Iluminações (1886)
Arthur Rimbaud (1854-1891)
Tradução: Janer Cristaldo
Capa:
Rimbaud, aos 17, por Étienne Carjat
provavelmente tirada em Dezembro de 1871
Fotografia conservada na BnF
http://www.bnf.fr
Fonte digital: wikipedia
Fonte Digital
Documento do Tradutor
jcristaldo@gmail.com
©2012 — Janer Cristaldo
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Arthur Rimbaud
ILUMINAÇÕES
Tradução
Janer CristaldoeBooksBrasil
2012
Após o Dilúvio
Nem bem se aquietara a idéia do Dilúvio,
Uma lebre parou entre os sanfenos e as inquietas campânulas e elevou sua prece ao arco-íris, através da teia de aranha.
Oh! As pedras preciosas que se escondiam, — as flores que já olhavam.
Na grande rua suja os açougues se ergueram, e os barcos foram levados ao mar, que, no alto, era em degraus como nas figuras.
O sangue correu, na casa de Barba-Azul, — nos matadouros, — nos circos, onde o selo de Deus empalidecia as janelas. O sangue e o leite corriam.
Os castores construíam. Saía fumaça dos cafés nos botequins.
Na mansão de vidros ainda gotejante, as crianças contemplavam as imagens maravilhosas.
Uma porta bateu, — e na praça do vilarejo, a criança girou seus braços, envolvendo os cata-ventos e os galos dos campanários, sob o fulgurante aguaceiro.
A senhora*** instalou um piano nos Alpes. A missa e as primeiras comunhões foram celebradas nos cem mil altares da catedral.
As caravanas partiram. E o Hotel Esplêndido foi erguido em meio ao caos de gelos e noite polar.
Desde então, a Lua ouviu os chacais berrando pelo deserto dos timos, — e as éclogas em tamancos rugindo no pomar. Depois, na floresta violeta, coberta de brotos, Eucaris me disse que chegara a primavera.
—Surge, lago, —Espuma, rola sobre a ponte a e sobre os bosques; — panos negros e órgãos, — relâmpagos e trovão, — subi e rolai; — Águas e tristezas, subi e restaurai os Dilúvios.
Pois desde que eles se dissiparam, — oh! as pedras preciosas enterrando-se, e as flores abertas! — reina o tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa no pote de barro, jamais quererá contar-nos o que ela sabe, e que nós ignoramos.
Infância
I
Este ídolo, olhos negros e crina amarela, sem família nem corte, mais nobre que a fábula, mexicano e flamengo; seu domínio, azul e verdor insolentes, estende-se sobre praias conhecidas por ondas sem naus, de nomes ferozmente gregos, eslavos, célticos.
À beira da floresta, — as flores de sonho tilintam, estalam, iluminam, — está a donzela de lábios de laranja, joelhos cruzados no claro dilúvio que irrompe dos prados, nudez que os arco-íris, a flora e o mar ensombrecem, transpassam, e vestem.
Damas que volteiam nos terraços vizinhos ao mar; crianças e gigantes, negras soberbas no musgo verdoso, alfaias, erguidas sobre o solo fértil dos bosques e jardins degelados — jovens mães e irmãos maiores com olhares cheios de peregrinações, sultanas, princesas de andar e vestes tirânicas, pequenas estrangeiras e pessoas docemente infortunadas.
Que tédio, a hora do “corpo querido” e do “coração amado”.
II
É ela, a pequena morta, atrás das roseiras. — A jovem mamãe defunta desce o patamar. — A caleça do primo range na areia. — O irmãozinho (está nas Índias!) lá, frente ao poente, sobre o campo de cravos. — Os velhos enterrados rígidos na muralha dos goivos.
O enxame das folhas de ouro cerca a casa do general. Estão no meio-dia. — Segue-se o caminho vermelho para chegar-se à estalagem vazia. O castelo está à venda; as persianas estão soltas. — O cura terá levado a chave da igreja. — Em torno ao parque, as guaritas dos guardas estão desabitadas. As paliçadas são tão altas que só se vê os cimos sussurrantes. Ademais, nada há para se ver lá dentro.
Os prados sobrem até os vilarejos sem galos, sem bigornas. A represa está levantada. Ó dos calvários e moinhos do deserto, as ilhas e as mós!
Flores mágicas zumbiam. Os taludes o embalavam. Animais de uma elegância fabulosa desfilavam. As nuvens se amontoavam sobre o alto mar feito de uma eternidade de lágrimas quentes.
III
No bosque há um pássaro, seu canto vos detém e vos faz corar.
Há um relógio que não soa.
Há uma catedral que desce e um lago que sobe.
Há uma pequena carruagem abandonada nas moitas, ou que desce a vereda às carreiras, engalanada.
Há um grupo de pequenos comediantes disfarçados, vistos na estrada pela beira do bosque. Há, por fim, quando se tem fome e sede, alguém que nos expulse.
IV
Sou o santo, orando no terraço, — como os animais mansos pastam até o mar da Palestina.
Sou o sábio na cátedra sombria. Os ramos e a chuva se arrojam sobre a janela da biblioteca.
Sou o transeunte da grande estrada pelos bosques anões; o rumor das represas abafa meus passos. Vejo, longamente, a melancólica lixívia dourada do poente.
Eu bem seria a criança abandonada no cais que partir para o alto-mar, o pequeno servo que segue a alameda cujo final toca o céu.
As sendas são ásperas. Os montículos se cobrem de giestas. O ar é imóvel. Quão distantes estão os pássaros e as fontes! Isto só pode ser o fim do mundo, avançando.
V
Que me aluguem por fim esta tumba, branca de cal e com as linhas de cimento em relevo — bem fundo na terra.
Apoio meus cotovelos na mesa, a lâmpada ilumina vivamente estes jornais que só releio de idiota, estes livros sem interesse. —
Numa distância enorme acima da minha sala subterrânea, as casas se implantam, as brumas se reúnem. A lama é vermelha ou negra. Cidade monstruosa, noite sem fim!
Menos acima, estão os esgotos. Dos lados, nada senão a espessura do globo. Talvez os abismos de azul, poços de fogo. É nesses planos que talvez se encontrem luas e cometas, mares e fábulas.
Nas horas de amargura, imagino bolas de safira, de metal. Sou senhor do silêncio. Porque uma aparência de clarabóia empalidecerá no canto da abóbada?
Conto
Um Príncipe se envergonhava por jamais haver se dedicado senão à perfeição das generosidades vulgares. Previra espantosas revoluções no amor, e suspeitava que suas mulheres eram capazes de algo melhor que esta tolerância adornada de céu e de luxo. Queria ver a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais. Fosse ou não uma aberração da piedade, ele o quis. Possuía ao menos um poderio humano suficientemente vasto.
Todas as mulheres que o haviam conhecido foram assassinadas. Que vandalismo no jardim da beleza! Sob o sabre, elas o abençoaram. Ele não encomendou outras novas. — As mulheres reapareceram.
Matou todos que o seguiam, após a caça ou libações. — Todos os seguiam.
Divertiu-se estrangulando os animais de luxo. Fez queimar os palácios. Arrojava-se sobre as gentes e as esquartejava. — A multidão, os tetos de ouro, os belos animais existiam ainda.
Pode alguém extasiar-se na destruição rejuvenescer na crueldade! O povo não murmurou.
Ninguém ofereceu a ajuda de seus conselhos.
Galopava altaneiro certa noite. Um Gênio surgiu, de uma beleza inefável, inconfessável mesmo. De sua fisionomia e de sua postura emanava a promessa de um amor múltiplo e complexo! de uma felicidade indizível, insuportável mesmo! O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Como não teriam podido dela morrer? Morreram juntos então.
Mas este Príncipe morreu, em seu palácio, em uma idade comum. O Príncipe era o gênio. O Gênio era o Príncipe.
A música erudita faz falta a nosso desejo.
Desfile
Palhaços muito sólidos. Vários exploraram vossos mundos. Sem necessidades, e com pressa de utilizar suas brilhantes faculdades e conhecimento de vossas consciências. Que homens maduros; Olhos bestificados à maneira da noite de verão, vermelhos e negros, tricolores, de aço salpicado de estrelas de ouro; faces deformadas, plúmbeas, cadavéricas, inflamadas; rouquidões brincalhonas! O andar cruel dos ouropéis! — Há alguns jovens, — como veriam Querubim?
Providos de vozes terríveis e de alguns recursos perigosos. Mandam-nos criar corpo na cidade, engalanados com um luxo repelente.
Ó o mais violento Paraíso do esgar raivoso! Comparação alguma com vossos Faquires e outras bufonarias cênicas. Em vestes improvisadas com o gosto do pesadelo, representam lamúrias, tragédias de malandros e de semideuses espirituais como a historia ou as religiões jamais o foram. Chineses, hotentotes, boêmios, idiotas, hienas, Molochs, velhas demências, demônios sinistros, eles misturam modos populares, maternais, com as atitudes e ternuras bestiais. Interpretariam até mesmo peças novas e canções para “moças de família”. Mestres jograis,transfiguram o lugar e as pessoas e recorrem à comédia magnética. Os olhos flamejam, o sangue canta, os ossos se dilatam, as lágrimas e os filetes vermelhos escorrem. Suas piadas ou terror duram um minuto, os meses inteiros.
Sou o único a possuir a chave deste desfile selvagem.
Antigo
Gracioso filho de Pã! Em torno de tua fronte coroada de pequenas flores e bagas, teus olhos, esferas preciosas, se movem. Pintadas de borra parda, tuas faces se afundam. Tuas presas brilham. Teu peito lembra uma cítara, tinidos circulam em teus braços louros. Teu coração bate nesse ventre onde dorme o duplo sexo. Passeia, à noite, movendo docemente esta coxa, esta segunda coxa e esta perna esquerda.
Being Beauteous
Ante a neve um Ser de Beleza de elevado porte. Silvos de morte e círculos de música em surdina fazem crescer, dilatar-se e vibrar como um espectro este corpo adorado; chagas escarlates e negras explodem em suas carnes soberbas. As cores próprias da vida ensombrecem, dançam, e se desprendem em torno à Visão, tomando forma.
Os frêmitos sobem e zumbem, e o sabor insensato destes efeitos carregando-se dos silvos mortais e as roucas músicas que o mundo, longe atrás de nós, lança contra nossa mãe de beleza, — ela recua, ergue-se. Oh! nossos ossos se revestem de um novo corpo amoroso.
***
Ó a face cinzenta, o escudo da crina, os braços de cristal! O canhão sobre o qual tenho de arrojar-me na confusão das árvores e do ar leve!
Vidas
I
Ó as enormes avenidas da terra santa, os terraços do templo! Que fizeram do brâmane que me explicou os Provérbios? Desde então, de lá vejo ainda até as velhas! Lembro-me das horas de prata e de sol junto aos rios, a mão da campina sobre minha espádua, e de nossas caricias em pé nas planícies picantes. — Uma revoada de pombas escarlates troa em torno de meu pensamento. — Exilado aqui, tive um cenário onde representar as obras-primas dramáticas de todas as literaturas. Eu vos indicaria as riquezas inauditas. Observo a história dos tesouros que encontrastes. Vejo a continuação! Minha sabedoria é tão desprezada quanto o caos. Que é meu nada, ao lado do estupor que vos espera?
II
Sou um inventor de méritos bem distintos de todos quantos me precederam; um músico quase, que encontrou algo como a clave do amor. Hoje, gentil homem de uma campina acre no céu sóbrio, tanto comover-se com a lembrança da infância mendicante, da aprendizagem ou da chegada em tamancos, das polêmicas, das cinco ou seis viuvezes, e de algumas bodas onde minha cabeça dura impediu-me de seguir o diapasão de meus camaradas. Não lamento minha antiga parte de alegria divina; o ar sóbrio desta acre campina alimenta ativamente meu atroz ceticismo. Mas como este ceticismo não pode de agora em diante ser praticado, e como alias me devoto a uma nova perturbação, — espero tornar-me um louco muito cruel.
III
Num sótão em que fui encerrado aos doze anos conheci o mundo, ilustrei a comedia humana. Num celeiro aprendi a história. Em certa festa noturna, numa cidade do Norte encontrei todas as mulheres dos antigos pintores. Numa velha travessa de paris me ensinaram as ciências clássicas. Numa magnífica mansão cercada pelo Oriente inteiro coroei minha imensa obra e passei meu insigne retiro. Misturei meu sangue. Meu dever me foi devolvido. Nem mais é preciso pensar nisso. Sou realmente de além-túmulo, e não tenho mensagens.
Partida
Visto demais. A visão foi reencontrada em todos os ares.
Tido demais. Rumores de cidades, à noite, e sob o sol, e sempre.
Conhecido demais. As paradas da vida. — Ó rumores e Visões!
Partida na afeição e o ruído novos!
Realeza
Numa bela manhã, num povo muito afável, um homem e uma mulher soberbos gritavam na praça pública. “Meus amigos, quero que ela seja rainha!” “Quero ser rainha!” ela ria e tremia. Ele falava aos amigos de revelação, de experiência cumprida. Ambos desfaleciam, um contra o outro.
Com efeito foram reis toda uma manhã, em que tapeçarias carmesins se elevaram sobre as casas, e toda a tarde, quando avançaram em direção aos jardins de palmeiras.
À uma razão
Um golpe de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e inaugura a nova harmonia. Um passo teu é a leva dos novos homens e o começo de sua marcha.
Tua cabeça se desvia: o novo amor! Tua cabeça se volta — o novo amor!
“Muda nossos destinos, passa ao crivo os flagelos, a começar pelo tempo”, cantam-se estas crianças. “Erige”, não importa onde, a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te.
Chegada desde sempre, irás por toda a parte.
Manhã de Embriaguez
Ó meu bem! Ó meu belo! Fanfarra atroz em que jamais vacilo! Cavalete mágico! Hurra para a obra inaudita e para o corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começa pelos risos das crianças, terminará por eles. Este veneno há de permanecer em todas as nossas veias mesmo quando, ao ir- se a fanfarra, sejamos entregues a antiga desarmonia. Ó presente nós tão dignos destas torturas! Recolhamos ardorosamente esta promessa, esta demência! A elegância, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra da árvore do bem e do mal, banir as honestidades tirânicas, para que introduzíssemos nosso muito puro amor. Isto começou com alguns desgostos e acabou, — não podendo arrebatar-nos imediatamente desta eternidade, — isto acabou numa debandada de perfumes.
Riso das crianças, discrição dos escravos, austeridade das virgens, horror pelas formas e objetos daqui, sagrados sejais pela lembrança desta vigília. Isto começava com toda a grosseria, eis que termina com anjos de chama e gelo.
Pequena vigília de embriaguez, santa! ainda que só fosse pela máscara que nos gratificastes. Nós te afirmamos, método! Não esquecemos que glorificaste ontem cada uma de nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos Assassinos.
Frases
Quando o mundo for reduzido a um único bosque negro para nossos quatro olhos espantados, — a uma praia para duas crianças fiéis, — a uma casa musical para nossa clara simpatia, — eu vos encontrarei.
Que haja cá em baixo um só ancião, calmo e belo, cercado de um “luxo inaudito”, — e eu estarei a vossos pés.
Quando tenha realizado todas as vossas lembranças, — seja eu aquela que vos sabe estrangular, — eu vos sufocarei.
*
Quando somos muito fortes, — quem recua? muito alegres, quem cai de ridículo? Quando somos muito maus, — que fariam de nós?
Enfeitai-vos, dançai, ride. Jamais poderei enviar o Amor pela janela.
*
— Minha camarada, mendiga, criança monstro! Como te são indiferentes estas infelizes e estas manobras, e meus embaraços. Une-te a nós com tua voz impossível, tua voz! único adorador deste vil desespero.
*
Uma manhã enevoada, em julho. Um gosto de cinzas voa no ar; um odor de madeira que sua na lareira, — as flores maceradas, — a pilhagem dos caminhos, — a garoa dos canais pelos campos — porque não agora os brinquedos e o incenso?
*
Estendi cordas de sino a sino; guirlandas de janela à janela; correntes de ouro de estrela à estrela, e danço.
*
O alto lago fumega continuamente. Que feiticeira irá erguer-se no crepúsculo brando? Que frondescências violetas vão descer?
*
Enquanto os fundos públicos são dissipados em festas de confraternização, um sino de fogo róseo tange nas nuvens.
*
Acentuando um agradável sabor a tinta da China, um pó negro chove docemente sobre minha vigília. — Diminuo as luzes do lustre, caio na cama e, voltando para o lado da sombra, eu vos vejo, minhas filhas! minhas rainhas!
Operários
Ó esta cálida manhã de fevereiro. O Sul inoportuno veios suscitar nossas lembranças de indigentes absurdos, nossa jovem miséria.
Henrika vestia uma saia de algodão de quadrados brancos e escuros, que deve ter sido usada no século passado, um gorro com fitas e um lenço de seda. Era mais triste que um luto. Dávamos uma volta pelo subúrbio. O tempo estava enevoado, e esse vento do Sul excitava todos os odores vis dos jardins devastados e dos prados ressequidos.
Isto não devia fatigar minha mulher tanto quanto a mim. Num charco deixado pela inundação do mês anterior em uma senda bastante elevada ela me mostrou peixes muito pequenos.
A cidade, com sua fumaça e seus rumores de ofícios, nos seguia ao longe pelos caminhos. Ó o outro mundo, a morada abençoada pelo céu, e as sombras das árvores! O sul me recordava os miseráveis incidentes da minha infância, meus desesperos estivais, a terrível quantidade de força e de ciência que o destino sempre afastou de mim. Não! não passaremos o verão neste pais avaro onde não seremos jamais senão órfãos noivos. Quero que este braço enrijecido não arraste mais uma imagem querida.
As Pontes
Céus cinzentos de cristal! Um estranho desenho de pontes, retas estas, arqueadas aquelas, outras descendo ou caindo na oblíqua sobre as primeiras, e estas formas se renovando em outros circuitos iluminados do canal, mas todas são longas e leves que as margens, juncadas de cúpulas, se humilham e diminuem. Algumas dessas pontes estão ainda cobertas de escombros. Outras sustentam mastros, sinais, frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam e se prolongam,, cordas sobem as ribanceiras. Distingue-se uma jaqueta vermelha, talvez outras vestes e instrumentos de música. Serão árias populares, trechos e instrumentos senhoriais, restos de hinos públicos? A água é gris e azul, larga como um braço de mar. — Um raio branco, caindo do alto do céu, aniquila esta comédia.
Cidade
Sou em efêmero e não muito descontente cidadão de uma metrópole que se supõe moderna porque todo gosto conhecido foi subtraído tanto dos mobiliários e do exterior das casas quanto do traçado da cidade. Aqui não poderíeis assinalar os vestígios de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua estão reduzidas à sua mais simples expressão, enfim! Estes milhões de pessoas que não têm necessidade de se conhecer sobrelevam de maneira tão semelhante a educação, a profissão e a velhice, que a duração da vida deve ser varias vezes menos longa daquela que uma estatística insana encontra para os povos do continente. Assim como, de minha janela, vejo espectros novos circulando através da espessa e eterna fumaça de carvão, — nossa sombra dos bosques, nossa noite de verão! — Erínias novas, diante da choupana que é minha pátria e todo meu coração, pois tudo aqui se assemelha a isto, — a Morte sem prantos, nossa ativa filha e serva, um Amor desesperado, e um belo Crime choramingando na lama da rua.
Sulcos
À direita a aurora estival acorda as folhas e os vapores e os ruídos deste recanto do parque, e os declives da esquerda abrigam em sua sombra violeta os mil sulcos rápidos da estrada úmida. Desfile de magias. De fato: carros carregados de animais de madeira dourada, mastros e telas multicores, ao imenso galope de vinte cavalos de circo malhados, e as crianças e os homens montados nos mais espantosos animais; — vinte veículos, ornados, embandeirados, e floridos como carruagens antigas ou de contos, cheias de crianças ataviadas para uma pastoral suburbana. — Até ataúdes sob seus dosséis noturnos, erguendo os penachos de ébano, desfilando ao trote de grandes éguas azuis e negras.
Cidades
São cidades! É um povo para o qual se ergueram estes Aleganís e estes Líbanos de sonho! Chalés de cristais e de madeira que se movem sobre trilhos e roldanas invisíveis. As velhas crateras cingidas se colossos e palmeiras de cobre rugem melodiosamente em meio aos fogos. Festas de amor soam nos canais pendurados atrás dos chalés. A música de caça dos carrilhões grita nas gargantas. Corporações de cantores gigantes acorrem em vestimentas e auriflamas deslumbrantes como a luz dos cumes. Sobre as plataformas em meio aos abismos os Holandos trombeteiam sua bravura. Sobre as passarelas do abismo e os tetos dos albergues, o ardor do céu embandeira os mastros. O desmoronamento da apoteoses alcança os campos das alturas onde centauras seráficas evoluem entre as avalanches. Acima do nível dos mais altos cumes, um mar perturbado pelo nascimento eterno de Vênus, juncado de frotas orfeônicas e do rumor das perolas e das conchas preciosas, — o mar escurece às vezes com esplendores mortais. Sobre as vertentes, as colheitas de flores grandes como nossas armas e nossas taças, mugem. Cortejo de Mabs em túnicas roxas, opalinas, sobem das ravinas. No alto, as patas na cascata e nas sarças, os veados mamam em Diana. As Bacantes dos subúrbios soluçam e a lua arde e uiva. Vênus entra na caverna dos ferreiros e ermitões. Sinos cantam as idéias dos povos. Dos castelos construídos com ossos sai a música desconhecida. Todas as lendas evoluem e os alces se lançam às povoações. O paraíso das tormentas se desintegra. Os selvagens dançam sem parar a festa da noite. E, uma hora, mergulhei no movimento de um bulevar de Bagdá onde grupos cantaram a alegria do trabalho novo, sob uma brisa espessa, circulando sem poder eludir os fabulosos fantasmas dos montes onde devíamos tornar a encontrar-nos.
Que bons braços, que bela hora me devolverá esta região de onde vêm meus sonhos e meus mínimos movimentos?
Vagabundos
Mísero irmão! Quantas atrozes vigílias lhe devo! Eu não me encarregava fervorosamente desse empreendimento. Ridicularizava sua enfermidade. Por minha culpa voltaríamos ao exílio, escravos. Ele me atribuía um azar e uma inocência muito estranhas, e acrescentava razoes inquietantes.
Eu respondia, escarnecendo, a este satânico doutor, e terminava por alcançar a janela. Criava, além do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do futuro luxo noturno.
Após esta distração vagamente higiênica, estendia-me numa enxerga. E, quase todas as noites, mal havia dormido, o pobre irmão se levantava, a boca apodrecida, os olhos arrancados, — tal como ele se sonhava! — e me arrastava pela sala, uivando seu sonho de melancolia idiota. Eu, com efeito, com toda a sinceridade da alma, tinha assumido o compromisso de devolvê-lo a seu estado primitivo de filho do Sol, — e andamos errantes, nutridos pelo vinho das cavernas e pela bolacha das estradas, eu pressuroso de encontrar o lugar e a fórmula.
Cidades
A acrópole oficial, superior às mais colossais concepções de barbárie moderna. Impossível expressar o dia fosco produzido por este céu imutavelmente gris, o esplendor imperial das construções, e a neve eterna do solo. Num singular gosto de enormidade, foram reproduzidas todas as maravilhas clássicas da arquitetura. Assisto a exposições de pintura em locais vinte vezes mais vastos que Hampton-Court. Que pintura! Um Nabucodonosor norueguês fez construir as escadarias dos ministérios, os subalternos que pude ver são mais orgulhosos que...(1), e tremi ante o aspecto dos guardiães de colossos e oficiais de construções. Com o agrupamento dos edifícios em praças, pátios e terraços fechados, os cocheiros foram afastados. Os parques representam a natureza primitiva trabalhada por uma arte soberba. O bairro alto tem partes inexplicáveis: um braço de mar, sem navios, desenrola sua superfície de granizo azul entre cais juncados de candelabros gigantes. Uma ponte curta conduz a uma poterna exatamente sob a cúpula de Sainte-Chapelle. Esta cúpula é uma armação de aço artístico de cerca de quinze mil pés de diâmetro.
Em alguns pontos das passarelas de cobre, das plataformas, das escadarias que contornam os mercados e pilares, acreditei poder avaliar a profundeza da cidade! É prodígio que não pude compreender: quais são os níveis dos outros bairros sobre e sob a acrópole? Para o estrangeiro de nossa época, o reconhecimento é impossível. O bairro comercial é um circo de um só estilo, com galerias de arcadas. Não se vêem as lojas, mas a neve da calçada está esmagada; alguns nababos tão raros quanto os passantes de uma manhã de domingo em Londres, se dirigem até uma diligencia de diamantes. Alguns divãs de veludo vermelho: servem-se bebidas polares cujo preço varia de oitocentas a oito mil rupias. Ante a idéia de procurar espetáculos neste circo, respondo a mim mesmo que as lojas devem conter dramas bastante sombrios. Penso que há uma policia. Mas a lei deve ser de tal modo estranha, que renuncio a fazer uma idéia dos aventureiros daqui.
O subúrbio, tão elegante quanto uma bela rua de Paris, é favorecido por um ar luminoso. O elemento democrático conta com algumas centenas de almas. Lá, no entanto, as casas não continuam; o subúrbio se perde singularmente no campo, o “Condado” que ocupa o ocidente eterno das florestas e das plantações prodigiosas onde os gentis-homens selvagens perseguem suas crônicas sob a luz que se criou.
Vigílias
I
É o repouso iluminado, nem febre nem langor, no leito ou no prado.
É o amigo nem ardente nem débil. O amigo.
É a amada, nem atormentadora nem atormentada. A amada.
O ar e o mundo de modo algum buscados. A vida.
— Era então isso?
— E o sono refresca.
II
A iluminação volta à árvore da obra em construção. Das duas extremidades da sala, cenários quaisquer, elevações harmônicas se juntam. A muralha diante do vigia é uma sucessão fisiológica de cortes de frisas, de faixas atmosféricas e acidências geológicas. — Sonho intenso e rápido de grupos sentimentais com seres de todos os caracteres entre todas as aparências.
III
As lâmpadas e os tapetes da vigília fazem o ruído das ondas, à noite, ao longo do casco do navio e em torno do steerage.(2)
O mar da vigília, qual os seios de Amélia.
As tapeçarias, até a meia altura, entalhes de renda, aparência de esmeralda, onde se lançam as rolas da vigília.
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A prancha da lareira negra, reais sóis das praias: ah! Poços de magias; única visão da aurora, esta vez.
Mística
No declive da escarpa os anjos trocam suas vestes de lã sobre os relvados de ouro e esmeralda.
Prados de chamas saltam até o alto do mamilo. À esquerda, o terriço da aresta é pisado por todos os homicidas e todas as batalhas, e todos os ruídos desastrosos seguem sua curva. Atrás da aresta direita, a linha dos orientes, dos progressos.
E, enquanto, a faixa ao alto do quadro é formada pelo rumor giratório e saltitante das conchas dos mares e das noites humanas.
A doçura florida das estrelas e do céu e do resto desce diante da escarpa, como um cesto, — contra nosso rosto, e forma o abismo fragrante e azul lá embaixo.
Aurora
Tive nos braços a aurora de verão.
Nada se movia ainda na fachada dos palácios. A água estava morta. Os campos de sombra não abandonavam o caminho do bosque. Caminhei, despertando os hálitos vivos e mornos, e as pedrarias olharam, e as asas se ergueram sem ruído.
A primeira aventura foi, no sendeiro já pleno de frescos e pálidos fulgores, uma flor que disse seu nome.
Ri à loura wasserfall (3) que se desgrenhava através dos pinheiros: pelo cimo prateado reconheci a deusa.
Levantei então, um a um, os véus. Na alameda, agitando os braços. Na planície, onde a denunciei ao galo. Na grande cidade, ela fugia entre os campanários e as cúpulas, e correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, eu a perseguia.
No alto do caminho, perto de um bosque de loureiros, eu a envolvi com seus véus amontoados, e senti um pouco seu imenso corpo. A aurora e a criança caíram na falda do bosque.
Ao despertar era meio-dia.
Flores
De um degrau dourado, — entre os cordões de seda, os gazes grises, os veludos verdes e os discos de cristal que enegrecem como bronze ao sol, — vejo a digital abrir-se sobre um tapete de filigranas de prata, de olhos e cabeleiras.
Peças de ouro amarelo semeadas sobre a ágata, pilares de mogno sustentando uma cúpula de esmeraldas, buquês de cetim branco e de finas varas de rubis rodeiam a rosa d´água.
Qual um deus de enormes olhos azuis e de formas de neve, o mar e o céu atraem aos terraços de mármore a multidão de jovens e fortes rosas.
Noturno Vulgar
Um sopro abre fendas operádicas (4) nos tabiques, — transtorna a armação dos tetos carcomidos, — dispersa os limites das lareiras, — eclipsa as janelas. — Ao longo da vinha, tendo-me apoiado com o pé à uma gárgula, — desci nesta carruagem cuja época indicam suficientemente as vidraças convexas, os paramentos curvos e sofás contorcidos. Carro fúnebre de meus sonhos, solitário, casa de pastor de minha tolice, o veiculo fira em torno à relva da grande estrada apagada: e numa racha no alto do vidro à direita redemoinham s lívidas figuras lunares, folhas, seios; — Um verde e um azul muito intensos invadem a imagem. Desatrelagem nas imediações de uma mancha de cascalho.
— Aqui vai-se assobiar para a tempestade, e as Sodomas — e as Solimas, — e os animais ferozes e os exércitos.
— (Postilhão e bestas de sonho continuarão sob os mais sufocantes bosques, para afundar-se ate os olhos na fonte de seda)
— E enviar-nos, fustigados através das águas marulhentas e das bebidas derramadas, a rolar sob o ladrido dos cães de guarda...
— Um sopro dispersa os limites da lareira.
Marinha
Os carros de prata e cobre —
As proas de aço e prata —
Ferem a espuma, —
Agitam os tocos dos espinheiros.
As correntes da charneca,
E os sulcos imensos da vazante, Correm circularmente para o este,
Para os troncos do quebra-mar,
Cujo ângulo é castigado por turbilhões de luz.
Festa de Inverno
A cascata soa atrás das cabanas de ópera-cômica. Girândolas prolongam, nos pomares e nas alamedas vizinhas do Meandro, — os verdes e os vermelhos do crepúsculo. Ninfas de Horácio com penteados do Primeiro Império, — Rondas Siberiana, Chinesas de Boucher.
Angústia
Será possível que Ela (5) me faça perdoar as ambições continuamente aniquiladas, — que um final feliz compense as épocas de indigência, — que um dia de êxito nos adormeça sobre a vergonha da nossa fatal inabilidade.
(Ó palmas! diamante! — Amor, força! — mais alto que todas as alegrias e glórias! — de qualquer modo, em todas as partes, — demônio, deus, Juventude deste ser; eu!)
Que acidentes de magia cientifica e movimentos de fraternidade social sejam prezados como restituição progressiva da franqueza primeira?...
Mas a Vampiro que nos torna gentis ordena que nos divirtamos com o que ela nos deixa, ou que pelo contrário sejamos mais extravagantes.
Rolar até as feridas, pelo ar fatigante e o mar; até os suplícios, pelo silencio da águas e do ar mortíferos; até as torturas que riem, em seu silencio atrozmente agitado.
Metropolitano
Do estreito de índigo aos mares de Ossian, sobre a areia rósea e laranja que o céu cor de vinho lavou, acabam de subir e cruzar-se bulevares de cristal imediatamente habitadas por jovens famílias pobres que se alimentam nas fruteiras. Nenhuma riqueza. — A cidade!
Do deserto de betume fogem, completamente desbaratados, com lençóis de bruma escalonados em bandos pavorosos no céu que se recurva, recua e desce, formado pela mais sinistra negra que possa fazer o Oceano de luto, os cascos, as rodas, os barcos, as garupas. — A batalha!
Levanta a cabeça: esta ponte de madeira, arqueada; as ultimas hortas da Samaria; estas máscaras coloridas sob a lanterna fustigada pela noite fria; a ondina simplória de túnica farfalhante, no fundo do rio; estes crânios luminosos nos plantios de ervilhas — e as outras fantasmagorias — a campanha.
Caminhos bordados de grades e muros, contendo apenas seus pequenos bosques, e as atrozes flores que chamaríamos corações e irmãs, Damascos tomados pelo langor, — possessões de feéricas aristocracias ultra-renanas , japonesas, guaranis, aptas ainda para receber a música dos antigos — e há albergues que para sempre não mais se abrem — há princesas, e se não estás muito oprimido, o estudo dos astros — o céu.
Na manhã em que, com Ela, vos debatestes entre os resplendores da neve, estes lábios verdes, os cristais, as bandeiras negras e os raios azuis, e os perfumes púrpuras do sol dos pólos, — tua força.
Bárbaro
Muito após os dias e as estações, e os seres e os países,
O pavilhão de carne sangrenta sobre a seda dos mares e das flores árticas; (elas não existem.)
Restabelecido das velhas fanfarras de heroísmo — que nos atacam ainda o coração e a cabeça — longe dos antigos assassinos (6) —
Oh! o pavilhão de carne sangrenta sobre a seda dos mares e das flores árticas; (elas não existem.)
Dulçores!
Os braseiros, chovendo nas rajadas de geada, —Dulçores! — os fogos na chuva do vento de diamante lançada pelo coração terrestre por nós eternamente carbonizado. — O mundo! — (Longe dos velhos refúgios e das velhas chamas, que se ouvem, que se sentem,)
Os braseiros e as espumas. A música, virada aos abismos e choque dos flocos de gelo nos astros.
É Dulçores, ó mundo, ó música! E lá, as formas, os suores, as cabeleiras e os olhos, flutuando. E as lagrimas brancas, ferventes, — ó dulçores! — e a voz feminina que chegou ao fundo dos vulcões e das grutas árticas.
O pavilhão...
Promontório
A aurora de ouro e a noite tremente surpreendem nosso bergantim em alto-mar frente a esta mansão e suas dependências, que formam um promontório tão vasto como o Épiro e o Peloponeso ou como a grande ilha do Japão, ou como a Arábia! Santuários que são iluminados pela reaparição das teorias, imensas vistas da defesa das costas modernas; dunas ornadas de cálidas flores e bacanais; grandes canais de Cartago e diques de uma Veneza suspeita; débeis erupções de Etnas e fendas de flores e águas dos glaciares; lavadouros rodeados de álamos da Alemanha; declives de parques singulares pendendo dos cimos da Árvore do Japão; e as fachadas circulares dos “Royal” ou dos “Grand” de Scarbro´ ou do Brooklyn; e suas ferrovias flanqueiam, cavam, dominam as disposições deste Hotel, escolhidas na história das mais elegantes e colossais construções da Itália, da América e da Ásia, e cujos terraços e janelas agora cheios de luzes, bebidas e brisas perfumadas, estão abertos ao espírito dos viajantes e dos nobres — que permitem, nas horas do dia, a todas as tarantelas das praias, — e mesmo aos ritornelos dos vales ilustres da arte, decorar maravilhosamente as fachadas do Palácio-Promontório.
Cenas
A antiga Comédia prossegue em suas harmonias e divide seus Idílios:
Bulevares de teatro de feira.
Um longo quebra-mar de madeira de um extremo ao outro de um campo rochoso onde a multidão bárbara revoluciona sob as árvores despojadas.
Nos corredores de gaze negra, seguindo o andar dos passeantes pelas lanternas e pelas folhas,
Pássaros precipitam-se sobre um pontão de alvenaria movido pelo arquipélago coberto das embarcações dos espectadores.
Cenas líricas com acompanhamento de flauta e tambor se inclinam nos retiros dispostos sob os tetos, em torno dos salões de clubes modernos ou das salas do Oriente antigo.
O espetáculo mágico no cimo de um anfiteatro coroado de bosques, — ou se agita e modula para os Beócios, na sombra das florestas que se movem, na aresta das culturas.
A ópera cômica se divide num palco na aresta de intersecção de dez tabiques que se erguem na galeria de fogos.
Noite Histórica
Em qualquer noite, por exemplo, em que se encontre o turista ingênuo, afastado de nossos horrores econômicos, a mão de um mestre anima o clavecino dos prados; joga-se baralho no fundo do lago, espelho evocador das rainhas e das favoritas; têm-se santos, véus, e os fios da harmonia, e os cromatismos legendários, no crepúsculo.
Ele estremece à passagem das caças e das hordas. A comedia goteja sobre os teatros de feira da relva. E o embaraço dos pobres e dos débeis nesses planos estúpidos!
À sua visão escrava, a Alemanha ergue seus estrados em direção às luas; os desertos tártaros se iluminam; as revoltas antigas fervilham no centro do Celeste Império; pelas escadarias e cadeiras de rochedos, um pequeno mundo lívido e chato, África e Ocidente, vai edificar-se. Depois um balé de mares e noites conhecidas, uma química sem valor, e melodias impossíveis.
A mesma magia burguesa em todos os pontos em que nos deposite o correio! O físico mais elementar sente que já não mais é possível submeter-se à esta atmosfera pessoal, bruma de remorsos físicos, cuja constatação já é um tormento.
Não! O momento da estufa, dos mares arrancados, dos abraços subterrâneos, do planeta desaparecido, e dos extermínios conseqüentes, certezas tão pouco malignamente assinaladas na Bíblia e pelas Nornas (7) e que caberá ao ser severo vigiar. — No entanto, de modo algum será uma ação legendária!
Bottom(8)
Sendo muito espinhosa a realidade para meu forte caráter, — encontrei-me, no entanto, na casa da Senhora, como um grande pássaro gris azulado voando até as molduras do teto e arrastando a asa nas sombras da noite.
Fui, ao pé do dossel que sustinha suas jóias adoradas e suas obras-primas físicas, um gordo urso de gengivas violetas e de pêlo encanecido pela amargura, os olhos nos cristais e nas pratarias dos consolos.
Tudo se fez sombra e aquário ardente. Pela manhã, — belicosa aurora de junho, — corri aos campos, asno, trombeteando e brandindo minha queixa até que as Sabinas vieram lançar-se ao meu peito.
H
Todas as monstruosidades violam os gestos atrozes de Hortênsia. Sua solidão é mecânica erótica, sua lassitude, a dinâmica amorosa. Sob a vigilância de uma meninice, ela foi, em numerosas épocas, a higiene ardente das raças. Sua porta está aberta à miséria. Lá, a moralidade dos seres atuais se desagrega em sua paixão ou em sua ação. — O terrível frêmito dos amores noviços no solo sangrento e pelo hidrogênio esplendoroso! achai Hortência.
Movimento
O movimento em ziguezague na encosta das quedas do rio,
O abismo da popa,
A celeridade da rampa,
A enorme passagem da corrente
Conduzem através dos fulgores inauditos
E a novidade química
Os viajantes rodeados pelos turbilhões do vale
E da corrente.
São os conquistadores do mundo
Que buscam a fortuna química pessoal;
O esporte e o conforto viajam com eles;
Levam consigo a educação
Das raças, classes e animais, nesta nave
Repouso e vertigem
À luz diluviana,
Nas terríveis noites de estudo.
Porque na conversa entre os aparelhos, o sangue, as flores, o fogo, as jóias,
Nas contas agitadas nesta borda fugitiva
— Vê-se, retumbante como um dique além da rota hidráulica motriz,
Monstruosa, iluminando-se sem fim, — sua provisão de estudos;
Caçados no êxtase harmônico,
E o heroísmo da descoberta.
Nos acidentes atmosféricos mais surpreendentes,
Um jovem casal se isola na arca,
— É a antiga selvageria que se perdoa? —
E canta e se situa.
Devoção
A minha irmã Luísa Vanaen de Voringhem: — sua coifa azul voltada para o mar do Norte. — Para os náufragos.
A minha irmã Léonie Aubois d´Ashby. Bau! (9) — A relva de verão sussurrante e fétida. — Para a febre das mães e dos filhos.
A Lulu, — demônio — que conservou um gosto pelos oratórios do tempo das Amigas e de sua educação incompleta. Para os homens. — À Senhora***.
Ao adolescente que fui. A esse santo ancião, ermida ou missão.
Ao espírito dos pobres. E a um muito alto clero.
Assim como a todo culto em um lugar de culto memorial e entre acontecimentos tais que seja preciso entregar-se, obedecendo as aspirações do momento ou ainda ao nosso próprio vício sério.
Essa noite em Circeto dos altos gelos, gordurenta como o peixe, e colorida como os dez meses da noite vermelha, — (seu coração de âmbar e spunk), (10), — para minha única oração muda como essas regiões da noite, e precedendo façanhas mais violentas do que este caos polar.
A qualquer preço e sob todos os ventos, mesmo em viagens metafísicas. — Mas mais então.
Democracia
“A bandeira tremula na paisagem imunda, a nossa gíria abafa o tambor.
“Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.
“Aos países picantes e sem têmpera! — a serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.
“Adeus aqui, não importa onde, Recrutas de boa vontade, teremos a filosofia feroz; ignorantes por obra da ciência, extenuados pelo conforto; a explosão para o mundo que marcha. Para frente, a caminho!”
Fairy (11)
Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis no silêncio astral. O ardor do verão foi confiado a pássaros mudos e a indolência requerida a um barco de lutos sem preço por enseadas de amores mortos e de perfumes atenuantes.
— Após o momento da cantiga das lenhadoras no rumor da torrente sob a ruína dos bosques, do chocalho do gado no eco dos vales, e dos gritos das estepes. —
Para a infância de Helena fremiram as espessuras e as sombras, — e o seio dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e sua dança superiores ainda às cintilações preciosas, às influencias frias, ao prazer do cenário e da hora únicos.
Guerra
Criança ainda, certos céus aperfeiçoaram minha ótica: todos os caracteres matizaram minha fisionomia. Os Fenômenos se sublevaram. — Atualmente, a inflexão eterna dos momentos e o infinito das matemáticas me perseguem por este mundo onde padeço todos os êxitos civis, respeitado pela infância estranha e por afeições enormes. — Sonho com uma guerra, de direito e de força, de lógica bem imprevista.
É tão simples quanto uma frase musical.
Juventude
I
DomingoOs cálculos de lado, a inevitável descida do céu, e a visita das lembranças e a assembléia dos ritmos ocupam a morada, a cabeça e o mundo do espírito.
Um cavalo galopa no hipódromo suburbano e ao longo das plantações e arvoredos, atingido pelo carbúnculo. Uma miserável mulher de teatro, nalguma parte do mundo, suspira após abandonos improváveis. Os desesperados (12) enlanguecem após a tempestade, a embriaguez e as feridas. Crianças pequenas afogam maldições ao longo dos rios. —
II
SonetoHomem de constituição ordinária, a carne não era um fruto suspenso no pomar, ó dias pueris! O corpo, um tesouro a dissipar; ó amar, o perigo ou a força de Psiquê? A terra possuía vertentes férteis em príncipes e artistas, e a descendência e a raça nos impeliam aos crimes e aos lutos: o mundo, vossa fortuna e vosso perigo. Mas agora, este labor cumprido, tu, teus cálculos, tu, tuas impaciências, não são mais que vossa dança e vossa voz, não fixadas e de modo algum forçadas e de êxito, na humanidade fraternal e discreta pelo universo sem imagens; — a força e o direito refletem a dança e a voz somente agora apreciadas.
III
Vinte AnosAs vozes instrutivas exiladas...A ingenuidade física amargamente sossegada...Adágio. Ah! O egoísmo infinito da adolescência, o otimismo estudioso: como estava o mundo cheio de flores este verão! Os ares e as formas agonizantes...Um coro, para acalmar a impotência e a ausência! Um coro de vidros de melodias noturnas...Com efeito, os nervos vão logo falhar.
IV
Ainda permaneces na tentação de Antonio (13). O refocilamento do zelo cerceado, os tiques de orgulho pueril, o abatimento e o espanto. Mas te consagrarás a esse trabalho: todas as possibilidades harmônicas e arquiteturais gravitarão em torno da tua morada. Seres perfeitos, imprevistos, se oferecerão às tuas experiências. Ás tuas cercanias afluirá sonhadoramente a curiosidade de antigas multidões e de luxos ociosos. Tua memória e teus sentidos não serão o alimento de teu impulso criador. Quanto ao mundo, quando dele saíres, em que se terá convertido? Em todo caso, nada das aparências atuais.
Saldo
À venda o que os judeus não venderam, o que nem a nobreza nem o crime degustaram, o que o amor maldito e a probidade infernal das massas ignoram; o que nem a ciência nem o tempo hão de reconhecer;
As Vozes reconstituídas; o despertar fraterno de todas as energias corais e orquestrais e suas aplicações instantâneas; a ocasião, única, de liberar nossos sentidos!
À venda os Corpos sem preço, fora de toda raça, de todo mundo, de todo sexo, de toda descendência! As riquezas brotando a cada passo! Saldo de diamantes sem controle!
À venda a anarquia para as massas; a satisfação irreprimível para os amadores superiores; a morte atroz para os fiéis e os amantes!
À venda as habitações e as migrações, esportes, magias e comodidades perfeitas, e o ruído, o movimento e o futuro que criam!
À venda as aplicações de cálculo e os inauditos saltos de harmonia. Os achados e os termos insuspeitados, possessão imediata,
Impulso insensato, e infinito em direção aos esplendores invisíveis, às delicias insensíveis, — e suas secretas loucuras para cada vício — e sua alegria espantosa para a multidão.
À venda os Corpos, as vozes, a imensa opulência inquestionável, o que não venderá jamais. Os vendedores não esgotaram o saldo! Os viajantes não têm porque perder sua comissão tão cedo!
Gênio
Ele é a afeição e o presente pois fez a casa aberta ao inverno espumoso e ao rumor do verão, ele que purificou as bebidas e os alimentos, ele que é o encanto dos lugares fugitivos e a delicia sobre-humana das estações. Ele é a afeição e o futuro, a força e o amor que nós, em pé sobre os ódios e os desgostos, vemos passar no céu de tempestade e nos estandartes de êxtase.
Ele é o amor, medida perfeita e reinventada, razão maravilhosa e imprevista, e eternidade: máquina amada das qualidades fatais. Tivemos todo o espanto de sua concessão e da nossa: ô fruição de nossa saúde, impulso de nossas faculdades, afeição egoísta e paixão por ele, ele que nos ama em razão de sua vida infinita...
E nós o evocamos e ele viaja...E se a Adoração vai embora, sua promessa ressoa: “Para trás etsas superstições, estes corpos antigos, estas famílias e idades. É esta a época que soçobrou!”
Ele não irá embora, não tornará a descer de um céu, não cumprirá a redenção das cóleras das mulheres e das alegrias dos homens e de todo este pecado; porque isto foi feito, ele existindo, e sendo amado.
Ó suas respirações, suas cabeças, suas progressões; a terrível celeridade da perfeição das formas e da ação!
Ó fecundidade do espírito e imensidão do universo!
Seu corpo! O desprendimento sonhado, o quebrantamento da graça perpassada por violência nova!
Seu olhar, seu olhar! todas as genuflexões antigas e as penas redimidas após sua passagem.
Seu dia! a abolição de todos os sofrimentos sonoros e móveis na mais intensa música.
Seu passo! as migrações mais enormes que as antigas invasões.
Ó ele e nós! o orgulho mais benévolo que as caridades perdidas.
Ó mundo! e o canto claro dos novos flagelos!
Ele nos conheceu a todos e a todos nos amou. Saibamos, esta noite de inverno, de cabo em cabo, do pólo tumultuoso ao castelo, da multidão à praia, de olhares em olhares, forças e sentimentos cansados, chamá-lo e vê-lo, e despedi-lo, e sob as marés e no alto dos desertos de neve, seguir suas visões, seus alentos, seu corpo, sua luz.
Notas do Tradutor
(1) — Palavra ilegível no texto do manuscrito Graux. Editores optam por: Brennus, Bravi, Brâmanes, ou ainda Brahmas.
(2) — Steerage: palavra inglesa: porões do navio.
(3) — Cascata. Em alemão, no original.
(4) — Palavra de origem inglesa (operatic), referente à ópera.
(5) — Ela, para alguns comentaristas será a Mulher, para outros a Religião. Ou ainda: a Morte, a Razão, o Método, a Música, a Poesia. Provocar discussões eis a vantagem de ser abstrato.
(6) — No caso, “fumadores de haxixe”, de onde, aliás, proviria a palavra “assassino”.
(7) — Deusas escandinavas que presidem aos destinos dos homens, equivalentes às Parcas.
(8) — Alusão, talvez, a Bottom, de Sonho de Uma Noite de Verão, que se metamorfoseia em asno.
(9) — Bau: deusa caldéia do azar.
(10) — Palavra inglesa que admite vários significados: isca, fungo, madeira podre, e como adjetivo: fogoso, violento.
(11) — Palavra inglesa: fada.
(12) — Rimbaud escreve les desesperadoes, que, no inglês, significa: malfeitor, bandido temível.
(13) — Alusão à La Tentation de Saint Antoine, de Flaubert.
Tradução ©2012 — Janer Cristaldo
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Agosto 2012
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