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AS IDÉIAS ABSOLUTISTAS NO SOCIALISMO

Rudolf Rocker

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As Idéias Absolutistas no Socialismo
Rudolf Rocker

Tradução
Nicolau Bruno

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Digitalização de edições em papel

©2002 — Rudolf Rocker


 

 

ÍNDICE

Dedicatória do Editor
Nota à 2a. Edição
Prefácio - Maurício Tragenberg
Rudolf Rocker
Do absolutismo da idéia ao da ação
O ideário de Proudhon
Os ideais condicionados ao meio
As concepções autoritárias
Absolutismo, ponto de partida do socialismo autoritário
O modelo do Estado totalitário
Saint-Simon e as teorias da época
Fernando Lassalle e seu socialismo
As teorias de Marx e Bakunine
O caminho das ditaduras
Vida de Bakunine
Luisa Michel
O imperativo da hora
Sociedade e classe
A volta a Deus
Considerações sobre o imperialismo inglês
Marx e o anarquismo
Social-democracia e anarquismo
Don Quixote
O homem sem cabeça
Germinal

Orelha da 1a. edição em português


 

 

Dedicatória do Editor

 

Esta edição é dedicada a Maurício Tragtenberg, que manteve viva a tradição libertária, em tempos em que “homens sem cabeça” veneravam velhos deuses nos altares acadêmicos.

Foi o Maurício quem me apresentou R. Rocker e recomendou sua edição, cuidando pessoalmente da seleção dos capítulos a serem reeditados pela Editora Semente, em 1981, que, infelizmente, não podia arcar com os custos editorais de cola e papel para uma edição integral.

Tempos depois, me comentava que a segunda edição, além de não conter a obra integral, como a primeira, da Sagitário, ficara “mais clandestina” que aquela.

“Problemas de distribuição” — justifiquei. E era verdade.

Agora, em tempos de eBooks, posso resgatar esta dívida. Cá está a edição integral do As Idéias Absolutistas no Socialismo, distribuída para todo o mundo!

O Maurício teria adorado esta modernidade;)

Maurício Tragenberg
— (1929-1998) —

Para conhecê-lo melhor, sua trajetória e seu pensamento, visite o

Centro de Documentação Maurício Tragtenberg:
www.nobel.com.br/~cdmt/
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá.

Vale a pena.


 

 

Nota do Editor da 2a. edição
Editora Semente, 1981

A presente edição de As Idéias. Absolutistas no Socialismo, de Rudolf Rocker, não reproduz integralmente a primeira edição brasileira, publicada em 1946 pelas Edições Sagitário.

Trata-se muito mais de uma seleção, de ensaios daquela primeira edição, feita a partir de um critério de atualidade.

Assim, são aqui reproduzidos os ensaios mais pertinentes às discussões que atualmente são travadas entre as diversas correntes socialistas, contrapondo socialismo e liberdade.

Os ensaios mais de cunho literário, que se referissem às questões da época ou mesmo biográficos não foram reproduzidos.

Só para consignar a discrepância entre a presente edição e aquela, deixamos aqui mencionados os títulos dos ensaios que constam daquela, mas não desta: “Saint-Simon e as teorias da época”, “Vida de Bakunine”, “Luísa Michel”, “O Imperativo da hora”, “A volta de Deus”, “Considerações sobre o imperialismo inglês”, “Don Quixote” e “Germinal”.


 

 

 

SOCIALISMO OU ESTATISMO?

Maurício Tragtenberg

 

A reedição da obra de Rudolf Rocker, velho militante libertário alemão na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil, se constitui em tema de primeira importância. R. Rocker coloca em discussão os grandes temas do socialismo mundial: a relação Partido e classe operária, as relações do socialismo com o Estado seja ele “burguês” ou “proletário” e a viabilidade de um projeto socialista não burocrático e autoritário.

Mostra ele, se não quisermos o facismo nem a social democracia nem a burocracia autoritária stalinista ou não, temos que nos bater contra a “direita” e ao mesmo tempo contra a exploração do trabalho pelo capital, procurando alterar as forças no interior da “esquerda” introduzindo ali a luta contra a divisão de trabalho, contra a hierarquia e as relações autoritárias. Eis que os clássicos “partidos de esquerda” reduzem a revolução social a formas consagradas, a cerimônias onde o Partido torna-se seu próprio fim possibilitando a pessoas que gostariam de transformar sua vida, e não podem fazê-lo, interiorizar essa transformação no simples fato de “pertencerem” ao Partido.

O conceito de “partido histórico” surge dessa prática, o partido perdeu sua marca revolucionária, transformou-se numa “instituição” onde sua história foi reabsorvida. Ele é uma instituição que se dirige a indivíduos abstratos e atomizados, enquanto uma verdadeira praxis só pode surgir a partir de movimentos coletivos concretos. Daí a necessidade de desenvolver nas pessoas o espírito de crítica a qualquer “ordem” e não o respeito de uma “ordem” pretensamente revolucionária. Para Rocker a liberdade para todos implica na sua própria liberdade, daí a história da classe operária revelar certa consciência da liberdade, pois, se os homens fossem semelhantes a coisas as lutas revolucionárias perderiam qualquer sentido. Rocker entende a revolução como o acesso dos homens à liberdade, porém além dos limites do liberalismo clássico, define que se é livre entre iguais, a liberdade tem a igualdade como fundamento.

R. Rocker faz a crítica do “planismo de Estado” travestido de “socialista” onde partidos hierárquicos burocráticos e centralizados produzem estruturas burocráticas, hierárquicas e centralizadas também. Perpetuam a separação entre “pensar” e “fazer” muitos fazem e poucos pensam, reproduzem a separação entre “dirigentes” e dirigidos. No vasto movimento da classe operária internacional todos são militantes, isso é que é fundamental reter.

Especialmente significativo é o seu capítulo “Socialismo e Estado” onde discute os temas cruciais do “socialismo burocrático” colocado teoricamente em xeque pelos socialistas libertários do século passado como Proudhon e Bakunin, por marxistas como Gramsci no seu primeiro período, por Penekoek, teórico dos “conselhos operários”, e praticamente contestado pelo gigantesco movimento de trabalhadores na Polônia em torno do sindicato “Solidariedade”.

No capítulo anteriormente citado, Rocker discute a espinhosa questão do “Estado de transição”, iniciando por uma crítica ao “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassalle que pretendiam utilizar o Estado burguês para acelerar a mudança social, pretensão essa retomada pelos partidos social democráticos da IIa. Internacional e pelo “euro comunismo”, uma social democracia “recuperada”.

Não deixa também Rocker de criticar a tese do “Estado transitório” ou o conceito de “Ditadura do Proletariado” como fase transitória do capitalismo ao socialismo. Pois, em Marx não se observa uma linearidade a respeito do tema do “desaparecimento do Estado”, pois há diferenças de posição a respeito em textos como “O Manifesto do Partido Comunista” e “A Guerra Civil em França”. Embora não desapareçam todas as ambigüidades, a constante da análise de Marx reside na noção do “debilitamento paulatino” do Estado Operário a partir de sua constituição. É mister esclarecer que o conceito de “ditadura do proletariado” é de Blanqui e foi desenvolvido por Lenin num sentido mais blanquista que marxista, como notou Rosa Luxembourg em “A Revolução Russa”. Embora Marx tenha utilizado o conceito “ditadura do proletariado” na Crítica ao Programa de Gotha, o fez raramente depois. Entre a definição marxista e a leninista do conceito há uma diferença básica: Marx caracteriza como “ditadura do proletariado” uma forma de sociedade, enquanto Lenin caracteriza-a como uma forma de governo.

A 30 de maio de 1871, Marx em “A Guerra Civil em França” adota a tese de “ditadura do proletariado” igual a governo comunal autogestionário que Engels, na sua Introdução à edição alemã de 1891, aponta a Comuna de Paris “como exemplo típico de ditadura do proletariado”. Isso significa uma revisão total das idéias a respeito expostas no “Manifesto do Partido Comunista” em 1848: Na realidade Marx oscila entre o estatismo e o anti-estatismo. Isso se deveu ao fato de ter sofrido influência jacobina no sentido do estatismo e de Proudhon no sentido anti-estatista, daí suas posturas libertárias rechaçando o “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassalle.

Outro ponto a enfatizar na atitude do socialismo libertário enquanto prática e teoria política é sua defesa do operário não especializado, vendo no “especializado” o germe de uma futura “aristocracia operária”, já criticada por Marx no século XIX e Lenin no século XX que se constitui em suporte da política social-democrática e sindical burocrática na Europa.

Por outro lado, é saudável a atitude crítica do socialismo libertário ante a hegemonia dos intelectuais nos chamados partidos “proletários”, eis que, os mesmos, na sua maioria de origem burguesa ou pequeno burguesa tendem a levar ao movimento operário seus vícios de formação classista, dominando os Comitês Centrais desses partidos e ao tomar o poder de Estado planejam “para” o proletariado “sem” o proletariado. A hegemonia da intelectualidade pequeno burguesa na sua maioria autoritária, carreirista e ávida de poder se realiza através dos partidos autoritários de “esquerda” com a legitimidade conferida pela teoria da “vanguarda” elaborada por Kautsky e retomada por Lenin segundo a qual eles como portadores da “ciência” levam ao proletariado por mediação do partido “a consciência política”, pois o operário deixado a si mesmo só chegaria a um nível de consciência econômica, argumentam Kautsky e Lenin. Na prática o que se deu é que a camada intelectual enraizada no Partido Único no leste europeu e na URSS tendem a se transformar numa burocracia autoritária com privilégios e imunidades ante a classe operária, cuja contestação é dada pelos trabalhadores hoje na Polônia. Sua ação em torno do sindicato “Solidariedade” se constitui num saudável exercício de política operária oposta ao chamado “socialismo burocrático” estatista.

Em suma, a obra de R. Rocker é fundamental na medida em que mostra a possibilidade de uma prática socialista que deriva das bases - por exemplo, os conselhos de fábrica - que atuam não só como contestação ao modo de produção capitalista, mas também como agentes de um novo modo de produção qualitativamente distinto do capitalista. A negação dessa prática de “Comissões de Fábrica” como elemento fundante de uma nova estrutura produtiva somente levou às formas de “socialismo de Estado” onde relações capitalistas de produção regidas pela lei do valor continuam sob roupagem nova. É isso que cabe desmistificar, daí a atualidade do presente livro em boa hora reeditado.


 

 

Rudolf Rocker

 

Uma das figuras mais salientes do movimento socialista é, sem, dúvida, a desse grande lutador alemão: Rudolf Rocker. Cidadão do mundo como Goethe, como Nietzsche, como Heine, através de seus setenta e tantos anos, viveu os momentos mais cruciais do movimento revolucionário da Europa e da América, nunca desmentindo os seus ideais, nunca transigindo com os adversários, incansável sempre, sempre na primeira linha de combate.

Perseguido pelo terror pardo hitleriano, fugiu para os Estados Unidos onde se entregou à revisão final de sua grande obra NACIONALISMO E CULTURA, que conseguiu salvar das mãos da Gestapo. Ali escreveu inúmeros artigos para jornais e revistas socialistas e ainda hoje vive na grande nação americana do norte, onde continua, apesar de sua avançada idade, a lutar por seus ideais de liberdade e de dignidade humanas.

Nesta edição que fazemos da obra de Rudolf Rocker incluímos, além de seu famoso ensaio “idéias absolutistas no socialismo”, que empresta o nome ao livro, alguns outros trabalhos literários e doutrinários, escritos durante sua longa carreira de propagandista de uma das tendências mais ponderáveis do movimento socialista.

Além dessa obra é NACIONALISMO E CULTURA um dos livros programados pela “Editora e Distribuidora Sagitário Ltda.” Desse próximo livro de Rocker temos a salientar, por ora, apenas duas opiniões. A de Bertrand Russell e a do prof. Lewis Mumford. Diz Russell:

O livro de Rudolf Rocker, NACIONALISMO E CULTURA, é uma importante contribuição à filosofia política por sua penetrante e atrativa análise de muitos escritores famosos e por sua brilhante crítica à divinização do Estado, a mais nociva superstição de nosso tempo. Espero que encontre ampla difusão em todos os países nos quais o pensamento desinteressado não é ainda ilegal”.

Agora a vez de Mumford:

“NACIONALISMO E CULTURA é uma importante contribuição à nossa representação da sociedade humana. Não é somente a obra de um espírito audaz, bem equilibrado, mas também de uma profunda personalidade humana... O sólido fundamento histórico de Rocker, a riqueza das fontes, seu humanismo profundamente orgânico vão além das qualificações acadêmicas.

Numa palavra, NACIONALISMO E CULTURA é uma obra que merece figurar na mesma linha que o Candide, de Voltaire, Os direitos do homem, de Paine e o Apoio Mútuo, de Kropotkin”.

Cremos ter assim devidamente apresentado ao público brasileiro uma das figuras mais extraordinárias do movimento socialista na atualidade.

O EDITOR


 

 

As Idéias

Absolutistas

no Socialismo

[imagem]

Rudolf Rocker


 

 

Do absolutismo da idéia ao da ação

 

NOSSA opinião sobre as causas profundas que originaram a atual catástrofe mundial, não seria exata se se deixasse de lado o papel que o socialismo contemporâneo e o moderno movimento operário desempenharam na preparação da tragédia da cultura que hoje em dia se processa. Neste aspecto, têm especial importância as tendências intelectuais do movimento socialista na Alemanha, já que, durante séculos, exerceram uma influência considerável sobre os partidos socialistas da Europa e da América.

O socialismo moderno é, no fundo, apenas a continuação natural das grandes correntes liberais dos séculos XVII e XVIII. Foi o liberalismo que desfechou o primeiro golpe mortal no sistema absolutista dos príncipes, abrindo, ao mesmo tempo, novos caminhos para a vida social. Seus representantes intelectuais, que viram na máxima liberdade pessoal a alavanca de toda reforma cultural, reduzindo a atividade do Estado aos mais estreitos limites, abriram perspectivas completamente novas quanto ao desenvolvimento futuro da humanidade: desenvolvimento que, forçosamente, teria levado à superação de toda tendência absolutista, assim como a uma organização racional na administração dos bens sociais, se suas concepções sobre a economia tivessem avançado ao mesmo passo que o seu conhecimento do campo político e do social. Mas, desgraçadamente, isso não se deu.

Sob a influência, cada vez mais acentuada, da monopolização de todas as riquezas, tanto das naturais como das criadas pelo trabalho social, desenvolveu-se um novo sistema de servidão econômica. Este sistema exerceu um influxo cada vez mais funesto sobre todas as aspirações primitivas do liberalismo e sobre os princípios autênticos da democracia política e social, conduzindo, por lógica interna, para esse novo absolutismo que encontrou, hoje, uma expressão tão perfeita como vergonhosa na estrutura do Estado totalitário.

O movimento socialista poderia ter oposto um dique a esse desenvolvimento, mas a realidade é que a maioria de seus representantes deixou-se arrastar pelo turbilhão desse processo, cujas conseqüências destrutivas se manifestaram na catástrofe geral da cultura que hoje contemplamos. O movimento socialista poderia ter-se convertido no executor testamentário do pensamento liberal ao oferecer a este uma base positiva na luta contra o monopólio econômico, no afã de que a produção social chegasse a satisfazer às necessidades de todos os homens. Constituindo assim o complemento econômico das correntes de idéias, políticas e sociais do liberalismo, ter-se-ia convertido num elemento poderoso na consciência dos homens, e em veículo da nova cultura social na vida dos povos. Realmente, homens como Godwin, Owen, Thompson, Proudhon, Pi y Margall, Pisacane, Bakunine, Guillaume, De Pape, Reclus e, mais tarde, Kropotkin, Malatesta e outros, conceberam o socialismo neste sentido. Contudo, a grande maioria dos socialistas, com incrível cegueira, combateram essas idéias de liberdade baseadas na concepção liberal da sociedade, considerando-as apenas como derivado político da chamada Escola de Manchester.

Deste modo sistematicamente se reviveu e se fortaleceu a crença na onipotência do Estado, crença que já tinha recebido um golpe sensível com a aparição das idéias liberais dos séculos XVIII e XIX. É um fato significativo terem os representantes do socialismo, na luta contra o liberalismo, tomado emprestado suas armas, amiúde, do arsenal do absolutismo, sem que a maioria sequer percebesse o mal deste fenômeno. Muitos, e especialmente os representantes da escola alemã, a qual, mais tarde, veio a obter uma influência predominante sobre todo o movimento socialista, eram discípulos de Hegel, Fichte e outros representantes da idéia absolutista do Estado. Outros sofreram uma influência tão poderosa do jacobinismo francês, que só podiam conceber a transição ao socialismo sob a forma de ditadura. Outros, ainda, acreditaram numa teocracia social, ou numa espécie de “Napoleão socialista”, que traria a salvação do mundo.

Contudo, a pior superstição foi a concepção da “missão histórica do proletariado” que, segundo Marx, tinha de se converter, fatalmente, no “coveiro da burguesia”. A palavra classe não constitui, no melhor dos casos, senão um conceito de classificação social; conceito que pode não ser válido em determinadas circunstâncias, mas nem Marx nem ninguém, foi capaz, até hoje, de traçar um limite fixo a esse conceito, dando-lhe uma definição exata. Sucede com as classes o mesmo que sucede com as raças; nunca se sabe onde termina uma e começa outra. Existem no chamado proletariado tantas gradações sociais como as que existem dentro da burguesia ou dentro de outra qualquer camada do povo. Mas o maior erro consiste em atribuir a determinada classe certas tarefas históricas e convertê-la em representante de certas correntes ideológicas. Se se pudesse demonstrar que os homens nascidos e educados, sob certas condições econômicas se distinguiam essencialmente, quanto a seus pensamentos e atos, dos outros grupos sociais, então nem sequer seria necessário ocupar-nos disto, já que, ante fatos evidentes, cabe-nos apenas a resignação. Mas aí, precisamente, nos encontramos com o ponto crucial. O pertencer a uma camada determinada da sociedade não oferece nem a menor garantia quanto ao pensamento e à atuação dos homens. O mero fato de que quase todos os grandes vanguardistas da idéia socialista tenham saído não do proletariado mas das chamadas classes dominantes, deveria dar-nos que pensar. Entre eles se encontram aristocratas, como Saint-Simon, Bakunine, Kropotkin; oficiais do exército, como Considérant, Pisacane e Lavroff; comerciantes, como Fourier; fabricantes, como Owen e Engels; sacerdotes, como Moslier e Lamenais; homens de ciência, como Wallace e Dühring, assim como intelectuais de todos os matizes, tais como Blanc, Cabet, Godwin, Marx, Lassalle, Garrido, Pi y Margall, Hess e centenas de outros.

Que se consolem os adeptos da teoria da “missão histórica do proletariado” com a idéia de que o fascismo é apenas um movimento da classe média! Mas essa concepção não altera o fato de terem saído do proletariado os quase catorze milhões de votantes que, na Alemanha, deram seu voto a favor de Hitler. Precisamente num país como a Alemanha em que o ensino marxista tinha encontrado tanta difusão, aquele fato tem dupla importância. Se é certo que os representantes intelectuais do antigo absolutismo, isto é, os Hobbes, Maquiavéis, os Bossuet, etc., pertenceram às camadas superiores, enquanto os representantes do absolutismo moderno, ou sejam os Mussolini, Stalin e Hitler, provêm das camadas mais baixas, essa circunstância nos demonstra precisamente que nem as idéias revolucionárias nem as reacionárias se acham ligadas a um determinado grupo social.

Os partidários do determinismo econômico e da teoria da “missão histórica do proletariado” afirmam, não há dúvida, que, em seu caso, não se trata de uma concepção ordinária, mas da necessidade interna de um processo natural, que se desenvolve independentemente da volição humana; mas é precisamente este ponto que se deve provar previamente. A própria concepção marxista é apenas uma especulação, uma crença, como qualquer outra, em que o desejo é o pai da idéia. A crença num desenvolvimento mecânico de todo suceder histórico sobre a base de um processo inevitável, que tem seu fundamento na natureza das coisas, é o que mais prejuízo tem causado ao socialismo, pois destrói todas as premissas éticas, imprescindíveis para a idéia socialista. O absolutismo da idéia conduz, em certas circunstâncias históricas, a um absolutismo da ação. A história atual ilustra este fato com os mais impressionantes exemplos.


 

 

O ideário de Proudhon

 

ENTRE os grandes precursores da idéia socialista, Proudhon foi um dos homens que melhor compreenderam a importância histórica do socialismo. Até hoje não se pôde destruir sua influência intelectual sobre o movimento socialista dos países latinos e é uma fonte viva para lograr novos estímulos e novas possibilidades de desenvolvimento. Proudhon reconheceu, com grande clarividência, que a obra da Revolução Francesa havia sido realizada somente pela metade; que a tarefa da “Revolução do século XIX” devia ser a continuação dessa obra, levando-a à perfeição, a fim de conduzir a novos caminhos o desenvolvimento social da Europa, já que a trajetória da Grande Revolução se esgotara no momento em que pusera fim à tutela monárquica aplainando o caminho para que os povos pudessem tomar nas mãos o seu destino social, depois de terem estado durante séculos a serviço do absolutismo dos príncipes como um rebanho sem vontade, assegurando a existência destes por meio de seu trabalho.

Aí residia a grande tarefa da época, tarefa que Proudhon reconheceu mais claramente que a maioria de seus contemporâneos. É verdade que a Grande Revolução tinha eliminado a monarquia como instituição social e política, mas não logrou eliminar, junto com a monarquia, a “idéia monárquica”, como dizia Proudhon, a qual foi despertada para uma nova vida devido à centralização política do jacobinismo e da ideologia do Estado unitário. Essa herança nefasta que nos ficou de tempos passados, expressa-se hoje novamente no chamado “princípio do caudilho” do Estado totalitário, o qual não passa de uma nova forma da antiga “idéia monárquica”.

Proudhon advertiu claramente que o absolutismo, esse eterno princípio de tutela para um fim querido por Deus, fechado a toda objeção humana, era o que maiores empecilhos punha aos homens em suas aspirações para alcançar formas mais elevadas de existência social. Para ele, o socialismo não significava tão-somente um problema de economia, mas também uma questão cultural, que abarcava todos os domínios da atividade humana. Proudhon sabia que não era possível eliminar as tradições autoritárias da monarquia apenas num terreno, conservando-as em todos os outros, a não ser que se quisesse entregar a causa da liberdade social a um novo despotismo. Para ele, a exploração econômica, a opressão política e a servidão intelectual não significam senão diferentes fenômenos produzidos por uma mesma causa. Proudhon via na monarquia o símbolo da escravidão humana. Para ele, não era apenas uma organização política mas um estado social, o que produzia determinadas conseqüências inevitáveis, tanto espirituais como psicológicas, que se advertiam igualmente em todos os terrenos da vida social. Neste sentido, chamava o capitalismo a “monarquia da economia”, pois converte o trabalho em tributário do capital, do mesmo modo que a sociedade presta tributo ao Estado e o espírito à Igreja.

“O conceito econômico do capital — diz Proudhon — a idéia política do Estado ou da autoridade, assim como a concepção teológica da Igreja, são apenas representações idênticas, que se completam reciprocamente, fundindo-se umas nas outras. Portanto, torna-se impossível combater uma e manter intacta a outra. É este um fato sobre o qual hoje em dia estão de acordo todos os filósofos. O que o capital realiza a respeito do trabalho, o mesmo o faz o Estado em relação à liberdade, e a Igreja no que se refere ao espírito. Esta trindade do absolutismo torna-se, na prática, tão nefasta como na filosofia. Para oprimir o povo eficazmente é preciso encadear tanto o corpo como a vontade e o coração. Se o socialismo tem a intenção de se revelar numa forma exaustiva, universal e livre de todo misticismo, cabe-lhe apenas mostrar à consciência do povo a importância desta trindade”.

Partindo destes conceitos, Proudhon via no desenvolvimento dos grandes Estados modernos e na influência, cada vez incrementada, do monopólio econômico, o maior perigo para o porvir da Europa. Esse perigo queria conjurá-lo por meio de uma preparação consciente, baseada na experiência, criando uma federação de comunidades livres, sobre a base da igualdade econômica e tratados recíprocos. Sabia claramente que esse estado de coisas não podia desenvolver-se de um dia para outro, senão que se tratava, em primeiro lugar, de fazer homens aptos para um melhor conhecimento, por meio do pensamento e das atividades construtivas. Só assim seria possível dirigir as suas aspirações em certa direção, a fim de que, por próprio impulso,, pudessem fazer frente ao perigo que os ameaçava.

Qualquer tentativa de eliminar as tendências absolutistas dentro do organismo social e pôr limites mais estreitos ao monopólio econômico, significava para Proudhon, um verdadeiro passo à frente no caminho da libertação social. Tudo quanto se opusesse a essa grande finalidade, contribuindo, conscientemente, a fortalecer a monarquia espiritual, econômica ou política mediante novas pretensões de poderio, não faria senão eternizar o círculo vicioso da cegueira e preparar o caminho para a reação social, inclusive se tais esforços se faziam com o nome pretensioso da revolução.

A maior parte dos socialistas contemporâneos nem sequer se dão ao trabalho de penetrar nas idéias de Proudhon, cujas obras são tão ignoradas pela maioria deles como é ignorado pelos zulus o teorema de Pitágoras ou a teoria da unidade do universo. A única coisa que conhecem de suas obras, e de maneira superficial, é o seu ensino sobre o “livre crédito” e seu intento de instituir um “banco popular”, intento que nunca chegou a realizar-se devido à intervenção do governo francês. E ainda o conhecimento dessa mínima parte da obra de Proudhon, têm-no através da imagem deformada que dela fizeram alguns escritores marxistas, a qual dá a impressão de que Proudhon não foi nada mais que um charlatão ordinário, que não teria feito outra coisa em toda a sua vida senão apregoar, ante a pobre humanidade, os seus remédios contra toda classe de enfermidades sociais.

Na realidade, Proudhon foi entre todos os antigos socialistas o que mais decidida e insistentemente se opôs à crença numa panacéia universal que curasse todos os vícios sociais. Sabia que a tarefa reservada ao socialismo não era de modo algum um nó górdio que podia ser desatado mediante um golpe de espada. Precisamente por isso não tinha confiança nenhuma nos remédios universais, mediante os quais, segundo muitos pensavam, podia obter-se, de um só golpe, a transformação geral de todas as instituições da sociedade. Sua crítica penetrante e convincente das tendências socialistas de sua época nos proporciona uma impressionante prova dessa alegação.

Proudhon era um homem que não tinha metas fixas, pois compreendia perfeitamente que a verdadeira natureza da sociedade devia buscar-se na eterna mutação de suas formas, e que a serviríamos tanto melhor quanto reduzidas fossem as barreiras artificialmente levantadas e quanto mais firme e consciente fosse a participação que os homens tomassem nessas mudanças. Neste sentido, disse Proudhon em certa ocasião, que a sociedade se parece a um aparelho de relógio, que leva dentro de si o próprio impulso pendular, sem necessidade de nenhuma ajuda alheia para permanecer em movimento. A libertação social significava, para ele, um caminho e não uma meta, já que compartilhava da opinião de Ibsen que disse: “Quem possui a liberdade de modo diferente da que aspira, possui-a morta e sem espírito, porque o conceito de liberdade tem precisamente a propriedade de ir amplificando-se constantemente enquanto nos vamos apoderando dela. Portanto, se alguém se detém em meio da luta, dizendo ‘agora é minha’, demonstra por isso mesmo que já a perdeu”.

Partindo desse ponto de vista, é preciso valorizar também as tentativas práticas de Proudhon. Estes intentos derivavam-se das circunstâncias da época, e só podem ser explicados e compreendidos em relação com a mesma. Como sucede com qualquer pensador cuja atividade pertence ao passado, também existem na obra de Proudhon aspectos que foram superados pelo tempo, ficando, no entanto, intacta a importância criadora de sua obra. Até nos parece surpreendente quanto permanece ainda vivo, alcançando novo significado precisamente em relação à atual situação mundial.

Proudhon, que compreendeu a essência do Estado melhor que a maioria de seus contemporâneos socialistas, não tinha ilusões quanto às conseqüências inevitáveis de todas as tendências absolutistas, quaisquer que fossem as formas que estas pudessem apresentar e qualquer que fosse o grupo que as estimulasse. Portanto, também compreendia claramente o caráter verdadeiro de todos os partidos políticos, e estava convencido firmemente de que deles não poderia sair nenhum trabalho criador para uma autêntica transformação social. Para isso advertia aos socialistas, extraviados no caminho das tendências absolutistas, tratando de explicar-lhes que, assim que o socialismo chegasse a governar, terminaria seu papel e ficaria entregue irremediavelmente à reação.

“Todos os partidos políticos, sem exceção alguma — dizia Proudhon — enquanto aspiram ao poder público, não passam de formas particulares do absolutismo. Não haverá liberdade para os cidadãos; não haverá ordem na sociedade, nem unidade entre os trabalhadores, enquanto em nosso catecismo político não figure a renúncia absoluta à autoridade, arcabouço de toda tutela”.

Proudhon foi entre os socialistas mais velhos, talvez o único que declarou guerra a todo sistema fechado, já que tinha advertido que as condições da vida social são demasiado múltiplas e heterogêneas para serem tomadas dentro de um determinado molde, sem que se cometa violência contra a sociedade ao substituir uma velha forma de tirania por outra nova. Portanto, seus ataques não se dirigiam tão-somente contra os representantes da ordem social atual, mas também contra muitos dos chamados “libertadores”, que unicamente queriam comutar seus postos com os possuidores de então, prometendo às massas tesouros na lua para poder mais facilmente abusar delas em benefício de sua ambição pessoal. De uma significativa passagem, tomada de uma carta de Proudhon a Karl Marx, que transcrevemos a seguir, podemos deduzir quão livremente pensava Proudhon:

“Tratemos em comum, se você quer, de conhecer as leis da sociedade; fixar seu modo de ser e seguir o caminho que preparamos ao submeter-nos a esse trabalho. Mas, por Deus! não pensemos, por nossa parte, em exercer uma tutela sobre o povo, depois de ter destruído, a priori, todo dogmatismo. Não caiamos na contradição de seu compatriota Martin Lutero, o qual, depois de ter refutado os dogmas da teologia católica, procedeu, com zelo incrementado e grande luxo de interditos e juízos condenatórios, a dar vida a uma teologia protestante. Há três séculos, está a Alemanha ocupada em eliminar esse novo revestimento aplicado por Lutero ao velho edifício. Não devemos colocar os homens, mediante novas confusões e o disfarce de velhos fundamentos, ante uma nova tarefa. Do fundo do coração aplaudo a sua idéia de dar expressão a todas as opiniões atuais. Tratemos de fazê-lo na forma de uma explicação amistosa; demos ao mundo o exemplo de uma tolerância sábia e clarividente; e não tratemos, pelo fato de achar-nos à frente de um movimento, de converter-nos em caudilhos de uma nova intolerância. Não devemos fazer-nos passar por apóstolos de uma nova religião, nem sequer da religião da lógica e da razão. Recebamos e estimulemos todo o protesto; estigmatizemos todo exclusivismo, todo misticismo. Não consideremos jamais esgotada uma questão: e, depois de ter gasto nosso último argumento, comecemos de novo, se for necessário, com eloqüência e ironia. Nestas condições aderiria com prazer à sua associação. Do contrário, não.”

Estas palavras, datadas de 17 de maio de 1846, são duplamente importantes. Em primeiro lugar, é característico para mostrar a maneira franca e sincera de Proudhon, revelando sua profunda aversão contra todo dogmatismo e todo sectarismo: e é importante, ademais, porque foi a causa imediata da ruptura que houve entre Marx e Proudhon.

Proudhon foi um pensador solitário, mal compreendido, não só por seus adversários democratas e socialistas, mas também, muitas vezes, até por seus próprios partidários posteriores, os quais confundiram certas proposições práticas de Proudhon, nascidas no calor das condições da época, com a verdadeira obra de sua vida. Sua correspondência volumosa (que consta de catorze alentados tomos) contém inúmeras explicações de suas idéias, que demonstram o que foi dito anteriormente, e que são indispensáveis para um estudo consciencioso de suas obras. O olhar de Proudhon dirigia-se profundamente para as relações internas dos fenômenos sociais para que pudesse encontrar um eco naqueles cegos imitadores da tradição jacobina, que esperavam a salvação somente por meio de uma ditadura. Foi, entre os antigos socialistas, um dos poucos que pretendeu levar a um fim o pensamento político do liberalismo, dando-lhe um conteúdo econômico.

É característico que precisamente os representantes da escola marxista tratarão, sempre, de refutar o pretendido “utopismo” de Proudhon, fazendo fincapé, com grande alegria maliciosa, em que o imenso fortalecimento do poder central do Estado e a influência constantemente incrementada dos modernos monopólios econômicos, provavam claramente o atraso intelectual das idéias e aspirações de Proudhon, como se o fato de tal desenvolvimento alterasse, por menor que fosse, a própria realidade. Com o mesmo direito se poderia sustentar hoje que a doutrina da chamada “missão histórica do proletariado” nos conduziu totalmente para o fascismo e para o advento do Terceiro Reich.

Proudhon previu claramente as conseqüências ineludíveis de um desenvolvimento nessa direção, e não poupou esforços para tornar os seus contemporâneos conscientes da magnitude do perigo. Mais que ninguém uniu todas as suas forças a fim de guiar os homens para novos caminhos que prevenissem a catástrofe iminente. E não foi culpa sua que se tenham desprezado as suas advertências, e que sua palavra se tenha perdido no meio do estrondo das paixões dos partidos políticos. Todo o desenvolvimento econômico, político e social, sobretudo depois da guerra franco-alemã de 1870-71, mostra-nos, com clareza aterradora, quanta razão teve Proudhon em seu julgamento da situação geral. Precisamente hoje, quando com velas soltas nos dirigimos para um novo período do absolutismo político e social; num momento em que o moderno capitalismo centralizado espezinha, até matar, com brutal desprezo de toda consideração humana, os últimos restos de independência econômica, e quando as pretensões ditatoriais são mais intensas, revela-se claramente toda a inépcia intelectual de nossa época; precisamente hoje se manifesta em toda a sua extensão, a importância histórica da obra de Proudhon.

Sobretudo revela que a libertação social não constitui apenas um problema econômico. A Gleichschaltung (1), o ajuste mais perfeito das forças econômicas, não oferece garantia alguma para a libertação autêntica e total da humanidade. Até, sob certas circunstâncias, produz o efeito de uma escravização muito maior que a que temos conhecido até hoje. A fé cega de tantos socialistas em que a estatização da economia possa resolver a questão social, baseia-se numa concepção totalmente errônea da tarefa que incumbe ao socialismo. Os acontecimentos econômicos nos chamados Estados totalitários, e especialmente no exemplo instrutivo que nos dá a “ditadura do proletariado” na Rússia, mostram-nos com grande clareza que a estatização da vida econômica caminha paralelamente a uma total denegação de todos os direitos e liberdades pessoais; e assim há de ser fatalmente, já que a estatização da economia ajuda a subir ao poder uma hierarquia burocrática, cuja influência, enquanto classe dominante, não se torna menos nefasta para o povo trabalhador que o papel desempenhado pelas classes possuidoras nos Estados capitalistas, e até o supera quanto às suas conseqüências espirituais, físicas e morais. A igualdade econômica que reina nas prisões ou nos quartéis não constitui certamente modelo adequado para a cultura social mais elevada do futuro. Também neste aspecto Proudhon se apresenta como profeta, pois predisse que uma união do socialismo com o absolutismo teria de conduzir à maior tirania de todos os tempos.


 

 

Os ideais condicionados ao meio

 

O traço antiliberal que se adverte no campo do socialismo, contribuiu com uma parte não pequena, embora inconsciente e não deliberadamente, a aplainar o caminho para a concepção do Estado totalitário. Na verdade, a chamada “ditadura do proletariado” na Rússia levou à prática as primeiras idéias de um Estado totalitário, que mais tarde havia de servir como modelo, em muitos aspectos, a Mussolini e a Hitler. A oposição dentro do campo comunista, isto é, os partidários de Trotzky e outros grupos dissidentes, admitiram mais tarde abertamente que o stalinismo foi o precursor da reação fascista na Europa; mas com isso esqueceram algo essencial, isto é, que Lenine e Trotzky foram os precursores de Stalin. Não é a pessoa do ditador que decide a questão, mas a instituição da ditadura como tal, da qual procede todo o mal e que, conforme a sua natureza, nunca pode ser outra coisa que a precursora de uma nova reação social, inclusive se o socialismo e a libertação do proletariado lhe servem como folha de parreira para ocultar-lhe o verdadeiro caráter.

Foi sem dúvida fatal para o desenvolvimento socialista que, já em sua primeira fase, tenha sofrido forte influência das correntes de idéias autoritárias da época, idéias que se derivavam das tradições jacobinas da Grande Revolução assim como do largo período das guerras napoleônicas. Talvez esse processo tenha sido inevitável, já que toda época histórica gera um determinado modo de pensar, a cuja influência só alguns são capazes de subtrair-se, pois os homens se acham demasiadamente vinculados às condições sociais de sua época.

Quando William Godwin, em 1793, lançou ao mundo seu Política! Justice, os povos se achavam então completamente sob a impressão produzida pelos grandes acontecimentos na França, e eram avessos a qualquer concepção nova no terreno da vida política e social. Foi esta a razão por que as idéias liberais de Ricardo Price, José Priestley e, sobretudo de Tomas Paine, exercessem então uma influência tão penetrante sobre as camadas intelectualmente vivas do povo inglês; influência cujos efeitos se observaram então durante algum tempo, quando a reação, devido à guerra contra a República Francesa, se estendeu poderosamente, tratando de matar violentamente todas as tendências liberais. O desenvolvimento ideológico achava-se então ainda em linha ascendente, e não tinha perdido seu vôo interior, como iria suceder, em anos posteriores, devido às grandes decepções sofridas pela multidão.

As circunstâncias já haviam mudado consideravelmente quando apareceram Saint-Simon, Fourier e Owen com seus planos para uma transformação da vida social. Em Saint-Simon, esses planos só depois de 1817 recebem seu verdadeiro caráter social, enquanto Fourier desenvolveu durante o primeiro Império suas idéias socialistas em sua obra intitulada Théorie des quatre mouvements (1808). Mas ambos encontraram um número considerável de adeptos somente depois da queda de Napoleão, quando já se tinha estendido sobre a Europa a sombra da Santa Aliança. Na mesma época, também Robert Owen deu à luz pública seus planos de reforma social. Nas três décadas seguintes apareceram num e noutro lado do Canal, grandes ondas de novos pensamentos, sobre as tarefas sociais da época, que acreditavam poder resolvê-las por meio de uma transformação radical das condições econômicas.

Mas todas essas tendências se manifestaram tão-só no momento em a Europa apenas havia terminado uma das épocas mais duras e agitadas de sua história, época cujas repercussões espirituais e materiais perdurariam ainda por muito tempo. As tempestades da Grande Revolução, que tinham sacudido profundamente os alicerces da sociedade européia, já tinham passado. Delas somente permaneceu a guerra, que fora desencadeada em 1792, convertendo os países mais importantes do Continente, durante vinte e três anos, com poucos intervalos, em verdadeiros campos de batalha. Também já se desvanecera o prestígio e a onipotência militar do Império, que devorara seis milhões de vidas humanas, deixando após si povos completamente esgotados. Em todos os países reinava uma miséria terrível, falta de trabalho e ruína completa da economia. Os homens eram presa fácil do desalento que os tornava incapazes para qualquer resistência. O ardente entusiasmo que a tomada da Bastilha despertara antigamente em todos os países, de há muito se desvanecera. Tinham sido derrubadas até as últimas esperanças fundadas na queda de Napoleão, devido ao descarado perjúrio dos príncipes, dando lugar a uma nova resignação ante o inevitável. Achavam-se os homens tão esgotados que já não eram capazes de tomar novo impulso.

Aquela foi uma época de esgotamento físico e desmoralização intelectual que tem muito de comum com a nossa, e, baseando-nos em nossas próprias experiências, podemos julgá-la hoje em dia muito melhor do que tomando por base os livros da história. Da mesma forma que em nossa época a Revolução russa, aclamada pelos trabalhadores socialistas do mundo inteiro com tanto entusiasmo, degenerou sob a ditadura dos bolchevistas, convertendo-se num despotismo sem espírito que teria de aplainar o caminho para a reação fascista, assim afogou o terror exercido pelos jacobinos, com suas absurdas matanças em massa, o eco poderoso que a Revolução, a princípio, tinha encontrado em toda a Europa, e abriu assim o caminho à ditadura de Napoleão, cuja herança política passou mais tarde para as mãos da Santa Aliança. E assim como a guerra de 1914-18 e seus inevitáveis fenômenos secundários esgotaram completamente a Europa, condensando-se numa crise econômica permanente de imensa envergadura, as desgraçadas guerras, que se realizaram sob a República e mais tarde sob Napoleão, destruíram o equilíbrio econômico de Europa; e destruíram-no tão conscienciosamente que durante muito tempo nada pôde prosperar, exceto a pobreza das massas e uma miséria infinita. Em ambos os casos, a decepção das massas e a insegurança econômica conduziram a uma reação internacional, que não se limitava apenas às atividades dos governos, mas que se manifestava também em todos os ramos da vida social. O caráter dessa reação foi diferente, desde logo, em ambos os períodos, conforme às diferentes condições da época, mas suas conseqüências espirituais produziram resultados idênticos.

Se não sobreviesse a guerra, a nova estrutura social da França ter-se-ia, provavelmente, desenvolvido tomando um caminho distinto, e não teria permitido a ditadura de um só partido. Na verdade, a princípio, todos os partidos, com exceção de uma pequena minoria, adotaram uma atitude hostil ante a ditadura, pois cada grupo temia converter-se em vítima do outro, no caso de que o azar desse a este o poder. Mas a guerra conduziu fatalmente a uma série de medidas que ajudaram a facilitar o caminho à ditadura. O sentimento de insegurança e a desconfiança geral, que em todas as partes farejavam inimigos escondidos, desejosos de suprimir as grandes conquistas da Revolução para restabelecer o antigo estado de coisas, também tiveram o seu papel, despertando no povo a crença na necessidade provisória da ditadura, a fim de acabar com a crise. Mas uma vez chegados a esse extremo, a superioridade intelectual deixa então, de decidir; a brutalidade dos meios é que então decide, assim como a astúcia pessoal e as opiniões libertas de todo escrúpulo moral. Mas essas qualidades costumam seguir juntas com a limitação ideológica e a mediocridade das concepções. Já que para os representantes da ditadura a força brutal significa a primeira e a última palavra de autoconservação, nunca se vêem obrigados a defender suas ações baseando-se em considerações de outra espécie. A famosa frase de Cavour de que “por meio do estado de sítio qualquer asno pode governar”, pode aplicar-se melhor ainda à ditadura, pois toda ditadura não é outra coisa que uma nação em permanente estado de sítio.

Em condições normais existem certas possibilidades de criar novos caminhos de desenvolvimento, que surgem sempre enquanto não se estrangulou completamente, com medidas tirânicas, a liberdade de discussão sobre as condições sociais. Até os representantes mais decididos do conservadorismo político não podem subtrair-se por completo, em tais circunstâncias, às repercussões morais de uma manifestação democrática. Da mesma forma que a Igreja romana teve de se resignar, pouco a pouco, com a existência das diferentes tendências protestantes, assim o conservadorismo político e social se vê obrigado à resignação ante certos resultados da consciência democrática do povo, os quais são conseqüências das revoluções contra o absolutismo dos príncipes. Uma tal resignação ante os fatos históricos se torna inevitável em circunstâncias normais, já que nem a revolução nem a reação são capazes de aniquilar completamente o adversário. Para restabelecer depois dos grandes abalos, o equilíbrio social, e tornar possível a cooperação social, se desenvolveram paulatinamente certos princípios nos quais se fundam, imperceptivelmente, o velho e o novo, e que se condensam, no curso do tempo, até se converterem em determinado estado legal, que não se pode violar arbitrariamente em qualquer momento, se não se quer que a sociedade mergulhe permanentemente em aberto estado de guerra.

Este estado legal, assim criado, varia de grau, segundo ganhe ou perca força na vida pública uma ou outra tendência, mas seu fundamento moral permanece intacto enquanto as condições sociais gerais não se convertam em insustentáveis por sua própria força, impelindo para uma mudança revolucionária do estado de coisas estabelecido. Também se a parte mais forte intenta torcer o direito vigente e interpretá-lo a seu favor, isso sucede, em tempos tranqüilos, sempre sobre a base dos conceitos legais em vigor, a fim de evitar conflitos maiores que possam pôr em perigo o equilíbrio social. Até o mais emperdenido Tory não chegaria a defender, em circunstâncias normais, a restauração do absolutismo monárquico, mas adaptaria suas tendências ao estado de legalidade geral, a fim de poder fazê-las valer. Intentará, em caso de lhe parecer propícia a ocasião, limitar os feitos de certos direitos e liberdades, mas nunca porá em dúvida esses mesmos direitos e liberdades, com os quais tem de conviver, já que constituem uma parte essencial da ordem social existente. É esta a razão também por que as revoluções não se podem criar artificialmente todos os dias, mas que dependem, da mesma forma que os períodos de reação social, de determinadas condições. Só debaixo deste ponto de vista podemos apreciar, com exatidão, a influência que as correntes políticas do tempo exercem sobre o desenvolvimento histórico do socialismo.


 

 

As concepções autoritárias

 

A influência das diferentes correntes políticas sobre o desenvolvimento do pensamento socialista, pode ser determinada claramente , em qualquer país, e imprime uma marca especial que se manifesta, sobretudo, na atitude que assumem seus partidários ante o Estado. Não existe, com efeito, concepção política alguma, desde a teocracia até a anarquia que não tenha encontrado certa expressão no movimento socialista. Os grandes precursores do socialismo moderno tinham em comum uma coisa: viam na desigualdade das condições econômicas a verdadeira causa de todos os males sociais, e se esforçavam em levar essa convicção à consciência de seus contemporâneos. Saint-Simon e Fourier tinham presenciado as tempestades da Grande Revolução, e também Owen fora testemunha das repercussões imediatas que teve aquele grande drama histórico em relação à nova estrutura da Europa. A maioria de seus discípulos procediam da época do primeiro Império; portanto tinham visto diretamente os efeitos imediatos da Revolução, assim como o bonapartismo e as tendências contra-revolucionárias do período da Restauração, julgando-o, muitas vezes, de modo muito diferente de como o fizeram as gerações posteriores, que conheciam tudo aquilo apenas através das descrições dos historiadores, pois as impressões vivas que recebemos dum acontecimento imediato costumam ser muito diferentes das representações que formamos através da perspectiva do tempo.

Ao considerar as idéias e as atividades daqueles primeiros porta-vozes do socialismo em relação à sua época, compreendemos sua posição, com todos os aspectos fortes ou débeis, sem ter que recorrer a essa classificação, arbitrária e insignificante, de socialismo “utópico” e socialismo “científico”. O fato é que homens como Saint-Simon, Considérant, Blanc, Vidal, e sobretudo, Proudhon, de modo algum consideravam o socialismo como uma revelação do céu, mas como resultado natural do desenvolvimento econômico, chegando assim a conclusões que não conseguiram superar nem mesmo os pretensiosos representantes do chamado “socialismo científico”.

Com exceção daquelas tendências cujas aspirações procediam, de modo imediato, das tradições políticas do jacobinismo, da doutrina comunista de Babeuf e de sua “Conjuração dos Iguais”, quase todas as escolas do socialismo em França e Inglaterra tinham de comum considerar que a realização de seus fins podia lograr-se mediante uma transformação pacífica das instituições sociais e pela educação das massas. Alguns quiseram explicar esse traço característico pela carência pessoal de temperamento revolucionário; outros destacam nele uma estranha, ignorância das “leis de desenvolvimento social”. Mas ambas as tentativas de explicação carecem de validez, pelo mero fato de que não tomam em consideração o fundamento do problema.

Muitos daqueles chamados “utópicos” desempenharam um papel importante nas conspirações das sociedades secretas contra os Bourbons. Entre eles acham-se precisamente os que, mais tarde, como representantes da nova doutrina, nada esperavam das insurreições revolucionárias. Bazard, Leroux, Buchez, Cabet e muitos outros foram os membros mais ativos da Carbonaria francesa. Alguns deles tinham estado filiados à sociedade secreta dos “Amigos da Verdade”. Buchez, que, depois da fracassada tentativa da sublevação de 1821, fora detido e julgado, escapou à morte graças a um só voto. Foi sua amizade com Saint-Simon que o levou a outros caminhos. O próprio Saint-Simon, em sua juventude, tinha participado da sublevação nas colônias norte-americanas contra a Inglaterra, e tinha combatido sob as ordens de Washington. Portanto, dificilmente podia afirmar-se que as inclinações revolucionárias foram completamente alheias àqueles homens. O fato de que, depois de experimentar um esclarecimento interior por meio do socialismo, deixaram de confiar no êxito doe movimentos insurrecionais explica-se tendo-se em conta a nova direção de seu pensamento, assim como pelas condições que prevaleciam em seu tempo. Tinham reconhecido que as raízes do mal social eram demasiadamente profundas para que fosse possível elminá-las tão-só mediante medidas violentas; ademais não se podia esperar, então, apoio algum das massas esgotadas pelas longas guerras e suas conseqüências.

Assim sucedeu que a educação das massas se converteu, para a maioria dos antigos socialistas, em campo essencial de sua atividade. As experiências dolorosas da época tinham-lhes ensinado que uma transformação mais radical da vida se tornava impossível enquanto a fração pensante do povo não estivesse ainda conquistada pelas novas idéias e não se encontrasse ainda convencida da magnitude da tarefa que lhe competia. As últimas palavras de Saint-Simon, e dirigidas ao seu discípulo predileto Rodriguez, “não esqueças nunca, meu filho, que é preciso ter o coração cheio de entusiasmo por uma idéia para poder levar a efeito grandes coisas”, são a expressão mais profunda desse conhecimento. Pois as condições externas de vida não são senão o solo alimentício de onde brotam as idéias dos homens; mas são as próprias idéias que tornam os homens aptos para qualquer nova forma de existência social e criam novas condições de vida.

Porque também a fé na onipotência da revolução não é, em última análise, senão uma ilusão que tem provocado muitos prejuízos. As revoluções não fazem senão desenvolver os germes que já existiam anteriormente e que penetraram profundamente na consciência dos homens. Mas elas mesmas não podem criar esses germes, fazendo surgir um mundo novo do nada. Uma revolução é o desencadeamento de novas forças que já atuavam dentro do seio da velha sociedade; forças que quando chega o momento, fazem saltar as velhas ligaduras, assim como a criança que tendo cumprido seu tempo de embrião, arrebenta a velha envoltura para iniciar sua própria existência. É característica da natureza da revolução, a circunstância de que a renovação das condições sociais de vida não proceda desde cima, mas que dependa da atividade imediata das amplas massas do povo, sem as quais seria impossível uma transformação autêntica. Neste aspecto, a revolução supõe sempre a conclusão de um determinado processo de desenvolvimento, e ao mesmo tempo, representa o caminho de uma nova estrutura da sociedade.

Mas esse rejuvenescimento da vida social por meio da revolução só é concebível, contudo, quando houver uma expansão cada vez maior de novas idéias e representações dentro do velho corpo social; e também depende do modo mais ou menos decisivo de atuação de seus representantes. Quando se destacam cada vez mais, até ficarem despidas, as velhas formas de vida; quando se desenvolvem novas normas de valor, morais e sociais, realiza-se, paulatinamente, uma nova atmosfera espiritual, cuja expansão contínua socava o prestígio das velhas instituições sociais e de seus representantes, até que estas se desmoronam completamente, incapazes de toda resistência. O primeiro impulso para uma transformação verdadeira procede sempre das minorias intelectuais vivas; mas a revolução só chega ao desabrochar total de suas forças, quando amplas massas do povo se acham imbuídas da necessidade de uma mudança radical das condições sociais, desenvolvendo as atividades nessa direção. A princípio, a multidão luta indistintamente, até que os impulsos indefinidos se condensam, em grandes partes do povo, convertendo-se em conceitos firmes e em convicções íntimas.

Sem que haja tal desenvolvimento intelectual, não é concebível uma revolução, É a primeira condição prévia para qualquer mudança social, que estimula o povo à resistência e lhe dá maior consciência de sua dignidade humana. Quanto mais profundamente penetrem as novas idéias nas massas, exercendo seu influxo sobre o pensamento dos homens, tanto mais inapagáveis são as pegadas que deixam na vida da sociedade. Mas seria completamente errôneo considerar a revolução apenas como uma transformação violenta das velhas formas sociais dando máxima importância à parte destruidora de sua obra. O aspecto destruidor da revolução não constitui senão um fenômeno secundário, que depende quase exclusivamente do grau de resistência que oferece o adversário. Não no que destrói, mas no novo que cria, e que ela ajuda a dar vida, revela-se a sua essência. São as tendências criadoras, que ela libera das tenazes das velhas formas sociais, as que dão à revolução sua importância social e histórica.

Uma revolução, portanto, significa muito mais que um mero motim de rua, cujos motivos estão determinados por vários acidentes, coisa que nunca ocorre tratando-se de uma revolução autêntica, pois esta constitui sempre o último elo da cadeia de um grande processo de desenvolvimento, que só chega ao término final por meios violentos. Ali onde não existam essas condições prévias, uma sublevação, no melhor dos casos, poderia produzir uma mudança superficial das condições políticas, fazendo ascender ao poder novos partidos; pois o povo ainda não se acharia maduro para um conhecimento mais profundo, esperando portanto sua salvação unicamente de um novo governo, como o crente na providência divina.

A violência por si mesma nada cria de novo. No melhor dos casos, pode eliminar formas velhas e gastas e abrir os caminhos para um novo desenvolvimento, se as possibilidades forem favoráveis. Mas não pode gerar idéias que primeiro hão de prosperar e madurar no cérebro dos homens, antes de se manifestarem em forma prática. Neste aspecto, a violência tem sido, em maior envergadura, na história, uma característica típica da reação, que se servia dela para estrangular qualquer impulso criador e fixar o pensamento dos homens dentro de determinadas formas, enquanto a revolução tendia precisamente para o contrário, preparando, só por este meio, o caminho para todas as mutações sociais mais profundas.

A ruptura mediante a violência, com todas as velhas formas, mortas já internamente, constitui quase sempre o único meio de abrir caminho a novas formas, mas nada tem de ver com o “culto da violência”, que se preconiza, sistematicamente, pela reação. Esta é a causa também de toda revolução, no mesmo instante que desemboca num novo sistema de violência, exercido por determinado partido, perder o seu verdadeiro caráter e dar lugar à contra-revolução.

O que desconhece este fato por muito que se presuma de convicção revolucionária, segue sendo, no fundo de seu ser, tão-somente um pratidário revolucionário do golpe de Estado, o qual consciente ou inconscientemente, se acha no campo da contra-revolução. Mas Nettlau deu uma expressão muito profunda a esta concepção:

“A idéia babeufista e blanquista, que preconiza a chegada violenta ao poder estatal e à ditadura, é aceita, sem prévio exame consciencioso, também fora daqueles círculos conscientemente autoritários: e dela surgiu a crença na onipotência da revolução. Por muito que eu a deseje, e por muito que respeite essa crença, sua origem, contudo, é autoritária: é um pensamento napoleônico que desconhece, o que não tem importância para os autoritários, a autêntica penetração de cada indivíduo pelo espírito, o sentimento e a compreensão sociais. O fato de que estes automaticamente se coloquem numa situação melhorada, é outra suposição algo sumária, e não constitui uma prova convincente de que a nivelação alcançada pelo terror, seja um argumento em favor das revoluções autoritárias”.


 

 

Absolutismo, ponto de partida do socialismo autoritário

 

A maioria dos precursores do socialismo não esperavam nada, em favor de sua causa, das conjurações e intentos de sublevação, porque muitos deles, por experiência própria, tinham visto a esterilidade de tais intentos. Outros extraíam as conclusões dos resultados imediatos da história contemporânea. Compreendiam que era impossível querer, por meio da violência, levar as coisas à sua maturidade, visto acharem-se na primeira fase de seu desenvolvimento natural e que, no momento, só tinham encontrado um eco espiritual numa pequena minoria. Sua concepção é tanto mais compreensível visto que, em seu caso, não se tratava da mudança comum de governo, mas da transformação de todas as condições sociais de vida, objetivo impossível de lograr sem contar com a disposição espiritual de amplas massas populares. Não era, pois, nem ingenuidade pessoal nem inconsistência nas convicções o que deu lugar a semelhantes reflexões, mas tão-somente a total importância de uns indivíduos situados numa época que tinha perdido todos os vínculos sociais, e que conhecia unicamente as ordens de mando e uma submissão sem resistência.

Mas tampouco os grandes precursores do socialismo puderam subtrair-se às influências autoritárias do tempo, por muito que suas idéias se tivessem adiantado à época. As concepções liberais, que noutra época teriam encontrado expressão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tinham passado para segundo plano, dando lugar ao novo absolutismo de Napoleão, herdeiro da Revolução. Os povos tinham-se novamente transformado em rebanhos, cujo destino descansava nas mãos de novos homens superiores, que lhe davam forma. O jacobinismo tinha refrescado a crença na onipotência do Estado, crença que, devido à Revolução, tinha perdido seu brilho durante algum tempo. Mas Napoleão, por sua própria autoridade, se convertera em “mecânico que inventa a máquina”, como Rousseau costumava chamar ao legislador. Os imensos êxitos militares e políticos do conquistador corso, em todo o Continente, desencadearam uma verdadeira onda de admiração, que sobreviveu à sua queda. A crença milagrosa nos “grandes heróis” da história, amoldando, à sua vontade, o destino dos povos, como o padeiro que amassa o pão, celebrava seus maiores triunfos e fazia que se turvasse o olhar dos homens ante qualquer sucesso orgânico. A fé na onipotência da autoridade converteu-se, de novo, no conteúdo da história e encontrou expressão nos escritos de Haller, Hegel, De Maistre, Bonald e outros. O lema de De Maistre: “Sem Papa, não há soberania; sem soberania, não há unidade; sem unidade, não há autoridade; sem autoridade não há ordem”, converteu-se no leit-motiv dessa nova reação que se ia estendendo sobre toda a Europa.

Só ao ter em conta a época em que o espírito de autoridade celebrava seus maiores triunfos, quando não existia nenhuma contracorrente política capaz de debilitar o sentimento de dependência total, podemos compreender que Saint-Simon, em 1813, escrevesse sua famosa carta a Napoleão a fim de o estimular a levar a cabo uma reorganização da sociedade européia; ou que Robert Owen se dirigisse a Frederico Gentz, escritor tão espiritual como falto de caráter, a soldo da Santa Aliança, para propor-lhe que apresentasse ante o Congresso dos princípes de Aquisgran (1818) seus planos para combater a miséria social ou que Fourier fizesse uma sugestão semelhante ao ministro de Justiça de Napoleão, esperando, mais tarde, durante dez anos, o homem que havia de pôr à sua disposição um milhão de francos, soma com a qual pretendia fazer um ensaio prático de grande envergadura, para a realização de suas idéias.

No ano de 1809 apareceu em Paris uma obra em dois tomos, intitulada “La Philosophie du Ruvarebohni”, um dos produtos mais engenhosos da literatura socialista daquela época (2). A obra contém toda uma série de reflexões brilhantes sobre as bases de uma sociedade socialista, no detalhe das quais não podemos penetrar. O característico deste livro é que seu autor imagina a libertação da sociedade pelo grande chefe Poleano, que, com a ajuda dos grandes sábios do povo dos Icanarís, inicia e dirige o grande renascimento da humanidade. Da mesma forma que o cônsul romano Cincinato, depois da guerra volveu ao seu arado, assim Poleano renuncia voluntariamente o seu poder, para viver como os seus concidadãos, gozando com eles dos frutos da obra que tinha levado a cabo tão brilhantemente. Poleano é, logo se vê, uma deformação do nome de Napoleão e o povo dos Icanarís é outra designação para os dos franceses (français).

Sem dúvida, os autores desse estranho livro sentiram-se estimulados a escrevê-lo pelos múltiplos planos de Napoleão, mediante os quais este esperava romper a resistência dos ingleses e converter a indústria francesa na primeira do mundo. Suas inumeráveis conferências com homens de ciência, técnicos, industriais e representantes do alto capital, assim como com aventureiros de toda laia, impostores de toda classe, charlatões, cujo único objetivo era o de encher os seus bolsos, só tinham em vista essa única meta. Em tais circunstâncias era compreensível que nossos filósofos abrigassem a esperança de ganhar o Imperador para seus projetos, fazendo do absolutismo o ponto de partida do socialismo.


 

 

O modelo do Estado totalitário

 

A esperança de ganhar Napoleão para a causa de uma transformação socialista da sociedade, não constituía, em suma, nenhum fenômeno separado. A objeção de que homens como Saint-Simon, Fourier e os dois autores da mencionada obra acreditassem na possibilidade de uma ajuda, presenteada por Napoleão, unicamente devido à sua aversão íntima a todas as tentativas revolucionárias, não é válida, pois encontramos tendências semelhantes também naqueles círculos que tinham permanecido fiéis às tradições jacobinas, esperando de uma ditadura revolucionária a realização de seus planos socialistas. Também Miguel Buonarroti, companheiro de Babeuf, e a quem Bakunine classificou como o maior conspirador do século, fundava suas esperanças em Napoleão, e acreditava seriamente que este estava destinado a ser o instrumento de uma revolução, para acabar o que a primeira havia deixado inconcluso.

Quando Napoleão, em virtude da sentença das grandes potências européias, foi desterrado para Elba, seus antigos camaradas no exército juntaram-se ao resto dos jacobinos, formando com eles associações secretas dirigidas contra o governo de Luís XVIII que havia sido imposto à França.

Napoleão, que possuía muita clarividência quanto à lógica dos acontecimentos, sabia perfeitamente que não podia esperar ajuda nenhuma da burguesia francesa, que o tinha resolutamente abandonado quando da invasão dos exércitos aliados. Portanto, via-se obrigado a apoiar-se nas classes populares mais baixas, alimentando-as com grandes promessas, a fim de pô-las em movimento. Quando regressou às Tulherias, em 20 de março de 1815, visitou arrabaldes e fábricas, permitiu que os operários lhe apresentassem relatórios sobre a situação econômica e prometeu-lhes que dedicaria o resto de sua vida à paz, para mostrar ao mundo que “não era somente o Imperador dos soldados, mas também dos camponeses e proletários”. Alguns velhos democratas, antigos inimigos do Imperador, entraram no governo, para que o povo reconhecesse que se tomava a sério o prometido “reino da paz e da democracia”. Aboliu-se a censura e suprimiu-se o controle policial sobre o comércio de livros. Seu adversário de muitos anos, Benjamin Constant, que se sentava no mesmo governo ao lado de Carnot, recebeu o encargo de elaborar o projeto da nova Constituição. Foi, com efeito, “uma época de vertigem” esse período dos “Cem Dias”, que iria encontrar um fim tão rápido e sangrento na batalha de Waterloo. Bonapartistas e jacobinos tinham abandonado, desde o regresso dos Bourbons, seu velho feudo, pronunciando-se ambos a favor do restabelecimento do Império. A política gera às vezes estranhos companheiros, mas tais pactos, em regra geral, costumam celebrar-se unicamente quando os pactuantes têm idênticas aspirações básicas. Fizeram-se diversas conjeturas sobre como se teria desenvolvido o futuro da Europa se Napoleão tivesse oportunidade de levar avante as reformas sociais que prometera. Mas é difícil supor que teria cumprido suas promessas se não tivesse sucumbido tão rapidamente ante os adversários militares. Um homem do seu caráter, acostumado tão perfeitamente à idéia de desempenhar, na Europa, o papel da providência, considerando sua própria vontade como lei suprema, dificilmente teria sido capaz de ir por outros caminhos. Não é impossível que realmente abrigasse a idéia de grandes reformas sociais. Seus planos definitivos de fundir a Europa numa grande unidade econômica sob a hegemonia da França, assim como outras idéias, parecem favorecer essa hipótese. Mas essas reformas só teriam sido adequadas à sua própria natureza: um Estado de termitas sobre a base de uma moral de quartel, que afogaria todo o indivíduo e submetê-lo-ia ao ritmo autômato de uma máquina, que reduz tudo ao mesmo nível.

Se Fourier e Saint-Simon acreditaram ganhar a Napoleão para a causa de uma grande reforma social foi porque Napoleão, aos seus olhos, encarnava em si todas as possibilidades que podiam facilitar um novo desenvolvimento da vida social. Esperavam, contudo, que um intento sério nessa direção tornaria, com o tempo, supérflua toda a base política e militar sobre a qual descansava o domínio do Imperador, substituindo-a por novas instituições sociais. Foi este um erro psicológico, que se explica, contudo, tendo em conta a situação política e social da época.

De modo diferente devemos julgar, por outra parte, a posição de Buonarroti e de seus partidários comunistas posteriores nas sociedades secretas da França. Entre eles e Napoleão existia certo parentesco interno, embora não se dessem conta disso. Buonarroti, que anteriormente tinha pertencido ao círculo dos íntimos de Robespierre, acreditava com o mesmo fervor na onipotência da ditadura; da mesma forma que Napoleão, nada lhe parecia impossível se tinha atrás de si um exército. Também Buonarroti contava com os homens como se fossem números, e se Napoleão estava firmemente convencido de poder quebrar toda resistência por meio da força, aquele e seus partidários acreditavam que era preciso forçar os homens a realizar sua felicidade por meio do terror revolucionário. No fundo, Napoleão continuou sozinho, com maior envergadura, o que Robespierre e seus discípulos já tinham iniciado, quer dizer, a centralização de todos os ramos da vida social. Portanto, não era, na verdade, o herdeiro da Revolução que tinha proclamado a “Declaração dos Direitos do Homem”, mas apenas o representante do jacobinismo, que tinha convertido esses direitos em coação, ilustrando sua interpretação, mediante a guilhotina.

Muitas vezes, na vida política, os extremos se tocam, mas só quando existem pontos de atração comuns, que, em certas circunstâncias, se orientam na mesma direção. Todas as reformas de Napoleão foram produto de uma atmosfera de quartel. O comunismo igualitário de Babeuf, Buonarroti e de toda a escola posterior de babeufistas, obedecia a idênticas premissas. É o parentesco íntimo do pensamento e do sentimento que leva avante tais alianças. O pacto entre jacobinos e bonapartistas na época da Restauração; a adesão que Lassale buscou em Bismarck, e que não encontrou, porque não tinha atrás de si nenhuma potência equivalente; a aliança entre Stalin e Hitler, que se converteu na causa imediata da guerra mundial de hoje, tudo isso só se pode compreender assim. Em todos esses casos se trata de determinadas conseqüências de princípios absolutistas idênticos, embora sob diferentes formas. Quem não compreender essas relações internas nada lhe poderá revelar a História.

Toda a escola babeufista do socialismo encontrou seus representantes em homens como Barbés, Blanqui, Teste, Voyer d’Argenson, Bernard, Meillard, Nettré, etc., que ao desenvolver sua atividade, em associações secretas, tais como a “Sociedade das Famílias” e a “Sociedade das Estações”, mostram-se absolutamente autocratas em todas as suas tendências. Segundo um informe secreto que foi aprovado em 1840 por todas as seções das sociedades, um diretório composto de três pessoas tinha de organizar a sublevação próxima; depois da vitória, o mesmo diretório seria instituído em governo provisório. A seguir, esse corpo ditatorial devia ser eleito, não pelo povo, mas pelos próprios conspiradores. O governo assumiria a direção da indústria, assim como da agricultura e da distribuição dos produtos. Para estabelecer a igualdade ante o Estado, os filhos, a partir de cinco anos de idade, seriam afastados dos pais para serem educados em institutos oficiais. Deste modo, pois, os socialistas elaboraram naquela época o modelo do Estado totalitário. Também a idéia de Lenin do “revolucionário profissional” é apenas uma cópia do “estado maior revolucionário” de Blanqui. A “idéia monárquica”, à qual Proudhon havia declarado guerra, estava enraizada mais profundamente do que podiam suspeitar, e, como demonstram os últimos acontecimentos, ainda hoje em dia não perdeu o seu efeito.

Também a escola socialista de Esteban, Cabet, Louis Blanc, Contantin Pecquer e de outros mais, está impregnada de pensamentos absolutistas. Só em Fourier e seus partidários encontramos freqüentemente idéias liberais e tendências conscientemente federalistas. O socialismo inglês da velha escola, assim como o posterior, mostra um espírito muito mais liberal, porque as grandes correntes das idéias liberais exerceram uma influência muito maior sobre os seus representantes; o mesmo sucede na Espanha,, onde as tradições federalistas estavam enraizadas mais profundamente no povo, desenvolvendo-se o socialismo anarquista e convertendo-se num movimento de massas. Igualmente podemos dizer da Itália, onde as doutrinas de Pisacane e do socialismo libertário constituíram um eficaz contrapeso às tendências autoritárias da época.


 

 

Saint-Simon e as teorias da época

 

Entre os socialistas da velha escola não só encontramos multas vezes uma hostilidade pronunciada contra todas as aspirações liberais como um namoro manifesto com as concepções do absolutismo político, como até inclinações teocráticas, que procediam diretamente das concepções do catolicismo romano. Assim se observa especialmente nos discípulos de Saint-Simon e nos partidários do chamado comunismo teosófico. Entre as doutrinas ae Saint-Simon e os conceitos sociais vertidos em sua escola por seus discípulos existe uma divergência tão grande que se torna impossível, por vezes, a conciliação. E só poderíamos qualificá-la como uma degenerescência das idéias originárias do mestre. Entre os grandes precursores do socialismo, Saint-Simon foi, sem dúvida, uma das figuras mais notáveis, pois, com suas idéias, fecundou todas as tendências socialistas posteriores, desde as marxistas até as anarquistas. Seus amplos conhecimentos e a extraordinária faculdade de observação histórica deram-lhe um lugar junto aos mais importantes pensadores de sua época, lugar que mantém com indiscutível direito. Chamaram-lhe de “natureza de Fausto”, e não sem razão, pois ele apelou para muitas portas ocultas. E a fome eterna de conhecimentos cada vez mais profundos, constitui o conteúdo de toda a sua vida singular, tão rica pela originalidade e emocionante pela grandeza trágica.

Saint-Simon nunca estabeleceu uma teoria determinada quanto à solução do problema social, nem tampouco se perdeu na busca de representações abstratas, como fizeram seus discípulos posteriores. Sua imensa superioridade intelectual fica demonstrada pelo fato de que uma série de espíritos importantes de sua época não puderam subtrair-se ao encantamento de seus pensamentos. Augustin Thierry, o grande historiador francês; o geólogo Le Play; Augusto Comte, o fundador da “Filosofia do Positivismo”; o jurista Lerminier; H. Carnot, que foi mais tarde ministro de Instrução Pública; compositores como Léon Halévy e F. David; engenheiros como Barrault, Mony e Lesseps, o construtor do canal de Suez; economistas e financistas como Michel Chevalier, Adolphe Blanqui, O. Rodriguez, Émile Péreire; homens que mais tarde haviam de desempenhar um papel destacado no movimento, socialista, como por exemplo A. Bazard, P. Enfantin, P. Leroux, J. Reynaud, Ph. Buchez e muitos outros, ainda, todos eles saíram da escola de Saint-Simon, ou então sofreram uma forte influência de suas concepções. Também Enrique Heine e a novelista George Sand foram impressionados por suas idéias. Só um espírito superior poderia produzir um influxo tão forte e duradouro.

A verdadeira grandeza de Saint-Simon funda-se em sua brilhante análise das novas condições econômico-políticas, resultantes da Revolução Francesa, assim como nas profundas idéias sobre a importância da indústria moderna, que considerou, com razão, como um dos fatores mais decisivos para o desenvolvimento econômico e político da sociedade européia. Ao mesmo tempo, a indústria não significava para ele tão-somente um fenômeno material mas também um elemento espiritual, pois por meio dela, o espírito poderia vencer a matéria e criar, por sua vez, certas normas éticas de vida, desconhecidas da velha sociedade: a valorização do trabalho humano.

Saint-Simon foi um dos primeiros grandes filósofos sociais que traçaram um limite claro entre a organização política do Estado e a estrutura natural da sociedade, tratando de determinar claramente a esfera de influência de ambos. Em seu trabalho Du systhème industriel (1821) atribui o eclodir da Grande Revolução à tutela exercida pelo Estado e à regulamentação da indústria, concluindo daí que o peso principal de toda a atividade humana não podia basear-se nas formas políticas do governo, mas nas condições econômicas e gerais da época. Enquanto a humanidade não tinha ainda ultrapassado seu estado de infância, a tutela exercida pelo governo era apenas uma função natural, fundada nas mesmas circunstâncias que a tutela que exercem os pais sobre o filho. Mas assim como o homem adulto prescinde dessa tutela e em sua maturidade traça a sua vida conforme as suas próprias necessidades e com sua própria responsabilidade, assim também a humanidade, como totalidade, há de suprimir, pouco a pouco, o governo, aprendendo a ser independente. “A arte de governar os homens desaparecerá para dar lugar a uma nova arte: a arte de administrar as coisas”. A época da maturidade social se inicia, segundo Saint-Simon, com a criação da indústria. E esta não só há de libertar os homens da maldição da pobreza, mas também da necessidade de serem governados.

Mas os discípulos de Saint-Simon não souberam aproveitar as idéias luminosas do mestre, que Proudhon acolheu e desenvolveu, e se converteram não só em representantes de um novo catolicismo, mas também de uma nova hierarquia, à qual chamaram de “Igreja saint-simoniana”. O fim a que aspiravam era uma teocracia social, na qual os representantes da arte, da ciência e do trabalho constituiriam a estrutura interna do Estado. Em oposição à maioria das tendências socialistas, os saint-simonianos eram adversários da República, pois viam na forma republicana do Estado a expressão de uma cisão interna. “A República — disse Rodriguez — é impossível; nunca se realizará. Até o seu nome desaparecerá, e será substituído pelo de associação. É um erro acreditar que o saint-simonismo é republicano.”

Enquanto os representantes da escola liberal queriam impedir o abuso do poder público por meio de uma divisão dos poderes e, sobretudo, pela separação dos poderes legislativo e executivo, os saint-simonianos viam nesta divisão apenas um fracionamento das forças sociais, que teriam de conduzir fatalmente a uma corrupção da comunidade. Eles aspiravam à união de todos os poderes políticos e sociais, concentrados em uma única pessoa. “O chefe do Estado é, ao mesmo tempo, legislador e juiz. Ele determina as linhas diretrizes da ordem pública e decide sobre sua aplicação. Ele é a lei viva, o órgão do qual procede tudo, elogio e censura”.

Como, segundo a concepção dos saint-simonianos, a existência material dos homens acha-se ligada estreitamente à religião, a nova Igreja, como união sintética e unidade orgânica, eleva-se sobre todas as estruturações da vida econômica e social. Por isso, toda a direção da sociedade descansa nas mãos do sacerdote, pois a Igreja deixa de ser uma instituição da sociedade e converte-se na própria sociedade. Toda a ordem social se edifica sobre a base de três grandes princípios: “amor, pensamento e força”, representados por três classes sociais: artistas, sábios e trabalhadores, que formam a hierarquia da vida social. Em uma tal comunidade não há lugar para interesses individuais e pessoais; todo o individual desaparece fundindo-se no organismo da sociedade. O sacerdote é o intermediário em todas as relações sociais. Não só decide sobre os assuntos da vida espiritual, mas também designa o lugar de cada membro da comunidade e cuida do equilíbrio social mediante uma distribuição justa da produção geral e a divisão adequada doa produtos do trabalho.

A “Associação Universal de Trabalhadores” dos saint-simonianos tem o caráter de uma teocracia social, em cuja cabeça está o Papa industrial, cujas ordens cada indivíduo tem de obedecer sem objeção, já que são igualmente obrigatórias para todos. É o modelo do Estado totalitário que mantém todas ás manifestações da vida dentro de bitolas justas, cuidando que cada um receba a parte que lhe corresponda em virtude de sua posição e casta social. Trata-se da representação de uma Igreja social como símbolo da confraternização humana, Igreja que determina a cada indivíduo o lugar que há de ocupar para fazer prosperar os interesses da comunidade. Esse era o ideal político dos saint-simonianos, os quais, consciente ou inconscientemente, se encontram neste ponto, com os representantes rigorosos do princípio absolutista da autoridade. Também sua organização tinha a marca teocrática de uma nova Igreja. Esta era dirigida por um “Sacro Colégio”, a cuja frente figuravam como “sacerdotes supremos”, Bazard e Enfantin. Possuía comunidades, bispados e sedes episcopais em Paris, Tolosa, Angers, Lyon, Metz, Blois, Bordéus, Nantes, Limonges, Tours, Dijon e numa série de cidades, contando com representantes ativos no estrangeiro, sobretudo na Bélgica.

Particularmente depois da morte de Bazard, quando Enfantin se converteu em cabeça única, o “Papa” da nova Igreja, o fervor religioso de seus adeptos assumiu, muitas vezes, um caráter que hoje dificilmente podemos explicar. Por exemplo, escreveu-lhe uma vez Reynaud, da Córsega: “O beijo de meu Pai me dará forças; sua palavra, eloqüência. Ponho toda a minha confiança em meu Pai, pois sei que ele conhece melhor a seus filhos que estes mesmos. E, contudo, por que me ponho a tremer quando sinto a sua aproximação?” E Barrault, um dos oradores mais brilhantes, e apóstolo da nova Igreja, escreveu a Enfantin: “Pai, tu és o mensageiro de Deus na terra e o rei de todos os povos! Jerusalém viu o seu Cristo e não o reconheceu. Paris viu teu rosto e ouviu a tua voz. Mas a França conhece apenas o teu nome”.

Não há dúvida de que Enfantin estimulou este vergonhoso fervor religioso para dar à sua influência uma base espiritual, contra a qual se chocavam os argumentos do senso comum. Se com ele comparamos a atitude da Igreja política do comunismo moderno, cujos cegos membros, sempre se acham, dispostos, por ordem superior, a caluniar tudo quanto ainda ontem haviam celebrado, tornam-se compreensíveis muitas coisas que nos pareciam estranhas ao estudar aquela época que passou.


 

 

Fernando Lassalle e seu socialismo

 

A influência das correntes absolutistas no desenvolvimento das idéias socialistas nos primeiros períodos de seu crescimento, foi sem dúvida nefasta, apesar de as causas nos parecerem compreensíveis tendo-se em conta as condições da época. Mas na França não existia apenas uma tradição jacobina e autoritária senão que a própria Grande Revolução deixara sulcos profundos no pensamento dos homens; sulcos imperecedouros que ofereciam pontos de contacto para novas possibilidades de desenvolvimento. E embora seja um fato indiscutível que certas tendências do socialismo francês estavam impregnadas do absolutismo político e clerical, essas tendências encontraram certamente um peso eficaz nas reflexões histórico-filosóficas de Saint-Simon; na idéia da associação federalista do fourierismo e em sua doutrina do “trabalho atrativo”, assim como, sobretudo, na influência predominante da filosofia social-anarquista de Proudhon.

Muito distinta, porém, era a situação na Alemanha, carente de toda tradição revolucionária; onde o liberalismo foi sempre um débil substituto do modelo inglês, e onde as idéias da democracia burguesa nunca encontraram raízes no povo. A Alemanha continuou sendo, até o final da primeira guerra mundial, um Estado meio absolutista, e todas as vitórias eleitorais da social-democracia alemã não puderam mudar em nada esse fato histórico. Os primeiros princípios do movimento socialista na Alemanha foram importados da França; mas como seus mais eminentes representantes tinham saído, quase sem exceção, da escola de Hegel e Fichte, suas concepções adotaram, desde início, um caráter especial, que as diferenciava esssencialmente de todas as tendências socialistas que prevaleciam na Europa ocidental. Hegel, o “filósofo do Estado prussiano”, como se lhe chamou com razão, fizera do Estado o “Deus na terra”, e Fichte, em seu trabalho “O Estado mercantil fechado”, elaborara o projeto de uma sociedade socialista estatizada que poderia servir de modelo a qualquer estrutura de Estado totalitário. Quando Frederico Engels disse em seu trabalho “Do socialismo utópico ao socialismo científico”: “Nós, os socialistas alemães, estamos orgulhosos de não descender apenas de Saint-Simon, Fourier e Owen, mas também de Kant, Fichte e Hegel”, não fez outra coisa senão constatar um fato. Mas outra questão é saber se esse fato deu realmente ao socialismo alemão a superioridade intelectual que Engels lhe atribui.

A agitação levada a cabo por Fernando Lassalle preparou o caminho para o moderno movimento operário alemão. Sua influência sobre este movimento vigorou por muito tempo e voltou a despertar novamente sobretudo antes da primeira guerra mundial e depois da revolução de novembro de 1918. Lassalle foi durante toda a sua vida um partidário fanático da idéia hegeliana do Estado. Seus discípulos estavam tão convencidos da “missão libertadora do Estado”, que sua fé no mesmo adotava às vezes formas grotescas. No estrangeiro acredita-se comumente que a Alemanha foi sempre o país mais marxista do mundo, e a luta bárbara dos chefetes do Terceiro Reich contra o “marxismo” confirmou em muitos essa opinião. Na realidade as coisas são muito distintas: o número de autênticos marxistas era relativamente pequeno na Alemanha, pois a posição política da social-democracia alemã achava-se muito mais sob a influência de Lassalle que sob a de Marx e Engels. Dele herdaram os socialistas alemães sua fé fervorosa no Estado e a maior parte de suas tendências autoritárias. De Marx tomaram apenas o determinismo econômico, a crença no poder invencível das condições econômicas e a terminologia dos conceitos.

Lassalle não era absolutista somente por suas idéias, mas também por seu caráter. Era um desses autocratas natos, convencidos tão profundamente de sua própria infalibilidade que qualquer objeção lhe parecia um pecado contra o “Espírito Santo”. Plenamente consciente disso, fez que se enraizasse tão profundamente, nas cabeças do pequeno número de seus adeptos fanáticos, a crença em sua “missão histórica”, que estes o contemplavam com entusiasmo exaltado, como a um novo Messias que tinha em suas mãos a salvação da humanidade. Animado por tal espírito, “O Novo Social-democrata”, órgão da escola de Lassalle, escreveu o seguinte:

“Por que somos tão entusiastas, tão enérgicos? Por que, nós, os lassaliananos, estamos possuídos de um fanatismo tão ardente? Porque a doutrina de Lassalle é uma doutrina infalível, e porque os lassalianos, ao proclamá-la, têm de considerar a si mesmos infalíveis nesse aspecto. A doutrina de Lassalle é a única verdadeira; é ínfalível e a fé nessa doutrina pode mover montanhas. Sem ter uma fé inabalável em sua doutrina, os primeiros cristãos não teriam vertido o sangue por ela; sem a infalibilidade dessa religião, não teria sido conhecida como tal. E sem a fé em Lassalle o socialismo nunca logrará lançar, entre os obreiros alemães, as raízes que um dia farão florescer a árvore da humanidade feliz”

Comparemos com essas efusões de ardente hidrofobia religiosa a repetida apelação à “necessidade do fanatismo” nos discursos de Hitler, e compreenderemos que os dois são feitos da mesma massa. Lassalle possuía todas as qualidades do ditador, só lhe faltavam as circunstâncias das quais procede a ditadura. Toda a sua organização tinha um caráter ditatorial apesar dos adornos democráticos. O Allgemeiner Deustscher Arbeiter-Verein (Associação Geral dos Operários Alemães) elegeu a Lassalle como seu presidente, para cinco anos, com poder ditatorial. Desenvolveu então o chamado “princípio do caudilho”, que hoje forma a pedra angular do “Terceiro Reich”, e desenvolveu-o com lógica assombrosa. Assim, em seu famoso discurso de Ronsdorf, em maio de 1864, disse:

“Ainda devo mencionar outro elemento sumamente notável de nosso êxito: é este espírito afeito à mais rigorosa unidade e disciplina que reina em nossa associação. Também neste aspecto, e sobretudo nele, nossa associação cria uma época e aparece como um fenômeno completamente novo na História. Esta grande associação, estendendo-se a quase todos os estados alemães, move-se e atua com uma unidade fechada de um só indivíduo. Poucas comunidades me conhecem pessoalmente, pois não pude visitá-las, e, contudo, desde o Reno ao Mar do Norte, e desde o Elba ao Danúbio nunca me responderam um ‘não’; a autoridade que me haveis confiado descansa em vossa constante e mais alta liberdade de eleição. Onde quer que eu tenha chegado, em todas as partes, ouvi, dos operários, palavras que se podiam resumir nesta frase: Devemos fundir todas as nossas vontades num só martelo, pôr este martelo nas mãos de um homem, em cuja inteligência, caráter, e vontade tenhamos a devida confiança, a fim de que seja capaz de assestar certeiros golpes!”

O conceito liberal do Estado, que a este só reconhece o direito de proteger a liberdade dos cidadãos e do país contra os agressores de dentro e de fora foi classificado por Lassalle de “idéia de candieiro”. Também sobre este ponto pensava como um hegeliano. “Se a burguesia fosse conseqüente ao pronunciar sua última palavra”, dizia Lassalle, “então teria de confessar que, conforme essa sua idéia, o Estado seria completamente supérfluo, se não existissem ladrões”. Lassalle absolutamente não queria saber dessas idéias, o que o diferenciava de Marx. Para ele o Estado era apenas o “todo ético” de Hegel, “que tem a função de conduzir o gênero humano para a liberdade”.

Foi precisamente essa concepção, absolutamente falsa sob o ponto de vista histórico, que o moveu a buscar uma aliança com Bismarck. O namoro de Lassalle com a “monarquia social”, “apoiada no punho da espada” para levar a cabo a grande tarefa, “se estivesse decidida a perseguir fins verdadeiramente grandes, nacionais e populares”, foi a causa de que a imprensa do Deutsche Fortscrittspartei (Partido Alemão Progressista) lançasse contra Lassalle e seus partidários a acusação de que serviam os interesses de Bismarck. Para essa acusação, na verdade, não se pode aduzir nenhuma prova material. A posição de Lassalle repousava em seu modo de pensar. Não servia os interesses de Bismarck, mas acreditava poder utilizá-lo para que servisse os seus, e aí, precisamente, se encontrava o ponto perigoso de seu jogo audaz, pois era Bismarck o que podia apoiar-se no “punho da espada” e não Lassalle. Seu biógrafo, Eduardo Bernstein, qualificou as manifestações de Lassalle, naquela época, de “linguagem própria do cesarismo”, e com razão, tanto mais que chegou ao extremo de dizer que a Constituição prussiana vigente era “um favor outorgado pela realeza às classes burguesas”. Num país como a Alemanha, semelhante concessão, feita por um chamado “democrata”, tinha de tornar-se duplamente fatal.

Lassalle era um homem de grandes dotes e, como disse ele mesmo uma vez, “guarnecido com toda a armadura intelectual de seu tempo”. Mas de muitas manifestações suas, contidas em discursos e escritos, e em algumas de suas cartas dirigidas a Sofia de Solutzew e à condessa de Hatzfeld, assim como de muitos outros detalhes, pode verificar-se que nesse homem extraordinário, venerado por muitos operários alemães como um semideus, a ambição pessoal foi o motivo verdadeiro de suas açõos. Por esta razão, ninguém poderia dizer aonde teria chegado Lassalle se a bala do aristocrata húngaro von Rakowitza não tivesse dado um fim prematuro à sua vida. Essa ambição realmente malsã manifesta-se nele já na adolescência. Escreveu, por exemplo, depois de assistir a uma representação teatral de Fiesko de Schiller, em seu diário, estas palavras significativas:

“Apesar de professar convicções revolucionárias democrático-republicanas, parece-me que, posto no lugar do conde de Lavagna, teria procedido como ele, não me teria conformado a ser o primeiro cidadão de Gênova, e teria estendido minha mão à coroa. Disto se deduz, ao examinar o caso friamente, que sou um egoísta. Se tivesse nascido príncipe ou monarca, de corpo e alma seria aristocrata. Mas como sou um humilde filho de burguês, serei democrata em seu devido tempo”.

Também os ídolos têm seus lados de sombra, ao examiná-los à luz do dia. E Lassalle tinha uma grande quantidade de sombras.


 

 

As teorias de Marx e Bakunine

 

DE índole muito diferente foi a influência que Marx exerceu sobre o movimento operário alemão, Marx não era um orador fascinante como Lassalle, que pudesse exercer um influxo imediato sobre o auditório por meio da palavra viva. As idéias de Marx ultrapassam freqüentemente a faculdade de compreensão até dos operários mais inteligentes, e só podiam chegar a estes por meio de explicações populares de segunda mão. Além disso, viveu no estrangeiro a maior parte de sua vida, enquanto Lassalle atuava na Alemanha, e, portanto, podia verificar melhor as necessidades imediatas de sua propaganda. Além disso havia nas doutrinas de ambos uma série de diferenças essenciais que encontravam sua expressão sobretudo em sua posição quanto ao Estado. Também Marx tomava como ponto de partida determinados conceitos absolutos, embora condicionasse o desenvolvimento da vida social a necessidades imperiosas, fundadas nas condições de produção que prevalecem numa determinada época. “O modo de produção da vida material condiciona o processo vital, social, político e espiritual, em geral”, como se expressa em sua famosa introdução à Crítica da Economia Política.

Marx estava firmemente convencido de ter descoberto as leis do movimento da sociedade burguesa. Portanto, empenhava-se em fundamentar as pretensas leis da física social como “puras” e “absolutas”. No primeiro tomo de O Capital, qualifica a chamada acumulação de capital de lei absoluta e geral e segundo a mesma “a riqueza de uma nação está em proporção com a sua população; e a miséria, em proporção com a sua riqueza”. Como discípulo de Hegel, representou esse processo de desenvolvimento como uma trilogia do acontecer, produzida, com necessidade rigorosa, automaticamente, pelas condições econômicas de vida. Assim lemos no primeiro tomo de O Capital:

“O modo de produção capitalista tende à acumulação do capital. Daí constituir a propriedade privada capitalista a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no próprio trabalho. Mas, a produção capitalista engendra, com a necessidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Esta não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual a partir das conquistas da era capitalista: sobre a base da cooperação e a propriedade comum do solo e dos meios de produção, originados pelo próprio trabalho”.

Essa concepção mecanicista e fatalista dos fatos históricos, que se apresenta aqui como verdade absoluta, produziu, ao crescer a influência do movimento alemão sobre as tendências socialistas de todos os países, um efeito paralisador quanto à formação da idéia socialista, embora Marx esperasse que, com o desenvolvimento progressivo dos fatos econômicos, se chegaria à superação de todos os poderes absolutistas do Estado. Precisamente neste aspecto, distingue-se essencialmente de Lassalle, o qual, durante toda a sua vida, permaneceu hegeliano quanto à concepção do Estado. No Manifesto Comunista lê-se:

“No decorrer do tempo, quando tenham desaparecido as diferenças de classe e esteja concentrada toda a produção em mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. A força política é, na verdade, a força organizada de uma classe para opressão de outra classe. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se une necessariamente formando uma classe, através da revolução, converte-se numa classe dominante, e põe fim pela força às antigas condições de produção, suprime conjuntamente com estas condições de produção a existência da contradição de classes, as próprias classes, e, com elas, seu próprio domínio como classe... Em lugar da velha sociedade burguesa com suas classes e contradições de classes, aparece uma associação, em que o livre desenvolvimento de cada uma está condicionado pelo livre desenvolvimento de todos”.

Até no panfleto, cheio de ódio, L’Alliance de la Démocratie socialiste et l’Association internationale de Travailleurs, redatado por Marx, junto com Engels e Lafarge contra Bakunine e a ala libertária da Internacional, repetem-se outra vez as palavras contidas já naquela famosa Circular do Conselho Geral, Les pretendues scissions dans l’Internationale:

“Todos os socialistas entendem por anarquia isto: uma vez alcançada a meta do movimento proletário, quer dizer, a supressão das classes, desaparecerá o poder do Estado, que serve para manter a grande maioria produtora sob o jugo de uma minoria exploradora e as funções de governo se converterão em simples funções administrativas”.

A meta política que Marx tinha em vista era, pois, indubitavelmente a eliminação do Estado na vida da sociedade. Neste aspecto, estava totalmente sob a influência das idéias de Proudhon. Só na forma de alcançar essa meta se distinguia essencialmente de Bakunine e das federações libertárias dentro da Internacional. Bakunine e seus amigos defendiam o ponto de vista de que uma transformação social tinha de suprimir o aparelho político do Estado junto com as instituições de exploração econômica, a fim de tornar possível um livre desenvolvimento da nova vida social. Marx, pelo contrário, queria utilizar o Estado, sob a forma de “ditadura do proletariado”, como meio de levar a cabo praticamente o socialismo e suprimir as contradições de classes dentro da sociedade. Só depois de desaparecer as classes, teria de ser destruído o aparelho político do Estado, para dar lugar à mera administração. A oposição entre ambas as opiniões e a tentativa de Marx e seus partidários, no Conselho Geral, de impor uma forma de organização centralizada às federações da Internacional, e normas fixadas à sua política, foram as verdadeiras causas que mais tarde originaram a cisão e decomposição interna da grande associação operária.

A História contemporânea decidiu quem teve razão nessa controvérsia. O experimento do bolchevismo na Rússia demonstrou claramente que por meio da ditadura pode chegar-se ao capitalismo de Estado, nunca ao socialismo. Também uma sociedade sem propriedade privada pode escravizar um povo. A ditadura pode suprimir uma velha classe, mas sempre se verá obrigada a apoiar uma casta governante formada por seus próprios partidários, outorgando-lhes previlégios que não os possui o povo. A ditadura como “movimento de libertação” é impulsionada pela lógica das circunstâncias a ser um instrumento de opressão, substituindo qualquer forma antiga de escravidão por outra nova. Também a chamada “ditadura do proletariado” não é, na realidade, senão uma ditadura sobre o proletariado, até quando é imaginada como provisória, como período de transição. Porque “todo governo provisório mostra a tendência a converter-se em permanente”, como predisse Proudhon, com sua profunda compreensão dos fenômenos. O fato de este conhecimento ter sido adquirido à custa de tanto sangue, tantas lágrimas e tantas esperanças perdidas, constitui, sem dúvida, um dos aspectos mais trágicos da História.

Em 20 de julho de 1870, Marx escreveu a Engels estas palavras, tão expressivas de seu caráter e de sua personalidade:

“Os franceses necessitam de açoites. Se ganham os prussianos, também ganhará a centralização do pior Estado, útil para a centralização da classe operária alemã. O predomínio alemão mudará, além disso, o centro de gravidade do movimento operário europeu, da França para a Alemanha, e basta apenas comparar o movimento, de 1866 até hoje, em ambos os países, para se verificar que a classe operária alemã é superior, em teoria e organização, à francesa. Seu predomínio, no teatro mundial, sobre a francesa, significaria, ao mesmo tempo, o predomínio de nossa teoria sobre a de Proudhon, etc.”

Marx tinha razão. A vitória da Alemanha sobre a França significou, com efeito, um ponto crucial na história da Europa e do movimento socialista internacional. O socialismo libertário de Proudhon foi postergado pela nova situação, deixando o campo livre para as concepções de Marx e de Lassalle, autoritárias até a medula. A faculdade de desenvolvimento livre, criador e ilimitado, do socialismo, foi substituída, nos subseqüentes cinqüenta anos por um dogmatismo rígido, que se apresentou ante o mundo com a pretensão de ser uma ciência, mas que, na realidade, só repousa sobre uma amálgama de argúcias teológicas e de errôneas conclusões fatalistas que vieram a sepultar toda a idéia autenticamente socialista. Essa mania de superioridade tomava, às vezes, formas verdadeiramente grotescas. Os alemães consideravam-se como guias do “socialismo científico” e como “mestres do movimento operário internacional”, esquecendo completamente que a Alemanha de Bismarck era um Estado militar e policíaco semidespótico, que ainda teria de conquistar o que outros países da Europa Ocidental há muito tempo já tinham obtido; conquistas com as quais nem sequer se ousava sonhar no país das paradas, da arbitrariedade policial e da “obediência de cadáver”.

O fato de um proletariado que não tinha atrás de si nem as mínimas tradições revolucionárias, que conhecia a idéia socialista apenas na forma do fatalismo econômico de Marx e através da fé cega no Estado de Lassalle, tenha podido converter-se em guia do movimento socialista internacional, foi tão nefasto para o socialismo como o foi a política de Bismarck para o destino da Europa. Meu inesquecível amigo, o poeta Erich Mühsam, assassinado pelos nazis no campo de Oranienburg, criou para essa tendência singular a palavra “bismarxismo”, a melhor e mais acertada definição que se poderia ter encontrado.


 

 

O caminho das ditaduras

 

A grande transformação política, que se realizou depois da guerra franco-alemã de 1870-71, tinha de produzir efeitos semelhantes também sobre o socialismo. Em lugar de criar grupos possuídos pelos ideais socialistas e de levantar organizações de combate no campo da economia, nas quais as frações progressivas da Primeira Internacional viam as células da sociedade futura e os órgãos naturais para a transformação da economia num sentido socialista, os modernos partidos operários, trasladaram o centro de gravidade do movimento da idéia da conquista do solo e das empresas industriais para a conquista do poder político. Assim se foi desenvolvendo no curso dos anos uma ideologia completamente nova. O socialismo foi perdendo cada vez mais o caráter de um novo ideal de cultura, cuja missão deveria ter sido a de preparar os povos espiritualmente para a desaparição da civilização capitalista, e capacitá-los praticamente, não detendo-se, portanto, ante os estreitos limites do Estado nacional.

Na cabeça dos líderes dessa nova fase do movimento, se misturavam os interesses do Estado nacional com os do partido, até que, afinal, já não foram capazes de guardar certo limite, acostumando-se a considerar o socialismo através dos chamados “interesses nacionais”. Por isso teve de suceder fatalmente que o moderno movimento operário se incorporasse sucessivamente à estrutura do Estado, favorecendo, consciente e inconscientemente, as tendências absolutistas dos governos. Seria errôneo atribuir esta estranha conduta à traição cometida pelos líderes, como muitas vezes se disse. Na verdade trata-se apenas de uma adaptação paulatina do mundo de idéias da velha sociedade, condicionada pela atividade prática dos partidos operários de hoje e que, fatalmente, tinha de ter repercussões sobre a atitude intelectual de seus representantes políticos. Os mesmos partidos que foram educados para conquistar, sob a bandeira do socialismo, o poder político, viam-se, pela lógica implacável das circunstâncias, encurralados cada vez mais até tomar uma posição que os forçava a sacrificar um após outro, todos seus princípios socialistas à política nacional do Estado. Por meio de uma política nacional queriam conquistar o socialismo, mas o que realmente conseguiram foi que a política nacional conquistasse seu socialismo.

Como fascinados contemplavam os grande êxitos eleitorais da social-democracia alemã e admiravam o poderoso aparelhamento de partido que tinham construído, mas se esqueciam que, apesar daqueles êxitos, nada se tinha mudado na realidade alemã. A centralização de ferro do partido e a disciplina de quartel, copiada, tomando como modelo o Estado prussiano, afogavam toda iniciativa viva. A organização que só tinha de ser um meio para alcançar um fim, converteu-se em fim, matando o espírito que teria podido dar-lhe um conteúdo vivo. Citemos um exemplo para demonstrar que o que dizemos não é de forma alguma um exagero: Quando, depois da queda de Bismarck, o novo chanceler do Reich, von Caprivi, nomeado pelo Imperador, elogiou abertamente numa sessão do Reichstag, o zelo dos soldados social-democratas no exército alemão, contestou-lhe o líder mais prestigioso do partido, Augusto Bebel:

“Isso não me estranha nada, e só demonstra que os senhores da direita e do governo têm uma opinião completamente falsa da capacidade dos social-democratas. Creio até que a boa disposição com que precisamente os membros do meu partido se submeteram à disciplina regulamentar, é realmente conseqüência da disciplina que os domina. A social-democracia constitui, em certo modo, uma escola primária para o militarismo.”.

Ante atitude semelhante, podeis acaso estranhar que a Revolução Alemã de 1918 falhasse tão lamentavelmente? O Varwaerts (órgão social-democrata), ainda nas vésperas do 9 de novembro, recordou a seus leitores que o povo alemão ainda não estava maduro para a República. Ninguém objeta à social-democracia alemã o fato de não intentar introduzir depois da guerra o poder político ao qual durante tanto tempo tinha aspirado, implantando uma República solialista: na realidade, o povo alemão, em virtude da educação recebida não estava capacitado para tal. Mas, o primeiro governo puramente socialista que ocupou o poder depois da guerra, poderia ter feito uma coisa: acabar com o poder nefasto do junkerismo prussiano na Alemanha, atacando a grande propriedade da terra, na qual descansava o poder político dos Junkers. Os revolucionários burgueses da Revolução francesa, que não tinham idéias socialistas, compreenderam perfeitamente que só podiam libertar a França do predomínio político da aristocracia e do clero se expropriassem os latifundiários, despojando-os assim do verdadeiro poder e de sua influência política. Mas os socialistas alemães não tomaram tal medida, a única pela qual a República teria podido atrair os pequenos camponeses, os quais, mais tarde, se converteram em seus mais encarniçados inimigos. O resultado foi que, depois, dois Junkers prussianos, o filho de Hindemburgo e Franz von Papen, fizeram o jogo de Hitler, fazendo o poder passar para as suas mãos.

O que mostra a incapacidade da social-democracia alemã é que nem sequer se pensou em tocar na fortuna dos príncipes alemães. Enquanto as massas, meio mortas de fome, iam caindo cada vez mais na miséria, o Governo republicano seguia pagando às famílias do ex-Kaiser somas fabulosas, como “indenizações”, e tinha tribunais servís que cuidavam zelosamente de que nem um centavo se deixasse de pagar àqueles parasitas. Só os Hohenzollern reclamavam uma indenização de 200 milhões de marcos ouro. As exigências totais dos príncipes alemães ultrapassavam em quatro vezes o empréstimo Dawes. Se os líderes do movimento operário alemão tivessem procedido de maneira mais radical com a fortuna e as prerrogativas dos Junkers e príncipes, medidas essas radicais apenas na metade em comparação às usadas pelos nazistas, quando roubaram aos operários as caixas fortes dos sindicatos e todas as suas propriedades que somavam um valor de milhões, a Alemanha teria poupado a vergonha do Terceiro Reich e teria poupado ao mundo a catástrofe mais sangrenta de todos os tempos. Por outra parte, o Partido Comunista alemão só se alimentou das faltas e omissões da social-democracia, sem que desenvolvesse por si mesmo uma idéia criadora. Não foi nunca outra coisa senão o órgão submisso da política exterior russa, aceitando sem pestanejar qualquer ordem de Moscou. Assim insuflava o partido a fé na necessidade inevitável da ditadura naquela parte do proletariado socialista que já tinham perdido a confiança na social-democracia. Sobretudo entre a juventude, o partido comunista desenvolveu um fanatismo sem precedentes, que a fazia surda e cega a qualquer apreciação sensata da situação. Seu ruidoso protesto contra as medidas reacionárias do governo levava, desde o princípio, a marca da simulação e da hipocrisia, já que não podia honradamente defender a liberdade, quando aspirava a implantar a ditadura, que é a negação da mesma. Todo o fim encarna-se em seus meios. Ao despotismo do método sempre corresponde o despotismo da idéia. A ditadura à qual aspiravam os comunistas alemães há tantos anos, chegou efetivamente, mas proveio do lado oposto, triturando-os sob sua engrenagem.

Não cabe dúvida para todo observador sincero da situação atual e das causas que a originaram, que o manobrar com conceitos absolutistas, no campo socialista, não só quebrantou a força de resistência do movimento socialista em muitos países, e sobretudo na Alemanha, como favoreceu, espiritualmente, a reação fascista. Porque o socialismo será livre ou não existirá.


 

 

Vida de Bakunine

 

MIGUEL ALEXANDROVICH BAKUNINE nasceu em 20 de maio de 1814 em Prymukhino, pequena aldeia do governo de Tver, Rússia. Sua família era uma das mais antigas e aristocráticas desse país e segundo parece sua posição não era má. O pai de Bakunine humanitário e liberal, havia participado no movimento dos decembristas; mas na velhice se mostrou muito pessimista em relação às tendências liberais por haver perdido a fé em sua realização.

A mãe de Bakunine era uma verdadeira aristocrática: fria e soberba com todo o mundo, até com sua própria família. Sobre a infância de Bakunine pouco se sabe: mas consta que recebeu uma educação cuidadosa.

Ao cumprir vinte anos entrou para a Escola de Artilharia de Petrogrado, onde aprendeu com muito êxito a ciência da guerra. Aos vinte e um anos de idade foi nomeado oficial em um regimento de infantaria próximo à fronteira polaca. Mas a monótona vida de soldado não oferecia interesse para o jovem Bakunine. Passava os dias recostado num sofá entregue a meditações. Em 1834 abandonou finalmente o exército, renunciando à carreira militar.

A filosofia alemã exercia nesta ocasião uma influência muito forte na juventude russa e também Bakunine se interessou muito pelos conceitos abstratos e as doutrinas de Kant, Fichte, Schlegel, etc. Graças a viagens realizadas a Moscou e Petrogrado entrou em contacto com alguns círculos estudantis, nos quais se reuniam os jovens russos para estudar os diversos sistemas dos filósofos alemães e franceses. Em 1835 travou conhecimento com Stankevich, que era então o chefe espiritual de um círculo importante. Ambos os jovens uniram-se em estreita amizade e Bakunine se fez colaborador ativo de seu círculo. Por influência deste, conheceu o filósofo Gottlieb Fichte, cujas obras estudou com grande entusiasmo.

N. Bielinsky, que adquiriu mais tarde grande renome na literatura russa, editava naquela época um periódico de filosofia, “O Telescópio”. Nele publicou Bakunine seu primeiro trabalho literário, uma tradução para o russo das “Conferências sobre o destino do sábio”, de Fichte.

Quando Stankevich abandonou a Rússia, Bakunine converteu-se no inspirador intelectual do círculo. Em 1838 conheceu pela primeira vez as teorias do filósofo alemão Hegel, que exercia, naquela época, um influxo magnético sobre todos os espíritos. Era tão poderosa essa influência que causou uma revolução nas opiniões de Bakunine e seu amigos. A conhecida proposição de Hegel: “Todo o racional é real e todo o real é racional” provocou profundas diferenças entre as pessoas inclinadas aos estudos filosóficos, divergências que deram origem a parcialidades extremas.

Bakunine, Bielinsky e outros jovens se tornaram hegelianos ortodoxos e não se detiveram ante ás conseqüências reacionárias de Hegel.

“O absolutismo russo existe; portanto, está justificado e é natural”.

Esta afirmação que apresentara Bielinsky era o ponto de vista do círculo estudantil. Por ele então Bakunine publicou vários artigos e traduções no “Moscovski Nabludatel” de um caráter francamente reacionário.

Mas o temperamento atormentado do jovem Bakunine sentiu logo a estreiteza e a unilateralidade do hegelianismo reacionário; compreendeu a pouco e pouco que a vida real era mais do que um jogo vão de palavras.

Seu espírito são lhe deu a entender que a força das idéias de Hegel não residia no conteúdo espiritual e moral de sua filosofia, mas no método crítico que aplicava.

Por intermédio do conhecido escritor russo Ogareff, que editou mais tarde, junto com Herzen, “O Sino” (“Kolokol”), Bakunine chegou a conhecer o grande pensador e literato russo Alexandre Herzen. Este era um adversário decidido das concepções conservadoras de Hegel, o que deu lugar a um forte conflito entre ele e os membros do círculo de Bakunine. Esta luta foi provavelmente a primeira razão que induziu Bakunine a desistir de suas teorias reacionárias unilaterais e de suas especulações conservadoras. A vida monótona, a falta de atividade e de movimento se lhe tornou insuportável e resolveu ir para Berlim a fim de estudar filosofia.

Em Berlim relacionou-se com a tendência neo-hegeliana que compreendia todos os elementos revolucionários da Alemanha. A vida se lhe apareceu envolta em nova luz; abriu-se ante ele um amplo terreno para suas atividades e se entregou com ardorosa paixão à corrente ideológica progressista. Conheceu também em Berlim a Turgueniev, com quem assistia aos cursos do professor Werder sobre a filosofia hegeliana. Os conceitos reacionários e metafísicos de Schelling ofereceram ao jovem Bakunine uma ocasião para o ataque. Publicou em 1842 um folheto, “Schelling e a revelação crítica da última tentativa reacionária de combater a filosofia livre”. Nesse ensaio defende Bakunine as idéias revolucionárias de Luis Feuerbach, pai da filosofia materialista alemã; este trabalho constitui a primeira manifestação do espírito rebelde de Bakunine. Em termos eloqüentes preconiza a luta pela liberdade, e mesmo quando essa luta era para ele tão-somente filosófica se reconhece nela, contudo, o grande processo evolutivo que se havia realizado em suas idéias. Dali Bakunine foi para Dresden; esta cidade era então o centro intelectual dos neo-hegelianos revolucionários. Arnold Ruge, o representante mais significativo dessa tendência e editor dos famosos “Anais Alemães”, acolheu o jovem Bakunine com a maior satisfação e amizade. O círculo avançado de Ruge e seus amigos lhe produziu muito boa impressão e graças às freqüentes discussões com esses homens cultíssimos, suas convicções se tornaram mais radicais, mais revolucionárias. Em 1842 publicou nos “Anais Alemães” um artigo que chamou a atenção. Intitulava-se: “A reação na Alemanha, fragmento de um francês” e estava assinado com o pseudônimo de Jules Elyzard. Nesse trabalho se descobre já o verdadeiro Bakunine, o fundador da filosofia da destruição, o inimigo mortal de todo compromisso e de todo recurso diplomático.

Defende a Revolução como princípio do progresso eterno e combate veementemente a chamada filosofia positiva. A Revolução é o espírito eterno da negação, a força viva da história humana. Todo reformador é um reacionário, pois obstaculiza a grande finalidade do movimento novo que tende à destruição completa do atual mundo político e social. O notável artigo terminava com estas palavras características:

“O ar é pesado e todos nós sentimos a aproximação da grande tormenta; façamos, pois, um chamado a nossos irmãos ofuscados: ‘Arrependei-vos, arrependei-vos, porque chegou a época do Messias!’

Aos positivistas dizemos:

“Abri vossos olhos espirituais. Deixai que os mortos enterrem os mortos; compreendei de uma vez que o espírito, o espírito eternamente jovem e eternamente renovado, não vive nas vetustas ruínas desmoronadas! Confiemos no espírito humano que cria e destrói, porque ele é a fonte eterna e fecunda da vida. O anelo de destruição é um desejo de criação!’

Poucos meses depois da publicação deste artigo, Bakunine abandonou Dresden, pois sua situação se tornou insegura. O governo russo chegou a saber que ele era o autor do trabalho “A reação na Alemanha” e, segundo parece, pediu que fosse deportado para Rússia. Bakunine foi para Suíça e dentro de pouco tempo se encontrava novamente atuando entre os elementos revolucionários que devido às mesmas causas se haviam reunido em Zurich.

Na Suíça, Bakunine ocupou-se pela primeira vez do problema econômico. As obras dos socialistas franceses exerceram uma profunda influência em seu espírito rebelde e, como sempre deduzia as conseqüências mais extremas de uma idéia, converteu-se logo em um dos partidários mais avançados do socialismo. Naquela época o comunista alemão Guilherme Weitling organizava associações operárias na Suíça. O centro dessas uniões era Zurich, onde Weitling pregava a edição de um novo periódico de propaganda. Mas o governo suíço prendeu-o inesperadamente, apoderando-se de seus papéis e correspondência. Entre as cartas havia também algumas que comprometiam a Bakunine e revelavam suas relações secretas com os comunistas suíços. Por isso Bakunine teve de partir para Berna para evitar que o detivessem. A polícia suíça entregou ao cônsul russo em Zurich os documentos comprometedores e este exigiu, em nome de seu governo, a deportação de Bakunine. Este, porém, era mais ágil que a polícia e abandonou a “livre” Suíça, dirigindo-se para Paris.

Ali travou conhecimento com os elementos progressistas e revolucionários da capital francesa, sendo seus amigos mais íntimos o poeta revolucionário alemão George Herweg, Proudhon e muitos outros. O socialismo de Proudhon produziu-lhe uma forte impressão, pois estava baseado sobre a liberdade do indivíduo. O socialismo ou o comunismo das outras tendências, devido a seu caráter autoritário e ditatorial, jamais gozaram da simpatia de Bakunine. Em Paris se encontrou também com Karl Marx, Frederico Engels e outros conhecidos socialistas alemães. Escreveu também alguns breves artigos no periódico alemão “Vorwaerts”, que aparecia então em Paris. Mas as discórdias pessoais que dividiam os emigrantes alemães causaram má impressão em Bakunine, razão por que freqüentava mais os círculos russos, polacos e franceses.

Paris também não foi lugar seguro para ele. Em 29 de novembro de 1847 pronunciou um discurso numa grande assembléia organizada em comemoração à revolução polaca de 1830. Este discurso foi a primeira declaração de guerra do valente revolucionário ao czarismo russo. Em termos fogosos censurou as infâmias do despotismo russo, ao qual proclamou publicamente como inimigo da liberdade da Europa. Esse discurso teve uma eficácia tremenda. Os revolucionários saudaram-no com um entusiasmo delirante; mas para os tiranos ressoou como uma sentença de morte. O governo russo pediu à França que expulsasse Bakunine. O jovem campeão da liberdade viu-se obrigado a deixar a bela Paris e seguiu para a Bélgica.

Não pensava permanecer muito tempo ali porque sabia perfeitamente que não oferecia segurança para a sua pessoa; seu projeto consistia em trasladar-se para a Inglaterra, única nação da Europa sobre a qual o czarismo russo não exercia nenhuma influência. Mas antes de terminar os preparativos para sair da Bélgica, estalou em Paris a revolução de Fevereiro de 1848. Esta notícia infundiu a Bakunine novas forças. A revolução que aguardava por tanto tempo havia chegado finalmente. E o jovem rebelde saudou-a como a aurora dê uma nova época. Voltou imediatamente para Paris e entregou-se de corpo e alma às ondas tempestuosas da revolução. Dormia nos quartéis e comia junto com os soldados; pregava-lhes sua teoria da destruição geral, o socialismo e a abolição das formas de governo; exortava-os a sustentar a revolução até que fossem derrubados todos os fundamentos da velha sociedade. Bakunine achava-se em todas as partes: nas barricadas, nos quartéis, nas praças públicas; numa palavra, suas forças se decuplicaram. E o grande revolucionário não era apenas o pavor dos reacionários; até os republicanos tremiam ante ele mercê de sua influência poderosa. O oficial de barricadas Caussidière, republicano, dizia falando de Bakunine:

“Que homem! Que homem extraordinário! O primeiro dia da revolução é uma verdadeira jóia, mas no dia seguinte deve ser fuzilado”.

Flocon, ministro durante a revolução de Fevereiro, disse certa vez estas palavras características:

“Se houvesse na França trezentos homens como Miguel Bakunine, todo governo seria impossível”.

Logo viu Bakunine que a revolução francesa de 1848 não podia oferecer o resultado desejado por ele e seus amigos; ao mesmo tempo compreendeu que não convinha também afastar-se, senão que era preciso aproveitar as circunstâncias e preparar revoluções em toda a Europa.

Em Abril de 1848 abandonou Paris; o ministro Flocon entregou-lhe mil francos e um passaporte francês para que se dirigisse à Alemanha e provocasse ali uma revolução. Na realidade aquele era apenas um recurso para desfazer-se do temível revolucionário. Bakunine compreendeu também que seu lugar já não era Paris e desapareceu repentinamente. É provável que durante certo tempo tenha estado na Rússia e nos outros países eslavos, com o objetivo de preparar um levante revolucionário. A esse respeito ao menos, diz Arnold Ruge em suas Memórias, que “tinha ido à Rússia para fazer ali obra de agitação”. Naquela época então mantinha Bakunine estreitas vinculações com todos os revolucionários da Europa, especialmente com os dos países eslavos.

Em 1.° de Julho de 1848, Bakunine assistia ao congresso eslavo internacional celebrado em Praga, porque esperava encontrar ali campo propício para agitação em prol de seus planos revolucionários e da internacionalização da revolução. O congresso eslavo propunha-se unir todos os povos dessa raça para defender em comum seus interesses contra as outras nações. Parece que a maior parte dos delegados não professavam idéias muito progressistas. As atas de dito congresso não foram nunca publicadas e por isso ignoramos se Bakunine nele encontrou ou não a ocasião que procurava.

Mas o congresso não transcorreu tão pacificamente como supunham alguns. O governo austríaco, com efeito, temendo as demonstrações revolucionárias dos tchecos, proibiu toda manifestação pública que tendesse a demonstrar sua simpatia pelo congresso. Esta decisão causou verdadeiro desgosto entre a população de Praga e todas as ruas se encheram de gente; mas os numerosos soldados fizeram sua aparição repentinamente e impediram a tempo toda tentativa séria da multidão.

Defronte ao hotel “A Estrela Azul”, onde se alojava Bakunine, congregou-se uma imensa multidão. Os soldados trataram da dispersá-la, mas não tiveram êxito. Vários disparos foram feitos sobre os soldados das janelas do hotel. Era o sinal para uma luta sangrenta entre os militares e o povo. Este levantou barricadas e Bakunine tomou uma participação ativíssima na luta. Seu valor e sangue frio mereceram admiração de todos. Refere o escritor tcheco Iretchek que Bakunine assumiu a direção militar da revolta. No terceiro dia da luta, o general Windischgreutz, comandante militar, abandonou a cidade, retirando-se para as fortalezas situadas nos arredores de Praga. Dali mandou bombardear a cidade, que logo foi incendiada. Depois da repressão do levantamento de Praga, Bakunine fugiu da Áustria, ocultando-se em Berlim, Kothen e outras cidades alemãs.

Em Kothen publicou Bakunine seu conhecido “Apelo aos povos eslavos”, no qual os convidava a prepararem-se para a próxima revolução geral da Europa. Sentia a proximidade de uma nova revolução e aplicava seus esforços no sentido de unificar todos os elementos revolucionários num poder sólido contra a reação. Era uma época tempestuosa de luta, de agitação, de vida; e Bakunine vivia e lutava mais que todos os outros. Numa carta a seu querido amigo George Herweg expressou os sentimentos que o animavam então:

Eu não creio numa constituição nem em lei alguma; nem a melhor constituição poderia satisfazer-me. Precisamos agora de outra coisa: precisamos de tempestade e vida, de um novo mundo livre e por conseguinte livre de leis”.

Estas palavras são características, porque elas nos pintam o verdadeiro Bakunine, o homem de ação, o rebelde entusiasta, o apóstolo da revolução eterna.

Mantinha Bakunine naquela época contacto secreto com todo o mundo revolucionário; e segundo parece trabalhava nesses momentos por um levantamento dos tchecos e polacos.

Em Maio de 1849 voltou a encontrar uma ocasião para manifestar publicamente seu valor e sua energia incomparáveis. Em diversos pontos da Alemanha haviam estalado revoluções, como em Baden e Dresden. Bakunine encontrava-se então nesta cidade e preparava-se para fazer uma viagem a Boêmia quando estalou a revolução de Maio em Dresden. Como é natural, desistiu de sua projetada viagem e colocou-se nas primeiras filas do movimento. Fez-se membro do comitê revolucionário e durante os três dias que durou a revolução foi o homem indispensável da capital saxônia. Um dos seus colaboradores foi Ricardo Wagner. Amigos e inimigos admiravam a energia gigantesca de Bakunine e os reacionários o temiam como o diabo em pessoa e não se cansavam de falar de seus atos terroristas. Um escritor reacionário dizia referindo-se a ele:

“Seu princípio era o fogo e até o governo revolucionário tremia ante sua energia selvagem. Quanto mais próximo se achava o momento da decisão, Bakunine tornava-se mais extremista. A cidade inteira tremia ante esse homem”.

As resoluções do chamado governo revolucionário não exerciam influência nenhuma sobre Bakunine;, procedia de acordo com as circunstâncias, sem ater-se à vã fraseologia dos políticos. O seguinte episódio demonstra quão pouco estimava aos representantes, do novo governo: Bakunine tinha introduzido grandes caixões de material esplosivo nos sótãos do palácio municipal de Dresden e em outros edifícios públicos. O conselheiro Pffafenhauer, muito covarde, correu à procura de Bakunine para fazer-lhe saber a desgraça que poderia sobrevir se explodisse a pólvora. Bakunine gritou: “Quem se preocupa cem as coisas de vocês? Que voem pelos ares!” E tendo o bom homem insistido, pô-lo para fora de casa.

No dia 9 de Maio terminou a luta desesperada em Dresden; os soldados prussianos saíram vitoriosos. Bakunine retirou-se para Chemnitz a fim de organizar ali também um levante. Mas foi preso na noite de 9 de Maio, quando ainda estava na cama, graças à traição dos vizinhos. Foi entregue aos soldados prussianos; deste modo o herói revolucionário caiu nas mãos sangrentas da reação, da qual levou doze anos para libertar-se.

Quando Bakunine foi preso, o governo russo anunciava que recompensaria com dez mil rublos a quem o detivesse; e a cidade de Chemnitz, que tinha detido o grande rebelde, manteve por algum tempo as gestões correspondentes para receber o dinheiro da traição. Mas não se sabe se a Rússia entregou o dinheiro.

Da prisão de Dresden, Bakunine foi transferido para a de Koenigstein, onde aguardou com soberba calma e sangue frio a sorte que lhe ia deparar o futuro. Sua situação era pior que a dos outros prisioneiros, pois tanto de dia como de noite estava carregado de pesadas cadeias.

No dia 14 de Janeiro de 1850 foi condenado à morte. Digno e valoroso, escutou, sem demonstrar a menor emoção, sua sentença. A única observação que fez foi a seguinte: “Na história o único que decide é o êxito. Se eu tivesse, conseguido realizar meus planos me teriam considerado um grande homem; vencido, condenam-me à morte”. A atitude digníssima de Bakunine ante o conselho de guerra produziu uma profunda impressão e muitos jornais publicaram seu retrato acompanhado de comentários favoráveis. Foi proposto que se levasse ao rei de Saxônia um pedido de indulto, mas Bakunine recusou tal proposta declarando que preferia a morte a rebaixar-se. Mas, pouco tempo antes de ser executada a sentença, o governo austríaco pediu que o célebre revolucionário lhe fosse entregue devido à participação que teve na revolução de Praga em 1848. Carregado de pesadas cadeias, Bakunine foi conduzido à fronteira austríaca. Acreditava o governo da Áustria que por intermédio de Bakunine saberia os segredos do movimento revolucionário dos países eslavos; mas suas esperanças não se realizaram: Bakunine negou-se a fazer declarações. Em 19 de maio de 1851 condenaram-no pela segunda vez à pena capital por ter atuado na revolução de Praga. Durante seis meses permaneceu na fortaleza de Almitz, encerrado numa cela escura, encadeado à parede à espera da morte. Mas graças a uma circunstância realmente extraordinária salvou-se de novo.

Com efeito o governo russo havia pedido sua extradição e algumas semanas mais tarde o prisioneiro foi levado para a Rússia. Depois de uma longa viagem chegou a Petrogrado onde o encerraram por muitos anos na fortaleza de Pedro e Paulo. A prisão na Rússia foi para Bakunine o período mais duro de sua vida, pois a solidão e a tristeza eram para ele piores que a morte. Nicolau I exigiu dele certas declarações a respeito do movimento eslavo, ao qual contestou Bakunine com sua célebre carta “Ao czar russo”. Em termos enérgicos defendeu ali suas convicções revolucionárias, negando-se a denunciar nomes. As dignas palavras do rebelde prisioneiro causaram profunda impressão ao czar, que, o deixou em paz.

Os parentes de Bakunine trataram várias vezes de conseguir do czar o indulto; mas Nicolau declarou francamente que a Rússia não era suficientemente grande para que homens como Bakunine pudessem existir simultaneamente. Repetidas vezes Bakunine tentou suicidar-se, mas não pôde realizar seu desejo devido à guarda rigorosa que o rodeava. Acima de tudo o torturava a idéia de que a solidão o levaria à loucura ou diminuiria sua força e suas energias. Com o propósito de fortificar seu espírito, Bakunine dramatizou a lenda de Prometeu, à qual sua fantasia animou de entusiasmo; na solidão de sua cela silenciosa sonhava com a destruição do velho mundo e assim como Prometeu trouxe a luz para a humanidade, Bakunine aguardava o dia da libertação para poder levar o facho da revolução pelo mundo escravizado.

Em 1854 Bakunine foi transferido a Schlusselburgo, onde ficou até 1857. Este período foi o mais terrível de suas prisões, porque além do seu estado moral, seu organismo se ressentia de enfermidades penosas. Ao morrer Nicolau I, a mãe de Bakunine fez uma nova tentativa ante Alexandre II para obter o indulto; mas o novo czar declarou que, enquanto ele vivesse, Bakunine não teria liberdade. Alguns meses mais tarde era deportado para a Sibéria.

Ali sua estadia foi mais suportável que nos cárceres de Petrogrado. Graças à sua poderosa influência pessoal conquistou certos privilégios de que não gozavam os outros prisioneiros. Sua atuação entre os decembristas presos na Sibéria não é para ser descrita aqui. Em Março de 1859, Bakunine foi transferido ao oriente da Sibéria. Tinha preparado durante muito tempo essa transferência, pois dali ser-lhe-ia mais fácil fugir que dos outros lugares. Finalmente, em 1861, tendo-se ausentado o governador da Sibéria oriental, aproveitou-se dessa ocasião para fugir.

O mais notável na fuga de Bakunine é o fato de ter-se valido de um vapor do governo russo para realizar seu plano. As coisas ocorreram da seguinte forma: tinha resolvido Bakunine descer o rio Amur até o Oceano Pacífico, onde pensava encontrar um vapor americano que o levaria ao Japão. Ao chegar ao Amur, encontrou-se com um navio de bandeira imperial russa. Decidiu-se imediatamente. Bakunine aproximou-se de um bote do navio e apresentou-se ao capitão como caixeiro-viajante de uma importante firma da Rússia. O capitão, que não conhecia Bakunine, sentiu profunda simpatia pelo comerciante desconhecido, que mostrou ser um interessante e amável homem mundano. Ao manifestar Bakunine seus desejos de acompanhá-lo, o outro aceitou. Depois de algumas horas de viagem, Bakunine já conhecia todos os segredos do capitão, o objetivo de sua viagem, etc. Chegou a saber que o capitão hospitaleiro ia receber o governador da Sibéria oriental, que vinha ao seu encontro num navio de guerra.

A situação do fugitivo era muito crítica, pois o governador o conhecia e se se encontrasse com ele todos os seus projetos cairiam por terra. Mas Bakunine não era homem de amedrontar-se ante um perigo. Com muitas precauções perguntou ao capitão onde e quando devia encontrar-se com o navio de guerra. O capitão, não suspeitando nenhum mal, deu-lhe todos os informes. Bakunine fez rapidamente seus preparativos; próximo do lugar onde havia de encontrar-se com o governador, pediu-lhe que permitisse passar-se para um navio americano que se dirigia para o Japão. O capitão acedeu, com a maior boa vontade, ao desejo de seu hóspede desconhecido e meia hora mais tarde Bakunine passava tranqüilamente diante do navio em que ia o governador, que não suspeitava achar-se próximo, naquele momento, o revolucionário mais temido da Europa.

Foi aquele o último perigo; sem maiores dificuldades chegou a Yokohama. Dali dirigiu-se para São Francisco, onde encontrou diversos amigos que lhe proporcionaram os meios necessários para ir a Nova York. Em novembro de 1861 Bakunine deixava Nova York, a caminho de Londres. Ali foi acolhido com a maior simpatia por Alexander Herzen, Ogareff e os outros do círculo que se havia formado ao redor do “O sino”, órgão, dos revolucionários russos. Desta maneira terminou a viagem de Bakunine ao redor do mundo, viagem, que realizou com as mãos carregadas de cadeias e como expatriado fugitivo.

Depois de uma longa prisão, Bakunine via-se livre finalmente e entregou-se de novo ao movimento revolucionário com todo o seu temperamento tempestuoso. Herzen nos deixou uma breve descrição daquela atividade:

“Depois de um silêncio de nove anos, sumido na solidão mais absoluta, Bakunine começou a viver de novo. Discutia, pregava, mandava, agitava, organizava e permanecia ativo todo o dia, toda a noite durante as vinte e quatro horas. Nos escassos momentos livres que lhe sobravam corria à sua mesa de trabalho e escrevia cinco, dez, vinte cartas a Semiplatinsk, Arazzo, Belgrado, Praga, Constantinopla, Bessarábia e Bulgária”.

Bakunine tinha escolhido à sua volta um círculo de entusiastas adeptos e, graças à sua influência poderosa, “O Sino” tornava-se mais radical de número a número. Atacava a Herzen porque este não era demasiado revolucionário e aceitava certos compromissos. Todas as esperanças colocava-as então Bakunine nos povos eslavos, para cujo movimento dedicou seus esforços. Lançou naquela época as bases de uma organização secreta na Rússia e nos outros países eslavos. Compreendeu Bakunine que lhe seria impossível trabalhar junto com Herzen e Ogareff. Estes estavam muito ligados às esferas oficiais da Rússia e o grande revolucionário queria romper todos os laços com a Rússia oficial. Os trabalhos que publicou com esse fito, então, por exemplo “A todos os amigos russos, polacos e eslavos” e o folheto “Romanoff, Pugatchef ou Pestel?” testemunham as idéias práticas que professava naquele tempo.

Mas graças ao problema polaco voltaram a encontrar-se Bakunine e os editores do “O Sino”. Na Polônia iniciara-se um vigoroso movimento de rebeldia contra o jugo russo, chamando a atenção de todos os revolucionários eslavos. O movimento polaco, encabeçado pelo partido aristocrata, não tinha na realidade nada de comum com as idéias de Bakunine; mas este queria aproveitá-lo para seus fins.

Pouco tempo antes do rompimento da sublevação polaca de 1863, realizou-se uma importante conferência entre os editores do “O Sino” e os delegados do comitê revolucionário de Varsóvia. Foi resolvido que Bakunine conduzisse à Polônia um vapor com armas e revolucionários polacos e que participasse por sua vez no levante. Desgraçadamente os preparativos não foram feitos pelo próprio Bakunine e esta foi a razão por que fracassou a tentativa. Em 21 de fevereiro Bdkunine deixava Londres dirigindo-se para Copenhague e dali para a Suécia, onde o aguardava o navio com a expedição polaca. Mas devido à imprevisão com que foi preparada a empresa e a traição do capitão que comandava o navio, o projeto não pôde ser realizado. Só graças à energia inquebrantável e ao valor heróico de Bakunine conseguiu-se pôr a salvo a tripulação e o navio. Bakunine, com efeito, chegou a saber que o capitão tinha visitado em Copenhague o cônsul russo e temeu que o traidor os entregasse a um navio de guerra de seu país. Achando-se já em alto mar, manifestou ao capitão que não lhe tinha a menor confiança e que se chegasse a perceber algum navio de guerra russo, atacá-lo-ia imediatamente; e em caso de não conseguir vencê-lo, afundaria o vapor em que ele viajava. O capitão não quis seguir viagem e voltou para Copenhague apresentando diversos pretextos. O plano fracassou, pois, devido aos preparativos deficientes dos polacos. Bakunine ficou por algum tempo na Suécia e enquanto trabalhava ali publicamente, buscou e encontrou vinculações secretas com a Rússia para a difusão regular e sistemática da literatura revolucionária naquele país. Ao mesmo tempo entabolou relações de caráter revolucionário com a Finlândia. Seu plano consistia em cruzar clandestinamente a fronteira russa e ir à Polônia através da Lituânia com o propósito de ter uma participação direta na rebelião polaca. Mas os dirigentes desse levante, em sua maioria aristocratas e patriotas desprovidos de qualquer aspiração revolucionária, temiam a Bakunine mais que ao governo russo, pois suas idéias e projetos eram excessivamente radicais para eles. Por isso dissuadiram-no de vir, valendo-se de falsos pretextos. Além disso a sublevação polaca não se prolongou tanto como o esperavam Bakunine e seus amigos. Este abandonou, pois, a Suécia e encaminhou-se novamente para Londres. Mas embora tivesse fracassado sua tentativa, o governo russo se sentia inquieto ante a energia vigorosa e o valor desesperado de Bakunine. Durante sua estadia na Suécia, o governo russo fixara uma recompensa de trinta mil rublos para quem entregasse o temível revolucionário, vivo ou morto.

Bakunine não permaneceu muito tempo em Londres, pois tinha planejado uma viagem à Itália. Em janeiro de 1864 chegou a Florença. Com esta viagem termina sua propaganda exclusivamente eslava: desde então dedicou sua formidável força de agitador ao movimento revolucionário internacional.

A Itália oferecia um campo propício para a sua ação de propagandista. O temperamento revolucionário do povo italiano e seu grande interesse pela propaganda conspiradora eram excelentes fatores para os projetos de Bakunine. Não obstante estas condições favoráveis, achou também muitas dificuldades e obstáculos. Precisamente os elementos que representavam o movimento revolucionário na Itália e com os quais contava Bakunine, eram partidários de Mazzini. Bakunine arremeteu pois, briosamente contra as teorias e aspirações deste e de seus adeptos, conquistando com sua habilidade uma assinalada influência sobre a juventude italiana. Numerosos estudantes e operários abandonaram o campo religioso e patriótico de Mazzini, aderindo às idéias ateístas e revolucionárias do grande rebelde russo.

De Florença, Bakunine passou para Nápoles, onde permaneceu dois anos. Ali conheceu a muitos simpáticos companheiros de luta, como Fanelli, Gambuzzi, Mulletti, Farlandina e outros, com os quais constituiu o primeiro grupo anarquista daquela cidade. Foi então que expôs suas doutrinas no “Poppolo d’Italia” e em “Libertá e Giustizia”, primeiro periódico anarquista daquele país.

Durante este período, Bakunine dedicou toda a sua atividade à criação de uma sociedade internacional secreta que servisse de base a um sólido movimento revolucionário na Europa. Seu plano consistia em conquistar para o seu programa anárquico-ateu os homens mais inteligentes, mais honrados e enérgicos do movimento revolucionário. Esses homens fundariam logo em todos os países da Europa organizações secretas e imprimiriam um caráter acentuadamente revolucionário ao movimento. Assim foi que nasceu a “Sociedade revolucionária internacional”, mais conhecida sob o nome de “Irmãos internacionais”. Numa carta a Alexander Herzen fala Bakunine de seus êxitos neste sentido, dizendo ter encontrado partidários na Suécia, Noruega, Dinamarca, Inglaterra, Bélgica, França, Espanha, Itália, Polônia e Rússia.

Muitos pormenores de sua propaganda daquela época se perderam, mas considerando os movimentos revolucionários dos países latinos, especialmente de Espanha e Itália, podemos apreciar a obra gigantesca deste grande homem.

Para apreciar com justiça a atividade de Bakunine naquele período, é mister tomar em conta as condições sociais e políticas de então. Depois da revolução de 1848, iniciou-se na Europa um período de reação e de estancamento que perdurou mais de dez anos, condicionando o surto, na maioria das nações, de um anelo revolucionário. A sublevação dos polacos, a propaganda de Lassalle na Alemanha, a atividade de Mazzini e Garibaldi na Itália, o período “liberal” na Rússia, etc., etc., eram sintomas de uma nova época. O processo evolutivo desse ciclo revolucionário só foi interrompido pela declaração de guerra franco-alemã de 1870, a qual afiançou na Europa o domínio dos grandes estados e do sistema militarista. O caráter revolucionário daquela época explica, portanto, a atuação subterrânea de Bakunine. Havia presenciado o fracasso da revolução de 1848 e dedicava então todos os seus esforços para evitar um novo fracasso; por isso tratou de unificar os elementos revolucionários de todos os países.

A atividade de Bakunine era, pois, geralmente secreta. Participava pouco do movimento público; não desejava aer notado, a fim de poder preparar o terreno para a sua atividade posterior. O momento que lhe ofereceu uma excelente oportunidade para desenvolver ante o mundo suas idéias anarquistas, chegaria antes do que ele esperava.

As relações entre a Alemanha e a França se tinham tornado tensas em 1867 devido à questão do Luxemburgo, assunto que arrastaria a uma guerra entre ambos os países. Então se iniciou um vasto movimento em prol da paz, no qual tomaram parte pessoas pertencentes a todas as classes e partidos. O resultado desse movimento foi a fundação da “Liga da Paz e da Liberdade”. Essa união tinha um caráter internacional e numerosas personalidades do mundo político e revolucionário, como Garibaldi, Castelar, Johan Jacobi e outros, aderiram a ela.

Bakunine compreendeu logo que a “Liga da Paz e da Liberdade” oferecia um campo propício para a sua propaganda revolucionária. Certamente nunca pensou converter a Liga ao anarquismo; só queria encontrar novas vinculações em favor de seus planos. Em setembro de 1867 partiu da Itália, dirigindo-se para Genebra, onde se celebrava o primeiro congresso da Liga. Bakunine e alguns de seus amigos mais íntimos eram delegados nesse congresso. Tenho ante os olhos uma descrição da impressão produzida por Bakunine na assembléia:

“De repente apareceu na tribuna um homem gigantesco, que chamou a atenção dos presentes por suas formidáveis qualidades oratórias. Este homem era Miguel Bakunine. E em lugar de falar da paz em geral, preconizou a revolução social, a guerra contra a religião, o Estado e a propriedade”.

Nos notáveis discursos que pronunciou no congresso demonstrou que as causas da guerra são muito mais profundas do que supõem alguns e chegou à conclusão de que essas causas estão representadas pelo Estado, pela religião e pelo capital privado. Baseando-se neste ponto de vista, pedia Bakunine que a Liga não se limitasse a defender a paz, mas a atacar as instituições fundamentais da sociedade moderna, causas fundamentais das guerras e das matanças dos povos.

A maioria do congresso, naturalmente, não estava de acordo com os conceitos revolucionários de Bakunine; mas tampouco foram de todo rechaçados. Bakunine até foi eleito membro do comitê de organização da Liga. Foi então que expôs suas idéias numa obra intitulada “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”, que foi editada mais tarde, em 1865, pelo doutor Max Nettlau.

No transcurso do primeiro ao segundo congresso da “Liga da Paz e da Liberdade” a organização fez poucos progressos devido à divergência de opiniões que havia entre os seus componentes. Por isso Bakunine resolveu dedicar todos os seus esforços em infundir-lhe um caráter manifestamente socialista e revolucionário, ou então provocar uma cisão entre os elementos avançados e conservadores da Liga. Em 1868 celebrou-se o segundo congresso da Liga, e Bakunine propôs que ela se fundisse com a “Associação Internacional dos Trabalhadores”, fundada alguns anos antes. Além disso pedia que o congresso se pronunciasse pela libertação econômica do proletariado. O congresso negou-se a aceitar suas proposições, razão por que Bakunine e seus amigos se retiraram da Liga. Entre os membros da minoria achavam-se Elie e Elisée Réclus, Fanelli, Gambussi, Jasclar e muitas personalidades conhecidas do movimento revolucionário.

Com freqüência pergunta-se por que Bakunine não aderiu imediatamente à “Associação Internacional dos Trabalhadores”. A resposta é bem simples. Durante os primeiros anos de sua existência, a Internacional era exclusivamente reformista e anti-revolucionária. Só mais tarde se fomentou o espírito socialista e revolucionário na grande Associação. Havia também outras causas que impediram a Bakunine a imediata incorporação nela; mas em virtude da importância que ia adquirindo a Internacional, propôs sua fusão com a Liga da Paz e da Liberdade.

Ao retirar-se a minoria do congresso da Paz celebrado em Berna, Bakunine propôs que todos aderissem à Internacional, a fim de pregar suas idéias no seio da poderosa corporação. Mas parte de seus amigos estavam resolvidos a fundar uma nova organização que desenvolvesse a propaganda revolucionária nos países europeus.

Esta associação chamou-se a princípio “Aliança da Democracia Socialista”, e mais tarde simplesmente “Aliança Internacional”. A Aliança organizou grupos e círculos em todos os países da Europa ocidental e a enérgica agitação de seus membros lançou as bases do socialismo revolucionário nesses países. Um amigo de Bakunine, o italiano Fanelli, recebeu o encargo de propagar a idéia revolucionária na Espanha. Sua campanha teve um êxito assombroso. Em Barcelona, Madrid, Reus, Zaragoza e outras cidades os operários e os estudantes aderiram ao novo movimento; e deste modo foi introduzido naquele país o anarquismo revolucionário. Exigiria demasiado espaço a descrição da atividade desenvolvida pela Aliança nos diversos países, como Itália, França, Suíça, etc. Em 1869, foi dissolvida e seus membros se incorporaram à “Associação Internacional dos Trabalhadores”. Com a entrada dos aliancistas na Internacional, abriu-se para Bakunine um novo campo de trabalho. O formidável desenvolvimento da poderosa organização nos países latinos foi uma conseqüência direta de sua propaganda.

A “Associação Internacional dos Trabalhadores” foi fundada em 1864 em Londres. Seu propósito consistia em unir os operários de todos os países para conseguir, mediante um esforço comum, o melhoria da classe proletária. Durante os dois primeiros anos de sua existência o desenvolvimento foi diminuto; mas quanto mais revolucionária e socialista se fazia, tanto maiores eram os êxitos. No primeiro congresso da poderosa associação, celebrado em Genebra, foram adotados certos estatutos que davam a todas as tendências do movimento operário a possibilidade de aderirem a ela. O princípio básico e tático desses estatutos era a luta pela libertação econômica da classe operária. Proclamando tais princípios, a Internacional agrupou todas as escolas e partidos do movimento social, por distintos que fossem seus pontos de vista em outras questões. Cada tendência tinha o direito de propagar suas idéias e de aplicar seus métodos de luta desde que não contradissessem os princípios fundamentais da Associação. A tolerância e a autonomia absoluta das Seções e Federações constituíam a força e o poder da Internacional; se tivesse tido um programa determinado e uma tática fixa jamais teria podido reunir dois milhões de trabalhadores da Europa e da América. Compreendia a Internacional diversas tendências: proudhonianas, marxistas, coletivistas, mutualistas, anarquistas e outras, pois a todas elas as unia a luta pela libertação econômica.

A princípio, como ficou dito, a tendência geral da Associação era indefinida e escassamente socialista; mas graças ao desenvolvimento teórico das idéias e principalmente devido às perseguições dos governos, o elemento revolucionário da poderosa organização aumentou consideravelmente, sobretudo nos países latinos. No congresso internacional de Bruxelas, verificado em 1868, as idéias revolucionárias conseguiram um predomínio. O socialista belga De Paepe defendeu nele o coletivismo contra as aspirações anti-revolucionárias dos proudhonianos franceses e contra o comunismo de Estado dos marxistas.

O período de 1868 e 1870 foi o mais brilhante que teve a Internacional.

Na primavera de 1869, Bakunine e muitos de seus amigos aderiram à Internacional e a atividade do grande revolucionário tornou-se uma força de inapreciável valor para o desenvolvimento e a difusão da gigantesca associação operária. Vivia então em Genebra e graças à sua atividade incansável desenvolveu-se um forte movimento revolucionário na Suíça francesa. Ele era naquela época, o redator-chefe do “Egalité” de Genebra, periódico no qual definiu suas teorias numa série de brilhantes artigos. Graças às diversas viagens de propaganda nas pequenas regiões dos Montes do Jura chegou a conhecer muitos simpatizantes que se converteram em fiéis companheiros e excelentes propagandistas de suas idéias. Em setembro de 1869, realizou-se em Basiléia o quarto congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, no qual participou Bakunine como representante dos mecânicos de Nápoles e dos tecelões de Lyon. O de Basiléia foi o mais importante de todos os congressos celebrados pela Internacional, pois nele obteve vitória o socialismo revolucionário sobre o velho proudhonismo e o marxismo autoritário. Bakunine e seus amigos Varlain, Farga, Pellicer, De Paepe e outros preconizaram conjuntamente as idéias do coletivismo revolucionário. Em um dos discursos que Bakunine pronunciou nesse congresso disse:

“Quero não só a propriedade coletiva do solo; quero que todas as riquezas sejam propriedade coletiva: por isso sou partidário da revolução social, por isso luto pela supressão do Estado político e legal. O coletivismo é a base do indivíduo e a propriedade privada não é outra coisa senão o despojo de produtos criados mediante o trabalho coletivo”.

Bakunine expressou suas idéias em três palavras: “Ateísmo, Coletivismo, Anarquismo”. Estas idéias foram os princípios básicos do movimento operário da Bélgica, Holanda e dos países latinos. A influência de Bakunine na Internacional crescia de dia para dia e seu nome ia adquirindo eco no mundo revolucionário. Pouco tempo depois do congresso de Basiléia, Bakunine abandonou Genebra e se dirigiu para Lugano. Mantinha então volumosa correspondência com quase todos os conhecidos socialistas e revolucionários da Europa, mas sua atividade propagandista fez-se sentir especialmente na Itália, Rússia, Espanha e França. Entre 1869 e 1870 publicou em russo grande quantidade de manifestos e folhetos, como “Algumas palavras aos meus jovens irmãos da Rússia”; “A Ciência e a aspiração revolucionária do presente”; “Aos oficiais do exército russo” e outros. Nessa época travou conhecimento com o revolucionário russo Nechaiev. Não é este o lugar para descrever a atuação de Nechaiev e suas relações com Bakunine; não era anarquista, mas um homem de ação, e por isso Bakunine simpatizava-se com ele. Só mais tarde, ao ver este último que Nechaiev se valia de seu nome para exercer influência sobre a juventude russa em favor de suas próprias idéias e convicções, é que Bakunine se separou dele. Mas quando o governei russo pediu ao da Suíça a extradição de Nechaiev, por motivo do assassínio em Petrogrado do estudante Ivanov, a que Nechaiev considerava como traidor, Bakunine fez todo o possível para salvá-lo. Quando Nechaiev caiu por traição nas mãos da polícia suíça, Bakunine publicou seu conhecido folheto: “Os ursos em Berna e o urso em Petrogrado”, com o qual tratou de impressionar a opinião pública contra a extradição do revolucionário russo. O nome de Nechaiev foi muito caluniado; é certo que seus meios de ação nem sempre foram os mais recomendáveis, mas é indubitável que era revolucionário sincero e o trágico fim que teve é causa suficiente para que se olhem, com mais benignidade, seus defeitos.

O rompimento da guerra franco-alemã de 1870 impulsionou novamente Bakunine para o campo de batalha da revolução. Compreendia que a contenda ia necessariamente fortalecer a reação européia e sua única esperança cifrava-se numa manifestação revolucionária da Itália, Espanha e França, que combatesse o crescente espírito militarista provocado pela guerra. Sabia que o triunfo da Alemanha significaria a vitória do militarismo, o triunfo do Estado centralizado; a vitória de Napoleão seria a vitória do despotismo e da corrupção. E para evitar tais conseqüências só havia um meio: a revolução. Bakunine dava-se conta de que se não estalava uma revolução, as aspirações libertárias se veriam sufocadas por muito tempo. Seu primeiro trabalho consistiu na publicação de um folheto, “Cartas a um francês”, no qual expunha seus projetos. O folheto apareceu em 1870 e teve uma vasta difusão. Ao mesmo tempo se encaminhou a Lyon, a fim de preparar ali o levante. Aguardava Bakunine uma revolução em Paris, para cuja sustentação Lyon teria sido um dos pontos mais importantes. Em 28 de setembro os rebeldes de Lyon proclamaram o levante e os bakuninistas conseguiram mesmo conservar a cidade em suas mãos durante algum tempo. Mas a falta de unidade entre os revolucionários e a indiferença das outras cidades prejudicou o êxito da empresa. Bakunine viu-se envolvido no perigo e teve de abandonar secretamente Lyon. Dali se dirigiu para Marselha, onde contribuiu grandemente na sublevação geral. Projetava então voltar para Lyon, sempre que os revolucionários fizessem os preparativos necessários para um novo levante. Finalmente, depois que todos os seus projetos tivessem ficado sem resultado, devido à indiferença das massas populares, retornou para Lugano. Estava muito descontente com a situação e seu vigoroso espírito sentia que, no momento, a reação imperaria em toda a parte. Nesse período foi que decidiu publicar suas teorias numa obra especial. A primeira parte apareceu em 1871 sob o título de “O Império Knuto germânico e a revolução social”; a segunda parte foi publicada em 1882, quer dizer, seis anos depois de sua morte, com o nome de “Deus e o Estado”; a terceira parte, conclusão de “Deus e o Estado”, foi editada em 1895 pelo doutor Nettlau. Esse trabalho constitui uma brilhante crítica das idéias de “Deus e do Estado”. Nesse mesmo tempo escrevia seus notáveis trabalhos polêmicos contra Mazzini, os quais obtiveram um grande êxito na Itália.

A proclamação da Comuna suscitou novo entusiasmo em Bakunine; mas sabia que Paris devia cair, pois as províncias estavam mortas. Seu único desejo era que a queda de Paris fosse heróica, a fim de que servisse de exemplo para o mundo. Começou a escrever um livro sobre a Comuna, mas o prólogo dessa obra só se publicou em 1878, sob o título de “A Comuna de Paris e o princípio do Estado”.

Em setembro de 1871 celebrou-se em Londres uma conferência da Internacional, na qual se adotou uma resolução que admitia a luta política como condição tática de todas as Federações que a integravam. Bakunine e sua tendência foram ali fortemente atacados. Essa conferência provocou o protesto da maior parte das Seções da Internacional contra a atitude intolerante do Comitê Geral de Londres, o que levou mais tarde à desaparição da “Associação Internacional dos Trabalhadores”.

Em 2 de setembro de 1872 realizou-se o célebre congresso de La Haya. Segundo se diz, esse congresso foi convocado especialmente em La Haya a fim de que Bakunine não lhe pudesse assistir, pois deveria cruzar a França ou a Alemanha e em tal caso seria detido. É impossível relatar aqui as deliberações do Congresso de La Haya (os detalhes os achará o leitor nas “Memórias da Federação do Jura”); Bakunine e Guillaume foram expulsos da Internacional sob o pretexto de que haviam fundado uma organização em seu seio. A prova de que o triunfo da tendência marxista sobre a de Bakunine não foi senão um triunfo de puro formulismo, demonstra-o o fato de ter proposto Marx a transferência do Comitê Geral aos Estados Unidos, o que significava, em outras palavras, a desaparição da Internacional. A minoria revolucionária convocou imediatamente um novo congresso em Saint-Imier, Suíça, o qual se expressou contra as resoluções de La Haya, declarando também que interrompia suas relações com o Comitê Geral de Londres. As secções italianas, espanholas, francesas, belgas, holandesas, russas e as distintas seções da Suiça e da América constituíram uma nova Internacional, que existiu muitos anos depois da dissolução da Internacional marxista.

Depois do congresso de Saint-Imier, Bakunine se retirou da atividade pública. A enfermidade que contraíra como conseqüência de sua longa prisão na Rússia ia piorando e lhe impedia toda ação. Em julho de 1874 o movimento revolucionário de Itália era tão poderoso que todos aguardavam o rompimento da revolução. Os amigos de Bakunine a prepararam e este se dirigiu secretamente para Bolonha. Sua atitude a respeito da sublevação de Bolonha permanece ainda envolta em mistério. A empresa fracassou e Bakunine, gravemente enfermo, teve de voltar para a Suíça. Piorava cada vez mais, razão por que resolveu transferir-se para Berna, para a casa de um velho amigo, o professor Alfred Vogt, que cuidaria dele. Mas em 1 de julho de 1876 morreu ali, aos 62 anos de idade.


 

 

Luísa Michel

 

LUÍSA MICHEL, a heroína da Comuna de Paris, a lutadora e propagandista incansável da revolução social, morreu repentinamente, inesperadamente. A férrea mão da Parca deteve de maneira imprevista sua vida rica e agitada; o coração que amava tão profunda e sinceramente e que odiava com tanta veemência já não bate no peito frio. E os lábios febris que foram capazes de pronunciar tantas palavras entusiastas e rebeldes emudeceram para sempre. Que vida magnífica, abundante em pormenores dramáticos, em fatos maravilhosos e extraordinários, foi a existência da “boa Luísa”!

Foi toda uma novela, mas não uma novela vulgar, comum, mas um romance escrito com o sangue do coração de sua autora, uma novela vivida e sofrida por ela.

O movimento revolucionário tem dado origem a muitos tipos de mulheres notáveis, mulheres que mereceram o amor e a admiração das épocas posteriores, mas ainda não produziu, e é duvidoso que ofereça no futuro, uma figura semelhante à de Luísa Michel.

A “boa Luísa” foi sem dúvida uma das personagens mais surpreendentes da época moderna; alguns de seus historiadores lhe chamaram a Joana d’Arc revolucionária, a moderna Virgem de Orléans; esta comparação é certamente feliz porque se observa nela o mesmo entusiasmo poético e idealista, a fé inquebrantável na justiça de suas convicções e o heróico valor que lhe proporcionou forças para suportar todos os perigos e obstáculos de sua vida de mártir.

Constitui Luísa Michel o verdadeiro tipo d a mártir, mas não da que se vê obrigada a sê-lo em virtude das circunstâncias; havia nascido mártir, o martírio foi para ela uma necessidade natural e na satisfação dessa necessidade colocou a felicidade de sua vida, toda a sua alegria.

Julgava a vida com um critério diferente do de seus contemporâneos; o que era para outros motivo de dor foi para ela um prazer, uma satisfação interior. Este traço psicológico de sua idiossincrasia foi compreendido perfeitamente pelo editor de suas “Memórias” ao dizer que se Luísa Michel tivesse vivido mil e novecentos anos antes teria sido tratada como os primeiros mártires do cristianismo: seu corpo débil seria destroçado pelas feras na arena imperial; e se tivesse vivido na Idade Média teria sido morta, sem dúvida, na fogueira da Inquisição.

Essa fé de mártir foi a verdadeira força interior da “boa Luísa”, a razão pela qual o corpo doente não se extinguiu antes, aniquilado pelos sofrimentos indescritíveis que essa mulher admirável teve de padecer em sua vida tão fecunda em fatos. Luísa Michel foi feliz, feliz em todo o sentido da palavra porque sua alma jamais foi invadida pelo ceticismo suicida do presente; seu coração generoso não se sentiu torturado nunca por esses problemas obscuros da dúvida que fazem tão difícil e insuportável a vida do homem moderno.

Era feliz até quando a afligiam cruéis dores, pois jamais perdeu o equilíbrio moral de sua alma e todos os seus pensamentos e ações giraram sempre em torno do centro de sua existência de mártir; a esperança absoluta no triunfo inevitável da revolução social e a fé profunda e ilimitada em um futuro melhor. Essa harmonia interior a defendia contra toda dúvida; era uma couraça de aço contra toda idéia pessimista, uma couraça contra a chamada “dor universal”, o imenso mal da geração contemporânea. A dor universal! A “boa Luísa” nunca soube o que era isso.

Se os seus atos estavam de acordo com suas opiniões por que havia de ter piedade do mundo? A dor universal! Invenção de uma época débil, palavra baixa na qual se quer ocultar a covardia pessoal e a servidão da alma. Perdemos a harmonia entre nossas idéias e nossas ações, vivem em nossos corações duas personagens diferentes e nosso espírito está dominado por dois pensamentos diferentes. Amamos o novo sem ter a coragem de pô-lo em prática; odiamos o velho, mas falta-nos a força de vontade para romper com o passado. Em uma palavra, procedemos ao contrário do que pensamos e por isso falamos de “dor universal”; sentimos compaixão do mundo quando seria melhor que tivéssemos piedade de nós próprios...

Luísa Michel não conhecia estas fraquezas. Quando abandonou o castelo onde passara sua mocidade e entrou no mundo como professora de escola estava imbuída de idéias radicais e anticlericais. Mas essas idéias não estavam de acordo com o ensino das escolas de Napoleão III. Que importava?

Luísa instruiu as crianças conforme suas convicções e não como lhe exige o governo imperial. Diz às crianças que Napoleão é um criminoso, um tirano, um traidor da República, ensina-lhes cantos revolucionários e outras coisas. Os pequenos mostram-se muito contentes com a singular professora, mas o diretor chega à conclusão de que ela não serve para o magistério.

Luísa dirige-se então a Paris e ante seus olhos se descortina um mundo novo. Convive com os chefes da democracia radical, ao mesmo tempo que freqüenta as assembléias da Internacional e os centros clandestinos dos comunistas. Trabalha dia e noite, esquecendo completamente sua existência material e somente um desejo anima seu coração: a ruína do Segundo Império. Participa em todas as tentativas revolucionárias contra Napoleão III e quando o trono imperial cai destruído na voragem da guerra franco-alemã, ela é a primeira a atacar a chamada República de Setembro, a república da burguesia francesa. Vem depois o 18 de março de 1871; a capital sublevada proclama a Comuna. Luísa Michel adquire forças gigantescas, é a encarnação do temperamento revolucionário, a personificação do entusiasmo rebelde. É incansável em sua atividade.

Fala às multidões e publica seus artigos fragorosos no “Le Cri du Peuple”. Depois vem a catástrofe, o último ato da Revolução Francesa: a Comuna luta entre a vida e a morte contra a reação combinada do Estado e do Capital. Nas barricadas, vestindo o uniforme da Guarda Nacional, fuzil na mão, Luísa é ferida no assalto de Port-Ivry e, antes de o ferimento se cicatrizar acha-se novamente no campo de batalha.

Cuida dos feridos, beija os lábios agonizantes dos irmãos caídos na luta das barricadas. A Comuna cai; no Père Lachaise e no sangrento combate de Sartori morrem seus últimos defensores. Luísa Michel encontrou neste momento um refúgio seguro. Mas em seguida toma conhecimento de que a reação se prepara para acusar de seus atos sua querida mãe.

Em vão os amigos esforçam-se em demonstrar-lhe que a notícia não é verdadeira. Luísa não se deixa convencer e se entrega às mãos dos verdugos sanguinários. No dia 16 de dezembro de 1871 comparece ante os juizes pedindo para si a morte. Sua atitude perante esse tribunal é heróica: censura em termos apaixonados os assassinos da Comuna chamando-lhes cachorros covardes e jura que, sendo absolvida, não deixará de sublevar o povo contra seus verdugos. O conselho de guerra condena-a à prisão em Nova Caledônia. Os parentes valem-se de todas as suas influências para libertá-la, mas Luísa declara que somente voltará com todos os outros.

Durante nove anos arrastou as correntes do presídio até que finalmente foi posta em liberdade com todos os companheiros graças à anistia de 1880. O proletariado francês recebeu com ruidoso entusiasmo a “boa Luísa”. Um ou outro dos comuneiros condenados perdeu a coragem na prisão, mas Luísa continuou a mesma de sempre. Em 1882 foi condenada a duas semanas de prisão por ofensas à polícia e nessa mesma época aderiu à tendência anárquica do socialismo.

Quando, em 1883, se celebraram as grandes manifestações dos desocupados, Luísa achava-se à testa do movimento. Via a fome de seus filhos, os proletários de Paris, e sabia que nada poderia ser remediado com palavras bonitas. “Venham, filhos, eu vos darei de comer”, disse à multidão faminta. E levantando a bandeira negra quebrou as vidraças de algumas padarias e açougues com o objetivo de prover aos pobres e miseráveis.

Foi condenada a seis anos de prisão, mas foi posta em liberdade pela anistia de 1886. Nesse mesmo ano foi novamente condenada por ofensas ao governo; depois a obrigaram a abandonar a França, pois as autoridades tinham a intenção de recolhê-la a um manicômio. No transcorrer dos muitos anos que viveu na Inglaterra escreveu algumas novelas e duas pequenas coleções de versos. Suas novelas “A miséria. Os malditos, A filha do povo”, e principalmente “Os micróbios humanos e O novo mundo” são descrições da miséria do proletariado e acusações veementes contra a sociedade moderna. Nelas se reflete toda a riqueza de seu caráter extraordinário, seus sentimentos profundos e nobres pelos humildes e explorados e particularmente essas relações misteriosas, quase místicas, que existiam entre ela e as multidões operárias de Paris. Antes de abandonarXq França editou o primeiro volume de suas Memórias. Seu último trabalho de caráter literário foi um excelente livro sobre a Comuna de Paris.

Nos últimos anos de sua vida fecunda fez algumas viagens de propaganda por toda a França; encontrava-se em Marselha para pregar a idéia da liberdade geral por meio da revolução social quando a morte interrompeu bruscamente sua atividade incansável.

Em poucas palavras esta é a biografia maravilhosa de Luísa Michel, heroína e lutadora. Todas as suas ações estiveram sempre em concordância com suas idéias. Obedeceu, em todo o momento, à voz de seus sentimentos íntimos e essa voz jamais a atraiçoou.

Foi uma figura completa e seu coração ignorou o dualismo desesperançado que tão fortemente domina a geração atual.

Luísa teve uma morte bela. Três meses antes de seu falecimento, quando todo o mundo acreditou que morreria irremissivelmente, ela venceu, apesar de tudo, a cruel enfermidade. E até teve a rara felicidade de ler o próprio necrológio... Viu as lágrimas ardentes dos humildes e explorados do mundo inteiro para quem ela havia sido sempre a “boa Luísa”.

E essas lágrimas, esse amor ilimitado e essa veneração dos oprimidos foi a maior recompensa que pôde receber.

Era demasiado boa e por isso a morte lhe concedeu um privilégio especial. Mas seu nome viverá eternamente em todos os corações amantes da liberdade.


 

 

O imperativo da hora

 

A pouco e pouco, até os que acreditavam poder refutar os fatos históricos mediante teorias herdadas, compreendem que a guerra que se estende a todos os continentes e inunda como um dilúvio vermelho a humanidade, não pode ser medida ao compasso dos antigos conflitos militares.

O hábito de qualificar todos os acontecimentos históricos somente como uma conseqüência de determinadas leis econômicas, que, em última instância têm de levar-nos a uma etapa superior da vida social, é uma perigosa superstição que contribuiu não pouco para o desenvolvimento da situação presente. Pode ser-se adversário irredutível do atual sistema social, mas a afirmação de que esta guerra é feita simplesmente em interesse dos grupos capitalistas, implica um desconhecimento completo de todas as realidades. Inclusive admitindo que certas camadas do mundo capitalista obtêm benefícios da grande matança dos povos, não se pode negar que a catástrofe atual se converte numa sangrenta fatalidade para o próprio capitalismo, de tal modo que seus representantes não podem ter nenhum interesse nela.

Um terremoto social de semelhante magnitude é perigoso para todo o sistema social. Por isso esta catástrofe não é um assunto de determinadas classes, mas um problema para a sociedade em geral.

É um pequeno consolo sustentar que os trabalhadores poderiam impedir a guerra se tivessem percebido melhor seus “interesses de classe”. Ninguém nega que tinham oportunidade de fazê-lo, mas o fato de que, apesar de tudo, não o fizeram, é a grande tragédia de nosso tempo. Sabemos hoje que grandes massas do proletariado francês contribuíram para a decomposição da resistência contra as hordas hitleristas.

Teria sido um mérito, talvez, se os trabalhadores alemães tivessem feito o mesmo. Mas como não o fizeram, a decomposição interna do país só podia levar o proletariado francês a atirar para os seus ombros, com a invasão alemã, um jugo muito mais pesado e sangrento. O mesmo processo se repetiu em cada país da Europa. Justamente porque os operários não perceberam seus chamados “interesses de classe” e menosprezaram o perigo que os ameaçava, se converteram, e com eles a sociedade inteira, em vítimas da mais espantosa tirania da história.

A guerra atual não é somente um problema econômico. É em primeira plana um problema de poder entre duas tendências diversas do desenvolvimento social, uma das quais significa uma recaída no absolutismo e, em conseqüência, tem de levar à escravidão geral da humanidade, enquanto a outra pretende a elevação paulatina a uma cultura social superior e representa, por assim dizer, a herança que nos deixaram as revoluções do passado. A supressão do absolutismo dos príncipes e da ordem econômica feudal pelas revoluções da democracia e do liberalismo criou as condições prévias para que pudessem desenvolver-se o movimento operário moderno e o socialismo. Sem a conquista de determinados direitos e liberdades políticas não se teria podido pensar sequer nos movimentos sociais do presente. Por isso foi aplainado o caminho para as novas aspirações sociais.

Mas os direitos de que desfrutamos hoje, nos chamados países democráticos, não chegaram aos povos como um presente dos governos; foram o resultado de duras e sangrentas lutas e tiveram de ser obtidos, quase sempre, ao preço dos maiores sacrifícios. Por defeituosos que sejam, não se há de esquecer nunca que representam conquistas revolucionárias que não devem ser abandonadas, se é que não queremos sacrificar infamemente as reivindicações sociais de nosso tempo. Quem não concede importância alguma a esses direitos e quem torne sua a máxima de Lenine de que “a liberdade é um preconceito pequeno-burguês”, está definitivamente perdido para a causa da libertação social. Não se serve a esta libertação abandonando sem luta os direitos conquistados, mas somente quando se está disposto a ampliar e a acentuar esses direitos mais fortemente. O que nós queremos não é reduzir nossos direitos e liberdades, mas acrescentar aqueles e procurar para estas uma contínua ampliação. O que pensar de outro modo, está maduro para as concepções ditatoriais e para o Estado totalitário e fomenta consciente e inconscientemente o desenvolvimento da reação social.

Mas se é verdade que a democracia e o liberalismo tiveram que preparar o caminho para o moderno movimento operário e para as aspirações sociais do presente, também é indubitável que a supressão dessas conquistas democráticas e liberais tinha de conduzir forçosamente a uma supressão do movimento operário e de todas as aspirações libertárias. Que não fazemos aqui uma afirmação no ar, prova-o eloqüentemente a história contemporânea. O Estado totalitário converteu-se num leito de Procusto da liberdade. Por não tê-lo advertido desde o princípio, temos de pagar agora com sangue. A espantosa tirania em todos os países dominados pelo alento pestífero da ditadura totalitária, fala uma linguagem que não pode ser mal interpretada.

O aniquilamento completo do movimento operário independente e de toda aspiração libertária nos países conquistados, o assassínio covarde e impiedoso dos chamados reféns, a execução cotidiana de operários e camponeses antifascistas na Noruega, Holanda, Bélgica, França, Tcheco-Eslováquia, Rumânia, Sérvia, Hungria, etc.; a perseguição medieval contra os judeus; a terrível condição dos milhões de seres humanos na Europa, declarados literalmente caça livre; os horrores dos campos de concentração; a opressão bárbara de todas as conquistas culturais, convertem a existência do Estado totalitário e a vitória eventual de Hitler numa catástrofe para a civilização.

Afirmar que pode ser-nos indiferente o triunfo de um ou de outro dos beligerantes nesta contenda horrível, eqüivale a virar as costas aos covardes assassinos e preparar o mundo para as bênçãos da “nova ordem” hitlerista. A luta contra a escravidão totalitária e contra suas conseqüências bestiais é o primeiro dever do presente, a condição prévia de um novo desenvolvimento social com espírito de liberdade e de justiça. Ao considerar como primeiro imperativo da hora a luta contra a ditadura e o canibalismo do Estado totalitário, não acreditamos nem por um momento sequer que a sociedade burguesa é o melhor dos mundos; só acreditamos na possibilidade de um desenvolvimento social superior sob condições melhores e mais humanas. Quando o mundo tenha sido libertado da peste da militarização da vida social e de todas as raízes do Estado totalitário, abrir-se-ão novas possibilidades para o desenvolvimento de uma obra construtiva. A liberdade não conhece metas finais, mas é o único meio que pode abrir-nos as portas de um novo futuro.

Se as camadas laboriosas da sociedade não foram capazes de opor um dique ao dilúvio vermelho da guerra, ao menos a terrível lição da história recente lhes sirva de motivo para pôr fim, de uma vez por todas, às tais catástrofes. O Estado de escravos de uma suposta “raça de senhores” não pode ser objetivo da humanidade, mas uma federação de povos livres, como a que previram Saint-Simon, Proudhon e Bakunine. É a única base que permitirá o desenvolvimento de uma nova vida e dará à nossa existência valor e conteúdo.


 

 

Sociedade e classe

 

O período iniciado depois da passada guerra mundial, e que hoje conduziu a uma nova catástrofe de incalculável alcance, não somente lançou à margem uma quantidade de instituições políticas e sociais, como deu também uma nova direção ao pensamento e leva hoje à consciência de muitos o que alguns haviam reconhecido há muito tempo. Não só se produziu uma modificação no pensamento das camadas burguesas da sociedade; a mesma modificação se observa também no campo do socialismo. A grande maioria dos socialistas que acreditaram com Marx na missão histórica do proletariado e sustentaram com o marxismo que “de todas as classes que se encontram hoje ante a burguesia, só o proletariado é uma classe realmente revolucionária”, encontram-se agora ante fenômenos que não podem explicar com argumentos puramente econômicos. Era muito cômodo ver no proletariado o herdeiro da sociedade burguesa e acreditar que isso obedecia a férreas leis históricas, tão inflexíveis como as leis que regem o universo.

Este é o defeito inevitável de todos os conceitos coletivos e das generalizações arbitrárias. Mas o pensamento e a ação do homem não são apenas um resultado de sua incorporação a uma classe. Está submetido a todas as influências sociais imagináveis e, sem dúvida, também depende, em parte, de certas disposições inatas que encontram a expressão mais variada sob a ação do ambiente social circundante. Seis filhos engendrados pelo mesmo pai proletário, dados à luz pela mesma mãe proletária e crescidos no mesmo ambiente proletário, seguem, no desenvolvimento de sua vida ulterior, os caminhos mais divergentes e são atraídos por toda a sorte de aspirações sociais, ou são alheios a todo o sentimento social. Um chega ao campo hitlerista, o outro se torna comunista, socialista, reacionário, revolucionário, livre-pensador ou sectário religioso. Por que ocorre isso? Não o sabemos, e tampouco os melhores ensaios de explicação são capazes de descobrir-nos absolutamente o desenvolvimento do indivíduo.

Se o pensamento da evolução tem um sentido, só pode consistir em que todo fenômeno leva em si as leis de sua formação gradual, leis que se ajustam às condições externas do ambiente social e natural. Já o fato singular de que a fé na “missão histórica do proletariado”, a idéia própria do socialismo, não nasceram do cérebro dos chamados proletários, mas foram inventadas pelos descendentes de outras classes sociais e foram apresentadas às classes trabalhadoras como um condimento pronto para o consumo, deveria soar algo criticamente. Quase nenhum dos grandes precursores e animadores do pensamento socialista surgiu do campo do proletariado. Com exceção de J. P. Proudhon, W. Weitling, E. Dietzgen, H. George e algum par de outros mais, os representantes espirituais do socialismo de todos os matizes surgiram de outras camadas sociais. Ch. Fourier, H. Saint-Simon, A. Bazard, B. Enfantin, V. Considérant, Th. Dezamy, E. Cabet, C. Pecquer, Louis Blanc, E. Buret, Ph. Buchez, P. Leroux, Flora Tristan, A. Blanqui, J. de Collins, W. Godwin, Robert Owen, W. M. Thompson, J. Gray, M. Hess, Karl Grun, Karl Marx, F. Engels,. F. Lassalle, K. Rodbertus, E. Dühring, M. Bakunine, A. Herzen, N. Chernichewski, P. Lavroff, Pi y Margall, F. Garrido, C. Pisacane, Elisée Réclus, P. Kropotkin, A. R. Wallace, M. Fluerschein, W. Morris, N. Hyndman, F. Domela Nieuwenhuis, K. Kautsky, F. Tarrida del Marmol, F. Mehring, Th. Hertka, C. Landauer, Jean Jaurès, Rosa Luxemburg, H. Cunow, G. Plekhanov, N. Lenin e centenas de outros não eram membros da classe operária.

Não foram as leis da “física econômica” as que levaram esses homens e mulheres ao campo do socialismo, mas principalmente motivos éticos, e talvez em alguns também tenham intervido outros fatores. Seu sentimento de justiça se rebelou contra as condições sociais de seu tempo e deu a seu pensamento uma orientação determinada.

E por outra parte, vemos homens como Noske, Hitler, Stalin e Mussolini, que surgiram das mais baixas camadas sociais, se elevarem à categoria dos piores inimigos de um movimento operário independente e se converterem em veículos conscientes de uma reação social cuja significação para o próximo futuro não se pode calcular ainda.

Se se pudesse provar que o pertencer a uma classe determinada influi tão fortemente no pensamento e no sentimento do homem que o distingue, por toda a sua essência, dos membros das outras classes sociais e o leva por uma direção completamente determinada, então se poderia falar, talvez, de “necessidades” e de “missões históricas”. Mas como não é assim, por essa senda não se chega senão a perigosos sofismas que transformam o pensamento vivo em um dogma morto, incapaz de outro desenvolvimento. O que hoje se costuma qualificar como “conteúdo social” de uma classe, como “psicologia” de uma raça ou “espírito” de uma nação, é sempre o resultado de um trabalho mental individual que se atribui logo, arbitrariamente, como suposta “lei da vida”, à classe, à raça ou à nação. No melhor dos casos, não passa de uma engenhosa especulação. Mas na maioria das vezes opera como uma fatalidade, pois não estimula nosso pensamento, mas condena-o a uma infecunda paralisia.

A classe é só um conceito sociológico que tem para nós a mesma significação que a divisão da natureza orgânica, pelo homem de ciência, em diversas espécies. É um fragmento da sociedade como a espécie é um fragmento da natureza. Atribuir-lhe uma “missão histórica” é incorrer num jogo especulativo de nosso pensamento e não tem maior valor que se um naturalista quisesse falar por exemplo da missão dos crocodilos, dos macacos ou dos cães. Não é a classe, mas a sociedade em que vivemos, e da qual a classe não é mais que uma parte, que influi continuamente até no mais profundo de nossa existência espiritual. Toda a nossa cultura, a arte, a ciência, a filosofia, a religião etc., é um fenômeno social, não um fenômeno de classe, e se impõe a cada um de nós, qualquer que seja a camada social a que pertençamos.

Não nos deu já a Alemanha neste aspecto um exemplo clássico? Há ainda, nestas horas, bobos que querem ver no movimento hitlerisía apenas uma rebelião da pequena burguesia, afirmação absurda privada de todo fundamento. Na instituição do Terceiro Reich contribuíram os homens de todas as classes sociais e não em último termo as grandes massas do proletariado alemão. Em 1924 recebeu Hitler nas eleições l.900.000 votos; dez anos mais tarde em 1934 essa cifra alcançou 13.732.000. O exército pardo de Hitler não se compunha somente de pequenos burgueses e de intelectuais, mas, principalmente, de operários alemães que, apesar de sua origem proletária, foram tão subjugados pelas idéias do fascismo como as outras camadas sociais.

Se se quer combater eficazmente a barbárie geral que ameaça nossa cultura, é preciso renunciar a mais um dogma morto e atirar ao monte de cisco mais uma “verdade absoluta”.


 

 

A volta a Deus

Réplica a Dorothy Thompson

 

MISS DOROTHY THOMPSON é uma mulher extraordinária. Alguns de seus adversários não o querem reconhecer. Pior para eles, não para Miss Thompson. A pessoa que serve a uma grande causa, respeita aos inimigos, porque respeita a si mesma. Refiro-me aos adversários honestos, pois só eles merecem esses nomes. Miss Thompson é uma mulher valorosa, uma pessoa que pensa e que sente, da escola do velho liberalismo norte-americano, que teve seus melhores representantes em Paine, em Jefferson, em Thoreau, em Emerson e em muitos outros. Miss Thompson não é daqueles “liberais” que tornaram seu o pensamento de que as interpretações políticas e sociais de Jefferson e de seus partidários não são aplicáveis à época atual, porque as condições materiais da vida se modificaram e adquiriram formas que não poderiam prever os liberais da velha escola.

Miss Thompson compreende que o pensamento da liberdade humana não está ligado a nenhuma época e a nenhuma condição material; que constitui o mais profundo conteúdo de nossa vida, do qual emana toda cultura, todo progresso na história. O ambiente material em que vivemos se modifica sem cessar e nos impõe novos ensaios e métodos, mas o espírito de liberdade é imutável, pois encarna o valor da personalidade, a dignidade do ser humano, sem o qual a vida perde o conteúdo.

Dorothy Thompson é, neste aspecto, mais revolucionária que muitos de nossos radicais que, assustados com as terríveis experiências do fascismo vermelho e pardo, se aferram à ordem atual de coisas e perderam toda capacidade para contemplar novas perspectivas para o futuro. O maior mérito de homens como Paine e Jefferson esteve em terem reconhecido que todo período tem seus problemas especiais, e que nenhuma geração tem o direito de prescrever o modo de viver às gerações futuras. Nada existe para a eternidade. O câmbio contínuo das coisas é a grande lei da vida. A fatalidade de toda reação política e social foi sempre que seus promotores inventaram ligar os homens a uma condição existente e quiseram impedir todo desenvolvimento ulterior.

Miss Thompson o assinala. Por isso busca a salvação, não no passado, mas no desenvolvimento de um novo espírito que brote da necessidade de liberdade do ser humano e adapte as condições materiais da vida a essa necessidade. Compreendeu os perigos do monopolismo político e econômico e a grande exigência de uma transformação de todos os valores espirituais e materiais. Assinala também que, na grande luta contra a barbárie do Estado totalitário, só pode triunfar a liberdade se esta forjar suas próprias armas e não tomá-las do arsenal da tirania. Por isso soa tanto mais singularmente sua afirmação “de que nosso terrível período deve ser atribuído ao fato de ter excluído da vida humana o conceito de Deus e ter criado, em sua substituição, um vazio espiritual que procuram encher hoje um Hitler, ou um Stalin”.

Não pertenço aos que se assustam com a palavra Deus. Se chamamos à grande razão primária de todas as coisas, Deus ou Natureza, nem por isso nos aproximamos mais dela. Nosso pensamento move-se sempre na superfície dos conceitos criados por nós mesmos. Podemos interpretar o mundo e a vida diversamente, mas nem por isso descerramos o véu atrás do qual está oculto o grande mistério. Nem a religião nem a ciência podem informar-nos sobre este ponto. As concepções materialistas e teístas se sucedem em cada período da história; parece até que ambas têm sido solidárias. Por sua aparição alternativa criam uma certa nivelação de nosso pensamento. É como uma vara que se curvou para um lado e que é preciso ser curvada para o outro para ficar direita. Mas é falso, é perigoso e injusto querer carregar a responsabilidade de determinados fenômenos sociais a um certo modo de pensar. Sem dúvida, um déspota pode aproveitar certas idéias para seus fins, mas com isso não fica provado que uma idéia em si e por si seja despótica. Talvez os piores crimes se perpetram em nome de Deus.

Se se pudesse demonstrar que os períodos de credulidade religiosa estiveram livres de guerra, de ódio e de perseguição, não necessitaríamos disputar acerca deste problema. Mas justamente as guerras religiosas foram até aqui as mais cruéis de todas as guerras, e não existiu um déspota que não tenha justificado sua tirania em nome de Deus. As cruzadas, as guerras contra os albigenses, bogomilos e hussitas, a guerra dos Trinta Anos e as guerras dos huguenotes na França são eloqüentes testemunhos.

Hitler é, sem dúvida, um homem religioso que acredita firmemente que é um instrumento de Deus na terra. Essa idéia fanática reaparece em todos os seus discursos. Mas seu ex-amigo Stalin pensava com Marx que a “religião é o ópio do povo”. Ambos têm concepções totalmente distintas sobre a religião e chegaram, contudo, ao mesmo despotismo. Não prova isso que o verdadeiro problema é mais profundo? Torquemada que mandava queimar os corpos para salvar as almas, era um representante manifesto do absolutismo político e religioso. Maquiavello e Hobbes, ao contrário, não acreditam nem em Deus nem no diabo e eram, contudo adeptos do absolutismo estatal.

Acusou-se a Darwin de ser a sua teoria da luta pela existência responsável pelo egoísmo social de nosso tempo. Mas foi esquecido que, segundo sua própria confissão, precisamente essa parte de sua teoria foi influída fortemente pelas doutrinas malthusianas. Malthus, que sustentava que “a mesa da vida não está servida para todos”, não só era um homem profundamente religioso, como também era sacerdote. E Kropotkin, declaradamente “materialista”, que não acreditava em nenhum Deus pessoal, desenvolveu das conclusões de Darwin a filosofia do apoio mútuo, nascida do mais profundo amor humano.

Não sustento que um ser religioso não possa ser uma boa pessoa. Um homem pode crer em Deus e pertencer às criaturas mais nobres da terra. Mas o mesmo pede também ocorrer com homens que não acreditam em nenhuma divindade pessoal e estão firmemente convencidos de que o ser humano venera em Deus somente seu próprio retrato. Kropotkin, Reclus, Owen, Malatesta e cem outros pertenciam, apesar de sua “incredulidade”, aos representantes socialmente mais sensíveis da espécie humana. Não é o sinal externo ou a necessidade pessoal de fé que formam os seres humanos reais, mas a conduta ante seus semelhantes, seu respeito ante a liberdade dos outros, sua compaixão ante a dor do próximo, sua profunda necessidade de justiça para todos. A religião é, em geral, um conceito muito indefinido. A palavra latina religio significa a ligação dos homens a algo superior. Neste sentido todo ser de disposição idealista é um religioso. O homem pode chamar divino ao supremo que aspira. Sobre as palavras não vale a pena discutir. Mas o Deus que cria por si mesmo tem sempre que permanecer seu próprio Deus. No momento em que o impõe aos outros, converte-se em cilício do próximo. Isto se aplica a Deus, a toda “verdade absoluta”, a toda idéia. Pois para todos nós tem validade a frase de Goethe:

“Assim como és, é teu Deus. Por isso se converte muitas vezes a divindade em escárnio”.

II

Não são as idéias, quer lhes atribuamos uma origem divina ou uma origem humana, que causam a nossa infelicidade, mas a falta de idéias, a petrificação paulatina das concepções viventes em dogmas mortos que asfixiam o espírito e fazem perder a capacidade para a ação. Idéias que influem em nosso desenvolvimento espiritual, surgem sempre das circunstâncias da época e de certas necessidades da vida como o fruto da flor na árvore. As idéias não se movem no ar; brotam das condições do ambiente material circundante em que vivemos e reacionam sobre ele, ajudando-nos a modificá-lo. Surgem novas idéias sempre que o tempo amadurece para elas. Unimo-las freqüentemente ao nome de alguns indivíduos e esquecemos muito freqüentemente sua formação gradual, antes de adquirir uma forma determinada através da energia intelectual de um homem de gênio.

A idéia da evolução não foi inventada por Darwin. Teve uma grande quantidade de precursores em todos os povos de nosso círculo cultural, entre eles Diderot, Treviranus, Lametrie, Buffon, Goethe, Lamarck, etc., antes que Darwin e Wallace resumissem as experiências de seus predecessores e as próprias. O chamado marxismo, que não só teve influência sobre o movimento socialista, mas também sobre o pensamento econômico e histórico de um determinadò período, não nasceu em todas as suas partes integrantes do cérebro de Marx. Encontramos os fundamentos da “interpretação materialista da história”, da “teoria da plus-valia”, da doutrina da “concentração do capital”, etc., nos escritos de Saint-Simon, Bazard, Considérant, Vidal, Pecquer, Louis Blanc, William Thompson, Proudhon e muitos outros. O mérito de Marx consiste em ter resumido os rudimentos de seus predecessores de maneira coesa e fecundá-los com os próprios. Mas o fato de tê-los formulado como lei absoluta, determinante de todo o desenvolvimento da humanidade, foi sua fatalidade, pois criou com essa fé no absoluto um dogma que, em mãos de seus adeptos, impediu todo o desenvolvimento ulterior.

As idéias são sempre boas, enquanto o espírito vive nelas e estimula os homens a pensar por sua própria conta. Perdem sua fecundidade natural quando degeneram em dogma morto e cessam realmente assim de ser idéias. Pelo fato de Hitler e Stalin terem querido suplantar a Deus, como afirma Miss Thompson, não chegaram a ser açoites da humanidade mas homens sem idéias que intentam impor ao mundo um dogma morto, o dogma do Estado totalitário, e querem obrigar os homens, com cego fanatismo e violência brutal, a reconhecer sua loucura. A crença no absoluto é o maior obstáculo para todo desenvolvimento espiritual.

Lessing, o grande sábio, disse uma vez: “Se Deus viesse a mim, com a verdade absoluta numa das mãos e a aspiração à verdade na outra, e me dissesse: ‘Escolhe meu filho’, eu lhe responderia: ‘A verdade absoluta, Senhor, conserva-a para ti, pois todo o absoluto está feito para os deuses. A mim, dá-me a eterna aspiração à verdade, pois nela está a dignidade humana’”. Nestas palavras está contido todo o programa do homem que pensa e luta em todos os tempos e países. Não há perfeição absoluta; há uma aspiração à verdade. Nem a religião nem a ciência nem a filosofia podem dar-nos a verdade absoluta, mas apenas esclarecimentos que hoje são exatos e amanhã são relegados por novas interpretações. É o espírito somente o que gera sempre nova mutação e dá à nossa existência finalidade e conteúdo. Mas o espírito só opera em liberdade; por isso odeia o absoluto e compreende que as coisas não possuem mais que um valor relativo.

Também Dorothy Thompson compreende isso. Por isso fala de um novo espírito que há de chegar aos seres humanos para criar os rudimentos de um novo mundo depois do dilúvio vermelho. Compara a atual catástrofe com a decadência de Roma e prevê o “derrubamento de instituições, valores, classes, sistemas econômicos e políticos”. Mas essa perspectiva não a torna pessimista: olha, ao contrário, com maior esperança para o futuro. Isto é alentador nesta época tenebrosa. Tem razão quando diz: “A terrível e dramática contradição de nosso tempo é que existe nele muito mal e outro tanto bem; é a época da desesperação, mas também a época da esperança”. Palavras formosas e nobres, ante as quais podem tonificar-se as almas cansadas que perderam a fé num melhor porvir.

Mas o espíirito que há de vir para nós, não será o do passado, mas o do futuro. Um ancião pode pensar em sua juventude com muda nostalgia, mas não volverá a ela. Como viveu sua própria vida, assim tem de morrer sua própria morte. Depois da grande catástrofe das guerras napoleônicas, peregrinaram centenas, milhares de jovens artistas, filósofos e antigos revolucionários a Roma para voltar ao seio da Igreja. O que encontraram ali não foi o Deus que buscavam, mas a “Santa Aliança” da reação social, o domínio de Metternich, que substituiu Napoleão e fez da Europa um cemitério intelectual. Somente as revoluções de 1848-1849 suprimiram esse obstáculo e deram aos povos novas esperanças.

Inclusive a idéia mais fecunda pode terminar em dogma morto, não somente na religião, mas também na ciência, na filosofia, em todo o domínio da vida espiritual. Só o espírito livre libera, o dogma escraviza. O espírito suspende sua obra, começa a escravidão voluntária, incapaz de toda sublevação. O dogmático forja as próprias cadeias e alivia o trabalho dos tiranos. Adapta-se às coisas dadas e renuncia à aspiração da verdade; esquece sua dignidade humana. O mundo pende dele como uma pedra ao colo, pois sente-se uma parte do eterno movimento de todas as coisas, que não reconhece um ponto morto. Dorothy Thompson tem razão quando fala de um novo espírito para dar à nossa vida novos valores espirituais e materiais e penetra todas as nossas aspirações com o anelo de uma grande sensibilidade ética. Importa pouco o nome que se lhe dê, enquanto se compreenda que ser homem é ser combatente ardoroso.

Só cria novos valores o que não se extravia no labirinto de conceitos do passado e vê na liberdade o único valor da vida. Mas o novo de que necessitamos está à nossa frente, e não atrás. Do Oriente sai o sol, no Ocidente se põe.


 

 

Considerações sobre o imperialismo inglês

 

O pior tirano é a frase feita! É um déspota sem espírito; por isso apela mais poderosamente aos seres sem alma, que se alimentam com grande esforço dos desperdícios de pensamentos reais. Os escritores marxistas têm enchido bibliotecas inteiras sobre a significação do imperialismo como última forma historicamente necessária do desenvolvimento capitalista, que nos tem de conduzir tão inevitavelmente ao socialismo com um trem rápido de uma cidade a outra. Um amigo da Suécia me enviou há pouco um folheto sobre o imperialismo inglês como causa da guerra atual. O autor, naturalmente um stalinista, quis provar, com ajuda de supostos “fatos”, que a Inglaterra preparou a guerra há muito tempo e que privou a Alemanha de toda possibilidade de alimentar sua população excessiva. Bastaria o governo inglês ceder algumas de suas colônias a Hitler e toda a catástrofe teria sido evitada. É a velha canção que nos canta a imprensa comunista desde a aliança germano-russa, canção que não deixou de causar efeito entre os comunistas. Vale a pena, pois, analisar as coisas mais intimamente.

Antes de tudo, é uma afirmação inteiramente falsa essa de que o imperialismo é uma conseqüência lógica do desenvolvimento capitalista. Existiam estados imperialistas quando não se podia falar de capitalismo no sentido atual. Impérios antigos como Pérsia, Babilônia e Roma se afirmavam completamente sobre a política do imperialismo: Um “império” é um Estado que trata de fazer tributários seus, por meio da conquista, a outros países, e domina politicamente e explora economicamente esses países desde um centro determinado ou metrópole, sem garantir-lhes independência alguma. Também a Inglaterra foi, em outros tempos, um Estado imperialista dessa espécie. Suas colônias eram administradas de Londres e organizadas ali economicamente ou cedidas como monopólios. Foi isso que moveu as colônias inglesas norte-americanas em 1775 a rebelarem-se contra a metrópole, de onde surgiram os Estados Unidos.

Mas essa condição se modificou há muito tempo, muito embora haja ainda seres a quem as árvores não deixam ver o bosque. O desenvolvimento imperialista da Inglaterra não conduziu certamente ao socialismo, como devera acontecer, de acordo com a concepção materialista da história, mas a uma superação do imperialismp como tal. As antigas colônias se converteram em Estados independentes, com exceção da Índia; mas também ali começou há muito tempo esse desenvolvimento e, sem dúvida, terá o mesmo curso que em outras colônias. O império inglês não é já um “império” no sentido que tem essa palavra, mas uma federação de Estados independentes, muito mais independentes em suas decisões que cada um dos 48 Estados da União norte-americana. Canadá, Austrália, Nova Zelândia, a União Sul-Africana têm governos próprios, legislação própria, política comercial própria, sistema tributário próprio, até leis de imigração próprias, segundo as quais podem ser expulsos de seus territórios até os ingleses, se esses Estados julgarem conveniente. A Inglaterra não tem sequer o direito de obrigar os seus “Domínios” a participar em suas guerras. A melhor prova está na Irlanda, que, como domínio britânico, declarou-se neutra na guerra atual e segue mantendo um representante em Berlim.

O que mantém essa liga de Estados independentes não é a coação da metrópole, mas os pactos livres que se apresentam em cada parlamento dos Domínios, pactos nos quais a Grã-Bretanha possui os mesmos direitos que qualquer outra parte do império inglês. Existem principalmente três causas como base dessa federação dos Estados britânicos: 1) A cultura comum e as tradições democráticas que ligam as antigas colônias à mãe pátria; 2) As vantagens econômicas que se oferecem ao Domínio Federado, e das quais não é a Inglaterra, de modo algum, o único beneficiário; 3) A segurança que garante a cada uma das partes. Sem essa segurança, Austrália e Nova Zelândia há muito que teriam sido presa do Estado militar japonês, e tampouco haveria sido firme a independência da União Sul-Africana. Todos os Estados imperialistas sucumbiram no decorrer do tempo porque não fizeram concessões às suas colônias e as impulsionaram dessa maneira à rebelião aberta contra a metrópole. A Espanha, que foi o maior país colonial do mundo, perdeu por essa causa todas as suas possessões. O mesmo se teria dado, sem dúvida, com o império mundial britânico se não tivesse posto um limite, por própria decisão, às suas aspirações imperialistas, compreendendo muito bem que uma federação de Estados livres é melhor garantia para a existência do império que a espada da conquista.

O mesmo não ocorre com a Alemanha. Para Hitler e seus aliados fascistas esta guerra é uma guerra imperialista em todo o sentido da palavra. Seu livro “Mein Kampf” é a alta canção do imperialismo. Fez ali o propósito de repartir, com a Alemanha e a Itália, o domínio sobre a Europa, e suprimir a França como nação independente. E como não conseguiu alcançar esse objetivo de acordo com a Grã-Bretanha, intenta realizá-lo contra a Grã-Bretanha e destruir a comunidade britânica de Estados. Hitler não dissimulou nunca essas aspirações e intentou, ainda, dar-lhes uma justificação teórica, declarando que a raça alemã está chamada pela história a dominar todos os povos. A nova ordem desejada para a Europa é a ordem da “raça dos amos”, para encadear todos os outros povos ao jugo da escravidão total e impor-lhes sua vontade com a ponta das baionetas.

Há apenas umas semanas declarou o ministro alemão de economia, dr. Funck, o seguinte: “A futura economia de paz tem de garantir ao Grande Reich Alemão um máximo de segurança e ao povo alemão um máximo de produtos de consumo para aumentar seu bem-estar. Toda a economia européia tem de orientar-se segundo esse propósito”.

Em outras palavras: os alemães, o povo eleito; Berlim, o coração do mundo; e os outros povos, rebanhos de gado, bons somente para serem ordenhados ou devorados pela hoste organizada de ladrões. Magnífico futuro, certamente! A barbárie como princípio! O cárcere como símbolo da segurança! O látego como cetro da nova ordem!

Os gladiadores da antiga Roma iam ao circo ao grito de “Ave, César, os que vão morrer te saúdam!” Por que não haveriam de ir os povos da Europa ao matadouro ao grito de “Heil Hitler”?

E de repente apresenta-se um qualquer, que não sabe o que é imperialismo, que não tem nenhuma idéia do que é economia e história e anuncia ao mundo que bastaria o imperialismo inglês ceder à Alemanha algumas de suas colônias para impedir a guerra. O bom homem dormiu quase cinqüenta anos; do contrário saberia que a Inglaterra não está em condições de oferecer colônias que já não possui e às quais não pode impor normas, nem política nem legalmente. Nada supera a sabedoria do oráculo de Moscou.

II

Nossas considerações sobre o desenvolvimento do imperialismo inglês para a qualidade de federação de Estados independentes seriam incompletas se deixássemos à margem as relações atuais do governo britânico com a Índia. São precisamente essas relações as que proporcionam à imprensa comunista a melhor matéria para seus ataques contra o imperialismo britânico, dando-lhe ocasião de comparar a “tirania britânica” com a excelência da União das Repúblicas Socialistas dos Sovietes. Também neste aspecto é preciso distinguir claramente entre os fatos históricos do passado e o estado atual de coisas que surgiu daqueles fatos lentamente. Pode julgar-se como quiser a história do domínio inglês na Índia, mas afirmar que ali não mudou nada desde a época de Robert Clive, é um verdadeiro absurdo e uma incurável cegueira ante o progresso da história.

É certo que a Índia se encontra desde os últimos cinqüenta anos no mesmo caminho de desenvolvimento político que conduziu, em última instância, à transformação das antigas colônias em membros independentes do império britânico. Depende das circunstâncias distintas, que esse desenvolvimento da Índia não se tenha realizado com a mesma celeridade que nas outras colônias. Antes de tudo não se deve esquecer que os primeiros colonos do Canadá, da Austrália, da União Sul-Africana, etc., chegaram da metrópole e estavam ligados a ela pelos costumes, religião, concepções políticas e hábitos sociais. Por isso o desenvolvimento geral pôde realizar-se ali muito mais fácil e espontaneamente. Mas a Índia, um país com 375 milhões de habitantes e 225 idiomas, que se distinguem da Inglaterra não só pela raça, pela história, religião e costumes, mas que se decompõe em centenas de tribos e grupos étnicos, era impossível que pudesse levar a cabo essa evolução no mesmo tempo que as outras colônias inglesas. Não só há na Índia uma imensidade de povos distintos, mas também toda uma série de civilizações diversas.

Quando o inglês Allan O. Hume organizou em 1885 o Congresso Nacional da Índia, que hoje é a alma do movimento de unificação nacional hindu, acreditava poder associar todos os povos da Índia numa só nação, para que desfrutasse dentro do império britânico da mesma independência dos atuais Domínios. Mas teve de reconhecer muito cedo que sua idéia era um mero sonho. O novo movimento não só se cindiu logo numa tendência moderada e numa tendência radical, como foi muito obstaculizado em seu desenvolvimento por toda uma série de contradições religiosas e sociais, que até hoje não foram superadas, embora a poderosa propaganda de Gandhi tenha contribuído muito para uma nivelação. Contudo, existe ainda junto ao grande movimento do Congresso Nacional da Índia, a Liga Islâmica, que representa a parte maometana da população e aspira a um Estado autônomo para ela. O problema, segundo toda probabilidade, só poderá resolver-se por uma federação de povos da Índia, reconhecida pela Inglaterra como Domínio independente.

Essa mudança da situação é inevitável. Começou já em 1917, quando a Inglaterra, sob a pressão do movimento nacional, resolveu elaborar para a Índia uma nova Constituição sobre a base de um governo responsável. Desde então a reforma da Índia não se paralisou, e nem sequer os conservadores ingleses puderam resistir-lhe; ao contrário, seus intentos de resistência aceleraram mais o movimento, pois provocaram distúrbios no país, que o governo, mais tarde, não pôde conter senão mediante novas concessões. Em sua política comercial e em relação com sua administração financeira, a Índia é já independente e tem, como os Domínios britânicos, direito a tarifas aduaneiras próprias.

Politicamente, a Índia nunca teve administração unitária. Uma parte de suas províncias esteve diretamente sob a administração inglesa; outra foi governada pelos príncipes hindus, dependentes da administração central inglesa. Nas primeiras, quer dizer, nas províncias como Assam, Bengala, Madrasta, Bihar, Orissa, Sind, Bombaim, etc., existe já hoje uma auto-administração política bastante ampla, e também nas outras se observa cada vez mais fortemente esse desenvolvimento, especialmente depois da conferência chamada da “Round Table” em Londres, 1930-31. Neste aspecto, tampouco a Índia é já, no velho sentido, uma “colônia da coroa”, mas um país ineludivelmente destinado a ocupar seu posto entre os Domínios britânicos num prazo mais ou menos curto. A guerra atual interrompeu esse processo até certo grau, mas só poderia ser paralisado se o próprio império britânico fosse derrubado.

O atual movimento nacional da Índia, que quer a independência do país, e cujo órgão é o Congresso Nacional da Índia, compõe-se da tendência moderada de Gandhi e da tendência radical, representada por Nehru. Ambas as tendências aspiram a uma federação democrática dos povos hindus sobre a base de um governo independente e da igualdade política de todas as castas, raças, religiões e classes. Tanto Gandhi como Nehru são adversários declarados de toda ditadura, e até Nehru, que é muito mais hostil ao governo inglês que Gandhi, declarou há pouco em seu periódico “The National Herald”, que não é possível nenhuma paz “enquanto a maldição do hitlerismo não tenha sido extirpada da face da humanidade”.

Ambas as tendências acusaram reiteradamente o governo inglês de ter retardado intencionalmente o processo de auto-administração; contudo, especialmente Gandhi, cuja influência é sempre a mais forte, está firmemente convencido de que a Índia só pode alcançar sua liberdade como Domínio independente dentro do império britânico, se é que o país não quer cair vítima das aspirações imperialistas da Rússia, do Japão ou da Alemanha. Somente por esse caminho é possível, segundo Gandhi, um desenvolvimento ulterior sobre o caminho da libertação econômica e social.

Em comparação com a famosa União das Repúblicas Soviéticas Russas, a Índia é inclusive nas condições atuais, um paraíso de liberdade e de independência. Nenhuma das repúblicas russas poderia atrever-se a suplantar, dentro de suas fronteiras, a ditadura de Stalin por outro regime. Nenhuma poderia, junto ao partido comunista, consentir na existência de outro partido. O movimento hindu da independência tem, ao menos, ò direito a manifestar-se pela palavra e por escrito em prol de suas aspirações. Na Rússia nem sequer poderia sonhar com semelhante possibilidade. Não se liberta a seres humanos submetendo-os, todos, à mesma tirania. Sem a plena liberdade da decisão própria, toda “união” política não é mais que letra morta e um despudorado jogo com falsos fatos, que tem tão pouco que ver com a realidade da vida como o coaxar de uma rã com a nona sinfonia.


 

 

Marx e o anarquismo

 

HÁ alguns anos, pouco depois da morte de Frederico Engels, o sr. Eduardo Bernstein, um dos membros mais conspícuos da comunidade marxista, assombrou seus companheiros com uns descobrimentos notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvidas a respeito da exatidão da interpretação materialista da história, da teoria marxista da plus-valia e da concentração do capital; ate atacou o método dialético, chegando à conclusão de que não era possível falar de um socialismo crítico. Homem prudente, Bernstein reservou para si seus descobrimentos até quando morresse o velho Engels, e só então os tornou públicos ante o espanto dos sacerdotes marxistas. Mas nem sequer essa prudência pôde salvá-lo, pois foi atacado por todos os lados. Kautsky escreveu um livro contra o herege e o pobre Eduardo viu-se obrigado a declarar no congresso de Hannover que era débil pecador mortal e que se submetia à decisão da maioria científica.

Entretanto, Bernstein não tinha revelado nada de novo. As razões que expunha contra os fundamentos da doutrina marxista já existiam quando ele ainda seguia sendo apóstolo fiel da igreja marxista. Esses argumentos tinham sido retirados da literatura anarquista e o único importante era o fato de que um dos social-democratas mais conhecidos se valesse deles pela primeira vez. Nenhuma pessoa sensata negará que a crítica de Bernstein deixara de produzir uma impressão inesquecível no campo marxista; Bernstein tinha tocado nos alicerces mais importantes da economia metafísica de Karl Marx e não é estranho que os respeitáveis representantes do marxismo ortodoxo se tivessem alvoroçado.

Não teria sido tão grave tudo isso se não interviesse um outro inconveniente pior que o anterior. Há mais de meio século os marxistas não deixam de pregar que Marx e Engels foram os descobridores do chamado socialismo científico. Inventou-se uma distinção artificial entre os socialistas intitulados de utópicos e o socialismo científico dos marxistas, diferença que existe tão-somente na imaginação destes últimos. Nos países germânicos a literatura socialista foi monopolizada pelas teorias marxistas e todo social-democrata as considera como produtos puros e absolutamente originais dos descobrimentos científicos de Marx e Engels.

Mas também este sonho se desvaneceu; as investigações históricas modernas estabeleceram, de uma maneira inconteste, que o socialismo científico não é mais que uma resultante dos antigos socialistas ingleses e franceses e que Marx e Engels conheceram perfeitamente a arte de se vestirem com penas alheias. Depois das revoluções da 1848, iniciou-se na Europa uma reação terrível; a Santa Aliança voltou a estender suas redes em todos os países com o propósito de afogar o pensamento socialista, que tão riquíssima literatura produziu na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Itália. Tal literatura foi quase totalmente relegada ao esquecimento durante essa época de obscurantismo que começou depois de 1848. Muitas das obras mais importantes foram destruídas até reduzir-se o seu número a poucos exemplares que acharam abrigo nalgum lugar tranqüilo de certas grandes bibliotecas públicas ou de algumas particulares. Só no espaço dos últimos vinte e cinco ou trinta anos, essa literatura foi novamente descoberta e hoje causam admiração as idéias fecundas que se encontram nos velhos escritos das escolas posteriores a Fourier e Saint-Simon, nas obras de Considérant, Desami, Mey e muitos outros. E nessa literatura se achou também a origem do chamado socialismo científico. Nosso velho amigo W. Tcherkesoff foi o primeiro a oferecer um conjunto sistemático de todos os fatos; demonstrou que Marx e Engels não são os inventores dessas teorias que durante tanto tempo foram consideradas como seu patrimônio intelectual; até chegou a provar que alguns dos mais famosos trabalhos marxistas, como por exemplo o Manifesto Comunista, na realidade são apenas traduções livres do francês feitas por Marx e Engels. E Tcherkesoff obteve o triunfo de ver suas afirmações a respeito do Manifesto Comunista reconhecidas pelo “Avanti”, o órgão central da social-democracia italiana, depois de ter tido o autor a oportunidade de comparar o Manifesto Comunista com o Manifesto da Democracia de Victor Considérant, que apareceu cinco anos antes que o opúsculo de Marx e Engels.

O Manifesto Comunista é considerado como uma das primeiras obras do socialismo científico e o conteúdo desse trabalho foi tirado dos escritos de um “utopista”, pois o marxismo inclui a Fourier entre os socialistas utópicos. É esta uma das ironias mais amargas que se possa imaginar e não constitui, certamente, uma recomendação favorável para o valor científico do marxismo. Victor Considérant foi um dos primeiros escritores socialistas que Marx conheceu; mencionava-o até na época em que não era socialista. Em 1842, a “Allgemeine Zeitung” atacou a “Rheinische Zeitung”, da qual Marx era redator-chefe, acusando-a de simpatizar-se com o comunismo. Marx respondeu então com um editorial em que declarava o seguinte:

“Obras como as de Leroux, Considérant e especialmente o livro perspicaz de Proudhon não podem ser criticadas com algumas observações superficiais e é preciso estudá-las detidamente antes de entrar a criticá-las”.

O socialismo francês exerceu a maior influência sobre a desenvolvimento intelectual de Marx, mas de todos os escritores socialistas da França é P. J. Proudhon quem mais poderosamente influiu em seu espírito. Até é evidente que o livro de Proudhon “Que é a propriedade?” induziu a Marx a abraçar o socialismo. As observações críticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversas tendências socialistas descerraram ante Marx um mundo novo e foi principalmente a teoria da plus-valia, tal como foi desenvolvida pelo genial socialista francês, que maior impressão causou na mente de Marx. A origem da doutrina da plus-valía, esse grandioso “descobrimento científico” de que tanto se orgulham os nossos marxistas, achamo-la nos escritos de Proudhon. Graças a este, Marx chegou a conhecer essa teoria, que modificou mais tarde mediante o estudo dos socialistas ingleses Bray e Thompson.

Marx reconheceu até publicamente a grande significação científica de Proudhon e num livro especial, hoje completamente desaparecido da venda, chama a obra daquele “Que é a propriedade?” o “primeiro manifesto científico do proletariado francês”. Essa obra não voltou a ser editada pelos marxistas, nem foi traduzida em outro idioma, apesar de os representantes oficiais do marxismo terem feito os maiores esforços para difundir em todas as línguas os escritos de seu mestre. Este livro foi esquecido, e sabe-se por que: sua reimpressão descobriria ao mundo o colossal contra-senso e a insignificância de tudo quanto Marx escreveu mais tarde sobre o eminente teórico do anarquismo.

Marx não somente tinha sido influenciado pelas idéias econômicas de Proudhon, como também se sentiu influído pelas teorias anárquicas do grande socialista francês e em um de seus trabalhos daquele período combate o Estado na mesma forma em que o fizera Proudhon.

II

Todos os que tenham estudado atentamente a evolução socialista de Marx deverão reconhecer que a obra de Proudhon “Que é a propriedade?” foi a que o converteu ao socialismo. Os que não conhecem de perto os pormenores dessa evolução e aqueles que não tiveram oportunidade de ler os primeiros trabalhos socialistas de Marx e Engels julgarão estranhas e inverossímeis essas afirmações. Porque em seus trabalhos posteriores Marx fala de Proudhon com sarcasmo e desprezo e são precisamente estes escritos os que a social-democracia voltou a publicar e a reimprimir constantemente.

Deste modo tomou corpo a pouco e pouco a opinião de que Marx foi desde o princípio o adversário teórico de Proudhon e que nunca existiu entre ambos, ponto de contacto algum. E verdadeiramente, quando se lê o que o primeiro deles escreveu a respeito do segundo em seu conhecido livro Miséria da Filosofia, no Manifesto Comunista e na necrologia que publicou no “Sozialdemokrat” de Berlim pouco depois da morte de Proudhon, não é possível ter outra opinião.

Na “Miséria da Filosofia” ataca a Proudhon da pior maneira; valendo-se de todos os recursos para demonstrar que as idéias daquele carecem de valor e que não têm nenhuma importância nem como socialista nem como crítico da economia política.

“O senhor Proudhon — diz — tem a desgraça de ser compreendido de um modo estranho: na França tem o direito de ser um mau economista, porque ali é considerado um bom filósofo alemão. Na Alemanha pode ser considerado um mau filósofo embora seja considerado o melhor economista francês. Na minha qualidade de alemão e economista vejo-me obrigado a protestar contra este duplo erro”.

E Marx vai mais longe ainda: acusa a Proudhon sem oferecer nenhum prova, de ter plagiado suas idéias do economista inglês Bray. Escreve:

“Cremos ter achado no livro de Bray a chave de todos os trabalhos passados, presentes e futuros do senhor Proudhon”.

É interessante observar como Marx, que tantas vezes utilizava de idéias alheias e cujo Manifesto Comunista não é na realidade senão uma cópia do Manifesto da Democracia de Victor Considérant, denuncia os outros como plagiários.

Mas prossigamos. No Manifesto Comunista, Marx apresenta Proudhon como representante burguês e conservador. E na necrologia que escreveu no “Sozialdemokrat” (1865) lemos as seguintes palavras:

“Numa história rigorosamente científica da economia política, esse livro (refere-se a ‘Que é a propriedade?’) apenas mereceria ser mencionado. Porque semelhantes obras sensacionais desempenham nas ciências exatamente o mesmo papel que na literatura novelesca”.

E nesse mesmo artigo necrológico, reitera Marx sua afirmação de que Proudhon carece de todo valor como socialista e como economista, opinião já emitida na “Miséria da Filosofia”.

Fácil é compreender que semelhantes asserções, que Marx lançava contra Proudhon, tinham de divulgar a crença, melhor a convicção, de que entre ele e o grande escritor francês não existiu nunca o menor parentesco. Na Alemanha, Proudhon é quase totalmente desconhecido. As edições alemãs de suas obras, feitas mais ou menos em 1840, estão esgotadas. O único livro seu que voltou a ser publicado em alemão é “Que é a propriedade?” e ainda esta edição foi difundida apenas num círculo restrito. Esta circunstância explica o fato de que Marx tenha conseguido desfazer os traços de sua primeira evolução como socialista. Que seu conceito de Proudhon era bem distinto, a princípio, já tivemos oportunidade de ver mais acima e as conclusões que seguem corroborarão nossa assertiva.

Sendo redator-chefe da “Rheinische Zeitung”, um dos periódicos principais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer os escritores socialistas mais importantes da França, embora ele ainda não fosse socialista. Já mencionamos numa citação sua que alude a Victor Considérant, Pierre Leroux e Proudhon e não cabe dúvida que Considérant e especialmente Proudhon foram os mestres que o atraíram ao socialismo. “Que é a propriedade?” exerceu sem dúvida alguma, a maior influência no desenvolvimento socialista de Marx; assim, no periódico mencionado, chama o genial Proudhon “o mais conseqüente e sagaz dos escritores socialistas”. Em 1843 a “Rheinische Zeitung” foi suprimida pela censura prussiana; Marx partiu para o estrangeiro e durante esse período evolui para o socialismo. Tal evolução nota-se muito bem em suas cartas ao conhecido escritor Arnold Ruge e melhor ainda em sua obra “A Sagrada Família” ou “crítica da crítica crítica”, que publicou conjuntamente com Frederico Engels. O livro apareceu em 1846 e tinha por objeto polemizar contra a nova tendência do pensador alemão Bruno Bauer. Além das questões filosóficas, essa obra se ocupa também de economia política e de socialismo e são precisamente essas partes as que nos interessam aqui.

De todos os trabalhos que publicaram Marx e Engels é a “A Sagrada Família” o único que não foi traduzido para outros idiomas e do qual os socialistas alemães não fizeram outra edição. É verdade que Franz Mehring, herdeiro literário de Marx e Engels, publicou, por encargo do Partido socialista alemão, a “Sagrada Família” junto com outros escritos correspondentes ao primeiro período de atuação socialista dos autores, mas isto se fez sessenta anos depois de ter saído a primeira edição, e por outra parte, a reedição estava destinada aos especialistas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Fora disso, Proudhon é tão escassamente conhecido na Alemanha que muito poucos terão sido os que se tenham dado conta da profunda discrepância que há entre os primeiros conceitos que Marx emitiu sobre ele e os que sustentou mais tarde.

E contudo este livro demonstra claramente o processo evolutivo do socialismo de Marx e o influxo poderoso que nele exerceu Proudhon. Tudo o que os marxistas atribuíram depois a seu mestre, Marx o reconhecia, na “A Sagrada Família”, como mérito de Proudhon.

Vejamos o que diz a este respeito na pág. 36:

“Todo desenvolvimento da economia nacional considera a propriedade privada como hipótese inevitável, esta hipótese constitui para ela um fator incontestável que nem sequer trata de investigar e ao qual só se refere acidentalmente, segundo a ingênua expressão de Say. Proudhon propôs-se analisar, de um modo crítico, à base da economia nacional, a propriedade privada, e foi a sua primeira investigação enérgica, considerável e científica ao mesmo tempo. Nisto consiste o notável progresso científico que realizou, progresso que revolucionou a economia nacional, criando a possibilidade de fazer dela uma verdadeira ciência, ‘Que é a propriedade?’ de Proudhon tem para a economia a mesma importância que a obra de Say ‘Que é o terceiro estado?’ teve para a política moderna”.

É interessante comparar estas palavras de Marx com as que escreveu depois acerca do grande teórico anarquista. Na “A Sagrada Família” diz que “Que é a propriedade?” foi a primeira análise científica da propriedade privada e que deu a possibilidade de fazer da economia nacional uma verdadeira ciência; mas em sua conhecida necrológio, publicada no “Sozialdemokrat”, o mesmo Marx assegura que numa história rigorosamente científica da economia essa obra apenas merece ser mencionada.

Onde está a causa de semelhante contradição? Tal pergunta os representantes do chamado socialismo científico não esclareceram ainda. Na realidade, há apenas uma resposta: Marx queria ocultar a fonte de onde havia bebido. Todos os que tenham estudado a questão e não se sintam arrastados pelo fanatismo partidarista terão de reconhecer que esta explicação não é caprichosa.

Sigamos ouvindo o que manifesta Marx sobre a importância histórica de Proudhon. Na pág. 52 do mesmo livro, lemos:

“Proudhon não somente escreve em favor dos proletários, como ele mesmo é também um proletário, um operário; sua obra é um manifesto científico do proletariado francês”.

Aqui, como se vê, Marx expressa em termos precisos que Proudhon é um expoente do socialismo proletário e que sua obra constitui um manifesto científico do proletariado francês. Contudo, no Manifesto Comunista, assegura que Proudhon encarna o socialismo burguês e conservador. Cabe maior contradição? A quem havemos de acreditar, no Marx da “A Sagrada Família” ou no autor do Manifesto Comunista? E a que se deve essa divergência? É uma pergunta que fazemos novamente e, como é natural, a resposta é também a mesma: Marx queria ocultar ao mundo tudo o que devia a Proudhon e para ele qualquer meio era viável. Não pode haver outra explicação para este fenômeno; os meios que Marx empregou mais tarde em sua luta contra Bakunine evidenciam que não era muito delicado na eleição desses meios.

III

Quanto Marx foi influído pelas idéias de Proudhon e até por suas idéias anarquistas, demonstram-no seus escritos daquele período, por exemplo o artigo que publicou no “Vorwaerts” de Paris.

O “Vorwaerts” era um periódico que aparecia na Capital francesa durante 1844-1845, sob a direção de Enrich Bernstein. Sua tendência era, a princípio, liberal somente. Mais tarde, porém, depois da desaparição dos “Anais Germano-Franceses”, Bernstein travou relações com os antigos colaboradores desta última publicação, os quais o conquistaram para a causa socialista. Desde então o “Vorwaerts” converteu-se em órgão, oficial do socialismo e numerosos colaboradores da extinta publicação de A. Ruge, entre eles Bakunine, Marx, Engels, Enrique Heine, Georg Herweg, etc., contribuíram com seus trabalhos.

No número 63 desse periódico (7 de agosto de 1844), Marx publicou um trabalho de polêmica “Anotações críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma agrária’”. Nele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidade absoluta de um organismo para minorar a miséria social e para suprimir o pauperismo. As idéias que o autor desenvolve nesse artigo são idéias puramente anarquistas e estão em perfeita concordância com os conceitos que Proudhon, Bakunine e outros teóricos do anarquismo estabeleceram a esse respeito. Pelo seguinte extrato do estudo de Marx poderiam julgar os leitores:

“O Estado é incapaz de suprimir a miséria social e anular o pauperismo. E ainda quando se preocupa com este problema, se é que se decide a fazer algo, não dispõe de outros recursos que a beneficência pública e as medidas de caráter administrativo e freqüentemente nem sequer isso.

Nenhum Estado pode proceder de outra forma; porque para suprimir a miséria deveria suprimir-se a si mesmo, pois a causa do mal reside, na essência, na natureza do Estado, e não numa forma determinada dele como supõe muita gente radical e revolucionária que aspira a modificar essa forma por outra melhor.

É um gravíssimo erro acreditar que a miséria e os terríveis males do pauperismo podem ser curados mediante uma forma qualquer de Estado. Se o Estado reconhece a existência de certos males sociais, trata de explicá-los, quer como leis naturais contra as quais nada pôde fazer o homem, ou então como resultados da vida privada, na qual não pode imiscuir-se, ou, também, como defeitos da administração pública. Por isso, na Inglaterra, a miséria é considerada como conseqüência de uma lei natural, segundo a qual os homens aumentam em proporção maior que os meios de vida. Outros afirmam que a má vontade dos pobres é a causa de sua pobreza; o rei da Prússia, Frederico Guilherme I, vê a causa disso nos corações pouco cristãos dos ricos; e a Convençãp, o parlamento revolucionário francês, sustenta que os males sociais são a conseqüência do pânico contra-revolucionário que demonstram os proprietários. Por conseguinte, na Inglaterra, castigam-se os pobres, o rei da Prússia recorda aos ricos seus deveres cristãos e a Convenção francesa corta as cabeças dos proprietários.

Além disso, todos os Estados buscam a causa da miséria nos defeitos fortuitos ou intencionais da Administração e, portanto, acreditam possível reduzir o mal mediante reformas administrativas. Mas o Estado não possui o poder de salvar a contradição existente entre a boa vontade da administração e sua capacidade real; porque se assim fosse, teria que anular a si mesmo já que ele se baseia na contradição reinante entre a vida pública e privada, entre os interesses gerais e os particulares. Por isso a Administração se acha limitada por uma função exclusivamente formal e negativa, pois onde principia a vida civil termina o poder da Administração. O Estado não pode impedir jamais as conseqüências que se desenvolvem logicamente devido ao caráter anti-social da vida civil, da propriedade privada, do comércio, da indústria e do despojo mútuo dos distintos grupos sociais. A vileza e a escravidão da sociedade burguesa constituem o fundamento natural do Estado moderno. A existência do Estado e a da escravidão não podem ser separadas. Do mesmo modo que o antigo Estado e a escravidão antiga — contradições clássicas e francas — estão intimamente vinculados entre si, assim também o Estado moderno e o atual mundo de mercadores — contradição cristã e hipócrita — estão fortemente aferrados um ao outro”.

Esta interpretação essencialmente anarquista da natureza do Estado, que parece tão estranha se se recordam as doutrinas posteriores de Marx, é uma prova evidente da origem anárquica de sua primeira evolução socialista. No mencionado artigo se refletem os conceitos da crítica do Estado feita por Proudhon, crítica que teve sua primeira expressão no famoso livro “Que é a Propriedade?”. Esta obra imortal exerceu a influência mais decisiva na evolução do comunista alemão, apesar de que ele se tenha esforçado por todos os meios — e não foram estes os mais nobres — em negar as primeiras fases de sua atuação como socialista. Naturalmente, os marxistas apoiarão nisto o seu mestre e desta maneira desenvolve-se a pouco e pouco o falso conceito histórico acerca do caráter das primeiras relações entre Marx e Proudhon.

Na Alemanha principalmente, sendo este quase desconhecido, puderam circular as mais estranhas afirmações neste sentido. Mas quanto mais se conhecem as importantes obras da velha literatura socialista, tanto mais se nota tudo quanto o chamado socialismo científico deve àqueles “utópicos” que durante tanto tempo foram esquecidos devido à propaganda gigantesca da escola marxista e de outros fatores que relegaram ao esquecimento a literatura socialista do primeiro período. E um dos mestres mais importantes de Marx e que assentou as bases de toda a evolução posterior foi precisamente Proudhon, o anarquista tão caluniado e mal compreendido pelos socialistas legalitários.


 

 

Social-democracia e anarquismo

 

A oposição entre a social-democracia e o anarquismo não reside tão-somente na diversidade de seus métodos táticos, mas primacialmente na diferença de princípios. Trata-se de duas concepções distintas acerca da posição do indivíduo na sociedade, de duas interpretações diferentes do socialismo. Desta diferença nas premissas teóricas, resulta por si só, a diferença na escolha dos métodos táticos.

A social-democracia, principalmente nos países germânicos e na Rússia, intitula-se, com preferência, de “socialismo científico” e aceita a doutrina marxista que serve de base teórica ao seu programa. Seus representantes afirmam que o devir da sociedade deve ser considerado como uma série indefinida de necessidades históricas cujas causas é preciso ir buscá-las nas condições de produção de cada momento. Estas necessidades acham sua expressão prática na luta contínua de classes divididas em campos inimigos por interesses econômicos distintos. As condições econômicas, isto é, a forma em que os homens produzem e trocam seus produtos, constituem a base férrea de todas as outras manifestações sociais ou, para empregar a frase de Marx, “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e a que responde uma determinada forma da consciência social”. As representações religiosas, as idéias, os princípios morais, as normas jurídicas, as manifestações volitivas, etc., são meros resultados das condições de produção de cada momento, porque é “a forma de produção da vida material, que determina em absoluto o processo de vida social, política e psíquica”. Não é a consciência dos homens que plasma as condições em que vivem, mas ao contrário, são as condições econômicas que determinam sua consciência.

Assim considerando, o socialismo não é a invenção de algumas cabeças engenhosas, mas um produto lógico e inevitável do desenvolvimento capitalista. O capitalismo deve criar primeiro as condições de produção — divisão do trabalho e centralização industrial — nas quais unicamente o socialismo pode realizar-se.

Sua realização não depende da vontade humana, mas apenas de um determinado grau de evolução das condições de produção.

O capitalismo é a premissa necessária e ineludível que deve conduzir ao socialismo; seu significado revolucionário reside precisamente em levar em si, desde o princípio, o germe de sua própria destruição. A burguesia moderna, na qual o capitalismo se sustenta, teve de dar vida, para fundar seu poder, ao proletariado moderno, criando assim seus próprios coveiros. Pois o desenvolvimento do capitalismo se efetua com o rigor de uma lei natural em linhas perfeitamente determinadas das quais não há fuga possível. Pois está na essência desse desenvolvimento o absorver as empresas industriais pequenas e médias, substituindo-as por empresas cada vez maiores de forma que as riquezas sociais se concentrem em número de mãos cada vez menor. Simultaneamente se realiza, de modo impossível de conter, a proletarização da sociedade, até que, por fim, chega o momento em que se encontram frente a frente uma imensa maioria de escravos assalariados e uma pequeníssima minoria de empresários capitalistas. E assim como chegará o tempo em que o capitalismo se tenha tornado um estorvo para a produção, chegará necessariamente a época da revolução social, o momento em que se possa levar a cabo a “expropriação dos expropriadores”.

Para que o proletariado esteja em condições de assumir a direção da terra e dos meios de produção deve apoderar-se primeiro do poder político, o qual, depois de certa época de transição, isto é, depois da supressão total das classes, se irá extinguindo paulatinamente. A conquista do poder político é assim a tarefa principal da classe operária e para preparar a realização desta obra é necessário que os trabalhadores se organizem em partido político independente para a luta política contra a burguesia.

Desta maneira a social-democracia converteu a ação parlamentar no ponto central de sua propaganda, subordinando-lhe toda outra forma de ação. Sob a influência da social-democracia alemã a maior parte dos partidos socialistas dos outros países adotaram em maior ou menor grau o mesmo caráter. No transcorrer dos últimos cinqüenta anos conseguiram organizar em suas fileiras milhões de trabalhadores, colocar-se em todos os corpos legislativos do Estado moderno de classes e penetrar em numerosos casos até o ramo executivo do governo.

Uma imprensa fortemente desenvolvida e uma propaganda impressa realizada em grande escala foram abrindo constantemente à social-democracia novos círculos no mundo operário e na classe média. Esta obra é apoiada ainda por todo um exército de agitadores a soldo e empregados do partido que atuam no interesse de suas respectivas organizações.

Pela exclusão dos anarquistas e de outras tendências que repudiam a ação parlamentar, a social-democracia alemã conseguiu ainda eliminar sistematicamente toda oposição real nos congressos socialistas internacionais.

Desse modo, onde quer que lhe obedecessem massas operárias consideráveis, este partido se desenvolveu como um Estado dentro do Estado e por muitos anos tem estado em condições de esmagar, com desconsideração sistemática e inescrupulosa, qualquer outra tendência socialista.

Somente a catástroíe terrível de 1914 revelou o verdadeiro caráter da social-democracia, destruiu seu prestígio internacional e abriu brecha num edifício que parecia ser para sempre invulnerável a qualquer ataque.

O anarquismo, quer dizer, aquela tendência na ideologia do socialismo que se enfrenta mais irreconciliavelmente com a social-democracia, parte de outras premissas nas suas idéias sobre as condições sociais e a posição do indivíduo na evolução histórica. Seus partidários, de maneira alguma, desconhecem a poderosa influência das condições econômicas no processo geral da evolução social, mas também repelem a fórmula unilateral e fatalista que Marx deu a esta comprovação. Antes de tudo são de opinião que na investigação e apreciação dos fenômenos sociais, pode-se proceder por métodos científicos, mas que de nenhum modo é lícito considerar a história e a sociologia como ciências. A ciência somente reconhece aqueles fatos certos que foram irrefutavelmente estabelecidos pela observação ou experimentação. Neste sentido somente podem considerar-se científicas as ciências chamadas “exatas”, como a física, a química, etc.

A famosa lei da gravitação de Isaac Newton, em que se apoiam todos nossos cálculos astronômicos, é uma lei natural, científica, porque se verifica em todos os casos e não admite jamais “a exceção da regra”.

O desenvolvimento das formas sociais na história não se efetua todavia com a forçosa necessidade das leis da física. Podemos, na verdade, fazer conjeturas sobre a conformação social das condições sociais do futuro e estabelecê-las cientificamente, como pode calcular-se o período de revolução de um planeta. E é complicada e muito desconhecidos são ainda seus pormenores elementares para que possamos falar de uma lei natural férrea que possa servir de base para apreciar, sequer com relativa certeza, as forças motrizes do devir histórico nos tempos passados ou talvez ainda para averiguar as formas sociais do futuro. Por esta razão o socialismo não é uma ciência, não pode ser uma ciência e quando se fala de um “socialismo científico” é vã presunção e frívolo desconhecimento dos verdadeiros princípios da ciência.

Quem aceita a concepção anarquista não compartilha da crença de que o desenvolvimento das condições econômicas deva conduzir indefectivelmente ao socialismo, que o sistema capitalista leve já em si, por assim dizer, o germe do socialismo e que somente seja preciso esperar sua maturidade para que rasgue a envoltura.

Não verá nesta crença outra coisa senão a tradução do fatalismo religioso no campo da economia, o que se torna igualmente perigoso, pois ambas as crenças paralisam o sentimento impulsivo e o instinto de ação e engendram em vez de uma visão viva em constante luta por ampliar suas perspectivas, a mesma e inflexível fé dogmática. O anarquista de maneira alguma vê na divisão do trabalho e na centralização industrial as condições elementares do sistema capitalista de exploração, agudamente opostas por sua própria essência ao socialismo. Bem pode conduzir-nos o desenvolvimento econômico a novas fases da existência social, mas também poderá significar o ocaso de toda civilização. A horrível catástrofe da guerra mundial fala neste sentido uma linguagem eloqüente para todo aquele que tenha ouvidos e queira ouvir. Se os povos da Europa não conseguem com seu esforço fazer surgir do caos presente formas novas e superiores da civilização social nenhum profeta será capaz de prever a que abismo nos arrastará a fatalidade.

Não, o socialismo não virá porque deva vir com a inalterabilidade de uma lei natural; somente virá se os homens se armarem de firme vontade e forças necessárias para pô-lo em prática.

Nem o tempo, nem as condições econômicas, somente nossa convicção interior, nossa vontade, poderá estender a ponte que conduza do mundo da escravidão assalariada à terra nova do socialismo.

Tampouco compartilha o anarquista da opinião de que a evolução das formas sociais capitalistas constituem o necessário antecedente psicológico que prepara a mentalidade do proletário. A Inglaterra, a pátria do capitalismo e da grande indústria, não provocou, apesar disto, um movimento socialista de consideração, enquanto outros países de economia quase exclusivamente agrária, como a Andalusia e a Itália meridional, contam há muitos anos com fortes organizações socialistas. O camponês russo, que trabalha ainda em condições primitivas de produção, está mais próximo da ideologia socialista porque está vinculado com seus vizinhos muito mais intimamente que nós. O comunismo agrário que o camponês russo praticou por séculos implica uma constante colaboração e solidariedade e desenvolveu assim um instinto social tal que dificilmente se encontrará igual no proletariado industrial da Europa ocidental e central.

Não obstante tudo isso os teóricos da social-democracia russa anunciaram em nome da ciência que as instituições comunais antiquadas da povoação rural russa estão destinadas a desaparecer por não estarem em concordância com o desenvolvimento moderno e constituir em conseqüência um obstáculo para o socialismo.

Para os partidários do anarquismo, as formas de Estado e a legislação não são exclusivamente a superestrutura política da estrutura econômica da sociedade; as idéias, os conceitos de justiça e outras formas da consciência humana não são meros produtos do processo produtivo de cada momento, mas fatores determinantes do espírito humano que, se influídos pelas condições econômicas, reagem, porém, por sua vez, sobre essas mesmas condições econômicas da sociedade. Desta forma se origina uma série infinita de efeitos recíprocos até ser freqüentemente impossível comprovar um fator básico. Podem ser consideradas como materiais todas estas manifestações e pode supor-se com Proudhon que todo ideal é uma flor cujas raízes se encontram nas condições materiais da vida. Mas neste caso, as condições econômicas seriam somente uma parte dessas chamadas condições materiais gerais: não constituiriam a base férrea, determinante do absoluto processo evolutivo de todas as outras manifestações vitais da sociedade mas que estariam submetidas à mesma e nunca interrompida interação de todos os demais fatores da vida material. Assim, por exemplo, o Estado seria, sem a menor dúvida, em primeiro lugar, um produto do monopólio privado da terra, instituição nascida com a cisão da sociedade em distintas classes com interesses também distintos. Mas haveria também que admitir que uma vez existente dedica todas as suas forças à perpetuação desse monopólio e à manutenção das diferenças entre as classes com o objetivo de conservar assim a escravidão econômica. Converteu-se deste modo o Estado, no curso de sua evolução, no mais formidável organismo de exploração da humanidade. Tais efeitos recíprocos podem ser comprovados à vontade em qualquer número e em todas as formas imagináveis; são, na verdade, característica na evolução histórica da humanidade e se tornam tão evidentes que nossos neo-marxistas se vêem obrigados a fazer contínuas e novas concessões ante a crítica inexorável que vai destruindo sua interpretação da história.

Se para a social-democracia a conquista do poder político é a tarefa principal, prévia para a realização do socialismo, para o anarquismo é de importância decisiva a supressão de todo poder político.

O Estado não se formou por um ato de vontade social, mas é uma instituição nascida numa determinada época da história humana como conseqüência do monopólio e da divisão da sociedade em classes.

O Estado não surgiu para a defesa dos direitos da coletividade, mas exclusivamente para a defesa dos interesses materiais de pequenas minorias privilegiadas a expensas da grande massa. O Estado não é outra coisa que o agente político das classes possuidoras, a força organizada que mantém em pé o sistema de exploração econômica e o governo de classe.

Suas formas são variadas no curso da história mas sua índole essencial, sua missão histórica, é sempre a mesma. Para a grande massa do povo, o Estado, em todo tempo e em qualquer de suas formas, somente constituiu um instrumento brutal de opressão; por isto é impossível que sirva alguma vez a essas mesmas massas como instrumento de libertação. A social-democracia que, em seus diferentes matizes, está ainda empapada das idéias do jacobinismo, crê que é impossível prescindir do Estado porque somente concebe a realização do socialismo de cima para baixo por meio de decretos e “ukases”. O anarquismo, que aspira à destruição do Estado, vê somente um caminho para a implantação do socialismo e esse caminho vai de baixo para cima, pela atividade criadora do próprio povo e com a ajuda de suas organizações econômicas. Surge aqui uma questão em que aparece claramente a diferença fundamental entre ambas as tendências: a relativa à posição do indivíduo na sociedade. Para os teóricos do socialismo, o indivíduo isolado é somente um elemento insubstancial na engrenagem geral da produção social, uma “força de trabalho”, instrumento inanimado da evolução econômica, que determina irrevocavelmente sua vida mental e suas manifestações volitivas.

Esta concepção é o resultado necessário de toda sua doutrina. Enquanto tratam do indivíduo, consideram-no sempre como um produto do meio social ao qual aplicam, com todo o rigor, os conceitos gerais.

Os social-democratas amoldaram-se a uma determinada visão da realidade vivente e são de certa maneira vítimas de uma ilusão ótica quando confundem a miragem de sua imaginação com a própria realidade.

Não vêem na evolução histórica senão as rodas mortas, o mecanismo exterior e esquecem assim muito facilmente que atrás das forças e condições de produção há seres vivos, homens de carne e osso, com desejos, inclinações e idéias próprias e por isso as diferenças pessoais — que constituem depois de tudo a verdadeira riqueza da vida — somente lhes parecem aditamento supérfluo e a própria vida, algo completamente descolorido e esquemático.

O anarquismo segue também aqui outros caminhos. O ponto de partida de suas especulações sociais é o indivíduo isolado: não o indivíduo como sombra abstrata desligada de seu meio social, mas como ente social vinculado aos demais homens por mil laços materiais e espirituais.

Para apreciar o bem-estar social, a liberdade e a civilização de um povo, o anarquista não se fundamenta na produção quantitativa ou na “liberdade” formal estabelecida em qualquer constituição nem no grau cultural de um determinado período. Trata-se de determinar, pelo contrário, a participação individual que no bem-estar toca a cada ser, em que medida este se encontra em condições de satisfazer dentro do marco da coletividade suas inclinações, desejos e necessidades de liberdade.

Segundo estes dados formulará seu juízo sobre o caráter geral da sociedade. Para o anarquista, a liberdade pessoal não é uma representação indefinida e abstrata mas concebe-a pelo contrário como a possibilidade prática de que cada qual pode desenvolver suas forças, talentos e aptidões naturais. E como reconhece na consciência da personalidade a expressão suprema do instinto de liberdade repele fundamentalmente todo princípio de autoridade, toda ideologia da força bruta. A completa liberdade baseada na igualdade econômica e social é para ele a premissa única de um futuro digno do homem. Somente nestas condições pode dar-se, segundo sua opinião, a possibilidade de que se desdobre até sua máxima florescência em cada homem o sentimento de responsabilidade pessoal e de que se desenvolva nele a consciência viva da solidariedade em um grau tal que seus desejos e necessidades apareçam, por assim dizer, como resultado de seus sentimentos sociais. Para o caráter dos movimentos sociais, sua forma libertária de organização é de importância decisiva, pois é a que melhor responde à sua natureza íntima; assim é apenas natural que também neste sentido haja um abismo intransponível entre a social-democracia e o anarquismo.

Os partidários da social-democracia, que já se intitulam maioritários, independentes ou “comunistas”, são, por íntima convicção, jacobinos, representantes do princípio da centralização. Assim como a democracia é por sua própria índole centralista, de igual maneira o federalismo responde melhor à natureza íntima do anarquismo.

O federalismo foi sempre a forma natural de organização de todas as correntes realmente sociais e das instituições baseadas nos interesses coletivos, como foram, por exemplo, as federações livres das tribos nos tempos primitivos, as federações das cooperativas das feiras nos começos da Idade Média, as guildas ou corporações de artesãos e artistas nas cidades livres e as uniões federativas das comunas livres, às quais deve a Europa uma cultura tão maravilhosa. Estas eram formas de organização verdadeiramente sociais, na acepção ampla da palavra; nelas harmonizavam a livre atividade individual e os interesses gerais da coletividade; eram agrupações humanas engendradas espontaneamente pelas necessidades da vida. Cada grupo era senhor de seus próprios assuntos e estava federado ao mesmo tempo a outras corporações para a defesa e a prosperidade de seus interesses comuns. O interesse coletivo constituía o eixo de suas aspirações e a organização de baixo para cima era a expressão mais acabada destas aspirações.

Somente com a formação do Estado moderno começa a era do centralismo.

A Igreja e o Estado foram seus primeiros e mais conspícuos representantes. Os determinantes da nova forma de organização não foram mais os interesses da coletividade, mas os interesses das minorias privilegiadas que fundavam seu poder na exploração e na escravidão da grande massa.

O federalismo, a organização natural de baixo para cima, foi substituído pelo centralismo, a organização artificial de cima para baixo.

A liberdade teve de ceder ante o despotismo, o velho direito consuetudinário se transformou na lei, a variedade na uniformidade e o esquema, a educação e a formação da personalidade no amestramento intelectual, a responsabilidade pessoal na obediência cega, o cidadão livre no súdito.

É significativo para o caráter despótico da social-democracia, o fato de que haja copiado sua forma de organização dos modelos proporcionados pelo Estado. A disciplina foi sempre e continua sendo a divisa mais característica de seus métodos educativos e com os mesmos meios com que o Estado forma súditos leais e bons soldados, a social-democracia forma companheiros de disciplina provada.

Uniu milhões de partidários sob sua bandeira, mas afogou também a iniciativa fecunda e a capacidade de ação autônoma nas massas.

Engendrou enfim um árido governo de empregados, uma nova hierarquia, uma espécie de providência política ante a qual a livre iniciativa e a independência de pensamento devem amainar as velas.

Somente assim se explica que a social-democracia haja podido extraviar completamente sua ação no ambiente estreito do parlamentarismo burguês, que a vulgar e mesquinha política do dia tenha podido chegar a constituir o ambiente espiritual de toda sua propaganda. Organizou ela seus eleitores como o Estado seus exércitos e erigiu, como este, em princípio supremo, a impotência espiritual. No caminho do poder político enterrou tudo o que originariarnente havia nela de socialista, de tal forma que somente restou um encoberto capitalismo de Estado que se introduz no mercado político sob um rótulo falso.

A burguesia não encontrou ainda seu “próprio coveiro”, mas não se deve à social-democracia o fato de que aquela não tenha podido chegar a ser até agora o coveiro do socialismo.

O anarquismo é o inimigo indômito do Estado: repele em princípio toda colaboração nos corpos legislativos, toda forma de ação parlamentar. Seus partidários sabem que nem a mais livre lei eleitoral será capaz de atenuar os abissais contrastes na sociedade moderna e que o sistema parlamentar não tem outro objetivo senão o de emprestar aparências de legalidade ao sistema da mentira e das injustiças sociais e induzir o escravo a selar ele mesmo, com o selo da lei, sua própria escravidão. O método tático do anarquismo é a ação direta contra os defensores do monopólio e do Estado; trata de iluminar a consciência das massas pela palavra falada e escrita. Participa em todas as lutas diretas, econômicas e políticas, dos oprimidos contra o sistema da escravidão assalariada e a tirania do Estado e trata de comunicar a estas lutas, por sua colaboração, um mais profundo significado social, trata enfim de fomentar as próprias iniciativas das massas e de fortalecer nelas o sentido de responsabilidade. Os anarquistas são os genuínos sustentadores da revolução social, os que levam adiante por todos os meios a guerra contra o poder e contra a exploração do homem pelo homem, os que têm como bandeira de combate a libertação social, econômica e política da humanidade.

Constituem as hostes do socialismo libertário, os arautos da civilização social do futuro.


 

 

Don Quixote

(Em comemoração de seu terceiro centenário)

 

DON QUIXOTE, nobre cavaleiro da Mancha, amigo e protetor dos sofredores, amante da imortal Dulcinéia del Toboso e dono do fiel Rocinante: cobre teu rosto com ambas as mãos para que não se note sua vergonha ante a ofensa que acabam de infligir-te; porque nunca te ofenderam tanto como hoje, trezentos anos depois daquele dia inesquecível em que abandonaste pela primeira vez tua casa e teus amigos para percorrer o mundo em defesa da justiça e para fazer ressuscitar a fama eterna da cavalaria andante.

Muito padeceste em tua vida, grande cavaleiro da Triste Figura! Combateste uma batalha desesperada contra gigantes, mas afinal os gigantes eram apenas moinhos de vento e tiveste de pagar teu erro com a cabeça quebrada e alguns ossos partidos. Rústicos aldeães quebraram teus dentes cavalheirescos, pastores de ovelhas vulgares pisaram-te com seus pés, gente ingrata, incapaz de compreender a grandeza cavalheiresca, te encerrou numa jaula de madeira e te convenceu de que estavas encantado; até corrias o perigo de que em tua estranha clausura se sentisse o mau cheiro, e se não fosse o bom Sancho, a poesia de tua empresa heróica teria terminado num fato demasiado prosaico... Mas suportaste com paciência augusta, porque teu escudo estava branco e nenhuma mancha sugava tua honra de cavaleiro. Todo o mundo se ria então de tuas façanhas imortais, mas que importava o seu riso? Tu vivias em teu mundo próprio, mundo distinto do dos outros; cada acontecimento se apresentava ante ti em cores e imagens particulares e quem se atreveria a sustentar que tuas visões eram piores que as dos outros? Tu vias gigantes, enquanto Sancho só percebia moinhos de vento, e considerando-se que a verdade absoluta não existe, já que aquilo que denominamos verdade está sempre determinado por nossas condições subjetivas, por nossa convicção interior, tua opinião não foi pior que a do bom Sancho... Se tivesses contemplado o mundo com os mesmos olhos que os outros homens, jamais terias sido Don Quixote; no entanto, devido precisamente a teres interpretado os fenômenos do mundo segundo tua própria maneira, teu nome se tornou imortal e tua imagem aparece em nossos corações tão fresca e vivida como há três séculos. Portanto, nada pôde agravar-te por ter visto e sentido de um modo distinto do de teus contemporâneos. Eles zombaram de ti, mas tu nem sequer os ouvistes: seu riso não teve eco em teu mundo.

Mas hoje, ah! hoje o quadro variou completamente. Hoje te admiram, valente cavaleiro da Triste Figura. Agora celebram teu terceiro centenário com sábios discursos e festas ruidosas. Os mercadores, Don Quixote, os traficantes, os filhos pervertidos de teu fiel criado Sancho, te admiram. Outrora eras grande porque os mercadores, os homenzinhos prudentes e práticos zombaram de ti, mas hoje, hoje celebram tua memória ocultando o quadro de tua grandeza luminosa com seus ventres avultados e suas almas grosseiras... Nem sequer te consultaram se estás de acordo com seus festejos, se agradam suas homenagens... Eles são os donos da vida, grande cavaleiro, eles, os traficantes, compraram a propósito várias fangas de aveia para o magro Rocinante, a fim de que não seja tão magro em meio de uma companhia tão gorda.

Ó, compreendo tua dor, cavaleiro imortal! Sei por que ocultas teu rosto com ambas as mãos: para que o mundo não veja a ofensa grave que te causaram. Acredita-me, nobre cavaleiro, que conheço teus pensamentos ocultos e participo completamente da dor de tua alma ofendida. Que o mundo se tenha rido de ti, que importava? Mas, que os mercadores festejem tua memória, que os ricos comerciantes de Madrid estabeleçam um prêmio de vinte mil pesetas para o que pinte o melhor retrato de ti, isto sim é doloroso, mais amargo que o fel... Eu não sei que classe de quadro vão fazer de ti, mas temo muito que representem o bom Rocinante como cavalo de cervejeiro e que a ti mesmo te ponham uma pança... Sim, grande cavaleiro, temo que o façam, porque nos tempos que correm já não se respeitam os ideais “magros”; no mundo dós mercadores até o idealismo engordou: não lhes nasceram asas, mas em compensação adquiriram um ventre respeitável... Que necessidade têm de asas? O caminho para as estrelas foi esquecido; hoje o idealismo permanece tranqüilamente no solo e recolhe vermezinhos...

Ó, nobre cavaleiro da Mancha! Tu travaste uma batalha contra gigantes e serpentes de fogo; os gigantes morreram a pouco e pouco, o fogo extinguiu e só ficaram as serpes, serpes — mercadoras, frias, escorregadiças que não podem contemplar o céu azul e o sol luminoso porque se arrastam através da vida como ladrões. Se te levantasses agora de teu túmulo e não voltasses a percorrer o mundo para realizar façanhas heróicas certamente deverias lutar com os mercadores, mais perigosos que os antigos gigantes...

Recordo ainda como se fosse a primeira vez que te conheci. Eu tinha então uns doze ou treze anos. Era uma noite de Natal; nós, as crianças, estávamos na cozinha aguardando com impaciência que a mãe bondosa abrisse a porta; estávamos impacientes, pois quem poderia adivinhar as surpresas que mamãe havia preparado para nós? E por fim abriu-se a porta do paraíso e todos corremos ao aposento com tanto ímpeto como se houvesse tratado de salvar a vida. As velas da árvore de Natal brilhavam com todas as cores e ao derredor delas estavam distribuídas as coisas boas que mamãe havia comprado para nós e ocultado com tanto zelo durante toda a semana. Aí estava o meu lugar: uma pequena espingarda, um quepe, um teatro infantil, maçãs, nozes e diversos doces, e no meio de toda essa riqueza havia um livro. A princípio não o havia visto, pois meus olhos estavam absorvidos por outros objetos; mais tarde, porém, ao descobri-lo, tomei-o rapidamente na mão e o contemplei com olhares curiosos. Trazia na capa um quadro: duas figuras extravagantes. Um homem alto e delgado que levava uma velha armadura demasiado pequena para ele e montava um velho cavalo tão magro como o dono; ao lado do primeiro ginete ia, montado em um asno cinzento, um homem pequeno e gordo. O título do livro era: História do engenhoso fidalgo Don Quixote de la Mancha. Aquela noite contemplei apenas as figuras do livro — era uma edição ilustrada para crianças — mas não li nem uma palavra. Na manhã seguinte me entreguei ao meu tesouro literário. Fazia um frio espantoso em casa; não havia lume porque minha mãe dormia ainda. Cuidadosamente desci da cama, peguei o livro e tornei a meter-me nela entre os frios lençóis. E comecei a ler. A princípio a história não me produziu grande impressão; logo depois, porém, quando cheguei às façanhas heróicas do nobre fidalgo, eu não contive o riso. “Que louco! — pensei — Até um cego poderia ver que se trata de moinhos de vento e não de gigantes. Estranhava-me que não se importasse com as palavras razoáveis do prudente Sancho!” E eu experimentava um verdadeiro prazer quando lhe quebravam as costelas. Mas logo nasceu em meu coração outro sentimento: a compaixão. Eu imaginava a figura de mártir do valente cavaleiro e seus lábios ensangüentados e me indignei porque o tratavam tão mal. “É um louco; não sabe o que faz! Por que maltratá-lo tanto?”

Voltei a ler o livro com freqüência, até que o perdi um dia no bosque. Sentia-o muito, mas as crianças esquecem facilmente e eu também esqueci a pouco e pouco a Don Quixote, a Sancho Pança, a Rocinante, à formosa Dulcinéia del Toboso. Passaram-se os anos. O idealismo tormentoso da juventude me abraçou também a mim com toda a veemência de sua força. Nesse formoso período voltei a ler pela segunda vez Don Quixote. Havia caido por causalidade em minhas mãos e desde então já não me separei dele.

Eu não poderia afirmar que me tenha sentido entusiasmado por ele nos primeiros tempos. Ainda via nele um cego fantaseador, vítima inconsciente de uma idéia fixa; contudo lia-o com sumo agrado, porque a esplêndida arte narrativa de Cervantes me produzia uma fote impressão. Então compreendi também contra quem havia dirigido sua obra imortal, o grande espanhol; algumas coisas somente me eram incompreensíveis: eu não percebia ainda o Rocinante, que eu mesmo montava e ainda não me dava conta de que eu estava também enamorado da imorredoura Dulcinéia del Toboso. Agora sei muito bem que cada um de nós cavalga em seu próprio Rocinante e está enamorado de alguma Dulcinéia e, para dizer a verdade, alegro-me de que seja assim... Mas então ignorava tudo isso. Don Quixote era um dos meus favoritos, mas na realidade só era um hóspede para mim.

E novamente transcorreram meses e anos. Eu abracei a vida e a beijei com todo o idealismo, com toda a força da juventude. Em minha mente se refletiam quadros sublimes, quadros de felicidade e de amor, de um futuro grandioso e belo. E neste período me visitava amiúde um hóspede estranho, desconhecido; chegava ao anoitecer, quando a obscuridade se estendia lá fora, e levava sempre a mesma capa negra sobre os ombros secos. Sua visita nunca era prolongada. Vinha, contemplava-me com olhos frios e cruéis, em seus lábios finos e pálidos aparecia um sorriso de desprezo e não pronunciava uma única palavra. Cada vez que me visitava eu sentia uma punhalada no coração: não o queria, mas tampouco o odiava. Eu esperava sempre que me falasse; às vezes até movia os lábios como se me quisesse dizer alguma coisa, mas eu nada compreendia. Logo deixou de vir por algum tempo. Mas uma noite voltou de novo e esta vez sim, falou-me. “Louco, para que?” — isso foi tudo o que disse, e logo partiu. “Louco, para que?” Estas palavras ardiam em minha alma como um fogo infernal, ressoavam constantemente em meus ouvidos, causando-me muitos momentos amargos e dolorosos. Qual, é o sentido dessas palavras? — perguntava-me. E de repente me apareceu a cara conhecida, com os olhos frios e impiedosos, os lábios finos e pálidos e o eterno sorriso de desprezo... E perdia o valor de achar uma resposta à minha pergunta.

Em certa ocasião, era no inverno, voltei para casa altas horas da noite. Havia ido ver Hamlet e a obra formidável do genial inglês impressionou os sentimentos mais recônditos de minha alma. Eu sentia tanta amargura em meu coração, estava eu tão triste e melancólico, que quase ia a romper em choro. Sentado ante minha mesa, volvi a ouvir as palavras terríveis que tanto me haviam torturado e que me eram tão odiosas: “Louco, para que?” Desesperado, tomei do livro: era o primeiro tomo de Quixote. Nobre cavaleiro da Mancha, podes imaginar quão agradecido te fico? A não ser por ti, certamente não teria sobrevivido àquela noite tremenda, inesquecível. Passei a noite lendo e meu coração se sentiu aliviado e contente; meus olhos derramaram lágrimas, não por causa da dor, mas devido a uma alegria interior que me fazia chorar. Por fim deixei o livro de um lado e me pus a passear pela pequena casa. Nessa noite, que começou tão tristemente, senti-me inteiramente ditoso.

De repente olhei por acaso o espelho que estava em cima da chaminé. Que é isso, um sonho ou um quadro real? Ali, no espelho, divisei o fidalgo da Mancha. Montava seu Rocinante e me fazia amavelmente um sinal com a cabeça. Mas seu rosto me era muito conhecido! Movi o braço para a esquerda e o cavaleiro do espelho fez o mesmo. Meneei a cabeça; Don Quixote fez idêntico movimento. E logo compreendi quem era e conheci também Rocinante. Mas não vou revelar-vos o segredo... “Louco, para que?” ressoou novamente em meus, ouvidos; mas esta vez já não tive medo da pergunta, porque já sabia que responder. “Louco, para que?”, perguntas, hóspede silencioso e desconhecido dos grandes olhos enigmáticos, “para que?”. Pois agora vou dizer-te: para montar um Rocinante e estar enamorado de uma Dulcinéia del Toboso...

Então eu não sabia nada de Nietzsche, mas já compreendia a magnífica lição de Zaratustra: Ditoso é o homem que pode zombar de si mesmo! Desde aquele momento o nobre cavaleiro da Mancha já não era para mim um hóspede, mas um bom amigo. Via-o em todos os períodos da história humana e concebi que Don Quixote e Hamlet são os dois pólos ao redor dos quais gira a nossa existência.

Sim, valente fidalgo, tu eras grande, não por teus fatos, mas pela força de tua vontade poderosa. Não esperastes que algum dia criara um mundo para mim, tu mesmo criastes um mundo, teu próprio mundo; podem os outros rir dele, tu contudo és um criador, enquanto eles são somente seres de outro mundo, que receberam em herança, pois eles jamais seriam capazes de criá-lo. Tu és imortal porque o és todo para ti; não querias ser o escravo mas o senhor da vida e por isso tiveste sempre o valor de proceder, ainda quando a razão prática de teus coetâneos não via nenhum motivo para a ação. Ó, cavaleiro da Triste Figura, oxalá tivéssemos nós um pouco desse valor para agir, desse valor que não teme as conseqüências! Que bem nos faria nesta época em que o espírito de Hamlet domina as almas e os corações dos poucos homens que não tomam parte no baile dos mercadores em torno do bezerro de ouro! Todos nós temos visto, como Hamlet, o fantasma de nosso pai assassinado e conhecemos o assassino, mas renunciamos à ação, à ação salvadora e libertadora, nobre cavaleiro. Vivemos num mundo de ciência positiva e nossos corações estão vazios e as almas murchas.

Antigamente os homens tremiam ante a morte e por isso suportavam com mais resignação o jugo da servidão e da escravidão, desde que pudessem salvar a vida. Os Hamlet de nossa época não temem a morte, sua covardia adquiriu um caráter diverso: tremem ante o ridículo, porque se esqueceram de rir de si mesmos. Eles vêem a sombra ensangüentada do assassinado e bem quiseram tirar vingança do homicida, mas há uma coisa que os detém: não o medo da morte, mas a idéia de que talvez os gigantes se convertam em moinhos de vento, que a tragédia talvez termine em comédia; e em tal caso Hamlet perderia sua fama de pensador profundo,é a gente diria: “Vede que néscio é, nem sequer sabe distinguir entre um gigante e um moinho de vento”; e para Hamlet a burla das pessoas é pior que a morte...

Uma partícula de teu espírito, nobre cavaleiro, uma partícula apenas... Isto é o que poderia salvar-nos. A ação foi relegada ao esquecimento pelo conhecimento: aprendemos, graças a Deus, a diferenciar os gigantes dos moinhos de vento, mas se tu não ressuscitas nós apodrecemos no conhecimento: saberemos tudo mas não saberemos nada... Nossos cérebros se tornarão cada vez mais perfeitos; contudo a força dos músculos se irá extinguindo, nossos braços se tornarão impotentes...

E não obstante, devemos dirigir-nos hoje tão-somente aos Hamlet; talvez nos entendam e com o tempo, quem sabe, ambos os pólos talvez se encontrem no equador da vida e Don Quixote e Hamlet se tornem amigos: o primeiro aprenderá a ser o fantasma do pai morto, a reconhecer o assassino verdadeiro, e Hamlet irá montado num Rocinante e escreverá poesias dedicadas à imortal Dulcinéia del Tòboso... Quem pode saber o que nos oferecerá o futuro? E a quem, se não aos Hamlet, iremos dirigir nossa palavra? Hamlet nasceu sob o céu cinzento e nas névoas espessas da Inglaterra e quando tiver ocasião de conhecer a pátria de Don Quixote, o formoso céu azul da Mancha, quem sabe como nele influirá o clima?

A quem nos haveremos de nos dirigir, nobre cavaleiro? Aos mercadores que celebram agora tuas façanhas imortais? A eles, don Quixote? A eles havemos de falar? Ó, nobre cavaleiro da Mancha, vejo quão vermelho fica o teu rosto ao recordar com quanta crueldade te ofenderam! Tu não podes compreender como degenerou a tua raça. É verdade que Sancho era um grande comilão, sua inteligência não abarcava mais que as necessidades de seu estômago e de noite, quando tu, valente fidalgo, sonhavas com grandes façanhas e com a formosa Dulcinéia, ele permanecia estendido, roncando ruidosamente. Apesar disso, era um homem bom e alegre e quando não havia nada melhor ficava satisfeito com um pedaço de pão e um par de cebolas. Mas tudo isso ocorria enquanto tu vivias. Tu eras seu amo e ele com seu jumento tinha de arrastar-se atrás de ti e de Rocinante, porque sabia muito bem que só tu e não outro lhe proporcionarias a ilha prometida. E foi uma desgraça que não tenha morrido antes de ti, porque depois de teu falecimento considerou-se senhor e viveu de tua honra. Seus filhos esqueceram logo que seu pai havia sido um simples escudeiro e lhes pareceu que o velho Sancho foi o herói verdadeiro de tua história. Certamente o pai lhes falou antes de morrer da formosa Dulcinéia e eles se empenharam em encontrá-la: como gente prática, que nunca voa no ar com seus pensamentos, deram logo com ela. Mas adivinhai o que fizeram. Tenho medo de dizê-lo, mas também não posso ocultar, porque o assunto gravita sobre minha razão como uma pedra.

Violaram-na, os miseráveis, e a divina Dulcinéia foi engravidada pelos filhos de um escudeiro... Nobre cavaleiro: os ricos comerciantes de Madri que estabeleceram um prêmio por teu retrato autêntico são os filhos espúrios, os netos de teu antigo criado Sancho Pança...

E esses bastardos são agora os donos da vida. Eles prostituíram os sentimentos delicados da humanidade, fecharam com portas de ferro o caminho para as estrelas e adornaram com moedas de prata o caminho que leva ao lodaçal. Esses servidores do bezerro de ouro fizeram do mundo uma mancebia, e ai daqueles que se negam a reconhecer sua honestidade de mercadores! Um dia, um rouxinol cantou ante as suas portas e eles lhe perguntaram em seguida: “Qual é teu preço comum? Quanto se te deve pelo canto?” e o rouxinol fugiu para nunca mais voltar. E foi bem feito. Porque ali onde grunhem os porcos, não pode cantar o rouxinol. Felizmente os portões do céu estão fechados, senão os senhores da vida enviariam uma delegação ao Criador para perguntar-lhe o que lhe devem pelo universo que criou para eles.

Ó, nobre cavaleiro da Mancha, defensor da justiça, que fizeram de teu nome honesto essas almas de mercadores que celebram agora teu terceiro centenário? Temo que o bom Rocinante não poderá suportar a ignomínia e a vergonha que te causaram. E para consolar-te, grande cavaleiro, para diminuir um pouco as tuas aflições, escrevi estas palavras, mediante as quais se recordarão os solitários, os ascéticos e incrédulos, os sonhadores de coração sangrante e de alma enferma, que trezentos anos atrás vivia um cavaleiro que se sentia feliz de cavalgar num Rocinante e de estar enamorado da bela Dulcinéia. E talvez leiam tua história e a alegria lhes suavize os pobres corações...

Esta é a minha homenagem em teu aniversário; eu não sei se vai agradar-te, mas hás de recebê-la com o coração limpo... Contudo, sentir-me-ia feliz se ressuscitasses no mundo dos mercadores. Eu te receberia como um monarca e com lágrimas nos olhos te beijaria como o salvador e redentor da humanidade escravizada. E chamaria a todos os desesperançados e desesperados para que se reconfortassem com a tua presença e lhes diria: “Tirai os sapatos porque a terra em que pisais agora é terra sagrada”.


 

 

O homem sem cabeça

 

MINHA avó era uma mulher rara. Tinha muitas boas qualidades, mas era terrivelmente supersticiosa e sabia uma quantidade de “coisas extraordinárias”, das quais a nossa sabedoria escolar não podia suspeitar nada. Em nossa cidade havia uma velha rua solitária, chamada Hohl, na qual até em pleno dia raramente se encontrava um ser humano. Daí dessa rua, guardada por velhas árvores, uma ampla escada de pedra conduzia à torre de Stephan. Contava minha avó uma vez que, por essa escada, passeava um homem, vestido de negro, entre as doze da noite e uma da madrugada. Por que havia escolhido aquele homem precisamente essa escada para o passeio, era seu segredo; muito mais singular, porém, era a circunstância de esse homem não ter cabeça.

Sem dúvida uma história muito rara que me causou muitas preocupações quando criança. Refleti sobre o assunto um dia e outro, e cheguei à conclusão de que sem cabeça não se podia ir passear. Foi isto, sem dúvida, um grande descobrimento. Hoje, não longe dos setenta, reconheci, contudo, que durante toda a minha vida não fui um sábio, mas um pobre louco. Talvez esse reconhecimento me faça agora realmente um sábio; mas a sabedoria veio muito tarde. Torna-se uma pessoa inteligente quando na longa viagem, que se chama a vida, se aproxima da última estação.

Não fui eu sábio e filósofo, mas minha avó. Necessitei de setenta anos para aprender que se pode realmente andar passeando sem cabeça por este formoso mundo. Para minha vergonha tenho de confessar que por mim mesmo não teria caído nunca nessa verdade; foi meu bom amigo da foice e do martelo que me auxiliou. Meu amigo era um santo singular; nele nunca sabia a mão esquerda o que fazia a direita. Durante anos me tinha pregado que os trabalhadores não deviam adquirir nenhum compromisso com a burguesia e com os chamados “social-fascistas”. Só a “ditadura do proletariado” podia trazer-nos a solução. A democracia era um engano, a liberdade um “preconceito pequeno-burguês”, a ética social um “estimulante para os frouxos”.

Mas um dia o meu amigo veio visitar-me, meteu o martelo e a foice num caixote de antigüidades, e gritou: “Agora temos o justo! Frente única! Morra o fascismo! Salvemos a democracia!” Apelava aos “social-fascistas”, aos liberais, aos maçons, aos católicos, ao Papa, aos pequeno-burgueses. O presidente Roosevelt, que antes era apenas um “reflexo do capitalismo americano”, converteu-se de repente num gênio político. O sr. Browder defendeu-o com todo o calor de sua alma fogosa e declarou modestamente, num discurso pelo rádio, que os reacionários combatiam Roosevelt, mas que na realidade só se referiam a ele, Browder. Era uma época magnífica aquela da “frente única” contra o fascismo, da luta da democracia contra Hitler, o antropófago e “cão raivoso da Europa”. Recordei ao meu amigo sua posição anterior, mas gritou-me na cara: “Isso é dialética social; disso não entendes nada”.

Logo fez Stalin seu pacto com Hitler. Meu amigo perdeu por algum tempo a voz. Mas chegou a nova ordem de Moscou e começou outra vez a trabalhar o bico. “Estes vis imperialistas! A Inglaterra tem a culpa da guerra! Churchill e Roosevelt são os sacerdotes de Mamon por quem deve sacrificar-se o proletariado!” E meu amigo me mostrou um formoso desenho de “New Massas”, onde Roosevelt, vestido de bruxa no inferno, revolve o fogo de uma caldeira onde é cozinhada a sopa da guerra. Churchill, com seu grosso charuto na boca, aparece ali como um vampiro e sorri. H. Hillman, como víbora, contempla os manejos de Roosevelt, enquanto Knox e Stimson arrastam a um pobre proletário para ser cozido na caldeira e encher a barriga do imperialismo. Até me trouxe meu amigo um boletim “Aos judeus”, no qual se diz que só a política de Stalin pode libertar o mundo do anti-semitismo. Recordei-lhe que há muitos anos, na Palestina, foi editado também um manifesto dessa espécie, no qual se defendia o nacionalismo árabe contra o perigo judeu. Mas meu amigo me gritou na cara: “Isto é dialética social; tu não entendes”.

Veio o ataque de Stalin contra a Finlândia. Mencionei ao meu amigo uma frase de Lenin em 1918: “Um socialista russo que negue a liberdade da Finlândia é um chauvinista”. Mas meu amigo me mostrou um artigo do novelista Alexis Tolstoi, no Pravda, onde se lê: “Stalin sabe o que convém mais à Finlândia. Ele, mais que nenhum outro, sabe o que assegurará a felicidade a todos os povos da humanidade. Ele pensa em tudo o que pode alegrar a vida do homem. Não há um só ser humano de que ele não seja amigo e ao qual não abra seu coração. Oh! quão mais ditosos seriam os ingleses se Stalin pudesse fundar a felicidade do povo inglês!” Mas desgraçadamente já não entendia nada disso. Era dialética social.

Meu amigo atribuía aos ingleses todos os pecados; não falava uma palavra de que Hitler, coberto pela aliança de Stalin, espezinhava os povos da Europa. Os ingleses eram os malditos imperialistas. O fato de Stalin anexar partes da Finlândia, meia Polônia, Bessarábia a até a Bucovina, que nunca pertenceu à Rússia, naturalmente não era “imperialismo”, mas apenas dialética social.

Veio logo o fim amargo. Hitler fez marchar seus exércitos contra a Rússia e Stalin apelou para a ajuda dos “imperialistas”, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Devíeis ver a cara do meu amigo. “Esse Hitler assassino! Ladrão, bandido, que assalta países e povos e os põe em seus alforjes, e que nem sequer consente que Chaplin use os seus bigodes!” E meu amigo se pôs a ajudar a Knox, Stimson a pôr o proletariado na caldeira. Churchill, o “pirata do mar”, converteu-se num grande estadista e Roosevelt teve repentinamente o destino do mundo em suas mãos.

Recordei ao meu amigo o caso de Lindbergh e do senador Weeler, que na véspera haviam sido qualificados como representantes da tradição americana e comparados com Jefferson e Lincoln. Pôs-se enraivecido e resmungou que “não queria ter nada que ver com gente que trabalhava para Hitler”, Stalin esteve sempre contra Hitler. Só concertou a aliança com ele para preparar a guerra contra ele. “Mas foi Hitler que marchou sobre Moscou”, disse. “Porque do contrário Stalin teria marchado sobre Berlim”, acrescentou o amigo. “Esta é a dialética social da história” .

Olhei fixamente o meu amigo, e descobri que não tinha cabeça. Minha avó tinha toda razão. Pode um ser humano passear sem cabeça. É até mais cômodo. “Mas devia ter uma cabeça”, objetareis. Sim, mas era só um rosto com dois olhos, e estes não viam. Uma cabeça é uma cabeça quando serve para pensar. Sobre os ombros do meu amigo podeis pôr uma cabaça, um nabo, um tambor ou um pedaço de madeira; prestará os mesmos serviços. Como comunista, pode ir a passeio sem cabeça.


 

 

Germinal

 

GERMINAL! Um grito longínquo da outra margem trepida ébrio de esperança através da gelada noite de inverno. Germinal, renovador da vida, mensageiro de um novo devir, espírito de destruição, espírito criador, nós te saudámos. Pelos pálidos crepúsculos de um presente malogrado, sentimos o cálido alento do futuro, nós, os carregados com a maldição dos séculos, a quem o desejo atormenta o coração como uma chama vermelha.

Tempestades de inverno devem preceder a tua vinda, frígidas tempestades de inverno, para libertar os espíritos das tradições escravizadoras dos escombros e do lodo e dos conceitos petrificados que matam nossa vontade nas cadeias e estrangulam a ação salvadora na rede sutil dos esgares artísticos da acrobacia dialética.

Ensinaram-nos a compreender e a interpretar “historicamente” as diversas fases da escravidão; desde então arquejamos sob a carga do velho e admiramos em silenciosa veneração o cordão umbelical que nos prende às formas de servidão dos milênios passados. Graças a Deus, não somos mais utopistas; aprendemos a distinguir entre o possível e o impossível, e conhecemos exatamente as fronteiras onde o dado praticamente se perde no mar nebuloso dos conceitos fantásticos e das representações indefinidas. Temos remexido, medido e demarcado cientificamente os trajetos particulares da escravidão humana, e nos regozijamos regiamente de haver triunfado tão bem no trabalho. Graças ao céu pusemos ordem em nossas relações com o passado; oxalá também nosso futuro se baseie nelas. A pálida inveja não nos pode proibir este reconhecimento.

Apenas em alguns de nós sonha ainda, cheia de promessas e carregada de desejos, a canção distante de uma ilha lendária em mares desconhecidos que ainda não divisou nenhum barco. São os últimos rebentos da geração do nobre cavaleiro de la Mancha, guardiães do Graal do ideal, espíritos entusiastas que perderam a terra firme sob os pés, e que respiram com seus sentidos além das nuvens.

Para os nove vezes sábios da “sã razão humana” serão sempre uma abominação, pois desprezaram todas as normas das tradições antigas e toda ordem legal das coisas.

Levam o signo de Caim da liberdade na fronte, e em sua alma se oculta a ânsia ardente e a rebeldia tenaz das tempestades celestes. Sua rotas, se abre sobre os abismos e as furnas, pois evitam expressamente os caminhos trilhados do cotidiano. Alguns caem nas profundidades obscuras, mas nunca se consideram vítimas e o pobre incenso do martírio lhes parece insípido e fútil. Agem sempre por impulsos interiores e devem agir assim porque não podem fazê-lo de outro modo.

O estranho e o raro lhes atrai e o utópico é, neles, uma necessidade vital, pois sua alma está sedenta de novas fontes e de ocultas maravilhas.

São hipotecários do futuro, porta-bandeiras do conhecimento e afirmadores da vida. Seu olhar é puro, o passo leve, porque o espírito não está carregado com as tradições da servidão que nos prendem com férreas correntes aos fatos banais do “historicamente dado”.

Salvai vós, os de vôo ligeiro, em cujo espírito atuam o impulso da destruição e a alegria dos criadores para dar à luz novos mundos.

Tradição da servidão! Esta é a peste invasora que quebranta nossa força, carcome nossa vontade, a eterna carga que nos esmaga e que afoga nosso anelo no lodo da rotina, antes que possa florescer. O peso inteiro da história humana nos abate; contudo, não nos atrevemos a arrojar a carga de nossos ombros por medo de perder o equilíbrio e ter de nos afundarmos dentro do nada. Entre gemidos e suspiros vagamos com nossa bagagem histórica, cambaleantes, pelas ruas da vida e cobrimos já o futuro com as hipóteses do passado.

O imenso caos das formas mortais e dos conceitos cristalizados, onde as últimas chispas da realidade vivente há muito já se extinguiram, nos oprime e arrasta nosso espírito às profundidades. Não há dúvida de que também nessas envolturas mortas habitou uma vez a alma e circulou a palpitação da vida; mas essa época está distante e somente dela nos ficaram inúteis escórias, nas quais o embaciado brilho das grandezas passadas centelha falsamente como fria mica sobre a rocha estéril.

Nosso cérebro é como uma sala de novidades na qual se agitam sombras sem alma: por toda parte múmias, “verdades” embalsamadas e relíquias carcomidas pelas quais não passa mais o alento de deus. O pálido reflexo do acontecido chispa fantasmagoricamente sobre os velhos cofres e os carcomidos altares dos quais se desprende o cheiro a mofo das épocas mortas. Nada nos une com esse mundo de espectros de brilho inanimado senão a tradição, a servidão, o espantoso respeito ante as máscaras irônicas do passado, atrás das quais já se não oculta nenhuma vida real. Mas esse mundo de pálidas sombras e de sagrados embustes está entre nós e a realidade das coisas e nos mostra todos os fenômenos da vida em formas caricaturais.

A própria existência nos é visível somente mediante a obscura atmosfera das tradições abstratas, e ali onde acreditamos ter percebido a essência das coisas, zomba de nós somente a dança das sombras do passado, que projeta sobre as coisas da realidade material seu jogo enganador.

Vemos a realidade somente nas perspectivas do passado, ou melhor ainda não vemos as coisas como são, não vemos nada mais que a aparência das coisas. Mas essa aparência das coisas, esse retrato enganador da realidade efetiva, nos aparece como a existência completa, como a realidade superior, e a ela sacrificamos constantemente nosso ser particular.

Alimentamos os quadros de sombras de nossas representações abstratas com o sangue de nosso próprio coração, e nos convertemos em vítimas de uma ilusão ótica que nos faz aparecer a realidade vivente como fantástica e inanimada. É a sombra das coisas que nos leva à imolação e nos faz dobrar o joelho. Peter Schlemihl, o que vendeu a sombra ao homem de casaco cinzento, cai no desespero porque perdeu desse modo o objeto de sua idolatria e de sua veneração hereditária.

O homem criou deus à sua imagem, mas o fez inconscientemente, com a ingenuidade da criança a quem ainda está vedado o sentido das coisas.

Olhou o espelho mágico da natureza onipotente, que refletiu ampliado o seu retrato. E se curvou em tímida veneração ante esse reflexo que chamou deus e que se converteu para ele na realidade absoluta, à qual sacrificou sua própria existência. Assim se transformou o criador em escravo de sua própria criação, a aparência em realidade. Quanto maior e mais forte aparecia deus ao homem, tanto mais o aterrou, a ele, o verdadeiro criador, o sentimento de sua insignificância. Disfarçou o produto de sua força de imaginação com todas as qualidades preciosas, e na auréola dessa divindade lhe apareceu todo o humano miserável e vão.

Enquanto a crença dos povos estava ainda rodeada com os prestígios da poesia ingênua da primeira infância, apenas chegou à consciência do homem a grande tragédia de sua queda. Mais tarde, porém, quando a fé infantil das épocas passadas se petrificou nas formas mortas da dogmática teológica e a comunidade dos crentes se transformou em igreja, a diminuição do homem divino, princípio sagrado e pedra angular de todas as religiões chamadas, positivas, Deus foi tudo; o homem, nada.

Como um mendigo sujo, o filho da terra se encolheu ante seu próprio retrato e suplicou proteção e bênção sobre sua cabeça pecadora.

Assim se converteu a terra em vale de lágrimas e a vida em uma maldição. Para salvar a “alma divina”, mortificou o corpo, o corpo de impureza e das cobiças insensatas. Na mesma medida que o fantasma deus cresceu até o gigantesco, encolheu-se o homem até o nível do liliputiano miserável que não se atrevia a aproximar-se da sombra morta de seu próprio eu senão mediante a intervenção dos “eleitos”, e com santo respeito.

Deus é tudo, o homem nada.

E os “eleitos” transmitiam aos crentes os mandamentos de deus gravados em pedra e amarelentos pergaminhos, que deveriam servir-lhes como regra de conduta. Assim receberam as sombras uma vontade, e o homem as carregou sobre seus ombros como santo jugo para merecer o reino dos céus.

— “Eu sou o senhor, teu deus!” — retumba por milênios da história humana — e milhões e milhões de “pobres mortais” inclinam respeitosos a cabeça ante o ídolo que nasceu de sua própria força de imaginação e que prolonga a existência graças à ilusão de sua fé.

As formas da crença mudaram no curso dos tempos; mas suas raízes são sempre as mesmas, o mesmo, quer se trate do mesquinho fetiche dos selvagens, quer do deus abstrato das religiões monoteístas.

É sempre a mesma mudança fatal de papéis; a aparência se transforma em realidade, a criação em dono e senhor do criador.

O número de deuses caídos é uma legião; mas deus mesmo não caiu nunca e nos faz caretas sob máscaras sempre novas. Quando o homem derruba um velho ídolo do pedestal mais sagrado, faz sempre para arrojar-se ao solo ante uma nova divindade, cujo brilho ainda não foi embaciado na mutação infinita dos acontecimentos.

Em nome de deus o homem suportou o jugo de toda tirania, entusiasmou-se por toda ilusão fabricada por sua ardente fantasia, santificou todo crime que lhe foi pregado pelos sacerdotes como expressão da vontade divina, ofereceu-se ele próprio constantemente em sacrifício para estar certo da existência de seu ídolo. Não é por casualidade que quase todas as religiões estão fundadas na idéia do sacrifício, pois deus se alimenta do sangue dos homens, das substâncias vivas de sua existência material.

Em toda parte onde um sacerdote proclama a palavra de deus; onde os crentes, ciosos de sacrifício, inclinam a cabeça em santo amor ante a alta vontade, aí há um Gólgota em que se crucifica o homem.

Proudhon percebera a raiz misteriosa da tragédia da humanidade quando gravou estas palavras:

“Deus é a estupidez e a covardia; deus é a hipocrisia e a mentira; deus é a tirania e a miséria; deus é o mal”!

Mas deus não está somente na casa, nas igrejas dos crentes e nos livros santos dos teólogos: leva sua essência a todos os domínios da vida humana, e habita em cada oculta dobra de nosso cérebro.

A forma de todo Estado é somente uma tradução do princípio divino de autoridade e o que chamamos simplesmente “política” é apenas a teologia do Estado. Não é em vão que se nomeiam os reis “pela graça de deus”, pois o poder da realeza e do Estado em geral nasce da mesma fonte que alimenta a onipotência de deus. Por estas razões sustinha De Maistre, o grande apóstolo da reação, com justa razão, que toda forma de governo era teocrática por sua natureza e que toda constituição vinha de deus.

Todo poder de acordo com sua essência íntima é de origem divina, pois em última conseqüência é, não a violência brutal que mantém um sistema político, mas a fé sagrada na necessidade desse sistema, a tradição da servidão, que obriga mais e mais os homens a oferecerem a realidade vivente do existir real a um quadro inanimado de sombras, e como todo poder segundo sua essência é divino, é sempre absoluto, também quando trata de ocultar modestamente sua nudez sob o ouropel do direito parlamentar. Já se trata aqui da forma fetichista do Estado, em que o princípio do poder achou sua expressão direta na pessoa do monarca absoluto, ou de uma abstrata “república una e indivisível” dos jacobinos ou melhor ainda, da famosa “ditadura do proletariado” de Lenin e Trotzky, isto é de uma importância secundária. Estas são somente diferenças na forma, que não podem mudar nada na natureza da própria coisa.

Bonald, o seco e o incurável pedante e o defensor invariável do princípio de autoridade, compreendeu bem o germe da coisa, quando escreveu as terríveis palavras:

“Deus é o poder soberano sobre todos os seres; o filho de Deus é o poder sobre toda a humanidade; a cabeça suprema do Estado é o poder sobre todos seus súditos; a cabeça da família é o poder em sua casa. Como todo o poder é criado à imagem de Deus e nasce de Deus, todo poder é absoluto”.

Somente uma coisa não compreendeu Bonald, e não poderia compreender. Compreendeu a divindade de todo poder, mas não compreendeu a origem da divindade que, segundo ele, foi dada pela eternidade. A grande tragédia do homem não chegou nunca a seu conhecimento, pois foi um sedutor e um seduzido ao mesmo tempo.

Como deus só prolonga sua nebulosa existência na força de representação dos homens e somente é sensível para estes o poder divino pela atividade consagrada de seus sacerdotes e eleitos, assim também o conceito do Estado em si e por si é unicamente uma formação abstrata que tão-somente chega à consciência dos leais súditos pela alta eficácia de seus representantes e de sua hierarquia burocrática. O crente espera a salvação de deus, porque sua própria força lhe aparece miserável. Pelas mesmas razões o súdito crente espera a salvação do Estado, que se converteu para ele na providência terrestre.

Não compreende que o Estado na melhor das conjunturas somente pode devolver-lhe o que lhe tirou antes em forma de impostos e de tributos, e compreende menos ainda que a imensa maioria das oferendas que faz ao Estado diariamente não servem a seus próprios interesses, mas aos interesses do Estado, e de seus dignatários, sejam estes “postos por deus” ou eleitos pelo povo, o que no fundo é o mesmo, porque segundo a afirmação da tendência mais avançada da moderna teologia política a “voz do povo é a voz de deus”. Como na religião deus é tudo e o homem é nada, assim na política o Estado é tudo e o cidadão nada.

Ambas as máximas da autoridade terrestre e celeste, o “Eu sou o senhor, teu deus” e a “Sede submissos ante a autoridade!”, cresceram juntas desde as origens mais remotas, como irmãs gêmeas.

Enquanto o homem venerou em deus o conceito da perfeição absoluta, se converteu ele próprio, o criador de deus, em miserável “verme da terra”, na encarnação viva de toda fraqueza e insignificância terrestre, e os teólogos e os escribas não se cansaram de convencê-lo de que era um “pecador de nascimento”, que somente poderia ser salvo do abismo infernal pela declaração e cumprimento dos santos mandamentos de deus.

E enquanto o cidadão dotava o Estado de todos os atributos da perfeição terrestre, degradava-se ele próprio até à caricatura da impotência espiritual e de menor idade a quem os escribas do direito e os teólogos do Estado martelaram mais e mais a convicção de que, de fato, a sua natureza está carregada com os obscuros instintos do criminoso nato e de que somente mediante as leis do Estado tem que ser dirigido pelo caminho da virtude oficialmente reconhecida. O divino “Tu deves” e o estatístico “Tu tens de...” completam-se reciprocamente de um modo maravilhoso. Mandamento e lei são somente formas distintas de expressão do mesmo princípio de autoridade.

Como a figura de deus e a crença em deus dos homens aceitaram diversas formas e figuras no curso dos tempos, assim também a forma externa do Estado e a crença no governo dos valorosos súditos estão submetidas às mutações da História. Mas a natureza da coisa ficou invariável e se tratou sempre de novas envolturas do mesmo princípio de poder.

Da mesma maneira que o problema da melhor religião era antes o controle das rivalidades entre as distintas escolas teológicas, assim girou o cérebro dos políticos sempre ao redor do problema de “melhor governo”.

E da mesma maneira que no domínio da religião há judeus, islamitas, católicos, protestantes, mórmons, se encontram no domínio da política, monarquistas, constitucionalistas, republicanos, democratas ou bolcheviques, que se atacam reciprocamente, mas, no entanto — consciente ou inconscientemente — perseguem o mesmo objetivo.

Todos os partidos não são na realidade nada mais que igrejas políticas que servem à sua maneira o Estado, e o mesmo que cada igreja dos sistemas diferentes de religião segundo seu próprio rito, proclama a glória de seu deus.

Em todas as partes vemos o mesmo ardor de sacrifício dos crentes do termo médio e a mesma codícia do poder nos “eleitos”, que arrastam a vida ao lugar do holocausto para abandoná-la a uma sombra abstrata.

Mas até num domínio tão concreto como a vida econômica do homem agita o espectro divino seu jogo extraordinário e exige, por intermédio dos sacerdotes, seu tributo humano.

Não será o chamado “direito de propriedade” de nossos economistas senão uma projeção da idéia de deus no domínio do econômico? Em geral, não tem sido toda a economia nacional burguesa senão a teologia da propriedade?

Os escribas do direito de propriedade procederam do mesmo modo que os teólogos da igreja e do Estado. Assim como estes viram sua tarefa mais ilustre em inspirar no rebanho dos crentes ou na chusma dos súditos a consciência de sua absoluta insignificância, assim se esforçaram aqueles com todo zelo por sugerir à massa dos produtores e dos trabalhadores o sentimento de sua necessária dependência para poder prender-lhes, com mais firmeza, às correntes de seus ídolos. E da mesma maneira que a teologia política e eclesiástica de todas as escolas e tendências procura ocultar a origem e a essência de seu deus nas regiões da névoa e do mistério, assim também seus representantes no domínio da vida econômica não deixaram nenhum meio sem prova para simular a origem e a natureza da propriedade com o espesso véu de uma metafísica estranha.

Pois também a propriedade é divina, e todo o divino é mistério.

Neste sentido todas as constituições políticas dos homens — embora se trate dos preceitos teocráticos de Dalai-Lama do Tibete ou da famosa legislação democrática de 1793 — rodearam a propriedade com uma aureóla de glória e lhe dedicaram o lugar mais distinto em seus documentos legais.

Certamente a propriedade é sagrada, mas é uma das numerosas metamorfoses da idéia de deus que surgiu do sombrio impulso imaginativo do homem, e somente pode viver sua vida crepuscular nas regiões fantasmagóricas da mais turva fantasia. E também aqui o parecer se converte em ser, desaparece a realidade vivente numa ilusão.

Como o fetiche que aparece ao selvagem como a morada santa de algum espectro, imaginamos nós que habita em cada objeto, que nossos olhos vêem e nossas mãos tocam, um fantasma.

Atrás das coisas sensíveis da existência real se refugia a propriedade e até o produto do trabalho de nossas mãos se converte em fetiche onde um demônio encontrou sua moradia. Ai! Vivemos ainda na idade do fetichismo apesar de toda a instrução, apesar de toda a ciência.

E não somente demos a parte de leão de nosso trabalho a essas ilusões: oferecemo-lhes também como engodo corpos vivos e nos embriagamos no sentimento de nossa honestidade cívica.

A concupiscência vital dos bravos súditos é poderosamente excitada quando passam ante a exposição sugestiva dos armazéns e depósitos da grande cidade com o estômago vazio, mas não se atrevem a estender sua mão para todas essas magnificências, por muito que a fome roa seu estômago se não está em situação de satisfazer o tributo de sacrifício à propriedade. Milhões de criaturas humanas estão abandonadas durante toda a vida à mais horrorosa miséria, em meio de uma abundância criminosa, que cotidianamente zomba ante seus olhos vorazes de maneira ostensiva, e contudo guardam fiéis os mandamentos do chamado direito de propriedade, como um crente guardaria os mandamentos de seus deus.

Ilusão, ilusão em toda parte! Dança de espectros ao redor do Gólgota e da vida palpipante sobra os altares fumegantes do sacrifício.

Em constante comunicação com o mundo de espectros dos deuses nos convertemos nós mesmos quase em espectros. Pesa em todos nós algo horroroso, pesado, que carrega nosso espírito e o atrai aos lugares misteriosos do sacrifício. A tradição de servidão incrusta-se em nosso sangue como um veneno oculto, nutre-se constantemente de nossa força vital e nos faz ver o mundo como numa caótica embriaguez de ópio.

Ibsen reconheceu o ponto frágil de nosso intelecto quando pôs na boca da senhora Alving estas palavras:

“Não somente nos rodeia o que herdamos de pai e de mãe. Também todos os conceitos velhos e mortos imagináveis e toda espécie de crenças mortas e assim sucessivamente. Não vive em nós, mas apesar de tudo está em nosso sangue e não podemos ficar livres. Se seguro um jornal e o leio, passa-se alguma coisa assim como se visse espectros deslizar entre as linhas. Em torno do país devem viver espectros. Devem ser tão numerosos, creio, como a areia do mar. E além disso todos somos tão míseros morcegos, tanto uns como outros...!”

Ai! o espectro em nós nos faz morcegos e covardes. Trememos ante nossas próprias sombras, e nosso espírito imagina os sistemas mais maravilhosos para justificar nossas fraquezas e dar-lhes uma aparência heróica.

Assim se mudou a servidão em virtude, a submissão em princípio. Toda nossa vida está dificultada por férreas necessidades que nós mesmos descobrimos e aumentamos até que se nos tenham transformado em uma fatalidade. Perseguem-nos desde o berço até ao túmulo e oprimem todos nossos atos no molde das sagradas leis e dos conceitos tradicionais.

Tudo isto se nos converte em obrigação, em irrevocabilidade e ainda depois de romper em pedaços um velho jugo esperamos anelantes novas religiões às quais possamos oferecer nossa reverência.

Somente no primeiro dia de nossas revoluções zunem à nossa volta os relâmpagos do crepúsculo dos deuses; mas no segundo dia nos ajoelhamos novamente ante novos altares.

E se alguém da geração dos predestinados vem a nós para convercer-nos com o sentimento de seu humanitarismo, levamo-lo à guilhotina ou o vestimos com os atributos da santidade. Os fariseus fazem morrer um homem na cruz, mas três dias depois de sua morte fazem surgir do túmulo a ilusão dos crentes num deus. Quando chegará finalmente a sexta-feira santa do deus que traga a ressurreição do homem?

* * *

Ouvis o grito longínquo da outra margem? Sonho cheio de esperança e radiante de vida pela gelada noite de inverno como um mensageiro do porvir. A rigidez se dissolve. Um grande anelo vai pelo mundo, como um sopro de primavera. São os presságios do grande crepúsculo dos deuses que nos anuncia a festa da ressurreição.

Germinal! Ouvis retumbar o grito de meia-noite? Germinal, renovador da vida, núncio de um novo devir, espírito de destruição, espírito criador, nós te saudámos.

Germinal! Germinal!


 

 

RUDOLF ROCKER
“As Idéias Absolutistas no Socialismo”

 

Rudolf Rocker é um nome internacional. Sua acidentada fuga da tirania hitlerista, além de sua obra de revolucionário, veio torná-lo uma das figuras de primeira plana do movimento socialista libertário da atualidade. Inimigo de toda tirania, amante incansável da liberdade, lutador impertérrito contra todo o dogma, crente na capacidade humana de criar, defensor dos oprimidos, tudo contribuiu para torná-lo uma das figuras mais empolgantes dos últimos tempos. A obra que ora apresentamos é composta de um dos seus últimos trabalhos realizados depois da guerra e de ensaios que escreveu durante os dias em que a humanidade esteve entregue à mais terrível de todas as ameaças que penderam sobre a liberdade e a dignidade, humanas.

Livro de polêmica, escrito, porém, com um estilo brilhante, claro, intuitivo, é uma das mais vigorosas contribuições do socialismo libertário em contraposição às tendências autoritárias no socialismo. Foi ele membro do Conselho Federal da “Frein Arbeiter-Union Deutschlands”, diretor do importante órgão proletário “Der Syndicalist” e colaborou também no “Der Freie Arbeiter”. Atualmente Rocker, já em idade avançada, vive nos Estados Unidos onde deu à publicidade seus livros entre os quais este que ora publicamos e seu famoso trabalho “Nacionalismo e Cultura”, também programado por esta editora, e que mereceu de Bertrand Russell, de Lewis Mumford, Louis Adamic, Thomas Mann, Charles A. Beard, Rupert Hughes, Herbert Read e muitos outros os mais entusiásticos aplausos.

Os problemas fundamentais do socialismo são examinados neste livro e, além disso, Rocker estimula todos os estudiosos da questão social a investigar os novos terrenos que se oferecem e que tanta luz podem trazer a todos aqueles que lutam por ideal em prol da humanidade sofredora.

EDIÇÃO DA
Editora e Distribuidora Sagitário Ltda.
Avenida São João, 487
Caixa Postal, 500
SÃO PAULO


 

notas

(1) – A feia palavra Gleichschaltnug [equalizar,nivelar - N.E.], tão empregada na linguagem nazi, aparecia já antes do advento do Terceiro Reich, na boca dos líderes sindicalistas e socialistas na Alemanha. Em semelhantes palavras em voga se reflete, muitas vezes, todo um modo de pensar.

(2) – Os autores, segundo se verificou mais tarde, eram Nicolas Buguet e Pierre-Ignace Jannez-Sponville.

 


 

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