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A CRIMINALIDADE COMPARADA

Gabriel Tarde

Tradução de Maristella Bleggi Tomasini

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A Criminalidade Comparada – Gabriel Tarde
(La Criminalité Comparée, Félix Alcan, Paris, 1886)

Tradução: Maristela Bleggi Tomasini
mtomasini@cpovo.net

Obra baseada na 8a. edição francesa de 1924, com notas e comentários.

Fonte digital: Documento da Tradutora

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© 2004 –Maristela Bleggi Tomasini
mtomasini@cpovo.net


 

Jean-Gabriel (de) Tarde
(1843-1904)

Há um minimum de prestígio que um governo não pode dispensar, e que se fundamenta, primeiro, sobre superstições e lendas populares, iluminuras do direito divino, erro fundamental um dia e vital das sociedades. Quando ele se desvanece, é preciso procurar outras bases para a autoridade, mas são sempre ficções, apenas mais artificiais, ou seja, mais racionais, e mais conscientemente fabricadas. São necessários historiógrafos oficiais para acomodar a História, são necessários jornalistas para desnaturar os fatos atuais, são necessários múltiplos atores para representar com sucesso a vasta comédia do sufrágio, seja restrito, seja universal, e fazer-se dar, através da opinião, as ordens ou os elogios que se lhes são ditados.

G. Tarde


 

Índice das Matérias

Prefácio
Postscriptum à segunda edição

Capítulo Primeiro – O Tipo Criminal

01. Caracteres anatômicos. O corpo. A cabeça. Contraste perfeito com o tipo ideal de Hegel.
02. Caracteres fisiológicos e patológicos. Utilidade dessa descrição física.
03. Caracteres psicológicos. Analogias com o selvagem, diferenciações do louco. Relatividade do crime, não da loucura. Fatos qualificados como crimes em diversas épocas. Responsabilidade do criminoso e não do louco. Por quê.
04. Caracteres sociológicos. Grandes associações de malfeitores: Camorra. Nenhuma similitude com as tribos selvagens. Tatuagem e gíria das prisões de forçados. Grafologia criminal.
05. Tentativa de explicação. As mulheres têm o tipo criminal. Os tipos profissionais.
06. Atenuação possível do vírus criminal no amanhã.

Capítulo Segundo – A Estatística Criminal

01. Progressão rápida e real do número de delitos. Baixa aparente do número de crimes. Causa desta ilusão.
02. Discussão com Poletti: se a atividade produtiva compensa a atividade malfazeja.
03. A reincidência. Ação do exemplo. Por que a profissão de malfeitor se tornou excelente. Degredo e sociedades de patronato.
04. Civilização e revolução. A política e a curva dos delitos.
05. Magistratura. Seus progressos constantes sob todos os pontos de vista. Cifra estacionária dos processos civis. Comparação das estatísticas judiciárias. Júri. Apanhado histórico sobre a distinção do civil e do criminoso.
06. Religião, sua influência. Instrução primária, sua ineficácia. Instrução superior, sua virtude. A moral fundada sobre a estética.

Capítulo Terceiro – Problemas da Penalidade

01. Grau Necessário de Convicção Judicial
Variabilidade de um tribunal para outro, de um tempo a outro e de zero ao infinito. Culpabilidade e condenabilidade: como o juiz chega a ser fixado – análise psicológica. Regra teórica das variações de que se tratam.

02. Sugestão e Responsabilidade
Comparação da penalidade com a indústria. A vida normal esclarecida pelo hipnotismo. Ela poderia não ser senão um hipnotismo bastante complexo. Condições essenciais da responsabilidade. O princípio da imitação, indispensável aqui.


Capítulo Quarto – Problemas da Criminalidade

01. Geografia criminal
Preponderância, admitida por Garofalo, dos homicídios no Meio-Dia, dos roubos no Norte. Exceções a essa regra. Sua explicação, não por causas físicas, mas por causas sociais que fazem marchar a civilização do Meio-Dia ao Norte e do Leste ao Oeste nos tempos modernos. Aliás, tendência da civilização em irradiar-se em todos os sentidos.

02. Homicídio e Suicídio
Crítica da relação inversa estabelecida entre ambos. Ferri, Morselli e Legoyt. Suicídio e emigração. Causas de ordem social e, sobretudo, de ordem religiosa. Curva dos suicídios e curva dos divórcios. Bertillon. O suicídio militar.

03. O Amanhã do Crime
Dupla vertente das sociedades. Voluptuosidade crescente. Definição do delito. Ampliação progressiva dos dois círculos concêntricos da moral. O próprio progresso moral operado pelas descobertas imitadas. Cada civilização tende a devorar sua própria criminalidade. Embriologia do delito. O ideal futuro.

04. Civilização e Mentira
Ligação entre a delituosidade e o espírito de mentira.
Ora, utilidade, senão necessidade, em todo caso, universalidade social da mentira. Questão de saber se o progresso tende a enfraquecê-la ou a fortificá-la. Relação inversa entre a verdade e a veracidade, entre a mentira e o erro. Visão histórica. Logo, necessidade da imaginação à vista da ilusão necessária à união social. Religião do amanhã.


Notas


 

Prefácio

 

Os estudos que se vão ler já apareceram na maior parte na Revue philosophique, e a atualidade – infelizmente muito evidente – de seu assunto leva-me a reproduzi-los e completá-los. Em toda parte, na França como no estrangeiro, na Itália, notadamente, as questões da criminalidade e da penalidade são a ordem do dia. Uma necessidade de reformas, que nada tem de artificial, faz-se sentir aqui. Ela não é provocada apenas pelo transbordamento do delito, mas pela consciência cada dia mais nítida desse mal crescente, de seus caracteres e de suas causas, graças aos progressos da estatística. Essa fonte totalmente nova de informações, que habituou o público contemporâneo a ver os fatos sociais em grandes proporções, não confusos e duvidosos como os viam as gerações de outrora, mas tão precisos e tão certos que cada um de seus detalhes o conduz a tratar todas as questões sociais como homem de Estado; ela não é inútil, por exemplo, na renovação da economia política, onde o antigo individualismo, – ainda que advindo de seu socialismo de escola atualmente na moda, – doravante faz seu tempo. O mesmo método introduz, no estudo dos fatos precisamente opostos aos fatos econômicos, – quero dizer, os fatos delituosos, – um espírito no mesmo sentido inovador. Não é mais permitido ao criminalista do presente ser um simples jurista, exclusivamente preocupado com os sagrados direitos do indivíduo, a aplicar-lhe as conseqüências de seus atos, com a lógica de um comentador civil, a cada caso à parte; ele deve ser um estatístico-filósofo, preocupado, antes de tudo, com o interesse geral. Não é mau que seja também um pouco alienista e antropólogo, porque, ao mesmo tempo em que a estatística criminal nos mostra os delitos e os delinqüentes em grupos, a antropologia criminal acredita descobrir a ligação da tendência aos diversos crimes com certos caracteres corporais hereditários, de modo algum individuais; e a patologia do espírito, pelo conhecimento mais avançado do sistema nervoso, – sem nem mesmo falar sobre as experiências da sugestão anormal entre os hipnóticos, – força-nos a reedificar sobre bases mais profundas a teoria da responsabilidade penal, a procurar, muito além do indivíduo, a verdadeira origem e o verdadeiro alcance de seus atos. Estatística, antropologia, psicologia fisiológica, tantos caminhos científicos novos, onde o estudo renovado do crime, a criminalidade comparada, – se me permitem este nome, – é, de qualquer sorte, a encruzilhada. É certo que não se pretende, no quadro restrito deste volume, resolver os problemas que ele subleva.

É suficiente ao autor aportar sua parte de dados e resenhas àqueles que elaboram as soluções. Mas deve-se convir também que uma preocupação sistemática foi a alma escondida deste trabalho e a ligação estreita desses fragmentos esparsos. Ele procurou a aplicação e o controle de um ponto de vista particular, ao qual está há muito tempo fixado em ciência social, e que acredita bastante próprio a esclarecer um campo de explorações bem superior àquele deste livro. Dessa coletânea citada mais acima, no curso de diversos artigos aqui não reproduzidos, ele fez uso muitas vezes. Será ainda necessário acrescentar que ele se esforçou sempre em subordinar o espírito de sistema ao espírito de crítica, e não sujeitar o segundo ao primeiro? Ele espera que, lendo estas páginas, não se duvide disso.


 

 

Postscriptum à Segunda Edição

 

Desde que apareceu este pequeno livro, a corrente reformadora, da qual ele foi o desejo e o anúncio, estendeu-se e fortificou-se além de nossas esperanças. Puderam-se ver, no Segundo Congresso Internacional de Antropologia Criminal que teve lugar em Paris em agosto em 1889, os poderes públicos, eles mesmos, favorecerem esse movimento. Ao mesmo tempo em que se propagavam as idéias reformistas, seus autores trabalhavam para reformá-las, retificá-las; e desse duplo progresso, onde um estimula o outro, não se saberia dizer com certeza o que resultará de nítido e decisivo. O que eu acredito poder afirmar sem medo de ser desmentido é que a tese geral desenvolvida na presente obra, – a saber, a explicação do delito através de causas sociais e psicológicas de preferência às biológicas, e a repressão do delito demandando meios de ordem moral de preferência à natural, – tende a difundir-se e a rechaçar cada vez mais a tese contrária. Se, em lugar de limitar-me a reproduzir o texto de minha primeira edição, salvo ligeiros retoques, eu houvesse acreditado necessário modificá-lo, teria acentuado mais fortemente ainda o ponto de vista ao qual estou ligado, e restringido ainda mais o papel deixado ao “tipo criminal” de Lombroso. Mas, reflexão feita, e sob a reserva dessa observação, não altero nada de essencial à expressão de um pensamento que me pareceu verdadeiro à sua hora, do qual as variações sobrevindas depois não me fizeram afastar muito. Certas passagens deste volume, é verdade, – em pequeno número, se me parece, aliás, – envelheceram; mas as pessoas que estão ao corrente dessas questões saberão facilmente discerni-las e, quanto àquelas que não discernirem, nada terão a perder com seu interesse por elas.


 

Capítulo Primeiro

O Tipo Criminal

 

Estais curiosos para conhecer a fundo o criminoso, — não o criminoso de ocasião que a sociedade pode imputar-se na maior parte, — mas o criminoso nato e incorrigível pelo qual a natureza, quase unicamente, dizem-nos, é responsável? Lede a última edição de O Homem Delinqüente de Lombroso[1] que foi, há dois anos, traduzida para o francês. Quanto é lamentável que uma obra dessa força e dessa densidade, uma tal concentração de experiências e de observações tão engenhosas quanto perseverantes, e onde se resume o trabalho não de todo estéril de uma vida inteira, de toda uma escola inovadora, não pôde, malgrado a força dos erros, tentar a pluma de um tradutor francês! Talvez, para dizer a verdade, o assunto não pareça de início muito interessante. Essa anatomia ilustrada, física e moral de homicidas, de gatunos, de odiosos sátiros (stupratori) é tão minuciosa! Suas conformações cranianas e corporais, suas fotografias, suas grafias, seus modos de sentir ou de não sentir a dor ou amor, o frio ou o calor, suas doenças, seus vícios, seus embriões literários, tudo o que os caracteriza, em uma palavra: que nos importa tudo isso[2]? Todavia, é certo que a medicina foi o berço da fisiologia, e que o estado mórbido esclarece o estado são. É, ao menos, provável que as pesquisas do criminalista joguem luzes sobre os problemas do sociólogo; ou, de preferência, não se nos devemos espantar de ver, segundo as pretensões justificadas da nuova scola, a criminologia (este é o título da última obra de Garofalo[3]) entrar como um caso particular na Sociologia e completar, desse ponto de vista, a economia política, da qual ela é uma espécie de avesso. Pode-se lhe conceder esse ponto, mesmo então, quando não se vê o criminoso de hoje, segundo a tese ou uma das teses de Lombroso, como o último exemplar tornado raro do selvagem primitivo, de sorte que isto que é o crime no presente, fato anti-social, teria começado por ser o fato social habitual, a regra e não a exceção.

 

01 — Caracteres anatômicos. O corpo. A cabeça. Contraste perfeito com o tipo ideal de Hegel.

 

Examinemos, pois, separadamente, os caracteres anatômicos, fisiológicos, patológicos, psicológicos, enfim, que se produzem com uma freqüência notável entre os malfeitores habituais, e que parecem sinalar, entre eles, os malfeitores hereditários. Nós nos ocuparemos dos adultos apenas, e principalmente dos homens.

Anatomicamente, o criminoso é, em geral, alto e pesado[4]. Eu não digo forte, porque é fraco de músculos, ao contrário. Pelo seu tamanho e seu peso médio, ele ultrapassa a média das pessoas honestas, e essa superioridade é mais acentuada no assassino que no ladrão. Eu devo dizer, todavia, que as medidas de Lombroso sob esse ponto de vista, tomadas na Itália, estão em contradição com as medidas tomadas na Inglaterra por Thompson e Wilson, e não estão sempre de acordo com aquelas de seu compatriota Virgilio. Acrescento que, segundo Lombroso, ele mesmo, as mulheres criminosas são inferiores às mulheres normais em peso. O que parece fora de dúvida é o grande comprimento dos braços, que aproximaria o criminoso dos quadrúmanos. Uma outra singularidade, não menos bem estabelecida, e que eu acredito a propósito notar desde agora, — ainda que ela seja fisiológica de preferência a ser anatômica, — é a extraordinária proporção de ambidestros. Eles são três vezes mais numerosos entre os criminosos, e quatro vezes entre as criminosas, frente às pessoas honestas.

Quanto aos crânios, quanto aos cérebros, eles aqui informam muito mal aos antropologistas, e Lombroso é obrigado a confessar que seu trabalho foi freqüentemente muito mal recompensado. Primeiramente: a capacidade craniana dos malfeitores é inferior à nossa? Isso parece provável. Lombroso e Ferri dizem sim, como Amadei, Benedict e outros; Bordier e Heger dizem não[5]. De acordo com este último, os criminosos ultrapassam em número precisamente nas capacidades superiores, aquelas de 1.500 a 1700 cm³. Em todo caso, é certo que, nas capacidades intermediárias e verdadeiramente normais, seu número é mais fraco, de sorte que sua superioridade, quando ela se produz, teria os caracteres de uma anomalia. Seja como for, sua capacidade média é bem superior àquela dos selvagens, aos quais nosso autor, bom darwiniano, condescende em assimilá-los. É verdade que, por sua conformação craniana e cerebral, eles apresentam com aqueles verdadeiras similitudes, como veremos mais adiante. Dir-se-ia que a regressão da forma foi até certo ponto compensada neles, como entre certos grandes vegetais de tipo inferior, pelo progresso, ao menos relativo, da matéria. Aquilo que eu não entendo bem, por exemplo, é que a cabeça dos assassinos foi encontrada mais forte que a dos ladrões. Não é necessário, todavia, mais inteligência para calcular um roubo que um assassinato? Isso pode se dever, dizem-nos, a que a braquicefalia[6] domine entre os assassinos e a dolicocefalia[7] entre os ladrões, porque a forma redonda da cabeça é mais vantajosa que a forma alongada do ponto de vista do volume. A propósito, observa-se que Gall, talvez, houvesse tido uma intuição justa, localizando nas têmporas a bossa da crueldade. Mas, ainda aqui, a dúvida é permitida pela contradição dos dados e, além disso: a braquicefalia dos assassinos, fosse ela admitida, seria uma razão a mais para assimilá-los aos nossos primeiros ancestrais? Não, se observarmos com Quatrefages, notadamente, “que esses são os trogloditas braquicéfalos do Lesse[8], cujos hábitos inofensivos são atestados pela ausência de qualquer arma de guerra”, enquanto “os homens de Canstadt e Cro-Magnon (dolicocéfalos) se nos apresentam manifestando todos os instintos de populações caçadoras e guerreiras[9]”.

Em revanche, parece certo que os malfeitores têm a fronte fugidia, estreita e sulcada, as arcadas superciliares salientes, as cavidades oculares muito grandes, — como aquelas das aves de rapina, — os maxilares proeminentes e muito fortes, as orelhas afastadas e grandes, em asa: eis aí os traços bem nítidos da selvageria[10]. Acrescentam-se diversas anomalias, o que seria muito longo enumerar e, em particular, a falta de simetria craniana ou facial pronunciada e freqüente. Essa irregularidade mais ou menos chocante, 67 vezes em 100, foi observada por Roussel sobre criminosos. Têm-se, pois, razões nas quais não se acreditava, quando se dizia de um homem vicioso que ele era esconso. A mesma assimetria freqüente observa-se entre os selvagens? Os antropologistas não dizem nada. “O que mais importa notar, diz nosso autor, é que a reunião de muitas anomalias de uma só vez num mesmo crânio apresenta-se, entre os criminosos, 43 vezes em 100, enquanto cada anomalia não se apresenta isolada senão 21 vezes em 100”. Elas relacionam-se, pois, intimamente umas às outras, como fragmentos de um tipo que procura se constituir, ou se reconstruir, dir-se-ia.

Lombroso atribui uma importância particular — e quase paternal — a uma anomalia que ele descobriu, a saber[11], “aquela da fosseta média, que se encontra em lugar da crista, sobre o osso occipital, na proporção de 16% entre os criminosos e de 5% entre os não-criminosos.” A proporção é de 10 a 12% entre os loucos, de 14% nas raças pré-históricas e de 26% para os indígenas da América, mas acrescente-se que ela é de 22% entre os judeus e os árabes, e não nos esqueçamos de que, de acordo com a estatística criminal francesa na Argélia, a criminalidade dos árabes é bem inferior àquela dos europeus[12]. Daí eu concluo que, se o criminoso pode lembrar o selvagem, o bárbaro ou o semicivilizado, tal similitude, aliás, curiosa não contribui de nenhum modo para explicar por que ele é criminoso.

Nota bem pouco lisonjeira para o nosso sexo: a mulher criminosa, por seus caracteres craniológicos, é muito mais masculina que a mulher honesta. Sabe-se, de outra parte, que o progresso da civilização se acompanha de uma diferenciação crescente dos dois sexos, como o Dr. Le Bon, entre outros observadores, mostrou muito bem.

Chegamos ao cérebro. Seu peso médio, entre os criminosos, parece ser quase o mesmo que entre todo mundo. Isso, entre parênteses, não é próprio a confirmar a inferioridade relativa à capacidade do crânio e a assimilação favorita com o homem primitivo. Mas o que importa mais: “quando se examinam, diz o Dr. Le Bon (Revue Philosophique, maio 1881), os relatos de autópsias dos supliciados, é muito raro não encontrar a constatação de lesões cerebrais mais ou menos profundas”. Está-se, todavia, já em condições de determinar as anomalias do cérebro que caracterizam o criminoso como se pôde, até certo ponto, especificar aquelas de seu crânio? Não. Apenas Lombroso acredita-se autorizado a concluir que o desvio freqüente do tipo normal lembra aqui, não raramente, “as formas próprias aos animais inferiores ou as formas embrionárias”. Se tentarmos conciliar essa qualidade inferior do cérebro com sua quantidade considerável, seremos, mais uma vez, levados a ver o criminoso como a baixeza elevada a uma alta potência; e, a este título, ele me parece realizar, não o retrato do passado, mas, de preferência, o ideal de uma civilização que, por hipótese, seria materialmente progressiva e intelectual e moralmente retrógrada. Digamos também que, de acordo com Etecks (citado em nota por Lombroso), as anomalias das circunvoluções cerebrais, no criminoso, são de duas espécies, e aquelas da primeira categoria não se relacionam a nenhuma forma animal ou humana, a qualquer tipo normal, mesmo inferior.

Não nos omitimos de ponderar aqui observações bastante singulares: o criminoso (e também a criminosa) é muito mais freqüentemente moreno[13] que louro[14], é muito cabeludo e tem pouca barba. – Desconfiai do imberbe, diz um provérbio italiano. – Enfim, não tem quase nunca o nariz direito; o ladrão tem-no levantado, parece, e o assassino, adunco...

Esta última observação pode fazer sorrir; mas, lendo-a, lembro-me da importância um pouco bizarra, não sem profundidade, todavia, que o velho Hegel, em sua Esthétique, atribui à forma do nariz, para explicar a beleza do perfil grego. Entre a fronte, onde se concentra a expressão espiritual da face humana, e o maxilar, onde a bestialidade se exprime, o nariz parece-lhe ser o órgão intermediário que contribui poderosamente para fazer pender a balança em favor de uma ou de outra. O nariz tende, de acordo com Hegel, a tornar a besta ou o espírito predominante, segundo, por uma linha direita, apenas curvada, ele se una intimamente a uma fronte reta, una e pura, cuja regularidade, por assim dizer, prolongue-se nele; ou, destacado da fronte deprimida e escavada de rugas, por uma linha quebrada, e ele próprio achatado ou mesmo aquilino, incorpore-se de preferência à boca e ao maxilar, sobretudo se eles são grosseiros e proeminentes. Esta explicação, eu confesso, não é das mais científicas e não enriquece muito a antropologia. Mas eu não sei se será fácil a esta ciência fornecer-nos uma justificativa simplesmente utilitária, de nenhum modo estética, das diferentes formas do nariz[15]. É certo ao menos que, por sua fronte e nariz retilíneos, por sua boca estreita e graciosamente arqueada, por seu maxilar retraído, por sua orelha pequena e colada às têmporas, a bela cabeça clássica forma um perfeito contraste com aquela do criminoso, cuja feiúra é, em suma, o caráter mais pronunciado. Sobre 275 fotografias (reduzidas) de criminosos acrescentadas ao Homem Delinqüente e algumas dezenas de outros retratos disseminados no corpo da obra, eu não pude descobrir senão um belo rosto, ainda assim feminino; o resto é repelente na maioria, e as figuras monstruosas são muitas. Desconfiai dos feios ainda mais que dos glabros[16]! Parece-me, pois, que, após haver procurado explicar a silhueta criminosa, comparando-a àquela do homem primitivo, sempre mais ou menos conjetural, ter-se-ia podido opô-la ao tipo ideal da beleza humana, que nos é, há muito tempo, bem mais conhecido pelas revelações da arte ou da natureza, e completar ou retificar assim a primeira interpretação de seus caracteres.

Hegel definiu bem essa cabeça ideal como aquela onde o espírito domina, ou seja, – para precisar seu pensamento à nossa maneira, – aquela onde se observa a satisfação social, e não exclusivamente individual, do homem. Se a boca e o maxilar, por exemplo, não são apenas próprios à mordida e à mastigação, mas ainda ao sorriso e à palavra, são belos, e são tanto mais belos quanto ambas as funções sociais de falar e de sorrir mais ultrapassem neles as funções individuais de morder e de mastigar. Ora, um maxilar grosseiro, por exemplo, é muito bom para mastigar, mas muito incômodo para exprimir-se. Também os antropologistas nos dão a seguinte regra: “A mandíbula é mais pesada em relação ao crânio entre os antropóides que entre os homens, entre as raças inferiores que as civilizadas, entre os homens que entre as mulheres, entre os adultos que entre as crianças”. Estas duas últimas observações dão o que pensar. Em todo caso, a facilidade de elocução das mulheres não é duvidosa (Revue Scientifique, 9 de julho de 1881).

Para terminar com os sinais de identificação anatômica, um caráter quase tão indefinível quanto importante, por si mesmo, mais que todos os demais, é o olhar. Ele é opaco, frio, fixo no assassino; ele é inquieto, oblíquo, errante no ladrão. Essa observação merece, sobretudo, ser estabelecida, porque ela se aplica aos malfeitores de não importa que nacionalidade; e ela não é a única similitude desse gênero que se produz, através de uma singular coincidência, entre indivíduos pertencentes a raças diferentes, tornados, dessa sorte, semelhantes entre eles, como se fossem parentes. Lombroso sinala esse fato em muitas passagens. “A freqüência das rugas da fronte (seni frontali), diz ele, e do desenvolvimento da arcada superciliar, é verdadeiramente singular, e é esse caráter talvez, que, acrescido à fronte fugidia, explique a semelhança curiosa dos criminosos italianos com os criminosos franceses e alemães”. Ele convida, aliás, o leitor (p. 265) a comparar muitas fotografias que ele designa, e faz observar, com razão, que elas se parecem espantosamente, ainda que tomadas de diversas raças européias. Assim o criminoso tornar-se-ia singular, não somente naquilo que escaparia ao seu tipo nacional, mas ainda naquilo em que suas anomalias, sob esse ponto de vista, acompanhariam a uma regra, e sua atipia, ela mesma, seria típica. É estranho, e eu não sei até que ponto as teorias darwinianas são próprias para dar conta dessas similitudes não produzidas, parece, pela via hereditária. Eu não pediria mais senão ver fenômenos de atavismo e dar-lhes assim, por causa, uma hereditariedade que remontasse a mais além. Mas eu não posso me impedir de imaginar essas famílias naturais de espírito literário que Sainte-Beuve[17], de sua parte, atreve-se a descrever magistralmente num de seus Lundis, grupos não menos harmoniosos e quase fraternos, e, todavia, formados por escritores não menos estranhos uns aos outros pela raça e pelo clima. Ora, dir-se-á também que essas variedades delicadas do pomar espiritual, que essas flores duplas de imaginação poética esgotada e sobrecultivada são evocações de um longínquo passado, de reminiscências hereditárias do homem selvagem? No entanto, eu não contesto a hereditariedade, nem a seleção, nem o progresso; mas eu me permito supor, por baixo de tudo isso, um grande desconhecido ainda a realçar. Opinião talvez dos idealistas do amanhã que, provavelmente, aliás, não se parecerão em nada àqueles do passado[18]. Sob esse ponto de vista, por exemplo, seria interessante examinar a questão de saber se, numa raça dada, esses são os padrões ordinários do tipo, nem belos nem feios, que se parecem mais entre eles, ou se esses são, ao contrário, os exemplares de opção, seja em bem, seja em mal. As mulheres belas, — dir-se-ia, — são muito menos dessemelhantes entre elas que as mulheres feias ou medíocres. E os homens eminentes em perfeição moral não estão mais próximos de se parecerem, em todos os países e em todos os tempos, que os celerados consumados? Se for assim, poder-se-á supor alguma convergência, alguma orientação natural das múltiplas vias da evolução específica direcionada a um mesmo ideal, ou, se melhor preferirmos, direcionada a um mesmo estado de equilíbrio superior.

 

02 — Caracteres fisiológicos e patológicos. Utilidade dessa descrição física.

 

Podemos ser breves sobre os caracteres patológicos e fisiológicos. Dizer, com nosso autor, que o criminoso é um louco é dizer que ele é um doente. Ele é muito sujeito às doenças do coração notadamente, e também a diversas afecções da visão, tais como o daltonismo e o estrabismo[19]. Mas como, com isso, sua longevidade, – que sua insensibilidade explique talvez, – é das mais notáveis, não há que se apiedar muito tempo com suas enfermidades. Isso mesmo já nos adverte para olhar duas vezes antes de considerá-lo como um doente e, por conseguinte, como um louco. Loucura e longevidade se excluem.

Asseguram-nos que o criminoso tem, em geral, uma voz de tenor ou de soprano. Seja. Já disse que ele é três ou quatro vezes mais freqüentemente ambidestro que o homem honesto. Por este último traço e por sua agilidade muitas vezes prodigiosa, ele é simiesco. Ele é bestial ainda por sua insensibilidade relativa à dor e ao frio mensurada com a ajuda de instrumentos especiais. Ele enrubesce dificilmente. Mas aqui nós alcançamos os caracteres psicológicos aos quais temos pressa de chegar.

Antes de ir mais longe, todavia, perguntemo-nos quais serventias práticas pode render já, à justiça criminal, o conhecimento dos resultados que vamos esboçar. Dado um homem que apresente no físico o tipo criminal bem caracterizado, dir-nos-ão que isso é suficiente para ter-se o direito de imputar-lhe um crime cometido na sua vizinhança? Nenhum antropologista sério se permitiria tal gracejo. Mas, de acordo com Garofalo, se constatarmos essas anomalias típicas sobre um indivíduo que vem de cometer seu primeiro crime, pode-se, antes mesmo que ele haja reincidido, estar seguro de que ele é incorrigível e tratá-lo em conseqüência disso. Talvez agora isso seja ir muito longe. Parece-me que, entre essa opinião e o ceticismo exagerado de Rüdinger[20], haveria um meio-termo a guardar e que, a título de indícios talvez, mas apenas indícios, como diz Bonvecchiato, esses traços acusadores devam ser levados em consideração. Ferri assegura-nos que, sobre muitas centenas de soldados examinados por ele, foi surpreendido por observar um, apenas um, cujo físico estigmatizaria o homicida; e disseram-lhe que este infeliz fora, com efeito, condenado por homicídio. Sobre 818 homens não condenados, Lombroso não observou senão uma ou duas vezes o tipo criminal completo, e quinze ou dezesseis vezes o tipo quase completo. Entre os condenados, a proporção era uma dezena de vezes mais forte. Quantos magistrados instrutores não acreditam perder seu tempo procurando penosamente menores presunções! Quando eu imagino que se é freqüentemente obrigado a confiar nessas informações, nesses certificados fornecidos por um prefeito e ditados pela camaradagem ou pelo interesse eleitoral! Sob o antigo regime, segundo Loiseleur[21], os comentadores de leis criminais Jousse et Vouglans contavam, entre o número dos graves motivos de suspeições, a má fisionomia do culpado. De fato, mesmo em nossos dias, não é preciso mais, em certos casos difíceis, para um juiz hesitante decidir entre dois indivíduos a processar. O mérito da antropologia é o de haver procurado precisar as causas dessa impressão que todo mundo mais ou menos sente à vista de certos semblantes, e esclarecer tal diagnóstico. Entretanto, aqui como na medicina, as melhores descrições não poderiam suprir o contato freqüente e múltiplo com os doentes, eu quero dizer, com os malfeitores. A necessidade de uma clínica criminal faz-se sentir, como complemento da Escola de Direito, para uso dos jovens que se destinem à justiça penal, e para quem é tão mínima a bagagem, como observa justamente Ferri, de haver aprofundado o Digesto[22], mesmo o Código Civil. A freqüência obrigatória às prisões, durante seis meses, lhes valeria dez anos de exercício. Estimo, com esse eminente escritor, que uma linha de demarcação quase intransponível deveria separar, por conseguinte, ambas as magistraturas: aquela que se nutre de crimes e aquela que vive de processos.

Após a publicação das linhas precedentes na Revue Philosophique, fui convidado por Lombroso a desenvolver a idéia aí sumariamente indicada, e fazê-la objeto de um relatório ao Congresso Internacional de Antropologia Criminal que se reuniu em Roma em novembro de 1885, e onde, diga-se casualmente, minha tese assim formulada deu o que discutir: “Os estudantes de Direito não seriam admitidos no curso de Direito Criminal, senão com a condição de se fazerem preliminarmente inscrever como membros de uma sociedade de patronagem de prisioneiros presidida por seu professor. Nessa qualidade, eles seriam obrigados, seja isoladamente, seja em grupo, a visitas hebdomadárias às prisões, sobretudo às prisões celulares, as mais próximas do local de seus estudos, e aprenderiam, dessa sorte, a conhecer os delinqüentes e os criminosos, ao mesmo tempo em que aprenderiam a praticar e a propagar um dos mais eficazes remédios contra o flagelo da reincidência. A utilidade seria tripla: para os estudantes, para os condenados e para o público”. Na minha ausência, Enrico Ferri fez-me o favor de emprestar amigavelmente seu talento oratório a essa proposição adotada por ele. Também, após uma viva discussão, o relatório final (publicado na Revue Scientifique de 9 de janeiro de 1886) recomendava aceitar essa idéia, malgrado as dificuldades que subleva, em aparência, sua aplicação.

Entretanto, observe-se, se colocarmos em paralelo as contribuições verdadeiramente fecundas, sejam práticas, sejam mesmo teóricas, que o criminalista deve à antropologia, com os ensinamentos de todo gênero que lhe fornece a estatística filosoficamente interpretada, dever-se-á confessar que, destas duas fontes que, – como diz novamente com razão Ferri, – a Nova Escola largamente explorou para reviver o Direito Penal, a segunda é muito mais abundante e mais esclarecida. Não se deve faltar em percebê-lo, se comparamos os Nuovi Orizzonti do estatístico que acabamos de citar com o Uomo delinquente[23].

 

03 — Caracteres psicológicos. Analogias com o selvagem, diferenciações do louco. Relatividade do crime, não da loucura. Fatos qualificados como crimes em diversas épocas. Responsabilidade do criminoso e não do louco. Por quê.

 

Chegamos às características psicológicas. A fraca aptidão para sofrer fisicamente que revela o criminoso, — explicação talvez de sua atitude mais fraca ainda para compadecer-se e para amar, e único fundamento de sua coragem, quando, por acaso, ele é corajoso, — não se deve em parte ao fato de ele ser recrutado, de ordinário, entre as classes iletradas, onde a mesma impassibilidade se observa, em menor grau, é verdade, como bem sabem os cirurgiões? É provável. Não é duvidoso, pois, que a cultura do espírito elevada a um certo grau tenha por efeito direto estender e aprofundar o campo das impressões dolorosas e simpáticas, logo, das afeições generosas. E, por aí, ela, a cultura do espírito, é certamente moralizadora, pois, apesar de tudo, a base da idéia moral, o mais sólido argumento e o mais convincente, — confessem-no, ó filósofos! — é a piedade, é a bondade, é o amor. Se, pois, ela parece ao contrário, segundo as induções tiradas da estatística criminal, e acompanha-se hoje de uma desmoralização sensível, é que, por qualquer uma de suas influências indiretas e momentâneas, ela deveu neutralizar, às vezes, sua ação primeira, por exemplo, em destruindo, em certos meios, algumas convicções ou alguns respeitos mais rapidamente do que os substituiu.

Existem aqui estranhezas. O criminoso mostra-se pouco sensível ao frio, mas muito sensível à eletricidade, à aplicação de metais e às variações meteorológicas. Ele é pouco afetado pela dor sofrida e é vivamente impressionado pelo medo de um perigo, tal como a vista de um punhal ou o anúncio de um interrogatório próximo. O difícil é encontrar sua corda sensível. Lombroso procurou-a com amor, pode-se dizer, com um amor científico, antropológico, que não perdeu nenhuma boa ocasião de medir e de cifrar. Medir todo o mensurável, com efeito, é tornar indiretamente mensurável aquilo que não o é diretamente. Não está aí o objetivo da ciência, como o objetivo da literatura é o de exprimir e o de sugerir aquilo que não se pode exprimir? Levar ao exagero, no que respeita ao homem, a primeira de suas necessidades é a tarefa do antropologista, tanto quanto do psiocofisiologista, enquanto nossos literatos e artistas realistas superexcitam o segundo. Cercar a realidade por todos os lados de uma vez, eis o objetivo comum. Nada há, pois, a desculpar em Lombroso no que sua ousadia possa ter de estranho. Complacentes patifes permitiram-lhe examinar e registrar, sobre pranchas ad hoc, com a ajuda do esfigmógrafo[24], a maneira pela qual batiam seus corações, sob a impressão de um elogio adulador a eles endereçado, de uma moeda de ouro ou de uma fotografia de donna nuda apresentada, de uma garrafa de vinho oferecida. Essas curvas são curiosas. Elas mostram o malfeitor essencialmente vaidoso, menos cúpido e menos galante que bêbado. A esfigmografia, aliás, não é a única a atestá-lo. A estatística testemunha que o progresso do alcoolismo é paralelo àquele da criminalidade. A observação direta dos criminosos prova que seu sonho não é a mulher precisamente, mas a orgia; que eles amam a orgia, a noce, como os príncipes amam uma grande caçada ou as mulheres, um grande baile. Mas, de suas conversas e suas ações, o que ressalta, sobretudo, é, além de sua insensibilidade e de sua imprevidência profundas, sua incomensurável vaidade. Daí seu ridículo amor pela toilette e pelas jóias e sua prodigalidade faustosa após o crime[25]. Nosso autor chega a pretender que “a vaidade dos delinqüentes ultrapassa aquela dos artistas, dos literatos e das mulheres galantes!” Reunamos aqui a vingança e a ferocidade, a alegria cínica, a paixão do jogo e, enfim, a preguiça que chega muitas vezes até a sujeira corporal. Isso não é tudo. Eu acrescentaria, de boa vontade, o gosto da mentira pela mentira.

“O criminoso assemelha-se, pois, bem mais, moralmente, ao selvagem que ao alienado”. O selvagem também é vingativo, cruel, jogador, bêbado e preguiçoso. Mas o louco, — Lombroso é forçado a reconhecer aqui, — distingue-se do malfeitor, por diferenças importantes, psicológicas tanto quanto anatômicas e fisiológicas. O louco não ama nem o jogo nem a orgia: ele toma horror a sua família, e o malfeitor ama freqüentemente a sua; ele procura a solidão, tanto quanto o malfeitor procura a sociedade de seus semelhantes; “e os complôs são tão raros nos hospitais de alienados quanto freqüentes nas prisões de forçados e presídios”.

Quanto à inteligência dos criminosos, ela é superficial. Eles não são inteligentes, mas astutos, diz Maudsley, em seu livro sobre o crime e a loucura. Cada um deles tem seus métodos, sempre os mesmos. Eles se repetem, esses especialistas do delito. São incapazes de inventar, mas são imitadores em muito alto grau. Ainda uma diferença em relação ao louco, de quem é próprio ser subtraído à influência dos exemplos ambientais e entrincheirar-se, por aí, da sociedade com seus semelhantes, enquanto bizarras combinações de idéias — que seriam invenções ou descobertas, caso fossem úteis ou verdadeiras — sulcam como fogos-fátuos sua noite mental. Também não devemos nos espantar que o minimum de criminalidade estatisticamente observada se encontre no mundo dos sábios. A loucura, com efeito, mais que o crime, é o obstáculo fatal dos espíritos muito cultivados, sábios, letrados ou artistas.

As diferenças morais que acabo de indicar entre o criminoso, mesmo incorrigível, e o louco são características ao meu sentir e, ainda que existam aí numerosos soi-disant criminosos que são verdadeiros loucos, – por exemplo, Guiteau[26], – eles evitam se confundir, em geral, uns com os outros[27]. Mas a questão merece ser examinada com mais cuidado. O louco, ser isolado, estranho a todos, estranho a ele mesmo, é por natureza um ser insociável, tanto quanto inconseqüente, e talvez um por conta do outro. Ele não é supra-social, de qualquer sorte, como o homem de gênio. Ele não é senão extra-social. O criminoso, ele, é anti-social e, por conseguinte, sociável até certo grau. Também ele tem suas associações, seus usos, sua linguagem própria, como veremos a seguir. Apenas ele é menos sociável do que deve, o que é suficiente, numa dada sociedade, para ser anti-social. Dois trens com velocidade desigual podem se chocar ainda que dirigidos para um mesmo sentido. Eis por que esses infelizes, — nos quais a conformação atávica lembra, por hipótese, ao menos numa certa medida, aquela dos selvagens primitivos, — são um perigo para nossa civilização, ainda que eles possam ser, — alguns, ao menos, — o ornamento e a elite moral de uma tribo de peles-vermelhas. Eles não seriam talvez todos criminosos então. Mais de um, sem qualquer dúvida, permaneceria ligado aos costumes e aos preconceitos de seu meio, mais apropriado ao seu temperamento. E não é isso que, em todos os tempos e em todos os países, se chama um ser honesto? Porque, — e isso nos leva a sinalar uma outra grande diferença despercebida entre a loucura e o crime, — o crime é coisa relativa e convencional de maneira totalmente diferente da loucura. Esse tipo criminal que Lombroso nos esboça é ele de nossa época ou de nossa era. Mas, que ele seja ou não uma sobrevivência dos tempos em que a selvageria cobria o globo, é claro que, nesse primitivo período histórico, o tipo criminal era outro, a saber, talvez um tipo de artista e de refinado, de mulheres sensuais e sensíveis, pessoas impróprias à pilhagem das tribos vizinhas e nascidas alguns séculos mais cedo.

Dos dez crimes que as leis hebraicas, de acordo com Thonissen, puniam com a lapidação (a saber, a idolatria, a excitação à idolatria, a consagração a Moloch, a magia, a evocação de espíritos, a desobediência obstinada aos pais, a profanação do sabá, a blasfêmia, a violação da noiva de outrem, a má conduta da jovem atestada pela ausência dos sinais de virgindade no momento de seu casamento), há nove que cessaram de ser delitos, mesmo em nossas sociedades européias, e o décimo, a saber, a violação da noiva de outrem, permanece crime, mas num sentido completamente diferente, porque a violência feita a uma mulher como tal é que punida agora, e não o ultraje feito àquele de quem a noiva foi violada. Outros crimes eram punidos pelo fogo, o gládio ou o estrangulamento: a falsa profecia, a profecia mesmo verdadeira feita em nome de deuses estrangeiros, o adultério da mulher, golpes ou maldições contra ascendentes, roubo em prejuízo de um israelita, homicídio voluntário, bestialidade, sodomia, incesto. Vê-se ainda que muitos desses crimes não são sequer contravenções, e que a gravidade relativa dos outros mudou muito. No Egito, o maior dos crimes era matar um gato. Significa isso que o povo hebreu, — assim como todos os povos antigos, — cometia um erro absurdo, qualificando como criminosos atos hoje julgados inofensivos? Não, porque não eram inofensivos. Longe disso. Em razão de sua organização social, eles sabiam os fundamentos. Tal organização social, tal criminalidade. No Egito, uma forte multa era infligida ao artista que se ocupasse de negócios públicos; em nossas sociedades democráticas, ao inverso, estar-se-ia bem perto de punir legalmente os eleitores que se abstivessem de votar. Tal fim, tal meio: a penalidade não é senão uma ferramenta. Esses povos não se enganavam em reputar virtuosos os sentimentos às vezes reprovados por nós. Porque o sistema das virtudes não é menos freqüentemente remanejado no curso da história que aquele dos crimes e dos vícios. Aos olhos dos árabes, as três virtudes cardeais são ainda, — não a probidade, o amor ao trabalho, a beneficência, — mas a coragem, a hospitalidade e o ardor em vingar o sangue.

Guardemos, sobretudo, o fato de que a gravidade proporcional dos diversos crimes muda consideravelmente de época para época[28]. Na Idade Média, o maior dos crimes era o sacrilégio. Depois vinham os atos de bestialidade ou de sodomia e, bem longe, a seguir, o homicídio e o roubo. No Egito, na Grécia, era o fato de deixar os pais sem sepultura. A preguiça tende a tornar-se, em nossas sociedades laboriosas, o mais grave delito, enquanto outrora o trabalho era degradante. Chegará talvez o momento em que o crime capital, sobre um globo cheio, será o de ter uma família numerosa, enquanto outrora a vergonha era ser sem filhos. Nenhum de nós pode se orgulhar de não ser um criminoso nato relativamente a um determinado estado social passado, futuro ou possível. Vós tendes gostos literários, uma grande tendência a fazer versos? Tomai cuidados. Versejar vai tornar-se um fenômeno de atavismo, um roubo de vossa jornada de trabalho cometido contra a comunidade, uma excitação criminosa, antimalthusiana, ao amor e à família. O fundador de ordens mendicantes e erradias alguma vez acreditou que a mendicidade e a vadiagem se tornariam delitos? Objetar-me-ão, no entanto, que existem instintos, tendências inatas ligadas a uma organização física correspondente que, em todos os estados sociais imagináveis, seriam julgados nocivos, anti-sociais, delituosos? Eu o nego. Admito apenas, — e isso não dá no mesmo se, ao menos, acreditar-se, como eu, na especificidade das tendências naturais, — que certos atos específicos têm sido, em todos os tempos, considerados como criminosos, notadamente, o fato de matar e de roubar uma pessoa do grupo social do qual se faz parte. Taylor observou-o muito bem. Aliás, mesmo a tendência à crueldade covarde ou à rapacidade astuciosa exercida fora desses limites, — exercida às vezes, também e por exceção, no interior desses limites, quando o costume[29] o permitia, — teve sua utilidade social. Logo, não vejo nenhum tipo antropológico que, em todos os tempos, haja merecido o epíteto de criminal.

Por conseguinte, é sempre permitido dizer de um criminoso — qualquer que ele seja — que, colocado em seu lugar, ele seria um homem honesto, talvez um herói. Mas todas as categorias de demência verdadeira que nós conhecemos foram verdadeiras loucuras, tanto no passado quanto no presente, ainda que, no passado, muitas dessas doenças cerebrais, como muitas das doenças corporais, tenham sido mal conhecidas, e que numerosas extáticas e feiticeiras, — umas rezando de joelhos, outras queimadas vivas, — tenham sido simples histéricas. Esses erros postos na sua conta não nos impedem de afirmar que os loucos reputados ou não reputados tais em seu tempo o fossem realmente, quando encontramos, em suas biografias, os sintomas manifestos de suas desordens orgânicas, o desacordo de suas sensações com a natureza exterior que não mudou. Mas sabemos bem, de um homem que matou ou roubou outrora, que não temos sempre o direito de vê-lo como um criminoso, pois que a criminalidade é uma relação, — não com a imutável natureza, — mas com a opinião e a legislação cambiantes do meio social.

Enfim, se nos colocarmos do ponto de vista de Lombroso, entre a loucura e o crime haveria precisamente a mesma diferença que entre a eloqüência e a poesia. Nasce-se criminoso, dizem-nos, mas se nos tornamos loucos, é certo. A loucura, com efeito, está sob a dependência de causas sociais, e vemo-la crescer regularmente em nosso século, na mesma proporção em que os progressos da instrução da vida urbana, da civilização particular da qual usufruímos. É o mesmo com o crime, aliás. Eu falo do crime habitual, da reincidência, cuja progressão afeta uma regularidade não menos assustadora. Se nos reportarmos, pois, à estatística, e se, por criminoso nato, entendermos qualquer reincidente (não é esta, aliás, a idéia de nosso autor), a assimilação do crime à loucura tornar-se-ia possível desse ponto de vista, senão plausível. Mas então não se deveria dizer que a hipótese do criminoso nato implica na constância quase uniforme da cifra de crimes que lhe são imputáveis, e felicitar-se, — em apoio a esta hipótese, — o haver descoberto, em decompondo os números anuais e sempre crescentes fornecidos pelos reincidentes, que o número de homicídios e de assassinatos permanece quase estacionário. Por aí, é verdade, os ladrões, cuja cifra aumenta sem cessar, se encontrariam excluídos da categoria dos delinqüentes de nascença. Em determinado trecho, levado pelo desejo de ver estatisticamente confirmada a existência destes últimos, o sábio criminalista comete o erro grosseiro de afirmar casualmente (página 594) “o retorno constante e periódico de um determinado número de delitos” em geral. Ora, de duas uma. Se esta constância numérica é ou foi real, seria bem uma confirmação estatística, talvez, da realidade do tipo criminal, tal como Lombroso o entende. Mas, ao mesmo tempo, seria um desmentido, dado pela estatística, à identificação do louco com o criminoso de nascença. Se, ao inverso, a criminalidade habitual, geralmente enraizada, traduz-se por cifras variáveis, o reincidente bem pode ser identificado ao louco, mas esta é uma prova de que o reincidente não é, — ou não é sempre, — um criminoso nato.

Lacassagne[30] confessa, mesmo professando as idéias de Lombroso, que os criminosos loucos constituem uma fraca exceção, mesmo entre os reincidentes. Mas ele identifica, ele também, a loucura criminal e o tipo criminal. Ora, tal confusão parece-me gratuita. O tipo criminal é congênito; a loucura criminal pode aparecer, como a outra, num homem portador do mais normal e honesto semblante, e jamais se provou que ela se produziria sempre entre indivíduos conformados criminalmente. Ao contrário, entre os criminosos natos e os loucos, sinalam-se freqüentemente diferenças muito nítidas de conformação. Lombroso, sentindo bem essas dificuldades, chama aos criminosos natos de semiloucos (matóides)[31]. Mas a semiloucura, — porque se pode bem designar assim a espécie de extravagância própria ao matóide, — é conforme ao semidelito ou à semifealdade: o mundo está cheio dela, a maioria é formada por eles. A loucura completa é que é a exceção, como a razão completa, que é seu par (e que se deve multiplicar, sem dúvida, no curso da civilização, para compensar simetricamente o crescimento numérico da demência). Esse estado nada tem que singularize, para dizer a verdade, o criminoso de nascença, do ponto de vista da responsabilidade social de seus atos, o que nos interessa, sobretudo. Responsabilidade, para um determinista, implica, — não em liberdade, — pois que ninguém é livre, nem o sábio nem o louco; mas em causalidade, identidade pessoal e prejuízo causado a outrem. É necessário, primeiro, que o acusado tenha desejado sua ação, que a haja querido ele próprio, não por conta de uma sugestão hipnótica, por exemplo; sem isso, ele não seria, social e psicologicamente, a causa. Tal condição já elimina muitos atos de loucura. Em segundo lugar, com igual prejuízo, o mais responsável dos dois agentes voluntários é aquele que menos mudou depois de sua falta, que é mais forçado a reconhecer-se o mesmo, seja porque decorreu um mínimo lapso de tempo (de onde a prescrição das ações), seja porque a onda de sua evolução interna foi mais lenta e menos irregular, menos tortuosa e mais calma. A unidade sistemática das idéias, a unidade hierárquica dos desejos, o liame estreito dessas duas unidades e sua fixidez são o mais alto grau de identidade pessoal que se pode atingir; ao contrário, a dispersão, a incoerência, a contradição dos objetivos e dos gostos, das afirmações e das paixões são uma contínua alienação da pessoa. O sábio é, pois, infinitamente mais responsável que o alienado, tão bem denominado. Mas, entre os semi-outros ou os semimesmos que preenchem o intervalo entre os dois, qual — o criminoso de ocasião ou o criminoso por temperamento — é o mais responsável? É o último, seguramente, que a cada instante, sente-se invariavelmente capaz de recomeçar aquilo que se lhe reprova, e não o primeiro, que saiu ou acredita haver saído de si mesmo cometendo o crime. (Acrescentemos, porém, que este é, ao mesmo tempo, o mais perigoso, o mais prejudicial). No momento em que comete seu crime, pois, o criminoso de ocasião, — aquele que não apresenta o registro anatômico e fisionômico do criminoso, — chegou bem mais perto da alienação mental que o delinqüente-tipo no momento em que comete o seu. Logo, não existe, parece, nenhuma razão para falar de loucura ou semiloucura a propósito deste último mais que do outro. A conseqüência é que, se, — dando seguimento a uma idéia, aliás, muito justa da nova escola, — destinarmos prisões e penalidades diferentes, não às diferentes categorias de crimes, mas às diferentes categorias de malfeitores, a expressão manicômio criminal (asilo de loucos criminosos) dada ao local de detenção dos criminosos mais empedernidos seria perfeitamente imprópria. E não está aí apenas uma questão de palavras...

Imagina-se fazer entrar o hábito teimoso do crime num compartimento da alienação mental criado expressamente sob o nome de loucura moral, onde, de resto, aplicar-se-iam também as observações acima. Mas, — como Garofalo[32] antes de admitir essa nova variedade de demência, na qual se ordenariam toda sorte de desordens cerebrais emprestadas, aliás, a todas as outras espécies de loucuras reconhecidas, e não tendo em comum senão o caráter único da ausência total ou parcial do senso moral, — eu espero que os alienistas se coloquem de acordo sobre esse ponto. Maudsley, é verdade, é afirmativo a esse respeito, e sua autoridade recomenda uma grande reserva. Além do mais, entre o louco moral — supostamente admitido, tal como procuram nos precisar, — e o delinqüente nato existem diferenças que Garofalo observou com razão, notadamente aquela que, com efeito, é capital: no louco, o próprio cumprimento do ato delituoso é o objetivo; no criminoso, não é senão o meio de obter uma vantagem, vantagem apreciada também pelo homem mais honesto do mundo. Ou, de preferência, para o louco, ele mesmo, o mal é o bem, se quisermos, um meio de prazer, pois que, como observa Maudsley (Patologia do Espírito, página 364), a execução do homicídio proporciona um verdadeiro alívio àquele que o comete em virtude de um impulso mórbido irresistível; mas é a natureza anormal desse prazer e o fato de não procurar outra coisa em cometendo o crime, que distingue o alienado do delinqüente. O delinqüente, é verdade, tem anomalias afetivas também, mas estas consistem em ser ele mais ou menos completamente desprovido de certas dores simpáticas, de certas repugnâncias que são bastante fortes entre as pessoas honestas, o suficiente para conter a tendência a certas ações. Uma coisa é a presença interna de uma atração mórbida que, mesmo sem provocação exterior, leva à ação; outra coisa é a ausência interna de uma repulsa que impeça ceder às tentações exteriores.

Não me é custoso admitir que a ausência de senso moral tem por causa uma certa conformação cerebral, assim como o daltonismo ou a afasia[33]. Mas, do mesmo modo que a afasia ou o daltonismo são enfermidades, e não uma espécie de loucura, estimo que a ausência de senso moral não faz de um homem um louco, ainda que faça dele um enfermo. Alegar-me-ão que esta distinção importa pouco e que não se saberia reprovar, a um homem privado de senso moral, o não haver sentido a imoralidade de uma ação cometida por ele, pela mesma razão pela qual não se saberia punir a um daltônico empregado numa estrada de ferro por não haver enxergado um mostrador vermelho e, por conseguinte, haver-se omitido de realizar um sinal, na falta do qual um descarrilamento teve lugar? Eu responderei que, do ponto de vista penal, quer dizer, social, a comparação não é admissível. O sentido da visão do vermelho é uma percepção puramente natural e, ainda que possa ser útil ou necessária ao cumprimento de certas funções sociais determinadas, sua abolição não torna um homem impróprio para a vida em sociedade. O erro foi haver-lhe confiado as funções das quais se tratam. Mas, único dentre todos os nossos sentidos, o senso moral tem uma origem exclusivamente social e, único, ele é, a todo o momento, necessário aos usos sociais. Logo, ainda que reconhecido daltônico, um homem pode ser mantido em sua classificação social, em seu grupo social; mas, reconhecido imoral de nascença, quer dizer, anti-social, ele deve ser colocado fora da lei social. É uma fera com face humana. Tal como um tigre fugitivo de sua jaula que passeie por nossas cidades, convém expulsá-lo, excomungá-lo socialmente. Ora, as prisões de forçados e as prisões comuns são justamente a expressão, única até aqui, desta maior ou menor excomunhão.

Sem dúvida, pode-se dizer que essa forma de excomunhão começa a ser superada, que ela, aqui, teria lugar para tornar-se perpétua, e não temporária, castigando sem desprezo, sem cólera, com uma gravidade calma de executor olímpico, o infeliz que fosse seu alvo. Mas como não é de se esperar nem de se desejar, por outras razões, que a maioria dos homens alcancem essa impassibilidade ideal, deve-se deixar, sem muitos remorsos, a infâmia da opinião ligar-se às condenações judiciais, quando elas castigam mesmo, seja um criminoso de nascença, seja um homem levado ao crime por uma imoralidade momentânea, suscetível de repetir-se. A menos que reergamos todos os criminosos, sem exceção, da degradação social que acompanha sua expulsão da sociedade, deve-se mantê-la em relação a todos os criminosos, de nascença ou de ocasião, pois, por ser momentânea, a imoralidade destes últimos não está menos relacionada às condições cerebrais que a determinam.

Eu diria, além disso, a Lombroso: há duas teses superpostas na terceira edição de vosso livro. A primeira, a antiga, é aquela do criminoso assimilado ao selvagem primitivo, do crime explicado pelo atavismo; vós rebateis então a hipótese do crime-loucura. Mas, desde então, cedendo, — dizei vós, a potentes razões, — adotais esta última explicação sem, aliás, abandonar as precedentes. Elas alternam-se em vosso trabalho e, dir-se-ia que, a vossos olhos, se fortificam mutuamente. Todavia, não são elas em parte contraditórias? A loucura é um fruto da civilização, da qual ela segue o progresso até certo ponto: ela é quase desconhecida entre as classes iletradas e, ainda mais, entre as populações de raças inferiores. Se, pois, o criminoso é um selvagem, ele não pode ser um louco, da mesma maneira que, se ele for um louco, não pode ser um selvagem. Entre essas duas teses, é necessário escolher, ou, — se entre elas criar-se um compromisso, falando de semiloucura (por que não também de pseudo-atavismo?), — deve-se saber que enfraquecemos e mutilamos uma pela outra[34].

Ora, a mais sedutora das duas não é a primeira? Ela é muito inteligível e conforme aos mais puros princípios darwinianos. Ela fornece uma resposta engenhosa ao menos a muitos problemas. Ela é otimista com isso, lisonjeira para a civilização, ou o crime não seria um resíduo, que diminui sem cessar, da selvageria antiga; e, se ela está em desacordo com a estatística criminal de nosso tempo, pode-se dizer que nosso retrocesso moral atual é um acidente efêmero, um redemoinho numa corrente. Além disso, ela se completa com felicidade pelo resultado de estudos muito novos e muito interessantes sobre a criminalidade infantil, da qual não teremos tempo de nos ocupar. Esta é uma idéia recebida pelos evolucionistas[35], e uma idéia assaz plausível: que a criança reproduz em parte o selvagem, por sua linguagem, sua imprevidência, suas paixões, seus traços mesmo. Deve-se acrescentar: por seus instintos criminais, se verdadeiramente o verdadeiro criminoso for o selvagem. Daí essas fórmulas: a criminalidade não é senão a infância prolongada, ou bem, não é senão a selvageria sobrevivente.

Agora, esse último ponto de vista, ele mesmo, deve ser acolhido? E em que medida merece sê-lo? E o melhor não seria talvez, – para escapar ao dilema acima, – ater-se à minha prudente tese de que o crime é tão simplesmente uma profissão, herança do passado, sem dúvida, e de um passado muito antigo, mas herança muito bem cultivada às vezes e aumentada pela civilização que a acolhe? Para responder a essa nova questão, convém estudar enfim o criminoso habitual sob seu aspecto sociológico, quer dizer, como membro de uma sociedade singular que tem seus costumes, dizem-nos, seus costumes e seu idioma.

 

04 — Caracteres sociológicos. Grandes associações de malfeitores: Camorra. Nenhuma similitude com as tribos selvagens. Tatuagem e gíria das prisões de forçados. Grafologia criminal.

 

Se quisermos compreender os estados embrionários, estudemos primeiro o estado adulto. Se quisermos ter uma justa idéia das pequenas associações de malfeitores, comecemos por estudar as grandes. A antiga Camorra que sevicia ainda em Nápoles, e da qual a máfia siciliana é sem dúvida um ramo destacado, é uma excelente amostra dessas últimas. Ela nos dispensará de examinar a Mão Negra andaluza, o niilismo russo, etc. “A camorra, – diz Laveleye em suas Cartas sobre a Itália[36], – é simplesmente a arte de alcançar seus fins através da intimidação ou, para dizer melhor, a organização da intimidação e a exploração da covardia humana. Ela explora essa tendência humana, como outras indústrias exploram a devassidão, a vaidade, o alcoolismo”. Vós encontrareis camorristas em toda parte, desde as vielas de Santa Lucia até, talvez, nas mais altas posições administrativas e políticas. Em Nápoles, vós tomais um coche, e eis aí que um camorrista recolhe uma moeda ao cocheiro. Em cada rua, encontram-se camorristas que subtraem a taxa do medo aos retalhistas”. Como alguém se torna camorrista? Da mesma maneira como se torna membro de um círculo, de uma loja maçônica, de um elenco teatral, de uma associação civil ou comercial qualquer: por uma eleição, e depois por uma prova regular seguida de um estágio mais ou menos longo, durante o qual o novo companheiro é um humilde servidor, bastante mal pago, de um societário. Um belo assassinato lhe vale, em assembléia geral, a honra de ser sagrado camorrista e de prestar, nessa qualidade, sobre duas espadas cruzadas, o juramento que eu chamaria de profissional: “Eu juro ser fiel aos associados e inimigo do governo, não entrar em relação com a polícia, não denunciar os ladrões, amá-los, ao contrário, com toda a minha alma, porque eles arriscam sua vida”. Todas as dificuldades interiores são resolvidas absolutamente como em nossas sociedades comerciais, através de reuniões e votações. Não existem apenas ritos e uniformes, mas um código especial – mal obedecido – é verdade. A condenação à morte é votada contra aquele que se recusa a executar um assassinato ordenado pelo chefe. Há funcionários. Todos os domingos, o secretário, assistido por um contador e um tesoureiro, faz a distribuição das taxas obtidas, como se sabe, do público, principalmente sobre as casas de jogos ou de tolerância e das prisões. “O camorrista, diz Lombroso, era (pode-se dizer que ele é ainda) o juiz natural das pessoas do povo. Ele mantinha a ordem nas espeluncas e prisões, protegendo, bem entendido, aquele que lhe havia pago a taxa”.

Não se deveria comparar o que precede a uma passagem de Diodoro da Sicília, que encontrou incrédulos? Este autor conta-nos que existia no Egito um chefe de ladrões; que a profissão do roubo era publicamente exercida, quase oficialmente, e que os roubados deviam pagar ao fisco do bando uma renda fixa para a restituição dos objetos subtraídos. Thonissen (Direito Criminal dos Povos Antigos, t. I, página 166) pensa que se tratava de um bando de árabes nômades e pilhantes, aos quais se pagava, sob a forma de assinatura, — como aquela que se pratica ainda com os beduínos da Síria, — um prêmio de seguro contra suas próprias rapinas. Mas não era tão simplesmente uma camorra egípcia? Isso é visto em todos os tempos, simplesmente em maior escala numa época mais recente. A camorra por excelência, — pode-se concordar com Taine, após havê-lo lido atentamente, — é a sociedade jacobina, polvo de mil braços que apertou, sufocou, explorou a Revolução. O fato é que, não fosse o catecismo estreito e falso, catecismo, enfim, todavia, desse covil de governantes, a assimilação seria perfeita[38].

Eis aquilo que estou no direito de nomear como a grande indústria criminal. Ela é rara, porque nossas condições sociais não são habitualmente favoráveis a esse gênero de grandes magazines, a menos que, – como se teria bem o direito, – classificássemos nessa categoria certas agências corrompidas pela chantagem, calúnia e falsos testemunhos em grande escala, das quais muitos processos retumbantes nos revelaram a existência. Mas, em revanche, contam-se inumeráveis pequenas quitandas do crime, por assim dizer, compostas de um patrão e de um ou dois aprendizes, de um velho reincidente e de alguns jovens gatunos. Lombroso observa muito justamente a esse respeito que o fervilhar, em uma cidade ou nação, de numerosos pequenos grupos de malfeitores, – reputados, aliás, pouco alarmantes, – é um grave sintoma, bem superior em gravidade à formação de alguns grandes bandos legendários dos quais a multidão se apavora. Estas últimas associações devem sua existência ao prestígio malfazejo de um único homem e podem desaparecer com ele; mas aquelas nascem em toda parte por sua vez e “revelam a triste tendência, a doença social do país em que elas surgem”. É assim que, para julgar até que ponto uma população é naturalmente industriosa e laboriosa, e a que gênero de trabalho a conduzem suas atitudes, é necessário ter em vista aqui a difusão espontânea da pequena indústria, por exemplo, da pequena cultura do solo, de preferência às maiores, e se ficará mais bem informado sobre esse assunto através do ruído das profissões de tecelão ou à vista dos estábulos de camponeses nas campanhas, do que pela visita a uma grande fazenda modelo ou a uma grande fábrica, talvez criadas por um estrangeiro.

Em suma, é a uma corporação industrial que se parecem as sociedades criminais; de modo algum a uma tribo de selvagens, sociedade essencialmente familiar e religiosa, onde se ingressa por herança e não por eleição, onde tudo é ídolo ou fetiche, é sagrado ou é tabu; que é muito mais freqüentemente pastoral e inofensiva que depredadora e guerreira, assim como tem, necessariamente, mais peças de caça que caçadores; que, às vezes, – e apelo a Spencer e a Wallace, – nos dá admiráveis modelos de virtude pública em probidade e veracidade, a ponto de fazer-nos enrubescer; e que, mesmo quando vive do banditismo, do homicídio e do roubo praticados sobre o inimigo, são comparáveis a uma armada permanente, se quisermos, mas não a um covil de assassinos. Em vão Lombroso nos faz observar que as associações de malfeitores têm todas um chefe “munido de um poder ditatorial que, como nas tribos selvagens, – acrescentamos nós: como nas nações mais civilizadas e mais democráticas, – depende mais de seus talentos pessoais que da turbulenta submissão de uma maioria”. Eu não encontro a similitude tão surpreendente. Parece-me mesmo que o hábito da tatuagem, comum a muitos malfeitores e a muitos não-civilizados, e a remota semelhança da gíria das prisões de forçados, em alguns aspectos, com as línguas oceânicas, americanas ou negras não são suficientes para justificar a comparação precedente. É o que vamos ver.

É um fato curioso que, em certas classes inferiores das populações civilizadas, entre os marujos e mesmo entre os soldados, mas, sobretudo, no mundo dos delinqüentes, – jamais entre os loucos, observe-se, – pratica-se, por exceção, o hábito de produzir incisões figuradas sobre a pele. Seria uma reminiscência conservada pelo atavismo, como quer Lombroso (digamos, em todo caso, pela tradição, porque a hereditariedade nada tem a ver aqui), da tatuagem que se supõe haver sido generalizada entre os nossos grosseiros ancestrais? Parece-me infinitamente mais provável admitir que é o efeito, não de uma tradição ancestral, mas de uma moda importada por marinheiros ou militares, a exemplo dos selvagens atuais com os quais eles contataram. Também é, sobretudo, entre os marujos que ela floresce e em nossos regimentos franceses residentes na África, em meio aos cabilas ou aos árabes. Essas populações, malgrado as proibições do Alcorão, não cessam de se tatuar (ver A Criminalidade entre os Árabes do Dr. Kocher[39], página 61 e seg.). A moda propagou-se entre os condenados mais rapidamente que alhures, graças à sua insensibilidade cutânea tão bem demonstrada por nosso sábio autor, e também por conta dos longos tédios da prisão. É entre os reincidentes, com efeito, que esta prática é mais difundida. Nove vezes sobre dez (sobre 506 tatuados, 489 vezes), os desenhos, os símbolos, as letras das quais se tratam estão traçadas no antebraço, lugar mais cômodo para o operador e para o operado. Jamais no rosto. Muito freqüentemente, é o retrato aproximativo da mulher amada ou são suas iniciais figuradas dessa sorte. Isso lembra os monogramas entrelaçados que os amorosos gravam sobre as árvores. Na falta de cascas de árvores, os prisioneiros utilizam sua pele. Outras vezes, o tatuado traz os sinais de sua profissão: uma âncora, um violino, uma bigorna ou ainda uma divisa onde seu ódio procura eternizar-se, às vezes, um falo... Tudo isso é puro divertimento ou paixão ociosa. É insignificante ou inútil. O malfeitor não procura produzir nenhum efeito, divertindo-se assim, desenhando figuras de fantasia sobre partes de seu corpo que ele esconde habitualmente[40]. Mas, quando o jovem da Oceania, ele, submete seu corpo inteiro e, em primeiro lugar, seu rosto, tudo quanto ele expõe à vista de todos, a uma cruel operação imposta pelos ritos de sua tribo, ele conhece o motivo sério que o determina e a vantagem séria pela qual anseia. Sua religião, seu costume, aquilo que há de mais sagrado ordenam-lhe essa coragem, para gelar de terror o inimigo, para tornar orgulhosas dele suas mulheres, para ser indelevelmente marcado à efígie de sua tribo[41]. Ele não reproduz, sobre ele mesmo, qualquer objeto exterior. Ele traça graciosos ou característicos arabescos que se harmonizam estranhamente, pelas linhas, às suas formas corporais. A pretensa tatuagem do malfeitor, ao contrário, consiste em imagens também estranhas à sua epiderme, que poderiam ser as inscrições de uma criança sobre o muro de um edifício. Ele é imitativo, não expressivo. O que pode ter em comum, salvo o nome, com a nobre tatuagem polinésia, por exemplo, que é uma verdadeira obra de arte encarnada no artista, como o perfeito desempenho de um ator?

Passemos à gíria. Ainda um caráter profissional bem marcado. Toda profissão antiga tem sua gíria particular. Há aquela dos soldados, dos marinheiros, dos pedreiros, dos caldeireiros, dos limpadores de chaminés, dos pintores, dos advogados mesmo[42], como há aquela dos assassinos e dos ladrões. Os loucos, entre parênteses, não a têm: nova importante diferença a notar en passant. Mas é a gíria uma linguagem especial? De forma alguma. Toda gramática da língua ordinária, quer dizer, aquilo que a constitui, aí está conservado sem alteração, diz Lombroso, ele mesmo. Uma pequena parte do dicionário somente é modificada. Essas modificações, eu reconheço, lembram vagamente o falar selvagem ou o falar infantil. Primeiro, os objetos são designados por epítetos, o bico de gás – o inconveniente; o advogado – o tintureiro; o boné – a corrente. Além disso, as onomatopéias abundam: tap, marcha; tic, relógio; fric-frac, a libertação da prisão. Enfim, muitas reduplicações: toc-toc, maníaco; ty-ty, tipografia; bi-bi, Bicêtre[43], coco, bébé, amigo. Por aí, o tipo lingüístico encontra-se certamente rebaixado em um ou dois graus, quase como o cogumelo que cresce sobre um carvalho, e que pertence a uma família botânica bem inferior àquela desta árvore majestosa[44]. Mas, no fundo, o caráter dominante da gíria é o cinismo. Ela não é material e concreta como as línguas primitivas. Ela é grosseira e bestial, e bestializa tudo aquilo que toca, traço perfeitamente de acordo, de resto, com o tipo físico daqueles que a falam. A pela chama-se couro; o braço, asa; a boca, bico; morrer, arrebentar[45]. A gíria é, antes de tudo, sinistramente alegre. Consiste em uma coleção de hediondos traços de espírito fixados e capitalizados, metáforas sujas, maus jogos de palavra, etc. Ter um polichinelo na gaveta, isto significa estar grávida[46]. Mas a língua do selvagem é totalmente diferente, sempre grave, mesmo em sua ferocidade, jamais irônica, jamais zombeteira, não procurando nunca sujar o objeto de seu pensamento, simples e rural em suas metáforas, abundante em formas gramaticais perfeitas e originais[47].

Acrescentarei enfim que a literatura dos criminosos, — da qual Lombroso nos fornece amostras muito interessantes, — em nada se parece àquela dos povos primitivos, tanto quanto um fruto arruinado não tem o sabor de fruto verde? Mas eu não abordo, por falta de tempo, esse curioso capítulo. Não direi também das observações grafológicas feitas sobre a escrita dos delinqüentes. Os assassinos, parece, assinalar-se-iam, – como em geral, de resto, todas as pessoas enérgicas, – pelo prolongamento nítido e acentuado da barra do t, pelo ar de enlaçamento livre e fácil de todas as suas letras, assim como pelas complexidades hieroglíficas de sua assinatura. Os ladrões reconhecer-se-iam pelo caráter frouxo, apagado, um pouco feminino de sua maneira de escrever. E, a esse respeito, como é bem possível que o leitor seja tentado a tomar os grafólogos por astrólogos ou quiromantes, farei observar que experiências recentes feitas na Salpêtrière sobre hipnotizados, cuja escrita se desnaturava cada vez que se lhe sugeria uma nova personalidade, confirmam, de modo surpreendente, certas leis formuladas nos tratados de grafologia. (Ver o relatório dessas experiências, com pranchas de apoio, na Revue Philosophique de abril de 1886).

 

05 — Tentativa de explicação. As mulheres têm o tipo criminal. Os tipos profissionais[48].

 

Em resumo, malgrado as semelhanças anatômicas e fisiológicas, mas não sociológicas, incontestáveis com o selvagem pré-histórico ou atual, o criminoso nato não é um selvagem, tanto quanto não é um louco. Ele é um monstro e, como muitos monstros, ele apresenta traços de regressão ao passado da raça ou da espécie, combinando-os, contudo, de modo diferente. É necessário guardar-se de julgar nossos ancestrais de acordo com essa amostra. Que nossos ancestrais, – como nós mesmos, povos civilizados, – devemos ter sido, primitivamente, verdadeiros selvagens, eu não contesto, ainda que os mais antigos documentos os mostrem, no estado de simples barbárie, com as mesmas formas corporais que nós, mais belas apenas. Mas existem bons selvagens. Wallace, Darwin, Spencer, Quatrefages nos fazem amá-los, e, ainda quando, entre os selvagens atuais, os bons representassem uma ínfima minoria, – o que não é caso, – ser-nos-ia menos permitido conjeturar com verossimilhança que nossos primeiros pais fossem do pequeno número destes últimos.

Seremos levados a pensar, quer dizer, a supor, que não nascemos, em média, com aptidões mais morais que aquelas de nossos ancestrais, se observarmos que o progresso moral das sociedades em via de se civilizarem é muito mais lento e mais duvidoso que seu progresso intelectual e, quando ele é real, consiste, de preferência, em uma transformação socialmente vantajosa da imoralidade, que em uma verdadeira moralização individual. Aliás, à medida que os efeitos verdadeiramente moralizadores da crescente socialização começam a penetrar até o sangue das nações ou das classes mais civilizadas, ou seja, há longo tempo reinantes, estas nações ou estas classes não tardam em ser recobertas e reabsorvidas pela fecundidade sempre superior das classes, senão das nações, inferiores. Tais são os efeitos morais da seleção natural aplicada às nossas sociedades. A melhora moral não tem tempo de fazer trabalhar a hereditariedade a seu favor e de aí se consolidar em instintos profundos e indestrutíveis atestados por uma refundição do crânio e dos traços. Por conseguinte, o bem que aqui se opera, e mesmo se desenvolve, deve-se a causas muito mais sociais que vitais, deve-se a uma ação prolongada, pacífica, sedimentar da educação e do exemplo, dos quais, infelizmente, o jorro brusco dos fatos políticos ou militares rompe as camadas cada instante. Que se reflita na utilidade, eu chegaria a dizer na necessidade da mentira, da perfídia, da dureza de coração para se vencer numa eleição, num campo de batalha, num congresso de diplomatas!

Tal não significa que eu conteste a aparição, por atavismo, por ricochete hereditário a grande distância, de caracteres ou de alguns caracteres próprios ao delinqüente nato. É necessário que a vida retire de alguma parte os elementos de monstruosidades acidentais que lhe escapam. E de onde os tomaria ela, a não ser da memória de suas passadas composições, a menos que não seja do tesouro, raramente aberto, de sua imaginação criadora, aquilo que ela faz quando engendra um gênio, não quando excreta um monstro, um criminoso ou um louco? Mas aquilo que eu contesto é que a delituosidade do criminoso nato se explique por aí. É assim que as mulheres apresentariam também, com o criminoso de nascença, similitudes surpreendentes, o que não as impede de serem quatro vezes menos dadas ao crime que os homens, e eu poderia acrescentar quatro vezes mais levadas ao bem. “Sobre as sessenta recompensas estipuladas em 1880 pela comissão do prêmio Montyon, 47 foram merecidas por mulheres”[49]. Elas são mais prognatas que os homens (Topinard), elas têm o crânio menos volumoso e o cérebro menos pesado, ainda que com altura igual, e suas formas cerebrais têm alguma coisa de infantil e de embrionário; elas são menos destras, mais freqüentemente canhotas ou ambidestras; elas têm, se é permitido dizer, o pé mais chato e menos arqueado; enfim, elas são mais fracas de músculos e também tão completamente imberbes quanto têm abundante a cabeleira. Tantos traços comuns com nossos malfeitores. E não é tudo. Mesma imprevidência nelas, mesma vaidade, dois caracteres que Ferri sinala, com razão, como dominantes entre os criminosos. D’outra parte, mesma esterilidade de invenção, mesma tendência à imitação, mesma volubilidade de espírito que simula, erroneamente, a imaginação, mesma tenacidade flexível de um querer estreito... Mas a mulher, em revanche, é eminentemente boa e devotada. Essa única diferença bastaria para contrabalançar todas as analogias precedentes. Além do mais, ela é ligada à sua tradição familiar, à sua religião e aos seus costumes nacionais, é respeitosa da opinião. Aqui também ela se afasta profundamente do criminoso, malgrado algumas superstições às vezes sobreviventes neste. Nisso, ao contrário, ela se aproxima do selvagem, do bom selvagem, ao qual, com efeito, ela se parece bem mais do que o criminoso. Nós não devemos nos surpreender, tendo aprendido com os naturalistas, até que ponto o antigo modelo da raça é sempre fielmente guardado pelo sexo feminino, e sabendo, aliás, que a civilização é coisa essencialmente masculina por suas causas e por seus resultados. Por suas causas, pois que as invenções das quais ela se compõe têm quase todas por autores os homens; por seus resultados, pois que ela tem visivelmente por efeito aumentar, em proveito do homem, a distância entre os dois sexos. Logo, se quiserdes fazer uma idéia de nossos primeiros pais, é a mulher – e não o assassino ou o ladrão habitual – que nós devemos olhar. Nela, como num espelho vago e embelezador, mas não muito infiel talvez, nós encontraremos a imagem apaixonada e vida, inquietante e graciosa, perigosa e ingênua, da humanidade primitiva. Mais precisamente, aquilo que faz seu encanto e mesmo sua inocência, aquilo que ela tem de melhor moralmente não é o sabor de fruto selvagem que nela persiste, a despeito de toda cultura, após todos os atestados de capacidade simples ou superior? Não nos apressemos, pois, em decidir, sem um exame mais amplo, que nossos crimes nos vêm de nossos ancestrais, e que nossas virtudes unicamente nos pertencem[50].

Minhas críticas não se baseiam, vê-se, senão sobre a interpretação dada por Lombroso aos caracteres físicos ou outros tão freqüentemente apresentados pelos malfeitores. Tais críticas, em nada abalam a realidade do tipo criminal. Apenas resta-nos explicar, por nossa vez, o que entendemos por isso. Tratemos, pois, de classificar este tipo entre outras entidades de mesmo nome que elabora ou coleciona o antropologista, este ontologista sem o saber. Pode-se, parece-me, distinguir dois sentidos da palavra tipo. Como exemplo do primeiro, pode-se citar o Homem americano de Orbigny, assim como, a exemplo do segundo, o Homem delinqüente. Pelo primeiro, entendemos o conjunto de caracteres que distinguem cada raça humana ou cada variedade e subvariedade nacional de uma mesma raça; assim diz-se o tipo inglês ou alemão, o tipo espanhol, italiano ou francês, o tipo judeu ou árabe. Quer isso dizer que estes diversos traços distintivos se encontram sempre entre os nacionais dos diversos povos de que se trata? Não. Vistos em conjunto, eles são raros; em estado fragmentário, são muito freqüentes. Mas não está aí uma objeção séria contra a verdade dos esquemas formados dessa sorte nem contra a realidade de seu objeto. Verdade abstrata, realidade profunda que consiste na tendência mais ou menos manifesta, mais ou menos enérgica da raça ou da variedade em questão entregue a ela mesma, se nenhum cruzamento a entravar, a propagar, de preferência pela hereditariedade, o grupo total de caracteres que se diz lhe serem próprios, a torná-lo cada vez mais freqüente e, enfim, exclusivo sobre qualquer outro, como se ela não encontrasse senão aí seu equilíbrio estável, estável momentaneamente.

É num sentido totalmente diferente daquele que se diz o tipo do pescador, do caçador, do camponês, do marinheiro, do soldado, do jurista, do poeta. Esta nova acepção do mesmo termo é, por assim dizer, transversal, perpendicular à primeira. Do mesmo modo como, viajando, se reconhece um inglês, um árabe, um chinês como tais, seja qual for a profissão ou a raça a que pertençam, da mesma maneira, de um lado a outro a Europa ou do mundo, não se reconhece um camponês, um militar, um padre como tais, qualquer que seja sua raça ou sua nacionalidade? Essa impressão, em geral, é confusa e não se a analisa, mas o exemplo de Lombroso e de seus colegas, que resta a seguir, mostra que ela é suscetível de um grau imprevisto de precisão anátomo-fisiológica. E é necessário que não se nos enganemos sobre o alcance de meu pensamento, sobre a profundidade das semelhanças que constituem, eu creio, os tipos profissionais ou sociais reconhecíveis, quase os mesmos, através de raças freqüentemente as mais diversas. Eu não me limito a dizer que existem aqui hábitos musculares ou nervosos idênticos, natos (por imitação) da rotina de uma mesma profissão e capitalizados, por assim dizer, em traços físicos inatos. Estou persuadido, além disso, de que certos caracteres anatômicos trazidos no nascimento, de ordem exclusivamente vital, e de modo algum social, em suas causas, formados pela geração apenas, e onde a imitação não entra em nada, fazem parte também do assinalamento médio próprio à cada grande profissão, senão à cada grande classe social. Não é sem razão que se diz de um homem que ele possui o físico de seu emprego, que ele tem a figura de um militar, de um magistrado, de um membro do clero. Eis para o semblante. Mas por que não seria o mesmo para o corpo? Se tomássemos, sobre centenas ou milhares de juízes, de advogados, de trabalhadores, de músicos escolhidos ao acaso e em diversos países, uma série de medidas e de experiências craniométricas, algométricas, esfigmográficas, grafológicas, fotográficas, etc., experiências análogas àquelas de Lombroso sobre centenas ou milhares de criminosos, é extremamente provável que chegaríamos a constatar fatos não menos surpreendentes, a saber, por exemplo, que os advogados em geral, principalmente os advogados notáveis, os advogados natos, de qualquer sorte, – contrabalançando aos criminosos natos, e nascidos para defender estes últimos, – têm, em média, a estatura, o peso, a capacidade craniana superiores ou inferiores em tantos centímetros, em tantos gramas, em tantos milímetros cúbicos à estatura, ao peso, à capacidade craniana da média dos demais homens pertencentes à mesma raça e ao mesmo sexo. Descobrir-se-ia, ainda, que, entre os obreiros entregues a tal profissão, e nesta sendo vencedores, a proporção de canhotos ou de ambidestros difere da proporção ordinária, e que a diferença pode ser expressa em cifras; que sua sensibilidade à dor, ao frio, à luz e às variações elétricas têm um grau próprio, geral e permanente até certo ponto; que eles são mais impressionados pela vista de uma boa garrafa de vinho do que por aquela de uma bela mulher, ou vice-versa, assim como resultaria dos batimentos comparados de seu pulso registrados pelo esfigmógrafo, e assim, por conseguinte, até às nuanças intelectuais e morais mais fugidias[51].

Eu prevejo, vê-se, os resultados que provavelmente daria uma vasta coleção de estudos antropológicos conduzidos segundo o método dos sábios criminalistas dos quais eu falo, e aplicados a todas as profissões, como se os aplica ao metier do crime. Mas o que há de mais natural que esta suposição? Por que a carreira criminal teria unicamente esse privilégio de possuir um físico característico, do qual as demais carreiras seriam desprovidas? Ao contrário, tem-se o direito de pensar, a priori, que o assinalamento antropológico daquelas deve ser mais acentuado, porque a primeira se recruta um pouco em toda parte, mais indiferentemente que as outras, e exige aptidões muito mais especiais. E, pois, se o leitor julga que o retrato genérico “a Galton”, dado por Lombroso ao homem delinqüente é suficientemente nítido e preciso, ele deverá presumir, a fortiori, que um retrato genérico assim vivo do homem pescador, do homem caçador, do homem lavrador, do homem comerciante, etc. é possível e aguarda seu fotógrafo. Vê-se o interesse inesperado desse grosso volume sobrecarregado de cifras assaz mal organizadas e de repulsivos documentos humanos.

Se Lombroso, colocando-se desse ponto de vista, houvesse imaginado que o seu tipo criminal, apesar de tudo, não é senão um tipo profissional de uma espécie singular e singularmente antiga, ele teria talvez, com menor freqüência, oposto seu homem delinqüente ao homem normal, como se os caracteres físicos distintivos do primeiro realizassem um fenômeno à parte no seio da humanidade honesta, suposta homogênea. Ele teria escolhido, talvez, termos de comparação mais precisos e mais vantajosos, mais apropriados a fazer sobressair as singularidades da variedade antropológica, digamos melhor, variedade sociológica que ele descobriu. Eu bem gostaria de ver o homem delinqüente oposto ao homem sábio, ao homem religioso, ao homem artista. Estou curioso, sobretudo, de vê-lo comparado ao homem virtuoso, e aprender se este é antípoda do delinqüente no físico e no moral, se, por exemplo, as pessoas que obtém o prêmio Monthyon a cada ano têm, na maioria, a cabeça alongada de preferência à redonda, os braços curtos de preferência a compridos, a fronte descoberta, a orelha retraída, o maxilar frágil, ao mesmo tempo em que a sensibilidade à dor notavelmente viva e não obtusa, e o pulso mais acelerado por uma imagem de amor que por uma perspectiva de embriaguez... e se, sob todas essas analogias, elas se afastariam tanto quanto os malfeitores da média dos homens civilizados, porém em sentido inverso.

Lombroso defende-se muito mal contra a objeção que lhe é feita: “Como podeis falar de tipo criminal, quando, de acordo com vós mesmos, sessenta criminosos em cem não apresentam os caracteres?” Ele responde simplesmente que a fraca proporção de italianos que apresentam o tipo de sua raça não dá a ninguém o direito de negar o tipo italiano, ainda menos que o tipo mongol, etc... Haveria muito a dizer contra essa confusão dos dois sentidos da palavra tipo distinguidos por nós. Todavia, de nosso ponto de vista, ele poderia ter respondido a seus adversários: não apenas não é verdade que minhas pesquisas sejam sem um sério alcance, porque elas chegaram ao resultado que vós conheceis, como elas são duplamente instrutivas. Com efeito, malgrado a inconstância do tipo criminal entre os malfeitores, ele não é menos real no sentido acima explicado. Além disso, o grau de sua freqüência, medido pelas cifras proporcionais que tive o cuidado de apresentar, revelam – ou contribuem de sua parte para revelar – o nível de nosso estado social e altura ainda a atingir. Nas sociedades de castas fechadas, onde não é por imitação pura e simples, mas forçada, sujeita à geração, que se transmitem as diversas profissões, – agricultura, comércio, armas, sacerdócio, – é certo que o tipo profissional teria poucas chances de reproduzir-se freqüentemente entre as pessoas consagradas à profissão correspondente; e esta freqüência deveu crescer à medida em que, com o princípio social puro a liberar-se da vida, as castas se fossem substituindo por corporações, depois administrações livremente recrutadas e mesmo, especialmente, por clérigos casados, por clérigos celibatários. O tipo jesuíta, por exemplo, é bem mais difundido e mais permanente entre os padres da Companhia de Jesus do que o seria, caso esta ordem célebre, – como aquela dos brâmanes, – se propagasse por filiação natural. O ideal seria, na direção onde correm nossas sociedades desde a era moderna, que nenhuma barreira artificial se opusesse ao melhor emprego possível das vocações individuais. Então, em cada profissão, não haveria senão pessoas natas e, até certo ponto, conformadas para ela. Substituídos assim os tipos étnicos que perderiam a cada dia sua importância, os tipos profissionais tornar-se-iam a classificação superior da humanidade. De sorte que, após haver atuado a serviço do princípio vital da geração e da hereditariedade ao tempo das castas, o princípio social da aprendizagem e da imitação subordiná-lo-ia, como convém. Seria o mesmo naquela profissão que consiste em viver às expensas de todas as outras, sem nada dar em troca. O criminoso nato dos novos criminalistas é, pois, o criminoso único de amanhã, reincidente endurecido e indomável. Ele já emerge do fluxo crescente das estatísticas criminais, como o monstro a derrotar, como a escória a repelir, como a única das conformações físicas e psicológicas que se recusa absolutamente à assimilação social, – atualmente ao menos, – e da qual a eliminação se impõe. Por aí, aparece-nos sua importância e o interesse de curiosidade, senão de simpatia, que se liga à sua descrição exata e completa[52].

 

06 — Atenuação possível do vírus criminal no amanhã.

 

Talvez houvesse, no entanto, uma conclusão mais consoladora a destacar do que precede. Classificado como viemos de fazer, deixa-nos o tipo criminal supor sua natureza relativa e, quem sabe, passageira? Se, com efeito, há quarenta ou cinqüenta anos, houvéssemos submetido os empregados das companhias de transporte ou dos telégrafos aéreos, ou de qualquer outra administração desaparecida, às experiências e observações de Lombroso, encontrar-se-ia um tipo físico especial a cada uma das profissões, no sentido que sua presença deveria ser reconhecida mais freqüentemente que em nenhuma outra parte, aliás. Logo, ter-se-ia, numa certa medida, o direito de dizer que existiriam condutores natos de diligências, por exemplo. Isso não impediu que, no dia em que a locomotiva e o telégrafo elétrico foram inventados e difundidos, os veículos e os telégrafos incômodos de outrora cessassem de ser fabricados. Eu não quero insinuar por aí que seria também fácil, mediante algumas novas descobertas, suprimir, substituindo vantajosamente, a carreira do crime. A esperança, todavia, não é completamente quimérica, como veremos talvez. É-nos suficiente dizer, no momento, que a suposição da qual partimos acima, – aquela das vocações naturais para certos modos particulares de atividade social, – demanda ser retificada ou precisada. A natureza, diversificando seus próprios temas, não tem de modo algum em vista seu emprego possível pela sociedade. Também não existem predestinações verdadeiramente naturais, senão em sentido muito amplo, onde muitas profissões podem ser compreendidas indiferentemente. Em suas profundas pesquisas sobre a hereditariedade e a seleção natural, Alphonse de Candolle fez esta observação a propósito das aptidões científicas. E, certamente, se ela é verdadeira para estas, com maior razão deve sê-lo para a maior parte das outras. “O homem dotado, diz ele, de uma forte dose de perseverança, de atenção, de julgamento, sem muitos déficits de outras faculdades, será jurisconsulto, historiador, erudito, naturalista, químico, geólogo ou médico, segundo sua vontade determinada por uma multidão de circunstâncias... Eu acredito pouco na necessidade de vocações inatas e imperiosas para objetivos especiais, exceto, provavelmente, para as matemáticas. Isto não é, como se vê, negar a influência da hereditariedade; é considerá-la como qualquer coisa de geral, compatível com a liberdade do indivíduo”[53]. Talvez Candolle tenha exagerado aqui a indeterminação das faculdades inatas. Ele parece esquecer que, entre todos os modos de atividades experimentadas ou observadas por nós, é sempre um, e quase sempre um único, que fixa nossa preferência; e como, à medida que nosso campo de tentativas preliminares se estende pelo progresso das comunicações, aproximamo-nos do momento em que ele abrangerá o inteiro domínio das carreiras existentes numa época dada. Isso equivale a dizer que existe sempre – ou quase sempre, – a cada instante da História, uma carreira precisa, uma única, naturalmente correspondente à cada variedade individual, e exclusivamente atraente, se nada se opuser à sua escolha. Nada mais falta para explicar a freqüente presença dessa variedade ou de uma variedade vizinha entre as pessoas entregues a essa carreira, e a estatística, assinalando tal freqüência, não fará senão revelar, segundo seu costume, a ação de uma causa constante em meio a causas variáveis, a saber, uma influência permanente de ordem natural mesclada a influências múltiplas e multiformes de ordem social que levam à adoção do caminho de que se trata. A realidade do tipo assim esclarecida é, pois, certa. Mas, ao mesmo tempo, não é mais necessário, vê-se, senão a passagem de um estado social para outro, quer dizer, uma mudança sobrevinda no número, na natureza e nas vantagens ou nos riscos relativos às diversas profissões, para desviar sensivelmente a linha de todas as vocações, mesmo as mais decididas. Logo, não é permitido afirmar que tal homem, – hoje fatalmente devotado ao crime, – o foi sempre e sempre o será, porque é um criminoso de nascença. Ninguém, salvo alguns monomaníacos[54] incendiários ou homicidas, ou alguns cleptomaníacos, – que se nos devemos guardar de confundir com os criminosos natos, – ninguém nasce expressamente para matar, incendiar, violar e roubar seu próximo. Se existissem antropologistas na Atenas de Alcebíades, não lhes teria sido difícil esboçar os lineamentos típicos do pederasta nato, daquele que um impulso orgânico e irresistível parecia precipitar, desde o berço, nessa aberração nacional do instinto sexual. Eles não eram nada raros, os atenienses devotados a esse hábito enraizado, como nossos reincidentes àquele do roubo ou do assassinato. Sabemos, entretanto, que esse vício vergonhoso, antes de tornar-se uma tradição, – eu diria uma tradição ática, – começou por ser uma moda importada de fora, que acabou por ir como chegou. Assim, pois, não é necessário muito se apressar para explicar fisiologicamente aquilo que talvez tenha uma explicação, em grande parte, social.

A ver-se a História da Revolução, por Taine[55], o paroxismo da criminalidade, por sua vez violenta e cúpida, atingido por certos terroristas, – Carrier, Lebon e outros, – levar-nos-ia a tomá-los por criminosos natos da melhor água, ainda que a influência ambiente fosse seguramente suficiente para explicar todas as suas ações, como o resto de suas existências provou-o muitas vezes. Todavia, sua fase tenebrosa foi de tal intensidade que assombraria Lacenaire ou comoveria um fijiano[56], por exemplo, a execução, sob os olhos de Carrier, de uma criança de treze anos que “já amarrada sobre a prancha, mas demasiado pequena, e não tendo sob a lâmina da guilhotina mais que o vértice da cabeça, disse ao executor: “Tu me farás muito mal”. Outro exemplo. Conhecem-se os ritos cruéis dos antigos astecas: seus sacrifícios humanos aos milhares, seus ídolos manchados do sangue de suas vítimas, suas contínuas efusões de sangue no templo e a domicílio como hábitos de vida. Muito bem, o índio, que descende diretamente desse povo é, segundo Biart (Os Astecas, p. 164), o mais doce, o mais inofensivo, o menos feroz dos homens. Os costumes de seus ancestrais não eram, pois, um efeito da raça que não mudou, mas um produto de suas crenças religiosas, fortuitas em parte, que poderiam ser diferentes, pois que mudaram desde então.

Ferri, ele mesmo, fornece-nos uma consideração em apoio à nossa idéia. Para responder à objeção de que o tipo criminal caracteriza-se, – bem raramente, é verdade, – entre as pessoas honestas ou, ao menos, sem condenação judicial, ele observa com razão que a criminalidade nata pode permanecer latente, e que os criminosos natos, aos quais faltou a ocasião de cometer um crime, emparelham-se aos criminosos de ocasião, que não nasceram para o crime. “Em indivíduos de classes elevadas, diz ele ainda, os instintos criminais podem ser abafados pelo meio (riqueza, poder, maior influência da opinião pública). Os instintos criminosos dissimulam-se sob formas veladas, evitando o código penal. Em lugar de matar com o punhal, conduz-se a vítima a empreendimentos perigosos; em lugar de roubar na via pública, trapaceia-se na Bolsa; em lugar de violar, seduz-se e abandona-se a vítima...” O próprio Lombroso não fala de outro modo. A propósito de associações de malfeitores: Não nos diz que elas diminuem num país civilizado, “mas transformam-se em equívocas associações políticas ou comerciais”? Quantas sociedades anônimas, quantas agências, quantos comitês que são coleções de bandidos, porém de bandidos mitigados pela cultura! O sábio professor compraz-se em assimilar as cortesãs aos delinqüentes e a ver, nas casas de tolerância, o equivalente feminino das casas de correção. Seja. Muito bem. Entre essas reclusas de um gênero à parte, ser-lhe-ia fácil estabelecer também duas categorias bem destacadas, seguramente mais nítidas que as duas categorias correspondentes do mundo criminal, a saber, as prostitutas de ocasião e as prostitutas natas. Todavia, estas mesmas que um temperamento especial, o mais especial certamente, e o mais imperioso de todos os temperamentos, parece predestinar às espeluncas: Teriam elas alguma vez aí penetrado na ausência das condições ou dos encontros sociais que aí as levaram na realidade? Não. Mais felizes, casadas, e permanecendo o que se chama honestas, elas poderiam ser, sem que o diabo aí perdesse coisa alguma, lojistas bem afreguesadas, mulheres ditas volúveis ou coquetes, ou encantadoras, – cujo salão não esvaziaria, – ou ainda belas artistas. Indicamos assim o caminho ou os múltiplos caminhos pelos quais a atenuação do vírus criminal, por assim dizer, pode ser obtida com o tempo. Esta atenuação, completamente análoga àquela da qual se ocupou Pasteur, comporta uma série de fases graduais. O roubo, abortado, torna-se estelionato ou abuso de confiança, depois especulação na Bolsa ou espoliação do adversário, colorida no nome de medida política, do que se chama habilidade; o homicídio, abortado, torna-se duelo desleal, depois calúnia ruinosa ou denúncia mortal, enfim, energia, insolência e sangue-frio. À força de diluir-se, pois, o vírus acaba freqüentemente por tornar-se um fermento útil, e não seria difícil, com efeito, descobrir, no fundo das mais fecundas coisas sociais e das mais civilizadoras, a ambição, a cupidez, a galanteria, a coragem, a seiva e o sabor dos instintos selvagens lentamente suavizados. Enfim, em seu tão interessante capítulo sobre a criminalidade das crianças, Lombroso observa quanto os instintos criminosos são freqüentes nessa idade, mas com quanta facilidade eles desaparecem, em grande parte, sob a influência de uma boa educação[57], acrescente-se, de uma boa chance. Todavia, se a criança é mal educada e infeliz, eles persistem no adulto, e, neste caso, pode-se continuar a chamá-los natos, porque de fato o são. Mas essa persistência, devida ao meio social, não equivale à sua aquisição social? Mudai as condições, – se possível, – da sociedade, muito de preferência a mudar seu sistema penal, e sua criminalidade modificar-se-á. Sobre tal convicção fortemente motivada (Nouvi Orizzonti, 3a. edição, pág. 345 e seg.) repousa, no fundo, a teoria de Ferri sobre os Sostitutivi Penali, sobre os equivalentes da pena, o que equivale a dizer sobre os equivalentes do crime.

Não é, pois, verdadeiro que o crime, mesmo reduzido a um mínimo numérico dito irredutível e assinalável de antemão, haja sido colocado desde a origem, – a maneira do amor, para falar com um coro antigo, – “entre as forças eternas e divinas que movem este mundo”. Sua origem é histórica antes de tudo; sua explicação é, antes de tudo, social. Mas, esperando que ele desapareça um dia, as variedades da natureza humana, das quais ele se alimenta hoje e que, reunidas, compõe seu tipo, não desaparecerão por isso. Elas serão dispersas e repartidas entre outros tipos. Esperando, – e eu receio muito que a espera seja longa, – o tipo que elas formam nada perde de sua realidade, porque sua permanência indestrutível deve ser reputada muito contestável.


 

Capítulo Segundo

A Estatística
Criminal do Último Meio-Século

 

De ordinário, os volumes anuais de estatística enviados aos tribunais pelo Ministério da Justiça amortalham-se nos cantos dos cartórios e dos parquets. Não se deu o mesmo, nós muito o esperamos, com aqueles que, relativos ao ano de 1880 especialmente, foram precedidos de um relatório sobre a estatística comparada do último meio século, com tabelas, mapas e curvas gráficas a apoiá-los. Esse incomparável documento, já unanimemente louvado pelos criminalistas e moralistas do mundo inteiro, e devido ao nosso eminente estatístico Yvernès, tem respondido plenamente às esperanças que fizeram nascer, há mais de quarenta anos, os primeiros volumes dos Relatórios da justiça criminal e civil. Cournot[58], o penetrante crítico, escrevia nessa data distante que “chegar-se-á um dia a uma porção de documentos preciosos para o aperfeiçoamento da legislação e o estudo da sociedade, sob suas relações morais e civis” (Memoire sur les Applications du Calcul des Chances à la Statistique Judiciaire). Ele não se enganava. Sem a estatística anual, notadamente: não é certo que o foco da infecção criminal de nossa sociedade, a classe dos reincidentes, não fosse senão suspeitada, e não indicada a dedo, e não assinalada à preocupação dos governos? Mas esse não é o único serviço nem, sobretudo, o único ensinamento, – como se verá, – do qual somos devedores a essa fotografia numérica de nosso estado social.

O otimismo geralmente passa por uma virtude oficial, virtude que parece faltar absolutamente ao autor do relatório do qual se trata. Ele nos ensina, num tom alarmante, tristes verdades. E existe nisso ainda mais lugar para louvá-lo, quanto suas revelações arriscam-se a servir de argumento a declarações políticas. Porque a ação dos eventos políticos sobre a criminalidade não é duvidosa: olhai a curva dos negócios correcionais desde 1835, – sorte de perfil de montanha em via de sublevação brusca após certas datas, – e dizei se, diante dessa silhueta, não é escusável tecer algumas considerações maliciosas[59]. Mas isso seria perder de vista as causas mais profundas e os agentes mais escondidos que operam sob os fatos e os atores superficiais. Diremos nós, por exemplo, que o número de adultérios processados, – tornado nove vezes mais forte de 1826 a 1880, – e aquele dos adultérios denunciados, – tendo progredido mais rapidamente ainda, – todos os maridos franceses teriam então interesse em tornar-se legitimistas? O tema, por infelicidade, não comporta tanto humor.

 

01 — Progressão rápida e real do número de delitos. Baixa aparente do número de crimes. Causa desta ilusão.

 

Um grande contraste se nos oferece primeiramente. No lapso de tempo considerado, os crimes propriamente ditos diminuíram perto da metade e os simples delitos (abstração feita das contravenções) mais que triplicaram. Como explicar isso? Vai-se dizer que é um efeito da instrução crescente e do abrandamento dos costumes ou simplesmente um sinal de nosso nivelamento social que, entre outras igualações, atenua a distância entre os celerados e as pessoas honestas. Seria, pois, na criminalidade em seu conjunto, como o que ocorre nos Alpes e nos Pireneus, onde os cimos, parece, vão diminuindo com o passar dos anos, à medida em que, por sua fragmentação sucessiva, o solo se espalha a seus pés, de sorte que esses montes ganham em extensão o que eles perdem em altura; ou diremos ainda, com um engenhoso autor, que a criminalidade assemelha-se nisso à animalidade, onde os graus inferiores assinalam-se por uma força de reprodução superior? Infelizmente, para essas explicações e para todas as outras possíveis, o contraste indicado é puramente aparente. Em primeiro lugar, como reconhece o próprio Yvernès, a diminuição do número dos criminosos explica-se em muito grande parte pelo hábito louvável, cada dia mais generalizado entre o Ministério Público, de correcionalizar os crimes pouco graves, negligenciando voluntariamente observar certas circunstâncias, tais como o arrombamento e o assalto que acompanham os roubos de pouca importância. A Lei de 13 de maio de 1863 consagrou essa prática em muitas transações. Transformados desse modo em casos correcionais, os fatos criminosos são mais seguramente punidos com penas menores e, aliás, se o acusado prefere o júri ao tribunal, lhe é sempre facultado declinar da competência deste que não pode pronunciá-la. A prova de que a correcionalização, seja legal, seja ilegal, tem realmente contribuído para o abaixamento da curva dos crimes, é que esta curva começou a baixar somente em torno de 1855, quer dizer, perto da época em que a moda em questão começou a propagar-se. No detalhe das diversas naturezas de crimes, a prova é mais surpreendente ainda. É sobre os furtos qualificados, é sobre as violações e os atentados ao pudor contra adultos, sobretudo, que importou a diminuição das acusações. Mas é precisamente sobre estes fatos que a correcionalização mais se exerce. Também, no momento em que eles desobstruem a coluna dos crimes, engrossam aquela dos delitos e, enquanto os atentados o pudor sobre os adultos diminuíram da metade a partir de 1855, após haverem aumentado até então, os ultrajes públicos ao pudor experimentaram, de 1855 a 1860, um súbito aumento, surpreendente mesmo em meio a sua rápida ascensão contínua (a qual foi de 302 a 2.572 em nosso período de meio século). A mesma observação quanto aos furtos. Os furtos domésticos, notadamente, diminuíram de dois terços (na coluna dos crimes) desde 1826, ainda que o número de pessoas assalariadas tenha aumentado de forma considerável. Quer isso dizer que os criados e os serventes tornaram-se mais fiéis? Guardai-vos dessa ilusão e olhai a coluna dos furtos simples que muito mais que dobrou. Para as falsificações idem. Elas multiplicam-se, eu creio, a cada dia, mas se as batiza o máximo possível como escroquerias, natureza de delito que mais que triplicou. Mas nem todos os crimes são próprios à correcionalização. É impossível ou difícil estender o benefício dessa indulgência aos atentados ao pudor contra crianças (quase sempre cometidos por pessoas idosas), aos assassinatos, aos incêndios intencionais, às bancarrotas fraudulentas e, para dizer a verdade, aos crimes dignos desse nome, qualificados tais na linguagem comum. Em conseqüência, o que vemos? Tais crimes crescem constantemente, crescimento significativo e, infelizmente, mergulhado no cálculo da diminuição de conjunto. Algumas cifras: a violações e os atentados ao pudor sobre crianças marcharam de 136 a 809; os assassinatos, de 197 a 239; os incêndios, de 71 a 150; os infanticídios, de 102 a 219[60]. Em geral, os crimes contra as pessoas são bem menos fáceis de correcionalizar que os crimes contra a propriedade. Ora, vemos que a curva dos primeiros, através de altos e baixos, nada diminuiu em seu conjunto e, mesmo, eleva-se um pouco, ainda que a correcionalização a afete também em certa medida.

A diminuição, pois, da grande criminalidade produziu-se principalmente nos crimes contra a propriedade. É o contrário do que teria lugar se essa diminuição fosse outra coisa senão uma escamoteação. Com efeito, durante esse movimento, a França foi instruída e enriquecida. Ora, um dos primeiros efeitos dos progressos da instrução e da riqueza, – e um dos melhor demonstrados pela estatística comparada dos diversos departamentos, das diversas classes, das diversas nações mesmo, – é que ele resulta num aumento proporcional dos crimes contra a propriedade. É curioso ver assim, – entre parênteses, – a cupidez crescer com a riqueza e, paralelamente, na mesma medida dos progressos da vida urbana, ver as relações sexuais mais livres e mais multiplicadas, as paixões sexuais redobrarem, como atesta o enorme progresso dos delitos contra os costumes. Nada mais próprio que essas constatações estatísticas, entre outras, para lustrar esta verdade capital: uma necessidade é superexcitada por suas próprias satisfações.

Observemos agora que, aliás, por excelentes razões, as cifras acima indicadas dão trato a acusações e não simplesmente a condenações. Ora, a proporção de absolvições, desde há meio século, seja diante de tribunais, seja diante do júri, tendo diminuído muito, o abaixamento da grande criminalidade, – se tomarmos por base de sua avaliação a cifra das condenações e não aquela das acusações, – parecer-nos-ia bem enfraquecida.

Observemos, além disso, que a repressão está longe de tornar-se mais severa. É verdade que o pessoal da gendarmaria e da polícia dobrou; mas, em revanche, a magistratura esforçou-se constantemente para acomodar-se de antemão, para adaptar-se, – como diria um spenceriano, – à fraqueza cada vez mais conhecida de um júri cada vez mais impregnado do pseudoliberalismo ambiente, do sentimentalismo emoliente do qual se beneficiam os criminosos. “De medo de uma absolvição”, expressão corrente entre os promotores, gabinetes de instrução e as câmaras de acusação, vê-se o Ministério Público, os juízes de instrução, os conselheiros mostrarem-se cada dia mais exigentes em face das provas, o que, de resto, é freqüentemente muito louvável. A isso se deve a proporção sem cessar decrescente dos processos criminais terminados em veredicto negativo. De 82 entre 100, as acusações inteiramente rejeitadas pelo júri passaram, gradualmente, a 17 entre 100. Já que é notório que o júri não é, de modo algum, mais rigoroso que no passado, esse resultado não pode ser atribuído senão à “escrupulosa atenção que os magistrados prestam, cada vez mais, ao exame dos processos, antes de ordenar sua remessa às jurisdições competentes”.

Eu explicaria de boa vontade, por essa adaptação gradual da magistratura ao júri, a diminuição real de certas espécies de acusação que eu chamarei secundárias, falsos testemunhos, por exemplo, que passaram de 49 ou de 101 para 4 ou para 1. Não se ousaria, penso, dizer, a um magistrado instrutor qualquer, que essa diminuição se deve a um progresso considerável da veracidade dos testemunhos; mas dá-se cada vez menos ao inútil trabalho de processar as testemunhas falsas. Cada vez menos também, pelo mesmo motivo, perseguem-se os incendiários que são tão difíceis de descobrir, e se, malgrado isso, a cifra das acusações por incêndio aumentou sensivelmente, foi porque aquela dos crimes desse gênero cresceu de modo atroz.

Tendo em conta todas essas considerações, ou seja, a correcionalização progressiva, as vistas crescentes do promotor para a fraqueza do júri e a distinção necessária entre os verdadeiros crimes e os crimes nominais ou secundários, pode-se ter como certo que, desde há meio século, o número de crimes, como aquele dos delitos, – mas apenas numa medida menor, – aumentou. Afastada esta dificuldade, – (porque era uma dificuldade séria compreender a anomalia apresentada por um povo, onde a grande e a pequena criminalidade teriam variado em sentido inverso, realizando uma espécie de gangorra), – consideremos os delitos, especialmente porque eles rolam sobre cifras mais fortes, menos sensíveis às perturbações de causas acidentais e insignificantes. Previno certas objeções à superfície do tema. Primeiro, a população aumentou em quase mais de um décimo (31 milhões em 1826; 37 em 1880), enquanto a cifra dos delitos comuns triplicou. Essa consideração não nos deve conter. Em revanche, poder-se-ia acrescentar, é possível a rigor que, – o mesmo número de fatos delituosos sendo cometido anualmente por hipótese, – a fração processada destes fatos haja crescido de ano para ano, sob o império de diversas causas: seja porque os promotores (asserção bem gratuita), multiplicando os processos correcionais, estariam cada vez mais adaptados à severidade e à menor exigência face às provas da magistratura dos tribunais, do mesmo modo que estariam gradualmente adaptados à indulgência do júri, diminuindo o número de acusações; seja, ainda, porque a densidade crescente da população (porque a população se condensa, mesmo sem aumentar, por conta do progresso da vida urbana) teria facilitado a descoberta de certos delitos, tais como roubos, raptos de crianças, etc.; seja, enfim, porque certos preconceitos ou certas repugnâncias, que impedem as vítimas de certos delitos denunciá-los, – por exemplo, os maridos enganados, os agredidos em rixas, os patrões roubados por seus domésticos, as vítimas enganadas por escroques habilidosos, as pessoas ultrajadas em seu pudor, – teriam enfraquecido no decorrer de nosso século. Não nego a ação dessas causas, mas, se elas agiram, foram neutralizadas, na mesma proporção, por influências contrárias. Os membros do Ministério Público, interessados talvez em destacarem-se por grandes processos, têm interesse, em revanche, em não se encherem de pequenos, sem importância notável. A vida urbana favorece os malfeitores tanto quanto os prejudica. A desaparição de certos preconceitos tem certamente provocado menos denúncias que o afrouxamento dos costumes tem rechaçado. Além disso, as considerações acima são evidentemente inaplicáveis à vadiagem, às rebeliões, aos desacatos a magistrados, aos bancarroteiros e a muitos outros gêneros de delitos. Acrescente-se que, desde o retorno ao parlamentarismo, sobreposto ao sufrágio universal, não se saberia verbalizar nem requerer, em geral, senão contra um eleitor que tem seu eleito como advogado de ofício. Os reincidentes não são eleitores e, talvez em parte por isto, sua proporção aumenta sempre. Em suma, é muito provável que o aumento dos crimes processados traduza, com certo grau de aproximação e com atenuação de preferência a exagero, aquele dos crimes cometidos, quase como a forma do crânio corresponde, sem muita inexatidão, ao relevo do cérebro[61].

Dito isso, observemos que os diversos delitos progrediram com rapidez muito desigual, que tem seu significado. Existe aí notadamente, e de modo aproximativo, três vezes mais rebeliões contra a autoridade, cinco vezes mais desacatos a funcionários, oito vezes mais mendicância, duas vezes mais golpes e ferimentos, sete vezes mais delitos contra os costumes (aí compreendidos o rufianismo que apenas duplicou e o adultério que é nove vezes mais forte), duas vezes e meia mais furtos simples, seis vezes mais destruições de cercas, perto de quatro vezes mais destruições de plantas e colheitas, três vezes mais fraude ao menos, e ao menos seis vezes mais abusos de confiança.

Se reunirmos todos esses resultados, chega-se, parece, a esta conclusão: o cinismo e a velhacaria realizaram, paralelamente, um ajudando ao outro, sem dúvida, enormes progressos; a propriedade e a autoridade são cada vez menos respeitadas; e as pessoas destituídas de princípios morais multiplicam-se ao mesmo tempo em que as pessoas sem moradia[62]. Mas, sobretudo, a cupidez parece haver crescido, ao mesmo tempo em que a fortuna pública. De 1826 a 1830, ela era, em 13% das vezes, o motivo determinante dos crimes de assassinato, de homicídio, de envenenamento e de incêndio. Essa proporção elevou-se gradualmente a 20% em 1856-60, depois decresceu até 17% em 1871-75, para aumentar em 1876-80 e atingir 22%. Inversamente, o amor, – que era, há cinqüenta anos, em 13% das vezes, a motivação dos mesmos crimes, – não o é mais que 8%. Evidentemente o amor diminuiu ou a cupidez aumentou. Mas o amor, – força natural, – não pôde diminuir, não mais que o ódio, malgrado sua participação igualmente menor nos crimes precedentes. Para prova, notemos que o número anual de suicídios por amor permaneceu quase o mesmo desde há quarenta anos, enquanto os suicídios por perda de fortuna aumentaram muito; que os suicídios por causa de sofrimentos psíquicos quadruplicaram e os causados pela embriaguez quintuplicaram. Logo, foi a cupidez que progrediu. Também uma tabela especial mostra que a proporção dos delitos contra a pessoa (ao contrário daquilo que tem lugar artificialmente para os crimes) decresceu regularmente desde 1826, enquanto aquela dos delitos contra a propriedade aumentou com igual regularidade.

 

02 — Discussão com Poletti: se a atividade produtiva compensa a atividade malfazeja.

 

Esse quadro é sombrio. Por felicidade, encontramos Poletti em nosso caminho, e o sorriso desse reconfortante criminalista italiano, do qual as idéias enganadoras teriam merecido, – eu creio, – malgrado sua falsidade, prosperar, zomba um pouco de nossa tristeza. Ainda que permanecessem desconhecidas, seriam dignas de exame, porque são uma resposta original à grave questão de saber qual é a influência da civilização sobre a criminalidade. Depois, elas podem ser citadas como uma forma típica dessa força da ilusão invensível em virtude da qual cada um de nós é levad0o a envaidecer-se, malgrado a evidência do contrário, da superioridade de seu tempo. Poletti quase chega a nos dizer isso: o número de delitos ou de crimes pode aumentar numa nação, ainda que a criminalidade aí decresça. Se esse número dobrar ou triplicar enquanto, paralelamente, o número de ações produtivas e conformes às leis e à atividade social fecunda e útil triplicar ou quadruplicar, – como se tem a prova na França, pela comparação das estatísticas comerciais do último meio século e o aumento dos impostos indiretos, – houve, em definitivo, progresso moral e não decadência. Porque a moralidade igual ou, – aquilo que dá na mesma, – a imoralidade, a criminalidade iguais, as quedas no mal devem ser exatamente proporcionais ao crescimento das ocasiões de queda. Eis aí, se eu não o desnaturo resumindo, do meu ponto de vista, o argumento de Poletti[63]. Ele consiste em suma, – parece-me, – em avaliar a criminalidade como se aprecia a segurança de um meio de locomoção e a proceder, para decidir se a criminalidade dos franceses notadamente aumentou ou diminuiu desde há cinqüenta anos, como se procede para julgar se a segurança dos passageiros dos trens é hoje inferior ou superior àquela dos passageiros das diligências em torno de 1830. Do mesmo modo que aqui se resolve o problema, não simplesmente comparando as cifras dos passageiros mortos ou feridos nas duas épocas, mas dizendo que houve um morto ou um ferido em tal data ou tal outra sobre tantos milhares de passageiros ou tantos milhares de quilômetros percorridos, de maneira semelhante, deve-se, para responder à outra questão, dizer que havia, por exemplo, em 1830, um abuso de confiança processado anualmente sobre tal número de transações ou negócios susceptíveis de provocá-lo, e que há um, em nossos dias, sobre tal número de transações ou negócios semelhantes[64]. Por que não acrescentar que, por conta das comunicações mais freqüentes, das seduções mais perigosas da vida urbana em progresso, o enorme aumento da cifra dos adultérios constatados nada tem de surpreendente e revela um verdadeiro fortalecimento da virtude feminina?

Essa maneira otimista de ver as coisas não é compartilhada, – e eu não me espanto, – pelo autor do relatório oficial que deplora, em algum lugar, as dolorosas constatações da estatística e o transbordamento da desmoralização revelado por ela. De fato e de direito, aliás, nada mais errôneo que o cálculo precedente. De fato, para os abusos de confiança que aumentaram seis vezes, para os delitos contra os costumes que aumentaram sete, etc., não é verdade que os negócios ou os encontros que os ocasionam tenham se tornado seis vezes, sete vezes mais numerosos. De direito, pelo conjunto de crimes e de delitos, parece-me, primeiro, que se faz uma confusão. É bom dizer e demonstrar, para continuar minha comparação, que as estradas de ferro são o menos perigoso meio de transporte ou que o gás é a mais inofensiva das iluminações, não é menos verdadeiro que um francês de 1826 se arriscasse menos a morrer num acidente de viagem ou a ser vítima de um incêndio que um francês de nossos dias. Há cinqüenta anos, contavam-se por ano quinze mortes acidentais sobre 100.000 habitantes; agora, trinta e seis. Esse é o efeito das descobertas que constituem a civilização de nosso século. Entretanto, a vida média, em suma, não diminuiu de duração. Eu sei mesmo que se a acredita, geralmente, em via de prolongar-se. Mas os estatísticos sérios têm apagado essa ilusão[65], para empregar seus próprios termos. Tudo o que se pode dizer é que temos agora menos chance que outrora de morrer no leito, mas as mesmas chances de morrer tarde. As invenções civilizadoras têm, pois, aportado seu remédio aos seus males e pode-se dizer o mesmo de seu efeito, dessas cobiças, dessas necessidades que são criadas ou superexcitadas, e de onde nasce o crime ao mesmo tempo em que o trabalho. Mas, por compensado que ele seja, um mal é um mal, de nenhuma maneira diminuído em si pelo bem que o acompanha. Se um pode, a rigor, estar separado do outro, isto é claro; e, se são inseparáveis para sempre, hipótese desesperadora, isto é ainda mais claro. Importa-me pouco que a segurança das viagens, que a moralidade dos negócios hajam aumentado, quando a segurança, quando a moralidade dos homens, viajantes ou outros, comerciantes ou outros, tenha diminuído (ou pareça haver diminuído) da metade ou de três quartos. Para uma massa igual de negócios, não há mais de delitos. Seja. Eu admito mesmo que haja menos, mas: Corre-se, sim ou não, mais risco hoje de ser enganado, vítima de escroques ou ladrões franceses, que se corria há cinqüenta anos? Eis o que nos importa no mais alto grau, e não uma abstração ou uma metáfora. Não é um mal certo, indubitável, que uma classe ou uma categoria de cidadãos, por ativa ou por atarefada que ela se torne, aquela dos industriais ou das mulheres casadas, por exemplo, forneça um contingente triplo, sêxtuplo, à Justiça Criminal de um país? Não é um mal também que, após quarenta anos, o número de falências haja dobrado, ainda que o desenvolvimento comercial haja mais que dobrado[66]? Esse mal é, de resto, tão pouco inevitável, malgrado o princípio puramente arbitrário de onde parte Poletti, que um mal menor, aquele dos processos comercias, diminuiu desde 1861, malgrado o desenvolvimento crescente dos negócios[67]. É assim que, graças à civilização igualmente, as ocasiões de guerras, as excitações belicosas jamais foram tão numerosas nem tão fortes que durante o período mais pacífico de nosso século, de 1830 a 1848. Quanto aos processos civis, eles se reproduzem regularmente em igual número, coisa notável, malgrado a complexidade dos interesses, a multiplicação dos contratos e das convenções, o fracionamento da propriedade. Entretanto, o que haveria de mais aceitável a priori que olhar o crescimento dos processos civis ou comerciais como um sinal constante e necessário de prosperidade, de atividade civil e comercial?

Eu compreendo melhor um ponto de vista precisamente contrário àquele que nós refutamos. Como! O crescimento da atividade laboriosa e da riqueza tornaria natural aquele dos crimes e dos delitos! Mas em que se transforma, então, esse poder moralizador do trabalho, essa virtude moralizadora da riqueza, da qual se fala? A instrução fez grandes progressos. Em que se transforma a ação benfazeja tão preconizada das luzes sobre os costumes? Quê! Esses três grandes remédios preventivos do mal social, o trabalho, a riqueza geral, a instrução, triplicados ou quadruplicados, têm agido ao mesmo tempo e, em lugar de secar, o rio da criminalidade transborda! De duas coisas uma: ou se deve reconhecer que se está enganado ao atribuir a essas causas uma influência benéfica ou se deve confessar que, por lhes haver resistido, e com tanta vantagem, as tendências criminais deveram crescer muito mais depressa ainda do que elas se desenvolviam. Nos dois casos, é claro que a sociedade realmente piorou, como as cifras da estatística criminal indicam, mas, no segundo, muito mais do que estes números indicam. Felizmente, há uma terceira alternativa que nós omitimos: é que algumas outras causas fáceis ou não de extirpar, mas com as quais se não nos preocupamos muito, agem cada vez mais, ainda que a natureza humana não se haja tornado pior. Nós voltaremos a isso. O que quer que seja, não é duvidoso que um tal estado de coisas provoque um crescimento ou uma mudança da repressão e da penalidade. Se os crimes e os delitos não são, como se quer, senão acidentes da estrada de ferro da vida social lançada a todo vapor, não nos esqueçamos de que um trem mais rápido exige um freio mais forte ou, antes, diferente.

Um exemplo tomado a uma outra ordem de fatos fará melhor compreender minha maneira de ver. “Pode-se pensar, diz Block, na estatística da França, que a multiplicação do número de cartas (por conta do rebaixamento da tarifa de 1848) aumentaria o número daquelas que o correio não teria condições de entregar ao destinatário, ou seja, que estariam inutilizadas. Não é assim.” Segue-se um quadro de onde resulta que, de 1847 a 1867, não apenas o número proporcional, mas o número absoluto de cartas inutilizadas diminuiu em torno de um quinto, ainda que, em 1867, houvesse 342 milhões de cartas postas no correio e, em 1847, 125 milhões apenas. E o aumento de uma parte, a diminuição da outra foram graduais. Assim, quanto mais os carteiros têm trabalho, menos freqüentemente eles falham em seu cumprimento; quanto mais as pessoas escrevem cartas, menos freqüentemente elas erram na colocação do endereço. E não se suponha que os carteiros tenham se tornado mais inteligentes ou mais honestos, ou as pessoas mais atentas. Consideradas a honestidade, a inteligência e a atenção iguais, as faltas decresceram enquanto a atividade cresceu. Outro exemplo ainda mais tópico fornecido igualmente pelos correios. De 1860 a 1867, o número de cartas registradas tornou-se duas vezes e meia maior e o número daquelas dentre estas cartas que desapareciam anualmente (quer dizer, provavelmente, que eram subtraídas) abaixou, por graus, de 41 a 11; e eu suponho sempre que a probidade dos carteiros permanecesse a mesma. Se nos colocarmos do ponto de vista de Poletti, é o inverso do que se deveria prever a priori. Mas, refletindo, ver-se-á que isso se explica muito bem. Passemos uma imagem trivial. Acontece com uma sociedade sempre mais ou menos levada a transgredir suas próprias leis, como um cavalo um pouco fraco sobre suas pernas dianteiras, isto é, dado a quedas. O melhor a fazer nesse caso, para impedi-lo de cair ou evitar suas passadas em falso e tornar suas quedas mais raras, é lançá-lo rapidamente às decidas. Quanto mais depressa ele for, menos tropeça. Os cocheiros sabem disso e os condutores de trens também. É bom ir a todo vapor sobre uma estrada ruim. Quereis manter em equilíbrio sobre um dedo uma haste vertical pronta a cair? Fazei-a oscilar regularmente e muito depressa. Eis aí exemplos entre mil de equilíbrio móvel, tanto mais estável quanto maior é a velocidade[68]. De modo semelhante, para diminuir a cifra dos delitos de uma nação, supondo que sua tendência ao mal permaneça a mesma, estimulai sua produção, sua civilização, sua atividade regular. Daí, tenho o direito de concluir que, no caso – e infelizmente é o nosso – em que, malgrado o progresso de sua civilização, o número, eu não digo relativo, mas mesmo absoluto, de seus delito aumenta, a força de suas tendências delituosas aumentou mais consideravelmente ainda. Daí, a meu ver, a necessidade de procurar, de esclarecer as causas sociais que agem em sentido contrário à civilização, mais fortes que ela, mas talvez graças a ela, sobre o estado moral da sociedade. Acreditei descobri-las, mas, mesmo que estivesse enganado, em as especificando, não seria menos verdadeiro, na minha opinião, que elas existam, que elas sejam distintas e separáveis das forças civilizadoras, e que a ferida de uma sociedade rica não se atém ao seu bem-estar, mas seu bem-estar permanece impotente para curá-la ou evitá-la, atesta a gravidade da desordem constitucional da qual ela é a conseqüência.

Para concluir, com Poletti, sua maneira de ver não é sem analogia com aquela dos psicofísicos. Ele procura uma lei da delituosidade; mal ou bem, ele precisa de uma. Quanto ele lastima não poder aderir a essa escola de estatísticos de Quételet, diz ele, que acredita perceber “no comportamento da delituosidade uma constância igual àquela dos fenômenos naturais!” É para reconciliar, tanto quanto se pode, tal pretensão com as cifras contrárias, que ele imagina alguma coisa de comparável ao famoso logaritmo das sensações, eu ia dizer o logaritmo da criminalidade. Ele aproxima e superpõe engenhosamente duas séries, entre as quais estabelece uma relação constante, – afirma ele, – ainda que sem cessar decrescente (não é isso contraditório?), a saber: uma, — aquela das ações produtivas e jurídicas, — em via de crescimento muito rápido em todo país civilizado, ao menos em nossa época; outra, — aquela das ações destruidoras e delituosas — que cresce de modo paralelo, mas menos rapidamente, não apenas na França, mas na Itália (ele poderia acrescentar na Inglaterra, na Prússia e entre muitos outros povos provavelmente)[69]. Não é assim que, de acordo com a Psicofísica, a uma excitação luminosa dupla, tripla, quádrupla corresponde uma sensação luminosa bem menos rapidamente crescente? O progresso da civilização seria, pois, ao pé da letra, a excitação da criminalidade. Se fosse assim, haveria por que maldizê-lo[70].

 

03 — A reincidência. Ação do exemplo. Por que a profissão de malfeitor se tornou excelente. Degredo e sociedades de patronato.

 

Felizmente, não é assim e, de uma parte, o otimismo de Poletti tem algo de bom. Ele se engana em haver omitido uma importante consideração, de onde logo vai decorrer a justificação procurada da civilização. Exprimir-nos-íamos mal, dizendo que a imoralidade, a tendência criminal manifestada hoje por um crescimento das faltas existia outrora em estado latente. Nem psicologicamente nem, sobretudo, socialmente, isso é verdade, e esta soi-disant manifestação equivale a uma verdadeira realização, a uma passagem do nada ao ser. Porque a imoralidade, do ponto de vista individual, é essencialmente a ruptura de um hábito moral, ruptura que é a fonte de um hábito imoral; e, enquanto o hábito moral persiste, por falta de tentações, não importa, existe a moralidade. Moralidade aparente, dir-se-á; mas, aparecendo, ela é vista, ela serve de exemplo em torno dela. Quando a imoralidade aparece, ao contrário, é ela que surpreende os olhares e irradia-se imitativamente em seu meio. É então que, do ponto de vista social, ela nasce. A realidade social por excelência, com efeito, é a aparência, como a força social por excelência é a imitação sob todas as suas formas, no sentido ativo e passivo, o ardor crescente de proselitismo e o apetite superexcitado de assimilação[71]. O esquecimento dessa verdade capital explica o erro do criminalista italiano e de muitos outros.

Logo, não apenas um delito a mais é, seguramente, um mal a mais, mas ainda ele é a fonte certa ou provável de muitos males novos, e é conveniente agravar, não atenuar, o sentido das revelações da estatística. Lavemos as mãos, se quisermos, ao ver o número de afogados por acidente quase dobrar desde 1856, e aquele das mortes súbitas sobre a via pública triplicar ao menos desde 1836, porque isso prova que as pessoas se banham e passeiam mais; eu o compreendo, a rigor. Tais acidentes têm por caráter distintivo, primeiro, o serem realmente inevitáveis; depois, não serem contagiosos por imitação. Diferentes, desse duplo ponto de vista, são os crimes e os delitos. Eis por que o crescimento numérico das pessoas atingidas por uma condenação é ainda mais assustador do que parece. Porque quanto mais seu número aumenta, como demonstra sua progressão ininterrupta, mais ele tende a crescer; mais, se se os deixar agruparem-se, são levados a copiarem-se uns aos outros, em lugar de sofrerem o exemplo das pessoas honestas, como prova a proporção sempre crescente dos reincidentes entre os condenados[72]. A reincidência, com efeito, nasce da tendência a contrair hábitos, de copiar-se a si mesmo, tendência esta que, abandonada às suas causas individuais, ou seja, orgânicas, tem sempre, em média, uma força igual; isso se traduziria por uma série de cifras uniformes, não fosse a superexcitação causada pela tendência a copiar seu semelhante, para com ele parecer-se ainda mais, sob o império de causas sociais, de contatos ou de relações intelectuais mais freqüentes estabelecidas entre os malfeitores pelo progresso da saúde pública, da imprensa e do correio. É, pois, a força crescente dessa última tendência que se expressa aqui pelas cifras progressivas da estatística. Quer-se a prova? De 1828 a 1879, a proporção de reincidentes sobre cem acusados ou réus quase dobrou, e, de 1850 a 1879, ela aumentou em mais de um terço, mas, neste último período, cifra média, ela foi de 32% por ano para toda a França. Ora, essa média geral está longe de ser alcançada pelos países montanhosos ou sem grandes cidades, por exemplo, Baixos Alpes, Córsega, Ardèche, Alto Loire e Ariège que dão 20%; e ela é muito ultrapassada nos departamentos do Norte, onde a população é densa, no Sena-Inferior, Sena-et-Oise e Marne, onde atinge 40%, e sobretudo no Sena onde é de 42%. O Relatório acrescenta como conclusão: “Nas 40 cidades que têm mais de 30.000 almas, conta-se um reincidente para 307 habitantes, enquanto nas cidades de população inferior não se conta um senão que para 712 habitantes.” Isso é muito significativo, sobretudo se observarmos que parece se tomar aqui o efeito pela causa. Não são os reincidentes, quer dizer, os condenados que já recaíram, que afluem das grandes cidades; são as grandes cidades que, após haverem atraído os condenados e havê-los agrupado em certos quarteirões ou em certos estabelecimentos, têm a virtude de excitá-los a novos crimes. E vê-se com que força. Diferentes considerações no mesmo sentido: a proporção de reincidentes em matéria criminal é maior que em matéria correcional, sem dúvida porque a força do hábito engendrado pela má ação é tanto mais intensa quanto é pior, revela mais ousadia e, após seu cumprimento, mais isola seu autor da sociedade honesta. Em revanche, a progressão dessa proporção caminha menos rapidamente em face dos crimes que dos delitos. Para os crimes, ela passa com imperturbável regularidade[73] de 33 reincidentes por 100 acusados em 1851 a 48 por 100 no último período; para os delitos, no mesmo lapso de tempo e não menos regularmente, ela vai de 21 a 41 para 100. Quase dobra. Por quê? Porque é bem mais difícil para os criminosos que para os delinqüentes agruparem-se, e os primeiros têm bem menos proveito que os segundos na facilidade crescente das comunicações. O isolamento relativo dos condenados por crimes, se os entrega mais às suas próprias inspirações, subtrai-os melhor às más sugestões de fora. Enfim, observemos que a progressão é menos sensível para as mulheres que para os homens. As mulheres se deslocam e se reúnem menos.

Prendi-me a esse exemplo porque, independente de sua atualidade, ele é assaz próprio para demonstrar a importância social da imitação e a cegueira das teorias que a desprezam ou que a esquecem. Quando se olha tanto quanto convém para esta ação incessante e todo-poderosa, se é, sem dúvida, surpreendido em ver o exército do crime, a horda dos condenados, crescer a cada dia. Mas talvez, também, no fundo dessas cifras, e de nosso ponto de vista, exista algo de mais reconfortante que as explicações de Poletti. O mal é grande. Seja. Mas resulta daí que nossa sociedade esteja realmente tão doente quanto possa parecer? E acreditaremos nós, para o bem de nossa nação, econômica e laboriosa, na medida em que ela trabalha[74], que ela poupa mais, que mais vai se depravando? Não, é impossível, e a progressão ininterrupta da proporção de reincidentes entre os acusados ou os réus deve ser, para nós, um sinal de luz. Esta proporção, rápida e regularmente crescente, não é falsa ela mesma; ao contrário, ela mostra que a criminalidade se localiza, tornando-se uma carreira, e que, cada vez mais, a demarcação se aprofunda, por uma sorte de divisão do trabalho entre as pessoas honestas, cada dia mais honestas talvez (?), e os patifes, cada dia piores. (Por exemplo: dever-se-ia guardar de ver um sinal de honestidade crescente das pessoas honestas na cifra das contravenções fiscais e florestais, que abaixou prodigiosamente de 81.000 em 1835 para 21.000 hoje, redução devida, nós o sabemos, à faculdade de transigir ou à inércia dos agentes). Infelizmente, a profissão de malfeitor tornou-se boa, prospera, como comprova o crescimento numérico dos delitos e dos acusados, mesmo com a abstração feita dos reincidentes e das reincidências.

Resulta disso que o contágio imitativo dessa corporação anti-social não resta inteiramente fechado em seu próprio seio, onde ele se traduz pela mútua insensibilidade, mas irradia-se em parte para fora, entre os desclassificados que ela classifica, entre os preguiçosos que ela ocupa, entre os arruinados de todo gênero que ela torna febris com as perspectivas de um novo jogo, o mais rico em emoções. Eis a verdadeira fonte do mal. Agora procuremos o remédio.

A que se deve, em geral, que uma profissão qualquer esteja em via de prosperar? Primeiro, deve-se a que produza vantagens; depois, que custe menos; enfim e sobretudo, que a aptidão para exercê-la e a necessidade de praticá-la tornem-se menos raras ou mais freqüentes. Ora, todas essas circunstâncias estão reunidas em nosso tempo para favorecer a indústria particular que consiste em espoliar todas as outras. Enquanto a quantidade de coisas boas de roubar ou escamotear e de prazeres bons de conquistar pelo furto, escamoteação, abuso de confiança, falsificação, assassinato, etc. têm aumentado de maneira desmedida há cinqüenta anos, as prisões foram arejadas, melhoradas sem cessar relativamente à nutrição, alojamento, conforto, e os juízes e jurados têm progredido a cada dia em clemência; as circunstâncias atenuantes têm sido estendidas aos crimes mais atrozes, e a pena de morte transforma-se, por graus, numa sorte de manequim de palha armado com um velho fuzil enferrujado que não mata mais nada desde há muito tempo. Os proveitos são acrescidos e os riscos diminuídos, a tal ponto que, em nossos países civilizados, a profissão de batedor de carteira, de vagabundo, de falsário, de bancarroteiro fraudulento, etc., senão a de assassino é uma das mais proveitosas e das mais frutuosas que um preguiçoso possa adotar. Ao mesmo tempo, a revolução social, que é necessário guardar-se de confundir com a civilização, tem multiplicado os desclassificados, agitando-os, viveiro do vício e do crime, os vagabundos, notadamente, cujo número cresceu muito, se eu julgar pelo número de vadiagens que se elevou de 2.500 para 17.000 depois de 1826. Acrescentai que as tendências caridosas estão longe de se desenvolver em nossa industrialização febril, menos do que se faz preciso. Os condenados ainda honestos, após uma primeira falta, os libertados, oscilando entre o exemplo da grande sociedade proba, mas não hospitaleira, e aquele da pequena pátria criminal sempre prestes a naturalizá-los, acabam por cair fatalmente nesta última vertente como mães solteiras na prostituição. Eis aí, na minha opinião, duas circunstâncias das mais deploráveis, porque são as mais eficazes e as mais irremediáveis. Elas facilitam o recrutamento da indústria do mal, sua condição sine qua non, enquanto as outras se limitam a estender e assegurar seus benefícios. Elas se atêm à corrente social e moral do século e, por conseguinte, escapam à ação direta do governo e da legislação, enquanto as outras podem ser combatidas por uma reforma penal ou por uma transformação política. Mas expliquemo-nos mais amplamente.

Não pode ser questão, bem entendido, em algum projeto de lei, diminuir os proveitos possíveis da profissão criminal, o que equivale dizer os produtos quaisquer da arte e da indústria. Mas pode-se aumentar seus riscos através de maior severidade e vigilância. Sobre a escolha dos meios, existe aí lugar para discussão. Eu duvido muito, por exemplo, que o desterro de reincidentes produza os maravilhosos efeitos que se esperam. A colônia penitenciária não pode ser senão um inferno para os melhores e um Eldorado para os piores. Em suma, ela não assusta mais que o encarceramento prolongado. Nós já aplicamos esta pena na França em larga escala, e sem que a criminalidade haja sido minimamente rechaçada por ela; na Inglaterra, ela foi experimentada em grande escala e sem maior sucesso. Em revanche, vemos um país vizinho a nós, falando a mesma língua e pertencendo à mesma raça, à mesma civilização, conseqüentemente, mais apropriado que qualquer outro a nos servir de peça de comparação, a Bélgica. Ela apresenta um decréscimo constante do número de crimes e de delitos, ainda que não desterre ninguém. É verdade que os prisioneiros são ali submetidos ao regime celular, que os subtrai ao exemplo uns dos outros, e do qual ninguém contesta mais as vantagens do ponto de vista da moralização dos condenados. Eu copio os termos do relatório. É verdade ainda que no mesmo pequeno Estado pululam sociedades de patronagem, muito pouco conhecidas na França, com a ajuda das quais o liberado encontra trabalho e entra na esfera de irradiação dos exemplos honestos. Se, numa nação vizinha, onde não se desterra, a criminalidade média ou grande decresce, enquanto alhures, onde se desterra enormemente, ela não cessa de crescer, e, entre nós, onde se desterra um pouco, ela cresce sempre, como se persuadir de que nos será suficiente desterrar mais para fazer baixar a maré montante com a qual começamos a nos alarmar[75]?

Atirar para fora aquilo que vos perturba é muito cômodo; mas isso é ir longe demais. Seria triste para a França, na medida em que ela exporta menos mercadorias, exportar mais delinqüentes e chegar talvez um dia a não ter outro artigo de exportação. Ainda se isso pudesse servir para alguma coisa! Mas vê-se, de acordo com os relatórios precedentes, que isso não servirá para nada, sem dúvida. Em lugar de quebrantar ou lançar para longe o ser nocivo, convém, tanto quanto possível, melhorá-lo, utilizá-lo, transformar o obstáculo em instrumento, o demolidor em pedreiro. Mas para isso, eu convenho, é necessário apelar aos homens devotados ou, ao menos, não entravar em nada sua livre iniciativa. Ora, em nossa época industrial, o interesse pessoal tem feito tais coisas que os teóricos chegam a considerá-lo como o único motor de todo progresso, desprezando a grande função passada de outras motivações, negando seu grande papel futuro e tendo em fraca estima todo sistema que se apóia sobre elas. Sociedades de patronagem, sociedades de beneficência pura e gratuita, isto pode ser bom, dir-se-á, isto não saberia ser indispensável. Está-se bem seguro de que a caridade já tenha feito seu tempo e de que o papel da abnegação e do desinteresse esteja findo? Que me digam então o que se fundamenta socialmente sem essas molas, sob nossos próprios olhos, desde o triunfo de um exército até o triunfo de um partido, desde uma nova arte até uma nova ciência, e qual é o progresso intelectual ou moral que não seja devido à propagação de uma doutrina, de um dogma, de uma instituição, de um meio de transporte, de uma forma do belo, de uma grande inovação qualquer lançada ao mundo pelo entusiasmo de um grupo de apóstolos devotados ao seu mestre, ele mesmo imolado à sua obra? Aquilo que o amor cria, o interesse, a seguir, é suficiente para reproduzir, mas não é menos certo que quase tudo aquilo que existe de bom, de verdadeiro, de útil, foi buscado, foi desejado, foi diretamente procurado e querido por sucessivas plêiades de homens que amaram a arte pela arte, a ciência pela ciência, o bem pelo bem. Suponde que não houvesse senão egoístas desde Catão, o antigo. A escravidão existiria ainda em toda a Europa, tão rigorosa quanto no seu tempo. A luta e o concurso dos egoísmos jamais serviram senão que, por assim dizer, para a edição das obras produzidas pelo acúmulo de devoções, ou, se se quiser melhor, das monomanias e das loucuras fecundas, das idéias fixas que arruínam o inventor e enriquecem os copistas.

Em afirmando, pois, a eficácia e a necessidade de um desdobramento da beneficência, para repelir o flagelo das reincidências criminais, eu não creio alegar nada de inverossímil a priori; e a experiência parece me dar razão. Esse aparelho de salvamento que se chama patronagem não é seriamente organizado entre nós senão em favor dos jovens libertos. Que efeitos ele produziu? O relatório de 1879 nos ensina. No que concerne a esses menores, “a reincidência após a liberação, que ultrapassava antigamente 20%, desceu hoje para 14% para os rapazes e a 7% para as moças[76]. Por que um tal procedimento, reconhecido tão eficaz, não o seria, em escala maior, aplicado aos maiores?” Um fato considerado indiscutível, diz o relatório de 1878, é que as recaídas se produzem, sobretudo, nos primeiros meses que se seguem à saída da prisão, de onde esta conclusão que a dificuldade de recolocação dos liberados é a única causa do crescimento da reincidência. Eis a verdadeira palavra. Mas, em presença de uma dificuldade agora circunscrita a esse ponto, de um problema reduzido a esses termos, o dever imposto ao coração não é duvidoso. Se tudo depende da acolhida que o liberado vai encontrar em sua saída da prisão, é preciso esperá-lo lá, velar por ele, protegê-lo, dirigi-lo durante essa difícil passagem. Com muito de boa vontade generosa, pode-se seguramente fazer com que a profissão de malfeitor deixe de ser para sempre obrigatória àqueles que a exerceram uma vez. Esta boa vontade não poderia faltar. Caso contrário, tanto pior. Um povo, no qual a força do sacrifício pessoal se esgota, vive de seu capital, e sua decadência está próxima. Permanecemos generosos até o dia em que deixamos de ser inventivos e fecundos, e começamos a nos tornar imitativos e rotineiros. O egoísmo é uma aquisição senil.

Se dissermos que tal não é suficiente, eu confessarei que, feito isso, faltará alguma coisa ainda. Mas o quê? Uma coisa infelizmente mais difícil que a nomeação de uma comissão para a reforma do código penal, a saber, se eu não me engano, a firmeza e a estabilidade governamentais e o apaziguamento espontâneo ou o represamento da corrente revolucionária.

 

04 — Civilização e revolução. A política e a curva dos delitos.

 

A civilização e a revolução social são coisas diferentes, e eu estimo que Poletti as confunde, quando julga o progresso da primeira ligado ao progresso da criminalidade: tanto valeria dizer do progresso do pauperismo, erro análogo e cem vezes refutado. Persuadir-se de que a civilização pode, em alguma coisa, favorecer a criminalidade é esquecer-se de que a guerra e a pilhagem, o assassinato e o roubo, praticados ao menos fora da tribo, foram a origem daquilo que existe de mais natural ao homem, e que a glória da civilização é precisamente a de haver recalcado esses instintos. Se a civilização não fosse senão a propagação imitativa dos meios (mecânicos, químicos ou outros), os mais próprios a servir aos objetivos quaisquer da vontade, heróicos ou criminosos, pacíficos ou belicosos, estar-se-ia autorizado a dizer simplesmente que sua ação é nula sobre a moralidade. Mas não é a civilização também a propagação imitativa dos fins (religiosos, jurídicos, estéticos), os mais fecundos, os mais vastos, os mais coerentes, quer dizer, os mais distanciados da esterilidade, da pobreza, da mútua contradição dos fins qualificados como maus? Ela não saberia, pois, ser senão moralizadora, tanto quanto apaziguadora.

Mas a revolução, no que ela tem de estranho à civilização, é ser a guerra de classe contra classe. E, ainda que possa existir aí uma arte militar boa de exercitar às vezes, de modo semelhante a uma política revolucionária útil durante algum tempo, a guerra, intestina ou exterior, não é menos a grande inimiga da civilização. Ela serve, sem dúvida, à civilização, quando, pelo emprego, pela irradiação imitativa – qualificada campanha ou rebelião – de processos e de habilidades militares, de medidas e de violências revolucionárias, ela abre, às novas invenções e às utilidades muito mais duráveis que constituem a civilização, um novo campo de imitação mais livre e mais amplo, representado por uma classe ou por um povo melhor dotado. Mas este resultado nem sempre é alcançado e, mesmo quando o é, é sempre ao preço de um mal lento para curar, eu quero dizer, a necessidade especial que as conquistas revolucionárias ou militares satisfazem e, ao mesmo tempo, superexcitam: a paixão de perturbar e aquela de guerrear, uma e outra aspirando a destruir sua própria obra.

A moralidade de um povo é tão estreitamente ligada à fixidez de seus usos e costumes, como em geral aquela do indivíduo à regularidade de seus hábitos, que se não nos devemos espantar em ver as épocas agitadas por grandes crises, as nações tumultuadas pela longa luta de duas religiões, de duas civilizações, de dois partidos ou de dois exércitos sinalarem-se por sua excepcional criminalidade. É preciso lembrar nossa Guerra dos Cem Anos e nossas guerras religiosas? A época merovíngia foi uma das mais notáveis a esse respeito, porque não houve outra mais fértil em crimes de toda espécie nem mais profundamente perturbada até a própria raiz das instituições e das tradições. Germanos, romanos, todos reciprocamente destruíram seus costumes pelo desgaste e, pelo contato, permutaram seus vícios. Daí, ao mesmo tempo, a recrudescência extraordinária dos crimes de sangue, – e dos mais monstruosos: fratricídios, parricídios que não têm o caráter nem de escandalizar nem de surpreender o historiador eclesiástico, – e o transbordamento das violações, das rapinagens, das perfídias. Uma tal coincidência é a característica dos períodos perturbados. A Renascença italiana produziu, em suas pequenas cidades irrequietas, um aspecto análogo: aqui o modelo morto, a Antigüidade clássica exumada, comunicou seus vícios refinados aos povos ainda rudes que os combinaram com sua brutalidade persistente. Em grau próximo, nossa Europa contemporânea não deixa de oferecer um pouco o mesmo caráter: vê-se a fusão de classes, — em via de se igualarem democraticamente, — produzir a troca de suas aptidões especiais para os diversos crimes, do mesmo modo que, outrora, a fusão dos povos e das raças. Nada prova melhor que atravessamos um período de transição. De fato, no que toca à erupção criminal prodigiosa e multiforme nada se poderia comparar, nos tempos modernos, com a Revolução Francesa, porque jamais o desenraizar das instituições de um povo foi tão profundo, e, precisamente, um dos maiores historiadores, Taine, prestou-nos o serviço de mostrá-la, – de maneira um pouco complacente demais, – sob seu aspecto criminalístico, por assim dizer. Qualquer que possa ser a insuficiência desse ponto de vista, ele é eminentemente instrutivo aos nossos olhos, tanto quanto original. Tivéssemos nós um estudo de patologia social do mesmo gênero sobre a Guerra dos Cem Anos! Ora, quando se vê, em meio ao povo mais suave e no mais humano dos séculos, eclodir subitamente essa floração de crimes sangrentos, de jacqueries[77], de setembrizadas[78], e difundir-se “esta cadeia de assassinatos que, em julho, agosto, setembro de 1792, estendeu-se por todo o território” (exemplo espetacular de imitação criminal), sem falar nos roubos e pilhagens sem número; é bom evitar, por aí, contemplar a face heróica ligada a esse avesso monstruoso, e imaginar as vitórias, os campos de batalha cheios de mortos, não apreciando senão ainda mais a ordem e a paz. Faz-se então uma idéia justa daquilo que se deve exigir das revoluções e das guerras face aos seus benefícios, para ter-se o direito de perdoar-lhes seus custos.

Nada mais desmoralizante que a guerra e que a revolução, porque elas apaixonam e alarmam. Ao contrário, a civilização pacifica e reconforta. É ela um ganho incessante de fé e uma incessante perda de desejo, quase – e a aproximação talvez não seja, no fundo, artificial – como a evolução, de acordo com Spencer, é um ganho de matéria e uma perda de movimento, e a dissolução, o inverso. Pode parecer contraditório que ela apazigúe nossos desejos em seu conjunto, ao mesmo tempo em que multiplica nossas necessidades. Todas as necessidades artificiais que ela engendra em nós estão bem longe, todavia, de ser a mesma moeda da sede e da fome de que sofriam nossos ancestrais selvagens. Do mesmo modo, substituindo os problemas profundamente inquietantes da ignorância e da insegurança primitiva por outros muito mais numerosos, mas bem menos urgentes, levantados pelo saber, — a cada marco de suas fronteiras ampliadas, mas distantes, — ela alivia o peso total da dúvida e da inquietude.

Por esse sinal, reconhecem-se suas obras próprias, como as obras próprias à revolução são reconhecidas pelo sinal contrário. Seus pontos de partida não são menos diferentes que seus efeitos. A civilização é uma irradiação imitativa complexa e muito antiga que tem por principais focos as descobertas de fatos e de leis naturais, invenções úteis a todos; a revolução social de nossa época é uma irradiação imitativa mais simples e mais recente, que tem por focos as invenções ou descobertas de direitos, de idéias subjetivas, úteis (ou parecendo tais) a certas classes ou a certos partidos, ou, antes, apropriadas a certos temperamentos. A irradiação imitativa da primeira é o trabalho, é a emigração exterior, a colonização; aquela da segunda é a agitação política, é a greve e a rebelião, é a desclassificação geral sob todos as suas formas: emigração interior muito rápida (contanto que ela não seja sempre acompanhada de um progresso no trabalho) dos campos em direção às cidades; fortunas e ruínas súbitas; passagem brusca do nada a todo poder político ou vice-versa, etc. Ora, onde se recrutam, notoriamente, os criminosos ou os delinqüentes habituais? Entre os desclassificados. Sobre tantas reincidências urbanas, contai todos aqueles que emigraram do campo, não para trabalhar, mas para nada fazer. Sobre tantos bancarroteiros fraudulentos, falsários e escroques, contai aqueles que quiseram enriquecer num dia, não pelo trabalho, mas pela especulação, o jogo, a mania política, tantas formas diversas da mesma doença revolucionária, da mesma necessidade de mudar, a todo preço, sem qualquer outra razão além dela mesma[79].

Isso ocorre porque essa epidemia é não apenas francesa, mas européia, pois se vê a onda da criminalidade elevar-se em quase toda Europa como na França. Mas, na França, à necessidade de mudar de lugar, de classe, de estado social, acrescenta-se a necessidade de mudar de governo que, de todas as instabilidades, de todas as causas de insegurança, é a pior, porque ela aumenta todas as outras. A esse respeito, consideremos atentamente as curvas gráficas.

Ainda que a curva dos crimes seja, no conjunto, um declive, e aquela dos delitos seja uma saliência, estas duas linhas se parecem muito por suas quebras quase paralelas. Seus picos, seus abismos, seus platôs apresentam-se nas mesmas datas. Essa coincidência mostra que essas elevações e esses rebaixamentos, para cada uma delas, nada têm de fortuito, que essas perturbações têm sua razão nas variações de um mesmo estado social. Negligenciemos, todavia, as depressões puramente factícias que correspondem aos tempos de agitação ou de calamidades, de 1848 a 1870-1, e que denotam, como se sabe, não uma diminuição da criminalidade, mas uma parada da repressão, por conta da invasão, da mobilização de gendarmes e de todos os adultos, por conta da crise social, etc. Descartemos também as sublevações devidas à penúria em 1847, em 1854 e em 1855. Feita essa eliminação, um fenômeno que parece, numa primeira abordagem, um argumento a favor do despotismo vai nos surpreender. Durante todo o governo de julho, a linha dos crimes abaixou um pouco; a dos delitos subiu muito rapidamente; em suma, a criminalidade cresceu regularmente através da curta República de 1848, ascensão que prossegue até 1855, momento em que, batizado de sangue pela guerra da Criméia, o segundo Império se estabelece. Mas, de 1855 a 1866, a linha dos crimes mergulha e a dos delitos, ela mesma, não cessa de inclinar-se, o que atesta, no curso de onze anos, um verdadeiro refluxo da criminalidade. É bom ver como as estatísticas oficiais dessa época orgulhavam-se de tal resultado na véspera do dia em que ele iria ser invertido. Já, com efeito, no exterior e no interior, o Império estava abalado e, desde 1866, a curva correcional apruma-se para não mais se dobrar, a não ser na aparência.

Assim, o liberalismo de Luis Filipe não valeria, desse ponto de vista, o cesarismo de Napoleão III? As cifras não dizem isso, porque, na Bélgica, – e eu acrescentaria em todos os Países Baixos, – um regime liberal produziu, com o tempo, após ser ele também estabelecido e assentado nos costumes nacionais, um efeito em tudo semelhante àquele do Império autoritário. Se o governo de julho foi menos feliz, não foi talvez porque nós jamais conhecêramos, mesmo então, o liberalismo senão no estado agudo, e não crônico como entre nossos vizinhos? Já que um poder liberal, mas sempre mal assentado, deixou a criminalidade crescer entre nós, e que um poder autoritário, desde que começou a cambalear, deixou-a aumentar numa muito fraca medida, é verdade; já que um poder liberal consolidado fez decrescer a criminalidade entre nossos vizinhos, do mesmo modo que, entre nós, um poder autoritário julgado estável, não está aí a prova manifesta de que a natureza do poder é secundária aqui, ainda que não seja indiferente, e que, antes de tudo, o que importa é a estabilidade? Objetar-me-ão, erroneamente, o exemplo da Inglaterra, onde, malgrado a fixidez do governo, a criminalidade elevou-se. Isso seria esquecer a natureza aristocrática dessa nação, a extrema miséria que aí se acotovela com a extrema opulência, a fecundidade exuberante das famílias e outras características que, distinguindo-a de nós tão profundamente, podem neutralizar, naquela nação, o bom efeito de um regime político estável sobre a criminalidade.

Agora, se compararmos as curvas das quais fizemos questão com aquela das reincidências (quer dizer, com aquela que indica, não o número absoluto, mas a proporção das reincidências para um mesmo número de crimes ou de delitos, ano a ano), nós veremos nascer dessa aproximação um curioso contraste. Enquanto a bela parada descendente, o oásis da criminalidade, está compreendida entre 1855 e 1866, é de 1835 a 1848 ou 1850 que a curva das reincidências apresenta uma sorte de longo platô (omitido o acidente de 1817); mas ela se eleva a seguir para não mais parar. Por conseguinte, do ponto de vista das reincidências, a estatística comparada é favorável ao governo de julho, quase tanto quanto ela lhe é contrária do ponto de vista da criminalidade em geral; e dá-se o inverso para o segundo Império. Como explicar esse estranho fato?

A manutenção de uma igual proporção de reincidências, de 1835 a 1850, enquanto o número de crimes e de delitos progredia, mostra que esta progressão é devida a uma causa geral que agia sobre o conjunto dos cidadãos e não se confundia com qualquer causa especial própria aos malfeitores profissionais. Esta causa geral não seria por acaso o trabalho surdo de transformação social, de fermentação revolucionária que, após 1830, não cessou de nos agitar? Observemos, entre outros indícios, que, de 1789 a 1831, malgrado tantas perturbações, a relação numérica da população urbana com a população rural permaneceu a mesma (ver Block, Estatística da França, tomo I, página 58); mas, a partir de 1831, a proporção se modifica em proveito das cidades, o que significa que a terra se subordina ao capital, a imitação-costume subordina-se à imitação-moda, a pequena à grande indústria, transformação mobilizadora que vem momentaneamente em socorro à Revolução. Qualquer que seja, aliás, a causa geral de que se trata foi repelida pelo Império, de 1855 a 1866, por uma causa geral oposta. Mas, ao mesmo tempo, uma causa especial que, desde 1848 ou 1850, estimulava os criminosos de hábito não cessou de agir, com uma força sempre maior e crescente, mais depressa do que a criminalidade diminuía. Qual pôde ser a causa, a não ser o socialismo de estado, inaugurado pelas fábricas nacionais, depois pelos grandes serviços públicos, pelas confusas assembléias de operários nos centros populosos devidos à iniciativa de um governo inconseqüente, ao mesmo tempo contra-revolucionário por cima e promotor da revolução por baixo? O mapa das reincidências, que escurece do Sul ao Norte, segundo o grau de densidade da população, confirma, desse ponto de vista, a curva das reincidências que se eleva desde a época em que as aglomerações industriais se multiplicaram.

Eu não dou, de resto, minha interpretação senão por aquilo que ela é: uma inspeção de espírito mais ou menos plausível, mas o contraste sinalado é certo e certamente significativo. Em resumo, sobre esse ponto, um governo forte e, sobretudo, estável, eis o que nos falta, bem mais que fortes castigos de “fazer medo aos ladrões”. Na França, notadamente, o gendarme por excelência é o governo. Dir-se-ia que todos os malfeitores tem nele o olho, como os escolares sobre o vigia, espreitando seu descrédito, suas distrações ou suas sonolências. Sem o prestigio desse gendarme, a gendarmaria nada pode. Também não é ela que se deve acusar.

 

05 — Magistratura. Seus progressos constantes sob todos os pontos de vista. Cifra estacionária dos processos civis. Comparação das estatísticas judiciárias. Júri. Apanhado histórico sobre a distinção do civil e do criminoso.

 

Nem ela, nem a polícia, nem a magistratura. Este estudo seria incompleto se não mostrasse até que ponto esses três grandes corpos são inocentes do mal posto à luz do dia pela estatística criminal. No que concerne aos dois primeiros, a estatística atesta seu zelo crescente. Em 1841/45, o número de processos verbais de gendarmaria era de 56.000 por ano; Em 1876/80, 189.000. Eis uma outra indicação não menos significativa, eu creio. Ainda que os malfeitores se agrupem e se freqüentem cada vez mais, eles ousam cada vez menos atuar em bandos e, ao inverso dos exércitos em campanha, eles se reúnem para viver e se dispersam para agir. Com efeito, o número de crimes e de delitos, sempre inferior àquele de seus autores, aproxima-se, contudo, mais a cada ano, de onde a conclusão do relatório de que o espírito de associação diminui entre os criminosos e os delinqüentes. Isso seria estranho e contraditório relativamente aos progressos constatados em sua sociabilidade especial. Eles não pediriam mais que poder se associar novamente, para deter e pilhar os trens em marcha como os bandidos espanhóis; mas é o sentimento de sua impotência que os detêm ou a certeza do castigo.

Dever-se-ia agora, por acaso, endereçar críticas à magistratura ou ao júri? Quanto à magistratura, seu chefe a cobre de flores, como convém, aliás, a uma vítima que se conduz ao altar[80]. E, de fato, se unicamente as cifras têm falado, a propósito, por ela, ao menos são eloqüentes. O balanço judicial dos últimos cinqüenta anos não é senão o quadro de seus incessantes progressos, tanto quanto aqueles da criminalidade, quase como se vê aperfeiçoar-se a medicina em tempos de epidemia. Enquanto o número de queixas, denúncias e processos verbais endereçados ao Ministério Público mais que triplicou em cinqüenta anos e, por conseguinte, o trabalho dos magistrados aumentou na mesma proporção, a celeridade das perseguições, da instrução e das decisões judiciais quase dobrou, todavia. A proporção, sobre cem processos correcionais que foram julgados no primeiro mês a partir do delito, passou gradualmente de trinta e dois a setenta e oito; e, se a lei de 1863 sobre os flagrantes delitos contribuiu para este resultado que “pode passar sem comentários”, ela não pôde influir em nada sobre os resultados análogos relativos aos processos regrados por ordem dos juízes de instrução, sentenças de câmaras de acusação e acórdãos das cortes de apelação, julgando recursos de tribunais correcionais. Também a prisão preventiva, árdua necessidade, abrevia-se. Cinqüenta e nove vezes em cem, há cinqüenta anos, ela durava menos de um mês, agora, 80 vezes em cem, e “deve-se presumir, diz o relatório, que o limite do possível foi atingido”. O trabalho dos magistrados teria, por acaso, perdido em valor aquilo que adquirira em celeridade? De modo algum[81]. Cada vez menos, os casos levados para diante dos tribunais, e mesmo para diante do júri, pelo Ministério Público, resolvem-se pela absolvição. A proporção desta, para os tribunais, era de 139 em 1.000; caiu para 58. Diante do júri, era de 37% em 1831, agora não é mais que 17. É verdade, objetar-me-ão talvez, que os processos correcionais requeridos por particulares (ditos partie civile) tiveram sucesso, eles também mais freqüentemente que outrora, quer dizer, terminaram em condenações muitas vezes, melhora análoga à precedente, de onde parece seguir-se que, se se felicita de um lado a magistratura, dever-se-ia fazer honra, de outro, à sabedoria crescente do público, malgrado o ridículo da coisa. Mas, para dizer a verdade, não é à magistratura ainda que se deve louvar por haver sabido, – pela firmeza de sua jurisprudência e pela experiência que tem adquirido, – exercer uma ação preventiva sobre as perseguições apaixonadas oriundas levianamente da iniciativa privada e tornadas, felizmente, cada vez menos numerosas? Tal é a causa da gradual harmonia que se fortalece entre o público e seus juízes; porque eles desejam harmonizar-se sem cessar: “as decisões dos juízes de primeiro grau têm sido aceitas pelo Ministério Público e também as parties civiles numa medida cada vez maior; o número de apelações interpostas decresce de maneira constante”. Logo, não apenas as diversas engrenagens da máquina judiciária se ajustam cada vez melhor umas às outras, – júri e cortes de apelação, Ministério Público e câmaras de instrução, câmaras de instrução e câmaras de acusação[82], etc., – mas ainda elas se adaptam cada vez mais às necessidades dos sujeitos à jurisdição, e estes, de maneira semelhante, às suas tradições melhor conhecidas. E, entre parênteses, esta dupla acomodação gradual, este duplo equilíbrio móvel que se estabelece com o tempo, pelo funcionamento regular das velhas máquinas sociais, é uma das mais fortes razões para não substituí-las inconsideradamente por instituições totalmente novas, que terão de atravessar, por sua própria conta, esse longo período inevitável de equilibração.

Eu devo acrescentar que a estatística da justiça civil depõe aqui com a mesma força e no mesmo sentido. Desde 1841, o número de processos civis expedidos em três meses a partir de sua inscrição na lista elevou-se de 35 para 57%. “As regras do processo civil que deram lugar, há quarenta anos, a 20 sentenças em cem não provocam hoje mais que 10”. A proporção dos juízos preparatórios[83], quer dizer, das custas inúteis ou menos úteis, vai diminuindo. O que é mais notável ainda, enquanto a criminalidade se desdobra de ano para ano, a processividade se mantém quase estacionária. Se se excetuaram as demandas por separação de corpos, que formam uma classe à parte, vê-se com surpresa que o número anual de processos por 10.000 habitantes jamais esteve abaixo de 31 nem acima de 38, e que estes dois limites extremos foram raramente atingidos ou mesmo aproximados. Como explicar este estacionamento numérico? Eu imaginara, primeiro, que ele poderia dever-se simplesmente a que o provável aumento dos conflitos de interesses devidos ao crescimento da riqueza pública, ou seja, dos lucros desde há quarenta ou cinqüenta anos, tivesse sido exatamente compensado pela diminuição das tendências processivas, reputada esta como devida ao progresso da instrução[84]. Mas, além da inverossimilhança de uma compensação tão exata, não é apenas a riqueza que tem triplicado ou quadruplicado durante este período semi-secular; é ainda o fracionamento da propriedade que continuou rapidamente multiplicando, com o número de proprietários, as ocasiões e as oportunidades de processos relativos à propriedade, servidão e usufruto; é também a facilidade das comunicações que cresceu maravilhosamente, aproximando sem cessar o juiz do sujeito à jurisdição, o que equivale a um aumento do número de tribunais, ou seja, um incentivo ao pleito. Outro incentivo: a possibilidade de pleitear por nada, a assistência judiciária em proveito dos indigentes, enfim, a extensão da vida humana, fértil em complicações e conflitos de interesses, em compras, vendas, aluguéis, hipotecas, contratos de todo gênero cada dia mais numerosos. E quantas causas de excitação à chicana ficaram sem efeito! O que, pois, se fez para lutar contra elas? Antes de tudo, o corpo judiciário, graças aos aperfeiçoamentos incessantes que aporta à estabilidade de nossas excelentes leis civis, na fixação de sua jurisprudência esclarecida que encera, nos mais estreitos limites, o número de pontos de direito passíveis de controvérsia. Vê-se aquilo que pode uma boa e velha instituição, à força de se exercitar sobre uma boa e velha lei. Quando uma lei não é suficiente por ela mesma e quando, além disso, ela não é muito boa, ainda que antiga (é o caso de nosso código penal), este trabalho se transforma em pura perda, como o demonstra a progressão da criminalidade. Mas, em matéria civil, onde uma boa lei é suficiente e onde nossa lei é boa, o sacrifício da magistratura, – acrescente-se, dos advogados e dos jurisconsultos, – não foi perdido. Dir-se-ia que aqui, ainda, “o limite do possível foi alcançado”. A surpreendente constância do número anual de processos parece indicá-lo. Essa uniformidade parece-me ser, com efeito, o traço distintivo pelo qual se traduz estatisticamente a ação, nos fatos sociais, de uma causa orgânica e vital, por exemplo, a influência da idade, do sexo, da raça[85] ou a ação de uma causa física, tal como o clima e as estações, ou, enfim, a ação de uma causa social tão antiga, tão enraizada, notadamente, a influência do casamento ou de certos sentimentos religiosos, ação que tenha, de qualquer sorte, passado ao sangue e, desde há muito tempo, tenha ainda alcançado os limites de seu próprio campo de irradiação imitativa[86]. Partindo daí poder-se-ia ser levado a ver, no caráter estacionário da cifra anual de litígios civis, o indício de que todas as tendências processivas de origem social, mais ou menos recente e de natureza compressível, foram comprimidas, e que este mal foi cortado até sua raiz vital ou quase vital, mas até aí exclusivamente, pois que nada no mundo poderia impedir de pleitear um litigante por natureza ou por tradição. Notemos, nesse mesmo sentido, que o número de processos correcionais instaurados a requerimento de partes civis permaneceu rigorosamente idêntico durante os quarenta e cinco anos considerados. Em aproximando esta uniformidade notável da precedente, seremos certamente levados a explicá-las da mesma maneira.

Não apenas o número de processos comerciais, malgrado o desenvolvimento do comércio, não cresceu, como diminuiu[87]. À primeira vista, este fenômeno pode parecer eclipsar o precedente; mas, na realidade, há menos lugar para maravilhar-se[88]. Aqui, com efeito, intervém uma causa restritiva dos instintos de chicana, causa que não age na vida civil, e que assessora eficazmente, na classe dos comerciantes, a repressão salutar dos tribunais. Os comerciantes vivem uma vida própria, conhecem-se, freqüentam-se, emprestam-se reciprocamente as receitas e as práticas julgadas as melhores e colocadas em moda, notadamente, a prática de transigir e de evitar, o máximo possível, as discórdias judiciais. Entre eles, por conseguinte, além desse entrecruzamento de irradiações imitativas e difusas que constituem a vida ordinária, circula uma ação imitativa direta, de um gênero especial, que tem suas vias especiais de transmissão, mais rápidas e mais fáceis. Esta está para a outra como a eletricidade dinâmica para o calor. Se, por exemplo, é necessário um século para fazer sentir, aos litigantes civis, a loucura de pleitear, são suficientes alguns anos para fazer penetrar esta verdade nos litigantes comerciantes[89].

Isso nos conduz, incidentemente, a dar a razão pela qual o júri, – corpo eletivo renovado sem cessar, composto por pessoas que não se conhecem ou, antes, entidade puramente nominal que compreende tanto jurados distintos, estranhos uns aos outros, quantos são os processos criminais, – se apresenta, comprovadamente, incapaz de progresso, enquanto a magistratura revela seu contínuo aperfeiçoamento. É que a magistratura, mais ainda que qualquer categoria de comerciantes ou de industriais, é um corpo verdadeiro, composto por membros solidários, onde a circulação imitativa dos empreendimentos julgados felizes é pronta e constante, onde o tesouro dos hábitos nascidos deste modo e enraizados pelo espírito de corpo sob o nome de jurisprudência, se enriquece sem cessar e se transmite fielmente aos sucessores. Se o contágio do exemplo é, com efeito, um perigo, ele é, ao mesmo tempo, a única esperança das sociedades[90] e, lá onde falta a facilidade das assimilações, lá é necessário renunciar a todo progresso. Com uma magistratura eletiva, nada de análogo à excelente moda da correcionalização, tornada hábito tradicional, poderia propagar-se. E esse progresso é muito devido à imitação espontânea agindo de magistrado a magistrado, e não às circunstâncias, porque, no relatório sobre a estatística de 1859, eu li, ao contrário, que o Ministro da Justiça não cessa de recomendar à magistratura usar desse procedimento com muita reserva. Os remanejos contínuos da legislação relativa à organização e às operações do júri puderam torná-lo melhor; a magistratura, em se acomodando de antemão e cada vez mais às suas exigências, fez com que a proporção dos veredictos negativos diminuísse da metade (porque é a ela, unicamente, que convém felicitar por um tal resultado, como o fez o Ministro da Justiça); mas, por si mesmo, o júri em nada progrediu!Tomai-o tal como ele é, com suas qualidades incontestáveis e com seus defeitos incorrigíveis, com suas idéias que variam apenas seguindo os caprichos da opinião reinante, desta opinião cujo desprezo é o próprio respeito da experiência e da razão; mas não espereis dele qualquer reforma de suas manias, de seus preconceitos, de suas imprevidências. Por que é ele mais severo com os roubos (9, 12 e 24 absolvições para 100 acusações) que com as falsificações e bancarrotas fraudulentas, estes roubos em grande escala (37 e 47 absolvições para 100 acusações)? Por que, na Córsega, quando a epidemia de assassinatos por vingança redobrou de intensidade, ele não sentiu a necessidade de remediá-la através de uma maior severidade? Isso é assim e assim permanecerá; e, se algum bom júri, aqui e ali, mostrar-se previdente, firme e lógico, seu exemplo não seguido será um trabalho perdido.

Coisa estranha em aparência, quanto menos as decisões dessa jurisdição caprichosa têm influência umas sobre as outras, mais elas são concordes em conjunto, por apresentarem certas características comuns reproduzidas com uma regularidade notável. O júri deixa-se influenciar, sempre na mesma medida (a concordância das cifras proporcionais é flagrante), pelo sexo, a idade e o grau de instrução dos acusados, é tanto mais severo para com os acusados, quanto estes são menos jovens ou menos instruídos; é mais severo para com os homens do que para com as mulheres; e é mais severo para os crimes contra a propriedade do que para os crimes contra as pessoas. Vê-se que ele é galante e senhorial. Sem zombaria, isso significa, não que ele tenha uma jurisprudência inconsciente, mas que, em média, – como a coisa deve fatalmente ocorrer para os espíritos de mesma ordem média, de um mesmo país e de uma mesma época, – ele tem em vista, segundo uma medida invariável, circunstâncias agravantes ou atenuantes que, no conjunto dos casos, não mudam. Com efeito, quando os homens agem isoladamente sem se copiarem, se adicionarmos as ações de mesmo gênero que eles praticam, chega-se sempre a cifras que, por assim dizer, não variam de um período a outro. Por quê?Porque as forças, os motivos aos quais eles obedecem então são extraídos do temperamento invariável de sua raça ou de seu caráter nacional que muda com extrema lentidão, ou dos costumes e das idéias de seu século que, apesar de menos lentos para mudar, podem ser considerados como imutáveis também no tempo tão curto que abraçam, em geral, nossas estatísticas[91].

Mas quando, aos motivos que o excitam e que desempenham o papel de constantes, se acrescenta a força variável da emulação, que vem dirigir em tal ou qual sentido (ao gosto dos inventores ou iniciadores imitados pelos êmulos) os instintos de raças ou de paixões nacionais e seculares e, ao mesmo tempo, superexcitá-los ou acalmá-los, transtornar, enfim, suas proporções relativas, fazer com as mesmas cores um outro quadro, vêem-se logo séries de números que crescem ou decrescem com mais ou menos grande rapidez. Cada comerciante, cada industrial, se não tivesse o exemplo de seu vizinho para estimulá-lo e transformá-lo, se embruteceria como antigamente numa rotina imutável. Mas a imitação de outrem o força a progredir. De sorte que a necessidade de assimilação é a fonte das mudanças sociais, e que, lá onde não se copia mais, lá não se renova mais. Gira-se cada vez mais sobre si mesmo, à medida que se avança cada vez menos, e a imitação-hábito torna-se o abismo de outras espécies de imitação. E o exemplo de outrem que pode sozinho nos arrancar ao império perigoso de nosso próprio exemplo. Quantos grandes artistas perderam-se por aí e caíram assim do estilo ao maneirismo, do maneirismo à mania e ao ridículo! Pela mesma razão, os resultados exteriores largamente estendidos são necessários a uma nação, para impedi-la de cair na rotina de seu invariável temperamento e patinar sobre o espaço da agitação política. A extensão de sua influência para fora (o que não quer sempre dizer de sua política colonial) é a condição do progresso de seu funcionamento interior.

Resulta de tudo isso que, se quisermos ter uma magistratura eletiva, sem coesão nem espírito de corpo e, nisso, semelhante ao júri, não se lhe deve exigir qualquer progresso espontâneo. Ela terá, desde o início, suas vantagens próprias, ainda que seu primeiro efeito seja, provavelmente, um aumento enorme de processos de todo gênero desde o dia seguinte à sua instalação. Mas o menor de seus méritos, seguramente, será a perfectibilidade.

A comparação das três estatísticas que acabamos de percorrer, a saber, a estatística criminal, a estatística civil e a estatística comercial, se poderia resumir assim: a primeira é uma subida, a segunda, um movimento horizontal, a terceira, uma descida. Pela primeira exprime-se o poder da imitação em sua ação perigosa; pela terceira, o mesmo poder em sua ação salutar; pela segunda, o resultado de sua inação. Com efeito, um malfeitor, em cometendo um delito, copia em parte outros malfeitores (e em parte, também, determina-se pelos impulsos de sua educação, de sua classe ou de sua nacionalidade, imitação de outra espécie, mais profunda ainda e mais poderosa); da mesma maneira, o comerciante, decidindo-se a não litigar, segue o exemplo de seus pares; mas, decidindo-se a litigar, ao contrário, o litigante civil não obedece senão à sua natureza (ou, ainda uma vez, aos impulsos – imitativos em outro sentido – de sua educação familiar e do meio social), sem pensar muito nos demais litigantes. Eis, entre outras explicações, a interpretação que se pode dar às cifras oficiais.

Mas nós não podemos abandonar esse assunto sem fazer ainda algumas observações. Ainda que a distinção do civil e do criminal seja reputada, no Palácio da Justiça, um desses abismos que ninguém saberia transpor, não é menos verdadeiro que, no fundo, seja no civil, seja no criminal, tratam-se sempre de violações dos limites impostos pela lei à liberdade dos cidadãos, e que, na origem, as legislações civil e criminal se confundiam entre todos os povos: citemos a lei de Sólon, aquela das Doze Tábuas, o Código de Manu, a Lei Sálica. Ao ler essas velhas coletâneas, onde se é surpreendido pela preponderância muito acentuada dada ao código penal, tornado tão secundário nos códigos civilizados, poder-se-ia acreditar que, nessas antigas sociedades, a confusão de ambos os elementos operava-se pela quase aniquilação do elemento civil. Mas, de outra parte, dir-se-ia o contrário ao ver seus debates criminais sob a forma de simples processos. A verdade é que, desde esses tempos recuados, teve-se sempre, malgrado tudo, o sentimento muito vivo de uma diferença entre uma injustiça ou uma ofensa dirigida a uma só pessoa ou a uma só família, e uma injustiça implicando num perigo para todas as pessoas, para todas as famílias de um país, ou uma ofensa ferindo os preconceitos e o sentido moral de todos. Não poderia ser senão ao longo do tempo que esta diferença se fosse tornando precisa, sobretudo na medida em que a população se condensava e que as famílias, inicialmente fechadas, abriam-se umas às outras. Mas seria um erro pensar que, em conseqüência dessa cisão gradual, os começos puramente civis, quer dizer, a ocasião de violações de direitos puramente individuais, nada tivesse a ver com a moralidade de um país. Observemos que os processos, como os delitos, são a transformação, sob forma atenuada, de guerras privadas e de antigas pilhagens, pré-históricas e anteriores a toda ordem legal. Quanto aos delitos, esta evolução não tem necessidade de ser demonstrada. Ela não é menos certa no que concerne aos processos. Desde que, num país entregue até então à anarquia, se estabeleça uma justiça respeitada, armada de uma espada todo-poderosa, as guerras privadas cessam e os processos começam. “Quando uma província bárbara é anexada ao Império Britânico das Índias, diz Sumner Maine em suas Instituições Primitivas, forma-se logo, na porta dos tribunais imediatamente constituídos, um curioso e instrutivo concurso de litigantes... Aqueles que não mais podem combater se endereçam à lei, os apelos apressados a um juiz sucedem às ardentes querelas e os processos hereditários substituem os ódios sangrentos das famílias.” Este último traço nos explica, entre parênteses, a extraordinária demora dos litígios, sobretudo entre pessoas de classes elevadas, ao longo de toda Idade Média e até Luiz XIV. Os eruditos, que freqüentemente são surpreendidos por este fato, têm-no explicado muitas vezes, e muito erroneamente, pela negligência dos juízes; é a pertinácia vingativa das partes, é a duração secular dos ódios familiares que é a verdadeira explicação desse fenômeno. Se a duração dos processos abreviou-se, foi, em parte, sem dúvida, graças ao progresso da organização judiciária, acrescente-se, graças ao relaxamento dos liames familiares e à ruptura do feixe familiar primitivo, mas foi também porque os litígios têm, cada vez mais, sua fonte no simples conflito de interesses – provocado muitas vezes pela má-fé de um dos litigantes – e, cada vez menos, no choque das paixões – provocado pelo ódio ou pela cólera de um agressor. Pode-se ver a prova na importância relativa que adquirem e não cessam de adquirir, a despeito de sua baixa numérica momentânea, os litígios comerciais, espécie singular de processo civil no sentido amplo da palavra. Ora, o interesse é, certamente, a alma toda pura dos litigantes comerciais; e eis de onde deriva, talvez, entre muitas outras causas, a notável celeridade de seus debates. Temos aí as duas extremidades de uma série: no início, as guerras privadas, das quais o simulacro conserva-se nos combates judiciais; no fim, as contestações diante dos tribunais de comércio; no meio, os processos civis.

Para bendizer-se o processo, não há senão, dirigindo-se à audiência, dizer: todas essas pessoas se bateriam em duelo, se não litigassem. Se elas se batessem, manifestariam muito de ferocidade; em litigando, não manifestam senão que muito de má-fé. Há progresso. Quer isso dizer que não se deve olhar como um bem a parada ou a diminuição dos processos? Não, porque, – vê-se, – um processo é quase sempre a conseqüência ou o sintoma de uma desonestidade, quando não é um delito mais ou menos disfarçado ou contornado. E, em olhando isso de muito perto, ver-se-ia, pois, que a estatística dos tribunais civis seria ela mesma muito própria a jogar luzes sobre o estado moral de uma nação. Mas então, como pode ser, ainda uma vez, que na França, desde há cinqüenta anos, o número de delitos haja triplicado, enquanto aquele dos processos civis permaneceu estacionário? Como interpretar este contraste? Primeiro, digamos que ele não é completo. Por exemplo: o número de processos de separação de corpos e de divórcio cresce paralelamente à cifra dos adultérios. Por que, todavia, a cifra dos processos envolvendo servidão predial e propriedade não aumenta ao mesmo tempo em que aquele dos roubos e dos abusos de confiança? Eu já dei uma razão, mas retorno. A única diferença bem nítida que parece existir em aparência entre os processos criminais e os processos é que, nos primeiros, o requerente é o representante da sociedade, enquanto, nos segundos, requerente e requerido são igualmente simples particulares; porque esta diferença importante nem sempre existiu em todos os países; mas são, parece, apenas os primeiros que terminam pela condenação a uma pena. Entretanto, será que os direitos cuja violação motiva os litígios civis são desprovidos de sanções? Não. A verdadeira pena dessas violações é a perda do processo e o pagamento das custas. Castigo cruel e dos mais temidos! Enquanto a penalidade criminal vai se abrandando, enquanto as prisões vão se tornando confortáveis, enquanto os tribunais correcionais e os júris se vão humanizando, são os tribunais civis que se fazem cada vez mais rigorosos, é a penalidade civil que causa medo às pessoas, por duas razões: de uma parte, a elevação acelerada dos honorários advocatícios e dos registros cartoriais que acabam por tornar ruinosa a condenação às custas e ao principal, não aos acessórios, aí a questão de saber quem os pagará; de outra parte, como eu já disse, a certeza cada dia maior, para o culpado, para o litigante temerário, de ser punido dessa sorte, a jurisprudência fixando-se cada vez mais. Eu quero retirar dessa observação um ensinamento, a saber, que a penalidade, malgrado aquilo que podem dizer alguns criminalistas, é um excelente freio, digno de toda nossa atenção. Lá onde ele se estreita, com efeito, constata-se uma parada ou uma diminuição das violações à lei; lá onde ele se relaxa, um crescimento dessas violações.

 

06 — Religião, sua influência. Instrução primária, sua ineficácia. Instrução superior, sua virtude. A moral fundada sobre a estética.

 

Limitemo-nos à estatística criminal e concluamos, ainda uma vez, que o mal crescente, indício, aliás, de uma melhora escondida, exposta por ela aos nossos olhares, não é imputável nem à polícia, nem à justiça, nem à civilização, nem mesmo à lei penal, mas, talvez, muito ao recalcamento dos instintos caridosos e à sublevação das paixões revolucionárias. Entretanto, desconheceremos nós a ação, favorável ou não, sobre a criminalidade, de causas tais como a instrução, o trabalho, e riqueza e o declínio das crenças religiosas? Indiquemos brevemente nossa resposta a essas questões.

Relativamente à última, não é duvidoso que o medo do inferno, para chamá-lo pelo nome, enfraqueceu muito ou mesmo desapareceu completamente, ao menos entre os adultos, assim como o desejo do céu e do amor de Deus, as regras e os hábitos morais de nossos pais e também de nossa infância, que esses sentimentos contribuíram para formar, não subsistem e não subsistirão menos, mas estão cada dias mais abalados, mais incapazes de resistir ao assalto da cobiça. É preciso não se iludir: o diabo tem contribuído talvez tanto quanto o carrasco para formar o coração dos europeus passados e presentes, mesmo daqueles que a pena de morte e as superstições revoltam mais. Cristã ou não, a França permanecerá muito tempo ainda cristianizada, do mesmo modo que, bonapartizada ou não, desde a época orgânica do Consulado, está, de bom ou mau grado, bonapartizada mesmo até a medula dos ossos. Todavia, essa sobrevivência da moral religiosa aos dogmas, como aquela das instituições aos seus princípios, não tem senão um tempo; e de onde as gerações novas irão extrair sua moralidade, à medida que a antiga fonte secar? Em outros termos: para lutar contra as tendências destrutivas, quais sentimentos fecundos, diferentes dos precedentes, se fortificarão nelas? Porque são sentimentos e, mais ainda, princípios, ou seja, resíduos de convicções estáveis, inconscientes, definitivas, e não de idéias, quer dizer, convicções em via de se formarem, em via de descer do espírito ao coração, e do coração ao caráter que se trata de suscitar aqui.

Não se nos espantemos, pois, de não descobrir, na estatística criminal, o traço de alguma influência benfazeja exercida pelo progresso da instrução primária sobre a criminalidade. Vê-se, bem claramente, a ação da instrução sobre a loucura e o suicídio, que aumentam paralelamente com seus progressos; não se percebe, de maneira alguma, sua ação soi-disant restritiva sobre a criminalidade. O relatório oficial confirma-o e deplora-o. Um quadro mostra que os departamentos onde a população de iletrados é maior está bem longe de ser sempre aquele onde os acusados são mais numerosos, à vista no número de sua população[92]. De outra parte, os campos, que são menos instruídos, dão 8 acusados anuais sobre 100.000 habitantes; as cidades, 16. Segue-se disso, porém, que o grau de instrução de um povo seja coisa indiferente do ponto de vista criminal? Não. Primeiro, ele influi, evidentemente, sobre a qualidade, senão a quantidade dos delitos. E é o mesmo com o grau das riquezas. Um pouco mais de luzes e um pouco mais de riqueza desenvolvem certos apetites e reprimem outros, transtornam, enfim, a hierarquia interior dos desejos, fonte de nossos crimes e de nossos delitos. Nos departamentos pobres, os crimes contra as pessoas igualam em número os crimes contra a propriedade. Nos departamentos ricos, a proporção destes últimos prevalece em muito. Se a estatística comparada de roubos detalhasse esse artigo conforme a natureza dos objetos roubados, – menção sociologicamente bem mais útil que as indicações relativas à idade dos ladrões, – ver-se-ia, sem dúvida, que, desde há quarenta ou cinqüenta anos, desde que a França enriqueceu, o número proporcional de roubos de colheitas diminuiu, enquanto aquele dos roubos de jóias, dos roubos de dinheiro ou outros aumentaram e aumentam ainda. Do mesmo modo, a proporção de delitos contra os costumes, de rebeliões, de estelionatos, etc. cresceu muito, efeito provável da emancipação e do refinamento dos espíritos.

Mas, enquanto se tratar da instrução simplesmente primária, deve-se reconhecer que a quantidade de crimes e de delitos tomados em bloco não é menos atingido no mundo por sua difusão. Ao contrário, a ação benfazeja da instrução secundária e, sobretudo, superior não é duvidosa. A prova está na muito fraca contribuição dos proprietários e dos que vivem de rendas, das classes letradas no contingente criminal da nação: resultado, observemo-lo, que não é devido à relativa riqueza dessas classes, porque a menos rica, aquela dos agricultores, partilha com ela esse privilégio em razão de alguma outra causa a pesquisar (provavelmente porque ela é a mais laboriosa), e a classe dos comerciantes, a mais rica talvez dentre todas, apresenta o fenômeno inverso. Não é, não mais, a fé religiosa que age com mais força sobre as classes mais instruídas. Ela age muito menos sobre elas. Não é, enfim, que elas tenham uma energia maior no trabalho; a esse respeito, a classe dos comerciantes e dos industriais ultrapassa-a tanto quanto a classe agrícola sobre a última. É, pois, à sua instrução elevada a um certo grau ou, antes, à sua Educação de uma certa natureza que se deve atribuir sua moralidade relativa.

É notável que a influência moralizadora do saber comece no momento em que ele cessa de ser uma ferramenta apenas e torna-se um objeto de arte. Se a instrução, pois, viesse a não ser senão profissional, se ela deixasse de ser estética, senão clássica, ela perderia, sem nenhuma dúvida, sua virtude enobrecedora. Por quê? Porque o bem não saberia ser concebido senão como o útil social ou o belo interior, e, desses dois únicos fundamentos da moral (afastado todo comando divino), o primeiro, o fundamento utilitário, implica necessariamente no segundo; porque nos conflitos tão freqüentes do interesse geral e do interesse particular, sobre o que se apoiaria o indivíduo para sacrificar este àquele, para amar aquele mais que este? Apoiar-se-ia unicamente sobre o amor ao belo, desde há muito tempo cultivado nele pela educação apropriada, e sobre a persuasão de que ele se embeleza interiormente pelo sacrifício, louvado ou não, conhecido de todos ou apenas dele mesmo. Tal motivo bastaria para recomendar ao amanhã os estudos literários, a arte e também as especulações filosóficas, todas coisas que, em tornando o homem interessado pelo seu ou para o seu objeto, o desinteresse dele mesmo, revelam-lhe, no fundo desse desinteresse, seu supremo interesse: no fundo do inútil, o belo. Quando ele aprende a conhecer certas impressões delicadas e por isso toma gosto, esse desejo de as reencontrar fá-lo repelir as satisfações grosseiras que lhe fechariam o caminho. Porque, se a alta cultura moraliza, é que a moralidade é a primeira condição subentendida da alta cultura, como a primeira condição da flora alpestre é um ar puro. Eu sei que eles são raros, esses que fazem o bem pelo amor da arte, os estetas da moral, os novos místicos, e que é grande o número daqueles que o fazem hoje pelo medo do gendarme ou da desonra, como outrora, pelo medo do diabo ou da excomunhão. Mas, enquanto o hábito desses últimos aperfeiçoará o código penal, não seria preciso aumentar a minoria dos primeiros, difundindo sobre todos e sobre tudo, elevando a elite humana de onde decorre o exemplo, o culto indispensável das belezas inúteis? Depois de tudo, são eles assim tão raros, os homens que, pelo sentimento de sua dignidade pessoal, sorte de gosto estético refletido e chamado consciência, são corajosos, francos, devotados, malgrado a vantagem evidente que eles encontrariam, muitas vezes, em ser covardes, egoístas e mentirosos? Tanto vale o modelo quanto valem as cópias. Felizmente para nós, nossos modelos invisíveis, os semideuses reverenciados em nossa educação do colégio, grandes teóricos, grandes artistas, inventores de gênio, eram a flor da honestidade humana, e a lógica o queria assim, porque foi para eles uma contradição os termos de ter sede da verdade pura e procurar enganar outrem, enquanto não existe contradição, ao menos no mundo do aprendizado da química, em envenenar alguém ou estudar o direito para usurpar o bem de seu vizinho, de onde se segue que a honestidade dos químicos, dos juristas, dos médicos e dos sábios não poderia ligar seus estudos propriamente científicos ao sentido profissional e utilitário da palavra. Mas os grandes homens de quem eu falo foram morais por necessidade intelectual de abnegação e lealdade, e ainda que tal necessidade não se faça sentir na média das pessoas instruídas, eles lhe dão o tom, eles se imprimem mais ou menos em todo novel escolar e, propagados dessa sorte em inumeráveis modelos, imprimem seu selo nas naturezas mais vulgares, tal como uma impressão usada e brilhante sobre uma cédula de valor[93].

Como zombam de nossos estudos clássicos! É, todavia, notável que, lá onde eles são cultivados, as virtudes sociais floresçam melhor e que, malgrado as tentações mais numerosas, as paixões mais vivas, as necessidades mais variadas, a emancipação mais completa do pensamento, malgrado enfim todas as possibilidades maiores para o crime e as facilidades relativas de subtrair-se à ação das leis, não obstante tudo isso, a criminalidade é mínima. Não é talvez sem uma razão profunda que, no momento em que, precisamente, o catolicismo recebeu seu primeiro grande abalo, no século XVI, o Humanismo nasceu, como que por uma sorte de contrapeso. E eu não me espanto, não mais, de ver, no século XVIII, no segundo grande assalto ao dogma, entre os enciclopedistas ou outros, o respeito singular pelas tradições literárias e pelos tipos consagrados da arte, a admiração quase supersticiosa por Virgílio e por Racine crescer na medida dos progressos de sua irreligião, irreverente para com todo o resto. Ao inverso, observa-se que os romancistas do Império e de 1830, lutando contra as tradições literárias e contra o culto da arte clássica, tomaram, como ponto de apoio, o sentimento cristão reanimado ou galvanizado, conservadores aqui, tanto quanto inovadores lá. Todos estes contrastes pareceram estranhos àqueles que negligenciaram em perceber a instintiva compensação de uma fonte de fé e de moralidade por outra. É de aparentes inutilidades que são feitas as funções superiores. Percebe-se-o, quando elas são cortadas. Para que serviriam, diz-se, as belas florestas inexploradas das montanhas? Abateu-se-as para cultivar o solo inclinado que elas retinha; e depois, então, o transbordamento dos rios exerceu devastações desconhecidas no passado. Porque é suficiente um pouco de sombra verde em sua fonte para moderar seu primeiro elã. E é suficiente, talvez, essas outras superficialidade que se chamam as letras, as artes, e daquelas que têm lugar para a multidão, as festas tradicionais, populares, domésticas ou religiosas, os lazeres, as lembranças costumeiras, como as altas florestas de abetos. Um povo que, num pensamento utilitário, sacrifica essas alegrias puras, irá lamentá-las; e quando, em corações disparados, nada mais se retiver em sua queda, a ambição, o amor, a inveja, o ódio, a cupidez, não se nos deveremos espantar em ver, a cada ano, subir a onda de sua criminalidade transbordante.

Minha conclusão é que seria grande o perigo, após haver suprimido da escola primária o ensino religioso, de enfraquecer, nas escolas, o lado estético da educação que convém, antes, fortificar[94]. O momento seria tanto pior escolhido quanto, pela primeira vez, o poder político, de onde sempre acaba por derivar, com o tempo, a força do proselitismo, o prestígio exemplar, o verdadeiro poder social, numa palavra, é retirado dos proprietários e daqueles que vivem de rendas, cuja criminalidade é de 6 acusados por ano para 100.000 pessoas dessas categorias, e conferi-lo, não às classes agrícolas, onde ela é de 8 para o mesmo número de agricultores, mas, na realidade, às populações industriais e comerciantes das cidades, onde ela é de 14 e de 18 para igual cifra de industriais e de comerciantes[95]. Porque não é exato dizer que nosso país se democratiza. Democratizar-se, para uma nação onde o povo é, em três quartos, camponês, isso seria, – perdão pela palavra, – encamponizar-se, ou para exprimir a coisa com conveniência, expandir e consolidar os hábitos, as preocupações, as idéias agrícolas e rurais. Mas o contrário tem lugar para a emigração assustadora dos campos em direção às cidades[96], e, mais ainda, pela importação dos hábitos urbanos, das idéias urbanas ao fundo dos campos. A França comercializa-se, industrializa-se, se se quiser; ela não se democratiza. A coisa tem de bom, seu lado excelente que eu aplaudi sob muitos pontos de vista; mas vou mostrar aqui o reverso da medalha.

Se, como eu acredito haver demonstrado mais acima, a fonte da criminalidade profissional não pode secar em primeiro lugar senão pela expansão maior da beneficência e pela criação de numerosas sociedades de patronagem, importa que as novas classes dirigentes, tanto ou mais que as antigas, comecem a praticar o culto do bem, do belo pelo belo. E se, em segundo lugar, o remédio ao mal da criminalidade geral encontra-se, em parte, na estabilidade do poder político, é necessário não esquecer que, sem uma forte dose de devotamento entre os governantes e de confiança entre os governados, não há governo possível por muito tempo. O encontro destas duas condições é raro; ora um povo ingênuo confia-se cegamente a um déspota, a um egoísta de talento ou de gênio; ora um homem de estado devotado aos interesses do país tropeça numa desconfiança geral que o paralisa; mas existe aí esta diferença a notar: a de que, freqüentemente, com o tempo, o devotamento dos chefes torna a multidão confiante, enquanto jamais se viu a confiança de uma multidão fazer nascer a abnegação no coração de seus dirigentes. É, pois, antes de tudo, o desinteresse, a generosidade, o amor inteligente do bem público que se trata de encontrar entre os homens chamados a governar, pois que o resto pode vir por acréscimo. Resulta que nossas duas conclusões precedentes são igualmente concordes em proclamar a necessidade do sacrifício, a insuficiência do motivo do interesse pessoal e a oportunidade de elevar, por conseguinte, a educação estética o mais alto possível, tanto quanto difundir a instrução profissional o mais amplamente possível[97].


 

Capítulo Terceiro

Problemas da Penalidade

 

Em um de nossos capítulos precedentes, mostramos que estamos longe de desconhecer os fatores antropológicos do delito, como diz Ferri. Não há um fenômeno social, nós o sabemos, que não seja produzido por forças naturais; mas não há um, não mais, que não tenha razões sociais E como, a nossos olhos, o criminalista não é, antes de tudo, um naturalista, mas é bem um moralista esclarecido, quer dizer, um sociólogo, sua principal tarefa parece-nos ser a de discernir, — eu não digo os fatores sociais do delito (porque todos os fatores são individuais e psicológicos), — mas as razões sociais do delito, a fim de agir sobre elas. Nós iremos, no presente capítulo e no seguinte, colocar, um pouco ao acaso, alguns problemas que sublevam os dados da estatística criminal ou da nova psicologia. O único liame dessas considerações será o espírito eminentemente sociológico que os inspira e que se revelará cada vez mais. A questão de saber a parte que se deve dar aos impulsos fisiológicos e aquela que é necessário reservar às influências sociais na criminalidade não puramente teórica. Ela apresenta o mais prático interesse. Por exemplo: se, à vista de certos criminosos, há lugar para crer que os impulsos da vida física foram determinantes, o castigo, – chamado aqui medicação, – poderia impunemente ser inteiramente novo, sem nenhum respeito pelos usos judiciais e pelos hábitos do público. Por quê? Porque o conservador mais enraizado na tradição compreende muito bem a necessidade de inovar bruscamente em medicina, todas as vezes que uma nova descoberta sugere um tratamento preferível ao antigo, mesmo muitas vezes secular. Eis aí o equivalente do costume a respeitar, eis o hábito fisiológico, o temperamento que, com efeito, convém ter sempre em vista ao tratar seu doente. Ora, de modo semelhante, quando se trata de responder a um delito nascido de causas principalmente sociais por um tratamento adequado, quer dizer, por um verdadeiro castigo, não se compreenderia uma inovação brusca, uma perturbação súbita dos hábitos sociais e do temperamento nacional em matéria de penalidade.

 

01 — Grau Necessário de Convicção Judicial
Variabilidade de um tribunal a outro, de um tempo a outro e de zero ao infinito. Culpabilidade e condenabilidade: como o juiz chega a ser fixado – análise psicológica. Regra teórica das variações de que se tratam.

 

Comecemos por uma pequena questão que eu me espanto de não haver visto ser tratada em parte alguma, mesmo pelos criminalistas italianos. Estes, segundo pertençam à escola clássica ou à nova escola, preocupam-se em encontrar a melhor classificação possível dos delitos e dos delinqüentes, e uma pena, seja proporcional à gravidade do delito (é a quimera dos primeiros), seja adaptada à cura ou à eliminação dos delinqüentes (eis o objetivo eminentemente prático dos segundos). Mas, antes de tudo, a grande dificuldade para o juiz é a de saber se o autor presumido de um delito é, verdadeiramente, delinqüente. Sobre esse amplo assunto da prova judiciária, que Bentham mediocremente aprofundou, haveria a realizar um ensaio especial de lógica. Eu não o empreendo; limito-me a perguntar, num dado momento, qual é o grau de fé na culpabilidade do acusado que permite ao juiz condená-lo. A questão vai espantar, sem dúvida, talvez indignar aos últimos descendentes de Beccaria, que colocou em circulação o famoso axioma: a mais ligeira dúvida deve aproveitar ao acusado, a prova da incriminação deve ser completa[98]. Princípio puramente verbal, de resto, do qual se nos guardamos, em geral, de pôr em prática, conforme esse espírito de mentira que penetra o mundo social até a medula, como veremos mais adiante. Se o tem em reserva, no fundo do cérebro, para certas ocasiões onde, a fim de dissimular perante si mesmo a própria parcialidade em favor de um amigo ou de um correligionário, exuma-se este velho adágio: “O juiz que absolve um acusado, diz Cournot[99], não entende, de modo algum, afirmar que o acusado não é culpado, mas apenas que, a seus olhos, os indícios de culpabilidade não são suficientes para determinar uma condenação. Reciprocamente, o juiz que condena não entende, de modo algum, afirmar, com absoluta certeza, a culpabilidade do acusado, mas tão-só a existência de certos indícios, de uma presunção tão forte de culpabilidade que não se poderia, sob pena de paralisar a ação da justiça e comprometer a segurança pública, absolver os acusados contra os quais pesam tais indícios e ainda fortes presunções... Do mesmo modo, o cirurgião que opina pela amputação de um membro não afirma, absolutamente, a impossibilidade de uma cura; ele afirma apenas que, na sua opinião, as chances de um resultado funesto, caso o membro não seja amputado, são bastante grandes para determinar o sacrifício do membro afetado. A mesma observação aplica-se à maior parte dos julgamentos de homens, e nada tem de especial aos julgamentos em matéria criminal”. Daí a distinção dos acusados, – não em culpados e em inocentes, – mas em condenáveis e não-condenáveis.

Na verdade, de um tribunal e de um júri a outro, este ponto de condenabilidade é muito variável, a julgar pela proporção média de absolvições. “A relação, diz ainda Cournot, do número de condenados com o número total de acusados que atingia, na Bélgica, o valor de 0,83, quando os crimes eram julgados por tribunais permanentes, baixou para 0,60, quando se restabeleceu, nesse país, a instituição do júri francês; e daí se conclui, segundo a interessante observação de Poisson, que a proporção de acusados condenáveis decresceu bruscamente pelo restabelecimento da instituição do júri, ainda que as formas de instrução preliminar tenham permanecido as mesmas e que, conseqüentemente, a proporção de acusados realmente culpados não variasse sensivelmente.” Isso significa que o júri não tem julgado suficientes as provas que teriam satisfeito à magistratura. Porém, como é possível que sua inteligência não lhe haja permitido apreciar certas probabilidades em seu real valor, o júri pôde, ainda que absolvendo mais, não ser mais convicto, – ou mesmo sê-lo menos que o seriam os magistrados, – quando condena. Mais vale, pois, comparar os diversos júris e os diversos tribunais entre eles. De 1832 a 1880, vimos a proporção de acusações inteiramente rejeitadas pelo júri francês descer, pouco a pouco, de 33 a 17%. Como é inadmissível que tal resultado se deva a uma diminuição contínua das exigências do júri face às provas, existe lugar para pensar que os tribunais de acusação foram se aproximando, dia a dia, das exigências melhor conhecidas e, inconscientemente, elevou por graus o mínimo de probabilidade e de persuasão requeridas por elas mesmas[100]. Se tomarmos agora a média das absolvições do júri de 1832 a 1880, média de 21%, constatamos que ela é ultrapassada pelo júri de muitas regiões, notadamente, da Dordonha, dos Pireneus Orientais, dos Altos Pireneus, onde ela é de 35 a 37%, enquanto está longe de atingi-la nas do Maine-et-Loire, Drôme, Ille-et-Vilaine, onde é de 13 a 14%. Isso significa, eu penso, que os jurados de Ille-de-Vilaine, por exemplo, não têm necessidade de ser convencidos com a mesma força que aqueles da Dordonha, para se decidirem a dar um veredicto de condenação.

Mas essas são desigualdades muito fracas comparadas àquelas que outras confrontações nos mostram na Corte de Justiça. Que distância entre as mínimas presunções com as quais se contenta um tribunal em tempos de revolução ou de distúrbio, para enviar um suspeito ao cadafalso, e as provas rigorosas que ele reclama, numa época de perfeita tranqüilidade, para enviar mesmo um reincidente à prisão! Que contraste entre os julgamentos de um tribunal militar que, em tempos de guerra, no dia seguinte ao combate, faz fuzilar, sob simples aparências, um pretenso espião, e as decisões deste mesmo tribunal em tempos de paz! Nada mais variável, na verdade, que o grau de fé do qual depende a condenabilidade das pessoas. Ele varia de zero ao infinito da simples suspeita à evidência, da dúvida à certeza. Tal não nos surpreende, se analisarmos com cuidado este estado psicológico muito especial que consiste para o juiz, o ser fixado. Um advogado experiente jamais deixa de reconhecer o momento preciso em que, brusca ou caprichosamente às vezes, o magistrado, diante do qual ele fala, acaba de implementar essa condição. A partir deste momento, ele sabe que é inútil falar para ele. O que é, pois, esta fixação, esta solidificação mental súbita e singular da qual se trata? Existe aí tanto de decisão quanto de convicção. Eu acredito mesmo que haja muito de sugestão inconsciente de colega a colega; e seria, talvez, sobre o palanque dos magistrados togados, comprimidos uns contra os outros, trocando de vez em quando um sorriso, uma meia-palavra, que Richet poderia escolher seus melhores exemplos dessa “sugestão normal sem hipnotismo”, tão finamente estudada por ele. Sabe-se com que força a opinião de certos juízes, – nem sempre os mais instruídos, mas, em geral, os mais tenazes e os mais autoritários, – se impõe aos seus vizinhos. Tal consideração seria apropriada para diminuir singularmente a vantagem dos tribunais de muitas cabeças se, em revanche, o juiz único, subtraído a esse gênero de influência fraternal e desinteressada, não estivesse exposto a cair, mais completamente, sob a ação sugestiva, bem mais sujeita à caução, de tal ou qual advogado. Seja como for, aliás, no momento em que o magistrado se fixa, o que acontece? À força de oscilar entre uma opinião e outra, seu espírito se cansa. Um ato de vontade intervém em meio às suas oscilações, – em via decrescente, aliás, – e nelas põe fim de repente. Mas tal ato não é sentido e, na melhor boa fé, o juiz acredita-se muito mais esclarecido do que o era um segundo antes. Todavia, a estabilidade desse equilíbrio íntimo é obtida através de graus variáveis de convicção. Uma convicção fraca sustentada por uma decisão firme dá lugar a uma fixidez tão grande quanto uma convicção forte unida a uma decisão débil. Se, pois, a vontade de ser convencido cresce por uma causa qualquer, na razão das circunstâncias em que se encontra, a convicção propriamente dita pode decrescer impunemente. Daí, sem dúvida, as desigualdades numéricas que acabamos de sinalar.

Mas, teoricamente, a que regra submeter essas variações? No que concerne a uma questão não sem analogia com a nossa, diz-se que a gravidade das penas deveria estar na razão direta dos riscos de punição e na razão inversa das chances de impunidade num dado estado social. Essa espécie de teorema penal demanda ser completada, parece-me, por este: o mínimo de probabilidade que torna condenável deve variar, num tempo e país dados, na razão direta da segurança e da tranqüilidade públicas, e na razão inversa da desordem[101]; conseqüentemente, todas coisas iguais, aliás, (isto é, todas as demais causas de alarme ou de confiança sendo iguais), na razão inversa da cifra da criminalidade. Mais especialmente, para cada tipo de delito dado, este mínimo deve baixar lá onde ela for mais difundida. O júri, devo confessar, toma justamente o contrapeso dessa máxima: ele absolve, sobretudo, crimes contra as pessoas em regiões e províncias onde se mata mais, seja na França, seja na Itália, e crimes contra a propriedade, lá onde os roubos são mais freqüentes[102]. Além disso, segue-se do precedente que, quanto mais a insegurança e, especialmente, a criminalidade aumenta num país, mais importa elevar o nível intelectual dos magistrados, aos quais o interesse da defesa social é confiado, pois que os mesmos encargos contra um acusado não produzirão jamais, em dois juízes, – um muito inteligente, outro menos, – o mesmo grau de persuasão: em geral, ao primeiro, um grau superior; ao segundo, um grau menor. Essa diferença poderá permitir, em tempos de perturbação, – se o juiz muito esclarecido for, por acaso, escolhido precisamente então, – abaixar, um pouco menos do que seria preciso, com uma escolha inversa, o mínimo de probabilidade requerida, com grande proveito para as liberdades individuais, e sem maior perigo para a sociedade. Mas não é de esperar que isso seja assim. É, de preferência, à medida que uma nação se tranqüiliza que ela sente melhor a utilidade de uma magistratura esclarecida; de sorte que, de duas maneiras ao mesmo tempo, – pela perspicácia crescente dos juízes e pelo menor perigo atrelado à impunidade e à absolvição dos malfeitores tornados mais raros, – o ponto de condenabilidade próprio às épocas tranqüilas tende a confundir-se com a culpabilidade absolutamente demonstrada. Essa não é a menor vantagem da ordem a da paz.

 

02 — Sugestão e Responsabilidade.
Comparação da penalidade com a indústria. A vida normal esclarecida pelo hipnotismo. Ela poderia não ser senão um hipnotismo bastante complexo. Condições essenciais da responsabilidade. O princípio da imitação, indispensável aqui.

 

Mas suponhamos que, sem nenhuma dúvida possível, o acusado tenha cometido o fato criminoso. Em que condições deverá ele ser julgado responsável? E por que, se ele for responsável, deverá ser punido? Questões maiores que não é mais permitido resolver apelando à hipótese do livre-arbítrio ou à teoria mística da expiação[103], e que as experiências que aparecem na ordem do dia sobre a sugestão hipnótica permitem precisar com uma força singular.

Correlacionemos, primeiro, não precisamente como recomenda Ferri, a atividade criminal de uma nação à sua atividade econômica, mas bem sua penalidade à sua indústria. O interesse da sociedade é o de impedir o retorno, ou defender-se contra o retorno, dos fatos quaisquer nocivos a seus membros, tenham tais fatos causas exclusivamente físicas ou, em parte, causas sociais, a saber, nesse último caso, vontades mais ou menos refletidas e racionais. No primeiro caso, trata-se, por exemplo, de defender-se contra o retorno (que não se pode impedir, mas do qual se podem prevenir os efeitos nocivos, o que dá no mesmo) da chuva, do frio atmosférico, do raio, da noite, das tempestades; ou, bem, trata-se de impedir realmente o retorno da fome ou da penúria, de uma epidemia e de uma epizootia. Como procede a sociedade? Ela opõe, aos fenômenos que teme, obstáculos de natureza semelhante àquela da causa que lhes atribui. Ao fenômeno temido de uma causa mística, a vontade de um deus; obstáculos materiais, se ela descobriu para esse fenômeno uma causa material. A eficácia da resistência oposta é proporcional à verdade sempre relativa da causa procurada, e cambiante de tempos em tempos. Ocorre mesmo muitas vezes que, graças a um conhecimento mais aprofundado das verdadeiras condições de um fato nocivo, este fato, classificado até então na categoria dos flagelos inevitáveis e simplesmente manejáveis, passa àquela dos flagelos susceptíveis de serem mortos ainda em germe. As fomes foram periódicas e pareceram tão impossíveis de evitar quanto os eclipses ou os ciclones, até o dia em que se percebeu que elas se deviam à falta de comunicações. A invenção da locomoção a vapor fê-las passar da primeira à segunda classe, do mesmo modo que a invenção da vacina permitiu prevenir a pequena bexiga[104] em lugar de limitar-se a tratá-la. Assim seria com a maior parte das febres e das doenças contagiosas, todas as epidemias e todas as epizootias, como a pequena bexiga, se, de acordo com as perspectivas inesperadas abertas pelo método de Pasteur, a teoria parasitária estivesse destinada a triunfar. A medicina, tornada a arte das vacinas, confundir-se-ia então com a higiene, que tornaria supérflua toda a terapêutica atual. É preciso observar, todavia, que a causa dos fatos temidos freqüentemente escapa, por seu distanciamento ou sua enormidade, ao alcance de nossos meios de ação: achamos bom descobrir que a noite é devida à rotação da Terra; as marés, à atração lunar; as tempestades, ao aquecimento solar das zonas equatoriais (ou a qualquer outra causa); mas não somos, não mais que antigamente, capazes de impedir o retorno da noite, das marés ou das tempestades. Não importa. Suas causas mais bem conhecidas não nos são inúteis. Elas nos revelam sua lei mais precisa e, por aí, nos indicam os melhores expedientes a empregar, dentre os engenhos à nossa disposição, para combater seus efeitos desastrosos. Com a lei dos ciclones, sendo dada, podemos predizer seu itinerário e, através do cabo submarino do Atlântico, advertir a tempo os interessados. Nós remediamos o raio pelo pára-raio; a noite, pela iluminação a gás, etc.

Muito bem. Quando se trata, para a sociedade, de garantir-se, não contra fatos físicos em que a vontade humana não entra em nada, mas contra fatos voluntários: como ela procede ou deve proceder? Ela opõe, e eu acredito que ela tem razão em opor, a esses fatos morais e sociais, forças morais e sociais, tais como a desonra, a dor dos castigos, o medo da morte ou, melhor ainda, talvez a reforma de certas instituições. Porém, ela deve perguntar-se se os fatos desse gênero pertencem à categoria dos males que se pode evitar ou àquela dos que se pode simplesmente combater. Se fosse verdade, como quer Quételet, que o contingente do crime fosse quase invariável e predeterminado; se, em uma palavra, o crime e o delito fossem coisas tão fatais quanto o raio e a chuva, mas muito mais regulares, dever-se-ia dizer que a criminalidade deveria limitar-se quase que a fabricar pára-raios contra a tempestade criminal, quer dizer, limitar-se a aperfeiçoar fechaduras e cofres-fortes, revólveres e outras armas defensivas. Mas é necessário reconhecer que a humanidade jamais se colocou sob esse ponto de vista. Contra tal gênero de calamidades, antes mesmo de haver procurado suas causas, ela, instintivamente, desenvolveu um grande luxo de fontes industriosas, reputadas, não sem razão, muito eficazes em seu tempo. É notável ver tudo aquilo que os legisladores primitivos, tão pouco inventivos de ordinário, criaram em matéria de penalidade: cruz, mutilação do órgão culpado, lapidação, ser entregue às feras, ser serrado pelo meio do corpo, ser atirado num precipício, afogado, esmagado sob patas de elefantes, etc. E verossímil que a invenção agrícola e industrial estivesse apenas no início, quando a invenção penal já estivesse esgotada. A razão é, sem dúvida, esta: precisamente porque a lei deveria ser uma nas primeiras criações sociais, um dos primeiros empregos (após a linguagem) do gênio humano criador, a violação voluntária da lei, quer dizer, o crime; a invenção deveu, pois, ser esgotada desde os tempos mais remotos, como vemos através das enumerações tão completas que encerram as antigas legislações. Daí a necessidade que se impõe ao legislador de retrucar através de uma engenhosidade não menor e não menos precoce. Existiu aí uma espécie de duelo prolongado entre a imaginação criminal e a imaginação criminalística, esta, torturando-se em diversificar os suplícios, em exasperar a morte violenta por toda sorte de atrocidades. Combatia-se o flagelo do crime por tais processos, como se acredita prevenir a fome e a peste, a doença ou os eclipses lunares, por hecatombes de jejuns públicos, por danças orgíacas. Tal foi o início da penalidade, tal foi o início da indústria. Parece-me bem, todavia, que o primeiro haja sido menos pueril que o segundo, e, seguramente, o receio de permanecer abraçado durante três dias ao cadáver de seu filho deveu muitas vezes impedir o infanticídio no Egito, tanto quanto a imolação dos touros não impediu a seca. Mas é certo que, se, na origem, a penalidade ultrapassou a indústria em inteligência, o desenvolvimento industrial foi muito mais rápido que o melhoramento e as reformas penais. Já é tempo de pensar sobre isso enfim. Ora, a pesquisa prolongada e a descoberta profunda das causas do crime e do delito nos autorizam sozinhas a decidir se esses males humanos devem ser classificados como acabamos de dizer. Talvez, em nos esclarecendo melhor sobre as condições que as fizeram aparecer, descobriremos que elas não estão fora de nosso alcance e aprenderemos a dominá-las. Porém, ainda que assim não fosse, esse estudo e esse conhecimento não deixariam de nos servir. Concordemos com Lombroso que, de uma parte (lentamente, muito lentamente redutível pelo funcionamento contínuo da pena de morte), a criminalidade seja devida à sugestão póstuma exercida sobre os vivos por nossos ancestrais pré-históricos; por esta parte, a fonte do crime será subtraída, dada sua profundidade, ao nosso poder. Mas a determinação do tipo criminal que trai essa sugestão atávica será sempre boa de conhecer para nos colocar em vigilância. Quanto à grande porção de crimes e de delitos que esta causa não explica, suponhamos que ela se atenha a certos caracteres específicos do estado social. É um pouco a tese do substitutivo penal de Ferri. Certamente, não se segue daí que sejamos senhores para suprimir, em um dia, a criminalidade desse gênero, mas a esperança de sua desaparição nos é dada. Ora, enquanto esperamos, devemos permanecer inativos? Não. Não mais que os homens do último século, antes de Jenner[105], não deveram, na falta da garantia produzida pela vacina, negligenciar as menores precauções, que consistiam na prática de certas regras de higiene e em distanciar de si as pessoas infectadas. A penalidade, tal como ela é entendida e praticada ainda, desempenha precisamente, na vida moderna, como meio preventivo do crime e do delito, o humilde e indispensável papel dessas medidas elementares usadas por nossos pais contra a doença que os dizimava. Estará ela, finalmente, chamada a uma transformação radical, a uma missão diferente? Aqui pode intervir de maneira útil a questão da responsabilidade.

Acabamos de falar sobre a sugestão exercida pelos mortos que nós não podemos alcançar; falemos também agora daquela que exercem os vivos, nossos contemporâneos, sobre os quais nós podemos agir. Esta última, entendida no sentido preciso de sugestão hipnótica, é um fenômeno tão excepcional que o legislador tem o direito de não levá-lo em conta. Um acusado que o invocasse, para fazer-se absolver de um assassinato executado por ele sob a irresistível influência, pretendida por ele, de uma ordem recebida alguns dias ou alguns meses antes, seria incitado, segundo a opinião muito judiciosa de Binet e Féré, a fornecer a prova de uma tal exceção. Também eu não me prenderia aos pequenos detalhes curiosos, mas fáceis de resolver, que tais singularidades patológicas sublevam, se, pela via da analogia e da indução, elas não fossem próprias a nos revelar, no correr ordinário da vida social, o exercício universal e permanente de uma influência bem menor, seguramente, mas comparável àquela. Elas podem servir, primeiro, para nos ensinar que o motivo consciente de nossos atos não é quase nunca o motivo verdadeiro. Por exemplo: uma hipnotizada adormecida recebeu a ordem (ver Revue Philosophique, janeiro de 1885, página 9) de praticar um gesto de desprezo diante do busto de Gall. Ela foi despertada e, conforme a ordem recebida, ordem da qual ela não se recordava mais, todavia, ela praticou gestos de desprezo diante do busto; mas, como que para dissimular de si mesma o caráter irresistível e a causa externa desta ação, ela apressou-se em dizer que esse busto “a desgostava”. Eu cito esse fato entre mil. Que se ordene a esta mesma histérica dar um tiro de revólver em seu irmão, ela obedecerá depois de acordada; mas, é de crer, que ela se veria embaraçada para explicar a si mesma sua conduta? Nem um pouco. Ela estaria convencida de que ele teria cometido erros em relação a ela, que a teria lesado na partilha de bens familiares ou qualquer outro motivo. A verdadeira causa de sua ação lhe escaparia absolutamente. Ao monomaníaco, de maneira semelhante, que obedece a uma tendência invencível, não faltam jamais boas razões para motivar sua ação louca. Os alienados manifestam, em geral, muita engenhosidade par justificar suas extravagâncias. A fonte primeira do impulso é, aqui, uma lesão cerebral, enquanto, no exemplo precedente, a causa determinante é uma ordem exterior recebida pela hipnotizada. Mas a diferença se desfaz, se observarmos que a verdadeira causa da sugestão está no próprio hipnotizado, em sua anomalia cerebral, e não em um poder soi-disant misterioso do magnetizador. A ordem dada por este simplesmente imprime um certo curso, decisivo, é verdade, à doença do hipnotizado; ela desempenha o papel das circunstâncias acidentais, importantes, aliás, no mais alto grau, que têm especificado a monomania do monomaníaco. Ambos os casos são, pois, análogos.

Ora, estar-se-ia muito longe disso no fato do homem que, caído loucamente de amores por uma mulher encontrada por acaso num salão, põe-se a descobrir nela toda sorte de perfeições físicas, morais, intelectuais, e persuade-se de amar nela seus talentos e suas virtudes? Acreditar-se-ia também que um jogador, um ambicioso, um avaro sejam menos otários de si mesmos, quando se ufanam das vantagens e dos méritos do jogo, do sucesso eleitoral, do ganho financeiro, do ídolo qualquer ao qual eles imolam sua saúde, sua honra e sua vida? Um homem defende, num café, suas opiniões políticas. Ele é eloqüente, lógico e sincero. Surpreender-se-ia muito se lhe provássemos que ele é monarquista ou republicano, não em virtude das excelentes razões que alega, mas por conta de influências familiares ou de camaradagem, de prestígios pessoais em suma, que agem sobre ele, é verdade, na medida de sua credulidade e de sua docilidade natas, efeitos de sua organização cerebral. Esta organização aqui é normal, e não anormal como mais acima. O fenômeno, porém, não muda de natureza. O homem mais são de espírito, quando ele adquire uma propriedade, quando ele realiza um negócio qualquer, industrial ou agrícola, cede a impressões das quais ele não duvida; também acredita sempre realização uma boa operação, porque ele a imagina maravilhosa. Nada mais comum, pois, que a sugestão assim entendida. A vida social é feita assim. O comércio, especialmente, não vive senão de caprichos sugeridos.

Se adotarmos esse ponto de vista, pode-se dizer que a única diferença entre a conduta sugerida do sonâmbulo acordado e a conduta ordinária de todo mundo consiste nisto: as sugestões às quais o homem normal obedece a cada instante são muito mais múltiplas e são muito menos exteriores, duas características ligadas uma a outra e que lhe dão, em conjunto, um falso ar de autonomia. Mas, por uma seqüência de transições, o hipnotismo, sob aquelas duas relações, liga-se à existência habitual. De uma parte, a coexistência de sugestões[106] no sonâmbulo é um fato adquirido. “Eu posso, diz Beaunis, durante o sono hipnótico, sugerir a um indivíduo que ele fará tal coisa oito dias depois, no dia seguinte, sugerir-lhe que ele executará uma outra ação em quatro dias, depois de amanhã, ordenar-lhe outra coisa para o mesmo dia, e todas essas sugestões se realizarão no momento fixado: elas podem coexistir sem se contrariar de modo algum. Pouco importa, de resto, que essas sugestões coexistentes tenham sido feitas pelo mesmo experimentador ou por experimentadores diferentes. Existe aí, todavia, um limite e, de acordo com aquilo que já observei, quando as sugestões são muito numerosas, elas se prejudicam reciprocamente”. Isso não é tudo. Uma sugestão pode ser indeterminada[107], e, por exemplo, consistir na idéia sugerida de fazer alguma coisa engraçada, de experimentar um grande prazer. Não se diria, precisamente, a ação de um exemplo exterior que nos leva a uma imitação não-literal, mas livre, como se diz? Acrescente-se, sempre com o mesmo experimentador eminente, que uma sugestão não é sempre irresistível; o indivíduo a combate muitas vezes com sucesso parcial ou completo, e não sem lutas trágicas fortemente marcadas em suas feições; e, em especial, quando duas sugestões se contradizem nele, é muito necessário que uma permaneça não executada, vencida pela mais poderosa, ainda que sua liberdade pareça crescer, na medida em que sua servidão se torna mais complexa. Enfim, o que tem surpreendido o Dr. Liébault, como Beaumis, é a lógica das hipnotizadas, sua força e sua rapidez de dedução. Combinemos agora todos esses caracteres, exageremo-los e perguntemo-nos em que um hipnotizado, – tendo seu cérebro repleto de sugestões a executar a prazos mais ou menos longos, mais ou menos indeterminados, e de sugestões vindas de mil lados, acumuladas desde sua infância, confundindo-se um pouco, e, por conseguinte, combatendo-se muito, – diferiria de um homem racional e livre, sobretudo se supusermos, – para dar à hipótese seu complemento natural, – que, entre essas sugestões inumeráveis, exista uma elite de mais fortes e mais antigas, de mais enraizadas, às quais as outras se subordinem. Eu sei bem que as ordens exteriores reunidas, à sua revelia, no cérebro de um homem normal, não são, na maior parte, ordens verbais. São, de preferência, conselhos tácitos, exemplos dos quais a eficácia salutar ou funesta é ignorada, em geral, por seus autores. Mas isso pouco importa, porque as experiências feitas sobre hipnotizados mostram que, sobre eles também, a influência imperativa da ação substitui-se indiferentemente àquela da palavra. A propósito da hipnotizada que realizou gestos de desprezo em relação ao busto de Gall, Binet e Féré tiveram o cuidado de observar que “quando ela pára, é suficiente esboçar o gesto para acioná-la, de qualquer sorte, e fazer-lhe retomar o gesto zombador, o que prova bem a força do exemplo”.

De outra parte, o prazo para execução de uma sugestão hipnótica pode ser, sabe-se, indefinidamente distanciado. Beaunis nos ensina que ele viu realizar-se, num dia fixado, uma sugestão feita por ele 172 dias antes, e ele não duvida que este prazo possa ser muito ultrapassado. Será que uma sugestão que residiu muito tempo nas células de um cérebro pode, no momento em que é executada, ser vista inteiramente como tão estranha ao executante, quanto se fosse cumprida meia hora após a ordem recebida? Será que esse cérebro não começa a apropriar-se um pouco dela, fazê-la sua por uma incubação tão prolongada? E não chegará o momento em que ela fará parte de sua própria substância, menos intimamente, é certo, que as sugestões ancestrais das quais falei mais acima, mas bastante essencialmente já, se ela datar da infância ou da primeira juventude[108]?

Através de experiências muito interessantes (que foram resumidas no número de maio de 1886 da Revue Philosophique), Delboeuf, sempre iniciador, começou a relacionar intimamente o hipnotismo à vida normal e restabeleceu “a unidade da consciência” do hipnotizado. Ele chegou engenhosamente a obter que este se lembrasse, após o sono, do sonho que acabara de lhe ser sugerido, e fê-lo ver que esta lembrança se produzia nas mesmas condições em que teve lugar a lembrança, rara também, dos sonhos. Ele mostrou, enfim, que o sonho hipnótico, como o sonho ordinário, é, às vezes, a reprodução espontânea (o que não quer dizer livre) dos fatos percebidos no estado de vigília, mais freqüentemente seu arranjo operado segundo uma certa lógica e comandado por uma provocação exterior que consiste, aqui, em palavras ou gestos do magnetizador, lá, em ruídos, odores, em sensações térmicas ou em sensações musculares, em impressões acidentais quaisquer, vindas elas mesmas de fora. O hipnotismo, estranha polarização da alma, não é, pois, como o sonho, senão uma simplificação. O que existe aí de verdadeiramente maravilhoso no fundo, não é o sonho, não é a sugestão hipnótica, é o estado de vigília normal, que é um hipnotismo ou um sonho tão prodigiosamente complexo e, ao mesmo tempo, tão harmoniosamente coordenado. Pois que o curso das idéias do sonhador é determinado, é sugerido por uma impressão exterior, pode-se dizer, invertendo uma fórmula de Taine, que a alucinação é uma espécie de percepção, porque a percepção não é também senão um agrupamento de lembranças através de sensações supervenientes. A única diferença é que, no estado de vigília, as sensações são mais numerosas, mais nítidas, e que suas sugestões se limitam, se retificam mutuamente. Quando uma única sensação tem o monopólio de agir sobre a imaginação passiva do adormecido, a reação que se segue, ou seja, a aparição do sonho, pode e mesmo deve se estender a todas as imagens quaisquer disponíveis, quer dizer, em geral, como o comprova experimentalmente Maury, parecer exagerada e fora de toda proporção aparente com ela. Por exemplo: a uma pequena alfinetada aplicada ao adormecido, este responderá, em seu sono, como a um grande golpe de espada recebido. Esta sensação única, variável, aliás, de um momento a outro, dispõe, pois, de todo o cérebro adormecido; nele ela desempenha o papel do magnetizador. Quando seu monopólio cessa pelo afluxo de sensações de todo gênero que pressionam as portas dos diversos sentidos, o despertar, gradualmente, se opera. Vê-se, assim, realizar-se, diariamente, a hipótese onde me coloco, aquela dos magnetizadores múltiplos, convergentes ou concorrentes.

Dessa hipótese, podemos extrair muitas conseqüências relativas à lei penal. Vemos, primeiro, que a responsabilidade de nosso indivíduo hipotético, nula no início, irá crescendo, à medida que suas sugestões se interiorizarão, que o hipnotizado e os hipnotizadores se identificarão nele. É assim que as ações realizadas por um homem no período da transição entre o sonho ordinário profundo e o completo despertar determinariam, em graus cada vez mais elevados, sua responsabilidade. As legislações parecem se colocar, inconscientemente, sob esse ponto de vista, quando elas vêem, como em parte responsável pela ação praticada pelo filho menor ou pelo doméstico, seu pai ou seu patrão[109]. Não nos esqueçamos que a responsabilidade por uma ação, tal como ela é aqui compreendida, relaciona-se, não a esta ação mesma, imutável desde então, mas aos atos possíveis de mesma natureza ou igualmente prejudiciais que se trata de tornar impossíveis ou menos prováveis. Para impedir a repetição de uma ação criminosa, seja pelo próprio autor, seja por outrem, é necessário atingir suas causas, tanto quanto possível, nele ou fora dele. Mas é necessário atingir de maneira diferente as causas morais e sociais que consistem em vontades, e as causas físicas ou fisiológicas, ainda que, para falar a verdade, estas últimas condicionem as primeiras. A penalidade, enquanto medicação propriamente social, deve restringir-se ao tratamento das primeiras causas; as segundas reclamam outros cuidados. Um médico ordena a uma sonâmbula adormecida cometer um assassinato sobre a pessoa de um interno que ele detesta. Acordada, ela comete o crime. Qual é a vontade culpada? Aquela do médico. A causa social da ação é, aqui, totalmente exterior à agente. Não se dá o mesmo, aliás, com a causa física, pela qual entendo o estado mórbido da agente. Também, para prevenir o retorno de fatos semelhantes, não será bastante encerrar o médico numa prisão de forçados ou cortar-lhe a cabeça, a fim de que ele não possa mais magnetizar ninguém, nem esse indivíduo nem outros; é necessário ainda enviar a sonâmbula para um asilo, e subtraí-la assim ao império de criminosos quaisquer que quisessem fazer dela seu dócil instrumento[110]. Suponde que se a curasse de sua enfermidade, e que todos os doentes atingidos pela mesma neurose fossem curados de modo semelhante; o encarceramento do médico tornar-se-ia inútil, ao menos enquanto tivesse por objetivo impedir a espécie de crime que ele cometeu.

É verdade que, mesmo nessa hipótese, a perversidade criminosa da qual ele deu prova deixaria temível, de sua parte, outros crimes; e, a esse título, haveria ainda lugar para aprisioná-lo, prevenindo sua reincidência, e cobrindo-o de infâmia, para prevenir o contágio exterior de seu exemplo. Mas o exemplo não é contagioso senão para pessoas predispostas a sofrer essa atração. Logo, se essa predisposição, perturbadora num sentido, fosse, a seu turno, susceptível de ser extirpada, a pena a infligir-lhe poderia, sem inconveniente, reduzir-se à privação de sua liberdade, à sua permanência obrigatória em algum hospício, e não ser, de modo algum, infamante. Infelizmente, não há remédio conhecido contra esta doença congênita que se chama uma natureza viciosa; não existem senão paliativos fornecidos por uma educação apropriada e, melhor ainda, por certas transformações do estado social. Também, enquanto for assim, é preciso evitar subtrair das medidas de segurança pública reclamadas pela manifestação de instintos criminais seu caráter infamante.

Todavia, se relegamos a um asilo, e não a uma prisão de forçados, a sonâmbula homicida, ainda que cometendo seu assassinato, ela própria se julgaria livre[111] e capaz de agir de outro modo. Por que relegamos a uma prisão de forçados, e não a um asilo, seu magnetizador? Ele mesmo, é verdade, sugerindo à hipnotizada sua ação criminosa, acredita-se autônomo; mas ele mesmo está enganado. Ele cedeu, ele também, a um impulso interno. E que importa que esse seja, não a ordem de um médium, mas um conjunto de qualidade inatas hereditárias depositadas em seu córtex cerebral e vindas de seus ancestrais? Eis a questão. Ora, é fácil responder de acordo com o que foi dito mais acima. Aqui, o verdadeiro motivo da ação, quer dizer, da ordem de assassinar, não é exterior ao agente, ou seja, ao magnetizador. Ela lhe é interior e própria. Isto basta. Não se trata, com efeito, de liberdade, mas de identidade. Minha ação me pertence socialmente e, por conseguinte, para impedir sua repetição social, é bem a mim que se deve atingir, quando (livre ou não, aliás), por sua causa social psicológica, pela vontade e pelo desejo que ela implica e que se liga, por um laço lógico, ao feixe de minhas idéias e de meus desejos constitutivos, ela emana de mim ou dos meus. Entendo pelos “meus” os “eu” anteriores dos quais me apropriei ao nascer. Ele não me pertence senão fisiologicamente quando, provocado por um acesso de demência, ele tem sua causa vital, é verdade, em meu cérebro, mas sua causa social, a saber, o desejo e o julgamento implicados nele, fora de minha personalidade habitual. – Há, de resto, graus de identidade, na não-identidade mesmo, na alienação; e, certamente, as causas de nossos atos nos são mais ou menos estranhas, mais ou menos pessoais. – Muito bem. É por meios sociais que se deve agir, eu repito, sobre as causas sociais. Essa vontade depravada, essa fonte permanente de novos crimes que nosso magnetizador traz dentro dele, em que ela consiste, colocando à parte suas condições fisiológicas? Ela consiste em crenças e desejos e, primeiramente, numa opinião mais ou menos vantajosa de si mesmo que este criminoso traz em si. É necessário combater esse orgulho, opondo-lhe uma opinião pública precisamente contrária, uma reprovação enérgica que, comunicada a ele próprio pela imitação, enfraquece-o sempre, na verdade, em certa medida e, freqüentemente, produz-lhe um terrível golpe. Em todo caso, essa reprovação vai destruir seu prestígio e diminuir, por aí, sua influência sobre outrem.

Acabo de dizer que, à vista da sociedade justiceira, a questão de saber se uma ação culpável emana de mim ou dos meus importa pouco, quando os meus e eu não somos separáveis. Ora, é de observar que os graus dessa inseparabilidade variam muito no curso das transformações sociais, e nada é mais próprio a demonstrar que a responsabilidade social tem por fundamento, não a liberdade, nem mesmo a causalidade, precisamente, no sentido científico da palavra, mas a identidade. Trata-se, simplesmente, de decidir se a causa, qualquer que ela seja, da ação a punir, se encontra compreendida ou não no seio de tal unidade social designada. Esta unidade, o que é? Em nossos dias é o indivíduo, o organismo individual em bloco, sem nenhuma distinção a estabelecer entre os órgãos que o compõe e, notadamente, entre as diferentes partes de seu cérebro[112], onde apenas uma, todavia, teve a iniciativa da ação criminosa, e não a realizou senão malgrado a oposição impotente de todas as outras. Mas houve uma época primitiva, persistente ainda lá e acolá em regiões atrasadas do globo, onde a unidade social era o grupo indissolúvel da família ou da tribo; parecia, então, tão estranho imaginar isolar o homem de sua família ou de sua tribo, localizar nele mesmo, e apenas nele, a responsabilidade por seus próprios crimes, quanto seria, hoje, condenar, como culpado de um assassinato ou de um roubo, tal circunvolução especial do hemisfério esquerdo ou direito do cérebro de um malfeitor, com exclusão de todo resto de seu ser. Para fazermos uma idéia dessa concepção primitiva, pensemos sobre o dogma do pecado original. Imaginemos que este dogma nos fosse desconhecido, mas que se o ensinasse sobre a terra pela primeira vez. Perto de quem encontraria crédito esta responsabilidade de toda uma linha até o infinito pela falta de seu primeiro pai? Todavia, isso foi julgado totalmente natural pela nação hebraica e por outros povos antigos que viviam no tempo em que a única personalidade jurídica reconhecida, a única pessoa capaz de direitos e deveres (como o diz muito bem Sumner Maine), era o corpo familiar; alguém, aliás, essencialmente imortal, responsável, por conseguinte, in infinitum pelos delitos cometidos por seus membros. Então, mesmo que qualquer outra razão para crer neste antigo estado social houvesse desaparecido, seria suficiente o pecado original para testemunhar sua existência.

Muito bem. Não é provável que, no tempo em que reinava esse singular direito criminal, se encontrassem espíritos bastante avançados para descobrir que, apesar de tudo, o único autor de um assassinato era Pedro ou Paulo, e não todo o grupo de seus parentes ou de seus filhos ainda por nascer? Certamente. Mas tinha-se o fato por incontestável. A íntima solidariedade dos parentes entre si impedia fazer tal distinção. Do mesmo modo, nossos alienistas e nossos peritos médico-legais acharão bom demonstrar-nos sabiamente que tal gânglio, tal lobo, tal célula do cérebro de um acusado fez todo o mal; a justiça recusará, com razão, entrar nesse detalhe e acreditar-se-á no direito de cortar toda a cabeça que contiver este gânglio, este lobo ou esta célula. Observemo-la: se esta decapitação é justa a despeito da análise científica, existem aí razões análogas para justificar também a antiga vingança estendida à tribo inteira. Decompor a tribo outrora era, também, entrar num detalhe quase anatômico interdito à sociedade ambiente que se compunha, não de indivíduos, mas de tribos. E, se nós pesquisarmos as causas dessa indissolubilidade familiar, nós as encontraremos, entre outras, no estado de guerra das famílias entre si. Em nossos dias ainda, em tempos de guerra, um exército inteiro parece não ser senão uma única e mesma pessoa responsável aos olhos do exército inimigo; e, para um ato de crueldade, para um tiro de fuzil disparado em violação ao direito de pessoas por um soldado qualquer, todos os seus camaradas estão expostos a sofrer a lei das represálias, que serão vistas como legítimas neste caso.

Assim, uma coisa é a causa de uma ação aos olhos da ciência; outra coisa, aos olhos do direito penal. A causa, no primeiro sentido, é uma das forças que constituem o ser atingido pela justiça, mas não é senão uma de suas forças. Prossigamos na analogia precedente. A família antiga, por unida que ela fosse face ao inimigo, tinha seus filhos desgarrados, seus desclassificados, corpos estranhos a ela; também, quando um deles cometia qualquer crime em prejuízo de uma tribo vizinha, apressava-se em entregá-lo àquela, pés e mãos amarrados para prevenir qualquer vingança. Essa satisfação era suficiente muitas vezes, porque estava estabelecido, através deste ato de extração, que nenhuma identidade existia entre esse indivíduo e sua raça. Ora, quando um alienista, após examinar um acusado, nos diz: “Esse homem é louco, e sua loucura tem sede em tal parte do cérebro, onde ela está circunscrita, e de onde eu espero expulsá-la por um tratamento apropriado”, isto significa que não haveria mais identidade entre a causa da ação criminosa e a personalidade deste homem, que uma está no outro, é verdade, mas não é possuída pelo outro. Nessa hipótese, aos olhos da própria justiça penal, o organismo individual aparece como passível de decomposição.

Mas eu suponho que a loucura seja incurável e que invadisse todo o cérebro. Como se deveria entender a responsabilidade social nessa hipótese? Que dizer desses infelizes, muito raros, na verdade, nos quais o cérebro desempenha o papel de duas, três, quatro, cinco, seis personalidades sucessivas e diferentes, como o trono de um império em dissolução ocupado por monarcas efêmeros e beligerantes[113]? É este o desmentido mais completo à ficção legal da unidade individual e mostra-nos esta unidade quase tão artificial e arbitrária quanto aquela da unidade familiar outrora? Trata-se de uma questão muito grave que eu não pretendo decidir com uma palavra. Para distinguir entre o criminoso e o louco ou, num sentido mais amplo, entre os atos socialmente prejudiciais que merecem uma punição e aqueles que não merecem, é preciso uma pedra de toque, e todos sentem que existe uma. Difícil é determiná-la. Tentemos.

Alguns negam essa distinção. Dizem-nos, por exemplo, que o progresso das idéias, após haver prevalecido sobre o preconceito do passado que imputava a loucura aos loucos como uma falta moral, não pode deixar de suprimir também este preconceito subsistente, que vê uma falta moral nos crimes cometidos em plena razão, ainda que tais atos, como aqueles dos alienados, sejam o efeito inevitável de uma organização especial. Não é menos verdade, – eu responderia, – que o ato voluntário resulta de uma escolha deliberada, livre ou não; que, como tal, ele é susceptível de ser repetido por imitação, enquanto o exemplo dos crimes dos loucos que permanecem impunes não é bastante para tornar louco, e que há lugar socialmente, mesmo do ponto de vista utilitário, para distinguir entre atos contagiosos e atos desprovidos desse caráter capital. Daí a impunidade total do louco, mas a imunidade apenas parcial do homem embriagado que comete um delito. Com efeito, “não se torna louco quem quer, diz muito bem Lelorrain; a embriaguez, ao contrário, está à porta de todo mundo”. Mesmo raciocínio a propósito dos quase-delitos de todo gênero. Um chefe de estação, por conta de um desses eclipses instantâneos de memória que não se devem à desatenção e que os mais atentos não evitam, ocasiona o choque de dois trens e a morte de cem pessoas. O mal direto é grande, o alarme geral é imenso. Todavia, esse infeliz, mais de lamentar que censurar, está longe de ser punido tanto quanto o autor de um pequeno arrombamento, com o qual a comunidade apenas se inquieta. Por quê? Porque enforcá-lo ou esquartejá-lo não preveniria, amanhã, a reprodução de um único desses fatos, reprodução totalmente fortuita, de nenhuma maneira imitativa, totalmente física e fisiológica, de modo algum social em suas causas.

Poder-se-ia, pois, permanecer utilitário e evitar tais desvios de doutrina. Agora, admitamos que, condenando à morte esse chefe de estação simplesmente infeliz, se dará, dessa sorte, a todos os chefes de estação do país, uma advertência salutar realmente própria a prevenir o retorno tão freqüente de semelhantes acidentes, quer dizer, por exemplo, próprio a evitar, amanhã, a morte de uma dezena de pessoas. Do ponto de vista utilitário não parece existir aí completa vantagem em sacrificar uma vida para salvar dez. É justo, e, todavia, a consciência desse mesmo público, – do qual o legislador teria aspirado aos interesses antes de tanta lógica utilitária, – se revoltará contra a barbárie de um tal castigo. Por quê? – Perguntaremos ainda. – Porque responsabilidade implica em causalidade e identidade seguramente, senão, – o que é muito contestável, – liberdade. Ora, um homem não poderia ser reputado causa, em diversos graus, senão de atos realizados por ele mesmo ou pelos seus, ou que ele fez realizar, ou aos quais ele pareceu aderir, permitindo que se realizassem, ou, enfim, que ele levou alguém a realizar. Compreende-se, dessa sorte, que ele seja, numa certa medida julgada de antemão, co-autor de atos que serão, provavelmente, realizados por imitação do seu, se for deixado impune, mas não daqueles que, sendo involuntários e, por conseguinte, não tendo podido nascer por imitação, tiverem lugar, todavia, na mesma hipótese da impunidade do seu, e que não teriam lugar se o seu fosse punido, porque, então, esta punição seria vista como um exemplo a não seguir. Eu posso, pois, ser mais castigado em razão e em prevenção de atos que a imitação do meu poderia produzir; mas, quanto àqueles que, se se realizassem, não seriam, de modo algum, copiados do meu, estes me seriam estranhos; e eu não posso, pois, logicamente, ser punido em razão desses últimos, ainda que, aliás, o exemplo de minha punição inconseqüente pudesse ter por efeito impedir sua realização. Isso pode parecer sutil; mas que se reflita, e ver-se-á que é a única solução possível de dificuldades sublevadas por esse assunto espinhoso. A responsabilidade de um agente, eu repito, independentemente também dos atos que emanam de seus filhos menores ou de seus servidores, pessoas identificadas à sua por uma ficção arcaica, cada vez mais repelida, aliás, pelos costumes, restringe-se às conseqüências sociais que pode produzir a repetição imitativa por outrem de seu próprio ato; mas isso não é possível, senão quando seu ato possa ser imitativamente reproduzido por ele mesmo, ou seja, quando for voluntário[114]. Tudo se esclarece aqui à luz dessa idéia da imitação, noção sociológica por excelência; tudo se obscurece e se emaranha com a idéia equívoca de utilidade como um e único archote. Em virtude das considerações precedentes, pode-se explicar como foi que, no curso crescente da civilização, a parte e a importância do involuntário na vida humana decresceram, como atesta a substituição incessante dos contratos aos compromissos inatos, ou a atividade legislativa aos direitos consuetudinários.

Em presença de um movimento tão acentuado, será possível apagar, em Direito Penal, a distinção entre o acidental e o voluntário como fora de uso, e, sob o pretexto da saúde social, rechaçar desdenhosamente para a classe das forças quaisquer da natureza, esta força civilizadora por excelência: a vontade!

Mas eu não quero aprofundar mais esses problemas. É-me suficiente haver indicado sobre quais novos fundamentos, independentemente de toda questão controversa, a responsabilidade penal pode se assentar. Dito isso, ocupemo-nos da criminalidade propriamente dita[115].


 

Capítulo Quarto

Problemas da Criminalidade

 

01 — Geografia criminal.
Preponderância, admitida por Garofalo, dos homicídios no Meio-Dia, dos roubos no Norte. Exceções a essa regra. Sua explicação, não por causas físicas, mas por causas sociais que fazem marchar a civilização do Meio-Dia ao Norte e do Leste ao Oeste nos tempos modernos. Aliás, tendência da civilização em irradiar-se em todos os sentidos.

 

Examinemos, primeiro, uma observação ou pseudolei cuja interpretação parece muito fácil, mas não o é senão superficialmente. “Quételet, diz Garofalo em sua Criminologia, foi o primeiro a provar pela estatística que os crimes de sangue crescem nos climas quentes e decrescem nos climas frios[116]. Ele limitou suas observações à França[117], mas a estatística de outros países da Europa demonstrou a universalidade dessa lei. Mesmo nos Estados Unidos da América, observa-se que, no Norte, prevalecem os roubos e, no Meio-Dia, os homicídios”. Eu contesto que a regra seja sem exceções notáveis. Mas, numa certa medida, ela é verdadeira, e os trabalhos de Ferri muito contribuíram para mostrar a verdade. Não nos apressemos, todavia, em atribuir essa relação a uma influência pura e simples do clima. Observemos, com efeito, que, num mesmo clima, de maneira alguma modificado, um povo em via de civilizar-se apresenta um crescimento proporcional da criminalidade astuciosa ou voluptuosa e uma diminuição relativa da criminalidade violenta. Comparemos, agora, essas duas relações, uma do crime e da temperatura, outra do crime e da civilização. Uma parece idêntica à outra. Existe aí isto de estranho à primeira vista: o progresso da civilização parece ter, sobre a direção imprimida às tendências criminais de um povo, precisamente o mesmo efeito que teria um resfriamento de seu clima. A civilização, por acaso, seria ela, pois, um calmante nervoso da raça como o é o frio? Nós sabemos bem, todavia, o contrário. A característica da vida civilizada por excelência, da vida urbana, é superexcitar o sistema nervoso, tanto quanto a vida rural apazigua e nutre o músculo às expensas do nervo. Ela age nesse sentido como faria, não um resfriamento, mas um aquecimento do clima.

Como, pois, explicar a coisa? É necessário, eu creio, fazer intervir aqui a observação vulgar, tão sábia e engenhosamente desenvolvida por Mougeolle (em seu livro intitulado Estatística das Civilizações), sobre a marcha da civilização em direção ao Norte. Se essa observação geral for verdadeira, e seguramente não se poderia contestar-lhe uma ampla parte de verdade, poderíamos ver que a superioridade numérica dos roubos no Norte e dos homicídios no Meio-Dia se relaciona, não a causas físicas, mas a uma lei histórica; não ao fato de que o Norte é mais frio e o Meio-Dia mais quente, mas ao fato de que o Norte é mais civilizado e o Meio-Dia, menos. Os países mais civilizados num dado momento são, com efeito, aqueles cuja civilização é de data mais recente. Esses são os países setentrionais em geral comparados às nações e às províncias meridionais. Comunicando-se com raças menos refinadas e mais fortes, menos nervosas e mais musculosas, o contágio civilizador espanta o mundo pelo clarão notável de seus fenômenos; e, estendendo-se extraordinariamente sobre essas terras virgens, aí produz, agora, mas com maior intensidade ainda, as mudanças já realizadas por ele nos lugares onde parecia emigrar e onde, para falar a verdade, manteve-se, mas sem progresso ou em declínio. Entre outros efeitos desse gênero, ele fez diminuir, em sua nova morada, a criminalidade cruel que, antigamente, aí realizava sevícias, e aumentou a criminalidade pérfida ou lasciva que, outrora, era inferior à primeira. Uma estatística feita nessas épocas em que, — a civilização não tendo ainda passado do Meio-Dia ao Norte, — o Norte era mais bárbaro, certamente mostraria que os crimes de sangue eram mais numerosos nos climas setentrionais, onde agora são mais raros, e provocado os Quételes de então a formularem uma lei precisamente inversa à lei acima. Por exemplo: se dividirmos a Itália atual em três zonas, Lombardia, Itália Central e Meio-Dia, encontra-se que, na primeira, há, em um ano, sobre 100.000 habitantes, 3 homicídios; na segunda, perto de 10; na terceira, mais de dezesseis[118]. Mas não se estimaria provável que, nos belos dias da Grande Grécia, quando floresciam Crotona e Sybaris, ao Sul da península inteiramente povoada de bandidos, e de bárbaros no Norte, com exceção única dos etruscos, a proporção dos crimes sangrentos pudesse estar invertida? Atualmente, existem na Itália, para igual número da população, dezesseis vezes mais homicídios que na Inglaterra, nove vezes mais que na Bélgica, cinco vezes mais que na França. Mas pode-se bem jurar que, sob o Império Romano, era de outro modo, e que os selvagens bretões, os belgas mesmo e os gauleses ultrapassavam em ferocidade habitual de costumes, em bravura e em furor vingativo os romanos enfraquecidos. De acordo com Sumner Maine, a literatura escandinava demonstra que o homicídio, nas épocas de barbárie, era “um acidente cotidiano” entre esses povos do Norte, precisamente os mais brandos no presente e os mais inofensivos de toda a Europa[119].

A Córsega, hoje, comparada à França, apresenta uma cifra muito excepcional de homicídios causados pela vingança e, em revanche, um mínimo de roubos. Mas setecentos ou oitocentos anos antes da era cristã, quando a Etrúria, depois Cartago, aportou suas artes industriais e agrícolas a essa ilha, enquanto a Gália estava ainda mergulhada na barbárie, é de crer que a cifra continental de crimes inspirados pela vingança, paixão dominante entre os bárbaros, não era inferior à cifra insular.

Quanto à França é bom sinalar que, malgrado Quételet, ela escapa à lei de inversão sinalada. Que se lance um olhar sobre os belos mapas de Yvernès anexados à estatística criminal de 1880. Sobre o mapa dos crimes contra as pessoas, não se observa, de modo algum, o desejado escurecimento das tintas do Norte ao Meio-Dia; o que atinge os sentidos é o enegrecimento na vizinhança das grandes cidades, Seine, Bouches-du-Rhône, Gironde, Loire-Inférieure, Nord, Seine-Inférieure, Rhône. O mapa dos crimes contra a propriedade mostra um tabuleiro de tintas inverso ao precedente? Absolutamente. Ambos não diferem sensivelmente, e os departamentos mais escuros, como os mais claros, são quase os mesmos num e noutro. Notemos que cinqüenta anos de estatística estão aí condensados. Mas, se um trabalho semelhante pudesse ter sido realizado no sexto século de nossa era, ao tempo em que Arles era uma grande cidade de 100.000 habitantes, cercada por uma constelação irradiante de cidades romanas, e onde Lutèce era um burgo isolado, é de presumir que o mapa dos homicídios, em lugar de apresentar uma disseminação indiferente de suas tintas, não deixasse de ser muito mais sombrio nos locais das rudes tribos germânicas do Norte que entre os celtas romanizados do Meio-Dia.

E a criminalidade contra as pessoas na França não é mais marcada no Meio-Dia que no Norte, a relação dessa criminalidade com aquela contra a propriedade, num mesmo departamento, dá lugar a uma observação interessante. Não há senão sete departamentos, todos montanhosos e pobres, onde os crimes contra as pessoas igualam e excedem em número os crimes contra a propriedade, a saber: Alpes, Pireneus Orientais e Córsega. Em setenta e nove outros, observa-se a proporção inversa. Aqui, é a importância da latitude que aparece? Não. Antes seria aquela da altitude. Mas está bem claro que a verdadeira explicação colhe-se do estado social. A propósito do suicídio, Morselli, em sua bela obra, esforça-se por descobrir uma influência análoga da latitude, mesmo das formações geológicas. Mas ele é constrangido a reconhecer, com sua boa fé superior, o pouco fundamento de suas conjeturas. No exame de seus mapas, é evidente, por sua própria confissão, que o centro da Europa ultrapassa o Norte na freqüência de seus suicídios, e que, nas partes centrais, existem dois focos de irradiação, a saber, Paris e o coração da Alemanha, falando de outro modo, dois focos continentais de nossa civilização européia. Se o terceiro, Londres, que é insular, escapa ao contágio, é, sem dúvida, em razão do caráter religioso, tradicionalista, mais original também e menos misturado da civilização inglesa. O que quer que seja, está claro que a distribuição geográfica do suicídio se explica sociologicamente, não geograficamente; e eu acredito que se deve dizer o mesmo quanto àquela do crime.

Tive eu a intenção de negar, com o precedente, a influência provocadora do calor no desencadeamento dos instintos violentos e sanguinários? De modo algum. Eu sei que o máximo da criminalidade contra as pessoas, quer dizer, dos crimes de sangue, corresponde, dado um mesmo país, à primavera, senão ao verão, como aquele da criminalidade contra a propriedade, no outono, senão no inverno; e este contraste cronológico não é, evidentemente, susceptível ao gênero de interpretação a que acabo de submeter o contraste geográfico análogo. Ele revela claramente uma provocação indireta, é verdade, exercida pelas altas temperaturas sobre as paixões malfazejas, e análoga àquela do álcool que a estatística manifesta também. Essa causa, deve, pois, contribuir com alguma coisa no próprio contraste geográfico, mas, aqui, ela é absorvida na ação preponderante e mais direta da civilização relativamente elevada[120]. E existe esta diferença entre ambas: uma, a explicação física do crime, perde dia-a-dia sua importância no curso do progresso humano; enquanto a outra, a explicação social, não cessa de se tornar mais profunda e mais completa em si mesma. Eis por que as grandes nevadas e as grandes secas e, em geral, o curso das estações, influem menos sensivelmente, – e as crises políticas atuam com mais força na curva anual dos crimes, tanto quanto dos suicídios, nascimentos e casamentos, – nos meios urbanos que nos meios rurais. Convém observar também que o alcoolismo atua sobre a criminalidade no mesmo sentido que o clima quente ou a estação quente. Mas precisamente esse hábito vergonhoso do alcoolismo, causa totalmente social, seguramente, devida às invenções primitivas que o tornaram possível e à difusão de exemplos que se estabeleceu, difunde-se de modo a contrabalançar, de preferência a reforçar, a ação térmica. Com efeito, é na estação fria que se nos embriagamos mais, e é também nos climas frios. O mapa de Yvernès sobre a embriaguez é muito claro a esse respeito (como seu mapa sobre a reincidência); as tintas aí escurecem gradualmente, à medida que subimos até os departamentos do Norte, salvo exceções que confirmam a regra, por exemplo, Puy-de-Dôme, Cantal, Lozère, Alpes Marítimos e outras regiões montanhosas, frias, ainda que meridionais. Tende, pois, a estabelecer-se, graças ao alcoolismo sempre crescente no Norte, um nivelamento da criminalidade violenta, favorecido em tal latitude pelo clima, em tal outra, pelo vinho, álcool ou cerveja. Pode-se crer que as populações setentrionais são tão fortemente levadas aos crimes de sangue por seu alcoolismo endêmico e tradicional, quanto as populações meridionais pelo sol. Se, pois, as primeiras se contêm mais freqüentemente no declive da crueldade, se o inglês, por exemplo, ainda que consumindo muito mais álcool, é dezesseis vezes menos homicida que o italiano[121], esse resultado parece-me devido, sobretudo, à superioridade da cultura social da qual o Norte, hoje, dá o espetáculo.

Em uma palavra, se a civilização está em seu apogeu, pode-se acreditar que a influência das estações e climas sobre a criminalidade seria uma quantidade quase de negligenciar, e que as influências sociais unicamente mereceriam exame. Atenhamo-nos, por conseguinte, a essas. Mas, dir-me-ão, a explicação física da criminalidade não está senão afastada em vossa maneira de ver, pois que, se a menor violência dos países mais frios deve-se à sua civilização superior, a superioridade desta se explica, a seu turno, por seu progresso do Sul ao Norte, cuja diferença de clima parece sozinha dar conta. É o momento, para responder, de examinar de perto essa lei térmica da História, e ver se ela não derivaria de alguma causa inteiramente social o fundo, malgrado sua expressão física. Mas, primeiro, façamos justiça a Mougeolle, porque ele não negligenciou em emprestar-lhe toda precisão e solidez desejáveis. Traçando sobre um mapa-múndi quatro ou cinco das principais linhas isotérmicas entre a zona tórrida e a zona glacial, ele demonstra, ou esforça-se por demonstrar, que cada par dentre elas encerra, ou mesmo que cada uma delas quase liga as diversas grandes capitais onde se concentraria, ou de onde irradiaria a civilização numa mesma época histórica, e que a ordem e sucessão destas épocas, destes focos civilizadores, alternadamente, acesos e consumidos, é dada, precisamente, pela superposição dessas linhas a partir dos trópicos. Sobre a mesma isotérmica, no mais antigo período conhecido, vimos florescer Mênfis e Babilônia; mais acima, Nínive, Tiro, Atenas, as primeiras cidades chinesas, Nan-King e Kang-Tchéoufou; mais alto, Roma; mais alto ainda, Constantinopla, Córdoba, Veneza; enfim, na zona temperada, em nossos dias, Londres, Paris, Berlin,Viena, acrescentemos, Pequim. Adiante, “estende-se uma zona que compreende as porções civilizadas da Escandinávia e da Rússia, país dos últimos chegados à vida européia”. No detalhe, é, sobretudo, a carta isotérmica da bacia do Mediterrâneo que parece confirmar a lei. Há, todavia, objeções. Por exemplo: a história da civilização egípcia que se desenvolveu do Norte ao Sul, de Mênfis a Tebas, contrariamente à direção geral. A isso o autor nada responde, ou quase nada. Ele é mais feliz à vista de uma dificuldade não menos grave que subleva a marcha das civilizações americanas anteriores à conquista. Aqui a civilização nascida, de resto, na zona tórrida como no Mundo Antigo, ou seja, na Guatemala, em Iucatã, em Tabasco, passa, mais tarde, a territórios mais próximos ainda, e não mais distantes, do equador, ao México, a Bogotá, a Cuzco, a Quito[122]. Mas fazem-nos judiciosamente observar que o progresso em altitude dispensa aqui o progresso em latitude, e que isto dá no mesmo sob a relação termal. As civilizações mexicana e peruana tiveram por sede planaltos de 2 a 3.000 metros, no mínimo, de altura, onde a temperatura média era de 15 a 16 graus. Tal concepção “na direção e no sentido geral do deslocamento da civilização não faz, pois, senão confirmar a generalidade da lei térmica”. E o autor acredita-se autorizado a concluir “que existe aí uma relação constante, necessária, entre o desenvolvimento sucessivo das civilizações no tempo e a marcha das isotérmicas na superfície da Terra”.

Isso é de precisão enganosa em matéria tão vaga habitualmente. Mas, deixando sua parte a essa generalização um pouco prematura, é preciso, eu creio, com toda reverência devida a uma obra de mérito e de saber, recolocá-la em seu lugar. Não teria ocorrido com esta direção setentrional da civilização o mesmo que ocorreu com sua direção ocidental, da qual muito se falou. Longamente, ao mesmo tempo em que ela ia do Sul ao Norte, a lâmpada do gênero humano foi do Este ao Oeste, e tal orientação foi julgada não menos fatal até os tempos modernos, onde, havendo atingido a França e a Inglaterra nesta via, pôs-se a retrogradar em direção à Alemanha e à Rússia em direção às suas próprias fontes, a Itália, a Grécia, a Índia enfim e o Japão. É verdade que a América, que é o extremo Ocidente para nós, e aonde a civilização vinda do Este se propagou sobre seu próprio território, de Este a Oeste, pode ser citada como uma confirmação brilhante da tendência da qual se trata. Mas que prova esse movimento oposto ao precedente e simultâneo senão que um tipo qualquer de civilização, quando ele é fixado e organizado, em alguma parte, sob a forma de uma grande cidade florescente, aspira a propaga-se, a enxamear-se para todos os lados, em direção a todos os pontos cardeais, seja por suas colonizações exteriores e intermitentes que se observam isoladamente, seja por essas colonizações interiores e constantes que se chamam a fundação de novas cidades, a transformação de burgos em cidades, a assimilação à capital de todas as cidades e de todos os burgos já existentes; em uma palavra, em virtude da imitação, sem cessar ativa no seio das sociedades. Tomai não importa qual das antigas cidades situadas sobre vossas isotérmicas, Tito, Babilônia, Atenas; é sempre em todos os sentidos que ela se esforça por irradiar-se e conquistar, e que ela ativamente irradia-se e conquista. Se ocorre mais freqüentemente que, em todas essas direções, salvo aquela no Norte-Oeste, seus raios exteriores encontrem obstáculos que impedem acender novos archotes, tal liga-se a circunstâncias acidentais, sem dúvida, pois que desaparecem em nosso século; e, do mesmo modo que, pela própria luz polarizada, a polarização é um acidente, a irradiação unilateral, a lei e a essência, da mesma maneira, para a civilização, a marcha linear estreita e forçada momentaneamente, não nos deve mascarar a ambição infinita, universalmente irradiante, que é sua alma e a força essencial da História. A verdade desse ponto de vista eclode, enfim, em nossos dias, onde não é de Oeste a Este apenas que a civilização retrograda, sempre a perseguir seus progressos em sentido inverso, notadamente em direção à Rússia, através da Alemanha e a partir da França ou da Inglaterra, mas ainda do Norte ao Sul, sempre a deslocar-se para o Norte o mais possível; testemunhas, a Índia inglesa e Java, a Austrália e todo a costa mediterrânea da África, aí compreendido o Egito que se europeíza a olhos vistos. Por essa ramificação de todos os lados simultaneamente, nossa civilização final reproduz o caráter próprio, segundo todas as probabilidades, às primitivas civilizações, e, de início, às primeiras línguas que se dispersaram em todas as direções com as primeiras mitologias, indo, notadamente, do Norte ao Sul, em toda uma grande parte do mundo. Eu quero falar da Oceania, que um raio destacado do gênio asiático iluminou ilha por ilha, nessa longa odisséia de pirogas e de selvagens que Quatrefages nos narrou tão bem. – Mougeolle parece crer que a próxima floração de grandes cidades destinadas a fazer esquecer Paris, Londres e Berlim, terá lugar sobre uma isotérmica mais fria ainda ou menos temperada que a nossa, de modo conforme à sua lei. Nessas condições, a civilização não atingiria um dia seu zênite senão no pólo Norte? Não, segundo todas as aparências, não é no Spitzberg ou na Groelândia que a Rússia encontrará sua nova capital, própria a eclipsar São Petersburgo; será às margens do Bósforo; e dir-se-á, a bem dos sinais que o amanhã organiza para nossos descendentes, esse belo milagre, a ressurreição, o reflorescimento urbano, após uma longa morte, do Oriente e do Meio-Dia. – Apesar de tudo, nada mais simples que a espécie de necessidade momentânea à qual a civilização ou, antes, as civilizações têm obedecido, dirigindo-se para o Norte por tão longo tempo. Com efeito, elas deveram nascer em regiões quentes, sob os trópicos, lá onde os recursos naturais, mais abundantemente oferecidos ao homem, deixavam-lhe lazeres mais numerosos, e onde uma fauna e uma flora mais ricas exaltavam sua curiosidade. Malgrado o provérbio: “necessidade, mãe da indústria”, a beleza dos espetáculos, própria aos países quentes, e não a intensidade das necessidades, própria aos países frios, pôde sozinha, no início, despertar a imaginação humana, a julgar-se pelo caráter estético de suas primeiras criações, línguas e mitologias, de onde toda a indústria procede indiretamente. Mas, contagioso por natureza, o gênio humano não poderia permanecer encerrado em seu berço tropical; forçado a sair para conformar-se à sua própria lei, ele abordou naturalmente terras cada vez mais frias, tanto mais que as invenções já feitas num clima favorável permitiram ao homem adaptar-se às condições climáticas mais rudes ou mais desiguais. Por exemplo: segundo todas as probabilidades, as invenções relativas às vestimentas ou à habitação, tecelagem e costura, olaria e arquitetura, que sozinhas tornaram possível a permanência do homem em terras temperadas, nasceram em países quentes, onde, a rigor, podia-se passar sem elas. Não é surpreendente, aliás, que cada um desses transplantes haja sido marcado por um progresso, se imaginarmos que, em todo organismo, a perfectibilidade é privilégio da juventude. Em todo caso, é permitido crer que o declínio quase fatal, ao menos relativo, da civilização em lugares onde ela floresceu longo tempo e sua expatriação quase forçada têm causas, antes de tudo, sociais, entre outras, por exemplo, o alto preço, sempre crescente, finalmente abusivo, das terras em países onde a população, em se civilizando, condensa-se. O que se passa em nossos dias, a concorrência vitoriosa de terras americanas, – contra a qual não saberiam lutar os proprietários do velho continente europeu, condena, desde então, a uma ruína inevitável num tempo dado, – deveu, freqüentemente, ocorrer outrora, mesmo no mais longínquo passado, em escala mais reduzida. Acrescentemos aí o esgotamento do solo e o esgotamento da raça.

Sejamos mais precisos. Em suas belas lições sobre a Expansão da Inglaterra, Seeley mostra às maravilhas que a marcha da civilização européia em direção ao Oeste, a partir do século XVI, tem por causa principal, notadamente, a descoberta do Novo Mundo, de onde resulta a atração do Velho Mundo pelo Novo. A Itália então declina, porque o oceano, como grande via comercial, substitui-se naturalmente ao Mediterrâneo; e a atividade, a vida, a prosperidade passam, por conseguinte, aos Estados ribeirinhos ao Atlântico, à Espanha, a Portugal, à França marítima do Norte e do Oeste, à Holanda, à Inglaterra, como anteriormente elas haviam tido, desde uma antiguidade fabulosa, o privilégio reputado eterno dos povos banhados pelo Mediterrâneo: Egito, Fenícia, Ásia Menor, Cartago, Grécia, Império Romano, Espanha Meridional, sob os árabes, Provença, Repúblicas italianas. Há toda razão para crer que, sem o sucesso inaudito dos grandes navegadores do século XV, tornado possível unicamente pela invenção da bússola, a riqueza e a alta cultura teriam permanecido indefinidamente fechadas nas margens mediterrâneas. Dessa sorte, pois, explica-se a marcha ocidental da civilização desde há três séculos. Mas, antes, era bem de Este a Oeste, tanto quanto em sentido inverso, como em nossos dias, que ela marchou: de Roma a Constantinopla, por exemplo, dos Árabes da Espanha a toda cristandade. Quanto ao movimento da civilização em direção a Norte, simultaneamente, é também uma atração especial, nascida de iniciativas individuais, que se percebe acrescentada às seguintes causas, a saber: a atração do Norte, inculto e bravio, pelo Meio-Dia mais civilizado e militarmente enfraquecido. Daí as invasões e as infiltrações dos bárbaros no Império Romano, o desencadeamento do Norte sobre o Meio-Dia da França, sob o pretexto da heresia albigense, as expedições francesas na Itália desde Carlos VIII; acrescentemos as cruzadas. A presa, aqui, civilizou o caçador, enquanto a atração e a conquista da América produziram o efeito contrário; mas, do ponto de vista da irradiação civilizadora, isso dá no mesmo. No que concerne às cruzadas, a atração do paraíso a ganhar corroborava aquela do Oriente a conquistar. Não importa. Todos esses atrativos eram simplesmente polarizações, – eu repito, polarizações momentâneas, e malgrado sua longa duração, acidentais, – da luz civilizadora.

Tais são as considerações de onde me permito concluir, em resumo, que a menor criminalidade violenta dos países setentrionais liga-se a um fato social, à direção por longo tempo setentrional da civilização, e este fato, ele mesmo, tem uma causa social, a força da propagação imitativa em todos os sentidos. Se, na Itália, a diferença entre as províncias do Norte e aquelas do Meio-Dia, do ponto de vista dos crimes sangrentos, é fortemente destacada, enquanto na França ela é quase insensível, não é, precisamente, porque as causas de ordem social agitaram, por mais tempo e mais profundamente, nosso país nos tempos modernos, como o prova o grau excepcional de assimilação e de unificação nacional realizada por ele?

Eu esquecia um argumento a fortiori que talvez tenha seu valor. Eu não vejo por que o crime, de preferência à loucura e ao gênio, dependeria de causas naturais antes de tudo, e não sociais. Se está demonstrado pela estatística, notadamente, que o gênio e a loucura são conseqüências de estados sociais, nós devemos crer, com mais forte razão, que o crime se explica do mesmo modo. Eu digo com mais forte razão, pois que, dessas três anomalias, as duas primeiras nos tornam estranhos ao meio social e a terceira nos coloca em luta com ele; esta depende, pois, bem mais de nós que as outras. – Ora, para a loucura não há contestação possível: a estatística, que revela sua progressão paralelamente àquela das influências sociais bem determinadas (vida urbana, instrução, celibato, etc.), é de uma eloqüência irrefutável. Quanto ao gênio, científico, por exemplo, leia-se a obra de Candolle a esse respeito. Ele nos ensina, pela relação de associados ou correspondentes estrangeiros eleitos por diversas sociedades sábias há dois séculos, classificados de acordo com sua nacionalidade, sua religião, sua profissão ou sua casta, “que uma grande diversidade de causas influi sobre a produção de sábios distintos, e que as causas morais (acrescentemos, para completar seu pensamento, sociais) têm mais importância que as causas materiais”. O exemplo da Suíça é, infelizmente, próprio a fazer ressaltar essa verdade. Esse pequeno país, em seu conjunto, forneceu um número de sábios muito superior àquele que sua escassa população deveria fazer atingir; e, em seus cantões protestantes, a proporção eleva-se a um ponto extraordinário. Por quê? Porque as condições sociais que favoreciam o desenvolvimento científico original, condições precisadas e cuidadosamente catalogadas por Candolle, encontravam-se reunidas na Suíça em grau excepcional, sobretudo nas regiões protestantes. – Quer dizer que o gênio não é um dom natural, nem a loucura uma infelicidade natural? Não. É no seio da raça, ajudada pelo clima, que eclodem, sem nenhuma dúvida, as candidaturas ao gênio, acrescentemos, à loucura e ao crime. Mas é a sociedade que escolhe os candidatos e consagra-os, e – pois que nós vemos, dessa sorte, que ela impele alguns às academias ou aos hospícios – nós não devemos ficar surpresos que ela determine a entrada de outros à prisão de forçados.

 

02 — Homicídio e Suicídio.
Crítica da relação inversa estabelecida entre ambos. Ferri, Morselli e Legoyt. Suicídio e emigração. Causas de ordem social e, sobretudo, de ordem religiosa. Curva dos suicídios e curva dos divórcios. Bertillon. O suicídio militar.

 

Uma questão que se liga à precedente é aquela se saber se é verdade, como pretendem os escritores mais autorizados, notadamente Ferri e Morselli, que a marcha do suicídio seja inversa àquela do homicídio, e que um, em todos os países e em todos os tempos, serve, de qualquer sorte, de complemento ou de contrapeso ao outro[123]. Eu me permito, a propósito do Omicidio-suicidio de Ferri, emitir dúvidas motivadas a esse respeito. Esse autor, com o qual, aliás, meu desacordo seja talvez mais aparente que real, ou mais superficial que profundo, respondeu-me, na segunda edição de sua brochura (páginas 112-120), erigindo um quadro gráfico dos mais instrutivos, onde todos os elementos do problema se encontram resumidos. Estado por Estado, a curva do homicídio aí é oposta àquela do suicídio por todo o período abrangido pelas estatísticas. Muito bem: quanto mais eu estudo este quadro, menos estou disposto a admitir a tese, da qual ele se supõe ser a justificação. Eu vejo bem, na verdade, comparando no detalhe as curvas acopladas duas a duas, que, muito freqüentemente, nos anos em que uma cresce, a outra decresce e vice-versa; o fato mesmo é flagrante por sua constância no que concerne à Irlanda e, no conjunto, é suficiente para explicar a generalização que eu combato. Mas, em primeiro lugar, há numerosas exceções. Para a Itália, por exemplo, onde as curvas são, aliás, muito breves para poderem ser utilmente comparadas, a depressão da curva do homicídio, em 1868, coincide com uma depressão e não um relevo da curva do suicídio. Para a Inglaterra, de 1857 a 1859, de 1870 a 1874, as duas são antes paralelas que inversas; o mesmo para a Bélgica de 1851 a 1855, de 1861 a 1864. A Prússia, a partir de 1865, oferece também muito de paralelismo em suas curvas, ambas ascendentes[124]. Quanto à França, a curva do homicídio, horizontal e apenas denteada, corresponde em geral, e não se opõe, de modo algum, aos acidentes mais acentuados da curva do suicídio, fortemente ascendente. Acrescentemos que o mapa do suicídio por departamento francês, se comparado ao mapa dos homicídios, não apresenta, em seu conjunto, nenhuma relação inversa com este último. A coincidência desses dois resultados, um relativo ao tempo, outro, ao espaço, é significativa.

Eu devo reconhecer, todavia, que, no que concerne à Irlanda, a inversão sinalada é verdadeiramente digna de nota. Não que ela seja completa: ambas as curvas ascendem, apenas, uma um pouco; a outra, muito. O lado mais íngreme é daquela do homicídio, singularidade única que é suficiente para nos revelar a situação completamente à parte desse triste país, onde a miséria é tão grande e o ódio mútuo tão exaltado, que uma cota-parte anual da população aí é condenada a sair por uma das três portas: a emigração, o suicídio ou o assassinato. Se uma se fecha, as outras devem se abrir tanto quanto. O que quer que seja, aliás, essa exceção insular não me parece deduzir conseqüências.

Em segundo lugar, se houvesse realmente, entre o homicídio e o suicídio, a correlação compensatória que se imagina, ver-se-ia um decrescer, em geral, no conjunto dos Estados civilizados, quase tão rapidamente quanto o outro aumentasse. Mas sabe-se que o homicídio é, ou pouco falta, estacionário, enquanto o suicídio cresce com uma rapidez e uma regularidade assustadoras atestadas pela ação de uma causa exclusivamente própria ao triste fenômeno em questão, e de uma causa de ordem social. Nisso, e por muitos outros traços, a marcha do suicídio é análoga àquela da loucura. Para dizer a verdade, existem aí as mesmas razões estatísticas para estabelecer, entre a própria loucura e o homicídio, a relação indicada. Mas, levada a esse excesso, a tese mostra sua fraqueza. Que significaria essa aproximação? Que a demência é uma válvula de segurança contra o crime? Seria estranho que esta válvula de segurança involuntária se desenvolvesse no mesmo passo e da mesma maneira que o suicídio, exutório voluntário em grande parte, com o qual ela faria duplo emprego.

Prossigamos. Se a inversão imaginada fosse real, ver-se-iam certas causas, notadamente a temperatura, influenciarem o homicídio e o suicídio no mesmo sentido. O retorno da estação quente, a primavera, marca igualmente o máximo de ambas. A progressão para o homicídio como para o suicídio vai, do mesmo modo, aumentando no decorrer da idade, até trinta ou quarenta anos; depois, a tendência ao crime diminui, é verdade, enquanto a tendência ao assassinato de si mesmo não cessa de crescer até a idade mais avançada. As mulheres fornecem, ao mesmo tempo, como faz observar Colajanni, o mínimo de homicídios e o mínimo de suicídios. O mesmo autor observa, com não menos justeza, que os judeus atingem também esse duplo mínimo. Enfim, a influência do casamento age ou parece agir sobre essas duas forças temíveis, fazendo-as enfraquecer simultaneamente, em lugar de estimular uma e entravar a outra.

A propósito da influência das estações e da hora do dia, farei observar, incidentemente, que a ação física poderia bem encobrir aqui e mascarar uma ação social. O máximo de suicídios tem lugar, não ao meio-dia, mas nas horas mais atarefadas de tarde, e o mínimo, à meia-noite. A luz e o calor são pouca coisa, sem dúvida, nesse resultado. O máximo cai igualmente, não nos meses mais quentes, mas em maio; o mínimo, em novembro. Constantemente, além disso, a curva anual dos suicídios é acidentada por um relevo momentâneo em janeiro, fato inexplicável de outro modo senão que pela intervenção de um fator social, o vencimento do fim de dezembro a afrontar e o cabo do 1º de janeiro a franquear. Suponde que o ano comercial se iniciasse em 1º de abril, e não em 1º de janeiro. O acidente da curva em questão seria certamente deslocado. A tendência desse pequeno fenômeno nos é oferecida pela curva anual dos infanticídios, onde vemos uma elevação brusca se produzir nove meses depois do carnaval, em novembro. Se aprouvesse mais aos organizadores de nossa religião colocar a quaresma em outubro, e não em março, a silhueta dessa linha seria, pois, diferente. A estatística mostra, além disso, a parte sempre crescente das influências sociais e o enfraquecimento relativo das influências físicas ou vitais no curso da civilização. No que concerne ao suicídio, por exemplo, a distância entre o máximo e o mínimo, de que eu falo a toda hora, vai se atenuando, ao menos na França, quer dizer, mata-se proporcionalmente mais no inverno agora que outrora, e menos no verão. Nas grandes cidades, esse desvio é mais fraco que no campo. Ele é mais forte na Itália que na França. De todas as influências de ordem natural, a única que, em lugar de desaparecer, se mostra mais no curso da civilização, é aquela do sexo. A diferença numérica entre os suicídios masculinos e femininos é tanto mais forte quanto se tratem de nações ou de classes mais civilizadas. Por exemplo, na França, as mulheres da cidade não fornecem senão que 18 centésimos da cifra total, enquanto as mulheres do campo fornecem 20. É o mesmo na Itália, na Prússia, na Suécia, na Noruega, na Dinamarca. A civilização não tende, pois, de modo algum, a igualar os sexos. É que ela é, eu creio, coisa essencialmente masculina; e eis, talvez, por que, diga-se de passagem, ela é, no fundo, tão antipática àqueles a quem mais aproveita: aos poetas, aos artistas, a todos os espíritos essencialmente “feminis”, tais como Rousseau e Chateubriand.

Legoyt, em sua conscienciosa obra, estabelece (página 258), entre o suicídio e a emigração, uma inversão muito mais inteligível que a precedente. Na Dinamarca, o suicídio diminui ano a ano, à medida que a emigração aumenta; a emigração é muito forte na Inglaterra; o suicídio, muito fraco. Na França é justamente o oposto. Na Alemanha, o crescimento excepcional dos suicídios, de 1872 a 1878, coincide com a diminuição progressiva da emigração. Eis, por exemplo, uma correlação fácil de compreender. Uma relação inversa, não fortuita, não saberia existir, com efeito, na vida social, senão entre duas correntes de atividades complementares uma da outra, quer dizer, respondendo a uma mesma necessidade por vias diferentes. Que algum infeliz, ao cabo de privações ou de tormentos, emigre para não se matar, ou se mate, na falta da possibilidade de emigrar, nada mais inteligível. Mas qual seria a necessidade comum à qual o homicídio e o suicídio dariam satisfação? Seria essa necessidade, experimentada por não se sabe quem, de ver um certo número predeterminado de pessoas perecer, seja por sua própria mão, seja pela mão de outrem?

Em uma nação onde, por hipótese, os instintos criminais permanecessem com igual força, haveria, sem nenhuma dúvida, entre os diversos ramos do crime e do delito, por exemplo, entre o assassinato, o roubo, o estelionato e o atentado aos costumes, uma estreita solidariedade, tal que o crescimento de um seria imediatamente compensado pela diminuição proporcional de todos os outros. Por quê? Porque não apenas todos os gêneros de crimes são extraídos da mesma fonte imoral repartida entre eles, mas ainda o objetivo perseguido é, em sentido amplo, o mesmo para todos. O assassino, como o ladrão, o escroque ou o velho sátiro perseguem, ou um gozo ilícito ou um meio ilícito de gozar. Apenas os procedimentos diferem: o assassino mata, o ladrão escala uma janela ou quebra uma vidraça, o estuprador viola uma criança. Desse ponto de vista, deve-se olhar o roubo, o estelionato, a falsificação, o abuso de confiança, a própria violação e o atentado ao pudor como verdadeiras válvulas de segurança contra o homicídio e o assassinato. Dizendo de outro modo, se as ocasiões de roubar, de fraudar, de falsificar assinaturas, de violar se tornassem, de repente, mais raras e mais difíceis numa dada nação, é provável que se assassinaria mais. Reciprocamente, se essas ocasiões se multiplicassem subitamente, assassinar-se-ia menos. Seria assim porque essa mudança nas condições sociais, sendo brusca, a força das tendências criminais deveria ser considerada como permanecendo igual e ela mesma. Mas, quando essa transformação se opera com lentidão, a energia da criminalidade tem tempo de crescer, o que mascara o jogo das válvulas de segurança das quais se trata. Em nossos dias, por exemplo, assassina-se na França e na Europa quase tanto quanto há meio século, malgrado a facilidade maior que se tem hoje para tomar os bens de outrem e para procurar toda sorte de prazeres por mil receitas variadas, reclames mentirosos, sociedades anônimas, chantagens e outras invenções novas que têm feito relegar à classe das antigas armaduras, para os crimes do espírito, as extorsões violentas, os meios sujos, de uso dos Lacenaire e dos Cartouche. Daí se pode tirar a conclusão seguinte: já que o aumento, o transbordamento incessante desses canais derivativos da grande criminalidade, que se chamam o roubo, o estelionato, as fraudes comerciais, os delitos contra os costumes, não é suficiente para fazer baixar o nível numérico da corrente principal, que se chama os crimes contra as pessoas, é que o rio tornou-se mais forte; é que o desprezo pela vida de outrem, a insensibilidade aos sofrimentos de outrem, o egoísmo, senão a crueldade, apesar do que dizem os otimistas, têm feito reais progressos. Possa a primeira grande crise, que desenfreará o fundo dos corações, desmentir esse raciocínio!

Quanto ao suicida, pode-se dizer que seu objetivo tem a menor analogia com aquele do homicida? Por que também não com aquele do ladrão? A verdade é que o suicídio é uma das formas de desespero intolerável, como o homicídio é uma das formas de egoísmo insociável. Ora, o desenvolvimento do egoísmo e aquele do desespero não são solidários, e um pode crescer sem que o outro diminua. Mas as diversas formas que cada um deles pode revestir no curso do progresso social são solidárias entre elas, como acabo de mostrar, no que concerne ao egoísmo criminal. Para o desespero, é o mesmo. A progressão dos suicídios, com efeito, em todos os Estados civilizados, é ela suficiente para provar que a civilização aumentou o fardo da desesperança humana? Não, não mais que a diminuição da grande criminalidade, lá onde ela não é falsa, não dá lugar para crer numa real moralização, se os delitos se elevam em igual proporção. Descartemos esse duplo erro, poupemos à civilização esse excesso de orgulho e essa indignidade. Encontra-se que, em geral, pelas duas transformações independentes que ela exerce sobre o crime e sobre a desgraça, ela tende a fazer prevalecer as formas não sanguinárias do crime e as formas sangrentas da desgraça. É um fato acidental que se liga, talvez, ao caráter industrial e anticristão de nossa civilização européia. Suponde um tipo de civilização essencialmente religiosa e artística, fracamente industrial, tal como aquela da Renascença italiana; poderá muito bem ser que sua ação, ao contrário, desencadeie elãs de orgulho, de vingança, de paixão violenta, e reprima os acessos, mesmo corajosos, do desânimo, multiplique os homicídios e rareie os suicídios. Ver-se-á, por exemplo, aqueles que se matam no presente entrarem para a clausura e aí perseguirem o nirvana ou a centelha da sindérese, da mesma maneira que se vêem aqueles que seriam outrora amortalhados num cárcere darem-se, hoje, à morte. Foi-se o tempo em que, à opressão da dor, ao tormento da vergonha, o único asilo aberto permitido pela religião e pelos costumes era a porta do monastério. Hoje, à medida que esta se vai fechando, uma outra se abre, negro refúgio, mas profundo. Eis por que os suicídios aumentam nas sociedades que se civilizam à européia, ou, antes, que se emancipam do freio religioso; não é porque os homicídios não aumentam, é porque as vocações religiosas diminuem. Tal consideração, melhor que toda influência do clima, pode servir para explicar a raridade de mortes voluntárias nos países meridionais, onde a religião perdeu menos seu império. O suicídio é notavelmente raro, como observa Morselli (página 360), entre as pessoas consagradas ao culto. Não esqueçamos que, na Antiguidade, os romanos se suicidavam freqüentemente, e que esse flagelo da morte voluntária teria podido passar por endêmico então na Itália, onde, no presente, é bem menos intenso que alhures. Mas o politeísmo antigo permitia o suicídio, o cristianismo proíbe-o. A Inglaterra pode haver sido muito civilizada com o sangue germânico, e comparável, além disso, sob muitas relações, ao Império Romano; é-lhe suficiente haver permanecido muito cristã de costumes, para não tomar parte, senão fracamente, no mal reinante.

A progressão dos suicídios é, desde nosso século, constante, rápida, geral em todos os Estados europeus, salvo na Noruega. Seriam causas de ordem física ou fisiológica que se poderiam atribuir a esse fenômeno? Evidentemente, não. Nem os climas nem as raças mudaram sensivelmente. Sem dúvida, a diferença de raça é, após a diferença de religião, uma excelente explicação superficial da parte diferente que tomam, na progressão conjunta, as diversas nações européias pertencentes, aliás, ao mesmo culto. Os alemães, sobretudo os saxões, são muito levados ao suicídio, os flamengos, muito pouco, os eslavos, ainda menos, os celtas, quase nada; e, aliás, entre eles os católicos apresentam uma imunidade mais acusada que os protestantes. Ainda é preciso notar, para fechar ainda mais a influência fisiológica, que, entre os povos escandinavos, a Dinamarca, excepcionalmente, assinala-se por uma muito forte propensão ao suicídio. É verdade que, em Nova Iorque, a população de cor fornece uma proporção de mortes voluntárias 15 ou 16 vezes menor do que aquela dos brancos, e aqui a influência da raça parece enorme, a menos que não se prefira mais ver aí, conosco, o efeito de nosso velho passado de civilização tornada constitucional. Em todo caso, a qualquer raça que ele pertença, o homem que foge da vida “jamais se teria suicidado, diz Morselli com razão, se houvesse vivido longe dos outros homens e se não houvesse participado das misérias de seus semelhantes”. Tal passagem do eminente estatístico bastaria para justificar, contra Morselli, ele mesmo, nosso ponto de vista essencialmente sociológico, e para demonstrar que, mesmo reconhecendo a realidade e a energia das influências naturais, não é permitido colocá-las na mesma linha que as influências sociais. Com efeito, as primeiras não agem senão se as segundas intervêm. No homem isolado, subtraído, por hipótese, ao contato de outrem, as causas naturais que levam à destruição de si continuariam a agir, mas em vão. Elas tomariam outra direção. Por fraca que seja a ação social, comparada às ações físicas ou fisiológicas, ela é determinante, porque ela é imediata. É o ligeiro movimento do braço do maquinista, e não o esforço poderoso do vapor, que determina a passagem do trem sobre a via onde se engaja. Mas uma coisa é a contribuição proporcional de cada povo para a invasão de uma doença, outra coisa é essa invasão ela mesma, essa marcha para diante. A tal questão: por que o suicídio está em toda parte, ou em quase toda parte, em progresso, ainda que mais ou menos segundo as raças? Não se pode responder senão invocando causas de ordem social. Mas, entre estas ultimas, as causas de ordem econômica não puderam desempenhar senão um fraco papel, a ser verdade que o bem-estar e a riqueza se difundem e progridem ao mesmo tempo em que esta grande epidemia homicida. As causas políticas devem igualmente ser eliminadas, como o prova a marcha regular do flagelo através de períodos de calma ou de crise. Não restam senão causas propriamente sociais, as causas viscerais, de qualquer sorte, que constituem a vida vegetativa, sem desordens e sem intermitência, das sociedades. Todas as vezes que nos encontramos em presença de uma série estatística regularmente ascendente, estejamos seguros de que ela nos traduz uma propagação imitativa, um contágio mental e moral de homem a homem, quer dizer, aqui, a difusão gradual de novas idéias que se superpõem e se substituem às antigas crenças. Explica-se dessa sorte a maior freqüência do suicídio, não apenas nos países setentrionais mais modernizados, comparados aos países meridionais mais ligados à tradição, mas ainda nas classes superiores, mais esclarecidas, comparadas às classes populares, mais infelizes, todavia, e nos meio urbanos comparados ao campo.

Nada de mais simples, então, que compreender uma correlação percebida com sagacidade, mas não sem surpresa, por Jacques Bertillon em seu belo Estudo demográfico sobre o divórcio e a separação de corpos[125]. Após haver constatado que esses progressos de família vão se multiplicando em toda a Europa, ele procura a razão desse crescimento e, como bom estatístico, ele confronta, alternativamente, os resultados numéricos de seu exame, fornecidos pela comparação de raças, de classes, de idades, de épocas, com muitas outras categorias numéricas destinadas a esclarecer as primeiras, por exemplo, com aquelas que exprimem a emigração dos campos em direção às cidades, ou a freqüência dos casamentos, ou a proporção dos filhos naturais. Mas em parte alguma aparece, entre esses dados, uma relação qualquer tão verossimilhante quanto possa parecer. Uma única aproximação trouxe à luz uma concordância das mais imprevistas seguramente. O mapa dos divórcios e aquele dos suicídios apresentam “uma semelhança flagrante”. As mesmas influências agem da mesma maneira sobre esses dois fenômenos tão estranhos um ao outro. Eles são, de modo semelhante, mais freqüentes nas cidades que no campo, nas classes instruídas, que no seio da população inculta, entre os alemães que entre os eslavos, etc. “Não chega até esta exceção bizarra, que não se encontra para os divórcios como para os suicídios, senão a Dinamarca, presente em meio a quatro povos escandinavos”. Um quadro[126] faz ver que os países onde se contam poucos, muitos, enormemente suicídios em relação ao número de sua população, são também aqueles onde se contam poucos, muitos, enormemente divórcios e separações de corpos. A regra “verifica-se com mais rigor quando se comparam, entre elas, as diferentes partes de um mesmo país”, por exemplo, os cantões da Suíça e os departamentos franceses. “Sempre os cantões (suíços) contam muitos divórcios, contando muitos suicídios”. E, reciprocamente, aqueles que contam poucos divórcios contam poucos suicídios[127]. “No Sul da França, as separações de corpos são raras; raros também são os suicídios. Ao Norte de Loire, as separações são freqüentes; freqüentes também os suicídios. Mas, no Norte, a Bretanha, Flandres e Artois fazem exceção e contam poucas separações. Mesmas exceções para os suicídios! Estes dois mapas se parecem, mesmo em seus detalhes”.

É singular. Tanto mais que, o mapa e a curva do divórcio, sendo calcados sobre aquele do suicídio, a relação inversa imaginada entre o homicídio e o suicídio deveria existir tanto quanto entre o homicídio e o divórcio. O divórcio se encontraria, pois, ele mesmo como o substituto do homicídio! Que bizarria!

Distingamos, todavia, para o divórcio, como mais acima para o suicídio, entre as causas que explicam a participação diferente de diversos países ou de diversas classes no crescimento numérico, e as causas que dão conta deste crescimento ele mesmo. De uma parte, no que toca ao primeiro aspecto do problema, nós não devemos nos surpreender em ver as diferentes condições hereditárias ou tradicionais, vitais ou nacionais, traduzirem-se ao mesmo tempo e paralelamente pela diferente intensidade da necessidade de libertação, quer se trate de sacudir o jugo da vida ou o jugo do casamento. De outra parte, se nós tivemos razão em explicar, como o fizemos mais acima, ao menos em grande parte, a maré montante dos suicídios, se ela se liga verdadeiramente, numa ampla medida, ao enfraquecimento gradual do freio religioso e dos preconceitos tradicionais, não se nos devemos espantar em ver crescer o divórcio nas mesmas regiões e nos meios onde cresce o suicídio, pois que o casamento indissolúvel e a vida inalienável são dois artigos do mesmo Credo que o livre exame primeiro, depois, o livre pensamento, corroem a cada dia[128]. Acrescentemos que esse ponto de vista é bastante consolador: do mesmo modo que a progressão dos suicídios não autoriza, talvez, a afirmar o progresso do desespero, aquela das separações e dos divórcios poderia bem não ser suficiente para provar que se é menos feliz a dois.

Entretanto, o declínio da fé e dos preconceitos não explica sozinho a marcha ascendente do suicídio nem aquela do divórcio; é preciso aí acrescentar, eu creio, duas outras causas que crescem sob nossos olhos: o alcoolismo e a multiplicidade de relações. O alcoolismo progride em toda parte, e sua parte no suicídio é enorme, sempre crescente. Ele aumentou, diz o relatório oficial de 1880, em 483%; em números redondos, quintuplicou, enquanto a influência do amor fez-se sentir cada vez menos. Esta ação da embriaguez pareceria bem mais forte ainda se, como faz observar Yvernès, “aí se compreenderem os suicídios imputados à alienação mental e que, na realidade, proviriam do abuso de bebidas”. Poder-se-ia dizer de suicídios semelhantes, que são homicídios transformados? – Quanto à multiplicação das relações entre os membros de nossas sociedades civilizadas, por conta dos progressos da locomoção e da imprensa, ele tem por efeito ativar e fortificar o contágio do exemplo. – Parece-nos que, pela combinação dessas três causas, dá-se perfeitamente conta de todos os fatos estatísticos, notadamente, da freqüência dos suicídios no Norte, onde o consumo infinitamente mais forte do álcool e a emancipação mais completa das consciências concorrem com a maior densidade da população mais urbanizada.

Com a ajuda dessas três chaves, resolve-se também um problema dos mais enigmáticos sublevado pelo suicídio militar[129]. Como se dá que, em todos os países, o exército pague ao Minotauro do suicídio um tributo proporcionalmente muito superior mesmo àquele dos meios urbanos, que excede já de muito o contingente dos meios rurais? Isso pode parecer estranho. Não é, pois, possível explicá-lo pela extrema licenciosidade, pelo relaxamento de todo freio e de toda disciplina que reinam nas cidades, nem pela carestia maior de vida, nem pela pior higiene e pelas doenças mais numerosas, o número considerável de suicídios entre as populações urbanas. Com efeito, o exército, repitamo-lo, o exército que é o corpo mais disciplinado, o mais autoritário, o melhor organizado da nação, o mais são e o mais válido também, pois que ele é uma escolha dos homens, os mais robustos na flor da idade; o mais isento de miséria enfim, pois que a subsistência está assegurada; o exército dá, pois, a esse respeito, um espetáculo pior ainda que aquele dos grandes centros. Não se dirá, eu espero, que a lei da inversão entre o homicídio e o suicídio é aplicável aqui. Se fosse verdade, como se supõe, que o assassinato de outrem foi um preservativo contra o assassinato de si mesmo e vice-versa, não haveria, certamente, nada mais apropriado que a vida militar, com seus massacres obrigatórios, legais e patrióticos, seja, mas não menos sangrentos por aí, para curar o homem civilizado da tendência fatal a destruir-se. Ora, produz-se o efeito diretamente oposto. Dir-se-á que as guerras, apesar de tudo, são raras, e que, quando elas eclodem, os suicídios militares, precisamente, parecem diminuir? Mas não é, sem dúvida, esta diminuição como aquela dos delitos em tempos de revolução: os estatísticos sabem bem que é puramente aparente. Mesmo em tempos de paz, aliás, os duelos e as rixas sangrentas não são mais numerosos nas casernas do que fora delas? – Alegar-se-ia em vão a dureza do serviço militar: na medida em que se abranda, o suicídio militar sevicia mais forte, e é, sobretudo, entre os oficiais que ele exerce suas devastações. – Mas imaginemos aquilo que é a caserna para a grande maioria dos recrutas, quer dizer, para todos aqueles que vêm dos campos e mesmo para uma parte daqueles que vêm das cidades. Ela é, primeiro, uma emancipação súbita e poderosa do preconceito religioso e tradicional, como foi para a criança o colégio. Pelo próprio fato de que ela deve imprimir na alma do soldado uma nova religião sui generis, um novo ponto de honra inteiramente militar, ela deve começar por despojá-lo de seus costumes e de suas idéias antigas; corpora non agunt nisi soluta, diziam os velhos químicos, toda combinação é precedida de uma dissolução. Em segundo lugar, não é mistério para ninguém que os lazeres forçados da vida do regimento favorecem os hábitos de intemperança. Em sua cidade, o jovem camponês bebe vinho aos domingos; sob a bandeira, bebe aguardente todos os dias, e sabe-se que o oficial senta-se à mesa dos cafés. Nesse ponto, é verdade, uma melhora sensível produziu-se, desde 1870, no exército francês; também se deve observar que, nesses últimos anos, a proporção de suicídios militares, progressivamente, diminuiu da metade, resultado que pode ser devido, em uma parte, à atenuação simultânea da primeira causa precedente, o caráter emancipador da caserna se apagando, à medida que o resto da nação, aí compreendido o campo, é mais emancipado, e que o soldado leva, em nossa sociedade igualada, uma existência menos à parte. Enfim, se há um meio onde todos se acotovelam, onde, graças a essa densidade notável do corpo social, a vida social se apresenta com uma intensidade excepcional, mesmo excessiva, onde, por conseguinte, a ação elétrica do exemplo propaga-se com mais força e mais rapidez, não é este o meio militar? Aí, não há ato de desespero, como não há ato de heroísmo, que não encontre seus imitadores.

Qualquer que seja, aliás, a explicação dada por nós à progressão moderna dos suicídios, podemos concluir que ela tem causas, antes de tudo e cada vez mais, sociais, que ela procede de uma evolução, de uma transformação histórica, do desespero, e que, por nenhum liame direto, ela se relaciona à diminuição proporcional da criminalidade contra as pessoas comparada à criminalidade contra o patrimônio.

 

03 — O Amanhã do Crime.
Dupla vertente das sociedades. Voluptuosidade crescente. Definição do delito. Ampliação progressiva dos dois círculos concêntricos da moral. O próprio progresso moral operado pelas descobertas imitadas. Cada civilização tende a devorar sua própria criminalidade. Embriologia do delito. O ideal futuro.

 

É tempo de interpretar, a seu turno, esse último fato geral e de abordar os problemas que a ele se relacionam. Após haver tentado compreender por que nossa civilização faz predominar as formas sangrentas do desespero, perguntemo-nos por que ala favorece e desdobra, de preferência, as formas não sangrentas do delito, sem, aliás, combater eficazmente as outras, e se este fenômeno é o acompanhamento essencial de toda civilização em via de progresso, ou apenas um caráter passageiro e secundário da nossa. Eis questões de uma complexidade vaga, tão difíceis de precisar quanto de resolver.

Se é verdade, como se diz, que a alma humana tem duas grandes vertentes entre as quais é necessário que todo homem se decida, – a queda abrupta na ambição e no orgulho, nas virtudes homicidas, e a suave queda na voluptuosidade e na vaidade, nos encantos enganosos, – poder-se-ia crer que toda sociedade, assim como todo indivíduo, tem escolha entre essas duas orientações, em direção à quimera da glória e às realidades do poder autoritário ou em direção ao prazer tangível e à igualdade aparente; poder-se-ia crer que é permitido a todo povo desenvolver-se num ou outro desses sentidos, no dos caracteres altivos e das convicções fortes ou dos talentos engenhosos e das idéias sedutoras, dos preconceitos ou das ficções, dos erros ou das mentiras, dos belos ódios raciais, dos belos crimes de sangue, das façanhas e das vinganças, ou das cobiças, das invejas, das indústrias e da cupidez. Mas a História parece mostrar, de preferência, que a lei de toda tribo crescente, saída do estado selvagem, é a de começar por escalar a primeira dessas duas encostas até um cimo mais ou menos elevado que é seu estado propriamente bárbaro, e, civilizando-se, descer a seguir o segundo, mais ou menos rapidamente, através de infinitas vicissitudes. Inclino-me, pois, a pensar que, na passagem da selvageria primitiva à barbárie consecutiva, houve aí, senão uma profunda e completa desmoralização, – como supõe Candolle, que invoca sérias verossimilhanças, – ao menos um forte impulso de crueldade e, ao mesmo tempo, de bravura, que deveu multiplicar os homicídios. É, pois, não no passado mais remoto, mas na idade heróica de um povo que se deve colocar o apogeu de sua criminalidade violenta; e quando Lombroso nos diz que os crimes de sangue são um retorno ao estado selvagem, nós devemos conceder-lhe apenas que eles são uma reminiscência da barbárie.

Agora, na passagem da barbárie à civilização, uma moralização real teve lugar? Candolle o crê; há muito a dizer sobre esse assunto[130]. Atenhamo-nos a um real abrandamento dos costumes, o que é uma melhora social, senão moral, incontestável. O fato é certo, malgrado o estacionamento numérico dos assassinatos que, em nosso século, não parecem diminuir muito. Olhando de perto, vê-se que, em nossos dias, a criminalidade violenta, apesar de manter-se, localiza-se, refugia-se na escória das cidades, porão infecto do navio negreiro de nossa civilização, subsolo estranho ao resto da construção. Isso é evidente à vista das curvas gráficas pelas quais Bournet, por exemplo, representa as acusações urbanas, seja contra pessoas, seja contra propriedades, comparadas às acusações rurais. As cidades tornam-se os exutórios criminais dos campos. Elas os escumam moralmente, enquanto, intelectualmente, desnatam. Aliás, é um lapso de tempo considerável que é preciso abranger para perceber o fenômeno em questão. Os países da vingança, a Córsega e a Itália meridional, podem ser considerados, a esse respeito, como ilhas de barbárie sobrevivente em meio a nossa civilização, ainda que cada vez mais invadidas pela maré ascendente. Ora, pela cifra extremamente superior de sua criminalidade vingativa e sanguinária, tanto quanto pela cifra extremamente inferior de sua criminalidade voluptuosa e astuciosa, eles formam, com os países modernizados, um perfeito contraste.

Mas é por conta de um progresso da piedade que os homicídios têm relativamente diminuído? Não, não mais que o aumento dos roubos, dos abusos de confiança, das falsificações não se deve, precisamente, a um progresso do egoísmo. Tudo se explica, simplesmente, pela voluptuosidade sempre crescente de nossos costumes, tanto o aumento dos infanticídios[131], conseqüência dos progressos da libertinagem, quanto a diminuição dos homicídios por questão de honra, preconceito mal conciliável com o amor desenfreado ao prazer; tanto o crescimento dos delitos contra a propriedade, quanto aquele dos atentados ao pudor. O ladrão, o escroque, o falsário são, cada vez mais, os estróinas em camisas-de-onze-varas. Um sopro de lascívia dissoluta, mais que de bondade, passou sobre nossos costumes[132]. Ninguém escapa à opressão de vento do sul; todos somos empurrados, alguns, derrubados; e o número crescente dessas quedas chamadas delitos pode servir para mensurar a energia crescente do impulso comum. Todas as grandes civilizações, parece, aí chegaram, como o último termo da sabedoria ou da felicidade.

A desaparição gradual da vingança, da vingança hereditária e à mão armada, no decorrer da civilização, prova ela que a sede de vingança haja diminuído? Ela, de preferência, mudou de forma. Se as represálias dos exércitos em tempos de guerra são menos atrozes, aquelas dos partidos políticos, por serem mascaradas de grandes palavras, não são senão mais venenosas, e eu confesso que, em meio a esse desenvolvimento contínuo de animosidades hipócritas, mas ferozes, fico um pouco surpreso em ver os criminalistas escandalizarem-se com a expressão vingança pública ainda empregada por algum advogado-geral retardatário. Não há mais tiros de fuzil atrás do ódio; mas, em revanche, delações covardes, processos escandalosos, descargas de calúnias verbais ou impressas. É possível que se esteja menos sensível aos simples ultrajes, às lesões da honra; se o é menos a um atentado qualquer aos interesses? Um ódio familiar, depois de tudo, é uma dívida paterna. A preocupação do mal futuro a evitar, mais que aquela do mal passado a vingar, é um sentimento muito utilitário, mas pouco estético, onde se mostra bem o progresso do desejo do bem-estar. É-se mais calculista, eis tudo. O amor crescente pelo prazer deveria completar-se pelo medo crescente da dor ou do constrangimento.

Eu estaria, pois, disposto a encontrar os criminalistas italianos muito severos para com sua própria nação, quando o número muito elevado de seus homicídios os fez corar de vergonha. É necessário pensar que a maior parte desses homicídios é imposta ao costume, como os duelos o são entre nós, e que, se os assassinos de acolá são qualificados como criminosos, nossos duelistas quase mereceriam este epíteto. A vingança é um assassinato precedido de uma declaração de guerra, – no que ela difere profundamente de um assassinato verdadeiro, – e é uma guerra ou pouco falta. “Há mais assassinatos na Córsega que alhures, dizia Mérimée, mas nunca encontrareis um motivo ignóbil para esses crimes”. Poder-se-ia dizer o mesmo da Itália e de seus homicidas impetuosos. Observemos que, se os homicídios aí abundam, os infanticídios são raros. Em 1880, contei aí 82 crimes deste último gênero contra 184 cometidos na França, ainda que a proporção de nascimentos ilegítimos seja mais forte entre nossos vizinhos.

Não. Se os costumes se abrandaram, não é que as almas tenham se tornado melhores. Tentou-se demonstrar[133] que, ao contrario desses efeitos, reais ou pretensos, no mundo animal, a concorrência pela vida tem por resultado, em nossas sociedades comerciais, fazer sobreviver os mais fracos os mais maldotados, os mais preguiçosos. Isso é contestável; mas é certo que a luta militar tem por conseqüência, em tempos de civilização como em tempos de barbárie, o triunfo das nações, as mais duras, as mais avaras, as menos escrupulosas. Quanto o vencido quase sempre ultrapassa em moralidade o vencedor: o egípcio sobre o hicso, o grego sobre o romano, o galo-romano sobre o germano, o anglo-saxão sobre o normando de Guilherme, o árabe sobre o turco, mesmo o chinês sobre o tártaro! Eu diria o mesmo da luta política, onde a vantagem, coeteris paribus, é a mais livre de toda regra moral. É assim desde a Índia, – onde, segundo Lyell, os clãs puros e honestos dos rajaputros, por exemplo, são rechaçados por clãs impuros, tais como os minas, refúgio de aventureiros, e o seriam bem mais sem a dominação inglesa que se interpôs, – até o Norte da Europa, onde o poder passa às mãos dos agentes eleitorais. Se, pois, um progresso moral no sentido da humanização gradual se opera, é malgrado a guerra, malgrado a concorrência vital, em virtude de causas internas e não exteriores.

Essas causas internas, extraídas da própria essência do ser social considerado como tal, nós não teríamos trabalho em descobri-las[134]. Uma boa definição do delito seria suficiente para nô-las sugerir. Uma ação: é ela delituosa pelo único fato de que ofende o sentimento médio da piedade e de justiça? Não, se não for julgada delituosa pela opinião. A visão de um massacre belicoso subleva em nós mais horror que a visão de um único homem assassinado; nós lamentamos mais as vítimas de uma razia que aquelas de um roubo; todavia o general que ordenou essa carnificina e essa pilhagem não é um criminoso. O caráter ilícito ou lícito das ações, por exemplo, do homicídio em caso de legítima defesa ou de vingança e do roubo em caso de pirataria ou de guerra, é determinado pela opinião dominante, acreditada, no grupo social do qual se faz parte. Em segundo lugar, tal ato, que é proibido por esta opinião, se for realizada em prejuízo de um membro desse grupo ou mesmo de um grupo mais amplo, torna-se permitido além desses limites.

Esse duplo princípio verifica-se tanto entre os civilizados quanto no seio das tribos selvagens, como Tylor o indicou. Apenas, à medida que a civilização progride, o grupo social cuja opinião se impõe à consciência do indivíduo e constitui sua lei moral vai se ampliando, e o grupo social cujas fronteiras circunscrevem o campo de aplicação desta lei moral, inaplicável fora delas, amplia-se mais rapidamente ainda. O afastamento entre esses dois grupos acaba por tornar-se enorme entre as almas muito elevadas, cuja moralidade, respirada no círculo estreito de uma elite humana (quintessência, é verdade, de muitas grandes nações e civilizações passadas ou presentes), cria-lhes deveres em relação à humanidade inteira, em relação à própria universalidade dos seres vivos. Se, abaixo delas, essa distância é bem menor, ela não cessa de crescer. O selvagem não se ocupa senão de sua pequena tribo e não se acredita retido por quaisquer obrigações senão relativas a ela e a algumas tribos vizinhas. O ateniense, antes de Sócrates, não compreende a honestidade senão que no sentido ateniense da palavra e nos limites do Peloponeso ou da Grécia. O romano do Império, que recebe suas inspirações morais de Roma a de Atenas combinadas, estende suas relações a toda romanidade. O cristão da Idade Média obedece ao código moral de uma sociedade já muito vasta, a cristandade, e, malgrado seu horror à infidelidade, reconhecia-se deveres em relação a todo gênero humano, às vezes mesmo colocando-os em prática. Muito freqüentemente, todavia, na época feudal, os preceitos gerais do cristianismo foram singularmente particularizados e desnaturados em cada feudo pela tradição local que aí reinava, pelos provincianismos morais, por assim dizer, que aí se superpunham; e era raro que o cristão de então tivesse escrúpulos de matar ou pilhar o muçulmano ou o judeu, senão o herético e o cismático. Hoje, o francês, possuidor de uma moral mais complexa ainda, ao mesmo tempo cristã, clássica e moderna, eco de Roma, de Atenas, de Jerusalém, de Paris e de toda a Europa civilizada, acredita-se obrigado a respeitar as pessoas e os bens das nações semicivilizadas, eu ia dizer bárbaras, ainda que, para falar a verdade, sua conduta em relação aos árabes da África, os anamitas da Cochinchina e muitas tribos insulares ateste um enfraquecimento deplorável do senso moral, desde que certas fronteiras remotas da raça e da civilização foram franqueadas.

Agora, como se opera esse alargamento progressivo do duplo círculo concêntrico da moral? Não é pela irradiação contínua das imitações de homem a homem e a lenta assimilação que daí resulta, fonte de novas simpatias[135]? Essa propagação ambiente de exemplos, tão necessária, tão constante socialmente que é, fisicamente, a propagação ambiente das ondas luminosas ou sonoras, trazendo sempre o triunfo de alguma forma de civilização momentaneamente dominante; e, por conseqüência desse nivelamento geral (europeu em nossos dias, asiático em outras épocas), os membros das diferentes nações banhadas numa mesma atmosfera civilizadora são levados a tratar-se como compatriotas sociais, ainda que estrangeiros politicamente; depois, por hábito adquirido, eles chegam a criar um pouco mais de vistas em relação a povos ainda refratários ao contágio. A ação contínua da imitação tem realizado esse grande progresso moral; seria errado ver aí o efeito de uma melhora interna dos corações e de um sentimento mais profundo de justiça, mudança interna que, se fosse real, seria a conseqüência e não a causa desse progresso. Se algum cataclismo aniquilasse nossas estradas de ferro e nossos telégrafos, e nos roubasse o seu segredo, se algum grande movimento federalista viesse a romper em mil pedaços a unidade de nossos grandes Estados, e se nós fôssemos levados, dessa sorte, à escassez das comunicações, ao isolamento local de há três ou quatro séculos, os costumes, as idéias, os hábitos se particularizariam em cada cantão, e, em pouco tempo, veríamos, talvez, as guerras voltarem a ser ferozes como aquela dos 30 Anos, mesmo sobre o território europeu, as cidades pilhadas, as mulheres violadas, tudo conforme o direito das gentes[136].

Quantas benfeitorias, mesmo morais, devemos, pois, aos inventores industriais, aos espíritos imaginativos de todo gênero que surpreenderam e monetizaram idéias engenhosas e úteis logo colocadas em circulação! E eis uma que, em seu tempo, apesar de parecer estranha, foi sem dúvida necessária para fazer sair a moral de seu berço familiar, o primeiro círculo em que ela esteve encerrada, antes mesmo daquele da tribo. Trata-se do costume, em vigor entre tantos povos selvagens, bárbaros também e semicivilizados, que consiste em cimentar uma aliança pela mistura de algumas gotas de sangue tomadas aos diversos contratantes que ingeriam em comum, a seguir, essa tenebrosa beberagem. Esse procedimento repugnante, diz Tylor, “é digno de respeito e de admiração do ponto de vista ético. Com efeito, o maior progresso da civilização consiste em expandir, cada vez mais, o círculo dos deveres mútuos e das simpatias, e não foi um fato sem importância, na história da humanidade, a descoberta de um meio solene de estender, além dos estreitos limites da família, os deveres e as afeições fraternos”. Esse modo de conceber o progresso moral como uma seqüência de descobertas imitadas entra, vê-se, no meu ponto de vista geral[137]. Ele permite relacionar intimamente o progresso moral ao progresso industrial e ao progresso científico, todos os três devidos a acúmulos de engenhosidades felizes[138]. Para cada um deles, é preciso distinguir entre o próprio feixe mais ou menos lógico e útil das descobertas, formado espontaneamente sobre diversos pontos do globo, e seu sucesso mais ou menos extenso e profundo. A civilização apodera-se do mais coerente de todos esses feixes, e tem por efeito estreitar seu liame sistemático, acelerando sua difusão.

É, pois, bem certo que a civilização é, por ela mesma e no sentido acima exposto, moralizadora; segue-se mesmo daí que, exagerada, ela deveria ter por conseqüência a reabsorção do delito, e devorar, dessa sorte, sua própria criminalidade, como certos fogões, sua fumaça. Com efeito, que se suponha uma sociedade onde o duplo trabalho de adaptação e de conformismo, acordo lógico sob duas diferentes formas, tenha atingido seu termo; onde, de uma parte, a harmonia de todos os elementos que constituem seu tipo de civilização fosse tornada perfeita, toda contradição entre as crenças que ela abraçasse, toda discordância entre as necessidades que ela nutrisse fossem eliminadas; onde, de outra parte, a conformidade de seus membros uns aos outros houvesse terminado por excluir toda dissidência; é claro que não se veria quase nunca surgir um crime nem um delito verdadeiro, ou seja, julgado tal pela opinião[139], cuja indulgência, é verdade, para com certas ações reputadas por nós como delituosas, ter-se-ia adaptado à sua freqüência insuperável. Seria assim, ao menos, por tanto tempo quanto a sociedade se mantivesse pura como sua raça, isolada, sem relações comerciais nem militares com civilizações diferentes formadas por elementos perturbadores da sua. Do mesmo modo, segundo uma conseqüência que se pode deduzir da teoria parasitária em medicina, um organismo normal, isento de todo micróbio deletério importado de fora, não apresentaria jamais o menor furúnculo, a menor doença propriamente dita. Mas, antes de chegar a esse estado de pureza ideal, e mesmo para aí chegar, uma sociedade em progresso deve multiplicar suas relações exteriores, renovar, aumentar, por afluxos incessantes, às vezes incoerentes, sua bagagem de descobertas que suscitam os sistemas e os programas, os mais inconciliáveis, e engendram uma perturbação extraordinária de consciências, de onde se segue uma elevação momentânea dos delitos. Os delitos são, de qualquer sorte, erupções cutâneas do corpo social; indícios, às vezes, de uma doença grave, eles revelam a introdução, pelo contato com seus vizinhos, de idéias e de necessidades estrangeiras em contradição parcial com as idéias e as necessidades nacionais. Eis talvez o porquê: se examinarmos com cuidado os diversos mapas da criminalidade e da delituosidade, seja contra pessoas, seja contra a propriedade, dos departamentos franceses, ficaremos surpreendidos ao ver todos os departamentos do centro, com exceção das grandes cidades, apresentarem as tintas mais claras, e as tintas mais escuras repartirem-se, ao contrário, sobre o litoral e, em geral, sobre as fronteiras, ou seja, sobre as regiões mais abertas às influências estrangeiras e às novidades inquietantes[140].

O que quer que represente essa conjectura, não é verdade que, para bem sentir a importância da criminalidade, é necessário, além dos crimes e dos delitos registrados pela estatística, entrever, adivinhar os semicrimes, os semidelitos, as infrações aos costumes e as violações impunes da lei que pululam nas nações em fermentação. A embriologia do delito, com a qual a escola positivista se preocupa com razão, deve ser estudada dessa sorte, ao meu sentir, quer dizer, a partir das primeiras e das mais leves dissidências individuais num meio rigidamente conformista até então[141], e não precisamente a partir dos primeiros roubos ou homicídios cometidos por nossos ancestrais animais, anda que este último estudo tenha, certamente, também seu interesse. Ora, se pudéssemos remontar assim sempre à fonte social de cada gênero de delito, ver-se-ia que o princípio inicial da fermentação da qual se trata foi a importação de alguma novidade industrial ou intelectual. Está claro, por exemplo, que a introdução do protestantismo nos países católicos, no século XVI, pela perturbação profunda que aportou à antiga fé estabelecida, aí colocou duas morais em conflito, em detrimento passageiro da moralidade. As idéias ditas revolucionárias exerceram a mesma perturbação em nosso tempo. Talvez salutar, aceitemo-lo como augúrio.

Vê-se que não há lugar, em suma, para chorar o crescimento de nossa delituosidade. Não que convenha nos tranqüilizarmos, de acordo com as considerações de Poletti que combatemos aqui mesmo. Mas meu ponto de vista é ainda mais consolador e toca de perto o dele, malgrado a diferença profunda. Ele se engana, eu creio, persuadindo-se de que a soma do trabalho desonesto está ligada àquela do trabalho honesto, e que o rápido desenvolvimento deste último, em nosso século, explica o crescimento, aliás, bem menor, do primeiro. O trabalho honesto, que é um conjunto de atos imitativos na maioria, tende a fortificar o conformismo geral e não saberia ter por efeito estimular o trabalho desonesto, que consiste em dissidências. Mas, observemo-lo, cada novo ramo do trabalho honesto, cada novo afluente de seu rio é o resultado de alguma invenção que começou por ser, ela também, uma dissidência; é possível que exista aí um liame entre a abundância dessas dissidências, mães de nossa prosperidade, e o número das dissidências criminais em nossa época. A emancipação individual poderia bem ser a fonte de ambas. Mais inventiva ainda e mais genial que a criminosa[142], mais criminosa talvez um pouco, porque ela é genial, nossa fermentação civilizadora prossegue seu curso. O que sairá daí? Esperemos!

Esperemos, primeiro, que ela acabe por estender-se ao mundo inteiro, malgrado aquilo que custará de pitoresco sacrificado, para sempre lamentável, para consumar a assimilação universal. Porque será apenas então que a Idade de Ouro, transfigurada, poderá renascer. Se, verdadeiramente, toda civilização, uma vez fixada, moralize, isto é, chegue a expulsar todas as espécies de imoralidades contrárias ao seu princípio, negando, aliás, e desbatizando as outras; e se, por conseguinte, a desmoralização, numa velha sociedade, não saberia, de ordinário, provir senão que de inoculações virulentas por seu contato com o estrangeiro, segue-se que a estabilidade de uma civilização, e também muito da moralidade especial dela nascida, não saberia existir senão no início e no fim da humanidade civilizada: no início, quando os lares urbanos da civilização eram separados uns dos outros por distâncias consideráveis, então intransponíveis, como as estrelas no céu, de sorte que cada um deles podia manter-se inalterado; no fim, quando, após esse longo período de guerra e de revoluções, de conquistas e de depurações que se chama a História, um só e único Estado, uma só e única civilização existirá sobre a terra.

 

04 — Civilização e Mentira.
Ligação entre a delituosidade e o espírito de mentira. Ora, utilidade, senão necessidade, em todo caso, universalidade social da mentira. Questão de saber se o progresso tende a enfraquecê-la ou a fortificá-la. Relação inversa entre a verdade e a veracidade, entre a mentira e o erro. Visão histórica. Logo, necessidade da imaginação à vista da ilusão necessária à união social. Religião do amanhã.

 

Mas as considerações históricas precedentes, tranqüilizadoras em suma, não nos devem impedir de atrelar uma significação severamente desfavorável, sobretudo, por um lado ainda não examinado, ao crescimento contemporâneo, verdadeiramente enorme, da delituosidade astuciosa e voluptuosa. Essa progressão não implica apenas num transbordamento do ardor sensual, mas ainda, o que é muito mais triste, num declínio geral da veracidade e da boa fé. De todas as condições que favorecem a eclosão do delito, mesmo do delito brutal e violento, a mais fundamental, sem contradita, é o hábito da mentira. O próprio homicida deve mentir para ocultar seus preparativos. Diante do juiz, ele mente mais freqüentemente; embora, de vez em quando, sentindo orgulho de suas proezas, ele seja franco, vangloria-se, de preferência, daquilo que não confessa. A mentira, entretanto, não desempenha aqui senão um papel secundário; papel que é, ao contrário, elemento essencial no roubo, no estelionato, no abuso de confiança, na falsificação. Quanto aos delitos contra os costumes, eles vivem da mentira, não por necessidade unicamente, mas com prazer; como a cobra é tortuosa, a volúpia é furtiva e dissimulada por natureza; quem diz sedutor diz mentiroso. Madame Bovary, segundo Flaubert, – e esta é uma de suas mais penetrantes observações, – mentia como a água corre da fonte. Também, quando os viajantes nos ensinam que certas tribos selvagens ou bárbaras caracterizam-se por sua probidade ou sua pureza de costumes, – por exemplo, os corubos[143], os alfants, os bades, os Konds, os Weddas, os Yézides, os drusos[144], – nós não devemos ficar surpresos em aprender, ao mesmo tempo, que eles se distinguiam por sua escrupulosa veracidade. O amor ao verdadeiro, mesmo desagradável, liga-se ao amor ao justo, mesmo prejudicial. Seja como for, imaginai, na França atual, tipos de sinceridade absoluta, tais como os jansenistas[145] do século XVII, espécie extinta; sobre tais homens, as más paixões que incitam à improbidade, às seduções imorais, ao adultério podem acontecer, mas elas fracassarão diante deste obstáculo: a invencível repugnância em desnaturar a verdade. Os quakers são eminentemente honestos, porque são eminentemente sinceros, ou vice-versa?Pode-se duvidar. Eis aí, com alguns outros exemplos ilustres, os picos culminantes da lealdade humana, de onde a nossa decorre talvez, bem difundida, – quero-o, – mas bem enfraquecida! Haveriam eles surgido em nossos dias, caso o passado não nos houvesse legado esses modelos? Em revanche, desenvolveram-se, em nossos dias, os cimos intelectuais dominantes; mas não é senão mais que surpreendente ver, em meio a nossa iluminação radiante de verdades descobertas, a veracidade baixar, após haver visto, no seio do erro e da ignorância mais profunda, crescer o culto ardente ao verdadeiro. Esse duplo fenômeno é estranho. Ele coloca alguns problemas que merecem ser esclarecidos.

Como a delituosidade, sobretudo a delituosidade não grosseira, está ligada ao espírito de mentira, segue-se a questão de saber se o delito, – sobretudo em suas formas refinadas, – pode ser rechaçado e vencido, o que equivale a perguntar se a mentira pode ser extirpada; em outros termos, se não é o caso, nas relações da vida em sociedade em que, eu não digo a utilidade, mas a necessidade da mentira se impõe, e se é de esperar que esses casos, essas relações desapareçam ou simplesmente diminuam no curso da civilização.

Que a mentira seja útil, muito freqüentemente útil na vida, só um mentiroso pode negá-lo. Não se sabe bem se foi o gênio ou a má-fé de Aníbal, de César, de Napoleão o que mais contribuiu para suas conquistas, e se foi a má-fé ou a atividade de Cartago e de Veneza que lhes valeu o império do mar. Mas pode-se duvidar que a mentira seja necessária. No entanto, que professor não se acreditou no dever, um dia ou outro, de responder com uma mentira à curiosidade indiscreta de um aluno? Que ministro, durante a guerra, não se acreditou obrigado, em sua consciência, a truncar notas à imprensa, a publicar boletins mentirosos, a alimentar com o erro o entusiasmo militar de seu país? Quantos pais livres-pensadores se acreditam obrigados a enviar seus filhos, sua filha ao menos, ao catecismo! Diz-se muito às crianças, enganando-as, que se deve sempre dizer a verdade; mas elas não tardam em perceber que esta dita regra sofre inumeráveis exceções e é geralmente violada, cada vez que entra em conflito com um interesse maior da vida individual ou social. A arte de amar, com seus elogios tão falsos quanto seus juramentos, é a arte de mentir, se eu acreditar em Ovídio; a arte de governar também, se eu acreditar em Maquiavel. Existiu, algum dia, uma importante vitória em amor sem engano, em política sem calúnias, em religião sem hipocrisias, em diplomacia sem perfídias, em negócios sem velhacarias, em guerra sem armadilhas? Existiu algum dia grande glória sem um pouco de cristianismo? Houve casos em que o simples silêncio, quando se é questionado, seria já uma resposta comprometedora e onde não haveria meio-termo entre revelar um segredo importante que se guarda ou mentir de modo insolente. A honra, ela mesma, comanda o perjúrio: ela ordena ao amante de uma mulher jurar que jamais teve relações íntimas com ela; ao filho, à mulher, ao pai, ordena dar um falso testemunho próprio a salvar a vida de um dos seus[146]. A moral do mundo, em suma, é tal que ela proíbe absolutamente mentir, salvo nas grandes circunstâncias que acabamos de expor, e também nas pequenas, como quando se faz responder, pelo doméstico, que saímos; de sorte que a aplicação do preceito se restringe às ocasiões que não são nem pequenas nem grandes, espécie de zona intermediária muito mal definida e susceptível de estreitar-se indefinidamente. – Entre os civilizados, “se alguém, diz Candolle, ultrapassa o limite ordinário das pequenas mentiras e das indelicadezas, insurgimo-nos contra isso, mas o limite é muito vago”. Ainda que vago, todavia, ele existe; mas aquilo que é desagradável, à medida que o número de patifes aumenta, ele se desloca no sentido mais favorável à patifaria[147]; porque a opinião, que estabelece essa linha entre o honesto e o desonesto, é um tribunal singular, influenciado por aqueles mesmos que ele condena, e tanto mais indulgente para com uma dada espécie de delito quanto mais abundante ele for, quer dizer, haveria lugar para que esse tribunal fosse mais severo. Para prova, as decisões de seu fiel eco: o júri. – Há, pois, lugar para crer, de acordo com o aumento numérico dos roubos, dos estelionatos, das fraudes comerciais e conjugais em nossa época, que a reprovação do público e esse respeito é cada vez menos rigorosa e que, sem esse relaxamento da opinião, o número de nossos delitos seria ainda mais elevado.

Seria-nos já permitido concluir, parece, que há poucas verdades históricas demonstradas no mesmo grau que a universalidade e a necessidade da mentira, mais ou menos transformada, aliás, e refinada. Se observarmos que há duas maneiras de mentir, – primeiro dizer aquilo que não se pensa, depois dizer aquilo que se pensa com um acento de convicção profunda que mascara uma dúvida subsistente, – ver-se-á que não chegamos, uma vez em dez, a um homem, mesmo a um homem de ciência, que fale sem mentir. Concebei, por hipótese, um Estado onde todo mundo, sem exceção, – o sacerdote em seu púlpito, o jornalista em sua escrivaninha, o deputado ou o ministro em sua tribuna, o agente eleitoral na campanha, o pai e o marido em sua casa, – dissesse, escrevesse, imprimisse exatamente aquilo que pensa e como pensa, e vede se haveria uma única das instituições sobre as quais repousa a sociedade, família, religião, governo, que pudesse, – no estado atual dos costumes e dos espíritos, – se manter por um dia. É isso surpreendente, quando se sabe que não existe, talvez, um só sistema filosófico mesmo que não se apóie sobre enérgicas distorções da verdade dos fatos?

Mas a questão é a de saber se a marcha da civilização tende, necessariamente, malgrado a humilhante constatação que concerne ao tempo presente, a desenvolver o espírito de mentira ou, ao contrário, enfraquecê-lo. Haveria aí múltiplas causas a isolar. De um lado, o progresso das ciências, a extensão do contrato que, como observa Sumner Maine, torna-se cada vez mais a forma jurídica própria a nossa época, enfim, o nivelamento social, tendendo a fortificar o gosto e o hábito da veracidade. Quanto à última causa sinalada, observemos, com efeito, que se está disposto a mentir às pessoas, – todas coisas iguais, aliás, – em razão da diferença que nos separa delas: mente-se com menos escrúpulos a uma criança que a um homem feito, a uma mulher que a um homem como nós, a um estrangeiro que a um compatriota, a um selvagem que a um europeu[148]. Quanto mais nós nos assemelhamos uns aos outros, pois, mais nós devemos ser levados a ser sinceros. – Mais, conseqüentemente, somos culpados, caso não o formos. Em segundo lugar, o incessante progresso do qual falei mais acima, eu quero dizer, a extensão gradual do campo das relações morais entre homens, supõe o desenvolvimento da boa fé, ao menos em amplitude. “É a confiança obtida e merecida pelo grande número, diz Sumner Maine, que apresenta facilidades à má-fé do pequeno número”. É necessário, ainda, distinguir cuidadosamente aqui o desenvolvimento superficial da sinceridade de sua fixação profunda. Sem dúvida, nos textos antigos, “os atos de perfídia flagrante são apresentados, muitas vezes, sem qualquer censura e, algumas vezes, com aprovação. Nos poemas homéricos, a enganosa fineza de Ulisses é célebre como uma virtude da mesma ordem da prudência de Nestor, da constância de Heitor e da bravura e Aquiles”. Mas, com efeito, aí estavam qualidades concorrendo ao mesmo objetivo, qualidades essencialmente militares. As duplicidades, as perfídias de Ulisses eram astúcias de guerra, louvadas como tais em suas relações, fosse com inimigos declarados, fosse com estrangeiros, dos quais ele deveria suspeitar, numa época em que, quando não era um hóspede, o estrangeiro era um inimigo temível, e onde o estreito domínio da cidade, às vezes da tribo, circunscrevia a esfera das relações de moral e de direito. Resta saber se, em suas relações com seus concidadãos, não hostis, não rivais a combater e a exterminar, Ulisses era menos franco que nossos generais ou nossos políticos do presente. – Mas, de outra parte, a civilização sob diversos aspectos, nos impele em sentido oposto. Primeiro, substituindo o regime industrial e comercial ao regime militar, ela enfraquece a coragem: ela é necessária para que se seja verdadeiro em todas as ocasiões; e estimula a cupidez, que multiplica os prospectos falaciosos, as falsificações e as artimanhas de toda espécie. Eu remeto ao virulento capítulo de H. Spencer a esse respeito, testemunho tanto menos suspeito, quanto mais se sabe de sua predileção pelo industrialismo. Isso vem a propósito de observar que o progresso da previdência, ligado à mudança da qual se trata, contribui para o desenvolvimento do cálculo e da astúcia. Em segundo lugar, as lutas políticas sucederam-se às querelas religiosas, os conflitos de interesse, aos conflitos de convicções, os intrigantes, aos confessores, a preocupação com o sucesso, quando mesmo àquela da fidelidade a qualquer preço. A inteligência, vista como a arte de não ser jamais ingênuo, desenvolve-se, dessa sorte, às expensas do caráter que consiste em não enganar ninguém[149].

Em terceiro lugar, a emancipação dos espíritos fora do dogma tem multiplicado os princípios e os programas individuais, de onde resulta a necessidade crescente de expedientes e de transações, para permitir a tantos inimigos viverem em conjunto. Enfim, sobre todas a almas assim falseadas, estende-se a maquilagem obrigatória da polidez, este sinal distintivo de povos tanto mais ardilosos, quanto mais antigamente civilizados, como os chineses. Até onde não chegará a hipérbole dos obituários, por exemplo, esta hipocrisia cuja suspensão seria um escândalo? Se os Alcestes se tornam cada vez mais raros, é porque a franqueza é uma causa de insociabilidade sempre crescente. A multiplicação das relações pessoais e, por conseguinte, das conversações, desenvolve a maledicência, e a maledicência, a duplicidade. Com efeito, se fosse criada uma lei no mundo de não se poder apertar a mão nem se mostrar simpático a qualquer um de quem se acaba de falar mal, acabaríamos por nos indispor com todos os conhecidos. Ao contrário, há pessoas que falam bem de todos os seus próximos, e cuja benevolência universal não poderia, não mais, sustentar-se sem disfarces freqüentes do fundo de seu pensamento. Ser direito e hábil (como foi Duclos, segundo Rousseau) é o ideal social; mas isto é quase a quadratura do círculo.

Somado tudo, parece bem, de acordo com a estatística dos delitos, que as influências contrárias à sinceridade prevalecem hoje em dia. Mas, à primeira vista, parece bastante difícil compreender que a verdade se difunde, enquanto a veracidade diminui, e que a segurança esteja progredindo, enquanto a boa fé está em baixa. Mas a segurança, que aumenta nos países em via de se civilizarem, é aquela que se fundamenta no jogo mais regular das instituições movidas pelas mais fortes correntes de opinião mais ou menos falsificadas, e não sobre o caráter mais inalterado das pessoas, sustentado por erros tradicionais e por grandes esperanças ilusórias. Inútil acrescentar que a confiança pessoal não saberia diminuir além de um certo ponto sem chegar a atingir a própria confiança impessoal. – Depois, se a verdade, penosamente extraída, penosamente lançada por uma fraca elite de pesquisadores sinceros, ínfima minoria, chega a tornar-se clara, cada vez mais, em meio a essa espessa atmosfera de falsas novidades, de declamações interesseiras, de arengas que preenchem, a cada dia, noventa e nove páginas impressas sobre cem, é porque as mentiras contraditórias devem se destruir reciprocamente enfim, e as verdades mutuamente confirmadas devem sobreviver-lhes. É também porque a necessidade de não ser enganado por outrem se desenvolve ainda mais que a necessidade de enganar alguém; as agências criadas para responder à primeira multiplicam-se. Mas na profissão, o interesse destas últimas é o de informar exatamente; elas não têm, pois, em geral, o menor mérito em não mentir. Para apreciar o progresso ou o declínio da sinceridade pública, é preciso não considerar senão a proporção de pessoas que não mentem entre aquelas que nisso têm interesse. De resto, as informações cada vez mais exatas e numerosas que vêm de toda parte ao homem civilizado, e de seus livros, e de seus jornais, e de seus amigos, não são senão a matéria primeira de suas tramas falaciosas, teóricas ou práticas, redes que ele procura atirar sobre o público; e quanto mais rica é a matéria, mais o tecido se desdobra. O público, além do mais, ainda que alterado por informações, por fatos exatos e precisos, é faminto de ilusões, de idéias tranqüilizadoras ou lisonjeiras; serve-se-lhe o que pede. – É notável que o homem, – ver a criança, – nasce, ao mesmo tempo, muito levado a crer em tudo aquilo que se lhe diz e a não dizer aquilo que pensa. Nada é mais encorajador para o espírito de mentira que essa dupla disposição primitiva.

“Nem o sol nem a morte, diz La Rochefoucauld, podem ser olhados de frente”. Dir-se-ia que é o mesmo com a verdade, — como o sol e a morte, — e que sua fascinação não poderia ser afrontada sem perigo social, senão sempre sem perigo individual. Dir-se-ia que há uma certa quantidade de ilusões[150], – variável conforme tempos e lugares, – que é necessária a uma sociedade para manter-se em seu estado normal, e que deve ser, custe o que custar, sustentada nela por uma emissão constante de predicações, de argumentações, de artigos de jornais, de lições, de asserções de todo gênero, quer sejam corajosamente mentirosas, quer sejam simplesmente errôneas (e, neste último caso, provindas em parte de imposturas anteriores, o que é, talvez, o caso das religiões). Por conseguinte, por paradoxal que possa parecer a muitos esta idéia, o erro não saberia diminuir em uma nação, sem que a mentira aí progrida, enquanto suas condições fundamentais não forem mudadas; e essa balança da mentira e do erro seria, eu creio, mais fácil de provar que a marcha soi-disant inversa do suicídio e do homicídio que já foi questão mais acima. Por exemplo: há, num Estado qualquer, uma certa dose de fé religiosa especial tida como indispensável à manutenção de sua hierarquia e de sua harmonia constitucional; à medida que a contradição entre essa fé e as verdades científicas aparece em cabeças esclarecidas, estas se destacam; depois, progressivamente, todos os adultos; mas ensina-se sempre essa fé às crianças, e com tanto maior energia quanto haja aí menor convicção[151]. Além disso, e, sobretudo, as instituições que a religião sustentava, os deveres que ela apoiava com suas místicas promessas, exigem, – ela abalada, – novas escoras, catecismos oficiais, dogmas de encomenda, morais solenes. Quer isso dizer, aliás, que convém retroagir? Não, porque, como o maior mérito da ilusão religiosa consiste nas mentiras que dispensa quando é sincera, ela perde quase todo o seu valor desde o momento em que é preciso mentir para conservá-la. Direi o mesmo da ilusão política. Há um minimum de prestígio que um governo não pode dispensar, e que se fundamenta, primeiro, sobre superstições e lendas populares, iluminuras do direito divino, erro fundamental um dia e vital das sociedades. Quando ele se desvanece, é preciso procurar outras bases para a autoridade, mas são sempre ficções, apenas mais artificiais, ou seja, mais racionais, e mais conscientemente fabricadas. São necessários historiógrafos oficiais para acomodar a História, são necessários jornalistas para desnaturar os fatos atuais, são necessários múltiplos atores para representar com sucesso a vasta comédia do sufrágio, seja restrito, seja universal, e fazer-se dar, através da opinião, as ordens ou os elogios que se lhes são ditados. É necessário, sob pena de fracassar; ou, ao menos, é necessário até o dia em que, tendo bebido o suficiente do vinho da mentira e caído a fundo no sonho delirante do erro, as populações possam, impunemente, abster-se de seus copeiros reais. O patriotismo, outra grande ilusão soberanamente necessária, sustenta-se da mesma maneira, confessemo-lo. Fundamentado, no início, sobre o isolamento de cada povo e sobre a idéia absurda que cada um deles fazia sinceramente de seus vizinhos, esse imenso orgulho coletivo, duplicado por um profundo descrédito do estrangeiro, deveu, mais tarde, quando os povos se viram de perto, ser alimentado, com propósito deliberado, na escola e na família, por esses panegiristas semi-sinceros, semicharlatões chamados chauvinistas. O chauvinismo é o patriotismo que, sentindo-se declinar, grita ainda mais forte: Viva a pátria! Como o “clericalismo”[152] é a fé religiosa que, sentindo-se enfraquecer, afirma-se e mostra-se ainda mais energicamente; como o radicalismo, de direita ou de esquerda, é a fé política que, sentindo-se morrer, reage contra o cepticismo crescente pelo dogmatismo mais acentuado. Eis aí três formas contemporâneas dessa combinação singular de charlatanismo e de fanatismo em doses iguais, cuja antiguidade nos oferece ilustres exemplos, – Pitágoras notadamente, se eu acreditar em Lenormand – e que toda época de transição verá renascer.

Sem dúvida, muitas formas de mentira desapareceram, mas foram substituídas com vantagem. Nós encontramos, na origem de todos os povos, – coisa notável, – a feitiçaria, depois, o que já é um refinamento, os augúrios, os arúspices, os oráculos (não apenas em toda a Antiguidade clássica, mas ainda, coincidência significativa, entre os astecas), depois os falsos milagres, etc. Desde o século VI a.C., vimos fundar-se o orfismo. Ora, “como para continuar mais fielmente a tradição dos Epimênides[153], Aristeus, dos Ábaris e dos Zamolxis[154], esses personagens singulares, cujo prestígio parece fundado em parte pela impostura, foi um falsário, Onomácrito, quem mais ajudou a construir a nova seita”. (Jules Girard, Sentimento Religioso na Grécia). O mesmo autor fala-nos dos “Orfeutelestes”[155] que, munidos de escritos apócrifos de Orfeu, filho das Musas, e de Museu, filho de Selene, iam bater às portas com relíquias, mais tarde, com indulgências. Sabe-se o sucesso das falsas decretais. A Renascença italiana (ver Burckhardt) teve seus astrólogos e, até a aurora deste século, nós todos tivemos nossos feiticeiros. Hoje florescem os médiuns e os quiromantes[156]. Mas, ainda que esses viessem a desaparecer também, os políticos seriam suficientes para fazer pender, a nosso favor, a balança da mentira.

Dir-me-ão: como pode ser que a mentira esteja na razão inversa do erro, que é seu efeito? Mas eu nego que o erro nasça habitualmente da mentira e que a mentira, de ordinário, produza o erro. As religiões, por exemplo, procedem raramente de verdadeiros impostores. Não é em seu período ascendente, é na hora de seu declínio que a impostura aí desempenha um grande papel, e, aliás, ela não faz então senão acelerar o descrédito; mas seus fundadores ou seus apóstolos são, mais freqüentemente, entusiastas, visionários muito sinceros e muito crentes; a fé sozinha engendra a fé. Talvez, é verdade, fosse mais exato dizer que o entusiasmo decresce, quando a mentira é forçada a crescer, a fim de que a quantidade de ilusão subsista quase a mesma. Mas a mentira, em geral, após um abuso passageiro, engendra o ceticismo e a desconfiança. Também se vêem freqüentemente as sociedades inundadas de imposturas não crerem em mais nada, pela mesma razão que se vêem sociedades aterrorizadas não respeitarem nada. Existe aí, com efeito, entre o terror e o respeito, socialmente, a mesma relação inversa que eu acabo de estabelecer entre a mentira e o erro. Os governos não podem se dispensar de ser terroristas, despóticos e cruéis, senão na medida em que eles são respeitados; e o respeito que eles inspiram tem por causa, não sua crueldade passada, mas a longa duração de sua força regular e tutelar, militar e legislativa, sempre orgulhosa. Porque, como a fé sozinha, a alucinação propaga a fé em meio aos povos, o orgulho, unicamente, inspira-lhes o respeito, este orgulho de reflexo.

Em suma, o problema social coloca-se assim: o erro, a ilusão é necessária à ordem social, mas a mentira, pela criminalidade que ela favorece, lhe é contrária. É preciso, pois, encontrar uma fonte de ilusão outra que não a mentira. Não há senão uma: eu a chamo de alucinação; eu deveria chamá-la de imaginação. Daí o papel incomparável dos homens imaginativos na origem das civilizações. A ciência vai recolhendo seus feixes de lenha por todos os lados, mas é a imaginação que os queima para a maior iluminação das almas.

Uma verdade é descoberta por um sábio. Contai os mentirosos que a exploram, desde os industriais que a colocam em seus prospectos até os teóricos que a alojarão, bem ou mal em seus sistemas. Alguém descobre que existe ferro no sangue; em seguida, cem farmacêuticos colocam à venda pílulas de ferro de eficácia mais ou menos duvidosa proclamada incontestável por mil certificados de médicos mais ou menos convencidos. A vulgarização das ciências seria moralizadora, se ela contribuísse para desenvolver a veracidade. Mas ela não produz esse efeito senão que sobre uma muito fraca parte do público, a saber, não sobre o fabricante ou o político que fazem da ciência um instrumento de dominação e de riqueza, nem sobre o romancista ou o poeta que lhe pedem novas emoções, mas apenas sobre o sábio que emprega a ciência para fazer progredir a ciência, modo de emprego muito especial e muito raro. O organismo social, em suma, defende-se contra a verdade que o assalta de toda parte, como o organismo natural, contra as intempéries e as forças físicas. Ele precisa dela, como o ser vivo precisa de agentes exteriores, contra os quais, todavia, está em luta constante, e sem os quais ele morreria. Do mesmo modo, a sociedade vive de verdades, de conhecimentos sempre renovados; ela consome, para se lhes assimilar, todos aqueles que seus sábios e seus filósofos lhe fornecem. Estes últimos estão situados nos confins do mundo social que eles estão encarregados de colocar em relação com o universo, quase como as células epidérmicas e os tecidos do olho recebem o choque das vibrações aéreas ou etéreas e as transmitem ao interior do corpo, onde se rompem em mil fragmentos e se alteram de mil maneiras.

Agora, essa necessidade social de ilusão, que explica o hábito da mentira na razão inversa do erro, e, por conseguinte, a alta ou a baixa da criminalidade astuciosa: sobre o que se fundamenta? Fundamenta-se, – e eis aí aquilo que nos obriga a acreditá-la imortal, – sobre a própria necessidade de organização social, ou seja, do acordo lógico no sentido social da palavra. O acordo lógico é, para as sociedades como para os indivíduos, a formação de um feixe de julgamentos e de desejos cada vez mais convergentes, pela eliminação gradual de julgamentos e de desejos que repelem ou contradizem a maioria dos outros[157]. A única diferença é que, em lógica individual, os julgamentos ou os desejos a conciliar são inerentes ao mesmo indivíduo, enquanto, em lógica social, eles estão encarnados em indivíduos distintos. Essa diferença importa aqui. Com efeito, para o indivíduo, o desejo de ser lógico faz parte da necessidade de ser sincero, e a repugnância em desmentir-se a si mesmo em razão de seus atos ou de seus pensamentos reforça nele o desgosto de mentir. Toda idéia, todo projeto, desde que sua oposição a uma crença mais forte ou a um desejo mais forte vem a aparecer, desaparece logo, e a depuração do sistema interno opera-se assim sem dificuldade. Mas, em lógica social, as proposições e os programas a eliminar são homens, que não se eliminam e que é necessário converter, às vezes, pela força; mais freqüentemente, pelo hábito. Além disso, a perseguição de um bem real, perceptível e verdadeiro, tal como um domínio rural, uma herança, a mão de uma mulher, é próprio a produzir, individualmente, a convergência lógica dos desejos; mas, socialmente, não é quase nunca apropriado senão que para dividir os desejos e colocar a sociedade sobre um nível ilógico. Porque a posse indivisa, seja de terras e de rebanhos, seja de mulheres e de escravos, não é possível senão na origem e sua partilha forçada descontenta, a seguir, quase todo mundo. Daí a necessidade de suscitar algum grande objeto imaginário, – céu místico, glória patriótica, belo artístico, – que faz convergir no vazio e concordar idealmente os desejos de todos os que se desentendem sobre a terra[158]. Um alucinado ou um impostor mostra esse objetivo, sugere essa visão; ela deslumbra os cegos e os faz caminhar em boa ordem à vitória. Quando os olhos forem abertos, eles irão, confusos e tateantes, reclamar seu sonho.

Trata-se, por conseguinte, para suprimir os delitos astuciosos, para expulsar a trapaça, de conciliar o acordo lógico individual com o acordo lógico social, ou seja, tornar este último, ele mesmo, compatível com a franqueza. É preciso, pois que uma nação forte supõe individualidades fortes, direitas e leais. Ora, se o sistema de idéias e, por conseqüência, os desejos de um indivíduo isolado podem se estabelecer logicamente sob o império de um princípio positivista, não é o mesmo, como acaba de ser dito, com o sistema de idéias e de desejos de um povo. O indivíduo, associando-se, deve, pois, submeter-se a essa necessidade e partir de algum postulado transcendente. Coisa tanto mais fácil para a grande maioria dos homens, porque a religião estabelecida se apresenta sempre a eles como a mais lógica, a mais acreditada, quer dizer, o mais crível dos sistemas. Enquanto essa alta torrente de fé corre e irriga um povo, é loucura procurar alhures a inspiração e o apoio do dever; mas quando ela seca, que fazer? A ciência aparece: saudemo-la! Todavia, para ser um verdadeiro crente, cuja fé inquebrantável implique numa conduta invariável e tranqüilizadora para outrem, deve-se[159], não apenas ser penetrado pela importância de tais verdades, mas ainda estar persuadido de que conhecê-las é um grande bem, de que ignorá-las é o maior mal, de que lhes render testemunho por suas ações é o primeiro e soberano dever o homem. O homem religioso está cheio de uma fé semelhante. Quanto tempo passará antes que as verdades científicas sejam objeto de tais convicções?

Não é, todavia, de se esperar que o espírito de mentira seja exorcizado de nossas sociedades, a não ser que elas sejam novamente instaladas sobre algum erro majestoso, estável e profundo, num Credo ilusório que as oriente na direção de um ideal fascinador. Isso será, mais tarde, a obra de algum poderoso espírito, mais sincero que Pitágoras ou Maomé, esperemo-lo; mas não poderá sê-lo senão quando a fonte, hoje tão abundante, das descobertas científicas houver secado. Como não haverá mais então com que se preocupar senão que com as antigas, uma síntese filosófica, durável e definitiva, será possível, à sombra da qual a humanidade adormecida sonhará em paz, isenta de todos os delitos como de todos os males... Mas nós, esperando, – se for assim, – consolemo-nos de ser de nosso século e não acreditemos pagar muito caro, – ao preço de todos os nossos delitos, de todos os nossos crimes e mesmo de todas as nossas mentiras, – nossas luzes e nossas descobertas, se, ao menos, as mais respeitáveis ilusões não valerem, aos nossos olhos, as mais perigosas verdades.

 

Fim


 

La Criminalité
Comparée

 

G. Tarde
Jean-Gabriel (de) Tarde (1843-1904)


8a. edição
Paris
Librairie Félix Alcan
108, Boulevard Saint-Germain


1924

Tradução: Maristela Bleggi Tomasini (1959-)
mtomasini@cpovo.net

Proibida a utilização comercial desta tradução


 

Notas

[1]L’Homo delinquente, por Cesare Lombroso, 3a. edição, Fratelli Bocca, 1884. Tradução francesa de Félix Alcan.

[2] – “Não responderemos aqui a certas críticas que nos ridicularizam, porque estudamos muito certos detalhes da vida somática dos criminosos, tais como as secreções, o nariz, os cabelos, etc. Não é uma censura que erguem contra nós, mas talvez uma peça de acusação de depõe contra eles mesmos. Eles nos recordam os gracejos dos médicos de antigamente contra a auscultação, a percussão e o estudo termométrico das doenças. Se eles não percebem a importância desses detalhes, não cabe a nós fazê-los perceber. Do mesmo modo, quando Brunetière louva Tarde de não opor cifras às nossas estatísticas, não é ele mais de nosso século nem mesmo do século passado; porque foi assim, deixando de lado o desnecessário, calculando tudo o que se pode calcular, para triunfo do número e do metro, que nossa era científica ultrapassou as precedentes. Assim é que me orgulho de haver enriquecido esta edição com novos estudos sobre as anomalias do esqueleto, dos músculos, do nariz, sobre o criminoso louco, passional e o de ocasião, sobre o campo visual, o gosto, o olfato, as secreções; sobre os trabalhos artísticos e literários dos criminosos”. LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001. (N. da T.)

[3]Criminologie, Garofalo, Félix Alcan, Paris, 5a. edição.

[4] – Observemos que, de acordo com Spencer, o homem primitivo, o selvagem, é pequeno.

[5] – Outros desacordos com Weisbach e com Ranke. De acordo com este, que comparou cem crânios honestos a cem crânios criminosos (as comparações de Lombroso não se produzem sobre cifras mais fortes), a capacidade média dos criminosos é quase igual àquela dos não-criminosos, mas os criminosos são mais numerosos nas capacidades extremas, nas mais altas como nas mais baixas.

[6] – Caráter do crânio que, observado de cima, apresenta a forma de um ovo, porém mais curto e arredondado posteriormente. O índice cefálico vai de 84 a 85,9. Dicionário Aurélio – Século XXI. (N. da T.)

[7] – Caráter do crânio oval, sendo o diâmetro transversal menor, em um quarto, do que o longitudinal. Dicionário Aurélio – Século XXI. (N. da T.)

[8] – Rio da Bélgica. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse, Paris, 1947. (N. da T.)

[9] – Ver Homens Fósseis e Homens Selvagens, p. 532.

[10] – Bem nítidos? Observemos, por exemplo, que a prognatismo não caracteriza exclusivamente nenhuma raça, e que, em oposição à maior parte dos caracteres reputados como signos de inferioridade, ela é menos acentuada na criança que no homem.

[11] – Ver sua nota sobre a fosseta occipital na Revue Scientifique, 1874, p. 575.

[12] – Na Argélia, sobre 10 mil europeus, há 111 acusados por ano; sobre o mesmo número de franceses, 71, e, sobre o mesmo número de indígenas, apenas 34! Não se dirá, eu penso, que a justiça é mais inclinada a fechar os olhos quanto aos delitos destes últimos. Quanto aos judeus, são o povo mais pacífico, o menos inclinado aos grandes crimes que existe. Ver, a esse respeito, a Histoire des Sciences de Alph. de Candolle, p. 173 e seguintes, última edição.

[13] – Lombroso respondeu assim a Gabriel Tarde, na 5a. edição italiana de O Homem Delinqüente, no prefácio também abrangente à 2a. edição francesa: “À objeção muito justa de Tarde, de que os selvagens não são sempre morenos nem de uma altura elevada, e de que a fosseta occipital se pode encontrar entre povos pouco inclinados ao crime, como os árabes, e falta entre outros mais bárbaros, já a respondi, em citando esta lei sobre a qual os antropólogos deveriam melhor meditar: as anomalias atávicas não se encontram todas, com a mesma abundância, nas raças mais selvagens, mas, mais freqüentes, não obstante, entre eles do que entre os povos mais civilizados, elas variam na proporção e podem faltar em parte, sem que sua ausência ou sua presença possa ser vista como uma marca de maior superioridade ou inferioridade da raça. Assim, duas anomalias atávicas, aquela do osso dos incas e a da fosseta occipital, encontram-se juntas em raças semicivilizadas, como a americana, e são raras nos negros, todavia mais bárbaros (Anoutchine, Bull. Soc., Moscou, 1881)”. LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001. (N. da T.).

[14] – Novamente uma diferença, provavelmente, com o homem primitivo que teria sido ruivo, de acordo com Quatrefages (L’Espèce humaine). Em todo caso, resulta das pesquisas de Candolle e de outros autores que a coloração morena vai se propagando às expensas da loura, o que quer dizer que, no início, a primeira era excepcional.

[15] – A importância do nariz, como caráter antropológico, é muito superior àquela dos outros caracteres reputados erroneamente mais importantes ou cuja importância, parece, se explicaria bem melhor. Por exemplo, o nariz comprido é, — a considerar-se as médias, — exclusivamente próprio aos brancos, e o nariz achatado, aos negros; enquanto a dolicocefalia e a braquicefalia, a grande e a pequena capacidade craniana são, mesmo à vista das médias apenas, repartidas quase ao acaso, entrecruzadas ou justapostas no seio de uma mesma raça. (Ver Quatrefages citando Topinard.)

[16] – O embelezamento físico da raça importaria, pois, em seu saneamento moral. Não é impossível que uma seleção às avessas, operada na Europa através de nossas grandes guerras notadamente, tenha contribuído um pouco para diminuir a moralidade pública ou entravar seu progresso. Não é apenas, com efeito, o mais puro sangue, é a mais pura honestidade da nação que, graças aos conselhos de recrutamento, compõe seus exércitos e consome-se em suas batalhas.

[17] – Charles-Augustin Sainte-Beuve foi um crítico francês nascido em 1804 em Boulogne-sur-Mer, e morto em 1869. Começou pela poesia (Odes, Vida, Poesia e Pensamentos de Joseph Delorme) e pelo romance Volúpia, escrito depois, entre outros livros de crítica e de história literária. Sainte-Beuve concebeu a crítica literária como uma reconstituição do gênio próprio a cada escritor, e aportou à sua obra qualidades excepcionais de gosto, fineza e exatidão. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse, Paris, 1947 (N. da T.). “Quem não viu um exército de bravos em completa derrota, ou uma assembléia política que se acreditava sábia colocada fora de si por algum discurso apaixonado não sabe até que ponto resta verdadeiro que o homem, no fundo, não é senão um animal e uma criança. (oh! Eterna infência do coração humano”. SAINTE-BEUVE, Charles-Augustin. Derniers portraits littéraires, edição eletrônica disponível em www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales

[18] – Eis como Lacassagne, o eminente professor de Medicina Legal, Diretor dos Arquivos de Antropologia Criminal, resume o tipo criminal segundo Lombroso e ele mesmo: “Os caracteres antropológicos mais importantes e verdadeiramente distintivos seriam: o prognatismo, os cabelos crespos e abundantes, a pouca barba, a pele freqüentemente morena e bistrada, a oxicefalia (cabeça pontuda), a obliqüidade dos olhos, a pequenez do crânio, o desenvolvimento dos maxilares e dos ossos zigomáticos, a fronte fugidia, as orelhas volumosas e em asa, a analogia entre os dois sexos, a fraqueza muscular. Eis aí tantos sinais que, acrescidos aos resultados das autópsias, aproximam o criminoso europeu do homem pré-histórico ou do mongol.” (Revue Scientifique, 1881, t. I, p. 683). Ele teria a distinguir os subtipos do assassino, do ladrão e do stuprator.

[19] – A freqüência dessas anomalias da visão tem tanto mais importância, como observa Lombroso, quanto a parte do cérebro onde o fenômeno da visão aparece cada vez mais, e que, “de acordo com as pesquisas de Schmutz, 50% das pessoas atingidas por essas afecções apresentam graves perturbações do sistema nervoso, tais como a epilepsia e a coréia”. É surpreendente, no entanto, que a visão dos criminosos seja notavelmente aguda. Nisso, eles têm do selvagem como do louco. Acrescente-se que eles têm freqüentemente tiques nervosos. Observe-se que Lombroso, que estudou tão minuciosamente a visão e o tato desses infelizes, nada nos diz dessas particularidades de suas orelhas. Seria interessante saber se esses daltônicos têm a orelha correta e delicada.

[20] – “Rüdinger, num trabalho muito sério e muito consciencioso sobre os caracteres físicos dos delinqüentes, confessa que a antropologia criminal se apresenta um aparato majestoso de fatos, mas que suas deduções não são ainda aplicáveis às pesquisas penais.” Bovecchiato, sobre a terceira edição do Homem Delinqüente do professor Lombroso, p. 23, extraído do fascículo VI do jornal Rivista Veneta di Scienze Mediche.

[21]Les crimes et les Peines, por Jules Loiseleur. (Hachette, 1863).

[22] – Coleção das decisões dos jurisconsultos romanos mais célebres transformadas em lei por Justiniano, uma das quatro partes do Corpus Juris Civilis (N. da T.).

[23] – Não é que Ferri não se ocupe também ativamente da antropologia. Seu livro sobre o Omicidio, impacientemente esperado, completará desse ponto de vista aquele de Lombroso. É de se ver, enquanto se aguarda, seus Nuovi orizzonti del Diritto et della procedura penale, segunda edição com tabela gráfica (Bolonha, Nicola, Zanichelli, 1884). Uma tradução francesa desta obra apareceu sob o título de Sociologie criminelle (Félix Alcan, editor).

[24] – Instrumento que registra graficamente força, forma e movimentos de pulso arterial. (N. da T.).

[25] – “O avaro, bem menos que o pródigo, é inclinado ao crime; e, ainda que menos simpático em geral, perante a justiça penal como diante da economia política, ele vale mais”.

[26] – Ver a esse respeito uma brochura do Dr. Ernesto Bonvecchiato, médico do asilo Saint-Clément em Veneza: A proposito di un processo scandaloso. Veneza, 1884.

[27] – Maudsley parece estabelecer entre o crime e a loucura uma sorte de balanço. “O crime, diz ele, é uma espécie de emunctório pelo qual escoam suas tendências malsãs; eles tornar-se-iam loucos, se não fossem criminosos, porque é em razão de serem criminosos que eles não se tornaram loucos”.

[28] – Lombroso chega a mencionar crimes cometidos por animais. Em nota, na obra O Homem Delinqüente, aduz: “A Lei Mosaica (Êxodo, XXI) condenava à morte por apedrejamento o boi que causasse a morte de um homem, e, se o fato se repetisse, também o proprietário. Na Idade Média, condenavam-se os animais homicidas ou perniciosos à agricultura (Lacassagne). Já no reinado de Francisco I, davam-lhes um advogado. Em 1356, em Falaise, uma porca que havia devorado uma criança foi condenada a morrer pela mão do carrasco. O Bispo de Autum excomungou ratos que haviam roído objetos sagrados. Benoist Saint-Prix registra 80 condenações desse gênero, atingindo todo tipo de animais, desde o asno até a cigarra. A municipalidade de Torino comprara da Santa Sé, por intermédio do embaixador, uma maldição contra lagartas, e o bispo, em grande pompa, acompanhado do prefeito e de assessores, proclamava-a do alto de um palanque armado na praça do castelo. Os processos desse tipo também eram freqüentes. Em Verceil, houve um grande debate sobre a questão de saber se certas lagartas deveriam ser julgadas pelo tribunal civil ou pelos tribunais eclesiásticos, porque haviam danificado as vinhas da paróquia (Lessona, 1880, Turim)”. LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001. (N. da T.).

[29] – O infanticídio, — sabe-se, — não era um crime em Esparta, nem o aborto; nem a pederastia nem a pirataria em Atenas; o incesto no Egito, na Pérsia, entre os incas; o homicídio não era nenhum crime, quando cometido em honra dos deuses; e o assassinato dos velhos, freqüentemente a pedido deles mesmos, foi obra de piedade filial. Agamémnon não era um criminoso de nascença, nem mesmo de ocasião, imolando sua filha. Devemos nós chamar criminosos aos árabes da Argélia que, para obedecerem ao costume e consumar seu casamento com a mulher desposada ainda muito jovem, cometem verdadeiras violações conjugais seguidas, às vezes, da morte da vítima, e assimilaremos esses fatos às violações de crianças de treze anos que se cometem nos lupanares de Londres? (Ver A Criminalidade entre os Árabes, pelo Dr. Kocher. Eu li em Lyall (Costumes religiosos e Sociais no Extremo Oriente): “Os sacrifícios humanos foram sempre freqüentes na Índia, ao menos como uma última instância para apaziguar a cólera divina... e supõe-se que tal é ainda o verdadeiro motivo dos assassinatos misteriosos que se repetem de tempos em tempos”. Esses assassinatos religiosos merecem, seguramente, um lugar à parte nos escaninhos do crime, se é que devem aí ser compreendidos. Li ainda na mesma obra: “No Afeganistão, camponeses que vivem perto de nossa fronteira (inglesa) combinaram-se recentemente para estrangular um santo que residia em meio a eles, a fim de assegurar a posse do túmulo sobre seu território (em razão do poder reputado milagroso da tumba dos santos)”. Pode-se assimilar tais atos aos homicídios europeus? Mas eu me esquecia que, em Nápoles, de acordo com Garofalo, tem-se, às vezes, torturado religiosos tidos como dotados do dom da profecia, para constrangê-los a revelar o número ganhador da próxima tiragem da loteria, e que “as violências carnais são freqüentemente causadas pelo pensamento de que tais contatos propiciam a cura de certas enfermidades”. Segundo Sumner-Maine, “as duas sociedades célticas estabelecidas nas Ilhas Britânicas (na Escócia e na Irlanda) eram notoriamente voltadas ao roubo de gado, costume que nada tinha de desonroso entre eles, não mais que a pirataria entre os fenícios, não mais que a sedução das mulheres entre os europeus modernos”.

[30] – A. LACASSAGNE (França, 1843-1924) documentou estas conclusões: As sociedades têm os criminosos que merecem. O meio social é o caldo de cultura da criminalidade; o micróbio é o criminoso que não tem importância senão quando encontra o caldo que o faz fermentar. Sua concepção foi oposta à de LOMBROSO no I Congresso Internacional de Antropologia Criminal (Roma, 1885). LACASSAGNE negou qualquer especificidade dos estigmas lombrosianos, embora admitida sua existência. Demonstrou que tais estigmas não são manifestações atávicas, porém produto das influências do meio, da alimentação, das bebidas, da tuberculose, da sífilis. No II Congresso Internacional de Antropologia Criminal (Paris, 1889), precisou seu pensamento, sustentando que a boa ou má fortuna é o verdadeiro fator da criminalidade. Os criminosos, — frisou, — provêm, sobretudo, da pobreza e da desgraça. Por isso, antes de agir sobre os criminosos, seria preciso agir sobre o meio. É a miséria que deixa sua marca, produzindo as anomalias e as particularidades anatômicas indicadas por LOMBROSO. Perspectivas otimistas estariam abertas no terreno preventivo, se desenvolvidas ao máximo, sob todas as formas, a profilaxia social da sífilis, da tuberculose, do alcoolismo, das intoxicações, do pauperismo, etc. LIRA, Roberto. Criminologia, Forense, 1964, in O Homem Delinqüente, César Lombroso, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001. (N. da T.).

[31] – Parece que compreendi mal o sentido dado por esse autor ao matóide. Deixo, todavia, subsistirem essas linhas, não por outra razão de ser além de uma passagem da resposta, aliás, muito lisonjeira, dada por Lombroso na Revue Philosophique do mês de agosto de 1885, ao meu estudo sobre o matóide.

[32] – Ver a esse respeito as páginas 92, 97 e seguintes de sua Criminologia. Ver também Bonvecchiato, que se ocupa especialmente do tema, notadamente na obra precitada e que, após uma discussão aprofundada das autoridades pró e contra, se pronunciou quase no mesmo sentido.

[33] – Numa bela lição de abertura ao seu curso de psicologia experimental na Sorbonne, Ribot trabalha a favor da nova escola dos criminalistas italianos e tem afirmado a realidade do tipo criminal. “Podem existir, diz ele, na organização mental, certas lacunas comparáveis à privação de um membro ou de uma função na ordem física. São seres que a natureza ou as circunstâncias desumanizaram.”

[34] – Eu não insisto sobre contradições de detalhe. Página IX do novo prefácio. Lombroso diz que distingue o delinqüente nato do louco e do alcoólatra; mais abaixo, felicita-se por haver operado a completa fusão entre as duas idéias: a do criminoso nato e a do louco moral.

[352] – O mérito dessa escola é o de haver procurado o mais profundamente possível as fontes do crime e, notadamente, suas fontes hereditárias. Sobre a criminalidade animal, assunto tratado com felicidade por Lacassagne, Ferri escreveu uma muito interessante brochura que critiquei.

[36] – Paris, 1880.

[37] – Nas altas esferas da política, a camorra exercita-se pelas influências. Se vós resistirdes, ele vos põe a perder. Um grande senhor, síndico de uma cidade do Meio-Dia, mas completamente arruinado pelo jogo, encontrou uma maneira de viver bem sem quaisquer proventos. Todos os dias vai fazer um bom jantar no melhor restaurante do local, e jamais alguém ousou apresentar-lhe a conta... Todavia, ei-lo na Câmara, empertigando-se, o peito arqueado, a cabeça erguida, o ar protetor, temido, lisonjeado, saudado. Em sua cidade é um poderoso. Em todo o país, encontra-se esta espécie de gente que não mereceria estar no auge da vida pública.

[38] – Sobre a máfia, encontrar-se-ão detalhes interessantes, e a explicação política de seu nascimento ou de seus desenvolvimentos sob o governo impopular dos Bourbons, na interessante e instrutiva brochura de Napoleão Colajanni sobre a Delinqüência na Sicília.

[39] – Paris, 1884.

[40] – “A tatuagem é uma manifestação estética do meio social” LACASSAGNE, A.. Précis de Médecine Légale, Masson, Paris, 1909. (N. da T.)

[41] – “A tatuagem, diz muito bem Lombroso, é a primeira escrita do selvagem, seu primeiro registro de estado civil.”

[42] – Diz-se que o cliente ilumina seu advogado quando lhe paga. Esta expressão data de muitos séculos. Eu li em Rancke, a respeito dos juízes sicilianos do século XVI: “Como se davam aos emolumentos o nome de velas (chandelles), dizia-se, ironicamente, que aquele que mais acendesse velas, a fim de que seu juiz pudesse melhor descobrir a verdade, devia, naturalmente, ganhar seu processo.”

[43] – A palavra Bicêtre não tem tradução. Trata-se de uma cidade da França onde existe um magnífico hospício, com aproximadamente 5.000 h., para velhos e alienados. O edifício foi construído por Luiz XIII em 1632. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[44] – Na gíria francesa, setenta e dois sinônimos para embriaguez e beber.

[45] – Por esse lado, a gíria parece-se assombrosamente com o estilo de alguns romances contemporâneos, – eu não falo dos mestres, – onde não é a palavra precisa, mas a palavra suja que se escolhe de preferência. Nada existe aí de realismo, mas de bestialização. Não se saberia ver aí senão uma invasão direta ou indireta da gíria na literatura. Quereis saber como são julgados nossos pornógrafos no estrangeiro? “Da ralé onde se elabora a gíria, diz Lombroso, ao ápice da república das letras, existe um abismo, principalmente na Itália, onde, mais que em nenhum outro país da Europa, as belas-artes e a literatura brilham por sua castidade. Na França, primeiro, e, por ricochete, na Inglaterra, o triste miasma das prisões de forçados e das casas de prostituição, dignos cônjuges, vai penetrando as letras. Mas é um fenômeno isolado, talvez excepcional, explicável pelas contínuas revoluções dessa nobre nação, pelos transtornos que têm sublevado as classes mais baixas.” Se a reserva e a pureza da literatura italiana não são aqui um pouco exageradas, não é difícil, a meus olhos, encontrar a causa nessa profusão de puras obras-de-arte que esse povo artista teve sempre sob os olhos, como um perpétuo sursum corda. Tal expressão passou a muitos outros meios.

[46]Não ser maldoso quer dizer ser um imbecil.

[47] – Sir John Lubbock, Origens da Civilização, página 140. Ver também Whitney.

[48] – Sobre os tipos profissionais desenvolvidos por G. Tarde, eis o que observa GAROFALO, La Criminologie, Alcn, Paris, 1890. “Tarde, — que em um dos brilhantes capítulos de sua Criminalidade Comparada subleva muitas dúvidas sobre certos caracteres antropológicos dos criminosos, — acaba, todavia, por admitir a realidade desse tipo; apenas ele gostaria de distingui-lo, não do homem normal, mas do homem sábio, do homem religioso, do homem artista, do homem virtuoso. Eis uma idéia que fará talvez o seu caminho, mas sobre a qual, no momento, é impossível discutir, pois que todos os dados nos faltam. Eles não nos faltam, entretanto, para afirmar a realidade do tipo ou, de preferência, dos tipos criminais, ainda que eles não sejam opostos senão ao homem não-criminoso, contraste que provavelmente seria muito mais marcante, se pudéssemos escolher os antípodas dos criminosos, ou seja, os homens virtuosos. Mas é preciso que nos contentemos com as observações que puderam ser feitas até o presente” (N. da T.).

[49] – Delaunay, Revue Scientifique, 1881.

[50] – Em sua resposta a minha crítica, “a mais hábil e a mais profunda”, diz ele, de todas aquelas que apareceram sobre O Homem Delinqüente, – resposta infelizmente muito longa para ser inserida aqui, malgrado sua importância, – Lombroso escreveu a respeito da passagem acima: “Sem dúvida a mulher apresenta uma maior analogia com o homem primitivo e, portanto, com o malfeitor; mas sua criminalidade não é inferior àquela do homem, quando se lhe acrescenta a prostituição.” A isto eu repliquei: “Quanto à criminalidade da mulheres, mantenho que ela é inferior àquela dos homens, não obstante a prostituição. Se, nas cifras da delituosidade feminina, pretende-se compreender as cortesãs, eu me pergunto por que não se compreenderiam, nas cifras da delituosidade masculina, não apenas os proxenetas, mas ainda os pervertidos, os jogadores, os bêbados, os preguiçosos e desclassificados de nosso sexo. A prostituição, para dizer a verdade, é o alcoolismo, o parasitismo e o pauperismo femininos. Uma mulher que se entrega, por fraqueza e por preguiça, está a caminho do delito, assim como o homem que, por ociosidade e covardia, entrega-se à embriaguez ou à mendicância mais ou menos degradantes. Mas não confundamos as condições do delito com o próprio delito. Sem a prostituição, com efeito, o contingente seria menor ainda, como aquele dos homens seria ainda mais forte sem a embriaguez, o jogo e a perversão. Logo, seria emprega-lo duplamente, se o contássemos à parte.

[51] – Ver Manouvrier. O peso do encéfalo, Revue Scientifique, 2 de junho de 1882. O volume da cabeça, segundo as classes e as profissões. “Broca mediu diferentes diâmetros e curvas da cabeça entre todos os alunos de medicina e entre um igual número de enfermos do hospício de Bicêtre. Ele constatou que todos os diâmetros e todas as curvas eram, em média, sensivelmente maiores...” Outras observações do mesmo gênero foram recolhidas junto aos chapeleiros de Paris. – Por que também não junto aos sapateiros e alfaiates? – Eu não quero exagerar o alcance de tais pesquisas, ainda menos aquele das conclusões que se poderiam tirar prematuramente e sem idéia preconcebida. Eu indico um gérmen a desenvolver.

[52] – Em uma comunicação endereçada à Sociedade de Psicologia Fisiológica, presidida por Charcot, Garofalo, após haver aportado sua parte de observações pessoais à teoria do tipo criminal, fez suas reservas a respeito da interpretação conjetural que acabamos de expor. “Como explicar, – diz ele notadamente, – que os caracteres psicológicos e fisiológicos do criminoso nato se encontrem tão pouco freqüentemente entre os verdadeiros delinqüentes de profissão, os batedores-de-carteira, por exemplo? São, todavia, os mais empedernidos reincidentes, os incorrigíveis por excelência, enquanto os criminosos que apresentam os caracteres mais destacados do tipo não têm quase nunca tempo para se tornarem habituais. Eles aplicam, freqüentemente, desde o começo, um grande golpe que os leva direto à prisão de forçados ou ao cadafalso; e, em todo caso, são precisamente estes aos quais o crime não traz outra coisa senão a satisfação de um instinto feroz.” Vejo, por tal objeção, que me expliquei mal talvez. Entendi dizer que criminoso nato era arrastado por uma vocação verdadeira em direção à carreira do crime, como o matemático nato em direção às matemáticas, e que esta vocação se reconhecia muitas vezes desde o primeiro crime, sem necessidade de outra prova. Quanto aos devotados artistas que se consagram por preguiça a engenhosos pequenos furtos, eles escolheram esse métier como teriam escolhido qualquer outro assim lucrativo e pouco atarefado, e se eles lhe permanecem fiéis é porque, uma vez presos a esta engrenagem, não mais podem sair. De resto, Garofalo reconhece que a existência de nossos tipos profissionais não é inverossímil.

[53]Histoire des Sciences et des Savants depuis deux Siècles, Genebra, 1885.

[54] – A monomania é uma forma de insanidade mental em que o indivíduo dirige a atenção para um só assunto ou tipo de assunto. Esquirol construiu, desde 1810, o edifício da monomania ou loucura parcial, palavra, – dirá ele, – que convém a todos os delírios parciais: o alienado, conservando o uso de quase toda a sua razão, delira apenas sobre um objeto ou sobre um pequeno número de objetos; sentindo, raciocinando, pensando e agindo, aliás, como ele próprio sentia, pensava e agia antes de estar doente. Quando é homicida, a monomania é um delírio parcial caracterizado por um impulso mais ou menos violento ao assassinato, provocado por ele próprio, seja por uma convicção íntima delirante, pela exaltação da imaginação ou por um raciocínio falso, seja ainda pelas paixões em delírio, ou bem, se não se observa nenhuma alteração da inteligência ou das afeições, por um instinto cego, por uma tendência irresistível, por qualquer coisa de indefinível (a que os próprios criminosos chamavam vozes, espírito mau, alguma coisa que me empurrou). Esquirol fez da monomania uma espécie de mal do século. Em 1860, um médico alemão, Griesinger, disse que a criação da mania por Pinel foi uma desgraça para a ciência. FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Graal, 1977, in O Homem Delinqüente, C. Lombroso, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001. (N. da T.).

[55] – Figura exponencial do positivismo francês, Taine tentou aplicar métodos científicos ao estudo das humanidades. Suas abordagens exerceram grande influência sobre as teorias literárias e estéticas que vigoraram na segunda metade do século XIX.
Hippolyte-Adolphe Taine (1828-1893) expôs sua teoria do conhecimento, racionalista e positivista, em Les Philosophes Français du XIXe Siècle (1857). Professor de estética e história da arte na Escola de Belas-Artes, publicou Philosophie de l’Art (1865) e procurou analisar a evolução artística com base na fisiologia e na sociologia. A aplicação sistemática de suas doutrinas à interpretação dos fenômenos morais, estéticos e espirituais de seu tempo converteu-o em grande teórico do naturalismo. Taine homenenageou Lombroso com uma carta que serve de abertura ao Homem Delinqüente. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[56] – Pertencente ou relativo às ilhas que formam a República de Fiji, arquipélago no oceano Pacífico composto por mais de 330 ilhas, grande parte delas desabitada. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[57] – Tarde, certamente, refere-se à seguinte passagem de O Homem Delinqüente, onde Lombroso destaca a influência da educação: “Está, pois, demonstrado que um certo número de criminosos são tais desde a primeira infância, qualquer que seja a parte devida às causas hereditárias. Digamos melhor: se alguns são produto de uma má educação, em outros, a boa não influi em nada. Todavia, sua ação benfazeja é, precisamente, iluminar este fato, qual seja, o de que as tendências criminais são gerais entre as crianças, de sorte que, sem a educação, não saberíamos explicar o fenômeno que se produz no maior número de casos, e que nós chamaremos sua metamorfose normal. De resto, por educação, não entendemos as simples instruções teóricas, raramente úteis aos próprios adultos, aos quais vemos tão pouco influenciados pela literatura, a eloqüência, as artes ditas moralizadoras. Por educação entendemos, menos ainda, as violências pedagógicas que freqüentemente engendram os hipócritas e, longe de mudar o vício em virtude, transformam-no em outro vício. A educação é, para nós, uma série de impulsos reflexos que lentamente substituem outros que engendram diretamente as tendências depravadas, ou, ao menos, favorecem seu desenvolvimento. Devemos, para isso, socorrer-nos da imitação, dos hábitos gradualmente introduzidos pelo convívio com pessoas honestas e por precauções sabiamente tomadas para impedir a idéia fixa que vimos tornar-se tão fatal na infância, jorrando em terreno muito fértil. Agora, ainda, a pena, por ela mesma, não se mostra tão eficaz quanto certos meios preventivos, tais como as condições favoráveis de arejamento, iluminação e de espaço, uma nutrição onde faremos predominar, por exemplo, as substâncias vegetais, com privação de bebidas alcoólicas, em completa abstinência e, em certos casos, uma ginástica sexual preventiva de excessos solitários. Os meios preventivos importam em evitar os ciúmes fáceis para impedir as violências impulsivas; reprimir o orgulho precoce por meio de provas palpáveis, – tão fáceis de encontrar e de produzir, – da inferioridade humana, sobretudo na infância. Importam, ainda, em cultivar a inteligência pela via dos sentidos, e o coração pela via da inteligência, como o faz, de modo tão admirável, o sistema de Froebel. Há crianças tristes, violentas, levadas à masturbação em razão de doenças, de raquitismo, ou por causa de vermes, etc. Os depurativos, os vermífugos tornam-se, então, os únicos meios de correção”. LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente, Ricardo Lenz Editor, Porto Alegre, 2001.

[58] – Trata-se de Antônio Agostinho Cournot (1801-1877) que merece um comentário à parte. Foi economista, matemático e realizou investigações na área dos cálculos de probabilidade e fundamentos do conhecimento, bem como teorias econômicas sobre a riqueza e o encadeamento de idéias nas ciências e na História. Sua teoria econômica sobre o monopólio de preços ainda é adotada, assim como outras referentes às finanças públicas. No exemplar das Leis da Imitação que tivemos em mãos (6a. edição, Félix Alcan, Paris, 1911), Gabriel Tarde escreveu: À memória de Cournot eu dedico este livro.” Tal demonstração de respeito por parte do autor é, para nós, indício seguro, tanto da consideração de Tarde pela obra de Cournot, quanto das bases filosóficas e lógicas da teoria da imitação. (N. da T.).

[59] – É bom, todavia, prevenir que, à vista das curvas, – se não se as completa nem se as corrige pela leitura do relatório e das tabelas, – é muito própria a desnortear o espírito.

[60] – O crescimento não foi contínuo, parece, desde 1880. Em 1881, 1882, 1883 houve 217, 222, 199 assassinatos; 718, 752, 675 atentados ao pudor sobre crianças; 174, 171, 191 infanticídios; mas 207, 204, 177 incêndios. Não se deveria confiar muito nas melhoras aparentes que parecem revelar algumas dessas cifras. Primeiro, o período decorrido é muito curto para fornecer uma base séria à interpretação otimista. Acrescente-se que o aumento dos crimes contra as pessoas desde há cinqüenta anos pareceria bem mais importante se, como convém, se os calculasse à parte, na estatística dos assassinatos franceses, os assassinatos corsos que, inspirado pela vingança, não poderiam ser confundidos com assassinatos vulgares. Descartado esse elemento perturbador, ver-se-á, pois, que a vingança e os crimes que ela inspira vão diminuindo e que os assassinatos continentais estão em sensível progresso. Notemos o crescimento dos parricídios nos últimos anos. Mas há melhor. Que se adicione em conjunto, para cada ano, de 1877 a 1883, todos os crimes violentos, a saber, os parricídios, os envenenamentos, os homicídios, os assassinatos, os golpes e ferimentos que ocasionam a morte, encontrar-se-ão as cifras seguintes em progressão quase regularmente ascendente: 630, 659, 639,665, 695, 706, 700.

[61] – Em sua brochura sobre a Criminalidade na França e na Itália (1884), o Dr. Bournet, um distinto criminalista, explica, em grande parte, pelas variações da legislação, o crescimento dos delitos; ele enumera, de modo complacente, os novos delitos que ela criou. Como se as leis sobre a embriaguez pública, sobre o recrutamento dos cavalos, sobre o monopólio dos fósforos, sobre a filoxera, etc., etc., admitindo-se que elas tenham aportado um contingente notável e durável à criminalidade – o que não ocorreu – devessem nos impedir de constatar o aumento considerável dos antigos delitos, dos verdadeiros. Consultemos o relatório de Yvernès, página 58. Veremos aí que, de 1826 a 1880, a proporção de delitos previstos por leis especiais, precisamente aquelas de que fala Bournet, permaneceu quase a mesma, 227 em mais ou menos 1000 prisões preventivas, e, assim, ela não iguala a quarta parte da cifra total. O Dr. Bournet escreve ainda: “Para as pessoas estranhas à ciência do Direito Penal, parece que, a cada ano, a criminalidade se eleva, que a desmoralização progride. Não é nada senão simples aparência. Este aumento total da criminalidade é devido unicamente ao rápido e progressivo crescimento dos delitos.” Ora, duas páginas adiante, ele é forçado a confessar que “os crimes contra as pessoas aumentam”. Não são os mais importantes? Mais adiante, confessa ainda que “como a loucura, como o suicídio, a criminalidade geral aumenta com o progresso da instrução”. Aliás, longe de conceder-lhe que a estatística dos delitos não saberia ser o termômetro da moralidade de um povo, eu estaria disposto a olhar as indicações deste termômetro como bem mais seguras que aquelas da estatística dos crimes. Além de a primeira importar em cifras muito grandes, ela dá trato a ações bem menos excepcionais e acidentais, bem mais refletidas, de ordinário, bem mais aproximadas da conduta habitual, bem mais apropriadas, em conseqüência, para revelar o nível médio de honestidade ao qual se atém o último.

[62] – Acrescente-se que os pedidos de separação de corpos quadruplicaram em quarenta anos, e que, especialmente, desde a lei da assistência judiciária, tornaram-se, na classe obreira, oito vezes mais numerosos.

[63] – Seu pensamento tem ainda um outro aspecto mais relevante. Que sejam ou não ocasiões de queda e de circunstâncias atenuantes, as ações produtivas são justamente o oposto da compensação das ações destrutivas, crimes e delitos. É um erro manifesto. Não se é neutralizado senão por seu contrário; e o contrário de um roubo, por exemplo, seria uma venda, uma compra? Não. É uma doação a título absolutamente gratuito, o que é raro. Que me digam se as doações perfeitamente desinteressadas triplicaram ao mesmo tempo em que os roubos... A ação delituosa é raramente um ato destruidor, oposto como tal a um ato protetor correspondente. Há um incêndio criminoso. Bem, eu me pergunto se o progresso da construção caminhou tão rapidamente quanto aquele dos incêndios criminosos desde o aparecimento das companhias seguradoras.

[64] – Poletti diz (página 76) que, em sua maneira de ver, a criminalidade é um resto (resíduo) obtido a partir da diminuição da soma da atividade produtora e conforme às leis num dado momento, da soma da atividade destruidora e criminosa nesse mesmo momento. Mas, evidentemente, ele expressou mal seu pensamento, porque, se a cifra da segunda espécie de atividade viesse a diminuir, o resto cresceria, de onde se segue que a criminalidade teria progredido. Foi o contrário que ele quis dizer. Mas o contrário não é mais exato, e, refletindo, ver-se-á que se trata aqui de quociente e não de resto, de divisão e não de subtração.

[65] – Ver Estatística da França, por Maurice Block , tomo I, página 81. É de observar que a vida média das mulheres, sobre as quais a civilização, – sem querer dizer-lhes nada de desagradável, – teve certamente menos ação que sobre os homens, é um pouco superior à vida média de nosso sexo. Se, pois, a vida média fosse realmente prolongada, isso não seria, em todo caso, um efeito da civilização. Eis como o crescimento da vida média é imaginário: ela é calculada pela divisão, num certo país e numa certa época, do número de anos vividos por seus habitantes vivos pelo número destes. O quociente, a saber, a vida média, deverá ser (todas coisas iguais, aliás, ou seja, as chances de mortalidade permanecem exatamente as mesmas) maior, se a proporção de crianças, no número dos habitantes, diminui. Isso é evidente, pois que as crianças, tendo vivido menos que os adultos, aportam com elas um menor contingente ao dividendo. Ora, precisamente, a civilização tem por efeito diminuir a fecundidade dos casamentos... Em lugar de vida média maior, deve-se, pois, ler infecundidade crescente. Pela mesma razão, observamos, se se calcular, de modo semelhante, a altura média, quer dizer, dividindo todas as alturas dos vivos, num dado momento, por seu número nesse mesmo momento, a altura média parecerá haver aumentado. A idéias de Malthus teriam feito carreira nas famílias.
“A mortalidade na Europa foi, de 1865 a 1876, por mil habitantes: de 31,6 na Áustria; de 27,4 da Alemanha; de 24,3 na França; de 22,2 na Inglaterra; de 19,4 na Suécia; e de 7,6 apenas para a Lapônia.” (Réforme Sociale, 12 de julho de 1885, monografia sobre os pescadores lapões) Ide, pois, atribuir, a seguir, ao progresso da civilização o crescimento da vida!

[66] – O que é mais grave, talvez, a proporção de falências fechadas por insuficiência de ativo quase dobrou também. Cada vez mais se expõe o dinheiro de outrem. “Os interesses empenhados nos empreendimentos comerciais são cada vez menos salvaguardados.”

[67] – Acrescentemos que, inversamente, a diminuição das transações comerciais, a crise sobrevinda em 1882, fez crescer, neste mesmo ano, a cifra das desavenças comerciais de 232.851 (estatística de 1881) para 253.064. Além disso, sempre, ao mesmo tempo em que os negócios diminuem, as falências aumentam. Elas aumentaram de um sexto de 1878 a 1883. Enfim, os negócios civis participaram, nesses últimos anos, como todos sabem, da diminuição dos negócios comerciais. Ora, é notável que, de 1880 a 1883, em três anos, o número de processos civis, malgrado sua uniformidade habitual, elevou-se excepcionalmente de 11 para 100.

[68] – Seria fácil provar, em filologia, que as palavras mais usuais e as mais antigas da língua, quer dizer, aquelas que são mais freqüentemente pronunciadas, são, ao mesmo tempo, aquelas que sofrem menos alterações.

[69] – Ver A Estatística da França Comparada com os Diversos Países da Europa, por Maurice Block.

[70] – Eu não estou, todavia, tão longe de me entender com Poletti quanto parece. Um simples obstáculo nos separa, como mostrarei no último capítulo deste livro; mas, por mínima que pareça, à primeira vista, a diferença entre nós, ela é importante e essencial, ainda que, em sua brochura sobre a pessoa jurídica na ciência do Direito Penal (Udine, 1886), ele diz não percebê-la (página 131).

[71] – Esta é uma verdade que eu tenho me esforçado por estabelecer, e que tomo por um dos fundamentos da ciência moral. Permito-me enviar o leitor a meus estudos publicados na Revue Philosophique sob os títulos de: Os traços comuns da natureza e da história (setembro de 1882); O que é uma sociedade? (novembro de 1884); A psicologia na economia política (setembro e outubro de 1881), A arqueologia e a estatística (outubro e novembro de 1883); e meu livro As Leis da Imitação, Félix Alcan.

[72] – Em O Homem Delinqüente, César Lombroso nos traz, no capítulo dedicado à literatura dos criminosos, um trecho da autobiografia de Lacenaire, bastante ilustrativo do contágio do exemplo: “Que advirá ao jovem compelido a essa miserável sociedade, aquela das prisões? Pela primeira vez, ouvirá ressoar, em seus ouvidos, a longa barbárie dos Cartouche e dos Poulailler, a ignóbil gíria. Infeliz desse jovem, se não se puser, imediatamente, a seu nível, se não adotar seus princípios e sua linguagem. Seria declarado indigno de estar ao lado de seus ‘amigos’! Suas reclamações não seriam ouvidas pelos próprios guardas que se inclinam sempre a proteger os chefes. O jovem não obteria outro resultado senão o de excitar contra si a cólera do carcereiro que é, de hábito, um antigo forçado. Em meio a essa vergonha, a esse cinismo de gestos e palavras, o infeliz enrubesce com o resto de pudor e de inocência que tinha ao entrar. Arrepende-se de não haver sido tão criminoso quanto seus confrades. Ele teme seus brocardos, seu desprezo, e isso explica a razão pela qual certos forçados se acham melhor aí do que no seio da sociedade onde não recolheriam senão desdém. Quem, pois, consentiria em viver desprezado? Assim o jovem toma como exemplo esses bons modelos... Em dois ou três dias chegará a falar sua língua e, então, não será mais um pobre simplório: os amigos poderão apertar-lhe a mão sem medo de se comprometer. Observe-se bem que não é senão aí que aparece a glória por parte desse rapaz que enrubescia ao passar por noviço. A mudança operou-se na forma mais que no fundo. Dois ou três dias passados nessa cloaca não poderão pervertê-lo inteiramente, mas tranqüilizem-se: o primeiro passo foi dado e ele não ficará no meio do caminho”.

[73] – Esta regularidade não pode ser mais surpreendente e, como todas as séries regularmente ascendentes do mesmo gênero em estatística, ela revela a ação de uma moda que se propaga (ver meus artigos acima citados sobre a arqueologia e a estatística), o que não impede que ela não seja a manifestação de instintos criminais. O reincidente pode muito bem ser, às vezes, um criminoso nato no sentido de Lombroso, mas sua criminalidade nata pode permanecer latente ou encontrar um escoamento não criminal, sem as causas sociais que o aguilhoaram ou o apontaram em direção ao crime. Se a reincidência não é devida senão a causas naturais, ela se traduziria estatisticamente por cifras proporcionais, imutáveis, como a influência da idade ou das estações.

[74] – Sobre o suposto progresso da quantidade de trabalho, eu farei minhas reservas O trabalho tornou-se mais produtivo, sim; mas mais intenso? Eu duvido. Observar-se-á que os campos emigram para as cidades, que o camponês transforma-se em operário. Ora, o camponês francês é o que existe de mais trabalhador no mundo depois do camponês chinês. Mas o que existe de mais moralizador, sem contradita, é o trabalho, qualquer que seja seu grau de produtividade.

[75] – Tudo isto estava escrito antes do voto da lei sobre os reincidentes. Reflexão feita depois, então, mantenho minhas observações em tese geral, mas não saberia censurar o degredo como medida de depuração transitória, tornada indispensável pela incúria anterior.

[76] – Resultados mais maravilhosos ainda em Nova York depois da fundação da Associação para ajuda às crianças fundada pelo Pastor Brac. (Ver Revur scientifique de 13 de junho de 1874). A estatística mostra que, após elevar-se constantemente até 1860, pouco depois da data de fundação, de 5.880, o número de mulheres presas por vadiagem diminuiu gradualmente até 548 em 1871.

[77] – A palavra não tem correspondência exata em português. Jacquerie, em francês, é o nome dado à sublevação dos camponeses (ou jacques) da Ile-de-France contra a nobreza, e que eclodiu em 28 de maio de 1358, dia da festa do Santo Sacramento, depois das misérias causadas pela invasão durante o cativeiro do Rei João. A revolta foi reprimida pelos nobres com impiedosa dureza. A palavra jacquerie, um pouco desviada de seu verdadeiro sentido histórico, serve para caracterizar toda revolta na qual as execuções arbitrárias desempenham o principal papel. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[78] – No original septembrisades. Massacre dos presos políticos nas prisões de Paris ocorrido entre 2 e 6 de setembro de 1792. Danton foi acusado de haver deixado que ocorressem as septembrisades. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[79] – Os libertos de ambos os sexos eram os desclassificados da sociedade romana; e sabe-se por que ela está morta. Mas nossos desclassificados, para nós, são libertos sem patrões: é pior.

[80] – Exceção, entretanto, às justiças de paz. “A instituição da preliminar de conciliação, diz o relatório, está longe de haver produzido os felizes resultados que esperava o legislador.” O número proporcional de conciliações decresce sempre. Em revanche, a necessidade de advertência prévia tem sido salutar.

[81] – “De 1831 a 1835, dois quintos dos casos (denunciados ao Ministério Público) eram comunicados à instrução e não eram classificados como podendo dar lugar a um processo senão que em três décimos. A primeira proporção desceu de 41 a 13%, e a segunda subiu de 31 a 49%. Tais resultados são muito favoráveis. Um, no que mostra o cuidado que dedica o Ministério Público em não enviar à instrução senão casos realmente graves ou obscuros; outro, no que atesta uma grande circunspeção no exercício da ação pública”.

[82] – A proporção dos despachos de improcedência de uma causa decresce sem cessar; aquela das sentenças, de 12 a 4%.

[83]Avant-faire-droit no original. (N. da T.).

[84] – Com efeito, olhando os mapas, vê-se que as regiões montanhosas, — as mais ignorantes e as mais pobres, — são, como as regiões mais ricas, aquelas onde a média de 33 ou 35 processos por 10.000 habitantes é mais ultrapassada, chegando a atingir 67. A extrema miséria e a extrema ignorância que fazem o chicaneiro encontram-se aqui com a extrema riqueza agrícola ou industrial que faz o cúpido e multiplica os contatos e as desavenças entre os homens.

[85] – Poder-se-ia, afinal de tudo, estudar a influência do temperamento nervoso ou bilioso, ou da tez loura ou morena. A proporção de ladrões louros ou de assassinos biliosos, por exemplo, deve certamente manter-se a mesma indefinidamente.

[86] – Esse princípio sobre o qual me baseio, e que vejo como sem exceção real, pode servir para distinguir se ações de certa natureza têm causas vitais ou sociais. Por exemplo: se os atentados ao pudor contra crianças se prendessem apenas a uma monomania senil, seu número permaneceria estacionário; mas ele aumentou de 136 a 809. Logo, aqui se tratam, sobretudo, de influências de ordem social: superexcitação de apetites depravados pela leitura (que é um exemplo indireto), pelo exemplo direto, pelo contágio de certas morais imorais, etc. Observação análoga para o suicídio.

[87] – Ele tem aumentado desde 1880, sobretudo em 1882, por conta da crise comercial e da diminuição dos negócios. Eis ainda um resultado pouco apropriado a satisfazer Poletti. Essa marcha da processividade comercial poderia sugerir a idéia de que, se ela decresceu tão longo tempo, isso se liga, precisamente, aos extraordinários progressos do comércio; e, prosseguindo na indução: poder-se-ia conjeturar que o estacionamento da processividade civil – que consiste, na maior parte, em conflitos de agricultores – se explica pelo fraco progresso relativo da agricultura, insuficiente para compensar a multiplicação das causas de conflitos?

[88] – Lembremo-nos que uma pequena parte, é verdade, de tribunais civis julga comercialmente e que as apelações dos julgamentos proferidos pelos tribunais de comércio, consulares ou outros, são levadas diante das cortes. À jurisprudência das cortes se impõe, com o tempo, uma adaptação forçada aos juízes comerciais de primeiro grau, beneficiando-os com seus próprios proveitos.

[89] – O relatório sinala o fato de que os “os julgamentos devolvidos pelos tribunais especiais de comércio são mais freqüentemente confirmados que aqueles que emanam dos tribunais civis julgando comercialmente”; mas se tem esquecido de lembrar que os julgamentos emanados dos tribunais civis julgando comercialmente são menos freqüentemente objeto de apelação.

[90] – Do ponto de vista dos inconvenientes, notemos a moda, que foi introduzida e que rapidamente se propagou nos tribunais, de enviar os jovens acusados às casas de correção. Primeiro usava-se pouco desta faculdade; por volta de 1826, o número desses enviados era de 98 por ano; acabou por atingir a cifra anual de 2.542. O Tesouro deve ter sido arrombado.Outro exemplo: de uma instância a outra, a proporção dos arestos confirmatórios em matéria civil é muito diferente. Resultaria disso, como quer o relatório, “que o grau do espírito processivo dos habitantes de certas regiões os levou, freqüentemente a interpor apelações temerárias?” A primeira causa é bastante inverossímil. Quanto à segunda, é fácil de ver, em apreciando as tabelas e os mapas, se as populações das regiões cuja competência cabe aos tribunais mais confirmativos são, ao mesmo tempo, as mais processivas. Ora, constata-se freqüentemente o contrário; nas áreas de Douai, notadamente uma das menos processivas da França, é-se também confirmativo ou quase tanto quanto naquelas de Chambéry e de Grenoble, as mais fecundas em processos. A coisa não é explicável, na minha opinião, senão tendo em conta os hábitos tradicionais próprios a cada corte.

[91] – Quando um condenado pela polícia correcional se pergunta se deve ou não interpor uma apelação, ele não pode se pautar pelo exemplo dos outros condenados, de quem ele sabe apenas que uns apelam e outros não apelam. Ele ignora também a estatística que lhe mostraria que os rumos das apelações são, cada vez mais, levados a confirmar as decisões dos primeiros juízes. Ele não é incitado senão que pela esperança de um aresto de reforma; ele não é retido senão que pelo temor de um aresto confirmativo, e um ou outro prevalece mais em seu coração (as razões para esperar e para temer restam as mesmas na média dos casos), segundo ele seja, por natureza, mais ousado ou mais tímido, mais levado à confinação ou ao desencorajamento por causas fisiológicas. Estas não mudam. O peso suplementar que elas acrescentam à balança dos próprios motivos, em suma permanentes, deve sempre produzir, em média, um efeito idêntico, uma proporção de apelações quase invariável. É isso que a estatística mostra com uma regularidade singular. Sobre 100 condenações, há sempre em torno de 46 que são objeto de apelação pelos condenados desde 1826. – Mas as apelações interpostas pelo Ministério Público vão decrescendo, de 43% em 1831 a 22% nos últimos anos; é que os magistrados do parquet tomam exemplo uns sobre os outros. – E os arestos confirmativos vão crescendo por uma razão análoga.
Outro exemplo: Ainda que a criminalidade progrida, a proporção que é tomada para ambos os sexos e para as diversas idades no cometimento de crimes e de delitos permanece invariavelmente a mesma, salvo no que concerne aos menores de dezesseis a vinte e um anos, para os quais o mapa da página 68 do relatório acusa uma progressão alarmante. A precocidade crescente revelada por essa última exceção não se explica pela superexcitação das inteligências e pela exaltação urbana? É, sobretudo, a natureza da criança que é modificada até o fundo vital por causas sociais. Não existem mais crianças, diz a linguagem corrente. Ela não diz que não existem mais velhos.

[92] – Mesmas observações em outros países. Na Espanha, por exemplo, onde a população de iletrados no número da população total do país é de dois terços, eles não participam senão que quase por metade na criminalidade. Em 1883, entre os condenados por assassinato, 64 sabiam ler e escrever, 67 não. Há aí um condenado por roubo sobre 6.453 alfabetizados e 8.283 analfabetos. (Ver Jimeno Agius, A Criminalidade na Espanha, Revista de Espanha, 1885).

[93] – Pode-se, com alguma aparência de razão, reprovar as considerações acima de darem à moral um apoio um pouco frágil; e aqui não há lugar para justificá-las, em as completando. Mas eu já vi, com prazer, eminentes moralistas, tais como Fouillée, em sua obra sobre a Propriedade Social (de início, na Revue des Deux Mondes), citá-las com favor.

[94] – É desse ponto de vista que se nos devemos colocar para julgar um livro que fez muito barulho nesses últimos tempos, A questão do Latim, de Frary.

[95] – Acrescente-se que, entre os agricultores, a proporção de ambos os sexos em face da criminalidade é igual, enquanto, entre os comerciantes e os industriais, a dos homens ultrapassa muito aquela das mulheres, de onde se segue que no sexo masculino, único eleitor, elegível e soberano, a criminalidade relativa das novas classes dirigentes é ainda mais inquietante talvez, politicamente, do que parece em virtude das cifras precedentes.

[96] – Apesar de que, no período de 1851 a 1876, a proporção da população urbana se elevasse de 25 a 32%.

[97] – Entre outras coletâneas estrangeiras e autorizadas que falam do capítulo precedente, após sua aparição como artigo da Revue Philosophique, em termos muito elogiosos para serem traduzidos por mim, citarei, notadamente, o Archivio di Psichiatria (vol. IV, fasc. II) e The Journal of Mental Science (abril de 1885), p. 128 e seguintes. Este último relatório começa assim: “It is an analysis (trata-se do mesmo estudo) by one who had deeply studied the moral and social conditions of modern society”, etc., e termina assim: “But we must advise our readers to consult M. Tarde for themselves; the trouble will be well repaid.”

[98] – Em dois artigos da Revue Philosophique (agosto e setembro de 1880), esforcei-me por demonstrar que a crença, como o desejo, é uma quantidade psicológica suscetível de graus e mesmo de medida, e que esse caráter, muito pouco observado, é de importância capital em ciência social.

[99]Memoire sur les applications du calcul de changes à la statistique judiciaire, opúsculo, aliás, saturado de equações e mais engenhoso, se me parece, que sólido, malgrado a penetração e a justeza habituais do autor. Mas, ainda que datado de 1833, ele tem o mérito de fundamentar-se sobre a estatística criminal, apenas nascente, e o de profetizar seu grande amanhã.

[100] – Eu li em Garofalo (Criminlogia) que a Corte de Cassação de Nápoles pronuncia, atualmente, 15 anulações para 100 recursos; a de Florença, 9 para 100; a de Turim, 7 para 100; a de Roma, 6. Vemos também, por nossa estatística, que a proporção de absolvições em matéria correcional vêm diminuindo sem cessar, resultado devido, sem dúvida, a uma influência recíproca, desta vez, do ministério público sobre a magistratura e da magistratura sobre o ministério público, equilíbrio de crenças que não deixa de lembrar o equilíbrio hidrostático dos vasos comunicantes.

[101] – Bem entendido, numa certa medida apenas. Jamais me ocorreu justificar a justiça revolucionária, tal como se a viu funcionar entre nós em diversas épocas.

[102] – Notemos que depende de uma descoberta o elevar de um grau a convicção judicial exigível, o ponto de condenabilidade, todas coisas iguais, aliás, ou seja, as condições sociais permanecendo as mesmas. Por exemplo, em matéria de envenenamento, era-se forçado, antes dos progressos da química, a condenar as pessoas sob simples presunções um pouco fortes, sem o que se teria deixado todos os crimes desse gênero impunes. Mas, desde que, por meio de reagentes especiais, sabe-se reconhecer a presença de substâncias tóxicas, tem-se o direito de exigir uma convicção bem mais forte que outrora. Em face do incêndio (crime covarde próprio aos novos tempos), quando se condena, condena-se sobre simples presunções, na falta de meios de investigação comparáveis aos precedentes. Talvez um dia o incêndio voluntário será tão fácil de provar quanto o envenenamento no presente. No momento, ele é tão difícil de provar quanto o envenenamento outrora. São também as invenções e as descobertas de um certo gênero que têm tornado impossível o retorno a certos modos supersticiosos de processo criminal usados no passado e entre todos os povos, como a ausência dessas invenções e descobertas tornou outrora essas práticas quase necessárias. A dúvida, sobretudo em face dos grandes crimes, é um estado tão penoso, que a natureza humana se esforça sempre para dele sair através de todos os meios possíveis. Não era na Idade Média apenas, era no Egito, na Grécia e em toda parte na Antigüidade que se confiava nos oráculos ou nos julgamentos de Deus para saber a que se devia a culpabilidade dos acusados, do mesmo modo que hoje, e às vezes não menos cegamente, confia-se nos experts médico-legais. Os ordálios eram as perícias médico-legais do passado. Era muito necessário recorrer a eles, quando a química e as ciências naturais não haviam nascido.

[103] – Eu acredito a liberdade pessoal defensável metafisicamente, contanto que com asseidade num elemento eterno e individualmente caracterizado (como todos os elementos, segundo minha opinião) que teria desempenhado o principal papel na formação de nosso ser desde o óvulo natal e que, aos seus produtos mais complexos, teria imprimido sua própria marca; daí a necessidade das variações individuais. Mas esta hipótese nada tem a ver em moral, e o livre-arbítrio não poderia, em nenhum tema, entrar como dado no problema da responsabilidade. Parece-me desejável assentar a moral, pública ou mesmo privada, sobre um fundamento menos discutível.

[104] – No original, petit vérole, bexiga que prenunciava a varíola. (N. da T.).

[105] – Edouard Jenner (1749-1823) foi médico inglês e descobridor da vacina. Nouveau Petit Larousse Illustré. (N. da T.).

[106] – Ver Revue Philosophique, julho de 1885, página 26, artigo de Beaunis.

[107] – Ver Revue Philosophique, agosto de 1885.

[108] – Beaunis tem razão em dizer que a sugestão hipnótica fornece o único método conhecido de experimentação em psicologia; mas vê-se que ele poderia acrescentar: em sociologia. Não apenas, com efeito, ela fornece o meio de isolar as menores operações do espírito (é o caso das sugestões negativas, por exemplo) e de descer assim aos últimos elementos da vida mental no hipnotizado, mas, ainda, pela relação única e singular deste com seu hipnotizador, ela põe a nu o próprio elemento da vida social.

[109] – Nas casernas de gendarmaria, o marido é punido pelas faltas de sua mulher. É levar um pouco longe esse princípio.

[110] – Acrescente-se que convém colocá-la, como a maior parte dos loucos, aliás, na impossibilidade de procriar crianças herdeiras de sua enfermidade perigosa. Com efeito, nos casos em que a causa da ação, da qual é necessário evitar o retorno, é a loucura, a espécie, e a única espécie de repetição possível desta ação é, depois do hábito, a hereditariedade, de modo algum, a imitação. A interdição ao casamento seria, justamente, o equivalente do castigo.

[111] – Vê-se que é necessário pensar nesta idéia, aliás, cara a certos moralistas, que, à falta da realidade do livre -arbítrio, sua ilusão unicamente forneceria uma base à moral. Aqui, a conseqüência seria fazer condenar nossa hipnotizada a uma pena infamante.

[112] – Esses graus de identidade e de não-identidade devem ser incompreensíveis, ainda que incontestáveis, para quem não admite a complexidade do eu. Mas, se olharmos o cérebro como uma congregação, de qualquer sorte, de pequenas almas comensais, regidas, aliás, monarquicamente, por uma mônada rainha, mas por uma mônada sempre mais ou menos obedecida, mais ou menos em luta com seus súditos rebeldes, nada se compreende melhor que essas expressões; e a alienação mental torna-se, simplesmente, o equivalente de uma rebelião triunfante.

[113] – Ver na Revue Philosophique os números de outubro de 1885 e janeiro de 1886, onde se encontram muito interessantes documentos de Bourru e Burot, sobre as variações da personalidade, sobre um caso de múltiplos estados de consciência com mudança de personalidade. Ver, sobretudo, as sábias monografias de Ribot sobre as doenças da personalidade e a vontade (Félix Alcan, editor).

[114] – Certamente o eu é composto; mas a sociedade não saberia, – na redução gradual de suas unidades componentes (primeiro a tribo, depois o grupo familiar cada vez mais restrito, depois o indivíduo), – descer além do eu tomado como um todo. Também o que é voluntário na atividade individual é unicamente susceptível de desenvolvimentos sociais; porque é próprio a cada ato voluntário, Ribot demonstrou muito bem (Revue Philosophique, julho de 1882), não ser a simples formação de um estado de consciência destacado, mas superpor-se à participação de todo esse grupo de estados conscientes ou subconscientes que constituem o eu num momento dado.

[115] – Em minha Filosofia Penal (Stork et Steinheil, 1890), desenvolvi a teoria da responsabilidade esboçada nas páginas precedentes.

[116] – “A mudança de estrutura das sociedades exerce influência desde o seu início. Nas zonas rurais permanecem vestígios da antiga criminalidade dominante, característica das sociedades agrícolas. Delitos contra as pessoas, infanticídios, incêndios e, especialmente, os envenenamentos são reputados, mais freqüentemente, nas zonas rurais. Os delitos contra os costumes, sobretudo o incesto, prevaleceriam igualmente no campo. Ao contrário, os delitos contra o patrimônio, especialmente os arrombamentos, os abusos de confiança, os estelionatos, receptações, abortos e delitos contra a coisa pública predominariam nas cidades. Tal proposição geral não passa sem evocar uma pseudolei térmica, considerada como uma das primeiras descobertas da criminologia do fim do século XIX, e segundo a qual os tipos de crimes variariam segundo o tipo de clima, os crimes de sangue aumentando nos climas quentes; os crimes contra o patrimônio crescendo nos climas frios. Já no século XIX a análise das estatísticas da criminalidade legal obrigou a se colocar em dúvida a realidade da lei térmica. Joly, apoiando-se nas observações de Tarde, formulara reservas a esse respeito (La France criminelle , 1889). Todavia, o desenvolvimento da urbanização nas regiões Lion, Grenoble e Marselha retiraram o que poderia restar de justificação à pretensa lei térmica. Os delitos contra o patrimônio aumentaram ao mesmo tempo em que a urbanização, sem diferença segundo a temperatura do clima”. Criminologia. LEUTE, Jaques, professor emérito da Universidade de Direito, Ciências Econômicas e Sociais de Paris, Diretor Honorário do Instituto de Criminologia de Paris (N. da T.)

[117] – Ver-se-á justamente adiante que sua observação não se aplica em nada à França, exceto a Córsega.

[118]Criminologia, por Garofalo.

[119] – Na Espanha, o mesmo contraste. As províncias do Norte dão aí uma média de crimes, sobretudo de crimes contra as pessoas, inferior àquela das províncias do Meio-Dia. Nos tempos do domínio árabe, pensa-se que era o mesmo? E acredita-se que, então, como hoje, o conjunto da criminalidade violenta nessa península era quatro vezes mais elevado que na França?

[120] – Numa mesma região, são, não as partes mais quentes, mas precisamente as mais frias, quer dizer, as montanhas, que apresentam a criminalidade violenta mais elevada. Por exemplo, no Meio-Dia da França, os Pireneus Orientais, Ardèche, Lozère, sem falar na Córsega. É que os países montanhosos são os menos civilizados.

[121] – Esta diferença, de acordo com Garofalo, explica-se através daquela das raças. Ainda uma ilusão, eu creio. Um hábito nacional, que não é exclusivamente próprio, se quiserem, à raça italiana, aquele da vingança, explica suficientemente a criminalidade violenta dessa nação. Mas custa-me não falar de Garofalo senão que para contradizê-lo; e eu aproveito essa ocasião para louvar o alto juízo que é notável em sua obra.

[122] – A objeção, é verdade, seria de outro modo insuperável, se se admitisse, com diversos americanistas (ver a obra de Nadaillac, página 263), que a América foi primitivamente civilizada do Norte ao Meio-Dia.

[123] – Não é que a tese contrária não se haja sustentado, mas numa época já antiga: Cazauvieilh, em 1840, procurou estabelecer, parece, que o número de suicídios e aquele de crimes violentos sempre progrediram ou decresceram em conjunto.

[124] – A Prússia é um dos raros estados civilizados onde o homicídio está em via de crescimento notável, malgrado os progressos de sua cultura. É talvez uma conseqüência deste equilíbrio social europeu (substituído ao antigo equilíbrio político) que tende a estabelecer o nível da criminalidade entre as nações de civilização igual. A Prússia, com efeito, tem ainda alguns passos a dar na mesma via homicida, para atingir o nível da França, por exemplo.

[125]Annales de Démographie, setembro de 1882.

[126] – “Salvo duas exceções”, diz Bertillon. Mas, ao examiná-las de perto com ele mesmo, percebe-se que essas exceções são puramente aparentes e entram na regra.

[127] – E as diferenças não são medíocres. Lembremo-nos, com efeito, da enorme distância que separa os cantões católicos dos cantões protestantes, de sorte que a freqüência do divórcio, que é de cinco em Valais, por exemplo, ultrapassa cem em Schafhouse.

[128] – “Vimos, diz Bertillon, a enorme influência da religião sobre a freqüência do divórcio”. Ele acrescenta, na verdade: “ela age no mesmo sentido para o suicídio, mas muito mais fracamente”. Este muito mais fracamente é muito contestável e se aplicaria, quando muito, à parte diferente de diversos países na progressão do suicídio, mas não, eu repito, ao próprio fato desta progressão.

[129] – Ver, sob este título, uma interessante monografia do Dr. Mesnier.

[130] – Mesmo admitindo que a civilização moralize, – e, de minha parte, eu não duvido, – ela é de data tão recente que se pode perguntar se teve tempo apenas de destruir a obra desmoralizadora, dizem-nos, do longo período anterior e de conduzir-nos ao nível moral de nossos primeiros ancestrais. O que é certo é a transformação dos costumes e da moral.

[131] – O aumento dos infanticídios, ainda que muito fraco, é significativo como sinal do relaxamento dos costumes, porque, enquanto ele se operava, a vergonha ligada à maternidade ilegítima ia diminuindo em vez de progredir.

[132] – Os escândalos, de modo algum excepcionais, revelados pela Pall Mall Gazette, edificaram-se sobre a moralidade da nação reputada, com razão talvez, a mais casta do continente e, precisamente, em suas classes mais civilizadas. A superexcitação nervosa do enfraquecimento muscular, conseqüência do desenvolvimento da vida urbana, conduz à ninfomania e ao priapismo. O amor mais precoce, o amor mais prolongado, o amor mais livre e mais infecundo: por esses sinais, sobretudo, se reconhece, seja numa nação, seja numa classe, o avanço em civilização. Ver Taine, Ancien Régim, sobre os costumes aristocráticos do século XVIII.

[133] – Ver Loria, Darwin e a Economia Política.

[134] – Talvez seja preciso, de uma parte, atribuir à ação prolongada da pena de morte o mérito de haver agido em sentido inverso à guerra. “Lombroso, diz Garofalo, não teme atribuir a superioridade moral dos corações de nosso século, em relação ao passado, à depuração da raça pela pena de morte. O patíbulo, para o qual foram conduzidos, a cada ano, milhares de malfeitores, impediu a criminalidade de ser mais difundida hoje em nossas populações. Quem pode dizer aquilo que seria hoje a humanidade, se esta seleção não se houvesse operado, se os delinqüentes houvessem podido procriar, se tivéssemos, entre nós, a progênie inumerável de todos os ladrões e de todos os assassinos de séculos passados?” Comparar esta observação com aquela de Garofalo (página 216). Ele atribui às leis sanguinárias de Eduardo VI e de Elizabeth da Inglaterra contra os vagabundos e os ociosos que foram a conseqüência (segundo Karl Marx) “a menor criminalidade atual da Inglaterra comparada ao resto da Europa”. A consideração é séria (porque, compreendida no sentido da eliminação daquilo que é nocivo, a seleção darwiniana é de uma eficácia bem mais incontestável do que como triagem daquilo que é útil). Mas, ao mesmo tempo em que os conformistas delinqüentes eram eliminados dessa sorte pelo patíbulo, os não-conformistas inventivos, iniciadores, eram suprimidos e impedidos de se reproduzir, fosse pela fogueira dos heréticos, fosse pelo celibato dos padres e dos religiosos (entre os quais se recrutavam quase todos os sábios e os filósofos). – Ora, não parece, diga-se de passagem, que, após centenas de séculos dessa dupla depuração, a sociedade moderna daí surgida deveria compor-se de indivíduos notavelmente conformistas, conservadores, tradicionalistas por temperamento? – Pois bem! Nada disso; uma erupção de invenção e de revolução teve lugar, tal como jamais se viu semelhante. Não se diria que o fundo do ser vivo é uma fonte de diferenças sempre prestes a surgir através de todos os obstáculos, inesgotável, malgrado todas as máquinas de extração?

[135] – No século XV, em certas regiões da Itália, onde não penetrava a cultura, as pessoas do campo matavam regularmente todo estrangeiro que caísse em suas mãos. Este costume existia, notadamente, nas partes afastadas do reino de Nápoles. (Burckardt).

[136] – O não-civilizado que vive isolado em sua pequena corporação aí faz um mundo à parte; o homem de fora quase nada tem de humano a seus olhos, é uma presa; matá-lo é realizar ato de caça; pilhá-lo é colher uma fruta selvagem num lugar inculto. Para ele, com efeito, sua tribo, sua cidade, é aquilo que é, para nós, a grande família européia. E nós somos tão culpados, matando e roubando um estrangeiro de nossa Europa, quanto ele pode sê-lo, matando ou roubando um homem de sua cidade, de sua tribo. Ora, somos nós mais humanos em relação aos europeus que eles em relação aos seus parentes e seus vizinhos? Eis a questão. Quanto a nossas relações com os verdadeiros estrangeiros para nós, quer dizer, com os bárbaros ou os selvagens da África, da América ou da Oceania, ainda uma vez, sabe-se aquilo que elas são: massacre, pilhagem, abominações de toda espécie.

[137] – Ver meu As Leis da Imitação (Félix Alcan, 1890), primeiro capítulo.

[138] – É bastante, muitas vezes, uma descoberta, mesmo puramente científica, para fazer secar a fonte de um certo gênero de crimes. Por exemplo: não é bem mais presumível que as descobertas da química contemporânea tenham contribuído, na maior parte, para a diminuição muito notável do envenenamento, tornado o crime dos ignorantes, depois de haver sido, no século XVII, aquele das pessoas importantes? É que este crime, outrora o mais seguro da impunidade, é reputado, em nossos dias, o mais perigoso para o malfeitor.

[139] – O gênero de crime mais desculpável, o menos reputado crime, o menos crime enfim, em um país, é precisamente aquele que aí é o mais usado, a saber, freqüentemente, o homicídio no Meio-Dia, o roubo no Norte. Houve um tempo em que, sob o Antigo Regime, o jogo, tornado um furor geral, trapacear não era mais desonroso que o adultério em todos os tempos ou, em nossos dias, a palinódia política. É e será sempre assim em relação a toda desonestidade a serviço de uma paixão forte e propagada. Também, nós o sabemos, na Itália setentrional, o júri, sempre eco fiel da opinião, escusa mais facilmente os roubos que os homicídios e mostra uma indulgência inversa na Itália do Sul. O júri francês é submetido a variações do mesmo gênero. Do ponto de vista da eficácia da repressão, é justamente, repetimo-lo, o contrario do que deveria ser.

[140] – Esse fato não se verifica, é verdade, no que concerne à Espanha. De acordo com o estudo citado de Jimeno Agius, são as províncias do litoral que, com aquela do Norte, dão a média de crimes e de delitos de todos os gêneros, de delitos e de faltas, a menos elevada. Mas é preciso dizer que umas e outras são igualmente as regiões mais laboriosas, as mais ricas e as mais esclarecidas da península, e que os portos e as grandes aglomerações, raros na Espanha, não vêm aqui neutralizar, com sua influência depravadora, como entre nós, os bons efeitos do trabalho e da riqueza.

[141] – O Concílio de Latrão recomenda aos bispos fazer cuidadosamente denunciar, em suas visitas pastorais “as pessoas que levam uma vida singular e diferente do comum dos fiéis”. Nada descreve melhor que esse texto o liame estabelecido, em toda sociedade fixada, entre o costume e a moral. Aristóteles, em sua política, parece haver ditado de antemão as prescrições do Concílio de Latrão: “Vigiai cuidadosamente, diz ele, a conduta privada dos cidadãos que gostam de inovações. Vós estabelecereis um magistrado para inspecionar toda maneira de viver que não está de acordo com o espírito do governo, etc.”

[142] – Podemo-nos consolar, por uma consideração análoga, do número crescente de loucos. “Contava-se anualmente no Mundo Antigo, diz Morselli, em torno de 300.000 loucos, e a maior parte se encontrava na França, na Alemanha e na Inglaterra”, justamente nos países mais inventivos. Resta saber se, nesses países, surge, a cada ano, um número igual de talentos ou de gênios para estabelecer a compensação. Eu receio muito que não.

[143] – Indivíduos pertencentes ao povo indígena da família lingüística pano (Korubo), que habita o vale do Javari (AM). Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[144] – Membro de determinada seita religiosa secreta na Síria e no Líbano cuja crença é basicamente maometana, e que afirma que o sexto califa muçulmano, al-Hakim (século XI), da dinastia fatímida, foi a última de uma série de encarnações terrenas de Deus. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[145] – Seguidores da doutrina de Jansênio (1585-1638), teólogo holandês e bispo de Ypres, sobre a graça e a predestinação e sobre a capacidade moral do homem presente, e que foi adotada na abadia de Port-Royal por várias correntes espirituais com tendência ao rigorismo moral. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[146] – As leis de Manu começam por exortar a testemunha, nos mais solenes e patéticos termos, a dizer toda verdade, nada senão a verdade, – porque “aquele que houver prestado um falso testemunho será precipitado nos mais tenebrosos abismos do inferno”. Segue-se a descrição desses tenebrosos suplícios. Depois, não é sem surpresa que lemos: “todas as vezes que a declaração da verdade puder causar a morte de um sudra, de um vaixá, de um xátria ou de um brâmane, se se tratar de uma falta cometida num momento de loucura, e não de um crime premeditado, uma mentira é preferível à verdade”. – Eis o princípio inconsciente de acordo com o qual nossos jurados respondem tão freqüentemente não, apesar de pensarem sim. Vê-se que a teoria das restrições mentais remonta ao alto passado.

[147] – É verdade que, ao inverso, lá onde o número de pessoas desonestas diminui, este mesmo limite se desloca no sentido mais desfavorável à desonestidade. Julgados do ponto de vista de um país da improbidade, os patifes de um país honesto seriam menos numerosos ainda.

[148] – Reciprocamente, o selvagem mente bem mais facilmente ao europeu que ao selvagem, seu compatriota; daí deriva esta reputação imerecida de mentirosos insolentes que nossos viajantes criaram para os indígenas das ilhas ou de outras regiões não civilizadas por eles visitadas rapidamente. Se nossos camponeses também são famosos por sua má-fé, erroneamente talvez, não será porque se os julga de acordo com suas relações com outras classes, com aquela dos homens de negócio, notadamente, aos quais eles não têm o menor escrúpulo em enganar? Mas, em suas relações mútuas, os camponeses são menos probos e menos sinceros que os homens de negócio entre si?

[149] – Pode-se relacionar ao desenvolvimento da vaidade a disposição tão desagradável do público moderno em fazer caso da inteligência quase exclusivamente, e a quase desprezar a moralidade não-inteligente. E é fato que as pessoas vaidosas, escravas da moda e desligadas da tradição, são as mais levadas a esta admiração exclusiva pelo sucesso intelectual, superficial e retumbante.

[150] – Em toda parte e sempre, a vitória é dos otimistas, dos povos ou dos indivíduos que acreditam a priori que a verdade é bela e que a vida é boa. Toda a Antigüidade clássica teve deuses sorridentes; o próprio Egito, a mais grave das nações antigas, teve fé no triunfo final da luz sobre as trevas e no reino do bem. Ora, para assegurar-se de que o otimismo é um erro, é suficiente, parece-me, imaginar a duração infinita dos tempos passados. A vida universal é uma busca impaciente. Mas o que é um objetivo sempre perseguido e jamais alcançado, após quase uma eternidade de tentativas, senão uma quimera? E o que é uma perseguição sem objetivo, a não ser a pior das maldições? A própria duração do universo atesta, pois, a impossibilidade de seu feliz desfecho. Dizer que o mundo é um grupo imenso e uma eterna série de evoluções seguidas, invariavelmente, de dissoluções é dizer que tudo não é, em toda existência, senão esperança e decepção, fluxo incessante de esperança seguido de um inevitável refluxo. E é muito tarde para supor que surgisse jamais, enfim, em meio a tudo isso, algum esforço vitorioso, algum elã não enganoso, alguma vontade não decepcionante!

[151] – A posição da Igreja oficial, na Inglaterra, é particularmente falsa. O Bispo de Rochester felicita-se em “ver que a Igreja Anglicana torna-se cada dia mais ampla e mais liberal”. Mas Globet d’Alviella pergunta-se “como espíritos sinceros chegam a conciliar essa amplidão de vistas com a admissão das doutrinas que servem de base oficial ao seu estabelecimento. É, com efeito, muito evidente que as idéias atuais da igreja ampla estão em desacordo com o espírito, senão com a letra, de 39 artigos”.

[152] – Inútil advertir que eu entendo essa palavra em seu sentido próprio, um pouco esquecido, e não no sentido abusivo que se sabe. Toda época, toda nação um pouco avançada em civilização teve, no sentido indicado, seus clérigos. Nos tempos de Cícero, já a alta sociedade romana chegou ao ponto em que a religião, como um salgueiro oco, não viveu mais que pela crosta, ainda boa como abrigo. Em nossos dias, toda nossa Europa dá o mesmo espetáculo, apenas mais generalizado. Na Ásia mesmo, o ceticismo difunde-se nas classes muçulmanas elevadas, por exemplo, na Pérsia, onde os nacionalistas, os sufis, praticam seu culto sem a menor fé, hipocrisia transparente e aprovada que tem, parece, recebido o nome de Ketman. (Ver Elisée Reclus, Asie antèrieure).

[153] – Sacerdote e teólogo grego dos séculos VI e VII a. C. considerado um dos sete sábios da humanidade, figura semilendária a quem se atribuiu importante papel no desenvolvimento da civilização antiga. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[154] – Legislador mítico das tribos géticas da Trácia. No tempo de Heródoto corria a lenda de que Zamolxis tinha sido escravo de Pitágoras, em Samos. Teria ensinado aos getas, que o reverenciavam como a um deus, o dogma da imortalidade da alma. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[155] – Chamavam-se orfeutelestes os que interpretavam os mistérios introduzidos na Grécia por Orfeu. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[156] – “Na África, diz Taylor, os ventríloquos oferecem-nos tipos perfeitos de charlatanice. Em Sofala, a alma do rei entrava, após os funerais, no corpo de um feiticeiro; este feiticeiro, tomando a voz do monarca falecido e imitando-o a ponto de enganar todos os assistentes, dava ao novo monarca conselhos sobre a maneira de governar seu povo”.

[157] – Para a inteligência disto e de tudo o que se segue, eu devo fazer observar que, do meu ponto de vista, – mas aqui não é lugar de desenvolvê-lo, – a Ética e a Estética acompanham, no fundo, a Lógica.

[158] – Os Estados Unidos, onde os recursos de um solo imenso se oferecem por nada ao primeiro que chega, parecem escapar, por aí, a esta necessidade. Mas chegará o momento em que seu território será preenchido, – e já os melhores lugares lá estão tomados; – o desejo de enriquecer, que hoje é ainda uma causa de união, tornar-se-á uma fonte de lutas e, para nisso pôr fim, será muito necessário também lá se sublimarem os desejos.

[159] – É, sobretudo, dos homens públicos, dos governantes, que se deve exigir essa rigidez de princípios. Porque ela é, – e encarregar-me-ei de demonstrá-lo, – a única garantia verdadeira dos governados contra a possibilidade de seus crimes, a maior parte impunes. Agir contrariamente a esses princípios é, para um homem de Estado, uma mentira criminosa. Ora, eu me pergunto, a utilidade de tais mentiras está ou não diminuindo?


 

© 2004 – Maristela Bleggi Tomasini
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Novembro 2004

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Março 2006

 

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