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SINTONIAS

Glosas às quadras inéditas do Professor Agostinho da Silva

Abdul Cadre

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Sintonias
Abdul Cadre

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Copyright:
©2001,2006 Abdul Cadre
abdul.cadre@netc.pt


 

SINTONIAS

ABDUL CADRE
Visto por Aniceto Carmona


O autor reproduzirá esta lira as vezes que se torne necessário, não para que seja pública, mas para que chegue às mãos daqueles que têm o sonho como ferramenta de futuro e a utopia como objectivo de vida e de auto-realização.

Bem poucos receberão este trabalho, mas recebê-lo das mãos do autor é sinal de cumplicidade nesta ideia de tornar a vida conversável pelo afecto e pela fraternidade.


SINTONIAS

por
Abdul Cadre

GLOSAS ÀS QUADRAS INÉDITAS DO
PROFESSOR AGOSTINHO DA SILVA


 

Homenagem a Agostinho da Silva
Grande Mestre do Sonho
e da Utopia.

 


Note Bem:
As quadras (ou trovas, como se diz no Brasil) epigrafadas entre comas e em caracteres menores são da autoria do saudoso Professor Agostinho da Silva.

 

     Estas Sintonias foram produzidas em jeito de glosas às «QUADRAS INÉDITAS» do Professor Agostinho da Silva, que a ULMEIRO (Lisboa) deu ao público em 1ª edição em 1990.

     Foram oferecidas pelo autor à GRANDE ALMA PORTUGUESA em 15 de Agosto de 1992


«Se estas quadrinhas não prestam
com certeza as compus eu
mas se boas foi poeta
além de mim que mas deu.
»

 

Por faltar-me a qualidade
em quantidade se avia
estas quadras prá idade
que o vento já anuncia.

Versos meus e de quem faz
por mim que dou o recado
dedicados a quem traz
o futuro bem estudado.

Ao sábio que diz não ser
e sempre dá um gostinho
de futuro por haver
e usa o nome de Agostinho.

Bº 91.12.19


«Acho que Deus não escreve
e também que Deus não fala
e que nos sustenta vivos
a vida que nele cala.
»

 

Tudo o que penso duvido
e até duvido que penso
pense por mim Deus metido
no inferno de ser denso.

Nem sequer O sei pensar
neste castigo de ter
o sangue de me queimar
e os ossos de em cruz me erguer.

Saiba a rosa e o perfume
se em me secar e despir
sou rumo ou vou por costume
se de murchar vou florir.

Bº 91.12.13


«Acordo e sai um poema
alguém mo sonhou de noite
só preciso não ser nada
para que a musa se afoite.
»

 

Acordo e vejo no mundo
uma enorme vaga preta
que mete no mar bem fundo
o poema e a caneta.

Em névoas de cocaína
embriagado me veja
se de escriba é minha sina
ou corda que um Deus harpeja.

Se escrever é recordar
escreva os versos quem os faz
não vale a pena acordar
dum sonho todo lilás.

Bº 91.12.13


«A face oculta da lua
só banha de seu luar
aqueles que não o vendo
o sabem imaginar.
»

 

O fogo de imaginar
uma verdade maior
faz-nos lobos ao luar
em cio de sonhador.

Arda-me a alma a queimar
até que a noite me roube
quero da alma apagar
este luar que me coube.

Esconda a lua a minha face
com a face que me esconde
até que o luar me trace
de face quanto me bonde.

Bº 91.12.13


«A minha alma é terra-a-terra
não ousa voar ao céu
por muito amor do mistério
e respeito de seu véu.
»

 

A minh’alma a bem dizer
parece até que não tem
vontade de o céu a ter
e a terra não lhe convém.

Triste no corpo a murchar
sobe à montanha mais alta
falta-me asa para voar
para ficar peso me falta.

Quando me sopra ao ouvido
logo julgo que ela é vento
se leve a peso duvido
se terra a peso lamento.

Bº 91.12.16


«Amor a cada dia que nos surge
só amando o teremos merecido
recusando morrer a cada dia
que sempre o maior bem é ter nascido.
»

 

No dia em que tu nasceste
deram-te um nome só teu
se o usaste e não o deste
tiveste um nome e morreu.

Morrerás em cada dia
sem outro merecimento
que o cansaço e a agonia
o vazio e o esquecimento.

Que amar é dar-se na vida
como quem lua parisse
e até da face escondida
dessa lua repartisse.

Bº 91.12.16


«Amor à vida no tempo
corra bem ou corra mal
dá a força de voar
ao que seja intemporal.
»

 

O tempo sem tempo vai
escorrendo como maleita
ganha-se a morte num ai
que a vida apenas nos espreita.

Num tempo sem tempo foi
que um Deus sem tempo pensou
o mundo que hoje nos dói
e o homem a Deus roubou.

Roubado fosse! que importa
se o dono não se amofina?
o mal do roubo é estar morta
a vida feita rotina.

Bº 91.12.16


«Aperfeiçoa-te ao máximo
em tempo que nada valha
pondo toda a tua pressa
no que de tempo é migalha.
»

 

O gosto duma migalha
tem do pão todo o sabor
mas a alma e a mortalha
podem ter inversa cor.

Estica o tempo como um nastro
debrua cada minuto
não deixes quebrar o mastro
e a navegar sê astuto.

Usa ventos de feição
se os não tens vai à bolina
nunca percas a razão
nem negues a tua sina.

Bº 91.12.12


«A pura essência de Deus
em que o prendo e não cativo
é ser a raiz quadrada
de todo o X negativo.
»

 

Não há quem possa deter
por alto que seja o muro
vento perfume ou mulher
ou de Deus estar bem seguro.

Quando inverto o nada tenho
o tudo que não pedi
de ser nada não desdenho
e a ser tudo não me vi.

Haja de Deus pura essência
para alimentar a raiz
que em ramos de consciência
o homem desvenda o XIS.

Bº 91.12.19


«A quem jamais me dá ordens
faço o que não me apeteço
mas sou contra se alguém manda
pois sirvo não obedeço.
»

 

Nunca me digam a mal
e a bem não se me diga
quanto devo pôr de sal
qual o refrão da cantiga.

Quando canto é porque canto
não depende da guitarra
nem do mando nem do pranto
nem de chicote ou amarra.

Já nasci com este fado
de que não posso fugir
obedecer não me é dado
mas livre sou por servir.

Bº 91.12.19


«A seus muito atentos netos
velha dizia uma lesma
quando estas águas baixarem
vai ficar tudo na mesma.
»

 

No areal do Restelo
chamou-se ao mar a nação
ia alto o Sete-Estrelo
e um velho disse que não.

Havia um monstro no mar
e para além dele só dragões
pôs-se um povo a semear
nasceram novas nações.

Por mais que baixem as águas
sempre a lesma está contrita
sua vida é carpir mágoas
nas cheias não acredita.

Bº 91.12.19


«Bem bom que o povo se afaste
dos defeitos que me sente
fico assim eu próprio livre
de encantos de prender gente.
»

 

Por mais sereia que não
queiras ser do nosso canto
a pomba vela a canção
e a rosa tece o encanto.

Por Isabel e Dinis
Ondulam novos pinhais
o sábio diz que não diz
sirenes dizem de mais.

Já não depende de ti
mesmo que o queiras calar
o império de ser aqui
o quinto para revelar.

Bº 91.12.19


«Como durmo sossegado
sabendo que por mim vela
uma coisa que sonhando
vivo me tem dentro dela.
»

 

Este mundo inteiro e vário
cabe todo e a preceito
neste tão grande aquário
que é de Deus o próprio peito.

Mas estes peixes que somos
agitam de mais o fundo
e em todo o vidro nós pomos
o lodo que o torna imundo.

Por isso nos fica o baço
de janela exposta ao frio
num sossego de regaço
durmo mas já me arrepio.

Bº 91.12.19


«Como é que será entrar
no céu em dia que espero
sem que deixe de pecar
na terra a que tanto quero.
»

 

Esta vida é um arremedo
doutro menos mas maior.
Talvez que o céu seja enredo
e o que dói não seja dor.

Dois lados e uma medida
numa estrada de regresso
onde julgamos que é vida
o que é morte do avesso.

Talvez que aqui seja o céu
(ou não exista sequer)
se existe não se escondeu
é nosso olhar que o não quer.

Bº 91.12.20


«Como outrora à Virgem Mãe
Deus fecundou Portugal
seus filhos todos os homens
num céu de vida real.
»

 

Face onde o mar se detém
útero da ideia nova
madrasta de quem a tem
cruz de viver como prova.

Naus de haver de D. Dinis
d’Isabel rosa em Janeiro
sangue de sonho de Avis
sacrificado cordeiro.

Pobre Pátria de ser tudo
e nada reter de seu
oiro canela veludo
quanto teve logo deu.

Bº 91.12.20


«Como vou eu orgulhar-me
do que faço ou que não faço
se os destinos pegam homem
como a gato por cachaço.
»

 

Meu destino que não sei
e só aos poucos desvendo
é de mim próprio ser rei
sem trono neste momento.

Mando a corte que não há
julgar da minha grandeza
e o bobo diz-me que já
se acabou a realeza.

Subitamente me orgulho
e logo germina o grelo
de ser feijão sem gorgulho
sem agravo nem apelo.

Bº 91.12.20


«Cordeirinho cordeirinho
é o teu rumo na vida
por amor cumprir inteiro
o que a razão te decida.
»

 

Como cordeiro não quero
ir mas eis que sempre vou
inteiro. Da vida espero
o rumo com que me dou.

Minha razão vai de mal
a pior se Deus quiser
quando decide que é tal
é o contrário que quer.

Severa diz-me que a vida
se vive com atenção
a vida então que decida
acenar-me com a mão.

Bº 91.12.20


«Da matéria mais que densa
é que é divertido ser
ali se nada acontece
tudo pode acontecer.
»

 

Se eu de coragem me enchesse
voava em anjo bem fundo
no mais denso que eu soubesse
de dimensão outra do mundo.

Asir asir nessa queda
mesmo que fosse fatal
deslizante como seda
cortante como metal.

No mais denso chumbo denso
novo mundo novos céus
animava do imenso
pecado maior de Deus.

Bº 91.12.20


«Dará Portugal ao mundo
em céu de amor e de espanto
seu Império do Divino
Divino Espírito Santo.
»

 

Fez um mundo que sonhou
logo se pôs a dormir
não sonha quanto passou
sonha só o que há de vir.

Despido dos ouropéis
do sonho nunca despido
dedos rudes sem anéis
olhos de ver o escondido.

E uma rosa que é botão
uma pomba toda em luz
vermelho e oiro o pendão
e um menino que seduz

Bº 91.12.21


«De força a vida te muna
para um humilde assumir
de alegria trina e una
de ser, saber e servir.
»

 

SER é no peito plantar
humilde trevo da sorte
abrir o peito para dar
às trevas com luz a morte.

SABER é ter a visão
que antecede o pensamento
com os pés firmes no chão
e os olhos no firmamento.

SERVIR é ter a alegria
de mais dar que receber
construir a utopia
e nunca ficar para a ver.

Bº 91.12.21


«Deixa de entufar o peito
quando fazes tuas rondas
talvez teu cérebro seja
só um bom detector de ondas.
»

 

Às vezes entufo o peito
se me sai bem um recado
de versos feitos com jeito
que retoco deste lado.

Quem mos manda sei lá eu
(quando muito desconfio)
se o poema aconteceu
é que os atei com um fio.

Na cabeça foi um eco
que julguei a minha voz
e o orgulho com que peco
é de pôr-lhe mais uns pós.

Bº 91.12.21


«Deixa desfilar o mundo
quieto fica distante
não estar interessado
é que é o interessante.
»

 

Está no mundo como quem
de visita o aprecia
quando tudo corre bem
(se corre mal denuncia).

Quieto pensa quem tem
sobre o mundo algum poder
vigia-o tal qual a mãe
que o filho quer proteger

Saibam os deuses melhor
o que ao mundo há-de caber
só por nós sabem a dor
e é por nós que hão-de aprender.

Bº 91.12.21


«De não ter juízo algum
já tirei dois benefícios
não fazer economias
nem meter-me em sacrifícios.
»

 

Voam as aves do céu
sem lucro nem prejuízo
o homem esse aprendeu
quanto é triste ter juízo.

Sisudo de ser actor
o seu pecado é perder
a deixa que tem de opor
pró enredo perceber.

Não pega a vida pelas pontas
e os dias são-lhe limões
azedos ao fazer contas
e a debitar ilusões.

Bº 91.12.21


«Descansa quanto aos humildes
Deus consigo sempre os teve
te inquieta pelos grandes
que o diabo não os leve.
»

 

Eu digo muito amiúde
«possa o diabo levá-los»
queimar neles quanto é rude
que depois é só lavá-los.

Espero bem que não encolham
e não nos escapem da vista
se mascarrados ficarem
pode ser que deixem pista.

Bom seria que o diabo
aos tais grandes só quisesse
atar-lhes latas ao rabo
para que o barulho os perdesse.

Bº 91.12.21


«De sermos tudo o que somos
quanta gente aí se acanha
mas se fizemos Brasil
foi por ciência e por manha.
»

 

A coragem foi tamanha
que nos fez perder o tino
depois um pouco de manha
e uma ajuda do divino.

Os dragões do fim do mar
fugiam a bom fugir
quem nos faz envergonhar
só viu dragões a fingir.

O pé-descalço acertou
novos rumos na ciência
o Aristóteles negou
e o saber fez-se experiência.

Bº 91.12.21


«Deus manda em realidades
feitas de coisa nenhuma
como o vento que fabrica
arquitecturas de espuma
»

 

Qual é a intenção do vento
no cabelo da mulher
ou quando esculpe a contento
montanhas por onde quer?

Quem sabe de Deus o mando
se manda ou se é criador
qual o posto de comando
ou se há comando maior?

Na hierarquia do nada
tudo pode acontecer:
Deus ser o fim da jornada
ou um novo amanhecer.

Bº 91.12.22


«Divino Espírito Santo
senhor do imprevisível
me toma pois da verdade
só quero o que for incrível.
»

 

Toda a verdade-razão
não me aquenta ou arrefenta.
No ora sim ora não
a linha não aguenta

a costura fica torta
sai o mestre envergonhado...
Minha verdade comporta
o mundo sempre mudado!

Do reino do imprevisível
filho sou e seu cultor
do palpável do visível
outro que cuide melhor.

Bº 91.12.22


«Dizendo que é só amor
fazes Deus menor que Deus
cercas o ilimitado
dos limites que são teus.
»

 

Talvez o amor seja aquilo
que ao mundo mais falta faz
e o homem ao repeti-lo
trace o Deus de que é capaz.

Há um Deus para cada um
à nossa inteira medida
que é limitado e comum
à fraqueza em nós contida

Se de dar for o fervor
de sem ciúme o amante
limitá-lo no amor
é já um passo gigante.

Bº 91.12.23


«Do que é certo desconfia
do duvidar te enamora
é bom não saber de Deus
quem de dentro a Deus adora.
»

 

Se só ao que dentro mora
como Deus é que dás conta
exclusivista deixas fora
outros deuses de igual monta

tal como o teu necessários
pessoais e bem amados
ciosos fracos e vários
e por comuns limitados

a morar dentro do peito
do homem que apenas crê
sem saber dum outro jeito
que é ser o peito que vê.

Bº 91.12.23


«Do que é o Espírito Santo
só diga quem fique mudo
que palavra há que me leve
àquele nada que é tudo.
»

 

Não há saber nem há manha
não há canto nem encanto
nem palavra que contenha
o que é o Espírito Santo.

Em silêncio diz o olhar
se o coração é feliz
se dizer for ensinar
nenhuma palavra diz.

Aprende quem entregar
o seu peito a Deus que o lavra
dizer do tudo é calar
porque é limite a palavra.

Bº 91.12.23


«Do que vos dou bem duvido
de que seja a conta certa
se faltar é só dizer
se sobrar é mesmo oferta.
»

 

Tomem de mim o que sou
sem vergonha ora ora!
de resto se der não dou
que é como quem deita fora.

Quando damos obrigado
fica o outro coisa feia!
Como quem compra o roubado
ou vende fazenda alheia.

Quando me pedem não dou
e não dou em data certa
gosto de dar quando vou
eu embrulhado de oferta.

Bº 91.12.23


«É ciência subir os Himalaias
e criar matemática sem fim
mas é cultura vê-la poesia
e ter os Himalaias dentro em mim.
»

 

Há Himalaias de medo
para subir dentro do peito
que aos de fora de arremedo
é mais fácil dar um jeito.

Haja na alma um dilema
logo a ciência se cala
os deuses só em poema
formulam a nossa fala.

Eternas neves sem fim
passos meus de me perderem
não são meus cantam em mim
os cantos que os deuses querem.

Bº 91.12.23


«Em mim tenho o mundo inteiro
e mais que tudo as estrelas
é procurá-las no céu
o que me impede de vê-las..
»

 

Quanto em mim do mundo fale
no peito nunca me basta
não há mordaça que cale
dizer que a hora é nefasta.

De quanto é lindo no mundo
não me canso de louvar
de ser bisturi do imundo
o fio não me hão-de embotar.

Nunca a procura me cansa
espreito por dentro e por fora
à míngua eu não deixo a esperança
a alma é que às vezes chora.

Bº 91.12.23


«E não me chamem de mestre
sou apenas aprendiz
daquilo que me é o mundo
e do que sendo me diz..
»

 

O livro do mundo foi
quanto é para quem o lê
pró rato é o que rói
pró sábio tudo o que vê.

A experiência é mais certeira
que a vida espreitar por fresta
tinha Pacheco Pereira
a natura como mestra.

Desde que aduba a raiz
até que o esconde a mortalha
todo o mestre é aprendiz
da própria obra que talha.

Bº 91.12.23


«É não querer cativar
o cativeiro em que estou
como é o querer não ser
o ser eu o ser que sou.
»

 

Nesta gaiola doirada
faço das grades a harpa
canto a canção adiada
espero a palavra que é farpa.

Que eu não penso apenas formo
da vida a minha ilusão
em ter-me não me conformo
para me ser não há razão.

Cativou-me o chão que piso
entre perfumes e cor
deu-me dor o dente siso
faz-me o siso pecador.

Bº 91.12.23


«É o mundo que nos coube
perpétua ronda de amor
do criado ao incriado
por sua vez criador.
»

 

Prolongado ou num lampejo
quando me cai o pensar
na cabeça e pronto o vejo
será só imaginar?

Ou será que crio em luz
como um louco que delira
para este que é contraluz
um mundo todo mentira?

Quando cria o artesão?
quando sonha o que fazer
ou quando lhe sai da mão
a arte que vai vender?

Bº 91.12.23


«É só bem dentro de nós
que o projecto se anuncia
se retoma se reforma
e se solta à luz do dia.
»

 

Há um campo de batalha
bem dentro de toda a gente
cala o clarim a mortalha
cessa a guerra de repente

Feita que foi esta guerra
com honra de cavaleiro
o que é morte volta à terra
o que é luz volta ao luzeiro

E em cada chispa que fica
na memória a reluzir
a vida se justifica
para recordar o porvir.

Bº 91.12.23


«É um grande homem somente
quem aos outros firme e terno
o tempo que tem limite
substitui por eterno.
»

 

Abre ao mundo o coração
futuro feito saudade
não esperes se a ti te dão
dá aos outros a verdade.

Não esperes que nesta vida
alguém te ensine a viver
se aprenderes sê a medida
mas duvida dela ser.

Que é bonito ter saber
mas belo é ter coração
de nada serve aprender
se o aprendiz não for lição.

Bº 91.12.23


«Eu nada sou é tudo quanto digo
um sonho apenas do senhor do mundo
me perco mesmo quando me consigo
e só me salvo se em não ser me afundo.
»

 

Sonha do mundo o Senhor
mas pode ter pesadelos
faça-se o homem pior
pegue a morte pelos cabelos.

Pode bem ser que blasfeme
mas só há pecado humano
quando o homem sabe e teme
do divino haver um plano.

Mergulhe no mais profundo
da morte até à raiz
que o plano vai ao fundo
mesmo sendo Deus que o quis.

Bº 91.12.23


«Eu não quero ter poder
mas apenas liberdade
de falar aos do poder
do que entenda ser verdade.
»

 

Neste tempo de apagar
toda a luz que vem de dentro
todo o mando é irregular
que em tudo o desmando é centro.

Assim muito é o poder
de homem de bem que é ouvido
malgrado possa não ser
o seu conselho seguido.

A palavra só produz
sentido se houver quem oiça
por pouca que seja a luz
sempre se vê qualquer coisa.

Bº 91.12.26


«E venha filosofia
teologia que farte
o que se pense de Deus
é só de Deus uma parte.
»

 

Dizer de Deus é mentir
mesmo que verdade seja
diz o crente do sentir
que a outro igual não bafeja.

Diz quem não crê em cantiga
e o padre por sua lavra
mas não se pense nem diga
o que não cabe em palavra.

Prove o acto quanto possa
que nenhum gesto é banal
e de Deus a parte nossa
seja a ânsia do total.

Bº 91.12.26


«Felizmente vou passando
a vida com alegria
não me dá sede o currículo
nem fome a filosofia.
»

 

Sempre que algo corre mal
ponho mais óleo no eixo
se é ensosso ponho sal
do acaso não me queixo.

De tristeza e alegria
nunca soube aquilatar
malgrado a filosofia
dum pouco de deixa-andar.

Optimista quanto baste
ponho sempre na balança
dois pesos para contraste
de contrapeso confiança.

Bº 91.12.26


«Figura de proa da barca Destino
sem medo do mar ao longe fulgura
ai de quem fraco lhe fique encantado
e a vendo em triunfo a julgue segura.
»

 

Nos olhos pinto paisagens
com quanto azul sou capaz
balanceio entre as margens
uma beije outra lilás.

Por ser vela e cavername
o meu destino é ser barca
dou-me nome para que chame
a lua que à proa é marca.

Em águas me ascendo vivo
e por Vénus sou manhã
de indecisões sou cativo
príncipe sou e fui rã.

Bº 91.12.27


«Fugazes talvez no tempo
nos seja eterna a essência
embora não existindo
nos exista a existência.
»

 

Vou-me existindo por ver
as marcas dos pés no chão
os dias de febre a arder
e as noites que a febre dão.

Não exige a minha crença
custódia vela ou altar
por bastar-me a só presença
de me ser imaginar.

Se existisse e não soubesse
minha existência era vã
é só porque o sol me aquece
que me embriaga a manhã.

Bº 91.12.28


«Fulano que bem conheço
é pior do que lacrau
mas talvez se eu for melhor
se torne ele menos mau.
»

 

Quantas vezes passo ufano
porque finjo ou porque fujo?
chamo lacrau ao fulano
que faz por mim quanto é sujo.

Se eu for melhor não reparo
no olho que digo torto
dói-me a ferida enquanto a saro
temo a morte quando há morto.

O rosto com que te dás
pode a muitos parecer vil
atira a pedra e verás
nas águas teu rosto em mil.

Bº 91.12.28


«Gosto de quando o dizes
é autobiografia
o teu gosto de gostar
do que supões que eu seria.
»

 

Faz-se um boneco de palha
dá-lhe o fogo e é disperso
cuidado com a medalha
mal cunhada no reverso.

Gostares de mim é mau gosto
ou não é se eu espelho for
onde gostas do teu rosto
e no meu vês o melhor.

Gosto de ti quando gostas
de quem mais gosta de mim
são imagens sobrepostas
que projectamos sem fim.

Bº 91.12.28


«Jamais perdi um amigo
só a morte mo levou
e vivo o deu ao eterno
e vivo a mim o deixou.
»

 

No amar o riso é alfombra
e o acordar é mortal
só a morte porque é sombra
leva a sombra sua igual.

Que a morte não leva a vida
leva a sombra de quem foi
imagem enaltecida
no riso que agora dói.

Águas num rio a secar
ai! memória só o leito!
Toda a morte é um vagar
a escorrer frio no peito.

Bº 91.12.28


«Já sei que na matemática
sou mais ou menos risível
mas por favor qual a fórmula
do que for imprevisível.
»

 

Neste fado que me deram
de que me serve a ciência?
dois anjos me dilaceram
num combate sem clemência.

Com toda a geometria
euclidiana ou que tal
não há plano nem esquadria
não há cura pró meu mal.

No combate imprevisível
que não supõe rendição
nenhuma fórmula é crível
só a espada guia a mão.

Bº 91.12.28


«Já tudo tenho tentado
e vou tentar mais que tudo
para quando a morte venha
não deixar nem um escudo.
»

 

O dinheiro apenas faz
quem o tem perder o sono
e aos poucos é capataz
da vida do próprio dono.

Fosse apenas instrumento
a passar de mão em mão
e não se via o espavento
nem a boca sem ter pão.

Quem tem o dinheiro o tem
não é livre quem escraviza
volta o corpo à Terra-Mãe
nem falta faz a camisa.

Bº 91.12.28


«Lembrei-me agora de um título
que pois raro o céu me assuma
ser também honoris causa
de coisa alguma.
»

 

Incenso nuvens e espuma
de quanto penso sobeja
seguro de coisa alguma
eu titulado me veja.

Titula quanto me penses
do avesso ou do direito
se me amarras logo vences
mas vê se o nó está bem feito

Não vá o vento que sou
desprender-me das amarras
que o fado com que me dou
não precisa de guitarras.

Bº 91.12.29


«Mais longe está se houve início
mais perto se o tempo finda
e a rosa que em ti abriu
é em mim botão ainda.
»

 

Teus próprios dedos fórceps
forcem o parto de seres
entre velas entre crepes
a morte de te nasceres.

Sê presente a cada hausto
liberto vai confiante
busca a morada em que o fausto
é o eterno irradiante.

E não esqueças que és botão
por mais que em pétalas vás
dizer da rosa pelo chão
que de botão nunca mais.

Bº 91.12.29


«Mais que a teu Deus sê fiel
ao que sejas de Fé
talvez o Deus que te crias
oculte o Deus que Deus é.
»

 

Sabe que o nome das coisas
é o limite que impões
aos contornos onde poisas
o teu placard de ilusões.

Sabe que o Deus que anuncias
reverso do teu pecado
limitado como o crias
não vale um tostão furado.

Nenhum nome manifesto
de Deus virtudes trará
deixa que fale no gesto
toda a fé que o gesto dá.

Bº 91.12.29


«Mais que tudo quero ter
pé bem firme em leve dança
com todo o saber de adulto
todo o brincar de criança.
»

 

Nascem velhas as crianças
que adultas mais velhas são
que quem manda quere-as mansas
sempre a bem da produção.

Eu sou filho da criança
que o meu olhar acendeu
fraqueja-me o pé na dança
a esperança é que não morreu.

Pobres crianças de agora
que nem velhos vão parir
pombas negras traz a hora
horas negras estão para vir.

Bº 91.12.29


«Manda Confúcio que eu seja
diligente e ritual
é porém de Lao-Tsu
não agir o principal.
»

 

Nos quatro cantos do mundo
por quatro portas o vento
dá do saber mais profundo
a quem o quer de alimento.

O sábio come à medida
da fome que o saber dá
escuta a mestra que é a vida
cala a morte que em si há.

Do agir e não agir
há sempre filosofia
mas é sábio quem cumprir
o Deus que em si se anuncia.

Bº 91.12.29


«Muito acima da razão
o mundo coeso e vário
só amor descobre o uno
no par que em si é contrário.
»

 

Toda a mulher é pecado
e o homem seu pecador
calar não afasta o fado
cantar não evita a dor.

Tudo o que é par se desdobra
em opostos desiguais
quando a cauda morde a cobre
dos opostos faz iguais.

Una-se o tudo e o nada
com quanto se possa em rigor
que a razão em derrocada
perderá o pensador.

Bº 91.12.21


«Nada fiz a contragosto
tudo foi um prazer meu
e nada pedi à vida
do que a vida tanto deu.
»

 

Nesta escola que é a vida
quem ama aprende por gosto
aquilo que o habilita
no desempenho do posto.

Se não aprende a lição
logo a mestra contradiz
com um simples safanão
ou corta o mal pela raiz.

Estar atento ou lamentar
são dois pólos da questão
não te deixes enredar
nem guies fora de mão.

Bº 91.12.30


«Nada quero de altruísmos
nem dos gestos que cativam
bem os outros ajudamos
quando deixamos que vivam.
»

 

Com teus actos contagia
quem perto de ti passar
persiste sempre anuncia
que há outras formas de estar.

Não te julgues mais astuto
nem ser maior teu saber
não tomes como atributo
o que outro deve fazer.

Não digas o que é melhor
só se Deus fosses sabias
abre-te aos outros em flor
eles colhem se tu colhias.

Bº 91.12.30


«Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e sonho mais que sonhava.
»

 

Fica o rosto um pergaminho
cai o tempo como a neve
faz a cabeça de arminho
e o gesto já não é leve.

Se o olhar fica parado
perdeu-se no tempo a vida
mas se é vivo é que o passado
fez-se lição aprendida.

Não é velho quem um dia
não quis mais dias iguais
e sempre à vida pedia
de saber um pouco mais.

Bº 91.12.30


«Não digas bom o prazer
nem chames ruim à dor
toma calmo teu assento
de tranquilo espectador.
»

 

Não cindas a tua vida
ou vais-lhe perder a chave
nem tomes só por medida
da vida quanto te cabe.

Não chores a tua dor
nem enalteças o riso
dá-te à vida com amor
sê presente onde és preciso.

E cada papel que tenhas
neste enredo para cumprir
cumpre sorrindo sem manhas
e olha para ti a sorrir.

Bº 91.12.30


«Não há nada no presente
que eu não louve
embora venham saudades
de futuro que não houve.
»

 

Presente é só o que dá
a sensação de estar perto
seguro o passado está
mas o futuro é incerto

A vida louva não temas
constrói hoje o que há-de vir
no ai que remas-não-remas
põe-se-te a vida a fugir

Nada deixes por fazer
se não podes deixa à mão
de quem igual possa ter
para fazer disposição.

Bº 91.12.31


«Não me arrependo de nada
do que fiz até agora
mas se o comparo ao eterno
lá vai tudo borda fora.
»

 

De remorso não sofri
se me arrependo é somente
passado ser se vivi
se vivo ser só presente

Do eterno nada sei
do que fiz não me recordo
eu à vida apenas dei
da morte meu desacordo.

Mas se a morte é acordar
do outro lado da vida
com atenção quero estar
quando se der a partida.

Bº 91.12.31


«Não peço a Deus nada alheio
com o que em mim há me vou
só lhe rogo bem humilde
me faça eu ser o que sou.
»

 

Atento me quis a vida
porém disperso me fez
digo Terra Prometida
quando ela diz português.

Irado faço um manguito
pega-me ela pelo cachaço:
«faz só o que te foi dito»
e eu ora faço ou não faço.

Disperso não sei quem sou
atento sei que me minto
se alheio me faço e dou
de outro me ser eu me sinto.

Bº 91.12.31


«Não repita coisa alguma
do futuro é o renovo
se faz anos os desfaça
e a tudo nasça de novo
»

 

Embora de pouca idade
de fazer anos deixei
quando dum século metade
eu a cumprir me encontrei

Se eu sinto que a alma é moça
e o fato tem pouco uso
vou desfazer quanto possa
da velhice quanto é escuso

Isto tudo porque faço
não repetindo estender
do tempo que é sempre escasso
sempre um novo amanhecer.

Bº 91.12.31


«Não sei que fado me prende
e me desperta cansado
porque me faz toda a noite
sonhar que estou acordado
»

 

Abrem-se névoas vicejam
cores outras noutro prado
quando as cortinas se fecham
sobre o nosso olhar cansado.

Quando o sonho é que nos guia
quanto o acordar permita
passado se faz o dia
no que é denso e nos limita.

Por isso ao estar acordado
apenas sonho estar vivo
pinto a dormir deste lado
do outro cores e motivo.

Bº 91.12.31


«Não verás em mapa algum
rumo das ilhas de amor
aguarda que a deusa queira
te mostrar o seu favor
»

 

Que a nau nos seja canoa
queira o destino que não
a ilha fica na proa
quando o vento é de feição.

Nem mapa nem portulano
cais ou rumo nos aponta
no amor se colhe engano
se o receber é que conta.

Pisa o insecto nas flores
por sustento e devoção
a deusa cede favores
aos que sustento lhe dão.

Bº 91.12.31


«Naquela Ilha dos Amores
que sonhou Camões outrora
só entra e fica liberto
quem lá viva desde agora
»

 

Todo o homem se faz ilha
vestido de solidão
julgue embora que partilha
vento praia mar e chão.

São as ondas de cambraia
lá na Ilha dos Amores
sete virgens estão na praia
frementes vestem de flores.

Por mil rios de leite e mel
das virgens veio o sinal
despiu-me a pomba o burel
fiquei nu no areal.

Bº 91.12.31


«Na tristeza dos triunfos
e na alegria das dores
és nada pelo que digas
só vales pelo que fores.
»

 

Balbuciar de novenas
de me não ver a palavra
o silêncio fere apenas
como arado que não lavra.

Se ao ser silêncio me esqueces
e na palavra me crês
só por metade me teces
e o fogo de mim não vês.

O silêncio ateia a dor
com que a palavra é paixão
valha-me quanto me for
de silêncio ou de canção.

Bº 91.12.31


«Nesta confusão navego
neste tumulto me entendo
não me importa o que sou eu
mas o que os outros vão sendo.
»

 

Estrelas no tempo se somem
’té que a maré seja enchente:
de gentes se faz o homem
pluralidade aparente

Seja dos mais o cantar
e a minha boca se cala;
muitas marés tem o mar
ondas então nem se fala

Todos os rostos um rosto:
o meu! de espelhos carente,
reflectindo quanto gosto
(ou não gosto) doutra gente.

Bº 92.01.13


«Ninguém me chame de mestre
nem ter discípulos quero
que chegue cada um por si
ao nada ser que venero.
»

 

Há um mestre em cada homem
que é por seu lado aprendiz
as partes todas se tomem
logo se tem a matriz

Mas se a matriz é somente
do saber um lado só
de mestre livre-se a gente
de ser aluno haja dó

De chegar ao Ser Total
num desejo de ser nada
é que nos falta afinal
não o mestre mas a escada.

Bº 92.01.14


«Nunca me vi sem mim próprio
companheiros vida fora
mas de ser um tão somente
que saudade me devora
»

 

Dia após dia se tem
sem descanso ou distracção
um companheiro de amen
que sempre nos dá a mão.

Por trás deste um outro está
juiz e pastor cruel
quando se pede não dá
e o que mais dá sabe a fel.

Entre os dois é que balança
neste palco o desempenho
são assim três nesta dança
mas por nenhum eu me tenho.

Lx. 92.01.14


«Nunca voltemos atrás
tudo passou se passou
livres amemos o tempo
que ainda não começou.
»

 

Há ruminantes da vida
a quem toda a digestão
é uma senda repetida
duma perdida lição.

Nunca o futuro lhes vem
sem que lhes seja passado
a pesar como que tem
sobre si um mau-olhado.

Quanto passou já não ser
do que há-de haver ser a vida
ai! quem me dera poder
dar-lhes do tempo a medida!

Lx. 92.01.14


«Ó bela cavalaria
cavalo bem arreado
para o Ser galope largo
para o Ter freio apertado.
»

 

Cinjo a espada apronto a lança
dou de esporas vou em frente
meu combate é uma dança
venha a morte que me tente.

Para TER basta eu me ter
para SER menos do que isso
as armas hão-de dizer
onde é que o sangue é preciso.

Porque encontrar-me há-de ser
abrir a ferida do lado
esvair-me até me perder
do nada ser saciado.

Bº 92.01.14


«O culto no que aparece
e nos semelha real
vive o que é nada e só é
fonte nossa e fim total.
»

 

Do não saber o saber
diz o que é bem e o que é mal
mas quanto se possa ver
é parte e nunca total

Porque o nada o que produz
do tudo é só o sinal
que imaginamos ser luz
oposto ao breu que é o mal

Mas os olhos são o peso
da medida imaginada
em que o total se tem preso
de aparências e mais nada.

Bº 92.01.14


«O mais simples alicerce
traz logo a casa traçada
se eu quiser chegar a Deus
começarei por ser nada.
»

 

Nesta maré de viver
tudo se passa afinal
em transformar sem perder
a vida no seu total.

A parte pode saber
quanto em si própria é total
mas não pode conhecer
a dimensão do real.

Pode sim imaginar
se Deus fosse o que faria
ou ser parte e afinar
pelo todo a sintonia.

Lx. 91.12.18


«O mundo é só o poema
em que Deus se transformou
Ele existe e não existe
tal a pessoa que sou.
»

 

Todo o homem que descreu
julgou ver Deus na agonia
dessa morte que lhe deu
quando era ele que morria.

O pinto morre na gema
quando lhe falta o calor
cala a garganta o poema
na palavra sem amor.

No olvido de quem chora
morre o homem morre o luto
no homem que Deus ignora
morre Deus em rosto enxuto.

Bº 91.12.17


«Onde irei eu repousar
em que não pense nem sinta
em que me largue a suspeita
de que a Verdade me minta.
»

 

Da verdade uma pitada
lançara ao ar e a mentira
de verdade disfarçada
meia-cidade iludira.

Outra pitada lançada
a outra meia se atira
e faz da verdade dada
a sua própria mentira.

É por isso que a verdade
anda de todo arredia
não quer morar na cidade
e o campo dá-lhe agonia.

Bº 91.12.12


«O primeiro anjo pecou
pois não viu que liberdade
é dada só para a busca
não conquista da verdade.
»

 

Todo o anjo é pecador
e o homem sua paixão
embora não sinta a dor
chora a nossa condição.

Quando o anjo da verdade
nos dá a lente de a ver
cessa a nossa liberdade
e redobra o padecer.

Mas quando o clarim soar
pró descanso do herói
mil anjos hão de cuidar
da sombra que já não dói.

Bº 91.12.18


«O que ardeu era passado
e lá reviveu morrendo
ao fogo se deu inteiro
e ao novo gerou ardendo.
»

 

No tempo feito balança
o fiel comprometido
com chama desenha a esperança
e com cinza o decorrido.

Toda a marca do passado
que não arde mas é chama
traz o futuro traçado
e assim presente se chama.

O presente para quem dorme
é só futuro passado
que o tempo só é conforme
a quem o sonha acordado.

Bº 91.12.16


«O que chamamos verdade
é coerência inventada
por um saber que imagina
que sabe e não sabe nada.
»

 

Todos querem da verdade
uma só afirmação
mas mais sobra o feijão frade
que homens de sim ou não.

Não me lembra todavia
quem à verdade se desse
recordo quem a brandia
para o que desse e viesse.

A verdade é repartir
num jeito de comunhão
e não chicote de ferir
por mais que seja razão.

Bº 91.12.17


«O que faço só importa
se traduz o que vou sendo
se assim não for tudo é nada
só finjo que estou fazendo.
»

 

No mundo do faz-de-conta
de que este tempo é capaz
à vida perde-se a ponta
e é nada quanto se faz.

O que vive na certeza
que viver é ser cordato
dá de si a natureza
dá-se inteiro em cada acto.

Se quando anda ilumina
e ao parar faz escurecer
fez-se candeia divina
com que os outros podem ver.

Bº 91.12.18


«Oxalá houvesse céu
e viesse sem demoras
em que eu ouvisse bem vivo
eternidade dar horas.
»

 

Não posso afirmar de Deus
existência ou intenção
negá-Lo pecados meus
dizê-Lo é presunção.

Só o eterno me convém
mas não sei se a morte o traz
se céu houver muito bem
se não houver tanto faz.

Se a eternidade não tem
os limites que aqui há
é mais céu do que me vem
num suspiro de oxalá.

Bº 91.12.18


«Oxalá por saber tanto
me apeteça ficar mudo
só então vendo sem ver
aquele nada que é tudo.
»

 

Quando a cauda mordo em grito
transparente sou um ovo
ao ser total não me agito
por ser mortal me comovo.

O silêncio que em mim mora
faz da palavra visão
falar é mandar embora
a sua aproximação.

O canto que tange a lira
com que a minh’alma me tem
é dum anjo que delira
a sorte de ser ninguém.

Bº 91.12.19


«Para não ter de ler textos
e o descanso estar seguro
tomei eu esta carreira
de historiar o futuro.
»

 

Gostava ter do futuro
a simples noção de ser
ontem o início seguro
do amanhã que vier.

Tudo inventado e sem peias
com o sal da utopia
com todo o calor das veias
com quanto sol traga o dia

Sendo o futuro carreira
do eterno presente a haver
onde o passado à lareira
é romance de entreter.

Lx. 92.01.15


«Para tantos existir
é uma queixa pegada
terem de ganhar a vida
quando afinal lhes foi dada.
»

 

Se espanta males quem canta
e quem chora se alivia
canta não chores e espanta
planta notas de alegria

porque a alegria é o sal
da vida por vezes dura
que salgada sabe mal
e insossa nunca se apura

Por outorga vem a vida
em ondas bater no peito
prá ganhar não há medida
perdê-la não tem direito.

Bº 92.01.15


«Pense pouco porque assim
com a cabeça vazia
receberá pensamento
que alhures se albergaria.
»

 

Para que quero eu pensamentos
ser pensamento é que eu queria
a taça dos mil tormentos
só enche estando vazia.

O tic tac é a queixa
do silêncio que se tem
deixa que no peito a deixa
se aninhe como convém.

Um elmo de mil antenas
põe acima dos teus olhos
deixa que venham serenas
ideias dum mar sem escolhos.

Bº 92.01.15


«Podes bem viver contente
se digeriste o passado
e ordenas todo o presente
para um futuro inventado.
»

 

O passado é de esquecer
o futuro vem da esperança
o presente exige ter
um leme de confiança.

O desejo se embaraça
quando o sargaço retém
o leme com que se traça
o rumo que nos convém.

Deixa o passado: é sargaço!
traça o rumo faz-te ao mar
do presente alarga o laço
que o futuro é navegar.

Bº 92.01.15


«POEMA EM METRO»

«Saldanha Campo Pequeno
Campo Pequeno Saldanha
muita gente pouca vida
pouco amor e muita manha
»

 

RÉU-VERSO DO NATAL

Um ano tem muitos dias
mas só um é de Natal
sorrisos e cortesias:
«ora essa!» «não faz mal»

Dizemos nas outras datas:
«olhe lá, ó sua besta,
não vê onde põe as patas?
não tem dois olhos na testa?!
»

Só boca de gente boa
é que traz um «Deus me valha!»
mas se houver fome que doa,
seja lá com quem trabalha.


«Por aqui passou Camões
e o vário que nele havia
o que fora ainda o sendo
pronto a ser o que seria.»

 

Todo o poeta é um prisma
onde a dor se decompõe
o próprio Deus é que o crisma
e ele a palavra supõe.

De viver o fingimento
da humanidade concreta
se loas tece ao momento
do não-momento é profeta.

Quando passa num lugar
logo o lugar se enriquece
mas se é Camões a passar
esse passar permanece.

Bº 92.01.18


«Por incapaz de fazer
aceito que me fizeram
fazer eu o que foi feito
dos deuses que assim quiseram.
»

 

Os frutos da minha acção
não são meus mas o efeito
do ora sim ora não
instalado no meu peito.

Se sou usado ou useiro
se são os deuses que querem
ou de mim sou «bonecreiro»
pode ser o que disserem...

O que sei é que incapaz
de desvendar porque é feito
o quanto por mim se faz
ao fazê-lo dou o jeito.

Bº 92.01.18


«Por mais humilde que sejas
és aristocrata e nobre
não há ninguém que te iguale
em tudo que o céu te cobre.
»

 

Da «creação» coroado
pelos desígnios de Deus
o teu ceptro vertebrado
não te deixa seres plebeu.

Entre a cabeça e os quadris
ergue-te vivo um bastão
erguido foi que te quis
a natureza do chão.

Talvez o tempo nos vá
de cinzas tecer um véu
mas nobre ainda é quem dá
pelo brilho que vem do céu.

Bº 92.01.19


«Por muito que tu possuas
não gabes os feitos teus
se Deus lhe faltasse o nada
seria menos que Deus.
»

 

Tempo medido possuis
num cofre de grés guardado
és sombra de quanto intuis
no denso anjo ancorado.

Talvez que quanto te coube
de sangue e de carne a arder
seja dócil quando ouve
o que lhe fazes dizer.

Mas quando te caiba estar
no silêncio que antecede
cada novo despertar
é o nada que te mede.

Bº 92.01.22


«Portugal o quero em si
dessas Europas bem solto
e mais que desenvolvido
o desejo eu desenvolto.
»

 

Portugal de aprendiz?!
cangalheiro no velório
do sonho nada se diz
no reino do acessório.

A carne é pobre mendiga
pelos corredores da Europa
todo o poder se afadiga
em nos vestir outra roupa.

A pomba espera o momento
de se elevar do cinéreo
as cinzas leva-as o vento
na hora do QUINTO IMPÉRIO.

Bº 92.01.22


«Posso dizer-lhes de Deus
quanto queiram mas calado
aprovarão se há silêncio
mas se me escutam cuidado.
»

 

De pouco vale um conceito
se o ouvido se faz mouco
quando não vibra no peito
o muito dito é bem pouco.

Confrontar-se com a voz
mais do que a nossa apurada
mil ecos produz em nós
se a palavra é desejada.

Quem escuta o sábio e não tem
de escutá-lo a qualidade
só escuta quanto convém
à sua própria verdade.

Bº 92.0122


«Precisar só do preciso
fazer eu do longe perto
e não mandar em ninguém
me compõem céu aberto.
»

 

Quanto se meça do ter
pode ter excesso ou diferença
depende de quem se quer
favorecer na pertença.

Quem mais se tem é que sabe
que quem mais tem menos é
o fruto maior que cabe
a quem for livre é a fé.

Ó tecidas ilusões
de que é o ter que enche o peito
da liberdade os grilhões
a posse traz o efeito.

Bº 92.01.22


«Perguntem o que quiserem
responderei o que saiba
e a tudo o que depois venha
darei o sim que em mim caiba.
»

 

Quem me pergunta não espere
resposta só para agradar
respondo como souber
se é justo não vou calar.

Responder não custa nada
mas nem sempre a quem nos vem
de pergunta engatilhada
a resposta sabe bem...

De bisturi sempre a jeito
minha rudeza é conforme
ao desejo meu defeito
de moldar o que é informe.

Lx. 92.01.23


«Primeiro há um pensamento
que pensa sem pensador
e logo pensa quem pensa
que pensa tudo ao redor.
»

 

De quem pensa limitado
à prisão da própria lavra
por mais que puxe o arado
a relha sempre se encrava.

O pensamento é seara
nosso pensar é a espiga
se a haste não é avara
bem a seiva o grão irriga.

Nasce a seara do grão
que é pela seara gerado
o homem pensa a razão
de quem o pensa calado.

Lx. 92.02.04


«Quando caminhava o santo
andava como esquecido
pois talvez seja morrer
não lembrar o ter vivido.
»

 

Morre o santo em devaneio
sem um toque de rebate
toda a morte é do alheio
sobre nós nunca se abate.

Mil almas eu vi partir
e a morte não me assustou
meu hoje é sempre o porvir
onde vou sendo o que sou.

De eternidade vesti
o sonho de vos dizer
nunca digais que morri
fui noutro lado viver.

Bº 92.01.31


«Quando morre o que viveu
nada se desequilibra
força emana cá e lá
Deus a si próprio transmigra.
»

 

Toda a nuvem se faz mar
toda a água se faz fonte
a morte é só acordar
do outro lado da ponte.

Deste lado é uma corrida
do outro talvez anseio
de ensaiar em nova vida
o que na gasta não veio.

Assim transmigra em corrente
tal qual o ciclo da água
de Deus a maré de gente
da gente a noite e a mágoa.

Bº 92.01.31


«Quando não saiba somar
deixe correr o poeta
mas não cante sonho algum
guarde a verdade secreta.
»

 

Se temos dentro do peito
um búzio terno que canta
sem cuidar sem preconceito

temos o canto que espanta
agruras que tem a vida
temos o canto que encanta

a nossa senda florida
e a espinhos de dor negamos
no nosso peito guarida

porque a canção que cantamos
é temperada na esperança
e no amor com que nos damos.

Bº 92.01.29


«Quanto ao que seja energia
venha a física e me explique
o que há entre grão e grão
que minha Pomba debique.
»

 

De espuma vestir um manto
vem o mar à rocha dura
que por dentro é luz e espanto
em condenada lonjura

O vazio não existe
que tudo é espaço afinal
por isso o nada consiste
em ver inverso o total

Entre um grão e outro grão
há diferença de energia
serve o grão e o espaço não
à fome do dia a dia.

Bº 92.02.04


«Quanto a ter o melhor é o não ter
quanto a ser o melhor é o não ser
o que não quer a todos porém dando
e tudo o que não é sendo a seu mando.
»

 

Frustra-se o sonho do ter
nos meandros do valor
ninguém tem tudo o que quer
no que tiver há melhor

Alcança sempre o que espera
quem a todos dar-se quer
mas na espera desespera
quando espera receber

Sem mandar há sempre quem
da vida receba o mando
de ordenar como convém
quanto de bem se vai dando.

Bº 92.02.04


«Que mande eu no ser actor
é coisa melhor que boa
pode porém o actor
tomar conta da pessoa.
»

 

Pode bem ser que à medida
que o actor saiba que há rosto
que o drama nos seja a vida
e o palco nos seja o posto.

Damos «buchas» no enredo
sempre que há palmas bisamos
enquanto do actor o medo
por trás da máscara calamos.

Às vezes vamos tão bem
desempenhando o papel
que nos esquecemos de quem
nos solta e estica o cordel.

Bº 92.01.21


«Quem a si de pensador
se domina nem sente
que pensando se é que pensa
faz o que faz toda a gente.
»

 

Do que cabe a toda a gente
saibamos ter o apuro
de pensar o que se sente
e do sentir estar seguro.

Se o pensamento é uma lavra
e o fruto da sementeira
nos coube como palavra
que não dormita à lareira

saibamos na produzida
conversa de nos ligar
guardar do sábio a medida
de ver ouvir e calar.

Bº 92.01.15


«Quem me pretende me tome
que me não perturbe o sono
mas é bom ficar sabendo
que não se tornou meu dono.
»

 

Disperso me quero mar
por me dar eu sou corrente
não me deixo acorrentar
prende-me só a nascente.

Por mais que o verde da fronte
da carranca nos seduza
guarda-se a água da fonte
nos limites da infusa.

Quem me toma não me esgota
meu desejo é maré cheia
mate a sede gota a gota
quem de eu ser água me creia.

Bº 92.01.22


«Que só nasça em Portugal
quem quiser viver a vida
que sem um desejo seu
Deus como rei lhe decida.
»

 

A noite e o luto
na taça dos dias
e a nau do escorbuto
crisol de alegrias.

Tecida é a sorte
num mar de veludo
a praia é a morte
a vida o entrudo.

Vai sair a barra
uma armada nova
na vez de Bandarra
fazes tu a trova.

Bº 92.01.24


«Se à China queres dar noivo
bem enganado vais tu
ora dança com Confúncio
ora baila com Lao-tsu.
»

 

Na China que em todos há
há sempre um noivo enganado
se parte não bebe o chá
se fica rompe o noivado.

Por diligente é que vou
co’a trança que me doaram
se o mundo não se mudou
porque é que as tranças cortaram?

Por não agir vai a hera
cobrir os olhos de muros
mas no agir de quimera
além da paga há os juros.

Bº 92.01.19


«Se Deus quisesse ocupar
lugar a si mesmo igual
preenchia todo o nada
e o deixava tal e qual.
»

 

Preencha Deus o limite
(paradoxal pleonasmo)
do nada e tudo que emite
e à boca nos resta o pasmo.

Congeminando se tem
inventado Deus-fraqueza
limitado como quem
o limita a natureza.

Do ser nada logo vem
o que diz: «não pode ser»
mas ser nada é que convém
ao Deus que tudo puder.

Bº 92.01.19


«Se diria do mosteiro
que pudesse navegar
ser o Espírito de Deus
de novo por sobre o Mar.
»

 

Se diria do país
que Afonso deu em fundar
que o Templo foi a raiz
e foi Avis o altar.

Desse país se diria
que ao navegar quanto quis
por cansaço adormecia
ao murchar da flor de Lys.

Desse país ouvirão
que enquanto a rosa desflora
sete trombetas dirão
do Império chegada a hora.

Bº 92.02.05


«Se ele é tudo o que tu dizes
Ele o Nada pode ser
e se é Nada livre está
para ser o que quiser.
»

 

Quando um copo enches de água
logo o despejas do vento
assim o riso e a mágoa
o intemporal e o momento.

Até parece que é certo
mas se o parece não é
a crença da fé está perto
mas o que crê não tem fé.

Não há conceito ou saber
do nada ser racional
cheio o copo ou por encher
é indiferente ao total.

Bº 92.02.05


«Se lançaste tua rota
à constelação do ser
cuidado com o teu corpo
porta aberta para o ter.
»

 

Há uma velada medida
no contínuo tempo-espaço:
um nada-eterno é a vida
cada vida um tudo escasso.

Correm do tempo as areias
estranhas ao nosso sentido
como o sangue traz nas veias
o nosso tempo medido.

Serve o corpo de prisão
até que o tome o cansaço
e o peso que o tem no chão
seja sonho e ganhe espaço.

Bº 92.01.24


«Se não sabes o caminho
e a sorte nenhum prefere
toma então pelo mais duro
é esse o que Deus te quere.
»

 

Furava muito mais cedo
a pedra a água se fosse
em ponta como um torpedo
em força de mula um couce.

É nossa mente que tece
tudo o que é disperso e vário
mas aquilo que parece
é quase sempre o contrário.

Por mais longos os caminhos
Roma é sempre encruzilhada
por mais que firam os espinhos
há sempre alguém de jornada.

Bº 92.01.24


«Senhor dá-me que eu alcance
o lugar que mais procuro
ali começa o passado
ali se acaba o futuro.
»

 

Meu barco quebrado o mastro
deixa-me a sola que roo
tenho peso tenho lastro
penas tenho mas não voo.

Só quando ao umbral da treva
sem embaraço eu me vá
é que o que é leve me eleva
que a sombra deixo por cá.

Meus braços ao sol poente
todos abertos em cruz
de sombra serão somente
quanto não tenha de luz.

Bº 92.01.24


«Serás mais livre na vida
se vires em seus efeitos
defeitos nas qualidades
qualidades nos defeitos
»

 

Num mundo de preconceitos
crê-se certo o aparente
qualidades e defeitos
medem coisas medem gente.

Estava mais perto a verdade
por mais longe que estivesse
quando ao que tem qualidade
mais qualidade se desse.

Não te ponhas com desdém
do que julgues com defeito
qualidades pode alguém
encontrar e dar-lhe jeito.

Bº 92.01.31


«Se só o uno é que existe
serão pura fantasia
as colecções de unidades
em que a vida se varia.
»

 

De quanto a luz se projecta
do centro à periferia
o vário apenas detecta
se é de noite ou se é de dia.

Na imobilidade total
sabe o uno do que é vário
espreita dum lado o real
espreitamos nós do contrário.

Sonha o uno na visão
tida por nós deste lado
e aprende a dor de ser chão
em cada crucificado.

Bº 92.01.27


«Se te acham alguma graça
não fiques de testa alçada
mais que bom verem os outros
que só é graça emprestada.
»

 

Eis a nu de amar a trama:
quem ama virtudes borda
enquanto sonha e em quem ama
vê só defeitos se acorda.

Mil suspiros ais a esmo
fazem eco no teu peito
medem doutros em ti mesmo
toda a virtude ou defeito.

Da mortalha a cor e a hora
um homem pode escolher
mas quem no velório chora
é que não pode prever.

Bº 92.01.25


«Sê teu guia quem não possua
e mais vejas de humildade
ninguém que mande e que frua
julgues dono da verdade.
»

 

Por caminho pedregoso
atravessando o deserto
ia louco e andrajoso
um homem de passo incerto.

Sofria de sede e mágoa
mas quem seu aspecto via
negava-lhe até a água
e por perto não o queria.

Nunca um homem destes pode
ser mestre mesmo que queira
hoje mestre é quem sacode
bem recheada a carteira.

Bº 92.01.31


«Se vamos por ponto e regra
não me entendes nem te entendo
pois quadro nenhum me prende
e só sou o que vou sendo.
»

 

Ave canora só quero
a que detesta gaiola
o entendimento que espero
só por livre me consola.

Quem me julga acorrentar
saiba que só me desfruta
perde tempo a imaginar
o meu retracto ou conduta.

Efémero é o meu gesto
minha palavra ilusão
apenas à vida empresto
o que lhe nego de chão.

Bº 92.01.31


«Só com alguns estarás
enquanto forem a rodos
mas apenas no deserto
poderás estar com todos.
»

 

Quando te despes do ter
mais livre vais na jornada
tens mais tempo para te ver
mais certeza na chegada.

No caminho vês a rodos
pesadas sombras expectantes
são os espelhos dos teus modos
ilusões passos errantes.

Vais mais longe no despir
despes do ser o que é posse
és todos na rosa a florir
como se Deus é que fosse.

Bº 92.01.17


«Somos todos parecidos
mas não surgimos a esmo
ser diferente do mundo
é ser igual a si mesmo.
»

 

Hoje sofri a lição
de recusar dar o fel
na boca por minha mão
a quem para mim foi cruel.

Ainda ontem desejava
de mil golpes me pagar
mas eis que o gesto me trava
ver no outro o meu olhar.

Não foi orgulho ou bondade
que a minha raiva embotou
mas no espelho da verdade
ver ser o outro o que eu sou.

Bº 92.01.17


«Sonhei que a vida era sonho
e sonhando despertei
para entrar num outro sonho
de que jamais acordei.
»

 

Este estranho pesadelo
começou nem eu sei bem
um anjo com pouco zelo
perdeu-me em ventre de mãe.

«Ai filho, que já chegaste!»
e em choro me anunciei
cegou-me a luz de contrastes
de ar por dentro me queimei

De repetida quimera
que arqueiro retarda o dardo?
Que parto sonhado espera
o regresso que retardo?

Bº 92.01.12


«Sonho e vivo durmo e penso
e me pergunto sem fim
se imagino haver Deus
ou me imagina Ele a mim.
»

 

A pulga se justifica
porque à pala do asseio
o consumo se amplifica
agora Deus é enleio

quando o sonhamos vaidade
sonhe Deus e é pesadelo!...
Onde está a sanidade
de dizer creio sem vê-Lo?

Talvez da morte o pavor
gere por Deus o afecto
ou então é esta dor
de recusar ser insecto.

Bº 92.01.17


«Sonho por árvore aberto
de perfeita maravilha
contigo o longe é o perto
por ti o nada rebrilha
»
               A. S.

 

Cabelos são ramos meus
dedos troncos que os alinham
ergo os meus braços aos céus
mas os céus não se avizinham.

Vegetal em desespero
oculta-me o longe a serra
Sol e Lua são tempero
da seiva que roubo à terra.

Caduca folha doirada
já o Inverno bate à porta
por mais que sonhe ser nada
o Outono não me conforta.

Bº 92.01.31


«Se o louco sem juízo
faz loucuras de perder-se
conserve o juízo o louco
porque ser-se dois é ter-se.
»

 

Sendo dois sinto-me pouco
neste juízo nefasto
nenhum deles sendo louco
não me tenho nem me basto.

Nesta ilusão de existir
neste arremedo larvar
apago quanto luzir
só a noite pode dar.

Abro os olhos como quem
deixa a noite que o liberta
para ser o erro de alguém
que a alma traz encoberta.

Lx. 92.01.30


«Só pela graça de Deus
que num feito se revela
pode amar-se uma pessoa
sem se tornar dono dela.
»

 

Quando o amor é de ter
algo ou alguém limitado
aos caprichos de se ver
o nosso medo guardado

não é amar é sofrer
não é amor é pecado
é pagar e receber
o juro já combinado

não é amar é perder
é venda de condenado
grilhões de fogo a prender
o que se quer libertado.

Lx. 92.01.28


«Talvez algum dia possa
sobre os defeitos ser homem
que afirme sem mais empenos
eu me dou sem que me tomem.
»

 

Do meu agir os efeitos
bem fracos são mas que importa
todo o homem tem defeitos
que em peso de cruz transporta.

É por ser homem que tenho
este meu desejo verde
mas de servir o empenho
na rédea solta se perde.

Por livre ser não aspiro
mais do que à fímbria do vento
deixem-me o ar que respiro
e esta pedra onde me sento.

Bº 92.01.20


«Talvez chegues tu a ver
que só o nada é real
e que a partir de não ser
te construirás total.
»

 

Meia vida não existe
e entre nascer e morrer
o nosso destino consiste
em tudo ser ou não ser.

Do não ser é a partida
até chegarmos ao ser
onde começa a descida
de subir ao nada ser.

De suruma e esvaimento
passa quem passa o umbral
onde a carne é esquecimento
e é de luz a catedral.

Bº 92.01.15


«Talvez seja isto somente
o de mais perfeito ensino
ter o homem a liberdade
de se entregar ao destino.
»

 

O destino não amarra
embrulha a vida somente
tal como ao fado a guitarra
e a terra faz à semente

Fique a semente na areia
e o silêncio cale o fado
de outra trama seja a teia
eis o destino trocado

De não cumprir o destino
é cumprir o não cumprir
caminhar fazendo o pino
ter liberdade a fingir.

Bº 92.01.16


«Tem paciência de frade
quando nada suceder
e paciência nenhuma
quando surja o que fazer.
»

 

No navegar para comer
em que o feito não aquenta
o rumo certo é saber
como escapar da tormenta.

Mas se o que vamos fazer
mais que servir é agrado
feito que seja a correr
nunca se fica cansado.

Cansado fica quem tem
de atrás de grades ficar
quieto porque convém
o nosso sono guardar.

Lx. 92.01.17


«Toda a escultura que surge
a uma pedra diz não
adora em qualquer imagem
a força da criação.
»

 

Estátua de luz e de breu
que morde a mão do escultor
diz que o cinzel é o seu
e de si próprio é autor.

Mil anjos foi que juntaram
dos astros quanto sobrou
feita a massa me chamaram
e ali meu ser se aninhou.

Todo o mundo se conjura
para que me mova e respire
a rocha dá-me a estrutura
a estrela dá-me o sentir.

Lx. 92.01.16


«Todo o momento que foge
a eternidade encerra
só atingirás o céu
por cuidado passo em terra.
»

 

O medo diz-me quem sou
diz-me o Sol quanto há de céu
à eternidade me dou
abrindo fendas no breu.

Ai! não mais nauta perdido
nas vagas negras do mar!
vai-me a proa no sentido
do farol de me encontrar.

E se me foge a razão
mais o sentir me desperta
vence-se a morte no chão
o céu é só descoberta.

Bº 92.01.25


«Todo vivo num empenho
e nesse empenho me gasto
não deixar rasto no mundo
e ser o mundo meu rasto.
»

 

Quem me dera confundir
a cruz do mundo mortal
e a rosa do meu florir
na comunhão do total.

Ser o nada e tudo ser
sem vazio nem distinção
e o meu rasto se perder
por ser o que todos são.

Do homem total ciente
ser a parte em sintonia
calar a noite da mente
no parapeito do dia.

Bº 92.01.25


«Tudo na vida é comum
tudo no mundo concorre
mas sozinho é que se nasce
e só o próprio é que morre.
»

 

Exclusiva e só a presença
exige a roda da sorte
a cada um à nascença
ou na outorga da morte.

Há quem no ver é diferente
e há quem a ver renuncia
é igual para toda a gente
que o sol se mostra e é dia.

Mas o verme inteligente
fura a vida qual maçã
fecha a cortina da mente
diz que é noite e é já manhã.

Lx. 92.01.17


«Tudo o que existe na vida
em vida à morte sustenta
mas vidas outras a morte
por matar as alimenta.
»

 

Minha campa seja altar
se em me ser insecto vou
possa a memória ficar
para além do barro que sou.

Mas se for só esquecimento
quanto haja para além do pó
se à vida fui alimento
ninguém de mim tenha dó.

Ó asa que hás de voar
de minha carne nutrida
a cada flor vai lembrar
que esta morte te foi vida.

Bº 92.01.27


«Tudo o que faço na vida
é só linha de poema
que cada um ordenará
conforme for seu esquema.
»

 

Quando o poema me toca
na vida sou pirilampo
minha luz foca não foca
asa minha pede campo.

Sou anjo busco o azul
de ser demónio me ufano
vou de paul em paul
de meu veneno me dano.

Beba-me quem me quiser
até que bêbado seja
mas quanto de mim disser
é só o que de si sobeja.

Bº 92.01.27


«Tudo o que faço no mundo
sem eu o fazer é feito
baila a vida em liberdade
sobre o nada em que me deito.
»

 

Acordo e tenho um poema
na mesa de cabeceira
outro por mim deu o tema
que eu dormi a noite inteira.

Mas se eu os versos não escrevo
a noite nem vai notar
por medo é que não me atrevo
à vontade de calar

pois se calo não consigo
novo sono repousado
por isso digo o que digo
pobre escriba acocorado.

Bº 92.01.31


«Umas coisas deram certo
e muitas porém erradas
estas são as de meu feito
as outras presenteadas.
»

 

Num momento presunçoso
julgo saber o que faço
as linhas com que me coso
e o meu rumo traço a traço.

Mas quando o erro desponta
logo penso que o azar
é que puxou pela ponta
que não devia puxar.

Mas se medito sereno
sei que apenas sou canal
do meu destino pequeno
que justifica o total.

Bº 92.01.29


«Um dia esse “Encoberto” de Valência
lhe dá, a Carlos Quinto, um empurrão
e se senta no trono das Ibérias
como Rei e não-Rei Sebastião.
»

 

De Valência venturoso
virá o rei que vier
de São Brandão «O Brumoso»
não é filho de mulher

O rosto fita e não sabe
agita a cabeça e não vê
toda a Europa não cabe
no que cabe a CEE

Nove basaltos no mar
que o nada assim nos reduz
é a saudade do lar
são cinco chagas de luz.

Lx. 92.02.05


«Um dos pólos de viver
é para mim aventura
mas outro tão bem querido
o de claustros e clausura.
»

 

Às vezes julgo que estou
mas apenas de passagem
sem pertencer se me dou
nunca adiando a viagem.

Viajo dentro de mim
como se aí fosse o espaço
de estrelas postas sem fim
na senda que eu próprio traço.

E se me fecho sereno
quando sereno não estou
o meu desejo é pequeno
é estar para além do que sou.

Bº 92.01.18


«Vai por nossas linhas tortas
certa a escrita por Deus feita
segue o mundo para a esquerda
levado pela direita.
»

 

De raiva uma mão-cheia
e o diabo me gerou
foi por cantos de sereia
que o meu destino mudou.

Basta de tanto carpir
do mundo o esterco não molhem
amar a Deus é parir
os frutos que os outros colhem.

Basta desse amor de cheiro
a pairar sobre o abismo
está o mundo por inteiro
a murchar em cada ismo.

Bº 92.01.25


«VERSINHO DO ADAMASTOR

Tentei escalar o céu
ninfa amei de amor impuro
meu coração se fez pedra
por odiar o futuro.
»
                    A. S.

 

Subi ao alto da serra
meu coração era puro
brancas nuvens mar e terra
nem uma sombra do futuro.

Foi de pedra que o meu peito
se fez na sede do justo
porque ao contrário era o jeito
de quanto o feito era custo.

Fui calar na solidão
esse desgosto só meu
a noite disse que não
e um novo dia nasceu.

Bº 92.01.25


«Vida lhe é tanto de amor
e amor à vida tão forte
que a morte não lhe dá na vida
vida vê na própria morte
»

 

De quanto a faca divide
seja o amor união
que a morte é poda na vide
para que o cacho seja são.

Do mar a onda é recorte
que em espuma na areia escreve
que o merecimento da morte
é que torna a vida breve.

A vida nunca se esgota
que a morte é apenas cais
cada vida é uma gota
no imenso de outras mais.

Bº 92.01.24


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