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CONFISSÕES DE UM EX-TORTURADOR

J. Victor

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Confissões de um Ex-Torturador
J. Victor
Tradução de Cláudia Schilling

1a. edição (em papel)
Editora Semente 1980

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Fonte Digital
Arquivo da Editora


Copyright:
©2000,2006 J. Victor


 

 

 

Este livro é dirigido a todos aqueles que
no Uruguai lutam contra a ditadura.


 

ÍNDICE

Apresentação
Introdução
Capítulo I
A vida de um soldado uruguaio sob a ditadura
Capítulo II
As declarações de Garcia Rivas e a Constituição uruguaia
Capítulo III
Anatomia de um seqüestro:
Lilián Celiberti, seus dois filhos e Universindo Rodriguez Díaz
Capítulo IV
Uma Escola de Inteligência para ensinar a torturar
Capítulo V
Humberto Pascaretta, trabalhador da fábrica de papel CCSSA, morto por torturas
Capítulo VI
Dois anos de atividades da Companhia de Contra-informações:
Espionagem, torturas, seqüestros, locais clandestinos de tortura, corrupcão
Capítulo VII
A doutrina da Segurança Nacional em acão:
Intervenção de telefones, seguimentos, gravações e fotografias
Capítulo VIII
Alguns torturadores das Forças Armadas Uruguaias:
elementos para um prontuário
Capítulo IX
O seqüestro do Lilián e Universindo:
falam os advogados, a Justiça, o Governo e as forças políticas


 

Apresentação

 

As noites nórdicas podem estar sendo demasiadamente longas para Hugo Walter Garcia Rivas ou, quem sabe, já ficaram para trás, em seu caminho rumo ao teto mexicano. A diáspora particular deste rapaz não tem as marcas dolorosas de milhares de compatriotas seus, nem tampouco seu caso pode ser comparado com o da multidão dispersa dos uruguaios errantes. O que importa é avaliar o saldo de sua história que, pelo que se sabe, provocou alguns estremecimentos nos subterrâneos da repressão uruguaia.

O tempo corre em favor de Hugo e possivelmente ele ainda verá algum efeito causado pelo seu gesto. Alguma rachadura notável, originada em uma simples fissura. Os movimentos sísmicos começam com um leve tremor de terra e Hugo pode ter sido este aviso de uma devastação tectônica. Minhas dúvidas sobre a verdadeira comoção da denúncia aumentam por falta de conhecimento dos terremotos psicológicos e se enredam na concepção imediatista que vicia o raciocínio dos jornalistas. Ignoro os efeitos concretos e, secretamente, desejo que se multipliquem em ondas concêntricas de intensidade crescente.

As revelações de Hugo poderão ser de conseqüências desprezíveis no bem montado andaime da tirania militar, a curto prazo. Mas penso que alguma peça importante cedeu ante o golpe inesperado. Uma daquelas peças que uma pessoa pergunta para que serve e sem a qual o mecanismo não funciona com a mesma precisão. A certeza de Hugo de que o mecanismo de opressão sofreria uma avaria séria me impressionava e eu ficava ruminando se ele não estaria dizendo isto para se mostrar importante. Ele tinha razão. Por menor que tenha sido o dano aparente ou rápida a reparação, o preço do remendo en­careceu demais a manutenção política de uma engrenagem tão per­versa.

Da mesma forma que qualquer outro negócio humano, os regimes perduram enquanto apresentam um determinado lucro social e, inclusive cobrindo o deficit com um banho de sangue, não sobrevivem a um custo insuportável. Pode ser um enunciado simplista para os ana­listas políticos, mas no fundo é isto.

O jornalismo não derruba governos, muito menos ditaduras. Quando chega, entretanto, à etapa de atormentar-se pela divulgação de seus segredos, o poder perdeu a alma, a autoridade, a energia intrínseca que justifica suas peculiaridades, mesmo que bárbaras, para si mesmo e para os dominados. Se a deserção de um ex-soldado, com sua bagagem de recordações proibidas, afetou a máquina de horrores, é porque a contagem regressiva já está em aceleração. Com todo res­peito e sem nenhum preconceito, o Uruguai não é o Haiti. Embora as “tontons macoutes” tentem perpetuar-se.

Da janela entreaberta por Hugo, os brasileiros tiveram uma visão pavorosa do Uruguai qua só era conhecida pelas populações fronteiriças. A grande maioria formara uma imagem turística do Uruguai e as dificuldades de câmbio favoreceram as desinformações a respeito do país. Preocupada com os problemas próprios do Brasil, a imprensa não pode concentrar sua curiosidade sobre o que se passa às suas costas, mais além da atenção dada ao caso de Lilián. As confissões do ex-agente da Companhia de Contra-Informações desencadearam uma maré de repulsa contra as autoridades uruguaias. Esse fenômeno exige novas informações a respeito da máquina selvagem que pade­ce os uruguaios. Um desafio, sem dúvida, à imprensa brasileira, tão carente de análises internacionais e dependente das agências jornalísticas estrangeiras.

A indignacão pública, por outro lado, inibe eventuais iniciativas de solidariedade oficial ao governo uruguaio e restringe as conexões para-oficiais do tipo das que seqüestraram Lilián e Universindo. Ainda não estamos a salvo de um golpe semelhante, mas certamente não ocorrerão com tanta facilidade nem com tão escandalosa convicção de impunidade.

Confio que este livro contribuirá para esclarecer ainda mais a opinião pública brasileira em relação ao Uruguai e despertará consciências capazes de dar coragem aos que se debatem contra o despotismo em qualquer parte do mundo.

Carlos Alberto Kolecza — Porto Alegre, 27 de julho de 1980

* * *

O jornalista Carlos A. Kolecza junto com Paulo Maciel tiveram a seu cargo — para o diário gaúcho "Zero Hora" — as entrevistas iniciais com Hugo Walter Garcia Rivas. O seu trabalho foi valente e consciente. Suas crônicas, publicadas a partir de 13 de julho, provo­caram um forte impacto na opinião pública brasileira.


 

INTRODUÇÃO

 

Lilián e Universindo estão vivos.

Sua detenção foi reconhecida pelas autoridades uruguaias. Suas famílias os podem visitar.

Foram seqüestrados em 12 de novembro de 1978 em Porto Ale­gre, Brasil.

Em maio de 1976, foram seqüestrados em Buenos Aires os parlamentares Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz junto com Carmem Barredo e William Whitelaw. Uns dias antes, tinha sido seqüestrada Telba Juárez. Poucos dias depois seus cadáveres foram encontrados em lugares diferentes da cidade de Buenos Aires.

Nestes meses e nos que seguiram, foram seqüestrados Manuel Liberoff e Nebio Melo, Winston Mazzuchi, Ary Cabrera e os dirigentes do PVP Gerardo Gatti e León Duarte; Roger Julien, Victoria Grisonas e seus dois filhos; Pablo Errandonea e Jorge Zaffaroni, sua esposa Ma. Emilia Islas e sua pequena filha Marlana; Miguel Angel Moreno e Pablo Recagno, Adriana Gatti Casal (filha de Gerardo Gatti) e Norma Scopise de Couchet; Julio César D’Elia e sua esposa Yolanda; Lourdes Hobbas de Hernández e seus três filhos... no total, mais de 120 opositores uruguaios desaparecidos na Argentina entre 1976 e 1978.

Desde seus seqüestros, nada se tem sabido de todos eles. A única exceção é constituída pelos filhos de Roger Julien e Victoria Grisonas, reencontrados em julho de 1979.

Em março de 1977 foram detidos em Assunção, pela polícia paraguaia, Gustavo Inzaurralde e Nelson Santana Escoto. Posteriormente foram postos em mãos da polícia argentina. Desde então não se tem sabido deles.

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Se Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz não foram assas­sinados, se seus nomes não passaram a engrossar a longa lista de opositores uruguaios desaparecidos, é porque em novembro de 1978 as forças democráticas do Brasil, presentes na imprensa e na Ordem dos Advogados, no “Clamor” e na Igreja, nas organizações populares e nos partidos, com sua luta o impediram.

Papel fundamental desempenharam nestes fatos o advogado gaú­cho Dr. Omar Ferri e os jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Baptista Scalco. Graças às suas denúncias e ao eco que encontraram na opinião pública brasileira, Lilián e Universindo estão vivos.

A luta pelo restabelecimento da verdade em torno do seqüestro em Porto Alegre teve, vinte meses depois, um novo episódio: as declarações de Garcia Rivas. Sem aquela campanha, iniciada em novembro de 1978, muito possivelmente este testemunho não teria acontecido.

Através dele se restabelece a verdade em relação aos aconte­cimentos em Porto Alegre. Mas ele vai além disso. Ao proporcionar os elementos de uma verdadeira “anatomia do seqüestro”, o testemunho de Garcia Rivas reabre o exame sobre o destino dos demais opo­sitores uruguaios desaparecidos na Argentina, Paraguai e Uruguai, ao indicar os organismos, os métodos e os personagens destas ações terroristas de estado.

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O trabalho que apresentamos tenta contribuir para a difusão pú­blica dos crimes da ditadura uruguaia. É apenas um esforço a mais, entre os muitos que em outras partes do mundo vêm sendo realizados por distintos organismos, jornalistas, organizações sindicais e par­tidos1.

Estes materiais constituem algo assim como as atas ou o prontuário de acusação dos diretamente implicados em uma série de cri­mes graves contra cidadãos uruguaios, dentro e fora do país.

Este pré-sumário foi realizado com o consentimento expresso do declarante, Hugo Walter Garcia Rivas, ex-soldado, adscrito às tarefas de fotógrafo da Companhia de Contra-informações do Exército.

Enquanto pré-sumário, este trabalho constituirá, sem dúvida, um elemento a mais, quando chegue em nossa pátria a hora dos juízos de responsabilidade. Quando os culpados de todos estes anos de crimes contra o povo uruguaio devam prestar contas perante os tribunais devidos.

Para a resistência uruguaia, a documentação de todos estes fatos constitui uma tarefa que não se pode desdenhar: a recompilação minuciosa de datas e acontecimentos que situe com precisão os verdadeiros culpados, que dê seriedade e força de justiça à incontornável etapa de julgamento dos responsáveis.

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O testemunho de Garcia Rivas nos mostra uma parte do “monstro por dentro”. Ao desvendar suas técnicas e seus procedimentos, seus locais secretos e seus agentes, o testemunho tem efeitos poli­ticos práticos de magnitude: permite às forças da resistência popular conhecer a estrutura e as técnicas do inimigo. Serve para se armar e ao mesmo tempo contribui para desmistificar pelo menos uma parte do aparelho terrorista.

Mas o testemunho de Garcia Rivas vai mais além: nos permite dar uma olhada sobre as aspectos mais ocultos e secretos do sistema.

Em nosso país, todos temos visto os mecanismos públicos deste regime: o controle militar nas fábricas, nos colégios, na Universidade, as demissões e as “listas negras”, as sanções à imprensa, a queima de livros, as sanções e o exílio dos folcloristas populares, a coorde­nação repressiva e os assassinatos impunes. Mas nunca se tinha conhecido como agora, desde dentro, os organismos e os personagens destas ações.

Depois de muitos anos de democracia capitalista, a partir de 1966-68 as classes dominantes uruguaias foram se inclinando cada vez mais para as medidas repressivas. Sob o governo de Jorge Pacheco Areco e, sobretudo, a partir de 13 de junho de 1968, para conter os protestos populares, o regime desliza cada vez mais para inflexões despóticas, através do uso indiscriminado das “Medidas Prontas de Segurança”, da repressão ao movimento operário e estudantil e da remodelação da estrutura econômico-social de caráter reacionário e antipopular.

O golpe de estado de 27 de Junho de 1973 não é um golpe militar latino-americano a mais. Constitui uma escalada na política reacionária das classes dominantes destinada a quebrar a resistência do movi­mento popular expressado sob distintas formas.

Por isso este testemunho representa mais do que uma contribuição ao julgamento individual dos responsáveis por estes crimes: é uma ata de acusação contra todo o regime de ditadura cívico-militar e os grupos sociais e econômicos que o apóiam.

Com este testemunho se evidencia uma vez mais o que já se sabia: aqui não se trata de “grupos incontrolados”, atuando por sua conta em nome de um fanatismo ultradireitista. Trata-se de uma estrutura centralizada e orgânica pertencente ao aparelho do Estado. A ação dos comandos que seqüestram e torturam, que depredam e ma­tam está inscrita em uma política de Estado que a abarca e funda­menta.

Os organismos repressivos que Garcia Rivas denuncia têm, por um lado, um lugar preciso e regulamentado dentro da hierarquia das Forças Armadas. Respondem verticalmente e atuam por ordens diretas dos mandos superiores, em última instância, do Comandante em Chefe do Exército, da Junta de Comandantes e do Presidente da Re­pública.

Mas, além disso, a ação dos órgãos repressivos se integra à ação do conjunto do aparelho do Estado.

A atuação “de choque” do Organismo Coordenador de Operações Antisubversivas (OCOA), do Serviço de Inteligência de Defesa (SID) e da Companhia de Contra-informações prolonga-se logo pela ação da “Justiça Militar”, com seus “advogados” de ofício, seus juízes e o Superior Tribunal Militar. Seu Hospital Militar e seus médicos que assistem à tortura. Na ação dos Ministérios da Justiça, do Interior, de Defesa e das Relações Exteriores.

Os tentáculos repressivos se estendem ainda às empresas co­merciais e industriais do Estado: na empresa nacionalizada de telefo­nes, para interceptá-los. Nas Autarquias e Municípios para a espionagem e a denúncia, no Correio, para o controle da correspondência... E até na Comissão Administradora de Abastecimento, cujos caminhões são utilizados em operações de seqüestros, como narra Garcia Rivas.

É, em última instância, sobre os próprios alicerces doutrinários do regime que se sustenta esta ação estatal terrorista: desde o Mi­nistro da Justiça, Bayardo Bengoa, até o Presidente do Superior Tribunal, Cel. Feredico Silva Ledesma, desde o Presidente da República, Aparicio Méndez até o Comandante em Chefe, Gal. Queirolo, desde o vice-Almirante Márquez até os Chefes das Regiões Militares, todos os hierarcas do regime se apresentam como cruzados de uma guerra contra o marxismo e a subversão. Cruzada na qual o Uruguai, junto com a África do Sul, o Paraguai de Stroessner, o Chile de Pinochet e a Argentina de Videla estariam na vanguarda, espécie de bastião iluminado na luta mundial contra o marxismo e a subversão.

Esta doutrina que o regime tenta converter em “doutrina nacio­nal”, impondo-a nos planos de estudo das escolas, colégios e facul­dades, é a ensinada, há anos, nas Escolas Militares. Esta doutrina de intransigência fanática conduz inevitavelmente a uma forma de ação política: o terrorismo de estado, a brutalidade em todas as expressões imagináveis.

Esta doutrina, repetida diariamente por todos os meios de comunicação, repetida em cada cerimônia oficial, é o universo ideológico em que operam os homens da Companhia de Contra-informações.

Garcia Rivas descreve bem o clima imperante. É antes de tudo o desprezo absoluto pela vida e a integridade física dos detidos. Mé­dicos assistem às sessões de tortura: “para evitar que o detento morra... e leve consigo alguma informação”.

É um clima de total impunidade. Os homens da Companhia se sentem com as costas bem guardadas. Todo o Estado os protege.

Tendo em suas mãos todo o poder repressivo, gozando de total impunidade, as Forças Armadas uruguaias foram deslizando cada vez mais pelo caminho da corrupção. O que Garcia Rivas relata é apenas uma pequena amostra do que tem sido a característica da gestão dos hierarcas militares no aparelho do Estado. Salvo alguma raríssima exceção, o desempenho das funções públicas como Diretores-Inter­ventores ou nos cargos de confiança do Poder Executivo deu lugar a toda classe de negociatas e acomodações: “o poder absoluto corrompe absolutamente”.

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O testemunho de Garcia Rivas lança uma luz definitiva para a elucidação do seqüestro de Lilián e Universindo. Fornece os dados da parte uruguaia na ação do seqüestro, terminando assim de armar o quebra-cabeças cujos primeiros traços foram aparecendo nitida­mente nas investigações dos jornalistas e advogados brasileiros. Co­mo é lógico, esse ângulo de preocupação foi o predominante no Brasil, onde, graças à tenacidade e à coragem, o seqüestro se substanciou em uma ação formal da justiça que culminou com o processo dos implicados em fins de julho de 1980.

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Finalmente, do ponto-de-vista estritamente político, as declara­ções de Garcia Rivas trazem novos elementos para compreender a situação uruguaia.

São os homens que montaram este monstruoso aparelho repres­sivo, os que lhe dão impunidade e cobertura (estamos falando da alta hierarquia militar), os mesmos que cada dia proclamam que estão impulsionando um plano político destinado à restauração da democracia no Uruguai.

Está claro que esse pequeno grupo de militares que hoje detêm o poder absoluto não está em condições de soltar a presa. Têm sobre si a responsabilidade de demasiados delitos e atropelos, possuem de­masiados privilégios, para resistir à vigência no país, não já de uma verdadeira democracia, senão das expressões mais tíbias e elementares da denúncia pública.

O grupo mafioso que detém os cordões principais do aparelho do Estado não está disposto a recuar. Está preso por sua própria lógica terrorista. Para eles as liberdades democráticas constituem um perigo mortal porque ameaçam sua impunidade ao abrir a possibilidade de um debate público sobre estes fatos.

As denúncias de Garcia Rivas servem para reforçar o que os principais partidos políticos uruguaios denunciaram: o cronograma institucionalizador é uma farsa enganosa destinada a salvar as aparências frente às exigências de alguns setores da opinião pública nacional e internacional.

Mas, como ficou demonstrado com a publicação das “pautas cons­titucionais”, este processo não é de abertura democrática mas de institucionalização do poder despótico das Forças Armadas. A abertura democrática não será realizada voluntariamente pelos chefes do aparelho estatal terrorista. Ela será conseguida pelo povo uruguaio com sua luta unida, que os derrotará.

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As declarações de Garcia Rivas foram conhecidas publicamente no Brasil em 13 de junho de 1980.

Passaram-se quase dois meses desde então. Durante este lapso, um magistrado brasileiro emitiu seu parecer no processo aberto aos policiais do DOPS gaúcho que participaram do seqüestro. Para o Brasil, houve seqüestro.

Obviamente, ainda restam muitas indagações a serem feitas. Mas esta resolução do Poder Judiciário brasileiro desmorona completa­mente a tese do regime uruguaio substanciada nos comunicados 1.400 e 1.401 das Forças Conjuntas, que falam do ingresso voluntário de Lilián e Universindo no Uruguai.

Desde então, o regime uruguaio guardou silêncio. É o silêncio do desprezo à opinião pública internacional. É o tácito reconhecimento de que a força bruta é seu único sustentáculo.

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Pelo que se sabe publicamente, Garcia Rivas é o primeiro sol­dado que deserta do exército uruguaio. O primeiro da tropa, essa massa anônima cuja obediência tem sido um dado estável nestes 7 anos de repressão no Uruguai.

O que ele disse é o primeiro ponto de referência do que pensam e sentem esses setores das Forças Armadas, os mais numerosos e de origem mais inequivocamente popular. Pelo escasso tempo que Garcia Rivas passou no Exército, seu testemunho é parcial, limitado. Mas serve para mostrar que não são idílicas as relações entre a ofi­cialidade de carreira, que é beneficiada com altos soldos, e a tropa (inclusive a dos corpos especiais, como a Companhia de Contra-in­formações), com soldos baixos e submetida aos rigores e arbitrarie­dades da oficialidade.

São homens de origem humilde. Suas famílias não conheceram a rápida “ascenção social” das famílias de seus oficiais. Aos seus lares chegam os ecos do mal-estar operário, a amargura das famílias proletárias castigadas duramente pela política econômica e repressiva do regime. Vivem em bairros em que ser “milico” é sinônimo de privilegiado, prepotente, perigoso. De um sentimento de vergonha e distanciamento nos fala Garcia Rivas. Quantos mais a sentem como ele o sente? J. Victor — Julho de 1980


IDENTIDADE DO DECLARANTE E LUGARES ONDE TESTEMUNHOU

 

Nome: Hugo Walter Garcia Rivas
Profissão: Soldado. Integrante da Seção Técnica da Companhia de Contra-informações do Departamento II do Estado Maior do Exército. Fotógrafo.
Carteira de Identidade Uruguaia: 1.669.383
Título de Eleitor: E.F.B. 4361
Carnê Militar: No. 8.100
Carteira do Motorista: No. 321.298
Número de código interno: 49 de "Vermelho 17"
Nacionalidade: uruguaia
Estado civil: casado
Idade: 23 anos
Ingresso no Exército: começos de 1977
Baixa do Exército: 31 de dezembro de 1979
Data de saída do Uruguai para o Brasil: 3-5-1980
Data do saída do Brasil para a Noruega: 13-6-1980

O ex-soldado do Exército uruguaio Hugo Walter Garcia Rivas prestou declarações perante:

Assim mesmo, numerosos órgãos da imprensa brasileira e internacional divulgaram as declarações do ex-soldado, a partir de 13 de junho de 1980: "Jornal do Brasil", "Folha de São Paulo", "O Globo", "Zero Hora", "Coojornal", revista "Veja", revista "Isto é", revista "Stern" (Alemanha), revista "Processo" (México), diário "Le Monde" (França), diário "Le Figaro" (França), diário "Le Matin de Paris" (França), "El Nacional" (Caracas), diário "El Dia" (México), diário "Uno más Uno" (México), diário "Telexpres" (Barcelona, Espanha).

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As declarações que hoje publicamos foram tomadas dos diversos testemunhos acima mencionados e através de conversações prolongadas com Hugo Walter Garcia. Os textos destas declarações foram lidos e firmados pelo declarante.

O trabalho que hoje apresentamos é a mera transcrição das declarações de Hugo Garcia: nisso reside seu valor. Mesmo assim, este livro não teria sido possível sem a inestimável solidariedade que rodeou o caso por parte dos jornalistas, advogados e todas as pessoas que no mundo inteiro lutam para quebrar o muro de silêncio com que as ditaduras latino-americanas pretendem encobrir sua indignidade e seus crimes.


 

CAPÍTULO I
A VIDA DE UM SOLDADO URUGUAIO SOB A DITADURA

“Que estou fazendo aqui dentro?”

 

Pergunta: Onde você se criou?

Resposta: Em Montevidéu. Morávamos em um bairro da União, perto de onde vivíamos atualmente, na rua Joanicó quase Propios. Depois moramos un tempo em Piedras Blancas. Estivemos um par de anos no delta do Tigre, na Barra de Santa Lucia, não sei se conhece... Um lugar bastante afastado do centro de Montevidéu, muito tranqüilo.

Eu aprendi fotografia... fotografia é uma coisa que qualquer um pode aprender. Sim, eu gostava do colégio. Mas depois, quando vie­mos para Santa Teresa, aí já não tinha tantas possibilidades de trabalhar em fotografia e meu pai me disse: “Por que não estudas?” que terminasse o colegial e... eu não queria estudar. Então fiz 18 anos e meu pai me pôs no Exército. Em março de 75 fiz 18 anos, e no mês seguinte, ou no outro mês, em dois meses entrei no Comando do Exército. Eu já tinha o ofício de fotógrafo. Entrei como fotógrafo. Inclusive, como fotógrafo, não fiz instrução militar.

P. — Você tinha liberdade de movimento como fotógrafo no Co­mando?

R. — Sim, no Comando, tendo uma “comissão” como se diz, a gente não é incomodado, não há problema. Meu pai, muito antes de me fazer entrar no Exército, tinha-me dito porque não fazia a Escola Militar. “Não, lhe disse, ser milico não é para mim”, mas acabei sen­do milico da mesma forma...

P. — Quando passou a trabalhar na Companhia de Contra-infor­mação?

R. — Foi em princípios de 1977. E sai da Companhia em 31 de dezembro de 1979.

P. — Você pediu a baixa?

R. — Sim. Fazia um ano e meio que vinha pedindo a baixa. Fazia muito tempo que eu estava desejando sair disso. Porque eu estava fazendo algo que estava contra a minha vontade. Estava vendo gente que estava sendo torturada, que chegava à beira da morte, sem ter nada que ver com isso. Gente que possivelmente colava um papel em uma parede, era presa e torturada. No Uruguai há uma repressão contínua, sangrenta. Minha esposa, inclusive, tem uns primos que estiveram detidos e foram torturados de tal maneira que depois con­tavam as coisas que lhes faziam. Então eu recapacitei e disse: “Não pode ser, que estou fazendo aqui dentro? Não tenho estes ideais.”

Tentei sair, pedi minha baixa, não me deram. Tornava a pedir e nada, continuava pedindo. Somente agora me deram.

Eu já tinha tido muitos problemas com meu superior. Nunca tinha dito que não, por exemplo, se me mandavam interrogar alguém. Nunca disse que não, mas tratava de achar algum pretexto e era algo que me ia custar caro, cedo ou tarde. Me ia custar caro porque um oficial me disse. Uma pessoa bastante bem como pessoa, me disse: “Não podes continuar assim, porque isto te vai custar caro.” Foram razões que me impulsionaram para sair disso.

A morte de Pascaretta, por exemplo, foi praticamente em meus braços. Começou a se sentir mal, se sentiu mal e o agarramos, um companheiro meu e eu, e morreu.

Eu entrei no Exército sem conhecer o que era mesmo o Exército. Meu pai era militar, era sargento do Comando Geral do Exército. Mas meu pai nunca conheceu torturas. Eu entrei no Exército porque não queria estudar, estava em uma época de certa rebeldia, então meu pai me fez entrar no Exército. Quando eu entrei tampouco conheci nada que depois vim a conhecer na Companhia.

Quando fui transferido para esta Companhia, logo de cara, me vi frente a algo que nem tinha imaginado, na frente de pessoas que eram torturadas. Fui ordenado a participar nas torturas, a ir deter gen­te que sofria, que era torturada e que estava à beira da morte. Ime­diatamente eu tive um problema comigo mesmo, um problema de consciência e comecei a pesá-lo.

Eu nunca tinha imaginado isso, a pensei: “eu não posso seguir aqui dentro”, “eu estou fazendo algo que não está de acordo com meus ideais”. Comecei a trabalhar em fotografia, me deixaram um pouco tranqüilo. E depois, outra vez, mandaram-me participar de tor­turas. Então comecei a pedir a minha baixa do Exército.

Inclusive cheguei a manifestar a um Capitão da Companhia que estava mal, que não estava de acordo com isso, que tinha problemas com minha família devido a isso, porque chegava em casa preocupado pelo que tinha feito durante o dia e não estava levando minha vida familiar como tinha que levar devido ao trabalho na Companhia. Ele me disse que nunca fosse dizer isso diante de nenhum outro oficial, porque me poderia trazer muitos problemas.

Eu continuei posteriormente pedindo minha baixa e nunca a conseguia, até que ela me foi concedida em 1o. de março de 1980. E foi pela entrada de outro chefe, um homem que parece que nunca havia trabalhado em Inteligência. Eu falei com ele e coloquei outras razões, familiares e outras, lhe levei um comprovante de que perdia soldo e ele me concedeu a baixa.

Antes de sair, havia avaliado muito a possibilidade de poder denunciar essa situação. Porque, sabe, quando houve a detenção da gente do Partido pela Vitória do Povo, aconteceu um fato que me impactou: muitos deles, por mais que fossem torturados, não falavam. Então eu pensei: “Esta gente está lutando por algo que crê justo”.

Eu pude conversar, em um dado momento, com um deles, em um momento que estava a sós com ele, e lhe perguntei porque razão ele estava nesse movimento, que era o que o levava a estar aí, quais eram os fins deles? E essa pessoa me disse que estar no PVP não lhe trazia nenhum benefício econômico, mas que simplesmente o fazia porque tinha a convicção de que no Uruguai a situação estava mal, que se tinha um mau governo e que isso tinha que mudar; e que, portanto, trabalhavam para que isso se pudesse conseguir um dia. Sem nenhum beneficio pessoal, inclusive tendo às vezes que utilizar, para movimentar-se, para levar a cabo seu trabalho, dinheiro de seu bolso, do seu trabalho. Era algo que faziam por ideais, por uma convicção.

Esta pessoa me disse que eles lutavam para que, das riquezas do Uruguai, pudesse dispor todo o povo a não uma minoria, que viam que o regime uruguaio oprimia o povo, que os trabalhadores eram explorados, que por isso estavam lutando e que não lhe importava ser preso, porque estava lutando por algo que considerava justo.

P: — Você tem muitos amigos em Montevidéu?

R: — Tenho poucos, são contados. Tinha amigos como companheiros de infância, assim, depois perdemos o contato e não nas vimos mais. Inclusive nestes últimos anos eu era pessoa que nem gostava de ir a uma partida do futebol. Isto da Companhia de Contra-informações estava me criando um problema. Eu chegava em casa e às vezes minha senhora me dizia: “vamos visitar uma tia dela, uma tia minha” e eu nunca queria sair.

P: — Por que lhe estava criando um problema?

R: — Eu estava me envolvendo... não sei como vou lhe explicar... é difícil. Tinha me afastado do todos os amigos de antes e di­retamente não me agradava divertir-me. Eu ia para casa e me en­cerrava.

P: — Sentia-se responsável perante eles, perante seus amigos?

R: — Sei lá! Eu sentia remorsos e sei que muitos dos meus companheiros sentem remorsos e sentem que o que estão fazendo está mal e que continuam nisso, e sentem culpa. Eu sei que acontece isso com muitos deles. Os que se decidem a abandoná-lo, porém, são mui­to poucos, não sei porque, se é por medo que lhes possa faltar trabalho ou porque podem passar mal... Na Companhia há muitas pessoas que estão na minha situação. Há muitos ex-companheiros meus que tinham a mesma forma de pensar que eu tenho. Inclusive, nós falamos fora da Companhia de nossas atividades e todos coincidíamos em que estávamos fazendo algo que não estava bem, que não estava bem inclusive para a gente mesmo, que praticamente estávamos nos vendendo. Havia muitos companheiros meus que tinham os mesmos problemas que eu com seus familiares; que chegavam em suas casas e eram outras pessoas. Inclusive, eu caminhava pela rua às vezes, e sentia medo de repente. Uma pessoa me observava, e eu pensava: “esta pessoa não terá estado detida na Companhia?” Era um sentimento de culpa bastante grande. E sei que há muitos de meus companheiros que ainda continuam aí porque têm temor de deixar isso e encontrar-se com uma vida civil, que nem vão poder ganhar um soldo tal que lhes permita manter seu lar.

Há muitos que têm esse temor, que se sentem incapacitados para viver a vida civil.

P: — Há muita diferença entre a vida civil e a militar?

R: — Na realidade nós não ganhamos um grande soldo, mas tínhamos certas vantagens. Se algum de nós tinha algum problema determinado com o vizinho, com o dono do armazém, qualquer um que tivesse um problema assim poderia dizê-lo à Companhia, que isso era resolvido. Ou seja, que o integrante da Companhia tinha muitas vantagens. A oficialidade dizia sempre que quando alguém precisasse de dinheiro que pedisse, que não havia nenhum inconveniente, que não fossem andar passando mal com a família. Então há muitos que se sentem cômodos, que sabem que não vão ter problemas, que vão ter facilidades pelo lado da atenção médica.

P: — Com a oficialidade, o que acontece?

R : — Eu vejo alguma diferença entre a tropa e a oficialidade, porque eles saem da Escola Militar, saem conscientizados do trabalho que vão cumprir. O oficial, penso que está em uma situação tão cômoda que não se detém para pensar em outra coisa, no que está fazendo como pessoa, no que está fazendo com a tortura.

P: — A nível do pessoal subalterno, por que lhe parece que permanecem no Exército? Por convicção?

R: — Não, pelo soldo. A maioria pensa que está aí dentro e tem um soldo seguro, e que ainda que esteja um ano doente, vai seguir recebendo, que chega tal data e tem suas férias e logo para não se arriscar a enfrentar uma vida civil, vamos dizer, uma vida ganhando o soldo com trabalho. Tenho certeza que é por isso.

P: — O fato de ser militar não lhes dá certo poder, não lhes abre portas, lhes permite passar por cima de gente, etc.?

R: — Sim, sim. Por exemplo, nós estamos autorizados a usar armas de fogo, em qualquer circunstância, em qualquer lugar em que estejamos. Isso é aproveitado por alguns para fazer o que não devem. Mas há outros que não, que se comportam como civis, que não lhes importa ser militares. Tenho companheiros que inclusive vão embora e deixam o revólver no trabalho. Inclusive outros que os deixam em casa e andam dias sem o revólver. Pessoas às quais ser militar não dá um sentimento de superioridade. Há alguns que sim, mas a maioria não.

Sinceramente, eu, em lugar de sentir-me superior, digamos que me senti inferior e a muitos do meus companheiros lhes acontecia o mesmo, porque nós falávamos uns com os outros, certo? Nós tínhamos grupos que tinham o mesmo pensamento e falávamos entre nós. Eu me sentia mal sabendo que meus familiares sabiam que eu era milico. Não gostava que vissem na minha casa que eu tinha um revólver e tratava de escondê-lo. Inclusive acontecia que, andando trabalhando na rua com o revólver, às vezes a minha capa levantava e se via a revólver e eu ficava perturbado. Sentia que me ruborizava. Pessoalmente, pelo menos, ficava com um sentimento de inferioridade ante o resto da gente, porque ser milico, no Uruguai, equivale a ser um vadio que está ganhando o soldo sem fazer nada e equivale a ser um robô, uma pessoa que é mandada, que não é nada.

Eu tinha um companheiro desses, que eram uma minoria, que se aproveitavam do que eram: por exemplo, subia em um táxi e quando ia descer dizia ao motorista: “Estado Maior do Exército, estou trabalhando. Vai cobrar do Estado Maior”. Isso é permitido para os trabalhos. Se não se tem dinheiro, tem que se dar ao motorista o endereço do Estado Maior, Garibaldi, 2313, para que cobre aí. Quando se chegava à Companhia tinha que se informar que tinha tomado o táxi matrícula tanto, e que ia cobrar ao Comando e já estava previsto. Mas havia os que aproveitavam a situação para viajar constantemente de táxi.

Mas também há outra coisa. Uma das primeiras causas pelas quais eu pedi a baixa, é que eu estava certo, como estou agora, completamente certo, de que eu no Uruguai não estava seguro. Nem minha família nem eu. Que não estávamos seguros porque a minha baixa da Companhia foi muito questionada. Estiveram muito tempo para me deixar sair. Eu sei muitas coisas de lá. Para eles, não convém que uma pessoa de fora saiba isto.

Eu comecei a ver que tinha que ir embora do Uruguai, mas ao ir-me do Uruguai tinha que denunciar todo este fato no Brasil, certo? Que de alguma forma podia ajudar o Dr. Ferri neste trabalho que ele tem feito continuamente; que desde a época do seqüestro ele tem feito. Possivelmente poderia ajudar em algo a Lilián, de alguma maneira penso que podia ajudar o resto da gente. Ajudar que o Uruguai saia desta situação. Creio que em alguma medida pode servir tudo isto que já declarei e vou declarar. No jornal disse, e o Dr. Ferri estava lá também, quando me perguntaram o que eu pretendia, lhes disse que pretendia que isso servisse para o Dr. Ferri e para a causa que ele tinha. Que se publicasse isso, porque de alguma forma isso poderia servir; e que eu queria ir para o México e que em alguma medida necessitava um pouco de dinheiro, porque eu ia para o México e, certo que temos familiares, mas eu não queria chegar ao México dependendo exclusivamente de outras pessoas. Queria chegar lá e enquanto nos adaptássemos, queria ter algo para nos arranjarmos, o que o jornalista aceitou logicamente.

P: — O que você pensa do governo atual?

R: — As principais coisas que vejo negativas são que todos os do governo vivem bem, desde o que está mais em cima até o último oficial do Exército. Têm um soldo que lhes permite viver muito bem, ter suas comodidades. Daí para baixo, estão os outros, está por exemplo o operário, o operário que não teve uma preparação, que tem que trabalhar em fábricas ou como peão de construção, esses trabalhos em que só tem que empregar a força do homem, não? e que está passando mal indiscutivelmente. Isso é palpável. Acho que um operário não tem possibilidade de comprar casa, e um aluguel atual­mente no Uruguai não baixa de mil pesos novos e a maioria dos operários está ganhando 6,50 pesos por hora, ou seja, 50 pesos por dia, que não chegam nem a 1 .500 por mês 2.

O orçamento militar eu não sei a quanto ascende, mas deve ser tremendo. São soldos respeitáveis os dos oficiais do Exército e o que fazem é nulo, porque se se dissesse que estão ganhando um bom soldo mas estão produzindo para o país... mas ganham bons soldos e não produzem.

As Forças Armadas atualmente estão conduzindo o país. Estão para os cargos, para estar sentados atrás dos escritórios, estar figurando como o presidente de tal coisa, ou como interventor de outro organismo. Ganhando um soldo e não fazendo nada para o país. A maioria das Forças Armadas está dedicada ao controle em si da situação interna, para que tudo marche como se dispôs que marcharia a partir do ano de 73, controle constante da população, das indústrias, vigiando constantemente. Se todos estes que no Uruguai tem que ser “bancados” 3 sem produzir produzissem algo, não haveria necessidade de que um operário estivesse ganhando tão pouco.

Acredito que essa situação se deve aos grandes interesses que há entre o governo e as indústrias. Se não houvesse interesses cria­dos, eu penso que o governo exigiria que as empresas pagassem o laudo. Tem que haver grandes interesses. Porque eu penso que um operário trabalha em uma indústria e ganha um soldo aproximado ao que eu dizia; mas esse operário deve estar rendendo um ganho incalculável para a patrão. É certo que o operário não vai pretender ganhar tanto como ganha o patrão, mas que o operário ganhe algo tão, tão miserável, para mim não é justo. E penso que se as autoridades não fazem algo para melhorar essa situação, é porque têm in­teresses.

P: — Como você foi selecionado para ingressar na Companhia de Contra-informações?

R: — Penso que me selecionaram porque um Major do Departa­mento 2 me conhecia; me conheceu no Comando, era o Major Lá­zaro. Penso que foi por ele que me selecionaram porque na Companhia havia muitas vagas quando eu entrei. E como eu sabia fotografia, estava no Comando, não tinha instrução militar, era jovem, penso que foi por isso. Num determinado momento me disseram: “Você passa a prestar serviço na Companhia de Contra-informações, apresente-se amanhã”. Isso foi repentino. Me comunicaram que eu passava a prestar serviço ali; de qualquer forma, se me tivessem perguntado eu teria dito que sim, certo? porque não sabia o que se fazia ali antes. Não sabia de nada... Conhecia a Companhia por coisas que se fala­vam. A Companhia era muito respeitada no Exército, porque dizem que a Companhia teve que ver com descobrimentos de militares que não estavam de acordo com o governo, certo? se dizia que havia tido muito a ver com isso. Então a Companhia era muito respeitada nesse sentido; nós tínhamos inclusive a obrigação de que, se escutássemos algum militar falar da Companhia, comunicar imediatamente aos superiores. Tinha que fazer um informe, mesmo que se tratasse de um general.

Eu, em particular, fiz isso uma vez com uns companheiros meus, contra um Comandante, Tenente Coronel do Comando. Estávamos no Comando e passávamos perto dele e ele nos disse: “E vocês, por que não batem continência, cabeludos sujos? O que é que pensam que são?” Nos sentimos feridos, não na parte militar, mas já em nossa personalidade: cabeludos sujos! Era o Tenente Coronel Ribeiro. Nessa época, que foi no ano de 78, era chefe do Quartel General; e nos disseram que imediatamente o General Núñez o condenara a dez dias de prisão. Dez dias para um Tenente Coronel é muito, e ademais pri­são rigorosa...

P: — Você pensa que no Uruguai a gente está inconformada com o governo atual?

R: — Sim, claro que sim. Ou seja, estarão conformes os que tem seu bom negócio. Porque tem suas fazendas, suas propriedades. Mas a maioria do povo está em desacordo. Disto estou seguro.

Inclusive estão em desacordo grande parte dos subalternos dentro das FFAA, a nível de tropa. Eu conheço militares, soldados, que vivem em umas casinholas... naqueles cantegriles4 de Aparicio Saravia Os soldos desta gente são baixíssimos. É gente que tem 5 ou 6 filhos, gente que não tem educação. Mas é gente que tem que se dar conta que eles estão servindo para algo que... Estão servindo, por exemplo, militares que estão ganhando dez vezes mais que o soldo deles, gente que está em uma posição muito cômoda enquanto o pessoal de tropa está com soldos de miséria e tem que manter mu­lher, filhos.

O soldo não alcança os soldados da Companhia. Não podem viver com ele. E menos os soldados dos quartéis, dos batalhões, que ganham menos do que a gente da Companhia.

Como será a coisa que eu sei de gente da Companhia (inclusive algumas vezes aconteceu comigo) que tem que levar leite para suas casas da Companhia, que tem que levar carne ou verdura ou alguma outra coisa. Isso para poder ir passando mais ou menos.

P: — Esses alimentos eram vendidos aos soldados?

R: — Sim, eles eram descontados, mas a um preço menor, à metade do preço corrente.

Mas havia gente que levava algumas coisas escondido, a gente que estava mais necessitada, que tinha mais filhos, por exemplo. O que acontece é que tem gente que vive muito mal, que em sua casa tem muito pouca comodidade. Porque o soldo não permite outra coisa. Havia gente que ganhava dois milhões e meio5 como eu, e que pagava um milhão e duzentos, um milhão e trezentos de aluguel. Havia uns que até chegavam a pagar um milhão e meio. Então, é uma coisa des­proporcionada cem por cento. Sendo que todos, todos os oficiais, não conheço um que não tenha casa própria. O que tem mais ou menos tem o apartamento próprio, a maioria tem automóvel também. Claro, o soldo lhes permite. E têm muitas outras mordomias. Por exemplo, os vales de gasolina para os oficiais da Companhia são sagrados!

Eles, com esses vales de gasolina arranjam muito dinheiro. Mas se chegam a ver um soldado que por acaso leva algo para casa, então esse soldado tem problemas, imediatamente. Mas eles não. Está provado que roubam vales de gasolina continuamente, mas não acontece nada.


 

CAPÍTULO II
AS DECLARAÇÕES DE GARCIA RIVAS E A CONSTITUIÇÃO URUGUAIA

“Nada, nada, para as Forças Armadas, é inviolável.”

 

P: — Em suas declarações aparecem numerosos fatos delituosos e condenáveis por parte do governo uruguaio, através das Forças Armadas e, em particular, da Companhia de Contra-informações do Exército. Desde violações flagrantes dos princípios mais elementares da Constituição uruguaia, até violações do direito público internacional e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Queríamos hoje analisar alguns aspectos deste problema. A última Constituição uruguaia, a que se supõe que está em vigência, expressa:

Art. 7: Os habitantes da República têm direito de ser protegidos no gozo de sua vida, honra, liberdade, segurança, trabalho, e propriedade. Ninguém pode ser privado destes direitos senão conforme as leis que se estabeleceram por razões de interesse geral.
Art. 14: Não se poderá impor a pena de confiscação de bens por razões políticas.”

O que você tem a dizer sobre isso?

R: — Posso dizer que isto não se cumpre porque não há tal grau de proteção para todos os habitantes da República, dado o fato de que se alguma pessoa é detida por alguma causa, essa pessoa pode sofrer prejuízos, danos, que vão em contra do que dizem estes artigos. Essa pessoa não tem uma garantia de proteção, nem em sua pessoa, nem em sua segurança, nem em sua propriedade. Se dá o caso de que quando se detém uma pessoa, se confiscam suas propriedades. Se pode fazer uma espécie de saque em seu domicílio. Em oportunidades em que eu participei, inclusive em operações pequenas, em todos se fazem saques sistemáticos. Se levam os artigos de mais valor: televisores, rádios, refrigeradores. Se se encontram, também jóias e dinheiro. Se conta o caso de batalhões que levavam caminhões aos lugares onde se faziam operações e levavam os móveis. Era um saque completo.

“Art. 11: O lar é um sagrado inviolável. De noite ninguém poderá entrar nele sem o consentimento de seu chefe, e de dia, só com ordem expressa do juiz competente, por escrito, e nos casos determinados pela lei”

R: — É outra coisa que não se cumpre, porque não se considera o lar inviolável. É um fato comprovado; porque quando se quer deter uma pessoa sempre se vai detê-lo em seu lar e não na rua. Ele é detido em seu lar porque se pensa que vai ser apreendido com mais facilidade; que a pessoa não vai resistir por temor de que possa prejudicar algum familiar. E, ademais, todas as operações são praticadas de noite. As forças de segurança não vão bater na casa e pedir con­sentimento ao chefe deste lar, mas elas vão e entram simplesmente. De noite é melhor porque é um fator de surpresa chegar a uma certa hora, em que a família está reunida ou em descanso.

P: — Quando não encontram a pessoa requerida, o que fazem?

R: — Primeiro se pressiona os familiares para que digam onde está. É difícil que estes sejam detidos se dizem onde pode estar; há casos em que se leva algum familiar para pressionar o requerido. Mas também se deixa pessoal da unidade que foi detê-lo, no que se chama uma “ratoeira” 6, dando a aparência de que na casa está tudo normal. Isto que se necessite uma ordem expressa do juiz não se usa, eu nunca vi que se usasse.

“Art. 12: Ninguém pode ser penalizado nem confinado sem forma de processo e sentença legal.”
“Art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo homem acusado de um ato delituoso tem direito de ser considerado inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

R: — Geralmente, todas as pessoas que são detidas o são extra-oficialmente, em forma de seqüestro, poderíamos dizer. Porque são muitos os casos de pessoas que são detidas e não se conta nem a seus familiares que unidade a deteve. Não se põe a família em conhecimento de que em tal lugar podem obter informação do detido. Ela não é informada sobre que órgão o foi deter. Esta é outra coisa que não se cumpre em absoluto. E, às vezes, eles são levados para lugares que não são locais de reclusão oficiais. Muito menos têm um processo e muito menos uma sentença. O pré-sumário judicial é feito pela mesma unidade que o detém, ou seja, pelos próprios interroga­dores. Eu presenciei o caso de detidos dos quais se ia informar ao juiz. Dizia-se a ele que estavam em tal ou qual quartel.

“Art. 15: Ninguém pode ser preso senão ‘in fraganti’ delito ou havendo semi prova dele, por ordem escrita do juiz competente.”
“Art. 5 do Declaração Universal dos Direitos Humanos: Nenhum homem será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”

R: — Lá se detém geralmente por suspeitas ou por certas informações. Então os órgãos de segurança detêm as pessoas mas sem saber se é verdade. O método que se usa para saber se é verdade a suspeita é o interrogatório, ou seja, a tortura. A tortura é sistemática. Eles dizem que para obter informações é necessária. Conheço o caso de uma pessoa que por tortura foi levada à beira da morte e logo faleceu. Entretanto, não se pôde provar delito algum desta pessoa.

“Art. 16: Em qualquer caso do artigo anterior, o juiz, com a maior responsabilidade, tornará a declaração do detido num lapso de 24 horas, e depois de 48 horas, no máximo, começará o sumário. A declaração do acusado deverá ser feita na presença de seu defensor. Este terá também o direito de assistir a todas as instâncias sumariais.”

R: — Atualmente não existe nenhum juiz que tome declarações dentro de 24 horas, como diz este artigo, a nenhum detido pelas Forças Armadas, a nenhum detido por problemas políticos, nem que vá ao lugar de detenção. O detido nos quartéis não tem defensor. Não sei se depois, no momento de ser julgado, recebe algum defensor.

“Art. 27: Em caso de prisão indébita, o interessado ou qual­quer pessoa poderá apresentar ante o juiz competente o recurso de ‘habeas corpus’, a fim de que a autoridade explique e justifique imediatamente o motivo legal da prisão.”

R: — Praticamente todas as prisões são indébitas. Ninguém pode apresentar o recurso de ‘habeas corpus’. Esse direito não está reconhecido. Além do mais, como se trata de detenções ilegais, não re­conhecidas, como são seqüestros, nenhum juiz pode aceitar esse recurso. Por outro lado, os próprios familiares não sabem onde está o detido, nem quem o deteve.

“Art. 23: Todos os juizes são responsáveis perante a lei, pela menor agressão contra os direitos das pessoas bem como por separar-se das normas de processo estabelecidas por ela.”

R: — Aqui poderíamos dizer que os juízes militares são os responsáveis pelas prisões de todas as pessoas, pois são eles quem as determinam. Não existe participação de juizes civis.

“Art. 28: Os papéis dos particulares e sua correspondência epistolar, telegráfica ou de qualquer outra espécie, são invioláveis, e não poderão ser revisados, examinados ou interceptados, senão conforme as leis estabelecidas por razões de interesse geral”.

R: — Nada, nada, é inviolável para as Forças Armadas. Tanto correspondência, como cabos telegráficos, como telefones, são violados. O Correio tem uma central no Aeroporto de Carrasco, que se encarrega de revisar toda a correspondência. Os telefones são interceptados e eu conheço o caso concreto da mãe de Lilián Celiberti, cujo telefone está permanentemente interceptado. Ou seja, que nada disso está sendo cumprido no Uruguai.

“Art. 29: É inteiramente livre em toda a matéria a comuni­cação de pensamento, por palavras, escritos particulares ou publicados na imprensa ou através de qualquer outra forma de divulgação, sem necessidade de censura prévia, sendo respon­sáveis o autor, o impressor ou o editor, de acordo com a lei, pelos abusos cometidos.”

R: — Esta é outra coisa que não se respeita, porque no Uruguai não existe liberdade de imprensa, não existe liberdade de pensa­mento, não existe liberdade de expressão. No Uruguai se publica apenas aquilo que conta com a aprovação das Forças Armadas. Quando os militares deram o golpe de estado, deixaram de ser publicados uma série de jornais que foram clausurados. O jornal do PVP, justa­mente, é considerado um jornal clandestino. Não existe tal liberdade de expressão nem de pensamento.

A Constituição parece ser ignorada totalmente. Estou me lembrando agora de quando foi detido um capitão, ex-capitão do Exército, cujo sobrenome era Buela, Antonio Buela. Na Companhia de Contra­-informações ele foi interrogado novamente sobre outros integrantes do contragolpe. Então, num dado momento, um dos oficiais da Companhia lhe disse: “Como é que vocês planejavam isto se é contra a Constituição?” Buela disse: “Não senhor, os que estão contra a Constituição desde o ano 73 são os senhores”. “Nós não!” disse o capitão Ferro. “Sim senhor, são os senhores porque a Constituição diz isso, isto e aquilo”, e fizeram-no calar imediatamente.

P: — As denúncias no exterior, por exemplo, a última Conferência da OEA em La Paz, que condenou o Uruguai por violações sistemáticas dos direitos humanos, repercutiam diretamente no Exército e na Companhia de Contra-informações?

R: — Na Companhia isto era comentado por oficiais que diziam: “Estes continuam insistindo com a mesma coisa...” mas isto não os preocupava muito. Falavam de Amnesty International, por exemplo. Lá se diz que Amnesty é uma organização integrada por comunistas e subversivos, que pretende desacreditar o governo uruguaio. Isto é o que diz a oficialidade à tropa.

Certa vez, foi negada a entrada de uma Comissão de Inquérito no país, acho que era a Comissão da OEA. E uma pessoa enviou uma carta ao jornal “El Pais”, para aquela seção “Recebemos e Publica­mos”. Nessa carta criticava as autoridades, perguntando como era possível que não permitissem a entrada no país de tal Comissão alegando que eram subversivos, sendo que essas pessoas eram de uma ideologia determinada, que defendiam os direitos humanos e outras coisas assim. Duas horas depois de ter saído a edição, essa pessoa estava na Companhia de Contra-informações. Era uma pessoa que vivia na rua Centenario, quase Av. Itália, acho que era um notário. Foi algo que chamou a atenção pela firmeza dessa pessoa em es­crever a carta. Foi detida imediatamente.

P: — Como repercutiu a denúncia do seqüestro em Porto Alegre de Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez?

R: — Na Companhia ficaram alarmados quando, não me lembro se foi o embaixador da Itália, se interessou por Lilián Celiberti. Ficaram alarmados de que um embaixador de um país se interessasse por uma detida. E alarmaram-se ainda mais quando souberam que o Papa se interessara por Lilián Celiberti. Quando havia uma certa pressão do exterior havia preocupação. Mas essa preocupação era pelas conseqüências que o fato lhes poderia causar particularmente. Não ao Uruguai, mas a eles como pessoas. Porque eles corriam o risco de serem transferidos para algum outro lugar que não estava ao mesmo nível do que a Companhia. Essa era a sua única preocupação.

P: — Que efeitos tem sobre eles a campanha internacional pelos desaparecidos?

R: — Todas as campanhas feitas pelos desaparecidos ou pelos presos influem sobre eles, lhes dá uma certa preocupação.

P: — A que atribui o fato de que a repressão seja tão violenta no Uruguai?

R: — Penso que tudo isso que está acontecendo, esta repressão, estas violações, têm um fim específico, que é que os militares querem estar seguros de que em nenhum momento sua posição possa correr perigo; de que ninguém em absoluto vai conspirar contra esse regime e esse governo. Não querem permitir absolutamente nada, que ninguém possa formar algum grupo de oposição no Uruguai. Isto é o que objetivam através da repressão contínua e das violações à pessoa. Eles sabem que a maioria do povo não está de acordo e é por isso que continuamente se manda gente a diferentes lugares onde há concentração de público, para que se escute o que há no ambiente, os boatos que existem. É evidente que têm medo de que alguém possa estar conspirando ou de que se forme um grupo.

P: — Todos os integrantes da Companhia de Contra-informações possuem estes sentimentos de ódio e repressão contra o povo?

R: — Alguns entraram na Companhia sem nenhum tipo de problema econômico, porque são de famílias que estão em boa posição. Entraram apenas pela aventura de ingressar num lugar assim, onde podem usar cabelo comprido e ter uma arma, e estar na rua todo o dia. Depois muitos se arrependem, mas não conseguem a baixa, não podem sair. Algum talvez possa sair, outros se habituam e ficam presos lá. Sei que a maioria dos rapazes que está lá não está convencida daquilo que está fazendo. Muitos sabem que o que estão fazendo está mal e que algum dia talvez terão de prestar contas por isso.

Eu quero voltar ao Uruguai, e gostaria de coração que tudo isso acabasse.


 

CAPÍTULO III
ANATOMIA DE UM SEQÜESTRO — LILIÁN CELIBERTI,SEUS DOIS FILHOS E UNIVERSINDO RODRIGUEZ DIAZ

“Esta operação recebeu o nome em clave de ‘Sapato Roto’.”

 

P: — Quando foi que você ingressou ao Exército?

R: — Comecei no Exército em 1975, no Comando Geral do Exército. Em 1977 fui transferido para a Companhia de Contra-informacões do Exército, onde estive até dezembro de 1979.

A Companhia de Contra-informações depende do Departamento II do Estado Major do Exército.

P: — Quais são as funções da Companhia de Contra-informações?

R: — A tarefa específica da Companhia seria a vigilância dentro das próprias forças do Exército, para evitar a divulgação de informações. No entanto, essa missão específica não é realizada, posto que a Companhia efetua um trabalho a outro nível, faz investigações fora do Exército, prendendo pessoas, interrogando, o que não estaria dentro das suas funções.

P: — Que funções você desempenhava dentro da Companhia?

R: — Sempre trabalhei como fotógrafo. Fui transferido para a Companhia porque eu não tinha feito instrução militar. O que se quer nessa Companhia e gente que não tenha preparação militar, que não se comporte como militar. Isto devido às tarefas que realizávamos, tarefas de inteligência. Porque tínhamos que andar na rua, escutar conversas. Até mesmo íamos assistir a jogos de futebol, no estádio, a lugares onde se reúne muita gente, lugares públicos. Tínhamos que obter todos os dados possíveis, principalmente a respeito do governo e da situação do país.

P: — Com que objetivo eram realizadas estas investigações?

R: — A fim de reprimir. Tratava-se de seguir as pessoas que estavam conversando, ver onde moravam, para posteriormente fazer uma vigilância, ver seus contatos com outras pessoas, averiguar suas atividades.

P: — Poderia nos informar sobre alguma operação realizada pela Companhia de Contra-informações da qual você tenha participado?

R: — Sim. A detenção de vários integrantes do Partido pela Vi­tória do Povo em novembro de 1978, que culminou com o seqüestro em Porto Alegre de Lilián Celiberti e Universindo Diaz.

Esta foi uma das operações mais importantes realizadas pela Companhia de Contra-informações durante o período em que trabalhei nela.

Esta operação para prender os integrantes do PVP recebeu o nome em clave de “Sapato Roto”. É um nome completamente arbitrário, que serviria para designar a operação nas transmissões.

P: — Poderia relatar esta operação?

R: — Tudo começou quando um integrante do Partido pela Vitória do Povo foi preso em Montevidéu, um senhor chamado Carlos Amado Castro Acosta. Ele foi detido por causa de um telefonema anônimo ao Comando Geral do Exército, que dizia que em tal endereço, na Vila Colón, havia uma pessoa requerida pelas FFAA. Do Comando Geral do Exército isto passou ao Departamento II e posteriormente à Companhia, para que esta detivesse tal pessoa ou investigasse essa informação para ver se era certa.

Fomos até a casa, onde se instalou uma ratoeira. Ele não estava, era a casa dos pais. Estes disseram que ele vinha todos os dias, porque tinha uma filha que morava com eles. Ou seja, um dia, à noite, nos primeiros dias de novembro, instalou-se uma ratoeira na casa até que ele apareceu no outro dia de manhã, mais ou menos às 10 horas. Telefonamos para a Companhia e vieram buscá-lo.

P: — Foram efetuadas outras detenções?

R: — Sim. Também foram presos Luís Alonso, Rosario Pequito Machado, Germán Steffen, seu filho Rony Steffen, Marlene Chauquelt e Ana Salvo. Rosario Pequito morava muito perto da Companhia. Nós estávamos em Colorado 2298 e ela morava em M. C. Martinez e Gallinal.

P: — Você presenciou os interrogatórios dessas pessoas?

R: — Presenciei o interrogatório de Rosario Pequito Machado. Foi torturada no “tacho”, como se diz lá. É um tonel cortado pela metade, cheio de água, com uma tábua para deitar a pessoa a fim de que sua cabeça fique dentro d’água, com um capuz impermeável. Ela esteve assim um dia. Depois foi algemada, com as mãos para as costas, e essas algemas foram colocadas num gancho que estava dependurado do teto; ela ficou com os braços levantados, separados do corpo. Estava nua.

Esteve assim 4 dias. Quando desmaiava, tiravam-na dali durante uma meia hora, reanimavam-na e depois a colocavam novamente.

P: — Quem participou das torturas?

R: — O Capitão Ramos era quem dirigia o interrogatório na Companhia. O Capitão Eduardo Ramos é o Chefe da Seção Técnica da Companhia de Contra-informações. Estava ele e uns companheiros meus, subalternos.

P: — De que eram acusadas essas pessoas?

R: — Bem, essas pessoas distribuem no Uruguai um jornal clandestino que se chama “Compañero”.

P: — Como continuou a operação?

R: — A partir dos interrogatórios ficaram sabendo que algumas destas pessoas tinham contatos em Porto Alegre. Aí nasceu a idéia, a nível de oficiais, de vir para Porto Alegre imediatamente para prender essas pessoas, para agarrar esses contatos, sem combinar nada de antemão com a polícia do Brasil. Essa foi a primeira coisa que se tratou, vir para Porto Alegre clandestinamente.

Depois o Chefe do Departamento II, o Coronel Calixto de Armas naquele momento, disse que não, que isso era impossível, que era necessário contatar a polícia brasileira.

P: — O Coronel Calixto de Armas consultou seus superiores para entrar em contato com a polícia brasileira?

R: — Não consultou ninguém. Não passou do Departamento II.

O Coronel de Armas é uma pessoa muito forte. Além do mais, está muito bem conceituado a nível dos seus superiores, como uma pessoa muito firme, como um militar com boa capacidade de mando. Ele tinha sido Adido Militar no Paraguai, se não me engano em 1976, antes de ocupar este posto no Departamento.

P: — Como se entrou em contato com a polícia brasileira?

R: — Sei que o Coronel de Armas contatou alguém em Porto Alegre, outro Coronel. Nunca ouvi o nome dele. Tratavam que ninguém soubesse o nome. Eu sei disso por uma conversa que tive com um sargento, o braço direito do Capitão Ferro. É o sargento Miguel Ro­driguez.

Primeiro viajaram para Porto Alegre para combinar a operação o Capitão Eduardo Ramos e o Major Bassani, que neste momento ocupava durante uma semana a Chefatura interina da Companhia, porque o Major Carlos Rossell, que é o Chefe, não estava naquele momento.

Depois o Major Rossell também viajou para acertar outros de­talhes. Nessa oportunidade foi estabelecido um código especial para este caso, para as comunicações por telex entre Porto Alegre e a Companhia.

P: — Como se realizou a viagem até Porto Alegre?

R: — Viajamos num caminhão de 3 toneladas cedido pelo inter­ventor da CADA (Comissão Administradora de Abastecimento), que é o Capitão Armando Méndez, que também integrava a Companhia. É uma pessoa da linha muito dura. Uma pessoa como o Capitão Ferro, mais ou menos. No caminhão iam os quatro detidos, Luis Alonso, Rosario Pequito Machado, Steffen e Marlene Chauquelt.

Ia também uma caminhoneta Kombi amarela ... famosa essa caminhoneta. Nela foram levados os filhos de Lilián Celiberti e, quando os integrantes da OAB foram a Montevidéu, essa caminhoneta permanceu guardada, não podia sair nem um momento para a rua. Porque é uma caminhoneta que chama muito a atenção em Montevidéu. É uma caminhoneta Kombi nova, amarela, tipo perua, propriedade da Com­panhia. E também ia um Fiat 128.

No caminhão iam os quatro detidos, encapuzados e algemados, vigiados pelos subalternos.

Os oficiais Yannone e Ferro iam no Fiat. E na Kombi ia um companheiro meu e eu. Trouxemos a Kombi porque previam que muita gente ia voltar nela.

Paramos na fronteira do Chui7. Steffen dissera que ia fazer um contato na fronteira, mas esse contato não ocorreu. Eu fiquei então com Steffen no Hotel São Miguel e os demais continuaram até Porto Alegre.

P: — Ingressaram no Brasil em veículos uruguaios?

R: — Não. A Polícia Federal brasileira levou todos para Porto Alegre. Acho que foram em veículos da Polícia Federal. Mas quero esclarecer que eu não fui para Porto Alegre.

P: — Quem viajou com os detidos para Porto Alegre? Poderia informar qual foi a documentação usada pelos oficiais?

R: — Com os detidos viajaram Yannone e Ferro. O Capitão Yan­none é o Chefe da Seção Administrativa da Companhia. Eles levavam um jogo de documentação falsa que tinha sido preparado para eles na Companhia. Recordo que o nome do Capitão Ferro era Folca.

P: — Você permaneceu em São Miguel com outras pessoas?

R: — Com todo o pessoal subalterno. Depois de uns três dias eles voltaram. Voltaram os oficiais, os três detidos, Lilián Celiberti, as duas crianças e Universindo Rodriguez. Chamaram-nos para que fôssemos buscá-los na Polícia Federal brasileira. Eles chegaram à fronteira e ficaram no edifício da Polícia Federal. Estavam em dois quartos dentro do prédio, porque estavam divididos. Os meninos estavam se­parados. Os demais estavam juntos, todos encapuzados e algemados.

Fomos buscá-los e levamos todos para São Miguel; nesta mesma noite, Lilián Celiberti e o Capitão Ferro regressaram ao Brasil, com os brasileiros. Yannone permaneceu em São Miguel.

P: — Conhece os brasileiros que foram até São Miguel?

R: — Reconheci apenas a Didi Pedalada, mas não sei quem eram os outros dois.

P: — Você teve oportunidade de ver o pessoal da Polícia Brasileira que estava com os seqüestradores?

R: — Sim. Vi uma pessoa que me disseram que era da Polícia Federal, mas não me especificaram se era de Porto Alegre ou da fronteira. Era um cara alto, de 1,80m aproximadamente, barbudo, com uma barba abundante. Moreno e robusto.

P: — Por que o Capitão Ferro voltou com Lilián para Porto Alegre?

R: — O que se comentava era que iam ver se prendiam um contato que deveria haver no dia seguinte no apartamento de Lilián. Mas pouco tempo depois voltaram de novo para a fronteira. Chegaram a São Miguel de madrugada e na manhã seguinte fomos todos para as cabanas de Santa Teresa. Viajamos para Santa Teresa porque em São Miguel estávamos muito perto da fronteira. Isso foi o que Ferro disse. Aparentemente foi pelo problema dos jornalistas.

P: — Onde permaneceram as crianças durante todo esse período?

R: — Eu não os vi em São Miguel. Estavam presos numa sala. Um companheiro meu estava encarregado de estar continuamente com eles. Em Santa Teresa estavam numa cabana separada da ocupada pelo resto dos detidos. Lilián não pôde ver as crianças.

P: — A quem pertencem as cabanas usadas em Santa Teresa como lugares de detenção?

R: — Pertencem ao Comando Geral do Exército. Na época do verão, de praias, os oficiais dependentes do Comando Geral do Exército vêm veranear nessas cabanas.

P: — Para usar o hotel de São Miguel e de Santa Teresa, pediu­-se autorização à Região Militar n.° IV?

R: — Não, nada disso. Em primeiro lugar, porque essa era uma operação secreta. E era secreta até mesmo a nível de Exército.

Para usar estes lugares, se falou com o Chefe do Parque de Santa Teresa e São Miguel. Porque São Miguel pertence à mesma Comissão de Parques. Essa pessoa era na época o Major Nery Cas­tellanos, que autorizou que fossem usadas as cabanas e o lugar onde ficamos em São Miguel.

Em Santa Teresa foram ocupadas duas cabanas. Numa estavam as crianças. Em outra, de dois andares, estavam os detidos, as mulheres num lugar e os homens em outro.

P: — Os detidos foram torturados em Santa Teresa?

R: — Lilián Celiberti foi torturada. Perguntavam-lhe continuamente nomes, nomes de mais pessoas que estariam no Brasil. Queriam nomes com urgência. Comentava-se que, em Porto Alegre, Pedro Seelig estivera nos interrogatórios.

P: — Como foi torturada Lilián Celiberti?

R: — Isto é muito fácil. O principal é ter um capuz impermeável. Lá dentro se encheu um barrilzinho de água. Era meio improvisado mas servia.

P: — Pensavam regressar ao Brasil para deter outras pessoas?

R: — Queriam nomes para transmiti-los ao DOPS. Aparentemente queriam o nome desse Lalo que ninguém conhecia. Também pediam nomes das pessoas que estavam na Europa. Porque eles diziam que no Brasil estava o braço armado do Partido pela Vitória do Povo e que por aqueles dias ia chegar gente da Europa para fazer contatos.

Buscava-se o filho de Steffen, que está na Europa e que devia vir para um contato com Lilián. E também outra pessoa que residia em São Paulo, conhecida pelo nome de Hugo8. Tínhamos um gráfico com todos os nomes, com os passos a seguir. E recordo que ali es­tava o nome Hugo e reticências e pontos de interrogação.

Também me lembro que lhes perguntavam se o PVP tinha gente em Buenos Aires.

P: — Que material foi encontrado no apartamento de Lilián e Universindo?

R: — Foram encontrados os jornais “Compañero”. Lembro-me de ter visto um que tinha várias fotos na capa de presos políticos chamando a Anistia ao Uruguai.

P: — Quando voltaram e em que lugar permaneceram detidas estas pessoas em Montevidéu?

R: — Estivemos mais ou menos até às 7 da tarde em Santa Te­resa e de lá saímos para Montevidéu. Todos os detidos foram juntos no caminhão da CADA, com alguns objetos pessoais que tinham trazido de Porto Alegre. Além da roupa trouxeram um rádio-gravador, uma máquina fotográfica, uma máquina de escrever. Tudo isso ficou em poder da Companhia. Os detidos iam encapuzados e algemados, e eram vigiados para não canversarem entre si.

Na Kombi iam as crianças e no auto os oficiais.

Chegamos aproximadamente à meia-noite à Companhia. Todos os detidos ficaram lá, menos as crianças que foram levadas para um apartamento no centro de Montevidéu, localizado em Rio Negro e Canelones. Este apartamento pertence à Companhia; antes era propriedade de uns integrantes do grupo “Montoneros” capturados no Uruguai.

P: — Quando Universindo e Lilián foram detidos contava-se com antecedentes das suas atividades políticas?

R: — A Companhia não dispunha de informações sobre eles. Havia e há na OCOA um fichário completo do VPV. Quando surgiu o nome dessas pessoas foram até a OCOA e perguntaram se estas pessoas estavam fichadas. Acho que Lilián estava fichada desde 1969 por atividades na Resistência Obreiro-Estudantil (ROE), que era a for­ma em que atuava o PVP naquela época. Havia até mesmo uma foto dela.

P: — Quando voltaram para a Companhia, os detidos foram torturados novamente?

R: — Sim. Foram interrogados e torturados de novo na Companhia. Isto era feito numa oficina mecânica. Quando as pessoas vão ser torturadas são levadas para a oficina mecânica. Quando alguém era interrogado punham o rádio a todo volume, porque a uns 30 metros da oficina havia uma casa. Penso que, de qualquer forma, as pessoas que moravam lá perto tinham que perceber alguma coisa, porque os gritos não se escutavam, mas o rádio era algo que... Nós mesmos, quando chegávamos na Companhia, sabíamos que se estava interrogando, porque o rádio estava a todo volume. As pessoas que moravam perto tinham que se dar conta disso, porque viam caras fazendo guarda com uma camisa militar e com o cabelo até os ombros.

P: — Esta oficina mecânica está localizada na própria sede da Companhia?

R: — Está do lado da porta de entrada, do lado do escritório do Chefe da Companhia, na rua Colorado. Não se vê desde a rua porque lá fica o portão de entrada da Companhia. Atrás desse portão tem uma ruela que é a que entra ao pátio da Companhia. Mas desde esse portão até a esquina tem um muro. Atrás desse muro há um galpão muito grande que antes era uma carpintaria, que chegou a funcionar mesmo quando a Companhia já estava localizada lá. Era a carpintaria do SIAM, Serviço de Arquitetura Militar. Esse galpão tinha uma altura de uns 15 metros e é por isso que nem o edifício da Companhia nem a oficina mecânica são vistos desde a rua.

Tudo fica escondido por este prédio, que é de tijolos, bastante velho.

No entanto, se alguém fosse torturado nessa oficina sem o rádio a todo volume, tudo se escutaria perfeitamente desde a rua. Quando o rádio estava estragado, colocava-se um Volkswagen com o rádio a todo volume.

P: — Quem estava presente aos interrogatórios?

R: — O Capitão Ferro. Rossell também... o Major Rossell é muito conhecido pela mãe de Lilián, posto que ia bastante freqüente­mente falar com ela.

P: — Você esteve presente quando Lilián Caliberti e UniversindoRodriguez foram prestar declarações no Juizado? Conhece ou tem referências do Juiz Militar Coronel (R) Carlos Gamarra, do Juizado da Primeira Vara?

R: — Não, eu não estava presente nem conheço esse juiz. O que posso dizer-lhes é que um dia pediram com toda urgência que eu tirasse fotos de Lilián e Universindo para fazer-lhes documentos. Quando eu fui tirar essas fotos, eles ainda estavam na Companhia.

Depois prepararam dois jogos da carteiras de identidade para eles. Também fizeram documentos falsos para as crianças. Um companheiro meu foi tirar fotos deles no apartamento onde eles estavam. Foi o sargento Obdulio Custodio. Fiquei sabendo por comentários que esses documentos eram para ser apresentados ao juiz.

Mandaram-me tirar uma foto do passaporte de Universindo Ro­driguez, que era um passaporte espanhol. E depois me mandaram tirar foto de outro passageiro, mas era a mesma; a única diferença era que um era mais velho do que o outro. Ou seja, que fizeram outro passaporte igual ao que ele tinha. Não sei se havia um problema de vencimento de passaporte, não consigo me lembrar. Mas foi algo extraordinário que lhes fizessem dois jogos de carteiras de identidade. Eu vi quando estavam fazendo as carteiras. Trouxe fotos de todos esses documentos, que estão no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre.

P: — Você sabia que o Juiz tinha sido informado previamente a respeito das características desse caso?

R: — Não, não sei. Mas é lógico que tem de ter havido uma combinação com o Juiz. Não acho que o Juiz tenha sido enganado porque se trata da um Juiz Militar. Mas se alguém foi falar com o Juiz, tem que ter sido a Coronel Calixto de Armas, porque o Juiz é um Coronel. Não acredito que o Capitão Ferro tenha ido falar com ele.

P: — Você sabe se estes documentos foram enviados ao Brasil anexos à carta rogatória enviada pelo governo uruguaio?

R: — Não sei, não sei o que é uma “carta rogatória”. Não fiquei sabendo de nada disso.

P: — Lilián Cetiberti e Universindo Diaz foram acusados de terem pretendido entrar clandestinamente no Uruguai levando armas. O que sabe sobre isso?

R: — Ah! Isso foi muito fácil. Tomaram várias armas da Companhia e as fotografaram. Depois se mandou isso para a Juizado.

P: — Como foi que você soube disso?

R: — Fui eu quem tirei essa foto.

Colocaram numa mesa da Companhia uma metralhadora MK30, outra metralhadora, acho que argentina, uma pistola 45, dois ou três revólveres 38 a diversas munições. Tudo era material da Companhia. Eu o fotografei.

Depois, num comunicado que saiu na imprensa, disseram que eles tinham uma mala com fundo duplo onde estavam as armas. Também foram fotografados os jornais “Compañero”.

P: — Quem elaborou o comunicado que foi distribuído à im­prensa?

R: — A própria Companhia. Ele foi preparado por ordem do Capitão Ferro.

P: — Isto foi consultado com o Comandante em Chefe?

R: — Não tenho idéia, não sei. Mas pelo menos foi consultado com o Chefe do Departamento II, o Coronel Calixto de Armas.

P: — Como é possível que a Companhia de Contra-informações fabrique documentos estrangeiros falsos?

R: — Na Companhia existem muitíssimos passaportes estrangei­ros. O que eu não sei é como os conseguiram. Sei que existem pas­saportes de muitos, muitos países. Não sei. Talvez os comprem... Também existem formulários para fazer carteiras de identidade argen­tina. Com os carimbos não tem problema porque tem uma casa em Montevidéu na qual a Companhia manda fazer carimbos tipo visto. Não recordo qual é a casa, mas é uma casa que faz carimbos. Nesse sentido na Companhia existe muito material, existem muitos carimbos tipo visto. (Pausa).

Certa vez, nós fizemos uma carteira falsa para o Comandante em Chefe do Exército, Queirolo, que ainda deve tê-la, com o seu próprio nome.

Ele dizia que tinha que mostrar muito freqüentemente sua carteira a outras pessoas e por isso ela tinha se deteriorado muito, estava muito manuseada, e ele não gostava disso. Então mandou que a Companhia lhe fizesse outra, urgente. Foi um caso muito especial porque ele não queria pôr sua impressão digital, nem tirar foto, nem assinar; só queria que lhe enviassem a carteira nova pronta. Isto foi no ano passado. Foi um trabalho fácil. Além do mais, quem vai dizer alguma coisa ao Comandante em Chefe por ter um documento falso, certo, com o seu próprio nome? A foto, sim. Comecei tirando uma foto da foto da sua carteira anterior, porque ele a mandou para que a víssemos e a mandássemos de volta. Estava nova. Bem, tirei uma foto da foto da carteira, mas ele disse que não queria este registro fotográfico, com a data, na foto. Tentei fazer uma ampliação, mas a foto não saía nítida. Então anotamos o número da carteira dele, fizemos um pedido à Polícia, pedindo fotos deste e daquele número de carteira. Entre eles colocamos o número da carteira de Queirolo e eles nos enviaram uma quantidade de fotos dessas carteiras. Entre elas veio a foto de Queirolo. Uma foto grande, muita nítida, a foto da pró­pria carteira. Elaborei outro registro fotográfico, fotografei-a e com isso preparei uma foto para a carteira. É um trabalho muito simples.

P: — Voltando ao caso do seqüestro; o que se pensava fazer com Lilián e Universindo depois do seqüestro?

R: — Uma vez ouvi uma conversa entre o Capitão Ferro e não me lembro que outro oficial, na qual o Capitão Ferro dizia: “Trazemos estes caras do Brasil e depois, para evitar problemas, os liquidamos e tudo bem”.

P: — Você participou em alguma circunstância de atividades em que supôs que eles seriam assassinados?

R: — Não. Acho que não os mataram porque houve conhecimento de que tinha havido um seqüestro. Como no apartamento de Lilián Celiberti apareceram os jornalistas (Cláudio, não é?) a imprensa tomou conhecimento. A princípio, no Uruguai, não houve muita preocupação a respeito desse fato, porque se pensou que a imprensa ia ser obrigada a calar-se no Brasil, que nada ia transcender. Mas depois os nomes de Pedro Seelig e de Didi Pedalada começaram a aparecer continuamente. Soubemos que o DOPS estava tendo problemas em Porto Alegre. Inclusive o Major Rossell viajou para Porto Alegre de­pois do seqüestro. Sei disso pois foi preciso ir buscá-lo no aeroporto.

P: — Você sabe se o Comandante em Chefe das Forças Armadas, General Gregorio Alvarez, tinha conhecimento dessa operação?

R: — Não sei. A única coisa que posso dizer é que desta ope­ração participou somente pessoal da Companhia. Não participaram integrantes de outras repartições. Mas quando começaram as reper­cussões sobre o caso do seqüestro no Brasil, o Comandante em Chefe já era Queirolo. O Capitão Ferro ia com freqüência ao escritório de Queirolo. O Capitão Ferro era a pessoa que foi vista pelos jornalistas no apartamento de Lilián. E sei que foi falar com Queirolo a respeito desse caso. O Comandante em Chefe o chamou. O Major Rossell tam­bém ia falar com ele, por ser o Chefe da Companhia.

Queirolo geralmente dá ordens para a Companhia. Quando ele acha que há algo que merece ser investigado, comunica diretamente à Companhia. Por exemplo, os seus guarda-costas são da Companhia de Contra-informacões. Tem pelo menos três pessoas que cuidam da sua segurança pessoal. Tem pessoal da Companhia em seu domicílio.

P: — O General Queirolo ou algum outro dos seus superiores militares promoveu alguma investigação sobre as denúncias realizadas no Brasil sobre um seqüestro de uruguaios em Porto Alegre?

R: — Não, não houve nenhuma investigação. Só que alguns dos que participaram do seqüestro foram transferidos para outras atividades, por segurança.

O Capitão Ferro, que está atualmente no SID, o Major Rossell, que está atualmente na Escola de Inteligência e o Major Bassani, sei que foram transferidos pelo problema do seqüestro.

O Capitão Ramos está atualmente na Escola de Inteligência. Foi transferido porque já passou dois anos na Companhia. Eles têm um período de dois anos em cada destino. Mas na Companhia não são transferidos mais quando se passam os dois anos porque é um cargo importante dentro do Exército.

P: — De que maneira você tomou conhecimento dos fatos rela­tados aqui, dos quais você não participou diretamente?

R: — Bom, às vezes ficava sabendo por meio de conversas. Ou­tras vezes porque, estando eu trabalhando, vinha alguém e dava as ordens na minha frente. Além do mais, entre as pessoas que estavam por dentro do caso do seqüestro da Companhia, todas essas coisas se conversavam.

P: — Você recebeu alguma ordem de seus superiores sobre a necessidade de manter reserva sobre este caso?

R: — Sim. Depois de efetuada a operação, se fez uma reunião entre todos os que tinham tido algo a ver com o seqüestro. A reunião foi com o Major Rossell, que nos disse que não podíamos comentar absolutamente nada com ninguém. Nem mesmo com outros militares.

P: — Quanto tempo os detidos permaneceram na Companhia?

R: — Não recordo exatamente. Um mês, um pouco mais de um mês. Depois foram transladados para o Batalhão de Infantaria no. 13.

P: — A que tarefas você se dedicou em 1979?

R: — No último ano a nossa tarefa era a vigilância contínua da casa da mãe de Lilián Celiberti. Essa vigilância era feita desde um veículo particular estacionado perto da casa de Lilián. Víamos todas as passoas qua iam à casa e tratávamos de segui-las para ver onde moravam. Mas ia pouca gente, porque ela não tinha pessoas que a visitavam, só parentes ou algum vizinho.

Além do mais, o telefone da mãe de Lilián estava constante­mente interceptado. Este telefone está interceptado desde a Delegacia Central de Polícia. Sei disso porque tínhamos que ir buscar as fitas todos os dias na Delegacia para trazê-las para a Companhia.

P: — As visitas da senhora Celiberti a sua filha eram contro­ladas?

R: — Sim. Sempre é preciso ir colocar microfones quando ela recebe visitas. Neste caso, a Batalhão de Infantaria n.° 13 telefona para a Companhia e se convoca a pessoa que vai geralmente colocar microfones. Depois isso é escutado. Inclusive quando o embaixador italiano foi vê-la se fez isso.

P: — A Companhia de Contra-informações realizou algum tipo de vigilância sobre a Comissão da Ordem dos Advogados do Brasil que esteve em Montevidéu para investigar o caso do seqüestro? Em caso afirmativo, de que maneira isso foi feito e como você tomou conhecimento dos fatos?

R: — Sim. Sempre que vinha alguém do Brasil, de Porto Alegre, por telex, a Companhia era avisada. Quando chegou a Comissão da OAB até se avisou a hora exata e o número do vôo. Eu participei, junto com outros companheiros, da vigilância dos movimentos da OAB. Dos outros que participaram do seqüestro, nenhum apareceu nesse dia porque tinham medo de serem reconhecidos, um medo muito grande. Fomos ao aeroporto e do terraço fotografamos a Comissão. Era um grupo grande, de umas 9 pessoas, porque além dos advogados vinham alguns jornalistas.

Depois as vigiávamos do Palácio de Governo. Três de nós estávamos lá, no Salão Vermelho, no segundo andar. No primeiro andar está o escritório do Presidente da República. Tínhamos binóculos para ver quando eles saiam ao hall do hotel e então comunicávamos por rádio ao outro pessoal que estava na praça ou nas ruas laterais do Victoria Plaza; estes se encarregavam de segui-los.

P: — Quem autorizou o uso da Casa de Governo para a vigilância da OAB?

R: — Isso já estava tudo previsto. Disseram: “Vocês vão para o Palácio de Governo, entram, falam com o Comandante da Guarda, que já está tudo ajeitado”. Não recordo quem era esse Comandante, mas é um Tenente do Regimento de Cavalaria n.° 1. É o Regimento “Blandengues”, aqueles que se encarregam da segurança do Palácio, aqueles que se vestem da azul, os “soldadinhos”.

P: — Você tomou conhecimento da viagem de outros oficiais para Porto Alegre depois do seqüestro?

R: — Sei que o Major Rossell viajou uns dias depois, mas não sei com que objetivo. Também vaio o Sargento Miguel Rodriguez que é o braço direito do Capitão Ferro, acompanhado de uma das telefonistas da Companhia, para infiltrar-se na casa do Dr. Ferri. Sei disso porque tirei uma foto desse Sargento, para uma carteira de identidade, justamente naquela época. E fui ajudar um companheiro meu que era técnico em documentação a fazer essa carteira. Quando fazemos essas carteiras, colocamos nelas as nossas próprias impressões digitais, já que isso não vai ser detectado no momento. Mas veio o Sar­gento e disse: “Não. Tenho que colocar as minhas impressões porque tenho que viajar para o Brasil e se passo pela Polícia Federal pode haver algum mal-entendido”.

O Dr. Ferri me descreveu esta pessoa e a telefonista (me mostrou na rua uma pessoa muita parecida com ela) e foi assim como me dei conta de que o Sargento Miguel Rodriguez foi o que viera para Porto Alegre. Ele trabalhou na Embaixada em Brasília em 74, 75, não me lembro bem. Por isso é que falava muito bem o português.

P: — Qual era o objetivo da mandar esse sargento para o Brasil?

R: — Não fiquei sabendo porque era secreto. Só agora relacionei as coisas porque falei com o Dr. Ferri e porque tinha visto como era feito o documento. Penso que vieram para ver os movimentos do Dr. Ferri. Eles têm a idéia de que o Dr. Ferri é um homem muito perigoso, perigoso para essas pessoas que realizaram o seqüestro. Lá se fala do Dr. Ferri com muito respeito e com certo temor.

P: — Você ficou sabendo de algum plano para desmoralizar o Dr. Ferri?

R: — Sim. Quando a mãe de Lilián teve de assinar aquele documento, dizendo que o Dr. Ferri tinha deixado da ser o seu advogado. Foi uma pessoa de Porto Alegre, um brasileiro, que não sei quem é porque se manteve um segredo hermético, que foi à casa de Lilián. Essa pessoa foi buscada no aeroporto por pessoal da Companhia e depois foi levada para a casa da mãe da Lilián. O próprio Major Ros­sell foi quem o acompanhou.

P: — Como foi que você obteve as fotos que entregou ao jornal “Zero Hora”?

R: — Porque eu tinha acesso à Seção Técnica, eu trabalhava lá. Podia pegar todo o material que quisesse.

Todas as fotos ficam no laboratório fotográfico. Por exemplo, quando eu tirava uma foto, às vezes fazia duas ou três cópias, porque uma ficava muito clara ou muita escura. Então a deixava lá, no ar­quivo. E ninguém controla isso.

P: — Quando foi que você retirou essas fotografias?

R: — Em meados de 79, porque já pensava ir embora. E pensava que isso podia me servir de garantia no caso de que não me deixas­sem sair.

P: — Você tomou conhecimento da prisão da um soldado no momento em que Lilián Celiberti se encontrava no Batalhão n.° 13?

R: — Soube apenas que Lilián tinha ganho a simpatia da um soldado de lá, de um sargento, se não me engano. E tinha pedido a ele que lhe mandasse umas cartas. Até mesmo fazia com que ele telefonasse para a sua mãe, mandando-lhe mensagens.

Isso foi logo descoberto, porque o telefone estava interceptado. Eles ficavam sabendo imediatamente que alguém transmitia as mensagens de Lilián.

Sei que essa pessoa foi presa. Depois já não soube mais nada. Como se diz lá, ele “foi agarrado pelo Código Penal Militar”.

P: — Que conseqüências pode ter a sua denúncia para o Coronel de Armas, para o Capitão Ferro e os demais envolvidos neste seqüestro?

R: — Acredito que tudo vai continuar funcionando. Talvez não tão abertamente dentro das Forças Armadas, mas vão continuar funcionando. Sempre se dizia lá que não se devia dar participação aos subalternos nestas atividades delicadas, que eles não deviam ter acesso a certas informações. Diziam também que o pessoal subalterno não possuía o mesmo nível de compenetração do que a oficialidade. Eles agora vão pensar que isso foi uma falha. Imediatamente vão ver onde estou e vão avaliar a possibilidade de mandar matar-me. O Capitão Ferro, por exemplo, é um assassino. Acho que, se eu não estiver perto, não vão tomar uma medida deste tipo, mas não sei. Imediatamente vão chamar Rossell que foi o meu chefe na época, a Ferro, a Bassani, para acusá-los de serem responsáveis pela minha atitude e por terem permitido que eu me retirasse da Companhia.


 

CAPÍTULO IV
UMA ESCOLA DE INTELIGÊNCIA PARA ENSINAR A TORTURAR

“... a tortura deve ser efetuada de forma tal que não ponha em perigo a vida da pessoa. Não por causa dessa vida em si, mas porque se esta pessoa morrer, poderá levar a informação consigo”.

 

OoOoO

P: — Existem cursos de "Inteligência” a nível do Exército dos quais você tenha participado?

R: — Existe uma Escola de Inteligência, que depende também do Departamento II, somente esta escola. A ela assistem todo tipo de funcionários. Na verdade, é só para o Exército, mas também vai o pessoal da Marinha ou da Aviação. Atualmente esta Escola fica na rua Dante esquina República, no bairro do Cordón. Mas faz pouco tempo que ela funciona aí. Antes o CGIOR estava localizado nesse lugar. Para o curso de Inteligência vêm até mesmo oficiais estrangeiros de El Salvador, Guatemala, Costa Rica. Uma vez veio um para­guaio, porque me lembro que no encerramento dos cursos veio o Adido Militar do Paraguai.

P: — A que se deve a presença de oficiais estrangeiros na Escola de Inteligência?

R: — Penso que não se trata de intercâmbio, porque não conheço casos de oficiais uruguaios que vão para outros lugares — exceto o Panamá — para fazerem cursos. Penso que deve ser por convite do Exército uruguaio.

P: — Há quanto tempo funciona esta Escola?

R: — É nova. Acho que começou a funcionar em 1975. É o único lugar onde se ministram cursos de inteligência completos. Por isso ela é importante. No encerramento dos cursos vem sempre algum alto Chefe. Há três cursos por ano e uma época de férias.

P: — Quem participava dos cursos de inteligência?

R: — Algumas vezes participaram alguns oficiais da Polícia, mas sobretudo vão oficiais do Exército. Em geral um ou dois são da Ma­rinha, alguns da Força Aérea e dois ou três da Polícia. E vão os oficiais estrangeiros. Chilenos nunca vi. Brasileiros tampouco. Acho que os chilenos não precisam fazer cursos no Uruguai. Pelo menos lá se diz que a inteligência chilena é a melhor da América.

Os oficiais uruguaios designados para participar são aqueles que vão ser nomeados para cargos de Inteligência, do Serviço 2 (S2) de cada unidade. E oficiais sempre jovens, segundo-tenentes ou tenentes. Também está o caso de gente que não trabalha no S2 mas que tem o curso de Inteligência pronto. Do Exército vão uns 15; com os outros que participam, em cada curso sempre há 20 ou 25.

P: — O pessoal subalterno assiste aos cursos?

R: — O pessoal subalterno que vai é o que trabalha em Inteligência. Nós, por exemplo, fizemos o curso. Também gente do SID, pessoal subalterno. Nós fizemos o curso separados da oficialidade. Houve um caso em que juntaram oficiais e sargentos. Mas isso não se fez mais porque um sargento tirou o primeiro lugar no curso e acharam que isso não podia ser. Agora existem cursos especiais para sargentos. Se manda um sargento de cada unidade fazer o curso de Inteligência. Esse curso, segundo dizem eles, capacita enormemente.

O curso que nós, pessoal subalterno, fazíamos, era só para os que trabalhavam em Inteligência. Mas qualquer pessoa podia ir ao curso para os Sargentos.

P: — Em que consiste o curso de Inteligência?

R: — Falava-se sobre política. Por exemplo, se falava de política mundial, mas sempre sobre a base de que a política no Uruguai era a adequada: “o Uruguai está como tem que estar”. Se estudava muito a política do comunismo, que era contrária ao Uruguai. Também da­vam aulas de Inteligência propriamente dita, aulas práticas de segui­mento na rua.

Para isso, geralmente chamavam o pessoal da Companhia. Diziam-lhes: “Vocês vão caminhar por Montevidéu. Vão ser seguidos, tratem de evitar isso”. Mas com a maior naturalidade possível. É uma aula prática, bem como se estivesse seguindo uma pessoa que está desconfiada. Outra forma é que a gente está sendo seguido mas faz de conta que não sabe. Então tem algum contato e aí se vê o que faz a pessoa que vão seguindo, a reação que ela tem.

Isto é controlado pelos oficiais que ministram o curso, que também vão para a rua, num carro dirigido por eles ou às vezes também caminhando.

P: — Que outro tipo de curso se realiza?

R: — Existe uma matéria chamada “Inteligência Aplicada”, que consiste em aplicar tudo o que se pretende inculcar em Inteligência, isto é, aplicar a Inteligência no trabalho em si, na rua. O trabalho combinado que se faz é, por exemplo, mandar uma pessoa fazer vigilância, depois fazer um seguimento, depois fazer uma operação inventada. Se agarra uma casa num lugar meio afastado e se faz uma prá­tica de operação. Ou seja que esta é uma matéria que engloba tudo. Também dão aulas de Primeiros Auxílios, com o Dr. Scaravino.

Outro dos professores da Escola de Inteligência é o Capitão Alanís; agora está o Capitão Ramos. O Major Rossell agora também é professor. Vi o Comandante Alfredo Lamy dar umas aulas do Depar­tamento III, do SID. Em 1978 esteve o Capitão Criado. O Chefe da Escola de Inteligência é o Tenente-coronel Alberto Mira. Era o Diretor da Escola mas não dava aulas. Também se dá aula de Defesa Pessoal.

P: — São usados manuais de estudo?

R: — Sim. Existe um manual chamado MOAS, Manual de Operações Anti-subversivas. Refere-se a todos os temas, seguimentos, vigilância, etc. É um Manual que tem pelo menos 10 anos, muito básico. Se não me engano, este Manual foi criado pela OCOA.

P: — Recebem instrução sobre interrogatórios e tortura?

R: — Sim, aulas de interrogatório sim. O professor agora é o Capitão Ramos e, naquela época, era o Capitão Alanís.

P: — Como são dadas as aulas de interrogatório?

R: — Bem, eles pretendem inculcar no aluno que a tortura é necessária, absolutamente necessária, para obter informação. Sem ela, não se obtém informação. Mas a tortura deve ser feita de tal forma que não coloque em perigo a vida da pessoa. Não por causa dessa vida em si, mas porque se esta pessoa morrer, poderá levar a informação consigo. Existem casos em que o aluno, ansioso por demonstrar ao professor que sabe obter informação, exagera na tortura.

P: — São realizadas “aulas práticas” de tortura?

R: — Sim. Se traz um detido da Companhia, onde em geral existem presos. Se traz o “tacho” para o salão da escola e se procede a golpear o detido ou a submergir sua cabeça debaixo da água, enquanto outro interroga.

P: — Os detidos levados para estas aulas “práticas” estão sendo ao mesmo tempo interrogados na Companhia?

R: — Não sempre. Alguns já não estão sendo interrogados na Companhia mas também são levados, porque é uma aula prática. É uma aula para que todos se acostumem com a tortura, não para interrogar. A finalidade é aquela.

P: — Isto se realiza ante todos os alunos?

R: — Sim, exceto os estrangeiros. Essas aulas não são dadas em presença de estrangeiros, só de uruguaios. Em cada aula há um rodízio de alunos, porque como são poucos dias, eles querem que todos participem. Nem sempre é o mesmo detido. Um dia se utiliza um, outro dia outro. Se não há nenhum na Companhia, se “consegue” no Batalhão 13 de Infantaria.

P: — Se realiza outro tipo de tortura nessas aulas?

R: — Golpes; também é comum a dependura. Choques elétricos, é a tortura comum. Bem simples. Isto vai conectado à rede elétrica. Toma-se dois ou três fios e se trançam, bem trançados; depois eles são recobertos por uma borracha grossa por fora, mas a ponta fica sem recobrir, um pedacinho de fio. A outra ponta é enfiada num dos orifícios da tomada. O fio fica eletrizado, mas não com 220 volts. Isto é aplicado na pessoa. Se não causar um efeito muito grande porque tem pouca voltagem é bom molhar a pessoa. Depois de molhada, o efeito é muito maior. O fio pode ser colocado em qualquer lugar do corpo. Não existe um lugar especial. Acontece que às vezes se utiliza um pouco de sadismo, ele pode ser colocado nos testículos, por exemplo, ou em qualquer parte assim.

P: — Isto costuma acontecer?

R: — Sim, geralmente acontece. Quando o sadismo começa. Quando a gente pensa: “Por que não colocar o fio em tal lugar para ver se é tão macho?” ou algo parecido. Todos davam muita importância a essa aula.

P: — Este tipo de aulas era uma parte importante do curso?

R: — Sim. Por isso durava praticamente toda uma semana, para que todos participassem.

P: — A vida dos detidos nunca correu perigo durante essas aulas?

R: — Sim, eles desmaiam freqüentemente. Em alguns casos são reanimados para depois continuar. O médico do curso é o Dr. Scarabino. Quando o detido corre algum perigo, se chama o doutor.

P: — Que atitude tinham os subalternos durante as aulas de interrogatório?

R: — Nos diziam que tínhamos que agir com firmeza. Era uma obrigação. Nós, os jovens, os que éramos novos na Companhia, quase nunca agíamos com firmeza. Um dia após termos assistido a uma aula dessas, por não termos agido como eles queriam, por castigo nos deram uma aula de esgotos, que consistia em descer até os esgotos e percorrê-los. Era intransitável, muito desagradável.

P: — A Escola de Inteligência continua funcionando atualmente?

R: — Sim. Em 1o de janeiro de 1980 passou a ser um organismo oficial e, pelo que eu sei, foi ampliada.


 

CAPÍTULO V
HUMBERTO PASCARETTA, OPERÁRIO DA FÁBRICA DE PAPEL C.I.C.S.S.A., MORTO POR TORTURAS

“Essa foi uma morte que poderia ter sido evitada facilmente”.

 

P: — Você participou de alguma outra operação importante da Companhia, além do seqüestro?

R: — Sim, de uma que envolvia os trabalhadores de CICSSA; participei do seguimento e da vigilância da casa de Pascaretta, que trabalhava na CICSSA; a casa dele ficava na rua Soria quase Propios (Bulevar Batlle y Ordóñez). Isso foi em 76, foi um dos meus primeiros trabalhos na Companhia; havia pouca gente na Companhia porque muitos estavam em Maldonado.

P: — E o que foi que originou esta operação?

R: — A patronal denunciou que a produção de sacos de papel para a Portland (fábrica de cimento) estava sendo sabotada, e justamente nessa época deveria ser exportado um lote muito grande; diziam que com isso podiam criar um problema para o país, impedindo que a exportação fosse feita a tempo. A finalidade da operação da Companhia era encontrar os sabotadores.

P: — Como se desenrolou a operação, por quem foi dirigida?

R: — Recebemos a missão de vigiar Pascaretta do Capitão Armando Méndez; ele vinha diariamente de Maldonado, porque era o responsável pela ação. Nós seguíamos Pascaretta de ônibus, porque naquele momento havia escassez de veículos na Companhia; ele (Pas­caretta) viajava de ônibus até a CICSSA. Queríamos ver se entrava em contato com outra pessoa no caminho. Existia também a possibilidade de que alguém o esperasse dentro do ônibus, porque este tem um horário pré-estabelecido. A vigilância durou uns quinze dias apro­ximadamente. Eu e um companheiro meu vigiávamos Pascaretta, mas havia outras pessoas que vigiavam aqueles que nós pensávamos que também estavam no negócio com Pascaretta. Vigiávamos o domicílio de Pascaretta e também ele quando saía. Mesmo quando ele saía, ficava uma pessoa vigiando para ver se vinha alguma pessoa estranha a sua casa.

Além disso, o Capitão Méndez infiltrou dois elementos da Companhia em CICSSA, para trabalhar e observar Pascaretta e os outros (não me lembro dos nomes). Estiveram trabalhando um mês. Sei disso porque até cobraram o seu salário lá; se uma pessoa é infiltrada num lugar, comporta-se como um empregado, como um operário, e cobra como todos.

P: — Como se concretizou essa infiltração?

R: — Não sei, penso que isso foi acertado com a Diretoria de CICSSA ou com a Seção Pessoal; sei que da Companhia quem se encarregou do assunto foi o Capitão Méndez.

P: — Posteriormente, essas pessoas vigiadas foram detidas?

R: — Sim. Num determinado momento se recebeu a ordem de parar com os seguimentos e prendê-los. Então uma noite foram à casa de Pascaretta e dos outros três e os prenderam. (Eu não participei de nenhum desses atos porque estava na Companhia tirando umas fotos para outro trabalho). Depois das detenções, começaram os interrogatórios.

P: — Como foram esses interrogatórios?

R: — Bem, foram com o método que se usa sempre, com o método de tortura para fazer a pessoa falar. Todos os detidos afirmavam que não tinham nada que ver, apesar da tortura. Acho que nenhum deles disse nada que pudesse levar a outra medida ou que desse lugar a uma operação mais importante, porque em relação com esse assunto foram as únicas pessoas detidas. Inclusive não sei se houve confirmação da sua implicação nos atos de sabotagem.

P: — Quem era o responsável pelo interrogatório?

R: — O responsável era o capitão Méndez, e quando ele não estava, o Major Calcagno. Eles dois foram as responsáveis diretos por tudo isso, inclusive pela morte de Pascaretta. Eles sabiam perfeitamente que Pascaretta tinha úlcera e que tinha que tomar certos remédios. Além do mais, ele foi torturado como qualquer outra pessoa.

P: — Quanto tempo o torturaram?

R: — Foram muitos dias, não sei exatamente, mas foi mais de uma semana e não chegou a um mês; era torturado e deixado na mesma sala, e à tarde ou no dia seguinte era torturado de novo. Acho que passou um mês até sua morte. Morreu entre onze e doze horas da noite.

P: — Quais foram as circunstâncias da sua morte?

R: — Nessa noite, eu estava de plantão; Pascaretta não fora torturado nos últimos dias. Estava deitado na sala onde estavam todos eles e de repente disse que se sentia mal; então quisemos levantá-lo e telefonamos para o Major Calcagno, que estava em sua casa. Ele veio e disse: “Ah, está morto, temos que chamar o médico”. Quando o médico chegou, Pascaretta já tinha falecido. Ouvi que o médico colocou no atestado que a morte tinha sido causada por um ataque cardíaco.

P: — Sabe o nome e o cargo do médico?

R: — Sim, é o Doutor Mario Genta, que nesse momento era o Chefe do Serviço Sanitário do Comando Geral do Exército; agora este cargo é ocupado por Hugo De Filippo. Não sei para onde mandaram Genta, sel que não está mais no Comando.

P: — Pascaretta tinha pedido os remédios que necessitava?

R: — Sim, várias vezes vi que os pedia; não sei se o pedido era rejeitado, mas concretamente ele nunca recebeu os remédios. Sei que um dos que pedia era “Gelal”, mas também havia outros que não recordo.

P: — Quem era o responsável, não pelos interrogatórios, mas pelos detidos em geral?

R: — Bem, não havia um responsável direto; se havia uma anormalidade na saúde do detido a pessoa que a estava vigiando tinha que comunicar ao superior, não existe ninguém encarregado especialmente disso.

P: — O que aconteceu após a morte de Pascaretta?

R: — O corpo foi entregue à família, com o caixão aberto por­que não havia sinais de violência. Depois, um dos integrantes da Companhia que tinha sido infiltrado em CICSSA foi ao velório; ele podia ir sem causar suspeita porque era companheiro de trabalho. Foi com a missão de escutar e ver o que ocorria lá.

P: — Que comentários vocês faziam entre si, a respeito da morte de Pascaretta?

R: — Bem, nós comentávamos que essa morte era algo que teria podido ter sido evitado, não é? Acho que morreu pelas torturas recebidas e em grande parte também pela falta de remédios. Um dos outros três que estavam presos tinha uma ferida produzida pela tortura, numa das pernas; esta ferida começou a infeccionar, até o ponto em que a pessoa não podia nem levantar para ir ao banheiro. Nós comunicamos constantemente que essa pessoa precisava atenção médica e que era precisa retirá-la de lá, porque era um problema até para nós, um problema de saúde, porque quando entrávamos no re­cinto onde estava havia algo no ar, um certo cheiro. Sei que depois o levaram para o Hospital Militar. Não sei quanto tempo esteve lá.

P: — Você conhece oficiais ou subalternos que tenham se negado a participar de torturas?

R: — Não conheço ninguém que tenha se manifestado. Mas muitos dos meus companheiros, quando viam que alguém era preso, preferiam não estar, preferiam sair para a rua, fazer qualquer coisa para que não os chamassem. Me incluo entre eles.

É muito difícil quando chega um detido e é preciso interrogá-lo e torturá-lo. O oficial faz uma lista e diz “chamem fulano e sicrano, que vamos interrogar”. Isto é, os superiores querem que todos participem da tortura. Acho que é para que ninguém passa dizer depois: “Não, eu nunca torturei”. Acha que é por isso.

P: — Você nunca se negou a torturar?

R: — Não. Porque isso equivale a ir para a cadeia.

P: — Houve casos de pessoas que tenham se negado a torturar e estão presas?

R: — Não. Pelo menos na Companhia, não. Quando nós fazemos o curso de Inteligência tratam de que compreendamos o que temos que fazer. E nesse curso fica bem claro que devemos nos dedicar inteiramente à tarefa que vamos cumprir. Se nos mandam fazer alguma coisa é preciso fazê-la. Se não a fazemos estamos desrespeitando o Código Penal Militar. E ir contra a Código Penal Militar implicaria o cárcere.

P: — Os detidos são sempre torturadas ou existem exceções?

R: — Pode-se afirmar que todas as pessoas que são detidas no Uruguai são torturadas. Não há pessoa que não seja torturada. Por exemplo, Pascaretta; ele foi torturado e não foi possível provar nada contra ele. Recardo outro caso, de um casal argentino que foi detido por um caso de drogas. Os dois foram torturados apesar de serem argentinos. Depois se comprovou que ela não tinha nada a ver com drogas, porque fazia muito pouco tempo que eles tinham casado.

Também houve outro caso de subalternos que estavam num negócio de venda de vales de gasolina e que, apesar de serem militares, também foram torturados.

Toda pessoa que é detida é imediatamente torturada. Para obter informações.

A minha esposa conhece um caso de amigos dela. Foram deter uma pessoa; como esta não estava, detiveram o irmão, que não tinha nada a ver. E também o torturaram, apesar de não estar comprometido com nada. A tortura é uma regra normal.

P: — Você tomou conhecimento do uso de drogas nos interrogatórios para obter informações?

R: — Não, em absoluto. Na Companhia nunca se usou este tipo de coisas e acho que em outros lugares também não.


 

CAPÍTULO VI
DOIS ANOS DE ATIVIDADES DA COMPANHIA DE CONTRA-INFORMAÇÕES: ESPIONAGEM, TORTURAS, SEQÜESTROS, LOCAIS CLANDESTINOS DE TORTURA, CORRUPÇÃO

 

OPERAÇÃO RUMOR

HUGO GARCIA RIVAS: Quando nos mandavam a lugares públicos para escutar, vigiar, por exemplo, a uma partida de futebol, isso formava parte da "Operação Rumor”.

P: — Realizavam com freqüência tarefas desse tipo?

R: — Algumas semanas não íamos a nenhum lugar e outras saíamos sempre para lugares diferentes; geralmente era um grupinho de três.

Certa vez, recordo que fomos à Faculdade de Veterinária, éramos em dois. Acho que foi em 1978, quando houve uma mudança de Decano, um chamado Cristi. Fomos enviados para misturar-nos com os alunos e escutar o que eles falavam, o que se dizia de Cristi, o que se dizia do novo que assumia o cargo.

P: — Em alguma outra ocasião foram enviados a lugares?

R: — Outra ocasião desse tipo, não. Mas no último ano, em 1979, fomos enviados duas vezes à festa do Canto Popular, no Palácio Peñarol.

Folcloristas uruguaios como Carlos Maria Fossatti, Mario Benavidez... bem, todos esses folcloristas uruguaios montaram o que se chamou de festa do canto popular. Todos cantavam canções uruguaias; nós fomos enviados, não sei porque, para vigiar. Tem uma música, “Contrabandista de fronteira”, que está proibida no Uruguai; de re­pente, Carlos Maria Fossatti e não me lembro que outro cantor, começaram a cantá-la, e depois os outros folcloristas os acompanharam. E esse estribilho que diz “e o pão que o governo nega, também se faz a tiros”, foi repetido por todas as pessoas, e todos se levantaram, ergueram os punhos e cantaram! As pessoas cantavam todas juntas e nós também cantamos... Foi uma reação que não esperávamos, e aparentemente na Companhia também não esperavam isso. Mas não podíamos fazer nada, porque todo o mundo cantava com os punhos levantados, e tivemos que fazer a mesma coisa para não ficar em evidência.

P: — Como foi recebido este fato na Companhia?

R: — Quando fizemos o relatório e falamos sobre isso, disseram:

“Mas vocês têm certeza disso?” “Sim, temos certeza”. Então comentaram que as pessoas eram assim, que quando saía alguma faísca, tudo fervia. Quinze dias depois houve outra festa de canto popular à qual também fomos enviados, e praticamente ocorreu a mesma coisa.

P: — Essas reações das pessoas são temidas?

R: — Exatamente, isso foi o que vimos, não é? que tinham medo da reação dessa gente. Porque eles diziam que as pessoas estavam tranqüilas, mas se alguém os incitava, reagiam.

P: — Os folcloristas são vigiados?

R: — Não sei se cada um deles particularmente é vigiado, mas sei que todos eles são considerados perigosos. Existe um grupo de folcloristas que é uma contínua fonte de informações para a Companhia, “Los Nocheros”, gente muito relacionada com a Companhia. Às vezes o Chefe da Companhia os convidava para almoçar, evidentemente para entregar informações. Inclusive, certa vez, na minha frente e de outros companheiros da Divisão Técnica, um dos “Nocheros” dizia ao Capitão Yannone que os grupos folclóricos de esquerda estavam ressurgindo e que os solistas de esquerda também, que estavam tendo um grande apoio do público... Nós pensávamos: “Bom, estes são direitistas, estão com o governo, mas além disso têm um interesse profissional, evidente, não é? Não é conveniente para eles que os outros cresçam”.

P: — Que integrante dos “ Nocheros” era, você não se lembra?

R: — Não, não me lembro. Mas se vejo uma foto dos “Nocheros”, o reconheço. Diziam que um par deles é da Polícia, da Direção Nacional de Inteligência...

P: — Em geral, mantêm vínculos com a Companhia?

R: — Com a Companhia, sim. Numa festa de aniversário da Com­panhia eles vieram com todos os seus instrumentos e cantaram; fizeram um espetáculo para a Companhia.

P: — Pode citar mais algumas atividades compreendidas na “Operação Rumor”?

R: — Sim. Certa vez — agora chegamos ao que falávamos dos políticos — fomos mandados ao Roseiral do Prado. Fomos mandados em grupos de dois, a caminhar pelo Roseiral, porque estava prevista uma reunião do Partido Blanco, mas não houve nada. Foi poucos dias depois daquele fato sucedido na Praça de Aparicio Saravia, em Luis Alberto de Herrera e Millán.

“OPERAÇÃO 00013”

HUGO GARCIA RIVAS: A Companhia tem uma operação denominada “Operação 00013”. Consiste numa vigilância exercida sobre o pessoal da embaixada da URSS. Um relevamento de todos os integrantes da embaixada. E isso é financiado pelos americanos.

A Companhia tem um apartamento na frente da Embaixada russa, na rua Ellauri, de fundos, e lá sempre tem funcionários da Companhia. Eles se contatam com um senhor americano a quem chamam de “El Amigo”, ninguém sabe o seu nome, é da Embaixada dos Estados Uni­dos.

P: — Em que consiste a vigilância?

R: — É uma vigilância visual e com um aparelho que foi entregue pelos americanos. É um aparelho ultramoderno para interceptar trans­missões por rádio que possam ser feitas da Embaixada. Por isso é que esse apartamento fica muito perto. Ele está alugado em nome de um tal “Folca”, é um nome falso. O Capitão Ferro vai muito a esse apartamento e dizem que recebe dinheiro dos americanos.

P: — Todas as Embaixadas estão vigiadas?

R: — Não sei. Só conheço o caso da Embaixada russa.

P: — Como sabe que o financiamento provém dos americanos?

R: — Porque uma destas pessoas que está no apartamento é um companheiro meu que está estudando Medicina, e o americano lhe prometeu que, quando se formar, vai lhe instalar todo o consultório, que não se preocupasse. Porque este rapaz tinha lhe falado que ia se formar e tinha que instalar o consultório e não tinha dinheiro suficiente; o americano lhe disse que não se preocupasse. O rapaz ficou muito contente e veio e me contou: “Você sabe que o americano me disse isso e aquilo...” Assim foi como eu fiquei sabendo. Além disso, eu era o encarregado de fotografar os dossiês dos russos. No Ministério das Relações Exteriores trabalha um contato da Companhia que me entregava as fichas, os dossiês dos russos. Eu era o encarregado de fotografá-los. Fizemos um álbum com todos os integrantes da Embaixada. Os dossiês eram devolvidos ao Ministério das Relações Exteriores e o álbum ficava na Companhia, com essas fotos das fichas. O que vinha do Ministério era nomes, cargos, documenta­cão deles.

A “Operação 00013” começou em 78, no começo do ano. Primeiro se vigiava o jardineiro e o pessoal de serviço da Embaixada russa. Depois começamos a fazer a ficha dos diplomatas da Embaixada. Foi um trabalho chatíssimo! Eles me traziam uma ficha e eu tinha que tirar umas 100 fotos dela, era algo impressionante, um disparate!

P: — Para que?

R: — Porque queriam fazer vários fichários de todo o pessoal da Embaixada russa. Acho que era para distribuir. Mas o negócio de apartamento começou em 1979; o apartamento foi alugado por 2 anos.

P: — Além dessas fotos, em que consistia a “Operação 00013”?

R: — Estivemos vigiando um funcionário da Chancelaria, chamado Girina. Diziam que ele entregava informação para os russos.

P: — Era da Chancelaria uruguaia?

R: — Sim, do Ministério das Relações Exteriores. Ele foi vigiado durante muito tempo, depois que nos disseram que ele entregava informação, documentação para os russos. Tiramos uma foto dele uma vez que um russo foi buscá-lo em seu carro, foram até a Cidade Velha e começaram a caminhar; então tiramos várias fotos e Ferro dizia que iam ser mandadas para os Estados Unidos; que “finalmente havia um contato!”

P: — E que aconteceu depois?

R: — Bem, este Girina começou a notar que alguma coisa estava mal. Na verdade ele não estava entregando informação aos russos, eles só queriam uma aproximação. Uma vez lhe propuseram se não queria ir para a Embaixada uruguaia em Moscou, que Moscou era ótima, etc., e ele disse que sim, que economicamente seria muito bom para ele. Então numa recepção que houve numa Embaixada — não me lembro que Embaixada era, talvez fosse a paraguaia — a esposa de um russo lhe disse: “Ah! Que ótimo que o senhor vai para Moscou! Quando chegar lá, vai ver que tudo é bem diferente daquilo que dizem por aqui!” O cara ficou sem saber o que fazer. E daí surgiu imediatamente a idéia de que ele estava trabalhando para os russos.

P: — Essa foi a origem da suspeita?

R: — Sim, a partir daí começamos a investigá-lo. Mas aquela vez que o russo foi buscá-lo, foi por acaso. Porque esse russo foi vê-lo e ele justamente estava saindo e o russo lhe disse: “Pra onde o senhor vai? Para a Cidade Velha? Ah! Então levo no meu carro” e começaram a conversar. Mas era verdade que os russos tentavam entrar em contato com ele; isso ele nos disse.

P: — Finalmente se comprovou que esta pessoa não tinha nada a ver. Ele foi preso?

R: — Sim, comprovamos que ele não tinha nada a ver. Não foi preso porque parece que os americanos disseram que não. Iam aplicar-lhe o Ato Institucional n.° 7, o das demissões, sabe?

P: — E ele foi demitido?

R: — Não, porque parece que os americanos intercederam a favor dele, e ele ficou no emprego.

P: — Os norte-americanos têm um serviço de informação próprio no Uruguai?

R: — Não sei, mas acho que sim, que devem ter, têm que ter.

Os americanos dominam muito lá. Porque se Ferro está com eles e se eles mandam que não se despeça um funcionário da Chancelaria é porque têm muito peso.

P: — Que outra ação houve dentro da “Operação 00013”?

R: — Além disso, foram fotografados os engenheiros da represa de Salto Grande, porque quase todos eles são russos. Também conseguiram outras fotos deles, fotos muito nítidas que não eram das fichas deles do Ministério das Relações Exteriores. Quando aconteceu isso, tive que fotografar tudo e fazer 100 cópias para o Arquivo.

A DETENÇÃO DO GENERAL LIBER SEREGNI

P: — Sabe quem deteve o General Seregni?9

R: — Sim, foi a Companhia. Isso foi um companheiro que me comentou, porque nunca ouvi comentários sobre o General Saregni a nível oficial. Ele me comentou que tinha estado vigiando a casa de Seregni em Maldonado junto com OCOA 4 e que depois o tinham detido.

P: — O que pensavam de Seregni? Entre os seus companheiros, não chamava a atenção que um militar com o grau de General estivesse preso?

R: — Não chamava a atenção porque o governo já tinha dito que Saregni passara para o lado da subversão e que tinha agido contra a Constituição e as FFAA. Sei de outro caso dum general detido, o Ge­neral Ventura Rodríguez. Estando uns ex-companheiros meus na Escola de Armas e Serviços, o General Ballestrino, que é o Diretor da Escola, deu ordem de ir ao aeroporto de Carrasco para prender o General Ventura Rodríguez; se ele resistisse, que atirassem para matar. Foi preso no aeroporto e levado para a Escola de Armas, tendo Bal­lestrino afirmado novamente que, se tentasse fugir, fosse morto.

SEQÜESTRO DA PROFESSORA ELENA QUINTEROS NA EMBAIXADA DA VENEZUELA

P: — Você tem alguma informação a respeito de uma professo­ra, Elena Quinteros10, seqüestrada na Embaixada da Venezuela?

R: — Essa foi uma operação feita pela Companhia antes do meu ingresso. O que eu sei é que a estavam seguindo, que em determinado momento ela começou a caminhar por Bulevar Artigas; eles não imaginavam que ela fosse entrar na Embaixada, mas quando chegou lá entrou e eles entraram depois dela e a agarraram. Depois veio o problema da ruptura de relações diplomáticas com a Venezuela.

P: — Você sabe quem participou do seqüestro?

R: — Não, não sei. O chefe da Companhia naquele momento, meados da 76, era Castromán.

P: — Sabe para onde foi conduzida Elena Quinteros depois do seqüestro?

R: — Não, não sei nada disso.

CRIANÇAS SEQÜESTRADAS

P: — Sabe algo a respeito de umas crianças uruguaias, cujo sobrenome é Julien, que desapareceram na Argentina e foram reencon­tradas no Chile?

R: — Não, não sabia nada.

P: — Sabe se oficiais uruguaios viajaram para o Chile em tarefas de inteligência?11

R: — O Major Rossell viajava muito para o Chile. Em 79 viajou duas vezes. Recordo que em julho e agosto ele foi para o Chile.

Na Companhia se comentava quando Rossell ia para o Chile, por­que sempre trazia sua garrafa de Pisco. Ele viajou em duas épocas muito próximas uma da outra, acho que foi no inverno, em julho. Foi e voltou e no mês seguinte viajou de novo.

P: — Conhece o motivo dessas viagens?

R: — Sei que por razões particulares dele não era. A viagem era financiada pelo Departamento II. Sei disso porque na Seção Administrativa se pedia ao Departamento II que gestionasse com o de Finanças a missão de entregar à Companhia uma determinada quantia de dinheiro para financiar uma viagem ao exterior.

P: — Sabe de algum oficial que tenha viajado para o Chile em 76, 77?

R: — Bem, o que viajou para o Chile foi o Major Calcagno, acho que a princípios de 77. O Capitão Criado também, não era da Companhia mas do Departamento II, também viajou para o Chile. O Major Calcagno era o Chefe da Companhia naquele momento.

P: — Nunca soube nada de crianças que desapareceram?

R: — Tinha uma pessoa que sabia muito sobre isso. Um homem que está na Companhia praticamente desde o seu começo. Um ho­mem que comentou que tinham feito uma viagem para Buenos Aires, com um Major chamado Alfredo Lamy e que tinham trazido umas pessoas de Buenos Aires, inclusive umas crianças.

Ele me contou que, em 74 ou 75, o Major Lamy (que naquela época era Chefe da Companhia) tinha trazido duas crianças de Buenos Aires. Eram um menino e uma menina. Disse que fizeram uma viagem pelo Tigre por causa desse assunto. Nessa época também foi para a Ar­gentina o Capitão Calcagno. O Tenente-coronel Lamy é uma pessoa muito importante dentro da Inteligência do Exército. Ele foi Chefe da Companhia, depois foi para o Batalhão de Infantaria 13, logo após para o SID e depois não sei para onde foi transferido. Não sei onde está atualmente. Várias vezes o vi dar aulas na Escola de Inteligência para os oficiais que faziam os cursos, mas este não é um cargo permanente.

É um homem estranho porque nunca sorri. Nunca, nunca sorri. Eu nunca o vi sorrir e a gente da Companhia falava dele com muito respeito e diziam que ninguém o tinha visto sorrir. Uma pessoa de uma disciplina férrea com seus subalternos e inclusive com os superiores.

PRESOS POLÍTICOS DESAPARECIDOS12

P: — Você dispõe de alguma informação a respeito das operações realizadas em Buenos Aires contra os uruguaios?

R: — Diziam que aquele senador... Michelini 13 junto com outro chamado Ruiz, tinham sido mortos pelo SID. Fiquei sabendo que gente do SID tinha ido para Buenos Aires para matar Wilson e que um embaixador o tinha salvado. Mas não conheço detalhes.

Na Companhia havia um sub-oficial, chamado “o velho Fernández”, que esteve trabalhando na Argentina até 78, como secretário do Adido Militar.

P: — Nunca soube se esta pessoa teve alguma função vinculada com a repressão na Argentina?

R: — Não, nunca soube, mas o secretário do Adido Militar também era o seu guarda-costas, e tinha que trabalhar para obter informação e mandar para o Departamento. Penso que, se surgir alguma coisa dessas, também tem que fazê-la. Não sei se ele estava vinculado a algum tipo de repressão. Mas um sub-oficial que tem muita antiguidade no Exército é praticamente um oficial.

Soube que em Buenos Aires quem dirigiu tudo foi Gavazzo, do SID. O Capitão Ferro comentou isso muitas vezes. Além disso, se sabia que o SID ficara com uma moto Java daquela gente do PVP que diziam que tinham agarrado no chalé Susy, em Shangilá14.

LOCAIS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO E TORTURA

P: — Não conhece lugares clandestinos onde possa haver gente detida? Nunca teve conhecimento da existência de reféns?

R: — Bem, isso não é muito difícil. Porque em qualquer balneário é possível ter uma casa com gente recluída. Em alguns balneários praticamente não mora ninguém no inverno. Tenho certeza de que, se existem estes lugares, devem ficar em alguma zona de balneário.

P: — Mas você conhece algum lugar?

R: — Bem, eu sei que os “300”, além do “Carlos 300” (localiza­do no Centro de Material e Armamento) tinham lugares desses. Tinham um lugar em El Pinar, uma casa onde recluíam gente, mas não sei nem em que lugar era. É possível supor que existam muitos outros lugares semelhantes nessa zona. Conheço um oficial, o Capitão Berruti, da Companhia, que tem uma casa em Shangrilá, num lugar bastante solitário. Ele não mora lá com a família. Esses lugares podem ser usados facilmente para levar gente.

P: — Você conhece um local que está sendo usado na rua Juan Paullier?

R: — Esse local era o “Cárcere do Povo”, há tempo era usado pelo SID. Mas atualmente não sei.

P: — Poderia reconhecer alguma dessas pessoas? (Mostram-lhe fotos dos cidadãos uruguaios desaparecidos na Argentina, Paraguai e Uruguai).

R: — Acho que vi esta pessoa (trata-se de Eduardo Bleier)15. Certa vez estávamos procurando uma pessoa, tínhamos a sua foto e se pensava que podia estar detida no “300 Carlos” e por isso fomos lá e vimos todos os detidos. Numa das celas havia uma pessoa muito parecida com ele, de uns 45, 50 anos. Isso foi em 77, 78... não me lembro. No “300 Carlos” tem umas 10 celas individuais. Nelas as pessoas estão sem capuz. Têm apenas uma abertura para olhar para fora.

Geralmente trabalha sempre a mesmo pessoal nesses lugares. Querem que entre sempre a mesma gente nesses lugares, nunca gente de outras repartições. Por isso é muito difícil ver uma pessoa, saber se está detida ou não. Não permitem que ninguém do outra unidade veja os detidos. Ninguém.

P: — Onde está localizado o local “300 Carlos”?

R: — Na parte de trás do Batalhão 13 de Artilharia. Era um local usado antes pelo Serviço de Material e Armamentos, um galpão grande, como se fosse uma oficina mecânica desocupada, onde construí­ram essas celas. No momento que fui ao “300 Carlos”, em março ou abril de 1978, vi cerca do uma centena de detidos. Esse local pertence à OCOA.

P: — Você conhece algum outro lugar que seja utilizado como centro de torturas?

R: — Acho que já mencionei “La Tablada”, que é chamada de “Base Roberto”. Fica em Camino de las Tropas e Melilla. O Chefe desse estabelecimento é o Tenente-coronel Victorino Vázquez, da OCOA. Nesse local se encontra o computador que centraliza toda a informação sobre repressão de que a OCOA dispõe.

Nesse lugar existem celas individuais e um pavilhão grande onde existem muitos presos. Não é um centro do reclusão permanente, é só para interrogatórios.

P: — Você viu gente detida em outros centros militares?

R: — Vi gente detida no Regimento de Cavalaria n.° 1, na General Flores, perto da Praça do Exército. Em 1977 vi muita gente detida lá. Existem umas 20 celas.

Regimento de Cavalaria n.° 9. Lá sempre tem muita gente presa. A Companhia ia buscar gente lá para interrogar. Um dia em que houve um jogo do futebol lá, todos os presos estavam na Praça de Armas, com capuzes feitos de fazenda de farda militar.

Escola de Armas e Serviços. Vi gente detida lá, mas não muita. No entanto, se comentava que lá havia muitos presos.

Batalhão de Engenheiros n.° 1. Em 1979 vi algumas pessoas deti­das nesse lugar.

Batalhão de Infantaria n.° 3. Em 1979 tive oportunidade de ver uns presos trabalhando na horta desse Batalhão. Está localizado ao lado da Escola de Armas e Serviços.

Batalhão Florida. Mandaram-me uma vez lá para tirar fotografias de dois presos, um deles com sinais evidentes de ter sido torturado. Isso foi em 1978. Há muita gente detida lá e se sabe que é um dos lugares mais duros.

Batalhão de Infantaria n.° 14, em Toledo. Em 1979 vi cerca de 20 detidos atados com arame. Esse é um dos lugares mais famosos pela dureza da repressão.

Também sei que há gente presa no Grupo de Artilharia 5, em Burgues; e no Grupo de Artilharia 1.

P: — Onde fica a sede da Companhia de Contra-informações?

R: — Antes ficava em Colorado 2298, quase Bulevar. Agora mudaram. Está no edifício que era do CGIOR, na rua Dante e República, na zona do Cordón. Pela rua Dante entra quase todo o pessoal da Companhia. É um portão, em Colônia quase República.

P: — Qual é a sede do Serviço de Inteligência de Defesa (SID)?

R: — O SID fica em Larrañaga e Monte Caseros, na rua Monte Caseros, é um prédio novo. Se não me engano, está lá há uns 3 anos. É facilmente identificável, são três grupos do casinhas de tijolos com tetos de telhas. São três grupos de casas, todas pertencem ao SID. Todas as casinhas têm dois andares. Não têm placa na porta, mas têm guarda militar.

P: — A Companhia de Contra-informações tem outros locais?

R: — A Companhia tem um apartamento, na rua Rio Negro quase Canelones, no quinto andar. Na direção da Rambla, à direita. É chamado de “Base 2”. O apartamento era usado pelo pessoal feminino da Companhia, pelas telefonistas, que eram solteiras. Elas ficavam nesse apartamento; tinham ordem de não dar a ninguém da Compa­nhia o endereço do apartamento.

Esse apartamento pertencia a uns argentinos. Além desse, a Com­panhia tem outro apartamento que é usado na “Operação 00013”, para vigiar a Embaixada russa.

P: — Você sabe quem matou o Coronel Trabal?16

R: — Sim; oficialmente ele foi morto por terroristas uruguaios na França. Extra-oficialmente se sabe que o próprio governo uruguaio mandou matá-lo, os próprios militares uruguaios.

P: — Isso era comentado na Companhia?

R: — Sim, se comentava; claro que bastante secretamente. Se comentava a nosso nível, digamos. Se comentava a nível de gente que conhecia mais do que eu do assunto a nível militar.

P: — Como explicavam o caso?

R: — Não sei, não tenho idéia das causas nem nada disso. Sei que havia gente que comentava isso. Cheguei a escutar um que disse: “Mas olhem só o Moncho Trabal — chamam de “Moncho” ao filho do Coronel -, o Moncho este, anda atrás do Comandante em Chefe e estes mandaram matar a seu pai”. Porque o filho do Cel. Trabal é um dos encarregados da segurança pessoal do Queirolo.

P: — Recorda outras operações feitas pela Companhia de Contra­-informações?

R: — Há muitas operações simples, que são esquecidas facilmente. Por exemplo, houve uma ação que não teve nada a ver com a política, referente a um integrante do Comando Geral do Exército que conseguia vales de gasolina e os vendia a dois funcionários do ANCAP17. Apesar de ser militar, ele foi torturado para falar. O que fazíamos muito eram operações para dar segurança a delegações estrangeiras, principalmente delegações militares.

P: — Sabe algo sobre o assassinato da Sra. do Mário Heber?18

R: — Não. Mas a Companhia teve alguma relação com o caso. Sabe por que cheguei a esta conclusão? Porque nós, a Companhia de Contra-informação, recebemos ordem de filmar e fotografar continuamente o ato do enterro para ter informação sobre as pessoas que iam. Inclusive foram infiltradas pessoas entre o público para escutar.

P: — Sabe algo do assassinato do Contador González Boadas?

R: — Foi aquele que apareceu queimado num carro? O que se comenta é que isso foi pelo assunto dos mármores para o Mausoléu.

O Gal. Rapella foi o encarregado da compra do mármore para o Mausoléu19, onde estão as restos mortais do Artigas; foi comprado mármore no exterior e na compra desse mármore o General tinha ficado com muito dinheiro. Este contador teria descoberto essa manobra e por isso foi morto. Foi o comentário que escutei na Companhia.

P: — Militares participaram disso?

R: — Sim, tenho essa impressão, mas não posso afirmá-la. Tenho certeza por causa do ambiente que rodeou tudo isso, embora não possa afirmar nada porque não tiveram interesse em filmar o enterro.

P: — Recorda outras operações de vigilância de integrantes de mavimentos políticos opositores?

R: — Só tomavam medidas quando o Partido Blanco tinha algum ato. Eram mandadas pessoas para infiltrar-se entre o público, escutar e ver como estavam as coisas.

P: — Para deter as pessoas também?

R: — Não.

P: — Não tiveram nada que ver nas detenções do ato que houve em Millán e Larrañaga?

R: — A este ato chegamos tarde. Fomos mandados para filmar tudo. Na Companhia existe um equipamento de video-tape. Chegamos tarde porque não tínhamos veículo e fomos de táxi e só pudemos filmar umas pessoas que corriam por Millán. Não tivemos nada a ver com as detenções porque chegamos tarde. Fomos filmar como se fôssemos jornalistas. Inclusive um companheiro levava um distintivo que dizia “Telenoche 4”. Eram mesmo distintivos de “Telenoche 4”, mas que não implicavam em nenhum contato com o Canal.

P: — Fizeram a mesma coisa em algum outro caso?

R: — Sim, há pouco tempo atrás, no ano passado, quando se comemorava o aniversário do falecimento de Luís Alberto de Herrera, na rua Luis Alberto de Herrera e Gal. Flores. Houve um ato lá e também fomos filmar e escutar as conversas.

P: — Que outras ações realizou a Companhia?

R: — Durante 1977 houve também detenções de militares dos quais diziam que eram do Partido Comunista.

Eram militares que tinham sido mencionados nos arquivos do PC. Chegou a haver uns 15 detidos. Acho que agora estão todos na Peni­tenciária de Libertad.

Muitos diziam: “Sim, eu estava no Exército obedecendo ordens do Partido Comunista”. Mas diziam isso para que a tortura parasse, porque foi impassível comprovar-lhes nada. Inclusive uns cabos foram presos e levados para a Companhia. Não recordo os seus nomes, mas lembro que 2 ou 3 deles tinham pertencido à Escola de Armas e Ser­viços e que o Capitão Méndez se identificou para eles, lhes disse: “Sabem quem está interrogando vocês? Sou eu, o Capitão Méndez. Querem ver-me?” Então tirou o capuz deles. “Méndez, sou o Capitão Méndez”. Recordo esses casos: eram 3 da Escola de Armas e Ser­viços. Havia do Batalhão 14 e do Cavalaria 1. Estive nos interrogatórios.

Houve um caso, em 1979, em que se apresentou no Comando um marinheiro, um Capitão da Marinha Mercante, um espanhol. Disse que tinha que informar a respeito de um fato: numa parada que ele fez em São José da Costa Rica, fora abordado por uns sujeitos, que lhe disseram que, se ele viajasse para a Uruguai, receberia uma boa remuneração se trouxessem um carregamento clandestino para eles; não lhe disseram o que era, mas certamente era armamento, porque o capitão depois ficou sabendo que essas pessoas eram subversivas. Ficou sabendo disso porque um amigo lhe disse: “O que é que estavas falando com esses caras?” e ele disse: “Estão me perguntando sobre uma carga”. “Mas esses são subversivos, terroristas”. Então essa pessoa se apresentou ao Comando e do Comando foram avisar a Companhia; levaram-no para a Companhia e o prenderam.

Mas o homem começou a gritar: “Mas não! Que incrível! Venho dar informação e me prendem, isto não pode ser! Isto é desumano! Sou espanhol e quero ir para o Consulado!” Isso foi por ordem do Capitão Ferro (o fato do prendê-lo). Depois ele foi interrogado, mas não com tortura, de forma cordial — digamos. Recordo que o Capitão Ferro ficou furioso num determinado momento e teve um dos seus acessos de loucura habituais e quis agredi-lo. Lembro que havia uns oficiais da Força Aérea presentes. Estes agarraram Ferro: “Não, Toto! Mas o que é isso?” (Porque os amigos o chamam da Toto). “O que é que você está fazendo, Toto?”

Bem, este capitão da Marinha Mercante disse que tinham lhe dado lugares para fazer contatos em Montevidéu. Então ele foi levado para a Hotel Richmond, onde ia ficar hospedado. Dois integrantes da Companhia ficaram num quarto ao lado do dele. Depois ele saiu para fazer os contatos — eu ia atrás dele, seguindo-o. Notamos que atrás dele vinha também uma camioneta, de uma firma estrangeira que não posso lembrar o nome. Só sei que era estrangeira, e continuamente andava atrás de nós. Percebemos isso mas ninguém deu bola. Os contatos não apareceram e depois, quando se começou a procurar a camioneta, ela não apareceu nunca.

O Cap. Ferro, quando enfrentava uma situação um pouco insuportável, quando interrogava e não obtinha resultados, começava a perder os estribos. Ramos não, era uma pessoa muito paciente, muito calma, podia passar três dias esperando que lhe dissessem “Naquela esquina está o que procura”. O Capitão Ferro não, ele era uma pessoa que queria obter num momento a informação, as declarações, por isso se irritava. Uma vez ele matou uma pessoa com um golpe. Ele comentou uma vez isso numa aula de defesa pessoal. Disse: “Não posso praticar porque bato muito forte, já matei um homem”. Depois do fim da aula, um companheiro meu me disse: “Sabes como foi que ele matou esse homem? Era um pobre cara que estava sendo torturado há uns 10 dias e já estava meio morto”. Não sei em que unidade aconteceu isso. Sei que depois o Capitão Ferro foi trans­ferido para a Polícia Militar Feminina, como castigo. A PMF funciona no Arsenal, lá na 8 de Outubro. Da PMF o Cap. Ferro foi transferido para a Companhia de Contra-informação.

P: — Sabe se são realizadas tarefas de vigilância contra dirigentes políticos “blancos” ou “colorados”?

R: — Não, contra essa gente ainda não tinham tomado nenhuma medida, nem mesmo tinham as suas fichas.

SIMPÓSIO DE INTELIGÊNCIA

HUGO GARCIA RIVAS: No ano passado, 1979 — não posso recordar em que mês — em Montevidéu houve um Simpósio de Inteligência a nível mundial. Vieram personalidades de Inteligência de todo o mundo, convidados pelo governo uruguaio para darem conferências. Recordo um par de nomes, um senhor Isaac Varón, um judeu; um americano que se chamava Brian Jenkins, uma pessoa muito importante nos Estados Unidos; um alemão, Mulder. Tínhamos todos os nomes deles com os respectivos quartos de hotel. Estavam no Hotel Lancaster e nós tínhamos o controle de todo o hotel para proporcionar-lhes segurança. Havia um inglês do qual não lembro o nome, um italiano, Ferracutti. Havia outro norte-americano que não era careca, tinha cabelo, mas usava o cabelo curtíssimo. Depois nos disse que tinha participado da operação Entebbe, famosa, essa que houve em Uganda. Disse que ele a tinha dirigido. Ele é um judeu americano chamado Aaron Kats. Havia outro chamado Giufrida, não me lembro de que nacionalidade. E um mexicano, Carlos Martinez, que era o mais moço de todos.

P: — Que objetivo teve esse simpósio?

R: — Não sei o que pretendiam, mas sei que todos foram convidados pelo Comandante em Chefe do Exército em nome da Institui­ção. Diziam que isso tinha custado muito dinheiro. Foram cinco ou sete dias de palestras, no Centro Militar, a nível de oficiais. Estava o Ministro da Defesa, muitos coronéis e todos os oficiais que parti­cipavam de órgãos de inteligência.

P: — Em nome de quem vinham os norte-americanos, da CIA, do FBI?

R: — Não sei. Sei que Varon era judeu mesmo, era militar, vinha em nome do Serviço de Inteligência israelense. Saía continuamente com um inglês do qual não lembro a nome. Com um inglês que usava um passaporte falso... Mas no aeroporto ele usou o passaporte ver­dadeiro. É um caso engraçado, não teve problemas porque era militar.

P: — Conhece as temas tratados nesse Simpósio?

R: — Falavam sobre Inteligência a nível mundial, sobre os diversos órgãos de inteligência que havia no mundo. Houve um problema porque eles começaram com suas palestras e aparentemente o que estavam oferecendo era de baixo nível. Então o Gal. Ballestrino pediu a palavra e disse que o nível estava muito baixo. Que o Uruguai estava a um nível muito mais alto daquilo que estavam oferecendo e que tivessem a bondade de encarar o tema a outro nível profissional. Acho que era Jenkins que estava falando nesse momento.

Os oficiais diziam, por exemplo: “Eles pensavam que iam chegar aqui e iam nos encontrar com arco a flecha”. Inclusive Varon, certa vez saiu do seu quarto, onde tinha estado escrevendo toda a tarde. Só se escutava a máquina. Ele tinha nos dito que estava escrevendo um livro, e quando saiu me lembro que lhe perguntei: “Está escrevendo para o livro?” e ele disse (falava bem o castelhano): “Não, acontece que eu tinha preparado um determinado trabalho e resulta que encontrei um nível... encontrei outro nível e tive que começar outro trabalho diferente”, e isso foi no dia seguinte daquele em que Ballestrino falara.

P: — Quais eram as tarefas da Companhia no Simpósio?

R: — Tínhamos que ocupar-nos da segurança; os convidados eram acompanhados a todos os lugares. Iam somente do Hotel para o Centro Militar e fazer algumas compras.

Aaron Kats era o único que tinha amigos no Uruguai. Uma vez mandaram que o seguissem e ele imediatamente se perdeu: pegou um táxi, desceu depois de duas quadras e pegou um ônibus. Nunca quís dizer quais eram os seus amigos e não queria que ninguém o acompanhasse.

Antes dessa operação tinham nos dito que era muita importante que guardássemos segredo sobre a vinda dessas pessoas e que tivéssemos muito cuidado em falar com eles porque poderiam fazer-nos perguntas.

CORRUPÇÃO

P: — Conhece casos do corrupção dentro da Companhia?

R: — Há pouco foi descoberta uma rede de prostituição; uma grande quantidade de delegados de polícia levava para a Europa garotas uruguaias.

Eu tinha um colega que era o motorista do Coronel Calixto de Armas, que sabia tudo o que o coronel fazia. Ele me contou que o General Ballestrino20, o Coronel de Armas e a General Aranco têm um apartamento em Magallanes e 18 de Julio, que era o seu lugar de reunião (não sei o número, é por Magallanes para a sul, antes do atravessar 18 do Julio à esquerda, porque no lado oposto está a Praça dos Bombeiros). A esse apartamento vão amigos deles. Bem, meu amigo falou um dia com uma das “amigas” que ia ao apartamento com estes militares, e meu amigo combinou sair com ela. Quando saíram, ela começou a falar com ele, e num determinado momento disse: “Você viu o caso dessa rede de prostituição na Eu­ropa? Sabe quem é o chefe?” e ele disse: “Não, não sei; não são esses delegados?” e ela respondeu: “Não, o chefe de tudo isso é o Gal. Ballestrino, e sei disso porque uma das minhas irmãs é uma das que está na Europa. Minha irmã me disse que uma das conversas que ela teve aqui em Montevidéu foi com o General Ballestrino, que era quem se encarregava do todos os preparativos”. Então o meu amigo conversou sobre isso com um Capitão da Companhia, o Ca­pitão Berruti, que falou com outro capitão da Escola de Armas e Serviços, e este último informou Ballestrino, que é o Diretor da Escola de Armas e Serviços, e meu companheiro foi preso imedia­tamente na Companhia. Esteve dois meses preso e depois lhe deram a baixa por ter dito isso. Só não foi para o cárcere porque o Coronel de Armas o ajudou muito.

P: — Qual era a acusação contra esse soldado?

R: — Atentado contra a força moral do Exército... Outro caso que se comentou muito, ocorreu em 70 ou 71. A Companhia fez uma operação para capturar um subversivo que era chamado de “Trotsky”. Ele foi descoberto numa casa, resistiu e foi morto com dois tiros de 45. Quem o matou foi um agente da Companhia que era cabo, chamado Serviño. Depois trabalhou no SID e agora é Inspetor da Comissão Administradora de Abastecimentos.

P: — Como chegou a esse cargo?

R: — Ele foi posto lá pelo Capitão Méndez, que agora é o interventor; Serviño, se fosse civil, estaria sempre preso, porque era um ladrão, um cara muito desonesto! No entanto, prestou serviço na Companhia, no SID e agora em CADA. Foi dado de baixa na Companhia por causa de uns roubos; e no SID não me lembro porque, mas também foi dado de baixa. Era muito famoso.

P: — São usuais os roubos aos detidos?

R: — Sim, sobretudo se têm relógio ou dinheiro.

P: — Roubam também nos domicílios dos detidos?

R: — Sim, sim. O oficial diz que aqueles que se apropriarem de coisas serão punidos. Mas eles são os primeiros que, quando vêem algo que lhes interessa, ordenam: “Levem isso para o carro”: televisões, rádios, levam tudo. Ferro, por exemplo, é impressionante. Ferro diz descaradamente: “Puxa, que coisa bonita!” e a leva. Certa vez, quando Gregorio Alvarez21 ainda era Comandante em Chefe, foi feito um comunicado interno dizendo que todos aqueles que tinham obtido dinheiro em base a operações, que tinham subtraído coisas em operações, iam ser castigados. Recordo que Ferro lia o comunicado e dizia: “Vamos lá, velho, queres dar-me ordens?” e morria do rir. Ferro é uma pessoa muito respaldada, sem dúvida é respaldado pelos americanos. Ferro é um cara que vai chegar a General e até mesmo a Tenente-General.

P: — Dentro do Exército, quem o respalda?

R: — Sei que tem muito respaldo do Ministério do Interior, do Gal. Núñez. Queirolo também o respalda muito.

Houve um caso dentro da própria Companhia, não sei se pode ser chamado de caso de corrupção, mas certa vez os oficiais da Companhia fizeram uma viagem ao Chuí e pegaram cinco cadernetas de vales de gasolina da Companhia, das que se entregavam para que a Companhia tivesse combustível. Na ANCAP, trocaram isso por dinheiro, viajaram, trouxeram televisões, uma infinidade de coisas que levaram para as suas casas. Muitos companheiros ficaram sabendo disso, e esta atitude provocou um certo mal-estar. Quando eu fui embora, um vale de gasolina valia 120 pesos, e cada caderneta tem 50 vales. Estes oficiais venderam cinco cadernetas de vales22. Soube tudo isso pelo motorista que os levou.

P: — Em geral, como considera a postura moral dos oficiais? São corretos?

R: — Muito poucos. Penso que dentro da Companhia havia pouquíssimos assim. Acho que só um era uma pessoa reta, o resto não. O resto, como civis, estariam em dívida com a justiça. Isto é, se como civis procedessem da mesma forma do que como militares.

P: — Que outras atividades realizava a Companhia?

R: — Proporcionar segurança às delegações estrangeiras; isso ocupava um lugar importante. Era um trabalho permanente, uma tarefa bastante assídua, porque as visitas das delegações estrangeiras eram freqüentes. Ainda mais porque provinham de três países diferentes (Argentina, Chile e Paraguai sobretudo). Realizavam visitas ao Co­mando Geral do Exército, iam reunir-se com o Departamento, com o Chefe do Estado-Maior, e depois cada um ia para a sua Embaixada, visitar o Embaixador. Depois faziam passeios turísticos. Visitavam os lugares importantes de Montevidéu: o Cabildo, o Palácio Legislativo. Algumas vezes levamos delegações ao Ministério da Defesa. Eles se hospedavam no Columbia ou no Victoria Plaza. A Companhia ocupa­va-se também da segurança do Comandante em Chefe Queirolo e do Tenente-general Gregorio Alvarez. Na porta de entrada do Tenente-­general tem sempre um elemento, e quando ele sai este o acompanha, ou, se ele não quer, continua lá.

O Comandante em Chefe também é acompanhado sempre por um elemento da Companhia, à paisana, e junto com eles vai sempre um militar, que é cabo, do 14 de Infantaria.

Eles o acompanham a todos as lugares, aos atos, aos quartéis. Inclusive quando Queirolo foi à Colômbia para a reunião dos Comandantes em Chefe, o acompanharam. Quando ele sai de casa, sempre fica outro guarda na porta do apartamento. Quem se ocupa da segu­rança de Queirolo é o filho do Coronel Trabal.

P: — Os chefes militares têm medo de atentados contra eles?

R: — Acho que sim. O Comandante em Chefe às vezes pede urgentemente custódias. Agora em dezembro, quando o Capitão Ferro praticamente estava por deixar a Companhia, ia propor um esquema de segurança bem feito para o Comandante em Chefe, consistente em 30 elementos, que trabalhariam durante 15 dias e descansariam nos outros 15. Ou seja, 15 iam trabalhar dois dias e os outros 15 descansavam dois dias, etc. Eram 30, mas só 15 trabalhando, todos da Companhia. Mas isso não pôde ser feito porque a Companhia ia ficar com muito pouco pessoal. Mas ele ia propô-lo, acho que para ficar bem visto.

Na verdade, a custódia que o Comandante em Chefe tem é uma custódia nula, não é? Porque só um homem como custódia, acho que não é uma coisa muita efetiva.

P: — Quando estes casos de corrupção tornam-se conhecidos, qual é a reação dentro do Exército?

R: — Afetam muito. Nós comentávamos e dizíamos: “Mas estes são os nossos superiores? Não são gente honesta, gente que mereça estar em algo que deveria ser uma Instituição digna”. Isso afeta muito, sim, e evidentemente por isso os oficiais tratam de impedir que essas coisas se tornem conhecidas.

P: — Recorda algum outro caso acontecido na Companhia?

R: — No último mês que estive na Companhia, em dezembro, haviam prendido um sargento do Exército, chamado Carrasco, que prestava serviço no Regimento de Cavalaria 10 em Treinta y Tres, do qual se dizia que na época da subversão (quando ele estava traba­lhando na Polícia, tinha que ver com a documentação) entregava documentação falsa para os sediciosos. Foi preso, interrogado lá na Companhia e depois fugiu. Fugiu, coisa muito difícil, num domingo à tarde; fiquei sabendo que agora foi recapturado. Isso foi agora, há pouquinho tempo, segundo informações que tenho dos companheiros de lá. Não sei qual será a situação dele agora, mas quando fugiu o sentimento a seu respeito era muito adverso. Pensavam eliminá-lo. Se tivesse sido encontrado logo, tenho total certeza de que o teriam eliminado, porque foi um golpe muito grande para a Companhia. O Departamanto 2 efetuou uma investigação a respeito, e foi nomeado um Juiz sumariante para o caso, que foi o Tenente-coronel Zamarrita.

P: — Juiz sumariante de quem?

R: — Do oficial que estava de plantão nesse dia e dos subalternos também; ou seja, de 3 subalternos; dois encarregados da guarda e um que atendia ao detido. Em suma, não era considerado detido, mas sim preso. Disseram-me que o oficial tinha sofrido uma sanção de prisão porque não estava no momento da fuga. Os dois guardas foram rebaixados de categoria, mas ao soldado não fizeram absoluta­mente nada porque se comprovou que ele não tinha tido nada a ver. Os cabos foram rebaixados por omissão ao serviço. . . Um dos cabos não estava no momento, tinha saído num carro, e o outro cabo estava assistindo televisão.


 

CAPÍTULO VII
A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL EM AÇÃO: INTERCEPTAÇÃO DE TELEFONES, SEGUIMENTOS, GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS

 

P: — Você disse que a Companhia de Contra-informações realizava tarefas de interceptação de telefones a fim de detectar opositores. O que é que pode nos informar a esse respeito?

R: — Em geral, os telefones são interceptados por ANTEL23. Conheço um senhor que é o encarregado de interceptar telefones para a Companhia de Contra-infomações. Esse senhor é Sicalli, um civil.

P: — Que cargo ocupa em ANTEL?

R: — É técnico. Não sei o cargo específico. É contato que a Companhia tem em ANTEL. Por meio dele é possível interceptar qual­quer telefone.

P: — Gravam?

R: — Coloca-se gravadores a fita com um dispositivo automático que faz com que o gravador comece a funcionar quando se recebe um telefonema. Depois essa fita é levada para a Companhia para passar a máquina, para fazer a transcrição.

P: — Alguma vez você recebeu a tarefa de ir buscar as fitas?

R: — Sim, muitíssimas vezes. Inclusive este senhor Sicalli freqüenta muito a Companhia.

P: — Conhece alguns outros colaboradores da Companhia. civis ou que tenham vinculação com grupos fascistas?

R: — Não. Na verdade fiquei conhecendo essa pessoa por acaso. Sei que a Companhia tem muitos colaboradores em todos os lugares. Na Prefeitura, dentro de todos os organismos. Mas isso é mantido em segredo. Existe um grande hermetismo sobre o tema. Os únicos que o sabem são o Chefe da Companhia e alguns oficiais. É muito difícil sabê-lo.

P: — Existe pessoal feminino trabalhando para a Companhia?

R: — Trabalham 3 mulheres, como telefonistas e rádio-operadoras. Mas elas também saem para trabalhar na rua.

P: — Isto é, participam de seguimentos? De interrogatórios?

R: — Sim, de seguimentos. Em interrogatórios, sei que 1 ou 2 tiveram que participar. Foram obrigadas a participar, contra a sua vontade. A mulher tem mais possibilidades de recusar fazer alguma coisa, dizer: “Não, eu não”, porque é mulher.

P: — Como se realiza a vigilância dos domicílios das pessoas perseguidas?

R: — A vigilância de uma casa é relativa; o ideal é levar um veículo fechado e colocá-lo perto da casa, num lugar onde se tenha uma boa observação e vigiar. A camioneta Kombi é ideal porque é toda fechada. Atrás do assento do motorista e do acompanhante tem uma espécie de biombo, e de fora não se vê nada. Então a gente pode observar através do vidro ou pelas grades laterais.

P: — Que outro tipo de sistema se usa?

R: — Usa-se o sistema de deixar uma pessoa perto da casa; se há um ponto de ônibus é ideal, a pessoa vai de um lado para outro. Mas isso só se usa se for um lugar onde continuamente há gente transitando; num bairro não pode ser utilizado, porque uma pessoa pode permanecer uma hora num lugar, mas duas... os vizinhos podem chamar a Polícia. Algumas vezes aconteceu isso: estar fazendo uma vigilância e ser detido pela Polícia... Comentávamos a necessidade de ter um caminhão. Porque a camioneta já fora tão utilizada, que não queriam utilizá-la mais. Mas o ideal é isto: ter um carro fechado, para que um ou dois fiquem na parte de trás. Geralmente não fica uma pessoa sozinha num veículo, porque dizem que dois é melhor, porque um cara sozinho pega no sono.

P: — E o veículo fica como se estivesse vazio?

R: — Sim; ou seja, o motorista desce, fecha tudo e vai embora.

P: — De que outra forma se faz vigilância?

R: — Se instala uma banca que vende balas na esquina; nós nunca fizemos isso, mas sei que o SID faz... Na Companhia também se usava mandar um casal quando a casa ficava num bairro, um casal que sentasse num muro, talvez no muro da própria casa, e ficasse se beijando e abraçando... Nesses casos é preciso mudar continua­mente, pelo menos tem que se fazer dez mudanças de pessoas por dia. Certa vez tivemos uma vigilância em Malvín, na rua “Las Deli­cias” e... não recordo o nome do outra rua. Mandaram-me vigiar uma casa, as pessoas que entravam nela. Fiquei 8 horas sem ser substituído, até que chegou o polícia: “O que é que você está fazendo?” “Nada, nada, estou sentado...” “Venha para dentro!” E me levaram. Nesses casos é preciso se deixar prender. Depois, longe do lugar, a gente diz à Polícia: “Sou um funcionário do Estado-Maior do Exército, estou vigiando uma pessoa”.

Eu tinha uma foto da pessoa buscada. Era um homem de bastante idade. Não sabia a seu nome.

P: — Você declarou que as conversas de Lilián Celiberti com sua família eram gravadas. Este procedimento é usado em outras ocasiões?

R: — Na Seção Técnica existem gravadores a cassette que se usam quando é preciso colocar microfones em algum lugar especial, como o microfone conectado por meio de um fio ao gravador a cassette, que pode ser menor do que uma fita.

P: — Sabe em que lugar foram colocados esses microfones?

R: — Não há pessoas específicas, isso varia segundo a pedido do Departamento. Às vezes alguma pessoa vai ter alguma conversa ou entrevista interessantes, e o microfone é colocado antes. O próprio Comandante em Chefe, na sua sala de recepções, tem microfones. A Companhia os colocou a seu pedido. Esses ficam lá permanentemente.

Lembro que uma vez colocaram microfones na Penitenciária de Libertad. Sei disso porque foi um companheiro meu. Me disse que tinha sido muito bem tratado nos dias que passou lá. Tinha até almoçado com o Diretor da Penitenciária.

Uma vez houve um problema com uma conversa gravada de Lilián com um Major. Não sei o que foi que o Major disse, mas ela lhe respondeu que estava presa, mas que era uma pessoa instruída, que era professora, e lhe disse: “O senhor é só um militar, o senhor nasceu para milico e se amanhã lhe tiram a farda o senhor não é nada, não sabe o que fazer da sua vida”. Ele não lhe replicou nada e diziam que por isso ia ter problemas.

Depois parece que ela lhe perguntou algo de política e ele não respondeu. Então ela repetiu: “Viu? A única coisa que o senhor sabe é ser milico!”

P: — Como são dissimulados os microfones?

R: — Geralmente não se dissimulam, sabe? São colocados em qualquer lugar. Pode ser debaixo de uma mesa, e só o fio é escondido. Se a chão é de parquet, se tira o cimento que une os tacos, se coloca o fio e o cimento por cima. Ou se faz um buraco numa parede, se coloca o fio, se fecha o buraco e se pinta da mesma cor. Isso sempre fica bem, é muito difícil que se note algo. Geralmente o buraco é feito na parte do rodapé, assim ninguém percebe.

P: — Para as tarefas de vigilância, se usa a fotografia?

R: — Exatamente. Na Companhia existe um material muito básico, só há duas máquinas fotográficas e uma tele-objetiva. Esta é de 200 milímetros, ou seja, para fotografar à distância, é ruim. No máximo dá para fotografar a 30 metros, para que saia uma foto nítida, para que a pessoa possa ser reconhecida. Na tele-objetiva diz “200 ms.”, mas nem a 100 metros é possível tirar uma fotografia que valha a pena. Mas qual é a missão em si da fotografia? Antes de iniciar uma investigação, o primeiro passo é localizar bem a pessoa que vai ser investigada, localizar seu domicílio, fotografá-la. Estas fotos depois são distribuídas entre todos aqueles que vão participar da operação.

P: — De que maneira se tiram as fotografias?

R: — É fácil, geralmente de uma caminhoneta Kombi; o fotógrafo vai na parte de trás; geralmente eu ia lá, porque o Sargento não se ocupava disso. A máquina vai com a tele-obetiva montada num tripé e através das grades da Kombi era possível fotografar, sem que estas grades aparecessem na foto. São umas grades para ventilação.

Dá para ver melhor com a lente da máquina do que com o olho humano. Claro, a tele-objetiva tem um pouco mais de força, então é perfeitamente possível fotografar através daquelas grades. Também se tiravam fotos atrás do assento do motorista. Na caminhoneta também havia um vidro verde, que ficava como um espelho, ou seja, de fora não dá para ver nada do que está dentro. Aí também se colocava a máquina e se fotografava. Geralmente sempre se usava a Kombi. Quando ainda não a tínhamos, usávamos um automóvel no momento em que não havia ninguém olhando, rapidamente.

P: — Nos seguimentos, as pessoas também são fotografadas?

R: — Não. Só se se encontram com alguém, por exemplo; para que depois a pessoa não possa dizer: “Não, eu não me encontrei com essa pessoa”.

P: — Que outro papel desempenha a fotografia dentro das tarefas de Inteligência?

R: — Por exemplo, a de fotografar documentação. Como quando a Companhia pediu emprestado a arquivo do PVP. A OCOA tem um computador, no qual colocam dados e o computador fornece a possível atividade das pessoas, se tem atividade sindical, se tem atividades subversivas, etc. Parece que estes dados são bastante corretos.

Pois bem, a OCOA tinha um arquivo onde figuravam todos os elementos do PVP que estavam capturados e outros que estavam requeridos, bem como outras pessoas que eram do MLN, do PC, muitas pessoas. Na época do seqüestro, emprestaram este arquiva à Companhia, mais precisamente ao Capitão Ferro, durante dois dias. Então o Capitão me ordenou que fotografasse tudo imediatamente.

P: — Todos os antecedentes dessas pessoas?

R: — Tudo, tudo! Recordo que utilizei latas inteiras de filme. Uma lata inteira de filme! Estive dois dias trabalhando nisso. Saí tonto daquele laboratório!

P: — E quantas fotos havia nesse arquivo?

R: — Havia 500 por cada livro. Um horror!

P: — E quantos livros havia?

R: — Dois. Em cada página há muitas fotos, porque elas são pequenas. A folha é de tamanho ofício; e havia 500 fotos por livro. Era um disparate! Ainda bem que eu não tinha que fazer foto por foto, mas só uma foto grande 18 por 24, com toda essa folha. Mas primeiro foi preciso tirar todas as folhas, bater as fotos e depois comecei a fazê-las. A partir daí, nós também tivemos o nosso arquivo. Essa é outra das tarefas da fotografia. Se não tivesse sido por esse trabalho fotográfico, não teríamos agora o arquivo. Acho que OCOA nunca ficou sabendo que fizemos isso. Também, por exemplo, no caso da operação “00013”, quando fazíamos fichas dos russos com foto­grafias.

P: — Você trabalhou fotografando detidos?

R: — Sim, isto se fazia para que constasse do arquivo. Se tal preso esteve na Companhia, fica a sua foto arquivada.

P: — Você trabalhou também na parte de documentação?

R: — Sim. Recordo um trabalho que nas encomendaram. Quando houve a conferência de Exércitos americanos no Uruguai, não me lembro em que ano foi, acho que em 1975, todos os chefes de Exército eram fotografados; na Companhia havia uma foto do General Videla, e com esta foto preparamos uma carteira de identidade falsa. Disseram-nos que era para fazer uma experiência; preparamos a carteira e a entregamos aos superiores.

P: — Além da caminhoneta Kombi que você mencionou, que outros veículos utilizava a Companhia de Contra-informações nas suas tarefas repressivas?

R: — Bem, havia um VW vermelho, um branco, e havia dois na oficina para conserto, que depois foram vendidos ou leiloados; eram modelos novos, mas muito usados, e se deterioram muito facilmente. Porque os veículos da Companhia andam quase tanto quanto um táxi: 300 ou 400 km por dia, são muito usados.

P: — Se realizavam seguimentos às pessoas consideradas suspeitas?

R: — Sim. Às vezes é possível fazer um seguimento só com uma pessoa, ou com 2 ou 3, às vezes até com 5. O seguimento tem que ser discreto. Às vezes ele pode ser aberto, para que a pessoa se dê conta de que está sendo seguida, assim ela tem que mudar os seus planos. Geralmente se faz um estudo prévio da pessoa que vai ser seguida. Se a pessoa anda a pé, ela é seguida a pé. Se anda de carro, é seguida de carro. Se anda a pé também é preciso ter algum veículo disponível para o caso dela tomar um táxi. Se pegar um ônibus, ela é seguida de carro mas também por gente que pega o mesmo ônibus. Uma pessoa pode ser seguida por três que vão se revezando. Uma vai perto dela; vai ser o contato com ela. Outro vai ter o contato visual com o companheiro, e outro vai caminhando pelo outro lado da calçada. Num determinado momento, todos trocam de lugar, se faz uma rotação. Esse método mostrou ser muito eficiente nas vezes que foi feito. Torna-se difícil quando a pessoa sabe que a estão vigiando e toma medidas de contra-vigilância. Estas podem ser muitas. A pessoa pode chegar até uma esquina, dobrar, e resulta que quando a gente chega até a esquina a pessoa não está mais lá. É muito fácil surpreender-se; a gente pode ir correndo até a esquina e o cara pode estar lá parado, esperando.

CÓDIGOS RADIAIS

HUGO GARCIA RIVAS: Recordo que o SID era “Ceibo”, por exemplo. O SID era chamado de “Ceibo” na rede de rádio. La Tablada recordo que era “Base Roberto”. O Batalhão de Infantaria 13 era “Rojo 13”. Os Batalhões eram todos chamados de “Rojo” (Vermelho). O Batalhão de Cavalaria 1 era “Rojo 10”.

O Comandante em Chefe era Rojo Alfa”, até agora é “Rojo Alfa”. O Chefe do Estado-Maior é “Rojo Bravo”. O Chefe do Departamento 2 é “Rojo Maíz”.

P: — Estes códigos eram usados nas redes de rádio?

R: — Sim. Ao princípio operávamos em Freqüência 2. Depois, com os equipamentos novos, passamos a ter Freqüência 2, 3 e 4. Os equipamentos novos só chegaram agora, em 1979. Nós tínhamos essa Freqüência 2 e outra freqüência em que só podíamos escutar, a freqüência 1. Nessa freqüência se escutava a OCOA. Se a OCOA queria chamar-nos entrava em contato com essa freqüência. A OCOA era chamada de “Eco”.

P: — Como são chamados os detidos?

R: — “Clave 11”. Acho que os códigos ainda não foram mudados. Recordo muitos: “Clave 1” era “silêncio radial”, por exemplo, ou seja, quando se queria um silêncio se dizia: ‘Clave 1 por 10 minutos’. Se estava por chegar algum comunicado importante ao lugar, e se havia alguém operando, se comunicava “Clave 1 por tantos minutos”. Isto é, as chaves são obedecidas imediatamente. “Clave 2” é “urgente”. Por exemplo, se alguém que andava na rua tinha que se dirigir imediatamente à sua base, era chamado pelo seu número e recebia a ordem: “Em Clave 2 dirigir-se para Base”. “Clave 3” é “patrulhando”. E assim é a todos os níveis, na Companhia de Contra-informações, no SID, na OCOA, bem como nas patrulhas da Polícia. “Clave 4” é “unidade operando na zona”. Quando ia ser realizada uma operação, algu­ma vigilância, isso era comunicado por rádio. Por exemplo, se dizia “Veículo de Rojo 17 em Clave 4, em La Clave 6 de tal lugar”; “Clave 6” é “localização”. Ela às vezes era usada em forma redundante, pois se dizia: “Estou localizado na Clave 6 de 18 de Julio e Sierra”. Era um código praticamente inútil. “Clave 7” não me lembro o que era. “Clave 10” era “telefonema”. “Clave 11”: detidos”. “Clave 12”: “colisão sem lesionados”. “Clave 13” era “acidente com lesionados”, era preciso indicar a gravidade do acidente. “Clave 14” era “acidente fatal”. “Clave 15” era “demente”. Demente na via pública. Essa era mais para a Polícia, mas nós também a utilizávamos. Tínhamos que sabê-la. “Clave 16” não recordo. 17 e 18 também não. Esqueci muitas delas. Nós recordávamos as palavras mais importantes, por exemplo “Clave 66” era “ratoeira”.

A “ratoeira” consiste em que, quando se faz uma operação em algum local, se deixam pessoas lá, a fim de capturar outras pessoas. Isto é “Clave 66”. Clave 52” é “agente das FFAA em perigo”; Clave 25” é “manifestação em via pública”.

Cada integrante do SID tinha o seu apelido. Por exemplo, Ferro, que atualmente está no SID, tem que continuar sendo “Guilherme” porque é dificil trocar de apelido. Pelo rádio, ele é identificado como “Guilherme de Ceibo”, “Ceibo” é o SID. O nome da Chefatura de Polícia é “Colina”.

Também pelo rádio eram mencionados os “300” da OCOA. “300 Carlos”, que é o local do Serviço de Material e Armamentos. OCOA tinha outro local, o “300 P”, que nunca soube onde ficava.

Era mencionado também o grupo dos “INDIAN”. Recordo dois: ‘Indian Carlos” e “Indian Charlie”, mas não sei quem eram. Em linguagem de rádio, “A” é “Alfa”; “B”, “Bravo”; “C”, “Carlos”; “Ch”, “Charlie”; “W”, ‘Whisky”. As conversas são todas desse tipo. Por exemplo, “Indian Charlie e Eco”. Todas são assim. Enviando uma men­sagem de um “Indian” a um Oscar”, etc.

COMPANHIA DE CONTRA-INFORMAÇÕES — ORGANIZAÇÃO INTERNA

P: — Quantos integrantes tem a Companhia de Contra-informações?

R: — Atualmente deve haver uns 90. Desde o Chefe até o último soldado. Há 5 oficiais, um sub-oficial, que é encarregado do pessoal subalterno (Fernández), 2 Sargentos-primeiros, um deles se chama Rubem Acosta. Depois mais 5 sargentos, 7 ou 8 cabos de primeira, 3 cabos de segunda e acho que 54 soldados de primeira. O resto são soldados de segunda, aproximadamente uns 15.

P: — Quem são os oficiais?

R: — Atualmente o Chefe da Companhia é o Major Dante Aguir­re. Ele assumiu o cargo há pouco tempo (janeiro ou fevereiro). Sei disso porque continuei mantendo contato com ex-companheiros meus.

Depois está o Capitão Carlos Berruti.

Um capitão cujo sobrenome é Perdomo.

Outro capitão, Glauco Yanonne.

E o tenente Carlos Echevers.

P: — O único que continua desde 78 é Yanonne?

R: — Sim. Mas o Major Rossel, por exemplo, está na Escola de Inteligência que funciona dentro do mesmo prédio da Companhia. O Capitão Ramos também está agora na Escola de Inteligência. O Capitão Ferro está no SID e o Major Bassani também.

P: — Por que foram transferidos?

P: — Bem, o Capitão Ramos porque cumpriu os seus dois anos na Companhia. Eles geralmente passam dois anos em cada destino. Mas na Companhia geralmente não sucedem essas transferências após dois anos, porque se trata de um cargo importante dentro do Exército. Podem ficar 4, 5, 6 anos. Sei que o Capitão Ferro, Rossell e Bassani foram transferidos pelo problema do seqüestro. Para a sua maior segurança. Foram transferidos porque este caso se tornou conhecido e aqui no Brasil se soube tudo e existe pressão do exterior. Por isso eles não figuram entre os membros da Companhia.

R: — A Companhia está dividida em diversas seções?

P: — A Companhia de Contra-informações está dividida da seguinte maneira: a seção mais importante é a Seção Operações, que é de onde saem todas as ordens de operações, de investigações. Depois tem a Seção Técnica, onde se prepara a documentação, onde está o laboratório fotográfico, onde estão os aparelhos para “operações de escuta”. E a Seção Administrativa, que se encarrega das partes admi­nistrativas da Companhia.

Eu estava na parte técnica. Ela ficava lá na rua Colorado, mas agora funciona no CGIOR.

P: — Qual é a distribuição dos oficiais de acordo com essas três seções?

R: — Atualmente é assim:

Capitão Perdomo como Chefe da Seção de Operações.

Capitão Berruti como Segundo Chefe da Seção de Operações.

O Tenente Echevers é o Chefe da Seção Técnica e o Capitão Yanonne é o Chefe da Seção Administrativa.

P: — E em 1978?

R: — Capitão Ferro em Operações, Capitão Ramos em Técnica, Capitão Yanonne na parte administrativa.

P: — O seu chefe era Ramos?

R: — Sim.

P: — De quem depende a Companhia de Contra-informações?

R: — Do Departamento 2 do Estado-Maior do Exército, que depende do Comando Geral. No Comando está a Comandante em Chefe, é um Tenente-General. O Comando Geral do Exército tem um Quartel-­General que tem relação com todo o pessoal. É uma seção de pessoal.

P: — Tem pessoal próprio o Comando Geral? Isto é, tem tropa específica?

R: — Sim, dedicados somente à parte Comando. É a Companhia do Comando. Dela depende a guarda do Comando e a seção faxina. Mas o Estado-Maior está encarregado de toda a parte administrativa.

P: — Não existem oficiais dedicados a relacionar-se com o movimento sindical, problemas trabalhistas, relações com a cultura?

R: — Não, acho que isto está a outra nível. Não corresponde ao Comando. O Estado-Maior tem toda a parte administrativa; tem o Departamento 1 que é encarregado de fornecer todos as implementos e artigos de escritório; tem o Departamento de Finanças que é de onde sai o orçamento geral para todo o pessoal do Comando. Depois está o Departamento 2 que é o Departamento de Informações, o Departamento 4 que é logística: abrange o fornecimento de material logístico, veículos, por exemplo. Quando o Comando requer veículos eles são tramitados pelo Departamento 4. O Comando em si não tem muitos veículos. Tem só algumas caminhonetas para o serviço comum. Está também o Departamento 3, mas não me lembro da sua função.

P: — A Companhia de Comando é muita numerosa?

R: — Não, não sei qual é a quantidade do pessoal, mas não é muito numerosa. É apenas uma Companhia.

P: — Que função tem o Departamento 2?

R: — As funções do Departamento 2 são de Informação. Por exemplo, toda a informação que vem do exterior, das embaixadas, etc., se centralizam no Departamento 2. Os trabalhos de Inteligência se centralizam no Departamento 2, que as envia à Companhia de Contra-­informação.

P: — Que parte dela vai para o SID, por que existem dois organismos?

R: — Porque o SID depende diretamente do Ministério de Defesa. Para mim, o Departamento 2 é mais importante do que esses dois: que o SID e a OCOA, porque o Departamento 2 recebe ordens diretamente do Comandante em Chefe, enquanto o SID as recebe do Ministério da Defesa cujo ministro é um civil: Ravenna.

P: — Entra na órbita do Departamento 2 o controle sobre as publicações, o rádio, a imprensa...?

R: — Não, embora isso pareça um pouco estranho. Isso estava dentro da órbita do Departamento 2. Agora está dentro da órbita da DINARP (Direção Nacional de Relações Públicas).

P: — A DINARP não está vinculada ao Departamento 2?

R: — Tem vinculação a nível de oficiais do Exército que estão na DINARP. Por exemplo, o Major Bodean, que atuou na área de inteligência. Este homem está permanentemente em contato, tanto com o Departamento 2 como com a Companhia. Do Departamento 2 depende também a Escola de Inteligência e uma Seção de Arquivos.

P: — Dentro da Companhia de Contra-informações se realizava algum controle sobre os seus próprios integrantes?

R: — Havia pessoas que passavam dados sobre nós ao oficial, tínhamos que ter muito cuidado, os que pensávamos um pouco diferente tínhamos que nos cuidar, não falar, porque sabíamos que qual­quer pessoa dessas, mais vinculada aos oficiais, podia transmitir a informação. Sucederam muitos casos, por exemplo, de alguém que fazia algum comentário a respeito do um oficial do qual não gostava, e o oficial logo ficava sabendo. A gente da Seção Operações tinha a recomendação do Capitão Ferro de fazer um controle sobre todo o pessoal da Companhia. Por exemplo, o Sargento Miguel Rodriguez era um deles, da Seção de Operações. Havia um soldado, Carlos Martinez — é o que estuda Medicina -, Clever Núñez, Ademar Sosa, quase todos eles têm contato com o americano. Esse Martinez era o encarregado daquele apartamento, na frente da Embaixada da URSS. Eles tinham ordens do Capitão Ferro de controlar o resto da Companhia e de comunicar-lhe qualquer anormalidade. Inclusive dentro da Seção de Operações eles tinham um organograma, uma seção de coleta de dados, de arquivo, eles tinham também um pequeno arquivo, onde estava a nome de cada um com a sua função, havia dois ou três nomes com o qualificativo de “Informante”. Clever Núñez era um deles. Estes já abraçaram a “causa”, não é? Houve uma pessoa lá na Companhia, um cabo chamado Gustavo Mata, que em 1978 matou lá dentro um companheiro nosso, um soldado; dizem que o matou acidental­mente. Estava brincando com um revólver e escapou um tiro. Mas de­pois circulou um boato de que aquela morte fora premeditada; essa morte ocorreu na frente de um oficial, o Capitão Ramos, e casual­mente tanto este como o cabo Mata como o falecido tinham estado trabalhando juntos em Maldonado durante bastante tempo, em 1977. E o Capitão Ramos gostava muito do Cabo Mata, tinha uma boa im­pressão dele. Diziam que o falecido sabia muitas coisas que tinham sucedido em Maldonado, e isso não convinha aos oficiais, e por isso o Cabo Mata o teria matado por ordem do oficial. Isso era o que se dizia. E um fato curioso foi que o Cabo Mata foi julgado mas não foi preso, ficou detido uns 6 meses na Companhia e depois lhe deram a baixa, não sei por que causa, e atualmente mora em Maldonado, tem uma imobiliária e um carro zero quilômetro.

P: — Como se chamava o falecido?

R: — Miguel Angel Rodriguez, igual do que o outro. O falecido tinha dois irmãos que são militares também, tem um irmão que é Sargento-primeiro em Transmissões; esta pessoa esteve fazendo investigações sobre a morte do irmão. E outro irmão, que é soldado num Batalhão do interior disse que ia vingar a morte do seu irmão, que ele tinha sido morto premeditadamente. O fato que originou as dúvidas foi o de que o Cabo recebesse a baixa, fosse para Maldonado, tivesse uma imobiliária assim, de repente, imobiliária, carro zero quilômetro...

P: — Esse tipo de “controle interno” existe também a nível de oficialidade?

R: — Não sei. Agora recordo um caso, mas é o único: foi quan­do Pranti caiu em desgraça. Segundo a versão que tenho, Pranti tinha um jornal clandestino chamado “El Talero”, no qual atacava aos altos chefes do Exército, como o General Gregorio Alvares, de quem dizia que tinha se apropriado de importantes quantias de dinheiro quando era Chefe da Região Militar no. 4 em Minas, que tinha fazendas em tal lugar. Então parece que foi descoberto e expulso do Exército, dado de baixa. Gavazzo também. Gavazzo era o “braço direito” de Pranti24. Parece que isso se descobriu por meio de um capitão chamado Criado, do Departamento 2. Ele os denunciou diretamente ao Comandante em Chefe, Gregorio Alvarez. Parece que nesta época os telefones do SID também foram interceptados... Houve uma comunicação telefônica entre Gavazzo e Pranti, na qual a último comunicava a Gavazzo que tinham sido descobertos. Então Gavazzo lhe disse: “Mas como fomos descobertos, meu General? Como?” “Sim, já se sabe tudo, vamos deixar tudo tranqüilo”. Então Gavazzo disse — contaram-me isso tex­tualmente: “Mas meu General, não vamos nos render assim!” “Sim, Gavazzo, deixe tudo assim, senão vai haver um massacre inútil, o que é que nós aqui do SID podemos fazer? Somos pouca gente...”. “Mas meu General — disse Gavazzo — atacamos a Companhia imediata­mente, tomamos o seu armamento, é um golpe psicológico grande!” “Não, Gavazzo, vamos deixar tudo assim, tudo tranqüilo, não quero que se derrame sangue de ninguém...” Ou seja, tudo isso foi gravado, mas pouca gente teve acesso a essa gravação. Uma pessoa, entendida na parte eletrônica, foi quem me contou.

Lembro que estava em casa quando houve esse problema, e cha­maram-me para que me apresentasse imediatamente na Companhia. Quando cheguei, a vigilância tinha sido duplicada, com armas auto­máticas — que nunca se usam, exceto o fuzil — todo o mundo com R-15; tinham feito uma armadilha com pregos para colocar na entrada de veículos e no portão, mas não aconteceu nada.

P: — Que tipo de armamento se usa na Companhia?

R: — Todo o mundo pensa que a Companhia tem um armamento sofisticado, mas não, tem um armamento relativamente bom... Existem muitas R-15, que são armas muito poderosas. O R-15 é aquela arma usada pelos americanos no Vietnam. Aquele fuzil longo, todo montada em fibra de vidro, sabe? Uma arma que tem uma bala muito pequena, mas uma cadência de tiro tremenda. Uma arma que, a uma distância de 50 metros, perfura uma árvore. Incrível! Bem, tem muitas R-15, além de Berettas italianas... Também tem MP-40 que eram da Segunda Guerra Mundial, mas que são muito poderosas, não é? Tem espingardas 12 (alguns quartéis também as tem), muitas espingardas 12, espingardas antimotim. Tem muitas granadas de mão, granadas de gases... Tem explosivos muito poderosos, que estavam bem guar­dados, muito bem protegidos lá na Companhia. Diziam que, se o ar­senal da Companhia explodisse, arrasaria os dois quarteirões da frente.

P: — A Companhia está muita relacionada com grupos civis ou com outros organismos de inteligência, tais como a OCOA, o SID, etc.?

R: — Sim. Tem relação com a OCOA, o SID, e nos últimos tempos com a Marinha, com a Prefeitura Naval; e com o grupo de Inteligência da Aviação.

P: — Como são essas relações organicamente?

R: — Relações de ajuda mútua, de intercâmbio de equipamento de trabalho, por exemplo, rádio, transmissões. Geralmente não há intercâmbio de informações. São relações técnicas. Existe um alto grau de concorrência porque cada Agência quer ter a maior notoriedade possível nos trabalhos realizados, a maior importância.

ÓRGÃO COORDENADOR DE OPERAÇÕES ANTI-SUBVERSIVAS (OCOA)

P: — Que informações você tem sobre o Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA)?

R: — Bem, conheço três pessoas da OCOA. Uma é das mais importantes. As outras duas são oficiais jovens. Uma é o Comandante Tenente-Coronel Vázquez; não sei o seu primeiro nome. É uma pessoa muito conhecida a nível de Inteligência. Depois está o Tenente Terra, também conhecido, e o Tenente Sarli. Está também o Capitão Jorge Silveira. Ouvi falar também do Major Cabeza, como um tipo impor­tante da OCOA.

O Comandante Vázquez é o Chefe da base Roberto, isto é, La Tablada, localizada em Camino de las Tropas e Melilla.

P: — O que significa “Roberto”?

R: — É um nome usado pela rede radial; quando se fala pelo rádio, a base é chamada de “Base Roberto”.

P: — Conhece outros locais da OCOA?

R: — Bem, a local que tem na rua Agraciada, na Divisão 1. Na própria Divisão 1 funciona uma dependência da OCOA. Ou melhor, lá funciona a OCOA em si, a Central. E depois está a “Base Roberto”. Não conheço outras, mas acho que devem existir.

P: — A OCOA, de quem depende?

R: — Da Divisão 1.

P: — Mas a OCOA não implica coordenação com os demais serviços das outras armas?

R: — Claro, exatamente. OCOA implicaria a coordenação de operações anti-subversivas. Mas tal coordenação não existe, porque cada Agência trabalha por conta própria. A OCOA também se dedica a trabalhar por sua conta.

P: — Não era o organismo mais tecnificado?

R: — Era, mas agora não. Não tem maiores recursos do que outras agências. Também podemos dizer que a OCOA perdeu muita hierarquia. Antes era um órgão importante, agora já não é.

P: — Por que?

R: — Porque a OCOA também teve muitos problemas. Não sei quais foram, mas a organização foi muito desativada. Os oficiais da OCOA foram mandados para batalhões, quartéis.

P: — Você conhece o “grupo dos 300” que atuou em Buenos Aires na repressão aos uruguaios?

R: — Não. Praticamente não sei nada sobre esse grupo. Sei que existe um grupo chamado “Grupo dos 300”, que funciona com oficiais da OCOA e do SID, que tinha um lugar de detenção no Serviço de Material e Armamento. Eu estive lá. É no fundo do Batalhão de Infantaria 13, em Instrucciones e Chimborazo. Esse lugar de reclusão se chama “300 Carlos”. Ainda se chama assim. Mas não sei das pessoas que formam o grupo, porque se mantém um grande segredo. Pela rede de rádio se fala, por exemplo, de “Oscar 1 do 300”, e “Oscar 1” era um oficial da OCOA. Várias vezes tratamos de localizar “Oscar 1” no “300 Carlos”.

SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA DA DEFESA (SID)

P: — Quais são as funções do Serviço de Inteligência da Defesa (SID)?

R: — A sua função principal é trabalhar em Inteligência, em tudo aquilo relacionado com Inteligência. mas o departamento espe­cificamente dedicado a isso é o Departamento 3. Eu o conheço por­que alguma vez me mandavam da Companhia ir pedir algum dado. Conheço a função deles, semelhante à que nós realizávamos na Com­panhia. Sei que o SID tem a sua própria produção de documentação, digamos, mas a Inteligência da Aviação não, porque eles vieram à Companhia e nós lhes fizemos documentação falsa.

O Chefe do SID é o General Paulós.

P: — Conhece alguns dos integrantes do SID?

R: — Sei que o Tenente-General Alfredo Lamy esteve lá em 1977 como Chefe do Departamento 3. Sei que Bassani e Ferro também estão no Departamento 3.

P: — Tem alguma informação sobre a Marinha?

R: — O Capitão Ferro, da Companhia, tinha contato com a Prefeitura Naval. Parece que existem dois computadores enormes na Prefeitura, ainda maiores do que os da OCOA. Ferro dizia que cada computador media 3 metros por quatro.

P: — Conhece médicos que trabalhem nos organismos de Inteligência?

R: — Sim, Scaravino. É um senhor de 40, 45 anos, mede 1,80m, é muito alto, cabelo preto. É o único médico que sei que trabalha com o SID e com a Companhia, há anos. Ele era Major, agora não recordo o seu grau. Chamava-me a atenção porque ele participava das reuniões de oficiais da Companhia. Todos os meio-dias se reúnem. As reuniões de trabalho têm que ser feitas quando todos os oficiais estão na Companhia, ou quando vai algum do Departamento 2.

As reuniões dos oficiais da Companhia duravam muitas horas, e durante essas horas tomavam continuamente cachaça, a bebida que eles consomem. Bebem continuamente.

P: — Conhece algum outro médico que assistia aos interrogatórios?

R: — O doutor Garayalde. Uma vez um detido estava com problemas e mandaram-me vê-lo para trazer os resultados. Ele é Tenente, um médico que fez o curso de Inteligência, tem um grau equivalente ao de Capitão. Chama-se Antonio Garayalde. Ele freqüenta bastante as reuniões dos oficiais.


 

CAPÍTULO VIII
ALGUNS TORTURADORES DAS FORÇAS ARMADAS URUGUAIAS: ELEMENTOS PARA UM PRONTUÁRIO(25)

 

Tenente-Coronel Manuel Escobal — Chefe da Seção Exteriores do Departamento II do Estado-Maior do Exército.

Encarregado de vigiar todo o pessoal que trabalhava no exterior. Era quem recebia toda a correspondência do exterior, todas as informações enviadas das Embaixadas.

Não sei se teve vínculos antes ou depois do seqüestro com autoridades brasileiras, mas o Major Bassani, da sua seção, esteve no Brasil.

O Tenente-Coronel Manuel Escobal, pouco antes do fim de 1979. era professor na Escola de Segurança e Defesa Nacional (ESDNA).

Major Aquiles Faggiani — É Major “assimilado”, professor de Educação Física. Perito em Defesa Pessoal. Dá aulas de Defesa Pessoal na Escola de Inteligência do Exército. Também trabalha na Direção de Tiro e Educação Física do Exército. Lá também ensina Educação Física e Defesa Pessoal àqueles que se preparam para ser “monitores”. Monitor é uma espécie de professor de Educação Física mas a nível de Exército. Dão aulas tanto para oficiais como para o pessoal subalterno.

Na Escola de Tiro e Educação Física fazem cursos todos os anos, e o Major Faggiani é encarregado das aulas de Educação Física e Defesa Pessoal.

Tenente-Coronel (R) José Gavazzo — Foi integrante do Serviço de Inteligência da Defesa (SID) e depois foi dado de baixa no Exército pelo problema que teve com o General Pranti.

Gavazzo é muito conhecido. Fez muito trabalho de inteligência. Sabia-se que tinha participado de ações anti-subversivas em Buenos Aires.

Major Eduardo Gré — É o 2.° Chefe do Batalhão de Infantaria n.° 13. Trabalha em Inteligência, no S226 do 13 de Infantaria.

É o responsável pelos presos deste Batalhão. Por ser o 2.° Chefe e integrar o S2 foi um dos maiores responsáveis pela situação de Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz enquanto estes estiveram detidos lá depois do seqüestro.

Tenente-Coronel Kegam Lusararian — Trabalha na Assessoria do Estado-Maior. É conhecida sua dependência da bebida. É ajudante do General Hugo Medina.

Coronel Alberto Larroque — Trabalha na DINARP. Foi especial­mente buscar o Embaixador Gómez Fynn, que escapou do M-19 na Colômbia. Antes tinha estado no Departamento II do Estado-Maior do Exército.

Tenente-Coronel Alfredo Lamy — Foi Chefe da Companhia de Contra-informações em 1974. Uma vez viajou com duas crianças, aparentemente filhos de sediciosos, de Buenos Aires até Montevidéu, via Tigre. Não se sabe até hoje quem são e onde estão estas crianças.

Posteriormente esteve no Batalhão de Infantaria n.° 13 e no Serviço de Inteligência da Defesa (SID).

Major Mario Héctor Castroman — Foi Chefe da Companhia de Contra-informações em 1975.

Major Arturo Aguirre — Atual Chefe da Companhia de Contra-­informações.

Major Mario Carlos Franchelle — Atualmente trabalha no Batalhão de Infantaria 13.

Capitão Armando Lerma — Pertence ao Departamento II do Es­tado-Maior do Exército. Está na Seção Arquivos. Geralmente é encar­regado de receber e dar a boa-vinda às delegações de militares estran­geiros que vêm ao Uruguai. O Departamento II sempre é o encarregado de receber estas delegações, através desse Capitão.

General Hugo Medina — Chefe do Estado-Maior do Exército. Ascendeu a este cargo em 1979. Eu o conheci antes de ser promovido. Comentava-se que não sentia muita simpatia pela Companhia de Contra-informações. Inclusive havia sancionado um par de vezes ao Capitão Ferro, fazendo-o perder o ano para a promoção. Certa vez este gene­ral visitou a Companhia e era evidente o seu desagrado.

Coronel Julio R. Morere — Chefe da Polícia Militar. Nesse lugar encontra-se o arquivo de “liberdades condicionais”.

Tenente-Coronel Alberto Francisco Mira — Desde 1977 é o Diretor da Escola de Inteligência do Exército. Pessoa de muito respaldo dentro do Exército. Assiste pessoalmente a algumas aulas e controla as informes diários das mesmas.

Ao início e no dia de encerramento dos cursos, ele dirige um discurso aos alunos. Geralmente diz sempre a mesma coisa: que pretende, como Chefe de Inteligência, que o curso seja assistido pelos alunos com o maior interesse. Que espera que o curso possa ajudá-los a desempenhar com maior eficácia suas funções...

E no encerramento dos cursos, se ele está conforme com os alunos (geralmente está) fala a respeito disso. Diz que está satisfeito que os alunos tenham assistido ao curso com interesse e que espera que isso os ajude a desempenhar bem suas funções...

O ato de encerramento sempre era realizado no pátio da Escola de Inteligência, a uns 10 ou 15 metros da rua. Observávamos que todos os vizinhos ficavam sabendo do que estava acontecendo, por­que o discurso era transmitido por alto-falantes. E repetiam continua­mente: “Espero que este curso básico de Inteligência, etc.”.

Major Pedro Matto — Integrante do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA). Reunia-se com freqüência com o Capitão Ferro, na Companhia de Contra-informações.

De 77 a 79 ele ia muito à Companhia. Chamava a atenção porque, sendo do OCOA, não usava cabelo comprido, mas sim curto e bem penteado, era a característica dele. Mas sempre andava à paisana.

É uma pessoa de mais ou menos 1,75m de altura, magro, cabelo preto, bigode grosso. Deve ter 35 ou 40 anos.

Sempre era levado à Companhia num carro do OCOA, um Torino cor de mostarda. Às vezes também chegava no carro do Capitão Ferro.

Tenente-Coronel Jorge Premoli — Comanda o Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA) na zona leste do país. Em Maldonado existe uma Divisão da OCOA, a OCOA 4, situada no Quartel de Maldonado.

Este Tenente-Coronel Premoli, Chefe do OCOA 4, mantém reuniões constantes com a Companhia de Contra-informações. Em 1979 não o vi, mas em 78, mesmo antes que eu entrasse na Companhia, ele reunia-se muito com o Major Calcagno. Naquela época ele era Major.

Também reunia-se com o Capitão Méndez e, em 1977, recordo que saíam muitas vezes juntos no mesmo carro. Porque o Capitão Méndez esteve todo a ano de 1977 na Companhia. Depois, em 78, continuava vindo para reunir-se com os oficiais.

No ano passado estivemos na festa dos Fogones, num morro que tem em Minas, um morro famoso onde existe uma estátua de Artigas igual àquela que está na Praça Independência. Neste morro realizou-se um ato onde estiveram as altas cúpulas: o Presidente e todos os Comandantes. Quando fomos lá vimos o Tenente-Coronel Jorge Pre­moli. Ainda continuava nessa seção. Estava à paisana.

É uma pessoa facilmente identificável. Mede mais ou menos 1,80m, é muito alto, robusto, bastante gordo. Deve pesar uns 100 quilos. É um homem de rosto redondo, usa um bigode bem grosso, tem sobrancelhas espessas e é semicalvo. Seu cabelo é crespo, preto. Deve ter de 50 a 55 anos.

Major Ernesto Ramas — É um dos chamados “Oscar” do Orga­nismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA). Sei que é um dos “Oscar” porque na nossa sala de rádio tínhamos um cartaz com todos os dados, nossos e da OCOA. E lembro do nome do Major Ramas, era “Oscar” e um número que não me lembro.

Às vezes tínhamos que trabalhar na sala de rádio. À noite, quando não estavam as telefonistas e rádio-operadoras, nós fazíamos este trabalho. Nessas oportunidades eu via o quadro de nomes em código que se usava.

Tenente-Coronel Héctor Sergio Rombys — Trabalha no Depar­tamento II do Estado-Maior do Exército, no Seção Exteriores.

Capitão Alexis Heber Parodi — Chamado de “o gordo Parodi”. Trabalha no Batalhão de Infantaria n.° 1. É um oficial do S2. É um dos lugares onde íamos buscar detidos para serem interrogados na Com­panhia.

Eles nos chamavam para interrogar alguma pessoa quando pensavam que se tratava de alguém importante ou quando eles não podiam ocupar-se do assunto. Parodi é uma pessoa muito alta, muito robusto. É loiro, bem loiro, de olhos claros, bigode loiro, espesso. Pesa uns 90 quilos. Deve ter 30 e poucos anos.

O Batalhão de Infantaria n.° 1 está localizado na zona do Buceo. São aqueles que se vestem com uma farda verde, um paletó clarinho com uma faixa branca (uniforme de gala).

Coronel Nelson B. Viar — Foi Chefe do Departamento II do Es­tado-Maior do Exército em 1976 e 1977.

Depois passou para o Serviço de Inteligência de Defesa (SID) e levou consigo o motorista, que era da Companhia. Do SID passou a prestar serviços como Diretor-Geral da ANCAP. Também levou o mo­torista para lá.

Quando esteve no SID era o Chefe do Departamento III, cujas funções são parecidas às da Companhia de Contra-informações. Este Coronel participava de interrogatórios e torturas.

Em 1973 foi Chefe do Regimento de Cavalaria n.° 4.

Tenente-2.° Nelson Viar — Filho do Coronel Viar; trabalha no S2 do Regimento de Cavalaria 1, Blandengues.

Tenente-Coronel Pedro Zamarripa — Trabalha no Departamento II do Estado-Maior do Exército.

Tenente-Coronel Victorino Vázquez — Uma das principais figuras do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA). Chefe do local de detenção e interrogatórios “La Tablada”, chamada “Base Roberto”, por onde passaram dezenas de presos políticos.

É integrante da redação da revista castrense “El Soldado”.

Mede 1,75m. Moreno, compleição regular, semicalvo, cabelo preto, bigode regular, nem grosso nem fino, olhos pretos. Rosto bastante redondo, olhos pequenos.

Coronel Julio A. Barrabino — Em 1978 foi diretor do Cárcere de Mulheres Punto de Rieles (EMR2). É responsável pelas condições deploráveis em que se encontram as detidas. Caracteriza-se pelo seu temperamento violento e seu desprezo total pelas presas, as quais chama de “filhas da puta”.

Vinculado a grupos parapoliciais de extrema direita.

Tenente Maurente — Prestava serviços no S2 do Batalhão de Infantaria 13, junto com Gré e Franchelle. Amigo do Capitão Ferro. Esteve ligado ao episódio de “El Talero”. Alto, robusto, bigode es­pesso, cabelos pretos.

Tenente Sarli — Torturador, integrante do Organismo Coordena­dor de Operações Anti-subversivas (OCOA), presta serviços em “La Tablada” (“Base Roberto”).

Mede 1,75m, aproximadamente. Compleição média, bastante robusto. Deve pesar uns 70 quilos. Cabelo preto e olhos bastante claros.

Tenente Terra — Torturador, trabalha na “Base Roberto”, “La Tablada”, do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas.

É moço, magro, baixo, bem baixinho. Cabelo castanho bem crespo, olhos castanho escuro.

Tenente-Coronel José L. Scaffo — Trabalha no Departamento 2 do Estado-Maior do Exército. Apelidado “El Lagarto”, pertence à artilharia do Exército.

Tenente Morales — Integrante do Batalhão de Infantaria 14, em Toledo.

Coronel Regino Burgueño — Chefe do Batalhão de Infantaria 14, em Toledo. Apelidado “El Burro”.

Capitão Mario C. Cola — Presta serviços no Regimento de Ca­valaria 1.

Tenente Guillermo Abella — Integrante do Regimento de Ca­valaria 8, de Melo.

Tenente Sergio Bon — Presta serviços no Batalhão de Enge­nheiros 5. Fez a curso na Escola de Inteligência.

Segundo-Tenente Roberto Fernández — integrante do Batalhão de Infantaria n.° 12, de Rocha. Fez o curso na Escala de Inteligência do Exército.

Capitão Parisi — Integrante do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA); em 1978 e 1979 trabalhou na Prisão de Punta de Rieles (EMR2).

Com as prisioneiras, caracterizou-se pela sua brutalidade e prepotência. Era um dos encarregados do S2 de Punta de Rieles, participando de interrogatórios e torturas.

Capitão Eduardo Ramos — Pseudônimo “Raul”. Comprometido em toda a operação do seqüestro de Lilián e Universindo como Chefe da Seção Técnica da Companhia de Contra-informações, em 1978. Viajou para Porto Alegre para coordenar a operação com o DOPS.

Participou diretamente dos torturas a Rosaria Pequito Machado, German Steffen, Luis Alonso e demais integrantes do PVP detidos em Montevidéu em princípios de novembro de 1978.

Como Chefe da Seção Técnica, é responsável direto pela confecção da documentação falsa com que se pretende acusar Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez de terem ingressado clandestinamente no Uruguai. Essa documentação falsa foi enviada pelo governo uruguaio à Polícia Federal brasileira, junto com as declarações que fizeram Lilián e Universindo, sob tortura.

O Capitão Ramos é “professor” da Escola de Inteligência do Exército.

Antes de pertencer à Companhia de Contra-informações, Ramos era Chefe do Departamento de Engenheiros do Comando Geral do Exército (esse Departamento tem a ver com todas as construções que se realizam no Comando).

Capitão Eduardo Ferro — Pseudônimo “Guillermo”. Executor material do seqüestro. Sob as suas ordens operou o comando que transladou os quatro militantes do PVP de Montevidéu a Porto Alegre, com a finalidade de seqüestrar Lilián e Universindo.

Torturou, junto com Pedro Seelig, Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez no DOPS de Porto Alegre. Também os torturou nas cabanas de Santa Teresa e posteriormente na própria Companhia de Contra­-informações. Por ordens expressos suas, os filhos de Lilián Celiberti foram separados brutalmente da mãe, sem que esta soubesse nada deles durante três meses, usando este fato como outro fator de tor­tura sobre a presa.

Tem a típica personalidade do torturador sem escrúpulos e com total desprezo pela pessoa humana.

Também é agente da Embaixada norte-americana, da qual recebe importantes quantias de dinheiro pelas suas tarefas de espionagem à Embaixada da URSS em Montevidéu.

Foi Chefe da Seção de Operações da Companhia de Contra-informações em 1978 e 1979.

Atualmente integra o Departamento III do Serviço de Inteligência da Defesa (SID) junto com Bassani. onde continua em tarefas repressivas.

Durante uma sessão de torturas, matou um detido com um golpe de karatê.

Integra o grupo do Centro Militar chamado “Instituição com Dignidade”, encabeçada pelo General (R) Esteban Cristi, outra das figu­ras de tenebrosa trajetória no Uruguai.

Capitão Carlos Perdomo — Atual Chefe da Seção Operações da Companhia de Contra-informações. Integrante da diretoria do Cen­tro Militar.

Capitão Vicente M. Alaniz — Pseudônimo “Nepo”. Professor de tortura e interrogatório na Escola de Inteligência. Integra, como suplente, a lista do grupo “Instituição com Dignidade”, do Centro Militar.

Tenente Carlos Echevers — Atual Chefe da Seção Técnica da Companhia de Contra-informações. Filho do Coronel Echevers, inte­grante do grupo fascista “Juventud Uruguaya de Pie” (JUP), grupo vinculado a organismos parapoliciais em 1970 e 1971. Atualmente par­ticipa do grupo “Tradicão, Família e Propriedade”.

Major José R. Arab — Pseudônimo “La Bruja”. Ativo integrante do Departamento III do Serviço de Inteligência da Defesa (SID), co­nhecido torturador. Foi expulso do Exército por práticas homossexuais.

Major José Agustín Baudean — Pseudônimo “El Francés”. Junto com o Capitão Houanessian freqüentava muito a Companhia para coordenar operações. Trabalhou no SID; atualmente está na Direção Nacional de Relações Públicas (DINARP).

Sicalli — Pseudônimo “Ernesto”. Colaborador civil da Companhia de Contra-informações nos escritórios de UTE (Usinas e Telefones do Estado). Encarregado de interceptar telefones por ordem da Com­panhia de Contra-informações, e de entregar as fitas gravadas das pessoas que estão sendo vigiadas.

General Manuel J. Núñez — Pseudônimo “Rojo Bravo”. Era Che­fe do Estado-Major do Exército em novembro do 1978, época do Se­qüestro de Lilián Celiberti, seus dois filhos e Universindo Rodriguez. O Estado-Maior do Exército é o órgão hierarquicamente superior à Companhia de Contra-informações.

Sob as suas ordens diretas trabalha o Coronel Calixto de Armas (de quem é amigo pessoal), um dos principais responsáveis pelo seqüestro.

Atualmente ocupa a cargo de Ministro do Interior, sendo ademais presidente da comissão que estuda as cassações políticas no Uruguai.

O Coronel de Armas trabalha com ele no Ministério do Interior, desempenhando o cargo de Diretor Geral da Secretaria.

Major Carlos Calcagno — Pseudônimo “Martin”. Responsável, junto com o Capitão Méndez, pelo assassinato por torturas e falta de assistência médica do operário da fábrica de papel CICSSA, Hum­berto Pascoretta, a princípios de 1977.

Foi Chefe da Companhia de Contra-informações. Participou de ações repressivas contra opositores uruguaios em Buenos Aires, tendo transladado clandestinamente, junto com o Major Alfredo Lamy, duas crianças desde a Argentina até o Uruguai, via Tigre.

O Major Calcagno prestou serviços anteriormente no Batalhão de Infantaria n.° 1, Batalhão Florida.

Mede 1,70m de altura, compleição forte. É loiro, olhos azul claro, nariz grande, fino. Sua voz é rouca. Chamam-no de “El gordo”.

Tenente-General Luis Queirolo — Pseudônimo “Rojo Alfa”. Co­mandante em Chefe das Forças Armadas desde janeiro de 1979, cargo que continua ocupando atualmente.

Durante 1979, no medida em que no Brasil iam sendo reunidos cada vez mais elementos probatórios do seqüestro em Porto Alegre, o Tenente-General Luis Queirolo não promoveu nenhuma investigação sobre estes fatos mas, pelo contrário, protegeu e até promoveu vários dos seqüestradores denunciados.

O Tenente-General Luis Queirolo foi um dos interrogadores de Flávia Schilling quando esta se encontrava detida no Uruguai.

Coronel Calixto de Armas — Pseudônimo “Rojo Maíz”. Responsável direto pelo seqüestro de Lilián e Universindo.

Como Chefe do Departamento II do Estado-Maior do Exército, organismo do qual a Companhia de Contra-informações depende direta­mente, foi quem decidiu e entrou em contato com um coronel brasileiro para combinar os detalhes da ação.

Autor da versão falsa com a qual se tentou justificar o seqüestro, dizendo que Lilián e Universindo tinham sido detidos na fronteira quando ingressavam clandestinamente ao Uruguai.

Atualmente é Diretor-Geral do Ministério do Interior.

Major José Walter Bassani — Outro dos chefes militares diretamente vinculados ao seqüestro. Viajou para Porto Alegre antes da operação a fim de combinar as detalhes do procedimento.

Em 1978 foi integrante da Seção Exteriores do Departamento II do Estado-Maior do Exército, tendo desempenhado o cargo de Diretor interino da Companhia.

Torturou os militantes do PVP detidos em novembro do 1978 em Montevidéu. Atualmente integra o Departamento III do Serviço de Inteligência de Defesa (SID), organismo que realiza tarefas similares às da Companhia de Contra-informações.

Em 1976, este organismo foi responsável pelas operações contra uruguaios opositores em Buenos Aires: assassinatos, seqüestros, deportações ilegais, desaparecimento de crianças e adultos.

Major Carlos Alberto Rossel — Pseudônimo “Gustavo”. Chefe da Companhia de Contra-informações em 1978. Dirigiu e coordenou a operação do seqüestro.

Participou desde o princípio da operação denominada “Sapato Roto”, consistente na captura de 10 militantes do PVP em Montevi­déu, que culminou com o seqüestro em Porto Alegre.

Participou pessoalmente das torturas e interrogatórios destas pessoas, bem como do de muitos presos políticos.

Atualmente é 2o. Chefe da Escola de Inteligência do Exército.

Viajou várias vezes ao Chile para realizar cursos e coordenar tarefas repressivas.

Capitão Antranig Houanessian — Integrante do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivos (OCOA), membro do grupo denominado “Oscar”, destacado para as mais violentas tarefas re­pressivas.

Junto com o Major Baudean, freqüentava a Companhia de Contra­-informações organizando tarefas de cooperação.

É uma pessoa muito conhecida pelos presos políticos pelo seu caráter prepotente e autoritário.

Responsável pela morte por torturas do dirigente ferroviário, militante do PVP, Gilberto Coghlan. Este trabalhador foi detido logo após a greve geral de junho de 1973, e levado para o Quartel do Peñarol, onde se verificou a sua morte.

Entre os presos políticos este Capitão é conhecido pelo apelido de “Babosián”.

Sargento Obdulio Custodio — Integrante da Companhia de Con­tra-informações, chefe do laboratório fotográfico. Foi quem fotografou Camilo e Francesca (filhos de Lilián Celiberti) para a confecção de documentação falsa (carteiras de identidade uruguaias). Ver pág. 37.

Capitão Glauco Yannone — Pseudônimo “Javier”. Junto com Ferro viajou para Porto Alegre para seqüestrar Lilián, seus dois filhos e Universindo.

Chefe da Seção Administrativa da Companhia de Contra-informações, participou de torturas e interrogatórios. Pessoa tranqüila, capaz de esperar 4 ou 5 dias torturando, até conseguir o que quer.

Atualmente continua na Companhia de Contra-informações.

Capitão Armando Méndez — Responsável direto pela morte por torturas e falta de assistência médica do operário Humberto Pasca­retta. Freqüentemente participava com violência e dedicação da tortura aos presos políticos.

Dono de várias fazendas. Filho do General J. J. Méndez, ex-Chefe da Região Militar no. 3.

Atualmente desempenha o cargo de Interventor na Comissão Administradora de Abastecimentos (CADA), onde demitiu e reprimiu numerosos trabalhadores, empregando vários integrantes da Companhia como inspetores (J. Dotta, M. Núñez, W. Rodríguez, Serviño, etc.).

No momento do seqüestro autorizou a utilização de um caminhão de CADA para o translado dos detidos de Montevidéu ao Chuí e do Chuí para Montevidéu.

Capitão Gustavo E. Criado — Pseudônimo “Ricardo”. Professor da Escola de Inteligência do Exército. Atualmente integra o serviço de inteligência do Batalhão de Infantaria n.° 5, Departa­mento de Soriano.

Major Scaravino — Médico, integrante da Companhia de Con­tra-informações. Participa das reuniões de oficiais deste organismo.

Capitão Antonio Garayalde — Médico. Assiste às sessões de torturas aos presos políticos. Fez o curso de Inteligência.

Dr. Mario Genta — Chefe do Serviço Sanitário do Comando Geral do Exército. Fez o atestado de óbito do trabalhador Humberto Pascaretta.

Foi interventor do Sindicato Médico do Uruguai. Foi destituído deste cargo devido a um escândalo provocado pela venda fraudulenta de um edifício propriedade do Sindicato, na rua Lucas Obes, no bairro do Prado, em Montevidéu.

O edifício foi vendido por uma quantia irrisória a uma sociedade que se beneficiou amplamente revendendo-o pouco tempo depois. O Dr. Mario Genta era parte dessa sociedade favorecida pelo “negócio”.

Dr. Hugo de Filippo — Chefe do Serviço Sanitário do Comando Geral do Exército.

Coronel (R) Carlos Gamarra — Juiz Militar de Instrução da 1a. Vara, em 1979. Encobridor do seqüestro. Tomou declarações de Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez a 5 de abril de 1979, sabendo que os detidos tinham sido seqüestrados em Porto Alegre.


 

CAPÍTULO IX
O SEQÜESTRO DE LILIÁN E UNIVERSINDO: FALAM OS ADVOGADOS, A JUSTIÇA, O GOVERNO E AS FORÇAS POLÍTICAS

 

Dr. Omar Ferri, advogado dos seqüestrados:

Se fôssemos fazer um relato amplo de tudo o que aconteceu em torno ao esclarecimento do tema do seqüestro, certamente falaríamos muitas e muitas horas. Porque o nosso problema, principalmente o dos jornalistas e o meu, não era simplesmente desmascarar. Nem mesmo no começo se falava nesses termos.

O que nos interessava era investigar a verdade da história.

À medida em que íamos montando este quebra-cabeças, que no princípio foi extraordinariamente nebuloso, misterioso e de difícil conhecimento, à medida em que íamos esclarecendo as coisas, é que nos enfrentamos com os artifícios, com as artimanhas e as desculpas das polícias. Tanto da Polícia Federal quanto da Polícia Estadual.

À medida em que nos defrontávamos com essas desculpas, com as intenções da polícia de esconder os fatos, então íamos tomando uma série de medidas para ir derrubando esses obstáculos e essas atitudes fraudulentas das autoridades que tinham, por obrigação funcional, a responsabilidade e o dever de esclarecer o que ocorrera com Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz entre 12 de novembro e 21 de novembro de 1978.

Em primeiro lugar, quando a polícia notou nossa insistência e quando notou que a imprensa estava dando grande importância ao fato do desaparecimento de Lilián e Universindo, através de declarações do próprio Secretário da Segurança, se informou que em 48 horas o caso ia ser esclarecido.

A verdade é que há dias a polícia já vinha tentando montar uma história segundo a qual aqui em Porto Alegre existia um grupo de subversivos com vinculações internacionais. Evidentemente, a Polícia Estadual queria envolver Lilián e Universindo como parte integrante desse grupo terrorista internacional.

Então houve uma denúncia a respeito de uma uruguaia, Ofelia Montserrat e outra pessoa, “El Gordo”. A polícia captou essa denúncia através do primo de Ofelia, residente em Porto Alegre, e usou as informações dadas por ele para fazer a denúncia da existência dessa tal rede subversiva.

Com esta denúncia, entendia o Secretário de Segurança que ia sufocar o episódio do seqüestro.

Acontece que o mais alto magistrado administrativo do Estado do Rio Grande do Sul, na época Sinval Guazzeli, denunciada esta trama internacional subversiva, a desmentiu. O próprio governador desmentiu, dizendo que não havia nenhuma rede subversiva no Rio Grande do Sul. E no caso dessa rede existir, ele, como governador, seria necessária e obrigatoriamente a primeira autoridade que deveria estar a par do caso.

Portanto, essa primeira tentativa de encobrimento ficou descartada pela própria voz oficial do Governador do Estado. Esse primeiro lance foi perdido pela Polícia Estadual.

Em seguida entrou em cena a Polícia Federal, que ouviu as declarações de duas ou três pessoas residentes em Bagé. Uma delas era um motorista de táxi. Outra era o ajudante da Empresa Lima, de ônibus, que faz o trajeto Bagé-Aceguá-Melo27.

Através das declarações dessas pessoas, a Polícia Federal tentou armar uma farsa que consistia na saída espontânea de Lilián e Uni­versindo do Brasil através de Bagé.

Para isso o motorista de táxi, quando escutado, disse que tinha levado o casal e as crianças até a Rodoviária. E o ajudante da Empresa Lima, Patrocínio Lugo Acosta, foi quem disse que 4 pessoas, no dia 21 de novembro, tomaram o ônibus e se dirigiram à cidade de Melo.

Evidentemente isso não podia ser real, porque entrava em conflito com os comunicados 1.400 e 1.401 expedidos pelas Forças Con­juntas uruguaias no dia 26 de novembro de 1978, um sábado.

É incrível que as Forças Conjuntas uruguaias tenham se reunido exatamente num sábado para responder às indagações realizadas pela imprensa brasileira.

Isto obrigou, então, a um esclarecimento que foi o que deram as Forças Conjuntas através da emissão desses dois comunicados. Estes diziam, em resumo, que Lilián e Universindo tinham sido presos quando penetravam clandestinamente em território uruguaio, em dois au­tomóveis e com armas e material subversivo.

Então, se o governo uruguaio dizia que essas pessoas tinham entrado clandestinamente em dois automóveis, não podia ser verdade aquilo que a Polícia Federal brasileira tinha armado e admitido. Ou seja, que essas pessoas tinham entrado espontaneamente no Uruguai de ônibus.

Este foi o sinal mais importante e evidente de que a tal saída espontânea por Bagé era uma farsa montada pela Polícia Federal.

Mas a Polícia Federal insistia em que essa era a real e verdadeira história. Que esse casal se encontrava em Porto Alegre, espontaneamente deixou o Brasil, desapareceu de Porto Alegre e, evidentemente (pelas provas obtidas), dirigiu-se ao Uruguai. Porque (também pelas provas recolhidas) os dirigentes do PVP tinham determinado que Li­lian voltasse para o Uruguai com seus filhos. Como era possível acreditar que Lilián ia retornar ao lugar onde anos antes tinha sido torturada, presa e deportada, sabendo que entrando lá seria presa e torturada novamente?

Toda a farsa foi desmontada no momento em que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) exigiu que se fizesse uma perícia nos arquivos da empresa de ônibus “Lima”. Esta perícia constatou que, no dia 21 de novembro de 1978, viajara apenas uma pessoa.

A partir desse momento, se desmoronou a farsa de Bagé.

E foi exatamente por causa dessa perícia que agora a sentença do juiz, que condenou dois dos quatro denunciados, que condenou Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, “Irno”, foi por causa dessa perícia que a sentença determinou que sejam processadas essas duas testemunhas de Bagé por falso testemunho.

É desta maneira que vamos vendo a atitude das autoridades brasileiras ante este caso.

Mas tem mais. As próprias autoridades brasileiras, tanto estaduais como federais, deram um valor extraordinário a um bilhete que Lilián tinha mandado entregar ao proprietário do apartamento onde ela morava, na rua Botafogo.

Também este bilhete foi usado como prova de que o casal tinha saído espontaneamente de Porto Alegre.

Nós acusamos a falsidade desse bilhete no dia 22 de novembro de 1978. A Polícia Federal não teve condições de realizar uma perícia para saber a veracidade, a autenticidade ou não da assinatura de Li­lián nesse bilhete. A polícia Estadual foi até mais longe. Disse que não tinha elementos, que não tinha padrões gráficos suficientes para levar a cabo a perícia. Tanto a Polícia Federal como a Estadual elu­diram realizar a perícia do bilhete.

Mas o Ministério Píblico, neste caso representado por este extra­ordinário Promotor que é o senhor Dirceu Pinto, fez um requerimento, atendido pelo Juiz Moacir Danilo Rodrigues, que determinou que pe­ritos da Justiça do Trabalho fizessem uma perícia sobre o bilhete.

A perícia e o laudo pericial do perito da Justiça do Trabalho concluiu: em primeiro lugar, que o corpo do bilhete foi escrito por uma pessoa e que a assinatura pertencia a outra. Em segundo lugar, que nem o corpo do bilhete nem a assinatura correspondiam aos padrões gráficos de Lilián Celiberti.

Portanto, o bilhete foi outra farsa montada pelo DOPS para distrair a atenção da Justiça e para fazer crer que Lilián realmente tinha ido embora e viajado para o Uruguai por sua própria vontade.

A essa altura dos acontecimentos já sabíamos que tinha havido um seqüestro. Porque, um mês ou dois depois dele, Luís Cláudio Cunha e Scalco tinham identificado a Didi Pedalada como um dos policiais do DOPS que estavam no apartamento de Lilián.

E praticamente um ano depois foi identificado o segundo personagem policial do DOPS que foi João Augusto da Rosa, que comandara a operação no apartamento. Este policial usa o nome de “Irno”.

Portanto, a Polícia não investigou nada. Distraiu a atenção daqueles que estavam interessados no esclarecimento dos fatos e também da opinião pública com essas artimanhas que, uma por uma, foram todas desmentidas.

Tudo o que se conseguiu em matéria de provas foi feito pelos jornalistas, pela Ordem dos Advogados do Brasil, que efetuou uma investigação especial, tendo inclusive viajado ao Uruguai. E de lá trouxe o testemunho de Camilo, que esteve preso do DOPS, sendo atendido por Faustina Elenira Severino e que, entre os seqüestradores, reconheceu Pedro Seelig.

O esclarecimento dos fatos se deveu também à Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, que concluiu que as pessoas que aqui se encontravam foram levadas contra a sua vontade para o Uruguai e que nesse episódio estiveram envolvidos policiais uruguaios agindo aqui no Brasil. E também policiais brasileiros comprometidos com essa operação.

Enfim, foi um trabalho árduo e de denúncias, muitas delas feitas por mim, que descobri Faustina Severino. Esse foi um trabalho praticamente nosso, de um filho meu e do jornalista Luis Cláudio Cunha.

As informações que fomos obtendo, todas elas envolviam Pedro Seelig e os demais personagens do DOPS. Em pouco tempo construímos a real e verdadeira história. História comprovada em todos os seus detalhes. Tanto se comprovou que o Juiz condenou estes personagens.

Mas embora tivéssemos a história do lado brasileiro, nos faltava saber como tinham ocorrido as coisas do lado uruguaio.

Isto se completou com as declarações do ex-soldado do Exército uruguaio, Hugo Walter Garcia Rivas.

Através do testemunho que o ex-soldado prestou aqui em Porto Alegre ao Movimento de Justiça e Direitos Humanos, e em São Paulo, na sede da OAB, através do testemunho recolhido pelo próprio Presidente Dr. Seabra Fagundes, é que os fatos ficaram completamente esclarecidos.

Então se soube que a Polícia Federal emprestara o posto fronteiriço do Chuí como base logística para a realização das operações.

Percebemos então que a Polícia Federal encobria os fatos porque a própria Polícia Federal tinha participado deles: transportando os detidos em automóveis e colocando o posto do Chuí à disposição dos militares uruguaios e do pessoal do DOPS.

As declarações de Garcia Rivas são altamente importantes. Não só porque nos proporcionaram os nomes de oficiais de alta graduação do Exército uruguaio implicados no seqüestro, dos verdadeiros responsáveis: o Coronel Calixto de Armas, o Major Rossel, o Capitão Eduardo Ferro, o Capitão Ramos, o Capitão Yannone.

Mas também porque as declarações de Garcia Rivas nos permitem chegar a outro tipo de conclusão muito profunda e de grande significado.

Em primeiro lugar, este é um fato sem precedentes. Pela primeira vez se conseguiu comprovar um seqüestro e o entendimento que existe entre os exércitos ou as polícias repressivas dos países do Cone Sul da América Latina.

É terrível como os exércitos e as polícias estão preocupados com estes patriotas cujo único crime é lutar contra o arbítrio dos sistemas totalitários de seus respectivos países.

Mas não é só isso. A nível brasileiro a situação é gravíssima também. Que país é esse, cabe que nos perguntemos os brasileiros, que permite que uma força uruguaia composta de dois oficiais penetre no nosso território, rapte, seqüestre, leve daqui pessoas que, por serem estrangeiras, estavam sob a proteção das nossas leis e do nosso ordenamento jurídico constitucional?

Como um país grande como o Brasil pode permitir que desde um campo de concentração, um acampamento militar, que é o Uruguai de hoje, se viole as nossas fronteiras e nossa soberania nacional?

Como pode este país permitir que tudo isso ocorra sem que o Ministério da Justiça, ou pelo menos o Itamaraty dêem ao povo brasileiro as respostas e os esclarecimentos amplos que a nação espera? E que concomitantemente, exija o esclarecimento deste caso ao governo uruguaio?

Que se peça ao governo uruguaio desculpas por esta terrível intromissão. Ou que se faça, pelo menos, aquilo que fez a Venezuela, que não admitiu que os militares uruguaios invadissem a sua Embaixada em Montevidéu para seqüestrar dali Elena Quinteros.

Quando os militares invadiram a Embaixada da Venezuela, em 1976, em Montevidéu, o governo daquele país exigiu imediatamente a devolução da pessoa que tinha sido seqüestrada. Como o governo uruguaio não a devolveu, a Venezuela rompeu relações diplomáticas com o Uruguai.

Mas o governo brasileiro, nem dignidade para romper relações com o Uruguai tem.

Constatamos então que, sendo este um fato deprimente a nível do Cone Sul, também o é para o Brasil.

Estas denúncias que fizemos pelo menos terão um mérito: fazer com que se continue esta campanha de denúncias contra os atentados às liberdades individuais, aos direitos humanos.

Praticamente depois de 200 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o mundo parece dirigir-se a uma fase de indignidade e selvajeria.

O nosso dever, a nossa obrigação é protestar, é rejeitar. É proclamar o direito que temos de viver em paz, longe destas atitudes brutais que lesam os nossos direitos.

Esta luta em favor dos direitos humanos tem também outro conteúdo, outro significado: é preciso continuar a luta para que consigamos um dia a devolução de Lilián e Universindo ao território brasileiro do qual foram seqüestrados.

Conseguir, de alguma maneira, a liberdade de Lilián e Universindo que foram injustamente arrojados em cárceres, em masmorras, em campo de concentração e torturas dos quais hoje está cheio o território uruguaio.

Omar Ferri*
28 de julho de 1980.

Dr. Belisário dos Santos Jr., advogado e Presidente da Associação de Advogados Latino-Americanos pela Defesa dos Direitos Humanos:

Os depoimentos do ex-soldado uruguaio Hugo Walter Garcia Rivas ao SIJAU e à Ordem dos Advogados do Brasil puseram em evidência a existência de inequívoca cooperação entre as forças de segurança dos países do Cone Sul. A participação de policiais brasileiros no seqüestro de Lilián Celiberti, seus dois filhos e de Universindo Diaz, agora reconhecida pelo Judiciário brasileiro, não é um fato isolado. O desaparecimento de um jornalista argentino no Galeão, e a recentemente denunciada desaparição do padre Jorge Oscar Adur, em Porto Alegre, em julho de 1980, entre outros fatos, parecem indicar outras operações não esclarecidas envolvendo policiais estrangeiros em terras brasileiras. A Argentina foi o palco principal de seqüestros iguais, notadamente de perseguidos uruguaios, em operações conjuntas das forças argentinas e uruguaias. E não só no Cone Sul isso ocorreu. Relembre-se a espetacular ação realizada pela Polícia política argentina em Lima, Peru, para seqüestro de cinco cidadãos argentinos entre os quais Noemi Moncino, uma das madres da Plaza de Mayo. Tudo com a indispensável conivência das forças locais. Entregues à polícia boliviana, para recâmbio à Argentina, esses cidadãos já estão mortos, presumivelmente.

Tudo demonstra a internacionalização da doutrina da segurança nacional, para que o inimigo interno de cada um dos regimes autoritários da América Latina se torne inimigo comum de todos os outros regimes de força.

E qual a particular importância, nesse quadro, do caso Celiberti e dos depoimentos reveladores de Hugo Rivas?

O caráter especial do affaire Celiberti é a grande quantidade de provas reunida, que culminou com a confissão de um dos partícipes uruguaios. As declarações de Rivas assumem maior relevo ante o sintomático e criminoso silêncio das autoridades uruguaias, o que implica em verdadeira admissão oficial dos gravíssimos fatos por ele narrados.

Confira-se, como consta do depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil, que à época do seqüestro, ante a denúncia diária desse fato e da participação de policiais uruguaios na operação, as autoridades do Uruguai sequer deram início a sindicância ou a inquérito para apurar esse envolvimento, nem mesmo “pour épater les bourgeois”, o que dá a medida de seu próprio envolvimento.

As declarações de Rivas ganharam as primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro, sensibilizando a opinião pública mundial, sensibilizando-a contra os seqüestros de perseguidos políticos, contra as violências nos cárceres uruguaios, contra o ensino da tortura como método de repressão política no Uruguai, contra a doutrina de segurança nacional que dá o substrato ideológico a todas essas práticas infames.

No Brasil, especialmente, além de manifestações de advogados e de seus órgãos de classe, de parlamentares, de jornalistas, do pró­prio Judiciário, começou a se erguer verdadeiro clamor pela libertação de Lilián e de Universindo e sua volta ao Brasil, juntamente com as duas crianças. E a pressão para que o Governo brasileiro reivindique a volta dos seqüestrados tem fundamento jurídico na Convenção de Caracas sobre Asilo Territorial, de 1954, subscrita por Brasil e por Uruguai, entre outros países, notadamente em seus artigos II, III e V, que criam o direito de refúgio a todo o perseguido político e impedem a violação da soberania de um Estado por forças de outro País, para prisão de qualquer pessoa.

No entanto, é na crescente solidariedade entre os povos latino­americanos, e na generosidade recém-nascida da assunção do brasi­leiro como parte do povo latino-americano que reside a base maior dessa campanha.

Eu ouvi Hugo Rivas e acompanhei o caso até seu final, até seu embarque para a Noruega, com sua família. Presenciei o empenho e a seriedade da Ordem dos Advogados na tomada de seu depoimento. Testemunhei os esforços de jornalistas, advogados, e de quantos compromissados com os direitos humanos lutaram para esclarecer o seqüestro de Lilián e de Universindo e para dizer ao mundo, com fundada base, das violações cometidas no Uruguai contra esses direitos.

De tudo extraio claramente que os atentados contra os direitos humanos não serão jamais legados ao esquecimento ou à impunidade enquanto houver pessoas com pertinácia para buscar sua prova, enquanto houver pessoas com dignidade para, confessando faltas próprias, ajudar na coleta dessa prova, enquanto houver pessoas com coragem para, a todo o risco, denunciar tais violações.

A ditadura uruguaia que se cuide.

É de Chaplin a lição: “A liberdade não morrerá enquanto houver homens dispostos a morrer por ela.”

Ibrahim Abi-Ackel, Ministro da Justiça:

“Os fatos relacionados com o casal uruguaio Lilián Celiberti e Universindo Diaz são objeto de processo criminal atualmente em curso na Justiça de Porto Alegre”.

“O Ministério Público, neste processo, denunciou quatro policiais gaúchos acusados de participação. Esses policiais já foram interroga­dos pelo Juiz, estando o processo na fase final de produção de provas”.

“Além das provas que estão sendo levantadas no processo criminal, se encontram à disposição do Juiz criminal competente os dados correspondentes da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada a estes efeitos e que foram enviados como peças acessórias pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul”.

“Como se vê, é um assunto sub-judice”.

Nota distribuída à imprensa pelo Ministro da Justiça a 13 de junho de 1980.

Chanceler Saraiva Guerreiro:

“Não seria correto fazer declarações, dado que o assunto se encontra sub-judice”

O Globo — 14 de junho de 1980.

Dr. Seabra Fagundes, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil:

“É lamentável a posição de algumas pessoas ligadas ao governo, interessadas em dificultar a identificação dos responsáveis neste caso. As autoridades nacionais desentenderam-se neste assunto que poderia estar numa etapa processual muito mais adiantada”.

“A integração dos órgãos de segurança do Cone Sul para a captura de dissidentes políticos é um subproduto da estratégia dos regimes totalitários. Isto, com relação ao Brasil, rompe com nossa antiga tradição de asilo hospitaleiro aos refugiados políticos”.

“Existe uma política oficial de colaboração e intercâmbio muito grande entre os órgãos de segurança do Cone Sul de América, que é vista com enorme indulgência pelas autoridades superiores que permitem episódios como este”.

Declarações efetuadas à imprensa depois de ter prestado depoimento ante a 3a. Vara Criminal de Porto Alegre sobre as denúncias de Garcia Rivas. 4 de julho de 1980.

“O mínimo que se espera das autoridades brasileiras neste caso do seqüestro dos uruguaios é uma ação enérgica ante o governo uruguaio exigindo a devolução de Lilián Celiberti, seus dois filhos e Uni­versindo Rodriguez”.

“Só uma atitude deste tipo, junto com uma investigação séria para descobrir todos os culpados, poderá reparar os danos causados à nos­sa soberania nacional e restabelecer o prestígio internacional do país”.

Folha de S. Paulo — 17 de junho de 19800

“Embora fosse crime, não hesitaria em tomar novamente o testemunho do ex-agente uruguaio, porque tenho a certeza de estar prestando um serviço à Justiça do meu país”.

Zero Hora — 18 de junho de 1980.

Promotor Dirceu Pinto:

“A prisão do casal e das duas crianças não se revestiu de formalidades legais nem foi comunicada à autoridade judicial. Pelo contrário, foram todos levados para o Uruguai, onde se encontram encarcerados, exceto as crianças, que foram entregues aos avós maternos”.

“Pedro Seelig foi o coordenador das atividades dos policiais brasileiros. Esteve pelo menos uma vez no apartamento de Lilián, tendo sido reconhecido por Camilo”.

Zero Hora — 11 de julho de 1980.

Luís Cláudio Cunha, jornalista.

Foi quem identificou Didi Pedalada e João Augusto da Rosa como dois dos seqüestradores.

“Este é um momento muito importante, que dignifica a Justiça brasileira ao condenar dois policiais por abuso de poder. A sentença é justa e reforça todo o trabalho da imprensa, deixando todos nós, repórteres brasileiros, orgulhosos e conscientes da liberdade que precisamos para trabalhar dignamente, denunciando as arbitrariedades e buscando a verdade”.

Zero Hora — 22 de junho de 1980.

Dona Lilia Rosas de Celiberti, mãe de Lilián:

“Para mim o seqüestro de Lilián e Universindo ocorreu e foi comprovado não só pela recente denúncia do agente da repressão uruguaio, mas porque minha própria filha o confirmou”.

“Falo em nome de muitas mães uruguaias que, da mesma forma que as mães da Praça de Maio, têm filhos torturados, desaparecidos ou mortos pela injustificada repressão dos regimes militares do Cone Sul, que necessitam também da solidariedade de vocês”.

“Voltei a Porto Alegre para apoiar e agradecer a este nobre movimento”.

Palavras pronunciadas no ato organizado pelo Movimento de Jus­tica e Direitos Humanos em Porto Alegre, a 10 do julho de 1980, onde foi lançada uma campanha nacional pela devolução ao Brasil de Lilián e Universindo.

Senador Paulo Brossard, líder do PMDB:

“A única atitude correta do governo brasileiro hoje seria a exigência da devolução de Lilián e Universindo”.

“O governo não pode sepultar um fato como este na irresponsabilidade. Se fizer isso, compromete-se com o ato criminoso. As autoridades policiais protegidas pelo Governo serão responsabilizadas?”

Jornal do Brasil — 17 de junho de 1980.

Senador Pedro Simon, líder do PMDB:

“Se está caracterizado o seqüestro com a efetiva invasão e participação de forças estrangeiras em nosso território, com a conivência ilegal das autoridades brasileiras, o que fará o nosso Ministério da Justiça, o nosso Departamento de Polícia Federal, enfim, o nosso Conselho de Segurança Nacional através da sua maior autoridade, o Sr. Presidente da República?”

Intervenção no Senado, a 19 do junho de 1980.

“As denúncias do agente uruguaio são muito graves, porque afirmam a existência da violação dos mais fundamentais direitos humanos num país irmão”.

“É responsabilidade de todos os organismos internacionais, juris­tas de todo o mundo, da própria ONU, investigar estes fatos. Deve­riam ir ao país irmão e verificar”.

“O silêncio do governo uruguaio ante este caso é o silêncio tradicional de um país que faz questão de não falar sobre este tipo de ações. Ademais, realmente, tem pouco a dizer. É um silêncio que tem uma boa dose de consciência pesada”.

Declarações em Porto Alegre, a 27 do julho de 1980.

Francisco Amaral, vice-líder do PMDB na Assembléia Legislativa:

“O sequestro de Lilián e Universindo é um ultraje à soberania nacional”.

20 de julho do 1980.

Deputado José Frejat:

“O exército do Uruguai invadiu o nosso território e seqüestrou uma família. A consciência jurídica e democrática do nosso povo repele este crime”.

“Os militares fascistas do Uruguai invocam hipocritamente a José Artigas, grande herói latino-americano, mas negam os seus princípios”.

“O povo e o governo brasileiro não podem aceitar o que está acontecendo hoje no país irmão. O Brasil deve suspender imediatamente as relações diplomáticas e econômicas com o Uruguai”.

Intervenção na Câmara Federal, a 19 de junho do 1980.

Deputado Marcondes Gadelha, vice-líder do PMDB na Câmara:

“A investigação completa deste episódio e o castigo aos culpados constituem um mecanismo da própria civilização contra a barbárie”.

14 do junho do 1980.

Deputado Odacir Klein, do PMDB do Rio Grande do Sul:

“O fato de ter surgido novamente um testemunho incriminador de policiais gaúchos deve chamar nossa atenção sobre a impunidade em que permanecem aqueles que, para servir regimes repressores, praticam violações dos direitos humanos”.

14 de junho do 1980.

Deputado Alceu Colares, do PDT do Rio Grande do Sul:

“As declarações do ex-soldado comprovam a denúncia da existência de organismos que, violando a soberania nacional, praticam crimes contra os direitos da pessoa humana”.

14 de junho do 1980.

Senador Henrique Santillo, Goiás:

“A denúncia é a demonstração inequívoca da latino-americanização da repressão. Espero que os acusados sejam levados ao banco dos réus e que o Brasil tome a iniciativa de solicitar ao país vizinho a reparação dos atos de violação”.

14 de junho do 1980.

A SENTENÇA JUDICIAL

A 21 de julho de 1980, os policiais do DOPS, Orandir Portassi Lucas (Didi Pedalada) e João Augusto da Rosa (Irno), acusados de participação no seqüestro de Lilián e Universindo, foram condenados pelo Juiz Moacir Danilo Rodrigues a seis meses de prisão, pelo crime de “abuso de autoridade”. Também, pela mesma pena, foram impedidos de exercer funções de natureza policial em Porto Alegre por um prazo de dois anos.

Pedro Seelig e Janito Kepler, que também tinham sido acusados de participar do seqüestro, foram absolvidos por falta de provas.

Transcrevemos a seguir os trechos fundamentais da sentença:

Orandir Portassi Lucas... A intenção com que agiu foi intensa, executando una medida de prisão contra estrangeiros com risco de provocar inclusive incidente diplomático entre dois países vizinhos. Os motivos com que atuou são altamente censuráveis e egoístas, em circunstâncias totalmente desfavoráveis para as vítimas”.

“Graves as conseqüências da sua conduta antijurídica posto que, resultante de seu ato, Lilián e Universindo, que não tinham contas para acertar com a Justiça do Uruguai, segundo declaração oficial daquele país existente no processo, estão lá encarcerados há mais ou menos um ano e oito meses”.

João Augusto da Rosa foi acusado nos mesmos termos, acres­centando-se posteriormente:

“Pelas características do fato, exaustivamente examinado, inclusive na fundamentação para a aplicação da pena, o que denota que os réus Orandir Portassi Lucas e João Augusto da Rosa, embora re­cém-ingressados nos quadros da Polícia Civil, se envolveram e executaram medida violenta, de alta repercussão, até internacional, entendo necessária, cabível e exigível a aplicação de pena acessória prevista no diploma penal que violaram”.

A sentença contra os réus se fundamentou no reconhecimento efetuado por Luis Cláudio Cunha e João Batista Scalco, jornalista e fotógrafo da revista “Veja” em Porto Alegre, de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa. Ambos policiais se encontravam no apartamento de Lilián, mantendo-a seqüestrada, a 17 de novembro de 1978, e foram vistos por Cunha e Scalco.

Por outra parte, tanto as declarações de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, bem como as das testemunhas apresentadas por eles ante a Justiça, contêm inúmeras contradições e não podem ser utilizadas como prova da sua inocência.

Na página 20 da sentença mencionada, expressa o Juiz Moacir Danilo Rodrigues:

“Desnaturalizados, é imperativo proclamar, aqueles que arrancam os filhos para arrojar numa cela uma mãe que não cometeu, segundo comunicado das Forças Conjuntas uruguaias, nenhum delito no seu país. Ou não foi esta a declaração oficial?”

“Ah! David Canabarro, como puderam os teus patrícios de hoje esquecer a mensagem magistral que a pena de Arthur Ferreira Filho registrou para sempre? Assim, quando no ardor da Revolução Farrou­pilha, Rosas, o ditador argentino, mandou oferecer apoio contra o Império em troca de uma aliança com os “farroupilhas”, Canabarro, Comandante em Chefe, alertou ao emissário estrangeiro: “Diga ao seu chefe que o primeiro soldado que atravessar a fronteira dará o sangue com que será firmada a paz com os imperiais. Porque, acima do nosso ideal pela República, está o nosso amor pelo Brasil”.

E na página 22 do mesmo documento acrescenta:

“Lilián Elvira Celiberti Rosas de Casariego e seus dois filhos Camilo e Francesca e também Universindo Rodriguez Diaz, foram presos em Porto Alegre e, pelo menos durante algum tempo, mantidos em prisão para depois serem levados para o Uruguai”.

“Este fato, seja qual for o nome que lhe queiram dar, ocorreu. Disse várias vezes o ex-governador Sinval Guazzelli que o esclarecimento era questão de honra para o seu governo. Agregue-se que o repúdio a tal procedimento deve ser ansiado por todo brasileiro que admita viver sob um só império: o da lei!”

“Apesar da conotação político-ideológica com que foi encarado este fato, ao Poder Judiciário cabe única e somente saber se houve delito, não importando as figuras dos sujeitos ativo e passivo, nem as causas em que estejam comprometidos. Somente existe uma causa maior: a verdade!”

O Juiz Moacir Danilo Rodrigues absolveu por falta do provas a Pedro Seelig, indicado como um dos responsáveis pelo seqüestro. De acordo com o Juiz, era insuficiente elemento de prova o reconhecimento feito por Camilo do policial. A este respeito, afirmou:

“Considerando que as declarações do Garcia Rivas (a respeito de Seelig) foram genéricas, e que o testemunho do jurista Jean Louis Weil fazia referência a uma fonte não identificada, não existem provas suficientes para responsabilizar a Pedro Seelig. No entanto, a partir da conclusão de que Orandir e João Augusto praticaram o fato, é evidente que estavam sob as ordens de superiores, isto é claro. Dois policiais recém-ingressados na carreira policial jamais agiriam por conta própria. Nunca num caso como este, que escapa aos padrões da normalidade. Mas daí e só por isso, concluir que essa autoridade superior era Pedro Seelig, isso é uma temeridade”. (22 de julho de1980).

O juiz anunciou também que tinha retirado certas peças do processo para enviá-las ao Ministério Público, em razão de que evidenciavam a prática do crime de falso testemunho:

“Para que sirva de exemplo a tantos que não se envergonham de mentir à Justiça, determino que, transitada em Juízo esta decisão, sejam extraídas as peças necessárias para remeter à Coordenadoria de Promotores Criminais, com fins de denúncia por falso testemunho contra o advogado João Antônio Silveira de Castro, Jorge Alves dos Santos, testemunha de defesa de João Augusto da Rosa, Oswaldo Biaggi de Lima e Patrocínio Lugo Acosta, residentes os dois últimos na comarca de Bagé, cujo comportamento delituoso foi também analisado pelo deputado Ivo Mainard, relator da Comissão Parlamentar de Inquérito”.

Como declarou a mãe de Lilián Celiberti a “Zero Hora”: “A pena é pouco, não é nada, para o que já passamos e para tanto sofrimento, é uma pena muito leve”.

No entanto, a sentença do Juiz foi um triunfo. O Poder Judiciário, com nítida clareza, confirmou o que durante anos advogados e jornalistas vinham denunciando: em Porto Alegre foram seqüestrados Li­lian Celiberti, seus dois filhos e Universindo Rodriguez Diaz. Foram destruídas as mentiras inventadas pela Polícia Federal e Estadual brasileiras. Foram desmentidos os vergonhosos comunicados das Forças Conjuntas uruguaias.

Além do mais, temos fé em que o caso ainda não está encerrado. Superando obstáculos, continuarão as investigações. E dizemos junto com o Dr. Ferri: “A luta vai continuar no sentido de conseguir a devolução de Lilián e Universindo ao território brasileiro onde estavam sob a proteção das nossas leis”.


NOTAS

 

(1) — A maioria dos testemunhos provêm de ex-presos ou de familiares de presos políticos desaparecidos. Foram compilados principalmente pelo Secretariado Interna­cional de Juristas pela Anistia no Uruguai (SIJAU), pelo Comitê de Defesa dos Presos Políticos Uruguaios (CDPPU) de Paris, Amnesty International de Londres, Washington Office Latin American (WOLA), Ravista “Estudios”, GRISUR, Genebra e “Cuadernos de Marcha” do México.

Um levantamento minucioso e detalhado de toda a documentação existente sobre o problema dos presos políticos desaparecidos foi realizado pela Associação de Familiares de Uruguaios Desaparecidos (AFUDE), com sede em Paris, bem como através dos informes apresentados ante a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos da OEA em sua visita à Argentina em setembro de 1979, pelos familiares de desapa­recidos.

Os principais testemunhos são os de:

Enrique Rodriguez Larreta (SIJAU e imprensa internacional) — 1977.

Washington Pérez (SIJAU. Amnesty International e imprensa internacional) — 1976.

Alícia Cádenas, Eduardo Deán, Ariel Soto, Edelweiss Zhan, Mônica Soliño, Cecília Gayoso, Victor Lubián, Marta Petrides, Celmar Alves Heredia, Washington Rodriguez, Maria del Carmen Martinez, Nelson Hernández Silva, Luis Fulle, Ana Maria Regnier de Fulle, Silvia N. de Liberoff, Jaime Burgos (SIJAU, AFUDE) — 1978.

Lincoln Brizzosero, Nidia Caligari de Cacciavillani, Álvaro Jaume, Maria Elena Curbelo de Mirza (CDPPU) — 1979.

Carlos Martinez Moreno (“Cuadernos de Marcha”, maio-junho 1979).

Eugenio Bentaberry (“Estudios” N. 73) — 1979.

(2) — 1.500 pesos novos equivalem a 150 dólares aproximadamente.

(3) — “Bancados” — sustentados economicamente.

(4) — “Cantegriles — favelas, populações extremamente pobres e miseráveis existentes na periferia de Montevidéu e cidades do interior do país.

(5) — 2 milhões de pesos velhos equivalem aproximadamente a 200 dólares.

(6) — “Ratoeira” é o termo usado no vocabulário militar para designar a atividade na qual os militares se instalam no domicílio da pessoa procurada, à sua espera. Isto pode demorar vários dias, durante os quais os militares praticamente se apossam da casa do perseguido, mantendo seus familiares como reféns.

(7) — Chuí — Cidade situada na fronteira com o Brasil, a 340 quilômetros de Montevidéu. É o ponto fronteiriço mais próximo da Capital.

(8) — Trata-se de Hugo Cores, dirigente do PVP, segundo consta na Carta Roga­tória enviada pela Justiça Militar uruguaia à Polícia Federal brasileira, em 5 de abril de 1979.

(9) — General Liber Seregni — Presidente da coalizão Frente Ampla. que disputou as eleições para a Presidência da República em novembro de 1971. Foi detido pela primeira vez em 9 de julho de 1973, após ter participado do uma manifestação pública contra o golpe de estado perpretado pelos militares em junho do mesmo ano.

A partir desse momento, foi submetido a uma série de acusações e arbitrariedades por parte da chamada “Justiça Militar”.

Tendo sido libertado após pagamento de fiança em novembro de 1974, a 11 do janeiro do 1976 Seregni é preso novamente em Punta del Este (Maldonado). onde estava veraneando com autorização da Justiça Militar e com guarda policial em seu domicílio.

A partir desse momento começa um novo calvário para o Gal. Seregni; a dita­dura não pode perdoar que um militar tenha a dignidade e a coragem de censurá-la. Todos se lançam contra ele, através de acusações infundadas e delirantes.

A 8 de março de 1978 o Gal. Seregni é condenado a 14 anos de cárcere, com as acusações de “Encobrimento de Atentado à Constituição”, “Assistência à Associação Subversiva”, “Falta de Respeito”, “Instigação para Delinqüir” e “Usurpação de Funções”.

Sintetizando sua opinião referente ao fraudulento processo efetuado contra o General Liber Seregni, o destacado crlmlnalista uruguaio Carlos Martinez Moreno expressou em “Cuadernos do Marcha” de maio-junho do 1979:

“Se se tivesse colocado nas mãos dos coronéis-magistrados do Uruguai um bisturi, dando-lhes a ordem de operar os pacientes dos hospitais militares, o número final de mortos teria excedido o de Hamlet. Mas em vez do bisturi deram-lhes um jogo de códigos e a ordem de julgar as pessoas; aparentemente, os resultados têm sido menos trágicos. Mas é só na aparência: os cárceres uruguaios estão cheios de presos condenados, por delitos que não cometeram, a penas de anos e anos que não lhes corresponderiam num processo justo e razoável, penas que foram o resultado de processos sem as devidas garantias realizados dentro do marco de uma adulte­ração absoluta, que disfarça de instância jurisdicional o que é apenas o exercício de uma repressão e de uma vingança crassamente políticas”.

(10) — Elena Quinteros, professora, militante do PVP. Seqüestrada em 6 do julho de 1976 da Embaixada da Venezuela em Montevidéu, à qual tinha recorrido em busca de refúgio. Os militares uruguaios invadiram a Embaixada dentro de um Volkswagen, capturando-a, incidente que determinou que o governo venezuelano rompesse imediatamente as relações diplomáticas com o Uruguai, situação que ainda se mantém. Até o momento não existem notícias sobre o paradeiro de Elena Quinteros.

(11) — São nove as crianças, filhos do opositores militantes, que desapareceram junto com seus pais na Argentina: Amaral Garcia, Simón Antonio Riquelo, Mariana Zafaroni, Beatriz, Washington e Andrea Hernández Hobbas, Carmen Sanz, Anatole e Victoria Julien Grisonas.

As perguntas formuladas a Garcia Rivas sobre viagens do oficiais para o Chile devem-se ao fato de que duas dessas crianças, Anatole e Victoria Julien Grisonas, foram reencontradas quase três anos após o seu seqüestro, em Valparaíso, Chile, em julho do 1979. As circunstâncias em que estas crianças foram levadas para o Chile são desconhecidas, mas existem fundadas convicções de que se tratou de uma operação conjunta dos militares uruguaios e da polícia chilena.

Ao mesmo tempo, há uma interrogação no coração de muitos familiares: não terão corrido as outras crianças desaparecidas a mesma sorte? Onde estão?

(12) — Existem atualmente 127 opositores uruguaios desaparecidos na Argentina, entre eles 7 crianças. Também no Paraguai foi denunciado o caso de dois uruguaios desaparecidos.

Apesar das denúncias e dos múltiplos testemunhos que revelam que estas pessoas foram detidas por militares uruguaios em cumplicidade com as forças de segu­rança locais, não se responsabilizou nenhum dos governos pela sorte corrida por estas pessoas.

O governo uruguaio, pela sua parte, tem eludido permanentemente o tema e nunca efetuou a menor investigação tendente a esclarecer estes fatos que preocupam profundamente o povo uruguaio.

(13) — As pessoas às quais se refere Garcia Rivas são o ex-Senador Zelmar Miche­lini e o ex-Presidente da Câmara do Deputados e dirigente do Partido Nacional (Blan­co), Héctor Gutiérrez Ruiz.

Ambos foram assassinados em Buenos Aires numa operação conjunta argentino­uruguaia, em maio de 1976, junto com outros dois jovens militantes uruguaios: Carmen Barredo o William Whitelaw.

Numa carta aberta ao Presidente Videla, o ex-Senador do Partido Nacional, Wilson Ferreira Aldunate, acusou as autoridades argentinas de cumplicidade manifesta com os assassinos de Michelini e Gutiérrez Ruiz. Assinalou como não tinha sido tomada nenhuma providência nem para salvar suas vidas nem para identificar os responsáveis. Denuncia também as violências perpretadas pelas autoridades policiais e judiciais argentinas contra os familiares daqueles, e assinala que também ele estava sendo objeto de perseguição.

Ferreira termina sua carta dizendo:

“Quando chegar a hora do seu próprio exílio — que chegará, não o duvide, Gal. Videla — se buscar refúgio no Uruguai, um Uruguai cujo destino estará novamente nas mãos do seu próprio povo, recebê-lo-emos sem cordialidade nem afeto, mas lhe outorgaremos a proteção que o senhor não deu àqueles cuja morte hoje estamos chorando”.

Wilson Ferreira Aldunate foi o candidato mais votado nas eleições de novembro de 1971 para a Presidência da República do Uruguai.

(14) — Em 29 e 30 de outubro do 1976, as Forças Conjuntas uruguaias emitiram um comunicado através do qual apresentavam como detidas no balneário de Shangrilá, no Uruguai, várias pessoas que tinham sido seqüestradas em Buenos Aires, Argentina, e deportadas a Montevidéu clandestinamente.

Rodriguez Larreta, Alicia Cádenas, Eduardo Dean, Ariel Soto, Mónica Soliño, Cecilia Gayoso, Victor Lubian, Marta Petrides e outros uruguaios atualmente exilados na Suécia, testemunharam ante as Nações Unidas, diversos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos e a imprensa mundial, as circunstâncias da sua de­tenção em Buenos Aires por militares uruguaios em coordenação com a polícia argen­tina. Estas pessoas formaram parte do grupo a que se refere o comunicado das FFAA acima mencionado. Seus testemunhos relatam também o seu translado ilegal para o Uruguai e sua posterior reclusão nos cárceres de Montevidéu.

(15) — Eduardo Bleier, dirigente do Partido Comunista. Foi detido em outubro de 1975 em Montevidéu, junto com numerosos militantes desse partido. Segundo o testemunho de Eugenio Bentaberry, presidente do Sindicato dos Trabalhadores de UTE (Usi­nas e Telefones do Estado), que pôde ver Bleier detido nessa data, este foi submetido a torturas brutais num estabelecimento clandestino de detenção em Punta Gorda (Re­vista “Estudios”, n. 73, pág. 63).

Posteriormente, apesar de sua detenção por forças militares ter sido comprovada, um comunicado das Forças Conjuntas requereu sua captura publicamente.

(16) — Gal. Trabal — Adido militar em Paris em 1974, morreu em conseqüência de um atentado cujas origens são até hoje desconhecidas.

Apenas alguns dias depois da sua morte foram executados em Soca. departamento de Canelones, cinco militantes do MLN que residiam em Buenos Aires: Flo­real Garcia, Héctor Brum, Graciela Estefanel, Mirta Hernández e Ma. de los Angeles Corbo de Brum.

Amaral Garcia, de 3 anos de idade na época, filho de Floreal Garcia e Graciela Estefanel, nunca mais apareceu.

(17) — ANCAP — Administração Nacional de Combustíveis, Álcool e Portland.

(18) — Nos primeiros dias do setembro de 1978, a esposa do dirigente do Partido Nacional, Mário Heber, morreu em conseqüência do ter ingerido uma dose de vinho envenenado. O vinho fora enviado para a sua casa em forma anônima.

Nos meios políticos opositores, os autores do atentado foram identificados como integrantes de um grupo fascista (“Azul y Blanco”), com sólidos vínculos militares. Trata-se de: Celio Riot, Felipe Ferreiro, Antúnez Ferrer e Martín Gutiérrez.

O governo uruguaio não realizou a menor investigação sobre os responsáveis deste fato que comoveu a comunidade uruguaia. O Coronel Bonelli, naquele momento Chefe de Polícia, solicitou a autorização dos militares para aprofundar as investigações, mas evidentemente não a obteve, permanecendo o caso hermeticamente fe­chado.

(19) — Gal. Julio César Rapella, Chefe do Estado-Maior Conjunto (ESMACO), a partir de 6 de abril do 1978. Posteriormente ascendido à chefatura da Divisão II do Exército. Está catalogado como duro”. Em 18 de maio de 1978. ao ser comemorado o “Dia do Exército”, expressou: "Não é com clemência que tornaremos mais digno o Uruguai”.

O Gal. Rapella, segundo testemunhos circulantes no Uruguai, aparece implicado numa obscura negociata perpretada por ocasião da compra dos mármores para o Mausoléu de Artigas, através da empresa marmoreira “Nuovo Renacimiento. O contador dessa firma, Gonzalez Boadas, apareceu assassinado a princípios de 1978 num episódio muito confuso. Segundo as mesmas fontes, Gonzalez Boadas teria desco­berto os termos da negociata que teria favorecido o Gal. Rapella.

(20) — General Alberto Ballestrino. Atualmente é diretor da Escola de Armas e Serviços do Exército. Pertence ao setor ultra-direitista do Exército. Em fevereiro de 1973, na época dos comunicados 4 e 7, era Chefe da Polícia de Montevidéu.

(21) — General (R) Gregorio Alvarez (“El Goyo”). Último Comandante e Chefe do Exército antes de Luis Queirolo.

Em fevereiro do 1973, quando foram emitidos os comunicados 4 e 7, era Secretário do Estado-Maior Conjunto (ESMACO), órgão encarregado da direção da ação repressiva contra o movimento popular.

Em 13 de setembro de 1976 viajou para o Chile para participar dos atos de celebração do golpe contra o Presidente Allende. Nessa oportunidade pronunciou um discurso entusiasta de admiração pelo regime pinochetista. Atualmente na reserva, mantém alguma influência pessoal sobre alguns membros da Junta de Oficiais Generais, sendo assinalado como um possível candidato à Presidência da República nas eleições de 1981.

(22) — Vales de gasolina. São uma espécie de cheques equivalentes a gasolina utilizados pelos militares em vez de dinheiro. 120 pesos novos equivalem a doze dólares. Cada caderneta de vales de nafta tem um valor aproximado de 600 dólares.

(23) — ANTEL — Administração Nacional de Telefones.

(24) — General (R) Amaury Pranti. Vinculado à CIA (norte-americana) desde a dé­cada de 60, como consta do testemunho do Agente desta Companhia, Philippe Agee. Vinculado aos aspectos mais sombrios da ação repressiva desencadeada no país nos últimos anos. No Serviço de Inteligência da Defesa (SID), foi um dos responsáveis diretos pelos crimes e seqüestros de opositores uruguaios em Buenos Aires.

Em abril de 1978, devido à publicação de um panfleto clandestino denominado “El Talero”, no qual atacava violentamente o Gal. Alvarez e o Gal. Raymúndez (cunhado deste e Chefe da Divisão de Exército IV), foi afastado. Com ele caiu em desgraça também o Coronel (A) José Nino Gavazzo. Em 1967 Gavazzo viajou para a Argentina, onde dirigiu pessoalmente, com elementos do Organismo Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA), a repressão contra os opositores uruguaios em Buenos Aires.

Está diretamente vinculado ao seqüestro de Gerardo Gatti, León Duarte e as crianças Simon e Victoria Julien Grisonas (reencontrados no Chile, três anos depois do seu seqüestro).

(25) — Estes são os prontuários de um número importante de oficiais uruguaios, em sua maioria vinculados a tarefas repressivas nos últimos anos.

Para confeccionar este informe foi mostrada a Garcia Rivas uma lista de militares com mais de uma centena de nomes, pedindo-lhe que dissesse tudo o que sabia sobre estas pessoas.

Assim puderam ser confirmadas informações que já se dispunham sobre as atividades de numerosos oficiais. Ao mesmo tempo, o testemunho permite conhecer outros integrantes dos serviços de Inteligência e do Exército, e desmascarar suas atividades.

(26) — O S2 (Serviço 2) é um organismo especializado de oficiais, existente a nível do Exército, que desempenha tarefas de interrogatório, controle de dossiês e comportamento dos presos políticos nos estabelecimentos de reclusão.

(27) — Aceguá — Cidade fronteiriça com o Brasil. A 440 quilômetros ao Nordeste de Montevidéu. Unida à Capital pela Rodovia n. 8. que passa pela cidade de Melo.

(*) — Dr. Omar Ferri, advogado defensor de Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz. Sua atitude valente foi fundamental para o esclarecimento do seqüestro.


 

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