porque”, lhe diz o rei, “vais ver um anjo; mas trata de falar sem desarranjo”. Diz o pequeno: “Os anjos não têm rabo; medo eu teria, se ela fosse o diabo”. Ouvindo-o, o aplaudem muito, entre risadas, deixando-o com as bochechas mais infladas. Um, esfregava a mão e asseverava jamais ter visto fala assim tão brava. Outro, estalando os dedos, de alegria gritava: “Venceremos! Via! Via!” Um terceiro exclamou: “Que maganão!” Outro, ao querer saltar, foi de roldão. Com isso, eles se atiram pelo solo, rindo a bom rir, e tão sem protocolo, que o Ridículo a todos faz o rosto de lágrimas banhar como em desgosto.

PRINCESA — É sério? É sério? Vamos ter visitas?

BOYET — Sem dúvida; no trajo os moscovitas ou russos imitando, ora as pepitas coligem da oratória, pretendendo conquistar as eleitas num tremendo combate. Eles presumem que os presentes de há pouco vos farão menos valentes.

PRINCESA — É assim? Ponhamos máscaras; o atalho que escolheram vai dar-lhes bem trabalho. Nenhum deles terá por certo o gosto de contemplar da amada o lindo rosto. Fica com a minha jóia, Rosalina, porque o rei te proclame alta e divina; eu com a tua; Biron vai confundir-me com Rosalina e declarar-se firme. E vós, trocai as vossas; os coitados vão ficar, com a mudança, malogrados.

ROSALINA — Usemo-las de modo bem visível.

CATARINA — Que pretendeis, propondo essa barganha?

PRINCESA — Simplesmente destruir o plano deles. Só pretendem brincar com tal façanha; obriguemo-los, pois, a um perde-ganha. Desvendando cada um à bem-amada seus segredos, objeto de risada se tornarão, depois de declarar-se o engano a que os levou nosso disfarce.

ROSALINA — Se eles nos convidarem, poderemos dançar?

PRINCESA — Não; um só pé não moveremos. Não falemos, também, com muito gosto, de seus versos; viremos-lhes o rosto.

BOYET — Um desprezo tão grande, os oradores deixa mudo e abatido nos amores.

PRINCESA — Isso entra nos meus planos; não duvido de que eles vão descrer de São Cupido. Não pode haver melhor divertimento do que frustrarmos burlas com talento; com elas nós ficamos, sem por isso fazermos com o que é nosso um compromisso. Desta arte, destruída a própria ronha eles retomarão com sua vergonha.

(Soam trombetas.)

BOYET — Ei-los! Cuidado, que eles têm peçonha!

(As senhoras põem máscaras.)

(Entram mouros com música; Moth; o rei, Biron, Longaville e Dumaine em trajos russos e de máscaras.)

MOTH — “Salve as mais ricas damas do universo!”

BOYET — Tão ricas quanto o tafetá das máscaras.

MOTH — “Grupo sagrado das mais belas damas (As senhoras lhe voltam as costas.) que o... dorso já volveram para os homens!”

BIRON — “Os olhos”, idiota, “os olhos!”

MOTH — “Que os olhos já volveram para os homens! Concedei-nos...”

BOYET — Permissão de voltarmos. À vontade.

MOTH — “Concedei-nos a graça, ó Divindades! de não nos contemplardes...”

BIRON — “De ora nos contemplardes”, animal!

MOTH — “De ora nos contemplardes com esses olhos ensolarados... Esse ensolarados...”

BOYET — Não vai bem esse epíteto; aconselho-vos o inverso: olhos de gente ensolarada!

MOTH — Não me olham; isso faz que eu perca o fio.

BIRON — Essa é a tua famosa habilidade? Fora, pedaço de asno!

(Sai Moth.)

ROSALINA — Que desejam esses homens, Boyet? Interrogai-os. Se falam nossa língua, concordamos em que um nos apresente em termos simples o que de nós pretendem.

BOYET — Que desejais da parte da princesa?

BIRON — Amistosa visita e saudações.

ROSALINA — Que foi que eles disseram?

BOYET — Amistosa visita e saudações.

ROSALINA — Já lhas demos; agora se retirem.

BOYET — Manda dizer-vos que as recebe e que ora podeis voltar.

REI — Dizei-lhe que medimos muitas milhas com o fito de dançarmos sobre a relva, com ela, uma mesura.

BOYET — Está dizendo agora que mediram muitas milhas com o fito de dançarem sobre a relva, convosco, uma mesura.

ROSALINA — Não pode ser. Agora perguntai-lhes de quantas polegadas uma milha se compõe. Se em verdade eles mediram muitas milhas, será coisa bem fácil dizer-nos o tamanho de uma, ao menos.

BOYET — Se até chegardes cá medistes milhas, e muitas delas, a Princesa pede que lhe digais de quantas polegadas uma só se compõe.

BIRON — Dizei que a passos cansados as medimos.

BOYET — Está ouvindo.

ROSALINA — Quantos passos cansados, dessas milhas cansadas que medistes, cabem dentro do espaço de uma milha?

BIRON — Não contamos coisa alguma do que por vossa causa venhamos a gastar. Tão rico é o nosso dever, tão infinito, que podemos gastar sem fazer conta. Ora deixai-nos a aurora contemplar do vosso rosto para, como selvagens, o adorarmos.

ROSALINA — Tenho o rosto enuviado como a lua.

REI — Bendita a nuvem que essa luz gradua! Ó lua! e vós, estrelas! sem antolhos iluminai as águas destes olhos!

ROSALINA — Oh pedido modesto em tanta frágua! Um reflexo da lua, apenas, na água!

REI — Então dançai comigo uma mesura, que isto, só, constitui minha ventura.

ROSALINA — Venha música! (Ouve-se música.) Não! É intolerável. Não danço mais; a lua é assim mudável.

REI — Não dançais? Mas queríeis neste instante.

ROSALINA — A lua cheia foi-se; ora é minguante.

REI — Mas sempre é a lua, e eu sou o homem da lua. Sigamos a harmonia do compasso.

ROSALINA — Com os ouvidos.

REI — E os pés, num terno abraço.

ROSALINA — Já que estrangeiros sois e por acaso chegastes até aqui, não seja o caso de brigarmos. Conosco não dançais; apertemos as mãos e nada mais.

REI — Por que apertar as mãos, se não dançamos?

ROSALINA — Para que, como amigos, nos partamos. Reverências e gestos de cordura; nisso, apenas, consiste a tal mesura.

REI — Podíeis desdobrá-la mais um pouco.

ROSALINA — Pelo preço, já tendes muito troco.

REI — Ponde preço na vossa companhia.

ROSALINA — Custará vossa ausência.

REI — É tirania.

ROSALINA — No entanto não podemos ser compradas. Dou-vos adeuses, dou-vos esses nadas, sendo dois para a máscara elegante e meio para vós, como calmante.

REI — Se não dançais, por que não conversar?

ROSALINA — À parte, então.

REI — O acordo é de tentar.

(Conversam à parte.)

BIRON — Ó mãos de fada, uma palavra doce!

PRINCESA — Mel, açúcar e leite, ou mais que fosse.

BIRON — Já que sois tão faceira, novamente tentemos esse número ridente: mosto e hidromel, agora, e malvasia; meia dúzia de doces num só dia.

PRINCESA — Sétimo doce, adeus; jogais com dados que não merecem fé; estão viciados.

BIRON — Uma palavra, apenas à de parte.

PRINCESA — Se de doces não for toda a vossa arte.

BIRON — A bile me remexes.

PRINCESA — Bile? Amarga.

BIRON — Razão de sobra de eu voltar à carga.

(Conversam à parte.)

DUMAINE — Dizer-vos ainda uma palavra posso?

MARIA — Qual?

DUMAINE — Bela jovem...

MARIA — Como? Belo moço. Deveis isso guardar para os ouvidos de vossa bem-amada.

DUMAINE — Por favor, ouvi à parte; a caminho vou-me pôr.

(Conversam à parte.)

CATARINA — Foi língua à vossa máscara negada?

LONGAVILLE — Sei de sobra a razão dessa pergunta.

CATARINA — Desejo ouvi-la, antes de ouvir mais nada.

LONGAVILLE — É que outra língua tendes, como adjunta. Com meia, só, corrigireis meu erro.

CATARINA — Sois holandês? Chorais como um bezerro.

LONGAVILLE — Como, senhora?

CATARINA — Dou-vos um cincerro.

LONGAVILLE — Dividamo-lo.

CATARINA — Não; pode haver erro. Ficai com tudo; a um boi cai bem o enfeite.

LONGAVILLE — São-vos marradas causa de deleite? Aliviai-me dos chifres, bela dama.

CATARINA — Morrei logo, antes que eles tenha fama.

LONGAVILLE — Antes disso, falemos sem disputa.

CATARINA — Depressa; o magarefe vos escuta.

(Conversam à parte.)

BOYET — A língua zombadora é tão afiada quanto o fio invisível da navalha, que um cabelo decepa, ou como a espada que nos campos de luta os membros talha; Vai longe, como a bala e o próprio vento, no curso mais veloz que o pensamento.

ROSALINA — Basta, meninas! Basta de conversa!

BIRON — A todos nos humilha a sorte adversa.

REI — Adeus, moças esquivas e bonitas.

PRINCESA — Vinte adeuses, gelados moscovitas. (Saem o rei, nobres, músicos e séquito) É esse o espírito tanto alcandorado?

BOYET — São fachos que apagais sem muito arruído.

ROSALINA — Mostram todos espírito lardeado.

PRINCESA — Que pobreza! Que rei tão mal servido! Não receais que se enforquem de despeito? Pensais que ainda nos vêm mostrar o rosto? E o pobre do Biron? Ficou sem jeito.

ROSALINA — Todos eles choravam de desgosto. A esperança o rei teve malograda.

PRINCESA — De tão triste Biron perdeu o viço.

MARIA — Dumaine a meu serviço pôs a espada. No point, disse eu; prefiro um bom caniço.

CATARINA — Adivinhais que nome Longaville me deu?

PRINCESA — Palpitação, decerto.

CATARINA — Justo.

PRINCESA — Ele, então, que um tratado em ti compile.

ROSALINA — Sensaborões assim nem causam susto. Não sabeis? Tem-me o rei amor profundo.

PRINCESA — O ágil Biron de meu amor se ufana.

CATARINA — Longaville a servir-me veio ao mundo.

MARIA — Dumaine se me apega como liana

BOYET — Senhora e todas vós, ouvi-me atentas: vamos tê-los aqui com as vestimentas naturais. Podeis crer-me: já desponta em todos eles a reação da afronta.

PRINCESA — Vão voltar?

BOYET — Sim, pulando de alegria, embora mancos ainda em demasia. Trocai, pois, os presentes; se os amais, sede rosas em ares estivais.

PRINCESA — Ser rosas? Falai claro, trapalhão.

BOYET — Mascaradas, sois rosas em botão; sem disfarce, o damasco se revela anjo em nuvem sentado ou rosa bela.

PRINCESA — Quanta perplexidade! Sem rebuços: como receberemos os ex-russos?

ROSALINA — Se me aceitais, senhora, um bom conselho, metendo eu também nisto o meu bedelho, sem máscaras façamos como há pouco, zurzindo deles todos o descoco. Queixemo-nos do tédio que uns coitados nos causaram, uns pobres mascarados em trajos moscovitas. Mais, ainda: perguntemos se acaso poderiam revelar-nos quem são e o que queriam para nos virem ver em nossas tendas com palavras e vestes mais que horrendas.

BOYET — Ei-los perto! A conversa aqui termina.

PRINCESA — Corramos como corças na campina.

(Saem a princesa, Rosalina, Catarina e Maria.)

(Entram o rei, Biron, Longaville e Dumaine, em suas vestes habituais.)

REI — Deus vos salve, meu caro. Por obséquio: onde se acha a princesa?

BOYET — Neste instante foi para a tenda. Vossa Majestade se compraz em honrar-me com alguma mensagem que eu pudesse transmitir-lhe?

REI — Que me conceda uma pequena audiência.

BOYET — Concederá, senhor; tenho experiência. (Sai.)

BIRON — Este tal, que não é de todo rombo, pica o humor, como pica a ervilha o pombo, e quando a Deus apraz, espalha graças. Negocia com o espírito, nas praças, por miúdo, a domicílio e no mercado. Quem vende, como nós, por atacado, Deus o sabe, não goza da vantagem de poder estadear toda a bagagem. Conversador de inteligência clara, fosse Eva sua esposa, ele a tentara. Sabe trinchar; ao discursar, cicia, e beija a própria mão, por cortesia. Momo da moda, monsieur beleza, que no jogo se esfaz em gentileza até quando se insurge contra a sorte. Revela-se, ao cantar, tenor de porte. No papel oficial de introdutor nunca jamais achou competidor. As mulheres lhe chamam “Suave brisa”; beija-lhe os pés a escada em que ele pisa; a toda a gente os dentes patenteia, mais cândidos do que ossos de baleia. A consciência dos homens, porque em dívida não fique ao visitá-la a Morte lívida, fechando a conta do último capítulo, “Boyet, língua de mel”, lhe dá por título.

REI — De todo o coração desejo que essa língua de mel venha a secar depressa, pois foi causa de haver ficado o pajem de Armado carecente de linguagem.

(Voltam a princesa, precedida por Boyet, Rosalina, Maria, Catarina e séquito.)

BIRON — Lá vem vindo ele! Cortesia, que eras antes deste senhor? Tal como as feras.

REI — Bênçãos vos chovam neste belo dia!

PRINCESA — Belo dia com chuva? Boa usança!

REI — Senhora, vosso espírito me esfria.

PRINCESA — Desejai-me outra coisa; dou-vos ansa.

REI — Vamos levar-vos para a corte; quero ressarcir minha dívida com juros.

PRINCESA — O ar livre para mim não foi severo; não perjureis; odeia o céu perjuros.

REI — Não mereço censura; é na virtude desses olhos que eu acho absolvição.

PRINCESA — Vosso belo sofisma não me ilude; no vício é que deveis buscar razão. Pois sabei: por minha honra, imaculada como o cândido lírio, um mundo inteiro de tormentos prefiro a achar morada sob um teto que esconde tal braseiro; tanto eu receio vir a ser motivo de vos lançar num báratro aflitivo.

REI — Para nossa vergonha, horas de tédio passastes neste inóspito deserto.

PRINCESA — Não tanto assim, milorde; que o remédio para esse inconveniente estava perto: recebemos de uns russos a visita.

REI — Como, senhora! Russos?

PRINCESA — Sim, milorde; de conversa agradável e esquisita.

ROSALINA — Por que mentir? Não foi assim, milorde; a senhora, por simples cortesia cala as censuras que dizer devia. Realmente aqui estiveram quatro russos em conversa conosco. Sem rebuços: durante uma hora inteira nenhum disse nada que não passasse de tolice. Não direi que são bobos; mas, com sede, beber desejam quatro bobos, crede.

BIRON — Pilhéria seca, me parece. Cara beldade, vosso espírito tornara desenxabido o sábio mais sisudo. Ao querermos lançar olhar agudo para o sol, a luz máxima, perdemos por excesso de luz a luz que temos. Sois dotada de tanta fantasia, de espírito tão fino, que se enfia quem de vós se aproxima; até a riqueza se reduz à mais sórdida pobreza.

ROSALINA — Então sois rico e sábio; ao contemplar-vos...

BIRON — Percebeis um epítome dos parvos.

ROSALINA — Já que sois lesto, reclamar não posso, porque só me tomais o que já é vosso.

BIRON — A vós pertenço eu todo e quanto tenho.

ROSALINA — A tolice também?

BIRON — Meu pobre engenho

ROSALINA — Dizei-me, então: que máscara trazíeis?

BIRON — Máscara? Como? Quando? Que pergunta!

ROSALINA — O invólucro supérfluo que a feiúra velava de maneira tão segura.

REI — Nosso plano falhou; vão rir-se à grande de nós.

DUMAINE — Pois confessemos tudo logo, transformando a derrota em brincadeira.

PRINCESA — Milorde está confuso? Que vos pesa?

ROSALINA — Socorro! Levantemos-lhe a cabeça! Vai desmaiar! Por que ficais tão pálido? É a viagem de Moscóvia: está enjoado.

BIRON — Os perjuros assim castiga o Fado. Que máscara de ferro o suportara? Eis-me, senhora; quero ser julgado e, paciente, agüentar a sorte amara; confundi-me a tolice sem tardança, fazei-me em pedacinhos com finura; jamais vos tirarei para uma dança, nem dos russos porei a vestidura. Nunca mais me fiarei de um vão discurso ou das palavras tolas de um menino, nem nunca mais farei visita de urso, nem me declararei no jeito de hino de cantor cego. Hipérboles gigantes, frases de tafetá termos de seda, sois moscas importunas com que a instantes me comprazia; agora retroceda toda a caterva insulsa! Aqui protesto por esta luva branca — a Deus o digo — que em matéria de amor serei modesto de hoje em diante e, no falar, mendigo. E para começar, aceita, ó flor, sans fêlure et défaut o meu amor!

ROSALINA — Mas sem esse francês.

BIRON — É vezo antigo; sou doente; sede plácida comigo. Aos poucos sararei. Eis a mezinha: escrevei nestes três, por conta minha: “Deus se apiade de nós!” Acham-se doentes, muito mal; os sinais já estão patentes: sofrem do coração. Veio-lhes isso dos vossos belos olhos: é feitiço. Mas em todas eu vejo sorte igual; Deus já pôs em vós outras o sinal.

PRINCESA — Revelai-nos no pleito bem cadimos.

BIRON — Absolvei-nos; da queixa desistimos.

ROSALINA — Não pode ser, que desistir não há de quem recorre por mera pravidade.

BIRON — Convosco não me agrada intimidade.

ROSALINA — Nem na tereis, se nisso eu for senhora.

BIRON — Falai por vós, que morto eu me acho agora.

REI — Gentil Princesa, como a nossa rude transgressão poderá virar virtude?

PRINCESA — Recorrendo a argumentos inconcussos: não éreis um dos mascarados russos?

REI — Sim, Princesa, era um desses.

PRINCESA — E sabíeis durante todo o tempo o que fazíeis?

REI — Sem dúvida, senhora.

PRINCESA — Que segredo confiastes a uma dama? Ou foi brinquedo?

REI — Que a amava mais que a tudo neste mundo.

PRINCESA — Mas se ela vos falar, em um segundo heis de vos desdizer.

REI — Não! Por minha honra, tal coisa não farei.

PRINCESA — Não vê desonra no ato de ser infiel aos juramentos quem, proferindo-os, os confia aos ventos.

REI — Se eu tal fizer, que seja a minha sina repudiardes-me.

PRINCESA — Aceito. Rosalina, que vos disse em segredo o moscovita?

ROSALINA — Que eu para ele encerrava a maior dita, que em valor me antepunha a todo o mundo, preciosa como a luz do céu rotundo, asseverando, alfim, que casaria comigo, ou em celibato viveria.

PRINCESA — Apraza a Deus. Serás feliz esposa deste senhor que perjurar não ousa.

REI — Como, senhora! Juro que não disse jamais tal coisa, nem por maluquice.

ROSALINA — Dissestes; o penhor de vossa jura eu vos devolvo agora, sem ventura.

REI — Por Deus! é da princesa esta lembrança; eu próprio lha entreguei. O que me afiança que no identificá-la eu estava certo é a jóia que ora vejo tão de perto.

PRINCESA — A jóia estava com ela. E ora agradeço a milorde Biron, pois sem tropeço declarou-se-me. Vamos ao dilema: quereis-me, ou retomais vosso diadema?

BIRON — Nem um, nem outro; de ambos eu desisto, e ora sei o que quer dizer tudo isto. Sabíeis de antemão da brincadeira preparada; daí, toda a matreira conspiração que o nosso madrigal transformasse em comédia de Natal. Algum macaqueador novidadeiro, dizedor de graçolas, alvitreiro sem espírito, algum bufão leviano, em pilhérias insulsas veterano, um joão-qualquer, que ri fazendo pregas de alto a baixo e discorre sempre às cegas, que conhece o segredo de a princesa fazer sorrir, em vendo-a sem fereza contou-lhe nosso plano, concitando as damas a trocar de jóias, quando de nossa recepção. Nós, iludidos, aos presentes mostramo-nos rendidos. E ora, porque se agrave nossa culpa, perjuramos de novo sem desculpa: a sabendas, primeiro; por engano desta segunda vez; é desumano. Fostes vós o culpado dos apuros em que estamos, por vermo-nos perjuros. Entre a princesa vos postais e o lume; conheceis-lhe a medida dos sapatos; sabeis trinchar e revelais acume a todo instante e nos menores atos. Cortastes o discurso ao nosso pajem; morrei, quando quiserdes, que a passagem não há de ser pesada para o erário, pois heis de ter tão-só como sudário uma camisa de mulher. E agora? Olhais-me de soslaio? Muito embora; esse olhar não me irrita; é como espada de chumbo que, ao bater, fica amolgada.

BOYET — Como ele é valentão! Que belo tiro!

BIRON — Volta ele a revidar? Já me retiro. (Entra Costard.) Salve, espírito raro! Vens a tempo.

COSTARD — Por Deus, senhor, dizei-me sem demora se os três heróis podem entrar agora.

BIRON — Como! São só três heróis?

COSTARD — Não, senhor; o bonito consiste justamente nisso; por que cada um representará três papéis.

BIRON — E três vezes três perfazem nove.

COSTARD — Não, senhor; salvo correção, senhor, espero, senhor, que não seja assim. Não nos embrulhareis, senhor, posso asseverar-vos; sabemos o que sabemos. Espero, senhor, que três vezes três...

BIRON — Não sejam nove.

COSTARD — Salvo correção, senhor, sabemos a quanto montam.

BIRON — Por Júpiter! Eu sempre julguei que três vezes três fossem nove.

COSTARD — Oh céus, senhor! Seria de causar pena se tivésseis de ganhar o sustento fazendo conta.

BIRON — A quanto montam, afinal?

COSTARD — Oh Deus, senhor! As próprias partes, os atores, senhor, vos mostrarão dentro de pouco o número certo. Quanto a mim, como eles dizem, só terei de representar um homem, um pobre homem. Pompeu, o Grande, senhor.

BIRON — Tu és um dos nove heróis?

COSTARD — Eles se comprazeram em achar-me digno de Pompeu, o Grande. Por minha parte, não sei bem qual tivesse sido o valor desse herói, mas terei de representá-lo.

BIRON — Vai dizer-lhes que se aprontem.

COSTARD — Faremos as coisas com muito jeito, senhor; havemos de nos esforçar.

REI — Biron, não os deixeis vir; eles vão envergonhar-nos.

BIRON — Já estamos à prova de vergonha, milorde; além do mais, parece-me boa política apresentar às damas um espetáculo pior do que o do rei e sua companhia.

REI — Acho que não deveriam vir.

PRINCESA — Milorde, permiti que vos convença; muitas vezes agrada só a presença, quando há algum esforço sincero: a arte suprema no próprio zelo encontra o melhor tema; na confusão das partes a alegria descobre inexcedível harmonia.

BIRON — Milorde, o nosso caso aí está escrito.

(Entra Armado.)

ARMADO — Ungido do Senhor, imploro do teu real e querido sopro o gasto necessário para pronunciar duas palavras.

PRINCESA — Este homem serve a Deus?

BIRON — Por que o perguntais?

PRINCESA — Porque ele não fala como criatura de Deus.

ARMADO — É a mesma coisa, meu belo, doce e meloso monarca, porque eu protesto que o mestre-escola é excessivamente fantástico; muito, muito vão; muito, muito vão. Mas entreguemos o caso, como se diz, à Fortuna della guerra. Desejo-te paz de espírito, meu muito real casal.

REI — Penso que vamos ter uma ótima distribuição de heróis. Este representa Heitor de Tróia; o pastor, Pompeu, o Grande; o cura, Alexandre; o pajem de Armado, Hércules; o mestre-escola, Judas Macabeu; e se esses quatro heróis trabalharem com afinco, as vestes trocarão para fazer mais cinco.

BIRON — Serão cinco na primeira parte.

REI — Estais enganado.

BIRON — O mestre-escola, o fanfarrão, o cura iletrado, o bobo e o rapaz; jogai de início nove, e eu juro que o universo jamais como estes cinco há de cantar em verso.

REI — Ei-los a navegar, pesar do vento adverso.

(Entra Costard, armado, no papel de Pompeu.)

COSTARD — “Eu sou Pompeu...”

BOYET — Pompeu, não desfaleça.

COSTARD — “Eu sou Pompeu...”

BOYET — Pompeu? Com uma cabeça de leopardo nos joelhos.

BIRON — Bravo, amigo! Vou firmar sem demora paz contigo.

COSTARD — “Eu sou Pompeu, Pompeu de alcunha o Grosso...”

DUMAINE — “O grande!”

COSTARD — Sim, “o grande”, senhor; “grande sem par, que muitas vezes, de tarja e de escudo o inimigo fez suar; e por acaso a vagar pela costa, com toda a confiança, veio postar-se ante os pés desta meiga donzela da França”. Se me disserdes: “Pompeu, muito bem”, dar-me-ei por contente.

PRINCESA — Grandes agradecimentos, grande Pompeu.

COSTARD — Não mereço tanto; mas penso que estive perfeito; cometi um pequeno erro em “grande”.

BIRON — Meu chapéu contra um vintém, como Pompeu é o melhor herói.

(Entra Sir Nataniel, armado, no papel de Alexandre.)

NATANIEL — “Quando no mundo eu vivi, conheci-lhe até o último meandro; De norte a sul, leste a oeste, estendi minha espada potente. No meu escudo se lê que em verdade eu me chamo Alisandro.”

BOYET — Vosso nariz diz que não; ele avança direito na frente.

BIRON — Vosso nariz cheira “não”, meu cheiroso guerreiro valente.

PRINCESA — O grande herói desmaiou; continua, valente Alexandre.

NATANIEL — “Quando no mundo eu vivi, conheci-lhe até o último meandro...”

BOYET — Perfeitamente! Isso mesmo, meu muito valente Alisandro.

BIRON — Pompeu, o Grande!

COSTARD — Vosso criado Costard.

BIRON — Leva o guerreiro valente; retira o feroz Alisandro.

COSTARD (a Nataniel) — Ora, senhor! Destronastes o conquistador Alisandro. Por causa disso, tomar-vos-ão essa vestimenta vistosa; vosso leão, senhor, sentado na retrete, com uma alabarda em uma das patas, será mandado às urtigas, com toda a sua dignidade de herói. Um conquistador que tem medo de falar! Fora daqui, Alisandro! (Sai Nataniel.) Se o permitis, é um pobre diabo sem maldade, um sujeito honesto, vedes bem, mas que com pouca coisa perde o tento. É um vizinho incomparável, não há que ver, e como jogador de bola, é sem segundo. Mas para Alisandro, bem o vistes, ainda está longe. Aí vêm vindo outros heróis, que sem dúvida se sairão melhor em seus papéis.

PRINCESA — Ficai de lado, bom Pompeu.

(Entra Holofernes, armado, no papel de Judas, e Moth, armado, no de Hércules.)

HOLOFERNES — Hércules aqui está neste menino, cuja clava matou Cérbero forte e que também quando era pequenino estrangulou serpentes deste porte. Quoniam, porque é menor até este dia, ergo, vim recitar-lhe a apologia. (A Moth.) Mostra-te digno do êxito, e dá o fora. (Sai Moth.) “Judas eu sou...”

DUMAINE — Um Judas!

HOLOFERNES — Não é o Iscariotes, senhor! “Judas eu sou, chamado Macabeu...”

DUMAINE — Um judas estropiado é sempre Judas.

BIRON — Traidor até no beijo. Como foi que tu ficaste Judas?

HOLOFERNES — “Judas eu sou...”

DUMAINE — Devias envergonhar-te disso, Judas.

HOLOFERNES — Que quereis dizer, senhor?

BOYET — Que Judas deve ir enforcar-se.

HOLOFERNES — Dai o exemplo, por serdes mais velho. Eu enforcar-me? Uma figa!

BIRON — Bem respondido! Judas se enforcou numa figueira.

HOLOFERNES — Nada me fará perder a cabeça.

BIRON — Porque é o que não tendes.

HOLOFERNES — E isto aqui, o que é?

BOYET — Uma cabeça de guitarra!

DUMAINE — Cabeça de alfinete!

BIRON — Caveira de anel!

LONGAVILLE — Cara de moeda romana, que quase não se enxerga!

BOYET — O botão da espada de César!

DUMAINE — Botão de tampa de púcaro!

BIRON — Perfil de São Jorge num broche!

DUMAINE — Num broche de chumbo!

BIRON — Espetado na capa de um dentista! E ora, adiante; ajeitamos-te a cabeça.

HOLOFERNES — Fizestes foi tirar-ma do lugar.

BIRON — Não é verdade; demos-te outras caras.

HOLOFERNES — Que vós vos incumbistes de estragar.

BIRON — Se fosses leão, levavas uma tunda.

BOYET — Mas sendo asno, a pilharia em bem redunda. Mas que tens, belo Judas? Que te falta?

DUMAINE — O fim do nome, apenas.

BIRON — O fim? Então, adeus, adeus, Judasno.

HOLOFERNES — Isto não é gentil, nem fino ou generoso.

BOYET — Monsieur Judas quer luz! O escuro é perigoso.

PRINCESA — O pobre Macabeu! Como ele vai corrido!

(Entra Armado, no papel de Heitor.)

BIRON — Esconde a cabeça, Aquiles! Aí vem vindo Heitor!

DUMAINE — Ainda que estas zombarias se virem contra mim, quero divertir-me.

REI — Junto deste, Heitor não passava de um troiano.

BOYET — Mas será mesmo Heitor?

REI — Penso que Heitor não era tão bem construído.

LONGAVILLE — As pernas são muito grandes para serem de Heitor.

DUMAINE — As pantorilhas também.

BOYET — Não; os artelhos é que são bonitos.

BIRON — Não pode ser Heitor.

DUMAINE — Ou é um dos deuses, ou um pintor, porque faz muitas caretas.

ARMADO — “O armipotente Marte, em todo prélio invicto, fez a Heitor um presente...”

DUMAINE — Uma noz-moscada dourada.

BIRON — Um limão.

LONGAVILLE — Cheio de cravos.

DUMAINE — Não! Encravado.

ARMADO — Silêncio! “O armipotente Marte, em todo prélio invicto, fez a Heitor um presente, o herdeiro de filo santa, guerreiro tão feroz, de peito de granito, que quando o plaino pisa, os gregos ataranta. Pois eu sou essa flor...”

DUMAINE — Essa flor de hortelã.

LONGAVILLE — Não; essa erva-pompinha.

ARMADO — Meu bondoso Lorde Longavile, refreai a língua.

LONGAVILLE — Será preferível soltar-lhe as rédeas, porque ela corre contra Heitor.

DUMAINE — É isso mesmo; Heitor corre como um galgo.

ARMADO — Esse grande guerreiro já está morto e enterrado, meus caros meninos, não mexais com os mortos. Quando ele respirava, era um herói de verdade. Mas vou prosseguir no meu papel. (À Princesa.) Doce realeza, concedei-me o sentido do ouvido.

PRINCESA — Falai, bravo Heitor; estamos encantadas com o espetáculo.

ARMADO — Venero as chinelas de vossa doce Graça.

BOYET (à parte, a Dumaine) — É com o pé que ele mede o amor.

DUMAINE — (à parte, a Boyet) — Em falta de jarda...

ARMADO — “Esse Heitor era mais, muito mais do que Aníbal...”

COSTARD — Amigo Heitor, o negócio da pequena não vai lá muito bem; ela já está de dois meses...

ARMADO — Que queres dizer com isso?

COSTARD — Caro amigo, se não procederdes como troiano honesto, a pobre rapariga ficará perdida. Está de esperança; a criança já começa a dar pinotes na barriga; sois vós o pai...

ARMADO — Infamonizas-me diante dos potentados? Vais morrer por isso!

COSTARD — Nesse caso Heitor será chibateado por haver deixado Jaqueneta grávida e enforcado por assassinar Pompeu.

DUMAINE — Excelente Pompeu!

BOYET — Famoso Pompeu!

BIRON — Maior do que máximo! Grande, grande, grandíssimo Pompeu! Pompeu, o imenso!

DUMAINE — Heitor está tremendo.

BIRON — Pompeu está ficando agitado. Vamos! Mais lenha na fogueira! Espicacemo-los.

BIRON — Sem dúvida, ainda que ele só tivesse no ventre o sangue de homem necessário para o pantar de uma mosca.

ARMADO — Pela estrela polar, eu te desafio!

COSTARD — Não sou guarda-noturno para brigar com estrelas; o ferro tem de cantar; há de ser a espada. Por obséquio, consenti que eu retome as armas.

DUMAINE — Abri alas para os heróis inflamados!

COSTARD — Bater-me-ei de camisa.

DUMAINE — Resolutíssimo Pompeu!

MOTH — Mestre, permiti que vos fale com franqueza: não vedes que Pompeu já se está pondo à vontade para lutar? Que esperais? Ides perder a reputação.

ARMADO — Cavalheiros e soldados, perdoai-me, mas eu não combaterei em mangas de camisa.

DUMAINE — Não é possível recusardes; Pompeu vos provocou.

ARMADO — Caros amigos, posso fazê-lo e assim o quero.

BIRON — Quais são as vossas razões?

ARMADO — A verdade nua e crua é que não tenho camisa; por penitência trago apenas lã sobre o corpo.

BOYET — É verdade; isso lhe foi imposto em Roma, por ele não ter linho. E posso jurar que desde então ele só usou um pano de pratos de Jaqueneta, que traz junto do coração, como relíquia.

(Entra monsieur Mercade, mensageiro.)

MERCADE — Deus vos salve, Princesa!

PRINCESA — Bem-vindo, bom Mercade. Mas vens interromper nossa alegria.

MERCADE — Estou triste, senhora, que as notícias que vos trago pesam. Vosso pai...

PRINCESA — Morreu, receio muito!

MERCADE — Justamente. Minha história acabou.

BIRON — Afastai-vos, heróis! Cheia de nuvens está ficando a cena.

ARMADO — No que me diz respeito, respiro mais folgado. Vi o dia do ultraje através da fenda da discrição e hei de conduzir-me como um soldado na defesa do meu direito.

(Saem os heróis.)

REI — Como se sente Vossa Majestade?

PRINCESA — Partiremos, Boyet, ainda esta noite; cuidai do necessário.

REI — Demorai-vos, senhora, por obséquio, mais um pouco.

PRINCESA — Cuidai, Boyet, de tudo. Agradecida vos sou, amáveis lordes, pelas vossas gentilezas, e peço-vos, em vista do infortúnio que acaba de ferir-me, que escuseis ou escondais em vossa rica sabedoria as muitas liberdades que tomamos convosco. Se houve excesso de nossa parte, vossa gentileza tem nisso culpa. Adeus, digno senhor. Não se compraz um coração turbado com discursos mui longos. A avareza desculpai-me; devera agradecer-vos a maneira gentil com que aceitastes as minhas pretensões, ora alcançadas.

REI — A premência do tempo muitas coisas no último instante ajeita a seus desígnios, decidindo, por vezes, no momento mais grave o que um processo interminável não pudera fazê-lo. Muito embora se oponha a fronte triste de uma jovem ao sorriso cortês dos galanteios que demover quisera toda a pena, contudo, porque o amor logo de início se fez valer, não permitais que as nuvens da tristeza o desviem do propósito. Chorar amigos velhos que perdemos não é tão proveitoso nem saudável como nos alegrarmos pelas novas aquisições de amigos.

PRINCESA — Não compreendo quanto dizeis; redobra-se-me a pena.

BIRON — Um dito honesto o ouvido da tristeza fere de perto. Compreendei o intento do rei sob esse auspício generoso. Por vós deixamos tudo e nos tornamos perjuros; vossas graças nos fizeram diferentes, mudando-nos o gênio, a ponto de almejarmos o contrário daquilo que queríamos. Por isso, parecemos ridículos; a causa de tudo foi o amor, amigo, sempre, das mais extravagantes fantasias. Gerado pelos olhos, é, como eles, cheio de aparições e estranhas formas, de hábitos esquisitos, e propenso, como o olhar, que não pára muito tempo num só objeto, a mudar sempre de assunto. Se envergamos, portanto, os fantasiosos trajos do amor leviano e a vossos olhos celestes isso em parte a gravidade prejudicou de nossos juramentos, foram causa de errarmos, justamente, esses olhos que as faltas nos censuram. Se o nosso amor, portanto, nobres damas. vos pertence, as tolices que ele gera vos pertencem também. Ficamos falsos a nós mesmos tão-só para ficarmos fiéis a quem nos fez a um tempo amantes fiéis e falsos: vós, damas galantes. Desta arte a falsidade, embora vício, purifica-se e toma-se virtude.

PRINCESA — Recebemos as cartas transbordantes de expressões amorosas e os presentes emissários do amor; mas no conselho virginal em tudo isso apenas vimos brincadeira inocente e cortesia, passa-tempo, tão-só, sem conseqüências. E, por assim pensarmos, procuramos corresponder na mesma altura os vossos galanteios, isto é, com brincadeiras.

DUMAINE — Nossas cartas, Princesa, não revelam somente brincadeira.

LONGAVILLE — Nem, tampouco, nossos olhares.

ROSALINA — Pois interpretamo-los de maneira diversa.

REI — Mas agora, neste instante supremo, concedei-nos o amor que vos pedimos.

PRINCESA — Muito escasso, receio, é o tempo que nos dão para este negócio em que arriscamos nossas vidas. Não, não, milorde! Vossa culpa é grande; perjurastes demais. Ouvi-me, entretanto. Se por amor de mim — conquanto causa para tanto eu não veja — vos dispondes a fazer qualquer coisa, que seja isto: não precisais jurar, mas ide, asinha, para algum esquecido eremitério. despido e calvo e dos mundanos gozos apartado de todo. Aí vos cumpre permanecer até que os doze signos celestes hajam feito a volta anual. Se esse austero viver, assim privado do convívio das gentes, não der azo a que se mude uma promessa feita no calor do momento; se nem geadas, nem jejuns, a clausura, as vestes grossas, fizerem ficar murcha a flor mimosa de vosso amor, vencendo ela galharda todas as provações, o ano corrido voltai para, tão-só por vosso mérito, enfim, me reclamardes. E por esta mão virginal que tua mão aperta, serei eu tua, então. Nesse entrementes, encerrarei minha existência triste numa casa de luto, derramando lágrimas em memória de meu pai. Se te recusas, bem; fiquemos nisto; desistamos de amar; eis o em que insisto.

REI — Se a prova eu recusar, ou outra mais grave, que vise a aperfeiçoar-me no repouso, venha a morte privar-me, dura e insuave, do galardão que eu merecer não ouso.

BIRON — E para mim, amor? E para mim?

ROSALINA — É preciso, também, purificardes-vos; pecastes muito; tendes muitas faltas; cometestes perjuro. Se quiserdes, portanto, o meu perdão, deveis durante doze meses dicar junto do leito tedioso e cansativo dos enfermos.

DUMAINE — E para mim, amor? E para mim?

CATARINA — Barba, saúde e honestidade; assim com triplo amor, alcançareis o fim.

DUMAINE — Posso dizer: agradecido, esposa?

CATARINA — Não, não! Em doze meses mais um dia não ouvirei nenhuma cortesia. Vinde com o rei: se me sobrar, acaso, muito amor, vosso amor terá bom azo.

DUMAINE — Serei fiel; assumo o compromisso.

CATARINA — Não jureis; perjurais sem dar por isso.

LONGAVILLE — E Maria, que diz?

MARIA — Após um ano, o luto tirarei por um fulano.

LONGAVILLE — Terei paciência, ainda que o tempo é longo.

MARIA — Tal como vós, que sois um pernilongo.

BIRON — Em que estará pensando a minha bela? Querida, nas janelas do meu peito, nestes olhos, descobre o sentimento de humildade que espera a tua resposta. Para alcançar-te, impõe-me algum trabalho.

ROSALINA — Meu bom lorde Biron, já tinha ouvido muitas vezes falar de vós, bem antes de vos ter conhecido. A grande boca do mundo vos proclama zombeteiro de enormes cabedais e frases finas que atirais contra todos que vos caem ao alcance do espírito. Por isso, para extirparmos semelhante praga de vosso fértil cérebro e, a um só tempo, porque possais obter-me — se o quiserdes, é claro, visto como de outro jeito não vos será possível conquistar-me — durante esse ano todo, dia a dia, deveis visitar doentes que não possam falar, e conversar com infelizes que em gemidos se finam. Todo o vosso papel consistirá nisto somente: usar de vossa inteligência para forçar a rir os fracos e os que sofrem.

BIRON — Mover a riso a boca moribunda? É impossível, senhora! A alacridade não consegue abalar uma alma em transe.

ROSALINA — É o meio de refrear os zombadores, cujo prestígio vive tão-somente dos aplausos baratos e das vácuas risadas com que os tolos se comprazem. O êxito da pilhéria só depende do ouvido de quem ouve, não da boca que a enuncia. Ora, pois: se os desgraçados, surdos à força do rumor constante dos seus próprios gemidos, consentirem em ouvir-vos as fúteis brincadeiras, perdoar-vos-ei tal sestro e serei vossa. Caso contrário, refreai tal vício, que eu, afinal, vendo-vos dele estreme, exultarei com semelhante cura.

BIRON — Doze meses? Pois bem; já que é fatal, brincarei o ano inteiro no hospital.

PRINCESA — (ao rei) — E com isso, milorde, eu me despeço.

REI — Iremos até um ponto do caminho.

BIRON — Nosso amor não termina com carinho: cada um com sua Joana. É pena! As damas fazem tudo acabar como nos dramas.

REI — Vamos, senhor! Um ano e mais um dia; depois, termina.

BIRON — É longo em demasia.

(Entra Armado.)

ARMADO — Doce Majestade, concedei-me...

PRINCESA — Esse não é Heitor?

DUMAINE — O digno cavalheiro de Tróia.

ARMADO — Desejo beijar-vos os reais dedos e despedir-me. Estou preso a um voto: jurei a Jaqueneta segurar por amor dela a sua charrua pelo prazo de três anos. Contudo, prezadíssima Grandeza, apraz vos ouvir o diálogo que os dois sábios compuseram em louvor do cuco e da coruja? Era para ser dito no fim do nosso espetáculo.

REI — Chamai-os logo; vamos ouvi-los.

ARMADO — Olá! Aproximai-vos! (Voltam Holofernes, Nataniel, Moth, Costard e outros.) Neste lado ficam Hiems, o Inverno; neste, Ver, a Primavera; um, simbolizado pela coruja; o outro, pelo cuco. Ver, principia.

Primavera

I

Quando as violetas, as margaridas
e as cardaminas de cor de prata,
todas cheirosas, todas garridas,
o chão matizam da extensa mata,
o cuco zomba, no alto escondido,
dos casadinhos, em sustenido:
Cuco! Cuco!
Oh! que palavras de desagrado
para os ouvidos do homem casado!

II

Quando na avena sopra o pastor
e as cotovias cantam ruidosas,
e quando as rolas se unem no amor
e as camponesas passam garbosas,
O cuco zomba, no alto escondido,
dos casadinhos, em sustenido:
Cuco! Cuco!
Oh! que palavras de desagrado
para os ouvidos do homem casado!

Inverno

III

Quando as estradas a neve cobre
e o zagalejo de frio treme
e a casa lenha carrega o pobre
e na terrina congela o creme,
e a água do riacho não fica suja.
então, de noite, canta a coruja:
Tu-u! Tu-uit! Tu-u!
nota agradável na noite fria,
enquanto Joana lava na pia.

IV

Quando lá fora sibila o vento
e a tosse ao cura deixa sem fala,
e as aves buscam o seu sustento
e a zagaleja de frio cala,
o medo é grande, mas ninguém fuja
quando de noite piar a coruja:
Tu-u! Tu-uit! Tu-u!
nota agradável na noite fria,
enquanto Joana lava na pia.

ARMADO — As palavras de Mercúrio são ásperas depois dos cantos de Apolo. Vós, por aquele lado: nós, por este.

(Saem.)


 

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Setembro 2000

 

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