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QORPO SANTO DE CORPO INTEIRO

Janer Cristaldo

[organizador]

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Qorpo Santo de Corpo Inteiro
Janer Cristaldo [organizador]

Edição
eBooksBrasil
Fonte Digital
Janer Cristaldo
cristal@altavista.net

Artigos publicados anteriormente em:
Travessia
Revista de Literatura Brasileira do
Curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira — UFSC
V. 4 — Nº 7 — p. 172 — DEZ. 83

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© 2000-2006 dos respectivos Autores


 

ÍNDICE

Qorpo e Qaos
Janer Cristaldo

Um Viajante a Xavier de Maistre
Janer Cristaldo

O Teatro de Qorpo Santo
Teoria da recepção e loucura ao espelho
Luciana Stegagno Picchio

A DESCOBERTA DO QORPO
Janer Cristaldo


 

Qorpo Santo
de
Corpo Inteiro

[imagem]

Janer Cristaldo
[org]


 

 

QORPO & QAOS*

 

Qorpo Santo. O de insólito nome. O por um século ignorado. E mais uma vez morto, tão logo ressuscitado. Três de suas peças, escritas em 1866, são representadas pela primeira vez em 1966, graças à teimosia de Aníbal Damasceno Ferreira e Antônio Carlos de Sena, para logo caírem mais uma vez no esquecimento. A segunda ressurreição, esta definitiva, só irá ocorrer dois anos mais tarde quando, em um festival de teatro no Rio de Janeiro, Yan Michalski o proclama “verdadeiramente sensa­cional, primeiro precursor mundial do teatro do absurdo”. Rio dixit. A província intelectual gaúcha começa então a perguntar-se se aquele maluco da Rua da Praia não terá alguma importância na história das letras.

No que vai grossa ironia. E se não existissem Jarry, Becket ou lonesco? Não sendo precursor de qualquer coisa européia, seria precur­sor de quê? De nada, e portanto zero à esquerda. E mais uma vez nossos complexos de inferioridade cultural nos fazem curvar a cabeça ante os padrões dalém-mar.

Enfim, o homem parece estar salvo. Como também o que restou de sua Ensiqiopédia. Do teatro já passou ao cinema e hoje tornou-se ópera. De obscuro escriba tido por louco na Porto Alegre do século passado, transferiu-se para as universidades do país, americanas e européias. E já começa a ser incluído na historiografia universal da literatura.

Nesta edição de Travessia, começamos entrevistando o homem que efetivamente o descobriu, apesar do que possam dizer verbetes apressados de enciclopédias. Entrevista dificil, dura de ser extraída, obtida a fórceps, quase. Pois Aníbal Damasceno Ferreira é arredio a entrevistas. O que nos obrigou a entremeá-la com textos de sua única manifestação pública em torno ao caso, “Qorpo Santo ou a Singu­laridade”, publicado no extinto Caderno de Sábado do Correio do Povo, Porto Alegre, em 21 de fevereiro de 1968. A seguir, a Profª Luciana Stegagno Picchio se interroga sobre o sentido da reabilitação. Make it new ou play it again?

Raúl Antelo faz uma seleção de textos em prosa e verso do livro 7 da Ensiqlopédia, intitulado A Saúde e a Justiça, onde o autor reflete sobre suas atribulações, o homem e o mundo. Janete Gaspar Machado já vê no teatrólogo um homem que, debatendo-se à cata de soluções viáveis para a fragmentação de sua condição, acaba por parir seu próprio caos interior. Enquanto seus contemporâneos discutiam o sexo dos anjos, Qorpo Santo irá se preocupar com o “ceqso” dos homens: Marília Mothci Adler trará à tona, percorrendo suas peças, estas dilaceradas obsessões eróticas. E Maria de Jesus Evangelista levanta uma tese tão insólita quanto o autor: Qorpo Santo, um romântico?

Last but not least, pesquisa nossa já publicada em Boletim de Ariel nº 7, Rio, s/d, situando o verdadeiro descobridor do teatrólogo gaúcho. Afirmação com a qual, conforme já tivemos satisfação de ler, concorda Alfredo Bosi.

J.C.

(*) — Esta introdução, publicada na revista Travessia da UFSC especialmente dedicada a Qorpo Santo, é republicada aqui para benefício do leitor que se interesse em ter acesso ao conjunto dos artigos ali originalmente publicados. [NE]


 

 

UM VIAJANTE A XAVIER DE MAISTRE

Janer Cristaldo
Doutor em Letras Francesas e Comparadas pela Université de la Sorbonne Nouvelle e ex-professor-visitante de Literatura Brasileira na UFSC.

 

“Empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias à roda de meu quarto. As interessantes observações que fiz e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho faziam-me nascer o desejo de o tornar público; a certeza de ser útil foi o que me decidiu.

“Meu coração sente uma inexprimível alegria, quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um recurso certo contra o tédio e um conforto suavizador para os males que sofrem. O prazer que a gente tem em viajar no seu quarto está ao abrigo do ciúme inquieto dos homens; é independente da fortuna”.

.............................................

“A minha alma é de tal modo aberta a toda espécie de idéias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se apresen­ta!... E por que havia ela de recusar os gozos que estão dispersos pelo difícil caminho da vida? Estes são tão raros, tão disseminados, que era preciso ser um louco para não parar, para não sair até um pouco fora do caminho, a fim de colher todos os que estiverem ao nosso alcance. Não há nenhum mais atraente, do que o de seguir a pista das suas idéias, como o caçador segue a caça, sem procurar caminho certo”.

Viagem à Roda de meu Quarto, Xavier de Maistre


 

Quem é Aníbal Damasceno Ferreira, o homem que salvou Qorpo Santo do pó das bibliotecas e o trouxe para nosso século? Seu nome, não vamos encontrá-lo nas bibliografias da literatura gaúcha, et pour cause: Aníbal não tem livro algum publicado. No excelente Quem é quem nas Letras Rio-grandenses, de Faraco & Hickmann, 2ª edição, no lacônico verbete que lhe é conferido falta o essencial: sua contribuição à cultura brasileira e universal, a prospecção e a trazida à luz da obra qorpo­santiana.

Infelizmente — como dizem Faraco & Hickmann — ainda não reu­niu seus trabalhos em livro. Sua atividade literária pública e, vamos dizer assim, diurna, se resume a publicações esparsas, artigos e contos. Autodidata, tem como influências Sterne, Thackeray, Sthendal, Swift, Montaigne, Camões e, cá entre nós, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, o das crônicas, sobretudo. Ou seja, estamos diante de um homem que cultiva o humour, em sua mais nobre acepção. Fora isto, este anônimo pesquisador tem sido o responsável por prospecções bem mais contemporâneas. Não poucos jovens devem sua iniciação literária a seu paciente trabalho de sapa junto aos meios de divulgação gaúchos. Que o levou a procurar Qorpo Santo?

— A singularidade, nada mais que isso!

— Tudo cabe dizer de Qorpo-Santo. Dêem-no como genial ou louco, deve-se, no entanto, ressaltar primeiro a sua essencial qualidade, a qual tem muito maior importância do que quer que se lhe aponte: singula­ridade. Só depois, conforme pode vir a pedir o caso, pronunciem-se teatrólogos e psiquiatrias. Nunca antes. Porque o singular, sob pena de o não ser, é, por excelência, o inconceituável — uma categoria a parte, que resvala às mais argutas especulações.

Constata-se, já pela miúda e direta observação do cotidiano, já por via de eruditas metafísicas colocações, que o singular comove bem. Nada mais se sabe. O resto é silêncio ou hipóteses. Querem uns que seja o singular um efeito poético. Outros, uma forma de humour e uns terceiros, extravagância ou loucura. Falsíssimas conjeturas. Para ser poesia é o singular demasiado gaio — falta-lhe a leveza, o jeito etéreo, o “oomph” e todas aquelas graças honestas haventes na obra de arte. Humour, também não. Humorismo pede sentimento e, mínimo que seja, traz sempre, bem lá no fundo, um nadinha de reflexão. Loucura? De jeito nenhum. Esta constrange, desaponta, choca. Vê-se, portanto, que qualquer definição seria nula rem. Demais, o sentido da singulari­dade está em si mesmo, acima das razões e das sem-razões. Tentar captá-lo é querer vau a pé enxuto no rio de Heráclito. Melhor alvitre, pois, é ir-se a gente nas águas de Bergson.

Aníbal Damasceno pretende pois captar Qorpo Santo sem outros instrumentos que não a intuição. Assim sendo, sem preocupações de ordem conceitual, que seria então a singularidade?

— Ainda que mero artifício de estilo, só para fins de digressão, vamos aceitar que a singularidade ou o singular seja, forçando urna linguagem de feição roseana, “o espantante agradável”, Machado de Assis por certo não estava longe de pensar assim, quando definiu o singularíssimo Arthur de Oliveira como “um saco de espantos”. Do mesmo modo tampouco o está Athos Damasceno Ferreira, que em um de seus livros colocou esse mesmo Arthur ao lado de Qorpo Santo. Agora o que vai espantar. mas não de modo agradável, é o fato de se poder colocar lado a lado, porque singulares, homens e mulheres dís­pares, de todos os tamanhos que, por sua obra, condição e exercício, nada tenham de comum entre si. De verdade, em termos de singula­ridade, não seria impertinente meter dentro da mesma caixa tipos como Salvador Dali, Idi Amin Dada, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Chacrinha, Jayme Ovale, Neusinha Brizola, Qorpo Santo, Genet, Te­nório Cavalcanti, Ítala Nandi ou Madame de Stäel. Todos esses, inde­pendentemente da míngua ou do proveito com que hajam obrado, dentro ou fora de seu mister, primam antes de tudo por espantarem de um jeito assaz curioso. Constróem a canoa a seu modo, com o número de paus que lhes dá na cabeça, na mais peculiar e nunca vista maneira.

— Parágrafo único: Joaquim Manoel de Macedo, Sílvio Santos, Magalhães Pinto. Agnaldo Rayol, José de Alencar, Margareth Thatcher e o presidente Médici são parceiros de outra caixa.

Damasceno imagina o horror de um acadêmico vendo Guimarães Rosa ao lado de Chacrinha, Madame de Stäel ao lado de Idi Amin Dada. Tenta então mostrar-nos alguns gestos singulares.

— Olhem bem Jayme Ovale, certa madrugada: telefonou a Getúlio Vargas para agradecer-lhe o que, segundo entendia, era um grande benefício — a vida: “Viver é um grande benefício, como não tenho a quem agradecer, agradeço a você”. Ou Lima Barreto, o cineasta. Pon­dere-se esta sua declaração a uma revista da época, quando se refes­telava com a vitória de Cannes: “Sempre odiei a humanidade. Fui feio e pobre, não tive namoradas e não andei de bicicleta, mas me vinguei, porque os caras que tiveram tudo isso não fizeram o Cangaceiro... E eu fiz”. Já Niemeyer vai mais longe e beira a molecagem, mas ainda assim e antes de tudo singular. Contam que depois de terminar a cons­trução de Brasília subiu ao terraço de um edifício e de lá atirou, para baixo, dentro de uma caixa de papelão, uma certa coisa.. . Não menos singular, mas até um pouco trágica, visto o sentimento de frustração ante o irremediável, é a atitude do cidadão inglês, em extremo pontual, todo dado a formalidades e festas de aniversário, que aos amigos sempre se queixava: “Ah! se meus pais tivessem consultado o relógio naquela precisa hora!” Muitas são as piadas que fazem rir. Algumas podem até marcar pela inventividade da forma ou pela sutileza da idéia, mas raras terão a singularidade desta carta que Millôr Fernandes atribuiu a Van Gogh: “Meu querido irmão: como você vive dizendo que eu não lhe dou ouvidos, estou lhe enviando junto a esta...”

— Também do mesmo sagaz Millôr, valendo igual citação nestes pro­pósitos, é aquele estranho lamuriar-se do conhecido Corcunda de Notre Dame:

— “Está bem, está bem... Eu sei... Mas se não me querem mais, por que não vendem o meu passe para Westminster?”

Bem ali, pertinho, do outro lado do Canal da Mancha, por muitos séculos hão de vigir dois casos. Um, o do impertinente polido rapaz que figurou de terrorista durante o real desfile, alvejando sua Majestade Britânica com balas de festim; e o outro, o do general que à sombra da mesma excelsa Coroa fez-se proclamar Lord Protetor da República. (Dar-se-á que Geografia e singularidade....)

Onde, então, esta singularidade em Qorpo Santo?

Em tudo. Nos versos de marcada feição surrealista com que assus­tou a família e os intelectuais da época “Dei um tiro de pólvora em cobri os anjos de letras”; no retrato que tirou diante do mapa-mundi, com um globo terrestre na mão; na estranhíssima idéia de fazer um exército composto só de mulheres grávidas; no anúncio luminoso que bolou para enfeitar o frontispício de sua loja, colocando velas acesas dentro de uma caixa de vidro; na mania de entrar e sair de casa pela janela; nas reformas que pretendia fazer, do código civil, da constituição e da gramática portuguesa; no estrambólico do nome e — talvez a sua maior insolência — nestes versos em que, para perplexidade da Província, advertiu uma baronesa da sociedade local:

“Tenho um umbigo
Bem retovado
De couro rapado
De ponta aguda
Que põe muda
Qualquer mulher
Que mete a colher
Não sei aonde”

Paradoxalmente, todas essas extravagâncias que indispuseram Qorpo Santo com a intelectualidade gaúcha por mais de um século — e que mais tarde levariam Guilhermino Cesar a nem sequer mencionar-lhe o nome na sua História da Literatura do Rio Grande do Sul — é que fizeram Damasceno se apaixonar pelo dramaturgo de Triunfo, mesmo sem conhecer seus livros. Quando encontrou estes, depois de andar seca e meca, a paixão foi ainda maior, pois já no primeiro contato com os textos logo percebeu que tinha diante de si uma individualidade absolutamente singular, que em nada se parecia com os beletristas contemporâneos.

— Essa veia de bizarro que outra coisa não é senão um prestigioso sinal de singularidade, anima por vezes a obra e a vida dos grandes. Xavier de Maistre viajou ao redor do quarto. Swift, pelo jornal, ensinava a fritar crianças na banha. Nelson Rodngues era fascinado pelas dores físicas e adorava escarradeiras. Já bem de vida, com o bolso cheio, para compensar os tempos de pobreza, em vez de gastar em coisas suntuá­rias, esbanjava andando de táxi. Quando vinha de jantar no Nino’s, ia para a cozinha comer pão com ovo.

— E quem não se lembra do aborto de Virgília, cujo embrião pereceu naquele ponto em que a cara de La Place não se distinguia d uma tartaruga? O leitor de Borges, por sua vez, sempre terá presente aquele sinistro Funes, vítima da boa memória, que levou exatamente vinte e quatro horas recordando o dia anterior. Mas será em Guimarães Rosa — o mais singular de todos — que estes exemplos abundarão. Abra-se, ao acaso, um exemplar de Tutaméia: “Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal (...) Morava, porém, era onde, em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada”. Ou ainda: em defendida distância dali morava vi uma moça, Lindalice no fino chamar-se”. Ou mesmo: “O trágico não vem a conta-gotas”

Mas o descobridor de Jozé Joaquim de Campos Leão não se recusa a ver outro lado da questão, aquele pelo qual o teatrólogo é valorizado.

— Deixado de parte esse aspecto da excentricidade, que é o que mais me fascina em Q.S., há também o lado “rigorosamente teatral e literário”, que tanto preocupa os profissionais da crítica. É claro,analisada formalmente, com rigor, a partir de uma teoria da literatura, a fortuna qorpo-santense, toma uma dimensão e um significado que transcendem isso que eu, caprichosamente, chamo de singularidade... ainda assim prefiro o diletantismo da crítica impressionista.

— O bem grave é que a percepção do singular requer também singularidade e este dom, infelizmente, nem sempre orna o espírito das pessoas comuns, lúcidas-sensatas, cuja mente se compraz naquela coerência bonita que rege e concerta as coisas conchavadas e certinhas. A tais pessoas, sabe-lhes mal o não habitual, o inusitado, o insólito. É de ver-se o horror com que torcem o nariz quando lhes surge diante dos olhos algo não previsto, dentro dos limites do normal ululante. Não é de estranhar, portanto, que os singulares com elas vivam em eterna birra e turra. Swift, para muitos, foi apenas um grosseiro ogre. Laurence Sterne, um palhaço charlatão. Nelson Rodrigues, um tarado. Salvador Dali, um mesquinho mago de feira. O estilo barroco, por exemplo, que marca um período de ouro na História das Artes, foi visto pela maioria dos coevos como algo pretensioso e estapafúrdio, tanto que o nome “barroco”, ao designar os adeptos da novidade, valia por uma achincalhação. Até na Inglaterra, onde os nobres súditos são dados ao culto d excentricidade e da extravagância, notam-se às vezes restrições à singularidade. Pois não foi um escândalo quando alguns ímpares pares, no Parlamento, em discursos inflamados, ameaçaram devolver suas medalhas só porque Sua Majestade resolvera condecorar os singularíssimos Beatles? Em tempos que já lá vão foi ainda pior. A reserva que hoje, por amenas e polidas maneiras se faz aos introdutores de novidades, tinha antes um caráter de execração. Era dar sérios indícios de má índole ousar alguém a reforma do que quer que fosse. Leia-se este lugar de Guimarães Rosa: “Originariamente, insolência designaria apenas: sin­gulandade, coisa ou atitude desacostumada, insólita; mas como a no­vidade sempre agride, daí a evolução semântica para: arrogância, atre­vimento, atitude desaforada, petulância, grosseria”.

— Calcule-se então o que não deve ter passado o pobre Qorpo Santo, nesta mui leal e valerosa cidade de Porto Alegre, capital da Pro­víncia de São Pedro do Rio Grande do Sul, há cem anos! O infeliz só podia ter o fim que teve: no hospício.

Como vê Aníbal Damasceno a influência de Q. S. sobre sua época e sobre o teatro contemporâneo?

— Acho que Qorpo Santo, pelo fato de ter vivido à margem, sem­pre segregado, naquelas condições que sabemos, com fama de louco, hostilizado por todo mundo, inclusive, talvez, pela família e pelos ami­gos, dificilmente poderia ter exercido qualquer influência sobre a socie­dade de seu tempo. Não há informação de que suas peças tenham sido encenadas e se foram, é quase certo que não agradaram. Que vá influir no teatro que se faz atualmente também é improvável. A dramaturgia evoluiu muito. As propostas que ele trouxe, embora revolucionárias na época, hoje não constituem mais nenhuma novidade e já têm outras for­mulações. Mas isso, em absoluto não diminui a grandeza de seu legado, onde vejo dois fatos transcendentes que sempre se impõem à meditação: uma obra de arte que vingou e glória póstuma.

Esta incompreensão pelos contemporâneos, este desprezo pelo talen­to — ou, enfim, pela singularidade — é o que mais comove Aníbal Damasceno no caso Qorpo Santo.

— O inditoso mestre-escola arrastou penosa existência por estes pagos sem jamais encontrar quem lhe apresentasse protestos de elevada estima e distinta consideração. Intelectuais de boa ou má cepa, plebe, crianças, todo mundo sempre o teve por rematado louco de se atar. Sobre o que ele fez, disse ou escreveu, nunca uma palavra que não fosse de ironia ou reproche. E assim veio sendo até há alguns anos, quando a imprensa nacional, passou a anunciá-lo como a maior descoberta da dramaturgia brasileira. E que de galantes apelidos não o cobriram? O Jarry brasileiro, o Ionesco gaúcho, o Genial, o Sensacional, o Profeta, etc., etc.

Que Qorpo Santo seja louco ou não, Damasceno crê que isso nada subtrai ou acrescenta à sua obra. O que importa a sanidade mental de um artista — pergunta-se — se a sua obra, de um jeito ou de outro, sempre diz alguma coisa?

— Nada. O teatro de Qorpo Santo tem, pois, de ser visto apenas como hoje o podemos ter, no palco ou no texto, absolutamente a parte das circunstâncias que cercaram a vida e a pessoa de seu autor. E mesmo o que daí se viesse a dizer, pelo menos para mim, deve ficar para depois, pois nesse extraordinário dramaturgo, tudo — seus defeitos e vir­tudes — hão de ser sempre meros aspectos de sua singularidade.


 

 

O TEATRO DE QORPO SANTO
Teoria da recepção e loucura ao espelho

Luciana Stegagno Picchio
Catedrática de Língua e Literatura Portuguesas na Universidade de Roma

 

Madame Martin: Quelle est la morale?
Le Pompier: Cest à vous de la trouver.
Ionesco, La cantatrice chauve

1.

“Os loucos de hoje serão os sábios de amanhã.” Na afirmação, como acontece freqüentemente nos textos paradigmáticos de gosto e nível popular. encontram-se duas direções, ou seja, duas chaves de leitura. A primeira, otimista, sente o vir-a-ser como progresso e idealiza o futuro como lugar de reparação dos que a contemporaneidade recu­sou. A segunda, pessimista, ligada à ideologização do “fiorebat olim”, da perpétua “laudatio temporis acti”, prevê um futuro de tal maneira depauperado de valores que dará credibilidade de sábio àquele que os seus contemporâneos, justamente, isolaram como demente.

Em que chave devemos ler algumas exemplares “reabilitações” hodiernas de personagens e obras do passado? Seria suficiente uma teoria da recepção “up to date”, cônscia de Adorno, de Walter Benja­mm, de todos os valores destacados pela chamada escola de Frankfurt e aplicados à literatura por um crítico filólogo como Jauss, para virar pelo avesso as opiniões de nossos antepassados? Esta é a pergunta que me ponho aqui nesta intervenção sobre teatro latino-americano em geral e teatro brasileiro em particular. Objeto, ponto de partida, pretexto deste meu estudo, será a obra dramática do “bicho teatral” com o nome “absurdo”. a começar pela sua roupagem gráfica, de Qorpo Santo que, recuperado por uma crítica inteligente, entre 1964 e 1968, vem sendo encenado e louvado no Brasil como o criador, ante-litteram, do próprio teatro do Absurdo.[1]

No universo teatral brasileiro, alguns cenáculos de aficionados não necessariamente gaúchos estudam hoje a obra de Qorpo Santo (obra de um louco, disseram os seus contemporâneos) como um conjunto de textos, ou melhor, de “roteiros” ou “scripts” teatrais perfeitamente sintonizados com a estética e a práxis de todos os teatros de vanguarda, quer os de paradoxo quer os de protesto, e de um protesto simultanea­mente histórico e metafísico.

E Qorpo Santo, definido no seu ressurgir como o Ionesco,[2] mas também como o Antonin Artaud ou o Erik Satie do Brasil[3] é louvado como o “precursor brasileiro” de Adamov, de Beckett ou de Genet. Mais “normal”, como teatrólogo, do que o Jarry patafísico do Ubu enchainé, pois, o louco genial Alfred Jarry, “como seu delírio voca­bular decadentista, deixa na sombra, sem sentido visível, boa parte do que lhe ardia na mente. Ao passo que o louco manso das margens do Guaíba não emprega palavras ou expressões cuja semântica seja aparen­temente nenhuma, ou que tenham apenas um valor sonoro para o espectador”[4]

O caso me parece digno de atenção. E portanto, mais que ao personagem Qorpo Santo, e à sua escritura dialogada, já estudados em monografias e em centenas de artigos[5], gostaria de chamar a atenção para o “caso” teatral aberto pela hodierna recuperação ou, se qui­sermos, pelo atual “make it new”[6], e procurar as suas motivações.

2.

Iniciemos pela crônica remota e recente. Ambas bem conhecidas, agora. O personagem chamava-se, no registo civil e na vida, José Joaquim de Campos Leão. Nascido em Triunfo (RS), em 1829, levara até os 33 anos uma vida de pequeno burguês, casado, bem de vida, professor primário, maçom. Até que, em 1862, improvisamente, deixa o emprego para dedicar-se a uma solitária e frenética atividade literária. Aban­donado pela família, começa o seu entra-e-sai nos manicômios do Im­pério, continuamente submetido a exames mentais para, diz ele, escapar da acusação de “monomania”. Declarado “interdito total” em 1868, aos 39 anos, morrerá aos 54, em 1883, vítima de tuberculose pulmonar. Seus contemporâneos lembrá-lo-ão como Qorpo Santo, epíteto que ele mesmo acrescentara a seu nome quando, durante uma crise mística, viveu por algum tempo em regime de castidade: qualificativo que não pensou em abandonar nem mesmo quando retomou, com furor, aquelas “relações naturais” que serão objeto de seu texto mais famoso. E será também lembrado como o ousado reformador ortográfico do português e como impressor-editor de uma confusa enciclopédia (Ensiqlopédia, ou Seis meses de huma enfermidade, na ortografia qorposantina) alimentada pelos seus próprios escritos e por ele vendida, pessoalmente, nos modos, estes também ante litteram, do “cordel” — colportage nacional.[7]

Fora da província riograndense, o nome de Qorpo Santo ficará, em nível popular, como sinônimo de “personagem de palhaçada, bufão, doido”. conceitos que serão adotados pela imprensa conservadora, com clara conotação negativa, por ocasião da Semana de Arte Moderna de 1922. Na Semana, com efeito, o escritor gaúcho Múcio Teixeira recorda o “maluco”, ou seja o maluco Qorpo Santo, de “pilhérica memória”, para declarar que futuristas e modernistas não tinham inventado nada, pois a eliminação da rima, da metrificação e da gramática, além do bom-senso, na poesia, já tinha sido praticada por Qorpo Santo.[8]

A partir daí, o louco literato gaúcho tornar-se-á, para os brasileiros, na expressão, por exemplo, de Athos Damasceno Ferreira, “o nosso pri­meiro suprarrealista. e precursor da grande revolução poética brasileira, uma espécie de Tiradentes do movimento modernista do país”.[9]

Tudo, porém, fica limitado a nível de anedota, pois parece que não existem mais os textos. Há uma espécie de tradição oral, em virtude da qual os amadores como Athos Damasceno Ferreira gostam de recitar para os íntimos versos do poeta ao limite entre o non-sense poético e intencional e o desconexo involuntário e patológico, nos quais a cabrita, Teresa e a lingüíça sofrem horrores, para rimar, num domingo de missa.[10] Na década de 1960, porém. dá-se, com a recuperação de três fascículos da famosa Ensiqlopédia, a recuperação do teatrólogo.

Depois de vários acontecimentos, que a crônica riograndense vai orga­nizar em polêmica (quem terá sido o “descobridor” de Qorpo Santo”[11]) três suas comédias, As relações naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida, eu não sou morte, são representadas pelo Teatro Universitário em Porto Alegre, com inesperado sucesso do público. As encenações de peças de Qorpo Santo passam, então, a ser numerosas; integradas no repertório de companhias profissionais, tornam-se estímulo para novas pesquisas de atuação cênica, desde a marcação grotesca de personagens e situações, nos modos do “vaudeville”, à leitura destacada, nos moldes brechtianos, daquilo que o público é convidado a condenar; e servem também como ponto de partida para exercícios cênicos de expressão corporal. E não é só: para Qorpo Santo autor dramático, a quem se dedicam estudos críticos e exegeses poéticas, e mesmo transcrições cinematográficas, em formas de exasperado expressionismo, invoca-se um dos lugares de liderança no reduzido panteão da dramaturgia brasi­leira.[12]

3.

Está na hora de fazer perguntas. A primeira, clássica, é a que se refere à defasagem entre o autor e público seu contemporâneo, já resu­mida lapidarmente por Sousândrade, por exemplo, na fórmula: “Ouvi dizer que minha obra vai ser lida cinqüenta anos depois. Fiquei desolado: a desilusão de quem escreve cinquenta anos antes.” E Sousândrade éautor coevo de Qorpo Santo, inventor, como este, de seu próprio nome literário, construído pelo sincretismo de dois sobrenomes tradicionais com a “modesta” finalidade de alcançar o mesmo número de letras de Shakespeare. Da mesma maneira que Qorpo Santo, Sousândrade (1832-1902) foi professor primário, recusado pela família e incompreendido pelos seus contemporâneos, só alcançando fama póstuma em virtude da recuperação por críticos da nova vanguarda, pelos poetas concretistas de São Paulo sobretudo, que da sua obra vão valorizar as ilhas revolu­cionárias, “futuristas”, seja no plano formal, seja dos conteú­dos.[13]

Primeira pergunta: Qorpo Santo era um doido para os seus contemporâneos só porque via bem mais longe que eles tanto na vida como na literatura? Ou era mesmo louco e a nossa atual recuperação é sinal de nossa forma de ver os loucos do presente e do passado, de preencher suas vicissitudes e linguagem com significados que são nossos, com nossos complexos de marginalização e com nossos complexos de culpa pela marginalização a que condenamos os outros?

Segunda pergunta: O público que aplaude as representações de peças de Qorpo Santo comporta-se assim porque vê nele um autor injustamente incompreendido pelos seus contemporâneos, não um louco mas alguém bem mais sábio que eles, pois capaz de antecipar suas ações humanas e sociais, ou porque o que interessa não são as peças de Qorpo Santo e sim o personagem inteiro de Qorpo Santo, o louco, marginalizado pela sociedade, a quem, enquanto louco, concedeu-se dizer coisas que cada um de nós traz no inconsciente, coisas que talvez, ainda hoje, sejam condenadas e condenáveis pela lógica e pela moral, cuja encenação atua como uma função libertadora coletiva, numa ca­tarse que, desde Aristóteles, se considera, convencionalmente, como o objetivo principal do teatro?

Terceira pergunta, corolário da anterior: se as peças de Qorpo Santo fossem lidas ou representadas sem que o público tomasse conhe­cimento da sua autoria, sem que entre o texto e o leitor, entre atores e espectadores surgisse o melancólico personagem do “doido de Triunfo”, tal como aparece nas caricaturas de seu tempo — com sua grande cabeça romântica, seus olhos tristes, sua testa larga, os cabelos compridos que se fundem com as barbas de beato, de fraque e cartola roídos — ou seja, se as peças tivessem vida própria nos textos e nos palcos, o sucesso atual seria o mesmo?

E mais: o teatro de Qorpo Santo pode ser exportado? Além de sua linguagem e de seu contexto cultural, há nele elementos universais que possam tornar seus personagens (marionetes movimentadas na metade do século passado em um imaginado teatrinho do interior gaúcho por um jeitoso artista de província) modelos de comportamento válidos para qualquer época e qualquer país, arquétipos humanos e sociais?

4.

Procuremos as primeiras respostas nos textos. As comédias, num total de 17, encontram-se todas no terceiro volume de Ensiqlopédia, 102 páginas impressas na Tipografia Qorpo Santo, em Porto Alegre, em julho de 1877. Se se acredita no colofão, foram todas escritas em 1866. Qorpo Santo, segundo seu próprio testemunho, escrevia-as “ao correr de pena”, uma por dia, às vezes em apenas duas ou três horas de trabalho: em termos quantitativos só Lope de Vega poderia, relativa­mente, concorrer com nosso personagem. Começa em fins de janeiro de 1866 com uma comédia inacabada, O hóspede atrevido ou O brilhante escondido; três peças em fevereiro, uma no dia 12, outra em 16 e mais outra em 24. Uma pausa e, então, o mês de graça. Em maio de 1866 Qorpo. Santo escreve 8 comédias das mais representativas e representadas de seu repertório: Duas páginas em branco, no dia 5; Mateus e Mateusa, no dia 12; “As relações naturais” no dia 14; “Hoje sou um e amanhã outro” no dia 15; “Eu sou vida, eu não sou morte” no dia 16, e assim por diante, até o ato único “Um credor na Fazenda Nacional” que o ocupa dois dias 26 e 27 de maio. Mais quatro peças até 16 de junho e depois o silêncio. Enfraquece para sempre a grande fúria criadora, realizada na cidade de Porto Alegre, no nº 21 do Beco do Rosário, sobrado de três janelas? Ou outros dramas se extraviaram na perda de pelo menos 5 dos 8 volumes em que se articulava a Ensiqiopédia, em 1877, quando o humilde e “reverente” súdito Qorpo Santo homena­geava Sua Majestade Imperial D. Pedro II, com uma carta cheia de ressentimentos pela perseguição de que se sentia vítima? No momento a pergunta fica sem resposta. Mas os textos que nos chegaram consti­tuem, por si mesmos, um orgânico e significativo repertório.

Por que e como escrevia Qorpo Santo? As duas respostas são imediatamente dadas pela leitura das primeiras cenas das Relações naturais. A peça tem início com um monólogo do protagonista que é, ao mesmo tempo, ator e historiador, implicado no acontecimento e dele distanciado. Impertinente é o seu nome e, como quase todos os nomes de Qorpo Santo, tem um claro sabor setecentesco, trazendo-nos à lem­brança um teatro categorial, seja um popular teatro de marionetes seja um doutíssimo teatro jesuítico, em que os personagens são simultanea­mente tipos e abstrações “morais” e, como tais, podem ser imediata­mente reconhecidos por um público co-participante.

O impertinente de Qorpo Santo coincice assim autobiograficamen­te com o Autor: a casa que ele põe em cena é tão evidentemente a casa em que ele, Qorpo Santo, escreve, em 14 de maio de 1866, que a cena se configura logo como um diário romântico no qual convergem tumultuo­sâmente e sem qualquer forma de censura os pensamentos do Escritor-Personagem. A invenção é, talvez, a de materializar com personagens de carne-e-osso os próprios sonhos proibidos, às próprias imagens lascivas de mocinhas amorosas, e mesmo o próprio super-ego que tudo censura: com um precedente ilustre no quinhentesco Anjo-da-Guarda do Auto da Alma, de Gil Vicente. Como as peças de Qorpo Santo têm, ainda hoje, reduzida circulação, vale a pena reproduzir aqui o monólogo com que têm início As relações naturais, para que tenhamos um apoio textual para o que dissemos até aqui:

PRIMEIRO ATO Cena 1.
IMPERTINENTE: Já estava admirado: e consultando a mim mesmo, já me parecia grande felicidade para esta grande freguesia o não dobrarem os sinos... E para eu mesmo não ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! Estava querendo sair a passeio: fazer uma visita: e já que a minha ingrata e nojenta imaginação tirou-se um jantar, pretendia ao menos conversar com quem m’o havia oferecido. Entretanto não sei se o farei! Não sei porém o que inspirou continuar no mais improfícuo trabalho! Vou levan­tar-me: continuá-lo e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração pela alma desse cujos dias Deus pôs com a sua Onipotente voz ou vontade! E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei — As relacões naturais.
(Levanta-se aproxima-sede uma mesa: pega uma pena; molha em tinta e começa a escrever:)
São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Sul: e para muitos, — Império do Brasil... Já se vê pois que isto é uma verdadeira comédia! (Atirando com a pena. grita:) Leve o diabo esta vida de escritor!
É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aoui me incomodando! Levem-se trinta milhões de dia­bos para o Céu da pureza, se eu pegar mais em pena antes de ter... Sim! Sim! Antes deter numerosas moças com quem passe agradavelmente as horas que eu quiser. (Mais brabo ainda) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomo­dar! E sem nada gozar! Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está dito! Aqui escrito (pondo a mão na testa); está feito; e dentro do peito! (Pondo a mão neste). Vou portanto vestir-me, e sair para depois rir-me; e concluir este meu útil trabalho! (Caminha de um para o outro lado: coça a cabeça; resmunga: toma tabaco ou rapé; e sai o mais jocosamente que é possível.) Estava (ao aparecer) eu já ficando ansiado de tanto escrever, e por não ver a pessoa que ontem me dirigiu as mais afetuosas palavras! (Ao sair, encontra uma mulher ricamente vestida, chamada Consoladora).[14]

E aqui, entram em cena a Consoladora, a Intérpreta, Truque-Truque, a Velha-mariposa...: todas hipóstases de um Pecado que obsessiona o Autor-dramaturgo e que é o ponto de partida da sua tenta­tiva de sublimação literária.

5.

Claro, todos os exercícios teatrais de Qorpo Santo são um conjunto de furiosas auto-análises, reveladores de esquizofrênicas cisões de per­sonalidade, de delírios de grandeza, de necessidade de revanche diante de uma contingente realidade de humilhações. Claro, melhor que usar sofisticadas terminologias modernas, valeria a tentação de estudar Qor­po Santo na perspectiva e segundo a ótica de julgamento de seus con­temporâneos, com categorias tomadas por empréstimo a Cesare Lom­broso e à sua concepção degeneradora do gênio, ou talvez a Max Nordau. Aliás, o problema que aqui nos colocamos não é Qorpo Santo, mas o porquê da aceitação atual dos textos “loucos” de Qorpo Santo.

Machado de Assis, autor de paradigmático conto que é O Alienista, talvez nos respondesse com a sua irônica estatística: louco é aquele que em uma sociedade está do lado da maioria, sábio é quem milita nas filas da maioria. Basta que a relação se inverta e o alienista de ontem será o louco de hoje, o carcereiro passará a ser o encarcerado.

É esta a resposta que estávamos procurando? Talvez sim, em termos absolutos. Em termos relativos, porém, não se deve tirar Qorpo Santo e o seu teatro daquele contexto latino-americano em que não só ele viveu, mas em que também, hoje, aconteceu a sua “reabilitação”.

O tema do louco em cena é rotineiro no atual teatro latino-ameri­cano. Poderia tratar-se de uma recuperação intelectualista da barbárica religiosidade que, nas sociedades primitivas, privilegia o louco como um ser tocado por Deus. Mas poderia tratar-se também de um sinal, noutros níveis, do desejo de fuga no sonho e no absurdo, e, afinal de contas, na poesia que caracteriza toda a literatura latino-americana de nossos dias. Neste sentido, a recuperação hodierna do teatro de Qorpo Santo equi­valeria, no teatro, a um vitalista ato de criação paralelo aos tantos realizados nestes anos por autores latino-americanos que se movem nos limites do irracional: chamem-se eles Gabriel García Marquez ou João Guimarães Rosa.

Em Roma, o argentino Gabriel Cacho Millet põe no palco Campana, o louco de Marradi, e o monólogo Quase um homem, do poeta órfico que, fechado no seu manicômio de Castel Pulci, recebe as visitas dos amigos e fala de si e de sua doença, é muito semelhante, não digo aos monólogos de Qorpo Santo tal como nos chegaram através de sua caseira enciclopédia, mas, como eles, intelectualisticamente, nos são dados pelos modernos dramaturgos brasileiros. Como se o louco de Triunfo recebesse a nossa visita no manicômio riograndense e nos acolhesse analogamente a Campana, ou ao Sade e Marat de Peter Weiss, na sua trágica e esquálida intimidade. Um paradigma, talvez, não mais apenas da solidão do intelectual “ferido” do II Império brasileiro, mas da solidão de todos os intelectuais “feridos” do presente e do passado.[15]

NOTAS

1. — Sobre o Teatro do Absurdo, ainda fundamental o belo livro de Martin Esslin. The Theatre of the absurd, 1971. Tradução francesa, Théatre de l’absurde, Éditions Buchet/Chastel, Paris, 1977. Uma primeira redação, italiana, deste meu ensaio, foi incluída, sob o título “Alcune considerazioni sui pazzi in scena nel teatro latino-americano”, no Festschrift José Cid Pérez”. Senda de estudos e ensayos, organizada por Alberto Gutiérrez de la Solana e Elio Alba Buffill, Senda Nueva de Ediciones, New York, 1981, pp. 139-146. Embora o trabalho fosse inicialmente destinado a um público “leigo”, isto é um público internacional pouco informado sobre o contexto cultural brasileiro, achei que fosse talvez interessante mostrar ao leitor brasileiro também o ponto de vista de um crítico estran­geiro acerca de um objeto literário nacional. E, nesta perspec­tiva, agradeço aos amigos da “Travessia” o ter acolhido a contribuição da estrangeira que eu sou na sua bela revista.

Anteriormente, eu própria já tinha feito referência a Qorpo Santo e ao seu teatro no meu livro: Luciana Stegagno Picchio, La Letteratura Brasiliana, Santoni-Accademia, Firenze-­Milano, 1972, pp. 447-448 e Bibl.., pp. 459-460.

E, mais recentemente, em La Littérature Brésilienne, Paris, Presses Universitaires de France, col. “Que sais-je?”, 1981, p. 66. Agradeço a Wagner Novaes pela ajuda na redação desta versão em português do meu trabalho.

2. — Cf. a “Folha da Tarde” de Porto Alegre, 4 agosto 1964 que. anunciando a intenção manifestada pelos dirigentes do local Clube de Cultura de levar à cena três peças curtas de Qorpo Santo, intitulava o artigo: “Qorpo Santo é Ionesco do século XIX”. Agradeço ao colega Janer Cristaldo o me ter feito co­nhecer este e outros documentos do “caso Qorpo Santo”.

3. — Cf. Décio Pignatari, in “Correio da Manhã” Rio de Janeiro, 26 de Março de 1967: “O teatro de Qorpo Santo é antiteatro, ou melhor, metateatro. Se lembra Ionesco, lembrará também Antonin Artaud. Algumas marcações suas são do tipo Erik Satie”.

4. — Guilhermino César, Qorpo Santo, do mito à realidade, in Jornal do Brasil, Caderno B, 4 de Maio de 1968.

5. — Essencialmente: Qorpo Santo. Joaquim de Campos Leão. As relações naturais e outras comédias. Fixação do texto, es­tudo crítico e notas, por Guilhermino César, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969; 2ª ed., ibidem, Editora Movimento, Co-edições URGS, 1976; Flávio Aguiar, Os homens precários. Inovação e convenção na dra­maturgia de Qorpo Santo, Porto Alegre, A Nação/Instituto Estadual do Livro, 1975. Para artigos e ensaios anteriores, v. a Bibliografia, completa até a data de publicação, nos dois volu­mes. Para os trabalhos posteriores a 1976, veja-se o “Caderno de Sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, por ocasião dos 70 anos de Guilhermino César (20 de maio de 1978), com notícias sobre a atividade do crítico como “descobridor” de Qorpo Santo. E veja-se Flávio Aguiar. “Guilhermino César e Qorpo Santo”, no Correio do Povo, Porto Alegre, 27.05.1978, p. 6. Um seminário sobre Qorpo Santo foi realizado, em 1981, na Universidade de Brasília, por Heitor Martins e a Maria Martins deve-se uma fundamental tese sobre o nosso teatró­logo.

6. — Décio Pignatari, art. cit.: “Depois de Sousândrade, no Ma­ranhão; depois de Kilkerry, na Bahia, Qorpo Santo, no Rio Grande do Sul. A recuperação da informação (“information retrieval”) que corresponde ao “make it new” de Ezra Pound, é tão importante quanto a criação da informação nova para a vida do organismo”.

7. — Embora o cordel, como nivel estilístico e modo de divulgação de textos literários ao gosto do povo exista em Portugal, como em toda a Península Ibérica, a partir do século XVI, isto é, desde a descoberta da imprensa, e embora muitas edições de cordel portuguesas tenham passado ao Brasil no próprio século XVI, convém nâo esquecer que o nome cordel, aplicado em fins do século passado no Brasil às peças populares imitando o colportage francês, é um decalque brasileiro ou, pelo menos, uma redescoberta de fins do século XIX de um velho nome português. Cf., por exemplo, Horácio de Almeida, “Intro­dução à obra de Leandro Gomes de Barros”, em Literatura popular em verso. Antologia, II volume. Fundação Casa de Rui Barbosa — Fundação Univ. Regional Nordeste, Rio de Janeiro 1976, pp. 1-14.

8. — Múcio Teixeira, “Memórias dignas de memória”, em Anuário do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1913, Livraria Selbach, Porto Alegre, 1912, pp. 164-176. Cf. Flávio Aguiar, Os homens precários, cit. pp. 30-32.

9. — Athos Damasceno Ferreira, Imagens sentimentais da cidade, Porto Alegre. Livraria do Globo, 1940. p. 127. Cf. Flávio Aguiar, Os homens precários, cit. p. 32.

10. — Guilhermino César, Minha participação no “caso” Qorpo Santo —. in “Caderno de Sábado” — “Correio do Povo”, Porto Alegre, 17-8-1968.

11. — Cf. Janer Cristaldo, A descoberta do Qorpo, in Boletim do Ariel, nº 7. A aproximação de Qorpo Santo aos autores do Teatro do Absurdo caberia aYan Michalsky “que, assistindo a somente duas peças deste autor, não hesitou em proclamá-lo “verdadeiramente sensacional, primeiro precursor mundial do teatro do absurdo”. Cf. ainda, de Guilhermino César, as quatro séries de Minha participação no caso Qorpo Santo, cit. I, “Correio do Povo, Caderno de Sábado”, 17-8-1968; II, 26-8-1968; III, 31-8 — 1968; IV, 7-9 — 1968.

12. — Lembro-me ter visto no Rio, em 1977, uma belíssima trans­crição cinematográfica por Haroldo Maria Barbosa de Eu sou vida, eu não sou morte. E obrigada a Alexandre Eulálio orga­nizador da sessão. 13. — Para Sousândrade, cuja vida e fortuna valeria a pena estudar como “vida paralela” à de Qorpo Santo, de quem era mais culto e literato e sobretudo mais compos sui, veja-se essencialmente Augusto e Haroldo de Campos, Re/Visão de Sousân­drade. Textos críticos, antologia, glossário, biobibliografia, São Paulo 1964, e Friedrich Williams, Sousândrade, com uma introdução de Jorge de Sena, São Luís do Maranhão, Edições Sioge, 1979, além do mais recentemente, Luiza Lobo, Tradi­ção e ruptura: O Guesa de Sousândrade, Edições SIOGE, São Luís, Ma. 1979.

Qorpo Santo, também como Sousândrade, julgava-se um “precursor”. Mais realista, porém, do que este, pensava ter avançado demais na eliminação das “idéias intermediárias”:

“As minhas obras quási só eu as entendo; tantas foram as inutilidades por mim suprimidas! Acho porém cêdo para que desde já se faça tanto!”, “Sobre a ortografia”, Qorpo Santo, Guilhermino César, cit., p. 26.

14. — Ibidem, pp. 70-7 1. Talvez influenciado pelo próprio Qorpo Santo, Guilhermino César regulariza a ortografia qorpo-san­tina, com medo de que o texto fique ousado demais, mesmo para um leitor de hoje.

15. — Cf. Flávio Aguiar, Guilhermino César, cit., na nota 1: “Há muito também do Teatro do Absurdo em Qorpo Santo, não resta dúvida. Não só que há menos Ionesco e Beckett, e mais Vladimir e Estragon, os tristes palhaços de Esperando Godot. Neste sentido, a agitação, as micagens, as falas, tudo o mais revela, na verdade, uma mansidão apavorante: a mansidão do silêncio, das paisagens geladas. A imagem da pesca é ade­quada: lá embaixo, o peixe se debate furiosamente na rede, até que cansa. Em cima, na superfície, muito pouco aparece. Há uma mansidão,a mansidão dos condenados. Há uma mansidão aí: a mansidão do Segundo Império, empedernidamente con­servador, patriarcal e escravocrata.”


 

 

A DESCOBERTA DO QORPO

Janer Cristaldo Doutor em Letras Francesas e Comparadaspela Université de la Sorbonne Nouvellee ex-professor-visitante de Literatura Brasileira na UFSC.

 

DO MALA-NOS-TENTOS

O tal mineiro é das Minas.
Minas Gerais me parece
de Sabará ou Surubi.
De lá se veio mui pobre!
E agora, com plata e cobre
Minas achou ele aqui.

Aureliano de Figueiredo Pinto, in Armorial de Estância e Outros Poemas

Os homens não se dividem apenas entre os que criam e os que não conseguem fazê-lo: existem também os que pedem aos criadores carona para a posteridade.

O criador que nos interessa é Jozé Joaquim Qampos Leão Qorpo Santo. Dele não diremos mais que isto: morreu há quase um século, genial, desconhecido e ridicularizado. Morto em 1883, teve três de suas peças encenadas exatamente um século após escritas. A importância de sua obra na dramaturgia contemporânea não admite discussões: já se impôs por sua força e originalidade. Neste momento, no entanto, sua obra não nos interessa. Queremos falar apenas de quem pretende tê-lo descoberto.

Tem o professor, Guilhermino César da Silva feito declarações a periódicos nacionais manifestando o seu entusiasmo pela “sua” desco­berta. Analisemos alguns trechos de suas entrevistas.

Escreve, falando de A Ensiqiopédia ou Seis Meses de uma Enfer­midade: “Sairam ao todo nove ou dez fascículos, dos quais só se conhecem três, dois pertencentes ao Prof. Dario Bittencourt e um ao escritor Olyntho Sanmartin”[1]. E mais adiante: “Ao escrever a História da Literatura do Rio Grande do Sul, aparecida em 1956, nada encon­tramos da autoria de Qorpo Santo nas bibliotecas e arquivos do Estado e do Pais (o grifo é nosso) apesar das muitas buscas realizadas’’[2].

No entanto, na sua História da Literatura do Rio Grande do Sul há referência a Olvntho Sanmartin, &ldqo;que generosamente nos franqueou a sua preciosa coleção de autores rio-grandenses”.[3]

Sanmartin possuía um Qorpo Santo. Guilhermino César afirma ter tido acesso à sua coleção de autores gaúchos em 1956. ou antes. E em 1968 diz nada ter encontrado deste autor “nas bibliotecas do Estado e do País, apesar de muitas buscas realizadas”.

Outra ainda, se não tão culposa, bem mais grave: “Aquiles Porto Alegre. Athos Damasceno Ferreira e Álvaro Moreira se referem ao pobre autor para tomá-lo como objeto de escárnio”[4].

Diz-nos Athos, em 1940: “Dois tipos sem limites, e que, por isso, devem ser vistos acima do tempo, foram Artur de Oliveira e Qorpo Santo...

“...(Qorpo Santo) não tirou os pés daqui. E nunca pôs os pés em agremiações, academias, rodinhas, sociedades ou o que que fosse.

“Foi um solitário. Um esquisitão. Um maluco.

“Não aparece nas citações autorizadas, jamais foi tido como intelec­tual, e quando a História se lembra dele transfere o poeta para o futuro apenas como tipo popular.

“É uma injustiça. Clamorosíssima.

“Qorpo Santo foi o nosso primeiro supra-realista, o precursor da grande revolução poética brasileira, uma espécie de Tiradentes do movi­mento modernista do País”[5].

Objeto de escárnio?

Tampouco Aquiles Porto Alegre o toma como objeto de escárnio, embora o julgue louco. Com suas palavras:

“Qorpo Santo, atualmente de memória tão ridicularizada pelos intelectuais. Todavia, antes do desequilíbrio mental, de que foi vítima, Qorpo Santo foi homem de certo valor e representação...

“No anno de 1876, já visivelmente transtornado do cérebro...[6]

“Tomou muito a sério as suas obrigações, cumprindo religiosamente seus deveres.

“Por onde andou deixou bom nome pela sua conduta irreprehen­sível, não só na vida íntima como no cargo que exercia.

“Nos últimos anos, já não regulava com acerto”[7]

Em artigo escrito para o teatro do Clube de Cultura, escreve o professor Guilhermino: “ O século XIX viu-o sob o ângulo puro e simples da loucura. Aquiles Porto Alegre escreveu a seu respeito uma crônica espirituosa... O mesmo fizeram Athos Damasceno Ferreira, Álvaro Moreira e Olyntho Sanmartin, mais recentemente, em dois arti­gos na imprensa local”[8]. Contrapomos aqui apenas alguns excertos de Olyntho Sanmartin.

“Sem ser um modernista do nosso tempo, fez, no entanto, litera­tura contrariando todos os principios acadêmicos.

“Grande homem este Qorpo Santo, que fazia sua literatura sem tomar conhecimento do mundo literário que o cercava.

“Qorpo Santo pode ser considerado um neoprecursor sui-generis do modernismo literário no Rio Grande do Sul, ainda que de tendência moderna, respeitando em parte os preceitos da poesia passadista”[9].

...sob o ângulo puro e simples da loucura?

Ou residiria o caráter da descoberta de Guilherme César da Silva em colocá-lo como precursor do teatro do absurdo?

No entanto, em data bem anterior, Lúcia Carvalho Melo falava em “Ionesco gaúcho”, em “exceção genial dentro do contexto teatral do século XIX. A autenticidade e valor do teatro de Qorpo Santo consiste em ele apresentar uma visão toda sua do mundo, deformada pela cruel­dade, pela distorção, pela desconexão, destruindo a personalidade dos personagens que se apresentam fracionados na ação e na palavra”[10].

E quando Lúcia Carvalho Melo fez esta declaração, o prof. Guilher­mino César já possuia os originais do teatrólogo, há três ou quatro anos, sem ter dito uma palavra a respeito do mesmo. Aliás, diz-nos Athos Damasceno Ferreira: “Nenhum dos historiadores da literatura rio-grandense — João Pinto e Silva, Guilhermino César e outros — se arriscou a dar algumas linhas de presente ao curioso poeta do Sobradinho da Praça da Alfândega”[11].

Diz o autor de Meia Pataca no Jornal do Brasil: “Um dia, porém conversando com Aníbal Damasceno Ferreira, disse-nos ele que o pro­fessor Dario de Bittencourt possuía um fascículo da Enciclopédia. “no qual havia muitas peças daquele autor. Havia lido algumas e estava impressionado”[12].

Como explicar esta assertiva do professor Guilhermino, ao referir-­se tão superficialmente a quem realmente desenterrou Qorpo Santo do pó das bibliotecas?

Vejamos:

Aldo Obino, 1963: “A obra de Qorpo Santo foi localizada por AníbaI Damasceno Ferreira, um artífice silencioso de nossa vida teatral e artística... Aníbal Damasceno conseguiu que o Dr. Dario de Bitten­court cedesse a obra, por empréstimo, ao professor Guilhermino César, hoje lá por Coimbra, o qual pretende escrever um livro sobre o mesmo”.[13]

Antonio Carlos Cardoso de Sena, responsavel pela encenação primei­ra das peças deste teatrólogo, diz-nos, em entrevista à imprensa gaúcha, ser Aníbal Damasceno Ferreira a chave do mistério Qorpo Santo, “o qual conseguiu despertar nos companheiros, o gosto pelo esquisito autor”.[14]

Qorpo Santo foi encenado em 1966. E no folheto de apresentação de suas peças, a estréia é dedicada a Aníbal Damasceno Ferreira, “que nos levou ao encontro de Qorpo Santo”,

Sérgio Jockyman, em agosto de 1966, afirmava na Zero Hora: “Há dois anos atrás, o Damasceno da rádio Universidade me disse que Qorpo Santo era um gênio”.

À página 245 de sua História da Literatura, escreve o prof. Gui­lhermino: “Muitos outros poetas apareceram até 1884 — parêntesis nosso: Qorpo Santo morreu em 1883 — ano da introdução do Parnasia­nismo no R. S.; como não se destacaram de modo especial. basta que citemos seus nomes: Antonio Ferreira das Neves, Artur Candal, etc.” Segundo bibliografia citada em sua obra, Guilhermino César teve conhe­cimento de que Qorpo Santo poetava. Por que ao menos neste segundo lugar não lhe deu colher de chá?

História da Literatura. p. 23: “Não consegui sequer localizar o primeiro romance rio-grandense, A Divina Pastora, de Caldre e Fião, sem embargo de ter feito o impossível para isso. Espero que algum leitor magnânimo me dê um dia esse prazer”.

Porque não teve o erudito professor o mesmo escrúpulo em relação ao autor de Mateus e Mateusa? Ainda mais quando se propõe a dar um livro que “há de ser um guia de estudiosos da atividade literaria gaúcha, senão também dos que demonstrem curiosidade pela cultura local”

Entrevistamos o Dr. Olyntho Sanmartin. Afirmou-nos ter sido Aníbal Damasceno quem primeiro foi procurá-lo para consultar os fas­cículos em questão.

Entrevistamos Dario de Bittencourt. Disse-nos possuir Qorpo San­to desde 1919. Disse-nos também que, de l919, absolutamente ninguém mostrou interesse pelo autor, até a data de 1959, quando o emprestou a Anibal. Confirmou-nos ainda ter sido este esquálido pesquisador quem primeiro foi procurá-lo e levou a obra às mãos do professor Guilhermino César, por julgá-lo competente para o estudo do assunto.

Imperdoáveis são as omissões do professor Guilhermino César. Exatamente pela tentativa de justificação das mesmas. Diz-nos em sua História da literatura: “As omissões, deliberadas umas, involuntárias outras, não desfiguram porém o essencial”.[15] No entanto, hoje este esquecido teatrólogo tem mais importância e renome na literatura nacio­nal que qualquer dos nomes citados em toda sua obra.

Resumindo: Dario de Bittencourt possuía os fascículos da enciclo­pédia desde 1919. Athos menciona o autor em questão em 1940, decla­rando-o injustiçado. Sanmartin proclama sua grandeza em 1957. Lúcia Carvalho compara-o a lonesco em 1963. Athos volta a falar sobre Qorpo Santo em 1964. Aníbal estuda sua obra desde 1959, e sugere a Sena sua apresentação. Guilhermino César, tendo possibilidades de acesso ao que restou de sua obra, o omite em sua História da Literatu­ra,em 1956. Possuindo sua obra desde 1960, escreve seus primeiros artigos sobre o autor em 1966, a pedido de Sena e da equipe que o representou.

E em 1968, no Jornal do Brasil, falando a respeito de escritores que o mencionaram, omite seus verdadeiros descobridores.

Como aproximou-se Aníbal Damasceno do teatrólogo gaúcho? Sabendo-o pessoa doente e solitária, ridicularizada e extravagante, completamente afastada do convívio social ao fim de sua vida, e conhe­cendo-lhe os poemas, intuiu em Qorpo Santo possibilidades de uma literatura satírica. Tendo em mãos suas peças, tratou imediatamente de sugeri-las a seus amigos de teatro. Salientemos, a bem da verdade, que Aníbal — ele próprio o declara — não tinha consciência exata das dimensões estéticas do teatro que desenterrara. Tal mérito cabe não apenas a Lúcia Carvalho Meio, como também a Yan Michalsky, que assistindo a tão somente duas peças deste autor, não hesitou em proclamá-­lo “verdadeiramente sensacional, primeiro precursor mundial do teatro do absurdo”.

Aníbal Damasceno é um pesquisador do esquecido, do que foi coberto pelo pó do anonimato e do tempo. Sua concepção da História é nada marxista: diz como Machado: a História é mulher loureira. E continua: diante da eternidade, tanto faz ser Dante Alighieri ou Dante de Laitano. A pousar os olhos na figura de D. Pedro 1, sempre preferiu as memórias de Chalaça. Tomou-se de Barão do Cemitério. E também por Qorpo Santo.

Mas ao professor Guilhermino César, nada mais concedemos além do título de divulgador.

É verdade que assim já se referiu: “Um grupo de jovens, à frente dos quais se colocou Aníbal Damasceno, que a muitos estimulou na descoberta de pistas que levassem ao cerne dessa obra esquecida...“[16] Temos de convir ser esta uma referência excessivamente mesquinha a quem, além de ter ressuscitado o teatrólogo gaúcho, forneceu a Guilhermino César todo o material que constitui seu livro sobre Qorpo Santo, a saber: peças, documentação fotográfica. cópia do ato de encomendação e inventário. Em artigo posterior. persiste: “Já escrevi várias vezes que foi Aníbal Damasceno quem me forneceu a pista dos exem­plares em que foram publicadas peças de Qorpo Santo”. Ora, Aníbal não lhe forneceu a pista, mas tudo. Notas inócuas ao pé das páginas, constituídas em geral por observações irrelevantes sobre a grafia do autor, é o único trabalho pessoal de Guilhermino César em seu livro sobre Qorpo Santo. E considerando que Guilhermino, no artigo de apresentação da peça do Clube de Cultura, nem sonha ter em mãos o precursor mundial do teatro do absurdo, só “ousando” assim classificá-­lo quando Michalsky, vendo apenas duas peças o proclama como tal, temos fortes razões para desconfiar dos critérios de seleção das peças reunidas. Se Guilhermino César não teve sensibilidade para aquilatar devidamente o autor que lhe foi apresentado, tê-la-ia para selecionar seus melhores textos?

Ao trazermos a público estes dados. pretendemos prestar um de­poimento à História enquanto vivem os protagonistas deste caso.

A omissão foi grave, e pior ainda, caso assim não é único. Olhando para trás, vemos a todo momento gênios injustiçados em vida. Seres que se elevaram à mais alta condição do espírito, e são tidos como imbecis por seus contemporâneos e gerações seguintes. As páginas dos jornais lhes são proibidas, a crítica os ignora, têm um universo a transmitir e as mãos atadas. Que horrível sensação de impotência não terá sentido nosso teatrólogo diante da estupidez que o rodeava!

E quem são as pessoas, que com o silêncio, soterraram por tanto tempo este homem?

Além do professor Guilhermino, todos outros que não o menciona­ram, conhecendo-o e à sua obra, por não ser Qorpo Santo ainda um gênio oficializado, carimbado com impnmatur, com livre passagem nos círculos da crítica bem pensante.

Quando os doutos aprenderão estas lições do dia-a-dia da História?

BIBLIOGRAFIA

1, 2, 4, 12 — Guilhermino César, “Qorpo Santo, do mito à realidade”, in Jornal do Brasil, 04.04.68.
3, 15 — Guilhermino César, in História da Literatura do Rio Grande do Sul, p. 143 e 22, respectivamente.
5 — Athos Damasceno Ferreira, Imagens Sentimentais da Cidade, Porto Alegre, Globo, 1940, p. 31.
6 — Aquiles Porto Alegre, in Através do Passado, Porto Alegre, Globo, 1920, p. 31.
7 — Aquiles Porto Alegre, in A Sombra das Árvores, Porto Alegre, Livraria Selbach, 1923, p. 94.
8 — Guilhermino César, A Reabilitação de uma Obra, folheto de apresentação das peças de Qorpo Santo levadas pelo teatro do Clube de Cultura.
9 — Olynto Sanmartin — o poeta Qorpo Santo, in Correio do Povo, 15.11.57.
10 — Entrevista com Lúcia Carvalho Meio, in Revista do Globo, Porto Alegre, nº 861, outubro 63.
11 — Entrevista com Athos Damasceno Ferreira, in Folha da Tarde, Porto Alegre, 27-07-64.
13 — Aldo Obino, in Correio do Povo, Porto Alegre, 27-12-63.
14 — Entrevista com Antonio Carlos Sena, in Folha da Tarde, Porto Alegre, 04-08-64.
15 — Guilhermino César, in Correio do Povo, Porto Alegre, 26-08-66.
16 — Guilhermino César, in Correio do Povo, Porto Alegre, 17-08-68.


 

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