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Cardeal Duque de Richelieu

TESTAMENTO POLÍTICO

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Testamento Político
Cardeal Duque de Richelieu (1585-1642)
Tradução: Davi Carneiro

Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
www.ngarcia.org
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

© 2002 — Cardeal Duque de Richelieu


 

ÍNDICE

Apresentação 
Biografia do autor 
Aviso do Editor (de 1709) 

Testamento Político do Cardeal Duque de Richelieu ao rei 

PRIMEIRA PARTE 
CAPÍTULO I 
Sucinta narração de todas as grandes ações do Rei até a paz, feita no ano de...
CAPÍTULO II 
Das reformas da ordem eclesiástica
     Seção I
     Seção II
     Seção III
     Seção IV 
     Seção V 
     Seção VI 
     Seção VII 
     Seção VIII 
     Seção IX 
     Seção X 
     Seção XI 
     Seção XII 
CAPÍTULO III 
Da nobreza
     Seção I 
     Seção II 
CAPÍTULO IV 
Da terceira ordem do reino
     Seção I 
     Seção II 
     Seção III 
     Seção IV 
     Seção V 
CAPÍTULO V 
Que considera o Estado em si mesmo
     Seção I
     Seção II
     Seção III
CAPÍTULO VI 
Que representa ao rei o que se estima como devendo considerar em relação à sua pessoa
CAPÍTULO VII 
Que faz ver o estado presente da casa do rei e declara o que parece necessário para pô-la no estado em que deve estar
CAPÍTULO VIII 
Do conselho do príncipe
     Seção I
     Seção II
     Seção III
     Seção IV
     Seção V
     Seção VI
     Seção VII

SEGUNDA PARTE 
CAPÍTULO I 
O primeiro fundamento de um Estado é o estabelecimento do reino de Deus
CAPÍTULO II 
A razão deve ser a regra e a diretriz de um Estado
CAPÍTULO III 
Que mostra que os interesses públicos devem ser o único fim daqueles que governam os Estados, ou que pelo menos devem ser preferidos aos particulares
CAPÍTULO IV 
Quanto a previdência é necessária ao Governo de um Estado
CAPÍTULO V 
A pena e a recompensa são dois pontos completamente necessários à direção dos Estados
CAPÍTULO VI 
Um tratar contínuo não contribui pouco ao bom sucesso dos negócios
CAPÍTULO VII 
Uma das maiores vantagens que se possam conseguir para um Estado é destinar cada um ao emprego para o qual é mais próprio
CAPÍTULO VIII 
Do mal que os aduladores e intrigantes causam aos Estados, e quanto é importante afastá-los de junto dos reis, banindo-os da sua corte
CAPÍTULO IX 
Que trata do poder do príncipe; e que se divide em oito seções
     Seção I
     Seção II
     Seção III
     Seção IV
     Seção V
     Seção VI
     Seção VII
     Seção VIII
CAPÍTULO X 
Que conclui esta obra, fazendo conhecer que todo o conteúdo dela será inútil se os príncipes e seus ministros não são tão apegados ao governo do Estado, que, nada omitindo daquilo que é adstrito ao seu cargo, não abusem nunca do seu poder 

POSTFÁCIO DO TRADUTOR 
NOTAS 


 

TESTAMENTO POLÍTICO

[imagem]

“Richelieu em comando.
Batalha de La Rochelle”

Cardeal Duque de
Richelieu


 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

Richelieu tornou-se um personagem histórico bastante conhecido. Essa popularidade se deve, em grande parte, a Alexandre Dumas, especialmente por sua obra “Os três mosqueteiros”, que virou filme, até chegou aos quadrinhos.

Há algumas distorções, contudo. A história que permanece fala de um cardeal arbitrário, arrogante, ambicioso, cruel e devasso. Essa visão, se não é falsa, é parcial.

Richelieu foi um grande estrategista militar, promoveu, enfrentou e venceu inúmeras guerras e batalhas. Como estadista não merece críticas, sua hábil genialidade na condução dos negócios públicos foi impecável. O “Testamento Político”, obra que aqui divulgamos é uma prova dessa afirmação. Como fez Maquiavel, em “O Príncipe”, o Cardeal aconselha e orienta o governante sobre a arte de bem administrar o Estado. Ensina como promover a igualdade, justeza das leis, importância da religião, papel da educação, uso da violência, tudo enfim que importa ao líder de uma grande nação.

Não se sabe quantas mulheres Richelieu possuiu, mas amante teve uma só, a quem foi fiel até a morte: “La France”.


 

BIOGRAFIA DO AUTOR

[imagem]

 

Richelieu era um menino doentio e triste. Armand Jean du Plessis (o seu nome verdadeiro antes de ser, simplesmente, Richelieu) nasceu em 1585 de uma família pobre da pequena nobreza. O pai descendia dos Du Plessis Richelieu, aristocratas provincianos, avarentos e brigões. O avô foi pajem do rei Carlos IX e casou com a pobre e orgulhosa Françoise de Rochechouart, um dos nomes mais antigos da França (madame de Montespan, a favorita de Luís XIV, era também uma Rochechouart). O velho ficou indignado quando um dos seus filhos, François du Plessis, protegido do rei Henrique III, casou com a filha de um advogado de Paris, uma burguesa: Suzanne de la Porte. Mas Suzanne era rica e os Richelieu tinham grande necessidade de dinheiro. A altiva Rochechouart, apesar da fortuna da nora, tratou-a sempre com pouco caso. E o pequeno Armand teve uma mãe resignada, abatida, humilde e doce. Amou-a de todo o coração e este foi, acredita-se, o seu único amor. Ele era o terceiro de cinco filhos — três homens e duas mulheres — e deveria, como mandava o costume naquele tempo, deixar os títulos, honras e glórias ao irmão mais velho. O pequeno Richelieu não pensou em rebelar-se contra essa desvantagem mas, em seus silêncios prolongados, nos freqüentes acessos de febre, remoeu com certeza pensamentos amargos. Era muito inteligente e, mandado pela família para Paris, onde deveria estudar num dos colégios mais qualificados, o de Navarre, logo destacou-se pela rapidez no aprender e pelo instinto de liderança. Tinha nove anos. “Havia nele — escreveu um colega — o desejo constante de ser elogiado e, ao mesmo tempo, o medo da reprovação”.

Com 16 anos saiu do colégio e escolheu a carreira das armas, matriculando-se na escola militar dirigida por Antoine de Pulvinci, ex-embaixador, cortesão requintado, grande cavaleiro. Armand du Plessis teve então que submeter seu físico franzino a dura disciplina. Brilhou nos exercícios de equitação e nos de tiro, tal como se havia distinguido nos estudos do colégio de Navarre. Muitas vezes, tiritando de febre, obrigava seu corpo a resistir — e conseguia.

A vida militar agradava ao jovem Richelieu e ele teria continuado nela se uma necessidade familiar não o tivesse afastado das armas. Morre um tio seu, que recebia os benefícios financeiros do arcebispado de Luçon, doado aos Richelieu por Henrique III. E o irmão de Armand, que deveria ser o herdeiro, não quis saber do título, porque havia escolhido a humildade e a pobreza, tornando-se monge. Perder o bispado de Luçon significava, para a família, perder rendas indispensáveis. Armand Jean sacrificou-se e tomou o lugar do irmão, revelando submissão que surpreende, quando se pensa na satisfação que lhe dava a carreira militar. Mas sua ambição já era grande, e ele pensou certamente que o título de bispo seria mais convidativo do que o de general, tanto mais que poderia consegui-lo rapidamente.

Ei-lo, com apenas 16 anos, no bispado de Luçon, curvado sobre textos eclesiásticos. Estudou com tanto afinco que o rei Henrique IV solicitou ao seu embaixador no Vaticano uma dispensa papal para o jovem bispo. Armand viajou então para Roma, a fim de completar seus estudos religiosos. Lá permaneceu durante dois anos, conseguindo penetrar nos meios vaticanos e fazer-se notar pelo papa Paulo V. Parece que o pontífice, tendo ouvido um sermão daquele estudioso tão aplicado, elogiou-o com estas palavras: “Dotado de uma sabedoria acima de tua idade, mereces ser consagrado antes do tempo prescrito”. Armand Jean tinha na época 22 anos, mas disse ao papa ser mais velho. Tallemant des Réaux conta: “Foi para Roma e consagrado bispo. O papa perguntou-lhe se tinha a idade necessária para a nomeação: ele respondeu que sim e, depois, pediu absolvição por ter dito uma mentira. E o papa respondeu: Questo giovane sara un gran turbo’ (Este moço será um homem muito astucioso)”.

Armand du Plessis foi consagrado bispo em 1607, com a idade de 22 anos. Regressou então a Paris para defender tese de teologia e, levado pelo irmão mais velho, freqüentou a corte. Logo percebeu as intrigas, as baixezas dos cortesãos. Nenhum dos segredos daquele meio corrompido lhe escapou. Foi tão hábil que conseguiu conquistar Henrique IX, que o chamava “mon éveque” (o meu bispo). Richelieu, contudo, era inteligente demais para não compreender que a sua presença na corte, naquele momento, não tinha maior sentido. Melhor voltar a Luçon, ser simplesmente bispo.

O bispado de Luçon era um dos mais pobres da França. Graças à proteção do soberano, Richelieu conseguiu torná-lo próspero, criando até uma biblioteca. Naqueles anos — que podem ser definidos como de voluntário exílio — travou conhecimento com François Le Clerc du Tremblay, que passou para a história sob o simples nome de “padre José”. Foi esse o início de uma amizade que se tornaria preciosa para Richelieu, pois o padre José, que será mais tarde, chamado a “Eminência Parda”, tornou-se indispensável a Richelieu, durante os 18 anos de poder do futuro cardeal. Por outro lado, o padre José, tendo compreendido a inteligência do jovem bispo e desejando permanecer um simples capuchinho, transferiu para ele ambições e desígnios.

Em 1610 o rei Henrique IV morreu, assassinado por Ravaillac. Sua esposa, Maria de Médicis, tornou-se regente, sendo seu filho, o futuro Luís XIII, ainda menor. O bispo de Luçon considerou que uma mulher poderia ser conquistada mais facilmente do que um homem. Voltou para a corte, em Paris, com intenções bem definidas. Conseguiu desde logo agradar a Maria de Médicis. A rainha, porém, tinha junto de si duas pessoas poderosas e temíveis: Concini, marechal de Ancre, e sua esposa, Leonora Galigai. Eram, ambos, florentinos como Maria, e haviam acompanhado a soberana até o dia de seu casamento com Henrique IV. Leonora Galigai, inteligente e astuciosa, após ter sido companheira de infância de Maria de Médicis, tinha-se transformado na sua conselheira principal. Concini era o favorito da coroa. Um casal hábil e ávido: haviam conseguido poder e acumulado títulos e riquezas. Mas toda a corte e toda Paris os detestavam. Armand du Plessis não hesitou em curvar-se perante Concini, ao qual ofereceu, por carta, os seus serviços. Foi mal sucedido: o marechal era um vaidoso que se acreditava invulnerável. Parece estranho que um homem inteligente como Richelieu não tivesse compreendido que seria mais fácil aproximar-se do jovem rei. Luís XIII era menosprezado pela mãe e pelos dois Concini, que haviam prejudicado sua formação, tirando-lhe a oportunidade de instruir-se e de entrar em contato com pessoas influentes e cultas. O pequeno Luís vivia isolado, mal nutrido, mal vestido: seus passatempos eram a mecânica e a caça. Sua timidez natural, aumentada pela consciência de ser propositalmente ignorado, chegava às raias da hipocondria. Amava a mãe, mas nunca a teve. E isso o marcou profundamente.

Richelieu compreendeu que adular Concini era tempo perdido. Abandonou a corte e voltou a Luçon: outro exílio voluntário que padeceu cerrando os dentes, assaltado por depressões terríveis e acessos de febre. Em 1615, porém, após o casamento do rei de 14 anos com Ana da Áustria, foi chamado novamente à corte, na qualidade de confessor da jovem rainha. E em 1616 recebeu o primeiro cargo político: foi nomeado secretário de Estado para os negócios exteriores. Era o início da escalada.

Sua vida na corte não foi fácil. Apesar de toda sua habilidade, não conseguia agradar Ana da Áustria. E continuava a adular Maria de Médicis e a confidente Leonora Galigai. Estava na flor da idade: alto, elegante, o rosto triangular iluminado por belos olhos negros. Com seu longo hábito roxo, suas maneiras decididas, mais de soldado que de bispo, agradava às mulheres. E não era, com certeza, uma época em que a condição de religioso impedisse relações amorosas. Muitos historiadores afirmam que Armand du Plessis foi amante tanto de Maria de Médicis, quanto de Leonora Galigai. A acusação é plausível. Richelieu sabia aproveitar as oportunidades. E quando o seu interesse assim o aconselhou, abandonou a menos importante das duas mulheres, embora ela fosse, devido à sua inteligência, a mais perigosa: Leonora Galigai. Maria de Médicis era inconstante, teimosa e violenta. Mas era a rainha-mãe. Richelieu não a deixou nem no momento mais difícil da sua vida, quando o marechal de Ancre foi condenado à morte por ordem de Luís XIII. n O jovem rei sofria vendo que ninguém lhe dava importância. O favorito da mãe governava com arrogância; os cortesãos, odiando-o, obedeciam, pois não tinham o menor respeito pelo rei de 16 anos. Em abril de 1617, Luís XIII tornou uma decisão: se queria ser o rei, devia derrubar Concini. Mas como? Não tinha ao seu lado homens de confiança: seu conselheiro e favorito, o homem do qual gostava mais do que de sua jovem a esposa, o duque de Luynes — belo, efeminado, fraco e sem idéias — não seria capaz de grandes gestos. O rei teve uma crise atormentada de dúvidas, mas depois, como todos os tímidos, tomou a atitude mais drástica: matar Concini, pois nem o exílio, nem o cárcere, seriam suficientes para torná-lo inofensivo. Chamou o comandante da sua guarda, Vitry, e deu-lhe ordem de prender o marechal. Vitry odiava Concini. Perguntou: “E se ele o se rebelar?” Luís XIII respondeu: “Capitão, não conheceis vosso dever?”

No dia estabelecido para a operação, Vitry, com uma escolta de oficiais armados, esperou que Concini o atravessasse, como era seu costume, a ponte do palácio do Louvre que levava aos aposentos de Maria de Médicis. Aproximou-se então dele. O marechal, atrevido, elegante, coberto de jóias, vinha lendo uma carta. Levantou os olhos e observou distraidamente Vitry. Este, agarrando-o pelo braço, falou: “Em nome do rei, devo prendê-lo”. Concini, espantado, esqueceu o francês e exclamou em italiano: “A me?”

Mal tinha terminado quando os oficiais sacaram suas pistolas e atiraram a queima-roupa no rosto do favorito, atravessando-o depois com suas espadas.

Luís XIII havia acompanhado a cena de uma janela. Virou-se para os presentes e bradou: “Agora sou o rei de verdade!...” Uma aclamação explodiu: “Viva o rei!” A multidão que se formara perto das portas do Louvre entrou, apoderou-se do corpo de Concini e arrastou-o pelas ruas de Paris, despedaçando-o.

Leonora Galigai foi surpreendida em seus aposentos pelos homens armados. Compreendendo o que se passava, teve um ataque histérico. Os olhos revirados, a boca espumando, contorcia-se na cama, debaixo da qual escondia suas jóias, muitas delas pertencentes à coroa. As contorções, os gritos, confirmaram a suspeita de que fosse bruxa. E como bruxa foi processada e queimada em praça pública.

Maria de Médicis viu-se exilada pelo filho. Richelieu seguiu-a. Por conselho do duque de Luynes, recebeu esta missão de Luís XIII, que pouco o apreciava, mas conhecia seu talento. Em Blois, o castelo em que Maria foi presa, Richelieu fez duplo jogo: espionava a rainha e mantinha Luynes a par de todos os seus movimentos. Na sombra, o padre José tramava para desfazer as desconfianças de Luís XIII que, embora apegado à mãe, temia-a e queria mantê-la afastada do trono. Richelieu deveria ser o seu agente. Maria de Médicis já próxima da idade crítica, ainda bela, gorducha e corada, não era insensível aos encantos do bispo, mas não esquecia que era uma Médicis. Ao seu lado, amargando frustrações, pois devia tratar com uma mulher teimosa e violenta, Richelieu procurava ganhar os ouvidos de Luís XIII, denunciando os complôs da rainha-mãe. Não conseguia vencer as resistências nem a antipatia do rei porque Luynes, que ambicionava ser o homem mais poderoso da França, tornou-se seu inimigo. Apesar de sua pouca inteligência, Luynes havia avaliado a força intelectual e a ambição de Richelieu.

Combateu-o e, de acordo com o rei, impediu que, a pedido de Maria de Médicis, fosse nomeado cardeal. Richelieu, de fato, só conseguiu vestir a púrpura cardinalícia após o falecimento de Luynes, em 1621.

Luís XIII achou-se então sozinho. Olhando à volta, só via cortesãos ávidos de poder, senhores de renome que o desprezavam e, através de inúmeras intrigas, procuravam tomar o seu lugar. Tinha no íntimo uma força secreta: a consciência da própria posição. Compreendeu que devia ter perto do trono um homem decidido, inteligente, audacioso: Richelieu. Vencendo sua antipatia — que se transformou depois cio sincera afeição — nomeou-o ministro. Corria o ano 1624. Somente em 1629, porém, Richelieu conseguiu ser primeiro-ministro. Começou então seu verdadeiro poder e a longa colaboração com Luís XIII, essa extraordinária amizade que uniu durante 8 anos dois homens igualmente doentios, recalcados, misteriosos, mas animados por uma paixão: realizar a unidade da França. O historiador Philippe Erlanger escreve: “Os dois homens custaram a unir-se. Luís, adolescente, feminino, detestava o padre político, o conselheiro demasiadamente íntimo da mãe. Mas afinal reconheceu aquela inteligência dominadora. Não foi para ganhar o coração da mãe, nem devido às condições deploráveis dos negócios do Estado, que convidou o cardeal. Foi porque compreendeu que Richelieu era homem de ampla visão e, também, de ação. Os ministros anteriores acreditavam chegar ao poder explorando as conhecidas fraquezas do rei. O cardeal, ao contrário, resolveu encorajar a atracão do enigmático Luís XIII pela grandeur, a grandeza. E foi bem sucedido. O rei convenceu-se de que contava com um homem de gênio.

O resto tornou-se secundário. Agora o rei não podia mais dispensar o “maior servidor que a França teve”. E isto é verdade. Richelieu foi um grande servidor da França e encontrou, como ele próprio escreveu, “ o melhor senhor do mundo”. Desde o momento em que subiu ao poder não teve mais maneiras hipócritas, objetivos dissimulados, nem foi mais o grande premiado pelo papa. Foi um homem decidido, muitas vezes cruel, de vistas abertas e voltadas para tornar absoluto o poder do soberano.


 

AVISO DO EDITOR (de 1709)

 

Seria surpreendente que este Testamento Político do Cardeal de Richelieu tivesse podido ficar escondido durante tanto tempo, se sua importância e o uso a que ele o havia destinado não dessem a conhecer que não tinha a intenção de torná-lo manifesto.

Mas como os Mistérios não vivem ordinariamente senão período curto, e como não é possível que escritos dessa natureza não cheguem às mãos de gente pouco discreta, não há de que se espantar se caem enfim em mãos liberais que de boa mente transmitem a todo o mundo.

Seria fazer mau juízo do julgamento público, pensar que pudesse desconhecer esta obra e que não se pudesse ser circunspecto para prevenir-se contra falsidades: É impossível depois da leitura deste livro que não se percebam todas as características espirituais desse Grande Homem. A elevação e a beleza do seu gênio, o mais extenso que se viu desde longo tempo, juntas à nobreza de suas expressões encontram-se inteiramente aqui; mas além disso, que diversidade de assuntos não encontramos? Eles são todos tratados com tanta solidez que se vê bem que os conhecia por uma profunda meditação e por experiência consumada, sendo só ele capaz de os esclarecer.

Se temos prazer lendo nos melhores autores as Reflexões e os preceitos políticos que exornam sobre os principais acontecimentos que relatam, o prazer diminui quando se considera que a maior parte só raciocina depois do feito e no gabinete e que teria dificuldade de desvencilhar-se de negociações insignificantes ou da menor intriga espinhosa.

Mas isso não aconteceu com este Testamento Político.

É um favorito e um primeiro-ministro de Estado que governou mais de 25 anos um dos mais consideráveis remos da Europa; que o guiou e por assim dizer teve-o na mão nos primeiros passos do seu desenvolvimento; que não prescreve nenhum conselho sem tê-lo posto em prática várias vezes e que enfim, por sua firmeza e sua coragem venceu uma infinidade de obstáculos e intrigas que teriam acabrunhado outro que não ele.

Não houve pois, jamais, obra mais útil aos que são chamados para o manejo dos grandes negócios. Os reis, os príncipes, os favoritos, os ministros, os conselheiros de Estado, os eclesiásticos, os nobres, os magistrados, os cortesãos, enfim todas as espécies de pessoas acham aqui uma quantidade de instruções de valor inestimável.

Esta obra não está como estaria sem dúvida se ele tivesse tido tempo de revê-la com descanso; mas embora se encontrem algumas negligências e expressões menos felizes que outras, todas as partes compõem um tão belo corpo que os pequenos defeitos não devem ser considerados senão como passagens dos lindos quadros que embora descuidados fazem conhecer a habilidade do artista.

Seria temeridade extraordinária, querer por palavras exaltar a excelência de uma obra que se sustenta por si própria, e que está muitíssimo acima de todos os elogios que se lhe quisesse dar. A leitura de um único capítulo dará melhor idéia dessa verdade, do que tudo o que se pudesse dizer.

A primeira edição deste livro e as que lhe seguiram de perto, foram todas calcadas sobre um manuscrito, que terá pelo menos trinta anos, escrito por duas pessoas e com muita precipitação; sem rasuras mas com muitos erros. Os mais essenciais foram corrigidos nesta 6a. reimpressão, mas os erros secundários ficaram, pelo receio de se modificar o sentido.

Como não é possível que a cópia de que nos servimos seja única que exista, suplicamos àqueles que tenham outra melhor e que perceberem erros capitais, que nos avisem para correção, na próxima edição.

Até mesmo o quadro parece ter sido feito pelo próprio Cardeal de Richelieu. Como ele era extremamente metódico talvez tivesse começado a sua obra por esse quadro, a fim de que o que tinha a dizer não se embrulhasse quanto aos tempos.

Talvez cause surpresa o título do primeiro capítulo, que fala da Paz Geral, e da qual ele queria marcar o ano que deixou em branco porque até então não houve paz geral. Mas também nisso quis seguir o manuscrito e era aparentemente seu desejo obtê-la; concluindo então com a descrição das grandes ações do rei a que servia.

Para o tempo em que esta obra foi feita, presume-se que ele tivesse trabalhado em diversas ocasiões. No primeiro capítulo ele conduz a descrição das ações do rei até 1638.

Entretanto, em outros lugares parece que ele descreve as coisas estando em 1635, pois que dá ao rei 25 anos de reinado. Pode-se duvidar também se o que escreveu sobre os jesuítas, diga respeito a tempo anterior ou posterior às intrigas que o padre Caussin, confessor do rei, e o padre Manod, confessor da duquesa de Savóia, armaram para afastá-lo da Corte, pensando conseguir. Se escreveu o capítulo após haver dissipado a intriga, é admirável a moderação que teve falando com tanta sobriedade; e se escreveu antes, ainda mais louvável o ter legado a obra no estado primitivo, sem deixar transparecer novas marcas de ressentimento.

O que parecerá mais surpreendente é que todo o Testamento Político não fale do nascimento do rei que hoje reina; donde se infere que o livro estivesse escrito antes desse acontecimento, demasiado notável para ser esquecido.

É preciso considerar também, que muito antes da sua morte o Cardeal não escrevia mais por causa do incômodo que tinha no braço, sendo obrigado a ditar todos os despachos e como aparentemente não quis escrever o Testamento Político por outra mão, encontrou-se impossibilitado de escrevê-lo ele mesmo, e daí a omissão.

Todas as notas que se encontram nas primeiras edições são do manuscrito; mas as observações históricas sobre o capítulo I do primeiro livro, foram-me comunicadas há pouco e são das últimas edições. Se há obra que mereça ser enriquecida de notas, pode-se dizer que é esta.

A História e as Memórias deste Grande Homem forneceriam em quantidade; mas isso não é ainda tudo; seria necessário algo mais particular e que revelasse várias intrigas dessa corte, que não foram divulgadas, e que constituiriam esclarecimentos preciosos para a História. Também seriam muito úteis as notas sobre o estado da França no seu tempo e aquele a que chegou: Em que seguiram as Máximas e Conselhos do Grande Ministro e em que se separaram e nesse gênero as notas seriam não somente curiosas, mas importantes.

Se alguém se der ao trabalho de fazer essas notas, mais tarde, de bom grado as traremos ao público.


 

TESTAMENTO POLÍTICO DO CARDEAL DUQUE DE RICHELIEU AO REI

 

Senhor:

Assim que aprouve a Vossa Majestade dar-me parte no manejo dos seus negócios, propus-me não esquecer nada que de minha sagacidade pudesse depender, para facilitar os seus grandes desígnios, tão úteis ao Estado, quanto gloriosos à sua Pessoa.

Deus, tendo abençoado minhas intenções a tal ponto que a virtude e a felicidade de V. M. espantaram o presente século e serão admiradas pelos futuros, achei que os gloriosos sucessos me obrigavam a fazer deles à História, tanto para impedir que muitas circunstâncias, dignas da imortalidade, caíssem no olvido, pela ignorância daqueles que não as podem saber como eu, quanto para que o passado servisse de lição ao futuro. Pouco tempo depois de ter tido esse pensamento, pus-me a trabalhar, acreditando não dever começar demasiado cedo o que só com a minha vida terminaria.

Acumulei com cuidado a matéria de tal obra, e pus em ordem uma parte, deixando ao curso de alguns anos quase em estado de publicação.

Confesso que mais prazer existe em se fornecer os elementos para a História, do que dar-lhes forma, e isso me não dava pouco prazer, de representar o que se não havia feito senão com esforço.

Gostando das doces satisfações provindas deste trabalho, as enfermidades e os contínuos incômodos a que estava sujeita a fraqueza da minha compleição, junta aos encargos dos negócios, constrangeram-me a abandoná-lo por ser de muito fôlego.

Reduzido à extremidade de não poder fazer nesse sentido, o que desejava com paixão para a glória de vossa Pessoa e para vantagem do vosso Estado; acreditei que, ao menos não podia dispensar-me de deixar a V. M. algumas memórias, daquilo que julgo mais importante para o Governo deste Reino, sem responsabilidade perante Deus.

Duas coisas me obrigam a empreender esta obra: primeira é o temor e o desejo que tenho de terminar meus dias antes que o curso dos de V. M. chegue ao seu fim. Segunda é a fiel paixão que tenho pelos interesses de V. M. o que me faz desejar não somente vê-la cumulada de prosperidade durante minha vida, mas faz-me ainda desejar ardentemente suprir meios para poder ver-lhe a continuação, quando o tributo inevitável que cada um deve pagar à Natureza, impedir-me de poder ser testemunha.

Esta peça verá a luz sob o título de meu Testamento Político; porque é feita para servir depois da minha morte à defesa (Polícia) e à conduta do vosso Reino, se V. M. julgá-la digna disso. Ela conterá meus últimos desejos relativos ao assunto, e deixando-a, consigno a V. M. tudo o que posso legar de melhor, quando Deus quiser chamar-me desta vida.

Ela será concebida em termos curtos e precisos, tanto quando me seja possível, seguindo a minha maneira ordinária, e para estar de acordo com o humor de V. M. que sempre gostou de saber as coisas em poucas palavras, e que mede com precisão tanto a substância das coisas como os longos discursos que a maioria dos homens usa para exprimi-la.

Se minha Sombra que aparecerá nestas Memórias pode, após minha morte contribuir em algo para Regular este grande Estado, do qual V. M. me deu mais parte do que merecia, estimar-me-ei extremamente feliz.

Para atingir esse fim, julgando com razão, que o sucesso que aprouve a Deus, no passado dar às resoluções que V. M. tomou com suas mais fiéis criaturas, é poderoso motivo para convidá-la a seguir os conselhos que quero dar-lhe para o futuro. Começarei esta obra, pondo-lhe diante dos olhos um quadro sucinto de suas Grandes Ações passadas, que lhe dão tanta glória e podem ser chamadas a justo título o Fundamento sólido da felicidade futura do Seu Reino.

Este relato será feito com tanta sinceridade, ao julgamento daqueles que são fiéis testemunhas da História do tempo de V. M., que ele dará a que todo o mundo acredite que os conselhos que ministro a V. M. não terão outro objetivo que não sejam os interesses do Estado e o lucro de vossa Pessoa, da qual serei eternamente,

Senhor,

Muito humilde, muito fiel, muito obediente, muito apaixonado, muito obrigado, súdito e servidor.

Armand Du Plessis.


 

PRIMEIRA PARTE


 

CAPÍTULO I

Sucinta narração de todas as grandes ações do Rei, até a paz, feita no ano de...

 

Quando Vossa Majestade se resolveu a dar-me ao mesmo tempo a entrada em seus conselhos e grande dose de sua confiança para a direção de seus negócios, posso dizer com verdade que os huguenotes partilhavam o Estado; que os grandes se conduziam como se não fossem súditos, e os mais poderosos governadores das Províncias, como se fossem soberanos nos seus cargos.

Posso dizer que o mau exemplo de uns e outros era tão prejudicial a este Reino, que as Companhias melhor reguladas sentiam-se do seu desregramento e diminuíam em certos casos a legítima autoridade, tanto quanto lhes era possível, para levar a sua além dos termos da razão.

Posso dizer que cada um media seu mérito pela sua audácia; que em lugar de reconhecer os benefícios que recebiam de V. M. pelo correspondente aos seus serviços, só faziam caso quando eles eram proporcionados segundo o desregramento de sua fantasia, e os mais empreendedores eram julgados mais sabidos e se achavam os mais felizes.

Posso ainda dizer que as Alianças Estrangeiras eram desprezadas; os interesses particulares preferidos aos públicos; em uma palavra, a dignidade da Real Majestade por tal forma rebaixada e tão diferente do que devia ser, por deficiência daqueles que tinham então a principal responsabilidade nos negócios Reais, que era quase impossível reconhecê-la.

Não se podia tolerar por mais tempo o procedimento daqueles aos quais V. M. confiou o timão do seu Estado, sem tudo perder; e de outra parte não se podia também mudar de repente sem violar as leis da prudência, que não permite a passagem de uma extremidade à outra sem passar-se pelo meio.

O mau estado dos negócios públicos parecia constranger a V. M. a resoluções precipitadas, sem tempo e sem meio de escolha, e entretanto seria preciso escolher com ambos para tirar proveito da mudança que a necessidade exigia da prudência de V. M..

Os melhores espíritos não achavam que se pudesse passar sem naufrágio todos os escolhos que apareciam em tempo tão pouco seguro. A corte estava cheia de gente que tachava de temeridade aqueles que quisessem empreender, e todos sabendo que os príncipes são fáceis em atribuir aos que lhes estão próximos, os maus sucessos das coisas que lhes foram bem aconselhadas; tão pouca gente julgava possível um feliz resultado da mudança que se publicava desejar eu fazer, que muitos tinham minha queda por segura, antes mesmo que V. M. me tivesse elevado.

Não obstante todas estas dificuldades, que representei a V. M. conhecendo o que podem os reis quando usam bem do seu poderio, ousei prometer-lhe sem temeridade, segundo penso, que V. M. encontraria o bem do Estado e que dentro de pouco tempo a prudência e a força de V. M. e as bênçãos de Deus dariam essa nova feição a este Reino.

Prometi-lhe empregar toda minha indústria e toda a autoridade que lhe aprouvesse dar-me, para arruinar o partido huguenote, rebaixar o orgulho dos grandes, reduzir todos os súditos ao seu dever e exaltar o Seu nome nas Nações Estrangeiras, ao ponto que devia ser.

Fiz-lhe ver que para atingir a um tal desiderato, confiança me era imprescindível; e embora todos os que lhe serviram tivessem julgado o meio melhor e mais seguro de adquiri-la e conservá-la, o afastarem a Rainha Mãe, eu tomava um caminho completamente contrário, não omitindo esforços para unir-vos, sendo essa união importante para vossa reputação e vantajosa para o bem do Reino.

Assim como o Sucesso que seguiu as boas intenções que aprouve a Deus dar-me para Regulamento deste Estado, justificará pelos séculos afora a firmeza com que constantemente persegui esse desígnio; também V. M. será fiel testemunha de que nada esqueci do que me foi possível para impedir que o artifício de muitos espíritos malévolos se tornasse poderoso suficientemente para dividir o que estando unido por natureza, devia também sê-lo pela graça. Se após ter felizmente resistido durante vários anos aos seus esforços, sua malícia enfim prevaleceu; é-me consolo que se tenha ouvido da boca de V. M. que enquanto eu mais trabalhava para grandeza da Rainha Mãe, ela trabalhava pela minha ruína.

Deixo o esclarecimento deste assunto para outro lugar, a fim de não abandonar o meu fio e não romper a ordem que devo guardar nesta obra.

Os huguenotes que não perderam nunca, ocasião de aumentarem o seu partido, tendo surpreendido em 1624 certos navios que o Duque de Nevers preparava contra o turco, fizeram em seguida um armamento poderoso contra Vossa Majestade.

Embora o cuidado com a Marinha estivesse, até esse tempo, tão relegado que não possuía ela um só navio, conduziu-se V. M. com tanta destreza e coragem, que com os que pode obter de seus súditos, 20 da Holanda e 7 patachos da Inglaterra, desafiou a armada que os de La Rochelle puseram no mar. Isso se deu com tão maravilhosa felicidade que houve vantagem do socorro que não lhe havia sido dado senão para serviço aparente.

V. M. tomou, da mesma forma a ilha de Ré, da qual os huguenotes se haviam apossado. Foram derrotados 4 a 5 mil homens que lá estavam para defender a praça e foi constrangido Soubize, que estava feito chefe, a fugir para Oleron; daí seus amigos não somente o tocaram para fora da ilha senão também para fora do reino.

Esses felizes sucessos reduziram essas almas rebeldes a uma paz tão gloriosa, que os mais difíceis de contentar ficaram satisfeitos e todos confessaram que nada se havia feito de semelhante.

Os reis, de V. M. predecessores, tinham, pelo passado, mais recebido do que dado aos seus súditos. Embora não tivessem feito nenhuma guerra, perdiam em todos os tratados que com eles faziam; e embora V. M. tivesse nesse tempo muitas outras ocupações, deu a paz, então, reservando-se o Forte Luís com uma cidadela em La Rochelle, e as ilhas de Ré e Oleron, com duas outras praças que formavam uma boa circunvalação.

Ao mesmo tempo V. M. garantiu o Duque de Savóia contra a opressão dos espanhóis que o atacaram abertamente, e embora tivessem eles um dos maiores exércitos que desde muito tempo não se via na Itália, comandado pelo Duque de Féria, homem de cabeça, impediu de tomar Verna, que nossas armas, juntamente com aquelas do Duque de Savóia sustentaram cercadas, com tanta glória, que eles foram enfim obrigados a levantar o cerco vergonhosamente.

Os espanhóis, tendo-se tornado senhores em pouco tempo de todas as passagens dos Grisões e tendo fortificado os melhores postos de todos os seus vales, V. M. não pode, por uma simples negociação, livrar seus antigos aliados dessa invasão na qual os injustos usurpadores se fixavam com meios tanto mais fáceis quanto era o Papa que os favorecia sob a vã esperança que lhe deram de algumas vantagens para a religião, e assim, pela força das suas armas se fez o que não se havia podido obter pela razão. Por esse meio se libertaria para sempre essa nação, da tirania da casa d’Áustria, se Fargis, seu embaixador na Espanha, não tivesse à solicitação do cardeal de Berula feito (como confessou mais tarde) sem conhecimento e contra ordens expressas de V. M., um tratado muito desvantajoso, ao qual aderiu-se, enfim, para comprazer ao Papa que pretendia estar demasiado interessado nesse negócio.

O falecido rei, de imortal memória, desejando casar uma das senhoras irmãs de V. M. na Inglaterra, os espanhóis acharam bom atrapalhar tal projeto e levaram a peito casar uma das suas infantas.

O tratado estando concluído, o príncipe de Gales foi tão mal aconselhado que se pôs à discrição de um príncipe que, sendo senhor da sua pessoa, lhe podia ditar leis a seu talante, e passou incógnito pela França para ir casar-se na Espanha.

Assim que se teve notícia negociou-se de tal sorte, que não obstante as honras indizíveis que lhe foram prestadas nessa corte, onde o rei lhe deu sempre mão direita, embora não tivesse a coroa sobre a cabeça, o casamento se rompeu e pouco depois o de França se tratou, se concluiu e se realizou em condições três vezes mais vantajosas para a religião do que aquelas que se tinha projetado propor ao tempo do falecido rei.

Pouco tempo depois cabalas fortes se formaram na corte. Os que conduziam o senhor irmão de V. M., puseram-no dentro dela tanto quanto sua idade o permitia.

Sou obrigado a dizer muito a contragosto que uma pessoa da maior consideração aí se achou insensivelmente embaraçada, com muitas outras que fomentavam e seguiam suas próprias paixões. Não posso calar sobre o mérito que adquiriu V. M. diante de Deus e diante dos homens, aplacando o brilho das suas imprudências se não se tivesse sabiamente dissimulado aquilo que se podia reprimir com tanta segurança quanta razão.

Os ingleses se jogaram cegamente nessas cabalas. Muitos dos grandes do reino também se meteram. O duque de Rohan e o partido huguenote deviam fazer a guerra interna ao mesmo tempo que os ingleses atacariam com uma poderosa armada as ilhas e a costa deste Estado.

A partida parecia tão bem feita que poucos acreditavam possível resistir-se à força dos conjurados. Entretanto a prisão do coronel Dornano, do duque de Vendôme e do grande Prior; o castigo de Chalais e o afastamento de algumas princesas dissiparam de alguma forma essa cabala, cujos desígnios na corte contra V. M. ficaram dissipados e sem efeito.

Como não foi sem grande bondade e sem prudência, tudo em conjunto, que V. M. consentiu em Nantes no casamento do senhor seu irmão; a sinceridade com a qual seus verdadeiros servidores apresentaram os inconvenientes que daí podiam advir foi uma prova bem leal de sua fidelidade e um testemunho seguro de que nada tinham em mente para surpreender a V. M.

Em todos esses embaraços que pareciam enfraquecer o poder nada conseguiu impedir a continuação dos duelos senão o castigo dos senhores Boutteville e des Chapelles. Confesso que meu espírito ficou tão combalido nessa ocasião que apenas pude impedir-me de ceder à compaixão universal que a desgraça e o valor desses dois jovens gentis-homens imprimiam no coração de todo o mundo, à pressão das pessoas as mais qualificadas da corte e às importunações dos meus mais próximos parentes.

As lágrimas de suas mulheres me tocavam muito sensivelmente; mas os rios de sangue da nobreza que não podiam ser secados senão pela efusão do seu sangue deram-me a força para resistir a mim mesmo, firmando V. M. no dever de executar para o bem do seu Estado aquilo que era quase contra o sentir de todo o mundo e contra os meus sentimentos particulares.

Tendo sido impossível impedir o curso e o efeito dos grandes preparativos que os ingleses tinham feito para a guerra, V. M. foi obrigada a opor-se-lhes pela força. Estes inimigos do Estado desceram em Ré e aí sitiaram o Forte de S. Martin ao mesmo tempo que Deus quis afligir a França com a moléstia que a V. M. apareceu em Villeroi.

Este desagradável acidente e a má conduta que o Coigneux e Puy Laurens quiseram de novo fazer tomar ao senhor Príncipe, não impediram que se resistisse sob sua sombra a todos os esforços desta nação belicosa. E V. M. assim que sarou, socorreu a praça que eles tinham sitiado, desfazendo os seus exércitos num combate assinalado por terra; e afastando as suas forças navais da costa, fê-los retornar aos seus portos.

V. M. atacou em seguida La Rochelle e a tornou depois de um cerco de um ano de duração. E V. M. se conduziu com tanta prudência que embora soubesse que os espanhóis não desejavam nem a tomada dessa praça nem a prosperidade em conjunto dos seus negócios julgando que a aparência da sua união lhes pudesse favorecer na reputação do mundo, e que com ela não faria pouco se por um tratado os impedisse de unirem-se aos ingleses, que eram então seus inimigos declarados, fez V. M. com eles um tratado que produziu o efeito que se havia proposto.

Os espanhóis que não tinham outro desígnio, senão aparentar, à sombra de cujas aparências pudessem obter os desígnios de V. M. e a tomada dessa cidade, animaram tanto quanto lhes foi possível aos ingleses a socorrê-la. E o cardeal de Cuéva prometeu em termos expressos que seu senhor não enviaria nenhum socorro a V. M. enquanto V. M. tivesse necessidade e que o retiraria antes que pudessem perturbá-lo. Isto foi religiosamente cumprido, tanto que D. Frederico, almirante de Espanha que tinha partido de La Corunha com 14 navios depois de ter sabido da derrota dos ingleses em Ré, não quis ficar nem um dia mais em La Rochelle sabendo da notícia que corria que uma nova frota vinha socorrer essa praça.

Essa segurança deu audácia aos ingleses fazendo com que tentassem por duas vezes o socorro e houve glória para V. M. em tomá-la com suas forças somente à vista de uma poderosa armada, que depois de dois combates inúteis viu-se inteiramente impossibilitada de cumprir os seus destinos.

Assim, ao mesmo tempo a infidelidade e as trapaças da Espanha ficaram sem efeito e a dos ingleses foi sobrepujada com um golpe único.

Durante este cerco os espanhóis atacaram o duque de Mântua na Itália, certos de que V. M. não o poderia socorrer.

O cardeal de Berula e o guarda dos selos de Marillac aconselharam V. M. a abandonar o pobre príncipe à injustiça e à avidez insaciável, daquela nação inimiga do repouso da cristandade, a fim de impedir que ela o atormentasse. O resto do conselho foi de parecer contrário, tanto porque a Espanha não ousaria tomar resolução imediatamente após ter feito um tratado de união com os ingleses, quanto porque mesmo que V. M. aceitasse o mau conselho este não poderia impedir o desenvolvimento dos seus desígnios.

Foi-nos representado que seria suficiente declarar-se pelo senhor duque de Mântua, enquanto V. M. continuava o grande cerco não podendo fazer nada mais sem cometer uma baixeza indigna de um grande príncipe que nisso não deveria consentir ainda mesmo auferindo vantagens.

Eu cometeria um crime se não fizesse notar neste lugar que V. M. seguindo os sentimentos do seu coração e sua prática ordinária, tomou nessa ocasião o melhor e o mais honroso partido, seguido de um sucesso tão feliz que pouco tempo depois La Rochelle foi tomada e seus exércitos ficaram capazes de socorrer o príncipe injustamente atacado.

Embora o senhor seu irmão, ficando viúvo um ano depois do seu casamento, tivesse desejos de casar com a princesa Maria, foi tão mal aconselhado, que em lugar de favorecer ao duque de Mântua, seu pai, ele o perturbou mais do que os próprios inimigos, separando-se de V. M. e retirando-se para Lorena, quando devia unir-se estreitamente a V. M. para tornar o seu poderio mais considerável.

Esta má conduta não impediu que V. M. continuasse a viagem que tinha começado com propósito tão generoso, e Deus a bendisse tão visivelmente que, assim que chegou aos Alpes as passagens foram forçadas em pleno inverno e o duque de Savóia auxiliado pelos espanhóis foi batido, sendo levantado o cerco de Cazal e obrigados todos os inimigos a um acomodo.

Esta gloriosa ação que trouxe a paz à Itália, imediatamente depois de ter sido feita, V. M., cujo espírito e coração nunca acharam repouso senão no trabalho, passou, sem descansar, ao Langledoc, onde, depois de ter tomado as cidades de Privas e de Alez pela força, reduziu por sua perseverança o resto do partido huguenote e todo o seu reino à obediência, dando pela sua demência a paz àqueles que tinham ousado fazer-lhe guerra; não concedendo-lhes vantagens prejudiciais ao Estado como tinha acontecido anteriormente, mas pondo fora do reino aquele que era o único chefe de um tão desgraçado partido e que o tinha sempre fomentado.

O que é de maior consideração nesta ação tão gloriosa é que V. M. arruinou absolutamente esse partido, enquanto o rei da Espanha se encarregava de o aumentar e de firmá-lo cada vez mais.

Ele acabava de fazer um tratado com o duque de Rohan para formar neste Reino um corpo de estado rebelde a Deus e a V. M. recebendo um milhão que todos os anos lhe devia ser pago, tornando as Índias, dessa maneira, tributárias do inferno. Mas esses projetos foram ser consequência e ao mesmo tempo que teve o desprazer de saber que aquele que ia de sua parte realizar um tão glorioso negócio tinha sido morto na forca por um mandato do parlamento de Toulouse. V. M. teve o contentamento de perdoar aqueles que não se podiam mais defender, subordinando sua facção e bem tratando suas pessoas, quando esperavam o castigo dos crimes que tinham cometido.

Sei bem que a Espanha pensou lavar-se de uma ação tão negra alegando o socorro que V. M. dava aos holandeses, mas essa escusa é tão má quanto a sua causa.

O sentido comum faz conhecer a todo o mundo que é bem diferente a continuação de um socorro estabelecido legitimamente, segundo a defesa natural e outro qualquer estabelecido manifestamente contrário à religião e à legítima autoridade que os reis receberam do céu sobre os seus súditos.

E o rei, pai de V. M., nunca tratou com os holandeses senão depois que o rei da Espanha formou uma liga neste reino para usurpar-lhe a coroa.

Esta verdade é muito evidente para poder ser posta em dúvida e não há teologia no mundo que não possa dizer, sem ir contra os princípios da luz natural que, assim como a necessidade obriga aqueles a quem se quer tirar a vida a se servirem de qualquer socorro para se garantir, também um príncipe tem o direito de fazer o mesmo para evitar a perda do seu Estado.

O que é contingente, no seu começo, torna-se algumas vezes necessário em seguida. Neste caso está a ligação que V. M. mantém com esses povos, não somente em conseqüência dos tratados do falecido rei, mas porque a Espanha não pode deixar de ser inimiga deste Estado enquanto retém uma parte dos seus antigos domínios. É claro que a causa que deu lugar a este tratado não tendo cessado, a continuação do efeito é tão legítima quanto necessária.

Os desígnios dos espanhóis são cada vez mais injustos em lugar de reparar as primeiras injúrias que eles fizeram a este reino, aumentam-nas todos os dias.

Além disso o falecido rei não se uniu aos holandeses senão depois de terem formado um corpo de Estado, constrangidos pela opressão contra a qual não se podiam garantir inteiramente. Não foi o causador nem da sua revolta nem da união de suas províncias.

Não foi bastante a Espanha favorecer várias vezes aos revoltados huguenotes contra os seus predecessores. Ela quis uni-los em corpo de Estado dentro da França.

Um santo zelo fê-los querer ser autores de um tal estabelecimento e, o que é notável, sem necessidade e sem razão, a não ser a continuação das suas antigas usurpações além das novas que desejam fazer e que ratificam de tal forma que o que é proibido a todo o mundo, lhes-é permitido em vista de suas boas intenções.

Tendo tratado longamente deste assunto em outra obra, abandono-o para dar seguimento ao que diz respeito às ações de V. M.

A má fé dos espanhóis os tendo levado a atacar de novo o duque de Mântua, em prejuízo do tratado que tinham feito com V. M., levou pela segunda vez nossos exércitos à Itália, onde foram de tal forma benditos por Deus, que após terem gloriosamente passado um rio guarnecido pelo duque de Savóia com 14.000 infantes e 4.000 cavaleiros contra a fé do tratado que haviam assinado com V. M. no ano precedente, Pignerol em presença das forças do imperador, foi tomada; também à vista das forças do rei de Espanha, e mais da pessoa e de toda a força do duque de Savóia, tudo tornando a ação de V. M. mais gloriosa, e o marquês de Espínola um dos maiores capitães do seu tempo.

Dessa maneira tomou-se Susa dominando-se ao mesmo tempo os três mais consideráveis poderes da Europa: a peste, a fome, e a impaciência dos franceses, coisas de que se acharão poucos exemplos na história.

Em seguida conquistou-se a Savóia expulsando um exército de 10.000 infantes e 2.000 cavaleiros que tinham mais facilidades de defender-se num país de montanhas como aquele em que estavam, mais do que seria fácil a 30.000 homens atacá-los.

Os combates de Veillane e de Coriane assinalaram pouco tempo depois o nosso exército em Piemonte; e a tomada de Valença fortificada pelo duque de Savóia para opor-se aos desígnios de V. M., fez conhecer que nada pode resistir às armas justas de um rei tão feliz quanto poderoso.

Cazal foi socorrida não somente contra a opinião comum da maior parte, mas ainda contra o próprio pensamento do duque de Montmorency, que tinha sido empregado neste esforço e contra o de Marillac que o substituíra, ambos dizendo que a empresa era impossível.

O socorro dessa praça de guerra foi tanto mais glorioso quanto um exército mais forte do que o seu estava à frente dos milaneses que lhe forneciam toda a sorte de comodidades ao abrigo das muralhas de Cazal, posta às suas mãos e obrigada a consentir nisso da mesma sorte que as cinco outras praças que os espanhóis tinham nos arredores de Monte Ferrat.

Se se sabe que no mais forte desta luta V. M. estava esgotada e sua pessoa perigosamente enferma e ainda mais o seu coração; se se considera que a rainha mãe, ludibriada por alguns espíritos envenenados, formou um poderoso partido que enfraquecendo ao de V. M. fortificou muito os inimigos; se se representar ainda que ela recebia todos os dias diversos avisos secretos; os mais fiéis servidores de V. M. que odiavam e temiam estando logo em situação de não poder-lhes fazer mal; seria impossível não se reconhecer a bondade de Deus como tendo contribuído para tais bons sucessos, mais do que a prudência e a força dos homens.

Foi então que a rainha mãe fez toda a sorte de esforços imagináveis para destruir o conselho de V. M. estabelecendo um outro segundo a sua fantasia.

Foi então que os maus espíritos que dominavam o do senhor príncipe e trabalhavam sob o seu nome fizeram tudo o que puderam para perder-me.

A mãe e o filho fizeram um acordo mais contrário ao Estado do que àquelas pessoas que queriam arruinar, pois que no estado presente dos negócios era impossível qualquer mudança sem a perda comum.

O filho tinha prometido não desposar a princesa Maria, o que a mãe temia de tal sorte que para, impedi-lo, ela o tinha feito prender, na sua ausência, no castelo de Vincennes, de onde não saiu senão após a convenção; e a mãe se havia obrigado em compensação a me fazer cair em desgraça junto de V. M. de quem se me afastaria.

Para tornar as suas promessas mais invioláveis elas foram escritas e o duque de Bellegarde trouxe-as durante muito tempo entre a pele a camisa como sinal de que lhe tocava ao coração e como meio de assegurar àqueles que a haviam assinado, de que só as perderia com a própria vida.

Jamais facção foi mais forte num Estado. Seria mais fácil encontrar gente que fizesse parte dela do que não participantes.

O que aumentou a maravilha da conduta de V. M. nessa ocasião foi que procurando eu o meu afastamento para agradar à rainha que o desejava apaixonadamente, V. M. sem outro conselho, salvo o seu próprio, e sendo só a opor-se à autoridade de uma mãe e aos artifícios de todos os seus aderentes aos pedidos que eu mesmo fazia contra mim, soube resistir.

Fala assim porque o marechal de Schomberg que era fiel não estava então perto de V. M. e o guarda dos selos, de Marillac, que era um dos que secundavam a rainha nos seus desígnios, agia contra V. M. e ela própria.

A prudência de V. M. foi tal, que afastando o guarda dos selos de moto próprio, se liberou de um homem de tal forma cheio de si mesmo que não achava nada bem feito que não o fosse por sua ordem, e acreditava que muitos maus meios lhe eram lícitos desde que capazes de o fazerem atingir aos fins que eram sugeridos por um zelo que se pode chamar indiscreto.

Enfim, o procedimento de V. M. foi tão sábio que nada deu à rainha, que fosse contra o Estado e nada lhe foi recusado salvo aquilo que poderia ser feito sem ferir sua consciência, e agir tanto contra ela quanto a V. M. mesmo.

Eu poderia isentar-me de falar da paz que foi concluída em Ratisbonne entre V. M. e a casa d’Áustria, porque tendo sido assinada pelo embaixador em condições que o próprio imperador reconheceu estarem acima dos seus poderes, ela não pode por esta razão ser posta no numero das ações de V. M.; mas se se considera que a falta do embaixador não lhe possa ser imputada, como era necessária muita bondade para suportá-la, não foi necessária, também, pouca destreza para repará-la de alguma sorte sem se privar da paz necessária a este Estado em um tempo em que V. M. tinha tantos atrapalhos.

Esta ação será julgada das maiores realizadas por V. M. e de conseqüência que não pode ser omitida neste lugar.

A razão e a conduta dos Estados requeria um castigo exemplar naquele que tinha ultrapassado as ordens em matéria tão delicada e numa ocasião tão importante; mas a bondade atou as mãos à justiça de V. M., porque, embora ele fosse o único embaixador, não agiu só nesse negócio, mas com um adjunto de tal condição, que o respeito fez considerá-lo antes o motivo da falta, do que a falta mesma.

Eles foram de tal sorte surpreendidos, um e outro, com a grave enfermidade que V. M. sofreu em Lion, que agiram em face do estado em que este reino poderia estar com a desgraça da sua perda, mais do que como estava efetivamente, e segundo as ordens que haviam recebido.

Não obstante a má condição do seus tratados, os imperiais foram obrigados a restituir logo Mântua. O temor dos nossos exércitos os obrigou a devolver o que haviam usurpado aos venezianos e aos Grisons; e depois que V. M. deixou entrar as tropas do duque de Savóia no Pignerol, no forte e no vale de Perusa para satisfazer ao tratado de Querasco, V. M. estava tão de acordo com ele que em virtude de um novo tratado, essas praças ficaram pertencendo a V. M., segundo as vantagens e a contento de toda a Itália que terá menos razão de temer para o futuro uma injusta opressão, existindo uma porta aberta para ser socorrida.

Neste tempo, os descontentamentos que o duque da Baviera tivera com o imperador e os espanhóis, e o temor que todos os outros eleitores católicos e protestantes tinham de ser despojados dos seus Estados, como muitos outros príncipes já haviam sido por solicitação, tendo levado a desejar secretamente o apoio de V. M. Ela tratou com eles com tal intrepidez e tanto sucesso, que eles impediram na própria presença do imperador a eleição do rei dos romanos, embora a dieta de Ratisbonne fosse convocada para esse único fim.

Em seguida, para contentar o ávido duque da Baviera, satisfazer os eleitores e vários outros príncipes e para os firmar a todos na resolução que tinham tomado, de tornar a liga Católica independente, não do império mas da Espanha que usurpava a sua direção, seus embaixadores se governaram com tal correspondência, com estes príncipes que eles lhes facilitaram os meios de fazer depor Walstein do comando dos exércitos do império, o que ocasionou um retardo nos negócios do seu senhor.

O crédito de V. M. não foi menor no Norte pois que o barão de Charnacé sem titulo de embaixador, procurou quase ao mesmo tempo a paz entre os reis da Polônia e da Suíça, paz que havia sido inutilmente tentada por vários outros potentados.

Essa paz deu lugar à empresa que o rei da Suécia fez pouco depois para impedir a opressão dos príncipes do império, na Alemanha, e esse desígnio, assim que foi do nosso conhecimento, procurou-se prevenir o prejuízo que a religião católica poderia ter; V. M. fez um tratado com ele em que o obrigava a não perturbar o exercício religioso em todos os lugares de sua conquista.

Eu bem sei que os inimigos, que pensam justificar as suas ações desacreditando as de V. M., nada esqueceram do que puderam, para tornar essa convenção odiosa; mas seu desígnio não produziu outro efeito senão o de patentear a sua malícia.

A inocência de V. M. é tanto mais clara quanto o embaixador não entrou jamais em nenhum tratado com este conquistador (Gustavo Adolfo), senão seis meses depois de ter ele entrado na Alemanha, o que justifica evidentemente que as convenções que foram feitas com este príncipe foram o remédio do mal, cuja causa não pode ser avaliada.

Os tratados passados não somente com este grande rei, mas também com muitos outros príncipes da Alemanha, são tanto mais justos quanto foram absolutamente necessários para a salvação do duque de Mântua, injustamente atacado e para a salvação de toda a Itália, sobre a qual os espanhóis não tinham menos direito do que sobre o Estados deste pobre príncipe, pois que estimavam que a sua comodidade era direito suficiente e legítimo.

As perturbações produzidas neste reino pela divisão que os espanhóis abertamente suscitaram em sua casa real, obrigava V. M. a recorrer a expedientes que lhe pudessem tornar mais seguro.

O senhor príncipe tendo saído da corte e da França, pela terceira vez, por diversos artifícios dos quais os espanhóis foram os principais autores, e o cardeal infante, tendo retirado a rainha mãe para Flandres é fácil de julgar que se esses bons vizinhos não tivessem tido alguma notável ocupação interna, teria levado os negócios muito adiante, para prejudicar V. M. neste reino.

Era preciso necessariamente afastar a tempestade e se preparar para manter o esforço, caso não fosse possível evitá-la.

Nesta consideração, depois que V. M. ficou segura daquele poderoso auxílio, fez como aqueles que, para prevenirem o contágio com que o ar os ameaça, purgam-se com tanto mais cuidado quanto a limpeza interna é, a seu critério, o melhor e o mais seguro meio que têm de se garantirem contra as injúrias externas.

A providência de Deus lhe foi tão favorável nesta circunstância, que, aqueles que, animando a rainha e o senhor príncipe contra a França, pensavam fazer a V. M. muito mal, não conseguiram senão mostrar-se incapazes; e sua conduta pareceu tanto mais maravilhosa nesta ocasião, quanto chamando um e desejando a volta da outra, sua bondade a seu respeito foi reconhecida por toda a gente, ao mesmo tempo que os efeitos da sua justiça caíram sobre aqueles que o tinham ajudado a tomar maus conselhos.

O duque de Bellegarde ficou privado do governo da Borgonha e por conseqüência as chaves das portas que ele tinha aberto ao senhor príncipe, para fazê-lo sair do reino.

O duque d’Elboeuf foi igualmente despojado do governo da Picardia que V. M. lhe havia dado pouco tempo antes.

O duque de Guise premido pelos temores da sua consciência, tendo-se retirado para a Itália quando V. M. o chamou à corte para prestar conta das suas ações, essa retirada criminosa fê-lo perder o governo com que o falecido rei, pai de V. M., o tinha honrado.

Assim se livrou V. M. de governadores ingratos e infiéis e a Borgonha, a Picardia e a Provença, províncias de grande consideração, ficaram nas suas mãos, livres desses espíritos perigosos.

V. M. colocou na primeira o primeiro príncipe de sangue, que a desejava ardentemente, e por esse meio V. M. o interessou prudentemente nos negócios do tempo, dando muito em que pensar ao senhor príncipe, que, com razão nada no mundo temia tanto, quanto o estabelecimento de pessoa que de perto o seguisse.

Estabeleceu na segunda o duque de Chevreuse, príncipe da Lorena, para testemunhar que as faltas são pessoais e que sua indignação não se estendia senão aos dessa casa que se haviam tornado culpados por sua má conduta.

Foi gratificado o marechal de Vitri com a terceira, tanto por causa da sua fidelidade quanto porque, sendo mantido por autoridade, ele era de seu natural capaz de fazer frente àquele que dela tinha saído.

Entretanto as declarações que V. M. fez, nestas ocasiões, registar no parlamento, foram tanto mais aprovadas por todo o mundo, quanto condenados os culpados e os sectários da rainha e do senhor príncipe, elas escusavam estas duas pessoas que são tão caras quanto próximas de V. M., embora no passado, usassem do parentesco de maneira completamente contrária ao exemplo presente.

Vossa majestade com muita vigilância pode impedir desígnios e muitas empresas meditadas e tentadas sob o nome da rainha e do senhor príncipe sobre diversas praças do reino; sua paciência foi tal nestes desgraçados encontros, que posso quase dizer que V. M. fez conhecer apenas o que não era possível dissimular de sua má conduta.

Entretanto, para evitar o curso e contrariar a licença com a qual parecia que lhes fosse permitido tudo empreender à sua sombra, V. M. fez cortar a cabeça ao marechal de Marillac, com tanta mais razão quanta, tendo sido condenado com justiça, a constituição presente do Estado requeria um grande exemplo.

Estes grandes e aborrecidos negócios não lhe impediram de reprimir, com tanta autoridade quanta razão, certas ações do parlamento de Paris, que tinha suportado em muitas outras ocasiões, o que é mais notável por ter sido feito no calor dos descontentamentos da rainha, do senhor príncipe e de todos os seus partidários do que é pela ação mesma. Em seguida, o senhor príncipe entrou à mão armada em França, à solicitação dos espanhóis, e do duque de Lorena, com tropas que esses bons vizinhos forneceram em grande parte.

Parecia que o conhecimento que V. M. teve em seguida de que ele era esperado no Languedoc pelo duque de Montmorency muito autorizado nessa província, de que era governador, lhe devesse desviar do desígnio que lhe havia conduzido à Lorena, para livrar este duque do mau partido em que se havia posto; mas acabando aquilo que se havia começado com tão bons propósitos, V. M. fez seguir ao senhor seu irmão de perto pelo marechal de Schomberg e tão prontamente avançou após haver recebido três praças do duque de Lorena como garantia de sua fé, que todos os esforços daqueles que se haviam ligado contra El Rei tornaram-se vãos.

A vitória que as armas de V. M., comandadas por este marechal, conseguiram em Castelnaudari foi um argumento tão seguro da bênção de Deus sobre V. M. como as graças que V. M. concedeu em seguida ao senhor príncipe e aos seus, desde que o mau estado dos negócios lhe deu meios de agir dessa forma, foram um testemunho evidente de bondade.

A sinceridade, com a qual quis observar todas as promessas que foram feitas em Beziers, embora V. M. soubesse seguramente que Puy Laurens não tinha outro desígnio senão evitar a sombra de um arrependimento, o perigo em que ele se achava, contra o qual não se podia garantir por outra via, foi uma prova tão autêntica do grande coração de V. M., quanto de sua fé inviolável.

O castigo do duque de Montmorency, que não podia ser dispensado sem abrir a porta a toda sorte de rebeliões perigosas em todos os tempos e particularmente naquele em que um herdeiro presuntivo da coroa se tornará, por mau conselho, chefe daqueles que se separavam do seu dever, fez ver a todo o mundo que a firmeza igualava em V. M. a prudência.

Essa punição fez ver também que os servidores de V. M. preferiam os interesses públicos aos seus particulares, pois que resistiam nessa ocasião à solicitação de várias pessoas que lhes deviam ser de grande consideração, e às ameaças do senhor príncipe, que Puy Laurens levava até esse ponto, fazendo dizer que se Montmorency morresse, o senhor príncipe fá-los-ia morrer também.

A paciência com a qual V. M. sofreu os novos monopólios que Puy Laurens estabeleceu em Flandres sob o nome do senhor príncipe, para onde se retirara pela terceira vez é semelhante àquela que leva um pai a desculpar os desregramentos cometidos por um dos seus filhos saído da obediência.

Aquela que lhe fez sofrer por tão longo tempo, quanto o bem do Estado e sua consciência puderam permitir, a malícia e leviandade que levaram várias vezes o duque de Lorena a armar-se contra V. M., é uma virtude que encontrará na história poucos exemplos semelhantes.

A bondade com a qual V. M. se portou, para segurar-se das suas segundas faltas, do penhor de algumas de suas praças, capaz de contê-lo no seu dever se a loucura não tivesse igualado a sua falta de palavra, achar-se-á tanto mais incomparável quanto há poucos príncipes que perdem ocasião de se tornarem senhores de um Estado vizinho quando têm muitos motivos legítimos para o fazerem e também o poder.

Após tantas recaídas cometidas pelo duque seu vassalo, depois de lhe ter, contra a sua fé, contra o direito divino e o da constituição, feita pelos homens, retirado um penhor quase tão precioso quanto o próprio Estado; a prudência com a qual V. M. o despojou, quando a sua malícia e a sua inconstância não podiam mais ter outros remédios além daqueles, extremos, é muito mais notável do que se antes o fizesse; poder-se-ia pôr em dúvida a sua justiça. Também não se poderia esperar mais sem V. M. parecer insensível, cometendo por omissão uma falta igual àquela que cometeria um príncipe que por uma pura violência despojasse a um outro sem razão.

Que não se deve dizer da boa natureza de que V. M. é dotado, que o levou a provocar a volta do senhor príncipe à França pela terceira vez; quando parecia que não se poderia mais falar da sua fé em vista das diversas recaídas e da extraordinária má fé dos seus partidários?

Muitos achavam, com razão, que ele não poderia voltar sem comprometer a segurança dos mais fiéis servidores; e no entretanto eles eram sós em solicitar a sua retirada do perigo em que se havia posto.

Esta ação encontrará poucos exemplos na antigüidade se se consideram as circunstâncias; e provavelmente terá poucas imitações para o futuro.

Como não era possível sem uma extrema ousadia aconselhar V. M. a dar ao senhor príncipe, contra seus próprios sentimentos, um notável aumento de apanágio, um governo de província e uma praça, quando foi questão de retirá-lo de Lorena na primeira vez que ele saiu do reino; não foi possível sem grande firmeza resistir durante um ano às suas instâncias para ter uma na fronteira, para onde ele quis retirar-se saindo de Flandres.

Não foi pouca felicidade terem estes dois conselhos dado tão bom resultado, que a concessão da primeira praça foi causa da sua primeira volta; e causa tão inocente que sendo útil nessa ocasião, não se pode depois abusar, quando os seus quiseram fazer.

A recusa da segunda, impedi-lo-ia de voltar ao seu dever, e ao seu país natal, único lugar de sua salvação; ao contrário, a sua aquiescência obrigou-o a voltar enfim com uma intenção tão reta, que ele e os seus depois confessaram que a sua fé era má quando sob pretexto de assegurar a sua pessoa, pedia um lugar de retiro a fim de perturbar de novo a paz da França.

Os favores extraordinários que V. M. concedeu a Puy Laurens para obrigá-lo a inspirar uma boa conduta ao seu senhor, são dignos de memória, e não devem ser esquecidos neste lugar.

O castigo que recebeu logo que V. M. reconheceu continuava a abusar das graças, era demasiado justo e necessário, conforme o reconheceu V. M. em seguida.

A posteridade notará, estou seguro, três coisas bem consideráveis a estes respeito: um inteiro desligamento de todos os outros interesses além dos públicos, em criaturas que tendo recebido por expresso comando na sua aliança não deixaram de aconselhar V. M. a prendê-lo, porque o bem do Estado assim requeria; uma grande prudência por ter executado esta ação em presença do senhor príncipe, que não podia senão aprovar de perto um conselho que de longe apreenderia por si mesmo, se a experiência não o fizesse conhecer, que não era a ele que tudo se dirigia. Uma grande audácia em dar-lhe ao mesmo tempo tanta liberdade, quanta tinha ele antes; com o único fundamento de que, tendo-se conduzido por mais conselhos, o efeito cessaria quando a causa cessasse, e logo que ele fosse destituído dos mesmos seguiria, por seus próprios sentimentos, um caminho contrário àquele a que o haviam levado os de outrem.

Esta ação e várias outras que tiveram lugar durante o reinado de V. M. farão, estou seguro, ter por máxima certa, que é preciso em certas ocasiões, para o bem do Estado, uma virtude máscula que passa algumas vezes por cima das regras da prudência ordinária e que é outras vezes impossível garantir-se de alguns males, se não se deixar alguma coisa à fortuna, ou, melhor dito, à providência de Deus que não recusa o seu socorro quando a nossa sabedoria, esgotada, nenhum pode dar-nos.

De resto, a conduta de V. M. será reconhecida como tanto mais justa, quanto, aqueles que lerem a história verão que V. M. não faz punir ninguém senão depois de ter, por notáveis graças tentado manter os súditos no seu dever.

O marechal d’Ornano foi feito marechal com esse propósito.

O grande Prior teve o comando do mar, quando, tendo pervertido o espírito do seu irmão, deram ambos motivo a que vossa majestade lhes tirasse a liberdade.

O marechal de Bossompierre não subsistiu senão pelos reais benefícios quando sua maneira de falar e de agir na corte obrigou V. M. a encerrá-lo na Bastilha.

O guarda dos selos de Marillac estava tanto mais obrigado a conduzir-se bem, quanto a posição a que a sua boa fortuna o tinha elevado não lhe deixava lugar a desejar mais, por maior que fosse a sua ambição.

O marechal seu irmão, estabelecido em Verdun e elevado a um ofício da coroa, tinha todas as ocasiões por essas graças de evitar o suplício que mereceu pela sua ingratidão e pelos seus excessos.

Os diversos comandos que o duque de Montmorency teve no exército embora ele fosse ainda moço para merecê-los, o cargo de Marechal de França, o livre acesso que V. M. lhe deu junto a sua pessoa, e a familiaridade que tinha com suas criaturas, eram graças e privilégios suficientemente grandes para o impedirem de correr imprudentemente em busca de sua ruína.

Havia pouco que Chateauneuf tinha sido honrado com os selos, quando se começou a descobrir seu procedimento mau, dando lugar a desconfiar que no começo da sua magistratura, tivesse quase as mesmas intenções que quando a terminou.

Entretanto, esse primeiro cargo da justiça ao qual V. M. o chamou, além dos dez mil escudos que recebeu da real liberalidade, em um ano, o governo de uma das províncias, graças extraordinárias para um homem da sua profissão, não foram considerações suficientemente poderosas para impedi-lo de ser o autor da sua própria ruína.

As diversas e grandes graças que Puy Laurens recebeu em pouco tempo da bondade de V. M. foram tão extraordinárias que aqueles que delas souberem ficarão espantados, e talvez mais do que do seu mau procedimento, comum àqueles que a fortuna eleva num instante e sem mérito.

O perdão dos crimes que V. M. lhe deu por ocasião de sua volta de Flandres não será estimada coisa medíocre pela posteridade.

As somas imensas que recebeu das reais liberalidades, o governo do Bourbonnais, a qualidade de duque e par, e a minha aliança, eram ligações suficientemente fortes para conter em seu dever, qualquer outra pessoa que não fosse ele, incapaz de manter-se dentro de justos limites.

Quando o conde de Cramail foi posto na Bastilha, acabava de receber, por chamada à corte, demonstração do esquecimento das suas primeiras faltas. Mas esse favorável tratamento não o impediu de voltar ao seu primitivo trilho, desservindo o estado presente dos negócios, e procurando desviar V. M. da sua antiga conduta, que os acontecimentos justificavam como feliz, e a bênção de Deus, como justa.

A escolha que se havia feito do marechal de Vitri para a Provença o obrigava viver com muito comedimento num grande emprego que sua coragem e sua fidelidade lhe haviam outorgado. Mas sua excessiva avidez e seu humor insolente e altaneiro não contribuíram pouco a privá-lo do mesmo, para pô-lo num governo de menor extensão.

Se devemos falar daqueles que foram simplesmente afastados da corte, que obrigações não recebeu o duque de Bellegarde de V. M. e dos seus servidores?

A bondade de um e a clarividência dos outros tiraram-no de certos embaraços de gabinete; nos quais sua extrema vaidade e os desregramentos de suas paixões o tinham jogado. Ele era duque pela Real graça e tanto mais obrigado a bem conduzir-se junto do senhor príncipe, quando ele o ajudou a sair do reino, quanto V. M. o estabeleceu nos primeiros cargos da sua casa, dos quais não recebeu pouca remuneração.

De pobre e simples gentil-homem que era Thoiras, foi visto num instante marechal de França e tão carregado de benefícios, que recebeu não somente os melhores empregos e os maiores governos do reino mas mais de seiscentos mil escudos de gratificação.

La Fargis estava tanto mais obrigado a bem conduzir-se quanto V. M. pondo-o junto da rainha sua mulher, tinha-o posto acima dos dichotes a seu respeito.

Os duques de Guise e d’Elboeuf receberam à vista de todo o mundo, graças indizíveis de V. M.

Ao mesmo tempo que a princesa de Conty formava cabalas calorosas na corte, tirava muito da real bolsa pela venda de Chateaurenault; mas isso não era suficiente para mantê-la no seu dever.

O afastamento do duque de La Vallette, embora voluntário, e não forçado, dando-me lugar a pô-lo nesta classe, não posso deixar de representar que pouco tempo antes que solicitasse ao senhor seu irmão e ao conde de Soissons de voltarem suas armas, das quais eles tinham então o comando, contra a pessoa de V. M. o honrou com a qualidade de duque e par, não posso dispensar-me de ajuntar, em seguida, que para firmá-lo mais no real serviço, V. M. achou bom que ele se ligasse com aqueles, aos quais prendiam laços inquebráveis e que em consideração da minha aliança, lhes fosse acordada a superintendência do governo de Guienne, aumentada a sua posição, com o posto de coronel de infantaria, com trinta mil libras de benefício. Posso dizer, além disso, que o perdão que V. M. lhe outorgou com uma bondade extraordinária, por um crime tão sujo e tão vergonhoso, averiguado por dois príncipes irreprocháveis nessa ocasião, não pode impedir que a sua fraqueza e o seu ciúme contra o príncipe de Condé, e o arcebispo Bourdeaux, ou a intenção que ele tinha de interpor-se nos reais negócios, lhe fizessem perder muita honra fugindo a ocasião de tomar Fontarabia quando os inimigos não podiam mais defendê-la.

Se é um efeito de prudência singular ter ocupado por dez anos todas as forças dos inimigos do Estado, por aquelas dos aliados, pondo a mão na bolsa e não nas armas; entrar em guerra aberta quando os aliados não podiam ficar sós, é outra sabedoria e coragem conjuntamente, que justificam bem a maneira de arranjar o repouso do reino; V. M. fez como os economistas que, cuidadosos de aumentar a sua fortuna, sabem despendê-la a propósito, a fim de se garantirem contra maior perda.

Depois de atacar ao mesmo tempo e em diversos lugares, o que não fizeram nunca os romanos nem os otomanos, parecerá sem dúvida, a muita gente, uma imprudência e uma temeridade bem grandes. Entretanto, é uma prova de força e é também de sabedoria, pois que era necessário ocupar os inimigos de V. M. de todas as partes, a fim de que não pudessem ser invencíveis em nenhuma.

A guerra da Alemanha era um pouco forçada, pois que essa parte da Europa era teatro no qual ela começara havia muito.

Embora a guerra de Flandres não tivesse tido o sucesso que se esperava, era impossível projetá-la melhor.

A dos Grisons era necessária para forçar os príncipes da Itália a tomar armas, tirando-lhes a apreensão dos alemães; e para dar coragem àqueles que os mantinham na Alemanha, fazendo-os ver que a Itália não podia socorrer os inimigos aos quais faziam frente no seu país.

A da Itália não era menos importante; tanto porque era o verdadeiro meio de instigar o duque de Savóia, quanto porque, também o Milanês sendo o coração dos Estados que a Espanha possui, era essa parte que se devia atacar.

De resto se se considera que V. M. tinha aliados de todos os lados, que deviam unir suas forças às nossas armas achar-se-á, e a razão assim o mostra, que por uma tal união, os espanhóis atacados em diversos lugares, deveriam sucumbir sob o peso das nossas forças.

Não é que durante o curso desta guerra que durou cinco anos, não tivesse acontecido nenhum acidente, que não pareceria ser senão para glória de V. M.

Em 1635 o exército que V. M. mandou para os Países Baixos ganhou à sua entrada uma célebre batalha, antes de juntar-se ao exércitos dos Estados Gerais. E se o príncipe de Orange comandando a ambos, não obteve nenhum sucesso digno da sua grande força e do que se esperava de um capitão da sua reputação, a falta não pode ser imputada a V. M.

Tendo submetido o exército ao comando deste príncipe, dele se devia exigir continuação de vitórias para o exército que recebeu vitorioso. Mas a lentidão de uma nação naturalmente morosa, não soube aproveitar do ardor de V. M. que pedia mais execução do que conselho; e que não tendo batalhas imediatamente, perdeu a vantagem que o fogo de sua natureza lhe dava sobre todas as outras nações do mundo.

Nesse mesmo ano as forças do império tendo passado o Rheno em Brisac, chegaram tão perto de nossas fronteiras, que se V. M. não pode isentá-las de temores, soube bem garanti-las do mal, do qual os inimigos não ficaram isentos.

Viu-se perecer na Lorena um dos mais poderosos exércitos que o império pôs em pé de guerra; e sua perda é tanto mais considerável, quanto a paciência daquele que comandava as nossas forças nesse ponto foi a causa.

Ao mesmo tempo o duque de Rohan favorecido com as principais influências dos Grisons, que desejavam sua liberdade, entrou com felicidade no seu país, sem impedimento, apoderou-se da passagem e dos postos mais importantes; e fortificou-os não obstante as oposições que a vizinhança do Milanês facilitava aos espanhóis a levarem a termo comodamente.

Os duques de Savóia e de Crequi que comandavam os exércitos de V. M. na Itália, tomaram um forte no Milanês e construíram um outro no Pó, que foi perturbador espinho nos pés dos nossos inimigos.

Em 1936, a covardia de três governadores das praças fronteiriças, tendo dado lugar aos espanhóis, a que tomassem pé neste reino, adquirindo barato uma vantagem notável, não abateu a coragem de V. M. Quando mesmo todos pareciam perdidos, V. M. colocou em seis semanas um tão poderoso exército em pé de guerra, que de antemão se poderia prever a derrota inteira dos inimigos, se aqueles a quem V. M. deu o comando o tivessem bem empregado. Seus defeitos obrigaram V. M. a tomar o comando; e Deus lhe assistiu de tal sorte, que no mesmo ano foram retomadas à vista daqueles que haviam vencido essas praças, porque delas V. M. se havia afastado, salvo a única que importava ao Estado.

Sobrepujou V. M. nessa execução a muitos empecilhos que foram postos pelos mesmos auxiliares de V. M., que cheios de ignorância ou de malícia, desaprovavam francamente um desígnio tão alto.

Se o cerco de Dôle não foi um sucesso, a razão que obriga cada um a correr ao que mais importa foi a única causa. V. M. providenciou forças com tanta mais prudência, quanto era mais importante retomar Corbia do que tomar Dôle.

Ao mesmo tempo Galas tendo entrado neste reino à cabeça das principais forças do império, às quais o duque de Lorena se tinha juntado com a sua, ambos foram expulsos da Borgonha com a vergonha de levantarem o cerco de São João de Laune, má praça; e o desgosto de perder uma parte de seus canhões, e tão grande número de seus soldados, que de trinta mil homens com os quais eles entraram neste reino saíram com menos de dez.

O Tecino foi neste ano testemunha de uma ação não menos feliz na Itália, onde os nossos ganharam um célebre e sangrento combate. E teve V. M. em Walteline vantagem tanto mais considerável, quanto os inimigos tendo-se várias vezes resolvido ao combate com nossas tropas, para expulsá-las à força, jamais conseguiram os seus desígnios; combaterem e serem batidos foi-lhes a mesma coisa sempre.

Em 1637 V. M. tomou duas praças aos inimigos em Flandres, e foi retomada uma daquelas que no ano precedente tinham sido entregues pela covardia dos governadores.

Uma terceira situada no Luxemburgo foi tomada logo depois, e os inimigos sofreram tanto pela entrada dos nossos exércitos no seu país quanto eles desejariam fazer V. M. sofrer pelo mesmo efeito.

Se um terror pânico daquele que comandava as nossas forças em Walteline e a infidelidade de alguns daqueles, para cuja liberdade V. M. moveu a campanha, fizeram perder por covardia e por traição conjuntas a vantagem que V. M. adquiriu pela força e pela razão, este ano foi felizmente coroado com a retomada das ilhas de Santa Margarida e de Santo Honorato e pelo socorro de Leucare sitiado pelos espanhóis.

Pela primeira destas ações, dois mil e quinhentos franceses desceram em pleno dia numa ilha guarnecida por outros tantos espanhóis e italianos; ilha fortificada por cinco fortes regulares, ligados por linhas de comunicação, que as fechavam quase todas com um bom parapeito. Nossa gente desde que desceu, entrou em combate, e depois de ter obrigado a maior parte a retirar-se para trás dos parapeitos, em seis semanas forçaram-nos a ceder por tantos cercos quantos fortes havia; embora houvesse uma fortaleza de cinco bastiões reais, como canhões e com tal guarnição e tudo que era necessário, que parecia desafiar os nossos ataques. Pela segunda — um exército poderoso, tão bem entrincheirado, que não havia senão uma frente de mil toesas pela qual pudesse ser abordado, frente tão bem fortificada que de duzentos em duzentos passos havia fortes e redutos guarnecidos de canhões e de infantaria, foi atacado de noite e forçado por um exército que por menos numeroso não deixou de vencer o adversário inteiramente, depois de vários combates.

Estas duas ações são tão extraordinárias que não se pode dizer que sejam efeito assinalado da coragem dos homens, sem ajuntar que eram secundados pela providência e mão de Deus que combate visivelmente por nós.

Em 1638, embora o começo do ano fosse infeliz na Itália, Saint Omer, e em Fontarabia pela má sorte dos exércitos e pela imprudência, covardia, ou malícia de alguns daqueles que comandavam os nossos, o fim coroou a obra pela tomada de Brissac após um longo cerco, duas batalhas e diversos combates tentados para socorrê-los.

De resto não teve V. M. ciência do acontecimento mau relativo ao cerco de Saint Omer sem ir imediatamente e em pessoa ao lugar onde parecia que se poderia temer desgraçados acontecimentos: V. M. cortou o curso de desgraças dos seus exércitos, fazendo tomar e arrasar Renty, forte grandemente incômodo na fronteira.

Em seguida ao que o Castelet, a única praça que estava entre as mãos de inimigos, foi tomada a força à sua vista, sem que eles ousassem opor-se aos efeitos das nossas armas.

A batalha naval, na qual catorze galeras e quatro navios dunquerque todos retirados na enseada de Gattary sob cinco baterias de terra, por não ousarem afrontar o mar diante de dezenove dos de V. M., foram todos queimados ou postos a pique, com perdas de quatro a cinco mil homens, de quinhentos canhões e de uma grande quantidade de munições de guerra para socorro de Fontarabia, constitui um bom contrapeso não das perdas que se teve em Saint Omer e Fontarabia que não foram grandes, mas da vitória que falhou pela tomada de tais praças.

Se se adicionar a tal vantagem aquela que V. M. teve antes quando os reais exércitos fizeram perder aos inimigos no porto de Passagem catorze grandes navios, grande número de canhões, bandeiras e toda a sorte de munições, achar-se-á que se os espanhóis julgam este ano favorável, eles se estimam felizes quando a sua desgraça é menor do que o seu temor.

Enfim, o combate das galeras pode ser considerado o mais célebre que se tenha dado no mar, onde quinze das de V. M. atacaram outras tantas dos espanhóis e as combateram com tal vantagem, que os inimigos perderam quatro a cinco mil homens e seis galeras, entre as quais uma capitânia e duas “patronas”, não assinalando pouco uma ação tão gloriosa.

Este combate, digo eu, fez ver que a prudência da real conduta não foi somente acompanhada de felicidade; mas que a audácia daqueles que comandaram os exércitos de V. M. foi seguida.

Várias coisas são notáveis nesta guerra.

A primeira é: Que V. M. não entrou nela senão depois de ver a impossibilidade de evitá-la, e dela não saiu senão no momento em que devia.

Esta nota é tanto mais gloriosa a V. M. quanto, estando em paz, foi por várias vezes convidada pelos aliados a tomar armas sem querer fazê-lo; e que, durante a guerra, seus inimigos lhe propuseram constantemente uma paz particular, sem que tivesse nunca querido ouvir, porque não devia separar-se dos interesses dos aliados.

Aqueles que souberem que V. M. foi abandonada por diversos príncipes, que tinham aliança com ela, sem ter querido abandonar a nenhum e ainda que alguns daqueles que ficaram firmes no seu partido, lhe tenham faltado em diversas coisas importantes; receberam sempre de V. M. efeitos conformes às suas promessas; esses reconhecerão que se a felicidade de V. M. pareceu grande nos bons sucessos de seus negócios, sua virtude não é menor do que a sua felicidade.

Sei bem que se V. M. houvesse faltado à sua palavra, teria muito perdido da sua reputação, e que a menor perda deste gênero faz que um grande príncipe nada mais tenha a perder. Mas não é pouco ter satisfeito no seu dever em diversas ocasiões em que a vingança e o repouso naturalmente desejado depois da guerra davam lugar a fazer justamente o contrário.

Não foi preciso menos prudência do que força, nem menos esforço de espírito do que de armas para persistir quase só, no mesmo projeto para cuja realização se contava a colaboração de muitos.

Entretanto, é verdade que a defecção de vários príncipes da Alemanha (1); a retirada que o duque de Parma foi obrigado a fazer do real partido, por necessidade dos seus negócios; a morte do duque de Mântua, e a leviandade da mãe adotiva do jovem duque, que não foi em seguida amante, senão esquecendo as obrigações que devia à França, voltando-se contra ela abertamente; a falta do duque de Savóia e a imprudência de sua viúva, que se perdeu por não querer suportar que se salvasse: é verdade, digo eu, que todos estes acidentes não abalaram a firmeza de V. M. e embora tivessem alterado seus negócios não conseguiram jamais mudar os seus desígnios.

A segunda nota digna de grande consideração neste assunto é que V. M. jamais quis para garantir-se do perigo da guerra, expor a cristandade ao das armas otomanas, que lhe foram por mais de uma vez oferecidas.

V. M. não ignorava poder aceitar um tal socorro com justiça, e entretanto o conhecimento desse fato não foi suficientemente forte para lhe fazer tomar uma resolução problemática para a religião, embora vantajosa para obter a paz.

O exemplo de alguns de seus predecessores e de diversos príncipes da casa d’Áustria, que afeta particularmente parecer religiosa diante de Deus tanto quanto ela é devota, com efeito, dos seus próprios interesses, foi muito fraca para levar V. M. a praticar o que a história nos ensina como praticado várias vezes por outros.

A terceira circunstância que causou espanto nesta guerra foi o grande número de exércitos e de cabedais com que foi sustentada.

Os maiores príncipes da terra tiveram sempre dificuldade em empreender duas guerras ao mesmo tempo; a posteridade terá dificuldade em acreditar que este reino tenha sido capaz de manter separadamente, às suas expensas, três exércitos de terra e duas armadas, sem contar aquelas dos seus aliados para as quais não pouco contribuiu.

Entretanto é verdade que, além de um poderoso exército de vinte mil homens a pé e dezessete mil cavaleiros que V. M. teve sempre na Picardia para atacar seus inimigos, manteve na mesma província um outro composto de dez mil infantes e quatro mil cavaleiros, para impedir a entrada por essa fronteira.

É verdade além disso, que V. M. teve sempre em campanha um outro de número igual ao acima citado.

Em Borgonha um exército de igual força.

Na Alemanha outro não menos poderoso.

Outro igualmente considerável na Itália, e ainda um na Walteline durante algum tempo. E o que é digno de admiração, a maior parte dos exércitos estava antes destinada a atacar do que a defender-se.

Embora seus predecessores tenham desprezado o mar até o ponto de o falecido rei seu pai não ter um só navio, V. M., não deixou de ter no mar Mediterrâneo, durante o curso desta guerra, vinte galeras, vinte navios redondos e mais de sessenta bem equipados no Oceano. Com isto não somente evitou a realização dos desígnios dos seus inimigos, nas costas de França, como lhes causou o mesmo mal que eles nos pensavam fazer.

Além disso socorreu, durante todos os anos os holandeses com um milhão e duzentas mil libras, e as vezes mais, e ao duque de Savóia com mais de um milhão.

A coroa da Suécia foi auxiliada com igual soma.

O Landgrave de Hesse com duzentos mil “Risdalles”, e vários outros príncipes com outras somas, segundo as ocasiões o requeriam.

Cargas tão excessivas fizeram que a despesa de cada um dos cinco anos de guerra que a França suportou se elevasse a mais de sessenta milhões, o que é tanto mais admirável quanto ela se mantinha sem suspender pagamento de ordenados dos oficiais, sem tocar na renda dos particulares, e mesmo sem pedir nenhuma alienação dos fundos do clero, meios todos extraordinários aos quais seus predecessores foram comumente obrigados a recorrer em guerras menores.

Assim sessenta milhões de despesa para cada um dos cinco anos; cento e cinqüenta mil infantes; tanto para os exércitos quanto para as guarnições das nossas praças, e mais de trinta mil cavaleiros, serão para a posteridade um argumento imortal do poderio desta coroa.

Se acrescento que essas diversas ocupações não impediram a fortificação ao mesmo tempo, e de forma perfeita, de todas as fronteiras, em lugares que estavam abertas antes aos inimigos, estes não as podendo ver agora senão com espanto, terei tocado um ponto não menos considerável para a posteridade, pois que, pondo para sempre este reino em segurança, V. M. recebeu do passado apenas trabalhos e aflições.

Aqueles aos quais a história há de ensinar os obstáculos que V. M. encontrou para a realização de todos os seus desígnios, pela inveja que a prosperidade e o temor do seu poderio atraíram dos diversos príncipes estrangeiros, pela debilidade de alguns de seus aliados, pelas perfídias dos seus maus súditos, por um irmão mal aconselhado durante algum tempo, por uma mãe sempre possuída de maus espíritos, desde que se tendo querido privar dos conselhos V. M. ela distinguiu os seus interesses dos do seu Estado, reconhecendo que tais obstáculos não elevam pouco a real glória, reconhecendo também que os grandes corações tendo formado grandes projetos não podem ser desviados pelas dificuldades que encontram; se consideram além disso a leviandade natural desta nação, a impaciência dos militares pouco acostumados às fadigas inevitáveis na vida das armas, e enfim a fraqueza dos instrumentos que a necessidade obriga a serem usados nessas ocasiões, entre os quais tomo Eu o primeiro lugar, serão obrigados a confessar que nada sobrepujou a falta de utensílios, senão a excelência de V. M. como artífice.

Enfim se se representarem que sobrepujando a todos os obstáculos V. M. conseguiu a conclusão de uma paz na qual a falta de alguns aliados e a afeição que V. M. lhes deu fizeram relaxar em parte aquilo que se havia conquistado unicamente pelas forças de V. M., impossível será que não reconheçam que sua bondade é igual ao seu poder, e que na real conduta a prudência e a bênção de Deus marcham parelhas.

Eis aí senhor, até agora, quais foram as ações de V. M. que estimarei felizmente terminadas; se são seguidas de um repouso que lhe dê meios de cumular seu Estado de toda a sorte de benefícios.

Para isto fazer é preciso considerar as diversas ordens do reino, o Estado que elas compõe; sua pessoa que é encarregada de tal conduta; coisa que não requer em geral, senão um bom e fiel conselho; fazer caso das advertências, e seguir a razão nos princípios que prescreve para o governo dos seus Estados; eis ao que se reduzirá o centro desta obra, tratando distintamente tais materiais em vários capítulos subdivididos em diversas seções para os esclarecer mais metodicamente.

REFORMA DAS DIVERSAS ORDENS DO ESTADO

Poder-se-iam fazer volumes inteiros sobre o assunto das diversas ordens deste reino; mas não sendo o meu objetivo tal, senão esse que o trato de muitas coisas mais que concernem a bem discorrer sobre todas as partes de um Estado, sem considerar se o público tira ou não utilidade do respectivo raciocínio; restringir-me-ei a representar em poucas palavras a V. M. o que é mais importante para conseguir a vantagem de todos os súditos nas suas diversas condições.


 

CAPÍTULO II

DAS REFORMAS DA ORDEM ECLESIÁSTICA

 

SEÇÃO I

Que representa o mau estado em que a igreja estava no começo do reinado; estado em que está agora; e o que é preciso fazer para pô-la no estado em que deve estar.

 

Quando eu me lembro que vi, na minha mocidade, gentis-homens e outras pessoas laicas possuir por legado, não somente a maior parte dos prioratos e abadias, mas também os curatos e bispados, e quando considero que nos meus primeiros anos, a licença era tão grande nos mosteiros de homens e de mulheres que neles não se achava nesse tempo senão escândalo, e maus exemplos, na maior parte dos lugares onde justamente se devia procurar edificação, confesso que não tenho pouco consolo vendo que tais desordens foram tão absolutamente banidas durante o reinado de V. M., que agora os legados e os desregramentos dos mosteiros são mais raros que as possessões legítimas, e as religiões mais vivas do que não estavam naquele tempo.

Para continuar e aumentar esta bênção, V. M. não tem outra coisa a fazer, a meu ver, senão tomar um cuidado particular preenchendo os bispados com pessoas de mérito e de vida exemplar; não dar abadias e outros benefícios simples, de sua nomeação, senão a pessoas de probidade, privando da sua vista e de sua graça aqueles que tenham uma vida livre, em tão santa condição; como é aquela que liga particularmente os homens a Deus, castigando ainda exemplarmente aos escandalosos.

Poder-se-ia propor muitos outros expedientes para a reforma do clero; mas desde que V. M. queira observar essas quatro condições e tratar favoravelmente as pessoas de bem dessa profissão, satisfará ao seu dever e tornará os eclesiásticos ao seu estado, ou tais quais devem ser, ou quando menos, tão prudentes como com esforço podem tornar-se.

Devo a propósito representar a V. M. que é preciso ter cuidado em não se enganar quanto à capacidade dos bispos.

Um pode ser sábio, pode ser capaz e no entanto achar-se mal no cargo, porque, além da ciência se requer zelo, coragem, vigilância, caridade, atividade, tudo em conjunto.

Não é suficiente ser honesto e homem de bem para ser um bom bispo, mas sendo bom para si próprio é preciso, sobretudo, ser bom para os outros.

Com facilidade aprendi que as pessoas de boa estirpe se contêm mais dificilmente no seu dever, e são menos regulares na sua vida do que outras: muitos tocados por este temor, estimam que os doutores de tão boa vida quanto baixo nascimento, são mais próprios a tais empregos, do que os que são de extração mais alta; entretanto, várias coisas sobre este assunto há a considerar.

Para ter um bispo a contento, era preciso que fosse sábio, cheio de piedade, de zelo, de boa estirpe; porque de ordinário a autoridade requerida em tais cargos não se encontra senão em pessoas de qualidade. Mas sendo difícil de encontrar todas estas condições numa mesma pessoa; direi sem temor que os bons costumes, que sem contradição devem ser considerados mais que outras coisas, como necessários; a qualidade e autoridade que de ordinário são companhia, devem ser preferidos à maior ciência: Tendo freqüentemente visto pessoas doutas como péssimos bispos, ou impróprios a governar em vista da baixeza da sua extração, ou porque vivessem em concubinato, tudo tendo relação com o seu nascimento próprio a desenvolver a avareza; em lugar disso a nobreza que tem virtudes tem um particular desejo de honras e de glórias, que produz o mesmo efeito que o zelo causado pelo puro amor de Deus; que vem, de ordinário, com lustre e liberalidade conforme a tal cargo; e sabe melhor a maneira de agir e de tratar com o mundo.

É preciso sobretudo que um bispo seja humilde e caridoso, que tenha sabedoria, piedade, coragem firme, e um zelo ardente para a igreja e para a salvação das almas a seu cargo.

Aqueles que procuram os bispados por ambição e por interesse, para fazerem com eles fortuna, são de ordinário os que fazem corte, a fim de obterem por importunação o que não poderiam obter pelo mérito; também não devem ser escolhidos, senão quando previamente indicados por Deus; o que se conhece pela sua maneira de vida diferente, conforme com a função eclesiástica que praticam nos seminários; e seria muito útil que V. M. declarasse que não escolheria senão aqueles que tivessem passado um tempo considerável depois dos seus estudos trabalhando na dita função nos seminários que são os lugares estabelecidos para aprendê-la; não sendo razoável que o mais difícil, e o mais importante ofício do mundo, se exerça sem que tenha aprendido, quando não é permitido exercer as menores e as mais vis funções, sem vários anos de aprendizado.

Depois de tudo, a melhor regra que se deve ter para esta escolha é não ter nenhuma regra geral, mas escolher algumas vezes gente sábia, outras vezes pessoas menos letradas e mais nobres, gente moça em algumas ocasiões, gente velha em outras, segundo tiverem os vários pretendentes condições consideradas próprias ao governo.

Sempre pensei assim, mas por mais que me quisesse servir de tais preceitos, confesso que várias vezes me enganei; também é muito difícil que a gente não se engane em tais julgamentos pois que é difícil senão quase impossível penetrar no interior dos homens ou fazer parar neles a sua inconstância.

Os homens, em geral, mudando de condição mudam de humor, ou, por assim dizer, descobrem aquilo que durante muito tempo tinham dissimulado a fim de obterem o que tinham em vista.

Durante o tempo em que tal gente vive na miséria tem cuidado de aparentar boas qualidades que não possui; mas logo que chegam àquilo que desejam não se constrangem mais, escondendo o que têm de mau e que foi seu natural sempre.

Entretanto se se tomam precauções tais quais proponho, embora elas não satisfaçam sempre, não se terá culpa diante de Deus e com audácia o digo, que V. M. não terá nada a temer, desde que escolhendo com esta circunspeção obrigue os escolhidos a residir nas suas dioceses, estabelecer seminários para a instrução dos seus eclesiásticos, fazer com que visitem seus rebanhos, como a isso os obrigam os cânones. Assim V. M. lhes dará todos os meios de cumprir com os seus deveres com fruto.

Falo assim, senhor, porque agora isso lhes é completamente impossível com as empresas que os oficiais de V. M. têm feito todos os dias sobre a sua jurisdição.

Seis coisas são igualmente a desejar, para que as almas que lhes são entregues, deles recebam toda a assistência que devem esperar.

Três dependem da vossa própria autoridade; uma de Roma simplesmente; e as duas outras de Roma e de vossa autoridade conjuntamente.

As três primeiras são os regulamentos das apelações e abusos, o dos casos privilegiados, e a supressão da “regale” (imposto de clero) pretendida pela Santa Capela de Paris, sobre a maior parte dos bispados deste reino; até que aqueles que V. M. nomear tenham feito o seu juramento de fidelidade.

A quarta é um regulamento para a maior parte das sentenças requeridas pelos cânones para punição de um crime cometido por um eclesiástico, a fim de que os culpados não possam, de futuro, isentar-se dos castigos que merecem, pelos retardamentos das formalidades que se praticam.

E as duas outras, que dependem da autoridade soberana da igreja e da de V. M. em conjunto, são as isenções dos capítulos e o direito de apresentar os curas que têm diversos abades sob suas ordens e diversos seculares.

É preciso examinar distintamente todos estes pontos, um após outro.


 

SEÇÃO II

Das apelações como dos abusos e dos meios de regulamentá-los

 

Não empreendo neste lugar a tarefa de esclarecer a origem das apelações e dos abusos, em vista de serem coisas cujo conhecimento não é absolutamente necessário, desde que se saiba dar remédio ao mal, pouco importando saber quando ele começou.

Sei bem quanto é difícil descobrir a verdadeira fonte desta prática; o advogado geral Servien costumava dizer que se ele conhecesse o autor de um regulamento tão bom, ter-lhe-ia erigido uma estátua.

Entretanto podemos acreditar que o primeiro fundamento deste costume vem da confiança que os eclesiásticos tiveram sempre na autoridade real quando maltratados pelos antipapas Clemente VII, Benedito XIII e João XXIII. Refugiados em Avinhão recorreram ao rei Carlos VI que então reinava, para se descarregarem das anuidades, das pensões e dos subsídios extraordinários que eles lhes impunham comumente.

As reclamações do clero de França levaram este rei a fazer uma ordenança que proibia a execução de ordens, mandatos e bulas que os papas pudessem dar daí por diante, com prejuízos das franquias e liberdades que a igreja galicana gozava.

Esta ordem deu lugar à primeira empresa dos oficiais do rei sobre a jurisdição eclesiástica.

Entretanto não foi isto feito sem que o temor com que ficaram de ser prejudicados em lugar das vantagens que esperavam levasse o rei a sustar a execução durante alguns anos. Em seguida, a continuação dos vexames produzidos pelos benefícios fê-los executar durante alguns anos, depois dos quais a ordenação foi suspensa pelo rei Carlos VII no começo do seu reinado, por causa dos diversos abusos que eram cometidos na sua prática.

A experiência do mau uso de uma tal ordem obrigou o clero a suportar com paciência por algum tempo os maus tratos que recebia dos oficiais da corte de Roma.

Mas enfim o redobramento das exações que se faziam sobre eles os constrangeu a se unirem em Bourges em 1438 para combinarem os meios de se libertarem desse mal.

Esta assembléia, célebre pelo número e o mérito dos prelados que aí se achavam, eliminou cuidadosamente os diversos males pelos quais a igreja andava aflita, e julgou que o melhor remédio que se poderia dar era o de receber os decretos do conselho da Basiléia que reduzindo quase todas as causas a condição do direito comum e canônico tirava todos os meios aos oficiais da corte de Roma de algo empreender contra o clero.

Em seguida formou uma pragmática dos decretos desse conselho resolvendo a execução sob a sanção do rei que ficou como o protetor. O rei aderente à suplicação do seu clero determinou por ordenança, expressa aos seus juizes reais (2) de fazer observar religiosamente a pragmática que tinha resolvido; e é daí que a igreja sofre o mal neste reino; por intromissão dos oficiais do rei, retomou nova força depois do começo que tinha tido sob o reino de Carlos VI. E é daí que os parlamentos têm ocasião de tomar a si a maior parte dos assuntos que não pertencem senão ao tribunal da igreja de Deus.

Foi-lhes muito fácil atribuírem-se exclusões dos juizes subalternos, o que antes tinha sido encargo somente deles, estendendo sob tal pretexto seu poder além dos justos limites, visto que neste ponto não tinham a combater senão inferiores.

Nos estabelecimentos de primeira ordem, feitos para remediar as infrações da pragmática sanção, as apelações (3) não tinham lugar. Castigavam-se somente aqueles que obtinham rescritos ou mandatos da corte de Roma, contra o direito comum, sobre a sua queixa que era feita e averiguada no sentido de ser tomado conhecimento do fundo da causa.

Depois, o tempo que muda todas as coisas, junto ao poderio, que como o fogo chama tudo a si, fez que de uma tal ordem estabelecida para a conservação do direito comum, e das franquezas da igreja galicana, contra as empresas de Roma, se passassem às apelações como de abusos, cujo desregramento anulou completamente a jurisdição dos prelados franceses e também a da Santa Sé.

Sei bem que os mais sutis partidários dos parlamentos, para autorizar a sua prática podem dizer que os prelados reunidos em Bourges, tendo suplicado ao rei que impedisse por seus oficiais que a Santa Sé não contraviesse à pragmática, deram-lhe tacitamente direito a se oporem às contravenções que poderiam aí ser feitas por eles mesmos. Isto dá lugar a tomar conhecimento das sentenças que se dão todos os dias no seu tribunal.

Mas neste lugar se pode alegar o provérbio verdadeiro, que não há no mercado senão aquilo que no mercado se põe, e é uma coisa tão certa quanto evidente que a igreja galicana reunida em Bourges nunca pensou, no que pretendem esses senhores, e nunca teve ocasião de o fazer.

Recorreu ao rei contra a empresa de Roma porque a Santa Sé não tinha tribunal superior na terra; os príncipes temporais como protetores da igreja podem fazer parar o curso dos desregramentos dos oficiais de Roma, enquanto que as ações dos bispos podem ser reprimidas por seus superiores aos quais se deve recorrer.

Enfim, aquele que dá armas ao seu amigo para defendê-lo não deve nunca ser acusado de dar-lhe armas se ele se matar. Os parlamentos não poderiam pretender que a proteção que prelados reunidos em Bourges pediram ao rei, desse direito aos seus oficiais a oprimirem a sua jurisdição.

Entretanto, como os males são maiores no seu progresso e nos seus períodos, do que no seu começo, o desígnio do parlamento coberto por diversos véus, em certo tempo, começou a aparecer sem máscara no século procedente (4) sob o rei Francisco I, que foi aquele que primeiro se serviu do nome de apelação (5) contra abusos nessas ordenações.

Vários conhecendo o mau fundamento deste uso, do qual a igreja se queixa agora, pensarão, talvez, que podendo ser abolida com justiça seria a propósito fazê-lo assim; mas estimo que uma tal mudança faria mais mal do que aquele que se quer evitar, e que não há senão o abuso de uma tal ordem que seja maléfico.

Qualquer fundamento que possa ter o uso que está agora em prática, é certo que, quando se quis estabelecer abertamente, não se pretendeu que ele servisse senão para parar o curso das empresas que os juizes eclesiásticos poderiam levar a efeito contra a jurisdição real.

Depois não se contentaram em servir-se dela contra as contravenções feitas nas ordenanças do reino, que abraçam muitas matérias além das que dizem respeito à jurisdição, mas ainda se estendeu àquelas dos santos cânones e dos decretos da igreja e da Santa Sé, e enfim por excesso de abusos a toda a sorte de matérias, em que os laicos pretendem lesão de polícia que sustentam pertencer aos oficiais do príncipe.

Poder-se-ia pedir com razão que o efeito desse remédio se restringisse nestes primeiros termos, que não tinham outra extensão senão a empresa da jurisdição real, suficientemente regulada pelo artigo primeiro da ordenança de 1539. Mas para tirar todo pretexto de lesão aos oficiais do príncipe, e fazer que eles não possam com aparência pretender que lhes é impossível fazer observar a ordenança por causa da empresa da igreja; estimo que ela pode consentir que haja lugar para apelações como de abusos, quando os juizes pronunciarem diretamente contra a ordenança como é o caso em que Carlos IX e Henrique III pelo artigo 59 da ordenança de Blois querem que sejam admitidos. Contanto que sob este pretexto não sejam estendidas às contravenções feitas aos cânones e aos decretos, embora muitas ordenanças, particularmente as capitulares de Carlos Magno, repitam constantemente o mesmo teor daquelas da igreja.

Sei bem que será incômodo fazer a indicação tão exata das ordenações para os fins que pretendo, a fim de que não aconteça, como algumas vezes, surgir-nos embaraço nas próprias regras que se quer fazer; mas é verdade que se não se achar dificuldade na vontade dos oficiais do rei, que estão encarregados de executar as suas, a ordem que o rei lhes der servirá de regra.

A pretensão que têm os parlamentos de, quando os juizes eclesiásticos julgam contra os cânones e os decretos, dos quais os reis são executores e protetores, de corrigirem os abusos de suas sentenças; é com efeito uma empresa tão destituída de toda a esperança de justiça que por si mesma ela se faz insuportável.

Se toda a igreja julgasse contra cânones e decretos poder-se-ia dizer que o rei, que delas é protetor, poderia e deveria sustentá-las por uma via extraordinária emanada da sua autoridade; mas posto que quando um juiz pronuncia contra o seu teor, a sentença pode ser reformada e corrigida por seu superior; os oficiais do príncipe não podem, sem pôr a mão no turíbulo, e sem um abuso manifesto, querer fazer o que não pertence senão àqueles que são particularmente consagrados a Deus. E quando eles usam assim, antes que a última sentença da igreja seja dada, sua ação não é somente destituída de justiça, mas mesmo destituída de toda a aparência dela.

São desígnios que têm ainda os parlamentos de trazer toda a jurisdição espiritual e eclesiástica ao tribunal dos príncipes, sob pretexto de que a justiça temporal não é menos destituída de fundamento e de aparência; entretanto não há juiz ordinário nem juiz real, que não queira ordenar ao tempo das procissões a hora das grandes missas e várias outras cerimônias, sob pretexto de comodidade pública; assim o acessório prejudica o principal, e no lugar que o culto de Deus deve marchar primeiro e dar as regras a todas as ações civis, ele não tem lugar senão depois que os oficiais temporais dos príncipes dão permissão.

Sei bem que a má justiça que se distribui algumas vezes, por aqueles que exercem a jurisdição eclesiástica, o tempo gasto e as formalidades prescritas pelos cânones, dão pretextos especiosos às tentativas dos oficiais do rei, mas isto não é com razão, visto que um inconveniente não estabelece outro, mas obriga a corrigi-los ambos, coisa que pretendo agora fazer.

Passaria em silêncio a pretensão que têm ainda os parlamentos de tornar abusivo tudo aquilo que se julgar contra os seus editais, aos quais por esse meio querem dar a mesma força que às ordenanças, se não estivesse obrigado a fazer ver que este abuso é tanto menos suportável quanto por um tal meio eles querem igualar sua autoridade àquela de seu senhor e do seu rei.

O mal que a igreja recebe de tais tentativas é tanto mais insuportável, quanto impede absolutamente os prelados de atenderem a seus cargos. Se um bispo quer punir um eclesiástico, ele se subtrai imediatamente à sua jurisdição por uma apelação contra abuso; se fazendo uma visita ele determina uma ordenança o efeito é imediatamente impedido, porque embora em matéria de disciplina os apelos sejam somente devolutivos, os parlamentos os tornam suspensivos contra toda a razão.

Enfim pode-se dizer com verdade que a igreja está sob ferros, e que se seus ministros têm os olhos abertos, têm as mãos ligadas, de sorte que conhecendo os males não está em seu poder dar-lhes remédio.

O que me consola nesta extremidade é que isto que a respeito é impossível à igreja, será fácil a V. M. de cuja vontade depende o remédio a tais desregramentos.

A primeira coisa que é preciso fazer para garantir-se é ordenar que, de futuro, as apelações como de abusos, não sejam mais admitidas senão em caso de uma manifesta empresa sobre a jurisdição real, e de uma evidente contravenção às ordenanças puramente emanadas da autoridade temporal dos reis, e não da experiência da igreja.

Essa ordenança pressuposta, para fazê-la religiosamente observar, V. M. a regulamentará de sorte que contenha seis pontos principais. O primeiro ponto desse regulamento deve obrigar a fazer que de futuro todas as apelações de abusos sejam seladas do grande selo pelo parlamento de Paris, e em todos os outros que o afastamento da corte obriga, sirvam-se dos pequenos selos, não podendo ser seladas senão depois da selagem prévia dos três antigos advogados com seus selos especiais, porque aí há lugar a abusos; submetendo-se à multa se for de outra forma.

O segundo deve declarar que todos os apelos lançados em matéria de disciplina serão somente (6) devolutivos e não suspensivos.

O terceiro ponto deve fazer que o abuso do qual alguém se queixar, seja especificado na razão de apelação e na sentença que cair sobre ele: o que é tanto mais necessário, quanto foi freqüente acontecer em casos do passado; embora não houvesse abuso senão por falta de formalidade, ou em um só ponto da sentença, que contaria vários, — quando o parlamento julgou ter havido abuso, a sentença seria desprezada em todos os pontos, embora ela não devesse ser senão em uma só das circunstâncias que de ordinário não era importante.

O quarto, deve adstringir os parlamentos a porem a causa das apelações como dos abusos, as primeiras no rol, fazendo-as chamar e julgar preferencialmente a todas as outras sem especificá-las, para evitar demora; que é freqüentemente desejada por aqueles que não tendo outro fim senão iludir a punição dos seus crimes, não têm outro fito senão cansar, seus juizes ordinários, aos quais apelam: não sendo razoável privar o público da administração da justiça eclesiástica, tornando aqueles que são principais oficiais, simples solicitadores ante um tribunal inferior ao seu.

O quinto, imporá a necessidade, aos parlamentos, de condenar sempre a multa e a custas aqueles que mal apelaram, sem possibilidade de dispensa por causa alguma e pretexto algum, voltando aos mesmos juizes aos quais apelaram sem razão. Isto é tanto mais necessário quanto sem este remédio haveria liberdade a todos os criminosos de se subtraírem à jurisdição ordinária interpondo um apelo por abuso, sem razão.

Ora; porque as melhores ordenanças e os mais justos regulamentos são em geral desprezados por aqueles que os devem mais religiosamente observar, com a licença das cortes soberanas fazem freqüentemente até este ponto, violando ou reformando as ordens de V. M., como bem lhes parece; para tornar efetiva a real vontade, fazendo que V. M. seja obedecido em ponto tão importante, a razão quer que a estes cinco primeiros pontos, se junte um sexto, que será remédio tão poderoso para constranger seus oficiais a cumprirem o seu dever a este respeito, como o das apelações de abusos é excelente para impedir os juizes eclesiásticos a faltarem ao seu, no exercício da sua jurisdição.

Este remédio não requer outra coisa senão a permissão que lhe pede todo o clero de apelar da justiça a V. M. mesma, valendo-se do conselho quando os parlamentos faltam às observações da real ordem e dos reais regulamentos.

Isto é tanto mais razoável quanto em lugar de reprimir as empreitadas da igreja, valendo-se diante dos juizes como se se valessem de um tribunal de ordem diferente e inferior, por sua natureza, — recorrerão ao real conselho para impedir o curso da ordem dos parlamentos, valendo-se de premonição de uma ordem da mesma espécie. E sem contradição aqueles mesmos que enviam franquias da igreja não poderiam achar do que criticar, pois que em lugar de torná-la independente da jurisdição temporal, aumentam de um grau a sua sujeição.

Enfim será tanto mais vantajoso para V. M. quanto contendo o poder da igreja nos seus próprios limites, restringirá também o poder dos parlamentos em extensão justa que lhes é prescrita pela razão e pelas leis.

Além disso, o comando de V. M. em relação ao seu conselho, usando nesse sentido do poder que tem de impedir pela real autoridade as ações de todos os reais súditos e particularmente as dos oficiais que exercem justiça nesse reino; ela toma um cuidado particular preenchendo não com gente cuja pretensão e importunação sejam os principais títulos a apresentar para obter seus fins, mas pessoas escolhidas pelo seu puro mérito em toda a extensão do reino; terá o contentamento de ver que aqueles que não quiserem conter-se nos limites do seu dever pela razão, seriam obrigados pela força da justiça e isso não durará muito tempo sem que se veja claramente que aquilo que foi forçado de começo se tornará enfim voluntário.


 

SEÇÃO III

Dos casos privilegiados e dos meios de os regular

 

As pessoas que se consagram a Deus, ligando-se à sua igreja são tão absolutamente isentas da jurisdição temporal dos príncipes, que elas não podem ser julgadas senão pelos seus superiores eclesiásticos.

O direito divino e o das gentes estabelecem claramente esta imunidade. O direito das gentes no que ele tem de reconhecido por todas as nações. O de Deus pela confissão de todos os autores que escreveram antes e a jurisprudência moderna do último século.

A igreja ficou nesta posse até que a má ordem produzida na administração da justiça eclesiástica deu lugar à ambição dos oficiais dos príncipes temporais, de tomarem a si tal assunto.

Ela mesma reconhecendo que a desgraça dos tempos a impediu pudesse reprimir por sua própria força, muitas desordens que haviam tido lugar entre os que estavam submetidos à sua jurisdição, resolveu-se, para tirar todo o motivo de queixa, e em razão da impunidade dos crimes que se cometiam à sombra da sua autoridade, dar poder aos juizes seculares de tomar conhecimento do assunto em alguns casos chamados privilegiados (7) porque eles não podiam tomar conhecimento senão em virtude do privilégio que lhes era particularmente concedido para tal efeito.

É preciso notar a este respeito que outros são os casos julgados privilegiados em todos os Estados, e aqueles julgados tais particularmente em França.

Os primeiros se podem reduzir a dois, que são os de homicídio voluntário, cometido com propósito deliberado, e a apostasia manifesta, como induzir os padres a desprezar e abandonar a vida eclesiástica, abandonar a batina, vivendo em vida escandalosa no mundo; seja levando armas, seja fazendo alguma outra ação contrária à sua profissão.

Os segundos eram de começo em pequeno número. Quando a pragmática foi estabelecida não havia senão dois: o porte de armas e a infração da salvaguarda do rei, mas, pouco a pouco sua extensão se tornou maior.

Toda a contravenção da pragmática foi julgada caso privilegiado.

A de concordatas foi posta em seguida na mesma categoria.

O reconhecimento de cédula ante o juiz real, também se julgou do mesmo gênero.

Os raptos, os roubos feitos nos caminhos, o falso testemunho, a moeda falsa, o crime de lesa-majestade, e todos os casos enormes foram julgados da mesma natureza pelos parlamentos.

Enfim, a dar-se-lhes crédito, todas as faltas dos eclesiásticos; mesmo as simples injúrias, se encontrarão como casos privilegiados, não havendo mais delito comum.

Os crimes reconhecidos privilegiados em todos os Estados são pelo consentimento e por opinião comum de toda a igreja, e muitos daqueles assim julgados neste reino, são por abuso ou por decisão dos oficiais reais.

Eles se atribuíram tanto mais audaciosamente o direito de intervenção em todos os casos dos clérigos, segundo a ordem dos cânones, que requer três sentenças conformes para condenação de seus delitos; é muito difícil punir mesmo os mais notáveis e impossível fazê-lo em pouco tempo. (8) Embora este pretexto seja plausível, e obrigue à reforma das formalidades observadas na administração da justiça da igreja; os antigos jurisconsultos não puderam ver tal empreitada sem jogar-se contra ela abertamente.

De nada serve dizer que esses crimes tornam os eclesiásticos indignos da sua imunidade, pois que por semelhante raciocínio se infeririam muitas conclusões tão falsas quanto prejudiciais àqueles mesmos que tiram tais conseqüências.

A única conseqüência que se pode inferir da demora e dos desregramentos que se notam na administração da justiça da igreja, é que é preciso levar aí a ordem requerida, e assim como os eclesiásticos são obrigados a ela os reis também são a mantê-la na imunidade que Deus deu à sua igreja.

Para satisfazer a estas duas obrigações a igreja deve remediar pelos meios que proporemos aqui, as insuportáveis demoras das três sentenças requeridas pelos antigos cânones, tornando-se tão exata na punição dos crimes cometidos por aqueles submetidos ao seu poder, que ninguém se aperceba de um escândalo sem que veja ao mesmo tempo uma punição exemplar.

E o rei fazendo uma declaração que compreenda todos os casos privilegiados, que podem ser reduzidos àqueles que podem ser cometidos por tais, em todos os Estados, e em toda a ordem, e além disso o porte de armas; a infração da salvaguarda do rei, o reconhecimento das cédulas, a apostasia manifesta, assim como acima foi explicado, o roubo nos caminhos, a moeda falsa, e todos os outros crimes de lesa-majestade, deve-se absolutamente proibir a seus oficiais tomar conhecimento de todos os outros casos, até que os acusados lhes sejam enviados pelos juizes da igreja; pois que se eles contravêm a esta ordem é preciso que se saiba, quase ao mesmo tempo, da sua punição e do seu delito.

Ora, porque a justiça quer que se tome um exato conhecimento de uma falta antes que se pense no seu castigo, e que ao rei não é possível distribuir justiça a todos os seus súditos, S. M. satisfará à sua obrigação se ela ordenar ao seu conselho privado de receber a queixa das contravenções que seus oficiais de quaisquer qualidades fizerem a um tal regulamento, punindo severamente a tais ações. Nesse caso a igreja ficará contente com tal ordem e se tornará tão cuidadosa em distribuir a justiça, quanto ficará com recebê-la do seu príncipe.


 

SEÇÃO IV

Que faz ver de que conseqüência é a “regale” pretendida pela Santa Capela de Paris sobre os bispos de França mostrando os meios de as suprimir.

 

Ainda que os cônegos da Santa Capela de Paris (9) sustentem que a "regale" lhes foi dada por São Luís, seu fundador, é verdadeiro que a primeira cessão que se encontra é de Carlos VII que lhes dá por três anos somente e direito de gozar da renda temporal dos bispados vagos aos quais a regale se liga. O termo desta graça tendo expirado, ele lha concedeu por mais três anos, e por quatro seguintes; tudo sob condição de que a metade dos dinheiros que daí proviessem, seria empregada na manutenção dos chantres, que deviam fazer o serviço; e a outra nas reparações, nos vitrais, nos ornatos, e na nutrição dos meninos do coro, assim como seria ordenado pela câmara das contas de Paris. Carlos VII tendo morrido, seu filho Luís XI conservou essa mesma graça à Santa Capela, por todo o tempo de sua vida, o que pareceu então tão extraordinário, que a câmara das contas não quis verificar as cartas senão por nove anos.

Em seguida ao reino de Luís XI, seus sucessores Carlos VIII, Francisco I e Henrique II continuaram esta mesma graça, cada um durante a sua vida.

Carlos IX passou além (10) e concedeu perpetuamente à Santa Capela o que seus predecessores não lhe tinham concedido senão temporariamente.

A intenção que tiveram estes príncipes é digna de louvor, pois que levaram a bom fim um direito que lhes pertencia. Mas a maneira pela qual aqueles da Santa Capela usaram, não poderia ser suficientemente recriminada, em vista de que em lugar de contentarem-se do que se lhes dera, quiseram sob tal pretexto subordinar todos os bispados de França, à “regale”.

O parlamento de Paris que pretende ser o único a ter conhecimento da “regale”, ficou a tal ponto cego com relação ao seu próprio interesse que não temeu sujeitar a uma tal servitude (11) todos os bispados, mesmo os que no nosso tempo foram unidos à coroa, ordenando em termos expressos aos advogados de não porem duvida que a extensão da “regale” não fosse tão grande, quanto a do reino.

Esta empreitada demasiado ampla para ter efeito, deu lugar às igrejas que se acham isentas desse direito de não quererem mais conhecer este tribunal como julgador e aos reis de avocar todas as instâncias desta natureza ao seu conselho.

A extensão deste direito sobre todos os bispados do reino é uma pretensão tão mal fundada que para dele se conhecer a injustiça, basta ler um título (12) cujo original está na câmara das contas; e que o presidente Lemaitre fez imprimir, enumerando os bispados sujeitos à “regale” e os isentos.

Outrora a opinião comum era de que além do Loire, não havia “regale”; (13) os reis Luiz o Gordo e Luiz o Jovem isentaram o arcebispado de Bordeaux e seus sufragantes.

Raimundo, conde de Toulouse, concedeu como graça a bispos de Languedoc e da Provença aquilo que depois lhes foi confirmado por Filipe, o Belo; e São Luiz (14) cedeu a “regale” de toda a Bretanha aos duques da região, pelo tratado feito com Pedro Mauclerc; o que mostra bem que ele não a deu à Santa Capela quando a fundou.

Vários outros bispados, como Lion, Autun, Auxerre e diversos outros estão certamente isentos desta sujeição que ninguém põe em dúvida.

As ordenações feitas em diversas épocas dão claramente a conhecer que jamais os reis pretenderam que a “regale” tivesse lugar sobre todos os bispados; e essa verdade é tão evidente, que Pasquier, advogado do rei na câmara das contas, foi obrigado a confessar que sustentar esta doutrina é antes de um “bajulador da coroa, do que será de um jurisconsulto francês”; tais são os seus termos.

A ignorância, ou por melhor dizer, a covardia e o interesse de alguns bispos não contribuiu pouco para o vexame que sofrem presentemente os prelados deste reino, que para se livrarem da perseguição que sofrem no que lhes diz respeito, não temem receber da Santa Capela quitação daquilo que com efeito não lhe pagam.

A segurança em que ficaram de que disputando seu direito diante dos juizes que eram seus partidários, eles seriam condenados, fê-los estimar que poderiam inocentemente cometer uma tal falta, cujo seguimento seria de muito perigosas conseqüências se a bondade de V. M. não reparasse o mal de sua fraqueza.

O direito comum querendo que a disposição dos frutos de um benefício vago seja reservada ao futuro sucessor; não se pode usar de outra maneira sem título autêntico que lhe dê poder.

Entretanto não se encontra ponto que estabeleça tão claramente a pretensão que têm os reis de disporem assim como bem lhes parece, e para justificar é preciso recorrer ao costume.

Esta verdade é tão certa que todas as ordenanças feitas neste sentido não fazem menção senão da antiga posse.

Ora; porque é fácil às potências soberanas atribuírem-se sob diversos pretextos aquilo que não lhes pertence; e que por esse meio uma usurpação injusta na sua origem, pode ser em qualquer tempo julgada legítima em virtude da sua posse, parece que se poderia pôr em dúvida com razão, que o costume pode ter força de título autêntico em relação aos soberanos.

Mas não tendo resolvido disputar o direito de V. M. mas somente lembrar a necessidade de regulá-lo; de sorte que não haja conseqüências prejudiciais, à salvação das almas, e sem querer aprofundar mais a origem e o fundamento da “regales” que suponho válidas; não pretendo outra coisa senão esclarecer o que a Santa Capela pode pretender em virtude da concessão recebida de seus reais predecessores, e propor o remédio que é preciso dar aos abusos que se cometem no gozo de uma tal graça.

Acontece freqüentemente que um bispo rico em todas as qualidades que lhe dão os cânones, e que a piedade das gentes de bem pode desejar; mas pobre por sua nascença, fica dois ou três anos na impossibilidade de regularizar o seu cargo, tanto pelo pagamento das bulas a que a concordata obriga, que importa freqüentemente em um ano inteiro de renda, quanto porque este novo direito lhe subtrai outro. De sorte que, se se junta a estas duas despesas aquela que é preciso que ele faça para comprar os ornamentos de que tem necessidade, e para de tudo se prover segundo a sua dignidade, ele se encontrará freqüentemente em situações tais que três anos se passam antes que possa tirar algo para seu sustento, o que faz com que muitos não cheguem aos seus bispados, escusando-se com a sua necessidade; ou furtando-se à montagem de casa a que são obrigados, e privam-se da reputação de que devem gozar como pastores ante seu rebanho, como também ficam incapazes de várias ações de caridade senão por palavras.

Acontece também algumas vezes que para evitar estes inconvenientes eles se comprometem de tal sorte que alguns são levados a praticar más ações para livrarem-se das dívidas; e aqueles que não caem nessa extremidade, vivem em perpétua miséria, e frustam enfim os seus credores daquilo que lhes é devido, pela impossibilidade de pagar-lhes.

O remédio a este mal é tão fácil quanto necessário, pois que ele não consiste senão em anexar à Santa Capela uma abadia de renda igual àquela que pode tirar de tal estabelecimento.

Dir-se-á talvez que não será fácil esclarecer convenientemente este ponto, por causa da dificuldade que a companhia oporá em pôr a limpo aquilo que ela quer ter escondido. Mas se V. M. ordena que em dois meses justifique pelos atos do seu registro aquilo de que gozava antes da concessão perpétua que lhe fez Carlos IX, e isto sob pena de perda de direito, este processo muito jurídico fará ver justamente o pé que é preciso tomar para recompensar os benefícios que ela recebeu de seus reais predecessores. Sei bem que esse capítulo pretenderá que se deva considerar a renda recebida da “regales” tal como dela se goza presentemente mas é certo que ao terem assegurada a perpetuidade desta graça ele a estendeu sobre diversos bispados que são isentos; é claro que o tempo que proponho é aquele dentro do qual se pode justamente tomar tais medidas.

Se V. M. assim determinar, com poucos gastos garantirá um bem indizível à sua igreja, por meio da qual as almas poderão mais facilmente receber o pão que lhes é tão necessário e que devem esperar de seus pastores.

Se em seguida continuar na resolução tomada e que continua de há muito tempo, de não dar pensão sobre os bispados, o que é absolutamente necessário, não omitirá coisa alguma do que está em seu poder, para impedir que a necessidade dos bispos ponha-os fora dos meios de cumprirem o seu dever.


 

SEÇÃO V

Da necessidade que há de encurtar as demoras que se observam na justiça eclesiástica, do que advém ficarem três crimes impunes.

 

Não há ninguém que não saiba que as ordens que são da pura polícia na igreja podem e devem freqüentemente ser mudadas segundo a mudança dos tempos. Na pureza dos primeiros séculos do cristianismo, este uso foi bom, mas agora seria prejudicial.

O tempo, que é pai de toda a corrupção, tendo tornado os costumes dos eclesiásticos diferentes daqueles que tinham no fervor do seu primitivo zelo; é certo que em lugar do que, durante o curso de vários inocentes anos da igreja, nos quais o zelo dos prelados os tornavam tão severos na punição dos crimes quanto são presentemente covardes e negligentes, é certo, digo eu, que se bem nesse tempo as demoras das formalidades da jurisdição eclesiástica não deviam ser temidas, elas são agora muito prejudiciais e a razão não permite que continuem.

Esta consideração faz que seja necessário abolir a antiga ordem prescrita pelos cânones, que requerem três sentenças conformes para convicção dos clérigos.

O mau uso que durante muito tempo se fez de uma tal ordem, autor de toda a impunidade e por conseguinte da desordem na igreja, obriga a se fazer justiça neste ponto, para tirar todo o pretexto aos juizes temporais de seguir a opinião de certos teólogos que não temeram dizer que mais vale que a ordem seja produzida por um juiz incompetente do que deixar que a desordem reine.

E impossível tirar o direito de jurisdição dos arcebispados dos primados da Santa Sé, do que acontece muito freqüentemente serem dadas seis ou sete sentenças antes que três estejam conformes; pode-se remediar a este inconveniente ordenando que a sentença dos juizes delegados do Papa, por apelação do primado ou do arcebispado seja definitiva e soberana; e, a fim de que este julgamento possa ser obtido prontamente, e que o zelo da igreja apareça na boa administração da justiça, é preciso que o rei se junte ao seu clero para obter da Santa Sé de que em lugar de recorrer em todos os casos particulares que é preciso julgar, haja por bem delegar em todas as províncias do reino, em pessoas de capacidade e probidade requeridas, que sem novas formalidades possam julgar soberanamente todas as apelações que se fizerem em seu tribunal.

Esta proposição não pode ser odiosa para Roma pois que a concordata obriga os Papas a delegar “in partibus” para a decisão das causas que se apresentarem; somente aí haverá diferença que no lugar em que agora é preciso em cada causa, se dirigir a Roma para delegação dos ditos juizes, eles se acharão todos nomeados para a decisão de todas as causas do reino; o que facilitando a punição dos crimes dos eclesiásticos criminosos deve tirar todo pretexto aos parlamentos de empreender como fazem contra a justiça da igreja e aos eclesiásticos tirando todo o motivo de que se possam queixar.

Também aqueles que são inimigos declarados da igreja ou que invejam a sua imunidade terão de futuro a boca fechada contra ela: e os melhores dos seus filhos que até a presente data não quiseram falar a este respeito para sustentar a sua causa, falarão audaciosamente, de cabeça levantada, defendendo a sua autoridade contra aqueles que quereriam oprimi-la sem razão.

Sei bem que a Santa Sé apreenderá com seus delegados estabelecidos como eu o proponho, podendo tomar com o tempo uma ditadura perpétua; mas mudando-se de tempos em tempos, como julgo a propósito e necessário, este inconveniente não deve ser temido e se se costumar obter de Roma apelações em cada causa, como deve ser, os direitos de Roma ficarão inteiros e sem diminuição.

Dir-se-á talvez que não havia necessidade de mais tempo para obter de Roma nova delegação de juizes para cada crime cometido, do que para enviar os casos aos delegados; mas há muita diferença, sendo certo que um dos principais abusos que impedem a punição dos crimes dos clérigos consiste em que o apelante obtém de ordinário de Roma a sua devolução ao juiz que deseja, em França, por conivência com os banqueiros, que por dinheiro servem aos seus partidários como eles querem.


 

SEÇÃO VI

Que representa o mal que recebe a igreja das quatro isenções de que gozam diversas igrejas com prejuízo do direito comum e propõe os meios de os remediar.

 

A isenção é uma dispensa ou relaxação da obrigação que se tem de obedecer a seu superior. Ela comporta diferentes espécies; umas são de direito, outras são de fato.

As isenções de direito são aquelas de que se goza pela concessão de um superior legítimo que as dá com conhecimento de causa.

A isenção de fato é aquela de que se toma posse sem título (15) mas somente pelo uso de um tempo imemorial.

Enquanto o primeiro gênero de isenção é aprovado pelos casuístas como fato de legítima autoridade, o último que de si mesmo não é legítimo não é sempre condenado por eles; porque, aqueles que gozam de tempos imemoriais de um privilégio tiveram outrora bulas, que lhas acordavam, embora não possam mostra-las.

Há três espécies de isenções de lugar; a primeira é aquela do monastério dos mendicantes, que o bispo não visita, embora seja recebido solenemente quando aí aparece, podendo ter sua ordem e fazer exercer todas as funções episcopais que se lhe antolham.

A segunda é de muitos outros lugares, nos quais eles não são recebidos, e não podem exercer nenhuma função episcopal, sem darem uma declaração de que seja sem prejuízo dos direitos e privilégios dos ditos lugares: abadia de Marmoutier, a de Vendome, e várias outras estão neste caso.

A terceira é de certos territórios na extensão dos quais os bispos não exercem nenhuma jurisdição, nem mesmo sobre os laicos, sobre os quais aqueles que gozam de uma tal isenção têm, só eles, a jurisdição e o poder chamado comumente de lex diocoesana: As abadias de São Germano des Prés, de Corbia, de São Florêncio de Vieil de Fescamp e várias outras são neste caso, em toda a extensão do seu território, os únicos religiosos exercendo toda a jurisdição episcopal.

Dão dispensa de “bandos”, concedem monitórios, publicam os jubileus, assinam a extensão em seguida à provisão de Roma; vistos se expedem em seus nomes; pretendendo mesmo ter o direito de escolher os bispos que bons lhes pareçam, para dar as ordens sem permissão do seu chefe diocesano.

Enfim eles dão as demissórias para receber as ordens de tal bispo que seja seu preferido.

Tal é a isenção do capítulo de Chartres, em virtude da qual o bispo não pode fazer sua entrada na igreja, sem dar o ato pelo qual promete conservar todos os privilégios da igreja; sem isso não pode fazer nenhuma visita, nem a do santo sacramento, nem dos santos óleos.

Essas pessoas são de tal forma isentas da jurisdição dos bispos que quando um cura se torna delinqüente, o capítulo lhe dá juizes para o processarem e sem a apelação do julgamento ela se provê em Roma para ter juizes in partibus porque essa igreja “ad sanctam romanam ecclesiam admisso nullo medio, pertinet”.

Publicam indulgências; têm cento e tantas paróquias; exercem toda a jurisdição diocesana, e a apelação de todas as suas sentenças vai a Roma ordenando eles, todas as procissões gerais.

Dessa mesma natureza é São Martinho de Tours.

Quatro sortes de pessoas se encontram principalmente isentas na igreja! Os bispos dos primazes, os bispos dos arcebispos; os monge e os religiosos, dos bispos; e os cônegos dos bispos e arcebispos.

Tais isenções são diferentes em várias circunstâncias; umas somente isentam pessoas e outras isentam também os lugares de sua morada e todas de formas diferentes.

Antigamente os arcebispos estavam sujeitos aos primazes (16) aos quais o Papa mandou o “pallium” para exercer poder e autoridade sobre os metropolitanos.

Desde esse tempo aqueles de França com isenção dos de Tours, de Sens, e de Paris, obtiveram ou por bula ou por prescrição, licença de não relevar os primazes.

Alguns bispos (17) isentaram-se também pelo Papa da sujeição aos seus arcebispos.

Os monges são quase todos isentos da jurisdição ordinária, e seu direito está fundado na própria concessão dos bispos ou na dos Papas; suas isenções as mais antigas, como são aquelas que lhes foram concedidas há 700 ou 800 anos, vêm dos bispos e arcebispos; mas todas aquelas que foram obtidas desde esse tempo, lhes foram dadas pelos Papas com o fito ou de impedir que a reunião dos bispos perturbasse a sua solidão ou para garanti-los do rigor de alguns, pelos quais eles eram ou se pressupunham ir ser rudemente tratados.

Os últimos que se isentaram de seus superiores foram os cônegos. Em sua primeira instituição eles estavam tão estreitamente ligados e unidos aos seus bispos, que nada podiam fazer sem a sua permissão; e subtrair-se à sua obediência, seria o maior crime que nesse tempo poderia ser cometido.

Vários julgaram que toda a sua isenção vinha dos antipapas, ou que elas fossem manifestamente sub-reptícias ou simplesmente fundadas sobre a posse em tempo imemorial; mas é coisa certa, que há algumas mais antigas do que os cismas, e mais autorizadas que aquelas que recebem sua força e sua virtude dos antipapas.

Os mais legítimos concederam algumas (18) ou em seguida às concessões dos bispos, por transações feitas com eles; ou de moto próprio, sob pretexto de garantir os cônegos do mau tratamento recebido deles.

Para penetrar esta matéria até ao fundo e distinguir claramente as boas isenções das más é preciso considerar de maneira diferente as bulas que as autorizam.

Outras são aquelas que foram concedidas pelos papas antes da desgraça dos cismas.

E outras aquelas que foram dadas depois da extinção dos mesmos.

Aquelas do primeiro gênero devem ser tidas como boas e válidas; mas tais bulas sendo uma isenção do direito comum que é sempre odioso, é preciso examiná-las com cuidado, a fim de que não haja engano quanto ao seu teor; sendo certo que muitas podem ser levadas adiante como bulas de isenção, que sejam simples bulas de proteção que antigamente se obtinham, e bulas que concedem alguns privilégios particulares, mas não uma isenção da jurisdição ordinária, ou bulas que dão somente poder aos capítulos, de exercer uma jurisdição subalterna à dos bispos, semelhante à dos arquidiáconos, que em certas igrejas têm direito de excomungar, interdizer e ordenar penitências públicas, embora estejam sempre submetidos à jurisdição dos bispos.

Quanto às bulas do segundo gênero, sendo elas nulas de pleno direito, por falta de poder legítimo naqueles que a outorgaram, particularmente pela constituição do Papa Martinho V (19), a qual quebra todas as bulas obtidas durante os cismas; não se pode sem malícia ou sem ignorância querer que prevaleçam com prejuízo do direito comum.

Aquelas do terceiro gênero foram acordadas ou para servirem de nova isenção, ou para confirmar precedentes.

As primeiras devem ser reputadas nulas, ou porque sejam diretamente contrárias ao decreto de que falou Martinho V, ou porque tivessem sido subrepticiamente obtidas, assim como foi julgado pelos parlamentos de Paris e Toulouse, contra os capítulos de Angers e de Cahors.

As segundas não tendo sido concedidas senão para confirmar um direito antigo, que não se acha nunca estabelecido em vão, devem segundo julgamento de todas as pessoas desprovidas de paixão, ficar sem efeito.

Resta a ver se as isenções (20) fundadas sob simples concessões feitas pelos bispos, ou em transações e sentenças arbitrais dadas nesse sentido contra eles e seus capítulos; nesse caso são boas e válidas.

Se não é nunca permitido aos bispos alienar o seu temporal sem uma vantagem e um ganho manifesto, menos podem eles renunciar à sua autoridade espiritual, com prejuízo da igreja, que vê por esse meio a divisão dos seus membros em face do seu chefe, e mudar-se a regra que a faz subsistir, em confusão que a perde e a arruina.

A nulidade de transações dos compromissos ou das sentenças arbitrais é por esse princípio, evidente; aquele não pode comprometer nem transigir com aquilo cuja disposição não lhe é facultada; e se se encontram autores que estimam que se pode transigir com as coisas espirituais, todos isentam algumas, entre as quais a sujeição dessa natureza tem primeiro lugar; e com efeito essa sorte de títulos é tão inválida para o fato de que se trata, que quando mesmo fosse confirmada pelos papas, não teriam eles suficiente força para privar do seu direito os sucessores dos bispos que se tivessem despojado de sua autoridade de uma das três maneiras especificadas acima.

A razão faz conhecer que nenhuma destas maneiras pode valer contra o direito comum; ela faz ver também que as bulas simplesmente confirmativas das concessões, transações ou sentenças arbitrais, não dão nenhum direito àqueles que dela se querem servir porque não podem ter mais força do que os fundamentos que supõe.

Um tal ponto fica sujeito a exame, isto é, a saber se o costume e as antigas posses nas quais se acham os capítulos contra a autoridade de seus bispos, são títulos suficientemente válido para fazer sofrer à igreja o mal que lhe trazem as isenções.

O costume (21) é uma regra enganosa; os maus costumes embora muito antigos são universalmente condenados e todos aqueles que são contra o direito comum e que destroem uma ordem estabelecida por constituições eclesiásticas, devem ser tidos por tais, e não podem ter o justo fundamento de prescrição muito menos ainda no que diz respeito ao direito canônico, do que ao civil, visto que os estabelecimentos da igreja tiram sua origem de um princípio mais seguro; e por tudo deve-se decidir a dificuldade proposta, dizendo que o costume deve servir de título em tudo aquilo que pode ser possuído por direito comum, porém nunca naquilo cuja posse o viola, em cujo caso é inútil se não acompanhado de um título tão autêntico que seja isento de toda suspeita. Daí resulta que o direito comum sujeitando todos os curas aos seus bispos, não há costume suficientemente poderoso para os isentar de tal sujeição.

É impossível de se imaginar os diversos males em que as isenções têm origem e causa. Elas perturbam a ordem que a igreja estabeleceu de conformidade com a razão, que quer que os inferiores sejam submetidos aos seus superiores.

Elas arruinam a concórdia que deve existir entre o chefe e os seus membros, autorizam toda a sorte de violências e tornam vários crimes impunes tanto na pessoa dos privilegiados quanto naquelas de muitos libertinos que procuraram cobrir-se com a sua sombra.

Pode-se remediar a este mal por dois meios, ou abolindo absolutamente todas estas isenções ou tratando-se de as regular.

Sei bem que o primeiro expediente, como o mais absoluto é mais difícil; mas não impossível; não o deixo de propor a V. M. que sempre teve prazer em fazer aquilo que os seus predecessores não ousaram sequer tentar.

Não estimo entretanto a propósito lançar mão desse recurso no que diz respeito às isenções, das quais gozam os religiosos e seus monastérios. Esparsos em diversas dioceses: a uniformidade do espírito que deve regê-las, requer um lugar de governo por diversos bispos, cujos espíritos são diferentes, que sejam governados por um só chefe regular, e nesse fundamento sustento audaciosamente que é tão necessário deixá-lo na posse da legítima isenção de que goza, como é justo reconhecer a validade pelo exame da bula, embora a estendam algumas vezes além do limite não permitido pela razão.

Mas digo mais, que se pode abolir as outras isenções com tanto proveito para a igreja quanto este motivo universal é suficiente para fazer desprezar os interesses particulares nesta ocasião.

Basta que uma coisa seja justa, para que a gente seja levado a empreendê-la, e nesse caminho nos obrigamos quando a coisa é necessária.

A igreja tendo subsistido até o presente sem a mudança que proponho, não suponho que haja essa última qualidade, mas digo que seria extremamente útil no que diz respeito a se tirar todo motivo que escusa aos bispos se falhassem no preenchimento do seu cargo.

Para se servir desse primeiro meio não seria necessário outra coisa senão uma revogação, feita por S. Santidade, das isenções e privilégios de que tratamos, e um poder aos bispos de exercer a sua jurisdição sobre seus capítulos e todos os isentos, com exceção daqueles que acima falei.

Uma bula deste teor acompanhada de uma declaração de V. M. verificar em seus parlamentos e no seu grande conselho, romperia as cadeias que ligam as mãos aos prelados do seu reino, e os tornaria responsáveis pelas desordens de dioceses, pelas quais é impossível que possam agora responder.

A obtenção dessa, bula seria a meu ver, tanto mais fácil, quanto ela é conforme às premissas do conselho de Trento que declara nominalmente, (22) que os capítulos e os curas não podem, em virtude de alguma isenção, costume, posse sentença, juramento e concordata ou coisa semelhante, impedir de serem visitadas, corridas e castigadas por seus bispos ou outras pessoas deputadas de sua parte; e quando mesmo este expediente não fosse do gosto de Roma, onde as novidades embora úteis são comumente odiosas e onde a menor oposição impede de ordinário grandes benefícios; V. M. fazendo observar quanto a isso o decreto do concílio, não terá necessidade de nenhuma nova expedição.

Sei bem que este remédio será desaprovado pelo parlamento, no espírito do qual o uso e a prática prevalecem freqüentemente a algumas razões que possam ser trazidas; mas após ter previsto este bem e considerado todos os obstáculos que podem ser encontrados; digo sem temor que seria muito melhor passar por cima, do que parar por motivo de oposição que se lhe faça, e V. M. pode ser levado a mudança com tanta mais razão quanta pondo as coisas no direito comum, ela as restabeleceria em sua natureza, sendo algumas vezes bom aos soberanos terem audácia que é justa, e cuja importância não pode ser posta em dúvida (23).

Os cônegos têm seus títulos tão escondidos, que é impossível de tomar-se deles conhecimento sem autorização do rei; pode-se supor mesmo que não os tenham; e Pedro de Blois e Pedro o Venerável disso se queixavam abertamente.

Embora a utilidade destes dois expedientes tenham o mesmo efeito, deve-se fazê-los aprovar; o temor que tenho de que a dificuldade que haveria na execução os tornassem inúteis, fez-me passar ao segundo que consiste em fazer nomear comissões de bispos, curas e religiosos, que junto aos deputados do conselho e dos parlamentos se fizessem apresentar todas as isenções e privilégios da igreja; a fim de que sendo levados a V. M. aquelas que fossem encontradas boas e válidas, pudessem ser reguladas e aquelas que não tivessem legítimo fundamento fossem abolidas: Há tanto mais clareza na prática deste expediente que a ordenança de Orleans (24) feita sob Francisco II tem um artigo expresso para regular a isenção.

Se em seguida o papa quisesse dar poder em cada metrópole aos juizes delegados que nós propusemos acima regulando pela autoridade da Santa Sé, aquilo que os bispos não poderão fazer por si mesmos em vista das isenções que ficaram em plena força e vigor, V. M. exigindo do seu conselho tomar conhecimento das disputas que sobrevierem, remediará absolutamente a todos os males dos quais tais privilégios são causa.


 

SEÇÃO VII

Que representa os inconvenientes que provêm do fato de os bispos não gozarem de pleno direito, dos benefícios que lhes são devidos.

 

Resta falar do mal proveniente de que os bispos não dispõem da maior parte das paróquias de sua diocese, às quais os patronos eclesiásticos, ou os laicos, têm direito de apresentar.

Os patronos começaram a gozar do direito de patronagem no concílio de Orange, onde foi ordenado que os bispos que quisessem constituir igrejas em outras dioceses teriam direito de nelas porem os padres a sua vontade, desde que fossem julgados capazes pelos bispos diocesanos. O mesmo direito foi também dado por Justiniano aos laicos que quisessem fundar capelas, o que obtiveram em seguida em relação aos próprios monastérios, dos quais eles se tornavam fundadores. O nono concílio de Toledo estendeu ainda o direito de patronagem laica às igrejas paroquiais, permitindo aos fundadores nomear os curas, de modo que a negligência com a qual os bispos satisfizessem às suas fundações desviassem de novas (25).

O direito se perdia quando os fundadores perdiam a vida; Justiniano, Gregório e Pelágio o estenderam a seus filhos: enfim sob Carlos Magno passou aos herdeiros, fossem quais fossem, e assim continua até o presente.

Este direito louvado por vários pais da igreja, tendo sido confirmado por diversos concílios e especialmente pelo de Trento, deve ser considerado como santo e inviolável por sua antigüidade, por sua autoridade fundada sobre os cânones dos pais e dos concílios e pela utilidade de que goza a igreja, em favor da qual fazem-se muitas fundações para que se adquira, por esse meio, o poder de nomear aqueles que devem usufruí-la.

Mas quando ponho diante dos meus olhos que a necessidade não tem leis e que o uso de um privilégio que foi bom no fervor dos fundadores é agora tão prejudicial pela corrupção daqueles que são herdeiros de tais bens e que não o são do seu zelo, nem da sua virtude, nem algumas vezes da sua religião, é impossível deixá-los continuar sem expor muitas almas a perda: Ouso dizer abertamente que não se pode deixar de remediar a uma desordem de tais conseqüências, sem que se seja responsável ante Deus.

Muitos pensarão que o melhor remédio deste mal está em abolir inteiramente a causa, mas quando considero que o que é legado a título oneroso, isto é, pelo transporte de seu próprio bem, não pode ser possuído com justiça, senão com o cumprimento das condições às quais devem obedecer, e que os pais do concílio de Trento, que conheciam os abusos não ousaram pensar em mudá-los, não creio que um particular possa sem temeridade propor um tal remédio; valendo mais recorrer a um meio mais doce não proposto pelo concílio de Trento, embora nenhum ele tenha apresentado.

Este meio é (26) que o sínodo eleja os examinadores pelos quais todos os aspirantes aos benefícios encarregados de almas, sejam cuidadosamente examinados, a fim de que a sua capacidade e a sua probidade sendo conhecidas, eles possam em seguida propor dois ou três dos mais capazes aos patronos das paróquias que vagarem, a fim de que escolham e apresentem ao bispo, aquele que lhe for mais agradável.

Sei que este expediente tira um pouco da liberdade que têm hoje os patronos em França, mas, posto que restringindo-a eles a conservam tirando o meio de porem pessoas incapazes nas cúrias, deve este expediente ser recebido tanto mais voluntariamente a meu ver, quanto remediando ao mal que vem da apresentação das cúrias, se a ordem do concílio é observada, remediará também àqueles males que são causados pela facilidade com a qual os arcebispos investem freqüentemente os padres que seus sufragantes recusaram, e como quer o concílio, que os examinadores que propõem para ser juizes da capacidade daqueles que devem ser nomeados para as cúrias, sejam obrigados a dar contas da sua ação aos concílios provinciais; também não quer que os arcebispos passem por cima dos seus julgamentos sem um motivo tão legítimo que não possa ser posto em dúvida.


 

SEÇÃO VIII

Da reforma dos mosteiros.

 

Depois de tão justos regulamentos como aqueles que foram descritos acima é da piedade de V. M. autorizar, tanto quanto puder, a reforma das religiões.

Sei bem que muitas considerações dão lugar a temer que aquelas que nasceram em nosso tempo não sejam tão austeras em sua continuação, quanto de começo, mas é preciso não deixar de amparar e de favorecer, visto que o bem não muda de natureza por ser de pouca duração, mas que é sempre bem, e aquele que faz o que pode com prudência e bom intuito, faz o que deve e satisfaz ao que Deus pede dos seus cuidados.

É bem verdade que sempre pensei, e assim o estimo ainda agora, que valeria melhor estabelecer reformas moderadas na observação das quais os corpos e os espíritos possam substituir com facilidade, do que empreendê-las tão austeras que os mais fortes espíritos e os corpos os mais robustos tenham dificuldade em suportar-lhes o rigor: as coisas temperadas são de ordinário estáveis e permanentes, mas é preciso uma graça extraordinária para fazer subsistir o que parece forçar a natureza.

É ainda de notar que a reforma das religiões neste reino deve ser diferente da dos outros Estados, os quais estando isentos de heresias, requerem antes uma profunda humildade e uma simplicidade exemplar nos religiosos, que a doutrina absolutamente necessária neste reino, no qual a ignorância dos mais virtuosos religiosos do mundo pode ser tão prejudicial a algumas almas que têm necessidade da sua erudição, como o seu zelo e a sua virtude são úteis a outrem e a eles mesmos.

Devo dizer de passagem, a este respeito, que no que concerne particularmente à reforma dos mosteiros de mulheres, é um expediente nem sempre infalível o de remeter as isenções, e particularmente as trienais ao lugar da nomeação do rei.

As brigas e as facções que tomam pé na fraqueza deste sexo são tão grandes algumas vezes, que se tornam insuportáveis; vi por duas vezes V. M. ser obrigado a tirá-las dos lugares onde havia colocado, a fim de pôr as coisas no seu primitivo estado.

Como é da piedade de V. M. trabalhar no regulamento das antigas religiões é de sua prudência impedir o muito grande número de novos mosteiros que se estabelecem todos os dias.

Isso é preciso; desprezando-se a opinião de certos espíritos, tão fracos quanto devotos e mais zelosos do que prudentes, que estimam freqüentemente que a salvação das almas e do Estado depende daquilo que é prejudicial a ambos.

Assim seria preciso ser ou mau ou cego, para não ver e não confessar que as religiões não são somente úteis mas mesmo necessárias; também é preciso estar prevenido de um zelo excessivamente indiscreto, para não conhecer que o excesso é incômodo e poderia chegar a um tal ponto que se tornasse ruinoso.

O que se faz pelo Estado, fazendo-se por Deus que é dele a base e o fundamento; reformando as casas já estabelecidas, evitando excesso de novos estabelecimentos, seriam duas obras agradáveis a Deus, que quer regra em todas as coisas.


 

SEÇÃO IX

Da obediência que se deve ao papa.

 

A ordem que Deus quer que seja observada em todas as coisas, me dá azo a representar aqui a V. M. que assim como os príncipes são obrigados a reconhecer a autoridade da igreja e se submetem ao seu santo decreto, mostrando inteira obediência no que concerne ao poder espiritual que Deus lhe pôs em mãos para salvação dos homens, e que assim como é do seu dever manter a honra dos papas como sucessores de S. Pedro e vigários de Jesus Cristo, assim também não devem ceder à sua imposição se querem estender o seu poderio além de tais limites.

Se os reis são obrigados a respeitar a tiara do Sumo Pontífice eles também o são de conservar o poder da sua coroa.

Essa verdade é reconhecida por todos os teólogos, mas não há pouca dificuldade em bem distinguir a extensão e a subordinação desses dois poderes.

Em tal matéria não se deve crer nem nos palacianos que medem de ordinário o que diz respeito ao rei, pela forma da sua coroa, que sendo redonda não tem fim; nem aqueles que por excesso de um zelo indiscreto tornam-se abertamente partidários de Roma.

A razão quer que se estenda uma e outra para resolver em seguida as dificuldades por pessoas tão doutas que não possam enganar-se por ignorância; e tão sinceras que nem os interesses do Estado nem os de Roma, possam dominar-lhes a razão.

Posso dizer com verdade ter sempre achado os doutores da faculdade de Paris, e os mais sábios religiosos de todas as ordens tão razoáveis nesse ponto, que não lhes encontrei nenhuma fraqueza que lhes impedisse defender os justos direitos deste reino; também nunca notei neles nenhum excesso de afeição pelo seu país natal que os levasse a querer cortar os verdadeiros sentimentos da religião, diminuir aqueles da igreja para aumentar os outros.

Em tais ocasiões as opiniões dos nossos padres, devem ser de grande peso; os historiadores e os mais célebres autores desprovidos de paixão, que escreveram em cada século, devem ser consultados cuidadosamente, sobre os assuntos nos quais nada nos pode ser tão contrário quanto a fraqueza ou a ignorância.


 

SEÇÃO X

Que esclarece o estado que se deve fazer das letras e mostrar como elas devem ser ensinadas neste reino.

 

A ignorância que venho de representar ser algumas vezes prejudicial ao Estado dá-me lugar a falar das letras, um dos maiores ornamentos dos Estados; e devo fazer neste lugar, pois que o seu império é justamente devido à Igreja; em vista de que toda a sorte de verdades têm natural relação com a primeira, dos sagrados mistérios da qual a sapiência eterna quis que a ordem eclesiástica fosse depositária.

Como o conhecimento das letras é completamente necessário numa república, é certo que elas não devem ser indiferentemente ensinadas a todo o mundo.

Assim como um corpo que tivesse olhos em todas as suas partes seria monstruoso, da mesma forma um Estado o seria se todos os seus súditos fossem sábios; ver-se-ia aí tão pouca obediência, quanto o orgulho e a presunção seriam comuns.

O comércio das letras baniria absolutamente o das mercadorias que cumula os Estados de riquezas; arruinaria a agricultura, verdadeira mãe dos povos; e faria desertar em pouco tempo as massas de soldados, que surgem antes na rudeza da ignorância do que na polidez da ciência: enfim, encheria, a França de chicanistas, mais próprios a arruinar as famílias particulares e a perturbar o repouso público, do que a conquistar bens para o Estado.

Se as letras fossem profanadas por toda a sorte de espíritos, ver-se-ia mais gente capaz de formular dúvidas do que de resolvê-las e muitos seriam mais próprios a opor-se à verdade que a defendê-la.

É nesta consideração que os políticos num Estado bem regulado querem mais mestres em artes mecânicas do que mestres em artes liberais, para ensinar as letras.

Freqüentemente vi, pela mesma razão, o cardeal Du-Perron, desejar ardentemente a supressão de uma parte dos colégios deste reino; ele desejava fazer estabelecer quatro ou cinco célebres em Paris e dois em cada cidade metropolitana de províncias.

Acrescentava a todas as considerações expostas, que era impossível que se achasse, em cada século, gente suficientemente sábia para encher a multidão de colégios; enquanto que se se contentassem todos em ter número moderado, eles poderiam ser cheios de dignos cidadãos que conservariam o fogo do templo na sua pureza e que transmitiriam por sucessão ininterrupta a ciência na sua perfeição.

Parece com efeito, quando considero o grande número de gente que faz profissão de ensinar as letras e a multidão de crianças que se faz instruir, que vejo um número infinito de doentes que não tendo outro destino senão beber água pura e clara para sua cura, estivesse com sede tão desregrada que tomando indiferentemente todas as águas que se lhes apresentassem, a maior parte beberia linfa impura e freqüentemente em vasos envenenados, o que aumentaria a sua sede e o seu mal em lugar de aplacá-los.

Enfim, desse grande número de colégios indiferentemente estabelecidos em todos os lugares, provêm dois males: um vem da medíocre capacidade dos que são obrigados a ensinar, não sendo possível encontrar gente eminente para encher as cadeiras; outro pela pouca disposição natural que têm pelas letras muitos daqueles cujos pais os fazem estudar; por causa da comodidade que encontram sem que o alcance dos seus talentos seja examinado, daí vem que quase todos aqueles que estudam ficam com uma medíocre tintura de letras; uns por não serem capazes de mais e outros por mal instruídos.

Embora este mal seja de grandes conseqüências, o remédio não é difícil, pois que não é preciso outra coisa senão reduzir todos os colégios das cidades que não são metropolitanas a duas ou três classes suficientes para tirar a juventude de uma ignorância grosseira tão prejudicial àqueles mesmos que destinam sua vida às armas ou que querem empregá-la no comércio.

Por esse meio, antes que os meninos sejam determinados a alguma condição, dois ou três anos farão conhecer o alcance do seu espírito: em seguida os que são bons, sendo remetidos para as grandes cidades, terão resultados tanto melhores quanto mais gênio tiverem para as letras e sendo instruídos pelas melhores mãos.

Tendo sido evitado esse mal muito maior do que parece, é preciso ainda garantir-se de um outro, no qual a França cairia sem dúvida, se todos os colégios que estão estabelecidos estivessem numa mesma mão.

As faculdades pretendem que ficam prejudicadas não se lhes deixando privativamente a faculdade de ensinar à mocidade.

Os jesuítas de outro lado não ficariam aborrecidos se ficassem com o monopólio desta função.

A razão que deve decidir de toda a sorte de disputas não permite frustar um antigo possuidor daquilo que possui com bom título: e o interesse público não pode sofrer que uma companhia não somente recomendável por sua piedade, mas célebre por sua doutrina, como é a dos jesuítas, seja privada de uma função da qual pode encarregar-se com grande utilidade para o público.

Se as universidades ensinassem sós, seria de temer que com o tempo elas voltassem ao orgulho que tiveram antigamente e que poderia ser para o futuro tão prejudicial, quanto o foi para o passado.

Se de outro lado os jesuítas não tivessem companheiros na instrução da mocidade, além de que se poderia temer o mesmo inconveniente, ter-se-ia justo motivo de temer vários outros.

Uma companhia que se governa mais do que nenhuma outra pelas leis da prudência e que dando-se a Deus sem se privar do conhecimento das coisas do mundo vive numa tão perfeita correspondência, que parece que o mesmo espírito anima a todos os corpos: uma companhia que está submetida por um voto de obediência cega a um chefe perpétuo não pode, segundo as leis de uma boa política, receber muita autoridade num Estado, no qual uma comunidade poderosa deve ser temível.

Se é verdade como é coisa certa, que é agradável contribuir para o progresso daqueles dos quais se recebe a primeira instrução e que os pais têm sempre particular afeição por aqueles que ensinam aos seus filhos, também é verdade que não se poderia dar aos jesuítas o encargo da educação completa dos meninos sem expor-se a dar-lhes um poder tanto mais suspeito ao Estado quanto todos os cargos e os graus de que se lhe desse o manejo, seriam enfim cheios da sua disciplina e aqueles que desde cedo tivessem ascendente sobre os seus espíritos por certo continuariam a tê-los por toda a vida.

Se se acrescenta que a administração do sacramento da penitência dá a essa companhia autoridade sobre toda a sorte de pessoas, o que não é de menos peso do que a primeira instrução; se se considera que por esses dois caminhos eles penetram o mais secreto movimento dos corações e das famílias, será impossível não concluir que eles não devem ficar sós no ensino e no ministério de que se trata.

Estas razões foram tão poderosas em todos os Estados, que não vemos nenhum que tivesse querido até o presente, deixar o império das letras, e toda a instrução de sua mocidade somente a essa companhia.

Essa sociedade, boa e simples em si mesma, deu tanto ciúme ao arquiduque Alberto, príncipe dos mais piedosos da casa d’Áustria, e que não agia senão por instigação do conselho de Espanha, que ele não temeu excluí-la de certa universidade em que se havia estabelecido na Flandres, e de opor-se aos estabelecimentos novos que quis realizar na mesma região.

Se ela deu lugar a certa república de afastá-la por completo de seu domínio embora com rigor excessivo, o menos que se pode fazer neste reino será dar-lhe alguma coisa, visto que ela é não somente submissa a um chefe perpétuo estrangeiro, mas que além disso está sujeita e sempre dependente de príncipes que parecem não ter nada em maior recomendação do que o rebaixamento e a ruína desta coroa.

Assim como em matéria de fé todos os católicos do mundo não têm senão uma doutrina no que não lhes concerne, há muitas diferentes cujas máximas fundamentais têm origem naquela; isto faz que, havendo necessidade de teólogos que possam em certas ocasiões defender corajosamente as opiniões que em todos os tempos foram aí recebidas e conservadas por transmissão não interrompida, é preciso que seja destacada de todo o poder suspeito e que não tenha dependência que o prive de liberdade quanto às coisas quais a fé a todo o mundo.

A história nos ensina que a ordem de S. Benedito foi tão absolutamente senhora das escolas que em nenhum outro lugar se ensinava e isto fez decrescer tão completamente a ciência e a piedade no X século da igreja que foi chamado desgraçado quanto a este assunto. Ela nos ensina ainda que os dominicanos tiveram em seguida as mesmas vantagens que esses bons padres primeiro possuíram e que o tempo lhes privou como aos outros com grande prejuízo da igreja, que se encontrou então infestada de muitas heresias: da mesma forma ela nos ensina que com as letras se deve agir como com as aves de arribação: não se deve sempre parar num mesmo lugar. A prudência política quer que se previnam tais inconvenientes que, tendo sobrevindo duas vezes, devem ser temidos com justa razão para terceira que provavelmente não virá se essa companhia tiver companheiros na posse das letras.

Todo o partido é perigoso em matéria de doutrina e nada é tão fácil quanto formar um sob pretexto de piedade quando uma companhia pensa estar obrigada a ele por interesse de sua subsistência.

A história do papa Benedito XI, contra o qual os Cordeliers espicaçados quanto ao motivo da perfeição da pobreza, isto é, da renda S. Francisco, animaram-se a tal ponto que não somente eles lhes fizeram abertamente a guerra pelos livros mas pelas armas do império, à sombra das quais um antipapa se elevou, constituiu grande prejuízo para a igreja, sendo este um exemplo muito poderoso para que se diga alguma coisa mais.

Mais uma companhia é fiel ao seu chefe, mais ela deve ser temida, particularmente por aqueles aos quais ela não é favorável.

Pois que a prudência não obriga somente a impedir que se perturbe ao Estado, mas também que se lhe possa perturbar; porque muitas vezes ter o poder faz nascer a vontade.

Pois que também, a fraqueza da nossa condição humana requer um contrapeso em todas as coisas, o que é o fundamento da justiça. É mais razoável que a universidade e os jesuítas ensinem cada um do seu lado, a fim de que a emulação aumente a sua virtude e que as ciências sejam tanto mais asseguradas no Estado, quanto, sendo depositadas nas mãos dos seus guardadores, se uns perderem um tão sagrado depósito, o mesmo estará a salvo em outras mãos.


 

SEÇÃO XI

Meios de regular os abusos que cometem os graduados na obtenção dos benefícios.

 

Porque assim como é de temer que toda a sorte de espíritos sejam levados às letras, é de se desejar que os bons por elas sejam atraídos. V. M. não poderia fazer uma coisa mais útil para este fim do que impedir os abusos que se cometem na distribuição dos benefícios que devem ser feitos àqueles aos quais são devidos como recompensa dos seus trabalhos.

Seria preciso ser inimigo das letras e da virtude para duvidar desse direito. (27)

O concílio de Basiléia (28) e a concordata que foi passada em seguida ao concílio de Latrão entre Leão X e Francisco I o estabelecem muito claramente para que haja este pensamento; seria preciso ser muito contrário à justiça e à razão, para não se querer corrigir abusos tão grandes pelas permutas fraudulentas, pela resignação suposta, pelos artifícios dos coletores e pela autoridade dos indultários, mais poderosos do que os graduados e pela indústria daqueles que não devem o seu grau senão à sua bolsa. Pois que é o que falta, seja agora esse privilégio prêmio da virtude, quando é somente do artifício e da má fé daqueles que sendo ignorantes em letras, são doutos e sábios em chicana.

O verdadeiro remédio deste mal consiste em fazer que conformemente aos santos cânones, os doutores e licenciados em teologia, sejam preferidos a todos aqueles que tiverem o mesmo grau em outras faculdades.

Que entre os teólogos iguais em grau àqueles que tiverem pregado por muito tempo a palavra de Deus ou a teologia, sejam providos antes dos outros.

Que os doutores e licenciados em direito tenham a mesma vantagem sobre os simples mestres em artes e que entre estes últimos se prefiram aqueles que tiverem regido muito tempo.

Que nenhum possa receber essas cartas de mestres em artes nem seu grau em direito civil e canônico, senão na universidade onde tiverem estudado.

Que não se dê carta de mestrança, senão àqueles que tiverem atualmente feito seu curso inteiro de filosofia; em nenhum grau em direito civil e canônico, senão àqueles que tiverem estudado três anos na escola de direito e que tiverem realizado publicamente seus atos com os intervalos de tempo requeridos. Se forem observadas cuidadosamente estas ordens, ver-se-á seguramente o mérito das letras ter prêmio e a ignorância não poderá mais cobrir-se com seu manto, para receber sob sua capa aquilo que não lhe é devido.

Se em seguida V. M. livrar aqueles que se tiverem tornado célebres nas letras, pela perseguição dos indultários, ela fará que muitos redobrem os seus trabalhos para receber o fruto que merecem.


 

SEÇÃO XII

Do direito de indulto.

 

O direito de indulto tem sua força e sua origem numa bula do papa Eugênio (29) que não se encontra; e quem a quisesse examinar com rigor, acharia que o fundamento não é sólido, pois a razão quer que se ponham as coisas que não podem ser verificadas e aquelas que não tem fundamento em igual categoria.

Sei bem que Paulo III querendo obrigar os presidentes e conselheiros do parlamento de Paris (30) que se opunham à verificação da concordata, deu-lhes poder de nomear para os benefícios, tanto regulares, quanto seculares. Sei ainda, bem, que o chanceler de França, como chefe dessa companhia, recebeu igual privilégio, pela mesma bula. Mas se se considera que essa bula aufere suas virtudes daquela que seu predecessor tinha e que não se encontra, essa consideração não terá força, pois que os jurisconsultos ensinam claramente que uma relação não pode fazer fé se a coisa relatada não é clara e evidente (31).

Menos o fundamento desse privilégio é certo, mais os abusos que se cometem são insuportáveis.

Embora esse direito seja pessoal; não tendo sido concedido senão à pessoa dos oficiais especificados pela bula do papa Paulo II, passa agora à viúva e aos herdeiros como se fosse uma herança temporal; e ainda que essa graça não lhes tivesse sido feita, a fim de gratificar legitimamente seus filhos, ou alguns dos seus parentes ou de seus amigos, capazes dos benefícios aos quais seriam nomeados, eles freqüentemente forçam contra as leis divinas e humanas àqueles que obtêm benefícios em virtude dos seus indultos, de os resignar em quem bom lhes parecer, abusando até tal ponto deste privilégio, que freqüentemente aqueles que não querem ser delatores não podem evitar este crime, senão por outro que os torna culpados de simonia diante de Deus.

A fraqueza do fundamento desta graça e a quantidade (32) de abusos que se cometem, poderão dar lugar legítimo a V. M. de a abolir, o que seria tanto mais fácil quanto não precisaria outra coisa para esse fim, senão recusar para o futuro aos indultários suas cartas de nomeação, sem as quais não pudessem pretender nenhum benefício; mas a experiência nos fazendo conhecer que um mal a que se está acostumado é freqüentemente mais suportável do que um bem cuja novidade incomoda, V. M. deve se contentar com fazer um tão bom regulamento, que aqueles que devem gozar desta graça, não possam abusar dela para o futuro, como o fizeram no passado.

Se impede que um mesmo oficial possa ter sua nomeação sobre vários benefícios, faz que aquele apresentado para ser nomeado não o possa ser, senão após um bom exame feito pelas ordenações, sem favor.

Se ela ordena que as cartas de nomeação tragam termos expressos; que os benefícios aos quais são nomeados sejam realmente para eles; como eles não podem ser constrangidos a resignar em favor de ninguém, e que se forem descobertos, ficarão como criminosos; além do que eles ficam, por um tal crime, incapazes de receber nunca mais, benefícios, ficando sujeitos a castigos.

Se em seguida se impede que este direito que não é pessoal seja transmitido aos herdeiros, a observação de um tal regulamento fará que vossos oficiais não sendo privados da graça que vossos predecessores lhes fizeram obter, os intelectuais receberão uma grande vantagem sob vosso reino e estarão livres de um grande vexame.

Poder-se-ia ainda não permitir aos oficiais que tiverem nomeado um homem para um indulto, que o substitua pondo outro no lugar, se morrer antes do preenchimento.


 

CAPÍTULO III

DA NOBREZA

 

SEÇÃO I

Diversos meios de elevar a nobreza e fazê-la subsistir com dignidade

 

Depois de ter representado o que estimo absolutamente necessário para o restabelecimento da primeira ordem do reino, passo à segunda e digo que é preciso considerar a nobreza como um dos principais nervos do Estado, capaz de contribuir muito para sua conservação e seu estabelecimento. Ela foi desde algum tempo tão rebaixada pelo grande número de oficiais que a desgraça do século elevou para seu prejuízo que tem agora grande necessidade de ser mantida contra as ações de tal gente.

A opulência e o orgulho de uns amargam a necessidade dos outros que não são ricos senão em coragem, o que os leva a empregar livremente a sua vida para o Estado do qual os oficiais tiram os seus meios de existência.

Como precisam se manter contra aqueles que os oprimem é preciso haver um cuidado particular de impedir que não tratem aos que estão abaixo deles como são tratados pelos outros.

É um defeito muito freqüente naqueles que são nascidos nesta ordem usar de violência contra o povo a que Deus parece mais ter dado braços para ganhar a sua vida, do que para defendê-la.

É muito importante impedir o curso de tais desordens por uma severidade contínua, que faça crer que os que são fracos, embora desarmados tenham à sombra das leis tanta segurança quanto aqueles que têm armas nas mãos.

A nobreza tendo testemunhado na guerra, felizmente terminada pela paz, que era herdeira da virtude dos seus antepassados, o que deu lugar a César de preferi-la a todas as outras; há necessidade de discipliná-la de sorte que possa adquirir de novo e conservar sua primeira reputação, e que o Estado seja utilmente servido.

Aqueles que sendo prejudiciais ao público não lhe são úteis, é certo que a nobreza não lhe servindo na guerra não é somente inútil, mas uma carga ao Estado, que nesse caso pode ser comparado ao corpo que suporta o braço político, ou com um fardo que o carrega em lugar de aliviá-lo.

Como os fidalgos merecem ser bem tratados quando fazem o bem, é preciso ter com eles severidade, se faltam àquilo que o seu nascimento os obriga; e eu não ponho nenhuma dificuldade em dizer que aqueles que degeneram da virtude de seus avós, não servem a coroa com sua espada e sua vida, com a constância e firmeza que as leis do Estado requerem, careceriam ser privados das vantagens do seu nascimento e reduzidos a carregar uma parte do fardo do povo.

A honra lhes devendo ser mais cara do que a vida, valeria a pena castigá-los com a privação de uma antes do que da outra.

Tirar a vida a pessoas que a expõem todos os dias, por pura imaginação de honra, é muito menos do que tirar-lhes a honra deixando a vida, que neste caso lhes seria um suplício perpétuo.

Se é preciso nada esquecer para manter a nobreza na verdadeira virtude dos seus pais, nada se deve omitir para conservá-la na posse dos bens que aqueles lhes deixaram, e também se deve dar-lhes meios para que possam adquirir novos.

Assim como é impossível achar um remédio a todos os males, assim também é muito difícil de encontrar um expediente geral aos fins a que me proponho.

Os diversos casamentos que se fazem neste reino em cada família, em lugar de que sejam como em outros Estados, não há aqui senão o mais velho que se casa; essa é uma das verdadeiras razões porque as mais poderosas famílias se arruinam em pouco tempo. Mas se esse costume empobrece as famílias particulares, enriquece de tal forma o Estado cuja força consiste na multidão de gente de trabalho, que em lugar de se queixar, dever-se-ia louvar e em lugar de trocar esse costume devia o Estado dar meios de subsistência, decente e corajosa àqueles que põem no mundo.

Neste assunto devem ser distinguidas a nobreza que está na corte daquela que está na campanha.

Aquela que está na corte será notavelmente aliviada se se cortar o luxo e as insuportáveis despesas que se introduziram pouco a pouco, sendo certo que uma tal disciplina será mais útil do que todas as pensões que se lhes dá.

Quanto à nobreza de campanha, embora ela não receba tanta ajuda nesse sentido porque a sua miséria não lhe permite fazer despesas supérfluas, não deixará de ressentir o efeito desse remédio tão necessário a todo o Estado que só ele pode evitar a sua ruína.

Se V. M. acrescenta nas regras com que deseja pôr fim a tal desordem, o estabelecimento de 50 companhias de gendarmes, e de igual número de cavaleiros, pagos nas províncias, nas condições que são especificadas adiante, não dará poucos meios com que a subsistência da nobreza seja suprida sem dificuldade.

Se em seguida ela suprime a venalidade dos governos do reino e de todos os cargos militares, que essa ordem paga suficientemente com o preço do seu sangue; se pratica da mesma forma no que concerne aos cargos da sua casa; se ela faz com que a entrada seja interdita aos que não são de nascimento nobre em lugar de fazer como hoje que todas as pessoas nela sejam recebidas por suja transação de dinheiro; se ela não estiver mais aberta àqueles mesmos que tiverem essa vantagem senão por escolha que V. M. fizer em consideração do seu mérito, toda nobreza receberá utilidade e honra, tudo junto, de regras tão boas.

Em lugar de como agora os fidalgos não poderem elevar-se aos cargos e dignidades senão ao preço da sua ruína, sua fidelidade ficará tanto mais assegurada para o futuro, que, quanto mais eles forem gratificados, menos eles se acreditarão credores das honras que devem às suas bolsas e àquelas dos seus credores, que não lhes fazem lembrar nunca daquilo que se lhes deve, sem que tenham desgosto de serem elevados por esse meio.

Se além disso, sua bondade se estende até a querer cuidadosamente gratificar aos seus filhos, (que merecem a real piedade) com uma parte dos benefícios que são da sua bolsa, essa ordem lhe será tanto mais obrigada, quanto descarregando-a de uma parte que a esmaga, se lhe daria o verdadeiro meio de manter as suas casas, pois que o sustento e a conservação das melhores, depende freqüentemente daqueles que tomando a vida eclesiástica, consideram voluntariamente seus sobrinhos como seus filhos, e não têm maior contentamento do que fazê-los educar, alguns nas letras e outros na virtude, para poderem tornar-se capazes de encarregar-se daquilo que possuem.

Poder-se-ia adiantar muitas outras coisas para o alívio da nobreza; mas deixo de esclarecer tais pensamentos; considero que assim como é muito fácil escrevê-los, seria difícil, talvez impossível de os pôr em prática.


 

SEÇÃO II

Que trata dos meios de evitar os duelos.

 

Foram feitos vários editais para impedir os duelos, sem que até o presente se tivesse qualquer fruto como se esperava, e se desejava; tanto é difícil encontrar um meio seguro para impedir a continuação desse flagelo.

Os franceses desprezam de tal forma suas vidas que a experiência nos mostra que as penas mais rigorosas nunca foram as melhores para fazer parar o seu frenesi.

Várias vezes estimaram que havia mais glória em violar os editais, quanto faziam ver por uma tal extravagância, que a honra lhes era um bem mais recomendável do que a vida, sendo menos capazes de expor-se a perder as suas comodidades sem as quais não podem viver felizes neste mundo, do que morrer sem a graça de Deus, sem a qual serão desgraçados no outro; o temor de perder seus cargos, seus bens, e sua liberdade, faz mais efeito sobre seus espíritos do que o de perderem a vida.

Nada esqueci do que me foi possível para encontrar algum remédio próprio à cura deste perigoso mal. Freqüentemente consultei para saber, se assim como é permitido aos reis, fazer que dois particulares se batam para evitar uma batalha, e decidir por esse meio a contenda que lhes pôs as armas nas mãos, não poderiam também dar licença para alguns combates para evitar a multidão de duelos que têm lugar todos os dias: dizia que havia grande esperança de que se pudesse por esse meio garantir a França desse frenesi que lhe causa tanto mal, visto que a espera da licença de combate àqueles que tivessem justo motivo de a pretender, cada um se submeteria voluntariamente aos juizes deputados para conhecerem a qualidade de suas ofensas; o que impediria aparentemente a desgraça dos duelos, visto que poucas querelas haveria que não pudessem ser terminadas por um bom acordo.

Acrescentava para favorecer a esse pensamento, que outrora se haviam permitido vários duelos neste reino, o que era praticado também em outros Estados.

Estimava ainda que se poderia por esse meio abolir o uso da barbaria que quer que todo homem ofendido se faça justiça por si mesmo, e encontre a sua satisfação no sangue do seu inimigo. Mas depois de ter lido e relido o que outros autores mais autênticos dizem sobre esse importante assunto e pensado várias vezes sobre esta matéria tão importante, achei, pelo critério dos menos escrupulosos e mais resolutos teólogos do tempo, que os reis sendo estabelecidos para conservar os seus súditos e não para os perder, não podem expor suas vidas sem alguma utilidade pública ou necessidade particular; como eles não podiam permitir os combates particulares sem expor o inocente a receber a pena dos culpados, visto que Deus não se tendo obrigado a tornar a razão sempre vitoriosa, a sorte das armas é incerta; e que embora tais permissões tenham algumas vezes sido autorizadas pelo menos em diversos Estados, e mesmo do consentimento de algumas igrejas particulares, elas sempre foram abusivas; o que parece bem evidente, pois que enfim a igreja universal as proibiu e condenou sob grandes penas; reconheci que havia grande diferença entre fazer-se bater a dois particulares para evitar uma batalha e acabar uma guerra, e fazê-los bater-se para evitar os duelos.

O primeiro é permitido porque a natureza nos ensina que as partes devem expor-se pelo todo, e que a razão quer que o particular se arrisque pelo geral; porque além de que esse expediente foi praticado em todos os tempos, encontram-se exemplos na santa escritura, e seu efeito é são e certo, seja qual for o desfecho de um duelo, permitido neste caso, ele salva a vida a um grande número de pessoas que podem servir o público em outras ocasiões.

Mas não se dá o mesmo do segundo, que é ilícito por sua natureza, pois que em lugar de salvar certamente o geral, com risco de alguns particulares, e assim garantir de um maior mal por um menor, ele expõe determinadamente os particulares à sua perda, imaginando uma utilidade pública que não tem fundamento certo; esse meio é tanto menos recomendável quanto, em lugar de impedir a continuação dos duelos, ele é capaz de aumentar-lhes a licença; porque a cegueira da nobreza é tão grande que muitos estimam que, pedir o combate por tal jeito, seria procurar o meio de não se bater, excitando a vaidade a tomar um caminho mais curto para tirar razão de suas injúrias dando provas de coragem.

O rei defunto quis em 1609 recorrer a este expediente com todas as circunstâncias que ele podia fazer valer: privava dos bens, dos cargos e da vida aqueles que se batiam sem ter obtido prévia licença; mas tudo foi inútil: e foi o que obrigou a V. M. depois da mesma experiência, no começo do seu reino, a recorrer pelo seu édito do mês de março de 1626 a um outro remédio que teve tanto mais efeito quanto as penas, por serem mais moderadas, são mais apreciáveis para aqueles que fazem menos caso da sua vida do que dos seus bens e de sua liberdade.

Sendo as melhores leis do mundo inúteis se não se faz que sejam observadas inviolavelmente, freqüentemente aqueles que caem nesse gênero de falta usam tantos artifícios para evitar as provas que é coisa sempre impossível de os tornar convictos.

Não temo dizer a V. M. que não é suficiente punir os apelos e os duelos averiguados com o rigor dos seus éditos, mas quando houver notoriedade sem provas, deveis tomar os delinqüentes, e pô-los prisioneiros a suas expensas por mais ou menos tempo segundo as diversas circunstâncias de suas faltas; de outra forma a negligência de que usam os procuradores gerais a informar, a indulgência do parlamento, e a corrupção do século é tal, que cada um estima tanto a honra de ajudar a esconder os crimes dos que se bateram, quanta vergonha teria um gentil-homem de encobrir o roubo de um ladrão, tornando reais éditos e seus cuidados inúteis.

É um tal caso, onde somente a via de fato pode fazer observar as leis e as ordenanças, é nessa ocasião que a real autoridade deve passar por cima da forma para manter a regra e a disciplina, sem a qual um Estado não pode subsistir, e dar meio aos oficiais para castigar os crimes pela forma; tendo nisso grande aparência achar-se-á mais facilmente a causa e a prova de um delito, cujos culpados serão presos, do que estando em plena liberdade se poderá fazer toda a sorte de diligências para que não se espalhe o conhecimento. Se em seguida V. M. ordenar que os encontros passem por duelos e como tais sejam punidos até que aqueles que forem culpados voluntariamente se apresentem prisioneiros e sejam absolvidos por sentença, V. M. terá feito tudo o que pode, provavelmente, para impedir o curso desse frenesi, e o cuidado que tomar para conservar a vida da nobreza tornar-la-á senhora do seu coração e obrigará a tanta fidelidade que ela com usura pagará além da expectativa, os empregos com que seja gratificada.


 

CAPÍTULO IV

DA TERCEIRA ORDEM DO REINO

 

Para tratar com método da terceira ordem do reino e ver claramente o que é necessário para fazê-la subsistir, no estado em que deve estar dividirei em três partes.

A primeira conterá o corpo dos oficiais de justiça.

A segunda, aqueles que manejam as suas finanças.

A terceira o povo, que suporta quase sempre os encargos do Estado.


 

SEÇÃO I

Que toca de perto a desordem da justiça e mostra, particularmente, se a supressão da venalidade e da hereditariedade seria bom remédio a tais males.

 

É mais fácil reconhecer os defeitos da justiça do que conseguir-lhes remédio; não há pessoa que não veja que aqueles que se estabelecem com desejo de ter a balança justa em todas as coisas, carregam um prato de tal forma, segundo o seu interesse, que não há mais contrapeso.

Os desregramentos da justiça chegaram a tal ponto, que não podem passar adiante; entraria nos detalhes desta desordem e naqueles dos remédios que se lhes pode dar, se o conhecimento que tenho daquele que preenche presentemente o primeiro cargo da justiça e do desejo que tem de a tornar tão pura que a corrupção dos homens a possa sofrer, não me obrigassem a me contentar com propor somente a V. M. certos remédios gerais para impedir a continuação das principais desordens.

No julgamento da maior parte do mundo, o meio maior consiste em suprimir a venalidade e extinguir a hereditariedade dos ofícios, dando-os gratuitamente a pessoas de uma capacidade e de uma probidade tão conhecidas que o seu mérito não possa ser contestado pela própria inveja.

Mas como não é coisa que se possa fazer em pouco tempo, sendo difícil praticar esse expediente ou qualquer outro, seria agora inútil propor os meios para chegar a esse fim.

Quando se quiser empreender tal objeto, achar-se-ão sem dúvida outros que não se podem prever agora, e aqueles que se quisesse prescrever não estariam mais em época quando se pusesse mão à obra.

Entretanto embora seja quase sempre perigoso estar-se sozinho numa opinião, ouso dizer que no estado presente dos negócios, e naquele que se pode prever para o futuro, vale mais, segundo a minha opinião, continuar a hereditariedade dos ofícios do que mudar o que está estabelecido.

Há tantos inconvenientes a temer numa tal mudança, que embora as eleições para os benefícios sejam mais antigas e mais canônicas do que a nomeação dos reis, elas causarão grandes abusos sendo impossível evitá-los, o que torna o uso da nomeação mais suportável como sujeito a menor número de más conseqüências.

Também, embora a supressão da venalidade e da hereditariedade dos ofícios seja conforme à razão, e a todas as constituições do direito os abusos inevitáveis, que se cometeriam na distribuição dos cargos, tão dependentes da simples vontade dos reis, dependeriam por conseqüência do favor e do artifício daqueles que se encontrassem mais poderosos junto deles, tornando a maneira pela qual os cargos se provém, agora, mais tolerável do que aquela de que a gente se servia no passado por causa dos grandes inconvenientes que sempre o acompanharam.

Seria preciso estar cego para não ver a diferença que há entre esses dois partidos e não desejar de todo o coração a supressão da venalidade e da hereditariedade dos ofícios suposto que neste caso os cargos fossem distribuídos pela pura consideração da virtude.

Também é impossível não reconhecer que em tal caso os artifícios da corte poderiam mais do que a razão, e mais do que o mérito.

Nada deu tantos meios ao duque de Guise para se tornar poderoso na liga contra o rei e seu Estado do que o grande número de oficiais que tinha introduzido sua influência nos principais cargos do reino.

Aprendi do duque de Sully que essa consideração foi o motivo mais poderoso que levou o falecido rei ao estabelecimento do direito anual; esse grande príncipe não tinha tanto em vista a renda que poderia tirar, quanto o desejo de se garantir para o futuro de tais inconvenientes, e que embora o fisco pudesse muito sobre ele, a razão de Estado foi mais poderosa nessa ocasião.

No novo estabelecimento de uma república não se poderia sem crime deixar banir a venalidade porque em tal caso a razão quer que se estabeleçam as leis as mais perfeitas que a sociedade do homem pode sofrer. Mas a prudência não permite agir da mesma forma numa antiga monarquia cuja imperfeição constitui hábito e cuja desordem faz (não sem utilidade) parte das ordens do Estado.

É preciso nesse caso sucumbir à fraqueza e se contentar antes de uma regra moderada do que do estabelecimento de uma mais austera e que seria talvez menos conveniente, seu rigor sendo capaz de causar qualquer perturbação naquilo que se quer firmar.

Sei bem que se diz comumente que aquele que compra a justiça por atacado pode vendê-la a retalho; mas é verdade entretanto que um oficial que põe a maior parte dos seus bens num cargo não será pouco impedido de mal fazer, de medo de perder tudo aquilo que tem como valioso; e em tal caso o preço dos ofícios não é um mau penhor da fidelidade dos oficiais. As queixas que se fazem da venalidade foram comuns em todos os tempos da monarquia; mas embora tivessem sido sempre reconhecidas razoáveis em si mesmas, nunca se deixou de tolerar a desordem que disso era a causa, pressupondo que não somos capazes da austera perfeição que têm por fim.

Seria preciso ser ignorante na história, para não saber que alguns que a escreveram, não livrando o próprio rei S. Luís censuraram seu reino, porque ao seu tempo não se davam os cargos gratuitamente; condenando outros que vieram em seguida, porque o tráfico dos ofícios estava já tão público que se fixavam os custos que dela provinham, tornando a memória do grande rei Francisco odiosa, porque foi o primeiro que, empurrado pelas necessidades do seu século, pô-las em comércio regulado que desde aí sempre continuou.

Confesso que foi uma desgraça esse grande príncipe ter sido primeiro autor de tão mau estabelecimento; mas talvez ele não fosse tão condenável se se conhecessem bem as razões que o constrangeram.

O conhecimento que ele tinha de que os particulares vendiam sua graça com sua ignorância, e a importância do grande negócio com o qual ficou acabrunhado, fizeram-no crer que não havia melhor nem mais pronto expediente para tirar voluntariamente o bem dos seus súditos senão dar-lhes honra por dinheiro.

O falecido rei assistido de um bom conselho numa paz profunda e num reino isento de necessidade acrescentou o estabelecimento anual à venalidade introduzida por esse grande príncipe.

Não é de presumir que ele tenha feito sem alguma consideração e sem ter previsto tanto quanto a prudência humana pode permitir, as conseqüências; e é coisa segura que aquilo que é feito pelos príncipes cuja condenação foi judicial não pode ser mudado com razão se a experiência não faz conhecer o prejuízo e se não se vir claramente que melhor pode ser feito.

As desordens que foram estabelecidas pela necessidade pública e que se fortificaram pela razão de Estado não podem ser reformadas senão com o tempo. É preciso levar o espírito docemente não o fazendo passar de uma extremidade a outra.

Um arquiteto que pela excelência de sua arte corrige os defeitos de uma antiga construção e que sem abatê-la torna-a de simetria suportável, merece muito mais louvor do que aquele que arruina tudo para fazer um novo edifício perfeito e completo.

Dificilmente poder-se-ia mudar a ordem estabelecida para a disposição dos ofícios, sem alterar o coração daqueles que possuem, em cujo caso seria de temer que em lugar de, como aconteceu no passado, não servisse pouco a manter os povos nos seus deveres, contribuíssem para o futuro mais do que qualquer outro aos seus desregramentos. É algumas vezes da prudência enfraquecer os remédios para que eles façam mais efeito. E as ordens as mais conformes à razão não são sempre as melhores porque não são algumas vezes proporcionais ao alcance daqueles que as devem praticar.

Em lugar que a supressão da venalidade e da hereditariedade dos ofícios deveria abrir a porta à virtude, ela abriria a brigas e a facções, enchendo os cargos de oficiais de baixa extração freqüentemente mais carregados de latim do que de bens, advindo daí muitos inconvenientes. Se se pudesse entrar nos cargos sem dinheiro, o comércio se acharia abandonado por muita gente que, fascinada pelo esplendor da dignidade, correria antes aos ofícios e à sua ruína, tudo junto, do que seriam levados ao tráfico que produz a fortuna das famílias.

De resto não há ninguém que não saiba que a fraqueza do nosso século é tal que a gente se deixa levar antes pela importunação, do que conduzir pela razão e em lugar de ser guiado pela justiça geralmente se é levado pelo favor.

A experiência do passado nos deve fazer temer o futuro tanto porque nos faz ver que os mais poderosos em crédito ganham freqüentemente a sua causa com prejuízo da virtude quanto porque o príncipe e seus confidentes não podendo conhecer o mérito das pessoas senão pelo julgamento de um terceiro e quarto não poderiam impedir de tomar freqüentemente a sombra pelo corpo.

Um baixo nascimento produz raramente as partes necessárias ao magistrado e é certo que a virtude de uma pessoa de bem logo tem qualquer coisa de mais nobre do que aquela que se acha num homem de baixa extração. Os espíritos de tal gente são de ordinário difíceis de manejar e muitos têm uma austeridade tão espinhosa que não é somente incômoda mas prejudicial.

Os primeiros com relação aos segundos são como as árvores que plantadas numa boa terra produzem frutos muito mais bonitos e melhores que aquelas plantadas em terra má; e daí só faltaria que se condenasse a venalidade porque exclui do cargo e dos ofícios gente de baixa condição; ao contrário seria um dos motivos de a tornar mais tolerável.

Os bens são um grande ornato para a dignidade e são de tal forma elevados pelo lustre exterior que se pode dizer com audácia que de duas pessoas que têm mérito igual, aquela que tem mais facilidade nos seus negócios é preferível à outra, sendo certo que um pobre magistrado deve ter uma alma bem forte para não se deixar algumas vezes amolecer pelos seus interesses; também a experiência nos ensina que os ricos são menos sujeitos a concussão do que os outros, e que a pobreza constrange um oficial a ser muito escrupuloso da sua renda.

Dir-se-á talvez que se esses inconvenientes bastam para que se sofra a venalidade, pelo menos é verdade que o direito anual devia ser suprimido porque põe os ofícios fora de preço e impede que as pessoas de virtude possam chegar a eles mesmo com dinheiro.

O falecido rei prevendo este mal tinha inserido num édito feito a este respeito, precauções capazes de o prevenir, excetuando não somente do direito anual o cargo dos primeiros presidentes, dos procuradores e advogados gerais; mas reservando-se além disso o poder de dispor dos ofícios que nisto estão compreendidos quando vagassem, pagando previamente aos herdeiros daqueles que o tinham, o preço de avaliação.

Estas precauções eram tão prejudiciais quanto necessárias e, dizendo a verdade, o mal que causa o direito anual no Estado não procede tanto do vício do seu natural, quanto da imprudência com a qual se puseram corretivos que esse grande princípio havia trazido. Se o édito continuasse na pureza do seu primeiro estabelecimento, os ofícios jamais teriam chegado aos excessos de preço a que chegaram agora. As mudanças que se introduzem tornaram o uso tão prejudicial quanto seria inocente se se o tivesse deixado nos termos antigos; seria antes preciso corrigir abusos do que mudar o estabelecido.

A revogação do direito anual obrigará os velhos oficiais a se retirarem dos seus cargos, quando a experiência e a madureza os tornassem mais capazes de servirem ao público. Entretanto é necessário que se tenham velhos e moços porque a prudência dos primeiros pode servir a conduzir os outros e o vigor dos moços é necessário para acordar e animar os velhos.

Se o meu fim fosse somente adquirir com esta obra a complacência do povo antes do que merecer-lhe a benevolência tornando-me útil ao Estado, eu sustentaria que seria preciso suprimir a venalidade e o direito anual tudo junto; cada um de tal forma se persuadiu que essas duas fontes de desregramento do reino constituem erro que a voz pública me daria coroa de louros sem examinar se eu a merecia ou não.

Mas sabendo que aquele que tenta adquirir reputação por meio de reforma mais conforme com o rigor das leis, do que proporcional à força do Estado, não procura senão o seu interesse, não pude escusar-me de um cuidado não somente condenável, mas ainda criminoso e tão prejudicial ao público, quanto a negligência e malícia de um outro qualquer.

Jamais eu agiria assim. Muitos são os inconvenientes na supressão desses dois éditos para ousar concluir que o propósito seria o fazê-lo.

Se eles abrissem a porta à negligência e ao vício como de ordinário se supõe, eu não regatearia em dizer que não se devia sofrê-lo. Mas quando considero que só entram nos ofícios pessoas destituídas das qualidades que deviam ter, é isto por culpa somente dos procuradores gerais, que informam de sua vida e de seus costumes e pela da companhia que como juizes da sua capacidade e da sua virtude devem recusá-los quando não tenham condições requeridas. Não posso deixar de dizer que o remédio deste mal consiste mais em fazer observar a ordenança do que em abolir a venalidade e o direito inútil que são causa dele.

Dir-se-á talvez que se os ofícios de judicatura não se vendessem poder-se-ia exercer a justiça gratuitamente, mas desde que os cultos sejam regulados eles não devem ser considerados como um mal, de que a gente se queixe.

Sei bem que tomando as coisas com rigor o único preço que se deve pela administração da justiça é pago pela privação da liberdade daqueles que voluntariamente se submetem à observação das leis; e que, assim, obrigar àqueles que recorrem à justiça a gastarem mais dinheiro, é obrigá-los a comprar uma segunda vez aquilo que caramente já foi pago pela sua sujeição; tal costume porém de tal forma ficou fortalecido, que embora as especiarias sejam picantes pela sua natureza, ninguém se queixaria delas nos palácios e quem propusesse abolir o seu uso expor-se-ia às risotas do mundo.

Há abusos que é preciso sofrer de medo de cair em conseqüências mais perigosas; o tempo e as ocasiões abrirão os olhos àqueles que vierem num outro século, para que façam utilmente aquilo que não se ousaria empreender neste sem que se expusesse imprudentemente o Estado a alguma desordem.

Todas as razões expostas acima e muitas outras maduramente consideradas, embora a venalidade e a hereditariedade dos cargos não sejam canônicas; embora fosse de desejar que o mérito tivesse sempre o único preço dos ofícios, e a virtude o único título que pudesse transmitir a sucessão aos herdeiros dos ofícios, em lugar de concluir que se devia mudar isso que está estabelecido, a constituição presente do Estado me obriga a dizer determinadamente três coisas.

A primeira é que se a venalidade fosse abolida, a desordem que proviria das lutas e dos conchavos, pelos quais são providos os ofícios, seria maior do que aquela que nasce da liberdade de os comprar ou vender.

A segunda, que somente a hereditariedade fosse abolida além da moderação que viessem a vagar, tornaria as partes casuais quase infrutíferas, e por esse meio se introduziria um sujo comércio que daria lugar a que muita gente de pouco mérito partilhasse secretamente as graças que os reis pensariam fazer aos oficiais, caindo no mal de que o falecido rei quis garantir este Estado quando estabeleceu a “Paulette” privando os grandes do reino dos meios de adquirir, à sua custa, criaturas que pudessem servi-los em tempo e lugar com prejuízo dos interesses públicos.

A terceira é que desde que a virtude dos homens não é suficientemente forte para levá-los a preferir sempre o mérito ao favor, vale mais deixar a venalidade e o direito anual, do que abolir estes dois costumes difíceis de mudar de repente sem prejudicar o Estado.

Acrescento que é absolutamente necessário moderar o preço dos ofícios, que chegou a tal ponto que é impossível suportar-lhes o excesso.

Se os conselhos são tanto mais excelentes quanto mais úteis e fáceis de executar, deve-se fazer caso deste cujo fruto é evidente e cuja prática é muito mais fácil, pois que sua execução não requer outra coisa além da reposição do édito de direito anual, nos primeiros termos estabelecidos.

Neste caso os ofícios sendo reduzidos a um preço razoável, que não excederá à metade daquele ao qual o desregramento os eleva agora; sendo livre e fácil ao rei pagá-lo aos herdeiros, para dispor dos cargos novos à sua vontade; é preciso que o Estado fique com esse encargo mas, contudo, ouso repetir, ainda ganhará. No resto, pode-se reduzir as coisas a este ponto, sem dar lugar a queixas às partes interessadas, pois que é fácil de as livrar do mal que se fizeram por diversos meios que não especifico agora porque, se eles fossem descobertos, perderiam sua força antes que se quisesse pô-los em prática.


 

SEÇÃO II

Que propõe os meios gerais que se podem praticar para evitar o curso das desordens da justiça.

 

Depois daquilo que disse não me resta outra coisa a dizer antes de acabar este capítulo, senão o que representei a V. M. sobre o assunto da primeira ordem do seu reino.

Se ela faz grande caso dos oficiais da justiça, cuja reputação seja excelente, se não vê com bons olhos os que, não tendo tido outro meio senão o do dinheiro para chegar à magistratura, achar-se-ão destituídos de todo o mérito; se priva inteiramente de sua graça e faz castigar àqueles que abusando do seu dever, venderem a justiça com prejuízo dos seus súditos, fará absolutamente tudo o que pode ser praticado para a reforma deste corpo, a qual depende tão bem quanto a ordem eclesiástica, mais daqueles que têm a administração, do que das leis e dos regulamentos que ficam inúteis se aqueles que têm o encargo de fazê-la observar, não têm vontade de fazê-lo.

Quando mesmo as leis fossem defeituosas, se os oficiais são pessoas de bem, sua probidade será capaz de suprir essa falta, e por boas que elas pudessem ser, são por completo infrutíferas, se os magistrados negligenciam a execução; muito mais se eles são maus para perverter o uso segundo suas paixões e desregramentos, sendo difícil ser jovem e juiz ao mesmo tempo. Não posso deixar de marcar, em seguida daquilo que disse, senão que, para reformar a justiça, não é coisa de pequena conseqüência, fazer observar cuidadosamente as ordenanças sobre o assunto da idade com a qual os funcionários podem ser recebidos.

Não se poderia a meu ver ser muito exato, nem por conseqüência muito severo com relação aos procuradores gerais que faltarem ao seu dever nas obrigações que têm, de ter olho vivo para que os interessados não possam surpreender os juizes nesse assunto, sem iludir por suposição e fraude as boas intenções do príncipe.

Além de que por este justo rigor garantir-se-á do mal da juventude, que não é pequeno, preservar-se-á também daquele da ignorância, que é fonte de muitos outros.

Os oficiais não se podendo precipitar como fazem no presente na sua recepção, estudariam mais, pois que de outra forma seria preciso que eles ficassem sem fazer nada, o que não acontece àqueles que estudaram somente depois de obterem o fim a que se propõem.

Não devo omitir a este propósito que seria ainda a desejar que se afastasse absolutamente a prática de certos doutores que falando como jovens papagaios aprendem freqüentemente a dizer aquilo que não compreendem, tornando-se hábeis somente em enganar o público enganando-se a si próprios.

Tal gente é semelhante aos atiradores que não são bons senão para instruir os homens para sua própria ruína, impedindo-os de saber os verdadeiros exercícios da gente de guerra, que não se aprendem senão nos exércitos com tempo e fadiga.

O banimento de uns e dos outros não seria de pequena utilidade embora na prática fosse tão difícil quanto esta proposta é fácil. Prefiro contentar-me com condenar os pais que suportam que seus filhos sejam instruídos dessa maneira, e os convidar para o futuro a não cometer mais uma tal falta contra o seu próprio sangue, do que suplicar a V. M. prescrever sobre esse assunto novas leis, que não seriam feitas sem que se achassem mil meios de iludir-lhes o efeito, e evitar a prática.

A experiência que 20 anos de contínua ocupação na administração dos negócios públicos dão-me, obriga-me a notar que embora fosse para desejar que as companhias sedentárias que são absolutamente estabelecidas para distribuírem a justiça a cada um e prevenir e regular todas as desordens do reino, cumprissem tão bem o seu dever que não houvesse necessidade de recorrer a comissões extraordinárias para as manter, é entretanto tão difícil esperar o que se deve desejar neste assunto, que ouso avançar que para ter este grande Estado com a polícia e na disciplina sem as quais ele não pode ser florescente, nada se poderia fazer mais a propósito do que enviar de tempos em tempos às províncias, câmaras de justiça compostas de conselheiros de Estado e de mestres de suplicação, bem escolhidos, para evitar os espinhos do parlamento, que fomenta dificuldades sobre todas as coisas a fim de que essa companhia recebendo as queixas que poderiam ser feitas contra toda a sorte de pessoas sem exceção de qualidade, ela a tudo proveja em devido tempo.

Sei bem que as cortes soberanas sofrerão de má vontade um tal estabelecimento, mas sendo impossível que não reconheçam que um soberano não é obrigado a sofrer a sua negligência, e que a razão quer que supra a sua falta, não temo dizer que vale mais nesta ocasião adquirir sua estima correspondendo a sua obrigação, do que conservar a sua boa vontade faltando ao que é devido aos interesses públicos. Ora porque é impossível enviar tais companhias ao mesmo tempo a todas as províncias, é que será suficiente que uma, dessa natureza, composta dos mesmos oficiais ou de diferentes, faça a volta da França em 6 anos; creio que será muito útil enviar freqüentemente às províncias, conselheiros de Estado, ou mestres de suplicação bem escolhidos, não somente para fazer as vezes de intendentes de justiça nas capitais, o que pode mais servir à sua vaidade do que à utilidade do público; mas para ir a todos os lugares das províncias indagando dos costumes dos oficiais da justiça e das finanças; vendo se as imposições são executadas conforme a ordenança; se os recebedores não cometem injustiças vexando os povos, descobrindo a maneira pela qual exercem os seus cargos, ensinando como se governa a nobreza, e impedindo que tenha curso toda a sorte de desordens e especialmente as violências daqueles que sendo poderosos e ricos, oprimem os fracos e pobres súditos do rei.


 

SEÇÃO III

Que representa quanto é importante impedir que os oficiais da justiça não usurpem a autoridade do rei.

 

Após ter representado o que deve ser praticado e o que pode ser, com facilidade, para tornar os oficiais da justiça tais como devem ser em face dos particulares, não poderia abster-me, sem crime, de propor o que é preciso fazer para impedir que um corpo tão poderoso, como é aquele que compõem, não seja prejudicial ao Estado todo.

Parece que há muito a dizer sobre este assunto, e no entretanto direi suficientemente em três palavras declarando que não há outra coisa tão necessária quanto a restrição aos oficiais da justiça, a fim de que não se metam no que diz respeito aos súditos do rei senão para dar-lhes justiça, fim para que foram criados.

Os mais sábios dos vossos predecessores tiveram um cuidado singular recomendando com muita razão, no que V. M. lhes seguiu o exemplo, enquanto eu tenho tido a honra de estar sob suas ordens; com efeito é uma coisa tão importante, que se se deixasse seguir à rédea solta essa companhia poderosa, depois ela não poderia ser detida nos limites do seu dever.

Seria impossível impedir a ruína da autoridade real, se se seguissem os sentimentos daqueles que, sendo tão ignorantes na prática do governo dos Estados, quanto se presumem sábios na teoria da sua administração, não são nem capazes de julgar solidamente a sua conduta, nem próprios a dar parecer sobre o curso dos negócios públicos, que excedem a sua capacidade.

Também, como não se deve sofrer poderosas companhias, nada que possa ferir a autoridade soberana, é prudência tolerar alguns dos seus defeitos em outros assuntos.

É preciso competir com as imperfeições de um corpo que tendo várias cabeças não pode ter um mesmo espírito, e que sendo agitado por tantos movimentos, quantos assuntos o compõe, não pode freqüentemente ser levado nem a conhecer nem a sofrer o seu próprio bem.

Não há ninguém que não deva desaprovar o seu procedimento, ao qual são levados por alguns desregramentos, mas condenando-os, e com razão, é difícil de achar remédio para isso: porque, nas grandes companhias, o numero de maus sobrepuja sempre ao numero de bons, e quando eles fossem todos sábios, não seria coisa segura, que os melhores sentimentos se achassem na maior parte, tão diversos são os julgamentos naqueles mesmos que, não tendo outro desígnio senão de bem fazer, são diferentes nas suas intenções e nos seus fins.

É coisa tão ordinária, a tais companhias, olhar e achar o que dizer no governo dos Estados que isto não deve parecer estranho.

Toda a autoridade subalterna olha sempre com inveja àquela que lhe é superior, e como não ousa disputar o poder, dá-se a liberdade de desacreditar-lhe a conduta.

Não há espíritos tão regulados aos quais o domínio mais doce do mundo não seja de qualquer maneira odioso: também por essa consideração é que um antigo disse com razão que dos homens que são iguais por natureza, poucos são os que não sofrem com desgosto a diferença que a fortuna entre eles põe, e que sendo constrangidos a ceder, não reclamem contra os que os comandam, para mostrar que se eles lhes são inferiores no poder, sobrepujam-nos em mérito.


 

SEÇÃO IV

Dos oficiais das finanças.

 

Os financeiros e seus auxiliares são uma classe separada, prejudicial ao Estado embora necessária. Este gênero de funcionários é um mal sem o qual não se poderia passar mas que é preciso reduzir a termos suportáveis.

Seus excessos e o desregramento que se insinuou entre eles veio a tal ponto que não se pode mais suportá-los.

Eles não poderiam crescer mais sem arruinar o Estado e sem que se percam, dando lugar a que se tomem os seus bens pelo simples conhecimento da sua excessiva riqueza conseguida em pouco tempo, vendo-se a diferença verificada entre aquilo que eles tinham quando entraram para o cargo, e aquilo que possuíram depois.

Sei bem que um tal processo está sujeito a grandes enganos e que poderia servir de pretexto a violências bem injustas; também não toco este ponto de passagem para aconselhar a prática sujeita a muitos abusos; mas sustento que ninguém se poderia queixar com justiça se se governasse com tal circunspeção, que castigando àqueles que enriquecessem em pouco tempo pela indústria só de suas mãos, não se tocasse sob este pretexto no bem daqueles que se tornaram ricos e poderosos: ou pelo seu patrimônio, um dos mais inocentes meios que os homens têm de enriquecer, ou por gratificação emanada do puro favor de seus senhores o que os isenta de crime, ou por puras recompensas que foram dadas em virtude de serviços, o que é não somente justo e honesto, mas o mais legítimo que possa ser, pois que sendo útil aos particulares, é vantajoso ao Estado que assim será melhor servido, quando aqueles que o servem utilmente forem melhor tratados.

É absolutamente necessário remediar os desregramentos dos funcionários de finanças, porque de outra forma eles causariam a ruína do reino que muda de tal forma de aspecto por seus roubos, que se não se impedisse o seu curso, em pouco tempo o reino não seria reconhecível.

O ouro e a prata, que têm em abundância, dá-lhes aliança com as melhores casas do reino, que se abastardam por esse meio, e não produzem mais, com isso, senão motivos tão afastados da generosidade dos seus ancestrais, quanto o são, em geral, pela semelhança da sua fisionomia; posso dizer por ter visto, que em muitas ocasiões sua negligência ou malícia muito prejudicou os negócios públicos.

Depois de ter bem pensado em todos os remédios para tais males, de que são causa, ouso dizer que não há melhor do que reduzi-los ao menor número que seja possível, e fazê-los servir por comissão nas ocasiões importantes, gente de bem, própria para os empregos que lhes forem dados, e não pessoas que sendo providas por título, pensam ter um que seja suficiente para roubar impunemente.

Será muito fácil, com uma profunda paz suprimir muitos dos oficiais dessa natureza e por esse meio livrar o Estado daqueles que sem produzir nenhum serviço, tiram toda a sua subsistência em pouco tempo.

Sei bem que, de ordinário, são tratadas como sanguessugas, a que freqüentemente com um grão de sal se faz vomitar todo o sangue que sugaram, ou como as esponjas que se deixa encher, porque com uma pequena pressão se faz devolver o que antes haviam tirado.

Mas é um mau expediente a meu ver, e creio que os tratados e as composições feitas às vezes com os financistas são um remédio pior do que o mal, pois que propriamente falando é dar-lhes um título para roubar de novo, na esperança de uma nova graça, e que se por esse meio se tira alguma coisa de sua bolsa, eles recobram não somente o principal que deram, mas ainda o interesse, taxa mais alta do que aquela que permite a ordenança. O que me faz concluir que, além de certos oficiais necessários como um tesoureiro de economia, um recebedor geral, dois ou três tesoureiros de França, em cada repartição geral, e tantos eleitos quantos sejam necessários, não será prestar pequeno serviço ao Estado, desinteressando os particulares que de boa fé deram o seu dinheiro para que com tal emprego, segundo o curso dos tempos, se lhes suprima todo o resto. Sem este remédio, qualquer que seja a regra que se possa fazer, será completamente impossível conservar o dinheiro do rei, não havendo cruzes nem suplícios suficientemente grandes para impedir que muitos dos oficiais desse gênero não se apropriem de uma parte daquilo que por suas mãos passa.


 

SEÇÃO V

Do povo

 

Todos os políticos estão de acordo em que, se os povos vivessem muito à vontade seria impossível de os conter nas regras do seu dever; seu fundamento é que tendo menos conhecimento que as outras ordens do Estado, muito mais cultivadas ou mais instruídas, se não fossem obrigados sem alguma necessidade, dificilmente se manteriam nas regras que lhes são prescritas pela razão e pelas leis.

A razão não permite de os isentar de todos os cargos, porque perdendo a marca da sua sujeição perderiam também a memória da sua condição, e se estivessem livres de tributo pensariam estar também da obediência.

É preciso compará-los às mulas que, estando acostumadas à carga, estragam-se por um longo repouso muito mais do que com o trabalho; mas assim como o serviço deve ser moderado, como a carga desses animais deve ser proporcional à sua força, também é o mesmo quanto aos subsídios com relação aos povos; se não fossem moderados, quando mesmo fossem úteis ao público não deixariam de ser injustos.

Sei bem que quando os reis empreendem trabalhos públicos, diz-se com verdade que, o que o povo ganha lhes volta pelo pagamento de taxas; da mesma maneira pode-se sustentar que o que os reis tiram do povo ao povo volta, não havendo adiantamento senão para retirar pelo gozo do seu repouso e do seu bem, que não lhe pode ser conservado, se não contribui para a manutenção do Estado.

Sei, além disso, que vários príncipes perderam seus Estados e seus súditos por não manterem a força necessária à sua conservação, de medo de os sobrecarregar; e vários súditos caíram em servidão de seus inimigos por quererem demasiada liberdade sob seu soberano natural; mas há um certo ponto que não pode ser ultrapassado sem injustiça; o sentido comum ensina a cada um que deve haver proporção entre o fardo e a força daqueles que o suportam.

Essa proporção deve ser tão religiosamente observada, que assim como um príncipe não pode ser considerado bom, se tira mais do que é preciso dos seus súditos, os melhores não são sempre aqueles que tiram senão aquilo que é preciso.

De resto, como quando o homem está ferido, o coração que se enfraquece pela perda de sangue não chama em seu socorro o sangue das partes baixas, senão depois que a maior parte do sangue da parte alta está esgotado; assim também nas grandes necessidades do Estado os soberanos devem, tanto quanto podem, prevalecer-se da abundância dos ricos, antes de sangrar os pobres além do ordinário.

É o melhor conselho que posso dar a V. M. que o praticará facilmente, podendo tirar para o futuro a principal subsistência do seu Estado das suas fazendas gerais, que interessam mais aos ricos do que aos pobres, no que estas gastando menos não contribuem tanto para aquilo que lhes volta.


 

CAPÍTULO V

QUE CONSIDERA O ESTADO EM SI MESMO

 

SEÇÃO I

Que representa quanto é importante que as diversas partes do Estado fiquem cada uma na extensão dos seus limites

 

Depois de ter falado separadamente das diversas ordens de que o Estado se compõe, não me resta quase nada a dizer em linhas gerais senão que, assim como um todo não subsiste senão pela união das partes em sua ordem e no seu lugar natural, também este grande reino não pode ser florescente, se V. M. não faz subsistirem os corpos de que é composto em sua ordem; a igreja tendo o primeiro lugar, a nobreza o segundo, e os oficiais que marcham à frente do povo, o terceiro.

Digo sem temor porque é tão importante quanto justo impedir o curso das tentativas de certos funcionários que, cheios de orgulho, seja por causa dos seus grandes bens ou pela autoridade que lhes dá o emprego e seus cargos, ficam presunçosos a tal ponto, que querem ter o primeiro lugar naquilo que não podem ter senão terceiro. O que é de tal forma contra a razão e contra o bem do real serviço que é absolutamente necessário impedi-los continuar pois que de outra forma a França não seria mais o que foi, e o que deve ser; mas somente um corpo monstruoso, que como tal não poderia ter subsistência nem duração.

Como é uma coisa muito certa que os elementos que são capazes de peso não têm peso senão quando estão no seu lugar; é coisa muito certa também que nenhuma das ordens do Estado terá peso para as outras senão quando cada uma fique no lugar que lhe compete em virtude do seu nascimento.

E como o fogo, o ar e a água não podem sustentar um corpo terrestre porque ele pesa fora do seu lugar, é certo que nem a igreja nem a nobreza poderiam suportar o cargo dos oficiais, quando eles quisessem estar fora do seu lugar.

A segurança que tenho que V. M. saberá bem conter cada um nos seus limites faz que, sem que me estenda mais sobre o assunto, passe a duas questões que trato neste capítulo, porque elas dizem respeito igualmente às três ordens do Estado.


 

SEÇÃO II

Que examina se vale mais tornar os governos trienais neste reino ou deixá-los perpétuos segundo o uso que foi praticado até o presente.

 

Cada um estimará em primeiro lugar que é melhor torná-los trienais; mas quando se pesam bem as utilidades que podem provir com os incômodos que se tem a temer, talvez se estime, como já o fiz notar, que embora a nomeação para os oficiais não seja tão canônica quanto as eleições, seu uso entretanto é mais útil neste tempo por muitas razões; assim também a supressão da venalidade, sendo coisa a desejar por diversas razões, não se pode deixar de tolerar o seu uso sem cair em muitos inconvenientes já expressos anteriormente.

Também não se pode tornar o governo das províncias e das praças trienais, sem se expor a muitos inconvenientes, mais do que aqueles que possam ser temidos pelo estabelecimento da perpetuidade dos governadores.

Sei bem que se pode dizer que aquele que não tiver um governo senão por três anos, não terá provavelmente outro pensamento, senão cair dele com reputação, conduzindo-se com tal moderação, que sua administração seja preferida àquela do seu predecessor, em lugar que, se estiver assegurado para toda a vida, a segurança do seu cargo lhe facilita a licença.

Mas há muito mais segurança de que aquele que souber não estar para sempre num cargo quererá tirar, em pouco tempo, todo o proveito que poderia esperar para toda a vida, e seria de temer que a leviandade da nossa nação encontre espíritos tão mal conformados, que, prevendo o fim de uma administração que lhes fosse agradável, eles se resolvessem a perpetuar-se aí, recebendo por senhores aqueles que deveriam ter por inimigos.

Se se apresenta a prática da Espanha que muda constantemente os governadores, depois de ter respondido que não há nada tão perigoso quanto este governo, acrescentarei que assim como há frutos cujo uso é bom, excelente num país, pode ser veneno em outro; alguns usos na prática de um Estado são bons, sendo perniciosos em outros.

Dir-se-á talvez para prevenir as objeções que se pode fazer contra o uso da ordem da Espanha neste reino; que aqueles que se retiram do cargo depois da sua administração, não terá motivo de estar descontentes, pois que serão empregados em outros que podem ser melhores; mas encontrar-se-á na prática de uma tal ordem, tais dificuldades, que será impossível sobrepujá-las.

Um que pode ser próprio para governar a Picardia, por ter nascido nessa província, não será bom para ser empregado na Bretanha, da qual não conhece os hábitos, e onde o cargo que se lhe quisesse dar talvez não lhe desse meios suficientes de subsistência. Os governos em França são quase todos tão pouco rendosos que se não são dados a pessoas que o desejam mais por honra e por comodidade de sua vizinhança que por outra consideração, poucos se achariam capazes de suportar as despesas. E não há nas províncias gente suficiente para fazer as mudanças necessárias se os empregos forem trienais.

Tais mutações são, não somente praticáveis, mas absolutamente necessárias aos grandes cargos da Espanha, como ao do vice-rei de Nápoles, de Sicília, da Sardenha, ao governo de Milão e outros empregos de igual consideração; e todos rendem tanto aqueles que os ocupam que quando deixam a abundância de uns entram na opulência dos outros.

Os lugares afastados da morada dos príncipes requerem mudança de governadores nos cargos de tanto poder quanto são aqueles dos quais acabo de falar; porque uma demora mais longa do que de três anos poderia dar meios de formar tão fortes hábitos como para estabelecimento permanente; visto principalmente que a ambição dos homens é tão poderosa, que por pouco que um espírito seja desregrado, não lhe será difícil deixar-se levar o seu pensamento a mudar a sua condição de súdito pela de senhor.

Não é da mesma forma em França cujos governos não são suficientemente afastados da morada dos reis para que se possa temer um tal inconveniente, nem os cargos suficientemente poderosos para dar tanta autoridade que eles se creiam senhores.

Também, enquanto V. M. e seus sucessores se reservarem o poder de mudar os governos como bem lhes parece, desde que haja um mínimo motivo, o que poderão fazer sempre com justiça, se a venalidade sendo estabelecida eles dão gratuitamente. Não temo dizer que mais vale ficar neste ponto na prática da França do que imitar a Espanha; a qual entretanto é tão política e tão razoável, visto a extensão do seu domínio, que embora não possa ser utilmente praticada neste reino, deve-se a meu ver adotá-la para os lugares que a França possui na Lorena e na Itália.


 

SEÇÃO III

Que condena as sobrevivências.

 

As sobrevivências de que vamos tratar neste lugar são dadas ou contra a vontade dos possuidores dos cargos ou com sua aquiescência.

Não há ninguém que não reconheça que é injusto dar um sucessor a um homem vivo, contra a sua vontade, visto que por esse meio sua vida fica exposta aos artifícios daquele que deve ter proveito da sua morte, e o temor que pode justamente dominar o seu espírito lhe é como uma ante-morte.

Esta prática que era muito freqüente no passado, está agora abolida neste reino. Ela é tão perigosa que os concílios e diversas constituições dos príncipes temporais a condenam tanto quanto o faz a razão.

O consentimento dos possuidores não pode melhor justificar este uso, porque por maior que seja a confiança que possam ter naqueles que lhe são dados para sucessores, são freqüentemente enganados, e sendo impossível de contentar num Estado a cada um por graças, é importante ao menos deixar a esperança àqueles aos quais nada melhor se pode dar. O que não se pode fazer se os cargos, ofícios e benefícios são assegurados freqüentemente aos filhos que, no cúmulo de seu mérito e da sua idade, não ousariam talvez pensar em chegar às honras e à posição que se lhes deu no berço.

Tais graças que interessam grandemente ao Estado, não obrigam quase aos particulares. Estes não pensam que se lhes dê o que vêem nas mãos de seu pai ou de outro parente, e crêem que a segurança que se lhes quer obter é mais um direito de hereditariedade do que um efeito da bondade do príncipe.

Ainda que o bem do Estado requeira que na promoção que se faz aos cargos se considere mais o mérito dos súditos que a eles são elevados do que de toda outra coisa; no que diz respeito à sobrevivência tem-se mais em vista o serviço daquele que pede um sucessor, do que aquele que pode prestar o que sucede. O favor de uns tem em geral em tais ocasiões valor de mérito para os outros, que não têm nenhum título que os recomende além da sua importunação.

Concluo daí que o menos que se pode dar de tais graças é seguramente o melhor: que seria ainda mais útil não dar nada, porque qualquer consideração particular que se possa alegar, a conseqüência é perigosa nos Estados em que os exemplos têm freqüentemente mais força do que razão.

Se alguém notar que eu condeno neste artigo uma coisa de que sofri a prática mesmo com relação aos meus (33) ficará, estou seguro, muito satisfeito se se considera que enquanto uma desordem tem lugar sem que se possa dar-lhe remédio, a razão quer que se reconheça a ordem; o que pensei fazer conservando os cargos estabelecidos por meus cuidados aqueles que mais estreitamente eu poderia obrigar a seguir minhas intenções e minhas diretrizes; se na perturbação de um reino agitado por diversas tempestades eu tivesse podido fazer estabelecer o regulamento que proponho, teria sido dele um religioso observador.


 

CAPÍTULO VI

Que representa ao rei o que se estima como devendo considerar em relação à sua pessoa.

 

Deus sendo o princípio de todas as coisas, o soberano mestre dos reis e aquele que os faz reinar felizmente, se a devoção de V. M. não fosse conhecida por todo o mundo, eu começaria este capítulo que concerne sua pessoa, representando-lhe, que se não segue a vontade do seu criador, e não se submete às suas leis, não deve esperar fazer observar as suas, vendo os súditos obedientes às suas ordens.

Mas seria uma coisa supérflua exortar V. M. à devoção; ela é tão levada pela sua própria inclinação e tão confirmada pelo hábito de sua virtude, que não é de temer haja nunca descaminho.

É o que faz que em lugar de lhe representar a vantagem que os príncipes religiosos têm sobre todos os outros, contento-me em pôr-lhe diante dos olhos, que a devoção, que é necessária aos reis deve ser isenta de escrúpulos, e isto, é, Senhor, porque a delicadeza da consciência de V. M. lhe faz freqüentemente temer ofender a Deus fazendo certas coisas, das quais seguramente não se absteria sem pecado.

Se bem que os defeitos dos príncipes, que são desta natureza, são muito menos perigosos para os Estados que aqueles que se inclinam à presunção e ao desprezo daquilo que devem reverenciar.

Mas desde que levam o nome de defeitos, é preciso corrigi-los, principalmente se são verdadeiros, e é certo que podem advir muitos inconvenientes prejudiciais ao Estado.

Suplico nesta consideração a V. M. que queira fortificar-se cada vez mais contra os escrúpulos, pondo diante dos olhos que não pode ser culpado diante de Deus se segue (nas ocasiões que se apresentarem de difícil discussão, no que diz respeito à sua consciência) outras opiniões do seu conselho, confirmadas por aquelas de alguns teólogos não suspeitos, relativas aos fatos de que se trate.

Este primeiro fundamento posto, nada sendo mais necessário ao bem dos negócios de V. M. do que a conservação da sua saúde, é-me impossível não voltar a um assunto de tal importância.

As cuidadosas e diligentes observações que fiz de tudo que lhe toca fazem-me dizer freqüentemente que nada é necessário a um fim tão importante, quanto a sua própria vontade, que entretanto é o mais poderoso inimigo que possa ter a este respeito; porque comumente não custa pouco fazer querer aos príncipes o que lhes é não somente útil mas de todo necessário.

O espírito de V. M. doma tão absolutamente o seu corpo, que a menor das suas paixões toma conta do seu coração, e perturba toda a economia da sua pessoa. Várias experiências me fizeram conhecer esta verdade tão certa, que não a vi doente por outra causa.

Deus fez esta graça a V. M. de dar-lhe a força de suportar com firmeza o que a poderia mais interessar nos negócios de maior importância; mas por contrapeso dessa maior qualidade, foi permitido que V. M. fosse tão sensível no que toca aos seus mais humildes súditos, que coisas que não parecem de primeira vista poder desgostar, alteram-na de tal sorte que é impossível em tais ocasiões aconselhá-la e aliviá-la como se desejaria: o tempo que dá lugar ao fumo, que surpreende os sentidos, na evaporação, foi até agora o único remédio a tais males em V. M. que jamais foi presa de um aborrecimento sem que se seguisse uma indisposição corporal.

V. M. é nisso semelhante àqueles que desprezando os golpes de espada pela grandeza de sua coragem não podem por uma certa antipatia natural, suportar a picada da agulha para uma sangria.

Se fosse impossível a todos os homens prevenir pela razão as surpresas que recebem de suas paixões, eu não estimaria que isto se referisse a V. M. que tem muitas excelentes qualidades que os outros não têm.

Creio que os primeiros ardores da sua mocidade tendo passado, a fleugma de uma idade madura lhe dará algo com que se garantir para o futuro, pelo raciocínio, de um inimigo tanto mais perigoso, quanto é interno e doméstico, e que lhe fez tanto mal, particularmente duas ou três vezes, de tal sorte que pouco faltou para que lhe tirasse a vida.

Como é uma coisa importante a saúde, também é para reputação, e sua glória, que não pode sofrer senão aquilo que não é nada na razão, mas muito nos sentimentos que devem segui-la em todas as coisas.

Não passo ainda, sem reiterar a propósito, uma súplica que várias vezes fiz a V. M. conjurando a aplicar o seu espírito às grandes coisas do Estado, desprezando as pequenas como indignas dos seus cuidados e dos seus pensamentos.

Ser-lhe-á útil e glorioso repassar freqüentemente pelo espírito os projetos mais consideráveis, que o curso dos negócios puser em marcha; não há vantagem na preocupação do detalhe, ao contrário prejuízo somente, e não só porque tais ocupações distraem de outras melhores, mas porque também os pequenos espinhos sendo mais capazes de fazer mal do que os grandes, que se percebem mais facilmente, ser-lhe-ia impossível garantir-se de muitos desgostos, inúteis aos negócios, e contrários à sua saúde.

A grande agitação, de que vi o seu espírito agitado em diversas ocasiões, obrigam-me a representar neste lugar o que fiz em várias ocasiões, pois que cuidados são necessários para bem se realizarem os negócios; alguns não podem produzir outro efeito, senão alterarem a boa disposição daquele que os toma com muito calor, e provocam tal espanto àqueles que servem, que a perturbação do seu espírito os torna menos próprios a fazer aquilo que deles se deseja.

A experiência que 25 anos de reino e de governo, dão a V. M. não permite ignorar que nos grandes negócios, os efeitos não respondem nunca ao que se ordenou no ponto desejado; a experiência ensina também que deve antes tornar-se compatível com aqueles a quem cometem a execução de suas vontades, se seu trabalho não suceder a contento, antes do que imputar-lhe os maus acontecimentos de que não são culpados.

Não há senão Deus que possa tomar resolução infalível, e entretanto sua bondade é tal, que deixando agir o homem segundo sua fraqueza, sofre a diferença que há entre seus acontecimentos e suas disposições; o que ensina os reis a sofrer pela razão, com paciência, o que seu criador não sofre senão por sua bondade.

V. M. sendo de uma natureza delicada, de uma saúde fraca, e de um humor inquieto e impaciente, como é por constituição natural, especialmente quando está no exército a conduzi-lo, eu pensaria cometer um crime se não suplicasse que evitasse para o futuro a guerra, tanto quanto lhe fosse possível; o que faço sobre este fundamento, de que a leviandade e a inconstância dos franceses não pode ser vencida senão pela presença do seu senhor e que V. M. não pode, sem se expor a sua perda, submeter-se a uma empresa de longa duração, nem por conseguinte esperar daí bom sucesso.

Demasiado fez conhecer o seu valor e a sua força pelas armas, para não pensar para o futuro senão em gozar do repouso conquistado para o reino pelos seus trabalhos passados, ficando em estado de o defender de todos aqueles que contra a fé pública, de novo quisessem ofendê-lo.

Sendo coisa ordinária a muitos homens, não terem ação, senão sob o impulso de uma paixão, o que o faz considerar como o incenso que nunca cheira bem senão estando ao fogo, não posso deixar de dizer a V. M. que esta constituição, perigosa a toda a sorte de pessoas, o é particularmente aos reis, que devem, mais do que todos os outros, agir pela razão. E com efeito se a paixão leva uma vez ao bem, não é senão por acaso; pois que por sua natureza ela desvia tanto que cega aqueles em que está, como um homem privado de vista encontra algumas vezes o bom caminho, é maravilha que não se transvie, e se não cai de cheio, não poderia isentar-se várias vezes de tropeçar, senão por uma facilidade extraordinária.

Tantos males advieram aos príncipes e aos seus Estados, quando antes seguiram os seus sentimentos do que a razão, e que em lugar de se conduzirem pela consideração dos interesses públicos, suas paixões foram seus guias é impossível que eu não suplique a V. M. de refletir, a fim de que se confirme, cada vez mais, naquilo que sempre praticou em contrário.

Suplico que repasse freqüentemente na memória aquilo que várias vezes lhe representei, que não há príncipe em tão mau estado quanto aquele que não podendo sempre fazer, por si mesmo, as coisas a que está obrigado, custa a sofrer que elas sejam feitas por outrem, e que ser capaz de se deixar servir não é das menores qualidades que possa ter um grande rei; pois que sem isso as ocasiões passam antes que se possa dispor a tomá-las e por esse meio se perdem ocasiões favoráveis ao progresso do Estado, por assuntos de nenhuma consideração.

O falecido rei seu pai estando em uma extrema necessidade, pagava aos seus servidores com boas palavras, e fazia-os realizar por suas carícias, as coisas que a necessidade não lhe permitia conseguir por outro meio.

V. M. não tendo gênio para isso, tem uma secura natural, puxada da rainha mãe, como ela mesma disse várias vezes na minha presença, o que impede de seguir a este respeito a inclinação do falecido rei. Não posso deixar de lhe pôr diante dos olhos que o real serviço requer que faça o bem àqueles que lhe servem e é razoável que ao menos tome um cuidado particular em nada dizer que os possa desgostar.

Desde que trato agora da liberalidade que devem ter os príncipes, nada mais direi neste lugar; estender-me-ei porém, sobre os males que acontecem aqueles que falam muito livremente dos seus súditos.

Os golpes de espada curam-se facilmente, mas o mesmo não se dá com os da língua, particularmente vindos dos reis, cuja autoridade torna os golpes quase sem remédio, se este não vem deles mesmos.

Mais uma pedra é jogada de alto, mais impressão faz onde cai; tal não se incomodaria de ser atravessado pelas armas dos inimigos do seu senhor, e não pode suportar o menor arranhão de sua mão.

Assim como a mosca não é pasto para águia, e o leão despreza os animais que não são da sua força; um homem que atacasse a uma criança seria censurado por todo mundo; também ouso dizer que os grandes reis não devem nunca maltratar com palavras os particulares que não têm grandeza proporcional à sua.

A história está cheia de maus acontecimentos provindos da liberdade que, os grandes antigamente davam à sua língua, com prejuízo da pessoa que eles estimavam de nenhuma consideração.

Deus fez essa graça a V. M. que de seu natural não é levado a fazer o mal, mas é justo que regule de tal forma as suas palavras que não causem nenhum prejuízo.

Posso assegurar que de propósito deliberado não cairá nesse inconveniente; mas sendo difícil de reter os seus primeiros impulsos e súbitas agitações de espírito, que o dominam algumas vezes, eu não seria seu servidor se não advertisse de que a sua reputação e interesses requerem que tenha um cuidado particular, visto mesmo que tal liberdade de linguagem que não poderá ferir sua consciência, não deixará de fazer grande mal a todos os reais negócios.

Assim como falar bem dos seus inimigos é uma virtude heróica, um príncipe não pode falar licenciosamente daqueles que desejariam ter mil vidas, para pô-las a seu serviço, sem cometer uma falta notável, contra a lei dos cristãos, e contra a de toda a boa política.

Um rei que tem as mãos livres o coração puro, e a língua inocente não tem pouca virtude, e quem tenha as duas primeiras qualidades eminentes, como V. M., pode com muita facilidade adquirir a terceira.

Se é grandeza dos reis ser prudentes nas suas palavras de maneira que nada saia de sua boca que possa ofender aos particulares; é não somente sua prudência nada dizer que desagrade às principais companhias do seu Estado; devem além disso falar de sorte que tenham ocasião de acreditar serem seus afeiçoados; os mais importantes negócios do Estado obrigam tão freqüentemente ao choque pelo bem público que a prudência quer sejam contentados com as coisas que não são desta natureza.

Não é suficiente aos grandes príncipes nunca abrirem a boca para mal falar seja de que for, mas a razão requer que fechem os ouvidos às maledicências e às intrigas, banindo e expulsando aqueles que são autores, como pestes perigosas que envenenam as cortes e o coração dos príncipes, e o espírito de todos aqueles que dele se aproximam. Se aqueles que têm livre acesso aos ouvidos do rei, sem o merecer, são perigosos, aqueles que possuem o coração por puro favor o são bem mais, pois que para conservar um tal tesouro é preciso por necessidade que a arte e a malícia supram a falta de virtude, que neles não se encontra.

Não posso deixar de dizer a propósito, que muito mais temi o poder de tal gente por V. M., do que o poder dos maiores reis do mundo, V. M. devendo mais guardar-se do artifício de um criado, que o quer surpreender, do que de todas as facções que os grandes poderiam formar no seu Estado, quando mesmo convergissem para um mesmo fim.

Quando entrei para os negócios, aqueles que tinham tido a honra de servir antes, julgavam que, entre fazer um relatório em seu prejuízo, e persuadir a V. M. não havia diferença, e sob tal fundamento o principal cuidado era ter sempre confidentes seus perto de V. M. para se garantirem do mal que tinham a temer.

Embora a experiência que tenho, da firmeza de V. M. relativamente à minha pessoa me obrigue a reconhecer, ou que os julgamentos que eles faziam era mal fundado, ou que as reflexões que o tempo obrigou a fazer a seu respeito, tiraram essa facilidade da sua primeira mocidade, não deixo de conjurar a que se firme de tal sorte na conduta que tem usado relativamente a mim, que ninguém possa temer uma contrária.

Em seguida devo dizer que assim como os ouvidos dos príncipes devem ser fechados às calúnias, também devem ser abertos às verdades úteis ao Estado, e como a língua deve ser imóvel para nada dizer em prejuízo da reputação de outrem, também deve ser livre e franca para falar quando seja questão dos interesses públicos.

Noto esses dois pontos porque várias vezes observei que não era uma pequena cruz a V. M. ter paciência de escutar o que lhe era mais importante; e quando o bem dos seus negócios obrigava a fazer conhecer as suas vontades, não somente aos grandes, mas ainda aos pequenos, e às pessoas de medíocre condição, ela não tinha pouca pena a resolver-se quando previa o desagrado.

Confesso que esse temor é um testemunho de bondade; mas para não mentir não posso deixar de dizer que é também um efeito de alguma fraqueza, que podendo ser tolerável num particular, não o pode ser em um grande rei; visto os inconvenientes que daí podem sobrevir.

Não levo em consideração que um tal procedimento rejeitaria toda a inveja e o ódio das resoluções sobre o conselho de V. M. porque seria pouca coisa, se os negócios pudessem ir bem assim, mas o que é a considerar é que freqüentemente qualquer que seja a autoridade do ministro, ela não pode ser suficientemente grande para produzir certos efeitos que requerem a voz de um soberano e um poder absoluto.

Entretanto se uma vez grandes se persuadem de que uma má vergonha impede um rei de preencher o ofício de rei, comandando absolutamente, pretenderão sempre obter por importunação o contrário daquilo que teria sido ordenado pela razão, e enfim sua audácia poderia chegar a tal ponto, que conhecendo-se que o príncipe temia fazer-se de senhor, eles deixariam também de fazer-se súditos.

É preciso ter uma virtude máscula, e fazer todas as coisas pela razão sem se deixar arrastar pelo declive das inclinações, que levam freqüentemente os príncipes pelos grandes precipícios, se aquelas que lhes cobrindo os olhos os levam cegamente a fazer o que lhes agrada, são capazes de produzir o mal desde que o sigam sem prudência; a aversão natural que têm algumas vezes sem motivo podem causar maiores males, se a razão não tempera, como é para desejar.

Em algumas ocasiões V. M. teve necessidade da sua prudência para se reter na inclinação dessas duas paixões; mas mais ainda em relação à ultima do que à primeira; porque é mais fácil fazer o mal, segundo a sua aversão, o que não requer outra coisa num rei senão o comando, do que fazer o bem segundo a sua inclinação, o que não se pode sem despojar-se do que é próprio, para o que muitas pessoas não têm pouca dificuldade em tomar resoluções.

Estes dois impulsos são contrários ao espírito dos reis, principalmente se, refletindo pouco a seu respeito, seguem mais ao seu instinto do que ao seu raciocínio.

Eles os levam algumas vezes a tomar partido nas divisões que de ordinário existem nas cortes entre os particulares, do que vi acontecerem muitos inconvenientes; sua dignidade os obriga a se reservar para o da razão, que é o único que deve desposar em toda sorte de encontros; não podem usar de outra maneira sem se despojarem da qualidade de juizes e de soberanos, para tomar atitude de partidários, rebaixando-se de alguma maneira à condição de particulares.

Expõem por esse meio seu Estado a muitas cabalas e facções, que em seguida se formam; aqueles que têm de defender-se do poder de um rei, conhecem muito bem que não o podem fazer pela força, e para terem outros recursos com que se garantam, por intrigas, por artifícios e por manobras, causam freqüentemente grandes perturbações nos Estados.

A sinceridade que deve ter um homem que faz um testamento não permite à minha pena de acabar esta seção sem fazer uma confissão tanto mais verdadeira quanto vantajosa para a glória de V. M. pois que fará fé a todo mundo, que a lei de Deus foi sempre limite capaz da parar a violência de qualquer inclinação ou aversão que possa ter surpreendido seu espírito, que, sujeito aos mais leves defeitos dos homens, foi sempre, graças a Deus, isento das mais notáveis imperfeições dos príncipes.


 

CAPÍTULO VII

Que faz ver o estado presente da casa do rei e declara o que parece necessário para pô-la no estado em que deve estar

 

A ordem das artes e de toda a boa disciplina quer se comece sempre o seu trabalho por aquilo que se acha mais fácil.

Sob este fundamento a primeira coisa que faz um arquiteto que quer empreender a construção de um grande edifício é fazer um modelo onde as proporções sejam tão bem observadas, que lhe sirvam de medida e de pé para o seu grande projeto; e se ele não pode levar a termo com o projeto fracassa da sua empresa; o sentido comum fazendo conhecer aos mais grosseiros que aquele a quem o menos não foi possível, é inteiramente incapaz do mais.

Nesta consideração os espíritos mesmos medíocres resumo do mundo, também a famílias particulares são verdadeiros modelos dos Estados e das Repúblicas, cada um tendo por coisa muito certa que aquele que não pode ou não quer regular a sua casa, não é capaz de regular um Estado; a razão quer que para se chegar à reforma deste reino se comece pela casa de V. M.

Entretanto confesso que nunca tentei empreender isso porque a bondade de V. M. tendo tido sempre aversão pela ordem que estimava de pequena conseqüência, porque o interessasse a particulares, não se podia propor um tal efeito, sem chocar abertamente a sua inclinação e o interesse de muita gente que estando continuamente perto de V. M. com grande familiaridade, teria podido evitar as ordens mais necessárias ao seu Estado, para impedir as desordens daqueles de sua casa, cujos desregramentos lhe fossem úteis.

Mas como um testamento põe a claro muitas intenções, que o testador não tinha ousado divulgar durante sua vida, este convidará V. M. à reforma de sua casa, que foi omitida, tanto porque lhe pareceu bem mais fácil do que aquela do Estado, sendo de fato mais difícil; como porque também a prudência obriga a sofrer em certas ocasiões pequenas perdas para ganhar em outras coisas

Como é assunto conhecido de toda a gente, que nunca houve rei que tenha levado mais alto a dignidade do seu Estado do que V. M., também não se pode negar que nunca houve quem deixasse ir tão baixo o lustre da sua casa.

Os estrangeiros que vieram à França no meu tempo, muitos se espantaram de ver num Estado poderoso, uma casa tão insignificante.

Com efeito, ela insensivelmente declinou a tal ponto que alguns chegam a possuir os primeiros cargos, quando no reino dos seus predecessores não teriam sequer ousado pensar nos mais medíocres; tudo isto foi confusão que dominou desde a cozinha até o gabinete.

Em lugar de, como no tempo em que o rei seu pai, os príncipes, os oficiais da coroa e todos os grandes do reino comiam de ordinário à real mesa; agora ela parece ter sido posta para criados ou simples cavaleiros ou gente de armas; e também tem sido tão mal servida, que alguns senhores desprezam-na em lugar de a procurar avidamente.

No que diz respeito à sua pessoa os estrangeiros algo acharam em que falar, visto que sua mesa era servida por simples e sujos “marmitões” em lugar de o serem como as dos outros reis, por gentis-homens.

Sei bem que esse costume não foi introduzido em seu tempo, mas por ser antigo não é mais tolerável, afastado como está da dignidade e da grandeza de um tão grande príncipe.

Sei bem ainda que essa prática foi sofrida até agora sob pretexto da segurança dos reis, dizendo que é impossível aos oficiais responder pelo que fizerem, se eles mesmos não são responsáveis pelo transporte até V. M.

Mas essa razão parece-me pouco considerável, não parecendo que um “marmitão” seja mais fiel ao seu senhor do que um gentil-homem que em diversas outras ocasiões poderia trair se quisesse.

Oitenta jovens fidalgos que V. M. mantém, pagens ou de sua câmara ou das suas cavalariças, serão bem melhor empregados neste serviço do que deixando-os simplesmente a cargo dos maiores fidalgos ou escudeiros que os comandam, se mais eles não gostassem de aproveitá-los o que fariam com dignidade servindo a V. M. com não menos fidelidade.

A limpeza e a ordem em todos os lugares é requerida com mais forte razão na casa dos reis. A opulência dos móveis é tanto mais necessária quanto os estrangeiros não concebem a grandeza dos príncipes senão pelo que aparece no exterior; e entretanto embora V. M. tenha numerosos móveis bonitos e ricos, que se perdem nos lugares em que deviam ser conservados; freqüentemente se vêem na sua câmara tais, que aqueles que devem aproveitar quando ela os abandona, deles não querem mais servir-se.

A entrada de seu gabinete foi permitida a todo mundo não somente com prejuízo da real dignidade, mas ainda mais com prejuízo da real segurança.

Os embaixadores muitas vezes ficaram mais apertados por pagens e outros oficiais menores do que por grandes do Estado nas suas audiências; e entretanto a real dignidade e o antigo costume do reino querem que em tais ocasiões V. M. seja acompanhada de príncipes, duques e pares, de oficiais da sua coroa e outros grandes do Estado.

Sei que diversos reinos têm diversos costumes; que na Espanha os grandes vêem seu rei mais freqüentemente do que na Inglaterra; a ordem aí está tão bem estabelecida a esse respeito que todas as portas sendo abertas não se vêem na câmara e nos gabinetes senão aqueles aos quais a entrada é livre por sua dignidade e por seu cargo.

Sei além disso que é um privilégio daqueles que trazem coroa serem rodeados de seus súditos; mas deve haver esta distinção que de ordinário devia ser de nobreza, e na ocasião de receber os estrangeiros, pessoas qualificadas, que são em grande número neste reino, para fazer notar a grandeza e a singularidade dessa prerrogativa.

Em uma palavra, a desordem é tão universal em toda a casa de V. M., que não há cargo particular que esteja dela isento.

Embora todos os grandes príncipes sejam cuidadosos e tenham equipagens com muitos cavalos, convenientes à sua grandeza, V. M. não teve nunca na sua cavalariça um de que se pudesse servir embora fizesse maior despesa do que os seus predecessores.

Ser-me-ia fácil especificar muitos outros defeitos não menos notáveis que estes; mas não entrarei em detalhes de um desregramento tão geral, tanto porque seria muito difícil de o fazer sem descer muito baixo para a dignidade desta obra, quanto porque é suficiente conhecer um mal sem publicá-lo, para prescrever os remédios: satisfarei ao que devo, se proponho a V. M. o verdadeiro meio de dar lustro à sua casa, em lugar da baixeza e da desordem que nela reinam.

A primeira coisa que é necessária para esse fim é que V. M. queira fortemente esta reforma; sendo certo que nos negócios dessa natureza é da vontade dos reis como da de Deus, em relação às coisas mais difíceis, às quais o querer e o fazer é uma mesma coisa.

A segunda é que não lhe agrade para o futuro não querer preencher mais os primeiros cargos da sua casa senão com pessoas de nascimento, que trazem todas as qualidades requeridas para cumprir dignamente o seu emprego.

Por grande que seja um oficial, ele se aplicará às menores dependências do seu cargo, desde que seja capaz, julgando em conseqüência, como são com efeito.

Se os “maitres d’Hotel”, por exemplo, não têm um cuidado particular em ter limpos dia e noite os lugares em que se come, logo depois que as mesas se levantem, terão faltado a uma das coisas mais necessárias ao seu cargo.

É preciso dizer o mesmo de todos os ofícios principais e particularmente dos primeiros gentis-homens da real câmara que devem ser cuidadosos em trazer todos os apartamentos de V. M. tão limpos e em ordem que não será demais limpar e perfumar três a quatro vezes por dia, em vista do grande acúmulo de gente que não se pode evitar, por mais regulada que seja.

Desde que cada um seja próprio para seu lugar tudo irá como V. M. pode desejar e deste ponto único depende a regulagem de todo o resto; porque qualquer regra que se possa estabelecer será sem dúvida inútil se não houver gente capaz de a fazer observar e se todos não são suficientemente inteligentes para fazer o que a razão inspira como mais digno ponto do seu cargo e do serviço do seu senhor.

O terceiro consiste em que V. M. se faça servir em todos os cargos da casa salvo os mais baixos, por gentis-homens, o que contribuindo muito à sua dignidade, tornará a nobreza tanto mais afeiçoada, quanto ela terá mais meios de chegar perto da sua pessoa.

Por esse meio V. M. pode fazer de quatro companhias dos seus gendarmes de corpos, as quatro melhores companhias de gendarmes do seu reino; sendo certo que há muitos gentis-homens que ficarão satisfeitíssimos de viver nessa qualidade, desde que se dê gratuitamente aquilo que agora se vende em balcão pois que aquele que dá é preferido aos outros.

Neste caso, um tal estará bem alegre de ter este emprego, que por nada no mundo hoje tomaria, desde que é usurpado por pessoas que não o merecem.

E todos o terão de boa vontade pelo acesso que têm na corte, onde um acaso e qualquer hábito podem produzir sua fortuna, num instante.

Dia virá ainda em que menos haja plebeus isentos de pagamentos de taxa pelos cargos da casa real, e em que mais gente se encontre para ajudar o povo a levar o fardo de que está hoje encarregado.

O quarto é que V. M. dê, de futuro gratuitamente, os cargos da sua casa, sem permitir que sejam vendidos por qualquer consideração que possa ser.

Dir-se-á talvez que não é razoável que aqueles que compraram caro os grandes cargos, sejam privados da licença de os vender; mas sendo impossível fazer regras úteis ao público, que não tenham algo de incômodo para os particulares, este inconveniente não é considerável, além de que não tendo comprado seu cargo com a segurança de o revender, como se faz com os ofícios de “paulette” podem ser eles privados da esperança que talvez tivessem, sem que haja injustiça.

E embora qualquer particular possa achar-se ferido numa tal mudança, toda a nobreza e os maiorais aí encontrarão uma notável vantagem nisto, em lugar de serem obrigados como no passado, a vender uma parte considerável dos seus bens, para ter tais cargos, o que muitas vezes arruinou algumas das melhores famílias do reino, e agora não poderão mais esperá-los senão do seu mérito. O que os impedirá de perder os seus bens e os obrigará a adquirir virtude que no século presente é tanto mais desprezada, quanto o preço de todas as coisas não consiste senão em dinheiro.

De resto encontrar-se-ão tantos meios para desinteressar àqueles que, por considerações particulares, serão dignos de ser isentos das regras gerais, que o público poderá receber mais graças que V. M. lhe queira dar, sem que os particulares que se poderiam queixar justamente, tenham nenhum prejuízo.

Como é impossível duvidar da utilidade destas proposições, a facilidade em executá-las é manifesta, pois que assim como eu disse acima, não é preciso senão vontade firme e constante de V. M. para se ter fruto e restabelecer sua casa em seu lustre primitivo.


 

CAPÍTULO VIII

DO CONSELHO DO PRÍNCIPE

 

SEÇÃO I

Que mostra que os melhores príncipes têm necessidade de um bom conselho.

 

Não é uma pequena questão entre os políticos saber se um príncipe que se governa no seu Estado por sua cabeça é mais para desejar do que aquele que, não se fiando tanto em suas luzes, deixa muito ao seu conselho, e nada faz sem ouvi-lo.

Far-se-iam volumes inteiros com razões que se podem apresentar de um lado e do outro, mas reservando esta questão ao fato particular que me obriga a traçá-lo neste lugar, depois de ter preferido o príncipe que age mais por meio de um conselho do que pelo seu próprio, àquele que prefere a sua cabeça a todas as razões dos conselheiros; não posso deixar de dizer que assim como o pior governo é aquele que apenas se baseia na cabeça de um príncipe, que sendo incapaz é tão presunçoso que não faz caso de conselho nenhum, o melhor de todos é aquele cujo principal impulso é o espírito do soberano, que embora capaz de agir por si mesmo tem tanta modéstia quanto julgamento, que nada faz sem bom conselho, fundado sobre este princípio de que um olho não vê tão claramente quanto vários.

Além de que a razão faz conhecer a solidez desta decisão; a verdade me obriga a dizer que a experiência me deu um tal conhecimento, que eu não poderia calar-me sem forçar-me a mim mesmo.

Um príncipe capaz é um grande tesouro num Estado; um conselho hábil e tal como deve ser, não o é menos, mas o conjunto de ambos é inestimável, pois que é daí que depende a felicidade dos Estados.

É certo que os Estados os mais felizes são aqueles em que os príncipes e os conselheiros são sabidos.

É certo ainda que poucos príncipes se encontram que possam sozinhos governar o seu Estado, e além disso, mesmo que houvesse vários, eles não deveriam agir assim.

O todo poder de Deus, sua infinita sabedoria, e sua providência não impedem que ele se sirva, embora pudesse fazer por seu simples querer, do ministério das causas segundas, e por conseguinte os reis, cujas perfeições têm limites, em lugar de ser infinitos cometeriam uma falta notável se não seguissem o seu exemplo.

Mas enquanto não está no seu poder, como no poder de Deus, suprir a falta daqueles de que se servem; devem ser extremamente cuidadosos, escolhendo os mais perfeitos e completos para seus servidores.

Muitas qualidades são requeridas para fazer um conselho perfeito; podem ser reduzidas entretanto a quatro a saber, capacidade, fidelidade, coragem e aplicação que compreendem várias outras.


 

SEÇÃO II

Que representa qual deve ser a capacidade de um bom conselheiro.

 

A capacidade dos conselheiros não requer uma suficiência pedantesca; nada há mais perigoso para o Estado do que aqueles que querem governar os reinos por máximas tiradas dos livros. Eles os arruinam de todo por esse meio, porque o passado não se integra no presente, e a constituição dos tempos, dos lugares, e das pessoas é diferente. Ela requer somente bondade e firmeza de espírito, sólido julgamento, verdadeira fonte da prudência, tintura razoável das letras, conhecimento geral de história e da constituição presente dos Estados do Mundo, e particularmente deste.

Duas coisas são principalmente a considerar a este respeito.

A primeira, que os maiores espíritos são mais perigosos do que úteis no manejo dos negócios; se não têm muito mais de chumbo do que de mercúrio, nada valem para o Estado.

Alguns há que são férteis em intervenções, e abundantes em pensamentos, mas tão variáveis em seus desígnios, que os da noite e os da manhã são sempre diferentes, e têm tão pouca seqüência e clareza na escolha de suas resoluções, que mudam as boas tanto quanto as más, e nunca ficam constantes em nenhuma.

Posso dizer com verdade, sabendo por experiência, que a leviandade de tal gente não é menos perigosa na administração dos negócios públicos do que a malícia de muitos outros.

Há muito a temer dos espíritos cuja vivacidade é acompanhada de pouco julgamento, e quando os excelentes em assuntos judiciários não tivessem grande extensão, não deixariam de poder ser úteis aos Estados.

A segunda nota que se deve fazer a este respeito é que nada há mais perigoso num Estado do que pôr em grande autoridade certos espíritos que não têm luzes suficientes para se conduzirem por si mesmos e pensam, entretanto, ter demais para necessitarem de conselho alheio.

Eles não podem ter boa diretriz de sua cabeça, nem seguir conselho dos que são capazes de os dar, e também cometem enormes faltas.

A presunção é um dos grandes vícios que um homem possa ter nos cargos públicos, e se a humildade não é requerida naqueles que se destinam a conduzir os Estados, a modéstia lhes é de todo necessária, sendo certo que quanto maior é o espírito, menos se acha ele, algumas vezes, capaz de sociedade e de conselho, qualidades sem as quais aqueles mesmos aos quais a natureza deu mais luzes são pouco próprios aos governos.

Sem a modéstia os grandes espíritos são tão ciosos de suas opiniões que condenam todas as outras, embora sendo melhores, e o orgulho de sua natural constituição, junto à sua autoridade, torna-os insuportáveis.

O homem mais hábil do mundo deve freqüentemente ouvir os conselhos daqueles que ele pensa serem menos hábeis do que ele.

Como é da prudência do ministro do Estado falar pouco, também é de escutar muito: tira-se proveito de toda a sorte de opiniões; os bons conselhos são úteis por si mesmos, e os maus confirmam os bons.

Em uma palavra, a capacidade de um ministro de Estado requerer a modéstia, e se com essa qualidade tem bondade, espírito e sólido juízo, terá tudo o que lhe é necessário.


 

SEÇÃO III

Que representa qual deve ser a probidade de um bom conselheiro.

 

É coisa diferente o ser homem de bem segundo Deus e segundo os homens.

Aquele que tem cuidado todo particular em observar a lei do seu criador está nos primeiros termos; mas para estar nos segundos, é preciso guardar a que prescreve a honra dos homens.

Estas diferentes probidades são para desejar nos conselheiros de Estado; mas ainda é incerto se aquele que tem todas as qualidades exigidas pela do mundo tenha também ordinariamente aquelas que o tornam homem de bem diante de Deus. Um poderia ter cuidado particular em regular a sua consciência segundo a vontade do seu criador, mas privado de algumas das condições dessa probidade será menos próprio ao ministério público do que aquele que, tendo todas, estará sujeito a alguns defeitos parciais com relação à primeira.

Entretanto, como o desregramento da consciência é a verdadeira fonte de todas as imperfeições do homem, digo francamente que as duas probidades de que falo são igualmente requeridas para a perfeição de um conselheiro de Estado, que não poderia ter a segunda sendo destituído da primeira.

Em uma palavra, o homem de Estado deve ser fiel a Deus, ao Estado, aos homens e a si próprio; o que o fará, se além das qualidades expressas acima for afeiçoado ao público, desinteressado em seus conselhos.

A probidade de um ministro público, não supõe uma consciência timorata e escrupulosa; ao contrário nada há mais perigoso para o governo do Estado; visto que da falta de consciência poderiam advir muitas injustiças e crueldades; o escrúpulo pode produzir muitas emoções e indulgências prejudiciais ao público; e é muito certo que aqueles que tremem das coisas mais seguras, pelo temor de se perderem, perdem não raro os Estados, quando poderiam salvá-los salvando-se com eles.

Como a probidade do conselheiro de Estado não se pode compatibilizar com certo rigor, companheiro da injustiça, ela não é contrária à severidade, da qual se deve usar por necessidade em muitos lugares, ao contrário aconselha-a e a prescreve algumas vezes, obrigando mesmo a ser impiedoso.

Ela não impede que um homem possa gerir os seus negócios gerindo os do Estado; mas ela proíbe que neles pense com prejuízo dos interesses públicos, que lhe devem ser mais caros que sua própria vida.

Essa probidade não sofre, naqueles que são empregados nos negócios públicos, uma certa bondade, que os impede de recusar rudemente àqueles que têm pretensões injustas; ao contrário, quer que em concedendo o que é razoável, negue-se com firmeza o que não o seja.

Não posso passar aqui sem dizer o que Ferdinando, Grão-duque de Florença, que viveu em nosso tempo, dizia a esse respeito: que ele preferia um homem corrompido ao fácil, porque o corrompido não pode sempre estar a serviço dos seus interesses, pois que nem sempre eles estão na ordem do dia, enquanto o fácil é levado por todos aqueles que sobre ele fazem pressão, o que acontece tanto mais freqüentemente, quanto se reconhece não ser ele capaz de resistir aos pertinazes.

Essa probidade requer que todos aqueles que são empregados no governo do Estado marchem com o mesmo pé, e que como ele ajam para o mesmo fim, tenham linguagem semelhante; de outra forma se se encontra alguém que agindo bem, fala mais fracamente que os outros para declinar a inveja, além de que não terá a probidade requerida ao ministro de Estado, carregará de ódio àqueles cuja fraqueza de palavras corresponde à firmeza das suas ações.

Encontra-se gente cuja virtude consiste mais em queixar-se das desordens do que em dar-lhes remédio pelo estabelecimento de uma boa disciplina.

Não são esses os que procuramos; sua virtude não é senão aparente, e não tendo ação que possa servir, ela difere muito pouco do vício, que sempre prejudica.

A probidade de um conselheiro de Estado deve ser ativa; despreza as queixas e se mune de coisas sólidas, de que o público pode tirar vantagem.

Outros se encontram, que não tendo nada senão o bem do Estado na boca, têm ambição tão desregrada no coração, que nenhum bem põe termo aos seus desejos, e nada os satisfaz nem os contenta.

Outros, passando além, não contentes de não o serem nunca, convertem sob lindos pretextos os interesses públicos nos seus próprios, e em lugar de conduzirem os particulares pelos públicos, fazem com tanta injustiça quanta audácia, justamente o contrário.

Tal gente é não somente destituída da probidade necessária ao emprego dos negócios públicos, mas constitui verdadeira peste no Estado; são os javalis da escritura, na vinha cheia de vindima com que de saciar-se não se contentam, mas estragam e destroem tudo o mais.

Aqueles que são vingativos por natureza, que seguem antes as suas paixões do que a razão, e que em lugar de escolherem os homens pela consideração única de sua capacidade no que se quer empregá-los, escolhem-nos por afeiçoados aos seus interesses, não podem ainda ser estimados como possuidores da probidade requerida para o manejo dos Estados.

Se um homem está sujeito às suas vinganças, dar-lhe autoridade, é pôr a espada na mão de um furioso; se ele segue nas suas eleições seus apetites e não a razão, é expor o Estado a ser antes servido por gente de favor do que de mérito; do que advirão muitos inconvenientes.

O homem de bem não deve nunca vingar suas injúrias, senão quando tem razões vindas do Estado; mas é preciso que ele não se leve à vingança pública pelo sentir dos seus interesses particulares; e se ele o faz, como aqueles que têm probidade escrupulosa fazem às vezes mal por um bom princípio, pode-se dizer, com verdade, que faz pouco bem, por um mau caminho.

Se a probidade do conselheiro de Estado requer que esteja à prova de toda a sorte de interesses e de paixões, ela quer que esteja também das calúnias, e que todos os obstáculos que se lhe puser à frente não o possam desencorajar de bem fazer.

Deve saber que o trabalho que se faz para o público não é em geral reconhecido por nenhum particular, e que não se deve esperar outras recompensas na terra além do renome, próprio a ser paga para as grandes almas.

Deve também saber que os grandes homens postos no governo dos Estados são como aqueles que se condenam ao suplício, com a diferença apenas que estes têm a pena de suas faltas, e os outros de seu mérito.

Além disso deve saber que não é senão das almas grandes servir fielmente aos reis, e suportar a calúnia que os maus e os ignorantes imputam à gente de bem, sem que possam desgostar-se nem frouxar o serviço que se é obrigado a prestar.

Deve saber, ainda, que a condição daqueles que são chamados ao manejo dos negócios públicos é muito de lamentar, porque embora façam o bem, a malícia do mundo diminui a glória, representando que melhor se poderia fazer, mesmo que isso fosse completamente impossível.

Enfim deve saber que aqueles que estão no Ministério de Estado são obrigados a imitar os astros, que não obstante os latidos dos cães não deixam de iluminá-los, segundo seu curso; o que deve obrigá-los a desprezar de tal forma tais injúrias, que sua probidade não possa ser abalada, nem eles afastados de marchar com firmeza aos fins a que se propõem para o bem do Estado.


 

SEÇÃO IV

Que representa qual deve ser o coração e a força de um conselheiro de Estado.

 

A coragem de que se trata agora não requer que o homem seja audaz a ponto de desprezar toda sorte de perigos. Nada há mais capaz de perder os Estados; e é necessário que o conselheiro de Estado saiba conduzir-se assim que, ao contrário, vá em quase todas as ocasiões a passo de chumbo, nada empreendendo senão com grande consideração, a tempo e a propósito.

É preciso, ainda, que a coragem requerida ao perfeito conselheiro de Estado o obrigue a não pensar só nas grandes coisas, o que acontece freqüentemente às almas as mais elevadas, quando elas têm mais coragem do que julgamento. Ao contrário é de toda a forma necessário que ele se baixe até os medíocres embora de começo pareçam abaixo do seu nível e do seu alcance, porque freqüentemente as grandes desordens nascem de pequenos começos e as coisas mais consideráveis têm algumas vezes princípios que parecem de nenhuma consideração.

Mas a coragem de que se trata, requer que um homem seja isento de fraqueza e de temor, que tornam aquele que está prevenido contra esses dois defeitos não somente incapaz de tomar boas resoluções para o bem público, mas ainda de executar aquelas que tomou.

Requer um certo fogo que faz desejar e perseguir as altas coisas com tanto ardor, que o julgamento os abrace com sabedoria.

Requer além disso uma certa firmeza que faz manter fortemente as adversidades e faz que o homem não pareça mudar ou não mude em face dos maiores transtornos da fortuna.

Deve dar ao ministro de Estado uma honesta ambição de glória sem a qual os mais capazes e os mais honestos ficam freqüentemente sem se assinalar por nenhuma ação vantajosa ao público.

Deve dar a força de resistir sem espanto, às invejas, aos ódios, às calúnias e a todos os empecilhos que se encontram de ordinário na administração dos negócios públicos.

Enfim deve justificar na sua pessoa o dizer de Aristóteles, que assegura que em lugar que aquele que é fraco se serve de rusga e manha, aquele que é forte despreza a um e a outro justamente pela justa confiança que tem em si mesmo.

É preciso notar a este propósito que ser valente, e ser corajoso, não é a mesma coisa.

A valentia supõe uma disposição a se expor voluntariamente em todas as ocasiões, aos perigos que se apresentam, o que a coragem não requer, mas somente resolução, suficiente para desprezar um perigo, quando nele a gente se encontre, e para suportar constantemente uma adversidade, quando ela aparece.

Pode-se mesmo ir adiante e dizer que além da disposição especificada acima, a valentia requer uma outra, corporal, que torna o homem próprio a testemunhar o seu valor pelo seu braço.

Sei bem que aqueles que no passado falaram sobre as principais virtudes do homem não conheceram essas distinções, mas se se as considera maduramente, encontrar-se-á a primeira absolutamente necessária, e a segunda não supérflua; por isso que a maior parte do mundo não concebe um homem valente senão quando leva a efeito vários golpes de mão, como testemunhos daquilo que ele vale.

De qualquer forma que se toma a valentia, ela não é necessária a um conselheiro de Estado; nem há necessidade que o conselheiro tenha disposição a expor-se a todos os perigos, nem mesmo que tenha aptidão corporal a fazer o que vale pela virtude do seu braço; é suficiente que tenha o coração em tão bom lugar que um mau temor, e os empecilhos que possa encontrar, não consigam desviá-lo dos seus bons e generosos propósitos; e como é o espírito que governa, e não a mão, basta que o seu coração mantenha a sua cabeça, embora não possa fazer agir o seu braço.


 

SEÇÃO V

Que representa qual deve ser a aplicação dos conselheiros de Estado.

 

A aplicação não requer que um homem trabalhe incessantemente nos negócios públicos; ao contrário nada é mais capaz de o tornar inútil do que um tal procedimento.

A natureza dos negócios de Estado requer tanto mais descanso quanto mais pesado é o seu fardo e de mais sobrecarga que qualquer outro, e tal que a força do espírito e do corpo dos homens em pouco tempo se esgota.

Ela permite toda a sorte de diversões honestas, que não divertem àqueles que as tomam, coisas a que devem ser principalmente ligados.

Mas requer que aquele que está posto nos negócios públicos faça destes seu principal, e a ele esteja ligado de espírito, de pensamento e de afeição; requer que o maior dos seus prazeres seja o bom sucesso dos seus negócios.

Requer que faça constantemente a volta ao mundo para prever o que pode acontecer, achando meios de prevenir os males que devem ser temidos e de executar as empresas que aconselha a razão dos interesses públicos.

Como ela obriga a não perder um momento em certos negócios que se podem transtornar com o menor atraso, quer também que não se precipite em outros, em que o tempo é necessário para tomar as resoluções das quais depois não se tenha motivo de arrependimento.

Um dos maiores males deste reino consiste em que cada um se liga mais a coisas de que não pode se ocupar sem falta, do que às de que não pode fugir sem crime.

Um soldado fala do que o seu capitão deveria fazer; o capitão dos defeitos que ele imagina ter seu mestre de campo; um mestre de campo tem o que dizer do seu general; o general lamenta a conduta da corte e nenhum entre eles é, no seu cargo, o que devia ser, nem pensa em cumprir as coisas a que está obrigado, com exatidão.

Há pessoas de tão pouca ação e de constituição tão fraca, que não se incomodam nunca em conseguir por si mesmos alguma coisa; mas recebem somente as ocasiões que fazem mais neles do que eles nelas.

Tal gente é mais própria a viver num claustro do que a ser empregada no manejo dos Estados que requerem aplicação e atividade conjuntas; também qualquer deles aí faz tanto mal pela sua conduta morosa, quanto um outro pode fazer bem por uma ativa aplicação.

É preciso não esperar grandes efeitos de tais espíritos, nem se deve esperar sobre o bem que eles fazem, nem se deve querer-lhes mal pelo que deles se receba, porque, propriamente falando, o acaso age mais neles do que eles mesmos.

Nada há mais contrário à aplicação necessária aos negócios públicos do que o apego que aqueles que têm a administração podem ter pelas mulheres.

Sei bem que há certos espíritos de tal forma superiores e senhores de si mesmos, que embora sendo advertidos do que devem a Deus por alguma afeição desregrada, não se perturbam por isso com relação ao que devem ao Estado. Alguns se acham tão senhores da sua vontade, não fraquejando para aquilo que constitui o seu prazer, que não prestam atenção senão às coisas que sua função obriga.

Há poucos desta natureza e é preciso confessar que como uma mulher perdeu o mundo, nada é mais capaz de perder os Estados do que este sexo, quando tomando pé sobre aqueles que os governam, fá-los mover como bem parece, e mal, por conseqüência.

Os melhores pensamentos das mulheres são quase sempre maus, naquelas que se conduzem pelas suas paixões, que têm de ordinário lugar de razão no seu espírito, ao passo que a razão é o único e o verdadeiro motivo que deve animar e fazer agir àqueles que estão no emprego dos negócios públicos.

Qualquer força que tenha um conselheiro de Estado, é impossível que possa bem aplicar-se ao seu cargo, se não é inteiramente livre de semelhantes ligações. Ele pode bem com elas não faltar ao seu dever, mas se estiver isento fará muito melhor.

Em qualquer Estado que esteja, para bem fazer, deve distribuir seu tempo de sorte que tenha as horas para trabalhar só no expediente a que seu cargo obriga, e outras para dar audiências a todo mundo, a razão exigindo que trate cada um com cortesia e com tanta civilidade quanta a sua condição e as diversas qualidades das pessoas que têm negócios com ele, requerem.

Este artigo testemunhará à posteridade a minha ingenuidade, pois que descrevi coisas que não me foi possível observar completamente.

Sempre vivi civilmente com aqueles que trataram comigo; a natureza dos negócios, que me obriga a recusar audiência a muita gente, não me permite tratá-las mal ou pelo rosto ou com as palavras, quando não posso contentá-las por efeito; mas a minha má saúde não pode suportar que eu ouvisse a todo mundo, como desejaria, o que me deu tanto desgosto, que esta consideração algumas vezes me fez pensar na minha retirada.

Entretanto posso dizer, com verdade, ter de tal forma levado a fraqueza das minhas forças, que se não pude corresponder ao desejo de todo mundo, elas jamais puderam impedir-me de satisfazer o meu dever com relação ao Estado.

Enfim a aplicação, a coragem, a probidade e a capacidade fazem a defesa do conselheiro de Estado, e o concurso de todas essas qualidades devem encontrar-se na sua pessoa.

Um tal, pode ser homem de bem, mas não tendo talento para os negócios de Estado, seria inútil, ocupando cargos que não pudesse preencher.

Tal poderia ser capaz e ter a probidade requerida, mas não tendo suficiente coragem para sustentar as diversas coisas impossíveis de evitar nos governos de um Estado, aí seria prejudicial, em lugar de ser útil.

Tal poderia ser ainda bem intencionado, capaz e corajoso, mas cuja preguiça não deixasse de ser ruinosa ao público, se não se aplicasse a funções do seu emprego.

Tal pode ter boa consciência, ser capaz, corajoso e aplicado ao seu emprego, mas por ser mais atento aquilo que o toca do que ao que concerne aos interesses públicos, embora os sirva utilmente não deixa de ser para temer.

Da capacidade e da probidade nasce um acordo tão perfeito entre o entendimento e a vontade, que assim como o entendimento sabe escolher os melhores objetos e os meios mais convenientes para adquirir seu poder, a vontade sabe também abraçá-lo com tanto ardor que não esquece nada do que pode, para chegar aos fins a que o entendimento se propôs.

Da probidade da coragem nasce uma honesta audácia em dizer aos reis o que lhes é útil, embora isso não lhes seja agradável.

Digo honesta audácia, porque se ela não é bem regulada, e sempre respeitosa, em vez de ser posta na qualidade das perfeições do conselheiro de Estado seria um dos seus vícios.

E preciso falar ao rei com palavras de seda. Como é obrigação do fiel conselheiro adverti-lo em particular dos seus defeitos com jeito, não seria possível representá-los em público sem cometer uma falta notável.

Falar alto daquilo que se deve dizer à orelha é uma recriminação que pode tornar-se criminosa na boca daquele de quem sai, se publica as imperfeições do seu príncipe para tirar partido, desejando antes, por uma vã ostentação, fazer ver que não tem um desejo sincero de se corrigir.

Da coragem e da aplicação nasce uma firmeza tão grande nos desígnios escolhidos pelo entendimento, e abraçados pela vontade, que elas são buscadas com constância, sem ser caso da mudança que produz freqüentemente a leviandade dos franceses.

Não falei da força e da saúde do corpo, necessárias ao ministro de Estado, porque embora seja isso um grande bem, quando se encontre com todas as outras qualidades de espírito, acima especificadas; não são tão necessárias que sem elas os conselheiros não possam exercer suas funções.

Há muitos empregos no Estado, em que a saúde é absolutamente requerida, porque aí é preciso agir, não somente de espírito mas com mão e corpo, transportando-se para diversos lugares; o que deve ser feito com prontidão; mas aquele que tem o timão do Estado, e não tem o cuidado senão da direção dos negócios, não tem necessidade desta qualidade.

Assim como o movimento do céu não tem necessidades senão da inteligência que o move, assim a força do espírito é a única necessária e suficiente para conduzir um Estado, e a dos braços e das pernas não é necessária para mover o mundo.

Assim como aquele que governa um navio não tem outra ação senão da vista para ver a bússola; em seguida a que ele ordena que se vire o timão, conforme julga a propósito; assim também, na conduta do Estado, nada se requer senão a operação do espírito, que vê e ordena em conjunto, o que julga dever ser feito.

Se é verdade que o Sol, que esquenta tudo, não é quente nele mesmo, é claro que para fazer agir corporalmente todo mundo, a ação do corpo não é requerida.

Confesso entretanto que muito desejei sair do governo do Estado por causa de minha má saúde, cuja inteireza foi tão deficiente que algumas vezes quase me foi impossível exceder-me na medida.

Enfim, depois de por muitos anos ter servido a V. M. nos mais espinhosos negócios que se possam encontrar num Estado, posso confirmar por experiência, o que a razão ensina a todo mundo; que a cabeça, e não o braço, governa e conduz os Estados.


 

SEÇÃO VI

Que representa qual deve ser o número dos conselheiros de Estado, e que entre eles deve haver um com autoridade superior.

 

Depois de ter examinado e reconhecido as qualidades necessárias àqueles que devem ser empregados no ministério de Estado, não posso deixar de notar que assim como a abundância de médicos causa algumas vezes a morte do doente em lugar de ajudar a cura, também o Estado terá mais prejuízo do que vantagem, se os conselheiros são em grande número.

Acrescento que bastam quatro, havendo um entre eles que tenha autoridade superior, que seja como um primeiro motor que move todos os outros céus, sem ser movido senão pela sua inteligência.

Custo a me resolver a expor esta proposição porque parecerá que quero sustentar a minha causa; mas considerando que me seria fácil de me provar por várias passagens autorizadas da escritura, pelos patriarcas, e políticos, e pela confiança particular de que V. M. sempre me honrou, enquanto me tem dado parte na direção dos negócios públicos, não tem necessidade para sua defesa de outro princípio, senão daquele que foi necessário para o seu estabelecimento, quer dizer, da sua vontade, que passará ao espírito da posteridade, por justa razão da autoridade que sempre tive nos seus conselhos. Acho que posso falar a esse respeito sem suspeição, e que devo fazê-lo para provar pela razão o que a honra que sempre recebi da real bondade autorizar pelo exemplo.

A inveja natural que se acha de ordinário entre poderes iguais é muito conhecida por todo mundo, sem que seja necessário longo discurso para fazer ver a verdade da proposição que aqui exponho.

Diversas experiências tornaram-me tão sábio neste assunto, que eu me tornaria responsável diante de Deus, se este testamento não levasse em termos expressos, que nada há mais perigoso para um Estado do que diversas autoridades iguais na administração dos negócios.

O que um empreende, o outro atrapalha e o que é mais homem de bem se não é mais hábil, quando mesmo as suas proposições fossem melhores, elas seriam sempre postas à margem pelo mais poderoso em espírito.

Cada um terá seus partidários, que formarão diversos partidos no Estado dividindo as forças em lugar de as reunir.

Assim como as moléstias e a morte dos homens, não vêm senão do mau acordo dos elementos de que são compostos; assim também é certo que as contrariedades e a falta de união que se encontra sempre nos poderes iguais, alteram o repouso dos Estados, de que têm a direção e produzem diversos acidentes que podem perdê-lo. Se é verdade que o governo monárquico imita mais o de Deus do que nenhum outro; se todos os políticos sagrados e profanos ensinam que este gênero de reger sobrepuja todos aqueles que já foram postos em prática, pode-se dizer sem temor, que se o soberano não pode, ou não quer por si mesmo ter continuamente olhos sobre sua carta, e sobre sua bússola, a razão quer que ele encarregue particularmente alguém que fique acima de todos os outros.

Assim como diversos pilotos não põem juntos a mão no timão, também é preciso que um só conduza o Estado.

Pode bem receber conselho dos outros, deve mesmo algumas vezes ir procurá-los; mas deve examinar a bondade dos mesmos, virar a mão de um lado e outro, segundo estimar mais a propósito, para evitar a tempestade e fazer o seu caminho.

Tudo será fazer uma boa escolha, nessa ocasião, e não enganar-se.

Nada há tão fácil como achar um primeiro motor, que mova tudo sem ser movido por nenhuma outra autoridade superior, senão a do seu senhor; mas não há nada tão difícil como encontrar um, que mova bem, sem poder ser movido por nenhuma consideração, que possa desregular seu movimento.

Toda a pessoa se estimará por seu próprio sentido, capaz dessa função; mas nenhum podendo ser juiz na sua causa, o julgamento de um fato tão importante deve depender daqueles que não têm interesse, que lhes possa vendar os olhos.

Um tal não será capaz de ser movido pelas práticas e pelos presentes dos inimigos do Estado, podendo sê-lo por seus artifícios.

Tal será capaz de ser movido por interesses que não fossem criminosos, e que entretanto não deixariam de trazer grandes prejuízos ao Estado.

Freqüentemente se encontra gente que morreria antes do que falsear à sua consciência, e que entretanto não seria útil ao público, porque seria capaz de vergar-se às importunações e às carícias daqueles que amam.

Tal, que é incapaz de ser movido por interesse qualquer que seja poderia sê-lo por temor, por susto ou por terror pânico.

Sei bem que a capacidade, a probidade, a coragem, em uma palavra, as qualidades que atribuímos aos conselheiros de Estado podem remediar a tais inconvenientes; mas para dizer a verdade, como o ministro de quem nós falamos deve estar acima de todos os outros, também é preciso que tenha todas estas qualidades em eminência; e por conseqüência é preciso examinar cuidadosamente, antes de estabelecer escolha.

O príncipe deve conhecer por si mesmo aquele que encarregará de um tal emprego, e embora essa pessoa deva ser escolhida por ele só, a escolha que fizer deve ser, se possível acompanhada de uma aprovação pública; porque se tiver o voto de todo mundo, será mais capaz de fazer o bem.

Assim como aqueles que são mais inteligentes nos cálculos astronômicos não poderiam enganar-se de um só minuto, podendo os julgamentos que fazem em seguida estar eivados de falsidades, assim é verdade que se as qualidades daquele que deve governar os outros só são boas na aparência, sua conduta sendo má, se não são senão medíocres, o seu governo não será excelente.

É fácil de representar as qualidades que deve ter este principal ministro; é difícil de as achar todas num mesmo homem.

Entretanto, é preciso dizer que a felicidade ou a desgraça dos Estados depende da escolha que se fizer; o que obriga estritamente os soberanos, ou a cuidarem disso pessoalmente, porque o peso da sua coroa assim o exija, ou a escolherem tão bem aquele sobre quem descarreguem o peso dela, que sua opinião seja aprovada pelo céu, e pela terra.


 

SEÇÃO VII

Que representa qual deve ser o rei em relação aos seus conselheiros; e faz ver que para ser bem servido, tratá-los bem é o melhor expediente que se pode tomar.

 

V. M. tendo assim escolhido os seus conselheiros, cabe a ela pô-los em estado que possam trabalhar para grandeza e a felicidade do seu reino.

Quatro coisas principalmente são requeridas para esse fim. A primeira, que V. M. tenha confiança neles e que eles saibam, o que é absolutamente necessário, porque de outra forma os melhores conselheiros poderiam ser suspeitos aos príncipes, e se os ministros não estivessem seguros de que a sua sinceridade era conhecida, abster-se-iam em muitas ocasiões, em que o seu silêncio havia de ser prejudicial.

E um dizer comum, que um médico que satisfaz ao doente, e que é por ele amado, tira dois proveitos. E é coisa certa, que não há nenhum que possa trabalhar francamente na cura de um doente, se sabe que o doente desconfia dele.

A segunda é a que determina o falar livremente, assegurando o poder-se fazer sem perigo.

Esta condição é absolutamente necessária, não somente para certos espíritos frios e tímidos, que têm necessidade de ser empurrados; mas para aqueles que não sendo temerosos por natureza, empregam tanto mais utilmente seu zelo para vantagem do público, acreditando que sua audácia não lhes pode ser prejudicial.

O soldado que atira protegido, está muito mais seguro do que o que sabe que atirando pode ser alvejado; e com efeito, poucos particulares se encontrariam que quisessem expor-se à sua perda, para fazer bem ao público.

É verdade que um homem de bem não deve considerar seu interesse, quando se trate dos interesses públicos, e que o mais alto ponto da fidelidade, que se possa desejar a um bom servidor, é dizer ingenuamente o que sabe ser útil ao seu senhor, sem temer incorrer no ódio daqueles que são mais poderosos perto dele, nem de lhe desagradar, mas há poucos tão zelosos que queiram correr um tal risco.

A terceira é de que o rei os trate liberalmente, e que creiam que os seus serviços não fiquem sem recompensa.

O que é tanto mais necessário, quanto pouca gente ama a virtude toda nua, e o verdadeiro meio de impedir que um servidor não pense muito nos seus interesses, é praticar o conselho daquele imperador que recomendou a seu filho que tivesse grande cuidado com os negócios daqueles que tratassem bem dos seus negócios.

Nunca um homem de bem pensa enriquecer à custa do povo, servindo-o.

Mas assim como seria um crime ter um tal pensamento, nada é mais vergonhoso a um príncipe, do que ver aqueles que envelheceram no seu serviço, carregados de anos, de mérito, e de pobreza, tudo junto.

O quarto é que ele os autorize e mantenha tão abertamente, que fiquem assegurados de que não têm a temer nem os artifícios nem a força daqueles que os queiram perder.

O interesse do príncipe o obriga a usar assim, pois que não há homem que possa servir utilmente ao público, sem atrair o ódio e a inveja da todo mundo, e poucos seriam suficientemente virtuosos para bem fazer, se pensassem receber, em troca, o mal.

Não há lugar no mundo que, por forte que seja em si mesmo, possa garantir-se de ser tomado, enfim, se não defende o exterior com cuidado.

Assim também os maiores reis não conservariam a sua autoridade inteiramente, se não tivessem cuidado extraordinário em sustentá-la nos menores de seus oficiais, próximos ou afastados de suas pessoas, porque são as peças de fora aquelas que primeiro se atacam. A tomada delas dá mais audácia no esforço, contra as peças de dentro, embora pareçam inatingíveis, como sagradas e ligadas à própria pessoa dos reis.

Há poucas pessoas que ousam atacar à força, aqueles que um príncipe tiver escolhido para o servir, porque não há quem não reconheça que seu poder não pode ser igual ao poder de um soberano, que tem muito interesse em proteger os seus servidores, para faltar nisso com seu prejuízo, mas sempre se acham aqueles que procuram arruiná-lo por artifícios e maus meios, difíceis de descobrir.

Governa-se de ordinário tão finamente em tais ocasiões, que em tais empreendimentos deve-se tê-los como assegurados, não para fazer mal àqueles que se julga culpados, antes que sejam convictos; mas para os prevenir com prudência.

Os artifícios dos homens fazem que eles se escondam de cem modos para chegar a seus fins; tal fala abertamente sob pretexto de não poder calar-se sem crime; mas poucos são deste gênero; tal finge ser amigo daquele que quer perder; tal faz falar a outros, e reserva-se somente para apoiar os maus ofícios começados; enfim há tantos meios para fazer o mal neste gênero, que um príncipe não poderia estar demasiado seguro com guarda, para se garantir de surpresas, num fato tão importante.

Por pouco que se fale escondido contra o governo do seu Estado sob qualquer pretexto que se possa tomar, deve-se ter por seguro que é para arruiná-lo e para o perder.

Aqueles que assim procedem fazem como os doentes que têm febres tanto mais malignas quanto menor o fogo parece fora, sendo tanto maior o abrasamento por dentro.

E preciso proceder-se em tais males, sem esperar que deles se tenha um inteiro conhecimento, porque frequentemente não se pode tê-lo senão pelo acontecimento e o efeito do mau desejo que se projetou.

Aqueles que realizam tais empresas sabem muito bem o perigo a que se expõem começando-as sem o propósito de as acabar. Em tais ocasiões vai-se a princípio com passo de chumbo e de lã; mas depois a natureza de tais negócios obriga a dobrar o passo e a correr de medo de ser surpreendido em caminho.

Imita-se nisto a pedra jogada do alto de uma montanha; seu primeiro movimento é lento, e quanto mais ela desce mais peso toma, redobrando a velocidade da queda. Da mesma forma é preciso mais força para fazê-la parar no mais forte do seu curso, do que no começo; também é muito difícil parar uma conspiração, que não tendo sido sufocada no nascedouro já esteja muito crescida.

Mais uma praça é importante, mais o inimigo se esforça por lhe seduzir o governador; mais uma mulher é bonita, mais encontra gente que queira ter a suas boas graças; também mais o ministro é útil ao seu senhor e poderoso no seu espírito e na sua graça, mais pessoas o invejam, desejando seu lugar, e ensaiando fazê-lo cair para ocupar-lhe o posto.

Entre os governadores fiéis, aqueles são os mais estimados que não somente resistem às proposições que lhes são feitas contra o seu dever, mas que recusam escutá-las, e que de começo fecham a boca àqueles que os querem tentar por tais meios.

Entre as mulheres castas, aquelas que não têm ouvidos para ouvir insinuações más que se lhes quer fazer para macular a sua pureza, são pelo julgamento de todos os sábios preferíveis àquelas que os abrem, mesmo quando fecham o coração.

Assim entre os senhores que têm servidores de fidelidade tão comprovada em diversas e tão importantes ocasiões, que deles não seja possível duvidar com razão; são mais sábios aqueles que fecham a boca a todos os que são maldizentes.

Qualquer virtude que haja em rejeitar uma tentação, os príncipes e os maridos são estimados demasiado indulgentes, se permitem a seus governadores, ou as suas mulheres escutar coisa a que não querem que adiram e às quais não podem consentir adesão sem crime; e os senhores devem condenar-se a si mesmos, se prestam ouvido ao que se quer dizer contra aqueles cuja fidelidade é irreprochável. A razão primitiva dessa decisão consiste em que, assim como expor-se audaciosamente em um perigo e numa ocasião justa é útil, é uma ação de valentia; fazer o mesmo sem motivo e sem razão é uma temeridade; e nesse sentido foi dito, com muita razão, que quem abre os ouvidos às calúnias merece ser por elas enganado.

Talvez se me diga que há grande diferença entre o dever do governador, da mulher e do príncipe, no fato que é representado; que é verdade que o governador e a mulher fazem muito melhor em não escutar, porque não podem em caso nenhum consentir naquilo que se lhes quer dizer; mas não é o mesmo do príncipe que deve ter ouvidos abertos, pois que se lhes pode dizer coisas verdadeiras e tão importantes que sejam obrigados a prover.

A isto respondo primeiramente falando apenas dos servidores cuja fidelidade é tão irreprochável, e cuja conduta, provada em diversas ocasiões, tão importantes que não se possa achar que existam outras; a diferença será tão pequena na comparação exposta, que deve pela razão ser tida como nula, a regra das causas morais obrigando a não contar por nada o que é de fraca conseqüência.

Acrescento, em segundo lugar, que quando pudesse acontecer algum inconveniente em fechar os ouvidos ao que se quiser dizer contra um servidor de fidelidade comprovada, é isso tão pouco considerável com respeito aquilo que será inevitável, se são eles abertos contra pessoas dessa qualidade, que posso dizer seguramente que o governador, a mulher e os príncipes devem ter igualmente fechados os seus ouvidos nas ocasiões representadas acima.

Não há lugar a presumir que aquele que foi fiel toda sua vida torne-se infiel num instante, sem motivo e sem razão, principalmente se todos os interesses da sua fortuna estão ligados àquela do seu senhor.

Um mal que não pode acontecer senão raramente deve ser presumido como não devendo acontecer, principalmente se para evitá-lo expõe-se a gente a muitos outros que são inevitáveis e de maior conseqüência, o que se encontra no fato de que se trata: sendo certo que é quase impossível conservar seus mais fiéis e mais seguros servidores, se sob pretexto de não fechar seus ouvidos à verdade, ele os abre à malícia dos homens; além de que é constante que perderá muito mais, se perder um dessa qualidade, do que se por não escutar tolera em qualquer um os efeitos que não podem ser de grande conseqüência, se o julgar fiel nas mais importantes ocasiões que se possam encontrar.

Se aquele que dá voluntariamente abrigo aos assassinos que matam um homem é culpado da sua morte, aquele que recebe toda a sorte de desconfianças e de calúnias que interessem a fidelidade de um dos seus servidores, sem bem esclarecer-se, é responsável diante de Deus de um tal procedimento.

As melhores ações são más para duas sortes de espíritos para os maliciosos que imputam tudo a mal por excesso de sua malícia, e para aqueles que são sujeitos às desconfianças, que explicam todo o mal pela sua fraqueza.

Não há homem no mundo, por virtuoso que seja, que passe por inocente no espírito de um senhor que, não examinando as coisas por si mesmo, abra os ouvidos às calúnias.

Como não há senão dois meios para resistir ao vício, ou o da fuga ou o do combate, não há também senão dois para resistir à impressão que fazem as calúnias; uma consiste em rejeitá-las por completo, sem ouvi-las; a outra em examiná-las tão cuidadosamente que se averigúe a verdade ou a mentira.

Para evitar todos os inconvenientes, garantir-se dos artifícios de que os maus espíritos podem servir-se para perder as pessoas de bem, não se privando dos meios de descobrir os maus excessos daqueles que servem mal, o príncipe deve ter por calúnias tudo aquilo que se lhe vem dizer ao ouvido.

Nessa ocasião recusar ouvir; se alguém quer sustentar em presença daquele que acusa, o que disser contra ele, então pode-se escutar assim, com a condição de uma boa recompensa, se ele diz qualquer coisa importante para o público, que seja verdadeira, e de uma grande punição se a acusação é falsa ou não considerável e importante quando mesmo fosse verdadeira.

Sempre supliquei a V. M. que procedesse assim relativamente à minha pessoa, a fim de dar tanta liberdade àqueles que quisessem censurar as minhas ações, para que pudessem fazer, como V. M. me daria por esse meio, elemento para impedi-las.

Posso dizer com verdade que V. M. jamais teve nenhum desgosto com a minha conduta senão quando não praticou este conselho tanto mais louvável e inocente quanto fácil de praticar.

FIM DA PRIMEIRA PARTE


 

II PARTE

 

Os conselhos sobre os quais acabo de discorrer na 1a. parte desta obra, estando bem estabelecidos, é aos conselheiros que cabe trabalhar como gente de bem, segundo certos princípios gerais, dos quais depende a boa administração dos Estados.

Embora as proposições possam ser muitas, aparentemente muito úteis, as ciências, sendo mais excelentes e mais fáceis de compreender, quando os princípios são em número mais reduzido, deduzirei aqueles que são mais fundamentais para o governo deste reino, em número de nove completamente necessários a meu ver.

Se alguns deles têm diversos ramos, não aumentarão o seu número, da mesma maneira que as ramagens abundantes nas árvores copadas não multiplicam os corpos.


 

CAPÍTULO I

O primeiro fundamento da felicidade de um Estado é o estabelecimento do reino de Deus

 

O reino de Deus é o princípio do governo dos Estados: e com efeito é uma coisa tão absolutamente necessária, que sem esse fundamento não há príncipe que possa bem reinar, nem Estado que possa ser feliz.

Seria fácil compor volumes inteiros a respeito de assunto tão importante, ao qual a escritura, os Patriarcas e todas as histórias, nos forneceriam números infinitos de exemplos, de pretextos e de exortações que conspiram para um mesmo fim. Mas é coisa tão conhecida por todos pela própria razão, que não tira seu ser de si mesma; mas que há um Deus criador e por conseqüência diretor, não há ninguém que não sinta que a natureza imprimiu essa verdade no seu coração, com caracteres que não podem apagar-se.

Tantos príncipes se perderam, eles e seus Estados, por fundar a sua conduta sobre um julgamento contrário ao seu próprio conhecimento; e tantos outros foram cumulados de bênçãos por terem submetido sua autoridade àquela de que derivava, por não terem procurado grandeza senão naquela do seu criador, e por ter tido mais cuidado com seu reino, do que com o próprio, não me estenderei mais sobre verdade demasiado evidente, para que haja necessidade de prova.

Somente, direi uma palavra, que assim como é impossível que o reino de um príncipe, que deixa reinar a desordem e o vício em seu Estado, seja feliz; também Deus não sofrerá facilmente, que seja infeliz aquele que tiver cuidado particular em estabelecer o seu império na extensão do seu domínio.

Nada é mais útil a um governo do que a vida sã dos príncipes, a qual é lei falante e impulsionadora com mais eficácia do que todas aquelas que poderiam fazer para obrigar ao bem que querem obter.

Se é verdade que qualquer crime em que possa cair um soberano, ele peca mais pelo mau exemplo do que pela natureza da sua falta; não é menos indubitável que sejam quais forem as suas leis, ele pratica o que prescreve, seu exemplo não é menos útil à observação das suas vontades, do que todos os castigos das suas ordenanças, por graves que possam ser.

A pureza de um príncipe casto banirá mais as impurezas do seu reino, do que todas as ordenações escritas para esse fim.

A prudência e o comedimento daquele que não jura abolirão antes os juramentos e as blasfêmias, comuns nos Estados, do que se empregar rigor contra os que têm como hábito tais execrações.

Nem por isso se deve deixar de castigar rigorosamente os escândalos, os juramentos e as blasfêmias; ao contrário, não me poderia nisso ser excessivamente exato, e por santo e exemplar que pudesse ser a vida de um príncipe e de um magistrado, jamais serão conservados por fazerem o que devem, se além de obrigarem com o exemplo constrangerem pelo rigor das leis.

Não há soberano no mundo que, por esse princípio, não seja obrigado a procurar a conversão daqueles que, vivendo sob seu reinado, desviam-se do caminho da salvação. Mas como por natureza o homem é racional, os príncipes são estimados por terem satisfeitos neste ponto à sua obrigação, praticando todos os meios ao seu alcance para chegarem a tão bom fim; e a prudência não lhes permite tentar um tão arriscado que possam ceifar o bom trigo querendo cortar o joio, de que seria difícil purgar um Estado de outra forma que não a doçura, sem expor-se a um abalo capaz de o perder, ou ao menos de lhe causar um notável prejuízo.

Como os príncipes são obrigados a estabelecer o verdadeiro culto de Deus, devem ter cuidado em banir as falsas aparências, tão prejudiciais aos Estados, que com verdade se pode dizer que a hipocrisia tem servido de véu para cobrir a feiura das ações mais perniciosas.

Muitos espíritos cuja fraqueza é equivalente à malícia, servem-se algumas vezes deste gênero de estratagema, mais ordinário nas mulheres porque seu sexo é mais levado à devoção, e o pouco de força que o acompanha torna-as mais capazes de tais disfarces que supõe menos solidez do que fineza.


 

CAPÍTULO II

A razão deve ser a regra e a diretriz de um Estado

 

A luz natural faz conhecer a cada um que, o homem tendo sido feito racional, nada deve ele fazer que não seja pela razão, pois que de outra forma agiria, contra sua natureza, e por conseqüência contra ele próprio.

Ela ensina, ainda, que quanto mais um homem é grande e elevado, mais deve aproveitar desse privilégio e menos deve abusar do raciocínio que constitui o seu ser; porque as vantagens que tem sobre os outros homens constrangem-no a conservar o que é da natureza e do fim a que se propôs com a elevação que o criou.

Destes dois princípios se segue claramente que se o homem é soberanamente racional, deve soberanamente fazer reinar a razão; o que não requer somente que nada ele faça sem ela, mas o obriga além disso a fazer mais com que todos aqueles que estão sob sua autoridade a reverenciem seguindo-a religiosamente.

Esta conseqüência é fonte de uma outra, que nos ensina que assim como é preciso nada querer que não seja razoável e justo, é preciso nada querer do que não se faça executar, e onde as ordens sejam seguidas pela obediência; porque de outra forma a razão não reinaria soberanamente.

A prática desta regra é tanto mais fácil quanto o amor é o mais forte motivo para obrigar à obediência, e é impossível que súditos não amem a um príncipe se reconhecem que a razão guia todas as suas ações.

A autoridade obriga à obediência, mas a razão persuade, e é mais próprio conduzir os homens por meios que ganhem insensivelmente sua vontade, do que por aqueles que as mais das vezes os fazem agir forçados.

Se é verdade que a razão deve ser o facho que ilumina os príncipes em sua conduta e na dos seus Estados, é verdade ainda que não havendo nada no mundo que seja menos compatível com ela do que a paixão, que cega de tal forma que faz algumas vezes tomar a sombra pelo corpo. Um príncipe deve sobretudo evitar impor um tal princípio que o torna tanto mais odioso, quanto é contrário diretamente àquele que distingue o homem dos animais.

Arrependemo-nos freqüentemente, com maduro raciocínio, do que a paixão nos fez fazer com precipitação, e jamais se tem arrependimento com aquilo que se faz por considerações razoáveis.

É preciso querer fortemente o que se resolveu por semelhantes motivos, pois que é o único meio de se ser obedecido, e assim a humildade é o primeiro fundamento da perfeição cristã, a obediência é o mais sólido da sujeição, tão necessária à subsistência dos Estados que se ela é defeituosa eles não podem ser florescentes.

Há muitas coisas que são desta natureza, que entre o querer e o fazer não há diferença, por causa da facilidade que se encontra em sua execução; mas é preciso querê-las eficazmente, isto é, com tal firmeza que se queira sempre, e que após ordenar a execução, castigue-se severamente aqueles que não obedecem.

Aquelas que parecem mais difíceis e quase impossíveis, não o são senão pela indiferença com que parece que as queremos e com que as ordenamos; e é verdade que os súditos serão sempre religiosos em obedecer, quando os príncipes forem firmes e perseverantes em comandar; donde se conclui que é coisa certa que a indiferença da sua fraqueza seja causa.

Em uma palavra, assim como querer fortemente e fazer o que se quer é uma mesma coisa num príncipe autorizado, no seu Estado, assim querer fracamente e não querer são coisas tão pouco diferentes que têm o mesmo fim.

O governo do reino requer uma virtude máscula, e uma firmeza inabalável, contrária à moleza que expõe aqueles em que ela se encontre à ação dos seus inimigos.

É preciso em tudo agir com vigor, visto principalmente que quando menos o sucesso do que se empreende fosse bom, ao menos haveria a vantagem de, nada se havendo omitido para o sucesso, evitar-se a vergonha da culpa quando não se pode evitar o mal de um mau acontecimento.

Quando mesmo se sucumbisse cumprindo-se um dever, a desgraça seria feliz; e, ao contrário, qualquer bom sucesso que se consiga com o relaxamento daquilo a que a honra nos obriga e mais a consciência, deve ser estimado desgraçado, pois que não poderia trazer nenhum proveito que iguale às desvantagens que se tem do meio pelo qual foi obtido.

No que diz respeito ao passado, a maior parte dos grandes intuitos da França desfizeram-se em fumo, porque a primeira dificuldade que se encontrava na sua execução fazia parar a todos aqueles que pela razão não deviam deixar de levá-los adiante; e se aconteceu de forma diferente durante o reinado de V. M. a perseverança com que constantemente se agiu disso é causa.

Se uma vez não se está em condições de executar um bom intuito, é preciso esperar outra oportunidade; e desde que se pôs mão à obra, se as dificuldades que se encontram obrigam a alguma interrupção ou adiamento, quer a razão que sejam tomadas as primeiras diretrizes assim que o tempo e a ocasião favorável tiverem chegado.

Em uma palavra, nada deve desviar de uma boa empreitada, senão um acidente que a torne de todo impossível, e é preciso nada esquecer do que pode levar avante a execução daquelas que se resolveu com razão.

É o que me obriga a falar neste lugar do segredo e da disciplina que são tão necessários ao bom sucesso aos negócios que nada pode ser mais.

Além de que a experiência faz fé, a razão é evidente aí, visto que o que surpreende fá-lo de tal sorte que tira os meios de oposição, e prosseguir lentamente à execução de um desígnio e divulgá-lo é o mesmo que falar de uma coisa para não fazê-la.

Daí vem que as mulheres, preguiçosas e pouco discretas de seu natural, são tão pouco próprias para o governo que, se se considera ainda que são tão sujeitas às paixões e por conseqüência pouco suscetíveis de razão e de justiça, este só princípio as exclui de todas as administrações públicas.

Não é que não possa existir alguma de tal maneira isenta de tais defeitos que pudesse ser nele admitida.

Há poucas regras que não sejam passíveis de exceção; este século mesmo trouxe algumas que nunca demasiadamente seriam louvadas; mas é verdade que de ordinário sua moleza torna-as incapazes de uma virtude máscula, necessária à administração e é quase impossível que seu governo seja isento ou de baixeza ou de diminuição do que a fraqueza de seu sexo é causa; ou de injustiça ou de crueldade, de que o desregramento de suas paixões, que lhes toma o lugar da razão, é a verdadeira origem.


 

CAPÍTULO III

Que mostra que os interesses públicos devem ser o único fim daqueles que governam os Estados, ou que pelo menos devem ser preferidos aos particulares

 

Os interesses públicos devem ser o único fim do príncipe e de seus conselheiros, ou pelo menos uns e outros são obrigados a tê-los em tão singular recomendação, que os prefiram a todos os particulares.

É impossível conceber o bem de um príncipe, sem isso, e aqueles dos quais se serve em negócios podem fazer muito bem se seguem religiosamente este princípio, e não se poderia imaginar o mal que advém a um Estado quando se preferem os interesses particulares aos públicos, estes últimos sendo regulados pelos outros.

A verdadeira filosofia, a lei cristã, e a política, ensinam tão claramente esta verdade, que os conselheiros de um príncipe não poderiam pôr-lhe com freqüência sob os olhos um princípio tão necessário, nem o príncipe castigar severamente aqueles do seu conselho, que por tão miseráveis não o praticam.

Não posso deixar de notar, a propósito, que a prosperidade que sempre acompanhou a Espanha desde alguns séculos, não tem outra causa senão o cuidado que seu conselho teve de preferir os interesses do Estado aos outros todos, e que a maior parte das desgraças sobrevindas à França foram causadas pelo excessivo apego que muitos daqueles foram empregados na administração tiveram pelos interesses pessoais com prejuízo dos públicos.

Os primeiros sempre seguiram os interesses do público, que pela força da sua natureza os levaram aquilo que se julgava mais vantajoso ao Estado.

E os outros acomodando todas as coisas ou à sua utilidade ou ao seu capricho, freqüentemente os desviaram do seu próprio fim, para os conduzir àquela que lhes fosse mais agradável ou vantajosa.

A morte ou a mudança dos ministros jamais trouxeram mutação no conselho da Espanha.

Mas não foi assim neste reino onde os negócios não só foram mudados pela mudança dos conselheiros, mas tomaram tantas formas diferentes sob os mesmos, pela diversidade dos conselhos, que um tal procedimento seguramente teria arruinado esta monarquia, se Deus pela sua bondade não tirasse das imperfeições da nossa nação o remédio dos males de que são causa. Se a diversidade de nossos interesses e nossa inconstância natural nos levam freqüentemente a preconceitos terríveis, nossa leviandade mesma não nos permite ficar firmes e estáveis no que é de nosso próprio bem, e nos leva tão prontamente que nossos inimigos, não podendo tomar justas medidas sobre variações tão freqüentes, não têm o descanso para aproveitar das nossas faltas.

O conselho de V. M. tendo mudado de proceder desde certo tempo, seus negócios também mudaram de face com grande benefício para o reino; e se para o futuro continuassem a seguir o exemplo do reino de V. M. nossos vizinhos não teriam a vantagem que tiveram antes. Mas este reino, partilhando a sabedoria com eles, terá sem dúvida parte na boa fortuna, pois que embora ser sábio e feliz não seja a mesma coisa, o melhor meio que se pode ter, para não se ser desgraçado, é tomar o caminho que a prudência e a razão ensinam, e não o desregramento comum no espírito dos homens e particularmente no dos franceses.

Se aqueles em que V. M. confiar, encarregando-os do cuidado dos seus negócios, têm a capacidade de que acima falei, não terá mais a precaver-se no que diz respeito a esse princípio; o que por si mesmo não lhe será difícil, pois que o interesse da própria reputação do príncipe e os do público não têm senão um único fim.

Os príncipes consentem facilmente nos regulamentos gerais dos seus Estados, porque fazendo-os não têm diante dos olhos senão a razão e a justiça, que se abraça voluntariamente quando não se encontram obstáculos que desviam do bom caminho. Mas quando a ocasião se apresenta de pôr-se em prática os princípios estabelecidos, não mostram sempre a mesma firmeza, porque é então que os interesses do terceiro e do quarto, a piedade, a compaixão, o favor e as importunações os solicitam e se opõem aos seus bons desígnios, não tendo eles freqüentemente força suficiente para vencer-se a si próprios e desprezar as considerações particulares que não devem ser de nenhum peso com respeito aos públicos.

É em tais ocasiões que devem recolher toda a sua força contra sua fraqueza, pondo diante dos olhos que aqueles que Deus destina a conservar os outros não devem ser senão para ver o que é vantajoso ao público e à sua conservação, tudo em conjunto.


 

CAPÍTULO IV

Quanto a previdência é necessária ao Governo de um Estado

 

Nada é mais necessário ao governo de um Estado do que a previdência, pois que por meio dela se pode facilmente prevenir a muitos males, que não se podem curar senão com grandes dificuldades quando aparecem.

Assim o médico que pode prevenir moléstias é mais estimado do que aquele que trabalha em curá-las. Também os ministros de Estado devem freqüentemente pôr diante dos olhos e representar a seu Senhor, que é mais importante considerar o futuro do que o presente, e que há males como inimigos do Estado, diante dos quais mais vale avançar do que apenas afastar depois que chegaram.

Aqueles que agirem de outra forma cairão em grandes confusões, às quais bem difícil será trazer em seguida, remédio.

Entretanto, é coisa comum aos espíritos medíocres contentarem-se com empurrar o tempo com o ombro, e preferir conservar sua satisfação por um mês, do que privar-se dela por esse pouco de tempo para garantir-se do incômodo de vários anos que eles não consideram, porque não vêem senão o que está presente e não antecipam o tempo por uma sábia previsão.

Aqueles que vivem ao dia a dia, vivem felizmente, para eles, mas vive-se desgraçadamente quando sob sua direção ou sob seu governo.

Mais um homem é hábil, mais sente o fardo do governo de que está encarregado.

Uma administração pública ocupa de tal forma os melhores espíritos, que as perpétuas meditações a que são constrangidos para prever e prevenir os males que podem advir, privam-nos de repouso e de contentamento, fora do que podem ter vendo muita gente dormir sem temor à sombra das suas vigílias, e viver felizes pela sua miséria.

Como é necessário ver, tanto quanto seja possível de antemão, qual pode ser o sucesso dos desígnios que se empreendem para não se enganar sua conta, a sabedoria e a vista dos homens tendo sempre limites além dos quais nada percebem, não havendo senão Deus que possa ver o último fim das coisas, é suficiente, em geral, saber que os projetos que se fazem são justos e possíveis para que sejam empreendidos com razão.

Deus concorre em todas as ações dos homens por uma cooperação geral que segue o seu desígnio, e a eles cabe usar em todas as coisas de sua liberdade segundo a prudência da qual a divina sabedoria fê-los capazes.

Mas quando se trate de grandes empresas que dizem respeito à conduta dos homens, depois de ter satisfeito à obrigação que têm de abrir duplamente os olhos para tomar suas medidas; depois de se ter servido de toda a consideração de que o espírito humano é capaz, devem repousar sobre a bondade do espírito de Deus, que inspirando algumas vezes aos homens o que é de toda a eternidade nos seus decretos, conduzir-los-á como por sua mão aos seus próprios fins.


 

CAPÍTULO V

A pena e a recompensa são dois pontos completamente necessários à direção dos Estados

 

É dizer comum, mas tanto mais verdadeiro quanto tem estado em todos os tempos na boca e no espírito de todos os homens, que a pena e a recompensa são os dois pontos mais importantes para a direção de um reino.

É certo que quando mesmo não se servisse ao governo dos Estados por nenhum princípio senão o de castigar aos que o desservem, e religiosos sendo a recompensar aqueles que lhes procuram alguma vantagem notável, não se poderia mal governar, não havendo ninguém que não seja capaz de ser contido no seu dever pelo temor ou pela esperança.

Faço marchar a pena adiante da recompensa, porque se fosse necessário privar-se de uma das duas, valeria mais dispensar a última do que a primeira.

O bem devendo ser abraçado pelo amor próprio, em rigor não se deve recompensa ao que a ele se subordina. Mas não havendo crime que não viole ao que se é obrigado, não há um que não obrigue à pena que é devida à desobediência, e essa obrigação é tão estrita que em muitas ocasiões não se pode deixar uma falta sem cometer-se outra.

Falo de faltas que ferem o Estado por deliberação projetada, e não de várias outras que surgem por acaso e por desgraça, para os quais os príncipes podem e devem usar de indulgência.

Embora perdoar em tal caso seja uma coisa louvável, não castigar numa falta de conseqüência e cuja impunidade abre a porta à licenciosidade, é uma omissão criminosa.

Os teólogos estão de acordo com os políticos sobre isso e todos convêm que em certos pontos ou os príncipes fariam mal em não perdoar, ou aqueles que são encarregados do governo público, seriam também indesculpáveis, se em lugar de uma severa punição usassem de indulgência. A experiência ensinando àqueles que têm uma longa prática do mundo, que os homens perdem facilmente a memória dos benefícios que recebem, e que, quanto mais recebem, o desejo de os ter maiores torna-os freqüentemente ambiciosos e ingratos, ela nos faz conhecer também que os castigos são o meio mais seguro para conter cada um no seu dever. Visto que se esquecem tanto menos quanto maior impressão fazem sobre nossos sentidos, mais poderosos sobre a maioria dos homens, do que a razão, que não tem força sobre muitos espíritos.

Ser rigoroso em relação aos particulares que se jactam de desprezar as leis e as ordens de um Estado é sem dúvida bom para o público. E não se poderia cometer um maior crime contra os interesses públicos, do que se tornar indulgente para com aqueles que os violam.

Entre vários monopólios, facções e sedições que se têm feito no meu tempo neste reino, jamais vi que a impunidade tivesse levado nenhum espírito naturalmente a se corrigir de sua má inclinação. Mas ao contrário voltaram ao seu primeiro vomitar, e até com mais estardalhaço na segunda vez do que na primeira.

A indulgência praticada até agora neste reino, pô-lo muitas vezes em grandes e deploráveis extremos.

As faltas aí ficando impunes, cada uma faz uma profissão do seu cargo, e sem respeito pelo que constituía sua obrigação para cumpri-la dignamente, considerou somente o que podia fazer para melhor proveito.

Se os antigos acharam perigoso viver sob um príncipe que nada queria pôr sob a conta do rigor do direito, também notaram que ainda mais o era viver num Estado cuja fraqueza abre a porta a toda sorte de licenças.

Tal príncipe, ou magistrado, temerá pecar por excesso de rigor, devendo dar contas a Deus, e não poderia senão ser censurado por homens equilibrados se não exerce o rigor prescrito pelas leis.

Várias vezes fiz ver a V. M. e suplico ainda que se recorde com cuidado, porque assim como se encontram príncipes que têm necessidade de ser desviados da severidade, para evitar a crueldade a que são levados por natural inclinação, V. M. tem necessidade de ser advertida contra um falsa demência, mais perigosa do que a própria crueldade, pois que a impunidade dá lugar a exercê-la muito quando não é impedida de vez pelo castigo.

A vara, que é o símbolo da justiça, não deve ser jamais inútil; sei bem, também, que não deve ser tão acompanhada de rigor, nem destituída de bondade; mas essa última qualidade não se encontra na indulgência que autoriza as desordens, que, por pequenas que sejam, são em geral tão prejudiciais ao Estado, que podem causar a sua ruína.

Se se encontra alguém tão mal avisado que condene neste reino a severidade necessária aos Estados, porque até agora não foi praticada, não será necessário mais do que abrir-lhe os olhos, para fazê-lo conhecer que a impunidade até o presente foi muito comum, e a única causa por que a ordem e a regra aí jamais tiveram entrada, é que a continuação das desordens constrange a recorrer aos últimos remédios, para impedir-lhes o curso.

Tantos partidos quantos se formaram no passado, contra os reis, não tiveram outra semente senão a excessiva indulgência. Enfim desde que se saiba a nossa história, não se poderá ignorar esta verdade, de que reproduzo testemunho tanto menos suspeito naquilo de que se trata, quanto é tirado da boca dos nossos inimigos o que em outra ocasião torná-lo-ia não aceitável.

O cardeal Zapata, homem de bom senso, encontrando os senhores Baarut e Bautru na antecâmara do rei seu Senhor, um quarto de hora depois que a notícia chegasse a Madri, da execução do duque de Montmorency, fez-lhe esta pergunta:

Qual era a causa principal da morte do duque? Bautru respondeu prontamente, segundo a qualidade do seu espírito fogoso, em espanhol: Sus faltas. — No, retrucou o cardeal, pero la clemencia de los reyes antepassados; o que equivalia a dizer que as faltas que os predecessores do rei cometeram eram mais a causa do castigo desse duque, do que as suas próprias.

Em matéria de crime de Estado, é preciso fechar a porta à piedade e desprezar as queixas dos interessados, e os discursos da população, ignorante, que se queixa algumas vezes do que lhe é mais útil e às vezes completamente necessário.

Os cristãos devem perder a lembrança das ofensas que recebem pessoalmente, mas os magistrados são obrigados a não esquecer aquelas que interessam o público; e com efeito deixá-las impunes é antes cometê-las de novo, pois que perdoá-las é refazê-las.

Há muita gente cuja ignorância é tão grosseira que estima suficiente remediar um mal, sem estabelecer defesa nova; mas tanto é necessário prevenir que posso dizer com verdade que as novas leis não são tanto remédios às desordens dos Estados, como testemunhos da sua moléstia e provas seguras da fraqueza do governo; tendo em vista que se as antigas leis fossem bem executadas, não haveria necessidade nem de renová-las nem de fazer outras para impedir desordens que não tivessem surto sem que uma grande autoridade logo viesse punir os males cometidos.

As ordenações e as leis são inúteis, se não são seguidas de execução, tão absolutamente necessária, que embora em caminho dos negócios comuns, a justiça requer uma prova autêntica, não sendo o mesmo no que concerne ao Estado; pois que em tal caso, o que parece por conjecturas imediatas deve algumas vezes ser tido por suficientemente esclarecido; tanto que os partidos e os monopólios que se formam contra a salvação pública, tratam-se de ordinário com tanto segredo, que nunca se tem prova evidente, senão pelo acontecimento que não tem remédio.

É preciso em tais ocasiões começar algumas vezes pela execução, ao contrário do que se faz em outros casos; o esclarecimento do direito por testemunhas ou por provas irrecusáveis deve preceder a tudo.

Estas máximas parecem perigosas, e com efeito não são inteiramente isentas de perigo; mas elas o serão com efeito, se não se servindo dos últimos e extremos remédios, aos males que não se verificarem senão por conjecturas, for interrompido somente o seu curso por meios inocentes, como o afastamento ou a prisão das pessoas suspeitas.

A íntegra consciência e a penetração de um espírito judicioso, sábio durante o debate, conhece tão certamente o futuro quanto o presente; que o julgamento medíocre pela vista das próprias coisas, garantirá essa prática de más conseqüências; e por pior que seja, o abuso que se pode cometer não é perigoso senão para os particulares, à vida dos quais não se toca por tal via, e não deixa de ser recebível, visto que seu interesse não é comparável ao do público.

Entretanto é preciso ser comedido para não abrir por esse meio uma porta à tirania, contra a qual podia haver garantia se como disse acima, não nos servirmos em casos duvidosos, senão de remédios inocentes.

As punições são tão necessárias no que concerne ao interesse público que não se pode ter nesse caso, faltas de indulgência, compensando um mal presente por um bem passado, isto é, deixar um crime impune, porque aquele que o cometeu, serviu bem em outras ocasiões.

E entretanto o que até agora se tem praticado neste reino, onde não somente as faltas leves foram esquecidas, pela consideração dos serviços de grande importância; mas os maiores crimes abolidos por serviços insignificantes, o que é completamente insuportável.

O bem e o mal são tão diferentes e tão contrários que não devem ser postos em paralelo um com o outro; são dois inimigos entre os quais não se deve estabelecer troca nem comércio; se um é digno de recompensa, o outro o é de castigo, e todos dois devem ser tratados segundo seu mérito.

Quando a consciência pudesse sofrer que se deixasse uma ação assinalada sem recompensa, e um crime notável sem castigo, a razão de Estado não o poderia permitir.

A punição e as recompensas dizem respeito mais ao futuro de que ao passado é preciso que um príncipe seja severo, para afastar os males que se pudessem cometer, com a esperança de graça, se o souberem excessivamente indulgente, e que ele faça o bem àqueles que são mais úteis ao público, para dar-lhes lugar a que continuem a fazer o bem, e a todo o mundo de os imitar seguindo o seu exemplo.

Haveria aí prazer em perdoar um crime, se a impunidade não deixasse lugar ao temor das más conseqüências; e a necessidade do Estado dispensaria algumas vezes legitimamente de recompensar um serviço, se, privando aquele que o prestou, do seu salário, não se privasse também conjuntamente da esperança de o receber de futuro.

As almas nobres tomando tanto prazer com o bem, quanto têm asco de fazer o mal, deixo o discurso a respeito dos castigos e dos suplícios para terminar agradavelmente este capítulo tratando das recompensas; sobre o que não quero deixar de notar, que há essa diferença entre as graças por reconhecimento de serviços e aquelas que não têm outro fundamento além do puro favor dos reis, que estes devem ser grandemente moderados, enquanto os outros não devem ter outros limites, senão aqueles mesmos dos serviços feitos ao público.

O bem dos Estados requer tão absolutamente que seus príncipes sejam liberais, que se algumas vezes me veio ao espírito, que há homens que por sua propensão natural não são benfazejos, sempre estimei que esse defeito, censurável em todas as pessoas, é uma perigosa imperfeição nos soberanos, que sendo mais especialmente do que os outros homens, feitos à imagem do Criador, que por sua natureza faz bem a todo o mundo, não podem limitar-se nesse ponto sem que fiquem responsáveis ante Deus.

A razão está em que Deus quer que os soberanos tenham prazer seguindo-lhe o exemplo e que distribuam os bens de ânimo bondoso; de outra forma, obrigando, sem essa condição, parecem-se aos avaros, que servem bons comestíveis nos seus festins, mas tão mal preparados, que os convidados os comem sem prazer, e sem ficarem agradecidos aos que fazem a despesa.

Estender-me-ia mais sobre este assunto se não tivesse falado em outro dos capítulos precedentes, representando quanto é importante que os príncipes façam bem aos do seu conselho, que os servem fielmente.


 

CAPÍTULO VI

Um tratar contínuo não contribui pouco ao bom sucesso dos negócios.

 

Os negócios lucram tanto com o trato contínuo quando conduzidos com prudência, que não é possível acreditar se não se sabe disso por experiência própria.

Confesso que não soube dessa verdade senão cinco ou seis anos depois de ter sido empregado no manejo dos negócios: mas tenho disso, agora, tanta certeza que ouso dizer sem medo, que tratar sem cessar, abertamente ou secretamente em todos os lugares, embora não se tenha um fruto presente e o que se possa esperar para o futuro não seja aparente, é coisa necessária ao bem dos Estados.

Posso dizer com verdade ter visto em meu tempo mudar por completo a face dos negócios da França e da cristandade, para ter, sob a autoridade do rei, praticado este princípio, até então absolutamente negligenciado neste reino.

Entre as sementes, há algumas que produzem frutos melhores do que outras; há algumas que assim que caem em terra germinam e saem-lhe brotos, enquanto outras demoram muito tempo antes de produzirem o mesmo efeito.

Aquele que negocia encontra enfim um instante que é próprio a atingir os seus fins; e quando mesmo não o encontrasse, pelo menos é verdade que nada pode perder nisso, e por meio das negociações fica advertido do que se passa no mundo, o que não é de pouca conseqüência para o bem dos Estados.

As negociações são remédios inocentes que jamais fazem mal, e é preciso agir por toda a parte, perto e longe e sobretudo em Roma.

Entre os bons conselhos que Antonio Perez deu ao falecido rei, pôs-lhe na idéia tornar-se poderoso nessa corte e não sem razão, pois que os embaixadores e todos os príncipes da cristandade que aí se acham julgam que aqueles que são nessa corte os mais poderosos, em crédito e em autoridade, são eles mesmos, com efeito, que têm mais poder e fortuna; e em verdade seu julgamento não é mal fundado, sendo certo que embora não haja ninguém no mundo que deva fazer tanto alarde como os Papas, não há lugar em que o poderio seja mais considerado do que na sua corte; o que mostra claramente que o respeito que aí se ministra aos embaixadores cresce ou diminui e muda de face todos os dias, segundo o negócio de seus senhores vão bem ou mal, donde provém freqüentemente que esses ministros vêem duas caras por dia em cada pessoa, segundo sejam as notícias do correio da tarde, em relação às que vêm de manhã.

Os Estados são como os corpos humanos; a boa cor que aparece na face do homem faz julgar o médico que nada haja estragado por dentro, e da mesma forma que a boa tez procede da boa disposição das partes nobres internas também é certo que o melhor meio que tem um príncipe para estar bem, em Roma, é estabelecer seus negócios internos de maneira perfeita, porque é quase impossível ter grande reputação nessa cidade, que há muito foi cabeça e que é o centro do mundo, sem estar universalmente em posição vantajosa quanto aos interesses públicos.

A luz natural ensina a cada um que é preciso fazer caso dos seus vizinhos, porque como sua vizinhança lhes dá lugar a poderem perturbar, põe-nos também em situação de poder servir, assim como o exterior de uma praça, que impede que os outros se aproximem das muralhas.

Os espíritos medíocres fecham os seus pensamentos na extensão dos Estados em que nasceram, mas aqueles aos quais Deus deu mais luz, aprendendo dos médicos, que nos males maiores, as revoluções se fazem violentamente pelas partes mais afastadas, não esquecem nada para se fortificarem ao longe.

E preciso agir em toda a parte (o que é bom notar) segundo o humor e os meios convenientes ao alcance daqueles com que se negocia.

Diversas nações têm diversos movimentos, umas concluem rapidamente o que querem fazer e as outras marcham em tudo com passo de chumbo.

As Repúblicas são deste último gênero, vão lentamente, e de ordinário não se obtém delas da primeira vez o que se pede, mas contentando-se com pouco logo se obtém mais.

Como os grandes corpos movem-se mais dificilmente que os pequenos, tais gêneros de Estados, sendo compostos de várias cabeças, são muito mais tardos em suas resoluções e em suas execuções, que os outros.

É por essa razão a prudência obriga aqueles que negociam com eles a dar-lhes tempo, e não se apressarem senão tanto quanto sua constituição natural permite.

É de notar que assim como as razões fortes e sólidas são excelentes para os grandes e poderosos gênios, as fracas são melhores para os medíocres, porque estão mais ao seu alcance.

Cada um concebe os assuntos segundo sua capacidade; os maiores parecem fáceis e pequenos aos homens de bom entendimento e de grande coração, e aqueles que não têm essas qualidades acham de ordinário tudo difícil.

Tais espíritos são incapazes de conhecer o peso do que lhes é proposto, e fazem algumas vezes pouca conta do que com efeito é de grande importância, e algumas vezes também muito caso do que nem merece ser considerado.

É preciso agir com cada um segundo o alcance do seu espírito. Em certas ocasiões é preciso falar e agir corajosamente; depois que se pôs o direito do nosso lado, até a ponto de ruptura, e o contrário se dando é preferível prevenir e afogá-lo no nascedouro.

Em outros, em lugar de renegar fora de propósito certos discursos feitos imprudentemente por aqueles com os quais se trata, é preciso sofrê-los com prudência e destreza, não tendo orelhas senão para ouvir o que convém para se chegar ao fim.

Há gente tão presunçosa, que pensa dever usar de bravura em todos os encontros, acreditando que é um bom meio para obter o que não pode pretender pela razão, e a que não saberiam constranger pela força.

Pensam ter feito o mal quando ameaçaram fazê-lo; mas além de que este processo é contrário à razão, não dá resultado com gente honesta.

Como com os bobos não se pode negociar, há espíritos finos e tão delicados que não são mais próprios que os outros, porque da bondade de seus espíritos, para impedi-los de serem enganados, devem se guardar de não usá-los também para enganar aos outros com que tratam.

Desconfia-se sempre daquele que se vê agir com fineza, e que dá má impressão da franqueza e fidelidade com que se deve agir; isso não adianta seus negócios.

As mesmas palavras têm muitas vezes dois sentidos, um que depende da boa fé e da ingenuidade dos homens, outro de sua arte e sutileza, pelas quais é fácil de torcer o verdadeiro significado de uma palavra para explicações todas pessoais.

As grandes negociações não devem ter um só momento de interrupção; é preciso prosseguir no que se empreende com permanência de intenções, de sorte que se não cesse de agir senão pela razão, e não por preguiça de espírito, por indiferença das coisas, vacilação de pensamentos e resolução contrária.

Não se deve também ter desgosto por um acontecimento mau, pois que isso acontece algumas vezes, e o que se empreende com mais razão, algumas vezes dá resultados infelizes.

E difícil combater constantemente e sempre ser vencedor, e é marca de uma extraordinária benção quando os sucessos são favoráveis às grandes coisas e somente contrários naquelas cujo acontecimento é pouco importante.

É muito que as negociações sejam tão inocentes, que delas se possam tirar grandes vantagens sem se receber, nunca, algum mal.

Se alguém diz freqüentemente que alguns são desagradáveis, consinto que desestime completamente o meu julgamento, se não reconhece, no caso em que queira abrir os olhos, que em lugar de poder imputar os maus sucessos que notou no remédio que proponho, porque não é para aqueles que dele se não souberam bem servir.

Quando não produzisse outro bem além de ganhar tempo em certas ocasiões, o que acontece de ordinário, o uso seria muito recomendável e útil aos Estados, pois que muitas vezes não é preciso mais do que um instante para evitar uma tempestade.

Ainda que as alianças que se contraem por casamentos entre as coroas não produzem sempre o fruto que se pode desejar, não devem ser desleixados, como um dos mais importantes motivos das negociações.

Sempre se tira essa vantagem: retêm por um tempo os Estados em alguma consideração de respeito uns em relação aos outros, e dessa situação é suficiente que algumas vezes aproveitem.

Assim como para se ter bons frutos é preciso enxertar; os príncipes de França, que tiram seu nascimento de parentes de igual e de alta qualidade, devem ser pela mesma razão elevados, e sem dúvida sua classe se conserva tanto mais ilustre quanto menos misturada com outra.

Enfim as alianças servem algumas vezes para extinguir as ligas e as ligações contra os Estados e embora não produzam sempre este bom efeito, a utilidade que usufrui a casa da Áustria mostra bem que elas não são para desprezar.

Em matéria de Estado é preciso tirar proveito de tudo; e o que pode ser útil não deve ser desprezado.

As ligas são deste gênero; o fruto é incerto, e entretanto é preciso que não se deixe de fazer caso; embora seja verdade que eu não aconselharia nunca a um Grande Príncipe que embarcasse voluntariamente, pensando numa liga, em um projeto de execução difícil, se não se sente suficientemente forte para fazê-lo vingar, apesar da falta possível dos seus colegas.

Duas razões me fazem avançar essa proposição.

A primeira tira a sua origem e sua força da fraqueza das uniões, que jamais são demasiado seguras entre diversas cabeças coroadas.

A segunda consiste em que os pequenos príncipes são em geral tão zelosos e diligentes em fazer entrar os grandes reis em empresas de importância quanto lerdos em secundá-los, embora estritamente obrigados, havendo alguns, mesmo, que fogem da responsabilidade à custa daqueles que fizeram embarcar contra a vontade.

Embora seja um dizer comum, que quem tem a força tem ordinariamente a razão, é verdade, entretanto, que duas potências desiguais, juntas por um tratado, a maior corre mais risco de ser abandonada do que a outra; a razão é evidente; a reputação é tão importante para um Grande Príncipe, que não se lhe pode propor nenhuma vantagem que possa compensar-se a perda se faltar aos compromissos de palavra e de fé. E pode-se fazer um tão bom partido àquele cujo poder é medíocre, embora sua qualidade seja soberana, que provavelmente ele preferirá sua utilidade à sua honra, o que o fará faltar à sua obrigação em relação àquele que prevendo a sua infidelidade, não poderia resolver-se a preveni-la; porque ser abandonado por seus aliados não lhe é de tão grande conseqüência quanto o prejuízo que receberia se violasse a fé.

Os reis devem tomar cuidado com os tratados que fazem; mas quando eles são feitos, devem observá-los religiosamente.

Sei que muitos políticos ensinam o contrário, mas sem considerar neste lugar o que a fé cristã pode fornecer-nos contra tais máximas; sustento que, desde que a perda da honra é mais do que a perda da vida, um Grande Príncipe deve antes arriscar sua pessoa, e mesmo o interesse do seu Estado, do que faltar à sua palavra, que ele não pode violar sem perder a sua reputação, e por conseqüência a maior força dos soberanos.

A importância deste lugar me faz notar que é de todo necessário ser exato na escolha dos embaixadores e outros negociadores; e que não se seria demasiado severo punindo aqueles que ultrapassassem seus poderes; pois que, por tais faltas, comprometem a reputação dos príncipes, e o bem dos Estados, tudo junto.

A facilidade ou a corrupção de certos espíritos, é algumas vezes tão grande, e a cócega que têm alguns outros que não são nem fracos nem maus, de fazer alguma coisa, é às vezes tão extraordinária, que se não são mantidos dentro de limites que lhe são prescritos, pelo temor da sua absoluta perda, sempre se encontrará quem se jogue a fazer antes maus tratados do que nenhum.

Consegui tanta experiência dessa verdade, que ela me constrange a terminar este capítulo dizendo que quem deixar de ser rigoroso em tais ocasiões, faltará ao que é necessário à subsistência dos Estados.


 

CAPÍTULO VII

Uma das maiores vantagens que se possa conseguir para um Estado é destinar cada um ao emprego para o qual é mais próprio

 

Acontecem tantos males aos Estados, por causa da incapacidade daqueles que são empregados nos principais cargos e nas comissões mais importantes, que o Príncipe, e aqueles que fazem parte da administração dos seus negócios, não poderiam considerar zelo excessivo aquele que visasse destinar cada um às funções para as quais é capaz.

Os espíritos mais clarividentes, sendo mesmo algumas vezes cegos no que lhes diz respeito, e encontrando-se poucos homens que queiram impor-se limites pelas regras da razão; aqueles que contam com a benevolência dos príncipes, crêem sempre ser dignos de toda a sorte de empregos, e sob este falso fundamento nada esquecem do que podem fazer para obtê-los.

Entretanto é verdade que aquele que é capaz de servir o público em certas funções será capaz de arruiná-lo em outras.

Assisti a tão estranhos inconvenientes devido às más escolhas feitas no meu tempo, que não posso deixar de notar a respeito a fim de que sejam evitados os mesmos casos no futuro.

Se os médicos não consentem experiências com pessoas de consideração, devemos considerar quanto é perigoso pôr nos principais cargos do Estado pessoas sem experiência, dando lugar por esse meio, a que aprendizes experimentem em ocasiões em que mestres e obras-primas são necessários.

Nada é mais capaz de arruinar um Estado, do que um tal proceder, verdadeira fonte de toda a sorte de desordens.

Um embaixador mal escolhido para fazer um grande tratado pode, por sua ignorância, trazer um prejuízo notável.

Um general de exército, incapaz de tal emprego, é capaz de arriscar em má hora toda a fortuna do seu senhor e a felicidade do seu país.

Um governador de praça forte importante, destituído das condições necessárias à sua guarda, pode, num instante, provocar de tal forma a ruína de todo um reino, que talvez um século apenas baste para reparar seus erros.

Ouso dizer, ao contrário, que se todos aqueles que estão nos empregos públicos fossem dignos deles, os Estados não somente estariam isentos de muitos acidentes que perturbam seu repouso, mas gozariam de uma felicidade indizível.

Sei bem que é muito difícil encontrar pessoas que tenham todas as qualidades requeridas para os cargos que se lhes destina; mas ao menos é preciso que sejam providas dos principais, e quando não se pode encontrar definitivos, não é pequena satisfação escolher os melhores que se encontrem num século estéril.

Se a máscara, com que a maior parte dos homens cobrem o rosto, e se os artifícios dos quais servem-se ordinariamente para esconder seus defeitos, fazem-nos desconhecidos a tal ponto que sendo postos nos grandes cargos, parecem tão maliciosos quanto aí esperava-se que fossem virtuosos quando foram escolhidos; é preciso prontamente reparar o engano, e se a indulgência pode fazer tolerar alguma leve incapacidade, não deve nunca suportar a malícia muito prejudicial aos Estados para ser tolerada em consideração dos interesses particulares.

É neste ponto que se precisa representar aos reis até onde são responsáveis diante de Deus quando dão por favoritismo os empregos e os mais altos cargos que não podem ser possuídos por espíritos medíocres, senão com prejuízo dos Estados.

É nessa ocasião que se deve conhecer que não se condenando por completo as afeições particulares que se pode ter por uma ou outra pessoa; não se pode sem outro fundamento além da inclinação natural desculpar os príncipes que se deixam levar a tal ponto que dêem aos que estimam dessa maneira, cargos no exercício dos quais parecem ser tão prejudiciais ao Estado, quanto úteis a si próprios.

Os felizardos que gozam das boas graças dos príncipes pela força da sua inclinação, são seres felizes a ponto de receberem vantagens sem que tenham qualidades que os possam tornar dignos delas, e o público não pode queixar-se com razão, senão da sua falta de moderação.

Mas é um sinistro augúrio para um príncipe, quando aquele que é mais considerável ao seu interesse não o é pelo favor; e os Estados nunca estão em pior estado do que quando as inclinações que o príncipe tem por alguns particulares prevalecem sobre os serviços daqueles que são mais úteis ao público.

Em tal caso nem a estima do soberano, nem o amor que se lhe tributa, nem a esperança da recompensa excitam mais a virtude; fica-se ao contrário numa indiferença do bem e do mal, e a inveja e o ciúme, e o despeito levam cada um a negligenciar o seu dever, porque não há ninguém que ache que a cumpri-lo obtenha vantagem.

Um príncipe que quer ser amado pelos seus súditos deve preencher os principais cargos, e as primeiras dignidades do seu Estado, com pessoas tão estimadas por todo o mundo, que logo se possa achar a causa da escolha no mérito.

Tal gente deve ser procurada por toda a extensão do país e não recebida pelas importunações ou escolhida na massa daqueles que fazem mais pressão à porta do gabinete dos reis ou de seus favoritos.

Se o favor não tem lugar nas escolhas, e o mérito é único fundamento delas, além de que o Estado se achará bem servido, os príncipes evitarão muitas ingratidões, que se encontram freqüentemente em certos espíritos que são tanto menos reconhecidos dos benefícios que recebem quanto menos merecem. Sendo certo que as mesmas qualidades que tornam os homens dignos do favor são aquelas que os tornam capazes e desejosos de reconhecimento.

Vários têm bons sentimentos no momento em que recebem favor, mas a constituição da sua natureza os leva pouco depois, e eles esquecem facilmente o que devem aos outros porque não se incomodam senão com eles próprios; e como o fogo converte tudo em sua substância, não consideram os interesses públicos senão para os converter à sua vantagem, e desprezam igualmente aqueles que lhes fazem bem, e os Estados nos quais eles o recebem.

O favoritismo pode inocentemente ter lugar em certas coisas; mas um reino está em mau estado quando o trono de tal deus eleva-se acima da razão.

O mérito deve sempre pesar mais na balança, e quando a justiça está de um lado, o favor não pode prevalecer sem injustiça.

Os favoritos são tanto mais perigosos, quanto aqueles que se elevam pela fortuna servem-se raramente da razão, e como ela não é favorável aos seus desígnios, encontra-se ordinariamente na impossibilidade de impedir as ações daqueles que as cometem em prejuízo do Estado.

A dizer verdade, nada vejo tão capaz de arruinar o reino mais florescente do mundo, do que o apetite de tal gente, ou o desregramento de uma mulher que domine o príncipe.

Avanço com tanta convicção esta proposição, porque a tais males não existem remédios senão os que dependem do acaso e do tempo, que deixando perecer os doentes, sem os socorrer, devem ser considerados os piores médicos do mundo.

Assim como a luz mais intensa não faz que um cego enxergue o seu caminho, também não há nenhuma razão que possa clarear os olhos de um príncipe relativamente àqueles que cobre de favor e de paixão.

Quem tenha os olhos vendados não pode fazer boa escolha senão por acaso, e a salvação do Estado requerendo que sejam feitas segundo a razão, requer que os príncipes não estejam sujeitos a pessoas que os privam da luz de que têm necessidade para ver os objetos que se põem diante dos seus olhos.

Quando o coração dos príncipes é tomado por esse lado, é quase inútil bem fazer, porque os artifícios daqueles que são senhores de suas afeições enegrecem as mais puras ações e fazem freqüentemente passar os serviços mais assinalados por ofensas.

Vários príncipes se perderam por terem preferido sua afeição particular aos interesses públicos.

Tais desgraças aconteceram a alguns pelo excesso das paixões desregradas que tiveram pelas mulheres.

Alguns caíram em tais inconvenientes por uma tão simples e tão cega paixão concebida pelos seus favoritos, que para aumentar a sua fortuna arruinaram a sua própria.

Outros houve que não amando nada naturalmente, não deixaram de ter movimentos tão violentos em favor de certos indivíduos, que estes, foram causa de sua perda.

Causará espanto talvez esta proposição que é tão verdadeira, entretanto, quanto é fácil de conceber; e se se considera que tais movimentos são moléstia nos espíritos agitados e que assim como a causa das febres é a corrupção dos humores, também se pode dizer que essas espécies de afecções violentas estão antes baseadas na falta daquele em quem se encontram, do que no mérito daqueles que recebem o efeito e a vantagem.

Tais males trazem de ordinário seu remédio com eles, porque sendo violentos são de pouca duração; quando continuam, entretanto, trazem freqüentemente, assim como as febres dessa natureza, a morte aos doentes, ou uma falta de saúde que, depois, com dificuldade se repara.

Os príncipes mais sábios evitaram todos estes diversos males, regulando de tal forma as suas afeições que nelas a razão serviu de guia.

Muitos se curaram depois de ter aprendido à sua custa que, se não o tivessem feito, sua ruína era inevitável.

Para voltar precisamente ao ponto da questão proposta neste capítulo, que tem por fim fazer conhecer quanto é importante discernir aqueles que são mais próprios para os empregos; terminarei dizendo que, pois que o interesse dos homens é o que os faz de ordinário mal usar os cargos que lhes são confiados: os eclesiásticos são freqüentemente preferíveis a muitos outros quando se trate dos grandes empregos, não porque sejam menos sujeitos aos seus interesses, mas porque têm muito menos do que os outros homens, visto que, não tendo mulher nem filhos, são livres dos liames que ligam mais.


 

CAPÍTULO VIII

Do mal que os aduladores, maldizentes e intrigantes causam aos Estados, e quanto é importante afastá-los de junto dos reis, banindo-os da sua corte

 

Não há peste tão capaz de arruinar um Estado, quanto os aduladores, maldizentes, e certos espíritos que não têm outro desígnio senão formar cabalas e intrigas nas cortes em que vivem.

São tão industriosos a espalhar seu veneno, por diversas formas imperceptíveis, que é difícil obter-se garantia contra eles sem tomar cuidado de muito perto.

Como não têm condição nem mérito, para tomarem parte nos negócios, nem são bons para tomarem interesse pela coisa pública, não se importam de os atrapalhar; mas, pensando ganhar muito na confusão, não esquecem nada do que podem, para derrubar por suas bajulações e seus artifícios e por suas intrigas, a ordem e a regra que os privam tanto mais absolutamente de toda a esperança de fortuna quanto num Estado bem disciplinado não se pode construir tal coisa senão com fundamento no mérito de que são destituídos.

Além de ser coisa sabida que quem não é de um negócio tende a arruiná-lo, não há mal que tal gente não faça; e portanto não há precauções que os príncipes não devam tomar contra a malícia que se esconde de tantas formas que é difícil garantir-se contra elas.

Há alguns que, destituídos de coração e de espírito, não deixam de os ter suficientes para fingir uma tão grande firmeza quanto mais profunda e severa sabedoria, fazendo-se valer, achando o que dizer em todas as ações alheias, mesmo quando são louváveis e impossíveis de melhorar no assunto de que se trate.

Nada há tão fácil quanto achar razões aparentes para condenar o que melhor não se pode fazer, e o que foi empreendido com tão sólidos fundamentos que não se poderia deixar de fazer, sem cometer falta notável.

Outros não tendo boca nem espírito, condenam por seus gestos, meneios de cabeça e sorrisos, o que não ousariam condenar por palavras, e que pela razão não se poderia condenar.

Para não adular, desde que se trate de tal gente, não basta o príncipe interdizer-lhes o seu ouvido; mas é preciso bani-los do gabinete e da corte; porque além de ser a sua leviandade algumas vezes tão grande que entre o seu falar e o persuadir não há diferença, quando mesmo eles não podem ser persuadidos, não deixam de fazer uma certa impressão que faz efeito de outra vez se não batidos pelo mesmo artifício. E com efeito a pouca aplicação que têm com os negócios, leva-os freqüentemente a julgar o processo antes pelo número de testemunhas do que pelo peso das acusações.

Apenas poderia eu tratar de todos os males de que esses maus espíritos foram autores, durante o reinado de V. M. Mas deles tenho vivo ressentimento por causa do interesse do Estado, que me constrange a dizer que é preciso ser impiedoso com relação a essa gente a fim de prevenir tais movimentos como aqueles que tiveram lugar no meu tempo.

Por mais firme e constante que seja um príncipe, ele não pode sem grande imprudência, e sem expor-se à perda de si próprio, conservar junto de si maus espíritos que podem surpreender de improviso, assim como durante o contágio um vapor maligno agarra num instante o coração e o cérebro dos homens mais fortes e robustos, quando pensam estar mais sãos.

É preciso expulsar essas pestes públicas e não deixá-las aproximar nunca sem que inteiramente tenham descarregado o seu veneno, o que acontece tão raramente, que o cuidado que se deve ter com o repouso, obriga antes à manutenção do seu afastamento, do que a caridade convida ao seu chamamento.

Publico sem temor esta proposição, porque nunca vi espíritos que gostassem de facções, nutridos nas intrigas da corte, perderem seus maus hábitos, mudar sua natureza senão por impossibilidade; porque o falar não mudando neles, visto que a vontade de fazer mal perdura, é tirar deles o poder.

Se bem que alguns desses maus espíritos possam sinceramente converter-se, a experiência ensinando-me que por um que fica em verdadeiro arrependimento, há vinte que voltam a seus vômitos, decido que é melhor usar de rigor com relação a um que seja digno de graça, do que expor o Estado a algum prejuízo por excesso de indulgência, ou com aqueles que guardam sua malícia no coração e não reconhecem sua falta senão por cartas, ou com aqueles cuja leviandade deve fazer temer novas recaídas, piores do que os primeiros males.

Que os anjos não façam mal, não é maravilha, pois que são confirmados em graça; mas que espíritos obstinados neste gênero de malícia façam o bem quando podem fazer mal, é uma espécie de milagre, de que a poderosa mão de Deus é o verdadeiro móvel; e é certo que um homem de grande probidade terá muito mais dificuldade em subsistir num século corrompido do que aqueles de quem não se temem a virtude, por não serem de reputação tão inteira.

Estima-se às vezes que é da bondade dos reis tolerar as coisas que parecem de pouca importância no seu começo; e eu digo que eles seriam demasiado cuidadosos descobrindo e afogando as menores intrigas de suas cortes, no seu nascedouro.

As grandes fogueiras nascendo de pequenas faíscas, quem extingue uma, não sabe o incêndio que preveniu; mas para o conhecer, se deixa alguma sem apagar, e embora semelhantes nem sempre produzem os mesmos efeitos, se o fogo pegar talvez não se possa dar-lhe mais remédio. Que seja verdadeiro ou falso que um pequeno peixe possa parar um grande navio, tanto quanto avançar um momento o curso lhe seria possível, é fácil de conceber, pelo que os naturalistas nos contam de tal peixe. É preciso ter cuidado em lavar um Estado do que pode fazer para o curso dos negócios, sem que possa por nada fazê-lo caminhar mais depressa.

Em tais ocasiões não basta afastar os grandes por causa do seu poder, é preciso fazer o mesmo com os pequenos, por causa da sua malícia. Todos são igualmente perigosos, e se há alguma diferença, a gente menor, por mais escondida, é mais para temer.

Assim como o mau ar de que já falei, fechado num cofre, infesta e contagia uma casa, e pode infestar uma cidade, assim as intrigas de gabinete enchem a corte, os príncipes, de parcialidades que perturbam enfim o corpo do Estado.

Podendo dizer com verdade que jamais vi perturbação neste reino, com outro começo, digo mais uma vez que é mais importante do que parece, apagar não somente as primeiras faíscas de tais divisões, quando aparecem, mas preveni-las pelo afastamento daqueles que não têm outro cuidado senão acendê-las.

O repouso do Estado é uma coisa muito importante, para poder-se faltar ao remédio sem responsabilidade diante de Deus.

Algumas vezes vi a corte em meio da paz, tão cheia de facções, por causa da falta de seguimento a este salutar conselho, que pouco faltou para que o Estado falisse.

O conhecimento disso e o conhecimento que a história pode dar a V. M. de semelhante perigo, ao qual vários e especialmente os últimos dos seus predecessores encontraram-se expostos pela mesma causa, a intuição de recorrer ao remédio; vi a França tão calma tendo guerra no exterior, que vendo o repouso de que gozava, não parecia que estivesse a braços com as maiores potências.

Talvez se diga que as facções e as perturbações de que acabo de falar antes vieram da invenção das mulheres do que da malícia dos bajuladores.

Mas embora essa instância nada faça contra o que expendi, confirma poderosamente, pois que falando de aduladores e de outros espíritos semelhantes não pretendo excluir as mulheres, algumas vezes mais perigosas que os homens, e ao sexo se ligam diversos gêneros de atrações, mais poderosas para poder perturbar e derrubar os gabinetes, o progresso e os Estados, do que a mais sutil e industriosa malícia de alguns espíritos.

É verdade que durante os reinados de Catarina e Maria de Medicis à sua sombra diversas mulheres se metiam nos negócios, e algumas, poderosas em espírito e em atração, fizeram males indizíveis, seus cargos lhes tendo servido para torná-las as mais qualificadas e infelizes mulheres do reino; tendo querido valer-se das vantagens para satisfazer a seus fins e às suas paixões, desserviram aos que não lhes eram agradáveis, sendo embora úteis ao Estado.

Poder-me-ia estender sobre este assunto, mas vários respeitos retêm a minha pena, que, por não ser capaz de adulação, quando condena abertamente não pode isentar-se de notar que os favoritos, dos quais falei no capítulo precedente, têm lugar daqueles dos quais acabo de examinar a malícia.

Em seguida a estas verdades, nada me resta a dizer senão que é impossível garantir os Estados dos males dos quais esses diversos gêneros de espírito podem ser causa, senão afastando-os da corte; o que é tanto mais necessário, quanto não se poderia guardar ao seio uma serpente sem expor-se à contingência de ser por ela picado.


 

CAPÍTULO IX

Que trata do poder do príncipe; e que se divide em oito seções

 

SEÇÃO I

O príncipe deve ser poderoso para ser considerado pelos seus súditos e pelos estrangeiros

 

O poderio sendo uma das coisas mais necessárias à grandeza dos reis e à felicidade do seu governo, aqueles que têm a principal rédea de um Estado são particularmente obrigados a nada omitir, que possa contribuir a tornar o seu senhor tão autorizado que seja por esse meio considerado de todo o mundo.

Como a bondade é objeto do amor, o poder é causa do temor, e é certo que entre todos os princípios capazes de excitar um Estado, o temor que se funda na estima e na reverência tem a força de interessar mais cada um no cumprimento do seu dever.

Se este princípio é de grande eficácia com relação ao interior dos Estados, não é menos no que diz respeito ao exterior, os súditos e os estrangeiros, olhando com os mesmos olhos um poder formidável, uns e outros se abstêm de ofender um príncipe que reconhecem estar em estado de lhes fazer mal, se tem vontade.

Notei de passagem, que o fundamento do poder de que falo deve ser a estima e o respeito: acrescento que é agora coisa tão necessária, que se tira sua origem de outros princípios, é muito perigosa, visto que em lugar de ser causa de temor razoável, leva a odiar os príncipes, que não estão em situação pior do que quando caem na aversão do público.

O poderio que faz considerar e temer os príncipes com amor tem várias espécies diferentes; é uma árvore que tem quatro ramos diversos, que tiram toda sua nutrição e substância de uma mesma raiz.

O príncipe deve ser poderoso por sua reputação, por um razoável número de soldados mantidos constantemente, e por uma notável soma de dinheiro no tesouro, para prover nas ocasiões imprevistas que chegam quando nelas menos se pensa.

Enfim, pela posse do coração dos seus súditos, como se pode claramente ver.


 

SEÇÃO II

O príncipe deve ser poderoso pela sua reputação; o que lhe é necessário para esse fim

 

A reputação é tanto mais necessária aos príncipes, que aquele do qual se faz bom juízo, faz mais com o seu nome do que aqueles que não são estimados fazem com exércitos.

Devem fazer mais caso da reputação do que da própria vida; e devem antes arriscar sua fortuna e grandeza do que consentir que naquela se consiga fazer uma brecha, sendo certo que o primeiro enfraquecimento que chegue à reputação de um príncipe é, por leve que seja, o passo de mais perigosa conseqüência para a sua ruína.

Digo sem temor que os príncipes, sob este ponto de vista, não devem nunca estimar nenhum lucro ou vantagem se têm apreço à honra, ainda que pouco, e eles são ou cegos ou insensíveis a seus verdadeiros interesses se consentem em negócios de tal natureza.

Com efeito a história nos ensina que em todos os tempos e em todos os países, os príncipes de grande reputação são sempre mais felizes do que aqueles que, cedendo nesta qualidade, os sobrepujam em força, riqueza e todo outro poder.

Como não poderiam ter zelo demais sobre esse ponto, seus conselheiros não terão também cuidado que seja excessivo, de fazer valer as boas qualidades que existem nas suas pessoas.

Aqueles que se conduzirem sobre regras e princípios contidos neste testamento adquirirão sem dúvida um nome que não terá pouco menos peso no espírito dos súditos e dos vizinhos, particularmente se sendo religiosos em relação a Deus, são mais ainda em relação a si próprios.

Quer dizer: verdadeiros em sua palavra; fiéis às suas promessas; condições tão absolutamente necessárias à reputação de um príncipe, que assim como aquele que for destituído delas não poderia ser estimado por ninguém, também é impossível que aquele que as possui não seja reverenciado por todo o mundo, e não se tenha muita confiança nele.

Poderia dar vários exemplos dessa verdade; mas não pretendo que esta obra seja um lugar-comum; é fácil de fazer por qualquer um que queira tirá-los dos bons livros. Contento-me com não adiantar nada que não seja tão certo e tão claro, que toda a pessoa bem sensata encontrará prova no seu raciocínio.


 

SEÇÃO III

O príncipe deve ser poderoso pela força das suas fronteiras

 

Seria preciso ser privado de senso comum para não saber quanto é importante para os Grandes Estados ter as suas fronteiras bem fortificadas.

É coisa tanto mais necessária neste reino, que quando mesmo a leviandade da nossa nação a tornasse incapaz de realizar grandes conquistas, o seu valor a tornará invencível na defesa própria, se tiver grandes conquistas, o seu valor a tornará invencível na defesa própria, se tiver grandes praças tão bem fortificadas e tão bem guarnecidas que possam fazer aparecer sua coragem sem expor-se a sofrer grandes incômodos, únicos inimigos que terá a vencer.

Uma fronteira bem fortificada é capaz ou de fazer que os inimigos percam a vontade que pudessem ter de ações contra um país, ou ao menos impedir-lhas de início ou na impetuosidade se são suficientemente ousadas para vir com força descoberta.

Os movimentos sutis de nossa nação têm necessidade de ser garantidos pelo terror que pudesse ter de um ataque imprevisto, se não soubesse que a entrada do reino tem reparos tão fortes que não há impetuosidade estrangeira capaz de levá-la de vencida e que das praças fosse impossível tomar conta, senão com muito tempo.

O novo método de alguns dos inimigos deste reino sendo antes fazer perecer pela fome as praças que sitiam, do que tomá-las a viva força, arruinando antes o país que atacam com muita cavalaria, do que avançar a pé, com considerável corpo de infantaria como se fazia antigamente; claro que as praças da fronteira não são somente úteis para resistir a tais esforços, mas que são a salvação dos Estados, dentro das quais é impossível que os inimigos façam grandes progressos, se deixam atrás de si cidades que cortam a comunicação com o seu país e os comboios ao mesmo tempo.

Essa consideração me obriga a representar que não é suficiente fortificar as praças e muni-las para o tempo que possam resistir a um ataque de viva força, mas é preciso que sejam ao menos fornecidas de todas as coisas necessárias para mais de um ano, tempo suficiente para dar lugar de os socorrer comodamente.

Sei bem que é quase impossível aos grandes reis deixar nessas condições muitas cidadelas; não se dá o mesmo com as grandes cidades onde a sociedade e os homens produzem o armazenamento de muitas coisas de que um governador não precisa fazer grande provisão, e é fácil de obrigar os habitantes a se proverem de víveres para um ano, suficiente sempre, mesmo por seis meses e mais se se dispensam as bocas inúteis como a razão o quer.

Com isso não se pretende que tal ordem possa isentar os soberanos de ter armazéns públicos; ao contrário eles nunca seriam demais, e depois de ter armazenado, devem estabelecer regras tão boas para conservar os gêneros, que não seja livre aos governadores, aos quais pertence dispor, a dissipação fora de propósito ou por pura negligência ou pelo desejo que pudessem ter de aproveitá-la em seu benefício.

Não especifico positivamente o número de canhões (34), de pólvora, de balas e todas as munições de guerra que devem existir em cada praça, porque devem ser diferentes os depósitos segundo o tamanho delas. Também direi que a munição de boca não é mais necessária do que a de guerra, pois em vão uma praça sitiada estaria bem de víveres, se lhe faltasse o que é absolutamente necessário para defender-se e atacar os inimigos, visto que a experiência nos mostra que aqueles que mais atiram mais gente matam quando uma praça está sitiada, e antes se deve economizar o pão do que a pólvora.

Os antigos tendo notado muito a propósito que a verdadeira força das praças está na dos homens, não posso deixar de dizer que todas as fortificações são inúteis se o governador e os oficiais que comandam numa praça não têm o coração tão forte quanto suas muralhas e seus baluartes e se o número de homens não é proporcional ao tamanho da praça e à quantidade dos postos a defender.

A experiência nos fez ver em diversas ocasiões, que as menores bicocas são invencíveis se há firmeza e coragem naqueles que as defendem, e as melhores fortalezas nada resistem quando aqueles que estão lá dentro não têm coragem proporcional às suas forças.

Os príncipes não deviam senão ter muitíssimo cuidado em bem escolher aqueles aos quais confiam suas fronteiras desde que a salvação e o repouso do Estado dependem principalmente da sua fidelidade, vigilância, coragem e experiência; e que freqüentemente a falta de uma dessas qualidades custa milhões aos países, quando não são causa absoluta da sua perda.


 

SEÇÃO IV

Do poderio que um Estado deve ter por suas forças de terra (Esta seção tem pela abundância de matéria várias subdivisões, que serão marcadas com subtítulos sem numeração)

 

O Estado mais poderoso do mundo não poderia vangloriar-se de gozar de repouso seguro, se não está em situação de garantir-se, a todo o tempo, de invasão imprevista e de surpresa inopinada.

Por isso é necessário que um grande reino, como este, tenha sempre um corpo de soldados permanente, suficiente para prevenir os desígnios que o ódio e a inveja poderiam formar contra sua prosperidade e sua grandeza, quando se julga esteja num seguro repouso, ou ao menos para os afogar no nascedouro.

Quem tem a força tem muitas vezes a razão em matéria internacional; e o fraco pode dificilmente isentar-se de ter culpa no julgamento da maioria do mundo.

Como muitos inconvenientes sofre o soldado que não traz sempre consigo a sua espada; o reino que não está sempre na sua defensiva e em condições de garantir-se de surpresa inopinada, tem muito a temer.

Os interesses públicos obrigam àqueles que têm a direção dos países a governá-los de sorte que possam não somente garanti-los de todo o mal que pode evitar, mas ainda da apreensão que pudessem ter.

O poderio dos príncipes é o único meio capaz de produzir esse efeito, e resta, portanto, saber que forças devem ser mantidas neste reino.

A razão querendo que haja proporção geométrica entre o que sustenta e o que é sustentado, é certo que não preciso pouca força para sustentar um corpo tão grande como o deste reino.

As que são necessárias a um fim tão importante podem e devem ser de natureza diferente, isto é, entre os soldados, destinados à conservação deste Estado, uns devem ser conscritos, para estarem prontos todas as vezes que seja necessário, e os outros continuamente estar a postos para que não haja momento em que se não esteja em estado de boa defesa.

Números de soldados que devem ser mantidos neste reino.

Para bem guarnecer as cidades fronteiriças e ter um corpo em estado de opor-se a todo o intuito inopinado, é preciso ao menos manter 4.000 cavaleiros e 4.000 infantes a postos e pode-se sem carga excessiva para o Estado manter 10.000 fidalgos e 5.000 peões conscritos prontos para todas as ocasiões em que sejam requeridos.

Dir-se-á talvez que a defesa do Estado não requer tão grandes preparativos. Mas além de que é necessário estar isso a cargo da França, pois que do contrário a nobreza e o povo tirarão vantagem; digo que é necessário ser capaz de se fazer a guerra sempre que o bem do Estado assim o requeira.

A guerra é algumas vezes necessária.

No julgamento dos mais sensatos a guerra é algumas vezes um mal inevitável; e em outras ocasiões é absolutamente necessário, e tal que dele se pode tirar o bem.

Os Estados têm necessidade, em certos períodos, dela, para purgar-se de maus humores, para vingar uma injúria, de que a impunidade provocaria outras, para garantir de opressão seus aliados, para impedir a continuação do orgulho de um conquistador, para prevenir males de que se está ameaçado, e dos quais não se poderia isentar por outro meio, ou enfim por outros diversos acidentes.

Sustento que, e é coisa verdadeira, não pode haver guerra feliz que não seja justa, porque se não fosse, mesmo que o desfecho fosse bom segundo o mundo, ter-se-ia que prestar contas ao tribunal de Deus.

Nesta consideração, a primeira coisa que seria preciso fazer, quando se é obrigado a lançar mão das armas, é examinar bem a equidade que as põe nas mãos, o que deve ser feito por doutores de capacidade e probidade requeridas.

Tal fundamento pressuposto, não se deve pensar senão nos meios de bem fazer a guerra, entre os quais, aproveitar o tempo não é dos menos importantes.

Há aí diferença entre aquele que se vinga por cólera ou pela razão; o primeiro faz mal e se arrisca a recebê-lo, preferindo sofrer o prejuízo a perder a ocasião de dá-lo ao seu inimigo; e o último dissimula seus sentimentos, até que possa causar mal como pena por sua falta, sem tomar parte nos seus sofrimentos.

O primeiro age como animal impulsionado pelos movimentos de sua natureza; e o último conduz-se como homem, deixando-se levar pela razão.

Para bem fazer a guerra não basta bem escolher a ocasião, ter bom número de soldados, dinheiro abundante, víveres e munições; o principal é que os homens sejam próprios àquilo a que se destinam, que se saiba mantê-los em disciplina, fazê-los viver com regra e que se disponha do seu dinheiro, dos seus víveres e munições a propósito.

É fácil estabelecer estes preceitos gerais, mas a prática é difícil e entretanto, se é desprezada, o sucesso de uma guerra não poderia ser feliz senão por acaso ou por milagre, com o que os sensatos não devem contar.

Não há nação no mundo tão pouco própria para a guerra quanto a nossa; a leviandade e a impaciência que tem nos menores trabalhos, são princípios que demasiadamente se verificam.

Embora César tenha dito que os franceses sabem duas coisas, a arte militar e a de bem falar, confesso que não pude compreender, até o presente, sob que fundamento ele lhes atribui a primeira destas qualidades, visto que a paciência nos trabalhos e nos sofrimentos, qualidade necessária na guerra, não se encontra neles senão raramente.

Se essa condição acompanhasse sua valentia, o universo não seria suficientemente grande para limitar as suas conquistas; mas como o grande coração que Deus lhes deu torna-os próprios a vencer tudo o que a eles se opõe pela força, sua leviandade e sua preguiça torna-os incapazes de sobrepujar os menores obstáculos que as dilações de um inimigo astuto opõe ao seu ardor.

Daí vem que nem são próprios para as conquistas que requerem tempo, nem a conservar aquelas que fizessem num instante.

Não são somente levianos, impacientes e pouco acostumados à fadiga; são acusados de não estarem nunca contentes com o tempo presente, e de serem pouco afeiçoados à sua Pátria; e esta acusação tem tanto fundamento que não se poderia negar que mais se encontram aqui dos que faltam ao que são obrigados por nascimento, do que em todas as outras nações do mundo.

Poucos tomam armas contra a França, e aí não se encontram franceses; e quando são armados pelo seu país, seus interesses lhes são tão indiferentes, que não fazem nenhum esforço para dominar seus defeitos naturais em seu proveito.

Correm centenas de léguas em busca de uma batalha e não quereriam esperá-la oito dias. O inimigo os cansa antes mesmo que se tenha posto mãos à obra.

Não temem o perigo, mas querem expor-se a ele sem nenhum sofrimento; as menores demoras lhes são insuportáveis. Não têm fleugma para esperar um só momento sua felicidade, e se aborrecem mesmo na continuação da sua prosperidade.

No começo de sua empresa, seu ardor é extraordinário e com efeito são mais do que homens nesse instante; mas pouco tempo depois eles se amolentam de sorte que se tornam iguais aos de virtude comum, acabando por se desgostarem e se rebaixarem a ponto de serem menos do que homens.

Ficam, entretanto, com coragem para se baterem, desde que sejam conduzidos à luta imediatamente; mas são incapazes de esperar ocasião; embora sua honra, a reputação da sua nação e o serviço do seu senhor os obriguem a isso.

Não sabem nem tirar partido de uma vitória, nem resistir à fortuna de um inimigo vitorioso; cegam mais do que quaisquer outros em sua prosperidade, não tendo coragem nem julgamento na adversidade e nos trabalhos.

Enfim são sujeitos a tantos defeitos que não é sem razão que alguns judiciosos espíritos se espantam de como esta monarquia se pode conservar desde o seu nascimento, pois se ela sempre encontrou filhos fiéis em sua defesa, nunca foi atacada sem que os seus inimigos deixassem de encontrar, em seu seio, partidários que como víboras nada esqueceram do que puderam para roer as entranhas maternas.

Sei que contrabalançando essas imperfeições os franceses têm boas qualidades; são valentes, corajosos e cheios de humanidade; seu coração é isento de toda crueldade e são isentos de rancor pois que com facilidade se reconciliam.

Embora essas qualidades sejam ou ornamentos da vida civil ou essenciais à cristandade; é verdade que sendo destituídos de fleugma, paciência e disciplina, constituem como uma carne saborosa sem o tempero que lhe dá gosto.

Não ignoro que a providência de Deus que é admirável em todas as coisas, o é particularmente no contrabalançar as más qualidades de cada nação, por outras vantagens que compensam os seus defeitos.

Se a nação francesa é leviana e impaciente, sua valentia e impetuosidade a fazem freqüentemente executar de um primeiro esforço o que outros só conseguem com muito tempo.

Se sua inquietação impede ficar voluntariamente nos exércitos, a bondade divina a torna tão abundante em homens, que sempre se encontram muitos que levados pelo mesmo princípio de leviandade entram quando os outros saem, e estes logo estão prontos a voltar, quando os outros abandonam a partida.

Se a pouca afeição que eles têm por seu país leva-os algumas vezes a tomar armas contra seu rei, a inconstância e os movimentos súbitos aos quais estão sujeitos fazem que neles não se tenha confiança e com isso provocam mais mal do que são capazes de realizar de motu próprio ao seu país.

É coisa certa que os espanhóis nos sobrepujam em constância e em firmeza, em zelo e em fidelidade para com seu rei e sua pátria; mas em compensação esse reino estéril é tão deserto em certos lugares e tão pouco abundante em homens, que sem a sua firmeza estaria muitas vezes abandonado por si mesmo.

De resto se entre os franceses alguns particulares tomam partido contra seu Senhor, os espanhóis se rebelam fazendo motim em corpos dentro dos exércitos.

Se o imperador tem a vantagem de dominar uma nação que é a sementeira dos soldados, tem também a desvantagem de o ver mudar facilmente de partido e de religião, além de ser sujeita a embriaguez sendo muito mais desregrada que a nossa em campanha.

Em uma palavra, cada nação tem os seus defeitos e prudentes são aqueles que procuram adquirir por partes o que a natureza não lhes deu.

É mais fácil acrescentar à coragem, à valentia e à cortesia dos franceses, a fleugma, a paciência e a disciplina, do que dar às nações fleugmáticas o fogo que o nascimento não tiver dado.

Os franceses são capazes de tudo, desde que aqueles que os comandam sejam capazes de ensinar convenientemente o que é necessário que eles pratiquem.

Sua coragem, que os leva a procurar guerra aos quatro cantos do mundo, verifica esta proposição: desde que eles vivem como os espanhóis nos seus exércitos, como os suecos no seu país, como os croatas nas suas tropas, e como os holandeses nos seus Estados.

Eles observam a disciplina de uns e outros; o que mostra bem que se eles ficam no seu país com seus defeitos naturais, é porque estes são suportados e não se sabe corrigi-los.

Se vivem neste reino sem disciplina, não é tanto por falta sua, senão dos chefes que os comandam que se contentam de ordinário em fazer belas ordenanças sem cuidado de fazê-las observar.

Nada há mais fácil do que dar regras de bem viver e nada mais difícil do que fazê-las praticar, sem que seja impossível.

É preciso, caso se possa, fazer compreender, justiça e razão, sendo em seguida impiedoso e inflexível no castigo daqueles que as violem.

Se um, dois ou três castigos não param a seqüência da desobediência, a continuação acaba vencendo; e eu ouso dizer a V. M. que se encontra chefes dignos de comandar, não faltará em súditos próprios na obediência. É coisa certa que a opinião generalizada pelo mundo que os franceses são incapazes de subordinação a regras e disciplina, não tem outro fundamento senão na incapacidade dos chefes, que não sabem escolher os meios necessários aos fins a que se propõem.

O cerco de La Rochelle onde durante treze meses um exército de 25.000 homens recebeu ordens e obedeceu como religiosos que levassem armas, e a viagem de Pignerol em que fizeram o mesmo, verificam o que digo.

Mas é preciso que aquele que comanda não faça nenhuma exceção de pessoa, sendo reconhecido como comandante; sendo certo que se se visse que não tinha suficiente firmeza para ficar inflexível no rigor da regra estabelecida por ele, não houvesse ninguém que pensasse ser obrigado a guardá-la, porque do contrário muitos se arriscariam a violá-la pensando poder fazê-lo impunemente.

Mas se um chefe se cansa menos de punir do que os delinqüentes de cometer suas faltas, sua firmeza impedirá o curso de nossas excessivas leviandades, a menos que de um tal remédio, não seja preciso esperar conter nos limites da razão uma nação tão fogosa e impetuosa como a nossa. Os castigos de Marillac e de Montmorency, num instante puseram no seu dever todos os grandes do reino; e eu ouso assegurar que um oficial em dez com cinqüenta soldados, será capaz de manter os exércitos em disciplina e em estado de fazer tudo o que se quiser.

Assim, se se castigam todos aqueles que faltarem à satisfação de seus deveres e obrigações, castigados serão poucos porque poucos se encontram que de coração alegre se exponham à sua perda, quando a saibam inevitável, e, com a morte de poucos, a muitos se terá conservado a vida, bem como a ordem em todas as coisas.

Nunca os defeitos desta nação apareceram mais do que sob o reinado de V. M. que, sendo assinalado por muita felicidade, e pelo poderio da conduta pessoal, será também apoiado pelos julgadores sensatos, com todas as infidelidades sofridas e o grande número de leviandades praticadas contra o seu serviço.

Depois de ter por várias vezes procurado as razões de uns e outros, não temo dizer que tais leviandades provêm da fraqueza da minoridade de V. M. durante a qual os espíritos de tal forma se acostumaram a toda sorte de licenças, que acreditaram poder continuar com a mesma impunidade de antes.

A primeira razão é que tendo mais colégios de religiosos, mais oficiais de justiça e de finanças do que no passado, tinha menos soldados, o que fazia que a deserção dos que se retiram dos exércitos aparecesse mais embora sendo menos do que antes enchendo a praça daqueles que abandonam seu dever.

A segunda, que as pessoas militares faziam no passado mais fortuna do que agora, da qual os financeiros e participantes recolhem toda a graxa, com desgosto daqueles que se vêem constrangidos a expor a sua vida quase inutilmente.

A terceira, que os chefes de agora são menos cuidadosos da disciplina militar e menos severos em castigar os que os abandonam, do que eram nossos pais.

A quarta, que o que os franceses levaram sem guerra estrangeira ou sem inimigos poderosos a combater fez-lhes quase esquecer a profissão e os desacostumou das fadigas de que são pouco capazes, embora seja preciso muito sofrer quando se tem assunto com inimigos poderosos e astutos.

Acrescento a estas considerações, que a saúde de V. M. não permitiu tomar sempre lugar nos exércitos e a injustiça dos franceses é tal que não se contentam num lugar onde arriscam a vida, se não vêem o seu rei, com a presença do qual estimam-se, de alguma forma, seguros.

Não cabe aos inimigos deste País, fazer a guerra com sucesso, por simples tenentes; a fleugma de sua nação lhes dá essa vantagem, mas a francesa é menos própria do que qualquer outra a tal fim, porque o ardor que lhe dá coragem e desejo de combater, dá-lhe também impaciência que não pode ser vencida senão pela presença do seu rei.

Se aconteceu algumas vezes que uma empresa tenha chegado a bom fim sob tenentes, sem dúvida muitas das que assim foram felizes, dependeram de pessoas de grande autoridade, tanto pela confiança do seu senhor quanto pelo mérito de suas pessoas, ou então a guerra não foi de tal duração que sobrepujando os inimigos tivessem também que vencer o humor dos franceses.

Não é pouco trabalho ser obrigado a dar a conhecer aqui os defeitos que V. M. várias vezes notou na sua nobreza; entretanto eles são tão públicos, que é impossível escondê-los.

A afeição que lhe dedico, faz que seja necessário examiná-los para aí encontrar exemplo e remédio.

A estima que mereceu no passado quase não permite acreditar que fizesse mal em certas ocasiões, ao vosso reinado; mas sem dúvida farei pela razão ver esse efeito pelos resultados.

Não há ninguém que não compreenda facilmente que há grande diferença entre os espíritos que por sua natureza sobem e as partes mais grosseiras de seus corpos que ficam baixas.

A excelência da nobreza que procura a guerra voluntariamente é como os espíritos que sobem, estimada de todo o mundo; a que não vai à guerra senão pela necessidade das leis deste reino é, se não a borra, pelo menos o vinho que está abaixo da essência e do qual tão pouco caso se faz que apenas é servido aos criados.

Não há comunhão em que o número de maus súditos não seja maior do que o número de bons; entretanto pouco joio sendo capaz de estragar muito trigo, não é maravilha se, quando uma nobreza se reúne, o maior número corrompe o menor embora este seja melhor; e como o bom vinho nada vale misturado com a borra, também o serviço da melhor nobreza é não só inútil como prejudicial, quando em contato com a borra que a altera.

Arrière ban

Este discurso dando-me lugar a falar sobre o bando e o edital (Arrière ban), não posso deixar de dizer que é uma assembléia de nobreza que não tendo chefe que tenha autoridade, conduz-se sem regra e vive sem disciplina.

Assembléia cuja substância é tão pouco assegurada, que a leviandade, a covardia, a malícia ou o desgosto de três ou quatro pessoas, é capaz de a dissipar num momento. Assembléia que arruina mais os lugares onde passa, do que as tropas regulares que arruinando o país de V. M. pagam uma parte do que despendem, enquanto esta nada paga.

Não faz nunca guarda num exército: daí provém duplo mal, o da sua vadiação e o desgosto dos outros.

Se ela não combate assim que chega, como foi pronta em vir o é em voltar, ameaçando disso a todo o instante. Retirando-se ela estraga a muita gente com o seu mau exemplo, mas os mais engenhosos da sua tropa inventam tudo o que o artifício pode sugerir para cobrir sua infâmia, e fazer crer que não se vai sem razão; o que faz que enfraquecendo os exércitos ela os espanta ao mesmo tempo.

V. M. conhecendo melhor do que eu estas verdades de que viu a prática em sua presença, sem exagerar os defeitos de uma ordem, de que apresentei as perfeições, minha consciência me obriga a dizer, com audácia, que não se deve socorrer de tal socorro, muito mais prejudicial que útil ao Estado.

Mas, a fim de que este reino não fique privado do serviço da nobreza, de que sempre fui principal servo, e a que é obrigado a servir em tempo de guerra, por causa dos feudos que lhes foram dados com essa condição e as vantagens que tem durante a paz, sobre o povo, é preciso taxar todos estes em cada distrito segundo a sua renda, formando com dinheiro da renda, companhias regulares, nas quais os que preferirem, pessoalmente, servir a pagar a contribuição dos seus feudos, serão recebidos, desde que se comprometam a satisfazer às condições de suas obrigações.

A prudência quer que a gente se sirva dos homens segundo seu alcance, suprindo as faltas naturais; e por essa razão é preciso servir-se do corpo da nobreza, se se quer tirar alguma utilidade.

Em seguida a esta observação, passando adiante, sou obrigado a notar que é quase impossível empreender com sucesso grandes guerras só com os franceses.

Mercenários necessários

Os estrangeiros são absolutamente necessários, para manter o corpo dos exércitos, e se a cavalaria francesa é boa para combater, não se pode prescindir dos estrangeiros para montar guarda do exército e suportar as fadigas.

Nossa nação ardente e impulsiva nos combates, não é nem vigilante para guardar-se nem própria para intuitos ou empresas que não podem ser executadas sem trabalho.

Os exércitos franceses eram sempre compostos a metade de estrangeiros e nós experimentamos quanto é vantajoso o seu serviço, na falta de gente nossa, pelas boas qualidades daqueles de que nós podemos ser assistidos: e entretanto corrigir os nossos defeitos, tanto quanto possível nos seja.

Ora; porque nos faltam soldados bem disciplinados, firmes e constantes no seu dever, mais ainda nos faltam chefes que tenham as qualidades que sejam necessárias; não é bastante remediar a um destes defeitos; é preciso prover ao outro.

No mundo há poucos mas ainda menos em França que em outra parte, que não fiquem cegos na prosperidade e não percam coragem e julgamento nos reveses e adversidades.

É também necessário que haja gente na administração do Estado e no comando dos exércitos que seja isenta desses defeitos; de outra forma seria difícil ou só por acaso se tiraria fruto das ocasiões favoráveis que Deus dá, perdendo muito no primeiro acidente de fortuna que tivéssemos.

Embora seja a cabeça o que guia o resto do corpo e que o julgamento seja a parte mais essencial ao que comanda, é verdade, entretanto, que eu desejo antes, a um general, muita coragem e espírito medíocre, do que muito espírito e pouco coração.

Espantará talvez esta proposição, porque é contrária ao que muitos a respeito pensaram, mas a razão dela é evidente.

Os que têm muita coragem não se espantam com o perigo; todo o espírito que Deus lhes deu e seu julgamento lhes serve muito bem nessas ocasiões; mas aqueles que têm pouca coragem espantando-se facilmente, ficam perturbados com o menor perigo, e por maior que seja o seu espírito ele lhes é inútil porque o medo tira dele o conveniente uso.

Não faço grande diferença entre dar o manejo das finanças a um ladrão e o comando de um exército a quem não tem coragem.

Como a avareza e o desejo que tem o primeiro de adquirir bens fazem que ele aproveite todas as oportunidades de aumentar seus fundos porque é desonesto, também o segundo, que tem o desejo de conservar a sua vida, garantindo-se de perigos que não têm fundamento senão na sua imaginação, é levado a perder e a evitar muitas ocasiões vantajosas para as suas armas; e assim se o primeiro é capaz de cometer faltas pelo desejo de encher a sua bolsa, o segundo não o é menos pela intenção de conservar a vida.

Entre pessoas de coragem há os que são naturalmente valentes, e outros que o são raciocinadamente; os primeiros são melhores soldados do que generais, porque de ordinário sua valentia é acompanhada de brutalidade; mas os segundos são bons chefes; entretanto é sempre para desejar que sua razoável valentia não seja destituída da natural, porque de outra forma seria de temer que a previsão de inconvenientes que podem acontecer, e não acontecem, desviasse aquele que agir com demasiado raciocínio, de empreender o que a outros menos racionais e mais audazes daria resultado.

A falta de julgamento contribui muito à valentia de certas pessoas que dão golpes tanto mais audaciosos quanto menos conhecem o perigo a que se expõem.

O julgamento não serve pouco a outros para fingir grande audácia em certas ocasiões, que, perigosas na aparência, não o são nem no efeito nem no espírito daqueles a quem Deus deu mais luzes.

Como não é preciso valentia sem julgamento para um general, se ele é clarividente e eminentemente judicioso, tem necessidade de sinceridade que o impede de fazer passar artifícios por ações de coragem. O homem se esconde muitas vezes de tantas maneiras, que é bem difícil distinguir os efeitos da cabeça daqueles cujo coração é causa principal e motora.

Há gente tão naturalmente valente, que assim se conserva até o túmulo.

Outros que, não o sendo dessa maneira, fazem esforço na mocidade para parecer tais, a fim de adquirirem alguma reputação à sombra da qual possam passar a vida sem infâmia.

Estes últimos não obtiveram seus fins sem que os efeitos da sua valentia desaparecessem, porque têm sua conta e o artifício é a fonte de sua coragem e não sua inclinação natural.

E preciso cuidar-se para não se escolher um chefe desta natureza, lembrando-se que o artifício é tão perigoso naqueles que comandam quanto o julgamento e a coragem lhes são necessários.

Estas duas qualidades devem quase marchar no mesmo pé, mas em companhia de várias outras.

As grandes empresas não sendo brinquedo de crianças, requerem naqueles que as dirigem idade madura; mas também é verdade que assim como a madureza do julgamento que avança com os anos é útil para formar desígnios, o fogo da mocidade não o é menos para pôr em execução, e é coisa certa que a fortuna ajuda os moços e vira as costas aos velhos.

É preciso notar a este respeito, que há grande diferença entre um moço e um velho. É difícil ser bom e mau ao mesmo tempo.

Para ser excelente, é preciso ser jovem na idade, mas não em serviços e em experiência. E embora os velhos sejam de ordinário os mais prudentes, não são os melhores para empreender, porque eles se encontram freqüentemente destituídos do fogo da mocidade que se requer em tais ocasiões.

Para concluir: o coração, o espírito e a boa sorte são três qualidades tão necessárias a um chefe, que embora não se encontrem muitos que as tenham, é difícil esperar, sem acaso, grandes acontecimentos daqueles que se encontrarem destituídos de uma delas.

Mas se se for suficientemente feliz para achar aquele em quem essas condições coexistam, será fácil remediar os defeitos daqueles que se opõem à sua conduta.

Um daqueles que causa mais mal é, assim como notei, a leviandade da nossa nação, que a tornando quase incapaz de ficar muito tempo numa mesma situação, faz que um exército, apenas posto a pé, logo se reduza a metade.

Remédio para que os exércitos subsistam

Algumas vezes considerei que o melhor expediente que se poderia tomar para fazer subsistirem os soldados em pé de disciplina, seria estabelecer os legionários, como outrora se praticava neste reino, acrescentando alguns expedientes particulares completamente necessários para os tornar seguros; mas a razão e a experiência me fizeram perder essa opinião.

A razão porque faz conhecer claramente que o que é dado ao cuidado de vários é tanto menos seguro quanto cada um descarrega no companheiro, e que as escolhas que se fazem pela opinião das comunidades raramente são feitas por motivos de razão, porque embora haja muita gente ajuizada e proba, o número de desequilibrados e de maus é sempre muito maior.

A experiência ensina a todo mundo que não há dinheiro tão mal gasto quanto o que fica a cargo das comunidades.

Essa verdade é claramente justificada pela má administração dos dinheiros de imposto das cidades e das fábricas das igrejas.

Além de que eu posso dizer com verdade que quando as necessidades urgentes do Estado constrangem V. M. a recorrer a tropas enviadas pelos príncipes, conduzidas e pagas por seus oficiais, o que vi duas vezes durante esta última guerra; sempre custaram o dobro e fizeram tantas ou mais desordens que as outras e subsistiram menos do que as levantadas ao mesmo tempo, conduzidas por particulares à custa de V. M.

Estas considerações fizeram-me ver claramente que em lugar de encarregar as províncias do levantamento e da manutenção dos soldados, os soberanos devem encarregar-se, já que podem fazê-los subsistir com ordem se querem servir-se dos meios úteis a tal fim, seguindo a ordem exposta.

Todos os soldados devem ser arrolados em relação com os nomes, lugar de nascimento, hábitos, a fim de que, se debandarem, possam ser encontrados facilmente.

O escrivão de cada lugar deve ser encarregado do número do que se levantar em toda a extensão, e os juizes obrigados a verificar que sejam castigados, segundo o rigor das ordenanças, todos aqueles que voltarem dos exércitos sem baixa válida, sob pena aos ditos juizes de serem privados dos seus cargos, se se verificar que tendo tido conhecimento da volta dos soldados, os tiverem deixado impunes.

Para o arrolamento dos soldados, cada um deve ser obrigado a servir três anos sem pedir baixa, senão em caso de moléstia evidente, sob condição também de que esse termo tendo expirado não se lhes possa recusar, quando pedirem.

Essa condição parece tanto mais necessária, que o francês que crê ser constrangido e mantido contra vontade, não pensa, comumente, senão em escapar-se, mesmo perdendo mil vidas se tantas tivesse, ao passo que se tiver liberdade de se retirar, parece que ficará voluntariamente no exército, a natureza levando de ordinário os homens a querer menos o que lhes é permitido do que o que lhes é proibido.

Todo o soldado que obtiver a sua baixa deve ser obrigado a registrar-se no cartório da jurisdição na qual assentou praça.

Os chefes e os oficiais de um regimento por coisa alguma poderão receber soldados de outros, sob pena de serem degradados das armas e de nobreza se são fidalgos.

E o soldado que abandonar seu capitão sem baixa será mandado às galeras sem remissão em qualquer tempo em que seja preso, sem mudança de lugar ou de condição que o possa isentar dessa pena.

Nenhuma baixa será julgada boa sem assinatura do mestre de Campo ou outro que comande o corpo na sua ausência, selando com o selo do regimento.

Cada regimento terá um preboste, um comissário, um fiscal e um pagador que serão obrigados a acompanhar sua força, sob pena de cassação ou mesmo de punição exemplar.

Se algumas desordens o preboste não procura castigar segundo as leis militares, será ele o castigado logo que a queixa chegar ao conhecimento de V. M. ou de seus generais.

Se o número de regimento não está completo e o comissário e o fiscal não avisam, responderão no seu nome e serão severamente punidos.

Se o soldo faltar por desídia do pagador ou por desfalque dos fundos a seu cargo, ou por qualquer outro motivo, não poderá isentar-se do pagamento do quadruplo daquele valor, com punição exemplar.

Os ditos oficiais serão somente empregados por comissão, diversas experiências tendo dado a conhecer que nada perde tanto aos oficiais do rei, particularmente em caso de guerra, quanto colocar os cargos a título de ofícios, que a falar verdade constitui título de roubo e impunidade.

Aqueles que comandam forças serão obrigados a fazê-las pôr em batalha todas as vezes que forem solicitados pelos comissários.

A fim de que aqueles que têm tais comissões possam fielmente cumpri-las, o comissário terá 200 libras por mês, o fiscal 150, o preboste 100, o notário 50 e cada um dos seus arqueiros 30.

Ora; porque nada se poderia avançar regulando os soldados e os graduados, se não se prescrevesse a ordem a ser observada pelos principais chefes, os mestres de campo, capitães, sargentos-mores, tenentes e insígnias, não poderão abster-se dos seus cargos sem baixa dos seus generais e comandantes de tropas, ou de V. M., e em caso de que nenhum contravenha o regulamento, devem ser quebrados, degredados, de nobreza e de armas, se são nobres, ou apenas quebrados se não o são, sem prejuízo de maior pena. V. M. imporá, se lhe agradar essa lei, por si mesma, de não lhes dar baixa durante a guerra sem causa legítima; mas quando estiverem em guarnição, usará dessa bondade de não recusar baixa ao terço dos oficiais, por quatro meses, a fim de que num ano se possa ter todos de volta. Com esta regra que não pode ser julgada demasiado austera por aqueles mesmos que dela sofrerem, ter-se-á um cuidado particular com os soldados. Se se lhes dá pão por todo o ano, seis medidas e uma roupa; se se continuam as missões militares praticadas em 1639 para os impedir de cair doentes; se caem tem-se o hospital que acompanha o exército por toda a parte, como se fez no mesmo ano, e assegurando a vida àqueles que se inutilizam no serviço do rei, no asilo de S. Luís destinado a esse fim. Ouso responder que a infantaria deste reino será, para o futuro, bem disciplinada.

A cavalaria

Da mesma forma será a cavalaria, se, pondo-a em ordem, o que não repito para não importunar, obriga-se além disso, cada cavaleiro a ter dois cavalos de serviço e um de bagagem como mínimo, observando-se ainda rigorosamente as ordenanças que obrigam a que se não abandonem as armas, e se forem postos em guarnição durante a paz nos lugares fechados para evitar as desordens impossíveis de se evitar em favor do público, quando os soldados estão na campanha.

Ela se portou tão mal nestas últimas guerras, que se ficasse como está, não se podia mais fazer conta.

A verdadeira causa da sua decadência é o grande número de levantados para se oporem à cavalaria estrangeira, que põe a cavalo gente de toda a espécie.

Daí vem que ela não pode mais ser composta só da nobreza, firme e corajosa; mas teve de ser cheia não somente com velhos soldados, mas com moços de todas as condições que nunca experimentaram nem coração nem braço.

Se imitando os estrangeiros que recebem de tudo na sua cavalaria, a nossa aprendesse a suportar igualmente bem as fadigas, embora tivesse perdido parte do seu antigo valor, que a tornava notável, teríamos consolo; mas a leviandade e a delicadeza que se encontram em quase todas as condições de nossa nação, mantêm os seus primitivos defeitos; assim ela perdeu o que tinha de melhor sem adquirir o que não possuía.

Embora os médicos estimem que a cura de uma moléstia está adiantada quando a verdadeira causa do seu mal é conhecida, confesso que conhecendo a origem e a fonte daquela de que se trata, sua cura não deixa de ser muito difícil.

Se se reduz a cavalaria à nobreza, não se terá o número necessário para opor-se ao inimigo; e se se admite todo o mundo, é impossível ter uma cavalaria como a história conta ter sido a francesa.

O único expediente que se tem a meu ver é exortar os capitães a ter nas suas companhias o máximo possível de nobres que puderem, ordenando que nenhum seja recebido na demonstração de parada, sem que tenha metade de gentis-homens.

Obrigar a todos os fidalgos de 20 anos, a trazerem armas, declarando que não serão nunca capazes de cargo nem dignidade, se não servirem três anos nas tropas de V. M.

Proibir a todos os oficiais de cavalaria de dar ingresso em suas companhias a soldado não gentil-homem que não tenha 25 anos passados, e que não tenha servido na infantaria ao menos três anos.

Enfim fazer executar rigorosamente as antigas ordens militares, que exigem que os cavaleiros que abandonam seu chefe num combate sejam desarmados, bastando a notoriedade da sua defecção.

Se este regulamento é religiosamente observado, não duvido que a cavalaria francesa volte a ter a sua antiga reputação, e V. M. tendo sua infantaria e sua cavalaria bem disciplinadas poderá dizer-se forte pelas armas em qualquer tempo que seja, e em estado de dar durante a paz tanta segurança a seus súditos quanto terror aos seus inimigos.

Resta a ver somente se este Estado poderá suportar a despesa de um tão grande corpo de soldados como o que estou projetando, coisa que em seguida examinarei.

Entretanto, embora se deva esperar que por meio de regulamento tão útil e tão fácil de observar como o que proponho, os exércitos subsistirão no futuro como é de desejar; ou pelo menos serão melhores do que eram; mas farei seis advertências tanto mais necessárias para uma grande guerra, quanto a prudência requer que, nos negócios importantes, tenham-se tantos expedientes que não se deixe de ter medida acertada para tudo.

Notas para subsistência dos exércitos e para se fazer utilmente a guerra.

1. — Se se quer ter cinqüenta mil homens efetivos, é preciso levantar cem, não estimando um regimento de vinte companhias que devem ter cem homens, senão por mil.

2. — É preciso freqüentemente refrescar os exércitos por novos recrutamentos, sem os quais, embora fortes pelo controle, serão fracos efetivamente.

3. — Tais renovamentos devem ser feitos antes recrutando elementos de velhos corpos, que seria preciso conservar, mesmo quando estivessem inteiramente enfraquecidos, do que por levantamento de elementos novos aos quais entretanto se recorre como expediente em certas ocasiões de premência, porque os soldados se alistam voluntariamente segundo os oficiais.

4. — Quando as tropas estão arruinadas, mais vale pagá-las no estado a que estão reduzidas, do que as reformar, porque é impossível usar assim sem que se percam excelentes oficiais e soldados aguerridos.

Sei que se pode ordenar a passagem do resto dos soldados para outros regimentos. Mas é impossível completamente a execução, a afeição que cada soldado tem pelo seu capitão dando-lhe motivo a que se retire, ou pelo menos pretexto à sua leviandade para agir assim.

Sei bem ainda que reformando regimentos poder-se-ia imitar os espanhóis, que não passam somente os soldados para antigos corpos senão também os oficiais.

Mas embora seja fácil resolver dessa sorte, não há severidade suficiente para boa execução; o humor ambicioso e o pouco juízo dos de nossa nação não permite que sejam comandados depois de terem sido comandantes, quaisquer que sejam as vantagens que tirassem de tal obediência.

5. — É impossível, nas guerras que exigem esforços extraordinários, pagar regularmente as monturas do pessoal engajado, como se faz nas empresas que não excedem as forças de um Estado; mas em tal caso estes dois expedientes podem remediar a um tal defeito.

O primeiro consiste em prover-se tão bem de víveres que o pão não falte aos soldados.

O segundo, contentar os chefes que, estando satisfeitos têm muito interesse em manter a gente que comanda para não se esforçar. Ao passo que se são maltratados, suas queixas e negligências dão lugar à licença dos seus soldados e lhes faz ter desejo de debandar, quando espontaneamente não pensariam nisso.

Entretanto não quero esquecer de notar que, para fazer direito, é preciso dar três demonstrações durante a campanha, além de cinco meses de quartéis de inverno que as tropas regularmente devem ter.

Ora; como não há nada tão importante à subsistência dos soldados e ao sucesso das empresas que se levam a efeito como provisão suficiente, ela nunca deve faltar.

6. — Este cuidado é um dos principais a ter, a economia e a polícia, sendo partes principais dos generais do exército. Se apenas os exércitos combatem uma vez no ano, da mesma forma é preciso que vivam dia a dia subsistindo com ordem, o que não se pode fazer sem grande economia e extraordinário caso à polícia.

A história registra muito maior número de casos de exércitos que pereceram por falta de pão e de policiamento, do que pelo esforço do exército inimigo; e eu sou fiel testemunha de que todas as empresas realizadas no meu tempo falharam por esse motivo.

Aqueles que não têm experiência, estimam, de ordinário, ter feito tudo quando puseram exércitos em pé de guerra, pagos de seus soldos; mas qualquer pagamento, se os exércitos não estão em lugar onde possam viver comodamente, seu dinheiro lhes é inútil e não pode impedi-los de perecer.

Não posso deixar de dizer, a este respeito, que não se pode fiar na palavra de um simples fornecedor que se obriga a fornecer pão para o exército.

A vida de tal gente é má caução dos males que sua negligência pode causar, para que se descanse sobre a sua fé.

O cuidado com os víveres deve ser dado a pessoas de qualidade, cuja vigilância, fidelidade e capacidade sejam conhecidas, desde que disso depende a subsistência dos exércitos e, às vezes, dos Estados.

Não há gente que se possa considerar demasiado elevada para ser empregada em tais cargos.

Para que não haja engano na conta, pondo um exército em pé de guerra, é preciso considerar os víveres de sorte que haja para cada regimento de mil homens, quinze carroças para transportar sempre quinze dias de pão, que é mais ou menos o necessário para uma empreitada de consideração. Ainda se deve ter cem ou duzentas acima do cálculo, porque de outra forma faltaria.

É preciso não esquecer de levar moinho e forno, porque embora o uso não seja comum e fácil é preciso ter, para deles se lançar mão em certos lugares em que de outra forma não se teria alimento, dando neste caso com quatro dias de fome, grandes vantagens ao inimigo.

As menores coisas sendo a considerar nos grandes projetos, um general deve ter cuidado especial com o detalhe da sua equipagem.

Ele deve saber que as viaturas leves se desembarcam melhor do que as carroças, fazendo volta mais fácil nos lugares estreitos. Mas por outro lado são mais sujeitas a virar e uma virada faz parar por muito tempo toda a equipagem. Assim, cabe-lhe considerar os lugares onde se vai servir de umas ou de outras segundo se julgue a propósito.

Deve saber, além disso, que há duas formas de levar o pão, ou em caixões que pesam e embaraçam, ou em viaturas, apenas teladas dos lados e cobertas com tela encerada, o que é mais cômodo.

Em seguida a estas seis advertências, não me resta senão dar dois conselhos àqueles que comandam nossos exércitos.

Primeiro é que se deve ser sempre o primeiro em campanha, sendo difícil a um exército, por poderoso que seja, progredir quando encontra outro no terreno, fazendo-lhe frente, sendo mais fácil ao que começa, assegurar-se um bom sucesso.

Segundo, tomar antes o partido de atacante, desde que isso se faça sem temeridade, do que o de defesa; porque além de que a audácia dá certa impressão de temor ao atacado, o natural leviano dos franceses é menos próprio para a defesa, e seu fogo lhes dá qualidades boas para que como atacantes cumpram bem o seu dever.

Diversas experiências me fazem falar assim, e não tenho dúvida de que os experimentados no comando falarão da mesma forma.


 

SEÇÃO V

Do poderio naval

 

O poder das armas exige não somente que o rei seja forte em terra mas também poderoso no mar.

Quando Antonio Perez foi recebido em França pelo falecido rei seu antecessor e que para lhe fazer passar sua miséria com doçura assegurou-lhe bom ordenado, esse estrangeiro, querendo reconhecer a obrigação que tinha para com esse grande rei, fez ver que se ele era desgraçado não era ingrato, e deu em três palavras três conselhos que não são de pouca consideração: ROMA, CONSEJO, PIELAGO! (Roma, conselho, mar).

O conselho deste velho espanhol consumido nos negócios do Estado não deve tanto ser considerado pela autoridade daquele que dá, senão pelo seu próprio peso.

Já falando do cuidado que se deve ter com prover-se de bom Conselho e de ser autorizado em Roma. Resta a representar o interesse que o rei tem de ser poderoso no mar.

O mar é, de todas as heranças aquela sobre a qual todos os soberanos pretendem ter mais parte, e entretanto é aquela sobre a qual os direitos de cada um são menos esclarecidos.

O império desse elemento nunca foi bem assegurado a ninguém. Foi sujeito a muitas mudanças segundo a inconstância de sua natureza, tão sujeita ao vento que se abandona àquele que mais o agrada e cujo poderio é tão desregrado que se mantém em estado de o possuir por violência, contra todos aqueles que poderiam disputá-lo.

Em uma palavra, os velhos títulos para esse domínio são a força e não a razão; é preciso ser poderoso para pretender essa herança.

Para agir com ordem e método nesse ponto, é preciso considerar o Oceano e o Mediterrâneo separadamente, e fazer distinção dos navios redondos, úteis nos dois mares e das galeras cujo uso não é bom senão no mar que a natureza fechou expressamente entre as terras para o expor menos às tempestades e dar-lhes mais abrigo.

Jamais um grande Estado deve ficar em estado de receber uma injúria sem poder tirar vingança.

A Inglaterra estando situada como está, se a França não fosse poderosa em navios, poderia empreender com prejuízo seu, o que bem lhe parecesse, sem temor de troco.

Ela poderia impedir as nossas pescarias, perturbar o nosso comércio, e fazer, guardando a embocadura de nossos grandes rios, pagar o direito que quisesse, aos comerciantes.

Poderia descer impunemente em nossas ilhas e mesmo em nossas costas.

Enfim a situação do país natal dessa orgulhosa nação, tirando-lhe todo o motivo de temor das maiores potências de terra, a antiga sede que tem contra este reino dar-lhe-ia, aparentemente, lugar a ousar tudo, enquanto nossa fraqueza nos tiraria todo meio de algo empreender sem prejuízo nosso.

A insolência dela, ao tempo do falecido rei e do Duque de Sully, obriga a que nos ponhamos em condições de não sofrer mais coisa semelhante.

Esse duque escolhido por Henrique IV, o grande, para uma embaixada extraordinária na Inglaterra, tendo embarcado em Calais num navio francês de grande mastro, assim que esteve no canal, um "ramberge", que estava para o receber, o obrigou como francês a baixar o pavilhão.

O duque acreditando que sua qualidade o garantiria de tal afronta, recusou com audácia; mas essa recusa sendo seguida por três tiros de canhão com balas que furaram o navio, e furaram também o coração dos franceses, a força os obrigou àquilo que a razão devia não aceitar, e qualquer queixa que fizesse não teria outra razão do capitão inglês, senão que como o dever o obrigava a honrar a sua qualidade de embaixador, o obrigava também a içar o pavilhão do soberano dos mares como senhor de toda a honra.

Se as palavras do rei Jaime foram mais civis, não tiveram, entretanto, outro efeito que não fosse obrigar o duque a tirar satisfação de sua prudência fingindo estar curado quando seu mal estava mais intenso e sua ferida incurável.

Foi preciso que o rei pai de V. M. usasse de dissimulação nessa ocasião; mas com essa resolução de para outra vez sustentar o direito da sua coroa pela força que o tempo lhe havia de tornar possível adquirir no mar.

Eu me figuro esse grande príncipe projetando nessa ocorrência, o que V. M. deve executar agora.

A razão quer que se tome um expediente que, sem interessar nenhuma das coroas, dá lugar à conservação da boa inteligência que se deve desejar entre todos os príncipes da cristandade.

Entre muitos meios que podem ser propostos, os que seguem parecem-me os mais praticáveis.

Poder-se-ia convencionar que os navios franceses encontrando os ingleses nas costas da Inglaterra, saudariam primeiro, baixando o pavilhão; e quando os navios ingleses encontrassem os franceses nas costas da França prestariam a mesma continência, sob condição de quando as armadas inglesa e francesa se encontrassem fora das costas dos dois reinos, cada um continuaria seu caminho sem a menor cerimônia, senão um reconhecimento recíproco por alguns patachos que se aproximariam a tiro de canhão.

Poder-se-ia também estabelecer que sem prestar atenção às costas de França ou Inglaterra, a frota mais numerosa em navios de guerra seria saudada por aquela que fosse menos, baixando, ou não, a bandeira.

Qualquer expediente que se encontre neste sentido, desde que seja igual de toda a parte, será justo se V. M. é forte no mar, o que será razoável para os ingleses, cegos nessa matéria e não conhecendo outra equidade senão a força.

A utilidade que os espanhóis, que se jactam de ser nossos inimigos atuais, tiram das Índias, obriga-os a serem fortes no mar.

A razão de uma boa política não nos permite que sejamos fracos; mas ela quer que estejamos em estado de nos opor aos desígnios que poderiam ter contra nós, perturbando suas empresas.

Se V. M. tem poder naval, a justa apreensão que a Espanha terá de ver atacar as suas forças, única fonte de sua subsistência, de que desçamos em suas costas que têm mais de 600 léguas de extensão, que se surpreenda alguma das suas praças, fracas e em grande numero, tal apreensão, digo eu, a obrigará a ser poderosa no mar e a manter guarnições tão fortes que a maior parte das rendas das Índias se consumirá em gastos para recebê-la toda, e se o que resta basta para conservar seus Estados, ao menos ter-se-á essa vantagem, que lhe não dá meios de perturbar os dos seus vizinhos como fez até agora. (Combate de Gatarri)

Se V. M. tivesse sido fraco como seus predecessores, não teria reduzido a cinzas, no meio das águas, todas as forças que a Espanha pode reunir em 1638 sobre o Oceano.

Essa soberba e altaneira nação não teria sido constrangida a sofrer o rebaixamento do seu orgulho aos olhos não somente de toda a Itália como também de toda a cristandade, vendo-se despojada, pela força, das ilhas de Santa Margarida e Santo Honorato, das quais se havia apossado de surpresa. Viu-se no mesmo instante e com os mesmos olhos a vergonha dessa nação insolente e a glória e a reputação da nossa.

Ela não teria enfim, nos mares de Gênova, dado o célebre combate de galeras, que dando terror aos seus inimigos aumentou o amor e a estima de seus aliados, imprimindo reverência aos indiferentes que o peso do respeito atraiu.

V. M. tendo aliados tão afastados deste reino que não se pode ter comunicação com eles senão por mar, se eles vêem a França destituída dos meios necessários a socorrê-los em certas ocasiões, fácil seria aos invejosos da alheia felicidade, pôr a mesma divisão entre os espíritos que já existe entre os Estados; mas se as forças marítimas são consideráveis, embora divididas quanto ao lugar, ficarão unidas de coração e de afeição a, este país.

Parece que a natureza quis oferecer o império do mar à França pela vantajosa situação das duas costas igualmente providas de excelentes portos nos dois mares, Oceano e Mediterrâneo.

A Bretanha tem os mais lindos que existem no Oceano; e a Provença que só tem cento e sessenta milhas de extensão, tem mais, maiores e mais seguros do que a Espanha e a Itália juntas.

A separação dos Estados que formam o corpo da monarquia espanhola torna a conservação tão difícil, que, para dar-lhes alguma ligação, o único meio que tem a Espanha é a manutenção de grande número de navios no Oceano, e de galeras no mar Mediterrâneo, que por seu trajeto contínuo reúnem de alguma forma os membros a seu chefe; trazem e levam as coisas necessárias à sua subsistência; com as ordens do que deve ser compreendido, os chefes para comandar, os soldados para executar; o dinheiro que é não somente o nervo da guerra como o lubrificante da paz; daí se tira que se se perturba a liberdade desse trajeto, esses Estados que por si sós não podem subsistir, não poderiam evitar a confusão, a fraqueza e todas as desolações com que Deus ameaça um reino dividido.

Ora; como a costa do poente deste reino separa a Espanha de todos os Estados que possui na Itália, parece que Deus, que pesa as coisas na balança, quis que a situação da França separasse os Estados da Espanha para os enfraquecer dividindo-os.

Se V. M. tem sempre nos portos quarenta bons navios bem aparelhados e equipados, prontos a sair nas ocasiões necessárias, terá suficientes para garantir-se de toda injúria, fazendo-se temer em todos os mares por aqueles que até agora desprezaram suas forças.

Como os navios redondos são necessários para esse fim no Oceano, as galeras, navios leves, que à força de remos fazem grandes viagens nas calmas, mais comuns no Mediterrâneo do que alhures, são igualmente no mar do Levante.

Com trinta galeras V. M. não equilibrará somente o poderio da Espanha, que pode pela assistência de seus aliados pôr cinqüenta em corpo; mas ela sobrepujará pela razão da união que multiplica o poder das forças que une.

As galeras de V. M. podendo ficar em corpo, seja em Marselha seja em Toulon, estarão sempre em condições de opor-se à junção das de Espanha, de tal forma separadas pela situação deste reino que não podem reunir-se sem passar à vista dos portos da Provença e mesmo sem aguar algumas vezes, por causa das tempestades que as surpreendem em meio do canal e que os navios leves não podem suportar sem risco, num trajeto em que são freqüentes.

O golfo de Lion é o trajeto mais perigoso que existe nos mares do Levante; a inconstância e a contrariedade dos ventos que aí reinam fazem difícil encontrar passagem segura, qualquer que seja a forma por que se tente.

Todo o tempo forçado aí é muito perigoso e se nossas costas não são favoráveis àqueles que as passam, raramente realizam o trajeto sem perigo.

A verdadeira razão do perigo dessa passagem vem da contrariedade dos ventos, causados por diversos aspectos das costas.

Quanto mais uma costa é montanhosa e alta mais ventos provoca quando o calor da terra é combatido pela frieza e umidade (sic) da água ou da neve, de que se cobre.

Daí vem que as costas da Provença que são dessa natureza, estando sempre, durante o inverno, abrumadas pela chuva ou pela neve, não estão nunca sem ventos que, vindos da terra, são sempre contrários àqueles que os querem abordar.

Ora; como os ventos são contrários à chegada dos navios, também não são eles suficientemente poderosos para os trazer até os lugares de onde saíram porque outros ventos comuns, de terra, os afastam; daí vem que pela contrariedade dos ventos de nossas costas e das de Espanha, os navios são jogados no golfo onde é comum tempo feio e nesse caso a sua perda é inevitável.

Para ir da Espanha à Itália, os navios e as galeras fazem sempre ponto de partida do cabo Quirs e do golfo de Rosa, e esperando de ordinário o poente e o “mistral” para chegar felizmente às costas de Gênova ou a Morgues, primeira escala que têm; mas embora partam com vento favorável, não chegam ao golfo sem mudança.

Se os ventos saltam ao Labêche ou My-jour e Labêche, é necessário que relaxem nas costas de Provença, ou se passam ao Siroco e Levante, é impossível às galeras e navios que se encontram perto de nossas costas, nem acabar sua viagem à Itália, nem ganhar a Espanha, e com mau tempo é milagre se não se perdem nos penhascos das nossas costas.

De outra parte os navios que vão da Itália para Espanha partem de ordinário de Morgues que é o último porto da Itália.

Para fazer boa viagem esperam o “maistral” e “tramontano” mas não atingem nunca a meio golfo sem que o tempo mude e sem perigo; porque um Siroco ou uma tempestade de My-jour torna a sua perda inevitável, se nossos portos não lhe são abertos.

Assim, se a França é forte em galeras e em galeões, eles não podem fazer nenhum trajeto seguro, sendo certo que não poderiam empreender o canal durante o inverno, sem risco de perda ou nas nossas costas ou nas da Barbária, se os ventos passam ao Norte.

E embora o grego e tramontano os joguem para Maiorca e Minorca, o “maistral” e tramontano, levam-nos antes à Córsega e à Sardenha, onde comumente a violência das tempestades os quebra e os perde, antes que ganhem o abrigo das ilhas que lhes são favoráveis.

E se para garantir-se desse perigo resolvem esperar os ventos favoráveis para arrasar nossas terras, de vinte trajetos que tentam, uma só vez passarão, passando à nossa vista.

Quando fossem servidos por um vento tão favorável que nada tivessem a temer do mar, o menor aviso que tivermos de sua passagem nos dará lugar a atravessar tanto mais seguramente quanto sempre poderemos jogar-nos ao mar quando melhor nos pareça, retirando-nos sem perigo quando ameaça o tempo por causa da vizinhança dos nossos portos que não ousam abordar.

Trinta galeras darão essa vantagem a V. M. e se a um tal corpo se agregar dez galeões, verdadeiras cidades do mar, temíveis para as galeras quando têm vento favorável em vista de seu corpo não ter proporção com a fraqueza de navios leves, não os temem estes nas maiores calmas por causa dos canhões tão bons quanto os dos corsários, e prontos sempre a lhes fazer muito mal, se demasiado se aproximam.

Quando o rei da Espanha aumentasse de metade as suas forças marítimas, o que não pode realizar sem enorme despesa, não estaria em condições de reparar o mal que nós lhe poderíamos fazer, por causa da união de nossas forças e da divisão das suas.

Nada há que esse corpo não possa empreender, mesmo ataque às armadas da Espanha, nos seus portos quando se reunirem, a experiência nos tendo mostrado, na retomada das ilhas de Santa Margarida e de Santo Honorato, que as fortalezas flutuantes sobrepujam as mais seguras do mar, quando delas a gente sabe servir-se com audácia.

Por esse meio V. M. conservará a liberdade dos príncipes italianos que foram até agora como escravos do rei da Espanha.

Ela dará o seu coração àqueles que quiserem sacudir o jugo dessa tirania que não suportam senão porque não podem livrar-se e fomentará a facção os que estimam os franceses.

O falecido rei vosso pai tendo encarregado o Sr. d’Alincourt de reprochar ao grão-duque Ferdinando porque depois da aliança com ele contraída, pelo casamento da rainha vossa mãe, não deixou de ligar-se novamente com a Espanha. O grão-duque depois de ter ouvido pacientemente o que lhe dizia respeito respondeu de forma, que deve ser considerada por V. M. e seus sucessores: “Se o rei tivesse quarenta galeras em Marselha, eu não teria feito o que fiz”.

A porta que dá Pinherol a V. M. na Itália sendo bem conservada se for aberta uma outra por mar, o tempo e a firmeza que se verá nos reais conselhos, dos quais se teme a mudança por causa da leviandade da nossa nação, transformarão os corações de muitos italianos, ou melhor dito, darão meio de fazer ver o que eles sempre foram.

A Itália é considerada como o coração do mundo, e, na verdade, é o que os espanhóis têm de melhor no seu império; o lugar onde mais temem ser atacados e perturbados, no qual é mais fácil levar sobre eles vantagens notáveis desde que se leve tudo como é preciso.

E por conseqüência, embora não se tivesse a intenção de fazer-lhes mal, ao menos é preciso estar em condições de dar-lhes um contragolpe mortal quando tentarem contra a França, de forma a tirar-lhes dos braços a força para intentar algo de maldoso novamente.

Essa força não manterá somente a Espanha pela rédea, mas fará que o grão senhor e seus súditos que não medem o poderio dos reis afastados senão pelo que têm no mar, sejam mais cuidadosos do que até agora foram, no manter tratados feitos com eles.

Alger, Tunis, toda a costa da Barbária, respeitará e temerá nossa potência; até agora tendo sido desprezada com infidelidade incrível.

Nesse caso, os bárbaros voluntariamente viverão em paz com os súditos de V. M. e se não forem inteligentes e provocarem luta, serão subjugados, fazendo a força o que a razão não pode.

Atualmente, embora pensemos não ter guerra com eles, temos todos os inconvenientes e não gozamos da paz nem das messes que nos deveriam causar, mas sendo fortes encontraremos calma e segurança na guerra vantajosa feita a gente cuja infidelidade natural é tão grande, que contra ela não há garantia senão a força.

Resta ver de quanto pode ser a despesa necessária a manter o número de navios do projeto acima, a qual por grande que seja, deve ser estimada como pequena em comparação com as vantagens que se receberão enquanto ela pode ser feita com tanta vantagem e cuidado que se consegue tê-la com dois milhões e quinhentas mil libras, segundo as contas insertas no fim deste livro o mostram.


 

SEÇÃO VI

Que trata do comércio como dependência do poder naval e especifica aquele que comodamente se pode realizar.

 

É dizer comum, mas verdadeiro, que assim como os Estados aumentam sua extensão pela guerra, enriquecem ordinariamente na paz, pelo comércio.

A opulência dos holandeses que não são senão um punhado de gente reduzida a um canto da terra onde não há senão água e planície, é exemplo e uma prova da utilidade do comércio, que não tem contestação.

Embora essa nação não tire do seu solo senão manteiga e queijo, fornece quase que a todas as nações da Europa a maior parte do que lhes é necessário.

A navegação tornou-a tão célebre e poderosa por toda a parte do mundo, que depois de se ter tornado senhora do comércio nas Índias Orientais com prejuízo dos portugueses que se haviam aí estabelecido de longa data, não dá pouco trabalho aos espanhóis nas Índias Ocidentais onde ocupa a maior parte do Brasil.

Como na Inglaterra o maior número dos que têm menos recursos se mantêm como pescarias ordinárias, os mais poderosos fazem o maior tráfego em todas as partes da terra pela manufatura de seus tecidos, com o chumbo, o estanho e o carvão de pedra que seu país produz.

Não há senão a China, em que a entrada é proibida, onde essa nação não tenha estabelecido transações comerciais.

A cidade de Gênova que não tem senão rochedos, faz tão bem valer o seu negócio que se pode dizer que é a mais rica cidade da Itália, e se o socorro da Espanha não tivesse enriquecido outras cidades, seria talvez a única rica, ao lado de Veneza.

A França, por ter abundância de tudo, negligenciou, até hoje, o comércio, embora possa realizá-lo comodamente como os seus vizinhos, sem privar-se da assistência que lhe não dá em certas ocasiões senão o que é seu. As pescarias no Oceano são o mais fácil e o mais útil comércio, que pode ser realizado neste reino. É tanto mais necessário quanto não há Estado no mundo mais populoso do que a França, e o número daqueles que se encontram desviados do caminho da salvação é muito pequeno em proporção ao dos católicos que vivem sob as leis da igreja romana, abstendo-se no terço do armo do uso das carnes, muito embora não se use aqui das dispensas praticadas na Espanha, para que a todo o tempo se coma carne, a título especioso.

O comércio nos é tanto mais fácil quanto temos grande número de marujos que até agora iam procurar emprego no estrangeiro por não encontrar no seu país, e nós só comemos bacalhau e arenques. Mas tendo com que empregar nossos marinheiros, em lugar de se verem obrigados a fortalecer os nossos inimigos enfraquecendo-nos, poderemos levar à Espanha e outros países estrangeiros o que nos trouxeram até agora por meio dos nossos que os servem.

A França é tão fértil em trigo, tão abundante em vinho e cheio de linho e cânhamo para tecido e cordas necessárias à navegação, que a Espanha, a Inglaterra e todos os outros Estados vizinhos teriam de recorrer a ela.

E desde que saibamos aproveitar das vantagens que a natureza nos proporcionou, tiraremos dinheiro daqueles que quiserem nossas mercadorias que lhes são necessárias, e nós não nos carregaremos de seus produtos que nos são pouco úteis.

Os tecidos da Espanha, da Inglaterra e da Holanda não são necessários senão para o luxo; nós podemos fazer iguais aos deles, comprando lãs da Espanha como eles fazem, poderemos adquiri-las, mesmo, com maior comodidade por meio de nossos cereais e de nossos panos se fizermos troca para obter duplo ganho.

Nossos reis tendo passado sem panos de Berry, podemos nós, agora, contentar-nos com tecidos de Sceau e de Meunier que agora se fazem em França, sem recorrer ao estrangeiro, abolindo-se dessa forma o uso, assim como os de Chalons e de Chartes desbancaram os de Milão.

Com efeito os panos de Sceau são tão bem recebidos no Levante, que depois dos de Veneza feitos de lã da Espanha, os turcos os preferem. E as cidades de Marselha e Lion tiveram sempre um tráfico muito grande com eles.

A França é suficientemente industrial para dispensar se quiser, as melhores manufaturas dos seus vizinhos. Em Tours se tece tão bem que os panos daí são mandados à Espanha, à Itália e a outros países. Os tafetás unidos que se fazem aí também têm grande saída por toda a França, não havendo necessidade de procurar alhures.

Os veludos vermelhos, violetas e couro são hoje melhores do que os de Gênova. É aqui também o único lugar onde se encontram sarjas de seda. O chamalote daqui é tão bom quanto o inglês; as telas douradas são aqui melhores e mais baratas do que na Itália.

Assim ser-nos-á muito fácil privar-nos deste comércio que não nos pode servir senão para fomentar a nossa preguiça ou nutrir o nosso luxo, a fim de ligar-nos solidamente ao que pode aumentar a nossa abundância, ocupando nossos marinheiros de tal sorte que nossos vizinhos não se prevaleçam do nosso trabalho à sua custa. Além desses acima especificados que são os melhores do Oceano, vários outros podem ser estabelecidos.

O das peles do Canadá é tanto mais útil quanto não há necessidade de dinheiro, sendo trocadas mercadorias que não dependem senão dos operários, com estojos, tesouras, facas, canivetes, agulhas, alfinetes, foices, malhos, espelhos, cordões de chapéu, e todas as outras espécies de artigos de palácio.

O da costa da Guiné, na África, onde os portugueses ocuparam um lugar chamado Castelo de Mina, que os holandeses, há dois ou três anos, lhes tomaram para a companhia das Índias Ocidentais, é de natureza semelhante, porque aí se trocam quinquilharias, bugigangas e maus tecidos por ouro em pó, com os negros.

Os comerciantes de Rouen outrora fizeram um comércio de tecidos e panos no reino de Fez e de Marrocos por meio do qual se conseguia grande quantidade de ouro.

Se os súditos do rei fossem fortes em navios poderiam realizar todo o tráfico do Norte, que os flamengos e holandeses chamaram a si, porque todo o Norte tendo absolutamente necessidade de vinho, vinagre, álcool, castanhas, ameixas e nozes; todas mercadorias que neste reino abundam e nele não se consomem; é fácil fazer um comércio tanto melhor quanto se pode trazer madeira, cobre, breu e pixe; coisas não somente úteis para nós, mas necessárias aos nossos vizinhos, que deles não poderiam alcançar sem perder o frete dos seus navios, de ida.

Não entro nos detalhes do comércio que se pode fazer com as Índias Orientais e a Pérsia, porque o humor dos franceses sendo tão pronto que quer o fim dos seus desejos imediatamente após tê-los concebido, as viagens que são de fôlego são pouco próprias para o seu natural.

Entretanto, como vem grande quantidade de seda e de tapetes da Pérsia, muitas curiosidade da China, e toda a sorte de especiarias de diversos lugares dessa parte do mundo, que nos são de grande utilidade, esse negócio não deve ser negligenciado.

Para fazer um bom estabelecimento, seria necessário enviar ao Oriente dois ou três navios comandados por pessoas de concidadão, prudentes e sábias, com patentes e poderes necessários para tratar com os príncipes e fazer aliança com os povos de todos os lados, como fizeram os portugueses, os ingleses e os flamengos.

Este intuito daria resultado tanto mais infalivelmente quanto aqueles que têm pé nessas nações são agora muito odiados, ou porque as tivessem enganado ou porque as sujeitaram pela força.

Quanto ao Ocidente, há pouco comércio a fazer. Drake, Tomás Cavendish, Sperberg, l’Ermite, le Maire e o falecido conde Maurício que enviou doze navios de quinhentas toneladas no intuito de fazer comércio ou por amizade ou pela força, não conseguiram realizar nenhum estabelecimento. Há pouco a esperar desse lado se por uma guerra não nos tornamos senhores dos lugares que o rei da Espanha agora ocupa.

As pequenas ilhas de São Cristophe e outras, situadas à frente das Índias, podem trazer algum tabaco, peles e outras coisas de pouca conseqüência.

Comércio do mar Mediterrâneo

Resta saber o que se pode fazer no Mediterrâneo. Memória dos diversos comércios que se fazem no Levante

(Napoli de Romania) Os franceses levam algumas mercadorias e prata; trazem sedas, marroquins, lãs, cera e queijos, parte disso ficando na Itália.

(Satalia) Os franceses levam dinheiro e trazem algodão, cera e marroquins de todas as espécies.

(Smirna) Os franceses levam muito mais mercadorias do que dinheiro, ficando parte em Guio, no arquipélago e Constantinopla. A mercadoria que se leva são papéis, bonés, seda de Paris, de Languedoc, Pau Brasil, Cochonilha, Especiarias, Cetins fabricados em Lion; trazem algumas vezes sedas da Pérsia, ruibarbo, algodão já fiado em lã, cera, goma e tapetes grosseiros. Perto de Smirna há um porto recentemente descoberto.

(Scala Nova) Algumas vezes nossos navios aí carregam trigo e legumes.

(Constantinopla) Os franceses levam para aí muita mercadoria, que é a mesma que se leva a Smirna, fora os estofos de ouro, de prata e de seda, dos quais há muita saída, e levam raramente dinheiro; trazem couros e lãs porque não há outra coisa; e freqüentemente por não se achar emprego ao dinheiro das vendas feitas, ele é mandado a Smirna ou então é remetido por letra de câmbio a Alep, onde há sempre grande quantidade de mercadorias a comprar.

(Ilha de Chipre) Aí há diversos portos; leva-se dinheiro, alguns tecidos e bonés e traz-se algodão fiado em lã, sedas fabricadas na dita ilha e algumas drogas.

(Alexandreta e porto de Alep) Leva-se da França muita mercadoria e dinheiro. As mercadorias são sempre as mesmas levadas a Smirna. Traz-se grande quantidade de seda e drogas, toda a sorte de algodão, marroquins do Levante vermelhos, amarelos e azuis, tecidos de algodão e algumas vezes mercadorias das Índias que se trazem pela Pérsia. Antes que os holandeses e ingleses fossem às Índias, todas as sedas, drogas e outras mercadorias da Pérsia vinham a Alep donde eram levadas a Marselha, que depois distribuía pela França, Inglaterra, Holanda e Alemanha. Agora os ditos ingleses e holandeses nos tiraram esse comércio e provém à França, não somente de mercadoria da Pérsia, mas ainda das terras do grão senhor, que fazem pela Pérsia para ir a Goa onde carregam. As mercadorias que se trazem do Levante são vendidas na Sicília, em Nápoles, Gênova, Livorno, Maiorca e toda a Espanha, Flandres e Alemanha.

(Seyde, Trípoli, Beirute e S. João d’Acre) Leva-se pouca mercadoria e muito dinheiro; volta-se com seda, algodão em fio, cinza própria para fazer sabão, drogas de Damasco. Algumas vezes carrega-se arroz e quando a colheita de trigo é boa, também se traz essa mercadoria.

(Alexandria, porto do Epiro, e o grande Cairo) Os franceses levam alguma mercadoria de França, como seda, papéis, Pau Brasil, Cochonilha; mas leva-se mais dinheiro do que mercadoria; traz-se natron, drogas de várias qualidades e a maior parte das mercadorias que se vendem na Itália ou na Espanha.

Outrora de Alexandria pelo mar Vermelho vinham todas as especiarias que se levam a Marselha, e agora que os ingleses e holandeses vão às Índias, é preciso que recebamos deles.

(Tunis) Leva-se vinho, mel, tártaro, panos, papéis e outras mercadores e raramente dinheiro; traz-se couro e cera.

(Alger e portos vizinhos) Levam-se as mesmas mercadorias de Tunis e traz-se couro e cera.

Confesso que estive por muito tempo enganado com o comércio que os provençais fazem no Levante.

Considerava, com muitos outros, que era prejudicial ao Estado, fundado na opinião comum; que esgotava o dinheiro do reino, por não trazer senão mercadorias não necessárias, mas somente de luxo.

Mas depois de ter exato conhecimento desse tráfico, condenado pela voz pública, mudei de opinião com tão sólidos fundamentos que quem os conhecer, crerá que o faço com razão.

É certo que não podemos dispensar a maior parte das mercadorias vindas do Levante, como sedas, algodão, cera, marroquinos, ruibarbo e várias outras drogas que nos são necessárias.

É certo que se não as vamos buscar, os estrangeiros nô-las trazem e tiram por esse meio o lucro que nós mesmos poderíamos ter.

É ainda certo que nós levamos muito menos dinheiro ao Levante do que mercadorias fabricadas em França: nosso cânhamo, nossos tecidos, nossa madeira para construir navios, mais procurados do que dinheiro.

Todos aqueles que sabem o que se passa no negócio do Levante, sabem certamente que o dinheiro que aí se leva vem não da França, mas da Espanha, donde nós o tiramos pelo tráfico das mesmas mercadorias que trazemos do Levante, o que é de notar.

Eles sabem que mais a cidade de Marselha faz negócio do Levante mais dinheiro tem.

Que as sedas e o algodão em fio, que são as principais mercadorias vindas do Levante, se manobram em França e se transportam depois ao estrangeiro, com lucro de cento por cento pelo preço de compra da manufatura. Que esse comércio assegura a vida a grande número de artistas e artífices.

Que ele nos conserva muitos marujos úteis na paz e necessários na guerra.

Enfim que os direitos de entrada e saída que se recebe desse comércio são grandes.

Portanto seria necessário ser cego para não conhecer que este tráfico não é somente vantajoso, mas completamente necessário.

Qualquer utilidade que possa trazer o comércio dos dois mares, jamais os franceses se jogarão a ele com ardor, se não se lhes mostra caminho tão fácil quanto útil.

Um dos melhores expedientes que se pode ter para animá-los para seu próprio bem é, se agrada a V. M. vender-lhes todos os anos, baratos, esses navios, sob condição de que se sirvam deles para o tráfico e não possam vendê-los para fora do reino.

Este meio remediando a sua impaciência, que não lhes permite esperar que um navio seja feito para que depois vá servir, será tanto mais conveniente, quanto se lhes dará meio de colher quase ao mesmo tempo que a semeadura se faz.

Além do ganho dos particulares, o Estado receberá grande vantagem de tal coisa, porque os comerciantes em seis anos estarão consideráveis pelo número de seus navios e em estado de assistir às necessidades eventuais do reino, como se pratica na Inglaterra onde o rei se serve, em caso de guerra, daqueles dos seus súditos sem os quais não seria tão poderoso quanto é, no mar.

De resto o número de navios que V. M. deseja manter não diminuirá porque as oficinas públicas que V. M. mandou restabelecer farão anualmente quantos queira.

Não há Estado tão próprio, na Europa, para construir navios, quanto este reino, abundante em cânhamo, telas, cordas e operários que nossos vizinhos arrecadam comumente, por falta de lhes darmos trabalho aqui.

Os rios Loire e Garone têm lugares tão cômodos para os estaleiros, que parece que a natureza os dedicou a esse objetivo, fazendo-os.

A barateza dos víveres para os operários e a comodidade de diversos rios que naqueles deságuam e levam o necessário, justificam esta proposição.

Se em seguida a este expediente V. M. acha bom dedicar ao tráfico alguma prerrogativa que dê qualidade ao comerciante, em lugar de tirá-los para diversos ofícios que não são bons senão para manter sua vadiação e envaidecer suas mulheres, V. M. restabelecerá o comércio a ponto que o público e o particular tirem grande vantagem.

Enfim se além dessas graças se tiver um cuidado particular limpando os mares deste reino, de corsários, o que pode ser feito facilmente, a França acrescentará em pouco tempo à sua abundância natural, tudo o que o comércio trás aos países mais estéreis.

Para assegurar o Oceano não é preciso mais do que guarda-costas de duzentas toneladas e seis pinaças bem armadas, desde que este número esteja sempre no mar.

E para limpar o mar do Levante será suficiente fazer partir todos os anos pelo mês de abril, uma esquadra de dez galeras que façam o caminho das ilhas Córsega e Sardenha e que costeiem a Barbária, até o estreito, voltando pelo mesmo caminho, para retirar-se somente quando a estação os constranger, em cujo caso cinco ou seis navios bem equipados tomarão seus lugares para fazer a caravana durante o inverno.


 

SEÇÃO VII

Que faz ver que o ouro e a prata são uma das principais e mais necessárias potências do Estado, porque adquire os meios de tornar poderoso este reino nesse sentido; faz ver qual é a sua renda atual e qual pode ser no futuro, descarregando o povo de três quartos do fardo que atualmente o acabrunha.

 

Sempre dissemos que as finanças são os nervos do Estado; e é verdade que é como o ponto de Arquimedes que, sendo estabelecido com segurança, dá meio de mover todo o mundo.

Um príncipe necessitado não poderia empreender nenhuma ação gloriosa e a necessidade engendrando o esforço, não poderia estar nesse estado sem se expor ao desprezo dos seus inimigos e dos invejosos da sua grandeza.

O ouro e a prata são os tiranos do mundo, e embora seu império seja por si mesmo injusto, é algumas vezes tão razoável que é preciso sofrer o seu domínio; e algumas vezes é tão desregrado que é impossível não se detestar o seu jugo insuportável.

E preciso que haja, como já fiz notar, proporção entre o que o príncipe tira dos seus súditos e o que eles lhe podem dar, não somente sem sua ruína mas sem notável desconforto.

Assim como não se deve exceder o alcance daqueles que dão, também não se deve exigir menos do que a necessidade do Estado requer.

Só aos pedantes e aos verdadeiros inimigos do Estado pertence dizer que um príncipe nada deve retirar dos seus súditos e que seus únicos tesouros devem estar nos corações daqueles que estão submetidos ao seu domínio.

Mas não é senão de bajuladores e das pestes do Estado e da corte, soprar aos ouvidos do príncipe que eles podem exigir o que bem lhes pareça e que nesse ponto sua vontade é a regra do seu poder.

Nada há tão fácil como encontrar razões plausíveis para favorecer uma taxação, mesmo injusta, e nada também mais fácil de que produzir aparentes, para condenar aquelas que são as mais necessárias.

E preciso ser inteiramente destituído de paixão para bem julgar e decidir o que é razoável em tal ocasião; e não há pouca dificuldade em encontrar com segurança o ponto de uma justa proporção.

As despesas absolutamente necessárias para a subsistência do Estado, sendo asseguradas, quanto menos se sobrecarregar o povo, melhor.

Para não ser obrigado a tirar muito, é preciso despender pouco, e não há melhor meio para fazer despesas moderadas, do que banir todas as profusões e condenar todos os meios que conduzem a tal fim.

A França seria muito rica e o povo viveria na abundância se não sofresse a dissipação nos dinheiros públicos, que os outros Estados despendem com regra.

Ela perde mais, a meu ver, do que os remos que pretendem igualá-la, sem despender o seu quanto ordinário.

Um embaixador de Veneza disse-me certa vez a propósito, algo que merece referência, sobre a opulência da França. Disse-me ele que para tornar a França completamente feliz não seria necessário outra coisa além de saber despender o que dissipava sem razão, e que a República sabia bem não empregar nenhum seitil sem necessidade e sem muita consideração.

Se se pudesse regular o apetite dos franceses, estimaria que o melhor meio de conduzir a bolsa do rei, seria recorrer a esse expediente, mas sendo impossível dar limites à cobiça dos espíritos desregrados, como são os nossos, o único meio de os conter, é de os tratar como os médicos fazem aos doentes de fome que eles constrangem à abstinência, retirando a possibilidade de comerem quaisquer víveres.

Para isso é preciso reformar as finanças, pela supressão dos principais meios pelos quais se pode tirar ilicitamente os dinheiros dos cofres do rei.

Entre todos não há nenhum tão perigoso como o das compras secretas, nas quais o abuso chegou a tal ponto que não remediá-lo e perder o Estado são uma e a mesma coisa.

Embora seja útil usá-lo em algumas ocasiões, e necessário em outras, os grandes inconvenientes e os abusos sobrepujam de tal forma sua utilidade que é absolutamente necessário aboli-lo.

Economizar-se-ão, por esse meio, milhões inteiros, e se dará remédio a mil profusões escondidas, possíveis de conhecer enquanto as vias secretas de despesa nos tesouros públicos estiverem em uso.

Sei bem que se dirá que há certas despesas estranhas, que por sua natureza devem ser secretas, e das quais o Estado pode tirar fruto, mas do qual se privará todas as vezes que aqueles em favor dos quais sejam feitas, pensarem não mais poderem tirar dinheiro.

Mas sob este pretexto dão-se tantas roubalheiras, que depois de bem pensar, mais vale fechar a porta a quaisquer utilidades que se possa ter, a deixar abertas a tantos abusos que podem ser cometidos com a ruína do Estado.

Entretanto, para não interromper os meios de fazer algumas despesas secretas com vantagem, pode-se deixar a liberdade para um milhão ouro, despesas à vista, mas desde que o gasto seja assinado pelo próprio rei e que aqueles que tiverem sido participantes dêem recibo.

Se se souber que os pagamentos à vista são necessários para fazer passar as remessas que estão em uso, digo que é uma das razões pelas quais é preciso abolir.

Se se viveu nos séculos passados sem negócios assim, viver-se-á bem ainda sem eles. Se banindo o uso, se banisse também o dos partidos em tempos de paz, se um bem causa um mal, queremos um bem que possa causar outro.

Perguntar-se-á talvez porque, conhecendo o uso dos pagamentos à vista, mal feitos, não dei fim a eles no meu tempo.

O grande Henrique, conhecendo o mal estabelecido em vida do seu predecessor, não o pode extirpar.

As perturbações e as emoções intestinas, as guerras estrangeiras, e por conseqüências as grandes despesas e os partidos extraordinários tomados, não permitiram pensar na execução de tão bom conselho.

Arruinar o partido huguenote, baixar o orgulho dos grandes, manter uma guerra contra inimigos poderosos para assegurar enfim, por uma boa paz, o repouso para o futuro, são meios de que nos servimos para chegar aos fins que nos propomos, pois que assim se eliminam as causas da tolerância de tais abusos.

O assunto dos pagamentos tendo-me dado lugar a falar dos partidos extraordinários, não posso deixar de dizer que os grandes aumentos de receita que se pode realizar por essa forma, em lugar de serem vantajosos ao Estado, são prejudiciais e o empobrecem em lugar de o enriquecer.

Talvez este princípio seja tido como um paradoxo, mas é impossível examiná-lo cuidadosamente sem conhecer a justiça e a verdade dele.

O aumento de receita do rei não pode provir senão do imposto, carregado sobre todos os produtos, e portanto é claro que se se acresce por esse meio a receita, também se aumenta a despesa, pois que é necessário comprar mais caro o que antes se tinha mais barato.

Se a carne encarece, se o preço dos estofos e de tudo aumenta, o soldado terá mais dificuldade em alimentar e manter-se, e será necessário pagar maior salário; e o salário dos operários será mais alto do que antes, o que acarreta aumento da despesa que se aproxima do da receita e causará grande perda aos particulares por ganho medíocre da parte do príncipe.

Por aí o pobre fidalgo, cujo bem consiste em terras, não aumentará a sua renda com tais impostos; o produto da terra ficando quase sempre ao mesmo preço, principalmente no que lhe diz respeito, e se o correr dos tempos o encarece, o excesso do preço tornará menor a saída, o que fará que no fim do ano a pobre nobreza não encontre aumento na sua receita, mas na sua despesa, enquanto os novos subsídios terão encarecido todas as coisas necessárias à manutenção da sua família, que poderá fazer subsistir sem sair de casa, e mal, mas não poderá mais enviar os seus filhos ao exército para servir ao seu rei e ao seu país, segundo a obrigação do seu nascimento.

É verdade, e certo, que a saída do que é do comércio entre súditos diminui à medida que se aumentam os impostos e poderá acontecer que tais aumentos diminuam os direitos do reino em lugar de os aumentar.

Se se tratar do que neste reino se consome, é certo que quando as mercadorias estão a preço razoável, compra-se mais e mais se despende; ao passo que se o preço é excessivo há retração mesmo para as coisas mais necessárias.

Se por outro lado trata-se de produto que tem saída do reino, é claro que os estrangeiros, atraídos até agora pelo baixo preço, tratarão de prover-se alhures se lhes dá vantagem, o que deixará a França cheia dos seus próprios produtos, mas desprovida de dinheiro; ao passo que se os impostos são moderados, a grande quantidade de frutos que serão comprados pelo estrangeiro compensará a perda que se podia crer causada pela moderação dos subsídios.

Há mais; o aumento dos impostos é capaz de reduzir grande número de súditos à vadiação, sendo certo que a maior parte do povo e dos artistas empregados nas manufaturas, preferirão ficar parados, braços cruzados, do que consumir-se num trabalho ingrato a saída dos frutos da terra e a mão de obra.. Isso os impede também, pelo mesmo meio, de receber remuneração ao seu trabalho.

Para tornar ao fio do meu discurso, depois de ter condenado o abuso dos pagamentos e feito ver que o aumento é algumas vezes não somente inútil, mas prejudicial; digo que deve haver aí uma proporção geométrica entre os subsídios e as necessidades do Estado, isto é, não se deve impor senão o que é de todo necessário para a subsistência do reino na sua grandeza e na sua glória.

Estas últimas palavras significam muito, pois que não somente fazem ver que se pode taxar sobre o povo o que se requer para a conservação do reino, em qualquer Estado que seja, mas também se pode ainda tirar o que lhe pode ser necessário para o manter com brilho e reputação.

Entretanto é preciso tomar cuidado em não estender estas últimas condições até tal ponto, que somente a vontade do príncipe seja sob esse pretexto, a regra de tais taxações, porque só a razão é que deve ser; e se o príncipe ultrapassa os limites, tirando mais do que deve dos seus súditos, embora eles lhe devam obediência nesse caso, será responsável diante de Deus que lhe pedirá contas exatas.

De resto, não há razão política que possa sofrer que se alimentem os encargos do povo sem que se tire nenhuma utilidade; é atrair a maldição pública, que traz consigo grandes inconvenientes, sendo certo que o príncipe que tira dos seus súditos mais do que deve, não faz outra coisa senão esgotar o seu amor e sua fidelidade, mais necessários à subsistência do Estado e à conservação de sua pessoa, do que o ouro e a prata que pode acumular nos seus cofres.

Sei que num grande Estado é preciso que exista sempre dinheiro em reserva para as ocasiões imprevistas; mas essa economia deve ser proporcional à riqueza do Estado e à quantidade de ouro e prata amoedada que corre no reino; e se ela não fosse feita nessa base, a riqueza do príncipe seria sua pobreza porque seus súditos não teriam mais fundos, para pagar os direitos que legitimamente são devidos ao seu soberano

Como é preciso ser cuidadoso no acumular dinheiro para atender às necessidades do Estado, e religioso no conservar enquanto não se apresentam ocasiões de gastar, é preciso ser liberal a empregar quando o bem público o requeira, e a tempo e a propósito, porque de outra forma há prejuízos que custam caro ao Estado e fazem perder tempo que não se recupera mais.

Príncipes houve que, para conservarem o seu dinheiro, perderam o dinheiro e os seus Estados ao mesmo tempo, e é coisa certa que aqueles que gastam de má vontade, gastam em geral mais do que os outros, porque o fazem demasiado tarde. Não é necessário pouco critério para conhecer as horas e os momentos mais importantes; e um capaz de acumular, pode não ser para gastar causando enormes males.

Ora; porque as máximas gerais são sempre inúteis, se não se sabe aplicá-las aos assuntos particulares, resta ver: qual pode ser a renda deste reino; qual a sua despesa. Que reserva de fundos deve haver nos seus cofres e até que ponto o povo pode e deve ser aliviado.

A renda deste reino pode ser considerada de duas formas. Ou como se usa em tempo de paz, sem mudar de antemão os dinheiros que se tiram presentemente da receita e da fazenda geral, nem fazer outro aumento senão o justo pela redução ao dezesseis; das velhas rendas que se quiser conservar, e dos depósitos de certos oficiais que sofrerão melhor a diminuição do que a supressão dos seus cargos com reembolso.

Ou, como pode ser, fazendo certas trocas, estimadas tão razoáveis e úteis por aqueles aos quais vi manejarem as finanças, que por seu julgamento não se tem a temer outra oposição senão a da novidade.

No primeiro, a economia pode fazer conta de receber todos os anos 35 milhões segundo o Estado. Da talha 17.350.000 libras. De gabeles 5.250.000 libras. Das ajudas 1.400.000 libras. Da redução das rendas ao dezesseis, um milhão. Da redução dos tesoureiros de França aos dois terços ao que recebem nos seus cargos, e que sofrerão de boa vontade, desde que fiquem livres de novas taxas, 550.000 libras. Das partes casuais 2.000.000. Da fazenda de Bordeaux 800.000. De três libras por barril de vinho que entra em Paris 700.000. Dos trinta soldos antigos e dos novos dez soldos de vinho, 503.000 libras. Da fazenda dos 45 soldos em lugar do pedágio 503.000 libras. Das 9 libras 8 soldos por tonel da Picardia, 154.000 libras. Da fazenda de Brouage 250.000 libras. Do tratado foreiro de Languedoc, especiarias e drogarias de Marselha, e dois por cento de Arles 380.000 libras. Do terço sobretaxa de Lion 60.000 libras. Das cinco grandes fazendas 2.400.000 libras. Dos novos impostos da Normandia 240.000. Do de Loire 225.000. Da fazenda do ferro 80.000. Das vendas de madeira ordinária 550.000. Dos domínios 550.000 libras.

No segundo, descarregando inteiramente o povo de 17 milhões de libras que entram agora nos cofres do rei, da talha, a receita pode subir a 50 milhões, como o justifico claramente: do imposto sobre o sal ou sobre as salinas em todas as províncias do reino, pode resultar, feitos todos os gastos, 20 milhões. Do solo para livrar as mercadorias e produtos do reino, 12 milhões. Das ajudas 1.400.000 libras. Da redução das rendas da prefeitura 6 milhões; da redução dos tesoureiros de França 550.000 libras. Das partes casuais dois milhões. Da fazenda de Bordeaux 1.800.000 libras. Das três libras do vinho entrado em Paris, novo imposto, 700.000 libras. Dos trinta soldos antigos da entrada para vinho em Paris, 580.000 libras. Da fazenda aos 45 soldos em lugar do pedágio e "octroi", 530.000 libras. Das 9 libras 18 soldos por tonel de Picardia, 174.000 libras. Da fazenda de Brouage 254.000 libras. Especiarias e drogarias de Marselha e dois por cento de Arles 380.000 libras. Da sobretaxa de Lion 60.000 libras. Das 5 grandes fazendas 2.400.000 libras. Dos novos impostos da Normandia, 250.000 libras. Das de Loire 220.000 libras. Da fazenda do ferro 80.000; da venda das madeiras 550.000; dos domínios 550.000, donde a soma total de 50 milhões quatrocentos e oitenta e três mil libras.

Sei bem que tais instruções bem compreendidas serão julgadas justas e razoáveis por todos aqueles que tiverem experiência e capacidade na conduta dos Estados.

Entre os diversos superintendentes de finanças que foram do meu tempo, vi mais entendidos no fisco que igualavam o imposto do sai, sobre as salinas, às Índias do rei da Espanha, e que conservavam este segredo com o verdadeiro fundamento para aliviar o povo, para a reforma e a opulência do Estado.

E com efeito, por pouco senso que tenham os mais grosseiros, serão constrangidos a reconhecer que não se poderia estimar a descarga e o contentamento que teria o povo, se lhe fosse permitido usar o sal como o trigo, cada um tomando o quanto quisesse e pudesse consumir.

É certo que a supressão que se faria de grande número de funcionários estabelecidos para o imposto do sal, e a liberação dos chicanistas e do procedimento que têm pelo dever de seus cargos, e também por malícia, para constranger os povos a comprar sal ao qual se impõe, causaria um alívio indizível.

E certo além disso, que se poderia com justiça recompensar as províncias que até agora gozaram da isenção do sal, por uma tal descarga, de talha, que, se para o futuro eles comprassem mais caro do que antes a diminuição da talha seria equivalente ao aumento do preço do sal ao qual estariam sujeitos, embora o comprassem livremente.

E certo ainda que, embora se possa dizer que a diminuição da talha não toca o povo e que o aumento do preço do sal que até agora se vendeu nas províncias isento de imposto, interessaria os eclesiásticos, a nobreza e os isentos. Todos receberiam o efeito e a diminuição das talhas, enquanto a renda das talhas não existindo mais, a renda das heranças aumentaria a proporção que os fazendeiros que as fazem valer seriam delas descarregados e dos impostos que existem sobre heranças e sobre a fazenda.

É certo enfim, que embora as dificuldades de tal organização sejam grandes, podemos dominá-las.

Se depois de ter considerado o estabelecimento do sal, examina-se o do solo por libra, achar-se-á tanto mais justo quanto existem em diversos Estados e duas vezes ficou resolvido em corpo de Estados sob o grande rei Francisco e na Assembléia dos notáveis de Rouen sob o grande Henrique, de imortal memória.

Entretanto, porque as desconfianças são tão naturais, os povos e as comunidades, que estabelecem de ordinário sua principal segurança na desconfiança que os leva sempre a temer que o que lhes é mais útil seja desvantajoso, e que as grandes mudanças são quase sempre sujeitas a perturbações muito perigosas, em lugar de aconselhar tal ordem de coisas, penso ladear, com firmeza, tais novidades não devendo ser empreendidas sem que sejam absolutamente necessárias.

Ora, a França não tem necessidade disso, e eu estimo mais fácil deixar o povo à vontade e dar ao Estado abundância sem recorrer a tais expedientes, do que os praticando, visto que, mesmo que não haja dificuldade que não seja dominada, há maiores se recorremos a tais expedientes.

Para verificar essa proposição, não é preciso mais do que examinar a despesa com que a gente se pode contentar em tempo de paz, e ver que proveito se tira da economia que o tempo permite fazer.

A segurança e o tamanho deste reino não podem sofrer as despesas da guerra, menores do que o projeto acima, isto é, quase doze milhões.

A despesa das guarnições ordinárias que vai todos os anos a três milhões, poderia ser suprimida, tanto porque a maior parte dos soldados que é mantida com o Estado entra em guarnição nas praças, quanto porque a maior parte dos ditos três milhões não sai da bolsa do rei senão para entrar nas dos governadores particulares, que de ordinário não pagam senão dez homens quando deviam pagar cem.

Mas sendo difícil não haver praças privilegiadas e de tal importância que não se possa recusar aos respetivos governos guarnições particulares, com que possam tanto melhor responder quanto mais a seu gosto escolhem. É preciso a meu ver cortar dois terços dessa despesa para reduzi-la a um milhão.

A despesa do mar do Poente e do Levante não poderia ser menor do que dois milhões e quinhentas mil libras, como parece por atos particulares aí realizados.

A despesa da artilharia irá a seiscentas mil libras. A das casas do rei, da rainha, do senhor príncipe, a três milhões e quinhentas mil libras.

As pensões dos suíços, do pagamento dos quais não nos podemos com honra, isentar, são de quatrocentas mil libras.

As construções custarão trezentas mil libras.

Os embaixadores duzentas e cinquenta mil libras.

As fortificações seiscentas mil libras.

Poder-se-iam cortar inteiramente as pensões todas, que custam ao rei quatro milhões; mas tanto quanto é impossível passar de uma extremidade a outra sem meio, e que não se está na França, acostumado a resistir às imputações, quando são as mais injustas, creio que conviria reduzi-las à metade. O que é tanto mais necessário quanto vantajoso ao público, que a variação da corte não acha recompensas e que elas sejam todas ligadas aos perigos da guerra, porém as pensões e apontamentos não serão empregados de futuro senão por dois milhões.

Os ordinários do rei 50.000 libras.

As patentes 400.000 libras.

As partes inopinadas e viagens, dois milhões.

Os não valores 150.000 libras.

O condado do rei 300.000 libras.

Todas essas despesas atingem a 25 milhões que sendo tirados de 35 milhões, a quanto monta a receita, restarão 10, os quais desde o primeiro ano serão empregados na diminuição das talhas.

O verdadeiro meio de enriquecer o Estado é aliviar o povo e descarregar uma e outra das suas cargas, pois diminuindo as do Estado é que se pode diminuir as talhas e não de outra forma; e entretanto é o principal fim que nos devemos propor no regulamento deste reino.

Para bem tomar estas medidas num negócio tão importante, é preciso saber que embora todos os levantamentos que se fazem neste reino atinjam a quase oitenta milhões, há mais de 45 em carga sobre os quais se pode agir tão bem que em lugar de serem como hoje se diz, a ruína do rei, deles virá o alívio e a sua opulência.

Muitos acreditarão sem dúvida que seria para desejar que o Estado fosse descarregado de todo este fardo, mas porque é impossível fazer subsistir um grande corpo sem diversas despesas absolutamente necessárias à sua manutenção, como o peso conjunto de todas essas cargas não pode fazer desejada com razão a supressão completa, pode-se propor três meios para a diminuição das ditas cargas.

O primeiro é a amputação do excessivo gozo que os particulares têm com os dinheiros do rei, sob fundamento de que desembolsaram para adquirir as rendas, os ofícios e os direitos de que gozam.

Sei que não seria difícil tirar de alguns particulares rendas e direitos que recebem indevidamente, e com essa volta haveria um lucro grande, a cobrir o próprio gasto inicial com o ofício comprado.

Mas quando a justiça deste expediente não pudesse ser contestada, a razão não permitiria o expediente porque a prática tiraria todos os meios, para o futuro, de ter dinheiro em caso de necessidade do Estado, de qualquer forma que fosse.

E importante notar a propósito, que tal coisa pode bem não ser contra a razão de uma boa política e que é preciso evitar recorrer a expedientes que embora não violando a razão, não deixarão de violar a fé pública.

Se alguém diz que os Interesses Públicos devem ser preferidos aos particulares, confirmando a sua proposição, peço que considere que na discussão deste ponto as diferentes naturezas de interesses, não entram em conta, mas que os públicos são contrapesados por outros da mesma natureza e assim é que o futuro tem muito maior extensão que o presente que passa num instante. Os interesses que dizem respeito ao futuro devem, com razão, ser mais considerados do que aqueles do presente, contra o costume dos nossos homens sensuais que preferem o que vêem mais perto, porque a vista de sua razão não se estende para além dos seus sentidos.

Se se guarda nesse ponto a fé pública, como considero necessário, o Estado será mais aliviado do que seria mesmo que se suprimisse uma parte dos cargos sem novas finanças, porque ficará senhor das bolsas dos particulares em todas as ocasiões e não deixará de aumentar consideravelmente a sua renda.

O segundo meio para diminuir as cargas do reino consiste no reembolso com respeito aos fundos atualmente desembolsados pelos particulares; mas a verificação seria difícil, visto que, para facilitar a alienação dos bens do Estado, às vezes se deu a quatro o que por contrato devia ser a seis.

Este meio, justo em si mesmo, não pode ser praticado sem dar pretexto a muitas queixas, embora mal fundadas.

O terceiro meio para a diminuição dos encargos do Estado consiste em reembolsar aqueles que não forem necessários, ao mesmo preço que alienam entre particulares, reembolsando neste preço os proprietários dos ofícios das rendas e dos direitos que se quiser suprimir, sem que tenham nenhum prejuízo e o rei não se prevalecerá da vantagem comum que há para particulares que se podem liberar da carga de suas dívidas, desde que têm meio de as pagar ao mesmo preço por que se vendem ordinariamente.

Este meio que é único que pode e deve ser praticado, pode produzir seu efeito de diversas formas, ou em muitos anos, pelo uso do cargo, ou em um só, pagando uma quantia grande que seria à vista pelo suplemento de um fundo extraordinário.

A importância natural à nossa nação não dando lugar a esperar que possamos perseverar quinze e vinte anos numa mesma resolução, a primeira forma requerendo tanto tempo não é aceitável.

O grande fundo que seria necessário para reembolsar ao mesmo tempo cargos imensos como são os do Estado, faz que a proposta dessa segunda forma seja tão ridícula quanto impossível, de forma que a terceira fica a única praticável.

Para servir-se dela com tanta justiça que ninguém se queixe, é preciso considerar os cargos que se quiser suprimir, de três modos diferentes, segundo os diversos meios de compra.

As primeiras rendas baseadas na talha, que se vendem a cinco, não devem ser consideradas nem reembolsadas senão porque seu gozo faz o reembolso inteiro em sete anos e meio.

As outras rendas constituídas sobre a talha, desde a morte do último rei, pagam-se ou nas eleições ou nas receitas gerais, devendo ser reembolsadas a seis porque custam, mas assim o reembolso se faria em oito anos e meio.

Os ofícios das eleições com penhor, taxação dos ofícios e outros direitos que lhes são atribuídos, devem ser reembolsados a oito que é o preço comum, de tais cargos.

A razão obriga a tomar pé para o reembolso dos cargos constituídos por ajuda, gabeles, grandes fazendas, foro do Languedoc e de Provença, alfândega de Lion, comboio de Bordeaux, costume de Bayonne, fazenda de Brouage e tais reembolsos não podem ser feitos para gozo, senão em onze anos.

Sei perfeitamente que todos os dias se vendem rendas dessa natureza a preço menor que a oito, mas proponho o reembolso a tanto para satisfação dos particulares, estimando que num negócio de tal importância deve haver lesão e que vale mais que o rei a suporte do que eles.

O pé de todos os reembolsos que podem ser feitos estando justamente estabelecido, é preciso considerar que há certos cargos tão necessários neste reino e comprometidos a tão alto preço que não são postos entre aqueles no reembolso dos quais se deve pensar pela maneira como agora proponho.

Tais são os penhores dos parlamentos e outras cortes soberanas, dos presidiários, sedes reais, secretários do rei, tesoureiros de França e recebedores gerais.

Não é que eu estime que não se deve fazer nenhuma supressão neste gênero de ofícios. Estou bem longe de pensar assim; mas para proceder com ordem à diminuição dos cargos do reino, a razão quer que comece pelo reembolso dos que são a melhor preço e incômodos ao público.

Nesta consideração prefiro a supressão das rendas estabelecidas sobre as talhas e as de muitos cargos de eleição aos outros.

As das rendas desta natureza, por causa do baixo preço e a dos eleitos, porque estes oficiais são a verdadeira fonte da miséria do povo, tanto por causa do seu excessivo número, mais de 4 milhões de isentos, como por causa do seu malbarato comum. Apenas um ou outro não descarrega sua paróquia, muitos tiram das que lhes são indiferentes e acabam tão abandonadas que não temem carregar-se de crimes, aumentando em proveito próprio as imposições a cargo do público.

Essa mesma consideração é a única que me impede agora de falar da supressão de muitos ofícios de judicatura cuja multidão é inútil, seu preço sendo tão extraordinário quanto mínimo o seu penhor. Seria um mau negócio tocar nisso na situação presente. Quando se quiser diminuir o número, o meio de se chegar a esse fim será regular a “paulette”. Os ofícios estando reduzidos a preço moderado, o rei poderá quando venham a vagar, reembolsar os proprietários e os suprimir ao mesmo tempo.

Não compreendo ainda no número das supressões os colégios dos secretários do rei, os escritórios dos tesoureiros de França e os recebedores gerais, não por serem recentes seus emolumentos, que são bons, mas por causa de suas finanças que não são poucas.

Não ponho aí também as velhas rendas que foram criadas ao tempo dos predecessores de V. M. e que se pagam no escritório da cidade de Paris, tanto porque a atual finança despendida pelos adquirentes é maior do que a de todos os outros, quanto porque é bom que os interesses dos particulares sejam de alguma forma misturados com os do seu soberano, mesmo porque enfim eles passaram a diversas religiões, hospitais e comunidades, à subsistência dos quais são necessários; e tendo partilhado nas famílias, parece que elas fizeram raiz aí não se podendo arrancar sem que se perturbe todo o estabelecido.

Entretanto, para não esquecer nada que se possa fazer razoavelmente com vantagem para o Estado, devo notar duas coisas neste lugar.

A primeira é que os escritórios dos tesoureiros de França subsistindo, pode-se aproveitar de um terço de seu penhor, sendo certo que serão bem tratados na reforma geral do reino, se assegurando-lhes a não imposição de novas taxas, reduzem-se os seus penhores a dois terços daqueles que tiveram antes e por sua primeira criação.

A segunda é que, não suprimindo as rendas estabelecidas, na prefeitura, ao tempo do falecido rei, todas estabelecidas a doze, o que corresponde a tanta mais justiça quanto os particulares não se constituem senão a título dezoito, proprietários das ditas rendas constituídas sobre a cidade, prevalecendo-se pela graça do rei dos dois fundos no gozo daquelas que dessa forma lhes correspondem.

E como encontrarão nisso sua vantagem, o rei encontrará a sua, pois que as rendas de que o Estado se carrega serão melhores do que as dos particulares, supondo-se exato pagamento, sem diminuição como é de obrigação e como deve ser para o interesse público.

Para satisfazer, tanto ao pagamento dessas rendas como aos penhores de vários oficiais, ou absolutamente necessários ou ao menos não suprimíveis nos tempos presentes, penso que de 45 milhões de que este reino está agora sobrecarregado, é preciso contentar-se com a supressão de trinta, deixando o resto para a aquisição dos cargos que ficarem.

Dos trinta milhões a suprimir há perto de sete cujo reembolso não devendo ser feito senão a tipo cinco, a supressão se fará em sete anos e meio pelo usufruto apenas.

Dos outros vinte e quatro encontrar-se-ão outros tantos que não devendo ser reembolsados senão a seis, que é o preço corrente de tais cargos, poderão ser suprimidos em oito anos e meio pelo usufruto.

Mas porque assim como representei acima, os projetos de fôlego não são os mais seguros neste reino, e sob essa consideração o expediente seria reduzir todas as supressões que se quiser fazer num número de anos que não excede o alcance de nossa paciência. Para fazer que todos os reembolsos empreendidos cumpram-se no mesmo tempo que as rendas que se pagam a cinco, serão suprimidas pelo uso e gozo, é preciso fazer um fundo extraordinário do valor de um sexto do preço corrente das ditas rendas, o que representa sete milhões justamente, uma vez pagos, para a supressão de outro tanto de renda.

Para terminar a supressão dos 30 milhões propostos, resta ainda reembolsar os que são a oito, preço corrente de compra.

Ora, porque o reembolso desses 16 milhões não poderia ser feito senão em doze anos pelo uso, e sendo a propósito encurtar este tempo, para reduzir essa supressão de sete anos como a dos 14 milhões precedentes, é preciso de oito partes suprir três por fundos extraordinários que atingem a 48 milhões.

Embora o montante desta soma seja capaz de espantar, aqueles que sabem a facilidade dos negócios desta natureza neste reino não duvidarão que ela não seja tanto mais fácil de achar quanto o seu fornecimento será feito em sete anos.

E a paz apenas seja estabelecida o uso dos expedientes comuns, neste tempo, para encontrar dinheiro sendo abolidos, aqueles que se tiverem alimentado em tais negócios não podendo perder num instante seus primeiros hábitos, converterão voluntariamente toda a sua indústria em desfazer o que fizeram, pelos mesmos meios de que se serviram para o estabelecerem antes; quer dizer, a extinguir e suprimir em virtude dos partidos que formarem para este efeito, as rendas, os direitos, da criação dos quais terão sido autores em virtude de outros partidos.

Assim o reino pode ser aliviado em sete anos, de 30 milhões, dos cargos ordinários que tem agora.

O povo descarregado efetivamente dos 22 milhões de talhas, que é agora a metade do que leva, a renda do reino se encontrará de 57 milhões assim como a demonstração junta o justifica.

Receita
Das talhas 22 milhões.
Das ajudas 4 milhões.
Das gabeles todas 19 milhões.
Das fazendas todas 12 milhões.
Total 57 milhões.

Dos quais, tendo tirado 27 milhões, que entrarão todos os anos na economia, essa soma deve ser estimada tão notável que não há nenhum Estado na cristandade que tire metade, depois de satisfeitos os seus encargos.

Se em seguida a essas supressões, que sujeitarão muita gente ao pagamento das talhas, sem que possa queixar-se, suprimir-se ainda, todos os oficiais que se exercem por simples matrícula ou por simples comissão; se se regula o número dos notários, não somente reais, mas das jurisdições ordinárias, conseguir-se-á um alívio indizível ao povo, tanto porque será livrado por esse meio de tantas sanguessugas quantas pessoas forem retiradas, quanto porque aí há mais de cem mil oficiais a retirar desta forma, e aqueles que se acharem destituídos do seu emprego ordinário serão constrangidos a tomar o da guerra, do comércio ou da lavoura.

Se se reduzem em seguida todas as isenções à nobreza e aos comensais da casa do rei, é seguro que as cidades e as comunidades isentas, as cortes soberanas, os oficiais dos tesoureiros de França, as eleições, os depósitos de sal, os ofícios de águas e florestas do domínio e dos décimos, os intendentes e recebedores de paróquias, fazendo mais de 100.000 isentos, descarregarão os povos de mais de metade de suas talhas, sendo ainda certo que os mais ricos súditos, sujeitos às mais altas taxas, são aqueles que se isentam a custa da sua bolsa.

Sei bem que se dirá que é fácil fazer tais projetos, semelhantes aos da República de Platão, que, bela nas suas idéias é uma quimera em realidade.

Mas eu ouso assegurar que este desígnio é não somente razoável, mas tão fácil de executar, que se Deus faz a V. M. a graça de obter a paz e de conservá-la para este reino com seus servidores, dos quais eu me estimo como dos menores, em lugar de deixar esta opinião por testamento, espero poder levá-la à execução.


 

SEÇÃO VIII

Que mostra em poucas palavras, que o último ponto de poderio dos príncipes deve consistir na posse do coração dos seus súditos.

 

As finanças sendo conduzidas segundo acima se prescreve, o povo se achará completamente aliviado e o rei será poderoso porque possuirá o coração de seus súditos, que, considerando o cuidado que tem com os seus bens, serão levados a amá-lo pelo seu próprio interesse.

Os antigos reis (Filipes de Valois) fizeram uma situação tão especial no coração de seus súditos que alguns estimavam que mais valia ser rei dos franceses do que da França.

Quanto a isto esta nação foi outrora reconhecida tão apaixonada pelos seus príncipes, que alguns autores há (Ammian Marcellin) que a louvam por estar sempre pronta a derramar seu sangue e defender seus bens pelo serviço e a glória do Estado.

Sob os reis da primeira, segunda e terceira dinastias, até Filipe o Belo, o tesouro dos corações foi o único bem público que se conservou no reino. (Esta política era fundada, no dizer de um grande Príncipe, que por ser privado da verdadeira luz que consiste na Fé não deixava de ver tão claro pela da razão, que pensava não poder nunca deixar de ter dinheiro em suas necessidades porque amava o seu povo e o povo tinha amor por ele — Ciro — Xenophonte (Liv. 5 de sua Instituição — ).

Bem sei que o tempo passado não tem relação nem proporção com o presente; e que o que foi bom num século, muitas vezes não é sequer permitido no outro.

Mas embora seja certo que o tesouro dos corações não pode bastar agora, é coisa também muito certa que o do ouro e da prata é quase inútil sem o primeiro, um e outro necessários e quem não tiver senão um, estará necessitado em sua abundância.


 

CAPÍTULO X

Que conclui esta obra, fazendo conhecer que todo o conteúdo dela será inútil se os príncipes e seus ministros não são tão apegados ao governo do Estado que, nada omitindo daquilo que é adstrito a seu cargo, não abusam, nunca, do seu poder.

 

Para terminar com felicidade esta obra, não me resta senão dizer a V. M. que os reis sendo obrigados a fazer muito mais coisas como soberanos do que como particulares, eles não se podem dispensar do seu dever sem que cometam maior falta por omissão do que um particular poderia fazê-lo por comissão.

Assim é com aqueles sobre os quais os soberanos descarregam uma parte do fardo do seu império, pois que esta honra lhes dá as mesmas obrigações a que os soberanos estão sujeitos.

Uns e outros considerados como pessoas particulares estão sujeitos às mesmas faltas, como todos os outros homens; mas se se considera a conduta do público de que se encarregam, encontrar-se-ão sujeitos a muitas outras, porque nesse sentido eles não poderiam omitir sem pecar, tudo o que são obrigados por seu ministério.

Neste sentido, pode ser bom e virtuoso como particular, sendo mau magistrado e mau soberano, pelo pouco cuidado em satisfazer às obrigações do seu cargo.

Em uma palavra, se os príncipes não fazem tudo o que podem, para regular as diversas ordens do seu Estado:

Se não têm um cuidado particular de se tornarem tais que seu exemplo seja uma voz a falar;

Se são negligentes na escolha de um bom conselho; se dele desprezam os conselhos salutares; se são preguiçosos no estabelecer o reinado de Deus, da razão e da justiça, tudo junto;

Se faltam em proteger os inocentes, em recompensar os assinalados serviços que são prestados ao público, e em castigar as desobediências e os crimes que perturbam a ordem da disciplina e a segurança dos Estados;

Se não se aplicam tanto quanto devem em prever e prevenir os males que podem advir, afastando, por cuidadosas negociações, as tempestades que as nuvens trazem facilmente, e freqüentemente de mais longe do que se supõe.

Se o favoritismo os impede de bem escolher aqueles que eles honram com os grandes cargos e com os principais empregos do reino;

Se não mantêm poderosamente a mão no estabelecerem o Estado no poderio que deve ter;

Se em todas as ocasiões não preferem os interesses públicos aos particulares, embora sejam comedidos, serão mais culpados do que os que transgridem atualmente os mandamentos e as leis de Deus; sendo certo que omitir aquilo a que se é obrigado e cometer o que se não deve é a mesma coisa.

Devo ainda dizer a V. M. que se os príncipes e aqueles que são empregados sob eles nas primeiras dignidades do reino, têm grandes vantagens sobre os particulares, gozam de tal benefício a título bem oneroso, pois que não somente estão sujeitos por omissão às faltas assinaladas, umas porque também têm outras de comissão que lhes são especiais.

Se se servem do seu poderio para cometer alguma injustiça ou alguma violência, que não podem fazer como pessoas privadas, fazem por comissão um pecado de príncipe e de magistrado, do qual sua única autoridade é fonte e do qual o rei dos reis lhes pedirá, no dia do julgamento, uma conta especialíssima.

Estes dois gêneros de faltas, inerentes aos príncipes e aos magistrados, devem dar-lhes a pensar que são bem mais pesadas do que as dos particulares; porque como causas universais, elas influem, suas desordens determinando outras em tudo o que lhes está sujeito, recebendo impressão do seu movimento.

Muitos se salvariam como pessoas privadas sendo condenados como pessoas públicas.

Um dos maiores reis dos nossos vizinhos, reconhecendo essa verdade, ao morrer, gritou, que não temia tanto os pecados de Filipe como os do rei.

Seu pensamento era verdadeiramente piedoso, mas ele teria sido muito mais útil aos seus súditos e a si mesmo, se tivesse tido diante dos olhos, no apogeu da sua grandeza e de sua administração, esse princípio, senão quando conhecendo a importância dele, não podia mais tirar fruto necessário à sua conduta, embora pudesse receber para sua salvação.

Suplico a V. M. que pense desde já no que aquele grande príncipe não pensou senão à hora da morte; e para o convidar com o exemplo tanto quanto pela razão, a fazê-lo, prometo que não haverá dia de minha vida em que não trate de pôr no meu espírito aquilo que deverei ter no dia da minha morte no que diz respeito aos negócios públicos, que houve por bem deixar ao meu cargo.

F I M


 

POSTFÁCIO DO TRADUTOR.

Estudo sobre a evolução dos governos temporais

 

Dos elementos estáticos de sociologia, nenhum tem sofrido tantas modificações nem tem estado tão sujeito a experiências e golpes como o que constitui o governo temporal, e os elementos secundários que o integram.

Nas teocracias primitivas, conservadoras, o governo propriamente dito estando subordinado aos corpos sacerdotais com função de conselho, a sua atuação era insignificante ou mesmo ficava ilusória, desde que as castas dos kchatrias e dos soudras (usamos as denominações hindus para caraterizar melhor a função) ficavam sempre prontas a agir segundo os deveres inerentes às suas funções, aquela com caráter intermitente; esta como coordenadora econômica única.

Se as teocracias permanecessem, as castas estariam prevalecendo e não se teria tido idéia de sociedade diferente desses modelos milenários do Oriente, que vêm resistindo a todos os embates da influência ocidental.

Uma vez estabelecida, porém, a civilização grega, antes mesmo que se firmasse o seu papel sociológico-dinâmico intelectual, o governo temporal teria forçosamente tomado um aspecto diferente do conservador teocrático do Oriente. A tendência à monarquia militar como a figura lendária de Teseu atesta, dá diretriz às sociedades em formação. Depois, porém, que a impossibilidade da conquista força as cidades a se limitarem a viver dentro dos seus exíguos tratos de terra, entre obstáculos quase intransponíveis, tendo comunicação comercial através do mar; depois que se fixou em toda a Grécia o aspecto intelectual da sua civilização, os governos só seriam bons se conviessem ao desenvolvimento estético, filosófico ou enfim científico da elite grega.

Foi o caráter intelectual e a tendência teórica das lucubrações helênicas que determinaram as várias tentativas esboçadas primeiro em abstrato, depois seguidas na realização concreta, determinando os tipos de governo que dão nome até hoje aos sistemas com os quais se joga ainda agora, nas revoluções, nos projetos ou nos argumentos básicos das reformas políticas.

Licurgo legisla. As suas fórmulas abstratas são aceitas, e postas em prática. Deriva daí o sistema estadocrático comunista cujo modelo eterno é fornecido por Esparta. Sólon legisla. As suas propostas liberais são aceitas e um governo livre se estabelece na democracia de Atenas. É verdade que a marcha Empírica já mostrara a monocracia autoritária de Teseu, ponto de passagem entre a teocracia primitiva e os sistemas novos de governo. Demonstração de decadência foram as tentativas de aristocracia como a Tebana, de tirania como a ateniense, e de oligarquia como a coríntia.

Tal prestígio havia, dos intelectuais, que o sistema proposto nos últimos tempos era de um governo de filósofos. Mas como o povo não sabia distinguir o filósofo do demagogo, a tirania acabou nas mãos de literatos sem valor senão quanto às expressões com que insuflavam a vaidade e o orgulho da patuléia.

Roma herdou da Grécia antiga a forma monárquica de governo, transição teocrática forçosa. Sete reis encheram a medida aos aristocratas orgulhosos, e Tarquínio Soberbo caiu para dar lugar à República aristocrática em que a população de soldados se deixava guiar por uma corporação de generais (o Senado).

O objetivo da civilização romana era a conquista.

Preenchido o seu papel histórico, a tendência do Senado era tornar-se egoísta ou dissoluto. Bastava um homem para manter sob seu controle, sem novas conquistas, os limites do império. E o governo se concentrou, graças aos golpes magistrais de Júlio César, tão pouco compreendido ainda hoje pelos sofisticadores da liberdade.

Chegou a vez de decair também Roma, a orgulhosa Roma.

Os germanos, os bárbaros em geral, ameaçavam o centro pela periferia. O centro, enfraquecido pela incontinência dos costumes, permitia a infiltração de uma doutrina de paz e de humildade, completamente contrária ao espírito romano; a tendência à desagregação era manifesta. Os generais das fronteiras tomaram, por sua própria iniciativa, atitudes defensivas de caráter permanente, e assim surgiu o feudalismo.

O aspecto espiritual da Idade Média é primordial.

O temporal é secundário; mas foi este que deu origem aos governos atuais, por modificações sucessivas.

O papado tendeu a sobrepujar. A virtude, a convergência perfeita de opinião serviu de base ao domínio dos papas, no seu período inicial. Os reis, simples senhores feudais, possuidores de feudos pouco maiores do que os feudos comuns, apenas com suserania sobre os que dele se consideravam vassalos, para o que dizia respeito aos perigos que eram de todos, submeteram-se aos chefes da igreja.

É verdade que o domínio do conselho foi efêmero.

Logo os reis se sublevaram contra a tutela espiritual. Libertaram-se do jugo temporal que sob aparência de conselho trazia atadas as mãos dos reis.

Quando chegou a definir-se essa situação, os reis e os senhores feudais se encontraram face a face na disputa do solo.

De maneira geral, pode-se dizer que a ausência ou a decadência do poder espiritual católico fomentou a formação das grandes pátrias, a fim de que o controle de uma potência central restabelecesse o equilíbrio de forças quando fosse rompido.

Antes que houvesse a sistematização desse governo, todos os reis e os grandes príncipes trataram de obter o domínio interno nos seus respectivos países.

Por um pressentimento espontâneo, reis e senhores feudais se jogaram aos braços do povo, e foi este que deu ganho de causa aos partidos que adotou. Em geral os reis se uniram ao povo contra os nobres, e dessa união surgiu o prevalecimento das ditaduras monárquicas. Dois casos de união de nobres e povo contra os reis deram a República veneziana e o parlamentarismo da Câmara dos Lordes e dos Comuns, na Inglaterra.

O tipo francês de luta pela monocracia real é o que tem maior importância pelos tipos humanos que entram em jogo, e pela eminente posição sociológica da França no conjunto da evolução Ocidental.

Desde que a família capetíngea deixara de existir, e dera lugar a uma nova dinastia, a dos Valois, os erros de divisão hereditária se foram acumulando. Famílias reais paralelas à que se constituía centro no próprio rei, foram formando Estados nos Estados.

Quando Carlos VII conseguiu libertar-se da guerra inglesa que o enfraquecera demais, pensou ficar senhor do seu reino, dominando pela força os príncipes que lhe deviam vassalagem, tornando-a efetiva, completa e real, mas encontrou um problema superior à sua capacidade de realização.

Havia uma família real que tinha o ducado da Borgonha, e que descendia do rei João. Outra, com o ducado d’Orleans, vinha de Carlos V. Ainda uma com o ducado d’Alencon viera de Filipe III. Os duques da Bretanha eram descendentes diretos de Luis VI; os de Anjou, de Luís VIII, e os Bourbons, reis da Navarra, e depois também reis da França desde Henrique IV, provinham de Luís IX.

O problema deixado por Carlos VII, para Luís XI, era de difícil solução: dominar os nobres, impossibilitar-lhes as ações militares e as revoltas armadas; formar da França uma grande Pátria.

Não podendo ir diretamente ao seu objetivo, por lhe faltarem forças, Luís XI lançou mão de processos dando todas as voltas em torno do seu objetivo até lograr atingi-lo definitivamente.

Foi o único e o mais rápido processo, aquele que Luís XI adotou. Foi cognominado por Carlos o Temerário, por isso, de “aranha universal”. Apesar dos defeitos de Luís XI, sendo como aranha nas suas ações, foi o mais glorioso de quantos a história registra nas suas páginas, o trabalho que se lhe deve de concentração de poder, e primeira formação de Grande Pátria por agregação.

 

Estabelecimento do absolutismo

“A admirável utopia de Henrique IV em relação à perpetuidade da paz universal não fez, ao contrário, senão preceder de mais ou menos dois séculos a evolução espontânea das populações de elite”.
A. Comte — Política Positiva IV 30’5

 

Todo o XVI século, e mais a primeira metade do século seguinte constituíram o período de estabelecimento da ditadura real, ou do absolutismo, em França.

Durante esse tempo, governaram a França Luís XII, Francisco I, Henrique II, e seus filhos: Francisco II, Carlos IX e Henrique III.

A luta se caracterizou pelo predomínio crescente e cada vez mais incontrastável, da vontade dos soberanos, em detrimento da nobreza, ficando o rei isento de qualquer controle, visto que o princípio dominante de governo era:

“Tudo o que agrada o rei é a lei!”

Os reis, visando anular por completo o poder dos nobres, ação que Luís XI começara decisivamente, trataram de se unir à massa popular que os prestigiou.

A luta foi diretamente contra os privilégios dos nobres. O sistema feudal foi desaparecendo, os grandes senhores foram abandonando os seus latifúndios fortificados, e se foram concentrando como simples titulares, pensionados, em compensação ao abandono de seus feudos, nas cortes. A massa popular, chefiada pela elite burguesa acabou derrubando o rei por sua vez, como sendo a casta real o último reduto dos privilégios.

Desde então o rei chamou ministros burgueses, até que a realeza caísse, com a revolução francesa.

No XVI século, a unificação territorial da França, iniciada com Luís XI ficou terminada.

Com Luís XII houve a anexação do ducado de Orleans. Com Francisco I, a do ducado de Angouléme.

A subordinação crescente dos nobres menores se foi dando também pelos motivos seguintes:

1. Os senhores não podiam mais se fazer de soberanos dentro dos seus territórios; pagavam imposto e a justiça era ministrada pelos funcionários do rei.

2. A renda das terras diminuía, e o hábito do luxo passou pouco a pouco a constituir segunda natureza nos ociosos.

3. Os nobres abandonavam as suas terras para irem ser criados dos reis nas faustosas cortes. Era o que constituía a guarda de honra dos reis, a sua “casa”, de onde surgiu o costume de os governos centrais, inclusive os republicanos, terem as suas casas militares e civis.

Senhor da nobreza, Francisco I desde a concordata de 1316, era senhor do clero galicano.

Por causa dessa concordata ele dava bispados como quem desse pensão, sem dar satisfação ao Papa.

Os reis, antes de Richelieu, eram assistidos pelos grandes oficiais, geralmente nobres, pelo seu conselho privado ou grande conselho, e pelo conselho de Estado.

As províncias eram governadas por tenentes generais. Depois de Francisco I, foram criados os postos de comissários, para fiscalização dos governadores.

Desde Francisco I foi criado também, o cargo de superintendente de finanças.

A renda pública, então, provinha das seguintes fontes:

l. Rendas ordinárias ou produtos dos domínios reais.

2. Rendas extraordinárias, produzidas por impostos, dízimos, etc.

3. Negócios extraordinários, como venalidades de ofícios e de monopólios, empréstimos, etc.

Da venalidade, os cargos passaram à hereditariedade, e da mesma forma que havia a tradicional nobreza de espada, surgiu paralelamente a nobreza de roupa.

As guerras de religião do tempo de Francisco II, Carlos IX e Henrique III, cobriram a França de ruínas políticas e materiais.

Da autoridade proverbial de Francisco I muito pouco restava, e a própria unidade da França estava em perigo.

Se a nobreza era inimiga do rei, o povo não desejava mais nem rei nem nobreza, tais eram as suas desilusões.

Henrique IV dizia: “As fazendas e as vilas estão devastadas e sem habitantes, a França precisa respirar”.

Foi com o édito de Nantes e o tratado de Vervins que, em 1598, a paz interna e externa, ficou assegurada.

Henrique IV, tomou a si, então. “reorganizar o país, e restaurar na França a autoridade real”.

Henrique IV tinha 45 anos.

Famoso pela bravura, era inteligente, hábil e fino, além de liberal.

Julgava os homens rapidamente e bem. Incapaz de ódios, empregava os inimigos da véspera se via neles capacidade.

Agradecia sempre, cordialmente, àqueles que o obedeciam, e desse modo logo se impôs.

Mas os que o traíam segunda vez, estavam perdidos. Assim o marechal Biron, que foi condenado e decapitado sumariamente logo depois de sua segunda traição.

O melhor ministro de Henrique IV foi Maximiliano de Betune, duque de Sully, sete anos mais moço do que o rei, e seu companheiro desde a véspera de São Bartolomeu. Sully foi o mais íntimo dos amigos de Henrique IV. Era um grande administrador espontâneo. Henrique fê-lo superintendente, grande vedor, e grão-mestre da artilharia.

Como intendente fechava obstinadamente o tesouro a todas as despesas exageradas do próprio rei.

Tratou de desenvolver a agricultura, fonte de nutrição do país, e também porque da classe dos agricultores saia a grande maioria da soldadesca de França.

“Agricultura e pecuária, dizia o grande ministro, são as duas tetas que alimentam a França, e, para ela, as suas verdadeiras minas inesgotáveis do Peru”.

Os camponeses tiveram doze anos de paz.

Esses doze anos de paz bastaram para reerguer a França.

Sully desenvolveu as indústrias de tapetes e de tecidos de seda. Refez as estradas e as pontes. Depois abriu canais, como o de Briare, entre o Sena e o Loire.

Desde 1610 a atitude pacífica de Henrique IV se modificou. Concebeu um plano de destruição da casa da Áustria, e tratava, desde esse ano, de pôr em prática esse projeto, apesar da impopularidade dessa guerra.

O povo dizia ser ela em favor dos protestantes e contra o Papa.

A voz pública enlouqueceu um tal Ravaillac a ponto de este ser levado a assassinar o rei Henrique com duas facadas.

Depois desse ato calamitoso, a impopularidade da guerra da Áustria foi esquecida, e só se viu o que a França e a Humanidade deviam ao grande rei.

 

Antecedentes de Luís XIII

“O poder ministerial completado pela diplomacia tendeu então a dominar a realeza, desde logo reduzida à ostentação antes desdenhada nos dignos órgãos da concentração temporal”.
A. Comte — Política Positiva III 559.

 

A morte de Henrique IV, foi ponto de partida de novo período de agitação, que durou quinze anos.

Luís XIII tinha somente nove anos de idade quando seu pai foi assassinado. Foi preciso organizar uma regência.

Maria de Médicis, declarada regente, era um instrumuento nas mãos de Eleonora Galigai, sua irmã de leite, e de seu marido o italiano Concini, que foi feito marquês, marechal, ministro, além de ser, de fato, o senhor da França, pondo e dispondo das coisas do governo.

Uma tal situação irritou os membros das principais famílias de França, os Condé e os Guise, para cujos bolsos passaram logo depois da morte de Henrique IV as economias realizadas por Sully.

Quando Maria de Medicis, inspirada por Concini, foi menos condescendente com aqueles príncipes, eles se levantaram (1614) exigindo a convocação dos Estados gerais.

Depois dessa convocação só houve outra, em 1789, nos primórdios da revolução francesa.

Luís XIII foi logo declarado maior, mas Concini continuou no poder.

Em 1617 os Condé de novo se levantaram, auxiliados pelos protestantes do Sul. Concini mais uma vez fez um arranjo com eles, mediante a indenização de 1.500. 000 libras francesas, ou sejam 7 milhões de francos ouro.

Luís XIII instigado por Luynes, um dos seus raros companheiros, resolveu desfazer-se de Concini, e mandou Vitry, o capitão de suas guardas, que fosse prendê-lo com ordem de o matar se resistisse, o que aconteceu, segundo registra a história oficial.

Luynes foi logo feito ministro em lugar de Concini, mas as agitações recomeçaram, provocadas por Maria de Medicis, que estava afastada dos negócios, e mais tarde pelos protestantes, sempre sedentos de reivindicações.

A paz com a rainha-mãe, foi fácil.

A guerra sustentada pelos protestantes encabeçadas pelo duque de Rohan foi de longa duração e graves efeitos.

O restabelecimento do culto católico oficial como único permitido, no Bearn, foi o pretexto ou a causa.

Os protestantes do Norte não acompanharam os de La Rochelle.

Poucas semanas depois do combate de Mont-auban, em 1621, Luynes morreu.

Com a morte deste, Maria de Medicis voltou a ter grande ascendência sobre Luís XIII.

Em 1624 ela conseguiu fazer que o rei, seu filho, admitisse Richelieu ao conselho. Três meses depois, este era o chefe do conselho e dirigia, sem contraste, o país.

 

Vida de Richelieu

“Por toda a parte órgãos naturalmente subalternos surgidos de quaisquer classes obtiveram, tanto como o grande Richelieu, uma supremacia política que, perdendo sede antiga, devia flutuar até o surto da nova”.
A. Comte — Política Positiva III 559.

 

Armand Du Plessis de Richelieu, cardeal e duque, nasceu em Paris em 1585.

Destinado a princípio à carreira das armas, acabou tomando ordens, em 1606.

Aos 22 anos foi bispo de Luçon, cidade da Vendéia. Neste bispado, pobre, ficou até 1614.

Deputado aos Estados gerais, neles desempenhou papel importante.

Maria de Medicis fê-lo esmoler e Concini tomou-o para secretário particular e da guerra. Caindo com Concini, Richelieu acompanhou Maria de Medicis ao exílio e depois contribuiu para a sua reconciliação com Luís XIII, recebendo como recompensa, em 1622, o chapéu de cardeal. Aos 39 anos era ministro.

Sully disse, ao saber da nomeação de Richelieu para primeiro-ministro: “O rei foi inspirado por Deus nessa escolha para o ministério”.

O rei Luís XIII, era de inteligência medíocre, caráter fraco, sombrio e desconfiado, mas nem era gastador nem dissoluto e nem tinha as perigosas veleidades militares. Compreendeu com clareza a política necessária a um rei de França, e, mesmo não estimando Richelieu, não o abandonou.

Todas as crises de confiança terminaram com a vitória do grande ministro, porque o fim do rei era prover aos interesses da França.

Daí o programa interno estabelecido pelo grande ministro:

1. Arruinar o partido huguenote.

2. Baixar o orgulho dos grandes fazendo que todos compreendessem os seus deveres.

3. Restabelecer o prestígio exterior da França, pelo aumento de valor interno.

Os protestantes tomaram a iniciativa da luta em 1625. Não contentes com os privilégios que lhes conferia o édito de Nantes, visavam fundar um Estado separado, no Sul da França, em condições semelhantes às da Holanda.

O centro de resistência era La Rochelle.

Richelieu sitiou a cidade, mas não se sentindo suficientemente forte, assinou uma trégua com os rebeldes.

Em 1627 a luta recomeçou, estando os huguenotes com a aliança dos ingleses. Os sitiados, comandados pelo “maire” Guiton, resistiram por todo um ano.

Richelieu foi o general do rei. Fechou a fortaleza pelo lado de terra, por uma trincheira de 12 quilometros de extensão, e por mar construiu um dique de 1.500 metros de comprimento e 8 metros de vértice. A fome trouxe a rendição quando já haviam morrido 15.000 homens.

Richelieu não exerceu represálias. Apenas as fortificações foram arrasadas.

No Languedoc ainda ficaram protestantes em atitude de insubordinação. Mas estes foram facilmente vencidos com a publicação, por parte de Richelieu, da “Graça do Alais”, que dava aos huguenotes o direito comum, tirando os privilégios do édito de Nantes.

Por essa “graça do Alais” dava liberdade de culto e forçava os católicos intolerantes a respeitarem a liberdade de consciência dos seus compatriotas protestantes.

“A religião, dizia Richelieu, não é com sangue que se semeia”.

A Espanha fez o que pode pelos protestantes, para se vingar dos auxílios da França aos holandeses; mas, depois de vencidos, os huguenotes passaram a ser apenas uma seita não conformista, incapaz de oposição séria no pais, e destituída de elementos materiais suficientes.

A luta contra os grandes do reino durou até 1642, isto é, até a véspera da morte de Richelieu.

O centro de todas as intrigas foi o duque Gastão de Orleans, irmão do rei e herdeiro presuntivo do trono, por muitos anos.

Com Gastão a rainha Ana d’Áustria, e a rainha mãe, Maria de Medicis fizeram causa comum.

Em 1626, na conspiração dos Vendôme, irmãos naturais do rei, foi decapitado, por ordem de Richelieu, o conde de Chalais.

Em 1630 Richelieu foi demitido a pedido de Maria de Medicis, mas o ministro não esteve fora do seu posto nem doze horas, pois à tarde Luís XIII chamou Richelieu, e os amigos da rainha-mãe foram exilados com ela. (esse fato é conhecido na história por “Journée des dupes”).

Em 1632 o duque de Montmorency, governador do Languedoc, revoltou sua província, de acordo com Gastão de Orleans, secundado pela Espanha. Richelieu, vitorioso em Gastelnaudary, condena Montmorency, que é decapitado em Toulouse.

Em 1642, Cinq Mars, tratando com a Espanha e sendo favorito do rei, foi condenado, por crime de alta traição, à morte, e decapitado com seu amigo de Thou, que não revelara segredos de Estado.

Depois disso Richelieu se jogou contra os duelos e as guerras privadas, ultimos restos do que se chamava “direito feudal”.

Por causa dos duelos, em 1626, Montmorency-Bouteville, conde desobediente e reincidente, é decapitado, bem como Chapelles.

“As lágrimas de suas respectivas esposas me tocaram profundamente, disse Richelieu, mas com o sangue deles eu estancaria o de milhares de outros nobres, e isso me deu forças para resistir.

Em 1630 o conde de Maniac é decapitado e três outros generais são jogados à Bastilha.

Richelieu dominou também o parlamento de Paris, e só consentia discussões nos “éditos de finanças”. O Congresso francês, nesse tempo, era apenas orçamentário.

Richelieu foi o verdadeiro precursor de 1789 na guerra contra o privilégio.

À primeira vista parecia que as destruições igualitárias datavam da revolução, mas o sistema vulgarmente chamado absoluto já havia começado essa obra desde que os reis se uniram ao povo contra os nobres.

Mas, também, como o povo sofria com o excesso de impostos, às vezes havia revoltas sérias. Assim, em 1634 houve a chamada revolta dos “crocquants”.

Em 1639, na Normandia, houve outra, a dos “va nu pieds”. Todas elas eram reprimidas com sacrifício, e se reclamava por toda a parte a mão de ferro do ministro.

O país estava no auge do seu sofrimento quando Richelieu morreu, e só então foi fácil de se compreender como aquela miséria que todos viam e contra a qual gritavam comprara várias vitórias no Leste e o complemento territorial da França, em cuja obra Richelieu termina o papel de Luís XI, com a aquisição do Roussillon, do Artois e da Alsácia.

Richelieu costumava dizer que “os quatro pés quadrados do gabinete do rei eram mais difíceis de conquistar que todos os campos de batalha da Europa”.

Durante o apogeu de Richelieu, a guerra dos trinta anos estava acesa na Europa. Essa guerra foi a última grande luta entre católicos e protestantes.

A visão extraordinária de Richelieu, fê-lo lobrigar esta verdade: com os interesses nacionais de França estavam (naquele momento) todos os interesses futuros da Humanidade, mas que no momento, também, a meia emancipação protestante correspondia às necessidades de ordem geral, e que, portanto, convinha reprimir o surto huguenote dentro do país, auxiliando o protestantismo no exterior.

Foi isso o que fez o admirável ministro.

A aparente incoerência de sua conduta quando é encarado como sacerdote católico, fica completamente esclarecida depois que é visto como político de gênio, e de coragem, visto que era preciso coragem para arrostar com os falsos julgamentos da opinião pública, comprimindo na França e fomentando no exterior o surto protestante.

Logo depois o problema de Henrique IV em face dos Habsburgos voltou à ordem do dia.

A união austro-espanhola correspondia a uma ameaça no equilíbrio europeu, e mais ainda quanto à liberdade religiosa.

Por isso Richelieu e o proprio Urbano VIII se uniram aos Estados protestantes contar a Áustria e a Espanha.

Mas Richelieu, não podendo racionalmente explicar os motivos da sua conduta, procurava esconder a situação, explicando no seu testamento político: “o falecido rei se juntou aos holandeses, depois de se terem constituído em corpo de Estado, e premido pelas circunstâncias. Ele não foi causa nem de sua revolta, nem da união de suas províncias”.

Richelieu ajudou até pecuniariamente ao rei Gustavo Adolfo da Suécia, e quando o herói caiu em Leutzen (1632), após a derrota dos protestantes de Nordlingen, ele estreitou relações com Oxenstiern, intervindo na luta da mesma forma como no tempo do rei.

O tratado de Westfalia (1648) pôs fim à preponderância dos Habsburgos, garantiu a segurança dos protestantes e estabeleceu o princípio do equilíbrio das potências da Europa, antes que Frederico II viesse firmá-lo definitivamente e sob novas bases.

Richelieu morreu a 7 de dezembro de 1642, tendo sido assistido em seus últimos momentos pelo capuchinho José.

Este lhe perguntou se perdoava aos seus inimigos. Richelieu respondeu com dificuldade, por causa da dispnéia.

“Jamais tive outros — além daqueles que como tais o Estado considerava”.

Luís XIII comunicou que todos os projetos começados por Richelieu, quer dentro quer fora do país, seriam terminados.

Urbano VII o Papa, notando o profundo abismo cavado entre as concepções teológicas e o dever humano, disse:

“Se há um Deus, Richelieu terá muito que explicar das liberdades tomadas, mas se não há Deus, ele foi, por certo, um homem extraordinário”.

 

Princípios políticos tirados do Testamento de Richelieu

 

1. “Há abusos que se precisa sofrer, para não se cair em consequências perigosas; o tempo e as ocasiões abrirão os olhos aos que vierem em outros séculos, para fazerem utilmente o que neste não se ousaria empreender sem expor o Estado a alguma perturbação... ” porque o passado é que ilumina o futuro”.

2. “A licenciosidade era tão grande nos conventos de homens e mulheres, que nesse tempo só se viam escândalos e maus exemplos nos próprios lugares em que se devia procurar a edificação”.

3. “O bem não muda de natureza porque dure pouco, mas ele sendo sempre bem, aquele que o faz com prudência e de boa fé, faz o que deve”.

4. “As reformas devem ser moderadas, a fim de que nelas todos se sintam à vontade, e não tão austeras que os espíritos mais fortes e os corpos mais robustos suportem o rigor com dificuldade”.

5. “As coisas temperadas são, de ordinário, estáveis e permanentes, mas só com graça extraordinária se faz subsistir o que força a natureza”.

6. “É preciso ser mau ou cego para não ver nem confessar que as religiões são, não somente úteis, mas mesmo necessárias; também é preciso estar-se prevenido por um zelo indiscreto para não ver que o excesso incomoda, e pode chegar a ponto de tudo arruinar”.

7. “Comparo o grande número de professores e a multidão de alfabetizantes a um número infinito de doentes cuja única dieta devesse ser água pura e clara para cura radical, mas cuja sede é tão desregrada que recebendo indiferentemente e bebendo qualquer água, a maior parte bebe água suja que lhe aumenta a sede e os envenena em lugar de curá-los”.

8. “Tal é a natureza humana, que em geral se sofre o comando alheio a contragosto, mas os que assim procedem falam dos superiores porque, não podendo elevar-se até eles em poder ou força, querem rebaixá-los em méritos e virtudes, pela calúnia”.

9. “Nunca se deve exigir demasiado; há um certo ponto que não se ultrapassa sem injustiça, pois deve haver proporção entre o fardo e as forças daqueles que o suportam”.

10. “Os golpes de espada, facilmente se curam, mas isso não acontece com os golpes e os males que a língua produz”.

11. “A grande quantidade de médicos jamais serviu para salvar o doente. Grande número de conselheiros mais prejudicam de que ajudam ao Estado”.

12. “Toda a escolha do rei deve ser seguida de uma aprovação pública”.

13. “0 artifício dos homens faz com que eles se escondam para melhor aitngirem os seus fins. Um fala alto, dizendo não poder calar-se sem ir contra a sua consciência.

Outro se finge amigo dos mesmos que odeia, para melhor perdê-los.

Tantos são os meios enfim, por que se escondem, que o príncipe mais avisado, sempre o estará insuficientemente.

14. Sábios são os que fecham a boca dos maldizentes. Todos os que abrem as orelhas e dão ouvidos à calúnia, merecem a traição de que são vítimas.

15. O crime, seja qual for, cometido por um soberano, é maior pelo mau exemplo que deixa, do que pela natureza da falta que comete.

 

Bibliografia: Richelieu: “Testamento Político”.
Augusto Comte: “Política Positiva”.
Albert Malet: “Les temps modernes”.


 

NOTAS

(1) — Saxe abandonou primeiramente o rei da Suécia; Brandeburgo, o Landgrave de Hesse, várias cidades anseáticas, Würtemberg, Parma e Mântua o fizeram mais tarde.

(2) — Os juizes reais tinham já começado a jogar-se ao conhecimento daquilo que não pertencia senão à igreja sob pretexto do possessório dos benefícios, aos quais a bula dos papas, feita no ano de 1439, atribui o conhecimento.

(3) — Este primeiro regulamento não teve nunca, nem o nome, nem o fim, nem o efeito das apelações de abusos.

(4) — Ordenança de 1539.

(5) — A palavra francesa tirou sua origem da prática dos procuradores e dos advogados; os quais seguindo, a ordem de se dirigirem ao parlamento por apelos deram também este nome aos recursos que os eclesiásticos nele tinham.

(6) — Semelhante remédio foi praticado 15 anos depois da pragmática para evitar o curso das usurpações dos juizes seculares sobre a jurisdição eclesiástica; foi ordenado que aqueles que quiseram obter cartas da chancelaria, para opor-se às prescrições e às cartas dos papas seriam obrigados a custear evidentemente os meios pelos quais eles pretendiam justificar que a pragmática tinha sido infringida.

(7) — Há 50 anos esta distinção de casos privilegiados e delitos comuns era desconhecida na igreja. O delito comum contém as faltas cujos conhecimentos pertencem ao tribunal eclesiástico.

(8) — 0 sentido deste período também está obscuríssimo no original. — N. do T.

(9) — Por cartas patentes de 1453, Carlos VII fez doação à Santa Capela, em lugar da qual Carlos V lhe havia feito do resto de todas as contas dirigidas à câmara, que queria fossem empregadas na reparação, tanto do palácio quanto da Capela Santa.

(10) — Pelo édito de fevereiro de 1565.

(11) — O bispo du Bellay.

(12) — 0 título começa por estas palavras: “Dominus rex”.

(13) — A ordenança, “Dum episcopus alicujus episcopatus ubi rex habet regaliam”,

Filipe IV nas suas filipinas do ano de 1302, usa destas palavras: “in aliquibus ecclesiis regni”.

Filipe VI na sua ordenança do ano 1334, fala desta maneira: aos bispados nos quais nós temos “regale”.

(14) — Luis XII, na sua ordenação de 1499, citada pelo primeiro presidente Lemaitre: “Nós temos proibido e proibimos a todos os nossos oficiais e aos arcebispados e bispados e abadias e outros benefícios, nos quais nós não temos direito de “regale” ou de guarda, que não o ponham sob pena de punição como sacrílegos” (Pasquier no livro terceiro das buscas capítulo 13).

O falecido rei Henrique IV pelo seu édito do ano de 1606, artigo 7: “não entendemos gozo do direito de “regale” senão nas mesmas condições que nossos predecessores e nós o temos feito sem estender em prejuízo das igrejas isentas; e esse bom príncipe, crendo que o parlamento de Paris julgaria ao contrário, susteve por um ano todas as instâncias de “regale”, segundo sua carta de 6 de outubro de 1609. O rei presente, herdeiro de sua piedade, como de seu reino, declara pela ordenança de 1629, artigo 16, que não quer gozar da “regale”, senão como sempre foi no passado; e os senhores do clero, se havendo queixado que estes termos não eram suficientemente precisos, S. M. fez dar esta resposta escrita pelos seus comissários que a ordenança se referindo à de 1606, estes termos não eram suficientes para testemunhar que ela não queria gozar da “regale” onde ela não tivesse sido usufruída no passado”.

A ordenança “dominus rex” usa destas palavras: “consuevit capare regaliam”.

Filipe IV na sua ordenança de 1302, diz: “regalias quas nos et predeccessores nostri consuevimus percipere”.

E a filipina do ano de 1334: “Nossos predecessores reis por causa da “regale” da nobreza da coroa de França usaram e costumaram ficar de posse plena e depois os reis em suas ordenanças não falaram senão do costume e da posse.

(15) — “Quod enim, quae sine privilegio potest acquiri consuetudine immemorialis”, dizem os cânones.

(16) — Desde há 60 anos somente o arcebispo de Rouen sacudiu o jugo do primaz de Lion e fez-se primaz da Normandia.

(17) — 0 bispo de Puy está isento do arcebispado de Bourges e vários na Itália também; devem portanto achar-se nos conselhos provinciais que o arcebispo convocar.

S. Gregório de Tours isentou um hospital, uma igreja e um monastério da jurisdição do bispo de Autun a pedido da rainha Brunehauet e de seu filho o rei Thierry. Crotber, arcebispo de Tours, isentou de sua jurisdição o monastério de S. Martinho.

(18) — Uma carta de Alexandre III dada ao capítulo de Paris confirma que os papas concederam isenções.

(19) — A isenção de Sens, Paris, Bourges, Bourdeaux, Limoges, Auxerre e Mans, foram obtidas dos antipapas.

(20) — As isenções de Auxerre, Noyon, Orleans, Beauvais, Chalons, Augers, Poitiers, e Lion são fundadas nas concessões dos bispos em transações realizadas com eles.

(21) — Cipriano: “Frustra quidam qui ratione vincuntur consuetudinem nobis opponunt quasi consuetudo major sit veritate aut non fuerit inspiritualibus sequendum; si melius fuerit à spiritu sancto revelatum”.

(22) — “Capitula cathedralium et aliarum majorum ecclesiam illorum persona exemptionibus, consuetudinibus, sententiis, juramentis, concordatis, fieri si possint, quominus a suis episcopis, et aliis majorbus praelatis per se ipsos solos, vel illis quibus sine videtur adjunctis, juxta canonicas sanctiones, toties quoties opus fuerit visitari, corrigi et emendari, etiam autoritate apostolica possint et valeant”.

(23) — Isidoro: “Soepe per regnum terrenum, caeleste regnum profecit, ut qui infra ecclesiam positi contra fidem et disciplinam ecclesie agunt, vigore principium conterantur”.

(24) — Art. XI — Todos os curas e capítulos, seculares e regulares, igrejas catedrais ou colegiais, ficarão indiferentemente sujeitas ao arcebispo, ou ao bispo diocesano, sem que possam alegar privilégio, ou isenção para o que diz respeito a visitação e punição dos crimes, não obstante oposição ou apelação qualquer, sem prejuízo daquelas das quais alegamos conhecimento, e aquela existente em nosso conselho privado.

(25) — A epístola de S. Gregório a Secundino, do ano 508 justifica este ponto.

(26) — Idem Self, numero 24 do mesmo capítulo de Reff.

(27) — Pela concordata que se fez no concílio de Latrão entre Leão X e Francisco I, ficou decretado que os graduados gozariam dos benefícios vagos na terça parte do ano a saber, nos meses de janeiro, abril, julho e outubro.

(28) — 0 concílio de Basiléia ordenou que as três partes dos benefícios seriam conferidas aos mestres em artes, bacharéis, licenciados e doutores em medicina, direito e teologia, os quais tivessem estudado um certo tempo numa universidade privilegiada.

(29) — Bula do papa Eugênio concedida ao rei Carlos VIII.

(30) — A bula foi enviada ao rei Francisco I em 1538.

(31) — “Non creditar referenti, nisi constet de relato.”

(32) — “Augustinus: ipsa mutatio consuetudinis etiam qua adiuvant utilitate novitas perturbat.”

(33) — Quando o cardeal foi encarregado da marinha, o comércio estava quase inteiramente arruinado e o rei não tinha um só navio.

(34) — Para não omitir, notarei ainda que é melhor ter armazéns de azotatos, enxofre a carvão, do que pólvora já feita; porque ela se estraga facilmente com o tempo, e um acidente de fogo é mais para temer.


 

Copyright: Armand-Jean du Plessus (Cardeal Richelieu)
Copyright da tradução: David Carneiro
Copyright da edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Mores

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