capa

eBookLibris

Fábricas de Racismo

Janer Cristaldo


 

 

Fábricas de Racismo
Janer Cristaldo

Fonte Digital
Documento do Autor
jcristaldo@gpmail.com

imagens
Theprisma
Fighting racism: footballers and managers have a role

©2012 — Janer Cristaldo

eBooksBrasil.org


 

FÁBRICAS
DE
RACISMO

imagem

Janer Cristaldo


 

Índice

Virgem por concurso
Clã dos Genro tira férias na Disneylândia das esquerdas
Bem-vinda seja entre nós a crise européia
Editor defende fetiche
Imortal homem do pampa desconhece a Bíblia
Dois sargentos querem o amargo caviar do exílio
Luciana Genro justifica cem milhões de cadáveres
Para os crentes, meias e oração. Para o joelho do apóstolo, medicina de ponta
Verissimo se alegra com naufrágio do Concordia
A televisão nacional e a humana estupidez
A lei que vá pra puta que a pariu
Só muda a mosca
Governo gaúcho recebe terrorista italiano com tapete vermelho
Fábricas de racismo
In memoriam Christa
A inocente africaninha e o malvado branco europeu
Meu primeiro milhão
Filósofo? Só com carteirinha de filósofo
De como perdi um emprego
Quando as fotos mentem
Chalita britânico quer um templo para ateus
Deputado regulamenta filosofia, holística, churrasco e chimarrão
Muçulmanos declaram jihad contra cães na Europa
O novo conflito europeu
Medo ao silêncio
O fundamento da família
Los bandos del alcalde
Sobre caxumba e comunismo
Esses juízes fantásticos e suas sentenças maravilhosas
Pronto para o paliativo
Entre Cebete e Sócrates
Ayaan Hirsi no país das maravilhas
Sobre os cabeças-de-toalha
Intolerante e preconceituoso só é o loirinho de olhos azuis
Governo institui bolsa-turismo
Testemunhas negam lógica
Mensagem da Finlândia
Feminista defende excisão de clitóris
Existe sexo no carnaval?
Seis por meia dúzia
Mórmons roubam almas de judeus
MPF censura dicionários
Por que ler bons livros, quando se pode ler os ótimos?
Tucano pernambucano quer enfiar literatura pernambucana goela abaixo
Que tal começar as aulas com Sulamita?
Surge nova profissão: gigolô de dekassegui
Folha inaugura Dia da Neomulher
Papistas defendem imposição fascista no RS
Schengen transforma Europa em casa-da-mãe-joana
Escritor papista censura cronista
Fácil ser profeta
Sereni aponta não para Dante, mas para a Bíblia
Pagando caro pelo pior
Para evitar o caos, STF legaliza o caos
Fácil defender o que está longe
A Inquisição é vossa
Prêmio Nobel defende punição de homossexuais
Censura ao outono
Serpentes põem ovos também à esquerda
This is Brazil!
PIB & FIB


 

VIRGEM POR CONCURSO

 

Não se fazem mais nossas senhoras como antigamente. Já vão longe os tempos em que a Virgem aparecia com toda uma mise-en-scène, fazia o sol parar e transmitia a inocentes pastorinhas segredos vitais para a humanidade.

Desde Colombo até hoje, os conquistadores sabem muito bem que, ao impor o mito de uma mãe virgem a culturas pagãs, já ganharam a batalha. O papa que o diga. Em 1990, comentei como foi criada a Virgem de Guadalupe.

Na época, João Paulo II foi ao México, não para degustar tequila ou ouvir mariachis, e sim para beatificar Juan Diego, o índio em cuja túnica as rosas teriam deixado gravada a imagem da Virgem de Tepeyac, mais conhecida como Virgem de Guadalupe, não por acaso a mesma venerada nas montanhas de Estremadura, e muito querida pelos conquistadores. João Paulo, padre astuto, intuindo que a tal de teologia de libertação está em franca decadência com o desmoronamento do fascismo eslavo, investiu no mistério. E conferiu odor de santidade ao coitado do íncola manipulado pelo barroco europeu.

Tudo começou nos anos 1550, quando na colina de Tepeyac os indígenas mexicanos prestavam culto a um ixiptla, ou seja, estátua ou imagem de uma deidade que, na linguagem dos conquistadores, é traduzida como ídolo. O ixiptla, no caso, é o da deusa Toci-Tonantzin, nome que, traduzido do náuatle, dá — maravilhosa coincidência! — Nossa Mãe. Alonso de Montufar, arcebispo do vice-reino, não vai perder esta oportunidade — como direi? — divina, de sobrepor, como sempre fez a Igreja romana, aos símbolos e cultos pagãos, a tralha católica. Encomenda a Marcos, um pintor indígena, uma obra inspirada em um modelo europeu e a coloca ao lado do ixiptla asteca, gesto aparentemente inocente se visto daqueles dias, mas carregado de conseqüências quando o olhamos com o distanciamento de quatro séculos.

Pelo período de aproximadamente um século, a imagem da Virgem permanece, sem trocadilhos, em banho-maria, sem que se fale de epifanias ou milagres. Em 1648, com a publicação de Imagen de la Virgen Madre de Diós de Guadalupe, do padre Miguel Sánchez, o culto mariano toma novo impulso.

“Segundo esta versão destinada a tornar-se canônica” — escreve Serge Gruzinski, em La Guerre des images — a Virgem teria aparecido três vezes em 1531 a um índio chamado Juan Diego. Segundo Juan de Zumárraga, primeiro bispo e arcebispo do México, Juan Diego abriu sua capa sob os olhos do prelado: “em lugar das rosas que ela envolvia, o índio descobriu uma imagem da Virgem, miraculosamente impressa, até hoje conservada, guardada e venerada no santuário de Guadalupe”.

Mas nada surge do nada, muito menos imagens. Antes da publicação do livro de Miguel Sánchez, que oficializa a versão das rosas imprimindo os traços da Virgem na capa de Juan Diego, haviam chegado ao México pelo menos duas levas de pintores e arquitetos, profundamente influenciados pela escola flamenga. Colocando seus talentos a serviço da Igreja, estes artistas transportam ao novo continente o imaginário europeu. Vasto é o mercado.

Para Gruzinski, a clientela dos artistas cresce e se diversifica: “A corte, a igreja, as autoridades municipais, a universidade, a Inquisição, as confrarias e os ricos entregam-se a uma concorrência cada vez mais viva e rivalizam em encomendas que afirmam publicamente, aqui como alhures, poder, prestígio e influência social. Eis então reunidos todos os meios de uma predileção pela imagem e de uma produção em larga escala, conforme o gosto europeu, impulsionada pela Igreja, posta sob a vigilância da Inquisição e de prelados de zelo por vezes intempestivo”.

Faltava apenas o ingênuo para descobrir, sob as rosas, a imagem da Virgem. Como seria pouco convincente apresentar uma imagem sendo descoberta por seus criadores, foi escolhido Juan Diego, hoje alçado à condição de beato pela igreja que destruiu seus ixiptlas e sua cultura. E assim, como quem não quer nada, semeando marias mundo afora, vai o Vaticano alastrando seus domínios.

Todos devem estar lembrados quando, em 1917, a Virgem apareceu em Fátima, na cova de Iria, aos três pastorinhos. O sol, como uma roda de fogo, girou então sobre si mesmo durante dez minutos. Curiosamente, não se constatou efeito algum no clima da Terra destes movimentos anômalos do sol.

Um padre português desmascarou a aparição a partir de uma análise gramatical dos fatos. Uma das pastoras perguntou à Virgem: quem sois? Ora, é de espantar que naquela época uma criança camponesa conjugasse assim tão à vontade a segunda pessoa do plural, coisa que hoje muito jornalista sequer conhece. Mas a santa, muito analfabeta, também se trai em seu discurso. Diz a Virgem: eu sou a Nossa Senhora. Como Nossa? Se se dirigia a terceiros, teria de dizer: eu sou a Vossa Senhora.

Claro que o Brasil, tido como a maior nação católica do mundo, não poderia deixar de ter uma santa virgem. Em certo dia do ano de 1717, alguns pescadores lançaram suas redes no rio Paraíba, perto de São Paulo, e em vez de peixes pescaram uma estátua sem cabeça. Ao lançarem novamente as redes, retiram a cabeça: tratava-se de uma Virgem Negra. Isto é, uma afrovirgem, como se diria hoje.

Daí a construir o maior local de culto da América Latina foi apenas questão de tempo. Em 1955, foi construída a basílica Nossa Senhora de Aparecida, que ocupa uma superfície total de 18 mil metros quadrados e pode acolher 45 mil fiéis. É a segunda maior basílica do mundo, após a de São Pedro em Roma, e o papa João Paulo II, em 1980, concedeu-lhe o título de “Basílica menor”. Como as virgens de Fátima e Lourdes, a Santa Cidinha tupiniquim constitui uma mina de ouro para a Igreja brasileira.

A penúltima virgem é a de Medjugorje, na Iugoslávia, ainda não reconhecida pela Igreja. Suas aparições tiveram início em 24 de junho de 1981. Entre os videntes, encontram-se seis pessoas nascidas nos arredores da localidade — que quer dizer “em meio aos montes” — e a quem a Santíssima Virgem Maria, evitando a armadilha gramatical de sua congênere de Fátima, se apresentou como “Eu sou a Rainha da Paz”. Penúltima virgem, dizia. Pois agora, nos alvores de 2012, os jornais nos falam da última, a Virgem da Amazônia.

Se antes as virgens apareciam para crianças ou pessoas humildes e deixavam uma imagem para ser encontrada por índios ou pescadores, hoje as virgens dispensam tais recursos. São produzidas por designers e eleitas em concurso, conforme o gosto do respeitável público. Leio nos jornais de hoje que a arquidiocese de Manaus apresentou aos fiéis uma imagem de Nossa Senhora e do menino Jesus com traços indígenas.

Chamada de Nossa Senhora da Amazônia, a imagem foi feita pela designer Lara Denys, 23, vencedora de concurso para retratar a santa com “características da cultura da região amazônica”. Na imagem, Nossa Senhora e Jesus têm cabelos e olhos pretos e pele parda. O manto dele está preso ao corpo dela, da mesma forma que as índias carregam seus filhos.

Virgens são precursoras de santuários. Segundo o coordenador do concurso, padre Reneu Stefanello, será construída a sua estátua no santuário que está sendo erguido em Manaus.

“Ela tem os traços da feminilidade da mulher amazonense, da mulher indígena. Traz no colo um Jesus curumim”, afirma o padre. Cristo, provavelmente, terá nascido em um igarapé.

Segundo o antropólogo Ademir Ramos, da Universidade Federal do Amazonas, a imagem é uma estratégia para evitar a perda de fiéis para os protestantes pentecostais. “A Igreja Católica quer passar a identificação entre o devoto e o santo. Como o fiel vai devotar uma santa branquinha de olho verde?”

Crie-se então uma Nossa Senhora ao gosto popular. Certamente será uma virgem ecológica, protetora da floresta e dos recursos naturais e inimiga das barragens e da pecuária e agricultura intensivas. E defensora das reservas indígenas, é claro. O padre Stefanello perdeu uma oportunidade de ouro de fazê-la aparecer à Marina Silva.

Janeiro 01, 2012


 

CLÃ DOS GENRO TIRA FÉRIAS NA DISNEYLÂNDIA DAS ESQUERDAS

 

Há décadas, amigos me convidam para visitar Cuba. Não são comunistas. São pessoas que vêem algo de exótico no socialismo. Tenho um amigo francês, que nada tem a ver com o castrismo, que vai lá pelo menos uma vez por ano. Gosta de sentir-se em um museu. Carros dos anos cinqüenta, arquitetura degradada, mais o calor dos trópicos. Y las jineteras, por supuesto.

De minha parte, jamais irei a Cuba. Para ver miséria, não preciso viajar. Países socialistas, já conheço. Na Romênia, anos 80, tive uma experiência brutal do socialismo. Me consta que hoje os romenos vivem melhor. Pode ser. Mas sair do comunismo é algo que leva décadas. Sem falar que não pretendo contribuir com divisas para uma ditadura.

Nada como um dia depois do outro para rirmos um pouco. Mentira alguma foi mais prejudicial à América Latina que o mito da revolução cubana. Instalou-se na ilha uma ditadura comunista que levou os cubanos a um nível de miséria desconhecido nos dias de Fulgencio Batista. Castro alegava na época que a Cuba de Batista era um bordel dos Estados Unidos. Com Castro, o bordel internacionalizou-se. Virou bordel do mundo todo. A tal ponto que, interrrogado porque as universitárias se prostituíam em Cuba, defendeu-se: “Nada disso. É que em Cuba até as prostitutas têm nível universitário”. Não estou fazendo piada. Isto foi dito pelo ditador.

Em 59, intelectuais do mundo deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

— Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem — pontifica Castro. — E se eles pedem a lua? — pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: — Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, os cubanos queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Em março do ano passado, Luciana Genro convidava, via Twitter, para curso sobre a atualidade do marxismo em Porto Alegre. Comentei na ocasião:

Pode? Em pleno século XXI? Será que as notícias sobre a queda do Muro ainda não chegaram a Porto Alegre? Nem sobre o desmoronamento da União Soviética? Essa gente ainda não se deu conta do ridículo de ser marxista nestes dias? Nunca ouviram falar de Kravchenko? Das denúncias de Nikita Kruschov no XX Congresso do PCUS, de 1956? Trotskista, Luciana nunca ouviu falar de Kronstadt?

Que o pai da Genro continue stalinista, se entende. Árvore velha não se dobra. Sempre defendeu o comunismo e o stalinismo e renunciar ao obscurantismo seria negar tudo o que escreveu. Esclerose é isso mesmo, enrijecimento do cérebro. Mas Luciana Genro tinha 18 anos quando caiu o Muro. Tinha 20 quando a União Soviética esfacelou-se. Terá tapado a cabeça com um travesseiro para não ouvir o rumor do mar?

Hoje, às duas horas da matina, o clã dos Genro partiu para merecidas férias na Disneylândia das Esquerdas: Tarso e consorte, suas duas filhas e mais um neto. “Vai ser ótimo, sempre quis conhecer Cuba! — twitou Luciana —. Quando voltar conto as minhas impressões. Até!”

Serei todo ouvidos. Seu pai será certamente recebido com todas as honras pelos irmãos Castro. Em 2007, o capitão-de-mato Tarso Genro — então ministro da Justiça — mandou como regalo ao tiranete do Caribe dois pugilistas que haviam fugido da delegação cubana durante os Jogos Pan-americanos. Foram deportados para o gulag caribenho sem que tivessem cometido crime algum, a menos que fugir de uma ditadura seja considerado crime.

Mas Tarso é generoso quando se trata de proteger companheiros de ideologia. Em 2009, quando ministro da Justiça, concedeu asilo político a um terrorista foragido da justiça italiana, Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua na Itália por quatro assassinatos entre 1978 e 1979. Ex-militante comunista das Brigadas Vermelhas, ele foi preso no Rio em março de 2007 e hoje vive no Rio livre como um passarinho.

Battisti viveu por mais de uma década na França, abrigado inicialmente pelo governo de François Mitterrand, sob a condição de ter renunciado à luta armada. Na Itália, foi condenado à prisão perpétua à revelia, a partir de provas fornecidas pelo depoimento de Pietro Mutti, fundador do Proletários Armados pelo Comunismo, do qual Battisti fez parte.

“A sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal”, diz o texto assinado por Tarso ao justificar a concessão do refúgio. Como se a Itália contemporânea fosse uma ditadura onde um réu não tem direito à defesa. Battisti foi condenado à revelia porque estava refugiado na França, sob as asas protetoras do colaborador nazista François Mitterrand.

Tarso tem tudo para ser bem recebido em Cuba. Devolveu aos Castro dois dissidentes e deu sombra e água fresca a um terrorista italiano. Luciana também. Uma das últimas almas penadas do marxismo, a ex-deputada pelo PSOL certamente vai se sentir bem na ilha dos Castro.

Estou esperando as impressões da moça na volta da Disneylândia das esquerdas. Vai render crônica. As esquerdas tupiniquins até admitem criticar Moscou. Mas Havana continua intocável.


 

BEM-VINDA SEJA ENTRE NÓS A CRISE EUROPÉIA

 

Leio nos jornais que a crise na Europa e Estados Unidos poderá ser tema de redação na segunda fase da Fuvest. Se aluno fosse, eu responderia com um solene “vai pra pqtp”. Se nem economistas e jornalistas da área conseguem entender a tal de crise, como pedir isto a um jovem que certamente nem conhece a Europa? O máximo que ele poderá fazer é repetir as bobagens que os jornais escrevem sobre a crise.

Nada entendo de economia. Mas viajo bastante e comparar é algo que está ao alcance de qualquer mortal. Em 2010, decidi visitar a Irlanda. Não vai – me diziam amigas – o país está em crise. Fui, vi e voltei. Em Dublim, vi ruas cheias de gentes, felizes e bem vestidas, consumindo nos cafés, restaurantes e lojas. Se tentava entrar em um pub, às cinco da tarde, tinha de empurrar a multidão com os ombros. Bati pernas pela cidade toda e só vi um mendigo. Sentou-se na rua, longe de qualquer abrigo, recebendo toda a neve que caía no corpo. Queria comover. Se isto é crise, bem-vinda seja ao Brasil.

A França é a bola da vez, dizia-me um bom amigo em Paris. Será? Estive em Paris há dois meses e não vi sinal algum de pobreza iminente por lá. Fala-se em crise na Espanha. Tente entrar em um restaurante reputado à las dos del mediodía, como dizem os madrilenhos. Está regurgitando de gente e você ainda arrisca fila de espera. Não são turistas que lá estão celebrando a bona-xira. Mas espanhóis.

Não ousaria emitir qualquer palpite sobre a Grécia, não vou lá há mais de dez anos. Mas duvido que os gregos estejam pedindo esmolas aos turistas na Plaka ou no Partenon, em Mikonos ou Santorini.

Segundo o The Guardian, o Brasil ultrapassou a Inglaterra no ranking de maior economia do mundo, ficando em sexta posição. É a primeira vez que o país britânico fica atrás de uma nação sul-americana – proclamam orgulhosos nossos jornalistas. Isso se deveria ao crescimento brasileiro próximo a 3,5% que faz com o que o PIB, a soma das riquezas nacionais, some US$ 2,4 trilhões, ligeiramente à frente do britânico.

Pode ser. Mas você não vai ver nas ruas de Londres a miséria que vemos nas ruas das metrópoles brasileiras. De que serve conquistarmos a sexta posição na economia mundial se temos 11,4 milhões de favelados? Coincidentemente, esta é a população de toda a Grécia.

Que o padrão de vida europeu está diminuindo, sobre isto não há dúvida alguma. O tempo para aposentadoria está aumentando em vários países e os benefícios sociais mermando. Mas é bom lembrar um custo que a Europa carrega nos ombros, os milhões de imigrantes hostis que parasitam a previdência. As gerações atuais obviamente não gozarão do conforto e facilidades de seus pais e avós. Mas ainda podem passar suas férias nas ilhas gregas ou canárias.

Entusiasmado com a notícia de que o Brasil desponta como a sexta economia do mundo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, andou dizendo mês passado que o país poderá demorar de dez a vinte anos para fazer com que o cidadão brasileiro tenha um padrão de vida semelhante ao europeu. Sem nada entender de economia, diria que isto é possível. Basta que a Europa continue empobrecendo nos próximos dez ou vinte anos. Aí o Brasil empata.

A imprensa brasileira, em seu afonsocelsismo tardio, adora ver miséria no Primeiro Mundo. O emergente Brasil desponta glorioso no concerto das nações, enquanto a velha e decadente Europa empobrece. Esta mania também é extensiva a nossos vizinhos.

Em meados de 1989, fomos bombardeados, por dezenas de fotos e filmes vindos da Argentina, mostrando filas de gente com fome, supermercados saqueados e vitrines em estilhaços. Tais fotos e filmes, somadas à queda brutal do austral e a uma inflação projetada de 24 mil por cento ao ano, nos davam a idéia de um país falido. O telespectador tupiniquim, ante tal quadro, sorria com seus botões: cá no Brasil, só estão faltando leite, filé e azeite. Acontece que, entre fatos e fotos, há mais distância do que sonha nossa vã fotografia.

Entrei na Argentina no dia 14 de maio daquele ano, data das eleições que levaram ao poder, sem necessidade de segundo turno, o peronista Carlos Menem. Às oito da noite, os peronistas com seus bumbos tomaram as ruas celebrando a vitória e pedindo a renúncia de Alfonsín. Dia seguinte, acelerava-se a queda do austral. Nos supermercados, os argentinos olhavam os novos preços com desalento.

Dia 19 de maio, guiado por um portenho apaixonado por sua cidade, percorri a noite buenairense. “Quero mostrar-te as diferentes faces da crise”, disse-me. Jantamos na Costanera, onde os restaurantes se sucedem, um ao lado do outro. A fome ali era uma realidade palpável: apesar dos salões imensos com duzentas ou mais mesas, os argentinos se amontoavam em filas esperando uma mesa vaga.

Giramos depois pelos cafés de Belgrano, Palermo e La Recoleta. Passava de meia-noite e Buenos Aires nada ficava a dever a Madri numa noite de verão. Por mais fotos que os jornais publicassem, nenhum me convenceu que a Argentina havia empobrecido naquele mês.

Em Paris ou Nova York, todos os dias, milhares de pessoas entram em filas para receber comida de graça. Jamais vi fotos dessas filas, e isso que leio dois ou três jornais por dia. E mesmo que as visse, jamais me ocorreria pensar que a França ou os Estados Unidos passaram a integrar, do dia para a noite, o time do Terceiro Mundo. Da Argentina também nos chegavam fotos de saques em supermercados. Impossível negar a evidência de tais saques, se bem que me soa estranho ver pessoas famintas levando terminais de computadores para comer em casa. Foi o que aconteceu recentemente em Londres.

A mesma percepção está ocorrendo hoje em relação à dita crise européia. Sem que sequer existam saques em supermercados. Mas falava da redação da Fuvest.

Fosse eu candidato, com o que conheço de mundo, a resumiria numa única frase: bem-vinda seja entre nós uma crise como a européia.

Janeiro 06, 2012


 

EDITOR DEFENDE FETICHE

 

Falava outro dia sobre Umberto Eco, o erudito neoludita que ainda não entendeu a Internet. Um leitor me alerta:

— Eco ainda não sabe usar os recursos dos tablets na leitura de livros. Ele diz que não é possível fazer anotações em livros lidos nos tablets. Mas é claro que podemos anotar. Aliás, no tablet há mais espaço para anotações do que no livro em papel. E com a vantagem da facilidade de localizar as informações que nos interessam. Não há nada melhor do que os tablets para ler e-books. Na semana passada, comprei o Samsung Galaxy Tab 10.1 e estou satisfeito com o aparelho.

É verdade, não havia lembrado disto. Fica o registro. É que ainda não tenho nenhum tablet. Mais dia menos dia chego lá. Por enquanto, estou sem tempo para ler sequer meus livros em papel. Esqueci também de outro recurso, o search. Se preciso buscar uma palavra em um livro, não preciso relê-lo. Com alguns toques, chego à palavra. Isto não existe no livro em papel e é recurso excelente para quem pesquisa.

Li ontem, no Estadão, entrevista de um outro neoludita, no caso um editor brasileiro, Quartim de Moraes. Apesar de velho, tampouco entendeu o mundo em que vivemos. Falando da indústria do livro, afirma:

— Longe de mim a pretensão de mudar o imutável. Satisfaço-me com a ambição de tocar o bumbo — já usei essa expressão em título recente —, ajudando a despertar consciências adormecidas pelo efeito inebriante e ilusório da “razão de mercado” aplicada ao mundo dos livros. E também com a possibilidade de levar algum ânimo aos que se renderam ao conformismo. Não sou um agente vermelho tramando contra o lucro nem um idealista ingênuo em luta com moinhos de vento. O que me move é a fé na missão civilizadora do livro. Uma convicção que a vida, o ofício de jornalista e o trabalho de editor, paixão tardia, só têm feito se fortalecer.

Missão civilizadora do livro, diz o editor. Nada contra. Mas uma faca serve tanto para cortar pão como também para matar alguém. Da mesma forma o livro. Serve tanto para educar como para emburrecer. O ror dos livros que emburrecem ultrapassa de longe o dos que edificam. Para cada Nietzsche ou Renan publicado no Brasil, há vinte Brunas Surfistinhas ou Chicos Buarques. É a lógica do mercado.

Quartim fala do rebaixamento da qualidade dos conteúdos — particularmente nos livros de interesse geral, ficção e não ficção —, provocado pela preterição dessa qualidade em benefício do potencial de venda de cada título.

— É a tal história: livro bom é livro que vende bem. Então, vale tudo. Depois, mas não menos grave, o crescente estreitamento do espaço para conteúdos ficcionais brasileiros, pelas mesmas razões. Em outras palavras, literatura brasileira não vende bem, portanto, não se publica, como preferem acreditar editores e livreiros para quem livro é um produto como qualquer outro e, como tal, em nada difere de um tubo de dentifrício ou de um saco de batatas.

A questão é antiga. Desde há muito se discute se livro pode ser vendido como se vende sabonete. Poder, pode. Para uma clientela idiota, o livro ideal é o livro idiota. Os editores sabem disto. A difusão da boa literatura não depende do editor, mas do público leitor. Não adianta tentar vender Dostoievski para quem prefere Paulo Coelho ou Machado de Assis. Mas o equívoco do editor está mais adiante: literatura brasileira não vende bem, portanto, não se publica.

Como não se publica? O mercado nacional do livro está tomado por mediocridades tupiniquins, empurrados goela abaixo nos vestibulares e currículos acadêmicos. Literatura brasileira é de venda forçada. Costumo falar do livro estatal. Como nos antigos países comunistas, no Brasil escritor precisa ser amigo do rei. Ou pelo menos amigo da crítica universitária. Nisto reside a pobreza da literatura nacional.

Quartim cita o “mestre Antonio Candido”:

— “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amamos, ninguém o fará por nós”. Pois é. Se dependesse do amor do big business editorial, e, em escala menor, vá lá, de nossas mais prestigiosas páginas literárias, a literatura brasileira já seria defunta.

Que seja defunta. No Brasil estão sendo distribuídos livros de graça, tanto em pontos de ônibus como em presídios. É que ninguém compra autor nacional. Não vejo razão alguma para gostar de uma literatura só porque é “nossa”. Só porque o Machadinho é carioca tenho a obrigação de lê-lo? Quartim me desculpe. Prefiro Cervantes, Swift, Orwell. Mas a grande bobagem de Quartim vem logo adiante:

— Como editor e como leitor, mas, sobretudo, como cidadão, preocupa-me a enorme dificuldade que os escritores brasileiros, aqueles que se dedicam à arte literária, encontram para publicar suas obras.

Que dificuldade? Editor, ele ainda acredita no fetiche do livro em papel. Nunca foi tão fácil publicar. Hoje, ninguém pode queixar-se da falta de editor. Basta você digitar seu livro e jogá-lo na Internet. Escritor, hoje, não depende de editoras. Dependem de editoras os pavões que querem ver seus títulos em vitrine e dar tardes de autógrafos. Nestes dias de e-books, todo autor pode ser editor. A um custo zero de publicação.

O mundo mudou e os editores parecem não ter entendido isto.

Janeiro 08, 2012


 

IMORTAL HOMEM DO PAMPA DESCONHECE A BÍBLIA

 

Laís Legg, excelente interlocutora, me escreve:

— Oi, Janer: mesmo que digam que estou pregando no deserto, resolvi começar uma cruzada contra o assassinato do vernáculo. Acabo de ler, no Terra, “fulano e ciclano”. Ora, “ciclano” é um termo usado na química (são os hidrocarbonetos cíclicos). Parece que os atuais jornalistas nunca ouviram falar do termo “sicrano”, que horror.

É luta perdida, Laís. Hoje, há jornalistas que já não conseguem distinguir entre mau e mal. Já tive alunas de Letras, em final de curso, que escreviam “eu poço”. Ainda há pouco, eu comentava a inscrição de uma cruz em uma igreja do interior de Santa Catarina: “sauva tua auma”. São passados os tempos em que os padres falavam inclusive latim. A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Segundo o autor, cá e lá os alfabetizados teriam ganho algumas batalhas: alguns já estavam infiltrados no Exército.

— Puxa, Janer, se alguém da tua estatura intelectual joga a toalha, a causa está perdida. Penso que, com um pitaco aqui e outro acolá, talvez a coisa melhore. Será que não existe quem queira se aprimorar? Será que a nova geração pensa “sou como sou, e daí?”. Não querem trilhar a estrada do conhecimento e ir acrescentando, aos poucos, novos aprendizados?

Em maio passado, Laís, provocou celeuma o livro Por uma Vida Melhor, adotado pelo Ministério da Educação, que considera ser válido o uso da língua popular, ainda que com seus erros gramaticais. Dizer “nós pega o peixe” ou “os menino pega o peixe”, seria aceitável. Para quem não tem escola, sem dúvida é aceitável. Mas a escola existe para ensinar os alunos a falar corretamente. Se não ensina, não tem porque existir. Quando um livro, adotado pelo MEC, abre tal exceção, não vejo muita esperança.

Que um pessoa inculta cometa tais erros, até que se entende. Bem ou mal, esta pessoa passa seu recado. Se alguém diz “vendo dois peixe por dez real”, eu sei o que ela quer dizer. O grave é quando profissionais que tem a língua como instrumento de trabalho escrevem tais barbaridades. Quando a profissão não era regulamentada, jornalista era quem sabia escrever. Hoje, é quem tem diploma. O que nada tem a ver com saber escrever.

Ano passado, me escrevia a leitora Solange Maria Mendonça Campos:

— Prezado Janer, eu dava uma aula, no curso médico de graduação, para uma turma do 5º. ano. Ou seja, os senhores/as ali presentes estavam quase formados. O tema era “Depressão: sintomas e sinais universais na clinica médica básica”. Arrisquei: “a insônia é o arauto da depressão” (feliz expressão de um grande psiquiatra francês, daqueles da velha cepa, que quase moravam dentro do hospital).

— Mal-estar na classe. Repeti, e constatei pela perplexidade dos rostos à minha frente, que ninguém sabia o que era arauto. Expliquei quem era em outros tempos, e sua função social então. Alguns entenderam, e fizeram a associação óbvia, a maioria não. Então desenhei no quadro (acho que aí em SP diz-se lousa?) um daqueles arautos de desenho animado de Disney, com plumas no chapéu, corneta com aquela bandeira, etc. Aí eles entenderam quem era o arauto, mas eu ainda tive de explicar que assim como o arauto fazia, tocando a corneta, a insônia vinha anunciar, etc. Foi neste dia que comecei a pensar em não dar mais aula.

Decorrências da falta de leitura, Solange, da cultura televisiva. Vi isto de perto em meus dias de redação nos grandes jornais. Já contei mas vou contar de novo, pois é história que merece ser repetida ad aeternum. Há uma tendência, entre os jornalistas — particularmente os da Folha de São Paulo — de nada escrever que um leitor mediano não entenda. Se a palavra é inevitável, lá vem explicação. Sempre que você encontrar a palavra latrocínio, o redator abre parênteses e explica: roubo com morte. Como se precisasse explicar o que é latrocínio.

A partir daí, decorre uma conseqüência lógica. Se o jornalista desconhece o significado de uma palavra, é óbvio que o reles leitor também a desconhece. E o jornalista, pretendendo ser didático, prefere evitá-la. Transcrevo minhas aventuras nos dias de Folha que estão em meu livro Como ler jornais, editado em 2006.

Certo dia me caiu nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei:

EM SINAL DE PREITO

Mal o texto chegou em sua tela, o editor gritou de sua baia:

— Preito? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

— Preito é isto.

— Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a maioria das palavras que eu ou você usamos. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Quem passou por jornais nas últimas décadas, terá dezenas destas histórias para contar. No dia 03 de outubro de 2001, a Folha superou todos seus feitos. A entrevista com Fernando Henrique Cardoso versava sobre o abate de aviões clandestinos sobre o território nacional. “Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez” — assim redigiu a repórter a declaração do presidente.

A moça, que desconhecia o adjetivo soez, escreveu como pensou ter ouvido e resolveu esclarecer o leitor, que talvez não soubesse o que significava suez: “FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa: ninguém sabe de onde vem”. Explicação mais que oportuna, já que nem mesmo eu saberia dizer o que significa suez como adjetivo.

Ora, diria o jovem editor, o presidente se permite tais palavras porque é um erudito. Acontece que não se exige erudição de ninguém para falar em soez. As gerações novas, hostis à leitura e viciadas pelo parco vocabulário televisivo, não mais conhecem palavras elementares do vernáculo e ainda se julgam no dever de elucidar para o leitor vocábulos de cujo significado apenas suspeitam. Com este material humano, que sequer conhece a própria língua, faz-se jornalismo. Pois jornalismo, hoje, só pode exercer quem faz curso de jornalismo.

Melhor mesmo, só a história dos perdigotos, já incluída no ror dos clássicos da Folha. A notícia era sobre a epidemia de uma gripe, que se disseminava por perdigotos. O repórter, ciente de sua ignorância, fez o que deveria fazer: consultou o dicionário. Só que ficou na primeira acepção da palavra. Os leitores foram então informados que a gripe era transmitida por filhotes de perdiz. O cidadão urbano foi tranqüilizado. Como nas urbes não existem perdizes, muitos menos filhotes das ditas, não havia porque temer a gripe.

Ainda há pouco, a mesma Folha relatou diálogo significativo entre dois deputados, a respeito do lançamento de Sócrates e Thomas More, desse intelectual de escol chamado Gabriel Chalita:

— É ágil esse Chalita. Mal o cara morreu, ele lança um livro sobre o assunto.
— Só não sei em que time joga o Thomas More — ajuntou a outra sumidade.

Difícil cobrar conhecimento de jovens jornalistas, minha cara Laís, quando a incultura invade até mesmo a Academia Brasileira de Letras, venerável sodalício que se pretende um repositório da cultura pátria. Carlos Nejar, gaúcho de asfalto nascido em Porto Alegre, que gosta de anunciar-se como homem do pampa — já deve ter visto alguma coxilha na televisão — foi indicado recentemente por uma Associação Brasileira de Filosofia, ou coisa que o valha, para o Nobel da Literatura. (Cá entre nós, sou mais o Paulo Coelho). Mas antes de chegar ao cerne da questão, conto mais uma historinha.

Anos 70. Eu confraternizava com uma grácil adolescente, menina que curtia Mickey e Pato Donald, mas tinha outras virtudes que não as intelectuais. Eu lia uma Zero Hora, onde havia uma lista dos dez livros mais vendidos em Porto Alegre. Curioso por saber que tipo de literatura, além dos quadrinhos, agradaria àquela adorável cabecinha oca, perguntei-lhe qual título mais a atraía. Ela não hesitou um segundo: Casa dos Arrepios, de Carlos Nejar.

Tratava-se de Casa dos Arreios. O redator da Zero, como o imortal do pampa, certamente jamais vira arreios de perto. E tascou arrepios. Por uma letrinha, Nejar teve ter perdido uma parcela considerável de leitores.

Mas vamos ao caso. Em entrevista à revista Macabéa, diz o novel nobelizável:

— Tudo depende do espírito que avança nas épocas, apesar de muita repetição e retorno às essas fontes pela dita pós-modernidade. Observa Heráclito — “não há nada de novo sob o sol”, mas tudo se faz novo se sonharmos.

Pelo jeito, o imortal homem do pampa jamais leu a Bíblia. E nunca ouviu falar do Kohelet.

Janeiro 11, 2012


 

DOIS SARGENTOS QUEREM O AMARGO CAVIAR DO EXÍLIO

 

A imprensa vem, desde há muito, dando novos significados a palavras antigas. Por exemplo, genocídio. Houve quem falasse em genocídio por ocasião do assassinato de comunistas no Chile. Assassinato tudo bem. Mas entendo genocídio como extermínio de uma etnia. Não sabia que os comunistas constituíam uma raça.

Da mesma forma, os nordestinos. Mal você diz algo contra as práticas políticas dos coronéis lá do Agreste, não falta quem fale em racismo. Como se nordestino fosse raça. Ainda hoje, o líder do PT no Senado, Humberto Costa, de Pernambuco — ao defender seu conterrâneo Fernando Bezerra Coelho, ministro da Integração Nacional e atolado até o pescoço em denúncias de nepotismo e favorecimento político de seu Estado — vociferava:

— Vossa excelência está sendo vítima pelo fato de ser nordestino. Acho difícil que se tivesse havido liberação até maior para Estados como São Paulo tivesse essa celeuma. Isso só acontece quando se trata do Nordeste.

Como se políticos do Rio, São Paulo ou de qualquer outro Estado não tenham sido denunciados pela imprensa por suas mazelas. O mundo está cheio de gentes que se dizem discriminadas ou vítimas de preconceitos para passar bem. Os coitadinhos dos negros se dizem discriminados por serem negros. Neste país, onde jamais tiveram restrições legais para entrar em um bar ou em uma universidade, exigem cotas no vestibular. Nota de negro vale mais que a de um branco.

Escrevia-me há pouco um leitor, o Sidnei Júnior:

— Apesar de, freqüentemente, as palavras discriminação e preconceito serem utilizadas como sinônimos, é preciso observar que, em essência, seus significados são distintos. O fato de uma pessoa discriminar algo não significa que ela seja necessariamente preconceituosa, e vice-versa.

De acordo, Sidnei. Costumo afirmar que preconceito é o que alimentamos pelo abominável homem das neves. Por que abominável, se jamais o vimos? Preconceitos, não os alimento. Tenho, isto sim, pós-conceitos. Exceto best-sellers, não desgosto de nada que não conheço. Mas best-seller, por definição, é obra concebida ao gosto do populacho. Então já sei do que se trata.

— Discriminar é, pura e simplesmente, o ato de escolher, discernir e, então, optar por aquilo que é conveniente no momento. A toda hora o ser humano é obrigado a fazer escolhas (econômicas, familiares, amorosas) e, ao fazê-lo, precisa discriminar tantas outras. Sendo assim, discriminar é, antes de tudo, um exercício democrático, um direito inalienável e todo cidadão.

Assino embaixo. Estamos discriminando o tempo todo. Eu discrimino, por exemplo, chatos. Chato não existe em meu entorno. Como dizia Goethe, em um século que não poupa nada nem ninguém, vou poupar pelo menos a mim mesmo.

— Em si — continua Sidnei — discriminação e preconceito não são, obrigatoriamente, faltas capitais; pelo contrário, são direitos próprios de qualquer cultura. Sendo assim, cabe a cada um de nós e às instituições responsáveis saber até onde é possível considerá-los como valores bons a sociedade. O problema começa quando a discriminação ou o preconceito perdem o senso das proporções e dos respeitos e descambam para os complexos, tanto de superioridade quanto de inferioridade. É aí, infelizmente, que começam as agressões, as ofensas morais, as violações do direito do cidadão, enfim, atitudes desproporcionais que servem apenas para alimentar o ódio, o rancor de um com o outro, ou, em sentido mais atual, de uma raça com a outra.

De minha parte, diria que, se discriminação é atitude normal — todos discriminamos — preconceito não é postura inteligente. Pode não ser crime, mas tampouco é direito. Quanto ao complexo de superioridade, é discutível. Não creio estar alimentando nenhum complexo quando me sinto superior a um bugre que enterra vivo seus filhos. Ou a um negro que prefere entrar na universidade pela porta dos fundos. Ou a um crente que entrega seus últimos centavos a um pastor vigarista. Ou mesmo a um catolicão que se ajoelha ante um deus que não existe.

Há culturas superiores e inferiores. Não se pode igualar uma Alemanha que deu um Nietzsche a uma África que produz um Idi Amin Dada. Há homens superiores e inferiores. Ninguém pretende comparar um Mozart a um Muamar Kadafi, ou mesmo afirmar que ambos merecem igual respeito. Há pessoas neste mundo que não merecem respeito algum.

Há muita gente querendo passar bem alegando discriminação, dizia. Já nem falo do astrólogo aquele que pretende ter-se refugiado na Virgínia por ameaças a sua vida, como se astrólogo no Brasil corresse algum risco de vida. Muito menos me refiro àquele outro maluco do Mídiasemmáscara, que não consegue escrever um artigo sem condenar o homossexualismo. Diz-se perseguido pelos homossexuais e estaria exilado em lugar incerto e não sabido. Mas o melhor vem agora.

Dois sargentos do Exército nacional, que se declaram homossexuais recorreram à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para obter segurança internacional. Dizem-se perseguidos pelos heteros. A intenção é sair do Brasil e garantir “uma vida normal”, de acordo com um deles. “Temos visto cada vez mais casos de agressões nas grandes cidades, e, querendo ou não, somos o casal gay mais visado do país, por sermos militares e termos assumido nossa relação. Não agüentamos conviver com tantas ameaças. Ficamos em casa, não podemos sair. Só queremos garantir uma vida tranquila, como qualquer pessoa tem direito”.

Sem falar que nenhuma ameaça é definida, com nome do autor e natureza da ameaça, só o que faltava um soldado sentir medo de ameaças. Exército é uma máquina de matar. Os recrutas não são treinados para passeatas em datas cívicas, mas para matar se necessário for. Como o inimigo não gosta de morrer, é natural que pretenda matar quem o quer matar. Imaginemos os dois sargentos em uma hipotética guerra. “Que horror, o inimigo quer matar-me. Quero asilo no exterior”.

O casal diz não ter preferência por nenhuma nação em especial para residir. É de supor-se que não tenham objeção alguma a Paris, Londres ou Berlim. Os dois procuram um lugar seguro, onde a sua relação afetiva seja aceita. Como se neste Brasil, onde milhões de gays desfilam festivamente em passeatas gigantescas nas capitais do país, alguém não aceitasse relações homossexuais.

No fundo, os dois sargentos querem vida mansa no exterior. O amargo caviar do exílio, tão ao gosto dos comunistas.

Sexta-feira, janeiro 13, 2012


 

LUCIANA GENRO JUSTIFICA CEM MILHÕES DE CADÁVERES

 

O ano era 1980 e eu vivia em Paris. Hospedei por alguns dias o namorado de uma advogada trabalhista gaúcha, que se dirigia a Moscou para um curso de cinco anos na Patrice Lumumba. Muito ingênuo, uns vinte anos antes eu havia postulado a mesma bolsa. Queria sair do Brasil, não importava para onde fosse. Quis o bom deus dos ateus que minha aplicação fosse interceptada pelos serviços de segurança, o que me valeu um interrogatório e uma noite de prisão em Dom Pedrito. Dos males, o menor. Ganhasse a bolsa, faria de minha vida um inferno e, na época, teria dificuldades para voltar ao Brasil.

Mas falava do gaúcho que ia para Moscou. Eu o recebi com meus melhores vinhos e charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? — perguntei. “Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? — voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.

Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.

Mês seguinte, chega sua namorada, a advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. De cabeça gacha. Como é que foi? — perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-me algumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.

Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.

O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre. Viu? — perguntei —. Nem seis meses.

— Ah! Não vou te explicar. Não vais entender.

Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria nem seis meses em Moscou. Mas bom cabrito não berra.

Digo isto a propósito do retorno de Cuba de Luciana Genro. A ex-deputada stalinista nos prometeu um relato de seu périplo, pelo qual esperei ansiosamente. Boa stalinista também não berra. Apesar de todos os relatos da miséria que assola a ilha, da fuga em massa dos cubanos para Miami, dos fuzilamentos sumários ordenados por Castro e Guevara, Luciana Genro encontra palavras para louvar uma ditadura de mais de cinqüenta anos — a mais longa do século passado.

“A vitória da guerrilha de Fidel e Che Guevara foi o coroamento de uma luta de massas que derrubou uma ditadura sangrenta que fazia do país o quintal de recreação da burguesia americana, à custa da pobreza extrema dos cubanos — escreve Genro — . Por isso esta revolução ainda é reivindicada pelo povo. Mesmo quem critica o regime sabe que a revolução cumpriu um papel fundamental para a libertação do país”.

Se antes era o quintal de recreação da burguesia americana, hoje é o bordel de todo Ocidente. Castro conseguiu um milagre. Banalizou a tal ponto a prostituição, que hoje um cubano oferece alegremente aos turistas sua mulher, em troca dos malditos dólares do império. Quando perguntaram a Fidel porque em sua ilha as universitárias se prostituíam, o Líder Máximo foi olímpico: é que em Cuba até as prostitutas têm grau universitário.

Quanto à pobreza extrema dos cubanos, esta não é exatamente dos dias de Fulgencio Batista. O salário médio de um médico cubano, hoje, é de 15 dólares por mês, quantia que um mendigo tira fácil por dia no Brasil. As libretas de racionamento são achados do regime castrista, não do governo de Batista. Naqueles dias, quem queria sair de Cuba saía quando bem entendesse. Na ditadura de Castro, só fugindo e arriscando a vida no mar do Caribe.

A ex-deputada consegue ser um pouco mais honesta que Michael Moore em Sicko, mas acaba enredando-se em suas dialéticas contradições: “Depois do fim da URSS a situação econômica de Cuba piorou terrivelmente”. Qual era o subsídio da extinta à Cuba? Cinco bilhões de dólares anuais. Para uma ilhota de 10 milhões de habitantes. O que dá 500 dólares per capita ao ano. Hoje, um médico ganha 180 dólares por ano, menos da metade do subsídio soviético. Em uma frase, Genro atesta o fracasso total da dita revolução cubana.

“Não conheci a Cuba de antes, mas hoje a miséria anda nas ruas e contrasta com a opulência ostentada pelos turistas, que inclusive utilizam outra moeda para consumir o que é inacessível ao cidadão nacional. O que um turista paga por uma refeição em um restaurante médio equivale ao salário de um mês inteiro de um cubano, ou mais, dependendo da profissão. É verdade que o abismo entre ricos e pobres que vivemos no capitalismo não existe entre os cubanos, mas ele revela-se de forma cruel no contraste entre a capacidade de consumo dos cubanos versus a dos turistas”.

O turista usa outra moeda porque o regime não permite que os cubanos usem a mesma moeda do turista. E se um turista paga por uma refeição em um restaurante médio o equivalente ao salário de um mês inteiro de um cubano, a culpa não é do turista, mas do regime que oferece tais salários. Desde há muito um cubano não come no mesmo restaurante que um turista, e isto sempre foi assim em todo país socialista. Genro estabelece uma espécie de luta de classes entre os malvados turistas — esquecendo que ela também é turista — e os coitadinhos cubanos. Mas turistas vêm de economias capitalistas e conseguem pagar o preço dos restaurantes cubanos... para turistas.

Quanto aos cubanos, vivem em economia socialista ... e que se lixem. Diga-se de passagem, é o turismo que traz a Cuba os raros dólares que entram na ilha. Outros dólares são enviados pelos familiares refugiados naquele malvado país capitalista, os Estados Unidos.

A deputada até que reconhece algumas manchas no paraíso: “As glórias da revolução não anulam um fato que é claro como o dia: a população não tem canais de expressão. A direção do Partido Comunista Cubano é uma burocracia fossilizada que mantém a política interditada no país. Quem diverge é tratado como traidor e enquadrado como agente imperialista. Se eles lessem este meu relato eu possivelmente seria assim qualificada”.

Mas... qual partido comunista não é fossilizado? Ou ela conhece algum que seja ágil e moderno? Por que a ex-deputada não disse isto lá em Cuba? Mesmo assim, a militante do PSOL endossa todas as ditaduras do século passado:

“Pois finalizo reiterando as minhas convicções socialistas, reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana… e a minha aversão aos burocratas ditos comunistas que desfiguraram o projeto comunista, que na tradição marxista registrada no Manifesto escrito por Marx e Engels é um projeto de igualdade, solidariedade e libertação de toda a exploração e opressão, seja ela exercida pela burguesia ou pela burocracia”.

Genro está endossando o preço das revoluções que louva: cem milhões de cadáveres. Desvios do projeto original. Quem sabe, numa outra tentativa... Afinal, quando as estatísticas estão na ordem dos milhões, centenas de milhares de cadáveres constituem apenas um detalhe. Tanto faz como tanto fez.

Janeiro 16, 2012


 

PARA CRENTES, MEIAS E ORAÇÃO. PARA O JOELHO DO APÓSTOLO, MEDICINA DE PONTA

 

Se há algo que me irrita profundamente, é ver padres, pastores, freiras ou piedosas senhoras tentando levar consolo a pacientes de doenças graves. Uma pessoa doente normalmente está fragilizada e obviamente quer a companhia dos seus, e não a de estranhos. Quando minha mulher padecia no hospital, tive de correr do quarto essas almas generosas que sempre são signos de mau agouro. São abutres que só aparecem quando a hora da morte se aproxima. Se você está em um leito de hospital e um padre aparece, comece a preocupar-se. Ele sentiu o cheiro da morte.

Assim, é com satisfação que leio notícia sobre a resolução do Hospital Regional do Agreste (HRA), em Caruaru, Pernambuco, de proibir a partir desse mês que religiosos realizem pregações ou orações em grupo nas enfermarias e corredores da unidade. Se um padre já é um pé no saco, imagine uma chusma deles rezando nas enfermarias. Essa gentalha, com a arrogância de suas fés, não respeitam nem mesmo pessoas que estão morrendo. A impressão que me passam é que pretendem salvar alminhas renitentes em seus momentos finais, para aumentar seus créditos junto ao Altíssimo.

Aconteceu com minha mulher. Quando adoeceu, círculos de oração foram organizados no país todo. Deus a curará — diziam. “Estamos gastando nossos créditos junto ao Poderoso” — disse-me um casal católico. Ninguém mencionava o tratamento sofisticado, caro e doloroso, ao qual ela estava sendo submetida. Quando morreu, mudou o papo. A medicina falhou. Deus tinha outros planos para ela. Mas agora ela finalmente está sendo feliz.

Se agora estava sendo finalmente feliz, por que rezavam para que permanecesse nesta vida em que era infeliz? Enfim, pelo menos não rezaram no quarto do hospital. No velório, puseram seu sofrido corpo logo abaixo de um imenso Cristo crucificado e peladão. Tirem esse lixo daí — ordenei. Tiraram. Só o que faltava emprestar o cadáver da Baixinha para fazer propaganda do judeu aquele.

Se o paciente se cura, curou-se devido à intervenção divina, ao poder das orações. Se morre, foi falha da medicina. Segundo a direção do hospital de Caruaru, referência no atendimento no agreste de Pernambuco, a determinação atende às reclamações de pacientes e visitantes, que estariam incomodados com as constantes pregações feitas em voz alta durante as visitas nas enfermarias.

Em nota pública, disse o diretor do HRA, José Bezerra: “Sabemos que existem pacientes que necessitam de um apoio, de uma palavra de conforto, e encontram tudo isso na religião. No entanto, nem todos os religiosos que fazem as visitas têm essa intenção. Muitos, além de visitar o seu paciente, acabam chamando atenção dos outros — muitas vezes a contragosto, porque não são da mesma religião, para que escutem o que eles têm a dizer”.

Padres ou pastores deveriam ser proibidos de entrar em hospitais. Que façam seu proselitismo em seus templos. E assim mesmo, estão abusando da paciência dos cidadãos. No início deste janeiro, a inauguração de um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus, em Guarulhos, do apóstolo Valdemiro Santiago, causou um congestionamento na Via Dutra de mais de 20 quilômetros.

Mais de 450 mil pessoas acorreram ao local. Passageiros que tinha vôo marcado no aeroporto de Cumbica não conseguiram chegar a tempo e perderam a viagem. Quem vai indenizar estes passageiros? Se bem conheço os bois com que lavro, ninguém. Pior que tudo é a gritaria desses vigaristas. Ai de quem morar perto de um desses templos. Pelo jeito, os evangélicos acham que o demônio é surdo. Só pode ser expulso dos endemoniados aos berros.

A propósito, nos programas televisivos da Igreja Mundial do Poder de Deus, os milagres saltam como pipocas numa panela. Aids, reumatismo, câncer, cegueira, lumbago são curados na hora com o toque divino do apóstolo. Sua igreja lançou “as poderosas meias consagradas abençoadas pelo Apóstolo Valdemiro Santiago”.

Embora a Bíblia não faça reverência alguma a meias usadas por Josué ou Moisés, o santo apóstolo utiliza a passagem bíblica de Josué 1:3 para fazer a propaganda em vídeo das ditas: “Todo lugar que pisar a planta do vosso pé, vo-lo dei, como eu disse a Moisés”. Para receber as meias abençoadas, os fiéis têm que ofertar uma quantia de R$ 153,00 reais para a Igreja Mundial.

Mas o melhor vem agora. Em novembro passado, o apóstolo milagreiro se submeteu a uma cirurgia no Hospital Albert Einstein em São Paulo para resolver um problema no joelho. Para os crentes, meias consagradas e orações.

Para o joelho do apóstolo, a melhor medicina de São Paulo.

Janeiro 18, 2012


 

VERISSIMO SE ALEGRA COM NAUFRÁGIO DO CONCORDIA

 

Os marxistas, tanto os antigos como os atuais, sempre nutriram um secreto ódio pela Europa. O velho continente era uma resposta bem-sucedida às veleidades dos comunistas. Era e é. A União Soviética afundou e a Europa continua navegando firme pelos mares da História. Não foi por acaso que Marx e Engels escreveram na introdução do Manifesto: um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo. Rondava. Hoje o comunismo voltou à sua condição de fantasma.

Fala-se hoje em crise. Como eu escrevia há pouco, bem-vinda seja entre nós a crise européia. Entusiasmado com a notícia de que o Brasil desponta como a sexta economia do mundo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, andou dizendo mês passado que o país poderá demorar de dez a vinte anos para fazer com que o cidadão brasileiro tenha um padrão de vida semelhante ao europeu. Sem nada entender de economia, diria que isto é possível. Basta que a Europa continue empobrecendo nos próximos dez ou vinte anos. Aí o Brasil empata.

Para bom comunista, até o naufrágio do Costa Concordia é motivo de alegria. Escreve Luís Fernando Verissimo:

“Disseram do naufrágio do Titanic em 1912 que ele simbolizou o fim tardio do século 19, com sua fé na tecnologia e no domínio do homem sobre a natureza. Se aquele magnífico navio adernado na costa da Itália simboliza alguma coisa é o fim de outra ilusão que ninguém esperava fosse acabar: a união européia, o euro forte e os anos de euforia com o dinheiro farto. E ninguém viu as pedras”.

Há um discreto regozijo nestas palavras. Haja wishful thinking para imaginar que o acidente nas costas da Itália pode simbolizar o fim da união européia, do euro forte e dos anos de dinheiro farto. Houve acontecimento muito mais emblemático nos estertores do século passado, e não vi Verissimo algum com ele regozijar-se. Falo da queda do Muro, o segundo acontecimento mais significativo dos últimos cem anos. Naquele 09 de novembro de 1989, afundava uma tirania de sete décadas. A partir daquele dia, o colapso do comunismo era favas contadas. Quanto à Europa, por mais navios que adernem, ainda gozará de boa saúde por mais algumas décadas.

O que mais ameaça a Europa não é um acidente provocado pela irresponsabilidade de um comandante, mas fenômeno bem mais vasto e duradouro, a invasão muçulmana. As esquerdas, que odeiam a Europa, jamais denunciarão esta invasão. Pelo contrário, a apóiam. Se o comunismo não conseguiu destruir ou subjugar a cultura européia, esta tarefa é confiada aos imigrantes árabes e africanos.

Eu estava em Roma no dia 1º de janeiro de 2002, quando foi lançado o euro. Havia uma euforia generalizada no país e milhares de italianos fizeram fila diante das casas de câmbio, abertas até a meia-noite do 31, para pegar as primeiras cédulas. Os italianos não deploraram a morte da vecchia lireta, nem os espanhóis o passamento da peseta. Nem mesmo os gregos, que abandonavam uma moeda antiga de mais de dois mil anos, derramaram lágrimas pela dracma.

Na Finlândia, único país nórdico a aderir à nova moeda, os finlandeses fizeram fila junto aos bancos, naquele réveillon, sob 15 graus abaixo de zero, para trocar seus markkaa por euro. Na Alemanha, onde a transição foi imediata, sem prazo para circulação simultânea da moeda antiga e da nova, os ex-alemães orientais tiveram uma experiência de Terceiro Mundo. Em 91, haviam trocado o deutschmarx pelo deutschmark e, dez anos depois, trocavam este pelo euro.

Os escudos portugueses foram repousar junto aos ceitis, as pesetas junto aos maravedis, sem que ninguém lamentasse esta passagem para o passado. Na Via della Conciliazione, que dá acesso ao Vaticano, naquele 1º de janeiro já se viam sinais dos novos tempos. Quanto vale um anjo em euro? — perguntava-se uma vendedora de quinquilharias sagradas, puxando do bolso seu euroconvertitore.

A vida se tornou mais fácil no continente. Antes, a cada fronteira, você tinha de trocar dinheiro e fazer novos cálculos para determinar o preço dos serviços e mercadorias. As operações bancárias e o comércio se tornaram mais ágeis e instalou-se o que se convencionou chamar de euroforia. Isso apenas uma década após uma outra boa notícia, o desmoronamento do comunismo e o esfacelamento da União Soviética.

Maus dias para as esquerdas, que agora se assanham ante a crise européia e a perspectiva do fim do euro. O fato é que a Europa se expandiu demais, pulando de 12 para 27 países-membros e assumindo economias fracas. Até pode ser que alguns países saíam da eurozona. Mas o euro, para decepção das viúvas do Kremlin, continuará sendo a moeda predominante na maioria dos países da União Européia.

Verissimo prefere ver o símbolo da decadência da Europa no naufrágio de um transatlântico de luxo, um dos ícones do capitalismo, que deixou uma dúzia de cadáveres. Claro que jamais veria o símbolo da decadência do socialismo na explosão de Chernobyl, em 1986, que até 2005 havia deixado 56 mortes — 47 trabalhadores acidentados e nove crianças com câncer da tireóide — mais uma perspectiva de cerca de 4000 cadáveres futuros, com doenças relacionadas com o acidente. Tampouco viu símbolo algum de desastre na explosão do Kursk, que deixou 118 marinheiros sob as águas do mar de Barents.

Como também não vê o símbolo da decadência da África nas precárias pateras lotadas de miseráveis que enfrentam a morte e mesmo morrem, em busca de comida e trabalho no velho continente.

Janeiro 20, 2012


 

A TELEVISÃO NACIONAL E A HUMANA ESTUPIDEZ

 

Não. Não vou discutir a ridícula história do suposto estupro ocorrido durante o tal de Big Brother Brasil. Primeiro, porque não assisto à televisão nacional. Segundo, porque jamais assistiria ao BBB. Certa vez, para saber do que se tratava, tentei ver o programa. Não consegui agüentar cinco minutos. E o BBB, pelo que me consta, tem milhões de espectadores. Haja pobreza mental neste país.

Vou discutir, isto sim, as ridículas reações da imprensa ao ridículo programa. A última Veja, por exemplo, deu capa e nada menos que oito páginas a um episódio que não merecia sequer oito linhas. Pelos jornais, fico sabendo que, às seis da manhã de domingo passado, numa emissão pay-per-view da Globo, um dos palhaços do reality show teria estuprado, sob um edredom, uma outra idiota que dormia.

Duas considerações, para começar. Primeiro, tanto estuprador como vítima negam o estupro. Que o estuprador negue, entende-se. Mas se a vítima nega, então não há estupro algum. E portanto razão nenhuma para esse alarido da imprensa. Em segundo lugar, é preciso ser muito estúpido para pagar para ver um programa estúpido como aquele, às seis horas da madrugada. Eu não o assistiria nem que me pagassem.

Tenho lido reclamações, tanto nos jornais como na Internet, contra a televisão, contra a rede Globo, contra o BBB. Não as entendo. O controle remoto tem dois botõezinhos, on e off. Basta clicar no segundo e o telespectador está protegido de qualquer infâmia. Leio na reportagem da Veja que a repercussão do programa no Twitter atingiu a marca de 116 mil tuiteiros. Ou seja, havia pelo menos 116 mil idiotas preocupados com o BBB.

Desde há muito, há uma grita geral contra o baixo nível da televisão nacional. Grita besta. Se você acha que a televisão tem baixo nível, não a ligue. Ninguém é obrigado a assistir a programas idiotas. Assiste porque quer. No fundo, parece existir a noção de um certo direito a assistir TV, e neste certo direito vem embutida a noção de assistir a bons programas. Ora, televisão precisa de público. Necessitando de público, explora os baixos instintos deste público. Quem faz a televisão não são seus programadores, mas essa gentinha que paga para ver idiotas se esfregando sob lençóis às seis da madrugada.

A televisão criou um dos personagens mais repelentes desta nossa era midiática, a tal de celebridade. Uma analfabeta qualquer, desde que tenha algumas curvas, vira celebridade da noite para o dia, porque a televisão quer. E por que a televisão quer? Porque sabe que se dirige a um público de analfabetos, à gente que não lê, e que pede heróis do mesmo nível de analfabetismo. Que ninguém se queixe. A televisão que existe no Brasil é a televisão que os brasileiros querem. Diga-se o mesmo do governo. Que ninguém pretenda programas inteligentes em um país que elege — e reelege — um analfabeto para a Presidência da República.

Nunca tive boas relações com a televisão. Até os trinta, o aparelhinho não existia em minha casa. Certa vez, quando vivia em Porto Alegre, recebi a visita de moça muito linda, mas carente de cérebro. Espantou-se com a nudez de meu apartamento. Não tens televisão? Não, não tinha. Rádio? Muito menos. E carro? Também não. Então deves ser louco. Talvez fosse, mas vivia muito em paz comigo mesmo, sem rádio, televisão ou carro. Tinha, isto sim, livros. Mas isto pouco interessava à moça.

Só fui conhecer televisão em Paris, em 77. Era correspondente de um jornal gaúcho. Embora falasse razoavelmente o francês, precisava de mais intimidade com a língua e com a política nacional. A televisão então me pareceu ser útil. Mais ainda, tinha alguns programas interessantes, como o de Bernard Pivot, que entrevistou em seu ofício mais de oito mil escritores. Ano passado, fiz um despilfarro: comprei uma televisão de 56 polegadas. Eu a uso para ver filmes ou documentários. Mesmo na televisão a cabo, não vislumbro muita vida inteligente.

Tenho um vício, é verdade, que já confessei. É assistir aos pastores televisivos na madrugada. Mas é vício que me informa sobre a incultura das gentes. Vivo em uma pequena bolha de amigos cultos e, para conhecer a idiotice ambiente, nada melhor que vê-la concentrada em templos no conforto de meu sofá. Dá muito trabalho sair de casa para ter uma idéia da ignorância que me cerca.

Eu a contemplo então, perplexo, na telinha. Milhares de pessoas, na madrugada, gastando tempo de descanso, para ouvirem, extasiadas, vigaristas de baixo nível. Meus prediletos são Edir Macedo, R.R. Soares, o apóstolo Valdemiro e a bispa Sonia Hernández. Aquela que um dia disse: “gente, Deus é uma coisa quentinha”. Saiu de seis meses de prisão nos Estados Unidos, por evasão de divisas, e retornou, olímpica, a seu programa. Quatro ou cinco mil panacas a veneram cada noite em seu templo.

Penso que, neste sentido, a televisão até que educa. É uma forma de tomarmos contato com a humana estupidez sem sair de casa.

Janeiro 22, 2012


 

A LEI QUE VÁ PRA PUTA QUE A PARIU

 

Leio no Estadão que trinta pessoas foram presas no domingo e também na madrugada de hoje, durante operação para reintegração de posse do acampamento Pinheirinho, na zona sul de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Segundo a Polícia Militar, nove veículos foram incendiados.

No Facebook, essa nova e confortável tribuna revolucionária, onde militantes da utopia acham que podem salvar o mundo teclando, houve quem falasse em massacre. E houve quem se perguntasse por que a polícia não invadia a casa do bispo Edir Macedo. Longe de mim defender vigaristas, mas o bispo não invadiu o espaço em que habita. Edir Macedo há muito devia estar na cadeia, mas por outras razões. Por fraude, exploração da fé pública, extorsão de crentes, evasão de divisas, coisas do gênero. Mas se formos por esse lado, nem os padres da Igreja Católica estariam soltos. Religião sempre foi enganação.

Não houve massacre. Houve apenas o cumprimento de uma ordem judicial. O PT bem que gostaria de um banho de sangue em ano eleitoral. Um dos advogados dos invasores já falava em um novo Carajás. O líder dos invasores não mora lá, tem carro e casa própria e recebe um gordo salário de um sindicato, no qual não cumpre expediente. A prefeitura de São José dos Campos está nas mãos do PSDB. O governo federal, em manifesto desrespeito a uma ordem judicial, saiu em defesa dos invasores. O PT quer a prefeitura nas próximas eleições. Para decepção dos petistas, não houve nenhum cadáver na reintegração de posse em Pinheirinho.

Em fevereiro de 2010, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) — principal entidade de classe da toga, com 14 mil juízes filiados — criticou duramente a proposta do governo que previa a realização de audiências públicas prévias como pré-requisito para a concessão de liminares em caso de reintegração de posse de terra, prevista no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Em nota pública, a AMB alertava que, se a proposta fosse aprovada, iria “afrontar as prerrogativas do Poder Judiciário e, conseqüentemente, a dos cidadãos”.

Ora, a reintegração de posse, como se processa hoje, já é um desvio de uma prerrogativa policial. Há alguns anos, ouvi de um empresário estrangeiro, que desistira de investir no Brasil: “Que país é esse em que preciso recorrer ao Judiciário para recuperar minhas propriedades que foram invadidas por bandoleiros? E a polícia, para que serve?”

Ao assumir a reintegração de posse, o Judiciário caiu na armadilha da guerrilha católico-comunista do MST. Isso sem falar que hoje, em certos Estados, documento de reintegração de posse e papel higiênico têm a mesma utilidade. O pior de tudo é que há juízes que vêm na lei apenas esta função.

“Não é aceitável que o juiz, após formar seu livre convencimento para conceder uma medida liminar, observando o devido processo legal, tenha condicionada sua decisão, muitas vezes necessária e urgente, à realização de uma audiência pública com viés não raras vezes político, postergando ainda mais a prestação jurisdicional pretendida”, destacava a nota da AMB.

O dia 17 de outubro de 2001 foi um marco histórico nesta escalada das esquerdas. Pela primeira vez na história do país, um juiz revogou o direito de propriedade. Luís Christiano Enger Aires, da 1ª Vara Cível de Passo Fundo, contaminado pelos ares da época, negou a reintegração de posse de uma fazenda invadida pelo MST, sob a alegação de que não havia provas da função social do imóvel.

Temos agora um juiz em Passo Fundo que, de uma penada, decidiu abolir a propriedade privada. De Passo Fundo para o mundo. Só faltou o Lênin dos pampas pendurar em postes os kulaks gaúchos, como escarmento. Como dizia uma escritora carioca, em uma das Jornadas Literárias lá realizadas: “pena que Platão não conheceu Passo Fundo”.

De uma penada, foram revogadas também a Constituição e o Código civil nacionais. Juízes se arvoram em legisladores e prolatam sentenças ao arrepio da lei. Como disse um destes senhores, o juiz Márcio de Oliveira Puggina, em 1990, ao justificar uma sentença: “A lei era claramente institucional. Eu a mandei à puta que a pariu e autorizei o município a pagar.”

Quando em um Estado um magistrado assim se refere à lei e permanece magistrado, está criado o clima para ministros contestarem uma decisão judicial. Os velhos comunossauros que hoje ocupam o palácio do Planalto tiveram uma recaída e parecem ainda alimentar o sonho comunista de acabar com a propriedade privada.


 

SÓ MUDA A MOSCA

 

Em meus dias de Folha de São Paulo, tive uma colega judia que morava em meu bairro. Era judia, mas de ortodoxa nada tinha. Seu hobby predileto era espalhar o terrorismo entre rabinos. Mal via um na calçada, dava um jeito de esbarrar nele e desculpava:

— Mil perdões, estou nervosa. Estou menstruadíssima...

O bom rabino entrava em pânico e punha-se a estapear as vestes como se tivesse sido atacado por um enxame de abelhas.

Tenho escrito seguidamente sobre o que chamo de ginecofobia, fenômeno alimentado particularmente pelos muçulmanos. Pois só um profundo medo do sexo oposto pode explicar a condição inferior à qual a mulher é renegada no mundo islâmico. Mas, pelo jeito, seus primos judeus competem firme nesta maratona de obscurantismo.

Causou pasmo no Ocidente, e mesmo em Israel, a recente agressão a Naama Margolese, uma menina de oito anos, por ortodoxos nuredim, quando ela se dirigia à escola, na cidade de Beit Shemesh, próxima a Jerusalém. Os judeus, considerando que Naama estava inconvenientemente vestida, xingaram-na de prostituta, cuspiram em seu rosto e a empurraram. A mãe de Naama diz que o trauma causado foi tão profundo que a garota treme quando tem de ir para a escola.

Quando árabes ou iranianos cospem no rosto de uma mulher sem véu, imediatamente os colocamos na condição de bárbaros. Onde colocar estes brutos ocidentais que se pretendem civilizados? A resposta é só uma: no mesmo saco.

Em junho do ano passado, o obscurantismo dos ortodoxos já havia escandalizado a imprensa. Segundo o site Ynet, um Tribunal Rabínico de Jerusalém condenou à morte por apedrejamento um cachorro vira-lata acusado de ser a reencarnação de um advogado já falecido amaldiçoado por insultar juízes religiosos há 20 anos.

Segundo o site, o advogado foi condenado pelo mesmo tribunal a reencarnar como cachorro e teria retornado ao local (já como cão) para se vingar. A execução da sentença foi delegada a um grupo de crianças, mas o cachorro conseguiu dar no pé. Em uma sociedade onde um tribunal rabínico se reúne para condenar um animal ao apedrejamento, nada de espantar que cuspam na cara de uma menina por julgá-la inconvenientemente vestida.

Se bem que, para povo que cultivou um dia o hábito de lapidar mulheres, apedrejar cães é café pequeno. Está no Deuteronômio, que prega a lapidação da mulher quando nela o marido não achava virgindade.

“Porém, se isto for verdade que se não achou na moça virgindade, então levarão à porta da casa do seu pai e os homens de sua cidade a apedrejarão até que morra, pois fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai: assim eliminarás o mal diante de ti”.

Segundo noticiário da BBC, tanto em Beit Shemesh, como em Jerusalém, Bnei Brak, Tzfat e Elad, há calçadas separadas para mulheres, linhas de ônibus nas quais as mulheres devem sentar-se atrás dos homens e filas separadas em bancos e clinicas médicas.

A segregação é praticada há anos e conta com a aquiescência do governo. O Ministério dos Transportes permite a existência das linhas de ônibus nas quais é praticada a segregação e as prefeituras, subordinadas ao Ministério do Interior, autorizam placas nas ruas que guiam as mulheres para uma calçada e os homens para outra.

Quem diria? No rico e aguerrido Israel, armado com bombas nucleares e uma força aérea letal, onde toda mulher é soldado e luta ombro a ombro com os israelenses, as mulheres são segregadas em bancos, clínicas médicas, ônibus e ruas. Se isto é o que transpira na imprensa, imagine o leitor o que ocorre entre quatro paredes.

Cruzo com estes senhores na rua todos os dias. Boa parte das mulheres casadas de meu bairro cobrem os cabelos com uma peruca, que só pode ser retirada na intimidade, diante do marido. Os ortodoxos jamais dão a mão a mulheres que não as suas. E, pelo que vejo na rua, não dão a mão nem à própria mulher.

Ela pode estar impura. Isto é, menstruada. Há alguns anos, Marta Suplicy dirigiu-se de mão estendida, como todo político, a um grupo de rabinos. Exceto um, todos lhe negaram a mão. O único a estender-se a sua foi aquele rabino ladrão de gravatas, de hábitos pouco ortodoxos.

Em 2006, mantive polêmica com o rabinato de meu bairro em função de artigo no qual, além de outras bizarrices, eu comentava este curioso comportamento. Respondeu-me um representante da comunidade judaica:

— Um homem, mesmo tendo 100% de certeza de que uma mulher não está menstruada — escrevem meus contestadores — e ainda que seja sua esposa; mesmo assim, pelas leis mais estritas judaicas, não pode cumprimentá-la em público. E por quê? Por questão de recato. Para preservar carinhos e troca de afagos para os momentos íntimos e particulares com a sua amada.

Ora, não vejo nenhuma falta ao recato em dar a mão a uma mulher. Assim fosse, todos os cristãos deste país seriam despudorados irremediáveis. Meus interlocutores pareciam não ter lido a Torá. Lá está, em Levítico 15:19-24:

“E mulher, quando tiver fluxo, e o fluxo da sua carne for de cor sangüínea, sete dias ficará separada na sua impureza; e todo aquele que tocar nela será impuro até a tarde. E tudo sobre o que se deitar na sua impureza será impuro, e tudo sobre o que ela se sentar será impuro. E todo que tocar no seu leito, lavará suas vestes, se banhará em água e será impuro até a tarde. E quem tocar sobre o leito ou sobre o objeto em que ela está sentada, tocando neles, será impuro até a tarde. E se um homem deitar com ela, a sua impureza passará sobre ele, e ficará impuro sete dias; e toda cama em que ele se deitar, se fará impura”.

Ora, para mim, cidadão ocidental e vivendo neste século, soa muito estranho considerar impura uma mulher em seus dias de menstruação. Uma das traduções da Bíblia, a de João Ferreira de Almeida, vai mais longe: tacha as mulheres como imundas.

“Fala aos filhos de Israel, dizendo: Se uma mulher conceber e tiver um menino, será imunda sete dias; assim como nos dias da impureza da sua enfermidade, será imunda. (...) Mas, se tiver uma menina, então será imunda duas semanas, como na sua impureza”.

O rabino Meir Matzliah Melamed, que comenta minha Torá, especifica com rabínicas minúcias as substâncias tóxicas que portam estes seres imundos:

“Os cientistas maravilham-se diante do fato de que os antigos hebreus praticavam o mais alto padrão de higiene sexual reconhecido nos tempos atuais. Tem sido demonstrada também a existência de uma substância tóxica no sangue, na salivas, na transpiração, na urina e em todas as outras exudações da mulher durante o período da menstruação”.

Que nojo! Que estas imundas sejam confinadas na traseira dos ônibus e enviadas para o outro da calçada por onde passam os virtuosos e higiênicos nuredim. Árabes e judeus vivem em guerra constante. No fundo, participam do mesmo obscurantismo.

Só muda a mosca.

Janeiro 24, 2012


 

GOVERNO GAÚCHO RECEBE TERRORISTA ITALIANO COM TAPETE VERMELHO

 

Por esta Cesare Battisti certamente não esperava. Condenado à prisão perpétua na Itália, foi ontem recebido quase com honras de chefe de Estado no Palácio Piratini, em Porto Alegre. Desfilou ainda pela imprensa gaúcha e pelo centro da cidade com uma aura e sorrisos de celebridade.

Em março de 2007, o terrorista foi preso quando passeava tranqüilamente no calçadão de Copacabana. Ligado às Brigadas Vermelhas, que durante dez anos sabotaram fábricas, assaltaram bancos e realizaram atentados contra juízes, jornalistas, policiais e empresários, culminando com o seqüestro e assassinato do ex-premiê Aldo Moro, em 1978, Battisti foi condenado à prisão perpétua — à revelia — por quatro homicídios nos anos 70.

Battisti se diz inocente. Mas não ousou comparecer aos tribunais para defender-se quando estava sendo julgado. Estava gozando de um exílio idílico na França, graças a uma lei de Mitterrand que negava extradição a terroristas italianos.

Em 2004, com a cassação do asilo, fugiu para o Brasil, para não ser reenviado à Itália. Sua escolha foi sensata. O Brasil está se tornando um resort de luxo para terroristas aposentados. É o único lugar do mundo em que guerrilheiros presos e condenados por ações terroristas estão hoje confortavelmente sentados nos altos escalões do poder. Battisti deve ter intuído que encontraria nas praias cariocas o meio-ambiente ideal para gozar ses vieux jours. Antonio Negri, outro terrorista italiano, ligado às Brigadas Vermelhas e responsável por inúmeros crimes, ganhou coluna na Folha de São Paulo. Por seus feitos, certamente.

Com a ameaça de extradição de Battisti para Itália, Fernando Gabeira imediatamente saiu em socorro do companheiro de terror e liderou um movimento, junto ao governo e parlamentares, para evitar que Battisti tivesse de cumprir a pena a que foi condenado na Itália: prisão perpétua.

Gabeira certamente terá êxito — escrevi na época. O Supremo Tribunal Federal já havia negado extradição a três outros terroristas italianos: Achille Lolo, acusado de matar duas crianças em incêndio e hoje assessor oficioso do PSOL; Luciano Pessina, membro das Brigadas Vermelhas e Pietro Mancini, participante da organização Autonomia Operária.

Gabeira teve êxito. Em 2009, quando ministro da Justiça, o stalinista Tarso Genro concedeu asilo político ao assassino. “A sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal”, dizia o texto assinado por Tarso ao justificar a concessão do refúgio. Como se a Itália contemporânea fosse uma ditadura onde um réu não tem direito à defesa. Battisti foi condenado à revelia porque estava refugiado na França, sob as asas protetoras do colaborador nazista François Mitterrand.

O Brasil já teve fama internacional por ser um país generoso com assaltantes internacionais e mafiosos. Você já deve ter visto não poucos filmes em que um vigarista bem sucedido, já nas cenas finais, após livrar-se da polícia, prepara as malas com uma bela cúmplice e escolhe seu rumo com um sorriso beatífico: Brasil. Os tempos mudaram. Atualmente estamos recebendo de braços abertos uma nova safra de delinqüentes, os terroristas.

Em Porto Alegre, Battisti foi recebido com abraços no palácio do governo por Tarso Genro, que acaba de voltar das Disneylândia das esquerdas tecendo loas à ditadura cubana. Tudo muito coerente. O capitão-de-mato que devolveu ao gulag tropical dois dissidentes que buscavam refúgio no Brasil, recebe agora os agradecimentos do terrorista ao qual ofereceu refúgio.

Diz Battisti em entrevista à Zero Hora:

—Tarso como homem, ministro e hoje governador é uma pessoa que mostrou ter um valor muito alto de ética e de coragem política. Quando ele teve de se expressar e decidir sobre o meu caso, mostrou tudo isso. Eu tinha muita vontade de conhecê-lo pessoalmente e de apertar a mão dele, como hoje aconteceu.

Tarso desejou que Battisti fizesse bom proveito da liberdade. Que aproveitasse a generosidade do povo brasileiro. O criminoso quer agora encontrar-se com Lula, que foi o responsável, em última instância, por seu asilo. Lula, que já abraçou Kadafi e o saudou como “amigo e irmão”, certamente não verá nisto nenhum inconveniente.

A Zero Hora, gentilmente, define o terrorista como ativista. A Folha de São Paulo também é gentil. Fala em ex-terrorista. Ora, se Battisti é inocente dos assassinatos pelos quais é acusado — como pretende — nunca foi terrorista nem pode ser ex-terrorista. Se é culpado, como foi julgado, é terrorista e terrorista continua sendo, pois em momento algum renegou seu passado.

O ativista Bin Laden teve uma idéia infeliz ao refugiar-se no Paquistão. Viesse para o Brasil não precisaria esconder-se e estaria sendo caitituado pela imprensa e recebido por governadores.

Janeiro 25, 2012


 

FÁBRICAS DE RACISMO

 

Um artigo de Rosa Montero, colunista de El País, publicado em maio de 2005, sabe-se lá por que internéticas razões, ressuscitou com força na Web. Terça-feira passada constava em primeiro lugar na lista “Lo más visto” em elpais.com

Vamos ao caso, conforme relata a colunista. Pelo que me lembre, a imprensa brasileira não o comentou. Em um comedor universitário na Alemanha, uma estudante pega uma bandeja de comida do selfservice e senta-se em uma mesa. Nota que esqueceu os talheres e vai buscá-los. Ao voltar, vê com surpresa que um jovem negro está comendo em sua bandeja. Duvida um momento, mas por fim, condescendente, senta-se para dividir sua comida com o intruso, que se mostra amigável e sorridente. Quando terminam de comer, o rapaz vai embora e, ao levantar-se, ela se dá conta de que sua bandeja está intacta, junto a seu abrigo, na mesa ao lado.

Comovente, não? A alemã racista acha que o negro apoderou-se de sua bandeja. Em um laivo de condescendência, consente em reparti-la com o negro. O bom negrinho nada objeta, apesar de a bandeja ser sua. A arrogância e o racismo europeus confrontam-se com a humildade e a generosidade africanas. Dá vontade de chorar.

Ao final do artigo, Rosa Montero alertava: “Dedico esta historia deliciosa, que además es auténtica...”. Deliciosa, pode ser. Mas não era autêntica. Mais ainda, era plágio de ficções. Constava do livro Galletitas, de Jorge Bucay. Outros situam sua origem em uma narrativa do escritor britânico Douglas Adams, publicado no final dos 70. Ou ainda a um conto juvenil da escritora Federica de Cesco — adorável suissesse que tive a honra de conhecer em meus dias de Estocolmo — intitulado Spaghetti für zwei.

“A lenda teve muitos avatares” — diz Rosa Montero, que agora reconhece seu equívoco —. “É um desses relatos fascinantes que, por alguma misteriosa razão que tem a ver com o inconsciente coletivo, tem uma grande capacidade de sobreviver”.

Essas histórias edificantes, por demais óbvias, jamais me convenceram. Como em toda história edificante, sempre há um detalhe que não bate. É de supor-se que ambos os protagonistas não tivessem as mesmas preferências alimentares. Será que a alemã não notou que a comida que dividia com o africano não era a mesma que havia escolhido?

Por que fascinante? Porque acusa a Alemanha de racismo? Qual misteriosa razão? Não há razão misteriosa alguma. É apenas o desejo das esquerdas que detestam a Europa de acusar o branco europeu de racismo.

Em meu ensaio Como ler jornais (2006), relatei vários desses casos. Como sempre é bom refrescar a memória das gentes, vou retomar alguns. Apenas alguns.

Um dos casos mais perturbadores de manipulação dos fatos ocorreu no verão europeu de 93, na Holanda. A reunião de pauta da Folha de S. Paulo foi excitada naquele dia. Uma menina marroquina, Naima Quaghmiri, nove anos, morrera ao cair em um lago em Roterdã. Duzentas pessoas teriam assistido seu afogamento, sem prestar-lhe socorro. O pauteiro brandia o telex com fúria. A idéia era produzir uma manchete como

RACISTAS HOLANDESES DEIXAM MORRER FILHA DE IMIGRANTES

A notícia era absurda. Duas centenas de pessoas não observam, passivamente, uma criança se afogando. O lago, uma espécie de açude, como mostrava a foto, era raso. No meio dele, havia um bombeiro com água pela cintura. Dois dias depois, novo despacho retificava o anterior. Não havia uma menina se afogando e duzentos holandeses assistindo. Naima se afogara horas antes. Policiais e bombeiros haviam pedido aos veranistas que formassem um semicírculo, de mãos dadas, e percorressem o lago em busca do cadáver. Os veranistas se recusaram.

Perguntei ao editor se a reportagem seria retificada. “Não precisa” — disse — “Amanhã ninguém mais lembra disso”. Mas jornalismo é o registro da história, é nos arquivos do passado que os pesquisadores do alegado amanhã buscam dados para seus ensaios, aleguei. “O que de fato acontece” — disse o editor — “só vamos saber meses depois. Jornalismo é assim mesmo”.

Se não há agressão alguma, cria-se pelo menos atos criminosos por omissão. Foi o que aconteceu em Sebnitz, na Alemanha, em dezembro de 2000. O Estadão titulou com gosto:

MORTE DE CRIANÇA POR NEONAZISTAS
ENVERGONHA ALEMANHA

Vamos à notícia:

Berlim — No dia seguinte à revelação do assassinato do garoto Joseph, de seis anos, do qual um grupo neonazista é o principal suspeito, surgiram vozes em toda a Alemanha pedindo justiça. Enquanto isso, no local do crime, o povoado de Sebnitz, na Saxônia, vivem-se momentos de vergonha após a cumplicidade silenciosa de seus habitantes. O jornal Bild denunciou a história de Joseph, filho de pai iraquiano e mãe alemã, que, perante a indiferença de 300 banhistas, foi espancado, torturado e afogado por um grupo de neonazistas em uma piscina pública. Na época, o caso foi encerrado como um acidente normal e, graças apenas à tenacidade da mãe da criança, a promotoria reabriu agora o caso. A história da morte do menino ocupou a capa de todos os principais jornais do país e o Bild reproduziu, também na primeira página, uma fotografia do garoto morto, junto com a mãe.

Esta é a notícia. Mesmo fractal do episódio em Roterdã: filho de imigrante se afogando, uma multidão de banhistas assistindo. Se a notícia sai no ano 2000, é bom lembrar que o fato teria ocorrido em 1997. Detalhes novos: criança espancada, torturada e assassinada. Os banhistas, desta vez são trezentos. Este tipo de notícia tende a aumentar nos próximos anos. É fácil acusar uma multidão. Como ninguém é acusado individualmente, ninguém reclama. Mais difícil é acusar uma ou duas pessoas. Pode dar processo.

Vamos aos fatos, em tudo semelhantes ao episódio de Roterdã. No dia 13 de junho de 1997, uma criança de 6 anos, Joseph Abdulla, morrera afogada numa piscina pública cheia de gente. Quando bombeiros e médicos chegaram, era tarde demais: o corpo boiava há dez minutos sem vida. A polícia fez um inquérito e concluiu que tudo foi um lamentável acidente. O caso foi arquivado e esquecido. Ocorre que a mãe, a farmacêutica Renate Kantelberg-Abdulla, se convenceu de que Joseph fora morto por neonazis por ser filho de um iraquiano. Os assassinos tê-lo-iam previamente drogado e depois lançado à água.

Para comprovar esta tese, foi contratado um dos advogados mais conhecido da Alemanha, Rolf Bossi. Renate conseguiu também o testemunho de 23 pessoas, adultos e crianças, cujas versões levavam a pensar que poderia não se ter tratado de um acidente. O Bild do dia 23 de novembro recoseu a matéria com o título Neonazis afogam criança. Sebnitz passou para a primeira página da imprensa internacional e foi invadida pela televisão. Kurt Biedenkopf, o ministro presidente da Saxônia, foi a Sebnitz participar numa cerimônia religiosa em memória da «vítima». Edmund Stoiber, ministro presidente da Baviera, se disse horrorizado. «Não apetece viver num país onde uma criança de seis anos é assassinada por criminosos, por causa de motivos políticos, e onde ninguém mexe um dedo para impedir o crime», escreveu o jornal Tagesspiegel, de Berlim.

Soube-se depois que Renate dera dinheiro às 23 testemunhas para influenciar a sua versão. Uma das crianças interrogadas confessou ter dito “aquilo que a senhora queria ouvir, para ela me deixar voltar para casa». Tampouco foram confirmadas as ligações com grupos neonazis. O próprio Bossi, advogado de Renate, escrevera uma carta à sua cliente, duvidando da tese de uma conspiração racista e dizendo-lhe que ela «insistia em travar uma luta contra o resto do mundo».

E muitos outros casos compilei. Como a luta de classes está fora de moda, o racismo tornou-se o novo motor da história. Multidões serão novamente denunciadas por crimes que não foram cometidos nem podem ser provados. Mesmo desmentidos, comunidades e países inteiros herdarão a pecha de racistas. O alvo é a Europa. Como o fantasma do comunismo não conseguiu dobrá-la, como previa Marx já no Manifesto, suas viúvas brandem um outro, o da luta racial.

São as fábricas de racismo funcionando a todo vapor.

Janeiro 27, 2012


 

IN MEMORIAM CHRISTA

 

Não consigo gostar dos Estados Unidos. Nos anos 90 fui até lá, só para comprovar o que já sentia, sem mesmo conhecer o país. A bem da verdade, só estive em Nova York. Depois rumei ao Canadá. Não me senti bem no Canadá anglófono. Mas bastou chegar a Quebec e já me senti em casa.

Não gosto de cidades verticais, embora viva numa delas. Prefiro aquela geografia baixa das cidades européias. Não achata tanto o ser humano.Gosto da boa restauração e neste sentido Nova York, por melhores restaurantes que tenha, fica muito aquém de Paris ou Madri. Considero hábito de bárbaros beber no bico da garrafa ou em copos de plástico. Em Nova York, eu marcava no mapa os cafés onde podia tomar uma cerveja em copo decente. E precisava bater perna por bom tempo para encontrá-los. Para comer, elegi franceses e italianos. Era uma boa possibilidade de comer bem.

De algo gostei na cidade, suas óperas. Pode-se comprar bilhetes na hora e não é preciso ir emperiquitado. Na Europa, ópera é uma ocasião de sacudir a naftalina dos smookings. Em Nova York, você pode ir de jeans e tênis e não se sentirá deslocado.

Não gosto do modus vivendi americano, essa divisão das pessoas em winners e losers. Da mania do carro. Há cidades em que é impossível viver sem carro. Como em Brasília. Gosto das cidades amigáveis aos pedestres e ciclistas. Abomino também o racismo do negro americano. Certa vez, precisei de informações na Pen Station. Num extenso corredor de guichês, só havia negros. De minha parte, tudo bem. Da parte deles, parece que não. Uma negra, notando minhas dificuldades com o inglês, falava rápido e com rispidez e não me deu colher de chá. Não entendi nada.

Dia seguinte, quando partiria, voltei aos guichês para tentar informar-me de novo. Havia um único branco entre a negrada. Fui ao guichê do branco. Fui atendido com cordialidade. Que os negros americanos tenham suas diferenças com os brancos americanos, entendo. Mas eu não sou americano, ora bolas!

Não gosto dos Estados Unidos, dizia. Mas nem por isso deixo de respeitar a sociedade que construíram. Não pertenço a essa raça que xinga os Estados Unidos através de mensagens transmitidas por Macs e PCs, utilizando o Windows ou o Mac Os. As esquerdas odeiam o capitalismo ianque, mas não dispensam os serviços de Bill Gates ou Steve Jobs. Hoje, nem o mais empedernido comunista dispensa a tecnologia do Império.

Sem nutrir simpatia pelo país, vibro quando uma shuttle decola ou aterrissa em Cabo Canaveral. É a aventura humana rumo ao espaço. Ou melhor, aos arrabaldes do planetinha, mas sempre é uma aventura. Confesso que não lembro de ter assistido aos primeiros passos de Neil Armstrong na lua. Não me interessou. A chegada na lua nós a vimos muitas vezes antes daquele 20 de julho de 1969, nos filmes de ficção científica. O feito de Armstrong tinha um ar de déjà-vu.

Tenho um amigo que considera a chegada na lua a prova mais cabal da barbárie americana. Armstrong não chorou. E só um bárbaro seria capaz de não chorar ao chegar na lua. Assino embaixo. Fernão de Magalhães, marinheiro rude, não conseguiu conter as lágrimas quando sentiu que havia descoberto a passagem para o Pacífico.

Era Salamanca e era janeiro. Mais precisamente, 28 de janeiro de 1986. Isto é, há exatos 26 anos. Para mim, uma data que não consigo esquecer. Pela manhã, fui tomar café em um bar próximo ao hotel. Olhei o jornal e vi, na primeira página, aquela estranha rosácea em pleno espaço.

A Challenger explodira acima do Oceano Atlântico, após 73 segundos de vôo, ceifando a vida de sete tripulantes, entre eles Christa McAuliffe, uma professora de New Hampshire de 37 anos. Confesso que senti um nó na garganta. Cá entre nós, bem mais que um nó.

Christa era a primeira civil a participar de uma missão espacial. Professora especializada em História Americana e Estudos Sociais, foi a escolhida entre 11.000 professores que responderam ao chamado da Nasa em 1984, que pretendia levar um educador ao espaço para que de lá ele desse aulas às crianças americanas, através do programa chamado Um Professor no Espaço.

Christa não teve chances de ministrar suas aulas.

Janeiro 28, 2012


 

A INOCENTE AFRICANINHA E O MALVADO BRANCO EUROPEU

 

Comentei, há dois dias, as fábricas de racismo inauguradas pelas esquerdas, onde o coitado do africano ou imigrante é sempre vítima e o branco europeu é sempre vilão. De Paulo Augustus, recebo:

Janer, a propósito dessas notícias sem apuração, em que a primeira versão do crime, mesmo falsa, soa como um prato cheio para alguns ditos progressistas, lembro-me de um caso curioso ocorrido em Brasília há uns dois ou três anos.

Uma adolescente indígena que fora se tratar na capital foi encontrada morta na Casa do Índio no Distrito Federal. Nos dias seguintes a manchete repercutiu. No Correio Braziliense, jornalistas, articulistas e gente da Funai falou sobre o assunto. Mais um crime de ódio contra a população indígena. Foi lembrado o famoso caso do índio Galdino, queimado vivo em 1997, enquanto dormia numa parada de ônibus, por um bando de filhinhos de papai arruaceiros. Quanto a este último crime, queimar vivo qualquer pessoa é caso para punição perpétua dada a tamanha covardia e crueldade de quem o faz. No entanto, o crime não foi tratado como o assassinato de um ser humano (os garotos pensaram se tratar de um mendigo), mas sim do assassinato de um índio por homens brancos.

Quanto à adolescente morta na Casa do Índio, depois de uma semana de investigações, a polícia concluiu que quem matou a criança, empalada, foi a própria tia dela. Não lembro ao certo se foi por um caso de ciúme (parece que era uma tribo onde se praticava a poligamia), ou porque a criança já estava dando muito “trabalho” para a família. Você sabe, para índio, criança doente não presta. Pois bem, assim que a Polícia chegou à conclusão, calaram-se todos aqueles que espernearam e acusaram mais um crime de ódio perpetrado pelo homem branco da cidade. Pelo que me lembro, essa tia nem a julgamento foi. Retornou à sua aldeia e não se falou mais da história.

Isso me lembra um caso semelhante ocorrido em São Paulo. Segundo os jornais, um skinhead andava pichando muros na cidade, com slogans contra nordestinos. Quando o prenderam, foi identificado como nordestino. Sumiu dos jornais. Não se falou mais no assunto. Mas Paulo me envia uma pérola, da jornalista Ruth de Aquino, da revista Época, sobre a affaire DSK. Vamos ao texto, datado de 20/05/2011.

Ela jamais sonhou com a fama. No espaço de uma vida, não se tornaria uma celebridade nem em seu bairro, o Bronx — quanto mais no mundo. Africana, muçulmana, mãe de uma adolescente, a camareira de 32 anos que limpava as suítes do Sofitel em Nova York já achava seu green card um privilégio. Pelas fotos divulgadas na internet, não é especialmente bonita. Mas, para brancos poderosos e prepotentes, reúne qualidades de sedução particulares: é jeitosa, negra e faxineira. Nunca denunciaria um ataque sexual. Conhece seu lugar.

Nafissatou Diallo é o nome da camareira que derrubou o francês Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor-gerente do FMI e pré-candidato socialista à Presidência na França. Algemado e com a cara de tédio típica dos parisienses, DSK deixou pelos fundos o palco das finanças e da política. Ele se diz inocente. Mas, pelo encontro casual com Nafissatou em sua suíte de US$ 3 mil, encara agora sete acusações, de crimes sexuais a cárcere privado. Seria a camareira uma arma secreta de Sarkozy, o futuro papai do bebê de Carla, para tirar do páreo um adversário perigoso?

O FMI nomeará um novo diretor, quem sabe uma diretora, se quiser evitar mulherengos. Os socialistas franceses estão escandalizados, mas na direção oposta. Criticam o abuso da polícia americana contra DSK, presumidamente culpado com base na palavra de uma empregada.

Eles são brancos e não se entendem. Existe um oceano, físico e cultural, entre os Estados Unidos e a França. A mídia francesa é leniente com os desvios na vida particular de seus políticos. Se DSK fosse denunciado por uma camareira em Paris, em nenhuma hipótese seria detido antes de ser julgado, por presunção de inocência. Nos EUA, há a presunção inicial de que a vítima fala a verdade.

Me interesso mais pela camareira do que por DSK. Vi muitos se perguntando: será que o ex-diretor do FMI, conhecido pela habilidade em negociações, seria tão idiota e tresloucado a ponto de atacar a moça ao sair nu do banheiro? Mas começam a emergir casos semelhantes de mulheres menos corajosas que a africana. A loura jornalista francesa Tristane Banon, afilhada da segunda mulher de DSK, tinha 22 anos em 2002 quando diz ter sido atacada por ele: “Parecia um chimpanzé no cio”. Kristin Davis, ex-cafetina americana, afirmou que uma prostituta brasileira a aconselhou a não mandar mais mulheres para ele: “É bruto”.

Africana e muçulmana, a mulher que derrubou Strauss-Kahn desafiou as regras dos poderosos

Nafissatou não sabia que aquele senhor de cabelos brancos era DSK. Está com medo, escondida, sob a proteção da polícia de Nova York. Queria ficar anônima, mas seu nome e fotos se espalharam. É filha de um comerciante da etnia peule — 40% da população da Guiné, na África Ocidental. Emigrou com o marido para os EUA em 1998. Separada, vive sozinha com a filha de 15 anos num conjunto popular no Bronx. Há três anos trabalha no Sofitel da Times Square. Tem fama de trabalhadora e séria. Uma prima, Mamadou Diallo, afirmou: “Ela é uma boa muçulmana. Realmente bonita, como várias mulheres peules, mas não aceitamos esse tipo de comportamento em nossa cultura. Strauss-Kahn atacou a pessoa errada”.

Vai daí que logo descobriu-se que Nafitassou era uma piranha em busca de dinheiro fácil. DSK, cuja eleição para a presidência da França eram favas mais ou menos contadas, perdeu sua reputação, seu emprego no FMI e a presidência da República. Foi inocentado, mas virou carta fora do baralho. A indignação dos jornais contra o suposto crime de DSK não se voltou contra o real crime de Nafitassou. Revelada sua falsa acusação, a imprensa mergulhou em um silêncio obsequioso.

Mais tarde, Ruth de Aquino tentou redimir-se. Caluniou em página inteira e se retratou... em uma linha.

Janeiro 29, 2012


 

MEU PRIMEIRO MILHÃO

 

Pois... acabo de ultrapassar a marca de um milhão de acessos. O que já é algo para um blog independente, não escorado em nenhum grande portal. Bem entendido, não significa um milhão de leitores. Tivesse eu um milhão de leitores, me perguntaria o que andei escrevendo de errado. Escrevo para quem pensa e duvido que neste Brasil haja um milhão de seres pensantes. Daí minha restrição aos best-sellers. Quando um livro vende um milhão de exemplares, é óbvio que não pode prestar.

Para minha surpresa, descobri leitores no mundo todo, desde Europa, Estados Unidos e Canadá até Sumatra e Jakarta. É a brasileirada dispersa pelo mundo, mais esparramados que filhotes de perdiz. Meu limite é a língua. Mas não muito. Certa vez, ao discutir o filme Lepota Poroka, de Živko Nikolić, recebi cartas em inglês de duas montenegrinas, e duvido que lessem português.

Comecei este blog timidamente, há oito anos. Blog, em suas origens, era recurso de adolescentes para manifestar suas dores-de-cotovelo. Logo os jornalistas descobriram seu potencial e hoje não há grande jornal que não tenha sua equipe de blogueiros. De início, não escrevia diariamente. Aos poucos, fui percebendo que o número de leitores só aumentava. Propaganda certamente boca a boca, ou melhor, tecla a tecla. Passei a levar a coisa a sério.

Fiz muitos amigos neste blogar. Na Europa e no Brasil. Encontrei amigas e amigos na Suécia, Finlândia, Alemanha e França. Conversei com muitos deles em minhas viagens. No Brasil, foram centenas. Devo ter brindado com algumas dezenas. É um novo tipo de amizade, que chamarei de internética. Sem nos encontrarmos, nos estimamos, trocamos idéias, informações e abraços.

Melhor mesmo foram os reencontros. Reencontrei namoradas de há trinta e quarenta anos. Reencontrei um poeta canarino de Puerto de las Nieves, Gran Canaria, e uma adorável sabra, que conheci em minhas travessias pelo Atlântico. Como também reencontrei amigos de Dom Pedrito e Santa Maria, que há décadas não via. Verdade que ainda falta encontrar uma bugra muito querida de meus dias de adolescente e uma gauchinha que um dia reencontrei, transida de frio, no Kungsträdgården, num pleno inverno de Estocolmo. Enquanto há vida, há esperança.

Sei que, se por um lado fascino leitores, por outro lado eu os irrito. Fascino os livre-pensadores, que não têm filosofia alguma a defender. Fascino os que pensam com a própria cabeça. Irrito os crentes, sejam cristãos, católicos, marxistas ou muçulmanos. A estes, adoro irritar. Seguidamente, recebo insultos que soam como música a meus ouvidos. Insulto é o argumento de quem não tem mais argumentos. Se um fanático soubesse o prazer que sinto quando ele me insulta, certamente não me insultaria.

Há quem me julgue ateu militante. Ateu, sim. Militante, não. Jamais conclamei alguém a largar sua fé e ser ateu. Que as pessoas creiam em seus deuses e seus santos, e boa sorte a todos. Jamais discuti a existência ou inexistência de deus. É perder tempo. Mas discuto, isto sim, a Biblía, e seguidamente a releio. Eu a vejo como obra literária e quando comento os feitos de Jeová é como se estivesse falando das aventuras do Quixote. Deus para mim é um personagem literário, criado por sacerdotes de gênio. É o mais conhecido personagem literário do mundo todo, a tal ponto que não há mendigo analfabeto que não o cite.

Irritei tanto marxistas e petistas, como católicos e judeus. Mais ainda: ateu, consegui irritar os ateus. Andam por aí uns menininhos ambiciosos, reunidos em associações de ateus, que alegam estar sendo discriminados para passar bem. Não duvido que um dia reivindiquem cotas na universidade, os coitadinhos. Pois bem, um dia denunciei esta farsa e os ateus caíram em cima deste ateu que vos escreve. Que falta de esprit de corps, gente!

Irrito também no bom sentido. Ainda há pouco, me escrevia um leitor que eu o tinha enraivecido. Sentia raiva por não ter escrito crônica que escrevi sobre a televisão nacional.

Há quem me julgue polêmico ou que escreva com a intenção de polemizar. Não é bem isso. É que, não tendo aderido a nenhuma filosofia ou ideologia, acabo tendo atritos com quem se apega a filosofias ou ideologias. Polêmico é todo escritor que não adere a nenhum sistema de pensamento.

Escrevo para pessoas cultas e tenho leitores atentos. Escrevendo todos os dias, mais dia menos dia incorro em lapsos. Nunca falta o leitor prestimoso que me advirta sobre uma palavra inadequada ou a falta de uma crase. Certo dia, transferi a Amazônia para a Europa. Numa crônica sobre Mangalia, na Romênia, grafei Rio Negro em vez de Mar Negro. Suponho que todos os demais leitores leram Mar Negro, pois ninguém reclamou. Exceto um, mais atento que os demais. Que teve a gentileza de apontar meu lapso. A estes leitores, que me corrigem quando incorro em erro, sou muito agradecido.

Mas tenho também leitores incultos. São os que mais me xingam. Me agrada que me leiam. É uma chance de escapar à insciência. Há ainda aquele leitor que me odeia mas não deixa de me curtir. É a “hora de ódio” orwelliana. Suspeito que estes sejam meus leitores mais fiéis. Eu os adoro.

E há os leitores que ajudam a enriquecer este blog. Com seus depoimentos, me falam de livros que não li, de notícias que me escaparam, de viagens que não fiz.

Há muito tempo desisti de escrever ficções. E há mais de vinte anos não leio ficções. Romances são contos de fada de quem não tem imaginação, como dizia Pessoa. Bem entendido, ainda releio as grandes ficções que um dia me fascinaram. Escrevendo crônicas, me sinto como peixe n’água. É gênero que pratico desde os 22 anos. Na crônica se pode fazer tanto história e ficção como poesia e filosofia.

Comecei cronicando em 1969, no extinto Diário de Notícias, de Porto Alegre. Continuei com coluna diária na Folha da Manhã, onde escrevi inicialmente de Porto Alegre e depois de Paris. Nas crônicas parisienses, deixava meu endereço ao pé da coluna e cheguei a receber 20 ou mais cartas por dia. Fiz bons amigos naqueles anos às margens do Sena, relações que perduram até hoje. Era na época das cartas. Entre uma carta e a resposta, havia uma espera de pelo menos duas semanas.

Os tempos mudaram. Se antes eu chegava apenas até onde os jornais chegavam, hoje chego em qualquer cidade do planetinha. Se antes uma comunicação exigia duas semanas, hoje recebo respostas às vezes em cinco minutos. Em 24 horas tenho dezenas de respostas. Isto o livro não rende. Nem mesmo o livro eletrônico.

Abaixo, transcrevo texto antigo, onde explico meu método de trabalho. Aos leitores que me proporcionaram meu primeiro milhão, sejam afetos ou desafetos, meu mais forte abraço.

Janeiro 30, 2012


 

FILÓSOFO? SÓ COM CARTEIRINHA DE FILÓSOFO

 

Está tramitando na Câmara um Projeto de Lei do deputado Giovani Cherini (PDT-RS), que regulamenta o exercício da profissão de filósofo em todo o País. A idéia não é nova. Como toda péssima idéia, circula com velocidade de moeda ruim.

Em 2008, comentei um projeto que regulamentava a profissão de astrólogo. Já havia sido aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e aguardava votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, a proposta definia quem poderia exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o “cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público”. Já na época, o velho bolchevique anunciava que pretendia apresentar projeto regulamentando a profissão de filósofo. Filósofo não seria mais quem filosofa, mas quem tem carteirinha de filósofo.

Artur da Távola morreu naquele mesmo ano e não tenho idéia do que foi feito de seu projeto. Mas suponho que astrólogo algum lamentou sua morte. Astrólogos são franco-atiradores. Você está desempregado e não tem habilitação para ofício algum? É só sair a fazer mapa astral para ingênuos. Os ingênuos são legião. Se você tiver boa lábia, pode até fazer uma grana razoável.

Antes do projeto de regulamentação da profissão de filósofo, dois outros tramitavam no Congresso pretendendo regulamentar a de teólogo. Teólogo não seria mais quem cria teologia, mas quem tem carteirinha de teólogo. Pelo jeito, a profissão está se revelando lucrativa, pois os projetos pretendem restringir o livre exercício da parlapatagem. O projeto de lei 114/05, obra do bestunto do senador e bispo evangélico Marcelo Crivella, cria o Conselho Nacional de Teólogos, que seria a representação única dos teólogos do Brasil. Ou você pertence ao Conselho ou não teologiza mais. Ou se teologiza, está exercendo irregularmente a profissão. Este projeto inclusive recebeu parecer favorável do senador Magno Malta, pastor da Igreja Batista. Enviado para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado, estava pronto há uns quatro ou cinco anos para entrar na pauta de votação.

O segundo projeto, o 2.407/07, do ex-deputado Victorio Galli, pastor da Assembléia de Deus, é mais bizarro. Diz que “teólogo é o profissional que realiza liturgias, celebrações, cultos e ritos; dirige e administra comunidades; forma pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orienta pessoas; realiza ação social na comunidade; pesquisa a doutrina religiosa; transmite ensinamentos religiosos, pratica vida contemplativa e meditativa e preserva a tradição”. O projeto soa a samba do crioulo doido: mescla a função de sacerdotes com as de administradores de comunidades e psicanalistas. Só não prevê que o teólogo faça teologia. Nele vê-se mais uma vez o dedo dos pastores evangélicos, que querem promover a teólogos seus camelôs televisivos.

Segundo a notícia, esse perfil abrangeria todos os padres, pastores, ministros, obreiros e sacerdotes de todas as religiões. O número passaria de um milhão, pela estimativa do Conselho Federal de Teólogos (CFT), com base em dados do IBGE. Hoje teólogos devem ser formados em cursos de graduação. Ou seja, no que depender da aprovação do projeto, tanto Paulo, como Anselmo, Orígenes, Tomás de Aquino ou Agostinho, estariam hoje exercendo ilicitamente a profissão.

A profissão parece ser promissora. Tão promissora quanto a destes outros vigaristas, os psicanalistas. Que pelo menos estão de acordo que é melhor não regulamentar a profissão, tantas são as escolas da psicanálise. É claro que a proposta dos pastores vai dar em nada.

Voltemos ao projeto do pedetista Giovani Cherini, que retoma os propósitos do senador bolchevique. Está tramitando em regime conclusivo e tem boas chances de ser aprovado pelas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, e de Constituição e Justiça. Se aprovado, vai imediatamente ao Senado — sem que o plenário se manifeste. Se passar, tanto Platão como Aristóteles, Kant como Descartes, não poderiam reivindicar a condição de filósofo neste país incrível. Filósofo, só com diploma de filósofo.

Mas o melhor vem agora. Lê-se no projeto: “De acordo com a proposta, órgãos públicos da administração direta e indireta ou entidades privadas, quando encarregados de projetos socioeconômicos em nível global, regional ou setorial, deverão manter filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”.

O texto estabelece que só poderão exercer a profissão os bacharéis em Filosofia. Ou seja, se um Estado quer construir uma ponte, um aeroporto, uma ferrovia, uma estrada, que empregue antes de mais nada um filósofo legalmente habilitado para dar palpites sobre a obra.

Sempre entendi como filósofo o homem que desenvolve um sistema filosófico. Que traz alguma resposta às questões que as épocas impõem. Se não trouxer resposta alguma, é mero solipsista. Filósofos, para mim, são Platão, Aristóteles, Hume, Bergson, Descartes, Kant, Hegel. (Nietzsche, eu o situo mais como poeta. Marx nunca foi filósofo, como pretendem os marxistas. Era jornalista e economista). Hoje, filósofo é qualquer professorzinho de filosofia.

A filosofia estilhaçou-se em mil pedaços e hoje duvido que alguém saiba definir, com precisão, em que consiste a filosofia. Pelo que vejo, filósofo é qualquer acadêmico que fala de maneira obscura sobre o homem e o mundo. O Brasil está cheio deles, todo santo dia surge nos jornais alguém se intitulando filósofo.

Em meus dias de Florianópolis, li uma ementa do curso de Filosofia da UFSC: História da Filosofia Catarinense. Sou um desinformado. Em nem sabia que existiam filósofos em Santa Catarina, quando na verdade já existia, pujante e fecunda, uma história da filosofia catarinense. A UFSC, se alguém não a conhece, é aquela universidade que conferiu um título de Dr. Honoris Causa a Fidel Ruz Castro. Dr. Fidel, portanto.

É possível que a moda tenha surgido na França. Em meus dias de Paris, meus professores, ao examinar meu currículo, exclamavam: “Ah, vous êtes philosophe”. Nada disso, professor, apenas estudei filosofia.

Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo, como dizia Sábato. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias — com h minúsculo mesmo — que vamos encontrar... na literatura.

O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.

O filósofo, no fundo, é um palpiteiro. Os senhores deputados estão prestes a regulamentar a profissão de palpiteiro. O projeto do deputado, antes de ser absurdo, é obsceno. Visa empregar essa massa imensa de desempregados gerados pelas faculdades de Filosofia.


 

DE COMO PERDI UM EMPREGO

 

Está ficando cada vez mais difícil para as esquerdas ir a Cuba e falar da viagem. Tanto Tarso como Luciana Genro voltaram de cabeça gacha e nada disseram sobre o país. Falaram muito, isto sim, contra os Estados Unidos. De Guantánamo e do embargo.

Tarso chegou a falar em bloqueio. Ora, bloqueio naval foi o que decretou John Kennedy, em 1962, para obrigar um desmoralizado Castro a devolver à União Soviética os mísseis e ogivas que Kruschov lhe enviara. Terminada a crise, terminou o bloqueio.

O que existe agora é embargo comercial. Embargo para inglês ver, pois boa parte dos países ocidentais está negociando com Cuba. Dona Dilma, por exemplo, foi levar à Disneylândia das esquerdas um aporte de US$ 523 milhões, questão de dar um pouco de oxigênio a uma ditadura cuja economia agoniza na UTI.

Por falar em Dona Dilma... nenhum pio sobre direitos humanos. Para justificar seu silêncio, chegou a acusar seu próprio país de ferir direitos humanos. Atabalhoada, juntou duas expressões proverbiais que nada têm a ver uma com a outra, para justiticar sua omissão: “Quem atira a primeira pedra tem telhado de vidro. Nós no Brasil temos o nosso”. O dito é outro: não atira pedra quem tem telhado de vidro. Quem atira a primeira, pode muito bem não ter telhado de vidro.

E dê-lhe o mantra: Estados Unidos, Guantánamo, embargo. Comunista adora ir a Cuba. Para falar dos Estados Unidos. Cuba é a melhor tribuna do mundo para xingar o Império. Sobre Cuba, silêncio obse quioso. O muro caiu há mais de duas décadas, a União Soviética também, a palavra comunista virou palavrão, mas as esquerdas não ousam, até hoje, dizer um ai que seja sobre a ditadura dos Castro.

Aconteceu em 1992. Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, os velhos comunistas brasileiros, para satisfazer as platéias no exterior, andaram batendo com a língua nos dentes. Na época, a revista soviética Literaturnaia Gazeta, ao anunciar a ruptura de Jorge Amado com a ditadura cubana, assim titulou um artigo sobre o baiano:

ADEUS FIDEL, VOCÊ SE TRANSFORMOU EM DITADOR

Escândalo entre os camaradas tupiniquins. Onde se viu chamar Fidel de ditador? Vai ver que Amado andou exagerando no vinho ou queria bancar o avançadinho junto à imprensa estrangeira. Coube a Reali Júnior, correspondente do Estadão em Paris, o encargo de salvar a honra de Amado. Escreve o correspondente, em 25 de outubro de 1992:

— O artigo foi montado com trechos de entrevistas do escritor publicadas por outros órgãos de imprensa. O Proceso, do México e o La Stampa, da Itália, mas num contexto diverso, nem sempre primando pela fidelidade ao texto original. A notícia correu o mundo e o telefone de Jorge Amado em Paris tocou sem parar. Seus amigos e editores de Roma, Milão, Madri, Lisboa e mesmo do Brasil buscavam informações sobre as razões que teriam Jorge Amado a formalizar esta ruptura.

O que pensa Amado sobre Cuba, segundo o correspondente, estaria dito no prefácio que escreveu para o livro do jornalista italiano Gianni Mina, Cuba na tormenta da perestroika.

— “No México e no Brasil, o problema da miséria continua sem solução”, afirma Amado que não costuma desmentir entrevistas que não correspondam exatamente a seu pensamento. Ele prefere deixar as coisas correrem, acreditando que sua posição correta acaba prevalecendo. Neste texto ele exalta a epopéia revoluiconária, o símbolo representado pelos barbudos de Sierra Maestra, lembrando que “um escritor brasileiro não pode se levantar contra Cuba e injuriar a Revolução”.

Amado dixit. Do alto de sua mansão às margens do Sena, com vista para a Notre Dame. É muito confortável ditar normas para escritores brasileiros sobre nada dizer contra Cuba, quando se mora Paris. Mutatis mutandis, foi mais ou menos o que disse Tarso Genro, do alto do Piratini, em sua volta de Cuba.

— Tenho claro, também, que os democratas progressistas e a esquerda em geral devem ser solidários ao governo e ao povo cubano, nesta movimentação que estão iniciando, até porque muitas conquistas duramente obtidas neste período devem ser preservadas, como nas áreas da educação e da saúde pública.

Só pode ser amor. Eterno e incondicional. Castro pode fuzilar, torturar, prender dissidentes, levar um país à miséria, fazer enfim tudo que as esquerdas condenam quando a ditadura é de direita, mas continua sendo amado.

Eu trabalhava no Estadão na época. O despacho do Reali caiu em minhas mãos para titular e fazer a linha fina. Foi o que fiz.

JORGE AMADO NEGA ROMPIMENTO COM FIDEL

“Um escritor brasileiro não pode se levantar contra Cuba e injuriar a Revolução”, diz o romancista em seu apartamento em Paris

Foi o último título que fiz no Estadão. Foi também minha última jornada de trabalho. Aquele “diz o romancista em seu apartamento em Paris” podia estar tecnicamente correto. Mas soava à ironia. E se um escritor brasileiro não pode se levantar contra Cuba e injuriar a Revolução, um jornalista também não pode fazer ironias com quem diz que um escritor brasileiro não pode se levantar contra Cuba e injuriar a Revolução.

Fevereiro 01, 2012


 

QUANDO AS FOTOS MENTEM

 

“Um homem caminha por uma rua de Atenas que não parece Atenas; poderia ser o Bronx, qualquer bairro marginal do mundo. Leva as mãos no bolso e o olhar baixo, triste. Não há portais, nem quiosques, nem ruídos. Só se escuta o caminhar do homem cabisbaixo. Um grafiti se destaca sobre os demais. A jovem pintada segura um cartaz no qual se lê uma declaração: “Sem esperança”. A mulher olha de frente, com a cabeça erguida; também parece triste. É uma foto de tristezas acumuladas. Ao lado estão escritas palavras soltas. Parecem gritos isolados, enfados individuais. Todos juntos são uma declaração política, quase filosófica, frente à desesperança: sistema monetário, capitalismo, religião, corrupção, guerra, injustiça, solidão, globalização, imortalidade”.

Assim descreve El País uma foto de um homem que passa por uma parede grafitada de um bairro deteriorado de Atenas. Olho para o homem e nele não vejo nada que possa parecer tristeza. Tem um semblante grave, parece preocupado. Daí a estar triste, só na cabeça do redator. Está bem vestido, com um abrigo aparentemente de grife, que não é para qualquer pobretão. Já a rua por onde passa tem uma parede suja de grafites, como centenas de ruas em centenas de cidades do mundo. Ruas assim, você encontra nas ricas Paris ou Madri, Estocolmo ou Copenhague. A propósito, nesta última, existe um bairro muito conhecido, Christiania, território livre para consumo e comércio de drogas, cujas ruas nada ficam a dever à rua da foto em Atenas.

Nenhuma capital de país rico está livre de bolsões de pobreza, e mesmo de miséria. Há uns bons vinte anos, vi moradores de rua deitados na aristocrática Place des Vosges, em Paris. Mendigos, nós os vemos na Puerta del Sol, em Madri, ou na Piazza Spagna, em Roma. Nem por isso podemos deduzir, a partir de um momento isolado, que um país esteja em crise.

Que a Grécia vive uma crise, disto estamos cientes. Mas a foto do El País não prova crise alguma. É um trocadilho. O homem foi fotografado quando passava ante um grafiti que falava em desesperança. Uma foto de um homem caminhando por uma rua suja não prova nada. Mostra apenas que um homem caminha por uma rua suja. Nápoles, há décadas, é um lixão a céu aberto e nem por isso se falava de crise da Itália.

O redator, pelo jeito, pertence àquela raça secular do Luís Fernando Verissimo, que há pouco se regozijava com o naufrágio do Concordia:

“Disseram do naufrágio do Titanic em 1912 que ele simbolizou o fim tardio do século 19, com sua fé na tecnologia e no domínio do homem sobre a natureza. Se aquele magnífico navio adernado na costa da Itália simboliza alguma coisa é o fim de outra ilusão que ninguém esperava fosse acabar: a união européia, o euro forte e os anos de euforia com o dinheiro farto. E ninguém viu as pedras”.

Escrevi na ocasião que as esquerdas odeiam a Europa. De fato, odeiam, mas não fui exatamente preciso. Nenhum Pablo Neruda, nenhum Jorge Amado, nenhum Chico Buarque, nenhum Darcy Ribeiro diriam que odeiam Paris, Berlim ou Roma. O que odeiam, mais precisamente, é a idéia de Europa. A idéia de um continente onde cada país tem vários partidos, onde as eleições não são uma farsa, onde a imprensa é livre, como também é livre a expressão do pensamento. Na hora de defender um regime de governo, estes senhores tomam o partido de ditaduras.

Tanto Jorge Amado como Chico Buarque adoram a ditadura cubana. Na hora de eleger uma maison secondaire, instalaram-se às margens do Sena. Neruda detestava Berlim. A Berlim Ocidental, é claro, uma das mais esplendorosas cidades do mundo. Não que odiasse o que a Berlim de cá oferecia. O poeta era bom de garfo e de copo, tinha todos os motivos para gostar da cidade. Acontece que a Berlim ocidental era um repto permanente ao comunismo.

Da mesma forma, a Europa. O senador monoglota e comunista Darcy Ribeiro adorava Paris, onde se sentia tão à vontade que se deu ao luxo de espancar uma mulher numa estação de metrô, para levá-la para a cama. Mas desprezava o continente. Darcy o definia como “aquela peninsulazinha da Ásia, dobrada sobre a África”. O “peninsulazinha” de Darcy joga no lixo todos os séculos de cultura européia. Já Guimarães Rosa, homem culto e não contaminado pelo sarampo do século passado, a via como “pequena e ativa”. Atívissima, acrescentaria eu. A cultura que hoje embasa o que chamamos de Ocidente, artes, ciência e tecnologia, têm suas origens na peninsulazinha.

Um jornalista pode muito bem documentar a miséria em Paris ou Nova York fotografando as filas dos sopões. Mas sopão é acidente. Dezenas de pessoas estendendo um prato para receber uma colher de sopa não significa que um país esteja em crise. São apenas falhas do sistema. Mas se você vê, como eu vi na Romênia, pessoas se esbofeteando ao disputar uma paleta de boi num mercado, aí a situação é mais grave. Ali se esbofeteavam não mendigos, mas as raras pessoas que tinham condições de comprar carne.

Em meus dias de Madri, vi uma foto assustadora, em cinco colunas, no El País. Dois travestis giravam bolsinha nalguma avenida do Rio de Janeiro. Era época de carnaval. O Rio era mostrado como a capital da Aids. O leitor ingênuo, aquele que só lê títulos e vê fotos, deve ter eliminado o Rio de seus planos. Ora, dois travestis girando bolsinha encontramos em qualquer capital européia.

Mas o melhor do texto de El País vem agora:

“A Grécia é um país que não pode pagar uma dívida acumulada nos felizes anos da irresponsabilidade. Os médicos da troika lhe receitaram ajuste sobre ajuste sem se importar com os efeitos secundários, os danos colaterais. Parece um laboratório de experimentação econômica em tempos de crise. Nada mudou no essencial, só um detalhe: a Grécia já não existe, deixou de ser notícia”.

Haja vontade de ver a Europa no fundo do poço. Que a Grécia tenha deixado de ser notícia é uma bela notícia para a Grécia. A imprensa adora desastres, vide o naufrágio do Concordia, que até hoje freqüenta as páginas dos jornais. Quando um país não existe para a imprensa, é porque o país vai bem.

Seja como for, o redator certamente não passou pela Plaka, onde gregos e turistas estão bebendo retsina e uzo, dançando sirtaki e quebrando pratos. Que me conste, os turistas continuam subindo Santorini em lombo de mula e a bicharada européia está em plena ebulição em Mykonos. A Grécia é um poderoso pólo turístico e enquanto os turistas continuarem invadindo o continente e as ilhas do Egeu, é difícil afirmar que a Grécia não existe.

Turistas não costumam visitar o nada.

Fevereiro 02, 2012


 

CHALITA BRITÂNICO QUER UM TEMPLO PARA ATEUS

 

Alain de Botton, o Gabriel Chalita de Londres, é um dos mais bem-sucedidos autores de auto-ajuda da Europa. Nada li deste senhor. Mas quando alguém escreve algo intitulado Como Proust pode mudar sua vida, é óbvio que estamos diante de um charlatão. O livro se tornou best-selller nos Estados Unidos e Inglaterra. Mais uma razão para não comprá-lo. Proust não muda a vida de ninguém. Não é um pensador. Apenas um cronista social bem sucedido. Tentei ler À la recherche du temps perdu. Não consegui passar do segundo volume. O homem escreve para espantar o leitor. Proust até pode mudar sua vida, se você consegue uma bolsa em Paris para estudar sua obra. Mas aí melhor escolher escritor mais digerível.

Não bastasse essa solene bobagem, de Botton escreveu As consolações da filosofia, obra na qual procura demonstrar como os ensinamentos de filósofos como Epicuro, Montaigne, Nietzsche, Schopenhauer, Sêneca e Sócrates podem ajudar a resolver as aflições comuns no dia-a-dia do mundo moderno, como impopularidade, sentimento de inadequação, dificuldades financeiras, desilusões amorosas e outros infortúnios. Ora, a filosofia nunca existiu para consolar alguém. Pelo contrário, muitas vezes desespera. Pretender transformar a filosofia — ou o que dela resta — em auto-ajuda é vigarice.

Pois não é que o Chalita britânico está querendo nos enquadrar, nós, ateus? Seu último livro, lançado ano passado — que não li mas até que gostaria de dar uma trecheada — intitula-se Religião para Ateus. Trate do que tratar, trata-se de um oxímoro. Religião é o culto a um deus, tanto que o budismo não é considerado religião, afinal Buda não deu o passo do judeu aquele. Não se pretende deus nem cultua deus algum. Nós, ateus, tampouco cultuamos deus ou deuses. Assim sendo, o título já destrói o livro.

Não bastasse isto, o Chalita lá deles está anunciando um plano para criar vários templos para ateus a serem construídos no Reino Unido. A brilhante idéia deriva de seu livro, que sugere que os ateus deveriam copiar as maiores religiões e erigir uma rede de novas obras-primas arquitetônicas em forma de templos. “Como as religiões sempre souberam, uma bela construção é parte indispensável para enviar nossas mensagens. Apenas livros não conseguem isso”.

O abominável ateu militante mostrou ao que vem. Quer fazer proselitismo. Deve estar doidinho para crer num deus qualquer. Considero que todo ateu que pretende conquistar alguém para sua descrença, no fundo anda em busca de um outro deus que não os do mercado.

Ateu que se preze é ateu e basta. Somos tão discretos que nem história temos. George Minois tenta construir uma, a partir dos cacos do ateísmo, em Histoire de l’Atheísme. Mas reconhece as dificuldades de seu intento:

“Como fazer a história de uma atitude negativa?” — pergunta-se Minois —. “A história dos que se opõem à... é seguidamente empunhada pelo campo adverso, e tratada com todos os preconceitos de hábito. (...) A dificuldade não é menor na época contemporânea: exceção feita dos movimentos ateus militantes, muito minoritários, como retraçar a história de uma atitude que não parece ter conteúdo positivo? Sonharia alguém, por exemplo, retraçar a história dos que não acreditam nos Ovnis?”

Mesmo assim, Minois desenvolve por quase 700 páginas a história dos que se opõem à... De Botton argumenta que definitivamente não são necessários deus ou deuses para justificar um templo. “Você pode construir um templo para algo que é positivo e bom. Isto pode significar: um templo para o amor, para a amizade, calma ou perspectiva”.

Vá lá! Mas porque chamar de templo? Clube me parece a palavra mais adequada. Templo dá uma idéia de religião, e com religiões nada temos a ver. Ao propor a idéia de templos sem deuses, De Botton não está sendo nada original. Está retomando uma idéia do século XIX, a religião da humanidade, ou positivismo, proposta por Augusto Comte (1798 — 1857). Ainda existem, no Marais, em Paris, a Chapelle de l’Humanité — o único templo positivista que ainda resta na Europa — e mais três destes templos no Brasil, no Rio, em Porto Alegre e em Curitiba.

Comte pretendeu criar uma espécie de religião laica, onde a Divina Trindade cristã foi substituída por uma outra, a Trindade Positivista. Ou seja, o Grande Ser — a Humanidade — que seria uma entidade coletiva, real e abstrata, formada pelo conjunto de seres humanos convergentes do passado que contribuíram para o progresso da civilização, do futuro e do presente.

Segunda entidade da Trindade, o Grande Fetiche, o planeta Terra com todos os elementos que o compõe: vegetais, animais, água, terra etc.). Terceira, o Grande Meio, isto é, o espaço, os astros, o Universo.

A Igreja Positivista do Brasil foi fundada no dia 11 de maio de 1881, por Miguel de Lemos, no bairro da Glória, no Rio. No pórtico da igreja pode se ler a máxima comtiana: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos”. Nas laterais da grande nave, 13 bustos glorificam os homens que mais se destacaram na religião, literatura, filosofia, ciência e política: Moisés, Homero, Aristóteles, Arquimedes, César, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Federico II, Bichat e Heloísa, única mulher do elenco, representando as Santas Mulheres. No altar, em vez de deuses ou santos, a imagem de uma mulher com um bebê ao colo. Personifica a Humanidade, ou o Grande Ser. A seus pés um busto de Comte.

Ou seja, a idéia de um templo sem deuses nada tem de nova. O Chalita londrino, que na verdade é suíço, demonstra nada conhecer de história e ignora a doutrina de um vizinho seu. “Por que os religiosos têm os mais belos templos das terra? — pergunta-se De Botton —. Já é tempo de os ateus terem suas próprias versões das grandes igrejas e catedrais”.

Cá entre nós, diria que desde há muito temos um templo. É o bar, café, restaurante, tasca, bodega, taverna, como quer que tenham se chamado na geografia ou na história. É lá que oficiamos nossa liturgia, o culto do prazer e da vida, sem preocupação alguma com potestades ou eternidade. Dispensamos grandes arquiteturas, pedimos apenas interiores aconchegantes e amigos em torno. E muito álcool e muito vinho.

De Botton nada entende de ateísmo. Grandes templos não são o melhor lugar para celebrar a vida.

Fevereiro 03, 2012


 

DEPUTADO REGULAMENTA FILOSOFIA, HOLÍSTICA, CHURRASCO E CHIMARRÃO

 

Comentei há pouco o propósito do deputado Giovani Cherini (PDT-RS), que pretende regulamentar o irregulamentável, no caso o exercício da profissão de filósofo em todo o país. Pois não é que o homem é um regulamentador contumaz? Longe dos pagos, eu desconhecia os feitos do nobre deputado. Leitores me alertam que este senhor, além de pretender regulamentar a filosofia, já instituiu — ou pretendeu instituir, não sei se o projeto foi aprovado — o dia do terapeuta holístico, seja lá o que isso quis dizer. Além disso, regulamentou o churrasco e o chimarrão. O homem é eclético. Da filosofia e holística ao churrasco e chimarrão.

Em 21 de março de 2003, Cherini apresentou projeto de lei 11.999, instituindo o Dia Estadual do Terapeuta Holístico, que seria celebrado no dia 31 de março. Na justificava, o deputado alega:

“Através da Terapia Holística a vida das pessoas pode tornar-se mais saudável, pois utiliza-se uma somatória de técnicas milenares e modernas, sempre suaves e naturais, proporcionando harmonia, autoconhecimento e incrementando a capacidade da pessoa tratada. Dentre estas técnicas podemos citar Yoga, Reiky, Tai Chi Chuan, Acupuntura, Aromaterapia, Homeopatia, Fitoterapia, Cromoterapia, Cristaloterapia, xamamismo, e outras terapias alternativas que ajudam a combater doenças de maneira eficaz e barata.

“As popularmente chamadas de “terapias alternativas” são aplicadas pelo Terapeuta Holístico, que procede ao estudo e à análise do cliente, realizados sempre sob o paradigma holístico, cuja abordagem leva em consideração os aspectos sócio-somato-psíquicos. Cada caso é considerado único e deve-se dispor dos mais variados métodos, para possibilitar a opção por aqueles com os quais o cliente tenha maior afinidade, promovendo a otimização da qualidade de vida, estabelecendo um processo interativo com seu cliente, levando este ao autoconhecimento e a mudanças em várias áreas, sendo as mais comuns: comportamento, elaboração da realidade e/ou preocupações com a mesma, incremento na capacidade de ser bem-sucedido nas situações da vida (aumento máximo das oportunidades e minimização das condições adversas), além de conhecimento e habilidade para tomada de decisão. Avalia os desequilíbrios energéticos, suas predisposições e possíveis conseqüências, além de promover a catalização da tendência natural ao auto-equilíbrio, facilitando-a pela aplicação de uma somatória de terapêuticas de abordagem holística, com o objetivo de transmutar a desarmonia em autoconhecimento”.

Ou seja, não disse nada. Se trocar terapeuta holístico por psicanalista ou pai-de-santo, astrólogo ou curandeiro, tanto faz como tanto fez. O deputado reconhece que a “profissão” não é regulamentada, sendo portanto de livre exercício. Mas ao criar uma data para homenagear os vigaristas, está dando o primeiro passo para uma futura regulamentação.

Não bastasse se preocupar com os destinos da terapia holística, o deputado apresentou o projeto de lei nº 70/2003, no qual institui o churrasco como o prato típico do RS:

Art. 1º — O churrasco a (sic!) gaúcha fica instituído como “a comida típica do Rio Grande do Sul”.

Como se só no Rio Grande se comesse churrasco. Ora, churrasco é universal está disseminado de sul a norte no país. Constitui o plat de résistance de países como Uruguai e Argentina e diria inclusive da Espanha, famosa por seus asados. Onde há carne e fogo há churrasco. A fórmula é imemorial.

Mas o deputado pretende que exista um churrasco que é tipicamente gaúcho:

Parágrafo único — para os efeitos desta lei, entende-se por churrasco a (resic!) gaúcha a carne temperada com sal grosso, levada a assar ao calor produzido por brasas de madeira carbonizada ou in natura, em espetos ou disposta em grelha e sob controle exclusivamente manual.

E se a carne for assada em um forno a 300º, deixa de ser churrasco? Por que há de ser assada em espetos ou disposta em grelha e sob controle manual? Churrasco, eu o faço como bem entendo, ora bolas! A definição proposta pelo deputado é bizantinice de cetegistas. Mas o deputado vai adiante:

Art. 2º — É conferido ao churrasco a gaúcha a distinção de símbolo do Estado do Rio Grande do Sul, de sua gente e de sua cultura.

Eh Brasil! Todos os países do mundo têm seus pratos típicos e nunca algum deles pretendeu instituí-lo como símbolo nacional. Os suecos têm o smörgåsbord, a Hungria o goulasch, a França o cassoulet, a Itália suas massas e pizzas, Portugal seus bacalhaus, a Inglaterra tem o abominável fish and chips, e nunca nenhum desses países pretendeu dar-lhes o status de símbolo. Só o provincianismo atroz dos cetegistas é capaz de inspirar tal ridículo. Optasse eu por um símbolo do Rio Grande, eu pensaria em duas aves cheias de significado, encontradiças na pampa gaúcha, o joão-de-barro ou o quero-quero.

Falar em churrasco, não foi no Rio Grande do Sul que eu comi os mais dignos de lembrança. E sim em São Paulo ou Buenos Aires. E as melhores churrascarias de São Paulo são, a meu ver, as uruguaias e argentinas. Isso sem querer fazer injustiça ao Vento Haragano, tocada por churrasqueiros de Nova Bréscia, que concorre firme com as de nuestros hermanos.

Não bastasse este besteirol todo, o deputado quer instituir o Dia do Churrasco. Agora só falta o do chimarrão, pensei. Faltava. O deputado criou também o Dia do Chimarrão. Ambos comemorados em 24 de abril de cada ano e incorporados ao calendário oficial de eventos do Estado do Rio Grande do Sul.

Falta do que fazer! E ainda há quem eleja tal palhaço. Este povinho bem merece seus representantes.

Fevereiro 04, 2012


 

MUÇULMANOS DECLARAM JIHAD CONTRA OS CÃES NA EUROPA

 

Os muçulmanos odeiam os cães. Embora o Profeta nada tenha dito a respeito do assunto no Corão, sua doutrina está expressa nas hadiths, especialmente nas da coleção Sahih de Bukhari e Muslim, ou da Sunan de Abu Dawud. A Sunnah ou Hadith são as fontes secundárias dos ensinamentos do Islã. Hadith significa literalmente um dito transmitido ao homem, mas em terminologia islâmica significa os ditos de Maomé, sua ação ou prática de sua aprovação silenciosa da ação ou prática. Hadith e Sunnah são usados intercaladamente, mas em alguns casos são usados com significados diferentes. Obra de teólogos, algo como o Talmud para os judeus.

Lê-se no Bukhari, vol. 4, #540: Narrou ‘Abdullah bin ‘Umar: o Apóstolo de Alá ordenou que todos os cães fossem mortos. Abu Dawud, #2839: Abd Allah. B. Mughaffal registrou que o Apóstolo de Alá disse: os cães não são uma espécie de criaturas que eu mandaria que fossem mortos; mas matem todos os que são totalmente pretos.

A nota da Hadith #2839 diz: o Profeta não mandou que se matassem todos os cães, porque alguns são mantidos para caça e para guarda. Ele ordenou que se matassem os de manchas pretas. Eles devem ser os mais nocivos dentre eles.

Muslim, #055: Ibn Mughaffal registrou: o Mensageiro de Alá ordenou que se matassem os cães, e então disse: E quanto a eles, isto é, quanto aos outros cães? E ele deu permissão para se manter cães para a caça e manter cães para a segurança dos rebanhos, e disse: quando um cão lamber um utensílio, lave o utensílio sete vezes e o esfregue com terra a oitava vez.

Muslim, #3813: Abu Zubair ouviu Jabi Abdullah dizendo: o Mensageiro de Alá nos ordenou que matássemos os cães e levamos isso tão a sério a ponto de ir matar um cachorro vagueando com mulheres do deserto. Então o Apóstolo de Alá proibiu que o matássemos. E disse: “É seu dever matar o de manchas pretas que têm duas manchas nos olhos, porque são um demônio.

Extraio estes dados do site do Centro Cultural Beneficente de Foz do Iguaçu.

Leio no site do Stonegate Institut que um político muçulmano holandês, Hasan Küçük — representante turco-holandês no Conselho de Haia pelo partido Democratas do Islã — propôs a proibição de cães na cidade, a terceira maior do país. Paul ter Linden, que representa o Partido Holandês da Liberdade, respondeu; “neste país, a propriedade de pets é legal. Quem não gosta disso deve mudar-se para outro país”.

Na Espanha, dois grupos islâmicos com base em Lérida — cidade da Catalunha onde 29 mil muçulmanos constituem 20% da população — pediram às autoridades locais para regulamentar a presença de cães nos espaços públicos, para não ofender os muçulmanos. Eles pedem a proibição de todas as formas de transporte público, incluindo ônibus e todas as áreas freqüentadas por imigrantes muçulmanos. Alegam que a presença de cães em Lérida viola sua liberdade religiosa e seus direitos de viver segundo os princípios islâmicos.

Após a municipalidade recusar os pedidos dos muçulmanos, a cidade experimentou uma onda de envenenamento de cachorros. Mais de uma dúzia de cães foram envenenados em setembro de 2011 nos bairros de Cappont e La Bordeta, distrito que é principalmente povoado por muçulmanos e muitos outros cães foram mortos nos últimos anos. Moradores do bairro que saem a passear com seus cães foram agredidos por imigrantes que se opõem a ver animais em público.

No Reino Unido, passageiros cegos foram retirados de ônibus ou tiveram corridas de táxi recusadas porque motoristas ou passageiros têm objeções aos “impuros” cães-guia. Em Reading, um aposentado que sofria de câncer confrontou-se repetidamente com os condutores e foi instado a sair do ônibus em razão de seu cão-guia. Enfrentou também hostilidade no hospital e super-mercado por causa do animal.

Em Nottingham, um chofer de táxi muçulmano recusou-se a transportar um cego acompanhado de seu cão-guia. Foi multado em £300 (R$ 812). Em Stafford, um chofer de táxi muçulmano recusou-se a levar um casal de velhos cegos a uma confeitaria porque estavam acompanhados pelo cão-guia.

Em Londres, um condutor de ônibus proibiu uma mulher de entrar com seu cão, porque havia uma lady muçulmana que poderia ficar perturbada com o cachorro. Enquanto a mulher tentava reclamar, bateu-lhe a porta do ônibus na cara e seguiu em frente. Quando chegou um segundo ônibus, ela tentou novamente embarcar, mas foi novamente detida, porque o chofer alegou que era muçulmano.

Ainda no Reino Unido, os cães farejadores da polícia treinados para identificar terroristas nas estações de trem não poderão mais fazer contato com passageiros muçulmanos, segundo queixas de que isto é ofensivo à sua religião. Prisioneiros muçulmanos no país recebem novas roupas pessoais e de cama após os cães-farejadores terem examinado suas celas. Os prisioneiros alegam que suas roupas de cama e uniformes de prisão precisam ser trocados de acordo com a lei islâmica se estiveram perto da saliva de um cão.

Na França, a cantora e atriz Marie Laforêt, 72 anos, teve de comparecer a uma corte em dezembro para defender-se de acusações que um alerta de trabalho por ela divulgado discriminava os muçulmanos. Ela havia colocado um anúncio, em 2009, em um site, procurando alguém para trabalhar em seu terraço. Especificou que pessoas com alergias e muçulmanos ortodoxos não deviam apresentar-se, “devido a um pequeno chihuahua”. A atriz alegou ter feito a estipulação porque a fé dos muçulmanos dizia que os cães eram impuros.

O Movimento contra Racismo e pela Amizade entre os Povos depositou queixa contra Laforêt. Seu advogado disse que sua cliente sabia que a presença de um cachorro poderia entrar em conflito com as convicções religiosas dos ortodoxos muçulmanos. Isto seria um sinal de respeito. Mas os muçulmanos rejeitaram sua defesa.

Que dizer de tudo isto? Apenas o óbvio. Quando um morto de fome lá das Arábias consegue emprego decente na Europa e se julga no direito de recusar passageiros em seu táxi ou ônibus, quando imigrantes fodidos querem expulsar os cães das cidades que os recebem, quando prisioneiros exigem troca de roupas se um cachorro examina suas celas, e quando os europeus aceitam esta arrogância islâmica, isto significa só uma coisa: que a Europa se rendeu à barbárie do Islã.

Fevereiro 05, 2012


 

O NOVO CONFLITO EUROPEU

 

Quando fui morar na Suécia, em 71, aqui no Brasil não havia ainda o atual culto aos cães. Pela primeira vez em minha vida vi uma petshop. Como também produtos especiais para a alimentação canina e mesmo livros de culinária. Para quem saía da Porto Alegre dos anos 70, aquilo tudo parecia bizarrice de Primeiro Mundo.

Vivi em Paris de 77 a 81. Se houve algo que me chocou na França, foi o status do qual gozavam os cães. Cheguei até a mesmo a fazer um dossiê sobre o assunto, que deveria ter uns bons quatro ou cinco quilos. Uma ínfima parte desse dossiê está transcrita em Ponche Verde.

Do Le Monde, reproduzi uma reportagem sobre uma psicanalista de cães. A moça tinha seis anos de especialização na Inglaterra — onde a psicanálise canina está um século à frente em relação à França, dizia o jornal — e falava dos traumas que poderiam acometer os animaizinhos. Um dos graves problemas do cão parisiense era a crise de identidade, de tanto andar entre humanos o cão acabava esquecendo que era um cão, assim era bom que de vez em quando ele saísse com seus semelhantes. Um outro problema, e este dos mais graves, era o fato de que, sendo o cão muito sensível, seus problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica do cão.

Mas o recorte que mais me impressionou na época foi sobre o direito de visita a cães. Um marido, em instância de divórcio em Cretéil, Val-de-Marne, obteve de um juiz de paz um direito de visita a seu cãozinho, já que a mulher havia ficado com a guarda do animal. O casal só se entendia em dois pontos: a ruptura e a vontade de ver regularmente o bichinho. O juiz, após ter oficialmente constatado que havia convergência de pontos de vista por parte do marido e da mulher a respeito do animal, deu ao marido o direito de visitar seu cachorro dois fins-de-semana por mês e de guardá-lo durante boa parte das férias.

Para mim, latino, era como se estivesse lendo alguma ficção de Swift ou Kafka. Nunca entendi — e até hoje não entendo — como pode um casal mobilizar a máquina judiciária para chegar a um acordo tão banal.

Entre os livros que trouxe da França, está um Guide du Chien en Vacances, que mapeia a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Trouxe também o Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferece às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro dá uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se prevê também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especifica desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.

Visitei também Asnières, um dos dois cemitérios para cães de Paris. Visitei-o, propositadamente, num dia de Finados. Pequenas tumbas e mausoléus solenes, com toda a árvore genealógica do animal ali sepultada, de bisavô e avô a neto. Epitáfios ora ternos, ora céticos: “Traído pelos humanos, sim. Pelos cães, jamais”. Todas as tumbas floridas, madames limpando o chão em volta ao túmulo.

O melhor da visita ocorreu antes da chegada. Como não sabia bem o caminho do cemitério, me informei com duas velhotas que caminhavam à minha frente. C’est juste en face, Monsieur, pequena que não podemos acompanhá-lo, Monsieur é jovem. Vai daí que, ao sair do cemitério, reencontrei as duas velhotas. Limpando a grama na tumba do Pipo. Que havia morrido, se bem me lembro, em 1927. Haja fidelidade.

Vi piores, na França. Em meu dossiê veio também um outro livrinho, intitulado L’Animal, l’homme et Dieu, de Michel Damien (Paris, Editions du Cerf, 216p., 45 F na época). Ocorre, diz o autor, que se escreva sobre o animal para situá-lo em relação ao homem, mas é muito raro que os cristãos ultrapassem a etapa da poesia franciscana para chegar a uma espécie de teologia da natureza animal.

 

LE CHRIST EST MORT AUSSI POUR LES CHIENS

 

Assim titulou o Le Monde sua reportagem sobre o livro de Damien. “A solidariedade do homem com o animal não é somente biológica, natural, ela é ontológica, transcendental, evangélica. O Cristo morreu também pelos cães. A Igreja Católica infelizmente está ausente deste debate. Os animais não receberam nenhum status de sua parte. No entanto, se o animal não tem a noção de Deus, ele tem por outro lado aquela do homem, que foi feito à imagem de Deus. (...) Os cães nos esperam no caminho de Cristo. Eles são nossos próximos. Seu sofrimento misterioso é uma participação das Beatitudes. Há um Evangelho do animal, que também morreu nos braços de Deus. O animal tem algo de comum com o Cristo: ele morre pelo mundo e seu sacrifício é indispensável ao equilíbrio deste mundo”.

De minha parte, confesso que não entendo muito esses mimos dos cães contemporâneos. Tive cinco cães em minha infância e gostava muito deles. Vivia no campo. Alimentação era problema deles. Por um lado a buscavam na caça e em casa recebiam os restos de comida. Isso de dieta canina era algo inconcebível naqueles pagos. Se estava para morrer, morria. Não tínhamos médico nem para gente. Para cachorro, nem sonhar. Às vezes, algum deles tinha de ser sacrificado. Havia degustado a carne dos cordeiros e não largava o vício. O único remédio era levá-lo para o mato e dar-lhe um tiro na cabeça. Tenho amigas que adoram cães e não entendo muito este amor. Um cão escraviza uma pessoa. Diria que muito mais que uma criança, pois cachorro não tem creche nem escola. Meu bairro é pródigo em cães. Mal saio nas ruas, os vejo comandando, altaneiros, madames e meninas e mesmo varões. O Brasil importou definitivamente este comportamento europeu e a indústria direcionada aos cães só tende a aumentar.

Mas o mundo confortável dos cães europeus parece estar em vias de transformação. Na crônica de ontem, comentei a jihad promovida pelos muçulmanos contra a cachorrada européia. Cães sendo envenenados na Espanha, proprietários de cães hostilizados nas ruas de outros países e mesmo sendo impedidos de entrar em táxi ou ônibus se andam com cães, mesmo que seja um cão-guia de cego. Os árabes, que já introduziram no velho continente a excisão do clitóris e a infibulação da vagina, que fecham ruas em Paris e Marselha para orar com o traseiro virado para a lua e o focinho para Meca, estão até mesmo pretendendo expulsar os cães de algumas cidades. É o que dá dar passaporte a brutos. Sentindo-se cidadãos, sentem-se no direito de moldar a vida das cidades a seu modo.

Como Maomé mandou um dia matar os cães, consideram-no um animal imundo. Os árabes, que só conhecem regimes teocráticos em seus países, não dissociam religião de leis. Para os europeus, é bicho de estimação. O conflito está armado. E tende a transformar-se em guerra.

Fevereiro 06, 2012


 

MEDO AO SILÊNCIO

 

Música em restaurantes? A questão é mais complexa do que parece. Restaurantes silenciosos me agradam, são propícios à conversa. Uma música de fundo, desde que seja de meu agrado, também topo. Mas a música que me agrada pode ser abominável para meu vizinho, e vice-versa. Às vezes, busco um restaurante pela música. De vez em quando, aqui em São Paulo, vou ao El Mariachi, para ouvir os charros, e mesmo cantar. Em Madri, freqüentei o La Favorita, restaurante cujos garçons e garçonetes são alunos de música operística e cantam árias durante a ceia. Vou pelas óperas. A comida é péssima.

Em meus dias de Porto Alegre, muita vezes procurei bares pela música. Meu predileto era o da Adelaide, na Floriano Peixoto, onde muitas noites participei da mesa do Lupicínio Rodrigues. Lá também tocavam o Clio do Cavaquinho e o Mário Barros, violonista que tinha a mesma desenvoltura executando um sambinha como o Concierto de Aranjuez. Mário Barros também tocava numa cantina do Brutus, antigo proprietário da livraria Coletânea. Lá, quando me despedia de minha gente, para ir a Paris, fui homenageado com uma noite de pajadas por Noel Guarani. Mas aí é um pouco diferente: é música entre amigos.

Já procurei, em Madri, bodegas para ouvir flamenco e cante hondo, sevillanas e seguidillas. Lá, vivi uma das grandes noites de minha vida. Um amigo de Paris veio visitar-me. Pensei brindá-lo com algo típico. Em Maravillas, meu bairro, havia um pequeno restaurante muito ligado às lides taurinas, que servia um excelente rabo de toro. Lá por las nueve de la tarde, como dizem os madrilenhos, rumamos à tasca. Mal entramos, um venenciador nos recebeu com dois finos em punho.

Venenciador é um profissional que se especializa em servir jerez. Veste-se com uma espécie de traje de luces, aquelas vestes de toureiro. O fino é um copinho fino — daí o nome — onde se serve o jerez. Com uma haste de mais ou menos um metro, com outro copinho fino na ponta, ele apanha o jerez em uma barrica, e o despeja de uma altura de mais de metro no fino propriamente dito. Sem derrubar uma gota. É uma arte fascinante, mais ou menos perdida na Espanha atual.

O bar estava tomado por bailaoras y cantaores, que cantavam sevillanas. Fomos recebidos por uma saraivada de palmas y taconeos. Mal nosso jerez evaporava, o venenciador mergulhava o copinho no tonel e repunha a dose. Tudo isso, tendo como pano de fundo o alarido infernal das sevillanas.

Mas meu propósito era comer. Chamei o garçom. Venimos por el rabo de toro.

— Hoy no se come. Hoy es fiesta.

Muy bien. Vamos então continuar a fiesta. Entre um fino e outro, hipnotizados, contemplávamos os meneios das bailaoras e os piropos dos cantaores. Acontecera que um toureiro amigo da casa havia matado cinco ou seis touros naquela tarde. A festa era em sua homenagem. Lá pela meia-noite, preocupado com o estômago, pedi a conta.

— Hoy no se paga. Hoy es fiesta.

Como não morrer de amores por uma cidade que acolhe o estrangeiro em suas festas íntimas, o recebe com a finesse de um venenciador, oferece-lhe seus melhores vinhos e suas mais lindas canções e mulheres, sem cobrar nada por isso?

Em novembro passado, no Gundel, em Budapeste, jantei ao som de violinos entoando valsas e czardas. Me senti em casa. A mesma música se pode ouvir no Café Central, um dos mais solenes de Viena, entre as colunatas de mármore onde conspiraram Hitler, Lênin e Tito, Trotski e Freud, Klimt, Kloester e Karl Kraus. Entre outros.

Restaurantes assim me fascinam. Mas há aqueles pelos quais que passo de largo, justo pela música. Se ouço rock e bate-estacas outros, vou tirando meu cavalinho da chuva. Em Lesbos, ilha do Egeu, por longos minutos tive uma experiência do que imagino ser o inferno. Entrei em uma rua turística, bordada de boates de ambos os lados, cada uma emitindo centenas de decibéis de bate-estaca.

A revista britânica Waitrose Kitchen propõe em seu último número um debate crucial: deve-se proibir a música nos restaurantes? A publicação confronta dois artigos em que a presidenta do London Restaurante Festival e o dono da cadeia Boisdale manifestam opiniões contrárias entre si.

Fay Maschler argumenta que se não comemos nas salas de concerto, não precisamos de música nos restaurantes. “A maior parte do que se ouve é tão agradável quanto os ambientadores pendurados nos táxis”. Ranald Macdonald, por sua parte, conta como passou horas montando recopilações de jazz clássico, blues e soul para que fossem ouvidos em sua primeira casa, e garante que se a música é onipresente nos bares é porque a maioria das pessoas gosta. “Tire a música e você acabará com a ocasião de passar um bom momento”.

Segundo Mikel López Iturriaga, autor do blog gatrônomico Ondakín, o problema é que na Espanha os restaurantes bares de tapas não selecionam a música. O que toca pode ser um CD que o cozinheiro trouxe, o iPod do garçom de modo aleatório ou qualquer outra rádiofórmula infecta. E sempre em alto volume. Com a música ocorre um pouco como com o ar condicionado. Se estás muito tempo com o rum-rum de fundo, chega um momento em que não o ouves ou ouves baixinho. Então, ou não te incomoda ou, se a música em questão te agrada, tendes a aumentar o volume, sem perceber que podes estar obrigando tua clientela a vociferar. Some-se ao efeito anestesia a tendência em falar em voz alta dos espanhóis e a péssima sonoridade de muitos locais, e já temos uma torturante gritaria montada.

Iturriaga acha que o boom da música em restaurantes é um claro caso da modernidade mal entendida, aparentada com a entronização do “juvenil” que sofremos. Que chega um momento em que comer sem ruído, usufruindo da conversação, era próprio de velhos antiquados. Pensa ainda que o mal da música sem critérios afeta não apenas os restaurantes, mas também grande parte dos espaços públicos, como hotéis, estações, transporte, escritórios... parece que a paz significa aborrecimento e que precisamos do ruído para aturdir-nos e não pensar muito.

O gastrônomo basco tocou no ponto essencial da discussão. Conheço não poucas pessoas que se sentem perdidas quando rodeadas de silêncio. É como se o silêncio induzisse ao pensar, e pensar atemoriza. Há quem ligue a televisão mal acorde, não para assistir a algum programa, mas para encher o ambiente de som. Há muitos anos, eu me recusava a consultar médico que tivesse televisão em sua sala de espera. Desisti, ou não consultaria mais nenhum.

Voltando aos restaurantes e à música. Se quero ouvir algum tipo de música, vou onde possa encontrá-lo. Mas aí a restauração é secundária, o que importa é a música. Mas se quero conversar com amigos, procuro aqueles, cada vez mais raros, onde se ouve até o tinir dos talheres.

— Desta forma — continua Iturriaga — o silêncio se converteu no maior dos luxos, só ao alcance de monges ou de terratenentes com hectares de terrenos disponíveis para marcar distância com o tumulto permanente. Minha esperança é que existem outras pessoas sensíveis a este problema: no Reino Unido há webs como Pipedown ou Quiet Corners, nas quais se come o chamado “muzak” e se recomendam lugares livres da praga musical.

De fato, o silêncio tornou-se um luxo no mundo contemporâneo. E mete medo. Há quem prefira aturdir-se. Se pensa, se confunde.

Fevereiro 07, 2012


 

O FUNDAMENTO DA FAMÍLIA

 

Comentando para o UOL a história da moça grávida de quadrigêmeos, que enganou como a um patinho toda imprensa nacional, diz o psiquiatra de Porto Alegre Abelardo Ciulla: “Se a mentira tem o caráter inicial de fazer mal ou levar a um ganho próprio, é uma sociopatia. Senão, é caracterizada como mitomania, a mentira patológica”. Segundo a reportagem, é impossível terminar o dia sem ter contado uma mentirinha. Ainda que seja dizer que a sua namorada não engordou, mesmo ela tendo ganhado uns quilinhos, ou que é incrível aquela tarefa insuportável que seu chefe te pediu.

Essas são as chamadas mentiras sociais, sem maldade, que são essenciais para evitar conflitos. Já o mentiroso mau caráter está sempre à procura de algum benefício. “Esse tipo usa histórias inventadas para conseguir um ganho material ou emocional e não sente culpa se prejudicar outras pessoas”, afirma a neuropsicóloga Andrea Bandeira, do Rio de Janeiro.

Devo ser um anormal. Minhas últimas pequenas mentiras datam da infância, para fugir a alguma punição. Logo descobri que mentir é complicado. Precisamos criar outras mentiras para justificar a primeira, e se contamos mais de uma, haja memória para administrar todas. De lá para cá, não lembro de ocasião em que tenha mentido. Se uma namorada está gordinha, digo logo sem problema algum. E tampouco puxei saco de chefes nos dias em que tinha chefe.

Sei, há a mentira piedosa. David Servan-Schreiber, psiquiatra francês que morreu de câncer em 2011, se perguntava em um de seus livros se é legítimo mentir a um doente em estado terminal. “Como dizer a mais importante das verdades a um homem cuja vida toda foi uma mentira?” Não lembro da resposta, mas creio que ele admitia ser legítimo mentir nestas circunstâncias.

Os filósofos que discutem ética sempre levantam um argumento. Estou sentado em um bar e vejo uma mulher correndo que dobra a rua à direita. Logo depois, surge um homem também correndo, com um revólver em punho e me pergunta: para que lado ela foi? Se digo a verdade, estou condenando a mulher à morte. Isto é, há casos em que a mentira se impõe.

Fora estas circunstâncias excepcionais, não vejo motivos para mentir. Claro que quem mente para ganhar dinheiro ou vantagens, usa a mentira como método. Neste caso, a mentira pode ser crime e pode levar o mentiroso às grades.

Quem sofre de mitomania não fantasia histórias visando o lucro. Segundo Andrea Bandeira, a mitomania não faz parte da classificação de doenças mentais, ficando mais próxima de um transtorno que acomete pessoas com características de baixa autoestima e/ou que passaram por algum trauma. “A pessoa se sente inferiorizada e tem a necessidade de ‘pintar’ as coisas com uma mentira que ela gostaria que fosse verdade”, diz Abelardo Ciulla.

Para o psiquiatra Elie Cheniaux Júnior, professor adjunto na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e membro da ABP, o mitômano é sempre o protagonista de histórias heroicas. “Alguns autores dizem que ele sabe que conta uma mentira, outros dizem que ele acaba se convencendo de que aquilo é verdade.”

São mentiras que, a rigor, não prejudicam ninguém. Mas há categorias profissionais em que a mentira é uma segunda natureza. O caso mais gritante são os padres e pastores. Todo seu discurso parte de uma mentira fundamental, a de que deus existe, mentira na qual muitos nem acreditam. Depois vem uma fieira de mentiras menores para justificar a maior. Religiosos não conseguem sobreviver sem a mentira. Mal abrem a boca, já estão mentindo.

Para começar, a Bíblia não condena a mentira. Já no Gênesis, a mentira é vista como algo natural e nada condenável. Segundo Jean Soler, no terceiro volume de sua excelente trilogia, intitulado La Loi de Moïse, esta lei não condena a mentira. “Os propósitos enganadores na vida quotidiana não são objeto de nenhum mandamento. Só é proibido o falso testemunho, diante dos tribunais, sobretudo porque ele se apóia sobre um falso juramento em nome de Jeová, o que é condenar menos a mentira que o uso sacrílego do nome de Deus. Nenhuma proibição bíblica ou mesmo rabínica diz: “Tu não mentirás”.

Felizmente para Jacó, continua o autor: é por instigação de sua mãe, Rebeca, que ele mente a seu pai para dele extorquir a bendição que lhe dará, de forma irreversível porque sagrada, os privilégios devidos aos mais velhos. Ele mente sem escrúpulo algum. Ele opõe uma única objeção a sua mãe tentadora, que não diz respeito ao caráter imoral do ato que vai cometer, mas aos riscos em que incorre: “Talvez meu pai me toque, ele verá que o enganei e atrairei sobre mim a maldição em lugar da benção”.

As mulheres dos patriarcas têm uma grande facilidade para mentir, escreve Soler. A doce Raquel, esposa preferida de Jacó, rouba de seus pais os ídolos domésticos quando ela deixa Labão para seguir seu marido. Labão, que notou a desaparição dos ídolos, revista as tendas de Jacó. Quando ele entra naquela em que está Raquel, sua filha diz: “Que meu senhor não se irrite se eu não posso levantar diante de ti pois tenho aquilo que acontece às mulheres”.

Labão procura por toda parte e vai embora. Ela não tinha suas regras, estava sentada sobre as estatuetas. Ou seja, se Jeová vê com benevolência as mentiras dos seus, não há porque vê-las, na cultura ocidental, como algo abominável. Liberada a mentira, ela vira um instrumento de massacre. O autor nos lembra ainda o caso de um príncipe cananeu, que raptou Dina, a filha de Jacó e de Lea.

Enamorado por Dina, o príncipe a pede em casamento ao pais. Os filhos de Jacó aceitam, desde que todos os cananeus se submetam à circuncisão. “Então nós lhes daremos nossas filhas e pegaremos as vossas para nós, permaneceremos convosco e formaremos um só povo”.

Todos os homens da cidade cananéia se circuncidam. No terceiro dia, quando os cananeus ainda se recuperavam da cirurgia, em vez de entregar Dina e demais mulheres da tribo, Simeão e Levi, os irmãos de Dina, marcham contra a cidade e matam todos os homens. “Eles se apossaram do pequeno e do grande rebanho, de seus asnos, do que estava na cidade e do que estava nos campos. Tomaram pela força todos os seus bens, todas suas crianças e mulheres e pilharam tudo que havia dentro das casas”.

Tudo sob o olhar complacente de Jeová, que se era complacente em relação aos seus, não tinha complacência alguma pelos não-judeus. Se desde os primeiros versículos do primeiro livro do Livro a mentira é aceita como pretexto para massacres, não espanta que seja prática comum ao longo da Bíblia.

Outra faixa que tampouco sobrevive sem a mentira, são os marxistas. A primeira mentira marxista é a utopia. Pretendem — ou pretendiam — criar um mundo inviável, uma espécie de paraíso terrenal. Na busca desse paraíso, vale tudo: assassinatos, massacre, tortura, censura, gulags, distorsão da história. A URSS, desde seus primórdios, foi uma mentira colossal, a mais imponente do século passado. Um assassino como Stalin foi transfigurado em herói, santo e mesmo deus. Idem Mao Tse Tung. Ou Envers Hodja. Ou Ceaucescu. Ou mesmo Fidel Castro, tiranete menor que apesar de ter levado um país à miséria e assassinado milhares de dissidentes, ainda hoje é reverenciado no Brasil, a ponto de a presidente do país ter ido lamber-lhe as botas.

A elite intelectual de todos os países do Ocidente participou desta mentira e o Brasil não poderia ficar atrás. Mentiroso mor, Jorge Amado é até hoje celebrado como grande escritor. Mentirosos menos reputados: Luiz Carlos Prestes, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Oscar Niemeyer, Zuenir Ventura, Chico Buarque, Luís Fernando Veríssimo, Tarso Genro. E milhares de outros. Comunista é aquele tipo de mitômano que, segundo os estudiosos, acaba se convencendo de que a mentira é verdade.

Todo político, seja de qual partido for, é mentiroso por definição. Sem mentir, jamais será eleito. Seu discurso deve ser conforme a platéia gosta. E por isso muda tanto, conforme o público a quem fala.

Mas há uma mentira maior, bem mais envolvente que a mentira e mais vasta que a mentira religiosa, ideológica ou política. É a mentira conjugal. Ainda há pouco, em Minas, um cidadão matou a mulher a facadas, para depois suicidar-se, também a facadas. Duas vidas certamente plenas de mentiras. Estes crimes, ditos passionais, estão todos os dias nas páginas dos jornais. Houve momento em que sequer constituíam crime. O argumento de legítima defesa da honra absolvia o assassino. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Que as pessoas mintam para ganhar dinheiro, para ostentar status, para fazer de si alguém importante, até que entendo. Não justifico, mas entendo. O que não entendo mesmo é como uma pessoa possa mentir para outra que vive sob seu teto e partilha de seu leito. É como se alguém dormisse dez, vinte, trinta, cinqüenta anos ao lado de um parceiro sem sequer conhecê-lo.

Esta mentira, no entanto, é universal. Conheço alguns casais que são fiéis e não mentem um ao outro. Se contá-los nos dedos, sobra um monte de dedos. Mas a regra é a infidelidade, geralmente por parte do macho, e a mentira. Neste caso, tem sentido a afirmação de que é impossível terminar o dia sem ter contado uma mentirinha.

Esta gente mente o tempo todo, a cada dia, a cada hora, a cada minuto. Aparentemente, a mentira é o fundamento da família.

Fevereiro 08, 2012


 

LOS BANDOS DEL ALCALDE

 

Em 1986, por acaso estive no enterro de Enrique Tierno Galván, político, sociólogo, ensaísta e prefeito de Madri. Um milhão de pessoas chorava sua morte, inundando o espaço todo em torno à fonte de Cibeles. Marxista mas não fanático, homem de grande cultura, governava sua cidade através de “bandos”, que foram reunidos em livros. Suas posturas municipais eram extremamente poéticas e muitas vezes o prefeito começava citando Platão para tratar da organização da cidade. Um milhão de madrilenhos erguia os punhos e gritava: “Alcalde, presente!”

Era pessoa unanimemente querida e aquela multidão toda me provocou um nó na garganta, logo em mim que nada tinha a ver com o homem.

Enrique Tierno Galván é nome desconhecido no Brasil. Dele tomei conhecimento no dia de seu enterro. Autor de vários ensaios, o que mais me fascina no prefeito adorado pelos madrilenhos são seus bandos. A palavra existe em português, mas caiu em desuso. Significa anúncio público, proclamação. Daí contrabando, o que é contra o bando. Tierno Galván, ao anunciar suas portarias municipais, em vez de um texto jurídico fazia um poema em prosa.

Uma das mais ternas lembranças que tenho de Madri é um livrinho de 120 páginas, Bandos del Alcalde, onde Tierno Galván fala aos vecinos de Madrid. Por vecinos não se entenda vizinhos, mas habitantes. Com erudição e extrema elegância, el alcalde admoesta e dá recomendações a sus vecinos para bem tratar “esta hermosa Corte y Villa”. Por sua importância literária, foram reunidos em livro. No prólogo à 2ª edição, escreve Fernándo Lázaro Carreter, da Real Academia Española:

Por que o êxito? Há um motivo básico: estes textos, além de cumprirem com seu objetivo fundamental de comunicar o Alcaide com a Vila, constituem uma invenção nada fácil, que surpreendeu a muitos ainda capazes de admirar as invenções delicadas. Enrique Tierno criou um minúsculo porém grato gênero de discurso: o do bando didático-lúdico. Quem não está habituado a transitar pelos recônditos da escritura, mal dará valor ao que isto supõe.

Literatura, estes bandos? Claro que sim. Também circula hoje como convicção comum que é literário todo texto que atrai para sua leitura fora do tempo e da ocasião em que foi escrito. (...) Não é nada falso que a literatura é fundada pelo leitor, quando estima valioso para si, para seu gozo desinteressado, um determinado escrito.

Claro que um prefeito assim só pode conversar e ser entendido por uma cidade culta. Madri mereceu seu Alcalde e Tierno Galván mereceu sua Villa. Felices vecinos os que o tiveram como administrador.

Leio no El País que acabam de ser publicadas suas Obras Completas, com nada menos de 8.000 páginas. Que incluem o ensaio ¿Qué es ser agnóstico?, seu único trabalho literário, Relato de una muerte barroca, prólogos, conferências, artigos e bandos, o livro póstumo El miedo a la razón e mais três textos inéditos. É um feito e tanto para um homem que não se pretendia escritor.

Transcrevo um de seus bandos, em que el Viejo Profesor — como era conhecido — recomenda a vecinas y turistas maior recato no vestir-se durante o verão manchego. Transcrevo em espanhol, para não estropiar o saboroso estilo do autor.

EL ALCALDE PRESIDENTE DEL EXCELENTISIMO AYUNTAMIENTO DE MADRID

Madrileños:

Es viejo decir poético, con varia fortuna repetido, que con la llegada de la primavera, la naturaleza se viste con sus mejores galas, encubriendo la magra y seca desnudez del invierno con brillantes y copiosos adornos. Pero la humana especie que a veces contraría y repele lo que natura hace, lejos de cubrir, descubre, y lo que tapado había, destapa, en obsequio del más alegre, descuidado y gozoso vivir al que el bonancible tiempo invita.

Nada tendrá el Alcalde que advertir, respecto de lo dicho,si entre los que tal hacen no hubiera algunos y también algunas que caen en desquiciada y peligrosa confusión, pues hacen de esta Villa lo que esta Villa no es, tomando los ábregos vientos que de la Mancha vienen o los cálidos Aires que del africano Sur nos llegan por suaves y marinas brisas y el recio sol de Castilla, que más quebranta que alivia, por el suave y reparador que los altos montes luce.

De tan quimérica visión de la verdad nacen extrañas y peligrosas costumbres, pues desprovistos los hombres de jubón y calzas, pavonéanse en lienzos o lienzuelos, en extremo contentos de si, aunque hayan las carnes flacas, desdichadas las proporciones y mal encajados los huesos, como si lo hubieron sido dibujados por un torpe algebrista.

Algo semejante, aunque no igual, ocurre con buena copia de nuestras feminiles visitantes que por esta ciudad vagan y peregrinan y con numerosas vecinas que arrastradas por la antigua y legítima inclinación al discreteo, más la quimérica confusión que ya dijimos, dan en despojarse, como con particular y escrupulosa atención ha observado el Alcalde de esta Villa, de corpiños, basquiñas, briales y otras prendas, que por respecto no se nombran, faltando poco, en algunos casos, para que tanto mozas como menos mozas en carnes queden.

Ocasionánse de este modo graves y supérfluos daños, pues quienes desde el pescante los coches guían, alejan la atención de su principal menester, arrastrados por el invencible deseo de mirar, con menoscabo de haciendas, peligro para la vida y aumento de la común confusión.

Sucede además que el grande polvo que la ciudad produce, particularmente en el estio, la quemazón del sol, el rebullir las simientes y otras vegetales materias en la urbana atmósfera, amén de los humores a cuya expulsión la desnudez promueve, ocasionan salpullidos, llagas, postemas, abscesos y hasta lamparones, males que, según los físicos del Concejo, empodrecen los suaves miembros e gentiles cuerpos de las vecinas de esta Corte.

Conviene, por último, añadir a lo ya dicho que las buenas costumbres piden comedimiento y mesura en cuanto al destaparse toca, pues en esos lugares de común recreación y roce que son las públicas piscinas, como natura huye lo triste y apetece lo deleitable, exagéranse los destapamientos sin haber cuenta del decoro que cada uno a si próprio debe y del respeto que la tranquilidad de los demás merece.

También a veces acaece, cuando los estivales calores son muy grandes, que alguno de nuestros visitantes, para alivio, descanso y alegre algazarra y regodeo, se meten en cueros vivos en el agua que llena las tazas de las fuentes públicas monumentales. De cundir este ejemplo, faltarían tazas o sobrarían visitantes, con perjuicio notório para el bueno y equilibrado proceso de la vida en esta Corte. Amén de que con esos médios, según esta Alcaldía se alcanza, los ardores, lejos de bajar, aumentan, por lo que conmina a moradores y visitantes a que no practiquen tan dañosos y censurables usos.

Confia, pues, el Alcalde, que durante el presente estio, visitantes, andantes en Corte y las vecinas y vecinos de esta Villa, de cualesquiera edad y condición que sean, salvo los ancianos de cansada y molida senectud, tengan el debido cuidado en cuanto a lo que este Bando se aconseja, sin caer en impropias mojigaterías, exageraciones ni afectación de virtud.

Madrid, 25 de mayo de 1984.

Fevereiro 09, 2012


 

SOBRE CAXUMBA E COMUNISMO

 

É o que os franceses chamam de “glissement de mots”. As palavras vão escorregando e acabam adquirindo um sentido oposto ao que antes significavam. Claro que tais escorregadelas não são inocentes. No século passado ocorreu uma, e das mais graves. A Rússia criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E os europeus criaram a social-democracia. Os comunistas, num lampejo de marketing, associaram o socialismo europeu ao socialismo soviético. E toda Europa virou — pelo menos para os botocudos — socialista. Como se o socialismo comunista algo tivesse a ver com o socialismo social-democrata. Mas o sofisma pegou.

A humanidade marchava, então, rumo ao socialismo. Só que no socialismo de cá a imprensa era livre, livre era a expressão do pensamento, havia eleições com muitos partidos, e os cidadãos podiam ir e vir para onde bem entendessem. No socialismo de lá, todo pensamento dissidente era censurado, quem insistia em manifestar-se contra o regime ia para um gulag, havia um partido só e eleições, quando as haviam, eram sempre uma farsa, como ainda são, vide Putin. E quem quisesse sair do país que perdesse toda e qualquer esperança. Que razões teria alguém para sair do paraíso?

A palavrinha social-democrata adquiriu tanto prestígio que até um torturador oriundo do nazismo, da noite para o dia, virou social-democrata. Falo de François Mitterrand. Sua eleição é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: “Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política“. Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: “A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra”.

Para as esquerdas, virou socialista, tout court. Mas não era do detentor da Francisque que pretendia falar. E sim de Eugenio Bucci, articulista do Estadão, que pretende salvar os restos podres do socialismo, no caso, o socialismo comunista. Na edição de ontem, Bucci escrevia sobre a Yoani Sánchez, a blogueira cubana que se tornou internacionalmente conhecida contestando a ditadura dos irmãos Castro. E antes de ir adiante, vou esclarecendo que essa moça não me cheira bem. Desde quando, em uma ditadura, um cidadão pode denunciá-la, urbi et orbi, sem sofrer sanções? Há algo errado nisso tudo. Mas vamos ao Bucci:

“Com freqüência os relatos sobre as desventuras da blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista. Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar. Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana”.

Ora, se todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana, este não foi o caso da dita Revolução Cubana. Castro inspirou-se no socialismo soviético que, na época do levante em Cuba, já vinha fazendo água. Isso sem falar nas purgas stalinistas e nos gulags, denunciados já em 49 por Victor Kravchenko e em 56, no XX Congresso do PCUS, por ninguém menos que Nikita Krouschev, secretário do Partido.

Isto é, apenas três anos antes da dita revolução cubana, seu modelito, a União Soviética, admitia de público seu fracasso. Bucci quer puxar para mais atrás, para as revoluções francesa e americana, a inspiração da cubana. Como bom comunista, Bucci se pretende hábil em destorcer os fatos. Mas não engana quem seja minimamente informado. Inspirada no sonho socialista soviético, a ditadura cubana só podia resultar numa tragédia inevitável, fatal.

Prossegue o sofismador emérito: “Mesmo agora, a partir do final da 2.ª Guerra, inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso acarretasse uma degeneração de corte totalitário.”

Aqui, o sofismador emérito mostra as cartas que esconde na manga. Os inúmeros governos declaradamente socialistas que se sucederam na Europa são equiparados ao sonho socialista que teria inspirado Cuba. Ora, a Europa não se inspirou em ditadura soviética alguma para chegar aonde chegou.

Impertérrito, o articulista vai adiante: “Tanto é assim que, no mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade democrática”.

Acontece, meu caro, que o ideário socialista de perfil não autoritário não é mais socialismo. É social-democracia.

Bucci admite a ditadura em Cuba — e cego seria se não admitisse — e vê a ela duas oposições, a de direita e a de esquerda: “Por esse ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto, mas toma a liberdade como fim”.

Ou seja, oposição de direita não vale um vintém. Só pode opor-se à ditadura cubana quem for de esquerda. O comunista irrecuperável, no fundo, está afirmando: “só nós, de esquerda, podemos criticar nossas ditaduras”.

Comunismo é como caxumba. Ou dá na adolescência ou provoca esterilidade.

Fevereiro 10, 2012


 

ESSES JUÍZES FANTÁSTICOS E SUAS SENTENÇAS MARAVILHOSAS

 

No fim de semana passado, a secretária francesa da Saúde, Nora Berra, pediu que pessoas mais vulneráveis, como bebês, idosos, doentes e moradores de rua “evitem sair de casa” e “usem roupas apropriadas”. Pouco depois de divulgar o post em seu Twitter, Nora recebeu uma enxurrada de mensagens de internautas que perguntavam como um morador de rua poderia evitar sair de casa.

Bem, a rigor a secretária pode até ter alguma razão. Digamos que o morador de rua tenha como teto uma ponte. Claro que a ministra podia ser mais precisa: que moradores de rua não saíam de suas pontes. Mas um secretário de Estado não pode pensar em tudo, oras.

A ministra, então, deletou o tweet e retirou a referência aos sem-teto no texto publicado no blog. Em outro post na rede social, disse que a questão tinha sido um mal entendido e reclamou: “Certos assuntos não devem ser tratados com ironia.” Isto me lembra um pouco a Modesta proposta, de Swift, para resolver o problema dos pobres na Irlanda:

“Um jovem americano muito entendido, que conheço em Londres, me assegurou que uma criancinha saudável e bem criada constitui, com um ano de idade, o alimento mais delicioso, nutritivo e completo, seja cozida, grelhada, assada ou fervida; e não duvido que possa ser igualmente servida para um guisado ou um ensopado.

“Portanto, proponho humildemente à consideração do público que, das 120 mil crianças já relacionadas no Reino, 20 mil sejam reservadas para a reprodução; destas, somente 1/4 será de machos, o que já é mais do que permitimos às ovelhas, aos bois e aos porcos; e minha razão é que raramente estas crianças são frutos do matrimônio, coisas não muito apreciada pelos nossos camponeses; em conseqüência, um macho será o suficiente para servir até 4 fêmeas. De maneira que as 100 mil restantes podem, com um ano de idade, ser oferecidas às pessoas nobres e de fortuna do Reino, aconselhando sempre às mães que as amamentem abundantemente durante o último mês, a fim de que fiquem bem gordinhas e rechonchudas para uma boa mesa. Uma criança dará 2 pratos em um jantar com os amigos e, quando a família cear sozinha, o quarto traseiro ou dianteiro será um prato razoável que, temperado com um pouco de pimenta e sal, será excelente refeição até o quarto dia, especialmente no inverno”.

Com a diferença de que Swift fazia ironia. Não foi o caso da ministra francesa. Como a estupidez é contagiante e se espalha com a velocidade de moeda ruim, nestes mesmos dias, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou prisão domiciliar a um morador de rua preso em flagrante acusado de furto. É o que leio nos jornais.

Nelson Renato da Luz foi preso em flagrante em outubro do ano passado quando tentava furtar placas de zinco da estação República do metrô. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva. No entanto, laudo pericial comprovou que o suspeito é inimputável (sofre de doença mental e é pessoa comprovadamente incapaz de responder por seus atos) e, portanto, não poderia ser preso.

O relator cogitou da internação provisória de Luz em um hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que a medida só se aplica nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça.

Luz não se enquadra em nenhum dos casos. A solução encontrada pela 1ª Câmara de Direito Criminal, a partir do voto do relator, Figueiredo Gonçalves, de mandar o acusado responder ao processo em prisão domiciliar — quando ele não tem residência fixa — criou outro problema para o suspeito. Apesar de estar solto, poderá ser detido novamente. Pelo simples fato de existir, está cometendo um crime.

E nisto estamos. Quem quiser entender melhor o caso, leia O Processo, de Kafka. O romance do escritor checo conta a história de Josef K., personagem que acorda certa manhã, e, sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado.

Mas o melhor vem agora. Um juiz da Flórida, nos Estados Unidos, condenou um marido a agradar sua mulher após ter sido acusado de agressão doméstica. Com a sentença, o americano Joseph Bray terá que jantar em um restaurante de frutos do mar, comprar flores, ir ao boliche e freqüentar cursos de aconselhamento matrimonial com a mulher.

Bray agrediu a mulher por ela ter reclamado que ele não havia lhe dado os parabéns no dia de seu aniversário. Segundo o juiz, cumprindo todas essas ordens, Bray evitaria passar um considerável tempo na prisão por uma atitude que, segundo a corte, não foi tão grave. Bray não tinha antecedentes criminais.

“Ele vai comprar um cartão, flores e depois vai para casa, pegar sua mulher, se vestir e levá-la ao Red Lobster e depois os dois vão jogar boliche”, declarou Hurley.

Imagine que, por motivos que não vêm ao caso, você passe a abominar sua mulher. Chega então a Justiça e diz: “Ah! Então você não gosta mais dela? Pois agora vai levá-la a bons restaurantes, comprar-lhe flores e levá-la ao boliche”. A meu ver, não há melhor fórmula para transformar o não-gostar em ódio.

Mutatis muitandis, esta fórmula de querer obrigar alguém a amar — ou pelo menos a fingir que ama — não é exclusivamente ianque. Pululam no Brasil ações em que o juiz obriga um pai separado a visitar o filho. A primeira ação neste sentido no Brasil ocorreu em 2003, quando o juiz Mario Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, obrigou Daniel Viritato Afonso — que já pagava pensão alimentícia de quase R$ 1 mil, a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”.

Ora, há pais que adoram seus filhos e outros não. As razões porque não os adoram não interessam. O problema é que nada no mundo — muito menos uma sentença judicial — pode obrigar alguém a gostar de alguém. Isto deve ser resquício do preceito cristão de amar todo mundo, como se todo mundo fosse amável.

Me obrigasse um juiz a visitar um filho que não quero visitar, já a partir da primeira visita eu o estaria odiando. Tanto no caso da sentença do juiz americano como na do brasileiro, pune-se tanto a vítima como o pai ou marido inadimplente. O marido, que certamente detesta sua mulher, tem de levá-la a bons restaurantes e oferecer-lhe flores. A mulher também é humilhada, pois sabe que aquelas gentilezas são decorrência não de afeto, mas de uma sentença judicial. O mesmo diga-se do pai obrigado a visitar o filho.

Ah! esses juízes fantásticos e suas sentenças maravilhosas... Me lembram o caso do alfaiate que, no afã de encontrar o terno ideal que sirva a todos, acaba confeccionando um que não serve a ninguém.

Mas, por obrigação legal, tem de ser usado.

Fevereiro 11, 2012


 

PRONTO PARA O PALIATIVO

 

Há algum tempo atrás, quando passei pelo estaleiro para uma recauchutagem, ouvi duas médicas conversando. Como quem fala de um filme que viu ontem, dizia uma delas: “Sabe, Fulana foi para o paliativo”. Supus que fosse uma fase qualquer do tratamento, e de fato era: é aquela que precede a morte. Quem vai para o paliativo — só fui saber depois — recebe os cuidados mínimos para ter uma morte mais ou menos confortável. Vivendo e aprendendo.

Bronnie Ware, enfermeira que passou muitos anos trabalhando com cuidados paliativos, cuidando de pacientes em seus últimos três meses de vida, conta em The Top Five Regrets of the Dying, que os pacientes ganharam uma clareza de pensamento incrível no fim de suas vidas e que podemos aprender muito desta sabedoria. “Quando questionados sobre desejos e arrependimentos, alguns temas comuns surgiam repetidamente”, disse Bronnie ao jornal britânico The Guardian. Vejamos a lista de Bronnie:

1. Eu gostaria de ter tido a coragem de viver a vida que eu quisesse, não a vida que os outros esperavam que eu vivesse

“Esse foi o arrependimento mais comum. Quando as pessoas percebem que a vida delas está quase no fim e olham para trás, é fácil ver quantos sonhos não foram realizados. A maioria das pessoas não realizou nem metade dos seus sonhos e têm de morrer sabendo que isso aconteceu por causa de decisões que tomaram, ou não tomaram. A saúde traz uma liberdade que poucos conseguem perceber, até que eles não a têm mais.”

Bom... Qual é a vida que uma pessoa quer? Para começar, jovem nunca sabe o que realmente quer. E há muitas pessoas que se tornam adultas sem nada saber do que querem. Mas admitamos que alguém, lá pelos seus dezoito ou vinte anos, tenha uma idéia mais ou menos precisa do que quer como futuro. Que queria eu nessa idade? O que mais queria era alguma fórmula de obter independência econômica, ter meu espaço privado para viver, não depender de meus pais. A fórmula era o de menos. Estudei Filosofia e Direito. Filosofia por curiosidade. Direito para comer. Vai daí que joguei quatro anos fora, pois logo vi que não conseguiria exercer nem o magistério nem o Direito.

Como além de gostar de escrever, escrevia bem, acabei caindo no jornalismo. Inicialmente fui redator, profissão que não me desagrada exercer. Mais adiante, por cincos anos, trabalhei naquilo em que gostava de trabalhar, a crônica diária. Quatro destes anos, sediado em Paris. Suponho que um jornalista nada deseje de melhor na vida. Curti Paris e tudo que Paris oferece e fiz um doutorado. Daí pela frente, alternei minha vida entre magistério, traduções e jornalismo. Bebi, viajei, amei, vivi, como diria o Pessoa. Vivi também em duas outras cidades na quais queria viver: Estocolmo e Madri. Sim, eu tive a coragem de viver a vida que quis viver.

Sonhos irrealizados? Sim, uma aurora boreal. Mas ainda há tempo. Vamos ao segundo item da lista:

2. Eu gostaria de não ter trabalhado tanto

“Eu ouvi isso de todo paciente masculino que eu trabalhei. Eles sentiam falta de ter vivido mais a juventude dos filhos e a companhia de seus parceiros. As mulheres também falaram desse arrependimento, mas como a maioria era de uma geração mais antiga, muitas não tiveram uma carreira. Todos os homens com quem eu conversei se arrependeram de passar tanto tempo de suas vidas no ambiente de trabalho.”

Como sempre trabalhei em ofícios que não me desagradavam, desse mal não padeço. Aliás, gostaria de ter trabalhado mais. Sou um tanto dispersivo e gasto boa parte de meu tempo em bares e viagens. Houve também os dias de desemprego, coisa que acontece com todo mortal.

3. Eu queria ter tido a coragem de expressar meus sentimentos

“Muitas pessoas suprimiram seus sentimentos para ficar em paz com os outros. Como resultado, eles se acomodaram em uma existência medíocre e nunca se tornaram quem eles realmente eram capazes de ser. Muitos desenvolveram doenças relacionadas à amargura e ressentimento que eles carregavam.”

Esta, decididamente, não está em minhas queixas. Nunca tive medo de expressar meus sentimentos ou opiniões. Em função disso, criei muitos inimigos e desafetos. Mas também muitos amigos e amigas. Boa parte de meus atuais relacionamentos decorrem do que escrevi. A coluna na Folha da Manhã, particularmente quando em Paris, me rendeu não poucas namoradas. Jamais tive medo de ser visto como de esquerda ou de direita, como ateu ou devasso, como isto ou aquilo. Sou o que sou — como já dizia o Jeová. Com uma diferença: ninguém é obrigado a adorar-me. Que me queira quem me quiser. Amargura e ressentimento são doenças que desconheço.

4. Eu gostaria de ter ficado em contato com os meus amigos

“Freqüentemente eles não percebiam as vantagens de ter velhos amigos até eles chegarem em suas últimas semanas de vida e não era sempre possível rastrear essas pessoas. Muitos ficaram tão envolvidos em suas próprias vidas que eles deixaram amizades de ouro se perderem ao longo dos anos. Tiveram muito arrependimentos profundos sobre não ter dedicado tempo e esforço às amizades. Todo mundo sente falta dos amigos quando está morrendo.”

Meus amigos mais recentes são de pelo menos há vinte anos. De modo geral, eu os cultivo há quatro ou mais décadas. Temos envelhecido juntos, o que torna o envelhecer mais ameno e menos perceptível. Aliás, creio que são necessários pelo menos uns quarenta anos para considerarmos alguém um amigo. E às vezes ainda é pouco. Me faz falta, é verdade, a companheira que me acompanhou por 38 anos e por mais décadas me acompanharia se não tivesse partido. Amizades é o melhor de uma vida.

5. Eu gostaria de ter me permitido ser mais feliz

“Esse é um arrependimento surpreendentemente comum. Muitos só percebem isso no fim da vida que a felicidade é uma escolha. As pessoas ficam presas em antigos hábitos e padrões. O famoso ‘conforto’ com as coisas que são familiares. O medo da mudança fez com que ele fingissem para os outros e para si mesmos que eles estavam contentes quando, no fundo, eles ansiavam por rir de verdade e aproveitar as coisas bobas em suas vidas de novo.”

Cá entre nós, felicidade é algo em que nunca pensei. Me soa à coisa de auto-ajuda. Nunca me propus a ser feliz. Gosto, isto sim, de estar bem comigo mesmo. Não consigo ficar um segundo ao lado de pessoa de quem não gosto. Se alguém me vir sentado com alguém, pode estar certo de que é pessoa de quem gosto. Em minha juventude, tive de aturar chefes e chatos. Hoje, não mais. Em uma época que não poupa nada nem ninguém — dizia Goethe — vou pelo menos poupar a mim mesmo.

Apesar de ser, no fundo, um sedentário, nunca tive medo de mudanças. Vivi em três países fora o meu, em mais de dez cidades, e provavelmente em uma meia centena de endereços. Ernesto Sábato reclamou um dia do espaço que meus endereços ocupavam em sua agenda. De modo geral, nunca soube onde iria bater as botas. Hoje, sei. Salvo acidente, será neste apartamento onde escrevo.

Como nunca pensei em felicidade — esse sonho dos filmes de Hollywood — não sei se gostaria de ter-me permitido ser mais feliz. Poderia conhecer novos países, mas ando um tanto cansado de aeroportos. E quando quero conhecer país novo, Paris, Madri e Roma me puxam irremediavelmente. Que fazer? É lá que me sinto bem.

Que horror, caríssimos! Estou pronto para o paliativo e não sabia.

Fevereiro 13, 2012


 

ENTRE CEBETE E SÓCRATES

 

A geração anterior à minha está partindo. Há pouco se foram Jockymann e Scliar. Millôr está pela bola sete. Soube que está há cinco anos em cadeira de rodas, condição que não estimula viver.

A próxima rodada será a nossa, a dos que hoje estamos nos 60. Há uma fase em nossas vidas em que lemos as participações de nascimento para saber de nossos contemporâneos. Mais adiante surge a outra, em que lemos os necrológios para saber das novas. Os de minha geração estão chegando lá.

Nos últimos quatro ou cinco anos, mais da metade de uma mesa de meu boteco partiu. Cirrose, câncer, coração. Há poucos meses, um de meus companheiros de bar me noticiou, assustado, a última partida.

— Estou ficando sozinho. Jesus está chamando.

São os sinais. Como dizia um dos profetas de A Vida de Brian, ao anunciar o apocalipse: “E chegarão os dias em que os homens não mais saberão onde puseram os pequenos objetos”. Este me parece ser o prelúdio do fim. Ainda não cheguei lá, mas estou atento aos sinais. Já me preocupei muito com a morte em meus dias de adolescente. Como esta senhora podia visitar-me amanhã, procurei viver intensamente cada dia. Não foi má idéia. Como a fulana não chegava, dela acabei me esquecendo. Mas sempre chega o dia em que dela voltamos a lembrar. Manifestei esta inquietação a uma amiga de minha idade. Sua resposta:

— Como acredito em vida posterior a morte, isto não me preocupa. O que me preocupa é o sofrimento.

Pode ser. Quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte — diz Sócrates em Fédon. Eram dias em que filosofar era raciocinar com clareza para se chegar a alguma conclusão. Nada a ver com estes nossos dias, em que filosofar se resume a discutir qual será o objeto da filosofia. “Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? — pergunta-se o ateniense —. Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?”

Ao que objeta Cebete, um de seus interlocutores:

— Sócrates, dificilmente os homens poderão acreditar que a alma, uma vez separada do corpo, venha a subsistir em alguma parte, por destruir-se e desaparecer no mesmo dia em que o homem fenece. No próprio instante em que ele sai do corpo e dele sai, dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se, deixando, em conseqüência, de existir em qualquer parte. Porque, se ela se recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há pouco enumeraste, haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que disseste. Mas o fato é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos argumentos para demonstrar que a alma subsista depois.

A preocupação é antiga. Quatrocentos anos depois, Paulo irá jactar-se: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Para quem não acredita em ressurreição, toda fé é vã. Mas vida posterior à morte tem seus problemas. De minha parte, me recuso à serenidade de Sócrates e fico com as dúvidas de Cebete. Penso que outra vida não tem graça alguma. É de supor-se que iríamos sem o corpo pra lá, não? Afinal, apodreceu por aqui. Bom, e daí? Seríamos uma consciência pura vagando pelo espaço, uma espécie de fumacinha — como aventa Cebete — zanzando em meio ao nada, conversando com outras fumacinhas?

Reencontraria eu lá os bares que tanto amei? Na hipótese de ir para o paraíso — porque também existe a outra hipótese — estariam lá me esperando o Le Procope, la Petite Périgourdine, o Rélais de l’Ódeon, Aux Charpentier, Bofinger, Tire-Bouchon? El Oriente, Gijón, o Sobrino de Botín, El Espejo, o Venencia, a Cerveceria Alemana? O Sept Portes, Los Caracoles, Mi Burrito y Yo, o Salamanca? A Tasca do Chico, o Berlenga, o Tavares, o João-do-Grão? El Greco ou Florian? Lá tem Leffe, Grimbergen, Guinness, Delirium Tremens? Kirschwasser, akvavit, metaxas, calvados, orujo, queimada? Terá Riojas, Neros d’Avola, Cahors, Malbecs ou Carménères? Camembert, bouillabaisse, foie gras, boudin, andouilletes? Cochinillos, corderos lechales y pata negra?

Nunca ouvi falar de restaurantes, cervejarias ou vinícolas lá no Além. Então não quero. Hemingway dizia que os americanos bons, quando morrem, vão para Paris. Muito melhor. Outra pergunta: reencontrarei meus amigos e minhas amadas nas paragens do Além? Seria muito bom. Mas também os chatos que procuro evitar na vida terrena? Pois é de supor-se que chatos também tenham direito à vida eterna. Só o que faltava tropeçar nalguma esquina do Além com alguma das figurinhas que não suporto nem ver nos botecos da Paulicéia.

Por outro lado, sem corpo não há prazeres. Não há sexo, não há palato, não há música nem odores. Falar nisso, teria eu óperas ou música erudita? Ou o paraíso já estaria globalizado, contaminado pelo rock? A lembrança de um filme de 1966, Modesty Blaise, me aterroriza. Nele, Dirk Bogarde sofre uma tortura atroz. É amarrado entre estacas no deserto. Com um radinho de pilhas no ouvido, tocando música dos Beatles. Você imaginou isto para toda a eternidade? Prefiro as chamas do inferno, o choro e ranger de dentes.

Passo. Eternidade é um risco. Isso sem falar que deve ser um saco. Outra hipótese é a espírita. A gente reencarna aqui no planetinha mesmo. Mas... se eu reencarno com tudo, mas sem a memória da vida passada, de que adianta? É como se tivesse morrido. Pior ainda: e se eu reencarnasse como antropólogo, sociólogo, petista ou psicanalista? Seria uma nova vida, só que de vergonha e opróbrio.

Há uma terceira hipótese, a budista. Libertar-se do eu. Mas essa é inviável. Eu sou eu e nada mais, ora bolas! O que dá dramaticidade à vida é sua brevidade. Se temos a perspectiva de menos de século, temos de agir rápido. Imagine se alguém vivesse, não digo pela vida eterna, mas por mil anos? Vestibular? Vou deixar lá pros 200 anos. Profissão? Quem sabe aos 500. A História sofreria um retardo irremediável.

Volto a Sócrates: quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte. Não sei ainda se aprendi a morrer. Veremos isto mais adiante. Mas desde há muito aceito tranqüilamente a idéia de morte. Sei que vou ficar triste por abandonar a festa. Certamente vou chorar. Como um dia chorei, ao partir de Madri.

Ou, conforme as circunstâncias — nunca se sabe! — ficarei talvez alegre por abandonar o sofrimento. Mas da vida eterna, declino prazerosamente.

Fevereiro 14, 2012


 

AYAAN HIRSI ALI NO PAÍS DAS MARAVILHAS

 

Já comentei, há mais de cinco anos, o livro Infiel (Companhia das Letras, 2007), da escritora somali Ayaan Hirsi Ali. Refugiada na Holanda, foi deputada no Parlamento holandês e hoje vive nos Estados Unidos. Ayaan vai longe em suas denúncias.

Que a maioria das mulheres muçulmanas sofre a excisão do clitóris quando criança, disto há muito se sabe. A própria Aayan foi submetida à mutilação aos cinco anos. Como no Islã as moças sem hímen são consideradas objetos usados, muitas delas, ao perder a virgindade, buscam a Europa para fazer cirurgias reparatórias. O que não se sabia é que, até pouco tempo, em respeito ao famigerado multiculturalismo, as imigrantes muçulmanas na Holanda era reembolsadas pela seguridade social pela restauração de hímen. Aliás, em nenhum país europeu falta médico que se habilite à prática infame da clitorectomia. Na Itália, chegou-se a propor uma solução intermediária: um pequeno corte simbólico, que manteria intacto o hímen, mas salvaria as sábias tradições islâmicas.

Neste livro, além de memórias da infância e adolescência na Somália, mais seu primeiro contato com o Ocidente, Hirsi Ali narra o episódio da ablação de seu clitóris:

“Fui a seguinte. Fazendo um gesto amplo, vovó disse: “Quando esse kintir comprido for retirado, você e sua irmã ficarão puras”. Pelas palavras e gestos dela, concluí que aquele abominável kintir, o meu clitóris, acabaria crescendo tanto que um dia começaria a balançar entre minhas pernas. Ela agarrou meu tronco do mesmo modo que tinha prendido Mahad. Duas outras mulheres abriram as minhas pernas. O homem, que provavelmente era um “circuncidador” itinerante tradicional do clã dos ferreiros, pegou a tesoura. Com a outra mão, segurou o lugar entre minhas pernas e começou a puxá-lo e espremê-lo, como quando vovó ordenhava uma cabra. “Aí”, disse uma das mulheres, “aí está o kintir”.

“Então o homem aproximou a tesoura e começou a cortar os meus pequenos lábios e o meu clitóris. Ouvi o barulho, feito o de um açougueiro ao tirar gordura de um pedaço de carne. Uma dor aguda se espalhou no meu sexo, uma dor indescritível, e soltei um berro. Então veio a sutura, a agulha comprida, rombuda, a transpassar canhestramente os meus grandes lábios ensangüentados, os meus gritos desesperados de protesto, as palavras de conforto e encorajamento de vovó: “É só uma vez na vida, Ayaan. Seja corajosa, está quase acabando”. Ao terminar a costura, o homem cortou a linha com os dentes”.

Estou lendo agora Nomade — De l’Islam à l’Ocident,un itinéraire personnel et politique (Robert Laffont, 2005), a continuação de suas peregrinações no Ocidente, editado na França. Deve existir um ghostwriter por trás do livro, pois é difícil conceber o cosmopolitismo e o domínio de conceitos ocidentais de uma moça de apenas 43 anos, que saiu de uma tribo somali em sua adolescência. Ayaan está agora nos Estados Unidos. Por ter mentido à imigração holandesa para receber asilo — alegou razões políticas -, foi destituída da cidadania holandesa e teve de abandonar o Parlamento e o país. A somali não nega ter mentido, mas considera que esta é a maneira pela qual a maioria dos africanos consegue chegar à Europa.

Em Infiel, Ayaan se espantava com o fato de um ônibus chegar “exatamente na hora marcada, catorze horas e trinta e sete minutos, pontualmente. Em Bonn, os ônibus também eram assim, e aquela misteriosa pontualidade me parecia esquisitíssima. Como era possível prever que o ônibus chegaria precisamente às catorze e trinta e sete? Acaso eles também controlavam as regras do tempo?”

Em Nomade, a somali se defronta com outras misteriosas instituições do Ocidente, desde o tíquete de espera de uma fila ao crédito e o cartão de crédito.

“Eu estava cativada pela engenhosidade do sistema. As pessoas não tinham de fazer a fila como éramos obrigados na África; eles não tinham que se enfiar, empurrar os outros ou se comportar de maneira agressiva para defender seu lugar na fila de espera. Podia-se sentar, e durante este tempo seu tíquete de alguma maneira fazia a fila por você”.

Quando uma funcionária da assistência social lhe oferece um empréstimo para mobiliar seu apartamento, Ayaan toma contato com três conceitos desconhecidos: mobiliar, seu e apartamento. Quando entende que se trata de um empréstimo, fica perturbada com a idéia de ficar devendo a uma infiel. “Isso significaria certamente que eu seria obrigada a pagar juros, o que é anti-islâmico e malsão. Devia ser uma armadilha dos infiéis”.

Ao fazer uma conta em banco, algo que jamais tivera idéia do que fosse, foi-lhe perguntado se queria depositar algum dinheiro na conta. Aayan propôs dez florins que tinha em um bolso da manga. “Ah, não, isso você pode guardar”. Recebeu um pequeno cartão brilhante, que tinha por nome Giro. Servia apenas para lembrar seu número de conta, mas ela o achou maravilhoso. Mais tarde, recebeu um cartão de débito. Para seu espanto, descobriu que podia retirar dinheiro do distribuidor, na rua, não importava quando, desde que tivesse vontade.

Os problemas surgiram quando Ayaan e sua irmã descobriram que, graças àquele cartãozinho mágico, podiam comprar o que bem entendessem sem pagar dinheiro algum pela mercadoria. E forraram seu apartamento com cortinas, tapetes e móveis caros, afinal não precisava pagar. “Eu vivia no mundo de Alice no país das maravilhas, atrás do espelho, munida de um cartão bancário e de um apartamento”.

O mesmo aconteceu com outro africano ilustre, Idi Amin Dada, ditador de Uganda, se é que alguém ainda lembra dele. Recebeu dos ingleses um cartão de crédito e achou uma maravilha comprar carros, televisores, móveis sem nada pagar. Até que um dia chegou a conta. Os ingleses tomaram então uma providência. O cartão tinha de ser avalizado com a assinatura do adido militar britânico.

“Praticamente todos os imigrantes que eu conhecia — diz Ayaan — acumulavam dívidas demolidoras. Eles pediam uma carta de crédito, esses pequenos retângulos de plástico mágicos que lhe permitem, simplesmente em troca de uma assinatura sobre um pedacinho de papel, sair de qualquer loja com aquilo que você tem vontade”.

Como seria de esperar, um dia a conta chegou para Ayaan. “Uma carta me informava que eu estava endividada em quatro mil florins suplementares. Quatro meses mais tarde, Yasmine desapareceu. Pouco tempo depois, recebi uma fatura da companhia telefônica: ela havia gasto 2.500 florins em comunicações”.

O remédio foi apelar a holandeses amigos, que a ajudaram a pedir planos de pagamento a longo prazo. Ayaan Hirsi Ali aprendeu então a gerir esse ato banal que toda criança domina no Ocidente: comprar.

Fevereiro 15, 2012


 

SOBRE OS CABEÇAS-DE-TOALHA

 

Espanta ver que no Brasil haja mulheres que defendem o Islã. Pero que las hay, hay. A propósito da crônica que escrevi sobre a jihad contra os cães na Europa, recebo de uma leitora:

O texto ia muito bem até o preconceito e intolerância (até então dito dos Islâmicos) surgir no último parágrafo: “Quando um morto de fome lá das Arábias consegue emprego decente na Europa” — quer dizer que qualquer imigrante que sai do oriente médio, ou “Arábias” como você se referiu e vai pra a Europa é um morto de fome? Então nós brasileiros que vamos também somos, ou somos mortos de fome em outro pais ou somos preconceituosos. Um texto que tinha tudo para ser bom, se perde com a forma mais banal de preconceito, a intolerância.

Não concordo com o Islã como tampouco concordo com o protestantismo ou catolicismo e nem por isso vou chamar qualquer estrangeiro de morto de fome, como foi falado aqui. Ah, e também não concordo com a forma como tratam os cães, mas ACIMA DE TUDO aprendi o que é respeito. Respeito o Islã, embora não concorde com 95% do que dizem. Para haver uma evolução mental, primeiro temos que aprender a tolerar e respeitar, depois vamos exigir a mesma coisa. Mas nós não temos a verdade universal, são culturas completamente diferentes e por querer fazer dessas culturas uma só é que se está tendo toda essa guerra. Provavelmente os indianos condenam nosso churrasco com suas vacas sagradas.

Mortos de fome, sim senhora. De modo geral, entram ilegalmente na Europa, muitas vezes em precárias pateras, arriscando a morte no Mediterrâneo — e muitas vezes morrendo — para buscar comida no continente. Encontram muito mais que comida: trabalho, assistência social, saúde e educação. E depois querem impor a sharia aos europeus.

São exigentes. Na Finlândia, por exemplo, um menino somali não aceita professoras. Tem de ser professor. Porque um macho somali não dirige a palavra a uma mulher. E os ingênuos finlandeses fornecem professores às bestas somalis. A besta somali recebe comida, assistência e educação e cospe no cocho em que come.

Antes de ir mais adiante: um indiano pode achar uma heresia comer carne de boi. Mas não tem nada contra que os ocidentais a comam.

Não, não tenho nenhum respeito pelo Islã. Não posso aceitar uma cultura onde mulheres não podem sair na rua sem a companhia de um macho (e mais: tem de ser parente). Não aceito uma cultura onde as mulheres têm a vagina infibulada e o clitóris excisado. Se você tem algum respeito por tal cultura, tenho pena do espécime humano que você representa.

A leitora volta à carga:

Mas eu não tenho pena de gente como você, tenho vergonha. Respeitar uma religião é BEM diferente de aceitar. Não posso impor minha doutrina, minha maneira de achar o que é certo ou errado. Já vimos que isso não dá resultado bom, pelo contrário. Os portugueses e espanhóis tentaram fazer isso com os índios na América e dizimaram, os nazistas com os judeus, hoje são os judeus contra os árabes.

Você deve aprender a respeitar o próximo acima de tudo. Pessoas com a sua mentalidade são as mesmas que batem em homossexuais porque não são “iguais” a eles. Sua mentalidade é essa, e desse tipo de mentalidade não tenho pena, tenho nojo.

Não aceito mulheres serem mutiladas, não aceito a forma como as tratam no oriente, mas eu tenho consciência que minha visão é ocidental. Para ele, o que fazemos aqui é uma barbárie. Lá as mulheres são mutiladas, aqui são tratadas como vagabundas, se dançam na rua, no carnaval ou no baile funk, não prestam. Se são gostosas, não valem nada. Essa é a mentalidade daqui. Pense em quão horrorizados eles ficam ao verem uma mulher com um short enfiado na bunda. Nós pensamos “nossa, aqui elas tem liberdade para isso” e eles pensam “não há respeito”.

Você acha que sabe muito da cultura deles, mas pela forma como fala, tem uma mentalidade bastante limitada além de preconceituosa ao extremo. Não me admiro com seu tipo, apenas lamento que ainda existam. Você utiliza a palavra “macho” com desprezo, não se esqueça que você é um “macho” pois isso se refere ao sexo animal.

Eles entram ilegalmente lá, nós brasileiros entramos ilegalmente nos Estados Unidos, ou você acha que todos os queridos compatriotas que estão hoje lá estão com green card, ou foram convidados gentilmente pelos americanos??? Não, somos os mortos de fome dos americanos e também de europeus, pois também vamos para Portugal, Espanha, Inglaterra e etc. Somos mortos de fome, com a diferença que qualquer coisa que europeus ou americanos façam ou imponham a nós, vamos abaixar a cabeça e achar o máximo. “Nossa, eles me dão ração para comer, pra que vou reclamar!!!” Essa é a mentalidade dos brasileiros que vão ilegalmente para o exterior. Esse é o seu povo também, são seus mortos de fome.

As religiões nascem bárbaras e morrem cansadas, caríssima. Não respeito religião alguma que ordene massacres, apedrejamentos ou imponha uma condição inferior à mulher. Estes três itens não são originalidades do Islã, constam de livro bem anterior, o Antigo Testamento. Jeová manda matar, arrasar, destruir os altares das tribos vizinhas de Israel, matar tudo que respire. O lapidamento também consta da Bíblia. Ocorre que, no Ocidente, a Igreja separou-se do Estado. Nem mesmo aos judeus — que criaram um Estado mais ou menos teocrático — ocorreria hoje arrasar nações vizinhas só porque têm outras crenças nem apedrejar mulheres. Verdade que há ortodoxos que bem gostariam de voltar às antigas práticas bíblicas, mas são contidos pelo Estado.

Com o surgimento da noção dos direitos humanos, tanto a Bíblia como o Corão passaram a ser vistos como livros que induzem ao crime. Mas se judeus e católicos e demais cristãos abandonaram os preceitos antigos, os muçulmanos continuam apedrejando, chicoteando e enforcando mulheres, até mesmo pelo “crime” de terem sido estupradas. O judaísmo e o cristianismo abandonaram a barbárie. Os islâmicos não. Aliás, introduziram um novo tormento à mulher, a infibulação da vagina e a excisão do clitóris. Tais práticas não constam do Corão, mas são predominantemente islâmicas.

Não, não respeito criminosos. Respeitar o próximo? Respeito pessoas que merecem respeito e nem todo próximo é respeitável. Sou ateu. Não participo dessa mentalidade estúpida de amar o próximo como a si mesmo. Amo as pessoas que julgo amáveis.

“Pessoas com a sua mentalidade são as mesmas que batem em homossexuais porque não são iguais a eles”. Pelo jeito, você nunca leu o que já escrevi. Desde meus verdes anos, defendo toda e qualquer opção sexual, desde que não implique violência. Verdade que não me cheira bem esta recente militância homossexual, que pretende que crime contra homossexual é mais grave que crime contra heteros. Se um homossexual é agredido ou assaltado,como o são tantos brasileiros, fala-se logo em homofobia. Certa vez, fui assaltado em Porto Alegre. Estou quase certo que se tratava de um crime de heterofobia.

Não sei em que mundo você vive. Não vejo ninguém considerando vagabundas mulheres que dançam na rua ou no carnaval. (Funk é outro setor, que implica inclusive droga). Não sou devoto de mulheres com short enfiado na bunda. Mas elas não me horrorizam. Vistam-se como lhes agradar. Você escreve: “Se são gostosas, não valem nada. Essa é a mentalidade daqui”. Não sei bem o que você entende por gostosas, mas se está falando de mulheres bem torneadas, você se engana redondamente. Pelo contrário, valem milhões. Veja desde a Bundchen às passistas de escola de samba. Ganham a vida com suas formas. E suponho que você não as considere prostitutas.

O culto ao nu não é nenhuma novidade de nossos dias. Os gregos o cultuavam e o imortalizaram em suas esculturas. Os efebos gregos não tinham nem mesmo short enfiado no traseiro. Suponho que você não entenda o culto ao nu dos helenos, suas esculturas, como pornografia.

Quando falo em macho, despectivamente, estou me referindo a este ser abominável que se pretende superior à mulher — e mesmo seu amo e senhor — só porque é macho. O testemunho de um homem, no Islã, vale pelo de duas mulheres. Só porque é macho vale por dois.

Sim, há brasileiros entrando ilegalmente nos Estados Unidos, como também na Europa. Mas não são exatamente mortos de fome. Pertencem basicamente a dois grupos. Há pessoas que querem fazer fortuna — ou pelo menos um patrimônio — de maneira mais rápida. E há jovens que se dispõem a trabalhar até mesmo como garçonetes, camareiras ou babás, para aperfeiçoar um idioma estrangeiro. Estes últimos entram sempre legalmente no estrangeiro. Ninguém arrisca a ser deportado apenas pelo desejo de aperfeiçoar uma outra língua.

Você afirma que “qualquer coisa que europeus ou americanos façam ou imponham a nós, vamos abaixar a cabeça e achar o máximo. Nossa, eles me dão ração para comer, pra que vou reclamar!!!”

Nada disso. Nem americanos nem europeus impõem qualquer coisa a estrangeiros. Exceto que respeitem suas leis. E os muçulmanos não as respeitam. Querem viver segundo a sharia em qualquer geografia por onde andam. Carregam o Islã nas costas.

Seja como for, nenhum brasileiro chega impondo regras em país estrangeiro. Nenhum brasileiro vai um dia fechar ruas para rezar com o traseiro virado para a lua, nenhum brasileiro pretenderá mutilar suas filhas em país estrangeiro — aliás, nem aqui —, nenhum brasileiro vai exigir a expulsão de cães de uma cidade ou agredir quem os porta. Isso é coisa dos cabeças-de-toalha, que transportam para o Ocidente o modelo teocrático em que viviam.


 

INTOLERANTE E PRECONCEITUOSO SÓ É O LOIRINHO DE OLHOS AZUIS

 

Faltou algo ainda sobre a mensagem da leitora que defende o Islã. A moça me acusa de preconceito e intolerância. Vamos por partes.

Preconceito é o novo palavrão que as esquerdas brandem quando criticamos os crimes e atrocidades praticadas por negros, índios, árabes e imigrantes em geral. O branco ocidental pode ser criticado com gosto. A elite branca, o loirinho de olhos azuis, é o responsável por todos os males da humanidade. Como dizia Darcy Ribeiro, a raça branca destrói tudo por onde passa. Logo Darcy Ribeiro, que só existe graças ao Ocidente branco e europeu. Confunde-se muito preconceito com pós-conceito. O exemplo mais cabal de preconceito, a meu ver, é o sofrido pelo abominável homem das neves. Por que abominável, se ninguém nunca o viu?

Eu nada tinha contra muçulmanos antes de conhecê-los. Os imigrantes árabes que chegaram ao Brasil logo se deixaram fundir neste caldeirão de culturas e pouco ligam para as prescrições de Maomé. Verdade que a situação está mudando. A Arábia dos Saud está investindo milhões de dólares na construção de mesquitas no país e na formação de mulás. O número de mulheres veladas tem aumentado sensivelmente nas grandes cidades. O trabalho dos sauditas é de proselitismo e tem atingido principalmente as mulheres. Que passam a negar a evidência. Há alguns anos, eu discutia com uma convertida que negava de pés juntos que Maomé fosse um guerreiro e que a expansão do Islã fora feita a ferro e fogo. Isto é, a moça negava a História.

Nada tinha contra os muçulmanos, dizia. Em Paris, os vi de perto e me enfronhei na cultura islâmica. São abomináveis. E o nó górdio que separa as duas civilizações, a ocidental e a muçulmana, é a mulher. Enquanto a mulher for tida como escrava de seu amo e senhor, todo e qualquer diálogo é inviável. Nenhum respeito à cultura alheia pode justificar a mutilação sexual de crianças e a redução da mulher a um fantasma embuçado, sem identidade própria. Isto não é um pré-conceito, mas um pós-conceito.

Quanto à intolerância, se um muçulmano considera as ocidentais prostitutas porque mostram o corpo, isto não é intolerância, mas recato, respeito à mulher. Se querem expulsar os cães das cidades européias, isto não é intolerância, mas respeito às palavras do Profeta. Intolerância só existe quando o Ocidente denuncia a condição escrava das muçulmanas, a excisão do clitóris e a ablação da vagina.

Em fevereiro de 2006, comentei a pretensão de países muçulmanos que queriam criar uma cláusula contra a blasfêmia nos estatutos do novo Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os 57 países que integram a OIC (Organização da Conferência Islâmica) pediram a inclusão de um parágrafo para “prevenir casos de intolerância, discriminação, incitação ao ódio e à violência, gerados por ações contra religiões e crenças”.

A blasfêmia, de pecado, infração que diz respeito a teólogos, passaria a ser crime punido pela legislação. Os muçulmanos, cujo calendário começou em 622 da era cristã, queriam nada mais nada menos que arrastar a Europa de volta à Idade Média, onde discussões sobre o destino do prepúcio de Cristo podiam levar um homem à fogueira.

Em fevereiro de 2009, os muçulmanos conseguiram oficializar esta volta à Idade Média. Naquele mês, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução que condena a difamação religiosa e passa a considerar o ato como uma violação aos direitos humanos. O documento também pede que governos adotem leis protegendo as religiões de ataques. Em um tour de force, a ONU conseguiu — ou pelo menos tentou — instituir a censura à crítica das religiões no Ocidente todo.

Evidentemente, só haverá punições quando as blasfêmias se referirem ao Islã. Já que o velho deus cristão vem sendo insultado há séculos. Proibir insultos a Jeová seria proibir a edição de monumentos como Nietzsche ou Voltaire.

Coincidentemente — ou talvez nem tanto — citei há pouco os livros de Ayaan Hirsi Ali, esta menina que saiu de um clã tribal na Somália e tornou-se deputada do Parlamento holandês. Convidada a Berlim em fevereiro de 2006, a então deputada pronunciou um discurso sobre a affaire das caricaturas de Maomé, contra o islamismo e pela defesa da liberdade.

— Estou aqui para defender o direito de ofender. Tenho a convicção que esta empresa vulnerável que se chama democracia não pode existir sem livre expressão, em particular nas mídias. Os jornalistas não devem renunciar à obrigação de falar livremente, da qual são privados os homens de outros continentes.

Ao decretar a censura sobre a crítica de religiões, a ONU ignorou solenemente o acórdão Handyside, de 1976, reconhecido pela Corte Européia de Direitos do Homem. Que declara:

“A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.

O que a ONU propôs — e que algum países europeus começam a aceitar — é uma Idade Média total. Se na Idade Média eram proibidos apenas os livros e autores que contestavam a Igreja de Roma, a entidade agora quer a proibição de qualquer livro ou autor que conteste toda e qualquer religião.

A leitora que me cataloga como preconceituoso e intolerante tem forte respaldo na ONU. Se quisermos apoio à liberdade de expressão e a defesa da cultura européia, temos de pedir ajuda a uma refugiada somali.

Fevereiro 17, 2012


 

GOVERNO INSTITUI A BOLSA-TURISMO

 

O Brasil é sem dúvida um país riquíssimo. Tem os deputados mais caros do mundo, os magistrados mais bem-remunerados do Ocidente, financia o sustento dos bugres, os maiores latifundiários do país — que ainda não descobriram como cultivar suas terras —, financia generosamente bandoleiros que invadem fazendas produtivas e remunera regiamente os celerados que um dia tentaram transformar o Brasil numa republiqueta soviética. E ainda sobra grana para mais favores.

Em 5 de outubro de 2011, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que institui o Estatuto da Juventude e define um conjunto de direitos específicos para jovens entre 15 e 29 anos, como a meia-entrada em eventos artísticos e culturais. Atualmente, as leis que regem a meia-entrada são estaduais. A matéria, aprovada na forma de um substitutivo, foi enviada para análise do Senado. A autoria do projeto é a relatora da deputada comunista Manuela d’Ávila. Como hoje rock também é cultura, o projeto garante também meia-entrada para estes festivais de bate-estaca e drogas.

Quando se pensa que a capacidade dos deputados de criar leis idiotas se exauriu, nunca falta quem os supere. Quarta-feira passada, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) o projeto de lei prevendo que jovens de 15 a 29 anos de baixa renda terão duas passagens gratuitas em todos os aviões, ônibus e barcos interestaduais que transitarem no país, além de duas passagens com desconto de 50%, se o benefício integral já tiver sido utilizado. Os “jovens” terão ainda meia-entrada nos eventos culturais e esportivos financiados com dinheiro público e 40% de desconto nos eventos patrocinados pela iniciativa privada.

Você é jovem e cansou de puxar fumo nos festivais de rock em São Paulo? O governo garante passagens para você degustar novas ervas no Rio. Quem paga estas mordomias a nossos jovens? Adivinhe. Não é difícil.

Está instituída a bolsa-turismo. Antes privilégio de professores universitários que pretendiam doutorar-se no Exterior e de deputados e senadores “em missão”, agora são estendidas a “jovens” universitários em geral e “jovens” não-universitários. De iniciativa do governo de Lula, o estatuto tramitou sete anos na Câmara. No entender do senador Demóstenes Torres, o estatuto é “totalmente demagógico”, elaborado para atender à União Nacional dos Estudantes (UNE) e “outros movimentos que hoje estão perdidos, não têm bandeira alguma, não combatem o governo e não combatem a corrupção”. Demóstenes tentou reduzir a idade dos jovens para 21 anos, mas o relator alegou que o teto da juventude, aos 29 anos, decorre de um tratado da Organização das Nações Unidas (ONU).

O relator mentiu. Segundo a definição da ONU, os jovens constituem a faixa de idade compreendida entre 15 e 24 anos. Se formos adotar um critério nacional, a Pesquisa Nacional por Amostras de Domícílios (PNAD), a faixa é mais estrita, de 15 a 21 anos. O relator mentiu e o senador goiano sequer se deu ao trabalho de pesquisar. Caiu como um patinho na lorota do PT.

Temos agora, então, marmanjos de 29 anos considerados como jovens para efeitos de mordomias. Juventude, para mim, é um estado de espírito, e podemos ser jovens tanto aos 20, como aos 40 ou 60. Da mesma forma, há não pouca gente de 20 e poucos anos já irremediavelmente senis. Ocorre que a lei não pode definir estados de espírito. Precisa recorrer a critérios mais precisos. Nos dois projetos, os proponentes pretendem definir, de cambulhada, a idade legal dos jovens no Brasil.

Definir jovem como alguém entre 15 e 24 anos me parece sensato. A pessoa saiu da adolescência, teve tempo de fazer algum curso universitário ou preparar-se profissionalmente para algo. A partir daí, começa mesmo a vida. Se bem que, nos últimos anos, tenho visto a adolescência se prolongar até os 30 ou mais anos. Filhos que se encostam nos pais e pais que os sustentam até longa idade, eis a melhor fórmula para criar um inútil.

Já considerar jovem alguém entre 15 e 29 anos não passa de demagogia de político desonesto. Os autores de tais projetos, com olho em votos, estão distanciando os jovens da adultez. Que mais não seja, quem paga a fatura não são eles. Adulto, define o Houaiss, é aquele que se encontra na fase da vida posterior à juventude e anterior à velhice. Do ponto de vista jurídico, seria aquele que alcançou a maioridade, que chegou à idade em que a lei lhe concede capacidade para os atos da vida civil. Do ponto de vista psicológico, seria aquele que é emocional e intelectualmente maduro, que demonstra capacidade de agir, pensar ou realizar algo de maneira racional, equilibrada, sensata.

Tenho um conceito bastante pragmático do que é ser adulto, que não coincide com o dos dicionários. Adulto é aquele que já saiu do ninho paterno e provê seu sustento. O primeiro salário, por escasso que seja, já é um primeiro sinal de adultez. Pode até que nem supra as necessidades de um jovem, mas fá-lo sentir como é duro ganhar a vida.

Há alguns anos, um leitor me dizia não ver sentido nem sabor algum na vida. Deduzi logo que se tratava de um jovem pendurado nos pais. Não deu outra. Só o trabalho dá sentido e sabor à vida. Após um dia exaustivo de trabalho, o singelo fato de chegar em casa, pôr chinelos, tomar um uísque, abraçar a mulher querida ou dedicar-se a algum lazer dileto é uma ante-sala do paraíso. E nada melhor que passar no caixa e receber seu salário no final de cada mês, por parco que seja.

Neste momento, terminou a adolescência. Entre nós, isto pode ocorrer até mesmo aos 15 anos. No caso dos soldados do tráfico, por exemplo, bem antes. Não consigo conceber como se possa chamar de adolescente um menino com um revólver na cintura e disposto a matar se for preciso. Por vias transversas, ele já chegou à adultez.

Já afirmei, em algum momento, que me senti adolescente até os 40 anos. Me senti adolescente, não que o fosse. Até os 40, viver foi sempre festa. Gostava dos ofícios que exercia, trabalhar para mim era lazer. Comecei a trabalhar com carteira assinada aos 22 anos. Antes disso, fiz muito bico para custear minhas universidades. Mas desde meu primeiro trabalho em jornal, me senti autônomo. Aos 40, justo no dia em que os comemorava com meus colegas em Madri, após um curso de aperfeiçoamento em espanhol, me descobri desempregado e com o nada pela frente. Naquele momento, senti que a festa havia acabado.

Todos os amigos e amigas de meu pequeno círculo, nessa idade, os 22, ou mesmo antes, eram donos de seu nariz. Houve quem começasse a trabalhar aos dezoito anos. Os projetos em tramitação no Legislativo prolongam prejudicialmente a adolescência e dependência, no caso, do Estado.

Mas, no ritmo em que vai o país, seus autores até que foram tímidos. Um jovem gaúcho, se quiser, poderá ter direito a fazer turismo na Amazônia sem pagar passagem. Já um garçom ou taxista nordestino que trabalha duro em São Paulo, por exemplo, terá de suar a camiseta para visitar os seus no Nordeste.

Precisamos de mais audácia de nossos legisladores. Por que não duas passagens grátis ao ano para o Exterior? Assim nossos jovens poderão ter essas experiências vitais na existência de qualquer pessoa, como conhecer Paris, Londres, Nova York, ilhas gregas ou canárias. Me parece muito tímido isso de restringir as viagens gratuitas de nossos jovens ao território nacional.

Mais dois ingressos anuais a um bom motel, com acompanhante, é claro. Quando o ministério da Educação propõe um kit gay nas escolas, seria interessante proporcionar aos marmanjos local confortável para suas práticas sexuais. Quando se tornarem adultos, isto é, lá pelos trinta anos, estarão aptos a prover seu sustento.

Acho que até falei demais. Considerada a fúria legiferante de nossos legisladores, não me espantaria que amanhã tais propostas estejam sendo examinadas no Congresso.

Fevereiro 18, 2012


 

TESTEMUNHAS NEGAM LÓGICA

 

Comentei, em crônica passada, a recusa dos testemunhas de Jeová de receberem transfusões sanguíneas. De um leitor, recebo:

“Por motivos bíblicos, as Testemunhas de Jeová recusam transfusões de sangue. (Veja Levítico 7:26, 27; 17:10-14; Deuteronômio 12:23-25; 15:23; Atos 15:20, 28, 29; 21:25.) Mas aceitam — e procuram arduamente — alternativas médicas ao sangue. “As Testemunhas de Jeová buscam ativamente o melhor tratamento médico”, disse o Dr. Richard K. Spence, quando era diretor-cirúrgico de um hospital de Nova York. “Como grupo, são os consumidores mais bem informados que um cirurgião poderia encontrar.”

Longe de mim pretender discutir as vantagens médicas de cirurgias com ou sem sangue. Não tenho ciência para tanto. Nas transfusões sanguíneas podem ocorrer contaminações, mas isto depende da excelência — ou precariedade — dos hospitais e laboratórios. É fator que nada tem a ver com sangue em si. Seja como for, ninguém pode pretender buscar fundamentos na Bíblia para recusar transfusões sanguíneas.

Vamos aos versículos citados pelo leitor. Ora, tanto o Levítico como o Deuteronômio falam em comer sangue, não em transfusão. É diferente.

Levítico 7: 26 — E nenhum sangue comereis, quer de aves, quer de gado, em qualquer das vossas habitações. 17: 10 — Também, qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que comer algum sangue, contra aquela alma porei o meu rosto, e a extirparei de seu povo.

Deuteronômio, 12: 23-24 — Tão-somente guarda-te de comeres o sangue; pois o sangue é a vida; pelo que não comerás a vida com a carne. Não o comerás; sobre a terra o derramarás como água. 15: 23 — Somente do seu sangue não comerás; sobre a terra o derramarás como água.

Decididamente, Moisés nunca esteve em Paris e jamais degustou o boudin aux pommes.

Como tampouco nos tempos do Novo Testamento existia transfusão sanguínea, é de supor-se que em Atos o evangelista se referia à antiga tradição veterotestamentária do não comer.

Atos: 15: 19 — Por isso, julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus. 15:20 — (...) mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, da prostituição, do que é sufocado e do sangue. 15:29 — Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição; e destas coisas fareis bem de vos guardar. 21: 25 Todavia, quanto aos gentios que têm crido já escrevemos, dando o parecer que se abstenham do que é sacrificado aos ídolos, do sangue, do sufocado e da prostituição.

Escreve-me um outro leitor: “As Testemunhas de Jeová apenas se abstém da transfusão sanguínea de hemoderivados, exceto diminutas partículas. Na imensa maioria dos casos, mesmo nas emergências médicas, a perda de sangue é perigosa pelo risco de choque hipovolêmico”.

Sei! O leitor quer me convencer que os profetas bíblicos tinham consciência do choque hipovolêmico, em época em que não havia sequer transfusão de sangue. Isso sem falar que o choque hipovolêmico só pode ocorrer após a perda de aproximadamente um quinto do volume sangüíneo normal, o que corresponde mais ou menos a um litro de sangue. Contem outra!

Mas se o Velho Testamento vê o sangue como algo imundo, a ponto de considerar imunda toda mulher, o Novo Testamento vai pregar uma peça aos que sentem asco pelo sangue. Lemos em Lucas:

“E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. De forma semelhante, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da Nova Aliança no meu sangue derramado em favor de vós”.

O mesmo vamos encontrar em Mateus, Marcos e no I Coríntios. O pão usado na celebração, segundo alguns cristãos, é visto como o Corpo de Cristo sem pecado, oferecido na cruz como resgate. O vinho é seu sangue derramado para remissão da humanidade condenada ao pecado herdado e morte.

Ou seja: na missa come-se a carne de Cristo e não um símbolo da carne de Cristo. Bebe-se o sangue de Cristo e não um símbolo do sangue de Cristo. A Igreja Católica transformou o sangue, de elemento imundo, a instrumento de redenção da humanidade. Vamos aos textos do magistério da Santa Madre.

O dogma da transubstanciação, se foi aventado no concílio de Latrão (1215), só toma corpo no concílio de Trento (1551). Na encíclica Ecclesia de Eucharistia, no capítulo 1 § 15, lemos: “Pela consagração do pão e do vinho se opera a transformação de toda substância do pão na substância do corpo do Cristo nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância de seu sangue; esta transformação, a Igreja católica a chamou justa e exatamente de transubstanciação”.

Que mais não seja, o cânon 1° da 13ª sessão do concílio assim proclama:

“Se alguém nega que o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com sua Alma, e a Divindade, e conseqüentemente Jesus Cristo todo inteiro, estão contidos verdadeiramente, realmente, e substancialmente no Sacramento da Muito Santa Eucaristia; mas diz que eles lá estão somente como em símbolo, ou ainda em forma, ou em virtude: seja anátema”.

Os testemunhas de Jeová divergem da interpretação dada pela Igreja de Roma, afinal já estavam atrelados à má reputação do sangue no Velho Testamento. Rejeitam tanto o dogma da transubstanciação como o da consubstanciação. Em sua comunhão, celebrada uma vez por ano, usam o pão e o vinho, mas como símbolos do Cristo. Para isto, usam de um recurso de tradução dos Evangelhos. O “isto é meu corpo” transforma-se em “isto significa meu corpo”. Não há dogma que um bom tradutor não remende.

Por outro lado, toda essa lengalenga de levar a Bíblia ao pé da letra não passa de retórica. No Levítico, a execução dos adúlteros é lei: “O homem que adulterar com a mulher de outro, sim, aquele que adulterar com a mulher do seu próximo, certamente será morto, tanto o adúltero, como a adúltera”.

É também no Levítico que lemos: “Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação.” E logo mais adiante: “Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles”.

A Bíblia prega não só a lapidação de mulheres, morte de homossexuais, como a lei de talião, a escravidão, a destruição dos altares de outras tribos e o genocídio. Pela lógica, os testemunhas de Jeová deveriam pregar e praticar, ainda hoje, não só a lapidação de mulheres e a morte de homossexuais, como também a lei de talião, a escravidão, a destruição dos altares de outras religiões e o genocídio.

Fevereiro 19, 2012


 

MENSAGEM DA FINLÂNDIA

 

Da Finlândia, recebo carta de uma boa amiga, com observação sobre a crônica em que falei da escritora somali:

Sobre a Ayaan Hirsi Ali, ela tinha revelado, já antes de se candidatar ao parlamento, que havia dado nome errado ao pedir asilo. Resolveram deixar por isso mesmo, até que um dia ela criticou publicamente e, dizem, negou aliança política à ministra Rita Verdonk. Então a Verdonk resolveu que Hirsi Ali deveria perder sua cidadania. O que, após muito falatório, confusão e ranger de dentes, ela não perdeu — decidiram deixá-la em paz (parece inclusive que o nome não era exatamente falso, era o sobrenome do avô, e a lei somali permite que ela use o tal nome). Mas foi para os EUA. A Dinamarca também lhe ofereceu residência. Foi tudo, no fundo, vingancinha politica e vaidade da Verdonk. Que, espero, deve ter ganho inimigos por essa.

Sua ultima crônica diz tudo — racista, intolerante e criminoso é só o homem ocidental. O resto pode tudo. Sobre uma mulher ter te criticado por desrespeitar o Islã, isso acontece aqui o tempo inteiro. As mulheres são muito mais a favor dessa imigração destrutiva do que os homens. Quando deveria ser o contrário! Será que não vêem que os países que mais maltratam mulheres são islâmicos?

Outro grupo que defende a canalha é o pessoal de esquerda. O que acontece é uma união em torno a um inimigo comum — o ocidente. O que esse pessoal que defende o Islã acha que aconteceria com eles uma vez que o Islã tomasse conta? Gays, mulheres, ateus… nem é preciso ser muito atento pra imaginar o que os cabeças-de-toalha fariam com eles se pudessem. Aconteceu no Irã, não foi? Comunas e fanáticos islâmicos se uniram contra o Xá. Xá derrubado, os fanáticos enforcaram os comunas na rua.

Outra coisa a se considerar é que a imigração virou indústria, empregando milhares de psicólogas, assistentes sociais, e outras profissionais do tipo. A maioria mulheres. É do interesse deles/delas que se abram mais e mais centros de refugiados, que cada somali traga sua familia pra cá. E quanto menos o imigrante se integra na sociedade, mais ele vai precisar da assistência, o que gera mais emprego. Tem gente que tem a audácia de defender a imigração do terceiro mundo por esse motivo. Pode até gerar alguns empregos, mas a que preço?

Oslo é atualmente considerada a capital do estupro por aqui. Malmö, você sabe o que virou. Tem um lugar na Dinamarca, não lembro o nome, onde muçulmanos assaltam repetidamente casas de dinamarqueses, pra afugentá-los de lá.

Um homem esfaqueou uma menina de 10 anos no pescoço, na frente de sua escola, em Göteborg. Fugiu pro Vietnã, aparentemente seu país de origem, e está sendo trazido de volta pra Suécia. Ele tem inclusive cidadania sueca, ou seja, provavelmente não vai perdê-la.

Estocolmo: a polícia vem buscar uma criança-problema de 13 anos. O irmão mais novo do moleque atacou os policiais com uma faca em protesto. Skånska Dagbladet: menino de 14 anos é assaltado por “gang de adolescentes” pela terceira vez em um ano. A mãe chama a polícia, conta o ocorrido e ouve: “o que a gente pode fazer com essa informação?”

Pois é, como falei, isso é só uma pequena amostra. Se você resolver fazer um apanhado de crônicas sobre esse assunto, tenho ate sugestão de título: Crônicas de uma Europa que afunda.

Fevereiro 20, 2012


 

FEMINISTA DEFENDE EXCISÃO DO CLITÓRIS

 

Min kära finska:

Terve! De fato, tenho visto não poucas mulheres apoiando as práticas bárbaras do Islã. Em meus círculos, conheço inclusive uma professora universitária que defende incondicionalmente os cabeças-de-toalha. São hábitos culturais — afirma — temos de respeitá-los. Afinal, não é o clitóris dela que é cortado. São todas, invariavelmente, de esquerda. E votam no PT, é claro. Têm outra característica em comum: jamais estiveram em países árabes nem sonham em visitá-los.

É difícil entender como uma mulher pode defender a tirania exercida sobre milhões de mulheres. Esta atitude corre por conta do assim chamado multiculturalismo, que pretende tomar a defesa das minorias. Como se muçulmanos fossem minoria. As aguerridas feministas, que brandiram lanças contra o macho ocidental, permanecem silentes ante a mutilação física e opressão das muçulmanas pelo macho árabe.

Você deve lembrar da Germaine Greer, a escritora e ativista australiana autora de A Mulher Eunuco (1970), no qual descrevia ligações sobre o relacionamento sexual entre homens e mulheres e a dominação sexual. Greer reivindicava a liberdade. Considerava que as mulheres são “o verdadeiro proletariado, a maioria verdadeiramente oprimida” e que a “revolução só pode ficar mais perto com a retirada do apoio delas ao sistema capitalista”. Para a autora, a mulher é “o verdadeiro eunuco” da humanidade.

A mulher ocidental, é claro, esta mulher que pode ter propriedades, que pode ser presidente, ministra ou deputada, que tem o direito de escolher seu parceiro, que pode inclusive dar-se ao luxo de não escolher nenhum, que trabalha e faz o que bem entende com seu salário. Quando se trata da mulher africana, Greer tem outro discurso.

Para a feminista australiana, a mutilação genital das meninas deve ser restituída a seu contexto. Tentar impedi-la constituiria uma agressão de identidade cultural.

“As mulheres africanas que praticam a mutilação genital o fazem, primeiro e antes de tudo, porque elas julgam o resultado mais atraente. A jovem que fica deitada sem reclamar quando o excisor lhe corta o clitóris com duas pedras demonstra com isso que ela será uma boa esposa, que saberá mostrar-se à altura de todas as angústias da gravidez e das necessidades cotidianas. (...) As mulheres ocidentais, ornadas com o verniz de suas unhas (incompatível com o trabalho manual), com seus sapatos de salto alto (desastrosos para a postura e para as costas, e completamente inadaptados a longas marchas por caminhos difíceis), e com seus sutiãs, denunciam a circuncisão feminina sem suspeitar um segundo de todo o absurdo de seu comportamento.”

Quem te viu e quem te vê! Para começar, a autora emprega um sutil eufemismo para denominar uma mutilação brutal: fala em circuncisão feminina. Continuando, como se verniz, saltos altos e sutiãs fossem torturas comparáveis à excisão do clitóris que, conseqüências fisiológicas à parte, incapacita a mulher para o prazer sexual. E como se a mulher ocidental fosse obrigada a usar verniz, saltos altos e sutiãs, sob pena de banimento da sociedade onde vive.

Estes dados, min kära finska, extraio livro de Ayaan Hirsi Ali, Nomade. Em dezembro de 2007, em Melbourne, quando Greer fazia uma palestra sobre Jane Austen, a escritora australiana Pamela Bone perguntou-lhe se ela via um paralelo entre o conceito de honra familiar em Orgulho e Preconceito e os conceitos de honra familiar nas sociedades do Oriente Médio contemporâneas. Perguntou-lhe ainda porque as feministas ocidentais pareciam tão reticentes a se pronunciar contra os crimes pela honra. Greer sai pela tangente:

— É muito delicado. Me sugerem o tempo todo ir ao Darfour interrogar as vítimas de estupro. Eu posso me dirigir às vítimas de estupro, aqui. Por que deveria falar das vítimas de estupro no Darfour?
— Porque lá é bem pior — replica Bone.
— Quem disse isso? — pergunta Greer.

Como se os estupros no Darfour fossem matéria desconhecida no Ocidente. Pamela Bone explica que ela fora ao Darfour e lhe assegurou que lá a situação era nitidamente mais grave.

Serenamente, responde a feminista:

— Enfim, eu diria que é muito delicado tentar mudar a cultura dos outros.

Que as sudanesas se lixem — foi o que no fundo disse Greer. Para a feminista, as sudanesas, mesmo castradas, não são os verdadeiros eunucos da humanidade. De minha parte, diria que é muito mais que delicado: é impossível. O Ocidente pode invadir todo o universo islâmico com seus tanques e aviões e mesmo assim não conseguiria mudar estas práticas ancestrais. Mas que ao menos não se justifique o crime, como o faz Germaine Greer. Parafraseando Camus: não se pede um mundo onde não se cometa crimes —não somos loucos a tal ponto!— mas onde ao menos o crime não seja legitimado.

Você me conta que a imigração virou indústria, empregando milhares de psicólogas, assistentes sociais, e outras profissionais do tipo. A maioria mulheres. “É do interesse deles/delas que se abram mais e mais centros de refugiados, que cada somali traga sua familia pra cá. E quanto menos o imigrante se integra na sociedade, mais ele vai precisar da assistência, o que gera mais emprego”.

Mutatis mutandis, já vi isso aqui ao lado de casa. Nos anos 90, quando sumiram, sei lá por que razões, os mendigos do largo em torno ao metrô Santa Cecília, li a reclamação de uma assistente social num jornaleco do bairro: “onde estão nossos mendigos? Quem os tirou da praça? Queremos nossos mendigos de volta”. Não por acaso, quem fazia esta pergunta era uma mulher.

Tudo isto decorre da atual falta de nortes às esquerdas. Morto e sepultado o comunismo, dele herdaram uma de suas piores facetas, o antiamericanismo. Ou anti-imperialismo, no jargão lá deles. No fundo, ódio ao Ocidente e seus valores. O Islã se opõe ao Ocidente? O inimigo de meu inimigo é meu amigo.

Não vais ouvir, minha cara, da boca de nenhum militante de esquerda, qualquer repúdio às atrocidades sofridas pelas mulheres no universo islâmico.

Fevereiro 21, 2012


 

EXISTE SEXO NO CARNAVAL?

 

Fim de festa! Estou cada vez mais apaixonado pelo carnaval de São Paulo. É data que espero com ansiedade. Peninha que acabou ontem. Eu, que abomino carnaval, festivais e multidões, bem que gostaria de uma semana toda de carnaval em São Paulo.

Fosse São Paulo um eterno carnaval, seria uma das cidades mais aprazíveis do mundo. Sexta-feira passada saíram quase dois milhões de carros da cidade. Contando por baixo, são uns quatro milhões de paulistanos a menos. É quando a cidade se torna habitável. Conclusão que se impõe: há um excesso de quatro milhões de habitantes nesta cidade. Fariam um grande favor aos homens sensatos — sim, eles ainda existem — se ficassem no litoral pelo resto de suas vidas.

Carnaval? Ouvi até mesmo dizer que existe em São Paulo. Parece que acontece lá pras bandas da Paulista. É o que os jornais e a televisão me informam. Até acredito que seja verdade. Mas não vi. É divino viver numa grande cidade brasileira onde se pode ter a sensação de que carnaval não existe.

As pessoas que fogem do carnaval, não só em São Paulo mas em todas as metrópoles brasileiras, nos levam a uma primeira pergunta: será que brasileiro gosta de carnaval? É o que nos diz a imprensa. Mas se só de São Paulo saem quatro milhões de paulistanos, quantos turistas, nacionais ou estrangeiros, buscarão o carnaval em São Paulo. Quatro milhões, certamente não. Nem mesmo um milhão.

São Paulo é o túmulo do samba, dizia Vinicius de Moraes. Este é um dos encantos da cidade. Meus amigos ocasionais — garçons, garçonetes, taxistas, a moça da banca de jornais, meu barbeiro — sempre me perguntam onde vou passar o carnaval. Aqui, respondo. Daqui não saio, daqui ninguém me tira, como dizia uma antiga marchinha. Ninguém me arranca de São Paulo em um carnaval. Nem em feriadões.

Brasileiro só gosta de carnaval em manchete de jornal ou televisão. É preciso manter o mito em pé. Carnaval, na verdade, é algo que serve como fuga de muita gente rumo a um melhor lazer. Ou atrapalha a vida de muita gente, que se obriga a fugir para não ter de suportar seus ruídos. No fundo, uma minoria ruidosa que expulsa uma maioria para o litoral.

Outro carnaval que não dá certo é o transmitido pela televisão. Não passa de um desfilar monótono de blocos, onde a coreografia anula até mesmo a beleza dos corpos. Não por acaso, neste ano as TVs que transmitem os desfiles perderam pontos para os pastores televisivos. Se os editores exibirem desfiles de anos passados, ninguém vai notar a diferença.

Outro mito que está intimamente associado a carnaval é o sexo. Carnaval é a versão tupiniquim das lupercálias romanas. Ou melhor, a imprensa pretende que seja. Não sou autoridade para falar do assunto, nunca participei de nenhum carnaval. O que não me impede de matutar: se as pessoas ficam uma noite inteira olhando desfiles ou sambando em blocos, onde o tempo — e a energia, que mais não seja — para praticar sexo? Tendo a dizer que carnaval é um dos períodos mais castos da nação brasileira.

Muito nu, muito rebolado, muita paquera. Mas sexo, que é bom, duvido. Na rua não há de ser. Até pode ser, mas é sexo pouco confortável. Nos motéis, suponho que não, afinal as pessoas estão na avenida ou em salões. No dia seguinte, haja fôlego. Sexo em carnaval, a meu ver, é tão mítico quanto Papai Noel. Ao contrário do que insinua a imprensa, penso que as pessoas vão mais para pular e cantar, em suma, pour se défouler, como diriam os franceses.

Que mais não seja, o Brasil é um eterno bacanal a qualquer dia do ano. As saunas e casas de swing estão sempre repletas de gente que gosta do bom esporte e participa de partouses inimagináveis, nas quais não se sabe onde começa nem onde termina o amontoado de carne humana.

Minha faxineira adoeceu e enviou-me sua irmã. Que trabalha numa casa de swing. Como cozinheira, bem entendido. Sempre imaginei que tais casas fossem algo mais ou menos paralelo à prostituição. Parece que não. Maria me conta estarrecida:

— Professor, tem gente que freqüenta a casa há trinta anos. Outros vão em família. A avó, a mãe e a neta. Uma delas me disse: “preciso me cuidar pra não pegar meu irmão na saleta”.

Ora, Maria, família que transa unida permanece unida. Em uma sociedade permissiva, onde o sexo é moeda sonante, quem vai perder tempo buscando sexo ocasional em carnaval? E se não for ocasional não tem sentido. Sexo permanente sempre se tem. Nunca falta um chinelo velho para um pé torto.

De minha parte, já estou com saudades das carnes tolendas. Amanhã a cidade entra em seu ritmo infernal. Verdade que isso não me afeta muito. Tenho a fortuna de viver em apartamento extremamente silencioso, mesmo em épocas normais. Mas é muito agradável ver as ruas desertas, os restaurantes sem fila, a vida transcorrendo mansa como em uma cidadezinha interiorana.

Aos eventuais carnavalescos que me lêem, deixo algumas perguntinhas. Brasileiro gosta de carnaval? Existe sexo no carnaval? Quando? E onde?

Fevereiro 22, 2012


 

SEIS POR MEIA DÚZIA

 

Acabei a leitura de Nomade (edição francesa), o segundo livro autobiográfico da somali Ayaan Hirsi Ali. É uma viagem e tanto. Nem tanto no espaço, afinal Mogadiscio fica a poucas horas de Amsterdã ou Nova York. Mas no tempo. Em seus quarenta e três anos, Ayaan varou séculos de distância. Oriunda de uma tribo na Somália, a escritora chegou às metrópoles do século XXI. De menina condenada a ser mulher de um membro qualquer de sua tribo, sem ter chance de não aceitar o macho que a escolheu, Ayaan foi deputada no Parlamento holandês e hoje é escritora traduzida em vários idiomas, com livre trânsito no Ocidente. Este feito não é para qualquer mortal.

A viagem de Ayaan é fascinante. Nos transporta, de uma tribo onde é preciso soprar brasas e apojar cabras para garantir o de comer, ao mundo da telefonia e do cartão de crédito. A autora transita com aisance de um universo a outro, e nos conduz, ocidentais, há séculos atrás no tempo.

Mas o final do livro, pelo menos para mim, deixou algo a desejar. Nos últimos capítulos, a autora abandona o relato autobiográfico e a narrativa das desavenças entre ocidentais e muçulmanos, para advogar uma espécie de resolução do conflito. Ayaan tem uma teoria, segundo a qual a maior parte dos muçulmanos estão em busca de um Deus redentor.

“Eles acreditam que existe uma força superior e que esta força é a provedora de toda moralidade, que ela lhes fornece uma bússola que os ajuda a distinguir o bem do mal. Muitos muçulmanos estão em busca de um conceito de Deus que, a meus olhos, corresponde à definição do deus cristão. Em lugar disso, eles encontram Alá. Eles encontram Alá porque muitos deles nasceram no seio de famílias muçulmanas onde Alá é a divindade reinante desde muitas gerações; outros se convertem ao Islã ou são filhos de convertidos”.

Até aí morreu o Neves. Todos nascemos ateus. Se assumimos qualquer religião, é em função da educação, da família e do Estado. Em minha infância — que tem até muitos pontos em comum com a de Ayaan — eu não tinha religião alguma. Até o dia em que uma catequista chegou àqueles pagos e me jogou na igreja. Nascesse eu na Somália ou em países árabes, não teria chance alguma de escapar ao islamismo. Se Ayaan encontrou Alá, eu encontrei Jeová e mais o judeu aquele. Não há como escapar. Aliás, este foi um dos argumentos que usei, quando adolescente, para negar a idéia de Deus. Se um dia acreditei no cristianismo porque nasci aqui, certamente acreditaria no islamismo se tivesse nascido lá. Deus era então algo muito relativo.

Em um encontro com um padre católico em Roma, a escritora sugere que as Igrejas poderiam penetrar as comunidades muçulmanas e fornecer serviços como fazem os muçulmanos radicais: construir novas escolas católicas, hospitais e albergues socioculturais, como aqueles que tiveram uma função altamente civilizadora na época do colonialismo, na África.

“As igrejas dispõem de recursos, da autoridade e das motivações necessárias para converter os imigrantes muçulmanos a um modo de vida e a crenças mais modernas. Ensinem-lhes a higiene, a disciplina, a ética do trabalho e tudo em que vocês acreditam. O Ocidente está perdendo está guerra de propaganda. Mas vocês têm os meios de rivalizar com o Islã fora da Europa e de assimilar vigorosamente os muçulmanos ao interior do espaço europeu”.

Tenho minhas dúvidas. Se o Ocidente, com toda sua cultura e tecnologia, com seu luxo e fartura, com sua arte e sofisticação, não conseguiu até hoje converter os brutos, não creio que estes sejam convencidos com escolas, hospitais e albergues. Escolas, hospitais e albergues são fornecidos aos imigrantes, mas os cabeças-de-toalha não renunciarão jamais a oprimir mulheres e filhas, a cometer crimes de honra e a cortar clitóris. E a erguer o traseiro para a lua em preito a Alá.

Ayaan sugere aos europeus propor aos novos imigrantes muçulmanos o conceito de um Deus que é símbolo de amor, de tolerância, de racionalidade e de patriotismo. Se entendeu muito bem o Islã, parece no entanto não ter lido o livro em que se fundamenta toda nossa cultura. Por mais que a Bíblia fale em amor, Jeová é um deus sanguinolento, que manda matar e arrasar todas as tribos que cultuam outros deuses. A Bíblia é certamente o livro mais intolerante do Ocidente.

Mas digamos que Ayaan esteja se referindo ao Cristo. A diferença não é muita entre o velho e o novo livro. Se Jeová manda exterminar amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus — mais tribos do que massacrou Maomé —, o Cristo não fica atrás. Tem apenas mais espírito de síntese: quem não está comigo, está contra mim. Que ninguém espere encontrar tolerância na Bíblia.

Ayaan propõe uma troca de deuses. Em vez de um jugo de cem quilos, você porta sobre a cerviz um jugo de, digamos, vinte quilos. Ora, o homem pode muito bem viver sem jugo algum.

Verdade que viver em uma cultura cristã é bem mais confortável do que viver em outra muçulmana. O cristianismo abrandou um pouco os preceitos bárbaros do judaísmo. A hipocrisia dos católicos — o abandono e ao mesmo tempo crença nos livros antigos — tornou o Ocidente bem mais aprazível.

Mas o que autora está propondo, no fundo, é trocar seis por meia dúzia.

Fevereiro 23, 2012


 

MÓRMONS ROUBAM ALMAS DE JUDEUS

 

O batismo é um rito de passagem adotada por diversas igrejas cristãs. Na Igreja Católica, o batismo é o sacramento através do qual o Sacrifício Pascal de Jesus Cristo se aplica às almas, tornando-as membros da Igreja e abrindo o caminho da salvação eterna.

Há uns sete ou oito anos, alertei meus leitores para uma notícia de vital importância para o gênero humano. Em dezembro de 2005, os teólogos do Vaticano se preparavam para recomendar ao papa Bento XVI o fim da idéia de limbo, o lugar para o qual vão, segundo as crenças católicas, as almas das crianças que morreram sem serem batizadas. Conforme a proposta, essas crianças iriam direto ao paraíso graças à “infinita misericórdia de Deus”.

Segundo a doutrina do pecado original — comentei então — todo ser humano nasce com folha corrida. Sem batismo, nada de paraíso. Santo Agostinho considerava que os bebês não batizados iam direto ao inferno, embora tenha ressalvado que seu sofrimento seria de alguma forma mitigado. O Concílio de Cartago, do ano 418, negou a estes bebês a felicidade eterna. A Comissão Teológica Internacional (CTI) — colegiado composto de uma trintena de teólogos católicos — recomendava então abolir a noção de limbo de todo o ensino do catecismo católico. Já em outubro de 2004, Sua Santidade o papa João Paulo II considerava o tema de máxima importância e pedira à CTI que elaborasse “uma maneira mais coerente e ilustrada” de descrever, dentro da ortodoxia católica, o destino dos bebês mortos em inocência.

Mas o problema não é assim tão simples. Para os teólogos, existe um duplo limbo. Primeiro, existe o limbus patrum, para onde vão os justos, como Abraão e Moisés, que viveram antes do Cristo. Segundo, o limbus parvulorum ou limbus infantium, onde ficam os bebês mortos sem batismo. Como carregam a culpa do pecado original mas não cometeram pecados pessoais, não podem ser premiados com o céu nem castigados com o inferno. Perguntei-me na ocasião que aconteceria se a CTI liberasse o paraíso para os ocupantes do limbus parvulorum. Que seria feito do destino dos milhões de almas do limbus patrum? Todos os justos que precederam Cristo passariam a constituir um considerável contingente de sem-paraíso?

Em abril de 2007, a CTI oficializou a nova doutrina. O limbo é mais uma dessas firulas de teólogos, que não existe nos textos primevos do cristianismo. Você pode revirar a Bíblia do Gênesis ao Apocalipse e não vai encontrar uma só menção a limbo. Este lugar hipotético surge a partir da instituição do batismo. Depois que o João batizou o Cristo às margens do Jordão, este gesto se tornou sacramento obrigatório para todo cristão. Sem batismo, não há salvação. É pelo batismo que o ser humano é redimido do pecado original. E aqui já vai mais uma bíblica contradição: se Cristo nasceu sem o pecado original, por que precisaria de batismo?

O limbo nunca constituiu dogma, era apenas uma posição doutrinária do catolicismo. Ocorre que os papas, a cada vez que tentam espanar a poeira dos séculos do carro da Igreja, criam mais perguntas que respostas. A emenda saiu pior do que o soneto.

Se o batismo não é necessário para a salvação eterna, para que então batismo? Batismo hoje só serve para a Igreja Católica inflar o número de suas ovelhas. Foi batizado segundo o rito católico? Então é católico, não importa se um dia largou a fé ou trocou de religião. Assim sendo, a Igreja de Roma pode gabar-se de contar com aproximadamente 1,2 bilhão de membros, ou seja, mais de um sexto da população mundial e mais de metade de todos os cristãos do planeta.

Alguns portugueses, irritados com a inclusão no ror dos católicos só por terem sido batizados, propuseram o desbatismo. Cada cidadão enviava um requerimento à paróquia onde fora batizado e pedia para desbatizar-se. Se a moda lusa pega, as estatísticas da Santa Madre irão mermar de forma considerável.

Os mórmons fizeram melhor. Para inflar seu rebanho, estão batizando postumamente pessoas que nunca foram batizadas e que a rigor nada têm a ver com a doutrina mórmon. O escândalo surgiu recentemente, quando se descobriu que Anne Frank, a menina judia cujo diário e morte em um campo de concentração nazista fez dela um símbolo do Holocausto, foi batizada postumamente por um membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

A denúncia foi feita por Helen Radkey, um ex-membro da igreja. O ritual foi realizado em um templo mórmon na República Dominicana. Radkey é pesquisadora de Salt Lake City e investiga tais incidentes que violam um pacto de 2010 entre a Igreja Mórmon e os líderes judeus.

Segundo a pesquisadora, Anne Frank — que morreu no campo da morte em Bergen Belsen em 1945 aos 15 anos — foi batizada por procuração, no sábado passado. Mórmons enviaram diferentes versões de seu nome pelo menos uma dúzia de vezes para os rituais vicários e estes foram realizados pelo menos nove vezes, entre 1989 a 1999.

Segundo o Huffington Post, batismos póstumos mórmons por procuração para as vítimas do Holocausto ou para judeus que não são descendentes diretos dos mórmons continuam acontecendo, apesar da igreja ter prometido parar de utilizar tais práticas.

As negociações entre os mórmons e os líderes judeus levou a um acordo em 1995 em que a igreja pararia com o batismo póstumo de todos os judeus, exceto no caso de ancestrais diretos dos mórmons. Radkey descobriu que alguns mórmons não aderiram ao acordo. Até o nome de Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz, foi recentemente submetido ao site de genealogia alimentado pelos mórmons e consta como “pronto” para o batismo.

É um método engenhoso de inflar estatísticas, que além de infladas, são ornadas com nomes famosos. Os católicos não chegaram a tanto. Incluem em sua fé crianças que da Igreja nada entendem e que jamais foram consultadas se a ela queriam ou não pertencer. É de menino que se torce o pepino.

Acontece que os judeus não gostaram de ver seus heróis seqüestrados para uma fé cristã.

Fevereiro 25, 2012


 

MPF CENSURA DICIONÁRIOS

 

Essa agora! O Ministério Público Federal em Uberlândia (MG) entrou com uma ação contra a Editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss para a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição das edições do Dicionário Houaiss, que contêm expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos. Segundo o MPF, também deverão ser recolhidos todos os exemplares disponíveis em estoque que estejam na mesma situação.

Se alguém acha que existe algo de novo sob o sol é porque não tem memória. Ou será que ninguém mais lembra da Cartilha do Nilmário? Comentei-a em 2005. Um ano antes, havia sido editada a cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos, pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que tinha então como titular o também mineiro Nilmário Miranda.

De autoria de um antigo militante comunista, o jornalista Antonio Carlos Queiroz, a cartilha bania do vocabulário, como inconvenientes, mais de noventa palavras. O documento era fruto de um convênio entre a Secretaria e a Fundação Universitária de Brasília, que resolveu terceirizar o serviço e o repassou ao jornalista. Quem passou a dar nome às coisas não era mais o povo, mas o PT. Dicionários e dicionaristas que se lixassem.

Esta tendência a censurar dicionários não é nova no PT. Uma de suas deputadas, Lúcia Carvalho, não teve pejo algum em apresentar à Câmara Legislativa de Brasília um projeto que retirava dos dicionários, livros didáticos e obras literárias, todas as expressões por ela consideradas machistas. Pra começar, “paraíba mulher-macho”, que desde há muito faz parte do cancioneiro nacional.

O insólito em tudo isso é que um cacoete ideológico, surgido nas universidades americanas nos anos 8O, seja endossado por antigos servidores de Moscou. Costumo afirmar que brasileiro adora copiar achados do Primeiro Mundo. Mas copia com dez ou mais anos de atraso, e sempre copia o pior. No caso, os mais lídimos representantes das esquerdas brasileiras, de um antiamericanismo ferrenho, foram buscar nos States a inspiração para seus pendores autoritários. Pois a linguagem PC — politicamente correta — é o stalinismo aplicado à linguagem. Stalinismo curiosamente oriundo de uma nação que se jacta de defender a liberdade. Não contentes de censurar livros, os neostalinistas querem censurar dicionários. Palavras que sempre estiveram na boca do povo — afinal, dela nasceram — passam de repente a constituir algo ilícito, ou no mínimo inconveniente, quando proferidas.

O objetivo da ação do MPF — segundo leio nos jornais — é obrigar o dicionário a suprimir quaisquer referências preconceituosas contra uma minoria étnica, que, no Brasil, possui hoje mais de 600 mil pessoas. Para o MPF, os significados atribuídos pelo Dicionário Houaiss à palavra “cigano” estão carregados de preconceito, o que, inclusive, pode vir a caracterizar crime. “Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura “cigano” significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou, ainda, que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação”, diz o procurador Cléber Eustáquio Neves.

Como se fosse o Houaiss quem atribuísse essas acepções à palavra. O dicionarista não define palavra alguma. Apenas pesquisa o que ela significa no falar das gentes.

A cartilha do Nilmário era mais ambiciosa. Pretendia, por exemplo, banir palavras como preto (inclusive na expressão “a coisa ficou preta”), baianada, aidético, cabeça-chata, sapatão. A palavra negro também tem suas restrições: “a maioria dos militantes do movimento negro prefere este termo a preto. Mas em certas situações as duas expressões podem ser ofensivas. Em outras, podem denotar carinho nos diminutivos neguinho ou minha preta”. Em suma, se você disser negro acompanhado de um sorriso, talvez passe. Mais um pouco e o PT passa a regulamentar o sorriso.

Ora, há muito os jornais brasileiros evitam essas palavras. A linguagem PC infiltrou-se até na legislação. Chamar alguém de negro, mesmo que negro seja, hoje constitui crime. Há alguns anos, um negro foi preso em Brasília por chamar um negro... de negro. É cada vez mais freqüente — numa cópia servil da imprensa ianque — o uso de afrodescendentes para negros. Se você, leitor, é desses que adoram pautar sua linguagem pela moda, ao ver um amigo negro, não mais o chame de negrão. Mas de “meu caro afrodescendentão”. Se for miudinho, “meu querido afrodescendentinho”.

Preto de alma branca, nem pensar. (Semana passada, um jornalista foi condenado a pagar R$ 30 mil por ter usado a expressão). É “um dos slogans mais terríveis da ideologia do branqueamento no país, que atribui valor máximo à raça branca e mínimo aos negros. Frase altamente racista e segregadora”. Por analogia, a velha expressão popular “serviço de negro” muito menos. Mas falar em serviço de branco, quando você quer elogiar um trabalho, por enquanto não está proibido. Lapso do Queiroz.

A levar-se a sério a famigerada cartilha, até a Bíblia teria de ser reescrita. Pois Sulamita é negra. Pior ainda: negra, mas formosa. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta — feita a partir do original hebraico — onde está, em grego: Melaina eimi kai kale. Esse “mas” tem sido até hoje uma espinha na garganta dos ativistas negros.

Já baianada é mais complexo. Os paulistanos mais pudicos, que já hesitam em chamar alguém de nordestino, ao referir-se aos nordestinos, os chamam de baianos. Para São Paulo, acima do Rio de Janeiro todo mundo é baiano. O gentílico, neste caso, não é um pejorativo para baiano, e sim um eufemismo para nordestino. O “baiano ACM” pode, afinal ACM é do mal. Mas que nenhum jornalista ouse grafar “o baiano Jorge Amado”. Está arriscando seu emprego, pois Amado é do bem. Na fronteira gaúcha, curiosamente, baianada era tentar montar o cavalo pelo lado errado.

Baitola, bicha, boiola e veado, muito menos. Nem mesmo homossexualismo é recomendável, “tem carga pejorativa ligada à crença de que a orientação homossexual seria uma doença, uma ideologia ou movimento político”. Melhor homossexualidade, como se a mudança de prefixo mudasse algo na preferência dos homossexuais. (Verdade que hoje o ministro Ayres Britto criou um novo neologismo, já que a palavra antiga andava meio desmoralizada: homoafetividade). Quanto à palavra veado, parágrafo único: por especial deferência, é de uso reservado à Presidência da República, quando quiser referir-se aos pelotenses.

Ocorre que o autor foi mais realista que o rei. Em seu afã de cassar palavras, compilou várias de muito apreço por parte do Supremo Apedeuta. Lula, talvez por precaução, mandou suspender a distribuição da cartilha que, com poucos meses de existência, virou raridade bibliográfica. Os homens desmoralizam as palavras e depois sentem-se obrigados a cassá-las.

Queiroz foi mais longe, colocou a palavra “comunista” entre as politicamente incorretas. Sem talvez lembrar que o PT tem suas origens, entre outras, no PCB e no PC do B, partidos hoje legalizados e atuantes. Esta foi a grande novidade da cartilha: o autor intuiu que comunista passou a ser palavrão. Mas como definir, doravante, nulidades como Luiz Carlos Prestes ou Oscar Niemeyer? Não será fácil encontrar um novo adjetivo.

A ação do promotor mineiro originou-se de investigação iniciada em 2009, quando o MPF em Uberlândia recebeu representação de um cidadão de origem cigana questionando a prática de discriminação e preconceito pelos dicionários de língua portuguesa contra sua etnia. Para esclarecer os fatos, o procurador enviou ofícios a diversas editoras com pedidos de informações. Após receber as respostas, ele expediu recomendação às editoras para que fosse suprimida das próximas edições qualquer expressão pejorativa ou preconceituosa nos significados atribuídos à palavra “cigano”. As editoras Globo e Melhoramentos se renderam covardemente à recomendação. Já a Editora Objetiva recusou-se a cumpri-la, sob o argumento de que seu dicionário é editado pelo Instituto Houaiss, sendo apenas detentora exclusiva dos direitos de edição. O MPF pede a condenação dos réus ao pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 200 mil.

Ou seja, o sr. Cléber Eustáquio Neves está nomeando a si mesmo como lexicógrafo. Todo dicionário deve agora passar pelo crivo do MPF. Quem define agora as palavras não são mais os dicionaristas, e muito menos o povo, mas os procuradores da República.

Como dizia, nada de novo sob o sol. Velho cacoete petista. Mas se esta passar, o Instituto Houaiss — como também o dicionário — ficarão definitivamente desmoralizados.

Fevereiro 27, 2012


 

POR QUE LER BONS LIVROS, QUANDO SE PODE LER OS ÓTIMOS?

 

Não poucos leitores acharam que usei de mão pesada, ao comentar a reportagem da Veja sobre best-sellers. Que afinal não se lê para transformar o mundo mas pelo prazer de ler, que é melhor ler do que não ler nada ou assistir BBB. Vamos por partes.

Começo por minha parte. Só leio um livro ou assisto um filme se o livro ou filme me dão prazer. Sei, há leituras cujo fascínio está no texto e outras nem tanto. No Quixote, a meu ver, o que mais encanta é o texto de Cervantes, sua ironia constante, seu estilo. Claro que é prazeroso ler Cervantes. Como também ouvir a música de Fernando Pessoa ou José Hernández. Mas também sinto prazer em leituras pesadas como Dostoievski ou Ernest Renan. Se um livro me cansa ou não o entendo, desisto da leitura. Aconteceu por exemplo, com a Breve História do Tempo, de Stephen Hawking. Quando vi que me faltavam conhecimentos de física ou astronomia para entendê-lo, deixei-o de lado. Como também não consegui passar da página 100 de Ulisses ou Grandes Sertões: Veredas. Clarice Lispector, não consigo ler nem dez páginas.

Mas li — e reli — com muito prazer, os sete volumes da História das Origens do Cristianismo, de Renan. Li, de um sorvo só, as 1.458 páginas de L’ Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge, de Henry Charles Lea. Mais as 1.400 de Un autre Moyen Âge, de Le Goff. Aliás, compro sem hesitar qualquer título assinado por Le Goff. Mas não consigo ler 70 ou 80 páginas do padre Marcelo ou do Paulo Coelho. Aliás, não consigo ler nem 50 linhas. Quando o assunto mexe conosco e o autor escreve bem, mil páginas nos deixam com sede.

Não sou desses que lêem para transformar o mundo. Já fui, é verdade. Aconteceu nos poucos anos de minha adolescência, quando fui contaminado pelo catolicismo e militei na JEC e JUC. Depois disso, veleidade nenhuma de transformar o mundo. O mundo que siga sua rota que eu vou tratar da minha.

Tampouco acho que um jovem deva começar pela grande literatura. Impor a leitura de clássicos a adolescentes é afastá-los da leitura. Certo, eu li o Quixote, pela primeira vez, aos quinze. Mas comecei com revistas em quadrinhos, tipo Zorro, Nyoka, Batman, Superman, Hopalong Cassidy, David Crocket. Tarzan, eu o li em quadrinhos e em livros. O texto de Edgar Rice Burroughs me fazia viajar bem mais longe que os quadrinhos.

Li também muito romance de capa-e-espada, de Michel Zevaco a Alexandre Dumas. Ou os Mistérios de Paris, de Eugène Sue. Mais Jules Verne, é claro. Ou Karl May. Quem lembra hoje de Winnetou ou Mão-de-ferro? Não diria hoje que tais livros constituam grande literatura. Mas fazem um adolescente sonhar e viajar por geografias distantes. Acho que há uma época para chegar-se a Nietzsche ou Dostoievski, e jamais me ocorreria recomendar a um adolescente Crime e Castigo ou Assim Falava Zaratustra.

Claro que é melhor ler qualquer coisa do que não ler nada. Mas se podemos ler boa literatura — ou pelo menos razoável — por que ler bobagens? Há quem vá mais longe. Era Stephan Zweig — se não me falha a memória — que se perguntava: por que ler bons livros, quando se pode ler os ótimos? O best-seller, na verdade, é um livro empurrado pela publicidade. O editor joga milhões na promoção do livro, compra jornais e jornalistas, críticos e resenhistas, e o leitor incauto cai na trapaça. O mesmo acontece com o cinema.

Outros leitores consideram que toda literatura é de auto-ajuda. Se pegamos a palavrinha em sua acepção lata, tenho de concordar. Lemos para entender o mundo e a nós mesmos. Em suma, para construir nossa personalidade, nossa visão de mundo. Quando busco os bons escritores, estou pedindo socorro. Lendo Platão, entendo melhor a Grécia antiga e a cultura ocidental. O mesmo diga-se da Bíblia, se a lemos com olhos de ateu. Lendo Cervantes, entendo melhor a Espanha. Lendo Orwell, entendo com mais acuidade a peste que grassou por todo o século passado.

São leituras que me ajudam, que me transformam. Mas o mesmo não podemos esperar de Jô Soares ou Zíbia Gasparetto. Por auto-ajuda, em sentido estrito, entende-se essa literatura que só ajuda mesmo o autor... a enriquecer. São enlatados repletos de lugares comuns e falsas esperanças. Servem como anestésico às grandes inquietações da existência. Você se sente um inútil? Leia algum desses livrinhos e erga a cabeça, afinal a vida é bela.

Há autores que libertam, e este autor varia de leitor para leitor. No meu caso, foi Nietzsche. Vou reproduzir texto que escrevi há umas três décadas. Meus professores de Filosofia não gostavam do alemão, ele demolia todas as filosofias. Cá e lá ele era citado, afinal não podia ser ignorado. Mas nunca tive professor que recomendasse Nietzsche em suas bibliografias. Para mim, foi autor decisivo em minha vida. É leitura, penso, que deve ser feita quando se é jovem. Não sei se adianta ler Nietzsche aos trinta anos. Também não sei se seria útil a um jovem contemporâneo. Em minha época de universitário, pensamento se demolia com pensamento. Hoje, os meios de comunicação se encarregam deste trabalho de demolição.

Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. “Tens de ler este alemão. Urgente”. Era o Ecce Homo — Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade?

É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. “Ouvi-me!” — alerta Nietzsche já na introdução — “eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro”.

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas — Eis o Homem — foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: “Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus”.

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás. Procurei imediatamente as obras completas do autor. Primeira escala, Assim falava Zaratustra: “Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres”. Zaratustra é o eremita que, ao voltar da montanha, encontra um santo em uma cabana no bosque, que entoa cânticos para louvar a Deus. O eremita se espanta: “Será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido no seu bosque que Deus já morreu?”

Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação.

Outros livros me ensinaram mais ainda sobre o homem, o mundo e sobre mim mesmo. Mas se hoje sou como sou, isto eu o devo ao pensador alemão. Ler qualquer coisa é melhor do que não ler? Até pode ser. Mas a boa literatura, mesmo minoritária, ainda exige mais que uma vida para ser consumida.

No que me diz respeito, não tenho tempo nem de ler os bons livros que comprei em minhas viagens. Uma das coisas que lamentarei na viagem aquela da qual não se volta é não ter lido todos os livros de minha biblioteca. Boa literatura é o que não falta. Pode não estar nas bancas de jornais ou mesmo em livrarias, mas sempre está ao alcance da mão do leitor mais curioso. Ainda mais nestes dias de Internet.

Fevereiro 28, 2012


 

TUCANO PERNAMBUCANO QUER ENFIAR LITERATURA PERNAMBUCANA GOELA ABAIXO

 

Leitor me envia esta pérola, publicada hoje no Jornal do Commercio, de Recife.

 

Lei defende autor pernambucanoAprovada no começo da semana, a lei estadual 53/2011, de autoria do deputado Daniel Coelho (PSDB) foi bem-recebida, mas não é unânime. O texto prevê que as livrarias pernambucanas passem a contar com 5% de livros nordestinos em suas prateleiras, sendo metade desse percentual (2,5% do total) reservado a autores do Estado. Quem descumprir, pode ser advertido e até pagar uma multa entre R$ 1 mil e R$ 10 mil.

 

O deputado tucano foi ao encontro dos sonhos de todo escrevinhador medíocre de província: ter sua “obra” exposta numa livraria. Há uma mania muito brasileira — e certamente não só brasileira — de classificar a literatura por Estado. Assim, temos a literatura gaúcha, catarinense, paranaense, pernambucana e daí por diante. Verdade que não ouço muito falar em literatura paulista. A confluência de gentes no Estado e na Paulicéia é tamanha que fica difícil falar em uma literatura específica. Em suma, quanto menos importante o Estado, quanto mais medíocre sua literatura, mais seus escritores querem ostentar suas plumas.

Ainda há pouco, comentei uma descoberta de meus dias de Florianópolis. Em uma ementa do curso de Filosofia da UFSC, li: História da Filosofia Catarinense. Sou um desinformado. Eu nem sabia que existiam filósofos em Santa Catarina, quando na verdade já existia, pujante e fecunda, uma história da filosofia catarinense.

Quanto à literatura, nem se fala. Em 1986, quando coordenei um encontro de escritores brasileiros em Porto Alegre, pensei em fazer um aceno aos escritores catarinenses. Eu conhecia três ou quatro nomes e enviei-lhes convite, pedindo que o transmitissem aos demais colegas. Resumo da ópera: chegaram dois ônibus de escritores. A delegação catarinense foi maior que a do Brasil todo.

Há algumas décadas, li notícia sobre um encontro de poesia gaúcha nalguma cidade da serra, creio que Gramado. Li mais ainda: que um ônibus de poetas se dirigia à cidade. Ora, eu imaginava, naqueles dias, que no Rio Grande do Sul havia um só poeta. Estava desinformado.

A universidade é a primeira trincheira em que se aboletam os medíocres. Criam-se cadeiras de literaturas estaduais. Assim, temos as disciplinas de literatura gaúcha, catarinense, pernambucana, etc. Mais um pouco e a literatura será municipalizada: teremos quem sabe literatura porto-alegrense, pelotense, santanense, pedritense, não-me-toquense. Academias já existem. Só falta a universidade tornar-se sensível a esta aspiração dos pavões.

Isso sem falar na tal de literatura brasileira, em que autores tipo Oswald ou Mário de Andrade, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa são empurrados goela abaixo dos estudantes, via vestibular ou currículos universitários. Surge então a pergunta: que distingue um autor brasileiro de um autor gaúcho ou pernambucano? Ah, escritor nacional é aquele publicado no eixo Rio/São Paulo, que preferentemente goze do apreço dos PhDeuses da USP.

Ainda ontem, me escrevia um indignado leitor:

“Sou um vestibulando e há mais de quatro anos presto concurso em universidades públicas para o curso de medicina aqui em São Paulo, e concordo plenamente com você sobre o fato de nós alunos sermos obrigados a ler obras nacionais, o que na sua imensa maioria são insuportáveis de serem lidas, como o Machadinho, Eça , Jorge Amado ( a grande prostituta como você mesmo diz), Mário de Andrade, Vinícius De Moraes entre outros. Ora, em minha vida escolar e no cursinho foi raríssimo encontrar algum aluno que suportasse ler algumas dessas “obras” que são enfiadas goela abaixo pelos acadêmicos, então porque temos que ler esses livros horrorosos?

“A minha ojeriza maior , entre outras, é pelo “Papa do Modernismo”(Mário de Andrade) e sua obra maior: Macunaíma, que é uma história sem pé nem cabeça e que não fez sucesso nenhum, tanto é verdade que a mãe do próprio autor disse que não havia entendido o enredo do livro e mesmo assim hoje em dia é considerado um clássico(??!!). Ou seja, um livro que até hoje ninguém lê a não ser professores de literatura e os alunos, estes últimos porque são obrigados, e não fez sucesso algum é considerado um clássico?

“Se não é bastante transformar em um, lembremos que estamos no Brasil onde tudo é possivel, já que a sobrinha de Mário De Andrade foi casada com o catedrático-uspiniano-decrépito-comunista Antonio Candido, segundo alguns o maior crítico literário do Brasil, o que cá para nós facilitou a vida de Andrade, pois transformar aquele livro insuportável em um “clássico” foi fácil visto que a USP e o MEC são o que determinam o que temos que aprender nas escolas”.

Bom, leitor, eu retiraria Eça desta lista. É um dos grandes momentos da língua portuguesa. Eu faria uma outra pergunta: por que raios um candidato ao curso de Medicina tem de conhecer literatura nacional? A verdade é que a literatura brasileira, como o cinema e o teatro, só sobrevivem se entubados ao Estado. Um leitor russo ou espanhol, inglês ou francês, tem opções bastantes para buscar autores profundos na própria língua.

O leitor brasileiro as tem em termos, terá de refugiar-se em Portugal, em Guerra Junqueiro, Eça de Queirós ou Fernando Pessoa. O endeusamento de mediocridades na literatura brasileira se deve, a meu ver, a essa mania que têm os países com complexo de inferioridade cultural a desenvolver uma literatura nacional. Se existe Brasil, deve existir um cânone brasileiro com seus mitos e gênios.

Ocorre que literatura é tão universal quanto a física ou matemática. Pelo menos até agora os acadêmicos brasileiros não ousaram falar de uma física ou matemática brasileiras. (Na França, foram mais longe: houve época em que se falava em uma geografia burguesa e outra proletária). Quando alguém me pergunta quais autores recomendo na literatura brasileira, não me faço de rogado: Platão, Cervantes, Dostoievski, Swift, Nietzsche, Orwell, Pessoa e por aí afora.

Ora, direis, estes não são autores nacionais. Pois a meu ver, são. Estão traduzidos, fazem parte do imaginário nacional, logo são tão brasileiros quanto Machado ou Rosa. Mesmo que não fossem, pertencem ao acervo universal e não temos o direito de ignorá-los. Por que não considerar Cervantes ou Balzac como escritores brasileiros? Tratam do ser humano e seus personagens invadem nosso dia-a-dia. Dom Quixote é mais conhecido no Brasil do que Brás Cubas, gerou inclusive um adjetivo, quixotesco, aliás presente em outras línguas de cultura. Balzac também. O português é a única língua que define a mulher de trinta anos como balzaquiana. Deu até samba: “Balzac acertou na pinta, mulher só depois dos trinta”.

Mas desviei do assunto. Volto a Pernambuco. Para a presidente da Academia Pernambucana de Letras, Fátima Quintas, trata-se de uma lei extraordinária e necessária. De fato, o grande problema do escritor local é a distribuição. Mas é preciso que se cumpra a lei, é preciso fiscalizar, opina a ficcionista e antropóloga.

Para Alexandre Santos, presidente da União Brasileira de Escritores — Secção Pernambuco, a aprovação é uma excelente notícia. O que é preciso, no entanto, é que exista a vontade política do Governo Estadual de cobrar o seu cumprimento. Existe uma lei municipal semelhante, mas a prefeitura pouco faz em relação a isso, declara.

E aí do livreiro que não expuser os medíocres locais. Será multado, e suponho que de novo multado se reincidir. Este é o sonho de todo escritor medíocre de qualquer Estado. Ocorre que exposição na vitrine não significa venda. A meu ver, a lei do deputado tucano deve ser aperfeiçoada. Cada família com filho na escola — ou mesmo sem filho na escola — deve comprar um percentual xis de autores pernambucanos.

O que, de certa forma, já ocorre em âmbito nacional. Quando se fala em vinho ou uísque, a preferência recai sobre vinho ou uísque importados. O mesmo vale para carros ou aparelhos eletrônicos. Mas quando se trata da bendita literatura, ela tem de ser nacional. E agora, como pretende o Legislativo pernambucano, estadual.

Fevereiro 29, 2012


 

QUE TAL COMEÇAR AS AULAS COM SULAMITA?

 

Durante uns bons cinco anos de minha vida, comecei algumas de minhas aulas rezando um padre-nosso. Não via nada de anormal nisso. Eu saíra do campo e passei a freqüentar um colégio católico. Como não tinha idéia alguma do que era um colégio, muito menos de Estado ou de Estado laico, tomei aquilo como uma prática usual do ensino. Só mais tarde, bem mais tarde, fui dar-me conta da lavagem cerebral a que estava sendo submetido.

Sem falar que, na época, eu havia sido abduzido de meu universo camponês e pagão para um outro, urbano e religioso. Acreditava então piamente em um deus criador do céu e da terra, na virgem, no deus feito homem e toda aquela craca católica. Não me parecia nada demais reverenciar o criador de tudo aquilo. Para os eventuais incréus — sempre os há — que desconhecem a oração, transcrevo os textos do Novo Testamento que a inspiraram. Em Mateus, 6:9, lemos:

“Portanto, orai vós deste modo: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores. E não nos deixes entrar em tentação; mas livra-nos do mal”.

Com algumas variantes, o texto se repete em Lucas, 11:2. As igrejas contemporâneas, para evitar qualquer mal-entendido, andaram trocando dívidas por ofensas, não vá alguém entender que se possa fazer um empréstimo para depois pagá-lo com uma prece.

Repeti este mantra, qual papagaio, quase todos os dias. Mas isto foi há mais de meio século. Final dos anos 50. Mais de cinco décadas transcorreram de lá para cá e o ensino continua refém da superstição. Leio nos jornais que a cidade baiana de Ilhéus começou este ano letivo sob com uma curiosa lei aprovada no final de 2011 pela Câmara de Vereadores. A lei 3.589 determina que todas as escolas municipais fiquem comprometidas a rezar um “Pai Nosso” diariamente antes do início de aulas.

A lei, que ficou conhecida como “Lei do Pai Nosso”, foi criada pelo vereador Alzimário Belmonte (PP), evangélico atuante na comunidade. Segundo ele, a intenção não era obrigar ninguém a uma conversão ou submeter outras religiões à fé cristã, mas sim despertar nos jovens valores e reflexão. Ele disse também que, no texto da norma aprovado na Câmara, nenhum tópico cita obrigação às escolas de fazer cumprir a reza.

Diz a secretária de Educação do Município, Lidiney Campos: “Não tem nenhum tipo de pressão no ambiente da escola. Nós trabalhamos com o fato de que cada educador tem de agir de acordo com sua coerência. Claro que nós sabemos que o Estado é laico, mas ao mesmo tempo, dentro de várias escolas, muitos professores já tinham esta prática. Assim, quem já tinha esse costume continua. Alguns que não tinham agora aderiram e quem não quis, não reza”, explica a secretária.

Quem não quer não reza? Mas então que lei é essa, que alguns obedecem mas quem não quiser obedecê-la não precisa obedecer? Segundo a professora Maria Aparecida Souza, diretora da Escola Nuclear Jaripaguá 2, a lei foi bem recebida e agora se tornou um costume cultivado cuidadosamente. Ela reconhece que há uma diversidade religiosa nas salas de aula e que a reza não é imposta aos educadores e nem aos alunos, mas que em geral tem havido a celebração do Pai Nosso tanto em aulas quanto em reuniões.

“Esta semana, por exemplo, começamos uma reunião de professores com uma oração espontânea e foi um momento bom. Os pais não reclamam de maneira nenhuma, pelo contrário. Pedem que orientem os filhos na escola. É importante que nós tenhamos valores religiosos na nossa educação. Deus está presente em todos os momentos de nossa educação”, diz a diretora.

Visão autoritária de crente. De onde tirou a moça que Deus está presente em todos os momentos de nossa educação? Só se for de seu bestunto. Primeiro, porque Deus não existe. Segundo, se existisse, certamente teria mais coisas a fazer em seus vastos reinos do que participar de reuniões de professores em Ilhéus. A prece antes de cada aula ou reunião não passa de imposição de uma crença religiosa em um Estado que se pretende laico. A leizinha do vereador evangélico é flagrantemente inconstitucional.

Para a pedagoga Maribel Barreto, a lei “é uma chance de usar essa disponibilidade para propor uma coisa mais eclética, como a meditação. Meditação é uma forma de acalmar o externo e se voltar para o interno. Convidar os jovens a buscar observar o que sentem, não o que pensam. Estimular a sentir as batidas do coração, a respiração, em silêncio absoluto”. Maribel vai mais longe: defende também que esta prática, que é exercida em algumas escolas fundamentais e também em cursos superiores em Salvador, seja levada ao ensino público municipal e estadual.

Ora, o pai-nosso é um texto tão confessional quanto o Credo. Implica na aceitação de um deus único, ciumento e tirânico. De repente, em nome da liberdade religiosa, algum mulá vai exigir a recitação de trechos do Corão antes de cada aula.

Se a questão é citar a Bíblia, sugiro trechos mais neutros do Livro, e certamente mais instigantes para a juventude contemporânea. Que tal começar as aulas com as angústias da Sulamita:

“Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho. Suave é o cheiro dos teus perfumes; como perfume derramado é o teu nome; por isso as donzelas te amam”.

Ou, quem sabe:

“De noite, em meu leito, busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, porém não o achei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma. Busquei-o, porém não o achei. Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma? Apenas me tinha apartado deles, quando achei aquele a quem ama a minha alma; detive-o, e não o deixei ir embora, até que o introduzi na casa de minha mãe, na câmara daquela que me concebeu”.

Essa de introduzir o amado no quarto da mãe seria muito instigante para adolescentes. Mais estimulante ainda é a resposta do amado:

“Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os contornos das tuas coxas são como jóias, obra das mãos de artista. O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus seios são como dois filhos gêmeos da gazela”.

São poemas bíblicos que, a meu ver, propiciam a meditação, acalmam o externo e se voltam para o interno. Convidam os jovens a buscar observar o que sentem, não o que pensam. Estimulam a sentir as batidas do coração, a respiração, em silêncio absoluto.

Aposto que a juventude baiana adoraria começar suas aulas com Sulamita, em vez dos evangelistas. E eu teria mais gratas lembranças de meus dias de ginásio.

Março 02, 2012


 

SURGE NOVA PROFISSÃO: GIGOLÓ DE DEKASSEGUI

 

Há mais ou menos um ano, denunciei uma nova vigarice que surgiu no mercado, a terapia do luto. Em entrevista no UOL, dizia Cissa Guimarães, atriz que optou pela terapia do luto após perder o filho no ano passado. “A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano”, diz a atriz. “Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver.”

Essa, agora! Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

No início do tratamento, o indicado é visitar o profissional duas vezes por semana. Conforme o progresso do paciente, as sessões se tornam semanais e, posteriormente, quinzenais — até que o paciente receba alta. E isto, obviamente, quem vai decidir é o terapeuta. De acordo com Adriana Thomaz, ainda existem poucos especialistas em luto no Brasil, e a maioria atua na capital paulista. Normal. São Paulo, com sua diversidade e incultura, é berço fértil para todos os engodos e crendices. Aqui nasceram as prósperas igrejas dos bispos Edir Macedo, R. R. Soares, apóstolo Hernandez, bispa Sonia et caterva. Grandes vigarices não vicejam em cidades pequenas.

Quando minha mulher morreu, coincidiu que na semana seguinte eu tinha consulta marcada com uma nefrologista. Ainda abalado, falei do acontecido e, inevitavelmente, chorei. “Quem sabe tu procuras um terapeuta?” — me sugeriu a médica. Quase perdeu o cliente. Eu passara minha vida toda denunciando essa malta de exploradores da fé dos incultos que, sem terem bem gerido suas vidas, dão-se ainda ao desplante de cobrar caro para gerir vidas alheias. No meu luto ninguém mexe.

“Equilíbrio”, o suplemento de auto-ajuda da Folha de São Paulo, anuncia hoje mais uma vigarice que, em falta de melhor definição, chamarei de gigolô de dekassegui.

O caminho de volta pode gerar depressão — diz a reportagem —. É a “síndrome do regresso”, termo cunhado pelo neuropsiquiatra Décio Nakagawa para designar certo “jet lag espiritual” que aflige ex-imigrantes. Morto em 2011, Nakagawa estudava a frustração de brasileiros que voltavam ao país após uma temporada de trabalho em fábricas japonesas.

“A adaptação em um país diferente acontece em seis meses, já a readaptação ao país de origem demora dois anos”, diz a psicóloga Kyoko Nakagawa, viúva do psiquiatra e coordenadora do projeto Kaeru, de reintegração de crianças que voltam do Japão.

Mais essa! Se todo migrante que volta precisa de tratamento psiquiátrico, os psiquiatras, psicólogos e psicanalistas terão dias dourados pela frente. Imagine o Ulisses fazendo análise ao voltar à Ítaca. Quando se viaja rumo a culturas distantes, há obviamente um choque, o confronto com o desconhecido. Quando fui para Estocolmo, em 1971, no Brasil ainda não existia metrô. Só viria a ser implantado em São Paulo em 74, e no Rio, em 79. Até o metrô constituiu um choque para mim. Chocou-me também ver que, em cada parada de ônibus, havia um letreiro dando a hora exata em que o ônibus parava naquele ponto. Isto também chocou Ayaan Hirsi Ali, a somali que foi deputada na Holanda. E choca qualquer pessoa que venha de país subdesenvolvido.

Na volta não há choque algum. Estamos voltando para o ecúmeno. Admito que uma criança que teve sua infância no Japão se choque ao chegar ao Brasil, afinal para ela o desconhecido é o Brasil. Mas barbado com “jet lag espiritual”, que me desculpe o dr. Nakagawa, isto é esnobismo de migrante que quer se fazer de vítima.

Conheço de perto essa gente, desde há muito. Ao referir-se a qualquer coisa do cotidiano nacional, exclamam: Ah! mas na Alemanha é diferente. Em Paris, é diferente. Em Londres, é diferente. Claro que é diferente, ou Alemanha não seria Alemanha, nem a França seria a França, nem o Reino Unido seria o Reino Unido. É o que chamo de germanite, galicite, albionite. Certa vez, ao apresentar minha biblioteca a uma dessas moças letalmente contaminada por uma germanite aguda, mostrei-lhe um dos volumes de minha Bompiani. “É grosso, é sólido, é alemão”, disse a enferma. Confesso que pensei em outra coisa... mas deixa pra lá.

Ao voltar de Estocolmo, quando entrei na Rua da Praia, foi como se jamais tivesse saído dali. Até escrevi um livro sobre a Suécia, acho que mais para convencer-me de que vivera lá. Em momento algum me senti depaysé. Voltei com alguns hábitos estranhos, é verdade, segue o relato logo após a crônica. Mas nunca senti jet lag espiritual algum.

Posso dizer o mesmo dos amigos brasileiros que fiz em Paris. Éramos sete. Uma morreu. Seis voltaram. Dois deles têm cidadania francesa, mas optaram por Rio e São Paulo. Este último tem um belo apartamento de três quartos em Paris — privilégio que não está ao alcance de qualquer francês — mas vive serenamente em um pequeno quarto-e-sala aqui em São Paulo, viajando duas ou três vezes por ano para visitar a família que ficou por lá.

A reportagem continua. Se ao sair do país o imigrante se cerca de cuidados para amenizar o choque cultural, no retorno a ilusão é de que basta descer do avião para se sentir em casa. “Retornar é uma nova imigração”, diz a psicoterapeuta Sylvia Dantas, coordenadora do projeto de Orientação Intercultural da Unifesp. “A sensação é de que perdemos o bonde, estamos por fora do que deveríamos conhecer como a palma da mão.”

Quando voltou do segundo intercâmbio no Canadá, o gerente de marketing Rafael Marques, 33, descobriu que havia ficado para tio: “Todos os meus amigos estavam casados, com outras prioridades. Demorei meses para me situar”. Resultado: deprimiu-se. Recuperado, hoje ele trabalha com intercâmbios.

Ora, o mundo não pára. É claro que, ao voltar, quem ficou casou, teve filhos, progrediu profissionalmente. Enquanto você volta à estaca-zero. Faz parte do jogo. Terá de recomeçar. Desta vez, com mais experiência e conhecimento de mundo. Mas não se queixe se, ao voltar, seu colega de ginásio é ministro enquanto você está desempregado.

Houve época em que havia uma grande distância entre Brasil e Primeiro Mundo. Quando jovem, alimentei uma pequena vaidade, a paixão por canetas-tinteiro. Na época em que viajei, até refil de caneta-tinteiro eu tinha de encomendar da Europa. Hoje, a distância diminuiu. Computadores, iPads, iPods e demais objetos do desejo contemporâneos são lançados quase simultaneamente, cá e lá. Jornais franceses ou espanhóis, eu os leio aqui em casa antes mesmo que o francês ou espanhol tenha saído para comprar pão. Falta alguma música e literatura, é verdade, mas para isso existe a Amazon.

Confesso que tive veleidades, quando jovem, de trocar definitivamente de país. Quando fui para a Suécia, minha intenção era não voltar. Foi quando descobri algumas coisas que os jornais, na época, não contavam. Em Estocolmo, tomei contato com uma palavrinha para mim pouco familiar: imigrante. Observei esta condição em meus dias no Norte. E decidi voltar. O imigrante, mesmo que obtenha passaporte do país para onde migrou, sempre será um cidadão de segunda classe.

Eu poderia fazer minha vida na Suécia como diskare — lavador de pratos — ou algo parecido — ganhando muito mais do que um jornalista no Brasil. Mas pensei com meus botões: melhor ganhar pouco como jornalista no Brasil do que ganhar muito como lavador de pratos em Estocolmo. Havia outra chance, casar com uma sueca. Mas seria algo desleal. Sem falar que a mulher que eu mais queria vivia aqui.

Mas volto à reportagem do suplemento de auto-ajuda da Folha: “Se a família também não ajudar, o ideal é procurar um psicólogo com formação intercultural. Em São Paulo, o núcleo intercultural da Unifesp dá orientação gratuita”.

A reportagem diz ao que vem, ampliar o mercado dos gigolôs das angústias humanas. A orientação é gratuita, diz o jornal. Certamente tão gratuita quanto os almoços que se dizem gratuitos. Temos agora um novo e promissor ramo na psicologia, o gigolô de dekasseguis. Ou de imigrantes, como quisermos. O mercado é vasto.

Morrer faz parte da vida. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viver. Voltar faz parte da viagem. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viagem.

Março 06, 2012


 

FOLHA INAUGURA O DIA DA NEOMULHER

 

Neologismos são um recurso interessante para dar um novo brilho a palavras já gastas. Quem lembra dos maremotos? Só gente de idade. Maremoto é obsoletismo. A moda é tsunami. A palavrinha se tornou abrangente e agora transita até na economia internacional. Tsunami financeiro soa bem melhor que maremoto financeiro.

Ou homossexual. Parece que o conceito anda meio desbotado. Ano passado, o Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade, com as fanfarras da imprensa, o reconhecimento da tal de união homoafetiva. A nova palavrinha designa o que antes chamávamos de homossexual. E ainda trouxe outra em seu bojo. O ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, pretendeu ter criado, por analogia, o neologismo heteroafetivo. Assim sendo, atenção à linguagem, leitor. Homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.

Neste Dia Internacional da Mulher, a Folha de São Paulo, que adora criar novas conceituações — quem não lembra da “arquitetura anti-mendigos”, do “prédio-verdade”? — lançou hoje uma trouvaille que tem futuro: neomulher. Parece que travesti já não soa bem no mercado. O jorna entrevista três travestis — como se dizia ainda ontem — e lança o Dia das Neomulheres.

“Além de comemoração, o dia 8 de março marca a luta e manifestação pelos direitos femininos. Cristiane Gonçalves da Silva, professora e doutora da Unifesp/Santos, afirma que “é absolutamente justo que todas (a entrevistada refere-se aos antigos travestis) usem também essa data por reivindicações que permitam que elas sejam tão cidadãs quanto qualquer pessoa.”

Em defesa de sua tese, o jornal lança mão de um argumento que empestou o feminismo durante décadas:

“Em 1949, a escritora Simone de Beauvoir disse que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. E, segundo antropólogos e sociólogos, assim realmente é. “Para a antropologia e a teoria de gênero, ser mulher ou homem é um aprendizado social, cultural e histórico”, explica Heloísa Buarque de Almeida, professora de antropologia da USP. A própria transexualidade é uma radicalização dessa idéia: não basta simplesmente nascer com o corpo do gênero feminino. O que basta é sentir-se mulher.”

O século XIX foi generoso em sandices, entre elas o marxismo, a psicanálise e a identidade de sexos. Verdade que estes três movimentos só vão consolidar-se no XX. No caso da identidade de sexos, a grande difusora da idéia foi Simone de Beauvoir. Se formos atribuir a alguém a frase mais idiota do século, a láurea vai sem dúvida alguma para Castor, como a chamava Sartre. De uma penada, Simone abolia as diferenças constitutivas de macho e fêmea.

Ano passado, comentei os reflexos desta proposição absurda na Escandinávia. Em Estocolmo, a pré-escola passou a proibir que crianças sejam tratadas como meninos e meninas. Em conformidade com um currículo escolar nacional que busca combater a “estereotipação” dos papéis sexuais, uma pré-escola do distrito de Södermalm, da cidade de Estocolmo, incorporou uma pedagogia sexualmente neutra que elimina completamente todas as referências ao sexo masculino e feminino. Os professores e funcionários da pré-escola Egalia evitam usar palavras como “ele” ou “ela” e em vez disso se dirigem aos mais de 30 meninos e meninas, de idades variando entre 1 e 6 anos, como “amigos”.

O han e o hon (ele e ela), foram trocados pelo pronome neutro hen, palavra que não existe nos dicionários. Mas tampouco é nova. Foi proposta por Hans Karlgren em 1994. Mas já havia sido aventada por Rolf Dunas, no Upsala Nya Tidning, em 1966. Nesta proposta, hen era apresentado como substituição a han e hon e mais: henom substituiria henne/honom (dele/dela). A palavra parece ter sido inspirada no finlandês hän.

Acontece que ausência de gênero é uma característica do finês e não ideologia de feministas. Não se trata de eliminar todas as referências ao sexo masculino e feminino. É que as palavras não são masculinas nem femininas. Para a Folha, tanto homossexual como travesti parecem ter sumido do vernáculo. Temos agora a neomulher. Ou quem sabe o neomulher? O jornal não esclarece. A reportagem continua:

“Como qualquer mulher em uma sociedade machista, o desafio maior de quem se tornou uma continua sendo o preconceito. “Qualquer mulher sofre diversos tipos de discriminação. Imagine, então, quando ela nasceu com outro sexo”, diz a professora de antropologia da USP”.

O jornal — que seguidamente critica o politicamente correto — caiu no engodo do politicamente correto. Ninguém nasce com outro sexo. Nascemos com um sexo só e o portamos pelo resto da vida, por mais esforços que a cirurgia plástica tente. Em nome de uma grossa besteira proferida em meados do século passado, a imprensa quer ganhar o jogo no tapetão das palavras. Dá-se um novo nome a uma realidade biológica e cria-se um novo personagem: a neomulher.

Todo travesti é homem, ora bolas! O leitor deve lembrar quando se falava de o travesti. Os tempos mudaram, a tendência é dizer a travesti. Se um homem quer ter um corpo feminino, isso em nada muda sua essência. Continua sendo um homem, com a diferença de que quer ter um corpo feminino. O que atrai um homem em um travesti não é exatamente sua forma feminina. Fosse por isso, buscava logo uma mulher. O que torna picante a relação com travestis é exatamente seu lado masculino.

Mulher já era, leitoras! Inaugurou-se hoje o Dia da Neomulher.

Março 08, 2012


 

PAPISTAS DEFENDEM IMPOSIÇÃO FASCISTA NO RS

 

Terça-feira passada, o conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acatou o pedido de retirada de crucifixos e símbolos religiosos dos espaços públicos nos prédios da Justiça no estado. “Resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um Estado laico”, disse o relator da matéria e desembargador Cláudio Baldino Maciel na justificativa de seu voto.

Escândalo nas hostes papistas. O recórter tucanopapista hidrófobo da Veja virou uma arara. Apelando a uma reductio ad absurdum, como é típico dos cristãos desde Paulo, se pergunta retoricamente quando será retirado o Cristo do Morro do Corcovado. Igrejeiros indignados protestam no país todo contra a decisão da Justiça gaúcha. Ora, ninguém está pedindo a retirada daquele Cristo horrendo do Rio, que aliás devia ser demolido, que mais não seja por razões estéticas.

O que se pede é a retirada de todo símbolo religioso, como crucifixos e imagens de santos, de todos os prédios oficiais e espaços públicos do Rio Grande do Sul. A decisão foi resultado de um pedido feito pela Liga Brasileira de Lésbicas e outras entidades sociais formulada em novembro de 2011.

Nada de novo sob o sol. A história é antiga. Comentei-a há nada menos que onze anos. No final de 2001, em Milão, Rosa Petrone, uma enfermeira italiana convertida ao Islã, decidiu não retomar sua função no hospital de Niguarda enquanto não fossem removidos os crucifixos do local de trabalho. A União Muçulmana da Itália tomou posição a favor da enfermeira, alegando que “a presença do crucifixo católico em locais públicos é violação e desafio à neutralidade e laicidade do Estado”. No mesmo ano, em outra cidade italiana, uma professora pedia a retirada do crucifixo das salas de aula, para não ferir suscetibilidades de filhos de imigrantes.

De instrumento de tortura e morte, a cruz passou a ser o logotipo de uma religião que prega o amor. O duplipensar de Orwell, como vemos, é bem anterior ao comunismo. Não tenho simpatia alguma pelo crucifixo e, como a Rosa, me irrita vê-los em tribunais, escolas ou hospitais de um Estado que se pretende laico. Da mesma forma, foge a qualquer lógica ver constituições republicanas invocando deus em seus preâmbulos. Mas o que causa espanto na decisão da convertida é pretender limpar o Estado italiano de símbolos religiosos, logo em nome do Islã, fértil em Estados teocráticos. Pretenderá a enfermeira eliminar a cruz da Cruz Vermelha? É bom lembrar que a instituição homóloga no mundo árabe se chama Crescente Vermelho, e provavelmente seria decapitado quem fizesse greve para eliminar o crescente.

O fato é que retirar crucifixos de salas em nome do Islã é trocar seis por meia dúzia. É uma religião ciumenta que protesta contra os privilégios de outra. A Europa sempre foi cristã, não por acaso chamou-se um dia de Respublica Christiana. Mas os tempos mudaram. Não vivemos mais em época em que os reis, para serem coroados, tinham de ir a Roma.

Foi Napoleão quem quebrou esta tradição. Ao ser coroado imperador não foi a Roma para ser ungido pelo Papa, como os imperadores germânicos. Pio VII teve de vir a Paris para a cerimônia. Mas Napoleão não aceitou a arrogância de Roma. Pegou a coroa nas mãos e coroou-se a si mesmo, de frente para o público (e de costas para o Papa). Depois, coroou a imperatriz Josefina. O papa entendeu o recado e limitou-se a proclamar “Vivat Imperator in aeternum!”. Manda quem pode. Obedece quem tem juízo.

A laicidade que hoje vige na Europa é fruto da Revolução Francesa, que pôs fim a uma monarquia de direito divino. A laicização da Europa surgiu na França, quando a Concordata de 1801 colocou a Igreja sob a tutela do poder do Estado, criando o casamento civil e o registro civil. Mas os papistas são incorrigíveis e até hoje se julgam no direito de exibir um Cristo peladão nas salas de aula e tribunais.

Em 2011, o italiano Luigi Tosti foi expulso da Magistratura do país por se recusar a fazer audiências enquanto todos os crucifixos não fossem retirados dos tribunais. Durante a sua carreira como magistrado, Tosti sempre alegou que a expressão religiosa nos tribunais, órgãos públicos, violava a laicidade do Estado italiano. Se as cruzes não fossem retiradas da parede, pedia então que fossem expostos junto outros símbolos religiosos. A Corte de Cassação negou. Os crucifixos podem, afirmou. Outros símbolos, não.

Esta não foi a primeira condenação de Tosti por tais idéias. Em fevereiro de 2006, a Suprema Corte dos Magistrados já havia feito o juiz mudar de cidade e cortara o seu salário por causa de seu “comportamento culposo”. O juiz havia proposto, em 2004, a colocação de símbolos de sua religião, o judaísmo, como a Menorá.

É muito bom que os tribunais gaúchos retirem os símbolos católicos de suas salas. Antes que ocorra o pior: que outras igrejas ou crenças queiram ajuntar os seus símbolos, em nome da liberdade de expressão. Por que razões cidadãos de todas as crenças têm de aceitar uma imposição vaticana — pois de imposição do Vaticano se trata — quando penetram nos umbrais da Justiça? Você já imaginou judeus e muçulmanos exigindo o mesmo direito? Claro que não colocariam imagens, já que tanto Alá como Jeová proíbem o culto a imagens. Mas talvez uma Menorá ou um crescente.

Mais ainda: a colocação de crucifixos em escolas e tribunais tem origens fascistas. Na Itália, foi determinada na década de 1920 durante o regime de Benito Mussolini. Em 2007, por ocasião de sua visita ao Brasil, com o pretexto de canonizar um charlatão — o frei das pilulinhas milagrosas de papel — Ratzinger quis impor ao governo brasileiro uma concordata tão ou mais obscena que o Tratado de Latrão, de 1929, pelo qual a Itália reconhecia a soberania da Santa Sé sobre o território do Vaticano. Poucas pessoas lembram hoje que o Vaticano é uma concessão do ditador fascista. Tivesse Mussolini vencido a guerra, talvez constasse da hagiografia da Igreja. Perdeu? Olvidado seja.

Quando os gaúchos decidem libertar-se da cruz em seus tribunais, paladinos do Vaticano saem aguerridamente em defesa do que um dia foi uma disposição do Duce.

Março 10, 2012


 

SCHENGEN TRANSFORMA EUROPA EM CASA-DA-MÃE-JOANA

 

O acordo Schengen fracassou — escrevia eu em abril do ano passado. Não havia em minha afirmação nenhum regozijo ante o fracasso do acordo, muito antes pelo contrário. Mas a pressão dos imigrantes junto às fronteiras da Europa levava a esta conclusão.

Em seus ímpetos de generosidade, cinco países europeus — Bélgica, França, Alemanha, Luxemburgo e Países Baixos — assinaram em 1985 o tratado Schengen, que permite a livre circulação de pessoas dentro dos países signatários, sem a necessidade de apresentação de passaporte nas fronteiras internas. De lá para cá, uma trintena de países aderiu ao acordo, sendo que uns sete ou oito ainda aguardam implementação. Em um de meus passaportes, tenho um visto para o espaço Schengen, que me dispensava de vistos outros em território europeu. Meu passaporte era carimbado no país de entrada e no de saída. Este visto não é mais exigido, mas as regras Schengen ainda vigem na Europa.

O acordo logo revelou um elo fraco. Se imigrantes entravam no continente por fronteiras complacentes, estavam livres para buscar os países que lhes ofereciam mais vantagens, como França, Alemanha, Suécia, Dinamarca. Migrantes econômicos, geralmente alegavam perseguições políticas para obter asilo. Alguns países nórdicos estabeleceram uma limitação: o imigrante não poderia pedir asilo em um segundo país que chegasse na Europa. Teria de pedir no primeiro. Mas isto não conteve a onda de famintos da África e do Magreb.

Ainda naquele abril, a França impediu a entrada no país de um trem com dezenas de imigrantes tunisianos que haviam partido da cidade italiana de Ventimiglia. De acordo com a comissária européia do Interior, Cecilia Malmström, as autoridades francesas citaram “razões de ordem pública” para justificar a medida. Um porta-voz da Comissão Européia afirmou também que a França não tem a obrigação de permitir a entrada de imigrantes com vistos de residência temporária concedidos pela Itália.

Os humanistas de plantão — entre eles Sua Santidade — protestaram violentamente contra a França. A Itália protestou contra a decisão francesa e afirmou que a medida viola as regras da União Européia sobre a livre circulação no bloco. As pessoas que vivem legalmente nos 25 países da União Européia que assinaram o tratado de Schengen não precisariam apresentar documentos de viagem às autoridades da região.

Desde quando a Itália não pode exportar os famintos que a buscam para o país vizinho? O episódio pôs em xeque o acordo Schengen. Naqueles dias, um funcionário da Presidência francesa disse que o país considerava abandonar temporariamente o tratado.

Toda corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco. Segundo o funcionário do governo francês, deveria haver um mecanismo para suspender o acordo em resposta ao que descreveu como uma “falha sistêmica” na fronteira externa da UE. “Nos parece que precisamos pensar sobre um mecanismo que nos permitiria, quando há uma falha sistêmica numa das fronteiras externas da UE, intervir com uma suspensão temporária pelo tempo que a ruptura durar”.

Hoje, em um comício em Villepinte (arredores de Paris), Nicolas Sarkozy confirmou o que se prenunciava há mais de ano. Segundo o Le Monde, o presidente francês deu um ultimato à União Européia para que revise o Tratado de Schengen e limite a livre circulação de pessoas em suas fronteiras. Discursando durante um comício em sua campanha pela reeleição, Sarkozy afirmou que a França vai se retirar do tratado de Schengen caso a política de imigração européia não seja endurecida.

“Quero uma Europa que proteja seus cidadãos”, disse Sarkozy durante o comício. “Numa época de crise econômica, se a Europa não selecionar aqueles que podem atravessar suas fronteiras, ela não será mais capaz de financiar seu Estado de seguridade social. Precisamos de uma disciplina comum para controles de fronteira. Não podemos deixar a administração dos fluxos de migração para tecnocratas e tribunais”.

O acordo Schengen estava transformando a Europa em uma casa-da-mãe-joana. Os imigrantes entravam por fronteiras fáceis, como Itália e Espanha, e depois escolhiam os países mais ao norte, que lhes ofereciam mais benefícios sociais. Os famintos vinham em geral da África. Há um consenso entre as esquerdas que a Europa, tendo colonizado o continente africano, é responsável por seus imigrantes.

Ora, as últimas colônias datam de décadas atrás. Os europeus deixaram, por onde passaram, ciência e tecnologia suficientes para que os países se desenvolvessem e seguissem seus rumos. Ocorre que os governantes africanos são incorrigíveis. Em vez de construir e desenvolver suas nações, preferem deixar seus cidadãos à margem do progresso e dependentes da generosidade européia.

A continuar vigendo Schengen, a África se muda para a Europa. Sarkozy, que não tem compromissos com as esquerdas, está tentando reformular o acordo para salvar o continente.

Sarkozy quae sera tamen. De minha parte, diria que a França acordou tarde demais. O problema não é tanto a imigração em si, mas os imigrantes árabes que transportam consigo vícios de países teocráticos e querem interferir na legislação dos países que os acolhem.

De qualquer forma, é confortador ver o Velho Continente, após tantos alertas, começar a reagir e exercitar sua musculatura.

Março 11, 2012


 

ESCRITOR PAPISTA CENSURA CRONISTA

 

Não é de hoje que venho sendo excluído de sites e comunidades da Internet. A primeira vez ocorreu há alguns anos. Entrei na comunidade Luís Fernando Verissimo, no Orkut, que reunia fãs do escritor comunista. Aos poucos, fui comentando algumas incoerências de seus artigos. Os fãs tentaram contestar-me, mas não conseguiam contestar os fatos que eu apresentava. Decorrência lógica: fui banido da comunidade. O que recebi como uma comenda.

Há alguns outros tantos anos, já nem lembro quando, fui convidado a escrever em um jornal eletrônico, o Mídia Sem Máscara, que pretendia denunciar as mentiras da grande imprensa. É comigo mesmo, pensei, afinal isso eu vinha fazendo há muito tempo, vide meu ensaio Como Ler Jornais. Colaborei com entusiasmo no novo site e disto não me arrependo. Com o decorrer do tempo, descobri que fora convidado por minha posição radicalmente anticomunista.

Ocorre que não me manifesto apenas contra a opressão comunista. Sou contra todas as opressões. E se o comunismo teve existência relativamente curta — a rigor, apenas sete décadas — há uma outra opressão milenar, que até hoje ainda vige e tem prestígio, a opressão da Igreja Católica. Milenar é modo de dizer, em verdade tem dois milênios. Bastaram alguns artigos denunciando a ditadura vaticana e comecei a provocar mal-estar no MSM. Certo dia, escrevi um artigo mostrando por A + B que Cristo havia nascido não em Belém, mas em Nazaré. Artigo inocente, afinal o local de nascimento do judeu aquele não constitui dogma para os católicos. Meu artigo foi censurado. Mandei um recado ao editor: não admito censura. Ou meu artigo é publicado, ou não colaboro mais com o jornal.

Não foi publicado, deixei de colaborar. Junto comigo, abandonaram o barco outros colaboradores de talento, e o MSM se revelou um porta-voz ridículo de papistas fanáticos, muitas vezes mais papistas que o papa. Hoje, investe contra dois fantasmas, o Foro de São Paulo — uma espécie de Woodstock das esquerdas que já morreu à míngua após a derrocada da União Soviética — e a ameaça de uma ditadura gay.

Last but not least, mais um terceiro fantasma, o aborto. Claro que nenhum articulista do castro católico vai admitir que tanto Tomás de Aquino como Santo Agostinho eram favoráveis ao aborto. E que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize, apenas no século XIX, em 1869 mais precisamente. Ou seja, durante dezoito séculos a Igreja nada teve contra o aborto. Hoje, o jornal deixou cair a máscara. Alerta em seu site:

POLÊMICAS INTER-RELIGIOSAS, EM ESPECIAL ENTRE DIFERENTES DENOMINAÇÕES CRISTÃS, SÃO EXPRESSAMENTE PROIBIDAS NESTE SITE. COM TANTOS INIMIGOS RONDANDO, VAMOS FICAR TROCANDO TAPAS EM FAMÍLIA?

Ou seja, nada de criticar religiões. Em 2012, voltamos à Idade Média. Em outro site, fui censurado antes mesmo de começar a escrever. No início de 2010, fui gentilmente convidado a escrever nas redes do Instituto Millenium de Pesquisa. Enviei meus dados e curriculum ao Millenium. Com uma ressalva: não aceito censura a nenhum artigo que pretender publicar no site Millenium. Se houver hipótese de censura, considere-me excluído do Instituto — disse a Anita Lucchesi, minha interlocutora. Recebi da moça a seguinte resposta:

Não publicamos artigos que contenham defesa ou condenação dos seguintes assuntos:

— Aborto
— Pena de morte
— Células-tronco embrionárias
— Eutanásia
— Suicídio
— Legalização das drogas
— Homossexualismo
— Adoção de crianças por casais homossexuais

Minha resposta a Anita Lucchesi:

Desolé, Anita!

O Millenium não me serve. Não entendo como uma instituição que pretende promover a Democracia, a Economia de Mercado, o Estado de Direito e a Liberdade, não aceite discutir assuntos como aborto, pena de morte, células-tronco embrionárias, eutanásia, suicídio, legalização das drogas, homossexualismo, adoção de crianças por casais homossexuais.

Os propósitos desta instituição são uma farsa. Considere-me excluído dessa arapuca. Suponho que sirva para promover nomes que permanecem ocultos, tipo Armínio Fraga e Gustavo Franco. Não conte comigo para isso.

Considero estas exclusões ou censuras como comendas, dizia. Ontem foi mais um desses dias felizes. Nas últimas semanas, andei recebendo via Facebook mensagens de Percival Puggina, escritor, arquiteto, estudioso cristão, analista político e defensor incondicional dos valores do Ocidente, da democracia e da liberdade de expressão. Defensor da liberdade de expressão a tal ponto que tem um blog com esse nome. Em sua última postagem, Puggina manifestava seu desconforto ante a recente proibição de crucifixos nos tribunais públicos do Rio Grande do Sul.

No que era seguido por um considerável ror de leitores também indignados, a meu ver todos jovens, dadas as bobagens sem fundamento histórico algum que postavam. Tentando trazer um pouco de luz ao debate, enfiei minha esquiva colher naquele confuso caldo, e lembrei alguns fatos da História recente.

Lembrei, por exemplo, que a colocação de crucifixos em escolas e tribunais tem origens fascistas. Na Itália, foi legalmente determinada na década de 1920 durante o regime de Benito Mussolini. De inhapa, lembrei ainda fato pouco conhecido mesmo por católicos praticantes, o de que a Itália reconheceu a soberania da Santa Sé sobre o território do Vaticano através do Tratado de Latrão, de 1929, celebrado entre o Vaticano e o Duce. Sempre é bom reavivar a memória das gentes. Poucas pessoas sabem hoje que o Vaticano é uma concessão do ditador fascista.

Pra que, Deus meu? Fui alvo de uma saraivada de insultos por parte dos demais leitores, todos atacando este humilde colunista e nenhum contestando os fatos históricos que aventei. Puggina fez uma intervenção e das mais significativas. Disse que não conseguia imaginar os americanos eliminando o In God We Trust das notas de dólar. Pelo jeito, não falta só imaginação ao escritor, arquiteto, estudioso cristão, analista político e defensor incondicional dos valores do Ocidente, da democracia e da liberdade de expressão, mas também informação.

O lema é controvertido e não falta americano que julgue ser necessária uma separação da igreja e do Estado, defendendo a remoção do lema de todo uso público, incluindo moedas e notas de papel. O argumento é que a liberdade religiosa inclui o direito de acreditar na não-existência de um deus e que o uso deste lema infringe os direitos dos não-religiosos. Sem falar que seria inconstitucional.

Intervenção das mais significativas, afirmei. Pois mesmo discriminando os ateus, o In God We Trust é bem mais abrangente que um crucifixo. Dá guarida a crentes de todas as fés, e não apenas aos seguidores da Igreja de Roma. Foi designado por um ato do Congresso em 1956 e não suspendeu o outro lema, E Pluribus Unum, escolhido pelo primeiro comitê do Grande Selo, em 1776, no começo da Revolução Americana.

Seja como for, o In God We Trust não privilegia igreja nem deus algum. Em algum deus — ou deuses — todas as religiões crêem, e neste sentido, o lema americano é bem mais generoso que o dos tribunais brasileiros. O crucifixo nos tribunais brasileiros dá a entender que o Brasil tem uma só religião, a cristã. O que está longe de ser verdade.

Claro que não faltou quem me denunciasse como ateu — como se ser ateu fosse crime ou invalidasse qualquer argumento —, condição que nunca escondi e da qual não me envergonho. Houve quem dissesse que escrevi artigo onde afirmava que o papa havia queimado 30 milhões de judeus na Capela Sistina, gesto típico de moleque que não tem argumentos. Pelo que constatei, nenhum dos debatedores tinha a mínima idéia da origem fascista da imposição do crucifixo em tribunais e escolas. Muito menos sabiam que o Vaticano era uma concessão territorial de Mussolini. Havia até mesmo alguns meninos que acreditavam ter sido Cristo o fundador do cristianismo. Pior ainda, havia quem julgasse que Cristo era cristão.

Enfim, eu estava começando a divertir-me quando, de repente, não mais que de repente, as mensagens todas sumiram de meu FB. Só posso deduzir que fui bloqueado pelo escritor, arquiteto, estudioso cristão, analista político e defensor incondicional dos valores do Ocidente, da democracia e da liberdade de expressão.

Que que é isso, conterrâneo? Justo quando eu me comprazia em exercer meu magistério, você impede meu acesso a jovens que precisam de um pouco de cultura histórica? De minha parte — exceto o prazer de educar católicos na boa doutrina — não perco nada.

Mas essa juventude toda perdeu uma excelente oportunidade de conhecer história da Igreja e do cristianismo.

Março 12, 2012


 

FÁCIL SER PROFETA

 

Há jornalistas perplexos com uma notícia do Corriere della Sera, edição de ontem, de que uma ONG, a Gherus92, quer banir a Divina Comédia das escolas na Itália. O recórter tucanopapista hidrófobo da Veja já está à beira de um edema de glote. Fala em Cristofobia e ódio ao Ocidente. Ora, há seis anos, comentando o protesto contra as charges sobre Maomé publicadas em um jornal dinamarquês, eu escrevia:

“Sem ir muito longe, dou dois passos até minhas estantes e apanho o Diccionario Literario Bompiani, editado em Barcelona, 1963. No segundo volume de Autores, no verbete Mahoma, há nove gravuras do profeta, na maioria da Universidade de Edimburgo, desde seu nascimento até a colocação da pedra negra na Caaba e o encontro com o arcanjo Gabriel. Estas duas últimas gravuras estão em miniaturas de manuscritos árabes. Há também uma miniatura persa do século XV, na qual Maomé monta um camelo ante sua mulher Khadigia. Ou seja, mesmo em universo muçulmano a imagem do profeta já era reproduzida. Este soberbo dicionário (15 volumes) está publicado nas principais línguas da Europa e nunca vi muçulmano algum condená-lo por blasfêmia. A julgar-se pela escalada da violência, vão acabar pedindo a proibição da Divina Comédia, onde Dante joga o profeta no oitavo círculo do Inferno, destinado aos semeadores de discórdia”.

Nada mais fácil que ser profeta nos dias de hoje. Se os muçulmanos do mundo todo se uniram contra a publicação de charges de Maomé, era óbvio que dirigiriam sua artilharia contra Dante. Escreve o homem que viu o inferno, no Canto XXVIII, vv. 28-36:

Mentre che tutto in lui veder m’attacco,
guardommi, e con le man s’aperse il petto,
dicendo: ‘Or vedi com’io mi dilacco!
vedi come storpiato è Maometto!
Dinanzi a me sen va piangendo Alì,
fesso nel volto dal mento al ciuffetto.
E tutti li altri che tu vedi qui,
seminator di scandalo e di scisma
fur vivi, e però son fessi così.

Segundo Valentina Sereni, presidente da Gherush92, o pilar da literatura italiana e pedra angular da formação dos estudantes italianos apresenta conteúdo ofensivo e discriminatório, tanto na substância e na linguagem e é oferecido sem qualquer filtro nem são fornecidas considerações críticas em relação ao anti-semitismo e racismo.

“Na parte XXVIII do Inferno — explica Sereni — Dante descreve a dor terrível que sofrem os semeadores da discórdia, ou seja, aqueles que em vida provocaram lacerações na vida política, religiosa e familiar. Maomé é representado como um cismático e o Islã como uma heresia. Ao Profeta foi dada uma punição terrível: seu corpo é dividido desde o queixo até o cóccix, para que as entranhas fiquem penduradas pernas abaixo, uma imagem que insulta a cultura islâmica. A cabeça de Ali, sucessor de Maomé, está dividida desde o queixo até o cabelo. O crime se torna mais evidente porque o corpo quebrado e aleijado de Maomé é comparado a um barril rompido, objeto que contém o vinho, proibido pela tradição islâmica”.

Ora, que Maomé gerou um cisma, disto não há como discordar. O islamismo é uma das ditas religiões abraâmicas, ou seja, cuja origem comum deriva de Abraão. Que é uma heresia, sem dúvida alguma. Da mesma forma que o cristianismo é outra heresia gerada pelo judaísmo. Já se o poeta pinta o profeta com cores fortes, isto é direito não só do poeta como de qualquer um. Ou então proiba-se a liberdade de expressão. No Ocidente, a ninguém causa escândalo insultar deuses ou profetas. Guerra Junqueiro, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno, arremete contra deus e o vice-deus:

Quem é o Papa? Um Deus inventado à socapa,
Um Deus para fazer o qual bastam apenas
Quatro coisas: cardeal, papel, tinteiro e penas.

Tampouco Jeová era poupado, para alegria de meus dias de guri:

Espalhou pelo mundo lívidos terrores,
Inventou Satanás; do amor fez um pecado...
Malditos sejais vós, ó bíblicos doutores!
Maldito sejas tu, ó velho deus castrado!

Por que não se pode insultar um Deus? Isto só é crime em sociedades teocráticas e, no Ocidente, Vaticano à parte, o Estado é laico. Mas Sereni vai mais longe. Acha que Dante insultou também os judeus. Segundo a moça, judeu virou termo depreciativo e indica um preconceito anti-semita antigo, a imagem de ávido por dinheiro, o emprestador de dinheiro pessoal, um traiçoeiro, um traidor.

Ora, o judeu usurário é conseqüência lógica do cristianismo. Sendo a usura o grande pecado durante a Idade Média, a função de agiota sobrou para o judeu. “Não sendo cristãos — diz Le Goff, em A Bolsa e a Vida, os judeus não tinham escrúpulos nesse sentido, pois não violavam as prescrições bíblicas ao fazer empréstimos a indivíduos ou instituições fora de sua comunidade”. Diga-se de passagem, Dante também os põe no Inferno:

Ma io m’accorsi
que dal collo a ciascun pendea una tasca
ch’avea certo colore e certo segno
e quindi par che’l loro occhio si pasca.

Onde reside o pecado do poeta?

“O Judas dantesco é a representação do Judas dos Evangelhos, fonte do anti-semitismo. No canto XXIII, Dante pune o Sinédrio que, de acordo com os cristãos, conspirou contra Jesus. Os conspiradores, o sumo sacerdote Caifás, Anna e os fariseus, todos sofrem a mesma pena, diferente no entanto do resto dos hipócritas: Caifás é crucificado nu no chão, de modo que todos os outros condenados possam pisoteá-lo”.

Ora, segundo os Evangelhos, foram os líderes supremos dos judeus que condenaram o Cristo. Ernest Renan, em A Vida de Cristo, vai mais longe. Para Renan, atrás de Caifás há um outro responsável, Hanã, sogro do Sumo Sacerdote. Se o evangelista põe na boca de Caifás as palavras que condenam Jesus à morte é porque se supunha que ele, como Sumo Sacerdote, teria dom de profecia. “Mas essas palavras, quem quer que fosse que as pronunciou, foram o pensamento de todo o partido sacerdotal”. E Hanã era o cabeça do partido.

“Foi Hanã (ou, se assim o querem, o partido que ele representava) que matou Jesus. Hanã foi o principal ator nesse drama terrível, e muito mais que Caifás, muito mais do que Pilatos, deveria carregar com o peso das maldições da humanidade”. Enfim, Hanã ou Caifás, ambos eram judeus e defendiam interesses da hierarquia judaica. Ainda segundo Renan, os sacerdotes viram como derradeira conseqüência daquela agitação “uma agravação do jugo romano e a destruição de suas riquezas e suas honras”. Um mês antes da Páscoa, Jesus já fora condenado pelos sacerdotes judeus.

Isto é, pela suprema hierarquia da nação judaica. Povo nunca decide a morte de um homem. Quem decide são seus líderes. Claro que não houve um plebiscito para decidir o destino do crucificado. Para os sacerdotes judeus, Cristo, ao se anunciar como Deus e filho de Deus, era um herege. Para os romanos, politeístas, deus a mais ou deus a menos pouca diferença fazia.

Pelo jeito a moça quer, no fundo mesmo, a proibição dos textos bíblicos nas escolas italianas.

Março 13, 2012


 

SERENI APONTA NÃO PARA DANTE, MAS PARA A BÍBLIA

 

Na crônica de ontem, contei ter antecipado, há seis anos, a condenação da obra de Dante pelos radicais multiculturalistas. E comentei os propósitos de Valentina Sereni, presidente da Gherush92, que quer retirar a Divina Comédia das escolas na Itália, por ter alusões ofensivas a Maomé e aos judeus. Mas faltou um pedacinho. A moça condena também o fato de Dante ter jogado os homossexuais aos infernos.

“Mesmo os homossexuais, os sodomitas na linguagem de Dante, seriam colocados no índice do poema de Alighieri — diz a moça —. Aqueles que tiveram relações sexuais “contra a natureza” são de fato punidos no Inferno: os sodomitas, os pecadores mais numerosos do círculo, são descritos quando correm sob uma chuva de fogo, condenados a não parar. No Purgatório, no canto XXVI, os sodomitas reaparecem juntamente com os heterossexuais lascivos”.

“Nós não defendemos a censura, nem a fogueira — diz Sereni — mas nós gostaríamos que se reconhecesse, de forma clara e sem ambigüidade, que na Comédia existem conteúdos racistas, islamófobos e anti-semita. A arte não pode estar acima de qualquer crítica. A arte é feita de forma e conteúdo, e mesmo que haja na Comédia diferentes níveis de interpretação, simbólica, metafórica, iconográfico, estética, não se pode retirar o significado textual da obra, cujo conteúdo é claramente depreciativo e contribui, hoje como ontem, para divulgar falsas acusações que, durante séculos, milhões e milhões de mortos. Perseguições, discriminações, expulsões, fogueiras, foram sofridas por parte dos cristãos, judeus, homossexuais, pessoas morreram, infiéis, hereges e pagãos, a quem Dante coloca nos mesmos círculos do inferno e purgatório. Isto é racismo que uma leitura simbólica, metafórica e estética da obra, obviamente, não remove”.

De novo a moça está apontando para a Bíblia. O livro é claro. No Levítico, lemos: “Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação.” E logo mais adiante: “Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles”.

Ao que tudo indica, Sereni não ousou atacar um livro milenar, que hoje é base de inúmeras religiões, preferindo ater-se ao poeta florentino. Há horas venho afirmando que a militância homossexual, que pretende proibir qualquer crítica ao homossexualismo, mais dia menos dia iria tropeçar com a Bíblia.

Aconteceu no Brasil, em maio passado. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) convocou simpatizantes a um evento em Brasília, em que seriam queimados exemplares da Bíblia. Uma mensagem no site do grupo afirmava: “em frente a Catedral, nós ativistas LGBTT iremos queimar um exemplar da Bíblia Sagrada. Um livro homofóbico como este não deve existir em um mundo onde a diversidade é respeitada.”

Se você sair por aí pregando a pena de morte para homossexuais, evidentemente será condenado como homófobo. Mas é o que diz o Livro. Será a Bíblia então proibida? A senadora Marta Suplicy, ciente desta implicação absurda, abriu uma exceção no projeto de lei. Nos templos, seria permitida a condenação do homossexualismo. Com isto deixa claro que, fora dos templos, qualquer crítica ao homossexualismo está sujeita às penas da futura lei. Se um padre ou pastor ler o Levítico em um templo, tudo bem. Se ler em praça pública, cadeia nele.

Considero a Bíblia um livro importante, tanto como registro de épocas históricas, mas também como repositório de mitos e lendas, poesia e filosofia. Mas jamais a consideraria um código normativo. Se ela condena à morte os homossexuais — e também as adúlteras —, isto foi nos tempos de Abraão e Moisés. Não se pode transpor para nossos dias códigos de mais de três mil anos.

A Bíblia também prega a lei de talião: olho por olho, dente por dente. (Verdade que hoje talvez pudesse ser traduzido por lente por lente, ponte por ponte). Mesmo assim, tal lei fere qualquer código de Direito contemporâneo. Os católicos já não insistem muito nas antigas interdições sexuais, tanto que até os últimos papas foram complacentes com o homossexualismo e pedofilia de seus padres. Quem ainda insiste nisto são os evangélicos.

Se Sereni quer banir das escolas obras que um dia condenaram esta ou aquela etnia, este ou aquele comportamento, terá um trabalho enciclopédico pela frente. Para enquadrar nos parâmetros politicamente corretos das esquerdas contemporâneas as literaturas de diferentes épocas, seria necessário queimar não poucas bibliotecas.

Antes de qualquer outro livro, a Bíblia.

Março 14, 2012


 

PAGANDO CARO PELO PIOR

 

Comecei meus dias de viajante em 1971. Com dinheiro escasso, hotel duas estrelas para mim era luxo. Normalmente, buscava algo mais modesto. Em minha primeira visita a Paris, me hospedei no folclórico Grand Hotel Saint Michel, que de Grand não tinha nada, a não ser a sujeira. Ficava na Rue Cujas, a poucos metros da Sorbonne. Era um hotel de uma estrela — hoje tem duas ou três — capitaneado pela também folclórica Madame Salvage, que teria entre seus queridos boa parte da literatura e das artes latino-americanas, desde Diego de Rivera e Pablo Neruda a Jorge Amado.

Foi o hotel que escolhi em 75, quando fui fazer minha bolsa na Sorbonne Nouvelle. O primeiro mês deveria ser-me reembolsado pelo CROUS, entidade que cuidava dos bolsistas. Quando apresentei a conta, uma das senhoras azedas — que apelidei de Passe-Muraille — fez uma observação:

— Mais vous êtes dans un hotel très cher, Monsieur.

Passe-Muraille é um personagem de Marcel Aymé, modesto empregado da administração que descobre a possibilidade de passar através de paredes. Ele utiliza este dom para cometer roubos e vingar-se de humilhações, até o dia em que perde seu poder e fica encerrado em uma parede. Olhando minha interlocutora, a impressão que ela me passava é que atravessaria paredes sem que as paredes notassem. Ora, eu estava numa das pocilgas mais baratas de Paris. Revidei:

— Moins cher qu’une étoile, Madame, il n’y a que à la belle étoile.

Belle étoile quer dizer “ao relento”. Menos caro que uma estrela, só ao relento. Sentindo meu domínio da língua, Mme. Passe-Muraille nunca mais me incomodou.

Nas primeiras viagens, com grana sempre curta, o máximo que exigia de um hotel eram quatro paredes e lençóis limpos. Na época, não tinha o hábito de reservar quarto. Saía do aeroporto de mala em punho, escolhia a geografia que me agradava e ia entrando de hotel de hotel, vendo preços e vagas. O que — só fui descobrir mais tarde — tem seus inconvenientes. Com as malas pesando cada vez mais a cada rua que se percorre, temos a tendência de entrar no primeiro hotel que julgamos acessível, mesmo que seja desconfortável. Vivendo e aprendendo.

Com o passar dos anos e com mais grana, me fixei nos três, eventualmente quatro estrelas. Há quem julgue que eu costume freqüentar hotéis de luxo. Nada disso. Em toda minha vida, só em duas ocasiões hospedei-me em um cinco estrelas. Sem saber. O que me atraía eram os cafés desses hotéis. Em Bruxelas, o Metropole. Sempre que passo por Paris, reservo uma ou duas noites em Bruxelas só para revisitar o bar. Em Budapeste, o New York, que abriga um café com o mesmo nome. Nele me sinto como se estivesse no Vaticano, sentado junto aos baldaquinos de Bernini. Ano passado, passei sete dias naquele boteco. Isto é, tomava o café da manhã e um vinho à noite. É hotel do qual não se tem vontade de sair.

Só fui descobrir que os hotéis tinham cinco estrelas quando cheguei lá. Mais ainda, eram bastante baratos. Na última viagem, em novembro, paguei no New York menos da metade do que me custou em Paris um quatro estrelas. Pensei em hospedar-me no Grandhotel Pupp, em Karlovy Vary, na República Tcheca, mais como uma homenagem ao filme As férias de minha vida, de Wayne Wang. Apesar das cinco estrelas, preço muito palatável, em torno dos 150 euros. Mas suspeitei que iria tropeçar com essa gente engomada do dito jet set internacional. Preferi algo menos ostentoso.

Em suma, se abandonei aquela filosofia de estudante, segundo a qual hotel é apenas um espaço para descansar o esqueleto, não cheguei ainda — nem penso chegar — àquela outra filosofia de pagar caro só para curtir o luxo. Assim sendo, não consigo entender muito bem um novo conceito de hotelaria que está em moda, os hotéis-cárcere. Onde você paga para hospedar-se... em uma prisão. É o que leio no El País, edição de hoje.

Em Londres, pode-se ficar no Alcatraz, que permite a seus clientes dormir como se dormia na famigerada prisão de San Francisco, fechada em 1963. A iniciativa faz parte da estréia da série Alcatraz, no Reino Unido, e durará apenas uma semana (até o próximo sábado). Os hóspedes são prisioneiros e às 23h45 se apagam todas as luzes. Os quarto medem um metro e meio por três e têm um catre, um vaso sanitário, um lavabo e duas estantes. Vantagem: a estada é grátis. Desvantagem incontornável: só há quatro celas e todas já foram reservadas.

Em vez de serviço, há atores disfarçados de guardas, aos quais se deve chamar de senhor. Os hóspedes têm de usar uniforme e são fotografados de frente e de perfil. A comida é servida em bandejas de metal. Mas atenção... os falsos prisioneiros podem beber vinho. Pago, por supuesto. De minha parte, muito obrigado. Não vejo vantagem alguma em dormir numa cela, mesmo sem pagar.

Boston oferece o cárcere de Charles Street, que funcionou como presídio até 1990. Em 2007, uma inversão de 150 milhões de dólares o converteu em hotel de luxo, o Liberty Hotel, em cujo lounge — as antigas galerias — se pode ficar bebendo. A partir de 200 dólares a noite. Vá lá! Mas tanto o Metropole como o New York são mais baratos.

Lucerna, na Suíça, oferece o Jailhotel Löwengraben, edifício histórico de 1862 (cárcere até 1998). Tem quartos convencionais, mas também celas redecoradas por uma sociedade histórica para emular as originais, salvo pelo preço: a partir de 75 euros. Tudo bem... Uma prisão na Suíça sempre será melhor que muito hotel no Brasil.

A Letônia oferece, em Karostas, uma prisão militar reciclada em museu, com catres, rancho, grades fechadas e janelas de presídio, mais atores disfarçados de guardas soviéticos. Nenhum conforto e toda a experiência por menos de dez euros. Para fauchés que queiram ter uma idéia dos dias de União Soviética, pode ser uma opção interessante. Mas ainda sou mais o Grand Hotel Saint-Michel, da Madame Salvage.

Pior que o desconforto de alguns destes hotéis propostos, só mesmo o desconforto de restaurantes caros e metidos a raffinés. No El País, leio notícia sobre um novo restaurante no Quartier Latin, o Ágape Substance, gerido pelo chef David Toutain, que teria transgredido os esquemas usuais de restaurantes. Para começar, quando alguém me fala em chefs como atrativos de restaurantes, ponho minhas barbas de molho. Nunca ouvi falar de chefs nos bons restaurantes que freqüento na Europa, desde o Le Procope ao Sobrino de Botín. Se existem, ficam escondidos na cozinha. Continuando, o crítico gastronômico José Carlos Capel assim apresenta o restaurante:

“Não é fácil entender como em um local angustiante de tão estreito, com uma única mesa corrida sem toalhas, acomodem-se desconfortavelmente vinte comensais em tamboretes incômodos e outros seis mais em mesinhas altas. Clientes que, depois de pagar entre 90 e 170 euros cada um, saem entusiasmados pela experiência. Agoniados pela falta de espaço, os garçons deslizam pelos corredores estreitos para atender o serviço. A retirada dos pratos se converte em um exercício de malabarismo”.

Ora, os restaurantes de Paris já são normalmente exíguos, a ponto de ser usual pessoas estranhas dividirem a mesma mesa. Com 170 euros, se come muito bem entre dois, vinho incluído, em restaurantes acima da média na cidade. Difícil entender que alguém pague tão caro, com tanto desconforto, só para curtir um modismo. Sem falar que mesa sem toalha é uma ofensa a quem cultiva a bona-xira.

Cozinha de trincheira, diz o crítico. Ou melhor, de submarino. Embora considere que as tapas (10 no menu de 65 euros, 16 no de 170) são boas e imaginativas. Muchas gracias, meu caro Capel. É restaurante no qual jamais porei os pés.

Recomendo à turistada brasileira que gosta de pagar caro pelo pior.

Março 15, 2012


 

PARA EVITAR O CAOS, STF LEGALIZA O CAOS

 

Revogação de uma lei — dizem os tratados — é a sua extinção, a sua perda de eficácia e de validade. Significa que a lei não mais vige, produz mais efeitos. A revogação, em princípio, ocorre em duas circunstâncias: quando uma outra lei entra em vigor ou quando a norma cai em desuso. Desde o Direito Romano, a falta de utilização de uma lei fazia com que ela fosse revogada.

O Brasil, inovador como sempre, acaba de dar uma criativa contribuição ao Direito, criando um novo tipo de revogação, aquela decorrente da transgressão sistemática da lei. A trouvaille tupiniquim foi instituída na semana passada, quando se descobriu que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) não podia existir legalmente. Foi criado por medida provisória (MP), que por lei tem de passar por comissão especializada antes de ir ao plenário. Mas não passou.

O ICMBio foi criado pela lei 11.516, de 28 de agosto de 2007, em função de lobbies ianques que queriam criar um herói amazônico, na figura de um comunista obsoleto, que pretendia impedir o desmatamento através dos “empates” — manifestações em que os seringueiros protegiam as árvores com seus próprios corpos. A única coisa que o Instituto gerou até agora, pelo que se sabe, foi a candidatura de Marina Silva — o ET de Xapuri — à Presidência da República.

Quarta-feira da semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) — que tem entre suas funções julgar o que é constitucional ou não — decidiu que o ICMBio tinha existência ilegal. E deu ao Congresso o generoso prazo de 24 meses para que aprovasse uma nova norma sob pena de a autarquia ser extinta. Até aí, o imbróglio teria conserto. Ocorre que, desde 2007, mais de 400 outras MPs haviam chegado ao plenário sem cumprir aquele requisito legal. Hoje, cerca de 50 MPs tramitam no Senado, sem terem passado pela tal comissão. Se a decisão prevalecesse elas caducariam imediatamente.

O deputado ex-comunista e presidente nacional do PPS (ex-PCB), deputado Roberto Freire, logo embuiu-se de pruridos legalistas e defendeu a paralisação imediata da tramitação de todas as medidas provisórias em análise no Congresso. Santa ilusão. Já na quinta-feira — um dia depois da insólita decisão de declarar ilegal o ICMBios — o Supremo voltou atrás, alegando que, embora acertada, a jurisprudência poderia criar um caos jurídico sem precedentes na História da República. Os ministros do STF, para não gerar um caos jurídico, avalizaram o caos legislativo.

O expediente voltou a repetir-se ontem quando, com um atraso de meio século, o STF julgou a ação mais antiga que tramitava naquela Corte. Ela questionava concessões de terras pelo Estado do Mato Grosso no início da década de 1950.

Resumo da ópera, segundo os jornais: entre 1952 e 1954, o governo de Mato Grosso concedeu milhares de hectares de terras a particulares. A Constituição então em vigor dizia que a alienação de áreas com mais de 10 mil hectares deveria ser aprovada pelo Senado Federal. O Estado do Mato Grosso ignorou a regra e doou, sem o crivo dos senadores, 100 mil hectares para uns, 200 mil ou até 300 mil hectares para outros. Alguns anos depois, em 1959, a União entrou com a ação no Supremo alegando que tudo aquilo era nulo.

Segundo a Folha de São Paulo de hoje, todos os ministros reconheceram que houve inconstitucionalidade nas concessões de áreas públicas, mas a maioria preferiu julgar “improcedente” a ação em razão da insegurança jurídica que poderia gerar, caso o STF declarasse nulos aqueles atos.

No julgamento, os ministros entenderam que de fato houve irregularidade. O relator, porém, argumentou que naquelas áreas hoje existem municípios: as áreas foram divididas e povoadas por famílias que ficariam desamparadas se perdessem as terras.
Com base nos princípios da segurança jurídica e da boa fé, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu julgar a ação improcedente e foi seguido por mais quatro de seus pares.

Temos um fator novo na evolução da dita Ciência Jurídica, esta peculiar decisão dos senhores ministros, a de revogar uma lei em função do sistemático não-cumprimento desta lei. Estamos no país do se-pegar-pegou. E se por acaso uma lei pegar, basta descumpri-la repetidas vezes para que seja revogada. No caso das terras do Mato Grosso, o processo de revogação durou meio século. No caso das MPs, cinco anos. O Direito se agiliza.

Mais do que nunca, urge evocar o poeta: Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! Não verás nenhum país como este!

Março 16, 2012


 

FÁCIL DEFENDER O QUE ESTÁ LONGE

 

Quem gosta de cachorros e crianças não pode ser bom caráter — dizia William Thackeray. A frase do novelista inglês deve provocar arrepios nesta nossa época em que os cães estão substituindo os seres humanos na escala dos afetos. Gosto de cães, mas com distância. Tive vários em minha infância, adorava brincar com eles no campo e tive de deixá-los quando fui para a cidade. Meus pais consideravam que cidade não é pra cachorro. Quando os revisitava no Ponche Verde, eles me reconheciam de longe e saíam a fazer-me festa.

Mas nunca consideramos cachorro como gente. Nós vivíamos em casa. Eles, lá fora. E que tratassem de seu sustento. No campo havia muita caça. Fora isto, alguma sobra de cozinha, e olhe lá. Meu espanto com o tratamento recebido pela raça começou em Estocolmo, anos 70, quando vi pela primeira vez um manual de culinária canina. (Hoje, em São Paulo, já há chefs para cães). E continuou em Paris, onde o direito de visita ao cão virou objeto de disputa judicial entre casais que se separavam.

Criado e nascido no campo, estas deferências para com os cães, que são tratados com um carinho que supera o dedicado aos seres humanos, até hoje me chocam. O cachorro acabou se adaptando, ou foi adaptado, à cidade, e hoje faz parte da geografia urbana. Eu que o diga, que vivo no bairro de maior concentração canina de São Paulo. Certa vez, eu conversava com uma wicca — é, isto também existe em São Paulo — que se fazia acompanhar de um imenso labrador. Lá pelas tantas, chegaram à mesa algumas amigas suas, apresentadas incontinenti ao cachorro. Fui solenemente ignorado. A mesa toda concentrou-se em torno ao animal. Discretamente, peguei meus jornais e dei no pé. Minha saída nem foi notada.

As páginas dos jornais estão recheadas de crimes medonhos, que parecem não mais causar espécie a ninguém. É o caso daquela moça que foi esquartejada e incinerada a mando de um goleiro de futebol. Ou daquela jovem advogada, que namorava um ex-inspetor de polícia. E tantos outros. Não tenho encontrado, nos ditos sites de relacionamento, manifestações de solidariedade a tais pessoas. Mas basta que um cachorro perambule pelas ruas, abandonado, e chovem manifestações em defesa do bicho. O Facebook, sem ir mais longe, virou um templo para cachorrófilas. Pelo que se vê, o cachorro goza de muito mais apreço que os seres humanos.

Até que entendo. O cachorro, mesmo se maltratado, recebe seu dono com um afago de volta. São incondicionalmente carinhosos, não têm vontade própria e assumem a ideologia do dono. Cachorro tem ideologia. Você já viu um gato policial? Certamente não. Mas cachorros policiais existem às pampas.

Reacionário e conservador, continuo preferindo a companhia dos bípedes. Ser humano é mais difícil que cachorro, é claro. Mas prefiro as arestas de meus semelhantes ao amor incondicional dos caninos. Em meio a isso, me espanta que até hoje os cachorrófilos não tenham reivindicado um status jurídico para os cães.

Já se tentou para os gorilas. Há uns cinco anos, ativistas da Nova Zelândia exigiam a extensão da comunidade dos iguais para incluir todos os antropóides: seres humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos. Como se igualdade houvesse entre racionais e irracionais. Enquanto o ser humano constrói desde pirâmides a cidades, desde televisores a iPods, os símios continuam pendurados pelo rabo nas selvas.

Os militantes da nova causa querem garantir aos símios o direito à vida, a proteção da liberdade individual e a proibição da tortura. Estão chovendo no molhado. Tais direitos sempre foram garantidos a essas espécies, sem declaração alguma de direitos dos símios. A liberdade individual pode até ser ameaçada pelos circos. Mas seria o caso de perguntarmos a um macaco — se é que ainda não é crime de racismo chamá-lo de macaco — o que ele prefere, se o conforto do circo ou a dura luta pela vida na selva. É claro que ele não vai responder.

Não bastasse este sofisma dos tempos modernos — a igualdade entre humanos e símios — ativistas mais exaltados querem agora conferir “direitos humanos” às orcas e golfinhos. O parque aquático Sea World, nos EUA, foi processado por confinar cinco membros de sua equipe em um espaço diminuto e obrigá-los a fazer rotineiramente apresentações para o público. As autoras da ação? Um grupo de cinco orcas.

Sei! As cinco orcas se reuniram na praia, elaboraram um habeas corpus, o assinaram e deram entrada no tribunal. Mas parece que não foi bem assim. As orcas foram representadas por uma ONG de direitos dos animais, que entrou com o pedido. Embora o juiz tenha optado por não levar o caso adiante, essa foi a primeira vez que um tribunal federal americano chegou a analisar algo do tipo. Perguntinha que se impõe: quem passou procuração à tal de ONG? As orcas não terão sido.

Junto aos direitos humanos das orcas, quer-se reconhecer também os direitos humanos dos demais cetáceos, que inclui os golfinhos e as baleias. Thomas White, especialista em ética da Universidade Loyola Marymount, nos EUA, é o principal defensor da causa. O que já é uma inovação: animais, hoje, passaram a ser sujeitos de uma ética. Reacionário como sempre, sempre imaginei que ética regulamentasse — ao lado do Direito — as relações entre seres humanos.

Ó tempora, ó mores! Uma carta de direitos dos cetáceos já está sendo cogitada. Para quando uma carta de deveres? Enquanto isso, seres humanos morrem aos magotes, em guerras e epidemias. Seria talvez oportuno elaborar uma declaração de direitos animais e nela incluir os humanos, para a proteção destes.

Em 2010, em um congresso em Helsinki, na Finlândia, foram decididos os pontos principais desse documento. Agora, White e outros cientistas viajam o mundo tentando difundi-lo. No mês passado, eles foram a um dos maiores eventos científicos do mundo, a reunião anual da AAAS (Sociedade Americana para o Progresso da Ciência) em Vancouver, no Canadá, tentando engajar os cientistas e a opinião pública em favor da causa dos cetáceos.

Defender baleias e golfinhos é fácil, eles continuam lá longe no mar enquanto seus defensores participam de congressos nas mais prestigiosas metrópoles do mundo. Difícil mesmo é defender o pobre diabo que morre de frio e fome a nosso lado, nas calçadas das grandes cidades.

Março 18, 2012


 

A INQUISIÇÃO É VOSSA!

 

Carlos Alberto di Franco, Doutor em Comunicação, professor de Ética e diretor do Master em Jornalismo, membro da Opus Dei, celibatário, virgem e usuário confesso do cilício por duas horas por dia, decidiu entrar na discussão sobre o uso do crucifixo em tribunais. Em seu apoio, chama Carlos Brickmann, a quem define como jornalista arguto e politicamente incorreto. Só esqueceu de dizer que Brickmann foi assessor de imprensa de Paulo Maluf, mas afinal para que enumerar todas as virtudes do homem em uma simples citação? Diz Brickmann:

“Há religiões; também há a tradição, há também a história. A Inglaterra é um estado onde há plena liberdade religiosa e a rainha é a chefe da Igreja. A Suécia tem plena liberdade religiosa e uma igreja oficial, a Luterana Sueca. A bandeira de nove países europeus onde há plena liberdade religiosa exibe a cruz”.

Ora, que a heráldica européia use a cruz não é coisa que espante. Uma das bases culturais do continente — que um dia se chamou Respublica Christiana — é precisamente o cristianismo. Que na Inglaterra a rainha seja chefe da Igreja anglicana muito menos, mas é bom lembrar que a igreja anglicana é uma ruptura com a tradição católica. O mesmo diga-se da Suécia. De qualquer forma, isto não é nenhum dogma que implique necessariamente a aceitação da cruz nos tribunais do Brasil. Cuja independência, sem ir mais longe, foi uma ruptura com a tradição portuguesa. Como o cristianismo foi uma ruptura com o judaísmo. Não fosse Cristo opor-se à tradição, o cristianismo não existiria.

“O Brasil tem formação cristã; a tradição do país é cristã. Mexer com cruzes e crucifixos vai contra esta formação, vai contra a tradição. A propósito, este colunista não é religioso; e é judeu, não cristão. Mas vive numa cidade que tem nome de santo, fundada por padres, numa região em que boa parte das cidades tem nomes de santos, num país que já foi a Terra de Santa Cruz. Será que não há nada mais a fazer no Brasil exceto combater símbolos religiosos e tradicionais?”

O assessor de Maluf não admite ir contra a tradição. Se sempre foi assim, que assim seja eternamente. Brickmann não aceita a idéia de progresso. Se durante séculos a Igreja dominou soberana sobre os Estados europeus, a divisão entre Estado e Igreja foi certamente obra de celerados que não admitiam a tradição. Democracia, sem ir mais longe, foi idéia que feriu tradições antiqüíssimas. O mesmo se diga da libertação dos escravos e da jornada de trabalho de oito horas. Será que não há nada mais a fazer no mundo exceto combater instituições tradicionais?

O assessor, impertérrito, vai adiante:

“Se não há, vamos começar. Temos de mudar o nome de alguns Estados e cidades como Natal, Belém, São Luís e tantas outras. E declarar que a Constituição do País, promulgada ‘sob a proteção de Deus’, é inconstitucional”.

Ninguém está propondo mudar o nome de cidades e Estados. O assessor brande um argumento ad absurdum, para comover seus leitores. Isso de mudar nomes de cidades é coisa dos antigos comunistas, que gostavam de homenagear seus tiranos de plantão. Tsarytsin já foi Stalingrado e depois Volgogrado. São Petersburgo virou Petrogrado, depois Leningrado e hoje voltou a ser São Petersburgo.

Nesta mania, os comunistas foram seguidos por seus herdeiros, as esquerdas tupiniquins, que querem mudar os nomes de avenidas e elevadas. É expediente também usado na Espanha, onde as viúvas do Kremlin querem exterminar da memória das gentes a lembrança do homem que salvou a Espanha do comunismo. No Brasil, exceto alguns florianopolitanos, jamais ouvi falar de quem queira mudar o nome de cidades.

Quanto à Constituição, o assessor usou um jogo de palavras. Uma Constituição não pode ser inconstitucional, já que nenhuma outra constituição a rege. Pode ser, isto sim, absurda, incoerente, ilógica, inviável, utópica, colcha de retalhos. Mas jamais inconstitucional. Quem a pariu, que a engula. Continua Brickmann:

“Há vários símbolos da Justiça, sendo os mais conhecidos a balança e a moça de olhos vendados. A balança vem de antigas religiões caldeias. Simboliza a equivalência entre crime e castigo. A moça é Themis, uma titã (sic!) grega, sempre ao lado de Zeus, o maior dos deuses. Personifica a Ordem e o Direito. Como ambos os símbolos são religiosos, deveriam desaparecer também, como o crucifixo?”

Ocorre que ninguém mais cultua Zeus ou Têmis. A mitologia grega nunca nos foi empurrada goela abaixo nem embasa o ensino ou a cultura nacionais. Os gregos, politeístas, nunca tiveram como dogmas suas crenças. Quando Alexandre, trezentos anos antes de Cristo, ao ver-se cultuado como deidade no Oriente, pediu aos gregos que o entronizassem como deus, os atenienses foram generosos. Que assim seja. Mais deuses menos deuses, tanto faz como tanto fez.

O Cristo é impositivo. Exige obediência a seus preceitos e se imiscui no universo das leis. As restrições ao sexo fora do casamento e ao homossexualismo são resquícios do cristianismo. (Não do Cristo propriamente, mas de Paulo). A exigência de fidelidade conjugal também. São cracas que um dia impregnaram nossas leis e que ainda hoje sobrevivem nos costumes. Ora, nem todos são cristãos neste país. Não temos porque conviver, em nossas instituições de Estado, com a presença de um deus obsoleto.

O jornalista virgem, por sua vez, vai mais longe. “Na escalada da intolerância laicista, crescente e ideológica, não surpreenderia uma explosão de ira contra uma das maravilhas do mundo e o nosso mais belo e festejado cartão-postal: o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro”.

De novo a reductio ad absurdum, argumento de quem não tem argumentos. Ninguém está pedindo a demolição do Redentor. O que se pede é a retirada de símbolos religiosos dos tribunais. Como é usual neste tipo de fanáticos, Di Franco cria inimigos que não existem, para melhor combatê-los:

“O laicismo militante atual é uma “ideologia”, ou seja, uma cosmovisão — um conjunto global de idéias, fechado em si mesmo —, que pretende ser a “única verdade” racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc. Por outras palavras, o laicismo é um dogmatismo secular, ideologicamente totalitário e fechado em sua “verdade única”, comparável às demais ideologias totalitárias, como o nazismo. Tal como as políticas nascidas dessas ideologias, o laicismo execra — sem dar audiência ao adversário nem manter respeito por ele — os pensamentos que divergem dos seus “dogmas” e não hesita em mobilizar a “Inquisição” de certos setores para achincalhar — sem o menor respeito pelo diálogo — as idéias ou posições que se opõem ao seu dogmatismo”.

Como se existisse um organismo laicista no país, “ideologicamente totalitário e fechado em sua verdade única”. Quem pediu a exclusão dos crucifixos foi uma liga de lésbicas, não um dogmatismo secular. Esta reivindicação não é exclusivamente brasileira e surgiu originalmente na Itália, berço do cristianismo. Por outro lado, jamais vi movimentos laicistas pretendendo “ser a única verdade racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc”. Verdade única é cacoete de monoteístas, não de pessoas que não acreditam em deus.

Mas o melhor de tudo no discurso de di Franco é chamar de Inquisição a mobilização dos leigos contra o crucifixo. Que me conste, ninguém está pretendendo mandar para a fogueira ou submeter a ordálias os juízes que insistam em usar o antigo instrumento de tortura em seus tribunais.

O velho católico se traiu. Inquisição é coisa vossa, senhores papistas.

Março 19, 2012


 

PRÊMIO NOBEL DEFENDE PUNIÇÃO DE HOMOSSEXUAIS

 

Em meu ensaio Como ler jornais, relacionei uma série de vigaristas, que vão de plagiários a terroristas, contemplados com o prêmio Nobel. Comecei com o santo homem Martin Luther King, que plagiou sua tese de doutorado e, mesmo tendo cometido este crime de lesa-academia, recebeu o Nobel da Paz em 64. Isso sem falar que desviou verbas de suas campanhas em prol da igualdade racial para orgias com profissionais do sexo.

Yasser Arafat, que defendeu na ONU, em 74, a tese de que um povo que luta pela própria independência tem o direito de apelar para atos terroristas, foi brindado com o prêmio da Paz em 94. Esta tolerância norueguesa a condutas criminosas não foi estranha aos suecos. Em 1965, no auge da Guerra Fria, o escritor russo Mikahil Aleksandrovich Sholokhov recebeu o Nobel de Literatura por sua obra Don Silencioso, epopéia em torno à vida, aspirações e tragédia dos cossacos do Don durante a guerra e a revolução.

Descobriu-se mais tarde que o livro era uma apropriação indébita. Sholokov tinha na época 23 anos e não poderia ter acumulado a necessária bagagem de cultura cossaca exigida para tal empreitada. O verdadeiro autor chamava-se Fédor Dimitrievitch Krioukov, diretor do jornal Donskié Viédomosti, com o qual colaborava Sholokhov. Cossaco de origem e de coração, Krioukov esteve no front nas épocas descritas no romance, juntou-se à contra-revolução e conheceu de perto seus chefes. Krioukov, obviamente, foi banido dos anais da literatura russa. Sholokhov é hoje conhecido como o primeiro grande escritor russo a ter introduzido o tema dos cossacos na literatura. Em dezembro de 1965, recebeu das mãos do rei Gustavo Adolfo a láurea máxima da literatura ocidental.

Mistificação semelhante ocorreu com Rigoberta Menchú Tum, Nobel da Paz de 1992, porta-voz e símbolo dos direitos dos povos indígenas, premiada em boa parte por sua biografia, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la Conciencia. (Perdão, leitores, se volto ao assunto. Mas vigarices devem ser sempre lembradas). Apresentando-se como uma índia sem instrução e militante dos Direitos Humanos, a guatemalteca comoveu gregos e troianos com sua infância miserável. Daí ao galardão recebido em Oslo foi um passo. A data escolhida é emblemática: nos 500 anos do descobrimento da América outorga-se, pela primeira vez na História, o Nobel a uma indígena. Mas ninguém sai diretamente de Tegucigalpa para aterrissar em Oslo. A biografia de Menchú Tum não é obra de Menchú Tum. Foi fabricada em Paris, pela venezuelana Elisabeth Burgos-Debray, mulher de Régis Debray.

Ao premiar Menchú Tum, só conseguiram desmoralizar ainda mais um título já enxovalhado por Mikahil Sholokhov, Martin Luther King, Pablo Neruda, Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá. Não bastassem os nórdicos conferirem estes prêmios prestigiosos a vigaristas notórios, Oslo concedeu em 2004 o Nobel da Paz à bióloga e ativista queniana Wangari Maathai. Após a entrega do Nobel, a bióloga reiterou sua opinião, muito divulgada na África subsaariana, de que o vírus da Aids foi criado por cientistas para a guerra biológica, para dizimar os negros africanos, como se alguma nação no mundo ganhasse algo com dizimar negros na África. Afirmou também que o uso do preservativo não é eficaz contra a transmissão do vírus.

Em verdade, o Ocidente não é lá muito inocente quanto a esta assertiva. Em março de 2009, voando rumo a Iaundé, capital do Cameroun — que a imprensa brasileira insiste em traduzir por República dos Camarões — Bento XVI afirmava que o problema da Aids não pode ser resolvido pela distribuição de preservativos e o uso destes só servia para agravar o problema. Em 2007, os infectados camerunenses somavam 510 mil, contra 43 mil em 2004. Não por acaso, o Cameroun é um país de forte influência católica, onde esta religião é professada por 40% de seus nacionais.

Dos 39,5 milhões de acometidos pela doença no mundo, 25 milhões estão na África subsaariana. (Estes dados são de 2006). Desde há muito se sabe que a propagação da Aids no continente negro se deve em boa parte à influência da Igreja, que proíbe a seus fiéis o uso de preservativos. O cachimbo entorta a boca. Habituado a professar dogmas e convicções na base do credo quia absurdum, não soa estranho a Bento um absurdo a mais ou um absurdo a menos. Daí a compartilhar o obscurantismo da prêmio Nobel queniana, foi apenas um passo.

Diga-se de passagem, João Paulo II preconizava o mesmo. Desde há muito defendo, para espanto de muitos leitores, a denúncia da política vaticana ao Tribunal Penal Internacional ou à Corte de Haia. Porque o que a Igreja de Roma está promovendo, em bom português, chama-se genocídio.

Mas falava de Nobéis. A Libéria — isto é, a Terra Livre — foi fundada no século XIX por escravos libertos dos Estados Unidos, não tendo conhecido o domínio colonial. O país foi criado pela American Colonization Society, organização criada em 1816 por Robert Finley, cujo objetivo era levar para a África negros livres ou negros que tinham sido libertos da escravidão. Segundo Finley e outros líderes americanos, os negros jamais seriam capazes de se integrar na sociedade do país. A única solução seria reenviá-los para a África, para evitar tanto a criminalidade como o casamento inter-racial.

Em 1821, a American Colonization Society adquiriu uma parcela de terra na África, onde se fixariam os primeiros colonos negros oriundos dos Estados Unidos. Em 1847, a Libéria declarou a sua independência, tornando-se o primeiro país africano a tornar-se independente. Independência para quê? Hoje, a Libéria é ainda mais pobre que o Haiti. No mesmo ranking de 180 países, seu PIB per capita ocupa o 159º lugar.

Conclusão? Antes que me chamem de racista, apelo ao testemunho de George Samuel Antoine, cônsul do Haiti no Brasil. Sem saber que estava sendo gravado pela reportagem do SBT Brasil, Samuel Antoine disse: “O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá fodido”. Verdade que logo depois se apressou em dizer que foi mal interpretado. Mas não vejo muito como interpretar mal sua afirmação. Disse, está dito. Como cônsul, deve conhecer bem o país que representa.

Ano passado, a Libéria teve seu primeiro prêmio Nobel, a presidente Ellen Johnson Sirleaf. A Noruega atribuiu conjuntamente o prêmio à também liberiana Leymah Gbowee e à “mãe da revolução” iemenita Tawakkol Karman. Ontem, Sirleaf mostrou ao que vem. Acompanhada do ex-premiê britânico Tony Blair, defendeu a legislação que pune a homossexualidade com cadeia em seu país. “Temos certos valores tradicionais em nossa sociedade que gostaríamos de preservar”, afirmou Ellen, em depoimento divulgado ontem pelo site do jornal britânico The Guardian.

Ao ser questionada sobre se assinaria alguma proposta que descriminalize o homossexualismo, a resposta da presidente foi negativa. “Já tomei uma posição sobre isso. Não assinarei essa lei ou nenhuma lei que tenha a ver com essa área, de maneira nenhuma. Gostamos de nós mesmos exatamente da maneira que somos.”

Na Libéria, a “sodomia voluntária” é punida com até um ano de prisão — diz o jornal. Dois projetos de lei em tramitação propõem sentenças mais duras contra os gays, obrigados a esconder a homossexualidade para viver tranquilamente na sociedade liberiana. Seria interessante perguntar também a Leymah Gbowee, conterrânea da presidente, se participa do mesmo ponto de vista.

Os hiperbóreos homens do Norte estão sendo muito complacentes em seus ímpetos de homenagear o Terceiro Mundo. Ao conceder o Nobel à bióloga queniana que afirmou não ser eficaz o uso do preservativo contra a transmissão do vírus do Aids, Oslo endossou o obscurantismo vaticano, que está produzindo cadáveres às pencas nos países católicos africanos. Ao premiar a presidente liberiana, os noruegueses estão endossando a prisão de milhares de pessoas cujas opções sexuais são condenadas tanto pelo Vaticano como pelas ditaduras mais cruentas da África e do mundo árabe.

Os prêmios Nobel, particularmente os da Paz e de Literatura, estão sendo desmoralizados a passos rápidos por seus contemplados.

Março 20, 2012


 

CENSURA AO OUTONO

 

Nas últimas décadas, minha vida tem sido uma fuga constante do verão. No inverno eu me defendo. Uma lã por baixo e um bom casaco e estamos conversados. Contra o verão não há defesa, a não ser ficar dentro de casa com ar condicionado. Ultimamente, tenho viajado quase sempre em dezembro. Fujo do verão tropical e caio no inverno europeu. Fujo também do Natal brasileiro e do Ano Novo. Se bem que estas duas datas não são muito confortáveis na Europa. Comer se torna complicado e, se você se descuida, pode até passar um dia em jejum.

Nem sempre fugi do verão. Em meus dias de guri, verão era festa. Significava férias e volta ao campo, às vacas, ovelhas e cavalos. O verão é escaldante nas cidades da Fronteira Oeste e as cidades — inexplicavelmente desprovidas de árvores — o tornam mais quente ainda. Isso é algo que não consigo entender na formação daquela gente fronteiriça. Nas cidades brasileiras não há quase verde nas ruas. Você se desloca uns 100 ou 200 quilômetros e entra no Uruguai. Ruas verdes de árvores. E sombra.

Nos dias de universidade, também fui devoto do verão. Um dos motivos era de novo as férias. Havia um outro, a colônia de férias da então URGS (ainda não era federal) em Tramandaí. Ou seja, cachaça, chope, paquera, sexo, em suma, o melhor da vida para um adolescente. Naqueles dias, nos fins-de-semana, Tramandaí atraía uns cem mil visitantes. Era suportável. Hoje, pelo que me contam, atrai mais de milhão.

Terminada a vida universitária, verão nada mais tem a ver com férias. É época de suar — literalmente — a camiseta. E verão em Porto Alegre é coisa que não desejo a ninguém. Temperatura próxima aos 40º, asfalto quase se derretendo, amigo nenhum nas ruas. Todo mundo — isto é, aquela parcela que tem condições de bancar um veraneio — foi para a orla. Foi no começo de minha profissional que o verão, de refrigério, virou inferno. Suponho que não estou sendo original.

(Outro dia, circulou na internet uma foto de um termômetro público em Porto Alegre marcando 47º. Narcisismo climático, de provincianos que gostam de gabar-se de temperaturas extremas. Naquele dia, a meteorologia deu a máxima de 41º no Estado todo. É que o aparelho estava exposto ao sol, o que inflacionava a temperatura. Gente de província, na falta do que orgulhar-se, se orgulha de eventuais picos de temperatura, sejam negativos ou positivos. Menos 10 em São Joaquim. Talvez em algum aparelho situado no alto de um morro exposto ao vento e à geada e onde não vive ninguém).

Há quem busque o verão. Eu prefiro fugir. Quando alguém me pede informações sobre viagens, minha primeira recomendação é: evite o verão. Primeiro, muito calor. Em Madri, ao meio-dia a temperatura bate nos 40º e ali fica até às seis da tarde. Roma e Paris também são desconfortáveis. Lisboa, vá lá, há sempre as brisas marinhas. Ocorre ainda outro desconforto, é época em que todo mundo viaja — isto é, aqueles que se podem permitir viajar. Aviões sem um só assento vazio, aeroportos repletos, museus e monumentos com filas impraticáveis. Não vá.

Mas abro uma exceção para o verão, a Escandinávia. Os preços de hotel caem e você vai curtir o sol da meia-noite. Com o calor, não se preocupe. Em um verão boreal, você pode muito bem curtir zero grau.

Aprendemos na escola que as estações são quatro. Deve ser herança do ensino europeu. Porque aqui no Brasil elas são escassamente duas, inverno e verão. E digo escassamente porque inverno é coisa do Sul. Do Rio para cima, inverno é ficção de meteorologistas. Outono e primavera mal se fazem notar nestes trópicos.

Inverno mesmo fui descobrir na Suécia. Já vira neve em minha primavera viagem, na Inglaterra e Alemanha. Mas era uma neve mansa, gentil, com algum resquício de sol.

Caí em pleno dezembro em Estocolmo. Aterrissei em Arlanda lá pelas duas da tarde. Noite fechada, céu plúmbeo, frio de enregelar os ossos. Jamais estive em Plutão, mas pareceu-me ter chegado lá. Era o que eu queria: distância dos trópicos.

Lá por março, quando já começara a fazer dia durante o dia, tive uma abrupta percepção do valor do sol. Mal surgia uma fresta entre as nuvens, nos parques, ruas e paradas de ônibus, as adoráveis louras nórdicas, imóveis, fechavam os olhos e expunham o rosto e os seios àquele solzinho medíocre. Não por acaso existe na cidade uma estátua que celebra o Soldyrkare, o Adorador do Sol. Foi quando me bateu uma leve saudades do Sul.

Naqueles dias, morei na Karlaplan, uma praça redonda cercada de árvores. Ali tive uma real percepção das estações. Karlaplan não era uma, mas quatro. Havia a Karlaplan de inverno, a de primavera, a de verão e a de outono. Quando cheguei, as árvores eram mirrados esqueletos de árvores, nem sombra de verde. No verão, se cobriram de um verde histérico. Na primavera, a praça era florida e no outono de um vermelhão infernal.

Há 40 anos — nossa! —, vivi um dia magnífico em Estocolmo. Eu estudava sueco num prédio em frente ao Kungsträdgården, praça que em língua de gente quer dizer Jardim do Rei. O dia era 22 de março, um dia após a entrada da primavera. Ao aproximar-me do parque, levei um choque. Estava repleto de flores. Mas no dia anterior, eu tinha certeza, não havia flor nenhuma. Era de manhã, eu não havia bebido. Aos poucos, entendi a coisa. Foi como se o rei, ou alguma outra autoridade, tivesse ordenado: “hoje é primavera. Tirem as flores das estufas e joguem-nas na cidade”. Era uma primavera instantânea, brotada de repente.

As estações se impõem com fúria na Europa. Com o tempo, fui me tornando um adepto do outono. O inverno é lindo. Mas o outono é soberbo. No Sul do continente, a natureza se tinge de um amarelo pujante, mas comedido. Quando mais você viaja ao norte, mais vermelhas se tornam as árvores. Em novembro passado, vivi dias encantados em meio ao vermelhão de Copenhague, Praga, Karlovy Vary e Budapeste. Com uma vantagem a mais: no outono você não arrisca trens e aeroportos paralisados pela neve.

O encanto do outono reside não tanto nas árvores, mas nos sendeiros, praças e ruas amarelecidas pelas folhas que caem. Os parques se cobrem de uma espessa camada de outono, que só é removida — por tratores — ao final da estação.

Entre nós, o outono é tímido, captado às vezes à unha por fotógrafos, em meio ao verde remanescente do verão. Pior que tudo, o outono é censurado. Pelo menos aqui em São Paulo. Mal começam a cair suas primeiras folhas, um exército de faxineiros sai dos condomínios, de vassouras em punho, para expulsá-lo das ruas. É como se seu exibicionismo constituísse um atentado ao pudor público.

Quanto a mendigos deitados nas ruas, estes ninguém varre. Fazem parte da identidade nacional.

Março 21, 2012


 

SERPENTES PÕEM OVOS TAMBÉM À ESQUERDA

 

Suponho que alguém ainda lembre de Anders Behring Breivik. O nome parece familiar, não? Há menos de um ano, o maluco norueguês matou cerca de oitenta pessoas, em nome de uma “guerra de sangue” a imigrantes e marxistas. Estranhamente, matou jovens noruegueses, que não eram imigrantes e certamente nada tinham a ver com marxismo.

O massacre de Breivik foi uma festa para as esquerdas. Finalmente um europeu de boa cepa, loiro e de olhos azuis, demonstrava a natureza assassina da cultura europeia. Alusões a O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, seriam inevitáveis. Na ocasião, uma jornalista tupiniquim, pretendendo ser original, escreveu:

“Breivik é um fanático, que parece não recuar diante de nada para eliminar de sua frente aqueles que considera indesejáveis ou ameaçadores para o “sonho europeu” que persegue e difunde em suas mensagens pela internet. Os ataques que protagonizou, fundamentados por teorias de extrema-direita, deixam a Europa e o mundo em estado de alerta, já que uma onda de repulsa a imigrantes, declínio econômico, aumento do desemprego e medo crescente de retaliação de fundamentalistas islâmicos têm tomado conta de vários países do velho continente.

“O que os tristes acontecimentos da Noruega nos dizem é que parece que o apoio a teorias xenófobas, como as que segue o atirador fanático de Oslo e da ilha de Utoeya, está crescendo. Vem da Bíblia o conceito de que a coexistência com idéias e companhias maléficas equivale a chocar o ovo de uma serpente. Em 1977, o notável cineasta Ingmar Bergman fez um filme com o título O ovo da serpente, ambientado entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, quando o nazismo nasceu e prosperou na Alemanha, encantando governantes de índole totalitária em vários cantos do mundo. O resultado é bastante conhecido e lamentado até os dias de hoje.

“Eventos como o da Noruega parecem assustadoramente apontar nesta direção. Através do gesto tresloucado e das palavras mais ainda de Breivik, pode-se discernir o futuro provável da Europa e do mundo se providências enérgicas não forem tomadas para reprimir a expansão desta ideologia de extrema-direita que retorna. Através das membranas finas do ovo, pode-se vislumbrar o réptil peçonhento e letal, perfeitamente concebido e pronto para atacar”.

Vinte anos após a queda do Muro de Berlim, Breivik prestou um serviço inestimável a uma doutrina já putrefata. Um maluco sai a matar e a idéia de Europa é posta em xeque. As esquerdas, penhoradas, agradecem.

Segunda-feira passada, outro alucinado matou três crianças e um rabino em uma escola judia em Toulouse, França. Quatro judeus de uma tacada só? Pensei logo em algum Mohammed ou Mahammoud, como seria lógico. Ocorre que a loucura não é lógica e ataca em todos azimutes. Melhor não apostar na loucura.

Durante quase 48 horas, a imprensa francesa foi tomada por um wishful thinking, a hipótese de que o assassino fosse um europeu de boa cepa. Não era. Era um Mohamed. Enquanto sua identidade era desconhecida, Gilles Lapouge, o correspondente do Estadão em Paris, apostou numa doença tipicamente ocidental, o serial killer. E evocou desde Breivik até uma condessa húngara do século XVI:

“O homem da moto seria o clássico “serial killer”? Um fanático que mata por ideologia, como Anders Behring Breivik, o norueguês nazista que assassinou recentemente 69 jovens numa ilha? Ou um imitador dos 2 rapazes que, na escola de Columbine (Colorado), massacraram 12 estudantes e um professor em 1999? Evidentemente, as pessoas dirão que os serial killers costumam agir mais freqüentemente nos Estados Unidos, e a França não tem grande tradição nesse tipo de ação.

“Mas um ser delirante agiu na França: Francis Heaulme, o responsável pelos crimes, assassinou sete pessoas. Na 2.ª Guerra, o doutor Marcel Petiot matou 26 mulheres e guardou os cadáveres em sua casa. Mas os dois, embora entes abomináveis, não são os campeões mundiais. Eles não rivalizam com a condessa húngara Elizabeth Báthory que, no século 16, obcecada pela beleza, assassinou 610 jovens para banhar-se no seu sangue a fim de preservar sua juventude.

“Esse personagem desconhecido, ainda não identificado, embora tenha sido fotografado por cerca de 40 câmeras de segurança, tornou-se um fantasma de filme de terror, uma figura de pesadelo vagando pelas ruas das cidades, que poderá, quando quiser, fazer nova matança em pleno dia. Os criminologistas afirmam que os serial killers não param nunca”.

Ocorre que o assassino não era exatamente um serial killer. Muito menos um loiro europeu de olhos azuis. Nem era preciso ir tão longe no tempo para entender seu gesto. O celerado era de fato um Mohammed, francês de origem argelina, treinado em terrorismo no Paquistão e Afeganistão. Decepção no seio das esquerdas: o massacre pode favorecer a recandidatura de Sarkozy e mesmo a candidatura de Marine Le Pen.

Em declarações para o Nouvel Obs, Christian Etelin, o advogado que o defendeu em pequenos delitos, o descreve como “um jovem muito doce, com rosto de arcanjo, de linguagem policiada”, que sabia ser “cortês e elegante”. Para seu antigo empregador, era “umbom elemento, de uma habilidade fora do comum no trabalho e de uma grande amabilidade”. Em declarações ao Libé, a concierge de seu prédio o descreve como um locatário geralmente só, gentil, polido, a rigor boa gente em todos os sentidos. “Se você o visse, você lhe ofereceria um café. Parecia doce como um cordeiro e você lhe daria o perdão sem confissão”.

Para um de seus companheiros de bairro, “um mês ele era um bom muçulmano, na religião, sadiamente. No mês seguinte era totalmente uma outra coisa. Como se ele fosse duas pessoas”.

O doce cordeirinho de rosto de arcanjo revelou-se um assassino frio e eficiente. Seu único arrependimento é não ter matado mais gente. Vai ver que Mohammed matou não em seu mês de bom muçulmano. Mas no mês em que era outra coisa.

Março 22, 2012


 

THIS IS BRAZIL!

 

O Estatuto do Torcedor — lei 10.671/03 — proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios, ou arenas, como prefere o jornalismo contemporâneo. Proíbe ou proibia? Com a proximidade da Copa de 2014, o governo quer suspender a restrição imposta pelo Estatuto. Com isto, a venda de bebidas nos estádios ficaria liberada no âmbito federal, mas continuaria proibida nos estados que possuem legislação própria. É o caso de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul. A Fifa teria então de negociar com cada governo local o fim da restrição.

O governo quer ou queria? Difícil saber. Ora diz que quer, ora que não quer. Ocorre que a Copa, entre outros produtos, é patrocinada pela Budweiser. E quer vender seu peixe nos estádios. Mais ainda, com reserva de mercado: só a Budweiser poderá ser vendida. Para tranquilizar a Fifa, nos últimos dias o governo prometeu — in extremis, se for o caso — uma medida provisória que liberaria o álcool em todos os Estados. Mas atenção: só durante a Copa. Suspende-se a lei para atender os interesses do futebol. Passada a Copa, a lei volta a viger.

Em 2007, o então presidente Lula e os governadores dos 12 estados que vão abrigar os jogos de 2014 assumiram o compromisso de permitir a venda de bebidas nos estádios. A lei? Ora, a lei... A lei que se lixe. O que importa é a Copa.

Divertido país este nosso, onde a vigência de leis pode ser interrompida para atender a interesses econômicos. Mais que divertido, ridículo. O Brasil emergente se equipara à África. Em 2010, para atender à Fifa, o ministério da Indústria e Comércio da África do Sul liberou a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, até então proibida.

Se alguém pensa que isto é novidade no Brasil, é porque não tem memória. Memória que está faltando à imprensa tupiniquim. Nesta discussão toda, não vi jornalista algum lembrando o precedente levantado por Marta Suplicy, em 2003. Naquele ano, a então prefeita de São Paulo, renovou o contrato para a realização do Grande Prêmio de Fórmula 1 em São Paulo, que passou a vigorar até 2009. O problema é que várias das escuderias de F-1 eram patrocinadas por empresas fabricantes de cigarro.

O então presidente Lula desatou o nó górdio baixando medida provisória, a pedido de Marta. E assim foi revogada uma lei de 1996, que proibia a propaganda de cigarros em eventos esportivos. Foi também contrariada outra lei de 2000, que restringia a propaganda de cigarros aos pontos de venda.

Na ocasião, até mesmo José Serra, ex-ministro da Saúde, andou declarando que eventos de grande apelo internacional, como a Fórmula 1, têm grande importância turística para o país e que a solução seria aproveitar a mídia que geram para propaganda contra cigarros. Solução de jerico: permitir a propaganda de cigarros para gerar propaganda contra cigarros. O que não é de espantar em Serra. Em algum momento de sua campanha presidencial — lembro muito bem — esteve em Santa Cruz do Sul (RS) prometendo seu apoio à indústria do tabaco.

Semana passada, eu comentava a insólita decisão do Supremo Tribunal Federal, a de legalizar o caos legislativo para evitar o caos jurídico. Na ocasião se descobriu que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) não podia existir legalmente. Foi criado por medida provisória (MP), que por lei tem de passar por comissão especializada antes de ir ao plenário. Mas não passou.

O ICMBio foi criado pela lei 11.516, de 28 de agosto de 2007, em função de lobbies ianques que queriam criar um herói amazônico, na figura de um comunista obsoleto, que pretendia impedir o desmatamento através dos “empates” — manifestações em que os seringueiros protegiam as árvores com seus próprios corpos. A única coisa que o Instituto gerou até agora, pelo que se sabe, foi a candidatura de Marina Silva — o ET de Xapuri — à Presidência da República.

O Supremo Tribunal Federal (STF) — que tem entre suas funções julgar o que é constitucional ou não — decidiu então que o ICMBio tinha existência ilegal. E deu ao Congresso o generoso prazo de 24 meses para que aprovasse uma nova norma sob pena de a autarquia ser extinta. Até aí, o imbróglio teria conserto. Ocorre que, desde 2007, mais de 400 outras MPs haviam chegado ao plenário sem cumprir aquele requisito legal. Hoje, cerca de 50 MPs tramitam no Senado, sem terem passado pela tal comissão. Se a decisão prevalecesse elas caducariam imediatamente.

Então deixa estar como está. Uma lei foi revogada por ser descumprida sistematicamente. No Brasil, como diria Pessoa, leis são papéis pintados com tinta. Ou talvez papeizinhos, como diria Serra. São coisas que se revogam a qualquer momento e conforme os interesses do momento.

A partir deste ano da graça, que ninguém mais se queixe de projetos de lei que não passam no Congresso. Já existe um recurso infalível para fazer passar leis: chame a Fifa.

Por ocasião do Grande Prêmio Brasil em São Paulo, Bernie Ecclestone, o dirigente da F-1, demonstrou entender este país nosso:

— This is Brazil!

Março 23, 2012


 

PIB & FIB

 

Estudiosos dessa inefável ventura, a felicidade, estão preocupados em saber onde ela reside. Nas últimas semanas, fomos bombardeados por pelo menos três pesquisas. Para o economista britânico Richard Layard, em Happiness: Lessons From a New Science, a felicidade residiria no reino budista do Butão.

O Butão é um país isolado no Himalaia, cujo rei, Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck — o primeiro marajá da dinastia dos Wangchuk a auto-intitular-se rei — decidiu abandonar os obsoletos índices de Produto Interno Bruto e substitui-lo por um índice de Felicidade Interna Bruta. Abaixo o PIB, viva a FIB. Sua jogada de marketing parece ter agradado às eternas e azedas esquerdas, que acham que PIB não quer dizer nada. Não que acreditem nisso, mas como o PIB das nações capitalistas sempre foi superior ao das socialistas, então o PIB “é do mal”.

Mais dia, menos dia, o mal acabou entrando no paraíso. Não através da serpente, mas de algo muito mais insidioso, a televisão. Segundo Layard, “os butaneses puderam então ver a mistura comum de futebol, violência, traição sexual, propaganda, lutas e afins. Eles adoraram, mas o impacto em sua sociedade fornece um experimento notável sobre como a mudança tecnológica pode afetar atitude e comportamento. Logo se observou um aumento profundo em rompimentos familiares, crimes e consumo de drogas.”

Ou seja, a realidade circundante invadiu o país. O bode a ser banido para o deserto é a televisão. “Nos últimos anos, o governo butanês vem tentando banir do país a televisão, ou ao menos os programas mais odiosos.” Confesso que jamais vi justificativa tão linda e nobre da censura. Oremos para que o Supremo Apedeuta não a ouça nem se converta ao budismo. Poderia ser tentado a acabar com a violência, os crimes e o consumo de droga mediante uma medida singela, a proibição da televisão.

Segundo pesquisa feita por Layard nos EUA, quanto mais uma pessoa assiste televisão, menos feliz ela é. A solução então é simples: retire a televisão da sala e suas chances de ser feliz aumentarão. Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck parece ter conseguido vender ao Ocidente a idéia de que, para a felicidade geral das nações, é melhor renunciar ao presente e encerrar-se nas trevas do passado. Sob o repúdio à televisão, o livro do economista britânico esconde uma tese safada: informação é infelicidade. Do fundo de seu sarcófago, Stalin deve ter esboçado um sorriso: “finalmente fui entendido”.

De qualquer forma, não se entusiasme. Não é fácil visitar o país onde a felicidade mora. Só é permitida a entrada de pessoas autorizadas por Sua Majestade ou pelo ministério de Turismo. Essas pessoas devem efetuar o depósito de cerca de US$ 200 por dia a favor do governo. Qualquer semelhança com a velha União Soviética e a Intourist não é mera coincidência. Sua Majestade, a título de curiosidade, é casado com quatro mulheres, todas irmãs. Sua FIB deve ser muito alta.

Por outro lado, a New Economics Foundation e a ONG Friends of Earth criaram o Happy Planet Index, segundo o qual a felicidade teria estabelecido sua morada no arquipélago de Vanuatu — 83 ilhas no Pacífico, com 209 mil habitantes, na maioria pescadores e agricultores que vivem numa economia pouco além do nível da subsistência. Os vanuatuenses tiveram a melhor média de três indicadores básicos: esperança de vida ao nascer, bem-estar humano e nível dos danos ambientais causados ao país. Nesse índice, o Brasil ficou em 65º lugar, atrás da Colômbia, da Argentina, do Chile e do Paraguai — até de Bangladesh. Os Estados Unidos ficaram com o 150º lugar, um dos últimos entre 178 países. O Happy Planet Index quer evidenciar que “não é necessário esgotar os recursos naturais da Terra para se ter uma vida relativamente longa e feliz”. Seus critérios são, no fundo, um panfleto contra tudo o que de bom o Ocidente oferece.

Se os vanuatenses se sentem felizes numa economia que vai pouco além da subsistência, estão confundindo ignorância do mundo contemporâneo com felicidade. “Se estamos em um quarto escuro e dizemos que não há luz é porque alguma vez vimos a luz. Algo parecido acontece com a felicidade”, escreveu Swami Tilak. A pesquisa cheira à estratégia dos ecochatos que, uma vez morto o socialismo, querem empunhar novas bandeiras contra o capitalismo triunfante. Ora, uma comunidade de 200 mil pessoas isoladas num mar oceano, que vivem numa agricultura de mão pra boca, jamais reunirá aqueles elementos que tornam a vida prazerosa.

A universidade britânica de Leicester, por sua vez, elaborou o que seria o primeiro mapa mundial da felicidade, em estudo que reúne 177 países. Segundo este, os dinamarqueses e os suíços são os mais felizes. Depois destes, vêm os cidadãos da Áustria, Islândia, Bahamas, Finlândia e Suécia. Zimbabuanos e burundineses estão nos postos mais baixos e os brasileiros em 81º lugar. Dentro de meu conceito, já não digo de felicidade, que é muito relativo, mas de bem-estar, parece-me um mapa sensato. Que a vida é agradável na Dinamarca e Suíça, disto estou ciente. Que deve ser dura no Zimbábue e Burundi, disto também estou ciente, mesmo sem jamais ter postos os pés naquelas plagas.

Ao que tudo indica, as ideologias invadiram a geografia da felicidade e a disputam palmo a palmo. Como se felicidade tivesse geografia. Sentimento personalíssimo e subjetivo, não vejo muito bem como possa ser mensurada. Para populações que desconhecem uma gastronomia elaborada, qualquer gororoba que mate a fome deve dar uma sensação de paraíso. A gastronomia, a meu ver, é algo altamente espiritualizado. O gastrônomo não come para satisfazer a vil premência física, mas a uma necessidade do espírito. Para civilizações que desconhecem bons vinhos, suco de laranja deve saber a néctar dos deuses. Faltou a prova dos nove nas três pesquisas: investigar se os vanuatenses ou os butaneses continuariam sendo felizes em suas economias precárias após degustar os requintes do Ocidente.

Não vejo grandes FIBs sem altos PIBs. Os rosseaunianos adoradores da vida frugal que me desculpem. Altos PIBs significam mais opções de lazer, mais conforto no dia-a-dia, mais acesso à cultura e à saúde, medicina de ponta na hora da doença. E essa grande aventura do espírito — as viagens — ao dispor de qualquer veneta. Quanto à felicidade, é uma questão de ambições. Já vi mendigos rindo sozinhos em uma noite gelada, felizes com uma garrafinha de cachaça. E conheço não poucas pessoas, de muitas posses e com altos saldos bancários, mergulhadas na depressão e próximas ao suicídio. Conheço inclusive pessoa que comprou carro blindado para proteger sua vida e hoje teme olhar para o revólver, por medo de não resistir a matá-la.

Certa vez, no aeroporto de Cumbica, puxei conversa com uma moça que servia cafezinho. O trabalho é duro, oito horas em pé, circulando dentro de um brete. “Eu estou feliz da vida” — me dizia a moça — “Não fosse este trabalho, eu estaria na roça, no cabo da enxada”.

Conheci o cabo da enxada e já fui feliz com uma bicicleta. Cresci, me eduquei, zanzei pelo mundo e hoje, meu conceito de paraíso mudou, mas não deixa de ser singelo: uma manhã de inverno ensolarada, na terrasse de um café em Paris — pode ser também em Copenhague ou Zurique. Ou Madri ou Roma — temperatura de uns dez graus, jornais de dois ou três países, dois ou três livros para dar as primeiras folheadas e uma Leffe radieuse. Detesto a idéia de eternidade. Mas se for assim, topo. Buñuel tinha um desejo parecido. Gostaria de, depois de morto, sair de vez em quando da tumba, esgueirar-se lívido pelos muros, ir até uma banca de jornais e voltar com alguns debaixo do braço.

Claro que PIB não significa automaticamente felicidade. Prova disto são os altos índices de suicídio dos países desenvolvidos. Mas sem altos PIBs, a tal de FIB não passa de mais uma utopia das esquerdas. Há gentes de todo azimute tentando vender a idéia de que há virtudes na pobreza. São em geral pessoas ricas, que jamais viram a miséria de perto. Ou que só a viram como turistas.

Março 24, 2012


 

©2012 Janer Cristaldo

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

__________________
Setembro 2012

eBookLibris © 2012 eBooksBrasil.org