capa

eBookLibris

Quem dará o golpe no Brasil?

Wanderley Guilherme


 

Quem dará o golpe no Brasil?
Wanderley Guilherme
Volume 5 da coleção Cadernos do Povo Brasileiro
1962, Editora Civilização Brasileira, Rio

Capa Eugênio Hirsch ©

Fonte digital
http://www.fpabramo.org.br

© 2012 Wanderley Guilherme


 

ÍNDICE

Introdução
O que é o golpe
O golpe de “esquerda”
O caráter específico do golpe atual no Brasil
Primeiro equívoco sobre o golpe
Segundo equívoco sobre o golpe
Diferença entre ditadura “legal” e ditadura via golpe
Qual o motor do golpe?
É provável a ditadura militar?
Razões de ordem externa
Razões de ordem interna
O que torna possível o golpe militar?
Uma condição para o golpe militar
Outra condição para o golpe militar
Que é a ditadura do governo forte?
A preparação ideológica do golpe
As condições para a ditadura do governo forte
De onde virá a autoridade do “governo?”
Em que condições pode ser vitorioso o golpe para instalar o governo forte?
Primeira condição
Segunda condição
Como se opor ao golpe em marcha no Brasil


 

 

INTRODUÇÃO

 

Em agosto-setembro de 1961 houve a mais recente tentativa organizada para instalar no País uma ditadura de direita. De então para cá sucederam-se os atentados, as bombas e as ameaças, numa demonstração evidente de que a trama golpista permanece armada. E permanece por quê? Fundamentalmente, porque permanecem sem solução os problemas sociais que deram origem a ela. Eis o que é necessário ter presente. A tentativa de golpe não resulta da paranóia de alguns grupos de indivíduos, civis ou militares, mas da situação social brasileira, no momento presente, que conduz a minoria privilegiada do País a esse tipo de comportamento político. Pouco importam as aparências exteriores de que tal comportamento se revista. Pouco importam os pretextos de superfície (a condecoração do líder cubano Che Guevara, por exemplo) e os acidentes secundários; o golpe é sempre um fenômeno social e, em conseqüência, são suas causas sociais que devem ser buscadas e combatidas.


 

 

O QUE É O GOLPE?

 

Em primeiro lugar, deve-se observar que a ameaça de golpe não é fenômeno recente na sociedade brasileira; ao contrário, manifesta-se todas as vezes em que o movimento de ascensão popular recobra impulso: seja quando esse movimento se destina à defesa das riquezas do país – luta em torno da Petrobrás, agosto de 54 –, seja quando as forças do povo estão a ponto de ganhar maior parcela de poder político – agosto de 61, luta pela legalidade –, seja, enfim, quando as massas trabalhadoras se organizam em torno de reivindicação que afeta a situação vigente – a arregimentação das massas rurais em torno das ligas camponesas. Em tudo isto o que há de constante é que a ameaça golpista surge sempre que o povo manifesta em atos o descontentamento e a insatisfação que traz na consciência. Convém, por conseguinte, determinar a quem afeta, na ação prática, esse descontentamento e essa insatisfação populares.

Quando o povo se organiza, e sai às ruas, ou mesmo quando sai às ruas desorganizadamente, em defesa das riquezas nacionais, a quem pode incomodar um movimento dessa natureza? – Evidentemente que o povo nas ruas por um objetivo dessa espécie só pode ser inconveniente àqueles que têm como meio de vida a malversação das riquezas nacionais, a esses e a ninguém mais. Ora, esses constituem a absoluta minoria da população brasileira, de onde se conclui sem dificuldade que, no exemplo considerado, a manifestação do povo se faz a favor da maioria da população e contra a pequena minoria que vive da traição à maioria.

E quando os estudantes e os trabalhadores ganham as ruas para defender o respeito à democracia que é, no essencial, o respeito ao direito que tem todo povo de fazer valer suas reivindicações fundamentais, a quem pode perturbar um movimento dessa espécie? Claro que a exigência de democracia, assim compreendida, sem mistificações, só pode ferir aqueles que temem as reivindicações do povo, esses e ninguém mais. E é mais claro ainda que é a maioria absoluta da população brasileira que tem reivindicações fundamentais a fazer: são os trabalhadores, os camponeses, os estudantes, os pequenos funcionários, os artesãos, os empregados no comércio; como é do mesmo modo claro que só pequeníssima parte da população brasileira pode temer as reivindicações do povo. Logo, quando se esboça um movimento em defesa da democracia, tal como se esboçou em agosto e setembro de 61, é esse um movimento em favor da maioria do povo contra a pequena minoria que vive de submeter a maioria.

E quando, finalmente, a massa camponesa desperta da secular passividade que a caracterizava e se organiza com o objetivo de alterar a estrutura agrária brasileira, a qual é responsável não somente pela miséria da população trabalhadora rural, mas igualmente responsável, juntamente com outros fatores, pelo asfixiante encarecimento da vida nas cidades, a quem pode enfurecer esse movimento? – Uma aspiração tal como a dos camponeses só inquieta aqueles que vivem da exploração dos camponeses, no campo, ou seja, os latifundiários, e da exploração da fome do povo, nas cidades, ou seja, os comerciantes ligados ao latifúndio agrícola. E não se precisa saber somar para perceber imediatamente que os latifundiários, mais os comerciantes-tubarões das cidades, constituem, ainda assim, ínfima parcela da população. Conseqüentemente, quando se organiza uma luta camponesa com os objetivos aqui descritos, é essa uma luta também em favor da maioria contra a pequeníssima minoria que vive da espoliação da maioria.

Por esses exemplos se verifica que todos os movimentos políticos de massas mais significativos ocorridos nos últimos tempos, por diversos que tenham sido na sua forma, possuem um conteúdo essencial idêntico, qual seja o de estarem destinados a defender a maioria do povo, submetido pela minoria dominante . Por outro lado, se a cada movimento popular corresponde uma ameaça de golpe, torna-se evidente que, não obstante os variados pretextos, sob cuja capa aparece, a ameaça golpista tem também um conteúdo essencial permanente: a defesa dos privilégios da minoria dominante contra as reivindicações e os interesses da maioria do povo.


 

 

O GOLPE DE “ESQUERDA”

 

Este é o conteúdo do golpe que se está armando no Brasil. É necessário que ninguém se esqueça disto, em nenhum momento, pois sendo tal o seu conteúdo permanente, logo se percebe contra quem é dirigido. O golpe que ora se trama no Brasil representa um golpe contra o povo brasileiro, em geral, e contra sua vanguarda mais aguerrida, em particular, quer dizer, contra os trabalhadores, os camponeses e estudantes. É absolutamente indispensável que ninguém perca de vista este princípio, pois já se escutam os cantos de sereia, acenando com a possibilidade de um golpe de esquerda, entendendo-se como tal um golpe executado em benefício do povo. Esta é uma chantagem posta em circulação pelos grupos reacionários justamente para aquebrantar a disposição de luta do povo, confundi-lo e dividi-lo, nesta hora em que sua unidade e disposição de luta constituem os fatores mais resistentes ao avanço golpista, os mais insensíveis às seduções dos privilegiados. Que se denuncie por todos os meios e modos a mistificação representada pelo fantasma de um eventual golpe de esquerda, que nenhum de seus promotores define concretamente. E tudo define muito simplesmente porque as medidas concretas que venham a beneficiar o povo não podem ser conquistadas por artimanhas golpistas já que o golpe, para ser vitorioso, tem como elementos essenciais o inesperado e a rapidez com que for executado, rapidez e surpresa que supõem, como condição necessária, a traição. Em todo golpe há sempre alguém que trai alguém ou alguma coisa, pois não há golpe sem traição, enquanto as conquistas efetivas e duradouras do povo não são, nem podem ser, conquistas da traição, mas da luta conseqüente e diária em que se empenha. Precisamente por isto o poder conquistado pelo golpe está inevitavelmente condenado a ser perdido, mais cedo ou mais tarde, enquanto as conquistas reais do povo são historicamente irreversíveis.

Todavia, não devemos nos iludir sobre o que foi dito acima, nem romantizar os fatos da história. A impossibilidade histórica de um golpe de esquerda não significa de modo algum que não exista, em absoluto, a possibilidade de um golpe que, a curto prazo, viesse beneficiar determinadas camadas do povo – e até mesmo seus elementos mais progressistas. Não se trata de uma impossibilidade absoluta. É perfeitamente viável um golpe contendo em seu bojo algumas medidas imediatamente compensatórias para o povo. Mas o que não é absolutamente possível é que o poder assim conquistado seja capaz de atender até o fim a todas as reivindicações populares, as quais se vão acumulando historicamente. Haverá um momento em que o poder não será capaz de atender às exigências do povo assumindo, então, caráter reacionário e direitista. E por que terá de ser assim? – Simplesmente porque um golpe de tal natureza só é possível quando há certa aliança entre setores da minoria privilegiada e setores da maioria submetida. São os setores da minoria privilegiada que possibilitam o golpe – pois detêm as condições de poder para isso – e são os setores da maioria submetida que dão ao golpe executado os fundamentos sociais capazes de sustentá-lo temporariamente.

Esta é a origem dos chamados golpes de esquerda e nela vamos encontrar a raiz das medidas que, a curto prazo, historicamente falando, beneficiam camadas da maioria submetida. Essas medidas devem-se à participação de setores da maioria submetida na consumação do golpe, participação sem a qual este tipo de golpe não subsistiria. O que há de progressista, portanto, nos chamados golpes de esquerda deve-se exclusivamente à colaboração de setores populares nessa operação política.

Mas existe o outro lado da medalha a ser examinado: o lado constituído pelos setores da minoria privilegiada participantes da mesma operação. É este lado, este aspecto, sempre contido na origem dos chamados golpes de esquerda, o responsável pela transformação futura e inevitável do golpe de progressista em reacionário. Evidentemente, as reivindicações populares não irão parar no tempo; ao contrário, tendem a se acentuar, pois não existe outra coisa que as faça cessar senão seu atendimento. Esse atendimento, porém, por parte dos setores privilegiados, tem um limite, além do qual aceitar as reivindicações populares significaria deixar de ser setor socialmente privilegiado. Nesse exato momento, o poder constituído transforma-se de progressista em reacionário. Importante, sobretudo, é assinalar que esta transformação revela-se inevitável, pois é determinada pela própria origem histórica do fenômeno: aliança de setores da maioria submetida com setores da minoria privilegiada. Todo o problema consiste, na verdade, em prever o maior ou menor prazo em que essa transformação se fará, mas se fará certamente. Qual o ensinamento que o povo deve tirar desses fatos, sobretudo sua vanguarda? – Fundamentalmente este: o chamado “golpe de esquerda”, quando não é manobra divisionista da minoria privilegiada, constitui, seguramente, a abertura histórica para o golpe de direita. Assim sendo, torna-se imperioso denunciar sempre, e a toda hora, os cantos de sereia que seduzem o povo com a possibilidade de um golpe de esquerda. O golpe é sempre, cedo ou tarde, contra o povo, e por este motivo, por este radical motivo, é que as forças populares não devem esmorecer um só instante na luta.

Neste instante, o povo brasileiro vê-se ameaçado por novo golpe. Um golpe que significa a extrema defesa dos privilégios da minoria dominante, contra a maioria submetida. Para defender-se, as forças populares devem estar avisadas, suficientemente avisadas, sobre o conteúdo de qualquer golpe e o papel que lhes cabe em tal eventualidade. Mas isto não é o bastante. Faz-se necessário ainda que, sabendo em que consiste o golpe, saibam também qual a forma que pode eventualmente assumir, para melhor combatê-lo. É necessário, pois, analisar detidamente qual a forma particular de golpe que se está tramando atualmente no Brasil e quais os caminhos para bem combatê-lo eficazmente.


 

 

O CARÁTER ESPECÍFICO DO GOLPE ATUAL NO BRASIL

 

Para bem compreender o caráter específico do golpe, da ditadura que ora se projeta sobre o Brasil, é necessário que as forças do povo não percam de vista em momento algum os verdadeiros interesses em jogo, quais os lances políticos, ou até mesmo militares, que esses interesses podem empresar, a fim de não serem levadas, ou por manobras do reacionarismo direitista, ou por momentânea falha no discernimento político dos fatos, a combater fantasmas inconsistentes, perigos artificialmente criados, enquanto o verdadeiro fantasma e o verdadeiro perigo conquista posições, arrebatadas ao povo, e avança reto e implacável em direção a seus objetivos reais. As forças populares correm sempre o risco de inutilmente dispender esforços e energias quando se deixam levar por palavras de ordem equivocadas, ou só em parte verdadeiras, do que se aproveita a minoria dominante para ganhar terreno. Este desvio de atenção é possível e explica-se, entre outros motivos, pelo fato de ser a minoria privilegiada a detentora dos meios de informação e divulgação a respeito dos acontecimentos. Pode, por isto, escamotear os fatos, inventá-los, interpretá-los segundo lhe convém; em uma palavra, a minoria privilegiada dominante tem condições reais para distrair a atenção e os esforços das forças populares, e seguramente não deixará de usar essas condições. Este perigo, portanto, é real, sendo da máxima importância que os elementos esclarecidos do povo estejam atentos a e1e, pois nesta luta o menor erro de cálculo pode ser fatal.


 

 

PRIMEIRO EQUÍVOCO SOBRE O GOLPE

 

Existem dois equívocos principais, relativos à característica específica do golpe atual no Brasil, que as forças populares não podem cometer em hipótese alguma. O primeiroconsiste em considerar que a ditadura armada contra o povo, neste momento, será um sistema de governo absolutamente diferente do que ora existe, assim como a diferença entre a água e o vinho, o sol e a chuva, o trabalhador e o ocioso. A diferença entre a ditadura que ameaça o povo e o governo que possuímos não é a mesma que se dá entre a água e o vinho, mas apenas a que separa um vinho suave de outro, só que mais azedo. A compreensão deste fato é decisiva para as forças do povo, pois dela depende a forma de luta e a própria possibilidade de vitória nessa luta.

Por que dizemos que não há diferença radical entre a ditadura que nos ameaça e a democracia, tal como a encontramos no Brasil? – Pela razão fundamental de que a democracia, tal como existe no Brasil, também é uma ditadura: ditadura econômica e ditadura política. Esta é a conclusão que as forças do povo hão de tirar quando compreenderem corretamente os fatos e, para isso, é necessário que os representantes de sua vanguarda analisem os fatos como eles são na realidade e, não, como a minoria privilegiada diz que eles são.

Já se viu que a ditadura das classes dominantes é, no essencial, a defesa dos privilégios da minoria dominante contra os interesses da maioria submetida. Privilégios econômicos e privilégios políticos. Pois bem: quando se sabe que mais da metade, muito mais da metade da população trabalhadora brasileira é analfabeta, e o sistema que vigora entre nós, a que chamam de democracia, proíbe que os analfabetos votem, o que está fazendo tal sistema senão defender, politicamente, os privilégios da minoria afortunada contra os interesses da maioria? Não é mais do que evidente que, se os camponeses, por exemplo, pudessem votar, mesmo sendo analfabetos, como são na sua quase totalidade, votariam contra os latifundiários que os oprimem? Por isso, quando se proíbe que os camponeses votem não se estará por acaso defendendo os privilégios da minoria constituída pelos latifundiários contra a maioria representada pelos camponeses? E não é isso, no essencial, uma forma de ditadura, manifestando-se no terreno político? Conseqüentemente, o sistema sob o qual vive o povo brasileiro – e a que chamam erradamente de democracia, é também, no fundo, uma ditadura, no sentido em que defende os privilégios da minoria contra os interesses da maioria.

E quando se verifica que o direito de greve do povo trabalhador – que é a sua mais pura forma de manifestação política – não foi até hoje regulado, e quando o for será certamente de acordo com os interesses dos empresários e capitalistas e, não, segundo a vontade desses trabalhadores, os quais não serão chamados para decidir sobre a maneira de atuação política que lhes é própria e de ninguém mais, quando isto acontece, conforme se observa no regime sob o qual vivemos, que está de fato acontecendo senão que se está negando ao povo o direito de manifestar-se politicamente? E a quem aproveita esta condição a não ser àqueles contra os quais as greves se fazem, isto é, a minoria privilegiada dominante? Quando o regime sob o qual vivemos – e a que chamam incorretamente de democracia – recusa ao povo o direito de externar livremente sua opinião política, esse regime está, de fato, defendendo os privilégios da minoria contra os interesses da maioria. E quando um regime age dessa maneira, é esse um regime democrático ou uma ditadura? – É claro que o regime sob o qual vive o povo brasileiro constitui, no fundo, uma ditadura, pois admite medidas discriminatórias e opressivas contra a maioria do povo, em favor da minoria privilegiada.

Por outro lado, não é difícil compreender que, no campo, o bem econômico fundamental, além do homem, é a terra, pois é ela que o homem trabalha para produzir os gêneros de que necessita. E se essa terra, sem a qual nada se produz no setor agrícola, está nas mãos de pequeno número de latifundiários, enquanto a maioria absoluta da população rural nada possui senão seu trabalho, trabalho esse que precisa da terra para poder converter-se em bens utilizáveis, não é claro que aquele pequeno número de latifundiários, porque são donos da terra, dominam também o trabalhador? Que poderá fazer o miserável camponês que necessita trabalhar para subsistir, diante do poderoso senhor da terra, sem cuja permissão não conseguirá trabalhar? E um regime – dito democrático – que admite uma situação como esta, e não só admite como a considera legal e a defende em suas leis, não estará defendendo o privilégio da minoria contra os interesses vitais da maioria? E não consiste nisto, no essencial, a ditadura, manifestando-se agora no terreno econômico? Sendo assim, o regime sob o qual vive atualmente o povo brasileiro é também, no fundo, uma ditadura, pois defende os interesses da minoria contra os interesses da maioria.

Nas cidades, por sua vez, acham-se situadas as grandes indústrias, nas quais o bem econômico básico, além do homem, é a máquina, sem a qual a maioria dos objetos de uso que nos cercam não existiria. Os trabalhadores das indústrias sabem perfeitamente disto, mas também o resto do povo precisa saber que, sem o trabalho do operário nas máquinas das indústrias, não existiriam sapatos, camisas, lâmpadas, cigarros, mesas, pratos, talheres, copos etc., ou seja, quase a totalidade das coisas que utilizamos para viver como civilizados. A civilização é produto do trabalho, pois a própria máquina é um resultado de trabalho humano anterior. Eis o que se faz mister que todo o povo saiba, a fim de compreender que, sem o trabalho do operário nas máquinas, viveríamos nus, dormiríamos sob as árvores e comeríamos com as mãos, tal como os homens préhistóricos.

Sendo assim, dispensam-se novos argumentos para demonstrar que, do mesmo modo como o latifundiário domina o camponês, porque possui a terra, nas cidades, por seu turno, quem possui a máquina domina o operário. É o dono da máquina quem diz ao operário o que deve fazer, onde fazer, como fazer, quando fazer etc. E se o operário considera injusto, errôneo o que lhe mandam fazer, poderá ele por acaso resistir ao dono da máquina, sem a qual não trabalha, e por conseguinte morre? – Quando um regime admite esta situação, considera-a legal e a defende em suas leis, que nome deve ter: democrático ou ditatorial? – Sem ser preciso muito meditar se há de compreender que também as cidades provam que o regime sob o qual vive o povo brasileiro é um regime ditatorial, manifestando-se, neste exemplo, no terreno econômico.

Se tudo isto representa a verdade – e os fatos são por demais evidentes para serem negados –, então é imperioso que as forças do povo compreendam que não existe diferença radical entre a ditadura que nos ameaça e o regime sob o qual vivemos, pois este é também, no fundo, uma ditadura econômica e política. Quer isto dizer que não há nenhuma diferença entre o regime atual e a ditadura que se está armando no Brasil? – De modo algum. Existem diferenças entre o regime atual e a ditadura que certos setores da minoria privilegiada desejam implantar. Trata-se, porém, de compreender que essas diferenças não são radicais, não são tão profundas como as que existem, por exemplo, entre a minoria privilegiada e a maioria submetida. A diferença que existe entre a ditadura atual e a que se quer implantar é uma diferença de grau, como a que existe entre um irmão e um primo, e não como a que existe entre um homem e uma mulher, sejam primos ou sejam irmãos. É absolutamente indispensável que o povo compreenda isto: em sua luta contra a ditadura que as forças reacionárias desejam implantar, não pode confiar demasiadamente na ditadura em vigor, pois essa ditadura que aí está, essa ditadura sob a qual vive o povo, demonstra ser incapaz de levar até o fim a luta contra a outra, contra a que se está armando. Só o povo, guiado por seus setores mais avançados – os trabalhadores, os camponeses e os estudantes – é capaz de combater até as últimas conseqüências a ameaça de golpe, porque o golpe, como se indicou, acaba sendo sempre contra as forças populares, e jamais inteiramente contra a minoria dominante.

Isto não quer dizer, evidentemente, que as forças do povo não devam contar de maneira nenhuma com o regime atual em sua luta contra a ditadura ameaçadora, nem muito menos quer dizer que, se ambas são ditaduras, não se deva lutar contra a que está por vir. Seria esta uma posição equivocada e simplista que as forças do povo devem evitar, pois há distinções entre as formas de ditadura que, embora não sendo radicais, nem por isso deixam de ser importantes para a luta que o povo trava contra seus inimigos. A vanguarda do povo jamais deve se afastar da particularidade dos fatos, seduzida pelas soluções simplistas. Se existe diversidade entre as formas de ditadura, essas diferenças devem ser analisadas em favor da luta, na medida em que isto for possível, sabendo-se que a possibilidade dos fatos está nos fatos e não na cabeça dos homens. De outro lado, também deve ser evitado o erro oposto que seria lutar imediatamente contra a ditadura atual, pois esta decisão só pode ocorrer a quem analise os fatos a partir de fórmulas previamente esboçadas. A luta do povo não se trava apenas contra a ditadura, em geral, mas contra a forma de ditadura particular que mais o espolie e submeta, e no caso presente a ditadura mais espoliadora e mais despótica é a que está em marcha, a que se acha em formação e, não, a que está formada. A posição justa da vanguarda do povo deve ser a de preparar-se para liquidar com todas as ditaduras da minoria dominante, lutando contra a ditadura em marcha, utilizando-se das diferenças que a distinguem da ditadura existente, sem, no entanto, se deixar enganar sobre a capacidade de luta do sistema atual, pois este seria um dos dois equívocos fundamentais a que estão expostas as forças populares. Analisemos, agora, o outro equívoco capital em que podem incorrer as forças populares.


 

 

SEGUNDO EQUÍVOCO SOBRE O GOLPE

 

O segundo equívoco consiste em identificar sistematicamente a ameaça de golpe, de ditadura, com o golpe militar, com a ditadura militar. O golpe, como recurso extremo da minoria dominante para assegurar seus privilégios diante da maioria submetida, não é sempre e necessariamente um golpe militar, uma ditadura militar, mas pode assumir as mais diversas formas, dependendo das circunstâncias concretas em que for consumado. Eis aí um ponto que necessita ficar perfeitamente esclarecido na consciência das massas, pois nota-se a tendência, entre as forças populares, a identificar perante o povo, sistematicamente, ditadura e ditadura militar, a ponto de só se preocuparem com os sintomas de eventual golpe militar, descuidando, e levando o povo a descuidar-se, de outros sintomas que indicam a possibilidade de golpes de tipo diferente.

Precisamos reconhecer que há uma tradição histórica, não só no Brasil, mas em toda a América Latina, para justificar essa identificação. Na verdade, a história dos povos latino-americanos mostra-se farta em golpes sob a forma de junta militar – o que colabora para engendrar na consciência do povo a imagem indistinta que associa golpe e junta militar. Mas é forçoso reconhecer também que a história não pára, que as condições do mundo evoluem e que mesmo a situação interna dos países latinoamericanos, em particular do Brasil, não é idêntica à de 30, 20 ou mesmo 10 anos atrás. Não aproveita à luta do povo essa identificação simplista de ditadura e ditadura militar, e não aproveita por várias razões. Em primeiro lugar, porque aprofunda na consciência do povo um conceito que só em parte se revela justificado e objetivo; em segundo lugar, porque essa identificação não corresponde à análise correta do recurso extremo da minoria dirigente, que é o golpe; e, em terceiro lugar, porque dessa identificação pode derivar uma tática de luta equivocada, organizando-se as massas contra um inimigo insubsistente – quando o golpe iminente não for de tipo militar –, permitindo que o golpe real em marcha apunhale o povo pelas costas. Em conseqüência, torna-se imperioso lutar contra as simplificações levianas e apressadas e, sobretudo, erradicar da consciência popular o falso conceito que identifica ditadura com ditadura militar. Para tanto, faz-se mister saber não apenas o que há de idêntico entre a ditadura instalada por intermédio de eleições corrompidas, como a que existe atualmente no Brasil, e a ditadura instalada por intermédio de um golpe, mas, principalmente, qual a diferença que há entre uma e outra, porque justamente no esclarecimento dessa diferença está toda a chave para compreender por que o golpe não é, sempre e necessariamente, golpe militar, entendendo-se por golpe militar a dominação direta do aparelho de Estado pelos militares.


 

 

DIFERENÇA ENTRE DITADURA “LEGAL” E DITADURA VIA GOLPE

 

A diferença principal que existe entre a ditadura instalada pelo mecanismo das eleições corrompidas e outra, instalada por intermédio de um golpe, é que, na segunda, a minoria privilegiada dirigente se vê obrigada a rasgar suas próprias leis. Esta é a diferença essencial que as forças do povo, principalmente sua vanguarda aguerrida, devem compreender de tal modo que não a esqueçam em nenhum momento da luta. O golpe, seja de que tipo for, significa sempre alterar as regras do jogo político estabelecido pela minoria dirigente, regras e leis que apresentava ao povo, no afã de submetê-lo permanentemente, como imutáveis e intocáveis. Não é sempre com fundamento no império da lei que se reprimem as greves dos trabalhadores? Não é sempre apelando para os estatutos legais do país e das instituições que se impedem os pequenos funcionários públicos, por exemplo, de manifestarem sua revolta ante a miséria crescente a que estão sendo atirados? Não se afirma sempre, afinal, que a ordem existente é justa porque deriva da lei, como se esta lei correspondesse, por sua vez, à ordem ideal, não obstante o fato de ter sido feita por homens? E que, por isso mesmo, todos a ela devem se submeter, ricos e pobres, dominados e dominantes? – Pois bem: são essas mesmas leis e regras, estabelecidas pela minoria dominante, e que não podiam ser violadas pelo povo sem risco de penas severas, que começam a ser violadas pela própria minoria dirigente, quando se instala uma ditadura por intermédio de um golpe. Começa-se por rasgar as leis que regulam a conquista do poder político, no caso os estatutos eleitorais, e daí por diante, dependendo das necessidades, rasgar-se-ão quaisquer leis. O povo não se deve iludir jamais a respeito disto, acreditando em regimes de emergência e de exceção, os quais se apresentam sempre como passageiros.

Esta é a diferença principal entre a ditadura sob a qual vivemos e aquela sob a qual nos querem fazer viver. Na ditadura em vigência, a pequena minoria dirigente pauta sua conduta pelas leis imperantes, enquanto nas ditaduras via golpe a minoria privilegiada começa por violar as leis que ela própria havia promulgado. Mas isto ainda não é tudo quanto o povo precisa compreender sobre as diferenças entre a ditadura que aí está e a ditadura que ameaça instalar-se. Indispensável é que se procure estudar e compreender porque, em determinado momento, a minoria dominante, ou setores dela, vê-se compelida a violar as leis que ela mesma havia criado. Eis a questão magna do problema da ditadura, instalada por intermédio de um golpe, questão que as forças populares devem resolver de modo absolutamente claro.


 

 

QUAL O MOTOR DO GOLPE?

 

Qual o motor do golpe? o que determina a minoria dominante, ou setores dela, a violar suas próprias leis, instaurando assim uma ditadura de novo grau? – Ora, se sabemos, se o povo está absolutamente seguro, de que o golpe é o recurso extremo de que lança mão a minoria dominante, visando assegurar os privilégios que possui, então se torna claro que o golpe surge inevitavelmente como única alternativa para a minoria privilegiada, quando os quadros “legais” da ditadura antiga se tornam duvidosos ou ineficazes para a manutenção desses privilégios. Eis o motor fundamental do golpe. Na verdade, é porque a minoria dominante, ou setores dela, não vê mais o que fazer para continuar como minoria dominante, nos quadros existentes e com as leis por ela própria estabelecidas, que se criam as condições objetivas para o projeto e para a tentativa de violar e rasgar essas leis, instaurando-se, então, uma ditadura de novo tipo, que assegure a permanência da dominação da minoria.

Sendo assim, interessa profundamente às forças populares, principalmente à sua vanguarda, determinar quais as razões que tornam qualquer ditadura “legal” obsoleta nas suas leis e nas suas instituições, obrigando à sua violação pronta e acelerada. Desde logo, é evidente que se trata de um conjunto de razões que, no caso específico do Brasil, serão a seu tempo analisadas. Do ponto de vista das forças populares a razão predominante é o acúmulo de poder que vêm essas mesmas forças populares conquistando, nos quadros “legais” vigentes, a ponto da minoria dominante sentir-se ameaçada nos seus privilégios, caso não se estabeleçam novos quadros “legais”, que lhe permitam retomar o poder perdido para as forças populares. Esta a razão principal, do ponto de vista do povo, que leva a minoria privilegiada a começar a rasgar suas próprias leis. Acentuo ser extremamente importante que as forças populares guardem este aspecto da questão, pois, a partir do ponto de vista de seus interesses mais profundos e permanentes é isto o que fundamentalmente está em jogo, não obstante todas as demais condições que propiciam a alternativa do golpe: trata-se de recuperar, no mais breve prazo de tempo possível, o poder acumulado pelo povo para si e, simultaneamente, assegurar em novos moldes “legais”, a permanência da dominação da minoria sobre a maioria. A envergadura do golpe, portanto, a forma sob a qual se executa, seu alcance e profundidade, não estão determinados a priori, mas são definidos pelas necessidades objetivas sentidas pela minoria dominante, com o objetivo de manter essa dominação. Em tais condições, a forma, o tipo do golpe, dependem do conjunto das condições concretas da sociedade e do modo pelo qual a minoria dominante se vê ameaçada. Não é possível, na vida das sociedades, dar-se um golpe quando se quer, ou o golpe que se quer mas, do ponto de vista da minoria privilegiada, o golpe possível, o qual é delimitado pela correlação de forças sociais, naquele momento.

Tendo em vista todos esses aspectos do problema faz-se necessário denunciar toda pregação que vise a inculcar nas massas brasileiras a imagem de que o golpe é, sempre e necessariamente, um golpe militar. Trata-se de uma noção contraproducente, pois não forja na consciência das forças populares a correta disposição para a luta. É necessário levar ao povo o esclarecimento sobre as ameaças reais que pesam sobre ele, a fim de criar a consciência capaz de repeli-las. Nesse sentido, deve-se estudar as condições atuais da luta social, as quais indicam que o golpe que está em marcha, no Brasil, tende mais para uma ditadura sob a forma de governo forte, do que para uma ditadura sob a forma de junta militar.


 

 

É PROVÁVEL A DITADURA MILITAR?

 

Há, como se disse, uma corrente entre as forças populares que tende à simplificação de identificar golpe com golpe militar, retirando da complexidade com que se apresenta a vida e a luta social brasileiras, apenas alguns fatos, isolando-os do conjunto da situação objetiva. Claro que há possibilidade de encontrar exemplos em apoio da tese de que o golpe que se está armando é um golpe militar, mas já disse um grande líder popular que, com a extrema complexidade dos fenômenos da vida social, pode-se sempre encontrar exemplos ou dados isolados em apoio de qualquer tese. O que importa, porém, não são os fatos isolados, mas o conjunto, entrelaçados, implicados uns nos outros, explicando-se uns aos outros, pois só quando se compreende o conjunto, quer dizer, só quando as camadas esclarecidas do povo compreendem a razão por que o conjunto dos fatos se entrelaça do modo como se observa, e não de outro, é que terá condições de perceber com justeza qual o caminho que a reação da minoria dominante vem seguindo, com o objetivo de assegurar essa dominação.

Ora, o estudo do conjunto da situação brasileira atual mostra que o golpe em marcha no Brasil não tende a assumir a forma de um golpe militar. À admissão desse tipo de golpe, na verdade, opõem-se duas ordens de ponderáveis razões: razões de ordem externa, internacionais, e razões de ordem interna, nacionais. Compete aos setores progressistas do povo analisar com bastante cuidado essas razões, de que modo evoluem, e como se condicionam mutuamente.


 

 

RAZÕES DE ORDEM EXTERNA

 

A análise, cuidadosa dessas razões há de mostrar que o brasil como nação capitalista que é, acha-se integrado no sistema mundial do capitalismo. Não importam as divergências entre o Brasil e outras nações capitalistas; não obscurecem o fato de que o Brasil está integrado no sistema mundial do capitalismo. Existem divergências entre a França e a Alemanha, entre os Estados Unidos e a Inglaterra, e nem por isso todos esses países deixam de compor o sistema capitalista mundial. Quer isto dizer que as diferenças não importam? – De maneira alguma, pois é justamente uma dessas diferenças que vai fundamentar uma das razões internacionais que dificultam o golpe, sob sua forma militar, no Brasil. Qual é essa diferença? – eis o que o povo necessita compreender definitivamente.

O sistema capitalista mundial é cortado de alto a baixo por uma oposição profunda: de um lado estão as nações capitalistas tornadas imperialistas, isto é, dominadoras de outras nações; de outro lado, as nações de estrutura interna dominante, capitalista, sofrendo porém a dominação imperialista, isto é, as nações dominadas. O Brasil, como nação capitalista, forma no bloco particular das nações capitalistas dominadas pelo imperialismo, isto é, por outras nações capitalistas mais poderosas, econômica e politicamente. Esta é uma verdade que precisa penetrar pelos olhos e pelos ouvidos do povo até atingir sua consciência. Tem valor decisivo mesmo para o povo compreender que o Brasil é uma nação dominada econômica e politicamente por outras nações. Sem alcançar isto o povo brasileiro não conseguirá compreender profunda e realmente nada do que se passa na sua vida interna e nas suas relações internacionais. E é necessário também que as forças populares saibam que o imperialismo dominante em nosso País é o imperialismo norte-americano, que são os desejos e os interesses desse imperialismo que estão por trás dos mais importantes acontecimentos em nossa Pátria, quer econômicos, quer políticos. Convém explicar ao povo, sem dúvida, que isso não significa de maneira alguma que tudo, absolutamente tudo, que acontece em nosso País, se produza por ordem do imperialismo. Não. Nem tudo acontece por ordem do imperialismo, mas certamente nada, absolutamente nada, pode acontecer que não seja, no fundo, contra ou a favor do imperialismo. Tem-se de explicar também que ocorrem mais coisas a favor do que contra. Há sobretudo uma coisa que jamais pode acontecer contra o imperialismo em nossa Pátria, enquanto estivermos integrados no sistema capitalista mundial: é aquilo que, sendo contra o imperialismo, em nossa Pátria, seja, simultaneamente, no plano internacional, contra o capitalismo. Enquanto o Brasil fizer parte do sistema capitalista mundial, nada pode ocorrer internamente que enfraqueça, internacionalmente, esse sistema – eis aí algo que o povo precisa compreender e não olvidar jamais. E para que compreenda isto com facilidade basta mostrar-lhe não ser possível, que é contraditório, tornar propriedade do povo, por exemplo, as minas da Belgo-Mineira, ou tornar as terras que atualmente pertencem à Anderson Clayton propriedade comum de todos os que nela trabalham, e continuar a pertencer ao sistema mundial do capitalismo.

Mas não são apenas certas medidas contra o imperialismo que podem, no campo internacional, enfraquecer o sistema capitalista. Especialmente importante é compreender que também existem medidas que, sendo a favor do imperialismo em nossa Pátria, podem ser inconvenientes para o sistema capitalista enquanto bloco internacional, em determinadas circunstâncias. Esta é uma ocorrência perfeitamente viável e as forças do povo devem estar bem esclarecidas sobre ela. Um exemplo concreto e recente ajudará o povo a entender este aspecto singular dos problemas que existem no interior das nações capitalistas, quando os analisamos como problemas de uma nação dominada, mas integrante do sistema mundial do capitalismo. Trata-se do exemplo oferecido pela República Dominicana por ocasião dos preparativos da Conferência de Punta del Este. Como todos sabem, naquele País vigorava durante vários anos uma ditadura, ameaçando transformar-se em dinastia, quando o ditador foi assassinado, precipitando uma série de acontecimentos políticos, nos quais o povo vinha exercendo papel cada vez mais saliente, destacando-se, entre suas reivindicações, várias medidas contra o imperialismo norte-americano que, também ali, é o imperialismo predominante. O governo estabelecido, guiando-se pelas leis em vigência, mostrava-se incapaz de conter o avanço popular contra o imperialismo. Paralelamente, preparava-se, no campo internacional, nova investida contra Cuba, sob a alegação de que ali existia uma ditadura cruel, sanguinária, alvo de todas as demais calúnias que os Estados Unidos costumam veicular contra os povos que se libertam de sua dominação. Pois bem, às vésperas da conferência que deveria condenar Cuba, por viver sob um regime ditatorial-militarista, os chefes militares dominicanos, temerosos de que o governo “legalmente” constituído não pudesse conter a onda antiimperialista, antinorte- americana, tomaram o poder e instalaram uma ditadura, sob forma militar. Esse golpe, como se percebe facilmente, foi uma medida a favor do imperialismo, ameaçado pelo avanço popular. Ora, ocorre que os Estados Unidos necessitavam do voto da República Dominicana, que faz parte da OEA [Organização dos Estados Americanos], para condenar Cuba, justamente sob o pretexto de que em Cuba se instalara uma ditadura sangrenta. Foi sob a capa de defensores das liberdades democráticas que os Estados Unidos se apresentaram diante dos povos latino-americanos, não obstante os pequenos arranhões do Paraguai, da Guatemala e outros menos evidentes. Mas aquele golpe na República Dominicana era recente demais, justamente dois ou três dias antes da Conferência. Fazia-se evidente demais que o voto da República Dominicana, em tal situação, equivaleria a desmoralizar definitivamente toda a Conferência e a enfraquecer ainda mais a posição norte-americana. No caso, esta fraqueza equivaleria a enfraquecer não apenas os Estados Unidos, mas o sistema capitalista, na sua seção latino-americana que é a OEA, pois a luta que se travava não era apenas contra o antiimperialismo de Cuba, mas principalmente contra o socialismo que Cuba representa nas Américas. Desmoralizar a acusação lançada a Cuba, como certamente aconteceria com o voto da República Dominicana naquelas condições, significava, no fundo, enfraquecer o sistema mundial do capitalismo. E o que se viu, então? A rápida e tranqüila mudança da ditadura-militar instalada no poder por um governo “legal”, podendo então a República Dominicana, dignamente, votar em Punta Del Este pela condenação da ditadura sangrenta e militarista que, segundo afirmam os Estados Unidos e a Guatemala, existe em Cuba. Eis aí nitidamente configurada uma situação na qual uma medida interna a favor do imperialismo transforma-se, no plano internacional, numa medida que enfraquece, politicamente, perante os povos de todo o mundo, o sistema capitalista mundial.

É claro que tais situações são especiais e não devem iludir ninguém sobre os pruridos democráticos do imperialismo, quando estão em jogo seus interesses materiais. Estas situações podem ocorrer, e se dão de fato, em virtude da contradição básica a que está sujeito o imperialismo, última etapa do capitalismo, em sua luta internacional contra o socialismo. Toda a propaganda, toda a política exterior do imperialismo, enquanto expressão de um dos lados do sistema capitalista mundial, tem por bandeira o argumento de que o capitalismo representa a liberdade e o socialismo a escravidão. Ao mesmo tempo, porém, que o socialismo avança no mundo, o sistema capitalista mundial vê-se cada vez mais na contingência de impedir que os povos oprimidos substituam-no por outro, superior, verdadeiramente democrático. E para impedir que o povo instale o socialismo, o sistema capitalista vê-se obrigado a acentuar e evidenciar o aparato de repressão que mantém o povo subjugado, tornar-se ditadura expressa e sem disfarce – o que nega, na prática e aos olhos de todo o mundo, a bandeira de liberdade que diz representar. É esta contradição, tornada mais aguda à medida que o sistema socialista avança no mundo, que dá alicerces objetivos àquela situação, cujo exemplo citamos. A ditadura militar expressa, representada pelo domínio direto do aparelho do Estado pelos militares, constitui forma de ditadura que, dadas as condições atuais do mundo, cada vez menos favorece, no plano internacional, o sistema capitalista mundial. Nem por isso, é claro, ela será evitada, especialmente se for o único recurso para manter o regime capitalista, mas é necessário reconhecer que, nas presentes circunstâncias mundiais, a ditadura militar expressa, num país capitalista, só interessa ao imperialismo quando for realmente o último recurso para a manutenção do sistema. Nem por outro motivo se observam, de algum tempo para cá, as pressões do imperialismo norteamericano junto às ditaduras latino-americanas, junto às ditaduras militares, no sentido de substituí-las por outra, de tipo diferente. São as próprias contradições do sistema capitalista mundial, em sua luta contra o socialismo, que criam situações como a que o caso da República Dominicana exemplifica. As forças populares, portanto, devem estar atentas a todos estes aspectos da questão, a fim de compreender que as condições atuais do sistema capitalista mundial não são de molde a favorecer, em princípio e imediatamente, a implantação de uma ditadura militar nos países membros do sistema.

Em tais circunstâncias, a vanguarda do povo deve perguntar se interessa ao imperialismo dominante em nossa Pátria implantar uma ditadura militar. E deve perguntar também, de modo ainda mais geral, se interessa ao regime capitalista vigente em nosso País apelar para a ditadura militar a fim de manter-se como regime vigorante. A ambas as questões se há de responder negativamente. Em princípio, as condições atuais do sistema capitalista mundial, no qual está integrado o nosso País, não aconselham a implantação da ditadura sob forma militar. Quer isto dizer que devemos afastar em definitivo a hipótese de um golpe militar no Brasil? – Absolutamente não. O que se pretendeu demonstrar foi apenas que a caracterização do golpe em marcha não é problema simples que se resolva pela aplicação de esquemas apriorísticos a alguns fatos tomados isoladamente. As camadas mais esclarecidas do povo devem analisar com objetividade todas essas questões, de modo a estabelecer uma tática de luta correta para a batalha que irá travar, ou melhor, que já está travando contra o golpe. Quando se sabe que as condições atuais do sistema mundial do capitalismo não propiciam a implantação de uma ditadura militar direta nos estados-membros do sistema, o que as forças do povo devem fazer em primeiro lugar é examinar se, dadas as nossas condições internas atuais, não há outra alternativa para a minoria privilegiada dirigente senão a ditadura militar – o que nos remete ao exame da segunda ordem de razões a que nos referimos acima.


 

 

RAZÕES DE ORDEM INTERNA

 

O que decide presentemente o caráter do golpe a ser dado são as condições objetivas nas quais essa operação política se desenrola. E aqui torna-se necessário chamar a atenção das forças populares para outro aspecto da questão, qual seja o de que, independentemente da forma sob que se venha a consumar o golpe, a implantação da ditadura é sempre um ato político. Mesmo quando a ditadura instaurada for uma ditadura militar direta, trata-se, essencialmente, de uma operação política, quer dizer, constitui fenômeno social, decorrente de problemas sociais, os quais se originam do choque entre forças sociais; e só secundariamente representa uma operação militar, no sentido técnico da palavra. É indispensável que se compreenda este aspecto com muita clareza, a fim de discernir o que há de social nos pronunciamentos “militares”. Na verdade, o pronunciamento dos militares só importa, primeiramente, pelo conteúdo social que possua e é esse conteúdo que as forças do povo necessitam distinguir com clareza. Quando o conteúdo social de tais pronunciamentos for verdadeiramente significativo, aí é que se torna importante o fato de terem sido feitos por militares. Os pronunciamentos militares não têm importância porque sejam militares, mas porque contêm determinados compromissos sociais – vale dizer, políticos – assumidos por militares. Quando o conteúdo social de um pronunciamento militar não tem ressonância na coletividade e cai no vazio, a circunstância de ter sido enunciado por um militar de nada importa, historicamente falando. Basta que as forças do povo não esqueçam recentes acontecimentos e compreenderão este ponto. Basta recordar a chamada “Operação Mosquito”, caso típico de pronunciamento “militar”, cujo conteúdo social já não mais correspondia à correlação das forças políticas, e se compreenderá que os pronunciamentos militares devem ser analisados politicamente, pois só assim adquirem sentido. Além disso, se compreenderá também que o fato de existir no Brasil, atualmente, militares fazendo pregações golpistas não indica necessariamente que o golpe em preparação seja um golpe militar. Este é um ponto que certas correntes das forças populares não têm sabido interpretar corretamente e, num juízo apressado, supõem e fazem supor que o golpe em marcha no Brasil terá caráter militar porque tal ou qual militar é golpista ou faz pregações golpistas. Não é este o modo correto de entender a questão. As pregações golpistas por parte de militares só indicariam a iminência de golpe militar se o conteúdo dessas pregações, se as reivindicações sociais que implicam, exigissem o comando militar direto do aparelho do Estado, como condição para o atendimento dessas reivindicações. Isto, em primeiro lugar e, ainda, em segundo lugar, seria necessário que, não só essas reivindicações, e a condição que implicam, a de que só o comando militar direto do aparelho do Estado por parte dos militares permitiria o seu atendimento, correspondessem à posição política das forças sociais dominantes. Também este assunto se revela importante, pois pode ocorrer que alguns militares desejem efetivamente um golpe de caráter militar, e certamente existem oficiais com essa intenção, mas se esta posição não consultar os interesses e os objetivos das forças sociais dominantes – a minoria privilegiada –, esta deficiência tornará o golpe militar praticamente inviável, pelo menos naquele momento.

Todas estas questões, portanto, demonstram que o caráter do golpe em marcha no Brasil não deve ser buscado na aparência dos fatos, nem muito menos na aplicação de esquemas a alguns dados isolados, mas nas razões profundas dos acontecimentos, as quais só se desvendam pela análise objetiva e prudente do conjunto da situação na qual a operação se desenrola. Cabe às forças populares, por conseguinte, indagar qual o sentido geral da situação brasileira, para ver se o golpe que se prepara neste momento contra o povo tende a assumir realmente caráter militar. Nesse sentido, um bom caminho será começar perguntando pelas condições militares que tornam possível o golpe militar, isto é, qual a posição social relativa das forças armadas que mais favorece, ou mesmo possibilita, desferir um golpe de natureza militar.


 

 

O QUE TORNA POSSÍVEL O GOLPE MILITAR?

 

O golpe militar, como já foi várias vezes referido, se define pelo domínio direto e pessoal do aparelho do Estado pelos dirigentes das Forças Armadas. Esta é a característica essencial do golpe militar, sendo indispensável tê-la permanentemente presente, a fim de que se saiba distinguir o golpe militar – que é uma coisa – do papel dos militares em qualquer golpe – que é coisa muito diferente. Quando se afirma que as condições imperantes no mundo, por exemplo, não favorecem a implantação de uma ditadura militar nos estados -membros do sistema capitalista mundial, está-se afirmando apenas que não convém a esse sistema, em princípio, e nas condições atuais do mundo, que os militares assumam o controle direto e pessoal do aparelho do Estado. Mas nessa declaração não está dito que os militares não devam ter participação alguma nas ditaduras ou nos golpes em preparação. Uma coisa é o papel desempenhado pela corporação militar, e outra coisa é o caráter militar do golpe. Essa distinção é essencial e a vanguarda aguerrida do povo deve estar atenta e compreendê -la bem, pois não há golpe sem participação de militares, mas para que esse golpe assuma a natureza de golpe militar é imprescindível que os militares participem de maneira muito especial em sua preparação e em sua execução. A implantação de uma ditadura militar, depende, por conseguinte, do papel desempenhado pelas Forças Armadas no desencadear do golpe. Em que condições a participação do corpo militar no golpe contra o povo pode determinar o caráter desse golpe? – eis a questão que as forças populares não podem deixar de analisar.

A implantação de uma ditadura militar – no que diz respeito ao papel que os militares nela desempenham – supõe, em princípio, considerável unidade e coesão de pontos de vista no seio da própria corporação. – Eis aí a primeira condição básica para que o papel desempenhado pelos militares possa vir a determinar o caráter militar do golpe. Está claro que sem unidade de comando, a qual supõe unidade de orientação, o corpo armado não tem condições para assumir direta e pessoalmente o controle do aparelho do Estado, pois imediatamente surgiriam as defecções, as divergências, que dificultariam a manutenção do comando direto do Estado pelos eventuais chefes do golpe. Sem unidade de orientação, da qual decorre a possibilidade de comando, a participação dos oficiais na execução de um golpe não tem condições para determinar o caráter desse golpe como militar. Eis aí, pois, a condição básica para definir o papel dos militares na aventura golpista a ponto de determinar a essência desse movimento: a coesão interna, manifestada em seu duplo aspecto de unidade de orientação e unidade de comando.

Quer isto dizer que as forças populares devam encarar essa coesão de modo absoluto, ou melhor, supor que o papel dos militares só determina a espécie do golpe quando não houver nenhuma voz discordante no seio da corporação? – De modo algum. A coesão desta, da qual depende o seu comportamento, não deve ser entendida de modo absoluto e abstrato pelas forças populares. A coesão interna de que, no caso, se trata, é uma coesão relativa, viva, não se define por não haver nenhuma voz discordante no seio do grupo militar, mas porque a unidade relativa alcançada no seu interior é suficientemente ponderável para fazê-lo atuar, no exterior, nas suas relações com as outras forças sociais, como se a sua coesão interna fosse absoluta, como se houvesse no interior a mais completa unidade de orientação e de comando. O que importa, pois, é o modo pelo qual atua nas suas relações com as outras forças sociais. Se atua coeso e unido, então é porque há condições – do ponto de vista militar – para que o seu papel venha a determinar o caráter do golpe, caso seja indispensável que o movimento tenha por objetivo implantar uma ditadura militar. E aqui é conveniente chamar a atenção das forças populares para mais um ponto importante.

Como já se viu, o caráter militar de uma ditadura é determinado pelas condições sociais do momento, quer dizer, só quando representa o único recurso para assegurar a manutenção dos privilégios da minoria dominante é que se cria a necessidade social, por parte daquela minoria, de implantá-la. Mas isto não quer dizer que, só por haver essas condições, seja possível implantar uma ditadura militar. Ela torna-se exigida, é certo, mas resta saber se é possível. Esta possibilidade é definida, como se viu, pelo papel que as forças militares podem desempenhar, o qual depende, também, das condições sociais em que atuam. São essas condições que estamos analisando. Interessa-nos saber, portanto, quais as condições sociais que tornam possível o golpe militar, caso seja exigido.


 

 

UMA CONDIÇÃO PARA O GOLPE MILITAR

 

Tais condições cifram-se, como vimos, na coesão, do corpo militar referidas as suas relações externas com as demais forças sociais, independentemente da amplitude de sua coesão real, interna. Quer isto dizer que o órgão militar sempre atua coeso, não obstante as discrepâncias existentes no seu interior? – Absolutamente, não. Para que possa atuar coeso é necessário que as divergências no seu interior não ultrapassem determinados limites. O que as forças populares devem fazer é examinar em que condições pode ocorrer essa coesão.

A condição mais favorável, e a que mais freqüentemente se verifica para que as Forças Armadas se comportem coesas, dá-se quando se acham constituídas como casta no conjunto da sociedade, quando recebem benefícios e favores especiais da coletividade, melhor dizendo, quando tomam benefícios e favores especiais da coletividade somente pela razão de ser grupo armado. O corpo militar, assim constituído, goza de posição singular no conjunto da sociedade, pois passa a girar em torno de privilégios e interesses que são, especificamente, privilégios e interesses dos militares. Este é o caso de grande parte das nações latino-americanas, nas quais os militares formam um grupo social suficientemente diferenciado, a ponto de criarem uma órbita de interesses próprios, destacada dos demais planos do conjunto social. Neste caso, as vozes discordantes no seio da Entidade, na eventualidade de um golpe militar, são vozes isoladas, representando apenas a posição pessoal de quem fala, quase sempre discordantes por motivos pessoais e, não, sociais. Discordâncias deste gênero, está claro, não conseguirão jamais perturbar a coesão com que se apresenta exteriormente o bloco militar, pois não são capazes de enfraquecer os laços profundos, de casta, constituídos pelos privilégios específicos de que goza, que unificam a maioria dos seus membros. Em tais condições, tem existência real a coesão externa necessária que toma possível a implantação de uma ditadura desse tipo, caso seja necessária. E o exemplo mais flagrante e recente de uma situação como esta, fácil à compreensão de todo o povo, nos é dado pela situação atual da Argentina,(1) onde existem as condições que tornam possível a implantação da ditadura militar. Isto se dá porque o grupo militar argentino constitui uma casta no conjunto da sociedade, embora a sua ditadura ostensiva ainda não se tenha tornado necessária. Pois bem: será esta a situação brasileira? – eis aí uma questão a que as forças populares não podem deixar de responder.

Evidentemente, o Exército brasileiro não é semelhante ao argentino, ou a qualquer outro que se constitua em casta no conjunto da sociedade. Existe um grande número de pessoas que sabem que o Exército brasileiro não é uma casta no conjunto da sociedade, pois sua formação histórica decorreu de fatores que impediram a sua constituição como casta. Mas é necessário que todo o povo saiba que uma das condições para que a corporação militar se constitua em casta é que sua camada dirigente pertença originariamente à minoria privilegiada dominante; que só possam atingir os mais altos postos hierárquicos aqueles oficiais que tenham um nome de família ou seja, que pertençam à pequena minoria dominante. Tem-se de mostrar ao povo que este é o fenômeno que ocorre na maioria das nações latino-americanas, na República Dominicana, por exemplo, onde chegou-se ao extremo de serem os mais importantes chefes militares não só elementos pertencentes à minoria dominante, mas membros da família do próprio ditador. É necessário mostrar ao povo como, na própria Argentina, a camada dirigente do Exército é recrutada entre as famosas cento e poucas famílias que vivem da exploração dos milhões de argentinos restantes, sem que a essa camada dirigente das forças armadas possam ascender pessoas de origem social diferente. E é absolutamente necessário mostrar ao povo como não foi isso o que ocorreu no Brasil, como as Forças Armadas brasileiras, particularmente seu Exército, originaram-se de condições sociais diversas, no seio das quais o corpo militar veio a ser recrutado. O povo precisa saber que os primeiros soldados brasileiros foram os escravos, e que a camada dirigente, nas suas origens históricas, era constituída predominantemente por oficiais de carreira, a qual começava no seio do povo, e não era reservada a alguns filhos de privilegiados, transformados, por decreto, em chefes militares. Foi em virtude de tais peculiaridades de formação histórica que nosso Exército ficou impedido de constituir-se em casta especial, no conjunto das forças sociais. Por isso as Forças Armadas brasileiras, nas suas manifestações políticas, não têm reivindicações próprias a fazer, mas o conteúdo social de tais manifestações inscreve-se num contexto mais geral, no contexto das classes em que se divide a sociedade brasileira. O corpo militar brasileiro, particularmente seu Exército, tem características de classe e, não, de casta.

Qual conclusão devem tirar as forças do povo dessas lições da história? Para o que nos interessa no momento, – que é o exame das condições nas quais as Forças Armadas podem apresentar-se coesas exteriormente, a fim de tornar possível a implantação de uma ditadura militar, – a conclusão a tirar é a seguinte: essas Forças não constituem uma casta, não possuindo assim, nesse particular, a condição que favoreça um modo de agir coeso, com unidade de orientação e de comando, em relação às demais forças sociais; e, sendo essa coesão, requisito indispensável a que se torne possível o golpe de caráter militar, devem as forças do povo concluir que o golpe em marcha não tende, por esse aspecto, a assumir a forma de golpe militar.

Quer isto dizer que está definitivamente afastada a hipótese de que o golpe em marcha contra o povo tende a assumir a modalidade de golpe militar? – Não, certamente não. A constituição da corporação militar como casta é a condição mais favorável à coesão indispensável ao pronunciamento, mas não é a única. Há outra possibilidade de ser alcançada tal coesão, aquela unidade de orientação e de comando, do ponto de vista exterior, ainda quando essa corporação não constitua uma casta no conjunto da sociedade. Que outra possibilidade é essa? – eis o que se deve agora esclarecer.


 

 

OUTRA CONDIÇÃO PARA O GOLPE MILITAR

 

Já se sabe que a coesão de que se trata não é a coesão absoluta, abstrata, mas uma coesão relativa, resultante das contradições internas ao campo militar. Quando este se constitui em casta no conjunto da sociedade, essas contradições internas são mínimas, não chegam a ameaçar a união necessária, do ponto de vista exterior, sendo facilmente abafadas, superadas ou reprimidas. Algo diferente, porém, ocorre quando as contradições não derivam de discordâncias pessoais, privadas, mas decorrem de divergências cujas origens são sociais, isto é, representam, no interior da corporação militar, as divergências que existem fora dela, quando as contradições que existem, no interior do corpo militar, são manifestações das contradições e das divergências que existem também no exterior, isto é, são contradições da sociedade como um todo, e não do Exército, como parte desse todo. Esta circunstância ocorre quando o grupo militar não se constitui em casta, mas está integrado, ramificado, dissolvido, sob certos aspectos, na sociedade a que pertence. E este é, precisamente, o caso brasileiro, particular e principalmente o caso do Exército brasileiro – eis aí uma circunstancia que as forças populares não devem, e não podem, esquecer, sob pena de não lutar corretamente contra seu inimigo real. O corpo militar brasileiro, principalmente seu Exército, atua em função das divergências que existem no seio da sociedade e, em tais circunstâncias, compete às forças populares indagar quais as condições em que um organismo militar como o brasileiro pode atingir coesão tal que torne possível o desencadear de um golpe de caráter militar.

Um corpo militar, tal como o brasileiro, é uma instituição de classe e não de casta. Quer isto dizer que, possuindo essa natureza, representa um setor particular de algo mais geral, socialmente falando: a classe na qual está incluído esse setor. As divergências internas nele existentes, por conseguinte, têm de ser entendidas como repercussões das divergências mais gerais que afetam a classe à qual pertence o setor, e se originam nas diferenciações de interesses inerentes a cada classe. Tomemos o exemplo da burguesia para esclarecer esta questão. A burguesia é, socialmente falando, uma classe, unida, coesa, mas admite, no seu interior, uma variada escala de diferenciações: burguesia industrial, comercial, agrária, financeira etc. Pois bem: são justamente essas variações, a diferenciação de interesses, que explicam as divergências surgidas no interior da burguesia, enquanto classe, apesar disso, unida, coesa. Existe, pois, no interior de cada classe, relativa identidade de interesses e, simultaneamente, relativa divergência de interesses. Tomemos, agora, um setor da classe burguesa: o setor industrial, por exemplo – e veremos que, também aqui se observam divergência e identidade relativas de interesses. Existe identidade entre os membros desse setor quando estão todos interessados na produção industrial – o que faz com que esse setor, na sua totalidade, se oponha a outro setor da burguesia, a burguesia importadora de bens industriais. Mas também existem divergências entre os membros desse mesmo setor industrial, ao lado da identidade, as quais se manifestam quando se trata de saber se o governo vai amparar a indústria produtora de bens de produção ou a indústria produtora de bens de consumo. Existem, pois, no setor industrial da classe burguesa, identidade e divergências relativas, as quais decorrem das diferenciações notadas no interior de toda classe.

Voltando, então, às Forças Armadas brasileiras, que formam um setor particular de uma classe, se há de compreender que, no seu interior, encontram-se simultaneamente identidade e divergência relativas de interesses, condicionadas pela identidade e divergências relativas aos interesses da classe a que pertence esse setor. Sendo assim, o que se deve procurar compreender é como, em tais condições, poderiam as Forças Armadas apresentar-se coesas – do ponto de vista exterior a elas –, tornando, assim, possível, a execução de um golpe de feição militar. E, nesse exame, se descobrirá que a condição básica é que a identidade relativa de interesses dos membros desse setor seja de tal modo predominante que permita abafar e reprimir suas divergências relativas. Nesse caso, o conjunto militar agiria, nas suas relações com as demais forças sociais, a partir da identidade relativa de interesses entre seus membros, como se não existissem, entre eles, divergências relativas. Para que o golpe em marcha no Brasil assumisse a modalidade militar, por conseguinte, seria necessário que, neste momento, a identidade relativa de interesses dos militares predominasse de tal modo que fosse capaz de abafar as divergências relativas existentes entre eles.

Ora, as forças populares têm perfeita consciência de que as divergências relativas que existem no interior da área militar, tal como ficou demonstrado pelos acontecimentos de agosto-setembro de 61, ainda são suficientemente profundas para desaparecerem com facilidade diante de eventual identidade relativa que unifique os membros desse setor. E esse fenômeno não há de espantar, por isso mesmo que é apenas a manifestação, no caso particular das Forças Armadas, do que está ocorrendo, neste momento, com toda a classe média, à qual pertencem os militares brasileiros. Na verdade, a classe média brasileira vive um período no qual suas diferenciações internas – classe média alta, classe média-média e classe média baixa – originaram divergências relativas, de tal magnitude, no interior da classe, que se converteram no maior entrave à predominância indiscutível da identidade relativa, unificadora dos membros da classe. Basta que se compare, para tomar um exemplo salarial, o que recebe um publicitário, por exemplo, – cerca de 150.000,00 por mês –, com o que recebe uma datilógrafa do serviço público – não ultrapassa 30.000,00 – e se verá como a diferenciação da classe média brasileira é de tal natureza que permite perfeitamente a existência do fenômeno assinalado. E se quisermos um exemplo no setor militar, basta comparar o que recebe um oficial-general, quando em cargo de comissão, com os vinte e poucos mil cruzeiros recebidos por um tenente.

A diferenciação da classe média, tal como está se processando no Brasil, é o que vem dando origem ao fenômeno de se oporem de modo tão profundo à identidade relativa entre os seus membros. Este é um fato objetivo da realidade brasileira que a ação popular não pode ignorar se quer entender corretamente o golpe em marcha. Afirmar que o golpe tende a assumir a forma de ditadura militar é analisar superficialmente os acontecimentos. Toda a questão consiste no seguinte: está em marcha um golpe no Brasil, mas ainda não existem as condições para que assuma tranqüilamente o caráter militar. Quer isto dizer que o assalto contra o povo não pode, definitivamente, assumir feição militar, ou que o fenômeno observado em relação à classe média, da qual o setor armado é parte, há de perdurar no tempo a ponto de jamais permitir que a identidade relativa de seus interesses predomine sobre suas divergências relativas? – De maneira alguma. As observações feitas sobre as condições, nas quais o golpe se desenrola, levam a compreender que essas condições podem se alterar, e até mesmo se alterar rapidamente. Para isso, aliás, já se delineiam várias manobras da reação direitista, como se verá mais adiante. O que se deve concluir dessas observações é que: a persistirem as condições atuais, como estão persistindo desde agosto-setembro de 61 (e os fatores de sua persistência, ou não, serão analisados mais adiante), o golpe que já está em marcha no Brasil não tende a assumir o caráter militar, mas se encaminha para um tipo de ditadura a que as forças do povo poderiam chamar de “ditadura do governo forte”. Quais as características dessa ditadura, em que condições pode vingar e como lutar contra ela? – eis aí as questões que o povo deve compreender com nitidez.


 

 

QUE É A DITADURA DO GOVERNO FORTE?

 

A ditadura do “governo forte” se caracteriza pelo fato de que todas as medidas que toma são justificadas, oficialmente, por imperativos de segurança ou de salvação nacionais. Na verdade, a parte politizada do povo sabe perfeitamente que, numa sociedade dividida em classes, e em tempo de paz, os imperativos de segurança e de salvação nacionais referem-se, efetivamente, aos imperativos de segurança e de salvação da classe dominante. Mas não é bastante que os grupos mais conscientes do povo saibam disto. É imprescindível que todo o povo seja alertado para esta questão, pois esse tipo de ditadura possui métodos de ação diferentes dos da ditadura “legal”, aquela sob a qual ainda estamos vivendo, e que podem iludir grande parte da maioria submetida. A própria situação social que lhe dá origem – necessidade de segurança e de salvação da minoria privilegiada – é particularmente favorável à veiculação de notícias e de ponto de vista que dispõem o povo a receber como verdade aquilo que lhe diz a minoria privilegiada, ou seja, que os imperativos de segurança e de salvação da classe dominante são os imperativos de segurança e de salvação “nacionais”.

Um dos componentes da situação que permite à minoria privilegiada instalar a ditadura do governo forte é o reconhecimento geral de que os partidos políticos existentes sofreram colapso, perderam o rumo, já não mais representam a vontade popular e que, em conseqüência, só contribuem para dificultar ainda mais a vida do povo e levar o País à perdição e ao caos. Esta é uma situação que o povo facilmente reconhece como verdadeira, pois é o que se passa na realidade aparente. A partir daí não é difícil aos porta-vozes da ditadura do governo forte, do golpe que já está em marcha no Brasil, apresentarem a atraente solução de que só é possível remediar o descalabro e o impasse em que se encontra o País se for constituído um governo acima dos partidos, com autoridade suficiente para impor, contra a vontade dos partidos, se necessário, aquelas medidas que consultem aos verdadeiros interesses de segurança e de salvação nacionais. E é necessário que as forças de vanguarda compreendam que, embora seja falha a 1ógica da argumentação golpista, a maior parte das massas não tem meios para escapar, por si só, ao dilema que lhe é proposto. Compete justamente às forças de vanguarda mostrar ao povo que é possível um governo acima dos partidos existentes mas que é absolutamente impossível um governo acima das classes em luta.

A tarefa de esclarecer o povo sobre a falsidade do dilema que lhe é proposto pelos porta-vozes da ditadura do governo forte, compete exclusivamente às forças progressistas, pois são as únicas que têm condições de se aperceber de tudo quanto há de mistificador e de totalitário na argumentação golpista. Mas é necessário que essas forças não subestimem o adversário e compreendam que a solução apresentada ao povo aparece a este como decorrência natural da situação vigente. Não se pode esquecer que a maioria do povo está desarmada diante dos fatos, e que compete justamente à vanguarda dar-lhe essas armas e, não, incriminá-lo porque não as possui. O argumento golpista é falho porque se fundamenta na aparência dos fatos – incapacidade dos partidos, agravação das condições de vida do povo etc. – mas é poderoso porque se fundamenta em fatos, fatos que a maioria do povo também vê, mas não sabe explicar e não tem como perceber o engodo da solução golpista. Em conseqüência, a necessidade de um governo forte, com autoridade suficiente para impor as medidas justas e necessárias, acaba por aparecer-lhe como a única solução para os problemas que enfrenta e que o regime em vigor é incapaz de solucionar. Quando parcelas ponderáveis do povo brasileiro, especialmente aquelas que mais sofrem as conseqüências da situação atual, aceitarem o argumento golpista, estarão criadas as condições sociais para a instalação da ditadura do governo forte.


 

 

A PREPARAÇÃO IDEOLÓGICA DO GOLPE

 

Pois bem: “não é outra coisa o que vêm tentando fazer os porta vozes do golpe em marcha no Brasil”. É necessário que as forças progressistas examinem com atenção o desenvolvimento das atividades dos setores reconhecidamente totalitários em nosso País, pois hão de ver que os seus objetivos não são outros, neste momento, sendo os de criar no povo brasileiro a consciência de que só um governo forte, com suficiente autoridade, pode resolver o impasse em que se encontra a Nação. Isto, pelo lado ideológico, enquanto na ação prática, vêm desenvolvendo toda uma tática no sentido de paralisar as forças sociais que se poderiam opor ao golpe em marcha, quando não de ganhá-las para a sua causa. Que se examine, por exemplo, o artigo de Carlos Lacerda – categorizado representante das forças do golpe –, intitulado “DITADURA MILITAR OU REVOLUÇÃO POPULAR”. Esse artigo, ao lado de ser mais uma contribuição para obscurecer a consciência do povo – dos setores da classe média que constituem o seu público –, é, sem dúvida alguma, o documento que dá a cobertura ideológica ao golpe em marcha no Brasil. As forças progressistas não devem perder-se em críticas menores sobre a decadência estilística de Carlos Lacerda, ou iludir-se sobre o “desespero” de que a direita está tomada. E não deve fazer isso por motivos simples: em primeiro lugar, porque não há de ser o bom ou mau estilo de um golpista que impedirá o golpe; e, em segundo lugar, porque a direita só terá razões de “desesperar-se”, a ponto de que isso implique boa coisa para o povo, no dia em que ela estiver desesperada porque perdeu, definitivamente, o poder para o povo. Até lá, é o povo, submetido e vexado, quem tem as maiores razões para desesperar-se. Do mesmo modo não devem as forças do povo ludibriar-se com a fraqueza ou o baixo nível teórico dos ideólogos golpistas. Só se pode explicar correta e cientificamente os problemas sociais quando se parte do ponto de vista do povo e, por definição, os propagandistas da ditadura não podem analisar os problemas valendo-se desse ponto de vista. De espantar, isso sim, é que, partindo de um ângulo equivocado, e conscientemente empenhados em desvirtuar e mistificar os problemas, consigam, apesar de seu “baixo nível teórico”, enganar a tantos, por tanto tempo. A posição de menosprezo pelo adversário não é posição correta para as forças do povo. O que os inimigos do povo fazem, o que dizem, não o fazem nem o dizem gratuitamente, mas em busca de resultados muito bem calculados, os quais precisam ser descobertos, denunciados e combatidos, mas realmente combatidos, pelas forças populares. E no caso específico do citado artigo de Carlos Lacerda, faz-se imperioso um exame atento, pois lá estão todos os elementos que inspiram, neste momento, a marcha do golpe no Brasil.

Efetivamente, que diz o artigo “DITADURA MILITAR OU REPÚBLICA POPULAR”? Esse artigo diz, em primeiro lugar, que o País está diante de um dilema apresentado como sendo o seguinte: se não se resolvem os problemas que estão à vista de todo o mundo, de duas coisas uma terá necessariamente que acontecer: ou os “comunistas” (leia-se – “povo”. W. G.) tomam o poder, ou os militares, com o intuito de impedir que os “comunistas” tomem o poder, instalam uma ditadura militar. Este seria, na versão do ideólogo do golpe, o dilema diante do qual está posta a Nação. Pois bem: todo o mundo sabe que Carlos Lacerda jamais negou suas preferências pelos regimes de exceção, nem nunca se preocupou com esconder sua posição favorável aos golpes que se tramavam, pela simples razão de que sempre foi Carlos Lacerda um dos propagandistas dos vários golpes que se tentaram no Brasil e, como tal, tem que defender publicamente o golpe real que se está tramando, a fim de predispor favoravelmente a consciência do povo. Assim foi em 54, quando propunha abertamente o impeachment de Vargas, que terminou por vir, de fato, pois só os incautos se deixariam enganar pela “licença” pedida pelo Presidente. Assim foi, posteriormente, quando defendeu o direito, até mesmo a necessidade moral, de se impedir de “qualquer modo” a investidura de Juscelino Kubitschek no cargo para o qual havia sido eleito, e todo mundo se recorda do que ocorreu em 55. Assim foi, quando defendeu o direito de revolução para a derrubada de governos “corruptos”, e lá vieram Aragarças e Jacareacanga. Tudo isto mostra que Carlos Lacerda só defende e propõe os golpes que estão efetivamente por vir. E por que isto? – Por sinceridade? Por combater com honestidade? – Evidentemente que não. Carlos Lacerda só propõe e defende os golpes que estão realmente a caminho porque a ele incumbe principalmente, entre as forças golpistas, a missão de preparar a consciência do povo para aceitar o golpe em marcha e está, por isto, necessariamente obrigado a dar sua verdadeira posição diante dos problemas, não importando, para tal fim, a forma confusa e mistificatória pela qual estes são apresentados. Sendo assim, o que impediria Carlos Lacerda de pronunciar-se, naquela opção, pela ditadura militar, caso fosse realmente uma ditadura deste tipo que se estivesse tramando, neste momento, para o Brasil? – Nada, nada o impediria, como nada o impediu de manifestar-se a favor, defender e propagar, em agosto-setembro de 61, a ditadura militar que então se esboçara. Ao contrário, tudo o levaria a optar por esse lado do dilema, caso fosse essa realmente a ditadura em marcha contra o povo. E o que fez Carlos Lacerda diante do dilema que ele próprio colocara? – Manifestou-se contra a “república popular” – o que é óbvio –, mas também contra a ditadura militar, propondo uma terceira solução. Ora, este fato merece ser cuida dosamente analisado pelas forças populares. E não há como escapar de uma das alternativas seguintes: ou o dilema proposto por Carlos Lacerda é verdadeiro, ainda que só parcialmente, quer dizer, o golpe que está em marcha no Brasil é, de fato, um golpe de caráter militar – e nesse caso a recusa pública de aderir a ele, por parte do autor do artigo, significaria que o tradicional arquiteto de golpes abandonou as hostes totalitárias, tornando-se um político de “centro”; ou o dilema proposto por ele é inteiramente falso, quer dizer, o golpe que está em marcha no Brasil não é um golpe de caráter militar. Esta é a alternativa que o manifesto de Carlos Lacerda, a propósito da situação nacional, propõe, e diante da qual as forças populares devem tomar posição clara, examinando detidamente cada uma das alternativas.

A primeira delas – a de que o golpe em marcha seja efetivamente militar – conduz a aceitar Carlos Lacerda como a mais recente conquista do chamado, “centro” político. As forças do povo sabem perfeitamente que esta é uma conclusão totalmente ingênua, pois compreendem com muita clareza que as posições políticas do Governador da Guanabara não dependem de seu arbítrio, mas são determinadas pelos interesses a que serve. Mas todo o povo precisa saber disso; que as forças de vanguarda vão às massas e discutam os problemas tal como estes se apresentam a elas; lhes demonstre concretamente por que Carlos Lacerda não é homem de Centro. Não basta afirmar que está ligado a tais ou mais interesses, mas é imprescindível apontar ao povo como esse agente do imperialismo vem tratando todos os políticos, todas as forças sociais em suma, que constituem o “centro” político em nosso País. Carlos Lacerda não é um político de “centro” porque ele mesmo, que se apresenta como homem de centro, no esquema do seu manifesto, está desenvolvendo uma campanha sem tréguas contra tudo aquilo que representa o “centro” em matéria de política, no momento atual. É preciso mostrar que, para Carlos Lacerda, segundo suas próprias expressões, o “centro” é constituído por imbecis, inocentes úteis, burgueses ignorantes e idiotas etc. Esta é a sua opinião atual a respeito do centro atual. Logo, é ele próprio quem confessa que, atualmente, não forma no “centro” político do País. E como também não forma na “esquerda”, como confessa no próprio artigo citado, segue-se que continua pertencendo às hostes golpistas que desejam atraiçoar nossa Pátria e nosso povo. É isto que precisa ser explicado ao povo com muita clareza e, também, com muita paciência. Quando esta idéia for compreendida, devem as forças populares perguntar por que, continuando Carlos Lacerda nas hostes golpistas, recusou-se, publicamente, a aderir à ditadura militar que, segundo ele, é a ditadura que está em marcha no Brasil. Por que, continuando a ser o ideólogo do golpe, recusou-se ao golpe militar? – Simplesmente, porque o dilema proposto é falso, porque a golpe que está, efetivamente, em marcha contra o povo, neste momento, não é de caráter militar.

É a segunda alternativa, pois, que corresponde melhor à verdade dos fatos. O artigo referido, bem analisado, contém todos os elementos úteis a verificação de que o golpe em marcha não tende a ser, imediatamente, de natureza militar. Mas não contém apenas isto. Revela , ademais, sua posição real a propósito da situação política do País, consubstanciada no que considerou a terceira solução, e a única saída para os problemas atuais. Que solução é essa? – eis aí algo que as forças populares devem examinar com atenção.

A solução que Carlos Lacerda apresenta para os problemas atuais do Brasil é a constituição de um governo de austeridade, um governo forte, em suma, que não dependesse do aval dos partidos para tomar as medidas que considerasse imperiosas, ou seja, a solução proposta é o verdadeiro golpe em marcha contra o povo, apresentado como o único caminho para a salvação nacional. Esse é o bote efetivo que se está armando no Brasil, que objetiva instalar a ditadura do governo forte, de autoridade suficiente para impor as soluções que julgasse corretas, sem ser obrigado a transacionar com os partidos, os quais, segundo o autor golpista, se equivalem na disputa de cargos e nos hábitos da barganha. E tanto é verdade que é este o golpe que está sendo arquitetado pela reação direitista, da qual Carlos Lacerda é ideólogo e altofalante, que, na eventualidade de ser instalada semelhante ditadura, os problemas relativos ao “estatuto legal”, sob o qual funcionará, deixam de ter importância. É o próprio Lacerda quem o diz: um governo dessa espécie, quer dizer, forte, é o que se necessita, neste momento, e não importa que seja parlamentarista ou presidencialista, com Jânio, Juscelino, ou Jango. Foi o próprio Lacerda quem disse isto, e isto é verdade mesmo. Instalada a ditadura do governo forte, não importa quem seja governo e, sim, que seja forte, de autoridade. Por que será que o golpista inveterado abre mão com tanta facilidade dos nomes que comporão o governo e da forma “legal” como se estabelecerá? – É absolutamente indispensável que as forças populares compreendam o porquê desse fato, pois nele reside a essência da ditadura do governo forte e todo o caráter antipopular de tal governo. As forças golpistas podem abrir mão dos nomes e da “forma legal” de que se revestirá o governo forte porque o que importa, fundamentalmente, é que, em tal governo, as medidas a serem tomadas não podem ser objeto de discussão popular, pois, por autodefinição, tais medidas são tomadas de acordo com os imperativos de segurança e de salvação nacionais, e o povo não tem competência para discutir tais assuntos. Na realidade, a ditadura de governo forte significa retirar do povo o direito de discutir os assuntos públicos, isto é, os assuntos que lhe dizem respeito. Colocar o povo na ilegalidade, eis o que significa, na essência, a ditadura do governo forte. E. para conseguir esse objetivo, as forças golpistas podem abrir mão de todas as demais circunstâncias, pois compreendem que seu maior inimigo, seu maior, mais radical e conseqüente inimigo, é o povo, e ninguém mais. Todos os problemas, sob tal ditadura, são transportados da praça pública para a área privada dos bastidores políticos.(2) Quer isso dizer que o povo, que as forças do povo, em tais condições, não possam discutir, repudiar e reivindicar medidas? – Não, não é disso que se trata, pois as reivindicações populares não são fruto de dispositivos jurídicos mas dos problemas reais, concretos, que afetam o povo e que a simples mudança jurídica no modo de comportar-se o governo não tem a virtude de resolver. O grave, em tal regime, é que se escamoteia ?(ao) povo, o direito de discutir seus próprios problemas veladamente, sob o artifício de que o governo age acima dos interesses privados dos partidos e, em conseqüência, segundo diz, o governo,(está)? acima de quaisquer interesses privados, atendendo apenas aos “reais” nacionais, aos quais ninguém tem o direito de se opor. Em semelhante conjuntura a decretação do “estado de sítio” torna-se rotina governamental, as greves e as reivindicações populares são facilmente declaradas atentatórias à segurança pública e reprimidas com desusada violência, todos os movimentos populares, enfim, são classificados como espúrios, subversivos e, deste modo, desbaratados à força. E tudo isto é possível por que? – Porque se instalou uma ditadura que tem por princípio político mais geral a afirmação de que as soluções para os problemas que afetam o povo e a Nação não devem e não podem ser resolvidas mediante lutas sociais, tornando-se deste modo abertamente ilegais quaisquer reivindicações do povo, por quaisquer meios. É absolutamente indispensável que as forças mais conscientes do povo denunciem tais manobras, e saibam demonstrar às massas que um governo acima dos partidos não quer dizer absolutamente acima dos interesses privados de qualquer grupo, que justamente o que se está pretendendo é privar o povo do direito de manifestar seus próprios interesses a fim de só terem vigência os interesses da minoria privilegiada. É absolutamente indispensável que a vanguarda politizada das massas saiba mostrar a todos como é possível consumar-se tal traição, e como só o povo sai perdendo quando se declaram ilegais as lutas sociais; e? saiba argumentar justamente com os problemas que aí estão à vista de todos e afetando a todos. Argumente por exemplo com as reformas de base que todos sentem, mas que só poderão vir a beneficiar o povo, se este tiver condições para participar de sua discussão e de seus méritos. Mostre ao povo, por exemplo, que existe uma reforma agrária que só beneficia o latifundiário, aumentando a exploração do camponês e, que há outra reforma agrária, que, esta sim, beneficia realmente o camponês e, conseqüentemente, todo o povo. Que existe uma regulamentação das remessas dos lucros das companhias estrangeiras que beneficia o povo, mas que também há outra que só beneficia essas mesmas companhias estrangeiras, em prejuízo do trabalho das massas. E é acima de tudo indispensável mostrar ao povo que só quando o povo pode participar das discussões desses assuntos, por intermédio de greves, de comícios, de passeatas, de quaisquer manifestações, enfim, é que ainda há um mínimo de possibilidade de que tais assuntos se resolvam em seu benefício. Ora, é justamente esse mínimo de possibilidades que a ditadura do governo forte pretende retirar do povo, impedindo-o de manifestar-se sobre as questões que lhe dizem respeito, não obstante a minoria privilegiada saber perfeitamente que só através das lutas sociais as massas podem defender-se. Mas é necessário que também o povo saiba disso – que só por intermédio das lutas sociais pode defender-se, como defendeu-se em 54 na luta pela Petrobrás, recentemente pela greve dos bancários, pelaspasseatas dos servidores públicos, pelos comícios em favor da reforma agrária, pelos movimentos paredistas dos náuticos, marítimos, ferroviários etc. É esta possibilidade de defender-se que a ditadura do governo forte pretende retirar do povo, quando considera que governar acima dos partidos significa governar acima dos interesses particulares: Um governo dessa espécie certamente governará acima de alguns interesses – os interesses do povo –, mas em favor dos outros interesses – os interesses da minoria privilegiada. Mas, para fazer isto, a ditadura do governo forte necessita de duas condições que o povo deve, por todos os meios e modos, negar-lhe, ou impedi-la de ter. Quais são essas condições?


 

 

AS CONDIÇÕES PARA A DITADURA DO GOVERNO FORTE

 

A primeira delas é a de que, o povo se deixe iludir pela mentira que os propagandistas do golpe procuram disseminar, dizendo que os nossos problemas só serão resolvidos por meio de soluções técnicas. A ditadura do governo forte sempre se apresenta como sistema de governo que, tendo em vista os “altos” interesses nacionais, só dá soluções técnicas aos problemas. Que quer isto dizer? – Quer dizer que o governo afiança que as soluções dos problemas não serão dadas levando em consideração os interesses sociais em jogo – de um lado, os interesses da minoria privilegiada, e, de outro, os interesses da maioria submetida – mas levando em consideração exclusivamente o aspecto técnico dos problemas. Pois bem: é absolutamente necessário que o povo jamais se deixe iludir por esta balela; que não acredite jamais em soluções exclusivamente técnicas, pois todas as soluções são técnicas e, nem por isso, deixam de beneficiar uns ou outros dos interesses em jogo. As forças do povo também desejam soluções técnicas, mas o problema consiste em definir – técnicas a favor de quem? – Que o povo não se deixe iludir pela crença de que existam soluções técnicas de ninguém, que sejam só técnicas, pois no dia em que se enganar a esse respeito ficará inerme para resistir à ditadura do governo forte que, certamente, se instalará então. Essa é a primeira condição para que se instale a ditadura do governo forte: que o povo, iludido, traído e enganado, aceite o embuste das soluções exclusivamente técnicas para os problemas, curvando-se, em conseqüência, ao argumento golpista de que isto só é realizável por um governo que esteja, com o consentimento do povo, acima dos partidos.

A segunda condição, que está difusa e confusamente implicada na primeira, é que o povo se convença de que um tal governo só é viável se for um governo de autoridade, um governo forte. É de suma importância que as forças avançadas considerem ser perfeitamente possível que o povo venha a aceitar essa argumentação, pois seus problemas se agravam dia a dia sem que, para eles, se apresente saída nos quadros vigentes. Na verdade, argumentam os propagandistas da ditadura do governo forte, como se conseguirá apresentar soluções técnicas para os problemas, se aí estão os partidos políticos, corrompidos, desmoralizados, comandados por apetites pessoais e pelo poder de barganha que possuem? Numa situação como a que aí se vê não há condições para nenhum governo apresentar soluções verdadeiramente “técnicas” pois os partidos impedem sua execução, exigindo somente soluções das quais possa tirar proveito, – continuam a afirmar os propagandistas da ditadura do governo forte. Para que o governo possa efetivamente atuar sem outro interesse senão o de defender “os imperativos de segurança e de salvação nacionais” é necessário que tenha autoridade, que tenha força suficiente para impor suas soluções aos partidos. Torna-se, então, indispensável, que o povo compreenda que a força de que o governo necessita, segundo os golpistas, não é de maneira alguma para impor suas soluções aos partidos, mas ao próprio povo. Isto é o que convém não esquecer jamais, a fim de não se iludir com os cantos de sereia dos totalitários. Uma ditadura dessa natureza jamais empregará sua força para impor suas soluções aos partidos, pois não são os partidos que necessitam de soluções, mas os problemas que agoniam o povo. Este é que é o verdadeiro significado da imposição pela força, pela autoridade, das soluções do governo. As forças de vanguarda sabem disto, mas é preciso que todo o povo também saiba e que jamais se deixe enganar pela propaganda golpista, pois no dia em que se deixar iludir, se deixar trair, e passar a julgar necessária a constituição de um governo forte, de autoridade, para dar aos problemas as soluções técnicas que exigem, nesse dia o povo se tomará inerme para se opor à ditadura do governo forte que, então, certamente virá. As massas devem compreender que as forças do golpe estão trabalhando para levar o povo a essa situação – e o artigo citado de Carlos Lacerda não é senão um dos elementos da ação golpista que está sendo desenvolvida para embair o povo e levá-lo a aceitar a solução do governo forte.


 

 

DE ONDE VIRÁ A “AUTORIDADE” DO GOVERNO?

 

E de onde há de provir essa “força”, essa “autoridade do governo, capaz de fazê -lo impor suas soluções ao povo? É evidente que essa força não há de provir senão das Forças Armadas, do corpo militar – e aqui tocamos no papel que a este cabe representar na eventualidade de uma ditadura do governo forte.

Em primeiro lugar é fácil compreender que essa força não pode derivar dos partidos, pois estes já não têm poder algum e, por suposto, é contra eles que essa manobra se há de exercer, segundo afirmam os porta-vozes da ditadura. Não poderá vir do apoio do povo também, porque muito rapidamente este compreenderá que a força que o governo possui está sendo usada verdadeiramente contra ele, povo. Criadas as condições para a instalação da ditadura do governo forte, uma dessas condições será o apoio do povo, caso venha a se iludir com as pregações totalitárias. Mas uma coisa é a instalação da ditadura, e outra, muito diferente, é a sua manutenção, é o poderio de que necessita para impor as medidas que de tal governo se esperava. Nessa oportunidade o povo rapidamente compreenderá a favor de quem e contra quem estão sendo tomadas as famosas medidas exclusivamente técnicas e tratará de reagir. Então, o povo compreenderá que é para impedir a sua reação que a nova ditadura requer força e autoridade. E está mais do que evidente que, excetuando-se a diminuta parcela da população – alguns setores da classe média – que se beneficiarão com o novo estilo de governo e que, por isso, continuarão a apoiá-lo, essa força e autoridade utilizadas para reprimir a revolta das massas não haverão de provir delas. De que lugar social, pois, poderá provir essa força senão do setor militar? – E não é por outra razão, atentem bem as forças populares para este ponto, que a solução apresentada pelo ideólogo do golpe em marcha no Brasil, Carlos Lacerda, prevê a instalação de um governo forte, sob fiança militar. Quer dizer, os fiadores de que as medidas adotadas por semelhante governo, pretensamente técnicas, iriam realmente ser levadas à prática seriam as Forças Armadas. E por que isto seria possível? – Pelas razões seguintes: criadas as condições objetivas para a aceitação de que é indispensável a constituição de um governo forte para levar a cabo as medidas de segurança e de salvação nacionais – as quais são, por definição, objeto dos cuidados das Forças Armadas – e tendo também estas, como parte do povo, e especialmente como parte de sua classe média, chegado à conclusão de que é efetivamente vantajosa a constituição de tal governo, não haveria mais empecilho algum a que os dirigentes militares aceitassem a incumbência de serem os fiadores de um governo “técnico”, constituído com o objetivo de tomar medidas no interesse da segurança e da salvação nacionais, que lhes compete resguardar. E nem haveria pruridos de intromissão militar na vida política, pois, por definição, o governo constituído agiria acima dos partidos, solucionando os problemas de maneira “técnica”, e os militares, servindo a tal governo, dando-lhe força e autoridade, estariam simplesmente cumprindo as medidas, ou afiançando seu cumprimento, que visariam, na linguagem golpista, à defesa da segurança e da salvação nacionais. Sendo esta defesa a missão precípua das Forças Armadas, estas servindo a tal governo, reprimindo greves, prendendo os líderes populares, intervindo em sindicatos, desbaratando pela violência os movimentos populares, estariam na verdade, cumprindo seu dever, tal como o entendem os golpistas, o que devia, aliás, ser até aplaudido pelo povo. Eis aí configurado o golpe em marcha no Brasil e a forma que tende a adotar: a forma de uma ditadura de governo forte, sob fiança militar, com tudo o que tem de reacionário e antipopular. Como se percebe, não há em tal hipótese a menor necessidade de que o golpe assuma caráter militar, isto é, que os militares controlem diretamente o aparelho do Estado. Para que venha a consumar o golpe contra o povo – e que já está em marcha – basta que as cúpulas militares decidam-se a cumprir rigorosamente seu dever, no molde ideológico em que esse dever lhes é apresentado pelas forças do golpe.

Quer isto, entretanto, dizer que está afastada absolutamente a hipótese de que o golpe em marcha se converta em golpe militar? – De modo algum. Como já se disse, o que determina o caráter de um golpe perpetrado contra o povo é a necessidade que a minoria dominante sente de assegurar sua dominação sobre a maioria submetida. Pode se dar o caso, então, de que as condições objetivas da realidade brasileira evoluam de tal modo que obriguem a minoria privilegiada a apelar para o golpe militar declarado, como último recurso de que pode lançar mão para assegurar sua dominação em face do avanço popular. Nesse caso, deve mudar também a forma de luta das massas para enfrentar a nova situação. De qualquer modo, o que é fundamental para as forças do povo é não perderem de vista, em momento algum, o conjunto das condições reais em que os fatos acontecem, pois só nesse conjunto têm sentido. Essas condições estão em permanente1 alteração, evoluem constantemente, e o problema consiste em saber até que ponto essas alterações e essas mudanças são suficientemente significativas para modificar o sentido geral do curso dos acontecimentos. O que importa ao povo, neste momento, é saber qual o caráter que o golpe em marcha tende a assumir, dadas as condições sociais, atuais, em que se desenrola a manobra golpista, sem esquecer que tais condições podem se modificar de tal maneira que implique ? alterar a tendência segundo a qual evolui a ação golpista. É com todas estas precauções e prudência, portanto, que as forças do povo devem admitir que o golpe em marcha no Brasil tende, nas condições atuais do País, para a ditadura do governo forte. Sendo assim, devem essas forças examinar quais as condições objetivas que acaso favoreceriam a vitória dos golpistas, no sentido de instalar a ditadura do governo forte, e, bem examinado este ponto, determinar qual deve ser a tática de luta das camadas populares a fim de não permitir que se realizem tais condições.


 

 

EM QUE, CONDIÇÕES PODE SER VITORIOSO O GOLPE PARA INSTALAR O GOVERNO FORTE?

 

Não obstante as forças golpistas virem desenvolvendo tenaz ação no sentido de predispor o povo à aceitação da ditadura, seja sob que forma for, sabem os representantes de vanguarda que o movimento reacionário brasileiro tem sofrido significativas derrotas. Isto se deve, antes de tudo, ao fato de que a ação totalitária está condenada, historicamente ao fracasso total. Este é um ponto no qual as forças do povo levam absoluta vantagem sobre os seus inimigos, mas que a vanguarda deve saber aproveitar em seu trabalho de educação política de todo o povo. A ação golpista da minoria privilegiada, que visa a manter a maioria submetida em eterna sujeição, está definitivamente destinada ao fracasso total, mais dia menos dia, pois já não é mais possível, no mundo de hoje, que a maioria seja submetida pela minoria por muito tempo. É necessário que a vanguarda saiba mostrar ao povo sua insuperável vantagem moral sobre seus inimigos. Os inimigos do povo trabalham contra o curso da história, a qual nos diz que, quando o povo luta, é fatal que termine vencedor, pois luta pela justiça, pelo progresso, e tem a maioria da humanidade a seu lado; enquanto os inimigos do povo lutam a favor da injustiça, do privilégio, da escravidão, do atraso e, por isso, têm de seu lado a minoria da humanidade. Quem, em tais condições, terminará por ser vencedor, desde que se disponha a lutar? – Todo o povo há de compreender que é ele quem vencerá a luta, porque necessariamente será levado a lutar. E aqui tocamos noutro ponto que a vanguarda não deve nunca deixar de explicar ao povo: que a sua vitória é certa não apenas porque a sua causa é a causa da justiça, mas fundamentalmente porque se decidiu a lutar pela justiça, e que o fracasso final dos inimigos do povo é inevitável não apenas porque se batem pela injustiça, mas porque encontram pela frente um adversário que está lutando pela justiça, não enquanto ideal abstrato, mas enquanto interesse das massas. É necessário que as forças progressistas saibam tirar partido da vantagem moral que o povo leva sobre seus inimigos a fim de temperar o ânimo popular, educá-lo na ação contra seus inimigos, sem, todavia, dar-lhe, uma visão inexata da batalha que se trava. Tem-se de dizer ao povo que sua vitória é certa, desde que saiba lutar e não abandonar jamais a luta, pois a vitória é fruto, não da justiça simplesmente, mas objetivamente da luta social pela justiça.

Se o fracasso final e completo dos inimigos do povo é historicamente inevitável, isso não impede que obtenham vitórias parciais ao longo da luta. Essa é uma das eventualidades da própria luta e depende da disposição do povo, de sua organização, de sua educação política e da tática empregada em cada combate, quer o número de vitórias parciais de seus inimigos seja maior ou menor. Em outras palavras, depende do modo pelo qual o povo converte sua insuperável vantagem moral em vantagem material, concreta; depende desse fato, tão somente, que a vitória final seja alcançada com maiores ou menores perdas para o povo. A cada fase da luta, a cada momento da batalha, as forças do povo devem fazer o máximo nas condições em que a luta se desenrola – o que depende, evidentemente, de maior ou menor compreensão que tenham das circunstâncias em que a batalha se trava, e da maior ou menor capacidade de organizar suas forças do modo mais eficaz possível.

Qual a forma de fazer, pois, com que mais uma vez as forças da reação e do golpe sejam derrotadas? – Em primeiro lugar, determinando em que condições poderiam ser essas forças vitoriosas, e, em segundo, desenvolvendo a ação justa a fim de que tais condições não se verifiquem.

A implantação da ditadura do governo forte – que tende a ser, neste momento, a forma que será assumida pela ditadura em marcha –, depende, como já se viu, de parcelas ponderáveis da população brasileira aceitarem corno necessária a constituição de tal governo. Quais as condições que poderiam levá-las – setores do proletariado menos politizado, predominância da identidade relativa de interesses da classe média sobre suas divergências relativas, setores da burguesia nacional (os quais se mantém resistentes a essa solução) – a aceitar a necessidade da constituição de um governo forte?


 

 

PRIMEIRA CONDICÃO

 

Em primeiro lugar, o avanço do movimento popular brasileiro, quer dizer, a transformação de sua vantagem moral em progressiva vantagem material, tanto sob o ponto de vista de organização (ligas camponesas, sindicatos etc.), quanto sob o ponto de vista de reivindicações cada vez mais nítidas quanto a seus objetivos (reforma agrária radical, reforma urbana, co-governo universitário, participação nos lucros, salário móvel, regulamentação do direito de greve, barreiras à exportação das riquezas do país – manganês, ferro, minérios estratégicos etc. –, disciplina do capital estrangeiro, etc.). Este avanço real do movimento popular brasileiro – que desempenha duplo papel, aliás, no problema do golpe, pois se, por um lado, contribui para criar as condições propícias ao golpe, por outro, converte-se em poderosa barreira a que se efetive – como se verá mais adiante –, este avanço real do movimento popular brasileiro, pois, pelos problemas que impõe à ordem vigente, incapaz de responder com presteza e justiça às reivindicações que suscita, contribui para o agravamento da situação geral do País, suscitando novos problemas, repisando e tornando insuportáveis os antigos e criando os impasses objetivos que o regime vigente é incapaz de solucionar. Quer isto dizer que a causa das dificuldades do País sejam as reivindicações populares e que, por isto, elas devam cessar? – De modo algum. As causas das dificuldades do País, e sobretudo a causa das dificuldades do povo das quais se originam aquelas reivindicações, residem na estrutura do País que, como vimos, se define como nação capitalista dominada pelo imperialismo. Mas o problema consiste justamente em que essa estrutura origina as reivindicações que determinam o avanço do movimento popular, o qual, como é evidente, reage sobre essa estrutura, tornando-a cada vez mais arcaica e incapaz de responder aos problemas que ela mesma suscitou. A essa altura gera-se o seguinte dilema: ou se modifica a estrutura básica fundamental do País, responsável pelos problemas criados, ou se abafam as reivindicações populares, reprime-se o avanço do movimento popular, a fim de que tal estrutura possa se manter por mais algum tempo. Está claro que a minoria dominante não morre de desejos de alterar a estrutura do País, principalmente a parte dessa minoria mais ligada ao domínio estrangeiro em nossa Pátria, mas ainda não tem condições para reprimir com a violência com que desejaria – principalmente o setor ligado ao imperialismo –, o avanço do povo. Enquanto isto, os problemas se acumulam, as reivindicações populares vão sendo parcialmente atendidas, na medida em que tal estrutura ainda permite esse atendimento, do que resulta a agravação dos problemas que pesam sobre essa mesma estrutura. Os setores da burguesia nacional que resistem à implantação da ditadura, por sua vez, também não se decidem a alterar o regime vigente. O impasse permanece. É isto que se faz obrigatório demonstrar a todo o povo: não são as suas reivindicações a fonte dos problemas nacionais, mas a estrutura fundamental do País – capitalista, dominado pelo imperialismo – é a fonte de todos os problemas que afetam a Nação brasileira, entre os quais se incluem os problemas populares, de onde surgem as reivindicações das massas. A solução, portanto, não consiste em esmorecer ou cessar o movimento popular, mas justamente em fazê-lo avançar, a fim de que se altere aquela estrutura fundamental. Jamais conseguirão as forças populares convencer a minoria privilegiada. Para esta o problema consiste em que o avanço popular multiplica os problemas, de tal modo que a estrutura básica fundamental do País vai se tornando incapaz de suportá-los e pode ocorrer que aquele setor da burguesia nacional, que por enquanto ainda resiste à solução de direita, termine por aceitá-la, temerosa do avanço do movimento popular e das conseqüências que a tentativa de alterar a ordenação social poderia acarretar. Enquanto isto, os arautos do golpe encarregam-se de veicular que são as reivindicações populares, por um lado, e a inépcia do regime atual, por outro, que constituem a fonte dos problemas que afligem a Nação, apresentando a “atraente” solução de que se substitua o regime vigente por outro, forte, que seja capaz, não só de conseguir as soluções que o atual é incapaz de oferecer, mas, sobretudo, conter o avanço do movimento popular nos seus devidos “limites”. É indispensável que a vanguarda alerte todo o povo para a mistificação de que está sendo vítima por parte dos alto-falantes golpistas, quando atribuem aos nossos problemas uma origem que não a verdadeira. Não é o avanço popular que cria os problemas, mas a estrutura fundamental do País sobre a qual os porta-vozes golpistas não dizem uma palavra. Como não é também a inépcia do governo atual em resolver “todos os problemas” a causa do impasse a que está chegando o povo brasileiro, mas a sua inépcia em resolver um único problema, que é o da transformação básica do País. Os aventureiros golpistas estão se aproveitando com bastante habilidade das contradições do governo atual, para forçar o povo a aceitar sua tese de que só um governo forte pode solucionar o impasse real a que está chegando a sociedade brasileira. As forças progressistas devem alertar o povo mostrando que há efetivamente um impasse real na sociedade brasileira e que também é certo que o governo atual não está conseguindo resolvê-lo. Mas nem tal impasse é aquele que apresentam os defensores do golpe. O impasse real tem lugar entre a estrutura fundamental do País e as necessidades sociais que ela origina sem ser capaz de satisfazer –, nem a solução é aquela que apresentam os golpistas, quer dizer, a solução não é mudar apenas a forma exterior de governo, mas mudar de estrutura. O golpismo está jogando, do seu ponto de vista, evidentemente, com dados reais. Cabe ao povo não cair no erro de acusar os golpistas de mentirosos integrais. Não é mentira que exista um avanço popular no Brasil – mentira é que este seja uma das causas dos problemas brasileiros –, nem é mentira que o governo atual não esteja resolvendo os problemas do povo – mentira é que esses problemas se resolvam pela substituição do governo atual por uma ditadura do governo forte –, como também não é mentira que exista um impasse real na sociedade brasileira atual – e sim que esse impasse seja entre as “forças da democracia e as forças do totalitarismo”, quando, na verdade, tal impasse se dá entre uma estrutura fundamental arcaica que não tem meios para responder às necessidades sociais que ela própria criou. A vanguarda do povo deve reconhecer que seu próprio avanço dá margem a que os golpistas utilizem as situações criadas por esse avanço – o qual não pode absolutamente deixar de ser estimulado por ela – em proveito do golpe. O avanço do movimento popular pode propiciar as condições da ditadura do governo forte, dependendo de como saibam aproveitar esse avanço as próprias forças populares, pois, como se disse acima, é esse avanço, por outro lado, quer dizer, bem aproveitado, um dos maiores entraves a que a pregação golpista seja vitoriosa.


 

 

SEGUNDA CONDIÇÃO

 

A segunda condição para que a pregação golpista seja vitoriosa decorre em larga medida da primeira. Refere-se à possibilidade de que todos aqueles setores que se tem mantido impermeáveis à pregação de golpe e que, particularmente durante os acontecimentos de agosto-setembro de 61, formaram decididamente ao lado do povo, venham a ser conquistados para a aventura golpista e aceitem a tese da necessidade do governo forte. Esses setores são a parte da burguesia que resiste a essa solução, a parte da classe média que também não está aceitando o que se está chamando de “interrupção das normas democráticas”, e, finalmente, todo aquele grupo social caracterizado como “centro”, politicamente considerado, quer se trate de setores de imprensa, quer de militares. Para conquistar o “centro” político vem a reação direitista desenvolvendo uma ação intensíssima que vai desde a corrupção até a paralisação desses setores pelo medo.

Por este último aspecto deve ser caracterizada, entendida e analisada a ação do MAC [Movimento Anticomunista] no contexto atual brasileiro. É evidente que o MAC não pretende tomar o poder, por intermédio do terror. Não são esses, pois, seus objetivos. Mas também não constitui a ação do MAC nenhuma manifestação de desespero da “direita”, como alguns membros das camadas populares querem fazer crer ao povo. O MAC é, na verdade, uma peça de esquema geral golpista para levar os setores do “centro” ou à aceitação completa das teses totalitárias, ou à sua paralisação pelo medo. O MAC é uma tática que está sendo utilizada pelos arquitetos do golpe com vistas sobretudo aos setores da classe média, que não aceitam a solução ditatorial, objetivando paralisá-los pelo temor. Está claro que o MAC não é uma campanha especificamente anticomunista. Basta que se analisem alguns dos nomes visados por essa organização terrorista – entre os quais se incluem, por exemplo, os nomes de San Tiago Dantas; de Afonso Arinos de Melo Franco, de Saldanha Coelho etc. – basta que se analisem os nomes visados pelo MAC e se verá que sua ação não é especificamente anticomunista. O anticomunismo, no caso, é usado como moeda que tem grande valia e curso na classe média, a qual na verdade o MAC visa a paralisarse não conseguir ganhá-la para a tese golpista. E também as instituições ameaçadas pelo MAC nada têm de comunistas: O jornal Correio da Manhã, por exemplo, o Jornal do Brasil, a Última Hora, de São Paulo, a UNE [União Nacional dos Estudantes] etc. É claro que, no meio de toda essa agitação, o MAC envolveu elementos ou organizações de esquerda, como no atentado à UNE, e o pichamento da residência de L. C. Prestes, líder comunista. Mas isto é para dar o resíduo de verdade necessário a que sua ação tivesse efeito. O MAC, na verdade, é uma das peças do esquema golpista, e sua missão consiste em criar as condições, especialmente no seio da classe média, que propiciem a aceitação da tese golpista da necessidade de um governo forte, ou, então, o que, socialmente falando, vem a dar no mesmo, paralisar os setores recalcitrantes, pelo medo.

A segunda condição para que a tese golpista seja vencedora é, pois, que grande parte dos setores que formam atualmente ao lado do povo, contra o golpe, e que constituem, no seu conjunto, o “centro” político, tendam para a aceitação da necessidade de um governo forte. Com o objetivo de conseguir esta condição vem se desenvolvendo toda a ação golpista, da qual o MAC – e todos os seus variantes – constitui uma peça, cujo campo de operação é a classe média. Mas não obstante ser a classe média o setor do centro político atual visado pelo MAC, curioso é observar como algum tempo depois de sua aparição no cenário político nacional, jornais como o Jornal do Brasil, por exemplo, que vinha assumindo uma posição de centro no setor da imprensa – que não é um setor de classe média, é necessário que fique claro, sendo esta aproximação apenas para facilitar a compreensão dos fatos – passaram a defender, veladamente, a necessidade de que o governo tivesse mais autoridade etc. Em seu editorial de 3 de fevereiro de 62, abordando as conclusões do Ministro da Justiça, justamente sobre as atividades do MAC (o qual, aliás, no mesmo editorial, o Jornal do Brasil considera como constituído por “agitadores sem importância”, “terroristas subdesenvolvidos que até agora não conseguiram derrubar uma parede sequer”. Assim é que o Jornal do Brasil considera o MAC, como agitadores sem importância, pois, acrescentamos nós, no atentado à UNE não conseguiram matar ninguém), nesse editorial, lá está a opinião atual(3) do Jornal do Brasil sobre a situação nacional: “A Nação vive um momento delicado. Não suporta a irresponsabilidade e a debilidade arvoradas à função pública. Quer um governo de autoridade e de eficiência. Não um governo que, às escuras, confessa, com toda calma, sua impotência”. (sublinhado por mim, W. G.) Eis, na opinião atual do Jornal do Brasil, que vinha desenvolvendo uma linha política de centro, o governo que a Nação quer. Ao lado disto, considerou o Jornal do Brasil que o MAC é uma tolice, não só no editorial citado, como também, no do dia seguinte – 4 de fevereiro. Lá está, na verdade, a opinião do Jornal do Brasil sobre o MAC: “Os nossos projetos de terroristas, tímidos e encabulados, (tão tímidos que só metralham jovens – acrescentamos nós. O Jornal do Brasil espera, talvez, que o MAC seja menos tímido e comece a atacar gente grande? 0 próprio Jornal do Brasil, talvez? – Não. Seus proprietários sabem que, com a opinião que emitiram, ficaram definitivamente a salvo das ameaças do MAC), picham umas paredes e tentam, sem êxito, derrubar outras, recorrendo a bombinhas comoventemente mal fabricadas e manejadas.”

Pois então o Jornal do Brasil, que vinha sendo uma das forças do centro, considera o MAC uma tolice! Ora, e para que, então, exigiria o Jornal do Brasil um governo de autoridade, tal como exigiu? – A resposta nos é dada por uma nota, de responsabilidade da direção do jornal, publicada ao lado do editorial do dia 8 de fevereiro. A nota tem por título “O MINISTRO ESTÁ CERTO”, e o Ministro do qual se trata é o Ministro da Justiça que, no editorial do dia 3, era convidado pelo jornal a deixar o cargo, o que foi repetido no editorial do dia 4, onde se dizia o seguinte a respeito desse mesmo ministro: “Segunda-feira teremos uma nova lista de nomes – os mandantes dos mandados. Esperamos que, na terça, tenhamos também um novo Ministro, capaz de mais atos e menos palavras’; ou seja, enquanto o Ministro ocupava-se com o MAC – que é uma tolice, na opinião do Jornal do Brasil, embora considere ser necessário um governo de autoridade – devia esse Ministro ser mudado, era um inepto, não sabia agir com autoridade, embora o caso do MAC fosse uma bobagem. Mas, então, voltemos a perguntar, para quê queria o Jornal do Brasil autoridade do Ministro? – É o que nos responde a referida nota cujo título é “O MINISTRO ESTÁ CERTO” e que diz o seguinte: “O Ministro da Justiça, senhor Alfredo Nasser, (o mesmo dos editoriais précitados) evidencia um comportamento político e administrativo correto ao informar aos oficiais de náutica que a sua grave será tida como ilegal. (...) As providências que o governo está tomando – por iniciativa e por determinação pessoal do senhor Alfredo Nasser – revelam tratamento de paciência em relação aos que ameaçam a navegação brasileira, mas revelam também decisão e firme propósito de não colocar movimentos ilegais em pé de igualdade com reivindicações que, afinal, tem outra envergadura e outra dimensão. “Ai está para o que serve um governo de autoridade do Jornal do Brasil, o povo há de facilmente compreender contra quem se exerce a autoridade de um governo autoritário. E que medidas terão sido essas, tomadas pelo senhor Alfredo Nasser, que tanto agradaram ao Jornal do Brasil? – Lá estão elas, na nota oficial do Ministério da Justiça sobre o assunto, da qual retiramos este trecho: “Se a greve se materializar, o Governo, na defesa do interesse pública e da sua autoridade, aplicará, intransigentemente, a lei, estando desde já previstas e planejadas as medidas indispensáveis para assegurar o abastecimento e o bem-estar da população, que cumpre preservar a qualquer custo.” (W. G. sublinhou. ) Aí está para que quer autoridade o Jornal do Brasil, e o povo necessita compreender que os golpistas da direita também não querem um governo de autoridade para coisa diferente: para aplicar, intransigentemente, as leis – as quais podem ser feitas de encomenda, como foi feita de encomenda a Constituição de 1937 –, na defesa do interesse público e da autoridade do governo. Só que essas medidas, intransigentes, são aplicadas contra o povo – os oficiais de náutica, no caso –, enquanto os terroristas são considerados sem importância; ou melhor, o Ministro recomendou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as atividades terroristas das organizações de direita e das de esquerda. Este é o golpe em marcha no Brasil e que já está dando seus frutos – eis o que precisa ser denunciado ao povo por sua vanguarda aguerrida. O “centro” político já está aderindo à tese do governo de autoridade, que é o golpe em marcha no Brasil.(4) As atividades da direita passaram a ser encaradas como insignificantes, mas já começaram as ameaças de investigação sobre as atividades das Ligas Camponesas. Tudo isto as forças progressistas precisam denunciar ao povo, mostrar-lhe como está em marcha um piano para fazer com que o “centro” político adira à tese de que é necessária a instalação de um governo forte. Um golpe dessa natureza pode ser executado sem haver necessidade de alterar muita coisa na aparência do sistema vigente. É possível até que o golpe seja dado sem ser necessário mudar o atual chefe do governo. Tem-se de alertar todo o povo para este perigo, pois o próprio Presidente João Goulart já fala na necessidade de formar um gabinete exclusivamente técnico. E o povo necessita estar prevenido para essas famosas soluções técnicas, partam de quem partir, pois, neste particular, Carlos Lacerda sabe o que diz quando afirma que não importa quem chefie o governo forte, desde que seja forte. As forças do povo não se podem deixar enganar pelas aparências dos fatos. Existe uma opção real, objetiva, no momento atual, e é em função dela que os homens e os movimentos devem ser caracterizados. Essa opção é a que coloca de um lado aqueles que consideram desejável alterar a estrutura fundamental do País para que as exigências sociais sejam satisfeitas e, de outro, os que consideram que não se deve alterar aquela estrutura, quer dizer, mantê-lo como nação capitalista, dominada pelo imperialismo. É claro que optar pela segunda alternativa implica resolver os problemas do povo em prejuízo do povo, e não há sutileza capaz de esconder este fato. Logo, toda proposta que tenha por objetivo desviar a atenção do verdadeiro impasse que se está agravando cada dia mais, seja sob que pretexto for, está optando pela segunda alternativa e, conseqüentemente, é dirigida contra o povo, ainda que parta do Presidente do Partido Trabalhista Brasileiro. Devemos estar atentos às condições reais em que se está tramando e executando o golpe contra o povo no Brasil. Como já se disse, em todo o golpe há sempre alguém que trai alguém ou alguma coisa, e o povo só tem um meio de reconhecer quem o traiu: analisando as atitudes, seja de quem for, de acordo com os critérios válidos para este momento e, não, de acordo com a vida passada, mais ou menos gloriosa, de quem quer que seja.

A segunda condição para ser possível o golpe do governo forte contra o povo é, por conseguinte, a de que tenda para a tese golpista aquela parcela do “centro” que vem formando, na sua maior parte, até agora, ao lado dos interesses do povo. Para conseguir este objetivo as forças da reação estão desenvolvendo um plano cuidadosamente traçado e que já está, inclusive, surtindo seus primeiros efeitos. Cabe às camadas esclarecidas do povo, por conseguinte, opor a essa ação, outra, de sentido contrário, a fim de tentar manter as condições que estão impedindo o desencadeamento do golpe no Brasil.


 

 

COMO SE OPOR AO GOLPE EM MARCHA NO BRASIL?

 

É claro que as forças do povo não podem determinar concreta e pormenorizadamente todos os recursos com que contam para impedir o avanço golpista. E não podem muito simplesmente porque esses recursos variam e dependem, originariamente, da situação concreta em que se desenvolva a luta. É a situação particular concreta, configurando um problema vivo, específico, que determina os recursos de que se devem valer os dirigentes populares na luta contra seus inimigos. E essas situações variam, não só em virtude dos acontecimentos políticos que se vão desenrolando, mas em virtude também da própria ação das forças golpistas, e ainda em virtude da ação das forças do povo. Nessas condições, não há como catalogar receitas contra o golpe, a não ser que se quisesse levar as forças populares a uma ação cega e inflexível. A inflexibilidade da ação popular deve ser colocada, a cada fase da luta, nos príncípios que, em tal fase, devem orientar toda ação concreta. E que princípios são esses?

Em primeiro e principal lugar, fazer com que evolua o movimento popular em todos os seus aspectos: reivindicatórios, de politização, mas, sobretudo, em seu aspecto organizatório. É preciso, de modo absoluto, que o povo se organize para enfrentar seus inimigos, pois esta é a condição básica, sem a qual toda vitória, caso exista, é fugaz. É imperioso que o movimento popular avance, transformando em vantagem material sua vantagem moral, levando em conta especialmente o fato de que é o povo, principalmente sua vanguarda, os trabalhadores, os camponeses e os estudantes, o único inimigo conseqüente das forças golpistas. Já se viu que o avanço popular pode criar as condições propícias à pregação golpista, e já se viu também por que isso se dá. Mas o outro lado da medalha é que o avanço do povo, organizado, é a principal condição para fazer com que as demais forças sociais se decidam pelo lado justo da opção fundamental da sociedade brasileira. À medida que o movimento popular avança, transformando em vantagem material sua vantagem moral, vai retirando cada vez mais capacidade e decisão autônoma às demais forças sociais, quer sejam latifundiárias, quer sejam comerciantes, quer seja a burguesia nacional, quer seja a classe média, inclusive o Exército, como parte dessa classe média. Torna-se cada vez mais impossível, quando o movimento popular avança e conquista posições, que aquelas forças tomem decisões à revelia dele. E, assim, se é verdade que o avanço popular contribui para tornar cada vez mais explícita a opção essencial da sociedade brasileira, também é verdade que, em virtude desse avanço, as forças populares ganham progressivamente condições para obrigar as demais forças sociais a se decidirem por um dos lados da opção – aquele que favorece o povo –, ou para impeli-las de se decidirem pelo outro – aquele prejudicial ao povo. Fazer avançar o movimento popular, sob todos os aspectos, principalmente o organizatório, é o primeiro princípio da luta contra o golpe da minoria dominante Como realizá-lo concretamente é o que compete aos militantes progressistas descobrir pacientemente, inexoravelmente.

Em segundo lugar, já que as condições para o golpe dependem, sobremaneira, de fazer pender para o seu lado os setores da classe média e da burguesia que resistem à sua sedução, o segundo princípio a ser observado pelo povo, nesta fase da luta, é manter a todo custo a divisão da burguesia e da classe média, não medir esforços para impedir que aquela identidade relativa, de que se falou atrás, venha a predominar sobre as divergências relativas. É necessário que as forças sociais, no que se refere à luta contra o golpe, permaneçam, no mínimo, como estão, – divididas de alto a baixo, – a fim de que as forças do golpe não consigam tornar necessidade comum, a várias e ponderáveis parcelas sociais, a instalação de um governo forte. Como realizar isto na ação prática, como manter dividida a classe média e a burguesia, é algo que depende das condições concretas e que variam sempre, nas quais vivem os setores que se pretende conquistar. Compete aos dirigentes descobrir como realizar, concretamente, em cada caso, este princípio diretor desta fase da luta.

Finalmente, quer isto dizer que, com tais princípios, disposição e compreensão, esteja definitivamente afastada a hipótese da implantação da ditadura do governo forte, ou de qualquer outra ditadura? – De modo algum. Como já dizia um grande líder do povo, a vanguarda é apenas uma das forças sociais atuantes, e o curso dos acontecimentos não depende exclusivamente de uma só força. Pode-se dar perfeitamente o caso de que, apesar de todos os esforços das forças populares, a minoria dominante consiga levar avante seus desígnios de manter a maioria do povo dominada. Quando isso ocorrer, se ocorrer, outras deverão ser as formas de luta do povo, porque outras deverão ser as condições nas quais essa luta se desenrolará. Por ora, porém, o inimigo que as forças do povo têm pela frente esta perfeitamente caracterizado, sua forma de luta claramente definida, seus objetivos nitidamente discerníveis. – Que as forças do povo disponham sua linha de frente da melhor forma possível e que lutem de modo mais encarniçado. Já está em marcha o golpe contra o povo; que se ponha em marcha, então, o povo contra o golpe, no Brasil.

 

WANDERLEY GUILHERME
fevereiro de 62


 

 

Notas

 

1 – Escrito em fevereiro de 1962, quando Frondizi ainda governava. Os fatos posteriores só fizeram comprovar o exemplo.

2 – Veja-se, por exemplo, como têm sido reprimidas as manifestações estudantis sobre o problema da Reforma Universitária enquanto os Reitores para tratar do mesmo assunto, reúnem-se festivamente aqui e ali, a tramar tresloucados manifestos.

3 – Atual aí quer dizer fevereiro de 62. Posteriormente o Jornal do Brasil voltou a adotar posição legalista, ainda que de modo tíbio. Em todo caso, se se quer estudar as teses golpistas pela imprensa, basta acompanhar os editoriais de O Globo e do Estado de S. Paulo, especialmente os editoriais deste último nos meses de maio e junho.

4 – Consulte-se o documento resultante da Reunião de Governadores em Araxá, onde se afirma desde o início que o grave problema nacional é a crise de autoridade.


 

CADERNOS DO POVO BRASILEIRO

Os grandes problemas de nosso País são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sectarismo; seu objetivo principal é o de informar. Somente quando bem informado é que o povo consegue emancipar-se.

Primeiros lançamentos

1 — Que São as Ligas Camponesas?
        Francisco Julião
2 — Quem é o Povo no Brasil?
        Nelson Werneck Sodré
3 — Quem Faz as Leis no Brasil?
        Osny Duarte Pereira
4 — Por Que os Ricos Não Fazem Greve?
        Álvaro Vieira Pinto
5 — Quem Dará o Golpe no Brasil?
        Wanderley Guilherme

LEIA-OS — COMENTE-OS — DIVULGUE-OS


 

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org

©2012 Wanderley Guilherme

Versão para eBook
eBooksBrasil

_________________
Novembro 2012

eBookLibris
© 2012 eBooksBrasil.org