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Blaise Pascal

PENSAMENTOS

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Pensamentos
Blaise Pascal

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Fonte Digital
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“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

© 2002 - Blaise Pascal


 

ÍNDICE

Biografia do autor

PENSAMENTOS
ARTIGO I
Contra a indiferença dos ateus.
ARTIGO II
O que é mais vantajoso: acreditar ou não acreditar na religião cristã..
ARTIGO III
Marcas da verdadeira religião.
ARTIGO IV
Verdadeira religião provada pelas contrariedades existentes no homem e pelo pecado original.
ARTIGO V
Submissão e uso da razão.
ARTIGO VI
Imagem de um homem que se cansou de procurar Deus pelo simples raciocínio e que começa a ler a Escritura.
ARTIGO VII
Dos judeus.
ARTIGO VIII
Das figuras; que a antiga lei era figurativa.
ARTIGO IX
De Jesus Cristo.
ARTIGO X
Provas de Jesus Cristo pelas profecias.
ARTIGO XI
Diversas provas de Jesus Cristo.
ARTIGO XII
Desígnio de Deus de se ocultar a uns e de se descobrir a outros.
ARTIGO XIII
Que os verdadeiros cristãos e os verdadeiros judeus só têm uma mesma religião.
ARTIGO XIV
Nao se conhece Deus utilmente senão por Jesus Cristo.
ARTIGO XV
Pensamentos sobre os milagres.
ARTIGO XVI
Pensamentos diversos sobre a religião.
ARTIGO XVII
Conhecimento geral do homem.
ARTIGO XVIII
Grandeza do homem.
ARTIGO XIX
Vaidade do homem, imaginação, amor-próprio.
ARTIGO XX
Fraqueza do homem; incerteza de seus conhecimentos naturais.
ARTIGO XXI
Miséria do homem.
ARTIGO XXII
Contrariedades espantosas que se encontram na natureza do homem em relação à verdade, à felicidade e a várias outras coisas.
ARTIGO XXIII
Razões de algumas opiniões do povo.
ARTIGO XXIV
Da justiça.
ARTIGO XXV
Pensamentos diversos.
NOTAS.


 

PENSAMENTOS

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Blaise Pascal


 

BIOGRAFIA DO AUTOR

[imagem]

 

Blaise Pascal nasceu em Clermont, no dia 19 de junho de 1623. Filho de Etienne Pascal e Antoinette Begon, ficou órfão de mãe aos três anos de idade. Suas extraordinárias qualidades de inteligência, reveladas desde os primeiros anos da infância, tornaram-se todo o orgulho do pai de Pascal, que quis encarregar-se pessoalmente de sua educação. O jovem Pascal manifestou, desde logo, um pendor excepcional pelas matemáticas, a tal ponto que, segundo sua irmã Gilberte, chegou a descobrir os fundamentos da geometria euclidiana. Aos dezesseis anos de idade, escreveu um tratado de tal profundeza que se dizia não ter sido escrito outro, depois de Arquimedes, que se lhe pudesse comparar. Esse tratado despertou o entusiasmo de Descartes. Enquanto isso, continuava Pascal os seus estudos do latim e do grego, nos quais seu pai o havia iniciado, e, nos intervalos, dedicava-se também à lógica, à física, à filosofia. Aos dezoito anos de idade, inventou uma máquina de calcular. Aos vinte e três, já era senhor de imenso cabedal científico, tendo descoberto várias leis sobre a densidade do ar, o equilíbrio dos líquidos, o triângulo aritmético, o cálculo das probabilidades, a prensa hidráulica, etc. Um dia, porém, na ponte de Neuilly, foi vítima de um acidente e começou a sofrer de alucinações, vendo aparecer sempre diante de si um abismo aberto para tragá-lo. Desde então, tornou-se profundamente religioso, renunciou a todos os seus conhecimentos e, passando a viver solitariamente, internado na abadia de Port-Royal, dedicou-se exclusivamente à defesa do cristianismo. Dá-se, hoje, o nome de abismo de Pascal à dificuldade que certos problemas sociais ou morais oferecem em sua elucidação.

A expressão grão de areia de Pascal encontra explicação na seguinte passagem desta obra: "Cromwell teria destruído toda a cristandade, a família real se teria perdido e a sua se tornado poderosa como nunca, se não fosse um pequeno grão de areia que se introduzira em sua uretra. E até Roma teria tremido sob o seu domínio, se essa areiazinha, que não valia nada em outro lugar, introduzindo-se ali, não o tivesse morto, derrubando sua família e restabelecendo o rei." Assim, Com aquela locução, se exprime a idéia de que pequenas causas podem acarretar grandes efeitos.

Toda a vida de Pascal é tida como um grande exemplo de sofrimento resignado e de piedade. Morreu com trinta e nove anos, no dia 19 de agosto de 1662.


 

PENSAMENTOS

ARTIGO I

CONTRA A INDIFERENÇA DOS ATEUS(1)

 

Saibam, ao menos, que religião combatem, antes de combatê-la. Se essa religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus e de possuí-lo com clareza e sem véu, seria combatê-la dizer que não se vê nada, no mundo, que a mostre com tal evidência. Mas, como afirma, ao contrário, que os homens se acham nas trevas e afastados de Deus, que se oculta ao seu conhecimento, sendo mesmo esse Deus absconditus(2) o nome com que se apresenta nas Escrituras, em suma, se trabalha igualmente para estabelecer duas coisas: que Deus estabeleceu na Igreja marcas sensíveis para ser reconhecido pelos que o procurarem sinceramente, e que, no entanto, as cobriu de tal forma que só será percebido pelos que o procurarem de todo o coração, que proveito podem eles tirar, quando, na negligência em que fazem profissão de estar procurando a verdade, exclamam não haver nada que a mostre, de vez que essa obscuridade em que se encontram e que objetam à Igreja não faz senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na outra, estabelecendo assim a sua doutrina, em lugar de arrumá-la?

Para combatê-la, ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os esforços em procurá-la por toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o fim de nela se instruírem, mas sem nenhuma satisfação. Se falassem do destino, combateriam, na verdade, uma das suas pretensões. Espero mostrar aqui, porém, que não há ninguém capaz de falar razoavelmente do destino. Ouso mesmo dizer que jamais alguém o fez. Sabe-se muito bem de que maneira agem os que têm esse intuito. Acreditam ter feito grandes esforços para instruir-se, por terem empregado algumas horas na leitura de um dos livros sagrados e por terem interrogado algum eclesiástico sobre as verdades da fé. Gabam-se, depois, de terem investigado em vão nos livros e entre os homens. Mas, na verdade, não posso deixar de lhes dizer o que freqüentemente tenho dito: que essa negligência é inadmissível. Não se trata, no caso, do irrefletido interesse de um estranho, para assim proceder: trata-se de nós próprios e do nosso todo.

A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela. Todos os nossos pensamentos e ações devem tomar caminhos tão diferentes, conforme se esperem ou não os bens eternos, que é impossível fazer uma pesquisa sensata e criteriosa sem ter em vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto.

Assim, o nosso primeiro interesse, o nosso primeiro dever, é esclarecer bem o assunto, do qual depende toda a nossa conduta. Eis porque, dentre os que não estão persuadidos disso, eu estabeleço uma extrema diferença entre os que trabalham com todas as suas forças para instruir-se a respeito e os que vivem sem se dar a esse trabalho e sem pensar nisso.

Só posso ter compaixão dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a última das desgraças e dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as suas principais e mais sérias ocupações.

Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza, possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero de maneira bem diferente.

Tal negligência numa questão em que se trata da própria pessoa, da própria eternidade, do próprio todo, não me irrita mais do que enternece: assombra-me e espanta-me, sendo para mim uma monstruosidade. Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio; é preciso não ver nisso, apenas, o que vêem as pessoas menos esclarecidas.

É preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida; que todos os nossos prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que, finalmente, a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou infelizes.

Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidades para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma.

É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranqüilo e satisfeito, se disso faz profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.

Onde se foram buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria existe quando só se esperam misérias sem remédio? Que motivo de orgulho pode haver nas obscuridades impenetráveis e como admitir que tal raciocínio seja o de um homem razoável?

"Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobre tudo e sobre si própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber porque fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue.

"Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta.

"Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar.

"Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura".

Quem desejaria ter como amigo um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas intimidades? Quem recorreria a ele em suas aflições?

Finalmente, a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo?

Na verdade, é glorioso, para a religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas principais verdades. Com efeito; a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo. Ora, se eles não servem para mostrar a verdade da redenção pela santidade dos seus costumes, servem ao menos, admiravelmente, para mostrar a corrupção da natureza com sentimentos tão desnaturados.

Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo, de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa tantos dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

É um encantamento incompreensível e um adormecimento sobrenatural, marcando uma força todo-poderosa que os causa.

É preciso haver um estranho abalo na natureza do homem para que possa vangloriar-se de se achar nesse estado em que parece incrível que uma só pessoa possa estar. No entanto, a experiência me faz ver tão grande número delas que seria de nos surpreendermos, se não soubéssemos que quase todas fingem ser assim e que na realidade não o são. São pessoas que ouviram dizer que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco É o que chamam ter sacudido o jugo e o que experimentam imitar. Mas, não seria difícil explicar-lhes quanto se arriscam quando dessa forma procuram a estima. Não é esse o meio de grangeá-la, mesmo quando se trata de pessoas que julgam sensatamente as coisas e que sabem que o único caminho para triunfar é aparentar honestidade, fidelidade, critério e capacidade de bem servir o amigo, de vez que os homens só gostam, naturalmente, do que lhes possa ser útil. Com efeito, que vantagem temos em ouvir um homem dizer que sacudiu o jugo, que não crê na existência de um Deus que vele sobre suas ações, que se considera como único senhor de sua conduta e que não pensa em prestar contas senão a si próprio? Pensarão, por isso, que nos levarão a depositar-lhes mais confiança e a esperar seus consolos, conselhos e socorros em todas as necessidades da vida? Pretenderão alegrar-nos dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com tristeza, como sendo a mais triste do mundo?

Se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e tão afastado em tudo dessa boa aparência que mostram, que seriam antes capazes de regenerar do que de corromper os que tivessem alguma inclinação para segui-los. E, com efeito, fazei-os prestar contas dos seus sentimentos e das razões que possuem para duvidar da religião: dirão coisas tão frívolas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. Foi o que muito a propósito lhes disse um dia alguém: "Se continuardes a discorrer dessa maneira, na verdade me convertereis". E tinha razão: de fato, quem não teria horror de se ver com sentimentos em que se têm como companheiros pessoas tão desprezíveis?

Eis porque os que não fazem senão fingir esses sentimentos seriam bem desgraçados em contrariar seu natural para tornar-se os mais impertinentes dos homens. Se se desgostam, no fundo do coração, por não terem mais luz, não o dissimulem, pois tal declaração não será vergonhosa. Só há vergonha em não possuí-la. Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus; nada marca tanto uma disposição má de sentimentos como não desejar a verdade das promessas eternas; nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus. Deixem, pois, essas impiedades para os que são de índole bastante má para serem verdadeiramente capazes disso; sejam ao menos homens de bem, se não puderem ser cristãos; e reconheçam, finalmente, que só há duas espécies de pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o conhecem.

Mas, quanto aos que vivem sem conhecê-lo e sem procurá-lo, estes se julgam tão pouco dignos do seu próprio cuidado que não são dignos do cuidado dos outros, sendo preciso ter toda a caridade da religião que eles desprezam para não os desprezar até abandoná-los em sua loucura. Mas, como essa religião nos obriga a observá-los sempre, enquanto estiverem nesta vida, como capazes da graça que pode esclarecê-los, e a acreditar que podem em pouco tempo tornar-se mais cheios de fé do que nós o somos, podendo nós, ao contrário, cair na cegueira em que eles se acham, é preciso fazer por eles o que desejaríamos que se fizesse por nós se estivéssemos em seu lugar, e chamá-los a ter piedade de si próprios e a dar ao menos alguns passos para tentar descobrir luzes. Dediquem a esta leitura algumas das horas que tão inutilmente empregam fora: se alguma aversão experimentarem, talvez reconheçam ainda assim alguma coisa ou, pelo menos, não perderão muito. Quanto aos que nisso usarem de toda a sinceridade e mostrarem um verdadeiro desejo de descobrir a verdade, espero que se satisfarão e ficarão convencidos das provas de uma religião tão divina por mim coligidas aqui.


 

ARTIGO II

O QUE É MAIS VANTAJOSO: ACREDITAR OU NÃO ACREDITAR NA RELIGIÃO CRISTÃ(3)

 

Nossa alma está lançada no corpo, no qual acha número, tempo, dimensões. Raciocina sobre isso e lhe dá o nome de natureza, necessidade, sem poder acreditar em outra coisa.

A unidade agregada ao infinito em nada o aumenta, do mesmo modo que um pé a uma medida infinita. O finito se aniquila em presença do infinito e se torna um simples zero. Assim o nosso espírito diante de Deus; assim a nossa justiça diante da justiça divina.

Não há tão grande desproporção entre a nossa justiça e a de Deus como entre a unidade e o infinito(4)

É preciso que a justiça de Deus seja enorme como a sua misericórdia: ora, a justiça para com os réprobos é menos enorme e deve aliviar menos do que a misericórdia para com os eleitos.

Sabemos que há um infinito e ignoramos a sua natureza, assim como sabemos que é falso que os números sejam finitos; é, pois, verdade que há um infinito em número, mas não sabemos o que ele é. É falso que seja par, é falso que seja ímpar; porque, acrescentando-lhe a unidade, ele não muda de natureza: no entanto, é um número, e todo número é par ou é ímpar; isso é verdadeiro para todos os números finitos.

Pode-se, pois, saber que existe um Deus sem saber o que ele é.

Conhecemos, pois, a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele.

Conhecemos a existência do infinito e ignoramos sua natureza, porque ele tem extensão como nós, mas não tem limites como nós. Não conhecemos, porém, nem a existência nem a natureza de Deus, porque ele não tem extensão nem limites.

Mas, pela fé, conhecemos sua existência; pela glória, conheceremos sua natureza. Ora, já mostrei que não se pode conhecer bem a existência de uma coisa sem conhecer a sua natureza.

Falemos, agora, segundo as luzes naturais.

Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, de vez que, não tendo nem partes nem limites, nenhuma relação possui conosco: somos, pois, incapazes de conhecer não só o que ele é, como também se ele é. Assim sendo, quem ousará empreender resolver essa questão? Não somos nós, que nenhuma relação temos com ele.

Quem, pois, censurará os cristãos por não poderem dar satisfação de sua crença, eles que professam uma religião de que não podem dar satisfação? Expondo-a ao mundo, eles declaram que isso é uma tolice, stultitiam. No entanto, vós vos lastimais porque eles não a provam! Se a provassem, faltariam à sua palavra; é por não terem provas que não lhes falta o senso. Sim; mas, embora isso escuse os que assim a oferecem e os livre da censura de produzi-la sem razão, não escusa os que a recebem.

Examinemos, pois, esse ponto, e digamos: Deus é, ou não é. Mas, para que lado penderemos? A razão nada pode determinar ai. Há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Que apostareis? Pela razão, não podeis fazer nem uma nem outra coisa; pela razão, não podeis defender nem uma nem outra coisa.

Não acuseis, pois, de falsidade os que fizeram uma escolha, pois nada sabeis disso. "Não: mas, eu os acusarei de terem feito, não essa escolha, mas uma escolha; porque, embora o que prefere coroa e o outro estejam igualmente em falta, ambos estão em falta: o justo é não apostar".

Sim, mas é preciso apostar: isso não é voluntário; sois obrigados a isso; (e apostar que Deus é, é apostar que ele não é). Que tomareis, pois? Vejamos, já que é preciso escolher, vejamos o que menos vos interessa: tendes duas coisas que perder, o verdadeiro e o bem, e duas coisas que empenhar, vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa beatitude; e vossa natureza tem duas coisas que evitar, o erro e a miséria. Vossa razão não é mais atingida, desde que é preciso necessariamente escolher, escolhendo um dentre os dois. Eis um ponto liquidado; mas, vossa beatitude?

Pesemos o ganho e a perda, preferindo coroa, que é Deus. Estimemos as duas hipóteses: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis. Apostai, pois, que ele é, sem hesitar. Isso é admirável: sim, é preciso apostar, mas, talvez eu aposte demais.

Vejamos. Uma vez que é tal a incerteza do ganho e da perda, se só tivésseis que apostar duas vidas por uma, ainda poderíeis apostar. Mas, se devessem ser ganhas três, seria preciso jogar (desde que tendes necessidade de jogar) e seríeis imprudente quando, forçado a jogar, não arriscásseis vossa vida para ganhar três num jogo em que é tamanha a incerteza da perda e do ganho. Há, porém, uma eternidade de vida e de felicidade; e, assim sendo, quando houvesse uma infinidade de probabilidades, das quais somente uma fosse por vós, ainda teríeis razão em apostar um para ter dois, e agiríeis mal, quando obrigado a jogar, se recusásseis jogar uma vida contra três num jogo em que, numa infinidade de probabilidades, há uma por vós, havendo uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar. Mas, há aqui uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar, uma probabilidade de ganho contra uma porção finita de probabilidades de perda, e o que jogais é finito. Jogo é jogo: sempre onde há o infinito e onde não há infinidade de probabilidades de perda contra a de ganho, não há que hesitar, é preciso dar tudo; e, assim, quando se é forçado a jogar, é preciso renunciar à razão, para conservar a vida e não arriscá-la pelo ganho infinito tão prestes a chegar quanto a perda do nada.

Por conseguinte, de nada serve dizer que é incerto ganhar-se e que é certo arriscar-se, e que a infinita distância entre a certeza do que se expõe e a incerteza do que se deve ganhar iguala o bem finito, que certamente se expõe, ao infinito incerto. Não é assim: todo jogador arrisca com certeza para ganhar incertamente o finito, sem pecar contra a razão. Não há infinidade de distância entre essa certeza do que se expõe e a incerteza do ganho; isso é falso. Há, na verdade, infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder. Mas, a incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca, segundo a proporção das probabilidades de ganho e de perda; de onde se conclui que, havendo tantas probabilidades de um lado como do outro, a aposta deve ser igual; e, então, a certeza do que se expõe é igual à incerteza do ganho; bem longe está de ser infinitamente distante. E, assim, a nossa proposição é de uma força infinita, quando há o finito que arriscar num jogo em que há tantas probabilidades de ganho como de perda, e o infinito que ganhar. Isso é demonstrativo; e, se os homens são capazes de algumas verdades, essa é uma delas.

Eu o declaro e o confesso. Mas, não haverá ainda um meio de ver o segredo do jogo?

Sim, a Escritura, e o resto, etc.

Sim; mas, tenho as mãos atadas e a boca muda; forçam-me a apostar, e não estou em liberdade; não me soltam, e sou feito de tal maneira que não posso crer. Que quereis, pois, que eu faça?

É verdade. Mas, conhecei ao menos a vossa impotência para crer, já que a razão a isso vos conduz, e que todavia não o podeis; trabalhai, pois, não para vos convencerdes pelo aumento das provas de Deus, mas pela diminuição das vossas paixões. Quereis chegar à fé, mas ignorais o caminho; quereis curar-vos da infidelidade, mas pedis os remédios: aprendei com os que estiveram atados como vós e que apostam agora todo o seu bem; são pessoas que se curaram do mal de que desejais curar-vos. Segui a maneira pela qual começaram: fazendo como se acreditassem, tomando água benta, mandando dizer missas, etc. Naturalmente, isso vos fará crer e vos embrutecerá(5).

Mas, é o que receio. E porquê? que tendes que perder?


 

ARTIGO III

MARCAS DA VERDADEIRA RELIGIÃO

 

I

A verdadeira religião deve ter por marcas obrigar a amar seu Deus. Isso é bem justo. No entanto, nenhuma outra como a nossa o ordenou; a nossa o fez. Ela deve ainda ter conhecido a concupiscência (do homem) e a impotência (em que ele próprio se encontra para adquirir a virtude); a nossa o fez. Deve indicar os remédios para isso, um dos quais é a prece. Nenhuma (outra) religião pediu (jamais) a Deus que o amasse e o seguisse.

II

A verdadeira natureza do homem, o seu verdadeiro bem e a verdadeira virtude e a verdadeira religião são coisas cujo conhecimento é inseparável.

III

É preciso, para que uma religião seja verdadeira, que tenha conhecido a nossa natureza; deve ter conhecido a grandeza e a pequenez, e a razão de ambas. Quem a conheceu, além da cristã?

IV

As outras religiões, como as pagãs, são mais populares, porque se exteriorizam: não são, porém para as pessoas hábeis. Uma religião puramente intelectual seria mais proporcionada aos hábeis, mas não serviria ao povo. Só a religião cristã é proporcionada a todos, sendo composta de exterior e de interior. Ela eleva o povo ao interior e baixa os soberbos ao exterior, não sendo perfeita sem os dois, pois é preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam o seu espirito à letra (praticando o que há de exterior).

V

Nenhuma outra religião propôs que nos odiemos a nós mesmos. Nenhuma outra religião pode, pois, agradar aos que se odeiam a si mesmos e que procuram um ser verdadeiramente amável. E estes, se nunca tivessem ouvido falar da religião de um Deus humilhado, a abraçariam incontinente. Nenhuma outra (religião, a não ser a cristã) conheceu que o homem é a mais excelente criatura (e ao mesmo tempo a mais miserável). Uns, que conheceram bem a realidade de sua excelência, adquiriram por covardia e por ingratidão os sentimentos baixos que os homens, naturalmente, têm em si mesmos; e outros, que conheceram bem quanto essa baixeza é efetiva, trataram com uma soberba ridícula esses sentimentos de grandeza, que são tão naturais no homem. Nenhuma religião, a não ser a nossa, ensinou que o homem nasce com pecado; nenhuma seita filosófica o disse; portanto, nenhuma disse a verdade.

VI

Se só houvesse uma religião, Deus estaria nela bem manifesto. Se só houvesse mártires na nossa religião, também.

VII

Estando Deus oculto, toda religião que não diz que Deus está oculto não é verdadeira; e toda religião que a isso não faz referência não é instrutiva. A nossa faz tudo isso: Vere tu es Deus absconditus(6).

Essa religião, que consiste em crer que o homem desceu de um estado de glória e de comunicação com Deus a um estado de tristeza, de penitência e de afastamento de Deus, mas que, depois desta vida, seremos restabelecidos por um Messias que deve vir, sempre existiu sobre a terra. Todas as coisas passaram, subsistindo aquela para a qual todas as coisas existem. Os homens, na primeira idade do mundo, foram arrastados a toda sorte de desordens, embora houvesse santos como Enoc, Lamec, e outros, que esperavam pacientemente o Cristo prometido desde o começo do mundo. Noé viu a malícia dos homens no mais alto grau e mereceu salvar o mundo em sua pessoa pela esperança do Messias, do qual foi ele a figura. Abraão estava cercado de idólatras, quando Deus fez com que ele conhecesse o mistério do Messias, que ele saudou de longe. No tempo de Isac e de Jacó, a abominação estava espalhada sobre toda a terra: mas, esses santos viviam na fé; e Jacó, morrendo e abençoando seus, filhos, exclama, num transporte que o obrigou a interromper seu discurso: Eu espero, meu Deus, o Salvador que prometeste: Salutare tum expectabo, Domine(7).

Os egípcios estavam infectados de idolatria e de magia; o próprio povo de Deus era influenciado por seus exemplos. No entanto, Moisés e outros acreditavam naquele que não viam e o adoravam olhando para os dons naturais que ele lhes preparava.

Os gregos e os latinos, em seguida, fizeram reinar as falsas divindades; os poetas fizeram cem diversas teologias: os filósofos se separaram em mil seitas diferentes: no entanto, havia sempre, no coração da Judéia, homens escolhidos que presidiam à vinda de um Messias que só por eles era conhecido.

Ele veio, enfim, na consumação dos tempos: e, desde então, viram-se nascer tantos cismas e heresias, tantos desmoronamentos de Estados, tantas mudanças em todas as coisas; e essa Igreja a que adora aquele que sempre foi adorado subsistiu sem interrupção. E o que é admirável, incomparável e inteiramente divino, é que essa religião que sempre durou foi sempre combatida. Mil vezes esteve na iminência de uma destruição universal; e, todas as vezes que se achou nesse estado, Deus tornou a levantá-la com golpes extraordinários de potência. É assombroso que assim seja e que ela se mantenha sem dobrar-se e curvar-se sob a vontade dos tiranos.

Os Estados pereceriam se não se fizesse com que as leis se submetessem freqüentemente à necessidade. A religião, porém, nunca sofreu isso, nunca usou disso. São necessários ou esses acomodamentos ou milagres. Não é de estranhar que nos conservemos submissos, e isso não é propriamente manter-se; e ainda pereçam eles, enfim, inteiramente; não há o que tenha durado mil e quinhentos anos. Mas, que essa religião se mantenha sempre inflexível, isso é divino.

VIII

(Haveria obscuridade demais se a verdade não tivesse marcas visíveis. É admirável a de se ter conservado sempre numa Igreja a e numa assembléia visível. Haveria claridade demais se só houvesse um sentimento nessa Igreja; mas, para reconhecer o que é verdadeiro, basta ver o que sempre existiu: com efeito, é certo que o verdadeiro sempre existiu e que nenhuma falsidade existiu sempre. Assim), o Messias foi sempre acreditado. A tradição de Adão era ainda nova em Noé e em Moisés. Os profetas o predisseram depois, predizendo sempre outras coisas cuja realização, verificando-se periodicamente entre os homens, assinalava a verdade de sua missão e, por conseguinte, a de suas promessas em relação ao Messias (Todos eles disseram que a lei que possuíam só gorava enquanto esperavam a do Messias e que, então, ela seria perpétua, mas que a outra dura eternamente; que, por isso, a sua lei e a do Messias da qual era ela a promessa, existiram sempre sol a terra. Com efeito, ela durou sempre, e Jesus Cristo veio em todas as circunstâncias preditas). Jesus Cristo fez milagres, assim como os apóstolos que converteram todos os pagãos; e, assim, realizando-se todas as profecias, o Messias está provado para sempre.

IX

Vejo várias religiões contrárias, mas todas falsas, exceto uma. Cada qual quer ser acreditada por sua própria autoridade e ameaça os incrédulos. Não creio nelas; todos podem dizer isso, todos podem dizer-se profetas. Vejo, porém, a religião cristã, na qual encontro profecias; e é o que nem todos podem fazer.

X

A única religião contrária à natureza no estado em que ela se acha, que combate todos os nossos prazeres e que, à primeira vista, parece, contrária ao senso comum, é a única que sempre existiu.

XI

Toda a conduta das coisas deve ter por objeto o estabelecimento e a grandeza da religião; os homens devem ter em si mesmos sentimentos conformes ao que ela nos ensina: e, enfim, ela deve ser de tal forma o objeto e o centro para o qual tendem todas as coisas que quem souber os seus princípios poderá explicar toda a natureza do homem em particular e toda a conduta do mundo em geral.

E, sobre esse fundamento, eles (os ímpios) tomam pé para blasfemar a religião cristã, porque a conhecem mal. Imaginam que ela consiste simplesmente na adoração de um Deus considerado como grande e poderoso e eterno: o que é propriamente o deísmo, quase tão afastado da religião cristã quanto o ateísmo, que lhe é totalmente contrário. E daí concluem que não vêem que todas as coisas concorrem para o estabelecimento deste ponto: que Deus não se manifesta aos homens com toda a evidência que lhe seria possível.

Mas, que daí concluam o que quiserem contra o deísmo, nada concluirão contra a religião cristã, que consiste propriamente no mistério do Redentor, o qual, unindo em si as duas naturezas, a divina e a humana, retirou os homens da corrupção do pecado, para reconciliá-los com Deus em sua pessoa divina.

Ela ensina, pois, a todos os homens, estas duas verdades: que há um Deus de que os homens são capazes, e que há uma corrupção na natureza que os torna indignos dele. Importa, igualmente, que os homens conheçam esses dois pontos; e é igualmente perigoso que o homem conheça Deus sem conhecer sua miséria, e conheça sua miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo dela. Um só desses conhecimentos faz ou o orgulho dos filósofos que conheceram Deus, e não sua miséria, ou o desespero dos ateus, que conhecem sua miséria sem Redentor. E, assim como é igualmente da necessidade do homem conhecer esses dois pontos, é também igualmente da misericórdia de Deus fazer com que os conheçamos. A religião cristã o faz; é nisso que ela consiste. Examine-se a ordem do mundo sobre isso, e veja-se se todas as coisas não tendem ao estabelecimento dos dois chefes dessa religião.

XII

Quem não se reconhece cheio de soberba, de ambição, de concupiscência, de fraqueza, de miséria e de injustiça, é bastante cego. E quem, assim se reconhecendo, não deseja regenerar-se, que se pode dizer de um homem... (tão pouco razoável)? Que é, pois, que se pode ter, senão estima, por uma religião que conhece tão bem os defeitos do homem, e senão desejo pela verdade de uma religião que para isso promete remédios tão desejáveis?


 

ARTIGO IV

VERDADEIRA RELIGIÃO PROVADA PELAS CONTRARIEDADES EXISTENTES NO HOMEM E PELO PECADO ORIGINAL

 

I

As grandezas e as misérias do homem são de tal modo visíveis que é preciso, necessariamente, que a verdadeira religião nos ensine e que haja no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria. É preciso, pois, que ela nos explique essas espantosas contrariedades. Se há um só princípio de tudo, um único fim de tudo: tudo por ele, tudo para ele. É preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a não adorar senão a ele e a não amar senão a ele. Mas, como nos achamos na impossibilidade de adorar o que não conhecemos e de amar outra coisa além de nós, é preciso que a religião, que instrui sobre esses deveres, nos instrua também sobre essas impossibilidades, ensinando-nos também os remédios.

É preciso que, para tornar o homem feliz, ela lhe mostre que há um Deus; que se é obrigado a amá-lo; que a nossa verdadeira felicidade é estar nele, e o nosso único mal estar separado dele; que reconheça que estamos cheios de trevas que nos impedem de conhecê-lo e de amá-lo; e que, assim, obrigando-nos os nossos deveres a amar a Deus, e as nossas concupiscências a desviar-nos dele, estamos cheios de injustiça. É preciso que nos dê satisfação dessas nossas oposições em relação a Deus e ao nosso próprio bem; é preciso que nos ensine os remédios para essas impossibilidades e os meios de obter esses remédios. Examinem-se sobre isso todas as religiões do mundo, e veja-se se há alguma que o satisfaça como a cristã.

Serão os filósofos, que nos propõem, como todo bem, os bens que estão em nós? Será esse o verdadeiro bem? Descobriram eles o remédio para os nossos males? Será curar a presunção do homem igualá-lo a Deus? Os que nos igualaram às feras, e os maometanos, que nos deram como todo bem os prazeres da terra, até mesmo na eternidade, trouxeram, o remédio para as nossas concupiscências? Levantai vossos olhos para Deus, dizem uns; olhai para aquele ao qual vos assemelhais e que vos fez para adorá-lo; podeis tornar-vos semelhante a ele; a sabedoria vos igualará a ele, se quiserdes segui-lo. Dizem outros: Baixai vossos olhos para a terra, mísero verme que sois, e olhai para as feras, das quais sois o companheiro.

Que se tornará, pois, o homem? Será ele igual a Deus ou aos animais? Que espantosa distância! Que seremos, pois? Quem não vê, por tudo isso, que o homem está afastado, que caiu do seu lugar, que o procura com inquietude, que não pode mais tornar a encontrá-lo? E quem, então, tornará a pô-lo de pé? Os maiores homens não o conseguiram. Que religião, pois, nos ensinará a curar o orgulho e a concupiscência? Que religião, enfim, nos ensinará o nosso bem, os nossos deveres, as fraquezas que nos desviam, a causa dessas fraquezas, os remédios que podem curá-las e o meio de obter esses remédios? Todas as outras religiões não o conseguiram. Vejamos o que fará a Sabedoria de Deus, (que nos fala na religião cristã):

É em vão, oh homens, que procurais em vós mesmos o remédio para as vossas misérias. Todas as vossas luzes só podem chegar a conhecer que não é em vós mesmos que descobrireis a verdade e o bem. Os filósofos o prometeram, mas não puderam fazê-lo. Eles não sabem nem qual é o vosso verdadeiro bem, nem qual é o vosso verdadeiro estado. Como poderiam dar remédio aos vossos males, se nem ao menos o conheceram? Vossas enfermidades principais são o orgulho, que vos subtrai de Deus, a concupiscência, que vos liga à terra, e eles não fizeram outra coisa senão entreter ao menos uma dessas enfermidades. Se vos deram Deus por objeto, foi apenas para exercer vossa soberba. Fizeram-vos pensar que lhe sois semelhantes e conformes por vossa natureza. E os que viram a vaidade dessa pretensão vos lançaram no outro precipício, fazendo-vos entender que vossa natureza é semelhante à dos animais, e vos levaram a procurar o vosso bem nas concupiscências, que são a partilha dos animais. Não é esse o meio de vos curar de vossas injustiças, que esses juizes não conheceram. Não espereis, diz ela, nem a verdade nem a consolação dos homens. Eu sou aquela que vos formou e, em seguida, a única que vos ensina o que sois. Mas, não estais, agora, no estado em que vos formei. Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Ele não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem. Mas, não pode sustentar tanta glória sem cair na presunção. Quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu socorro. Subtraiu-se ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo, abandonei-o; revoltando as criaturas que lhe estavam submetidas, tornei-as suas inimigas: de maneira que, hoje, o homem se tornou semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim que apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se extinguiram ou perturbaram todos os seus conhecimentos! Os sentidos independentes da razão, e muitas vezes senhores da razão, levaram-no à procura dos prazeres. Todas as criaturas o afligem ou o tentam; e dominam sobre ele, ou submetendo-o pela força, ou encantando-o com suas doçuras: o que é um domínio mais terrível e mais imperioso.

Eis o estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes algum instinto poderoso da felicidade de sua primeira natureza, e eles estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que se tornou sua segunda natureza.

Por esse princípio que vos revelo, podeis reconhecer a causa de tantas contrariedades que assombraram todos os homens e que os dividiram em sentimentos tão diversos. Observai, agora, todos os movimentos de grandeza e de glória que a experiência de tantas misérias não pode refrear, e vede se não é preciso que a causa disto esteja em outra natureza.

II

Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado original, seja uma coisa sem a qual não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos! Sem dúvida, não há nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tornou culpáveis os que, estando tão afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar dele. Essa emanação não nos parece somente impossível, mas nos parece até injustíssima: com efeito, que há de mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que danar eternamente uma criança incapaz de vontade por um pecado em que parece ter tido tão pouca parte, que cometeu seis mil anos antes de sua existência? Certamente, nada nos choca mais rudemente do que essa doutrina; no entanto, sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa condição toma suas voltas e pregas nesse abismo. De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério inconcebível ao homem.

O pecado original é uma loucura diante dos homens; mas, é dado como tal. Não deveis, pois, censurar de falta de razão essa doutrina, uma vez que a dou como não tendo razão. Mas, essa loucura é mais sábia do que toda a sabedoria dos homens: Quod stultum est Dei, sapientius est hominibus(8) (I Coríntios, 1, 25). Com efeito, sem isso, que se dirá que é o homem? Todo o seu estado depende desse ponto imperceptível. E como se apercebeu disso, de vez que é uma coisa acima de sua razão, e que sua razão, bem longe de inventar por suas vias, afasta-se quando ela se lhe apresenta?

III

Revelados esses dois estados de corrupção, é impossível que não os reconheçais. Segui vossos movimentos, observai-vos intimamente e vede se não descobrireis ai os caracteres vivos dessas duas naturezas. Tantas contradições se achariam num sujeito simples?

Essa duplicidade do homem é tão visível que há os que pensaram que temos duas almas: um sujeito simples parecendo-lhes incapaz de tais e tão súbitas variedades, de uma presunção desmedida a um horrível abatimento de ânimo.

Todas essas contrariedades, que pareciam afastar-me mais do conhecimento da religião, foi o que mais cedo me conduziu à verdadeira.

Para mim, confesso que logo que a religião cristã descobre este princípio: que a natureza dos homens é corrompida e decaída de Deus, isso abre os olhos a ver por toda parte o caráter dessa verdade; com efeito, a natureza é tal que assinala por toda parte um Deus perdido, quer no homem, quer fora do homem.

Sem esses divinos conhecimentos, que puderam fazer os homens, senão, ou elevar-se no sentimento interior que lhes resta de sua grandeza passada, ou abater-se em vista de sua fraqueza presente? Com efeito, não vendo a verdade inteira, não puderam chegar a uma perfeita virtude... Uns considerando a natureza como incorrupta, outros como irreparável, não puderam evitar o orgulho nem a preguiça, que são as duas fontes de todos os vícios, pois só podem ou abandonar-se a isso por covardia ou furtar-se por orgulho. De fato, se conhecessem a excelência do homem, ignorariam sua corrupção; de modo que evitariam a preguiça, mas se perderiam na soberba. E, se reconhecessem a insegurança da natureza, ignorariam a dignidade; de sorte que poderiam evitar a vaidade, mas precipitando-se no desespero.

Daí vêm as diversas seitas dos estóicos e dos epicuristas, dos dogmatistas e dos acadêmicos, etc. Só a religião cristã pode curar esses dois vícios, não expulsando um e outro pela sabedoria da terra, mas expulsando um e outro pela simplicidade do Evangelho. Com efeito, ensina aos justos, que eleva até à participação da própria Divindade, que, nesse sublime estado, trazem eles ainda a fonte de toda corrupção, que os torna, durante toda a vida, sujeitos ao erro, à miséria, à morte, ao pecado; e grita aos mais ímpios que eles são capazes da graça do seu Redentor. Assim, fazendo tremer os que justifica e consolando os que condena, tempera com tanta justeza o medo com a esperança, por essa dupla capacidade que é comum a todos, da graça como do pecado, que abaixa infinitamente mais do que a razão pode fazer, mas sem desespero; e eleva infinitamente mais do que o orgulho da natureza, mas sem desvanecer: fazendo ver bem, por isso, que, sendo a única isenta de erro e de vício, só a ela compete instruir e corrigir os homens.

Quem pode, pois, recusar-se a crer e adorar essas celestes luzes? Com efeito, não é mais claro que o dia que sentimos em nós mesmos caracteres indeléveis de excelência? E não é tão verdadeiro que experimentamos a todo momento os efeitos da nossa deplorável condição? Que nos gritam, pois, esse caso e essa confusão monstruosa, senão a verdade desses dois estados, com uma voz tão poderosa que é impossível resistir?

IV

Não concebemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas passadas no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vão além da nossa capacidade presente. Tudo isso nos é inútil saber para sair dele; e tudo o que nos importa conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus, mas religados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis sobre a terra.

V

O cristianismo é estranho: ordena ao homem que reconheça que é vil e até abominável; e ordena-lhe que queira ser semelhante a Deus. Sem esse contrapeso, essa elevação o tornaria horrivelmente vão, ou esse abaixamento o tornaria horrivelmente abjeto.

VI

A miséria persuade o desespero; o orgulho inspira a presunção. A incarnação mostra ao homem a grandeza de sua miséria pela grandeza do remédio de que ele necessita.

VII

Não se acha, na religião cristã, um abaixamento que nos torne incapazes do bem, nem uma sanidade isenta do mal.

Não há doutrina mais própria ao homem do que essa, que o instrui de sua dupla capacidade de receber e perder a graça, por causa do duplo perigo a que sempre está exposto, de desespero ou de orgulho.

VIII

Os filósofos não prescreviam sentimentos proporcionais aos dois estados. Inspiravam movimentos de grandeza pura, e não é esse o estado do homem. Inspiravam movimentos de baixeza pura, e não é esse o estado do homem. São necessários movimentos de baixeza, não por natureza, mas por penitência; não para ficar neles, mas para chegar à grandeza. São necessários movimentos de grandeza, não por merecimento, mas por graça, e depois de se ter passado pela baixeza.

IX

Ninguém é tão feliz como um verdadeiro cristão, nem tão razoável, tão virtuoso, tão amável. Com que pouco orgulho um cristão se julga unido a Deus com que pouca abjeção se iguala aos vermes da terra!

X
É incrível que Deus se unisse a nós

Essa consideração só é tirada em vista da nossa baixeza. Mas, se a tendes bem sincera, segui-a tão longe quanto eu, e reconhecei que somos de fato tão baixos que somos por nós mesmos incapazes de conhecer se a sua misericórdia pode tornar-nos capazes dele. Com efeito, eu bem desejaria saber de onde esse animal, que se reconhece tão fraco, tem o direito de medir a misericórdia de Deus e de pôr-lhe os limites que a fantasia lhe sugere. Ele sabe tão pouco o que é Deus que não sabe o que ele próprio é: e, todo perturbado pela visão do seu próprio estado, ousa dizer que Deus não pode torná-lo capaz de sua comunicação! Mas, eu desejaria perguntar-lhe se Deus lhe pede outra coisa além de que o ame conhecendo-o, e porque crê que Deus não pode tornar-se cognoscível e amável por ele, de vez que é naturalmente capaz de amor e de conhecimento. Sem dúvida, conhece ao menos que existe e que uma alguma coisa. Portanto, se vê alguma coisa nas trevas em que se encontra, e se acha algum motivo de amor entre as coisas da terra, porque, se Deus lhe dá alguns raios de sua essência, não será capaz de o conhecer e de o amar da maneira que lhe aprouver comunicar-se conosco? Há, pois, sem dúvida, uma presunção insuportável nessas espécies de raciocínios, embora pareçam fundados sobre uma humildade aparente, que não é nem sincera, nem razoável, se não nos faz confessar que, não sabendo por nós mesmos o que somos, só podemos aprendê-lo por Deus.


 

ARTIGO V

SUBMISSÃO E USO DA RAZÃO

 

I

A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a conhecer isso. É preciso saber duvidar onde é preciso, afirmar onde é preciso, e submeter-se onde é preciso. Quem não faz assim não entende a força da razão. Há os que pecam contra esses três princípios, ou afirmando tudo como demonstrativo, não precisando ser conhecido por demonstrações; ou duvidando de tudo, não precisando saber onde é necessário, submeter-se; ou submetendo-se a tudo, não precisando saber onde é necessário julgar.

II

Se se submete tudo à razão, a nossa religião nada terá de misterioso nem de sobrenatural. Se se contrariam os princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula. A razão, diz Santo Agostinho, nunca se submeteria, se não julgasse que há ocasiões em que deve submeter-se. É, pois, justo que se submeta quando julga que deve submeter-se.

III

A piedade é diferente da superstição. Sustentar a piedade até à superstição é destruí-la. Os hereges nos acusam dessa submissão supersticiosa. É fazer aquilo de que nos acusam (exigir essa submissão nas coisas que não são matéria de submissão).

Não há nada tão conforme à razão como a retratação da razão (nas coisas que são de fé e nada tão contrário à razão como a retratação da razão nas coisas, que não são de fé). Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.

IV

Diz bem a fé o que não dizem os sentidos, mas não o contrário do que vêem estes. Ela está acima e não em oposição.

V

Se eu tivesse visto um milagre, dizem eles, converter-me-ia. Como afirmam que fariam o que ignoram? Supõem que essa conversão consista numa adoração que se faz de Deus como um comércio e uma conversão tal como a imaginam. A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se diante desse Ser universal que tantas vezes tem sido irritado e que pode perder-vos legitimamente a todo momento; em reconhecer que não se pode nada sem ele, e que nada se mereceu dele senão a perda de sua graça. Consiste em conhecer que há uma oposição invencível entre Deus e nós, e que, sem um mediador, não pode haver comércio.

VI

Não vos admireis de ver pessoas simples crer sem raciocínio. Deus lhes dá o amor a ele e o ódio a si mesmo. Inclina-lhes o coração a crer.

Nunca se crerá com uma crença útil e de fé se Deus não inclina a isso o coração; crer-se-á desde que ele o incline. É o que bem conhecia Davi quando dizia: inclina cor meum, Deus, in testimonia tua(9) (Salmo CXIX, 36).

VII

Os que crêem sem ter lido os Testamentos é porque têm uma disposição interior tão santa que o que ouvem dizer da nossa religião lhe é conforme. Sentem que um Deus os fez. Só querem amar a Deus, só querem odiar a si mesmos. Sentem que não têm por si mesmos a força para isso, que são incapazes de ir a Deus e que, se Deus não vem a eles, não podem ter nenhuma comunicação com ele. E ouvem dizer, em nossa religião, que é preciso amar somente a Deus e odiar somente a si mesmo; mas, sendo todos corrompidos e incapazes de Deus, Deus se fez homem para unir-se a nós. Não é preciso mais para persuadir homens que têm essa disposição no coração e que têm esse conhecimento do seu dever e de sua incapacidade.

VIII

Os que vemos tornarem-se cristãos sem o conhecimento das profecias e das provas não deixam de julgá-las tão bem quanto os que têm esse conhecimento. Julgam-nas pelo coração, como os outros as julgam pelo espírito. É o próprio Deus que os inclina a crer, e assim estão eles muito eficazmente persuadidos.

Confesso que um desses cristãos que crêem sem provas não terá, talvez, com que convencer um infiel que lhe alegar tal coisa. Mas, os que conhecem as provas da religião provarão sem dificuldade que esse fiel é verdadeiramente inspirado por Deus, embora não possa prová-lo ele próprio.


 

ARTIGO VI

IMAGEM DE UM HOMEM QUE SE CANSOU DE PROCURAR DEUS PELO SIMPLES RACIOCÍNIO E QUE COMEÇA A LER A ESCRITURA

 

I

Vendo a cegueira e a miséria do homem (e essas contrariedades espantosas que se descobrem em sua natureza), observando todo o universo mudo, e o homem sem luz, abandonado a si mesmo, e como que perdido neste recanto do universo, sem saber quem o pôs aqui, o que veio aqui fazer, o que se tornará ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, eu princípio a ter medo como um homem que tivesse sido levado dormindo para uma ilha deserta e medonha e que despertasse sem saber onde está e sem meios de escapar. E, sobre isso, admiro como não se entra em desespero por tão miserável estado. Vejo outras pessoas perto de mim com semelhante natureza: pergunto-lhes se são mais instruídas do que eu e me dizem que não: e, sobre isso, esses miseráveis perdidos, tendo olhado ao redor e visto alguns objetos agradáveis, a eles se entregaram e se ligaram. Quanto a mim, não pude entregar-me nem ligar-me e, considerando quanta aparência há de que existe outra coisa além do que vejo, tratei de descobrir se esse Deus não teria deixado algum sinal de si.

Vejo uma porção de religiões em vários lugares do mundo e em todos os tempos. Mas, não têm nem moral que possa agradar-me, nem as provas que possam prender-me. E assim, teria eu recusado igualmente a religião de Maomé, a da China, a dos antigos romanos, a dos egípcios, pela única razão de que, não tendo uma mais sinais de verdade do que a outra, nem nada que determinasse necessariamente, a razão não pode pender de preferência para uma do que para outra.

Mas, considerando assim essa inconstante e bizarra variedade de costumes e de crença nos diversos tempos, encontro num canto do mundo um povo particular, separado de todos os outros povos da terra, o mais antigo de todos, cujas histórias precedem de vários séculos as mais antigas que possuímos. Encontro, pois, esse povo grande e numeroso, saído de um só homem, que adora um só Deus e que se conduz por uma lei que eles dizem ter recebido de sua mão. Sustentam que são os únicos do mundo aos quais Deus revelou os seus mistérios; que todos os homens estão corrompidos e no desfavor de Deus; que estão todos abandonados aos seus sentidos e ao seu próprio espírito e que dai provêm os estranhos desvios e mudanças contínuas que se verificam entre eles, tanto de religiões como de costumes; que, ao passo que ficam inabaláveis em sua conduta, Deus não deixará eternamente os outros povos nessas trevas; que virá um libertador para todos; que estão no mundo para anunciá-lo, que foram formados de propósito para serem os precursores e arautos desse grande acontecimento, e para chamar todos os povos a se unirem a eles na espera desse libertador.

O encontro desse povo me assombra e me parece digno de atenção, em virtude do grande número de coisas admiráveis e singulares que nele aparecem.

Vejo, primeiro, que é um povo todo composto de irmãos; e, ao contrário de todos os outros, que são formados da reunião de uma infinidade de famílias, aquele, embora tão estranhamente abundante, saiu todo de um só homem; e, sendo assim todos uma mesma carne e membros uns dos outros, compõem. um poderoso Estado de uma só família. Isso é único.

Essa família ou esse povo é o mais antigo que existe no conhecimento dos homens: o que me parece dever atrair para ele uma veneração particular, principalmente na pesquisa que fazemos, de vez que, se Deus se comunicou sempre aos homens, a eles é que é preciso recorrer para saber qual é a sua tradição.

Esse povo não é somente considerável por sua antigüidade, mas é ainda singular em sua duração, que sempre continuou desde sua origem até agora; com efeito, ao contrário dos povos da Grécia e da Itália, da Lacedemônia, de Atenas, de Roma e dos outros que vieram tanto tempo depois e acabaram há tanto tempo, eles subsistem sempre; e, mau grado as empresas de tantos reis poderosos, que cem vezes experimentaram fazê-los perecer, como o testemunham os seus historiadores e como é fácil de julgar pela ordem natural das coisas, durante um tão longo espaço de anos, eles sempre foram conservados; e, estendendo-se desde os primeiros tempos aos últimos, a sua história encerra em sua duração a de todas as nossas histórias.

Considerando essa lei que eles se gabam de terem recebido de Deus, acho-a admirável; é a primeira lei de todas, de tal maneira que, antes mesmo da palavra lei ter sido usada pelos gregos, havia cerca de mil anos que eles a tinham recebido e observado sem interrupção. Assim, acho estranho que a primeira lei do mundo seja considerada também como a mais perfeita, a ponto dos maiores legisladores terem emprestado dela as suas, como acontece com a lei das doze tábuas de Atenas, que foi em seguida tomada pelos romanos, e como seria fácil de mostrar, se Josefo e outros não tivessem tratado suficientemente dessa matéria.

Mas, essa lei é ao mesmo tempo a mais severa e a mais rigorosa de todas, obrigando esse povo, para retê-lo no seu dever, a mil observações particulares e penosas, sob pena da vida. De sorte que é uma coisa assombrosa que ela seja sempre conservada durante tantos séculos por um povo rebelde e impaciente como esse, enquanto que todos os outros Estados mudaram de tempos a tempos as suas leis, embora fossem, ao contrário, bastante fáceis (de observar).

II

(Esse povo é ainda admirável em sinceridade). Eles trazem com amor e fidelidade o livro em que Moisés declara que sempre foram ingratos para com Deus e que sabe que o serão ainda mais depois de sua morte, mas que chama o céu e a terra como testemunho contra eles, e que isso ele lhes disse bastante; que, enfim, Deus, irritando-se contra eles, os dispersará entre todos os povos da terra; que, como o irritaram adorando deuses que não eram o seu Deus, assim também ele os provocará, os irritará chamando um povo que não era o seu povo. No entanto, esse livro, que os desonra em tantos trechos, é conservado por eles à custa de sua vida. É uma sinceridade que não tem exemplo no mundo, nem sua raiz na natureza.

(De resto, não encontro nenhum motivo para duvidar da verdade do livro que contém todas essas coisas; com efeito), há muita diferença entre um livro que um particular faz e lança no povo e um livro que faz dele próprio um povo. Não se pode duvidar de que o livro seja tão antigo quanto o povo.

(É um livro feito por autores contemporâneos). Toda história que não é contemporânea é suspeita; assim, os livros das Sibilas e de Trismegisto e tantos outros que se escreveram no mundo são falsos e se mostram falsos com o correr dos tempos. Mas, não é assim com os autores contemporâneos.

III

Que diferença de um livro para outro! Não me admira que os gregos tenham feito a Ilíada, nem os egípcios e os chineses as suas histórias. Basta ver como isso nasceu.

Esses historiadores fabulosos não são contemporâneos das coisas sobre as quais escrevem. Homero faz um romance que ele dá por tal: com efeito, ninguém duvidava de que Tróia e Agamenon tivessem existido tanto quanto a maçã de ouro. Ele não pensou também em fazer uma história, mas apenas um divertimento. O seu livro é o único do seu tempo; a beleza da obra faz durar a coisa: todos a conhecem e falam dela: é preciso conhecê-la; todos a sabem de cor. Quatrocentos anos depois, os testemunhos das coisas não estão mais vivos, ninguém sabe mais, por seu conhecimento, se é uma fábula ou uma história: desde que foi aprendida dos antepassados, pode passar como verdadeira.


 

ARTIGO VII

DOS JUDEUS(10)

 

I

Tendo passado a criação e o dilúvio e não devendo Deus destruir mais o mundo nem tornar a criá-lo, nem dar esses grandes sinais de si, começou a estabelecer um povo sobre a terra, formado propositadamente, que devia durar até ao povo que o Messias formaria por seu espírito.

II

Deus, querendo fazer parecer que podia formar um povo santo de uma santidade invisível e enchê-lo de uma glória eterna, fez coisas visíveis; como a natureza é uma imagem da graça, fez nos bens da natureza o que devia fazer nos da graça, afim de que se julgasse que ele podia fazer o invisível, uma vez que fazia bem o visível. Salvou, pois, esse povo do dilúvio; fê-lo nascer de Abraão; libertou-o dos seus inimigos e deu-lhe repouso.

O objeto de Deus não era salvar do dilúvio e fazer nascer de Abraão todo um povo, para não o introduzir senão numa terra fértil.

III

Querendo privar os seus dos bens perecíveis, para mostrar que isso não era por impotência, fez ele o povo judeu.

Os judeus tinham envelhecido nesses pensamentos terrestres de que Deus amava o seu pai Abraão, a sua carne, e o que dele saísse: que por isso os multiplicara e distinguira de todos os outros povos, sem permitir que eles se misturassem com estes últimos; que, quando languesciam no Egito, de lá os retirou com todos os seus grandes sinais em seu favor; que os nutriu com o maná no deserto; que os conduziu a uma terra bastante fértil, que lhes deu reis e um templo bem construído para nele oferecerem animais, e que, por meio da efusão do seu sangue, seriam purificados; e que lhes devia enfim enviar o Messias, para torná-los senhores de todo o mundo. E predisse o tempo de sua vinda.

Os judeus estavam habituados aos grandes e brilhantes milagres; e assim, tendo tido os grandes lances do mar Vermelho e a terra de Canaã como um resumo das grandes coisas do seu Messias, esperavam coisas ainda mais brilhantes, das quais as de Moisés eram apenas amostras.

Tendo o mundo envelhecido nesses erros carnais, Jesus Cristo veio no tempo predito, mas não com o brilho esperado; e, assim, eles pensaram que fosse. Depois de sua morte, São Paulo veio ensinar aos homens que todas essas coisas tinham vindo em figuras; que o reino de Deus não consistia na carne, mas no espírito; que os inimigos dos homens não eram os babilônios, mas as suas paixões; que Deus não se achava bem nos templos feitos pela mão do homem, mas num coração puro e humilhado; que a circuncisão do corpo era inútil, mas que era necessária a do coração; que Moisés não lhes dera o pão do céu, etc.

Mas, Deus, não tendo querido descobrir essas coisas a esse povo indigno delas, e tendo querido todavia predizê-las afim de que fossem cridas, predisse claramente o seu tempo e algumas vezes as exprimiu claramente, mas abundantemente em figuras, afim de que aqueles. que amavam as coisas figurantes nelas se detivessem, e aqueles que amavam as figuras as vissem assim (Foi o que fez que ao tempo do Messias os povos fossem partilhados: os espirituais o receberam, e os carnais, que o rejeitaram, ficaram para servir de testemunhas).

IV

Os judeus carnais não entendiam nem a grandeza nem o abaixamento do Messias predito em suas profecias. Desconheceram-no em sua grandeza, como quando ele disse que o Messias será senhor de Davi, embora seu filho; que ele é, antes que Abraão fosse, e o viu(11). Não o julgavam tão grande que fosse eterno, e o desconheceram tanto no seu abaixamento como em sua morte. O Messias, diziam eles, permanece eternamente, e este diz que morrerá. Não o julgavam, pois, nem mortal, nem eterno: só procuravam nele uma grandeza carnal.

Os judeus amaram tanto as coisas figurantes e as esperaram tanto que desconheceram a realidade quando ela veio no tempo e da maneira preditos.

V

Os que acham difícil crer buscam a razão disso no fato dos judeus não crerem. Se isso fosse claro, diz-se, porque eles não crêem? e desejariam quase que eles cressem, afim de não serem detidos pelo exemplo de sua recusa. Mas, é justamente a sua recusa o fundamento da nossa crença. Nós a isso estaríamos menos dispostos se eles fossem dos nossos. Teríamos, então, um mais amplo pretexto. É admirável que isso tenha tornado os judeus grandes amadores das coisas preditas e grandes inimigos do cumprimento, (e que até essa aversão tenha sido predita)

VI

Era preciso que, para dar fé ao Messias, houvesse profecias precedentes, que fossem trazidas por pessoas insuspeitas, de diligência, fidelidade e zelo extraordinário, conhecidos de toda a terra.

Para fazer ter êxito tudo isso, Deus escolheu esse povo carnal, a cuja guarda confiou as profecias que predizem o Messias como libertador e dispensador dos bens carnais que esse povo amava; e assim teve ele um ardor extraordinário por seus profetas, e trouxe à vista de toda a gente esses livros que predizem o seu Messias, afirmando a todas as nações que ele devia vir e da maneira predita nos seus livros, que eles tinham aberto a toda a gente. É assim esse povo, que caiu com o advento ignominioso e pobre do Messias, foi o seu mais cruel inimigo. De sorte que eis o povo do mundo menos suspeito para nos favorecer, e o mais exato e mais zeloso que se possa dizer por sua lei e por seus profetas, que os mantém incorruptos.

VII

Os que rejeitaram e crucificaram Jesus Cristo, que lhes foi em escândalo, são os que trazem os livros que o testemunham e que dizem que ele será rejeitado e em escândalo. Assim, marcaram que era ele recusando-o; e foi igualmente provado, quer pelos judeus justos que o receberam, quer pelos injustos que o rejeitaram, ambos tendo sido preditos.

É por isso que as profecias têm um sentido oculto, o espiritual, do qual esse povo era inimigo, sob o carnal, do qual era amigo. Se o sentido espiritual tivesse sido descoberto, eles não seriam capazes de amá-lo; e, não podendo trazê-lo, não teriam tido zelo para a conservação dos seus livros e das suas cerimônias. E, se tivessem amado essas promessas espirituais, e as tivessem conservado incorruptas até ao Messias, o seu testemunho não teria tido força, uma vez que teriam sido seus amigos. Eis porque era bom que o sentido espiritual fosse oculto. Mas, por outro lado, se esse sentido espiritual tivesse sido de tal forma oculto que de modo algum aparecesse, não teria podido servir de prova ao Messias. Que se fez então? Esse sentido foi coberto sob o temporal na multidão das passagens, e foi descoberto tão claramente em algumas, além do tempo e do estado do mundo terem sido preditos tão claramente, que é mais claro do que o sol. E esse sentido espiritual é tão claramente explicado em alguns lugares, que era preciso uma cegueira semelhante àquela que a carne lança no espírito quando lhe é submetido, para não o reconhecer.

Eis, pois, qual foi a conduta de Deus. Esse sentido espiritual é coberto por um outro numa infinidade de lugares, e descoberto em alguns, raramente, mas de tal sorte, todavia, que os lugares em que é oculto são equívocos e podem convir aos dois: ao passo que os lugares em que é descoberto são unívocos e só podem convir ao sentido espiritual.

De sorte que isso não podia induzir em erro, e só havia um povo tão carnal que pudesse enganar-se a respeito.

Com efeito, quando os bens são prometidos em abundância, que os impedia de entender os verdadeiros bens, senão a sua cobiça, que determinava esse sentido aos bens da terra? Mas, os que não tinham bens senão em Deus os relacionavam unicamente com Deus. Com efeito, há dois princípios que dividem as vontades dos homens: a cobiça e a caridade. Isso não significa que a cobiça não possa existir com a fé em Deus e que a caridade não exista com os bens da terra. Mas, a cobiça serve-se de Deus e goza do mundo, ao passo que a caridade, ao contrário, (serve-se do mundo e goza de Deus).

Ora, o último fim é o que dá o nome às coisas. Tudo o que nos impede de chegar a isso é chamado de inimigo. Assim as criaturas, embora boas, são inimigas dos justos, quando as desviam de Deus; e o próprio Deus é inimigo daqueles cuja cobiça ele perturba.

Assim, a palavra inimigo dependendo do último fim, os justos entendiam por ela as suas paixões, e os carnais entendiam os babilônios: e assim esses termos só eram obscuros para os injustos.

É é o que diz Isaias: Signa legem in discipulis meis(12),(Isaias, VIII, 16); e que Jesus Cristo será pedra de escândalo (idem, VIII, 14). Mas, bem-aventurados os que não forem escandalizados nele (Mateus, XI, 6). Oséias também o diz perfeitamente: Onde está o sábio? e ele ouvirá o que digo: porque as vias de Deus são direitas, mas os maus tropeçarão nelas (Oséias, XIV, 10).

E, todavia, esse Testamento, feito de tal forma que esclarecendo uns cega outros, marcava, naqueles mesmos que cegava, a verdade que devia ser conhecida pelos outros: porque os bens visíveis que recebiam de Deus eram tão grandes e tão divinos que parecia bem que ele tinha o poder de lhes dar os invisíveis e um Messias.

VIII

O tempo do primeiro advento foi predito; o tempo do segundo não o foi(13), porque o primeiro devia ser oculto; o segundo devia ser brilhante e de tal modo manifesto que os seus próprios inimigos o devessem reconhecer. Mas, como só devesse vir obscuramente, para ser reconhecido somente pelos que sondassem as Escrituras, que podiam fazer os judeus, seus inimigos? Se o recebem, o provam por sua recepção, porque os depositários da espera do Messias o recebem; e, se o renunciam, o provam por sua renúncia.

IX

Os judeus tinham milagres, profecias, que viam realizar-se; e a doutrina de sua lei era adorar e amar somente um Deus: era igualmente perpétua. Assim tinha todas as marcas da verdadeira religião; também o era. Mas, é preciso distinguir a doutrina dos judeus da doutrina da lei dos judeus. Ora, a doutrina dos judeus não era verdadeira, embora tivesse milagres, as profecias e a perpetuidade, porque não tinha esse outro ponto de adorar e amar somente a Deus.

A religião Judaica deve, pois, ser considerada diferentemente na tradição dos livros santos e na tradição do povo. A moral e a felicidade dela são ridículas na tradição do povo; ela é, porém, incomparável na dos seus santos. O seu fundamento é admirável. É o mais antigo livro do mundo e o mais autêntico; e, ao contrário de Maomé, que, para fazer subsistir o seu, proibi-a a sua leitura, Moisés, para fazer subsistir o seu, ordenou a todos que o lessem.

X

A religião dos judeus foi formada sobre a semelhança da verdade do Messias, e a verdade do Messias foi reconhecida pela religião dos judeus, que era a sua figura.

Entre os judeus, a verdade era apenas figurada. No céu, é descoberta. Na Igreja, é coberta e reconhecida em relação à figura. A figura foi feita sobre a verdade, e a verdade foi reconhecida sobre a figura.

XI

Quem julgar a religião dos judeus pelos grosseiros a conhecerá mal. Ela é visível nos santos livros e na tradição dos profetas, que fizeram ver bastante que não entendiam a lei à letra. Assim, a nossa religião é divina no Evangelho, nos apóstolos e na tradição; mas, é ridícula nos que a tratam mal.

XII

(Os judeus eram de duas espécies: uns não tinham senão as afeições pagãs, outros tinham as afeições cristãs). O Messias, segundo os judeus carnais, deve ser um grande príncipe temporal. Jesus Cristo, segundo os cristãos carnais, veio dispensar-nos de amar a Deus e nos dar sacramentos que operam tudo sem nós. Nem um nem outro é a religião cristã nem a judaica. Os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos reconhecem um Messias que os faria amar a Deus e, por esse amor, triunfar dos seus inimigos.

XIII

O véu que, para os judeus, existe sobre os livros da Escritura, existe também para os maus cristãos e para todos os que não se odeiam a si mesmos. Mas, como se está bem disposto a entendê-los e a conhecer Jesus Cristo quando se odeia verdadeiramente a si mesmo!

XIV

Os judeus carnais têm o meio entre os cristãos e os pagãos. Os pagãos não conhecem Deus e só amam a terra. Os judeus conhecem o verdadeiro Deus e só amam a terra. Os cristãos conhecem o verdadeiro Deus e não amam a terra. Os judeus e os pagãos amam os mesmos bens. Os judeus e os cristãos conhecem o mesmo Deus.

XV

É visivelmente um povo feito de propósito para servir de testemunho ao Messias. Traz os livros, e os ama, e não os entende. E tudo isso foi predito: porque se disse que os julgamentos de Deus lhes foram confiados, mas como um livro selado.

Enquanto os profetas existiram para manter a lei, o povo foi negligente. Mas, desde que não houve mais profeta, o zelo sucedeu, (o que é uma providência admirável).

XVI

Começando a criação do mundo a distanciar-se, Deus providenciou um único historiador contemporâneo, e cometou todo um povo para a guarda desse livro, afim de que essa história fosse a mais autêntica do mundo e de que todos os homens pudessem aprender uma coisa tão necessária de se saber e que só se pudesse saber por esse meio.

XVII

Moisés era um homem instruído: por conseguinte, se se governava por seu espírito, não diria nitidamente nada que fosse diretamente contra o espírito.

Assim, todas as fraquezas muito aparentes são forças. Exemplo: as duas genealogias de São Mateus e de São Lucas; que há de mais claro de que isso foi feito de concerto?

Por que faz Moisés a vida dos homens tão longa e tão poucas gerações? Com efeito, não é a extensão dos anos, mas a multidão das gerações que torna as coisas obscuras.

A verdade não se altera senão pela mudança dos homens. No entanto, ele põe as duas coisas mais memoráveis que já se imaginaram, a saber, a criação e o dilúvio, tão próximas que se pode tocá-las, (pelo pouco que ele faz de gerações. De sorte que, no tempo em que escrevia essas coisas, a memória das mesmas devia ainda ser bem recente no espírito de todos os judeus).

Sem, que viu Lamec, que viu Adão, viu também Jacó, que viu os que viram Moisés. Portanto, o dilúvio e a criação são verdadeiros. Isso conclui entre certas pessoas que o entendem bem.

A extensão da vida dos patriarcas, em lugar de fazer que as histórias passadas se perdessem, servia, ao contrário, para conservá-las. Com efeito, o que faz que não sejamos, às vezes, bastante instruídos na história dos nossos antepassados, é que nunca vivemos com eles, pois muitas vezes morreram antes de termos atingido a idade da razão. Mas, quando os homens viviam tão longo tempo, as crianças viviam longo tempo com seus pais; eles as entretinham longo tempo. Ora, com que as teriam eles entretido, senão com a história dos seus antepassados, de vez que toda a história se reduzia àquela e que eles não tinham estudos, nem ciências, nem artes que ocupam grande parte dos discursos da vida? Vê-se, igualmente, que naquela época os povos tinham um cuidado particular em conservar as suas genealogias.

XVIII

Quanto mais os examino (os judeus), tanto mais descubro verdades; o que precedeu e o que seguiu; enfim, eles sem ídolos nem rei, e essa sinagoga que foi predita e esses miseráveis que a seguem e que, sendo nossos inimigos, são admiráveis testemunhos da verdade dessas profecias em que a sua vida e até a sua cegueira foram preditas. Descubro esse encadeamento, essa religião tão divina em sua autoridade, em sua duração, em sua perpetuidade, em sua moral, em sua conduta, em sua doutrina, em seus efeitos, e as trevas dos judeus, medonhas e preditas: Eris palpans in meridie. Dabitur tibet scienti litteras et dicet: Non possum legere.(14) Estendo, assim, os braços ao meu libertador, que, tendo sido predito durante mil anos, veio sofrer e morrer por mim sobre a terra nos tempos e em todas as circunstâncias que foram preditos, e, por sua graça, espero a morte em paz, na esperança de lhe ser eternamente unido, e vivo entretanto, com alegria, quer nos bens que lhe apraz conceder-me, quer nos males que me envia para o meu bem, e que me ensinou a sofrer por seu exemplo.

Por isso, recuso todas as outras religiões; por isso, acho resposta para todas as objeções. É justo que um Deus tão puro só se descubra àqueles cujo coração está purificado.

Acho de efetivo que, desde que a memória dos homens existe, foi constantemente anunciado aos homens que eles estão numa corrupção universal, mas que virá um reparador: não é um homem que o diz, mas um povo inteiro durante quatro mil anos profetizando e feito de propósito.


 

ARTIGO VIII

DAS FIGURAS; QUE A ANTIGA LEI ERA FIGURATIVA

 

I

Há figuras claras e demonstrativas; mas, há outras que parecem um pouco menos naturais e que só provam aos que já estão persuadidos. Assemelham-se estas às apocalípticas. Mas, a diferença que há é que não as têm como indubitáveis, de tal modo que não há nada tão injusto como quando pretendem que as suas sejam tão bem fundadas como algumas das nossas; com efeito, não as possuem demonstrativas como algumas das nossas. A partida não é, pois, igual. É preciso não igualar e não confundir essas coisas, porque parecem ser semelhantes por uma extremidade, sendo tão diferentes pela outra.

II

Uma das principais razões pelas quais os profetas velaram os bens espirituais que prometiam sob as figuras dos bens temporais, é que tinham em vista um povo carnal, que era preciso tornar depositário do testamento espiritual.

Jesus Cristo, figurado por José, bem amado por seu pai, enviado pelo pai para ver seus irmãos, etc., inocente, vendido por seus irmãos por vinte dinheiros, e por isso tornado seu senhor, seu salvador, quer o salvador dos estrangeiros, quer o salvador do mundo, o que não teria sido sem o desígnio de o perder, sem a venda e a reprovação que a isso fizeram.

Na prisão, José inocente entre dois criminosos: Jesus Cristo na cruz entre dois ladrões. José predisse a salvação de um e a morte do outro, sobre as mesmas aparências: Jesus Cristo salva os eleitos e dana os réprobos pelos mesmos crimes. José não faz senão predizer: Jesus Cristo faz. José pede ao que será salvo que se lembre dele quando chegar à sua glória; e aquele que Jesus Cristo salva lhe pede que se lembre dele quando em seu reino.

III

A graça não é senão a figura da glória; com efeito, não é o último fim. Foi figurada pela lei e ela própria figura a glória; mas, é desta a figura e o princípio ou a causa.

IV

A sinagoga não perecia, porque era a figura (da Igreja); mas, porque era apenas a figura, caiu na servidão. A figura subsistiu até à verdade, afim de que a Igreja fosse sempre visível, ou na pintura que a prometia, ou no efeito.

V

Para provar de uma vez os dois Testamentos, basta ver se as predições de um se realizam no outro. Para examinar as profecias, é preciso entendê-las; de fato, se se crê que têm somente um sentido, é certo que o Messias não virá; mas, se têm dois sentidos, é certo que virá em Jesus Cristo.

Toda a questão consiste, pois, em saber se têm dois sentidos, (se são figuras ou realidades, isto é, se é preciso procurar nelas alguma outra coisa além do que aparece à primeira vista, ou se é preciso ficar unicamente nesse primeiro sentido que apresentam).

Se a lei e os sacrifícios são a verdade, é preciso que agradem a Deus e não que lhe desagradem. Se são figuras, é preciso que agradem e desagradem.

Ora, em toda a Escritura, agradam e desagradam.

(Portanto, são figuras).

VI

Para mostrar que o Velho Testamento é apenas figurativo e que pelos bens temporais os profetas entendiam outros bens, note-se, em primeiro lugar, que isso seria indigno de Deus; em segundo lugar, que os seus discursos exprimem muito claramente a promessa dos bens temporais; e que eles dizem, todavia, que os seus discursos são obscuros e que o seu sentido não será entendido, de onde parece que esse sentido não era o que eles exprimiam a descoberto e que, por conseguinte, entendiam falar de outros sacrifícios, de outro libertador, etc. Dizem eles que isso só será entendido no fim dos tempos. (Jeremias, XXXIII, ult.).

A terceira prova é que os seus discursos são contrários e se destroem, de maneira que, se se pensa que não entenderam pelas palavras lei e sacrifício outra coisa além das de Moisés, há contradição manifesta e grosseira: portanto, entendiam outra coisa, contradizendo-se às vezes num mesmo capítulo.

VII

Foi dito que a lei será mudada; que o sacrifício será mudado; que eles ficarão sem rei, sem príncipe e sem sacrifício; que será feita uma nova aliança; que a lei será renovada; que os preceitos que receberam não são bons; que os seus sacrifícios são abomináveis; que Deus não pediu isso.

Foi dito, ao contrário, que a lei durará eternamente; que essa aliança será eterna; que o sacrifício será eterno; que o cetro não sairá nunca dentre eles, de vez que não deve sair, que o rei eterno não chega. Todas essas passagens marcam que isso seja realidade? Não. Marcam também que isso seja figura? Não: mas que é realidade ou figura. Mas, excluindo as primeiras a realidade, marcam que é apenas figura.

Todas essas passagens juntas não podem ser chamadas de realidade: todas podem ser chamadas de figura. Portanto, não são chamadas de realidade, mas de figura.

VIII

Para saber se a lei e os sacrifícios são realidade ou figura, é preciso ver se os profetas, falando dessas coisas, nelas detinham a sua vista e o seu pensamento, de maneira que só vissem nelas essa antiga aliança, ou se viam nelas alguma outra coisa de que ela foi a pintura; de fato, num retrato, vê-se a coisa figurada. Para isso, basta que se examine o que eles dizem a respeito.

Quando dizem que será eterna, entendem falar da aliança da qual dizem que será mudada? E assim também dos sacrifícios, etc.

IX

Os profetas disseram claramente que Israel seria sempre amado por Deus e que a lei seria eterna; e disseram que não se entenderia o seu sentido, que era velado.

A cifra tem dois sentidos. Quando se surpreende uma carta importante na qual se acha um sentido claro e na qual se diz, contudo, que o sentido é velado ou obscuro, que está oculto de maneira que se verá essa carta sem a ver e que se entenderá sem entende-la, que se deve, pois, pensar, senão que é uma cifra de duplo sentido, tanto mais quanto se descobrem nela contrariedades manifestas no sentido literal? Quanto se devem, pois, estimar aqueles que nos descobrem a cifra e nos ensinam a conhecer o sentido oculto, e, principalmente, quando os princípios que tomam dela são inteiramente naturais e claros? Foi o que fizeram Jesus Cristo e os apóstolos. Tiraram o selo, rasgaram o véu e descobriram o espírito. Ensinaram-nos, assim, que os inimigos do homem são as paixões; que o Redentor seria espiritual e o seu reino espiritual; que haveria dois adventos: um da miséria, para abaixar o homem soberbo, e outro da glória, para elevar o homem humilhado; e que Jesus Cristo será Deus e homem.

X

Jesus Cristo não fez outra coisa senão ensinar aos homens que se amassem entre si, e que eram escravos, cegos, doentes, infelizes e pecadores; que era preciso que ele os libertasse, esclarecesse, beatificasse e curasse; que isso se faria odiando-se cada qual a si próprio e seguindo-o pela miséria e a morte na cruz.

Eis a cifra que São Paulo nos dá: a letra mata; tudo chegava em figuras; era preciso que o Cristo sofresse: um Deus humilhado. Circuncisão do coração, verdadeiro jejum, verdadeiro sacrifício, verdadeiro templo. Os profetas indicaram que era preciso que tudo isso fosse espiritual.

Ele nos ensinou, pois, finalmente, que todas essas coisas eram apenas figuras, e o que é verdadeiramente livre, verdadeiro israelita, verdadeira circuncisão, verdadeiro pão do céu, etc.

XI

Nessas promessas, cada qual acha o que tem no fundo do coração: os bens temporais ou os bens espirituais; Deus ou as criaturas; mas, com a diferença de que aqueles que procuram ai as criaturas as encontram, mas com várias contradições, com a proibição de amá-las, com ordem de só adorar um Deus e amar somente a ele, o que não é senão uma mesma coisa; e que, enfim, não veio Messias para eles. Ao contrário, os que procuram Deus o encontram, sem nenhuma contradição e com recomendação de amar somente a ele.

XII

As fontes das contrariedades da Escritura são um Deus humilhado até à morte na cruz, um Messias triunfando da morte por sua morte, duas naturezas em Jesus Cristo, dois adventos, dois estados da natureza do homem.

Só se pode fazer uma boa fisionomia quando se põem de acordo todas as nossas contrariedades, e não basta seguir uma seqüência de qualidades acordes sem conciliar os contrários; para entender o sentido de um autor, é preciso conciliar todas as passagens contrárias.

Assim, para conciliar a Escritura, é preciso ter um sentido no qual todas as passagens contrárias se acordem. Não basta ter um que convenha a várias passagens acordes, mas é preciso ter um que concilie até as passagens contrárias.

Todo autor tem um sentido no qual todas as passagens contrárias se acordam, ou não tem sentido nenhum. Não se pode dizer isso da Escritura e dos profetas. Eles tinham, certamente, bastante bom-senso. É preciso, pois, procurar um que acorde todas as contrariedades.

O verdadeiro sentido não é, pois, o dos judeus; mas, é em Jesus Cristo que todas as contradições são acordadas.

Os judeus não saberiam acordar a cessação da realeza e do principado, predita por Oséias, com a profecia de Jacó.

Se se tomam a lei, os sacrifícios e o reino pela realidade, não se podem acordar todas as passagens. É preciso, pois, por necessidade, que sejam apenas figuras. Não se poderiam mesmo acordar as passagens de um mesmo autor, nem de um mesmo livro, nem às vezes de um capítulo. O que marca bem qual era o sentido do autor.

XIII

Não era permitido sacrificar fora de Jerusalém, que era o lugar que o Senhor tinha escolhido, nem mesmo comer fora dos dízimos.

Oséias predisse que eles ficariam sem rei, sem príncipe, sem sacrifícios e sem ídolos; o que se realizou hoje, não podendo s judeus fazer sacrifício legítimo fora de Jerusalém.

XIV

Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é literalmente falsa, ela é verdadeira espiritualmente. Sede a dextris meis(15). Isso é falso literalmente; logo, é verdadeiro espiritualmente. Nessas expressões, ele falou de Deus à maneira dos homens; e isso não significa outra coisa senão que a intenção que os homens têm fazendo-o sentar-se à sua direita, Deus a terá também. É, pois, uma marca da intenção de Deus, não da sua maneira de executá-la.

Assim, quando diz: Deus recebeu o odor dos vossos perfumes e vos dará em recompensa uma terra fértil; isto é, a mesma intenção que teria um homem que, aceitando os vossos perfumes, vos desse em recompensa uma terra fértil. Deus terá a mesma intenção por vós, porque tivestes para com ele a mesma intenção que um homem tem para com aquele a quem dá perfumes.

XV

O único objeto da Escritura é a caridade. Tudo o que não vai ao único fim é a figura: de fato, só havendo um fim, tudo o que não vai nessa direção em palavras próprias é figura.

Deus diversifica assim esse único preceito de caridade para satisfazer a nossa curiosidade que procura a diversidade, por essa diversidade que nos conduz ao nosso único necessário. Com efeito, uma só coisa é necessária, e amamos a diversidade; e Deus satisfaz uma e outra por essas diversidades que conduzem ao único necessário.

XVI

Os rabinos tomam por figuras as maminhas da Esposa e tudo o que não exprime o único fim que eles têm dos bens temporais.

XVII

Há os que vêem bem que não há outro inimigo do homem além da concupiscência que o desvia de Deus, e não Deus; nem outro bem além de Deus, e não uma terra fértil. Os que crêem que o bem do homem está na carne e o mal no que o desvia do prazer dos sentidos, fartem-se e morram com isso. Mas, os que procuram Deus de todo o coração, que só têm desprazer em serem privados de sua vista, que só têm desejo para possuí-lo e como inimigos os que dele se desviam, que se afligem por se verem cercados e dominados por tais inimigos, consolem-se, pois lhes anuncio uma nova feliz: há um libertador para eles, eu lhes farei ver, eu lhes mostrarei que há um Deus para eles; não o farei ver aos outros; farei ver que foi prometido um Messias que livraria dos inimigos, e que veio um para livrar das iniqüidades, mas não dos inimigos.

XVIII

Quando Davi predisse que o Messias livrará o seu povo dos seus inimigos, pode crer-se carnalmente que se trata dos egípcios; e, então, eu não saberia mostrar que a profecia se realizou. Mas, pode crer-se também que se trata das iniqüidades; porque, na verdade, os egípcios não são inimigos, mas as iniqüidades o são. Essa palavra inimigos é, pois, equivoca.

Mas, se ele diz, em outro lugar, como o faz, que livrará o seu povo dos seus pecados, tão bem como Isaias e os outros, o equívoco desaparece, e o sentido duplo de inimigos reduz-se ao sentido simples de iniqüidades: com efeito, se ele tivesse no espírito os pecados, bem podia denotá-los por inimigos; mas, se pensasse nos inimigos, não podia designá-los por iniqüidades.

Ora, tanto Moisés como Davi e Isaias usavam dos mesmos termos. Quem dirá, pois, que não tinham o mesmo sentido, e que o sentido de Davi, que é manifestamente de iniqüidades quando falava de inimigos, não era o mesmo que (o de) Moisés falando de inimigos?

Daniel, cap. IX, reza pela libertação do povo do cativeiro dos seus inimigos: mas, pensava nos pecados, e, para mostrá-lo, diz que Gabriel lhe foi dizer que tinha sido atendido e que não havia mais que setenta semanas que esperar, depois do que o povo estaria livre de iniqüidade, o pecado teria fim e o libertador, o Santo dos santos, traria a justiça eterna, não a legal, mas a eterna.

Uma vez que se abriu esse segredo, é impossível não vê-lo. Leia-se o Velho Testamento nesse sentido, e veja-se se os sacrifícios eram verdadeiros, se o parentesco de Abraão era a verdadeira causa da amizade de Deus, se a terra prometida era o verdadeiro lugar de repouso. Não. Portanto, eram figuram. Vejam-se, também, todas as cerimônias ordenadas e todos os mandamentos que não são pela caridade, e ver-se-á que são figuras.


 

ARTIGO IX

DE JESUS CRISTO

 

I

A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade, pois ela é sobrenatural.

Todo o brilho das grandezas não tem lustre para as pessoas que se entregam às pesquisas do espírito. A grandeza das pessoas de espírito é invisível aos ricos, aos reis, aos capitães, a todos esses grandes de carne. A grandeza da sabedoria, que não existe em nenhuma parte a não ser em Deus, é invisível aos carnais e às pessoas de espírito. São três ordens diferentes em gêneros.

Os grandes gênios têm o seu império, o seu brilho, a sua grandeza, a sua vitória e o seu lustre, e não têm nenhuma necessidade das grandezas carnais em que elas não têm relações. São vistos não pelos olhos, mas pelos espíritos; é o bastante. Os santos têm o seu império, o seu brilho, as suas vitórias, o seu lustre, e não têm nenhuma necessidade das grandezas carnais ou espirituais em que elas não têm nenhuma relação, pois não lhes acrescentam nada nem tiram. São vistos por Deus e pelos anjos, é não pelos corpos nem pelos espíritos curiosos: Deus lhes basta.

Arquimedes, sem brilho, teria a mesma veneração. Ele não deu batalhas para os olhos, mas forneceu a todos os espíritos as suas invenções (admiráveis). Oh! como brilhou aos espíritos! Jesus Cristo, sem bem e sem nenhuma produção fora da ciência, está na sua ordem de santidade. Não deu invenção, não reinou; mas, foi humilde, santo, santo em Deus, terrível para os demônios, sem nenhum pecado. Oh! como veio em grande pompa e numa prodigiosa magnificência aos olhos do coração, que vêem a sabedoria.

Não teria sido inútil a Arquimedes apresentar-se como príncipe nos seus livros de geometria, embora o fosse. Teria sido inútil a Nosso Senhor Jesus Cristo, para brilhar no seu reino de santidade, vir como rei: mas, veio bem como o brilho de sua ordem.

É bem ridículo escandalizar-se da baixeza de Jesus Cristo, como se essa baixeza fosse da mesma ordem que a grandeza que ele vinha fazer aparecer. Considere-se essa grandeza em sua vida, em sua paixão, em sua obscuridade, em sua morte, na eleição dos seus, no abandono, em sua secreta ressurreição, e no resto; ela será vista tão grande que não se terá motivo para escandalizar-se de uma baixeza que não existe. Mas, há os que só podem admirar as grandezas carnais, como se não houvesse as espirituais; e outros que só admiram as espirituais, como se não houvesse infinitamente mais altas na sabedoria.

Todos os corpos, o firmamento, as estrelas, a terra e os seus remos, não valem o menor dos espíritos; de fato, ele conhece tudo isso e a si; e os corpos, nada. Todos os corpos juntos, e todos os espíritos juntos, e todas as suas produções, não valem o menor movimento de caridade; de fato, ela é de uma ordem infinitamente mais elevada.

De todos os corpos juntos, não se saberia fazer sair um pequeno pensamento; isso é impossível, e de uma outra ordem. De todos os corpos e espíritos, não se saberia tirar um movimento de verdadeira caridade; isso é impossível, e de uma outra ordem sobrenatural.

II

Jesus Cristo (esteve) numa tal obscuridade (segundo o que o mundo chama de obscuridade), que os historiadores, não escrevendo senão as importantes coisas dos Estados, mal o perceberam. Quanto ao fato de Josefo de Tácito e os outros historiadores não terem falado de Jesus Cristo, longe de o negar, isso o confirma; com efeito, é certo que Jesus Cristo existiu e que a sua religião fez grande ruído e que essa gente não o ignorava, e que assim é visível que não o ocultaram senão em desígnio, ou que falaram disso e que o suprimiram ou mudaram.

III

Que homem teve jamais maior brilho? O povo judeu inteiro o predisse antes de sua vinda. O povo gentio o adora depois de sua vinda. Os dois povos, gentio e judeu, o observam como seu centro. No entanto, que homem jamais gozou menos de todo esse brilho? De trinta e três anos, ele viveu trinta sem aparecer. Em três anos, passa por um impostor; os sacerdotes e os principais (de sua nação) o rejeitam; os seus amigos e os seus mais próximos o desprezam. Enfim, morre (de uma morte vergonhosa), traído por um dos seus, renegado pelo outro e abandonado por todos. Que parte tem ele, pois, nesse esplendor? Nunca homem algum teve tanto esplendor; nunca homem algum teve mais ignomínia. Todo esse esplendor só serviu para nós, para no-lo tornar reconhecível; e não houve nada para ele.

IV

Jesus Cristo disse as coisas grandes tão simplesmente que parece que não as pensou; e tão nitidamente, contudo, que se vê bem o que ele pensava a respeito. Essa clareza, junta a essa ingenuidade, é admirável.

Quem ensinou aos evangelistas as qualidades de uma alma perfeitamente heróica, para pintá-la tão perfeitamente em Jesus Cristo? Porque o fazem fraco em sua agonia? Não sabem pintar uma morte constante? Sim; com efeito, o próprio São Lucas pinta a de Santo Estêvão mais forte do que a de Jesus Cristo. Fazem-no, pois, capaz de medo antes de chegar a necessidade de morrer, e em seguida tão forte. Mas, quando o fazem tão perturbado, é quando ele próprio se perturba; e, quando os homens o perturbam, é bastante forte.

A Igreja teve tanto trabalho em mostrar que Jesus Cristo era homem, contra os que o negavam, como em mostrar que era Deus; e as aparências eram tão grandes (contra um como contra outro).

Jesus Cristo é um Deus de que a gente se aproxima sem orgulho, e sob o qual a gente se abaixa sem desespero.

V

A conversão dos pagãos estava reservada exclusivamente à graça do Messias. Os judeus levaram tanto tempo a combatê-lo sem êxito; tudo o que a respeito diz Salomão e os profetas foi inútil. Os sábios, como Platão e Sócrates, não puderam persuadi-lo.

Os Evangelhos só falam da virgindade da Virgem até ao nascimento de Jesus Cristo: tudo em relação a Jesus Cristo.

Os dois Testamentos observam Jesus Cristo, o Antigo como sua espera, o Novo como seu modelo, ambos como seu centro.

Os profetas predisseram, e não foram preditos. Os santos, em seguida, são preditos, mas não predizentes. Jesus Cristo é predito e predizente.

Jesus Cristo para todos, Moisés para um povo. Os judeus abençoados em Abraão: Abençoarei os que te abençoarem (Gênese, XII, 3). Mas, todas as nações abençoadas em sua semente (Gênese, XVIII, 18).

Lumen ad recelationem gentium(16) (Lucas. II, 32).

Non fecit taliter omni nationi(17) (Salmo CXLVII, 20), dizia Davi falando da lei; mas, falando de Jesus Cristo, é preciso dizer: Fecit aliter omni nationi(18).

Também está em Jesus Cristo o ser universal. A própria Igreja só oferece o sacrifício para os fiéis: Jesus Cristo ofereceu o da cruz para todos.


 

ARTIGO X

PROVAS DE JESUS CRISTO PELAS PROFECIAS

 

I

A maior das provas de Jesus Cristo são as profecias. É também a que Deus mais proveu; com efeito, o acontecimento que as cumpriu é um milagre subsistente desde o nascimento da Igreja até ao fim. Também Deus suscitou profecias durante mil e seiscentos anos; e, durante quatrocentos anos depois, dispersou todas essas profecias, com todos os judeus que as traziam, em todos os lugares do mundo. Eis qual foi a preparação do nascimento de Jesus Cristo, cujo Evangelho, antes de ser crido por toda a gente, foi preciso não só que houvesse profecias para fazê-lo crer, mas que essas profecias fossem para toda a gente, para fazê-lo abraçar por toda a gente

Quando um só homem fizesse um livro das predições de Jesus Cristo, pelo tempo e pela maneira, e Jesus Cristo viesse de acordo com essas profecias, isso seria uma força infinita. Mas, há bem mais aqui. É uma série de homens, durante quatro mil anos, que, constantemente e sem variação, vêm, um após outro, predizer esse mesmo acontecimento. É um povo todo inteiro que o anuncia e que subsiste durante quatro mil anos, para dar em corpo testemunho das afirmações que têm dele, e do qual não podem ser desviados por algumas ameaças e perseguições que se lhes façam; isso é, bem ao contrário, considerável.

II

O tempo, predito pelo estado do povo judeu, pelo estado do povo pagão, pelo estado do templo, pelo número dos anos: é preciso ser ousado para predizer uma mesma coisa de tantas maneiras.

Era preciso que as quatro monarquias idólatras ou pagãs, o fim do reino de Judá e as setenta semanas chegassem ao mesmo tempo, tudo antes que o segundo templo fosse destruído.

Que, na quarta monarquia, antes da destruição do segundo templo, antes que a dominação dos judeus fosse abolida, na septuagésima semana de Daniel, durante a duração do segundo templo, os pagãos fossem instruídos e conduzidos ao conhecimento do Deus adorado pelos judeus; que os que o amam fossem livrados dos seus inimigos e cumulados com o seu temor e com o seu amor.

E acontece que, na quarta monarquia, antes da destruição do segundo templo, etc., os pagãos em multidão adoram Deus e levam uma vida angélica; as raparigas consagram a Deus a sua virgindade e a sua vida; os homens renunciam a todos os prazeres. O que Platão não pode persuadir a uns poucos homens escolhidos e tão instruídos, uma força secreta o persuade a cem milhares de homens ignorantes, pela virtude de poucas palavras.

Que é tudo isso? É o que foi predito tanto tempo antes: Effundam spiritum meum super omnem carnem(19) (Joel, II, 28). Todos os povos estavam na infidelidade e na concupiscência: toda a terra esteve ardente de caridade; os príncipes deixam suas grandezas; os ricos deixam seus bens; as raparigas sofrem o martírio; os filhos abandonam a casa delicada dos pais para ir viver na austeridade de um deserto. De onde vem essa força? É que o Messias chegou. Eis o efeito e as marcas de sua vinda.

Desde dois mil anos, nenhum pagão adorara o Deus dos judeus: e, no tempo predito, a multidão dos pagãos adora esse único Deus; os templos são destruídos; os próprios reis se submetem à cruz. Que é tudo isso? É o espírito de Deus que se espalha sobre a terra.

Foi predito que, no tempo do Messias, ele viria estabelecer uma nova aliança que faria esquecer a saída do Egito (Jeremias, XXIII, 7); que poria sua lei, não no exterior, mas nos corações (Isaias, XXXI, 7); que Jesus Cristo poria seu temor, que fora apenas aparente, no meio do coração (Jeremias, XXXI, 33, e XXXII, 40);

Que os judeus reprovariam Jesus Cristo, e que eles seriam reprovados por Deus, porque a vinha eleita não daria senão agraço (Isaias, V 2, 3, 4, etc.); que o povo escolhido seria infiel, ingrato e incrédulo: Populum non credentem et contradicentem(20) (Isaias, LXV, 2); que Deus os feriria de cegueira, e que eles tateariam em pleno meio-dia como os cegos (Deuteronômio, XXVIII, 28, 29);

Que a Igreja seria pequena no começo e cresceria em seguida (Ezequiel, XLVII, 1 e seguintes);

Que, então, a idolatria seria derrubada; que esse Messias abateria todos os ídolos e falia entrar os homens no culto do verdadeiro Deus (Ezequiel, XXX, 13);

Que os templos dos ídolos seriam abatidos e que, entre todas as nações e em todos os lugares do mundo, lhe seria oferecida uma hóstia pura e não animais (Malaquias, IV, 11);

Que ele seria rei dos Judeus e dos gentios (Salmos, II, 6 e 8, LXXI, 8 e 11, etc.). E eis esse rei dos judeus e dos gentios, oprimido por uns e outros que conspiram para a sua morte, dominando uns e outros, e destruindo não só o culto de Moisés em Jerusalém, que era o seu centro e onde teve ele sua primeira Igreja, mas também o culto dos ídolos em Roma, que era o seu centro e onde teve ele a sua principal Igreja;

Que ensinaria aos homens o caminho perfeito (Isaias, II, 3; Miquéias, IV, 2, etc.);

E nunca veio, nem antes, nem depois, nenhum homem que tenha ensinado nada de divino aproximando-se disso.

Então, Jesus Cristo vem dizer aos homens que eles não têm outros inimigos senão eles mesmos; que são suas paixões que os separam de Deus; que ele vem para destrui-las e para dar-lhes sua graça, afim de fazer de todos eles uma Igreja santa; que vem reconduzir a essa Igreja os pagãos e os judeus; que vem destruir os ídolos de uns e a superstição de outros.

(O que os profetas, disse-lhes ele, predisseram que deva acontecer, eu vos digo que os meus apóstolos vão fazê-lo. Os judeus vão ser repelidos; Jerusalém será breve destruída; os pagãos vão entrar no conhecimento de Deus; e os meus apóstolos vão fazê-los entrar aí depois que tiverdes matado o herdeiro da vinha.)

(Em seguida, os apóstolos disseram aos judeus: Ides ser amaldiçoados; e aos pagãos: Ides entrar no conhecimento de Deus.)

A isso não se opõem todos os homens por oposição natural da concupiscência, mas ainda todos os reis da terra se unem para abolir essa religião nascente, como fora predito. Tudo o que há de grande sobre a terra se une: os doutos, os sábios, os reis. Uns escrevem, outros condenam, outros matam. E, não obstante todas essas oposições, essa gente simples e sem força resiste a todas essas potências e se submetem até esses reis, esses doutos, esses sábios, e eliminam a idolatria de toda a terra. E tudo isso se faz pela força que o predissera.

Os judeus, matando Jesus Cristo para não recebê-lo como Messias, lhe deram a última marca de Messias. E, continuando a desconhecê-lo, tornam-se seus testemunhos irrecusáveis; e, matando-o e continuando a renegá-lo, realizam as profecias.

(Quem não reconheceria Jesus Cristo em tantas circunstâncias particulares que foram preditas? Pois ele disse:)

Ele terá seu precursor (Malaquias, III, 1);

Ele nascerá criança (Isaias, IX, 6);

Ele nascerá na cidade de Belém (Miquéias, V, 2); sairá da família de Judá (Gênese, XLIX, 8 e seguintes), e de Davi (II Reis, VII, 12 e seguintes; Isaias, VII, 13 e seguintes); aparecerá principalmente em Jerusalém (Malaquias, V, 1; Ageu, II, 10);

Ele deve cegar os sábios e os doutos (Isaias, VI, 10), e anunciar o Evangelho aos pobres e aos pequenos (Isaias, LXI, 1); abrir os olhos dos cegos e dar saúde aos enfermos (Isaias, XXV, 5 e 6), e levar à luz os que languecem nas trevas (Isaias, XLII, 16);

Deve ensinar a via perfeita (Isaias, XXX, 21), e ser o preceptor dos gentios (Isaias, LV, 4);

Deve ser a vítima pelos pecados do mundo (Isaias, LIII, 5);

Deve ser a pedra fundamental e preciosa (Isaias, XXVIII, 16); -

Deve ser a pedra de toque e de escândalo (Isaias, VIII, 14); Jerusalém deve chocar-se contra essa pedra (Isaias, VIII, 15);

Os edificantes(21) devem reprovar essa pedra (Salmo CXVIII, 22);

Deus deve fazer dessa pedra o chefe do canto(22) (ibidem);

É essa pedra deve crescer numa montanha imensa e encher toda a terra (Daniel, II, 35);

Que assim deve ser repelido (Salmo CXVII, 22), desconhecido (Isaias, LIII, 2 e 3), traído (Salmo XL, 10), vendido (Zacarias, XI, 12), cuspido, esbofeteado (Isaias, L, 6), escarnecido (Isaias, XXXIV, 16), afligido de uma infinidade de maneiras (Salmo LXVIII, 27), embebido de fel (Salmo LXVIII, 22); (que ele teria) os pés e as mãos trespassados (Salmos, XXI, 17); que seria morto (Daniel, IX, 26) e os seus hábitos jogados ao acaso (Salmo XXI, 19);

Que ressuscitaria no terceiro dia (Salmo XV, 10; Oséias, VI, 3);

Que subiria ao céu (Salmo XLVI, e LXVII,19)para sentar-se à direita (de Deus) (Salmo CIX, 1);

Que os reis se armariam contra ele (Salmo II, 2);

Que, estando à direita do Pai, seria vitorioso dos seus inimigos (Salmo CIX, 5);

Que os reis da terra e todos os povos o adorariam (Salmo LXXI, 11);

Que os judeus subsistirão em nação (Jeremias, III, 36);

Que serão errantes (Amós, IX, 9), sem reis, sem sacrifícios, sem altar, etc. (Oséias, III, 4), sem profetas (Salmo LXXIII, 9), esperando a salvação e não a encontrando (Isaias, LIX, 9; Jeremias, VIII, 15).

III

Só o Messias devia produzir um grande povo, eleito, santo e escolhido; conduzi-lo, nutri-lo, introduzi-lo no lugar de repouso e de santidade, torná-lo santo em Deus, fazer dele o templo de Deus, reconciliá-lo em Deus, livrá-lo da servidão, do pecado, que reina visivelmente no homem; dar leis a esse povo, gravar essas leis no seu coração, oferecer-se a Deus por eles, sacrificar-se por eles, ser uma hóstia sem mancha, e ele próprio sacrificador; devendo oferecer ele próprio seu corpo e seu sangue, e entretanto oferecer pão e vinho a Deus. (Jesus Cristo fez tudo isso).

(Foi predito) que ele devia vir como libertador, que esmagaria a cabeça do demônio; que devia livrar seu povo dos seus pecados, ex omnibus iniquitastibus(23) (Salmo CXXX, 8); que devia haver um Novo Testamento que seria eterno; que devia haver um outro sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec; que este seria eterno; que o Cristo devia ser glorioso, potente, forte e, todavia, tão miserável que não seria reconhecido; que não seria tomado pelo que é; que seria repelido, que seria morto; que o seu povo, que o renegaria, não seria mais seu povo; que os idólatras o receberiam e recorreriam a ele; que ele deixaria Sião para reinar no centro da Idolatria; que, todavia, os Judeus subsistiriam sempre; que ele devia ser de Judá, e quando não houvesse mais rei.

IV

Considere-se que, desde o começo do mundo, a espera ou adoração do Messias subsiste sem interrupção; (que ele foi prometido ao primeiro homem logo depois de sua queda) ;que se acharam homens que disseram que Deus lhes revelara que devia nascer um Redentor que salvaria seu povo; que Abraão veio em seguida dizer que tinha tido revelação de que ele nasceria dele por um filho que teria; que Jacó declarou que, dos seus doze filhos, ele nasceria de Judá; que Moisés e os profetas vieram em seguida declarar o tempo e a maneira de sua vinda; que disseram que a lei que tinham era apenas para esperar a do Messias; que até então ela seria perpétua, mas que a outra duraria eternamente; que assim, sua lei e a do Messias, da qual era ela a promessa, existiram sempre sobre a terra; que, de fato, ela sempre durou; que, enfim, Jesus Cristo veio em todas as circunstâncias preditas. Isso é admirável.

Se isso fora tão claramente predito aos judeus, (dir-se-á), como é que eles não acreditaram? ou como foram eles exterminados porque resistiram a uma coisa tão clara? Respondo: Isso fora predito, e não só que eles não acreditariam numa coisa tão clara, mas também que não seriam exterminados. E nada é mais glorioso no Messias; com efeito, não bastava que houvesse profetas, era preciso que as suas profecias fossem conservadas sem suspeita. Ora, etc.

V

Os profetas misturaram profecias particulares com as do Messias, afim de que as profecias do Messias não fossem sem prova, e que as profecias particulares não fossem sem fruto.

Non habemus regem nisi Caesarem(24), (diziam os judeus) (João, XIX, 15). Portanto, Jesus Cristo era o Messias, de vez que eles não tinham mais rei senão um estrangeiro e que não queriam outro.

As setenta semanas de Daniel são equívocas pelo termo do começo, por causa dos termos da profecia; e pelo termo do fim, por causa das diversidades dos cronologistas. Mas, toda essa diferença não vai além de duzentos anos(25).

(As profecias que representam Jesus Cristo pobre o representam também senhor das nações (Isaias, LIII, 2 e seguintes; Zacarias, IX, 9 e 10).

(As profecias que predizem o tempo não o predizem senão senhor dos gentios e sofrendo, e não nas nuvens, nem juiz; e as que o representam assim julgando as nações e glorioso, não marcam o tempo.)

(Quando ele falou do Messias como grande e glorioso, é visível que é para julgar o mundo e não para redimi-lo (Isaias, LXVI, 15, 16).


 

ARTIGO XI

DIVERSAS PROVAS DE JESUS CRISTO

 

I

Os apóstolos foram enganados ou enganadores. Um ou outro é difícil. Com efeito, não é possível pegar um homem para ser ressuscitado; e a hipótese dos apóstolos trapaceiros é bem absurda. Sigamo-la até ao fim; imaginemos esses doze homens reunidos depois da morte de Jesus Cristo, fazendo a conspiração de dizer que ele ressuscitou. Eles atacam com isso todas as potências. O coração dos homens é estranhamente inclinado à leviandade, à mudança, às promessas, aos bens. Por pouco que um deles fosse desmentido por todos esses atrativos e, o que é mais, pelas prisões, pela tortura e pela morte, eles estavam perdidos. Sigamos isso.

Enquanto Jesus Cristo estava com eles, podia sustentá-los. Mas, depois disso, se não lhes apareceu, quem os fez agir?

II

O estilo do Evangelho é admirável de tantas maneiras, e, entre outras, não pondo nunca nenhuma invectiva contra os carrascos e inimigos de Jesus Cristo. Com efeito, não há nenhuma dos historiadores contra Judas, Pilatos, nem nenhum dos judeus.

Se essa modéstia dos historiadores evangélicos tivesse sido afetada, assim como tantos outros traços de um belo caráter, e se a tivessem afetado somente para fazê-lo notar; se eles próprios não tivessem ousado notá-lo, não teriam deixado de conseguir amigos que tivessem feito esses reparos em seu proveito. Mas, como agiram dessa forma sem afetação e por um movimento todo desinteressado, não o fizeram notar a ninguém; e creio que várias dessas coisas não foram notadas até aqui; e é o que testemunha a frieza com a qual a coisa foi feita.

III

Jesus Cristo fez milagres, e os apóstolos em seguida, e os primeiros santos em grande número; porque as profecias, não estando ainda realizadas e realizando-se por eles, nada testemunhavam senão milagres. Estava predito que o Messias converteria as nações. Como se teria realizado essa profecia sem a conversão das nações? E como as nações se teriam convertido ao Messias, não vendo este último efeito das profecias que o provam? Antes, pois, de ter sido morto, ressuscitado, e (de ter) convertido as nações; nem tudo estava realizado; e, assim, foram necessários milagres durante todo esse tempo. Agora, já não são necessários contra os Judeus; pois as profecias realizadas são um milagre subsistente.

IV

(O estado em que se vêem os judeus é ainda uma grande prova da religião. Com efeito), coisa assombrosa e digna de estranha atenção é ver o povo judeu subsistir depois de tantos anos, e vê-lo sempre miserável: sendo necessário, para a prova de Jesus Cristo, não só que eles subsistam para prová-lo, mas ainda que sejam miseráveis, de vez que o crucificaram; e, embora sejam contrários ser miserável e subsistir, todavia ele subsiste sempre, mau grado sua miséria.

(Mas, não estiveram eles quase no mesmo estado do cativeiro? Não. O cetro não foi interrompido pelo cativeiro de Babilônia, porquanto a volta estava prometida e predita. Quando Nabucodonosor conduziu o povo, de medo que não se cresse que o cetro fora tirado de Judá, foi-lhes dito antes que eles seriam poucos e que seriam restabelecidos. Foram sempre consolados pelos profetas; seus reis continuaram. Mas, a segunda destruição é sem promessa de restabelecimento, sem profetas, sem reis, sem consolação, sem esperança, porque o cetro foi tirado para sempre.

Não é ter sido cativo o tê-lo sido com certeza de ser libertado em setenta anos. Mas, agora, eles o são sem nenhuma esperança.

Deus lhes prometeu que, ainda que os dispersasse para os confins do mundo, todavia, se eles fossem fiéis à lei, os reuniria. Eles são muito fiéis a ela e continuam oprimidos. (É preciso, pois, que o Messias tenha vindo, e que a lei que continha essas promessas tenha acabado pelo estabelecimento de uma lei nova).

V

Se os judeus tivessem sido todos convertidos por Jesus Cristo, só teríamos testemunhos suspeitos; e, se tivessem sido exterminados, não teríamos testemunho algum.

Os judeus o recusam, mas não todos. Os santos o recebem, e não os carnais. E tanto não é certo que isso seja contra a sua glória, que é o último traço que a acaba. A razão que apresentam e a única que se acha nos seus escritos, no Talmud e nos rabinos, consiste apenas em que Jesus Cristo não dominou as nações à mão armada, gladiam tuim potentissime(26): só isso têm que dizer? Jesus Cristo foi morto, dizem eles; sucumbiu; não dominou os pagãos pela força; não nos deu seus despojos; não dá riquezas. Só isso têm que dizer? É nisso que ele me é amável. Eu não desejaria o que eles imaginam.

VI

Como é belo ver, pelos olhos da fé, Dario e Ciro, Alexandre, os romanos, Pompeu e Herodes, agirem, sem o saber, pela glória do Evangelho!

VII

A religião maometana tem por fundamento o Alcorão e Maomé. Mas, esse profeta, que devia ser a última espera do mundo, foi predito? E que marca tem ele que não tenha também todo homem que queira dizer-se profeta? Que milagre disse ele próprio ter feito? Que mistério ensinou? Segundo a sua própria tradição, que moral e que felicidade?

Maomé (é) sem autoridade. Seria preciso, pois, que as suas razões fossem bem poderosas, tendo apenas a sua própria força. Que disse, pois? Que é preciso crer nele.

VIII

De duas pessoas que contam tolas histórias, uma com duplo sentido entendido na cabala, outra com um sentido apenas: se alguém, não sendo do segredo, ouvir discorrer as duas dessa maneira, fará a respeito o mesmo julgamento. Mas, se, em seguida, no resto do discurso, uma diz coisas angélicas, e a outra sempre coisas chatas e comuns, julgar-se-á que uma falava com mistério, e não a outra; uma, tendo mostrado bastante que é capaz de tais tolices e capaz de ser misteriosa; e a outra, que é incapaz de mistério e capaz de tolices.

IX

Não é porque haja obscuro em Maomé e se possa fazê-lo passar por ter um sentido misterioso que eu quero que se julgue isso, mas porque há claro, por seu paraíso, e pelo resto. E nisso que ele é ridículo. E eis porque não é justo tomar obscuridades por mistérios, visto como suas clarezas são ridículas. Não se dá o mesmo com a Escritura. Quero que haja obscuridades que sejam tão bizarras quanto as de Maomé, mas há clarezas admiráveis e profecias manifestas e realizadas. A partida não é, pois, igual. É preciso não confundir e igualar as coisas que só se assemelham pela obscuridade, e não pela clareza que merece que se respeitem as obscuridades.

O Alcorão diz que São Mateus era homem de bem. Portanto, Maomé era falso profeta, ou chamando maus a homens de bem, ou não acreditando neles pelo que disseram de Jesus Cristo.

X

Todo homem pode fazer o que fez Maomé: porque ele não fez milagres; ele não foi predito. Nenhum homem pode fazer o que fez Jesus Cristo.

Maomé (se estabeleceu) matando, Jesus Cristo fazendo matar os seus; Maomé proibindo que se lesse, os apóstolos ordenando que se lesse. Enfim, isso é tão contrário que, se Maomé tomou a via de vencer humanamente, Jesus Cristo tomou a de perecer humanamente. E, em lugar de concluir que, desde que Maomé venceu, Jesus Cristo ponde vencer, é preciso dizer que, desde que Maomé venceu, Jesus Cristo devia perecer.


 

ARTIGO XII

DESÍGNIO DE DEUS DE SE OCULTAR A UNS E DE SE DESCOBRIR A OUTROS

 

I

Deus quis redimir os homens e abrir a salvação aos que o procurassem. Mas, os homens se tornam tão indignos disso que é justo que Deus recuse a uns, por causa do seu endurecimento, o que concede a outros por uma misericórdia que não lhes é devida. Se ele tivesse querido vencer a obstinação dos mais endurecidos, o teria podido descobrindo-se tão manifestamente que eles não teriam podido duvidar da verdade de sua essência, como aparecerá no último dia, com um tal brilho de relâmpagos e um tal derrubamento da natureza, que os mortos ressuscitados e os mais cegos o verão.

Não foi assim que ele quis aparecer em seu advento de doçura, porque, tornando-se tantos homens indignos de sua demência, ele quis deixá-los na privação do bem que não querem. Não era, pois, justo que aparecesse de maneira manifestamente divina e absolutamente capaz de convencer todos os homens; mas, não era justo também que viesse de maneira tão oculta que não pudesse ser reconhecido pelos que o procurassem sinceramente. Quis tornar-se perfeitamente cognoscível a estes; e assim, querendo aparecer a descoberto aos que o procuram de todo o coração, e oculto aos que o evitam de todo o coração, tempera seu conhecimento, de sorte que deu marcas de si visíveis aos que o procuram e obscuras aos que não o procuram.

II

Há bastante luz para os que só desejam ver, e bastante obscuridade, para os que têm uma posição contrária. Há bastante claridade para esclarecer os eleitos, e bastante obscuridade para humilhá-los. Há bastante obscuridade para cegar os réprobos e bastante claridade para condená-los e torná-los inescusáveis. Se o mundo subsistisse para instruir o homem (da existência) de Deus, a sua divindade reluziria totalmente de maneira incontestável; mas, como só subsiste por Jesus Cristo e para Jesus Cristo, para instruir os homens não só de sua corrupção como de sua redenção, tudo nele revela provas dessas duas verdades. O que nele aparece não marca nem uma exclusão total, nem uma presença manifesta de divindade, mas a presença de um Deus que se oculta: tudo traz esse caráter.

Se nele nunca tivesse aparecido Deus, essa privação eterna seria equívoca e poderia tanto relacionar-se com a ausência de toda divindade como com a indignidade em que estariam os homens de o conhecer. Mas, uma vez que aparece às vezes, e não sempre, isso dissipa o equívoco. Se aparece uma vez, é sempre; e, assim, só se pode concluir que há um Deus e que os homens são indignos dele.

III

(O desígnio de Deus é mais aperfeiçoar a vontade do que o espírito. Ora, a clareza perfeita só serviria ao espírito e prejudicaria a vontade). Se não houvesse obscuridade, o homem não sentiria sua corrupção. Se não houvesse luz, o homem não esperaria remédio. Assim, é não só justo, mas útil para nós, que Deus esteja oculto em parte e descoberto em parte, desde que é igualmente perigoso ao homem conhecer Deus sem conhecer sua miséria e conhecer sua miséria sem conhecer Deus.

IV

Ele é, pois, verdadeiro: tudo instrui o homem de sua condição; mas, é preciso entendê-lo bem: porque não é verdadeiro que tudo descubra Deus, e não é verdadeiro que tudo oculte Deus. Mas, é verdadeiro, ao mesmo tempo, que ele se oculta aos que o tentam e se descobre aos que o procuram; porque os homens são todos, ao mesmo tempo, indignos de Deus e capazes de Deus: indignos por sua corrupção, capazes por sua primeira natureza.

V

Não há nada sobre a terra que não mostre ou a miséria do homem, ou a misericórdia de Deus; ou a impotência do homem sem Deus, ou a potência do homem com Deus. Todo o universo ensina ao homem ou que ele é corrompido ou que é redimido. Tudo lhe ensina sua grandeza ou sua miséria. O abandono de Deus aparece nos pagãos; a proteção de Deus aparece nos judeus.

VI

Tudo redunda em bem para os eleitos, até nas obscuridades da Escritura; porque eles as honram, por causa das claridades divinas; e tudo redunda em mal para os outros, até nas claridades; porque eles as blasfemam, por causa das obscuridades que não entendem.

VII

Se Jesus Cristo só tivesse vindo para santificar, toda a Escritura e todas as coisas a isso tenderiam, e seria muito fácil convencer os infiéis. Se Jesus Cristo só tivesse vindo para cegar, toda a sua conduta seria confusa, e não teríamos nenhum meio de convencer os infiéis. Mas, como ele veio in sanctificationem et in scandalum(27), como diz Isaias (Isaias, VIII, 14), não podemos convencer os infiéis: e eles não podem convencer-nos; mas, por isso mesmo, nós os convencemos, desde que dizemos que não há convicção em toda a sua conduta.

Jesus Cristo veio cegar os que viam claro e dar a vista aos cegos; curar os doentes e deixar morrer os sãos; chamar à penitência e justificar os pecadores, e deixar os justos em seus pecados; encher os indigentes e deixar os ricos vazios.

Que dizem os profetas de Jesus Cristo? Que ele será evidentemente Deus? Não: mas que ele é um Deus verdadeiramente oculto; que será desconhecido, que não se pensará que seja ele; que será uma pedra de escândalo contra a qual muitos se chocarão, etc.

Deus, para tornar o Messias cognoscível aos bons e incognoscível aos maus, o fez predizer dessa maneira. Se a maneira do Messias fosse predita claramente, não teria havido obscuridade, mesmo para os maus. Se o tempo tivesse sido predito obscuramente, teria havido obscuridade, mesmo para os bons; porque a bondade do seu coração não lhes teria feito entender que, por exemplo, [hebraico] significa seiscentos anos(28). Mas, o tempo foi predito claramente, e a maneira em figuras.

Por esse meio, os maus, tomando os bens prometidos por materiais, se desviam, mau grado o tempo predito claramente; e os bons não se desviam: porque a inteligência dos bens prometidos depende do coração, que chama de bem o que ama; mas, a inteligência do tempo prometido não depende do coração; e, assim, a predição clara do tempo, e obscura dos bens, só ilude os maus.

VIII

Como era preciso que existisse o Messias, de vez que por ele o cetro devia estar eternamente em Judá e que, à sua chegada, o cetro devia ser tirado de Judá?

Para fazer que, vendo, eles não vejam, e que, entendendo, eles não entendam, nada podia ser feito melhor.

Em lugar de vos lamentardes de que Deus esteja oculto, vós lhe dareis graças por estar tão descoberto, e lhe dareis graças ainda por não estar descoberto aos sábios nem aos soberbos, indignos de conhecer um Deus tão santo.

IX

A genealogia de Jesus Cristo no Antigo Testamento está misturada com tantas outras inúteis que não pode ser discernida. Se Moisés só tivesse registado os antepassados de Jesus Cristo, isso teria sido visível demais; se ele não tivesse marcado de Jesus Cristo, isso não teria sido bastante visível. Mas, afinal de contas, quem olhar de perto vê a de Jesus Cristo bem discernida por Tamar, Rut, etc.

Todas as fraquezas muito aparentes são forças. Exemplo, as duas genealogias de São Mateus e de São Lucas; que há de mais claro que isso foi feito de concerto?

X

Não nos acusem mais, portanto, de falta de clareza, pois fazemos profissão disso. Reconheça-se, porém, a verdade da religião na obscuridade mesma da religião, no pouco de luz que temos dela e na indiferença que temos em conhecê-la.

Se só houvesse uma religião, Deus seria manifesto demais; se só houvesse mártires na nossa religião, também.

Jesus Cristo, para deixar os maus na cegueira, não diz que ele não é de Nazaré, que não é filho de José.

XI

Assim como Jesus Cristo ficou desconhecido entre os homens, assim também a sua verdade fica, nas opiniões comuns, sem diferença no exterior: assim também a Eucaristia no pão comum.

Se a misericórdia de Deus é tão grande que nos instrui salutarmente, mesmo quando ele se oculta, que luz não devemos esperar dele quando ele se descobre?

Não se entende nada nas obras de Deus se não se toma por princípio que ele quis cegar uns e esclarecer outros.


 

ARTIGO XIII

QUE OS VERDADEIROS CRISTÃOS E OS VERDADEIROS JUDEUS SÓ TEM UMA MESMA RELIGIÃO

 

I

A religião dos judeus parecia consistir essencialmente na paternidade de Abraão, na circuncisão, nos sacrifícios, nas cerimônias, na área, no templo de Jerusalém e, enfim, na lei e na aliança de Moisés.

Eu digo que ela não consistia em nenhuma dessas coisas, mas somente no amor de Deus, e que Deus reprovava todas as outras coisas;

Que Deus não aceitava a posteridade de Abraão;

Que os judeus serão punidos por Deus como os estrangeiros, se eles o ofendem: Se esqueceis Deus e seguis deuses estrangeiros, eu vos predigo que. perecereis da mesma maneira que as nações que Deus exterminou antes de vós (Deuteronômio, VIII, 19, 20);

Que os estrangeiros serão recebidos por Deus com os judeus, se o amam;

Que o estrangeiro não diga: O Senhor não me receberá; os estrangeiros que se ligam a Deus serão para servi-lo e amá-lo, eu os conduzirei á minha santa montanha e receberei deles sacrifícios, pois minha casa é a casa de oração (Isaias, LVI, 3);

Que os verdadeiros judeus não consideravam o seu mérito senão de Deus e não de Abraão: Vós sois verdadeiramente nosso Pai, e Abraão não nos conheceu, e Israel não teve conhecimento de nós, mas vós é que sois nosso Pai e nosso Redentor (Isaias, LXIII, 16);

O próprio Moisés lhes disse que Deus não aceitaria as pessoas: Deus, disse ele, não aceita as pessoas, nem os sacrifícios (Deuteronômio, X, 17);

Que a circuncisão do coração é ordenada: Sede circuncisos do coração, e não vos endureçais; pois vosso Deus é um Deus grande, poderoso e terrível, que não aceita as pessoas (Deuteronômio, X, 16, 17; Jeremias, IV, 3);

Que Deus disse que o faria um dia. Deus te circuncidará o coração e o dos teus filhos, afim de que tu o ames de todo o coração (Deuteronômio, XXX, 6);

Que os incircuncisos de coração serão julgados. Porque Deus julgará os povos incircuncisos e todo o povo de Israel, porque ele é incircunciso de coração (Jeremias, IX, 25, 26);

Que o exterior não serve de nada sem o interior: Scindite corda vestra(29) (Joel, II, 13).

Eu digo que a circuncisão era uma figura que tinha sido estabelecida para distinguir o povo judeu de todas as outras nações (Gênese, XVII, 21).

E daí resulta que, estando no deserto, eles não foram circuncisos, porque não podiam confundir-se com os outros povos, e que, desde que Jesus Cristo veio, isso não é mais necessário.

O amor de Deus é recomendado em todo o Deuteronômio. Eu tomo como testemunho o céu e a terra de que pus diante de vós a morte e a vida, afim de que escolhêsseis a vida, amásseis a Deus e lhe obedecêsseis: pois Deus é que é a vossa vida (Deuteronômio, XXX, 19, 20);

Que os judeus, sem esse amor, seriam reprovados por seus crimes, e os pagãos eleitos em seu lugar. Eu me ocultarei deles em vista dos seus últimos crimes; pois é uma nação má e infiel (Deuteronômio, XXXII, 20, 21). Eles me provocaram á cólera pelas coisas que não são dos deuses; e eu os provocarei ao ciúme por um povo que não é o seu povo, e por uma nação sem ciência e sem inteligência (Isaias, LXV);

Que os bens temporais são falsos e que o verdadeiro bem é estar unido a Deus (Salmos, LXXII);

Que as suas festas desagradam a Deus (Amós, V, 21);

Que os sacrifícios dos judeus desagradam a Deus, mesmo da parte dos bons e não somente dos maus judeus, mas que não lhe agradam mesmo os dos bons, como aparece no Salmo XLIX, onde, antes de dirigir seu discurso aos maus por estas palavras: Peccatori autem dixit Deus(30), ele diz que não quer sacrifícios dos animais nem do seu sangue (Isaias, LXVI; Jeremias, VI, 20);

Que os sacrifícios dos pagãos serão recebidos por Deus e que Deus retirará a sua vontade dos sacrifícios dos judeus (Malaquias; XI);

Que Deus fará uma nova aliança pelo Messias e que a antiga será rejeitada (Jeremias, XXXI, 31);

Que as antigas coisas serão esquecidas (Isaias, XLII, 18, 19);

Que ninguém se lembrará mais da arca (Jeremias, III, 16);

Que o templo será rejeitado (Jeremias, VII, 12, 13, 14);

Que os sacrifícios seriam rejeitados, e outros sacrifícios puros estabelecidos (Malaquias, I, 10, 11);

Que a ordem da sacrificatura de Aarão será reprovada e a de Melquisedec introduzida pelo Messias (Salmo CIX);

Que essa sacrificatura seria eterna (Ibidem);

Que Jerusalém seria reprovada e Roma admitida (Isaias, LVI, 5);

Que esse último nome seria melhor que o dos judeus, e eterno (Isaias, XLVI, 5);

Que os judeus deviam ficar sem profetas, sem reis, sem príncipes, sem sacrifícios, sem ídolos (Oséias, III, 4);

Que os judeus subsistiriam sempre, contudo, como povo (Jeremias, XXXI, 36).


 

ARTIGO XIV

NÃO SE CONHECE DEUS UTILMENTE SENÃO POR JESUS CRISTO(31)

 

I

Admiro a ousadia com que essas pessoas(32) empreendem falar de Deus dirigindo os seus discursos aos ímpios. O seu primeiro capítulo é provar a divindade pelas obras da natureza.

Eu não me admiraria de sua empresa se dirigissem os seus discursos aos fiéis; pois é certo que os que têm a fé viva no coração vêem incontinente que tudo o que é não é outra coisa senão a obra do Deus que adoram. Mas, para aqueles em que essa luz está extinta, e nos quais se tem o desígnio de a fazer reviver, para essas pessoas destituídas de fé e de graça, as quais, procurando com toda a sua luz tudo o que vêem na natureza que as possa conduzir a esse conhecimento, só acham obscuridade e trevas, dizer-lhes que não têm senão que ver a menor das coisas que as cercam e que aí verão Deus a descoberto, e dar-lhes, por toda prova desse grande e importante assunto, o curso da lua ou dos planetas, e pretender ter acabado a prova com um tal discurso, é dar-lhes motivo de crer que as provas da nossa religião são bem fracas; e eu vejo pela experiência que nada é mais próprio para lhes causar o desprezo dela.

Não é dessa maneira que a Escritura, que conhece melhor as coisas que são de Deus, fala disso. Ela diz, ao contrário, que Deus é um Deus oculto; e que, desde a corrupção da natureza, ele os deixou (os homens) numa cegueira de que só podem sair por Jesus Cristo, fora do qual toda comunicação com Deus está afastada: Nemo novit palrem nisi filius, et cul voluerit filius revelare(33) (Mateus, XI, 27).

É o que a Escritura nos marca, quando diz em tantos lugares que os que procuram Deus o acham; não é dessa luz que se fala como do dia em pleno meio-dia: não se diz que os que procuram o dia em pleno meio-dia ou água no mar os encontrarão; e assim, é preciso bem que a evidência de Deus não seja tal na natureza. Também ela nos diz em outra parte: Vete tu es Deus absconditus(34).

II

Jesus Cristo é o objeto de tudo e o centro para o qual tudo tende. Quem o conhece, conhece a razão de todas as coisas.

Os que se desviam só se desviam por não verem uma dessas duas coisas. Por conseguinte, pode bem conhecer-se Deus sem sua miséria e sua miséria sem Deus; mas não se pode conhecer Jesus Cristo sem conhecer ao mesmo tempo Deus e sua miséria.

E eis porque não empreenderei provar aqui, com razões naturais, ou a existência de Deus ou a Trindade, ou a imortalidade da alma, nem nenhuma das coisas dessa natureza; não somente porque não me sentiria bastante forte para achar na natureza com que convencer ateus endurecidos, mas ainda porque esse conhecimento, sem Jesus Cristo, é inútil e estéril. Quando um homem fosse persuadido de que as proporções dos números são verdades imateriais, eternas e dependentes de uma primeira verdade em que elas subsistem e que se chama Deus, eu não o acharia muito avançado para a sua salvação.

III

É uma coisa admirável que nunca um autor canônico se tenha servido da natureza para provar Deus; todos tendem a fazer crer nele: Davi, Salomão, etc., nunca disseram: Não há vazio, portanto há um Deus. Era preciso que fossem mais hábeis do que as mais hábeis pessoas que vieram desde que todos se serviram disso.

IV

Se é marca de fraqueza provar Deus pela natureza, não desprezeis por isso a Escritura; se é marca de força ter conhecido essas contrariedades, estimai por isso a Escritura.

V

Não se entende nada nas obras de Deus se não se toma por princípio que ele quis cegar uns e esclarecer outros.

VI

As provas metafísicas de Deus são tão afastadas do raciocínio dos homens e tão implícitas, que pesam pouco; e, quando isso servisse a alguns, seria apenas durante o instante que vêem essa demonstração; mas, uma hora depois, temem estar enganados. Quod curiositate cognoverint superbia amiserunt(35).

(Aliás, essas espécies de provas não podem conduzir-nos senão a um conhecimento especulativo de Deus: e só conhecê-lo dessa maneira é o mesmo que não conhecê-lo.)

VII

O Deus dos cristãos não consiste num Deus simplesmente autor das verdades geométricas e da ordem dos elementos ; é a parte dos pagãos e dos epicuristas. Não consiste simplesmente num Deus que exerce a sua providência sobre a vida e sobre os bens dos homens, para dar uma feliz seqüência de anos aos que o adoram; é a porção dos judeus. Mas, o Deus de Abraão e de Jacó, o Deus dos cristãos, é um Deus de amor e de consolação: é um Deus que enche a alma e o coração que ele possui; é um Deus que lhes faz sentir interiormente a sua miséria e a sua misericórdia infinita, que se une ao fundo de sua alma; que a enche de humildade, de alegria, de confiança, de amor; que os torna incapazes de outro fim que não seja ele mesmo.

O Deus dos cristãos é um Deus que faz sentir à alma que ele é o seu único bem; que todo o seu repouso está nele; que não terá alegria senão em amá-lo; e que lhe faz ao mesmo tempo abominar os obstáculos que a retêm e a impedem de o amar com todas as suas forças. O amor-próprio e a concupiscência que a detêm lhe são insuportáveis. Esse Deus lhe faz sentir que ela tem esse fundo de amor-próprio e que só ele pode curá-la.

(Eis o que é conhecer Deus como cristão. Mas, para conhecê-lo dessa maneira, é preciso conhecer ao mesmo tempo a sua miséria, a sua indignidade, e a necessidade que se tem de um mediador para se aproximar de Deus e para se unir a ele. É preciso não separar esses conhecimentos porque, uma vez separados, são não só inúteis, mas nocivos.) O conhecimento de Deus sem o da nossa miséria faz o orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Jesus Cristo faz o desespero. Mas, o conhecimento de Jesus Cristo nos isenta não só do orgulho como do desespero, porque encontramos nele Deus, a nossa miséria e a via única de a reparar.

Podemos conhecer Deus sem conhecer as nossas misérias, ou as nossas misérias sem conhecer Deus; ou mesmo Deus e as nossas misérias, sem conhecer o meio de nos livrarmos das misérias que nos afligem. Mas, não podemos conhecer Jesus Cristo sem conhecer ao mesmo tempo Deus e as nossas misérias, assim como o remédio das nossas misérias; porque Jesus Cristo não é simplesmente Deus, mas um Deus reparador das nossas misérias.

Assim, todos os que procuram Deus fora de Jesus Cristo e que se detêm na natureza, ou não acham nenhuma luz que os satisfaça, ou chegam a formar para si um meio de conhecer Deus e de o servir sem mediador, e por isso caem ou no ateísmo ou no deísmo, que são duas coisas que a religião cristã detesta quase que igualmente.

É preciso, pois, tender unicamente a conhecer Jesus Cristo, uma vez que é só por ele que podemos pretender conhecer Deus de maneira que nos seja útil.

Ele é que é o verdadeiro Deus dos homens, isto é, dos miseráveis e dos pecadores. É o centro de tudo e o objeto de tudo: e quem não o conhece não conhece nada na ordem do mundo, nem em si mesmo. Com efeito, além de só conhecermos Deus por Jesus Cristo, só nos conhecemos a nós mesmos por Jesus Cristo.

Sem Jesus Cristo, é preciso que o homem esteja no vício e na miséria; com Jesus Cristo, o homem fica isento de vício e de miséria. Nele estão toda a nossa virtude e toda a nossa felicidade; fora dele, só há vicio, miséria, erros, trevas, desespero, e só vemos obscuridade e confusão na natureza de Deus e em nossa própria natureza.(36)


 

ARTIGO XV

PENSAMENTOS SOBRE OS MILAGRES

 

I

A doutrina discerne os milagres, e os milagres discernem a doutrina.

II

Há os falsos e verdadeiros. É preciso uma marca para conhecê-los; do contrário, seriam inúteis. Ora, não são inúteis, e são ao contrário fundamentos. É preciso que a regra que se nos dá seja tal que destrua a prova que os verdadeiros milagres dão da verdade, que é o fim principal dos milagres.

Se não houvesse falsos milagres, haveria certeza. Se não houvesse regra para os discernir, os milagres seriam inúteis, e não haveria razão para, crer.

Moisés deu uma, que é quando o milagre conduz à idolatria (Deuteronômio, XIII, 1, 3); e Jesus Cristo uma: Aquele, disse ele, que faz milagres em meu nome não pode ao mesmo tempo falar mal de mim. (Marcos. IX, 38).

(De onde se conclui que quem quer que se declare abertamente contra Jesus Cristo não pode fazer milagres em seu nome. Assim, se os fizer, não será em nome de Jesus Cristo e não deve ser escutado. Eis marcadas as ocasiões de excluir a fé nos milagres. É preciso não fazer outras exclusões: no Antigo Testamento, quando vos desviarem de Deus; no Novo, quando vos desviarem de Jesus Cristo.) (Portanto, logo que se vê um milagre, é preciso ou submeter-se ou ter estranhas marcas do contrário; é preciso ver se aquele que o faz nega um Deus, ou Jesus Cristo, ou a Igreja.)

III

(Toda religião é falsa quando, em sua fé, não adora um Deus como princípio de todas as coisas e quando, em sua moral, não ama um só Deus como objeto de todas as coisas. Toda religião que não reconhece agora Jesus Cristo é notoriamente falsa, e os milagres não podem servir-lhe de nada.)

Os judeus tinham uma doutrina de Deus, como nós temos uma de Jesus Cristo, confirmada por milagres e que proíbe que se creia em todo fazedor de milagres, assim como ordena que se recorra aos grandes sacerdotes e que se fique com eles. E assim todas as razões que temos para recusar crédito aos fazedores de milagres, eles as tinham em relação aos seus profetas.

No entanto, eles eram bem culpáveis quando recusavam os profetas, por causa dos seus milagres, e Jesus Cristo; e não teriam sido culpáveis se não tivessem visto os milagres. Se opera non fecissem in eis quae nemo alius fecit, peccatum non haberent (João, XV, 24). Se eu não tivesse feito entre eles obras que jamais nenhum outro fez, eles não teriam pecado.

Donde se conclui que ele julgava que os seus milagres eram provas certas do que ensinava, e que os judeus tinham obrigação de crer nele. E, com efeito, eram particularmente os milagres que tornavam os judeus culpáveis em sua incredulidade. As provas que Jesus Cristo e os apóstolos tiram da Escritura não são demonstrativas. Com efeito, dizem somente que Moisés disse que um profeta viria; mas, não provam por isso que este seja aquele, e era toda a questão. Essas passagens só servem, pois, para mostrar que não é contrário à Escritura e que não se lhe tem repugnância, mas não que haja acordo.

IV

As profecias (por si sós) não podiam provar Jesus Cristo durante sua vida, e assim não se teria tido culpa de não crer nele antes de sua morte se os milagres não tivessem bastado sem a doutrina. Ora, os que não criam nele ainda vivo, eram pecadores, como ele próprio o diz, e sem escusa. Portanto, era preciso que tivessem uma demonstração à qual resistissem; ora, eles não tinham a exposição, mas só os milagres; portanto, bastam eles quando a doutrina cristã não é contrária, e se deve crer neles.

Jesus Cristo verificou que ele era o Messias, nunca verificando sua doutrina sobre a Escritura e as profecias, mas sempre pelos milagres.

Nicodemos reconhece por seus milagres (de Jesus Cristo) que sua doutrina é de Deus: Scimus quia Deo venisti, magister; nemo enim potest hoec signa facere quae tu facis, nisi fuerit Deus cum eo(37) (João, III, 2). Ele não julga os milagres pela doutrina, mas a doutrina pelos milagres.

(Assim, mesmo que a doutrina fosse suspeita, como a de Jesus Cristo podia sê-lo para Nicodemo, porque parecia destruir as tradições dos fariseus; se há milagres claros e evidentes do mesmo lado, é preciso que a evidência do milagre o tire do que poderia haver de dificuldade da parte da doutrina: o que é fundado sobre o princípio imóvel de que Deus não pode induzir em erro.)

Há um dever recíproco entre Deus e os homens. Acusai-me, diz Deus em Isaias (Isaias, L, 18). E em outro lugar: Que devia eu fazer à minha vinha que não o tenha feito? (ibidem, V, 4).

Os homens devem a Deus a recepção da religião que ele lhes envia; Deus deve aos homens não os induzir em erro. Ora, eles seriam induzidos em erro, se os fazedores de milagres anunciassem uma doutrina que não parecesse visivelmente falsa às luzes do senso comum, e se um maior fazedor de milagres já não tivesse advertido que não se cresse neles. Assim, se houvesse divisão na Igreja, e se os arianos, por exemplo, que se diziam fundados sobre a Escritura, como os católicos, tivessem feito milagres, e não os católicos, ter-se-ia sido induzido em erro. Com efeito, assim como um homem que nos anuncia os segredos de Deus não é digno de ser crido por sua autoridade privada, sendo por isso que os ímpios duvidam deles, assim também, quando um homem que, por marca da comunicação que tem com Deus, ressuscita os mortos, prediz o futuro, transporta os mares, cura os doentes, não há ímpio que não se renda a isso, sendo a incredulidade de Faraó e dos fariseus o efeito de um endurecimento natural.

(Mas, não disse ele que Deus nos tenta? E assim não pode tentar-nos por milagres que parecem levar à falsidade?)

Há muita diferença entre tentar e induzir em erro. Deus tenta, mas não induz em erro. Tentar é proporcionar as ocasiões que não impõem necessidade. Induzir em erro é colocar o homem na necessidade de concluir e seguir uma falsidade: é o que Deus não pode fazer e o que faria, contudo, se permitisse que, numa questão obscura, se fizessem milagres do lado da falsidade.

Deve concluir-se daí que é impossível que um homem, ocultando sua má doutrina e só fazendo aparecer uma boa, dizendo-se conforme a Deus e à Igreja, faça milagres para coar insensivelmente uma doutrina falsa e sutil? Isso não é possível. E ainda menos que Deus, que conhece os corações, faça milagres em favor de uma pessoa dessa espécie.

V

Há muita diferença entre não ser por Jesus Cristo e o dizer, ou não ser por Jesus Cristo e fingir que se é. Uns podem fazer milagres, não os outros; pois é claro que uns são contra a verdade, não os outros; e assim os milagres são mais claros.

Os milagres discernem, pois, as coisas duvidosas entre os povos judeu e pagão, judeu e cristão; católico, herege; caluniados, caluniadores; entre as duas cruzes.

(Foi o que se viu em todos combates da verdade contra o erro, de Abel contra Caim, de Moisés contra os magos de Faraó, de Elias contra os falsos profetas, de Jesus Cristo contra os fariseus, de São Paulo contra Barjesú, dos apóstolos contra os exorcistas, dos cristãos contra os infiéis, dos católicos contra os hereges; e é o que se verá também no combate de Elias e de Enoc contra o Anticristo. Sempre o verdadeiro prevalece em milagres.)

(Enfim), na contenção do verdadeiro Deus ou da verdade da religião, nunca houve milagres do lado do erro sem que se tenham verificado maiores do lado da verdade.

(Por essa regra, é claro que os judeus eram obrigados a crer em Jesus Cristo. Jesus Cristo lhes era suspeito; mas, os seus milagres eram infinitamente mais claros que as suspeitas que se tinham contra ele. Era preciso, pois, crer nele).

(Ao tempo de Jesus Cristo), uns acreditavam nele, outros não acreditavam, por causa das profecias que diziam que ele devia nascer em Belém; deviam tornar mais cuidado se ele não o tivesse; pois os seus milagres, sendo convincentes, deviam certificá-los dessas pretensas contradições de sua doutrina com a Escritura, e essa obscuridade não os escusava, mas os cegava.

Jesus Cristo curou o cego de nascença e fez uma porção de milagres no dia do sabbat(38), pelos quais cegava os fariseus que diziam que era preciso julgar os milagres pela doutrina.

(Mas, pela mesma regra por que se devia crer em Jesus Cristo, não se deverá crer no Anticristo.)

Jesus Cristo não falava nem contra Deus nem contra Moisés. O Anticristo e os falsos profetas, preditos por um e outro Testamento, falarão abertamente contra Deus e contra Jesus Cristo. Quem fosse inimigo coberto, Deus não permitiria que fizesse milagres abertamente.

Moisés predisse Jesus Cristo e ordenou que ele fosse seguido. Jesus Cristo predisse o Anticristo e proibiu que fosse seguido.

Os milagres de Jesus Cristo não são preditos pelo Anticristo; mas, os milagres do Anticristo são preditos por Jesus Cristo. É assim, se Jesus Cristo não fosse o Messias, teria induzido em erro; mas, não se poderia ser induzido em erro com razão pelos milagres do Anticristo. E eis porque os milagres do Anticristo não prejudicam os de Jesus Cristo. (Com efeito), quando Jesus Cristo predisse os milagres do Anticristo, julgava destruir a fé dos seus próprios milagres? Não há nenhuma razão para crer no Anticristo que não seja para crer em Jesus Cristo, mas as há em Jesus Cristo que não existem no outro.

VI

Os milagres serviram à fundação e servirão à continuação da Igreja até ao Anticristo, até ao fim.

Ou Deus, (afim de conservar essa prova em sua Igreja), confundiu os falsos milagres, ou os predisse: e, por um e outro, elevou-se acima do que é sobrenatural em relação a nós e nos elevou a nós mesmos.

(Acontecerá o mesmo no futuro: ou Deus não permitirá falsos milagres, ou proporcionará maiores; pois) os milagres têm tal força que foi preciso que Deus advertisse que não se pensasse neles (quando fossem contra ele), de tal maneira é claro que há um Deus; sem o que, eles teriam sido capazes de perturbar.

E assim, bem longe está de que essas passagens do terceiro capítulo do Deuteronômio, que trazem que é preciso não crer nem escutar os que fizerem milagres e se desviarem do serviço de Deus; e de que a de São Marcos: Elevar-se-ão falsos Cristos e falsos profetas que farão coisas assombrosas, até seduzirem, se possível, os próprios eleitos (Marcos, XIII, 22), e algumas outras semelhantes, façam contra a autoridade milagres cuja força por nada mais do que isso é marcada.

VII

O que faz que não se creia nos verdadeiros milagres é a falta de caridade: Não credes, disse Jesus Cristo, falando aos juizes, porque não sois das minhas ovelhas (João, X, 26). O que faz crer nos falsos é a falta de caridade: Eo quod charitatem veritatis non receperunt ut salvi fuerent, ideo mittet illis Deus operationem erroris, ut credant mendacio(39) (Tessalonicenses, II, 10).

Tendo considerado que se presta tanta fé a tantos impostores que dizem que têm remédios, até ao ponto de muitas vezes pôr a vida entre suas mãos, pareceu-me que a verdadeira causa é que há verdadeiros; pois não seria possível que houvesse tantos falsos e que se lhes prestasse tanta fé, se não houvesse verdadeiros. Se nunca houvesse remédio a nenhum mal, e se todos os males fossem incuráveis, é impossível que os homens imaginassem que poderiam dar-lhes crédito; e ainda mais que tantos outros tivessem dado crédito aos que se gabavam de os ter feito; assim como, se um homem se gabasse de impedir de morrer, ninguém o acreditaria, porque não há nenhum exemplo disso. Mas, como há uma porção de remédios que se acharam verdadeiros pelo conhecimento mesmo dos maiores homens, o crédito dos homens se dobrou por isso, e, sendo isso conhecido como possível, concluiu-se dai que o era. De fato, o povo raciocina ordinariamente assim: uma coisa é possível, logo existe; porque a coisa, não podendo ser negada em geral, por haver efeitos particulares que são verdadeiros, o povo, que não pode discernir quais dentre esses efeitos particulares são os verdadeiros, acredita em todos eles. Assim também, o que faz que se creia em tantos falsos efeitos da lua é que os há verdadeiros, como o fluxo do mar.

Tendo considerado como se explica que haja tantos falsos milagres, falsas revelações, sortilégios, etc., pareceu-me que a verdadeira causa é que os há verdadeiros; pois não seria possível que houvesse tantos falsos milagres se não os houvesse verdadeiros, nem tantas falsas revelações se não as houvesse verdadeiras, nem tantas falsas religiões se não houvesse uma verdadeira. Pois, se nunca tivesse havido tudo isso, é como impossível que os homens o tivessem imaginado, e ainda mais impossível que tantos outros o tivessem acreditado. Mas, como houvesse grandíssimas coisas verdadeiras, e que assim foram julgadas por grandes homens, essa impressão deu causa a que quase todos se tornassem capazes de crer também nas falsas. E assim, em lugar de concluir que não há verdadeiros milagres, uma vez que há tantos falsos, é preciso dizer, ao contrário, que há verdadeiros milagres, uma vez que há tantos falsos; e que os há falsos, por isso que os há verdadeiros; e que não há mesmo falsas religiões senão porque há uma verdadeira. A objeção a isso, de que os selvagens têm uma religião: mas, é que ouviram falar da verdadeira, como aparece pela cruz de Santo André, o dilúvio, a circuncisão, etc. Provém isso do fato de que o espírito do homem, achando-se dobrado desse lado pela verdade, se torna susceptível por isso de todas as falsidades.

VIII

Foi dito: Crede na Igreja; mas, não foi dito: Crede nos milagres; por isso que o último é natural, e não o primeiro. Um tinha necessidade de preceito, não o outro.

IX

Essas raparigas(40), admiradas de que se diga que elas estão no caminho da perdição, de que os seus confessores as ponham em Genebra(41), de que eles lhes inspirem que Jesus Cristo não está na Eucaristia, nem à direita do Pai: sabem elas que tudo isso é falso; oferecem-se, pois, a Deus nesse estado, (dizendo-lhe com o Profeta): Vide si via iniquitatis in me est(42) (Salmo CXXXIX, 24.) Que acontece, então? Esse lugar, que se diz ser o templo do diabo, Deus faz dele seu templo. Diz-se que é preciso tirar dele as crianças: Deus as cura nele. Diz-se que é o arsenal do inferno: Deus faz dele o santuário de suas graças. Enfim, ameaçam-nas de todas as vinganças do céu, e Deus as cumula com seus favores. Seria preciso ter perdido o senso para concluir que elas se acham no caminho da perdição.

(Os jesuítas não deixaram, contudo, de tirar essa conclusão; pois concluem de tudo que os seus adversários são hereges.) Se estes lhes censuram seus excessos, dizem que falam como hereges. Se dizem que a nossa salvação depende de Deus, são hereges. Se dizem que se submetem ao papa, é uma hipocrisia. Estão prontos a subscrever todas as suas constituições; isso não basta. Se dizem que é preciso não matar por uma maçã, combatem a moral dos católicos. Se se fazem milagres entre eles, isso não é mais uma marca de santidade, e é, ao contrário, uma suspeita de heresia.

(Eis o excesso estranho a que a paixão dos jesuítas os levou; e não lhes restava mais que isso para destruir os principais fundamentos da religião cristã. Pois) as três marcas da religião (são) a perpetuidade, a boa vida, os milagres. Eles destroem a perpetuidade pela probabilidade, a boa vida por sua moral; os milagres, destruindo ou a sua verdade ou a sua conseqüência.

Os hereges os negam ou negam-lhes a conseqüência: os jesuítas também. (Assim), para enfraquecer os adversários, desarmam a Igreja (e se juntam a todos os seus inimigos, emprestando deles todas as razões pelas quais combatem os milagres. Pois) a Igreja tem três espécies de inimigos: os judeus, que nunca foram do seu corpo; os hereges, que dele se retiraram; e os maus cristãos, que a dilaceram por dentro.

Essas três espécies de diferentes adversários a combatem, de ordinário, diversamente; mas aqui a combatem de uma mesma maneira. Como são todos sem milagres, e como a Igreja teve sempre milagres contra eles, tiveram todos o mesmo interesse em omiti-los e se serviram todos desta desculpa: que é preciso não julgar a doutrina pelos milagres, mas os milagres pela doutrina. Havia dois partidos entre os que escutavam Jesus Cristo: uns, que seguiam sua doutrina por seus milagres; outros, que diziam: Ele expulsa os demônios em nome de Belzebú.

Havia dois partidos ao tempo de Calvino: (o da Igreja e o dos sacramentários, que a combatiam). Há agora os jesuítas, (e os que eles chamam de jansenistas que contestam. Mas, estando os milagres do lado dos jansenistas, os jesuítas recorreram a essa desculpa geral dos judeus e dos hereges, segundo a qual é preciso julgar os milagres pela doutrina.)

Não é este o país da verdade: esta era desconhecida entre os homens. Deus cobriu-a de um véu que a deixa desconhecida dos que não lhe ouvem a voz. O lugar é aberto às blasfêmias, e mesmo sobre verdades ao menos bem aparentes. Se se publicam as verdades do Evangelho, publicam-se contrárias, e se obscurecem as questões, de forma que o povo não possa discernir. E pergunta-se:

Que tendes para vos fazerdes crer mais do que os outros? que prodígio fazeis? Não tendes senão palavras, e nós também. Se tivésseis milagres, bem. Da verdade de que a doutrina deve ser sustentada pelos milagres se abusa para blasfemar a doutrina. E, se os milagres chegam, diz-se que os milagres não bastam sem a doutrina, o que é outra verdade para blasfemar os milagres.

Como achais fácil saber as regras gerais, pensando por isso lançar a confusão e tornar tudo inútil! Sereis impedidos, meu padre(43): a verdade é una e firme.

Era impossível que ao tempo de Moisés se reservasse sua crença ao Anticristo, que lhes era desconhecido. Mas, é bem fácil, ao tempo do Anticristo, crer em Jesus Cristo, já conhecido.

(Quando os cismáticos fizessem milagres, não induziriam ao erro. E assim não é certo que não possam fazê-los. O cisma é visível; o milagre é visível; mas, o cisma é mais marcado de erro que o milagre marcado de verdade. Portanto, o milagre de um cismático não pode induzir ao erro. Mas, fora do cisma, o erro não é tão visível quanto o milagre é visível. Portanto, o milagre induziria ao erro. Assim, um milagre entre os cismáticos não é de se temer tanto; pois o cisma, que é mais visível que o milagre, marca visivelmente o seu erro. Mas, quando não há cisma e o erro está em disputa, o milagre discerne.

O mesmo sucede com os hereges. Os milagres (lhes) seriam inúteis; pois a Igreja, autorizada pelos milagres que preocuparam a crença, nós diz que eles não têm a verdadeira fé. Não há dúvida de que eles não a têm desde que os primeiros milagres da Igreja excluem a fé dos seus, quando eles a tivessem. Haveria milagres contra milagres, e primeiros e maiores do lado da Igreja; (assim, seria preciso sempre crer nela contra os milagres.)

(Vejamos, por isso, o que se diz concluir dos milagres de Port-Royal.)

Os fariseus diziam: Non est hic homo a Deo, qui sabbatum custodit(44) (João, IX,16). Os outros diziam: Quomodo potest homo peccator hiec signa facere?(45) Qual é o mais claro?

(Na contestação presente, uns dizem :) Essa casa não é de Deus; pois não se crê que as suas cinco proposições estejam em Jansênio. Outros: Essa casa é de Deus : pois nela se fazem estranhos milagres. Qual é o mais claro?

(Assim, a mesma razão que torna culpáveis os judeus de não terem acreditado em Jesus Cristo torna os jesuítas culpáveis de terem continuado a perseguir a casa de Port-Royal.)

Fora dito aos judeus, assim como aos cristãos, que nem sempre acreditassem nos profetas. No entanto, os fariseus e os escribas fazem grande estado dos milagres de Jesus Cristo, e tentam mostrar que eles são falsos ou feitos pelo diabo: tendo necessidade de ser convencidos, se reconhecem que são de Deus.

Não nos damos, hoje, ao trabalho de fazer esse discernimento; contudo, é bem fácil fazê-lo. Os que não negam nem Deus nem Jesus Cristo não fazem milagres que não sejam seguros. Mas, nós não precisamos fazer esse discernimento. Eis uma relíquia sagrada. Eis um espinho da coroa do Salvador do mundo, em que o príncipe deste mundo não tem poder, que faz milagres pelo próprio poder desse sangue espalhado por nós. Deus escolheu ele próprio essa casa para nela fazer brilhar o seu poder.

Não são homens que fazem esses milagres por uma virtude desconhecida e duvidosa que nos obriga a um difícil discernimento. É o próprio Deus; é o instrumento da paixão do seu filho único que, estando em vários lugares, escolheu esse, e fez vir de todos os lados homens para nele receber esses alívios milagrosos em seus langores.

A dureza dos jesuítas ultrapassa, pois, a dos judeus, uma vez que estes só recusavam crer em Jesus Cristo inocente porque duvidavam se os seus milagres eram de Deus. Ao passo que os jesuítas, não podendo duvidar que os milagres de Port Royal não sejam de Deus, não deixam de duvidar ainda da inocência desta casa.

(Mas, dizem eles), os milagres não são mais necessários, por isso que já os temos; (e, assim, não são mais provas da verdade da doutrina. Sim): mas, quando já não escutamos a tradição, quando só propomos o papa, quando a surpreendemos, e quando, tendo excluído a verdadeira fonte da verdade, que é a tradição, e tendo prevenido o papa, que é o seu depositário, a verdade já não tem liberdade de aparecer: então, os homens não falando mais da verdade, é a própria verdade que deve falar aos homens. Foi o que aconteceu no tempo de Ano.

Os que seguem Jesus Cristo por causa dos seus milagres honram sua potência em todos os milagres que ela produz; mas, os que, fazendo profissão de o seguir por seus milagres, só o seguem efetivamente porque ele os consola e os sacia dos bens do mundo, desonram seus milagres, quando eles são contrários às suas comodidades.

(É o que fazem os jesuítas. Exaltam os milagres: combatem os que os convencem.) Juizes injustos, não fazeis leis no mesmo instante; julgais por aquelas que foram estabelecidas por vós mesmos: Vos qui conditis leges iniquas(46).

A maneira pela qual a Igreja subsistiu é que a verdade foi sem contestação; ou, se foi contestada, houve o papa, e, se não, houve a Igreja.

O milagre é um efeito que excede a força natural dos meios que nele se empregam, e não milagre é um efeito que não excede a força que nele se emprega. Assim, os que curam por invocação do diabo não fazem um milagre, pois isso não excede a força natural do diabo.

Os milagres provam o poder que Deus tem sobre os corações por aquele que ele exerce sobre os corpos.

Importa aos reis, aos príncipes, estar em estima de piedade; e, para isso, é preciso que se confessem a vós (Dos jesuítas).

Os jansenistas assemelham-se aos hereges pela reforma dos costumes; mas, vós vos assemelhais a eles no mal.


 

ARTIGO XVI

PENSAMENTOS DIVERSOS SOBRE A RELIGIÃO

 

I

O pirronismo é o verdadeiro; pois, afinal de contas, os homens, antes de Jesus Cristo, não sabiam onde estavam, nem se eram grandes ou pequenos. E os que disseram um ou outro não sabiam nada disso, e adivinhavam sem razão e por acaso; e mesmo erravam sempre, excluindo um ou outro.

II

A conduta de Deus, que dispõe todas as coisas com doçura, é pôr a religião no espírito pelas razões, e no coração pela graça. Mas, querer pô-la no coração e no espírito pela força e pelas ameaças, não é pôr neles a religião, mas o terror. Começai por lastimar os incrédulos; eles são bastante infelizes. Não seria preciso injuriá-los senão no caso em que isso servisse; mas, isso lhes é prejudicial.

Toda a fé consiste em Jesus Cristo e em Adão; e toda a moral na concupiscência e na graça.

III

O coração tem suas razões, que a razão não conhece: sabe-se isso em mil coisas. Eu digo que o coração ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme a isso se aplique; e se endurece contra um ou outro, à sua escolha. Rejeitastes um e conservastes o outro: é com razão que amais?

É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão.

IV

O mundo subsiste para exercer misericórdia e julgamento: não como se os homens nele estivessem saindo das mãos de Deus, mas como inimigos de Deus, aos quais ele dá por graça bastante luz para voltar se eles querem procurá-lo e segui-lo, mas para puni-los se recusam procurá-lo ou segui-lo.

V

É bom estar cansado e fatigado pela inútil procura do verdadeiro bem, afim de estender os braços ao libertador.

Os verdadeiros cristãos obedecem às loucuras; não, todavia, que respeitem as loucuras, mas a ordem de Deus, que, pela punição dos homens, os sujeitou a essas loucuras.

Há poucos verdadeiros cristãos, e o digo mesmo quanto à fé. Há muitos que crêem, mas por superstição; há muitos que não crêem, mas por libertinagem. Poucos existem entre os dois.

Não compreendo nisso (na superstição) os que estão na verdadeira piedade de costumes, e todos os que crêem por um sentimento do coração.

VI

É uma coisa deplorável ver todos os homens não deliberar senão os meios, e não o fim. Cada qual sonha como cumprirá sua missão; mas, quanto à escolha da condição e da pátria, a sorte no-la dá.

VII

É inútil dizer, é preciso confessar que a religião cristã tem alguma coisa de assombroso! É porque nascestes nela, dir-se-á. Bem longe disso: eu resisto por essa razão mesma, de medo que essa prevenção me suborne. Mas, embora eu nela tenha nascido, não deixo de achá-lo assim.

VIII

Há duas maneiras de persuadir as verdades da nossa religião: uma pela força da razão, outra pela autoridade de quem fala. Não nos servimos da última, mas da primeira. Não dizemos: É preciso crer nisso pois a Escritura que o diz é divina; mas, dizemos que é preciso crer por tal e tal razão, que são fracos argumentos, sendo a razão flexível a tudo.

(Os que parecem mais contrários à glória da religião não serão por isso inúteis para os outros. Faremos disso o primeiro argumento, que há alguma coisa de sobrenatural: pois uma cegueira dessa espécie não é uma coisa natural; e, se sua loucura os torna tão contrários ao próprio bem, ela servirá para garantir disso os outros pelo horror de um exemplo tão deplorável e de uma loucura tão digna de compaixão.)

IX

Sem Jesus Cristo, o mundo não subsistiria; pois seria preciso ou que fosse destruído ou que fosse como um inferno.

Quem só conhece a natureza só a conhecerá para ser miserável? Quem só a conhece será o único infeliz?

É preciso que o homem não veja nada absolutamente; é preciso também que não veja bastante para crer que o possui, mas que veja bastante para conhecer que o perdeu: pois, para conhecer o que se perdeu, é preciso ver e não ver; e é precisamente o estado em que está a natureza.

Seria preciso que a verdadeira religião ensinasse a grandeza, a miséria; conduzisse à estima e ao desprezo de si, ao amor e ao ódio.

Vejo a religião cristã fundada sobre uma religião precedente, e eis o que acho de efetivo.

Não falo aqui dos milagres de Moisés, de Jesus cristo e dos apóstolos, porque não parecem de início convincentes, e porque só quero pôr aqui em evidência todos os fundamentos dessa religião cristã que são indubitáveis e que não podem ser postos em dúvida por quem quer que seja.

X

A religião é uma coisa tão grande que é justo que os que não desejavam dar-se ao trabalho de procurá-la, por ser ela obscura, fossem privados dela. De que, pois, nos lastimamos, se ela é tal que a podemos encontrar quando a procuramos?

O orgulho contrapesa e elimina todas as misérias. Eis um estranho monstro, e um desvio bem visível (do homem). Caldo do seu lugar, ele a procura com inquietude.

Depois da corrupção, é justo que todos os que estão nesse estado o conheçam, quer os que gostam, quer os que se desgostam. Mas, não é justo que todos vejam a redenção.

Quando se diz que Jesus Cristo não morreu por todos, abusais de um vício dos homens que se aplicam incontinente esta exceção: o que é favorecer o desespero, em lugar de os evitar para favorecer a esperança.

XI

Os ímpios, que se abandonam cegamente às suas paixões sem conhecer Deus e sem dar-se ao trabalho de procurá-lo, verificam por si mesmos esse fundamento da fé que combatem, que é que a natureza dos homens está na corrupção. E os judeus, que combatem tão obstinadamente a religião cristã, verificam ainda este outro fundamento dessa mesma fé que atacam: que é que Jesus Cristo é o verdadeiro Messias, e que veio redimir os homens e retirá-los da corrupção e da miséria em que eles estavam; tanto pelo estado em que os vemos hoje e que se acha predito nas profecias, como por essas mesmas profecias que eles trazem e conservam inviolavelmente como as marcas pelas quais se deve reconhecer o Messias. (Assim, as provas da corrupção dos homens e da redenção de Jesus Cristo, que são as duas principais verdades que estabelece o cristianismo, se tiram dos ímpios que vivem na indiferença da religião, e dos judeus que são seus inimigos irreconciliáveis).

XII

A dignidade do homem consistia, em sua inocência, em dominar as criaturas e aproveitar-se delas; mas, hoje, consiste em separar-se delas e sujeitar-se a elas.

XIII

(Numerosos são os que erram tanto mais perigosamente quanto tomam uma verdade pelo princípio do seu erro. A sua falta não é seguir uma falsidade, mas seguir uma verdade com exclusão de outra.)

Há um grande número de verdades, de fé como de moral, que parecem repugnantes e que subsistem todas numa ordem admirável.

A fonte de todas as heresias é a exclusão de algumas dessas verdades; e a fonte de todas as objeções que nos fazem os hereges é a ignorância de algumas dessas verdades.

E, de ordinário, acontece que, não podendo conceber a relação de duas verdades opostas, e crendo que a confissão de uma encerra a exclusão da outra, eles se apegam a uma e excluem a outra.

1o. exemplo: Jesus Cristo é Deus e homem. Os arianos, não podendo aliar essas coisas que crêem incompatíveis, dizem que ele é homem: nisso, são católicos. Mas, negam que ele seja Deus: nisso, são hereges. Pretendem que neguemos sua humanidade: nisso, são ignorantes.

2o. exemplo: a propósito do Santo Sacramento. Cremos que, sendo a substância do pão mudada consubstancialmente na do corpo de Nosso Senhor, Jesus Cristo está realmente presente. Eis uma verdade. A outra é que esse sacramento é também uma das figuras da cruz e da glória, e uma comemoração de ambas. Eis a fé católica, que compreende essas duas verdades que parecem opostas.

A heresia de hoje, não concebendo que esse sacramento contenha ao mesmo tempo a presença de Jesus Cristo e a sua figura, e que seja sacrifício, acredita que não se pode admitir uma dessas verdades sem excluir a outra.

Apegam-se, por isso, ao único ponto de que esse sacramento é figurado; e nisso não são hereges. Pensam que excluímos essa verdade; e eis porque nos fazem tantas objeções sobre as passagens dos Pais que o dizem. Enfim, negam a presença real; e nisso são hereges.

3o. exemplo: As indulgências.

Eis porque o mais curto meio para impedir as heresias é instruir de todas as verdades, e o mais seguro meio de refutá-las é declará-las todas.

A graça estará sempre no mundo, e também a natureza, de sorte que é até certo ponto natural. E assim haverá sempre pelagianos, e sempre católicos, e sempre combate; porque o primeiro nascimento faz uns, e a graça do segundo nascimento faz outros.

Será uma das confusões dos danados ver que serão condenados por sua própria razão, pela qual pretendem condenar a religião cristã.

XIV

O que há de comum entre a vida ordinária dos homens e dos santos é que aspiram todos à felicidade; diferem apenas no objeto em que a colocam. Uns e outros chamam seus inimigos os que os impedem de alcançá-la.

É preciso julgar o que é bom ou mau pela vontade de Deus, que não pode ser nem injusta, nem cega, e não pela nossa própria, que é sempre cheia de malícia e de erro.

XV

Quando São Pedro e os apóstolos (Atos, XV) deliberam abolir a circuncisão, em que se tratava de agir contra a lei de Deus, eles não consultam os profetas, mas simplesmente a recepção do Santo Espírito na pessoa dos incircuncisos. Julgam mais certo que Deus aprove os que enche com seu Espírito do que necessário observar a lei; sabiam que o fim da lei não era senão o Santo Espírito, e que assim, uma vez que o tínhamos sem circuncisão, esta não era necessária.

XVI

Duas leis bastam para regular toda a república cristã melhor do que todas as leis políticas: (o amor de Deus e o do próximo.)

A religião é proporcionada a todas as espécies de espíritos. Os primeiros se apegam exclusivamente ao estabelecimento (em que ela está); e essa religião é tal que o seu estabelecimento é suficiente para provar a sua verdade. As outras vão até aos apóstolos. Os mais instruídos vão até ao começo do mundo. Os anjos a vêem ainda melhor e de mais longe; (pois a vêem no próprio Deus.)

Aqueles a quem Deus deu a religião por sentimento de coração são bem felizes e bem persuadidos. Mas, quanto aos que não a têm, só podemos proporcioná-la a eles pelo raciocínio, esperando que o próprio Deus a imprima no seu coração; sem o que, a fé é inútil para a salvação.

Deus, para reservar-se a si somente o direito de nos instruir, e para exprimir-nos a dificuldade do nosso ser ininteligível, ocultou o seu nó tão alto, ou melhor, tão baixo, que fôssemos incapazes de alcançá-lo: de sorte que não é pelas agitações da nossa razão, mas pela simples submissão da razão, que podemos verdadeiramente conhecer-nos.

XVII

Os ímpios que fazem profissão de seguir a razão devem ser estranhamente fortes em razão. Que dizem eles, pois? Não vemos, perguntam, morrer e viver os animais como os homens, e os turcos como os cristãos? Eles têm suas cerimônias, seus profetas, seus doutores, seus santos, seus religiosos, como nós, etc. Isso é contrário à Escritura? Ela não diz tudo isso? Se não vos importais em saber a verdade, eis o bastante para ficardes em repouso. Mas, se desejais de todo o coração conhecê-la, isso não é o bastante; observai em detalhe. Seria o bastante, (talvez), para uma (vã) questão de filosofia; mas, aqui, onde é óbvio... E, no entanto, após uma ligeira reflexão dessa espécie, divertir-nos-emos, etc.

É uma coisa horrível sentir continuamente escoar-se tudo o que se possui (e a que a gente se possa ligar, sem ter vontade de procurar se não há alguma coisa de permanente.)

É preciso, ao contrário, viver no mundo segundo estas diversas suposições: Se se pode existir sempre nele, se é certo que não se existirá mais tempo, e incerto se se existirá uma hora. Esta última suposição é a nossa.

XVIII

Pelos partidos, deveis dar-vos ao trabalho de pesquisar a verdade. Com efeito, se morreis sem adorar o verdadeiro princípio, estais perdido. Mas, dizeis, se ele tivesse querido que eu o adorasse, ter-me-ia deixado sinais de sua vontade. Também ele o fez; mas, vós os negligenciais. Procurai-os ao menos; bem o merecem.

Os ateus devem dizer coisas perfeitamente claras. Ora, seria preciso ter perdido o bom senso, para dizer que é perfeitamente claro que a alma é mortal. Eu acho bom que não se aprofunde a opinião de Copérnico, mas a toda vida importa saber se a alma é mortal ou imortal.

XIX

Os profetas, os milagres mesmo e as outras provas da nossa religião não são de tal natureza que se possa dizer que sejam absolutamente convincentes. Mas, são também de tal natureza que não se pode dizer que não se tem razão de crer neles. Assim, há evidência e obscuridade, para esclarecer uns e obscurecer outros. Mas, a evidência é tal que ultrapassa ou iguala, pelo menos, a evidência do contrário: de maneira que não é a razão que pode determinar a não segui-la; assim, só podem ser a concupiscência e a malícia do coração. E, por esse meio, há bastante evidência para condenar e não bastante para convencer: a fim de parecer que, nos que a seguem, é a graça e não a razão, que faz seguir; e que, nos que a evitam, é a concupiscência e não a razão que faz evitar.

Quem pode deixar de admirar e abraçar uma religião que conhece a fundo o que se reconhece tanto mais quanto mais luz se tem?

Um homem que descobre provas da religião cristã é como um herdeiro que acha os títulos de sua casa. Dirá ele que são falsos e deixará de examiná-los?

XX

Duas espécies de pessoas conhecem um Deus: os que têm o coração humilhado e amam a baixeza, algum grau de espírito que possuam, alto ou baixo; ou os que têm bastante espírito para ver a verdade, alguma oposição que possuam.

Os sábios, entre os pagãos, que disseram que só há um Deus, foram perseguidos, os judeus odiados, os cristãos ainda mais.

XXI

Que têm eles que dizer contra a ressurreição e contra o parto da Virgem? É mais difícil reproduzir um homem ou um animal do que produzi-lo? E, se nunca tivessem visto uma espécie de animais, poderiam adivinhar se eles se produzem sem a companhia uns dos outros?.

XXII

(Há grande) diferença entre repouso e segurança de consciência. Nada dá a segurança a não ser a verdade; e nada dá o repouso a não ser a pesquisa sincera da verdade.

Há duas verdades de fé igualmente constantes: uma, que o homem, no estado da criação, ou no da graça, é elevado acima de toda a natureza, tornado semelhante a Deus, e participante da divindade; outra, que, no estado de corrupção e do pecado, desceu desse estado, e se tornou semelhante aos animais. Essas duas proposições são igualmente firmes e certas.. A Escritura no-las declara manifestamente quando diz em alguns lugares: Delicioe meoe, esse cum filiis hominum(47) (Provérbios, VIII, 31). Effundam spiritum meum super omnem carnem(48) (Joel, II, 28). Dii estis,(49)etc. (Salmo LXXXI, 6); e quando diz em outros: Omnis caro foenum(50) (Isaias, XL, 6). Homo comparatus est jumentis insipientibus et similis factus est illis(51) (Salmo XLVIII, 13). Dixi in corde meo de filiis hominum, ut probaret eos Deus et ostenderet similes esse bestiis,(52), etc. (Eclesiastes, III, 18).

XXIII

Os exemplos das mortes generosas dos lacedemônios e outras não nos tocam; pois, que é que isso nos traz? Mas, o exemplo da morte dos mártires nos toca; pois são nossos membros. Temos um laço comum com eles: a sua resolução pode formar a nossa, não somente pelo exemplo, mas porque talvez tenha merecido a nossa. Não há nada disso nos exemplos dos pagãos; não temos ligação com eles; como não se fica rico para ver um estrangeiro que o é, mas para ver o seu pai ou o seu marido que o sejam.

XXIV

Os eleitos ignorarão as suas virtudes, e os réprobos os seus crimes. Senhor, dirão uns e outros, quando vos vimos ter fome? etc. (Mateus, XXV, 37, 44).

Jesus Cristo não quis o testemunho dos demônios, nem o dos que não tinham vocação; mas o de Deus e o de João Batista.

XXV

O que nos indispõe para comparar o que se passou outrora na Igreja com o que se vê agora é que, ordinariamente, se encaram Santo Atanásio, Santa Teresa e outros como coroados de glória. No presente, que o tempo esclareceu as coisas, isso parece assim. Mas, ao tempo em que era perseguido, esse grande santo era um homem que se chamava Atanásio; e Santa Teresa era uma rapariga (como as outras.) Elias era um homem como nós, e sujeito às mesmas paixões que nós, diz o apóstolo Tiago (Tiago, V, 17) para desenganar os cristãos dessa falsa idéia que nos faz rejeitar o exemplo dos santos como desproporcionado ao nosso estado: Eram santos; dizemos; não como nós.

XXVI

Os homens têm desprezo pela religião odeiam-na e têm medo de que seja verdadeira. Para curar isso, é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão; em segui-la, que é venerável, respeitá-la: torná-la, em seguida, amável; fazer os bons desejarem que fosse verdadeira, e, depois, mostrar que ela é verdadeira; venerável, porque conheceu bem o homem; amável, porque promete o verdadeiro bem.

Uma palavra de Davi, ou de Moisés, como que Deus circuncidará os corações (Deuteronômio, XXX, 6), faz julgar do seu espírito. Que todos os outros discursos sejam equívocos e duvidosos de ser, filósofos ou cristãos; enfim, uma palavra dessa natureza determina todas as outras, como uma palavra de Epíteto determina, ao contrário, todo o resto. Até ai, a ambigüidade dura, e não depois.

Eu teria muito mais medo de me enganar e de achar que a religião cristã seja verdadeira do que de não me enganar acreditando-a verdadeira.

(Por nos enganarmos crendo verdadeira a religião cristã, não há grande coisa que perder. Mas, que desgraça nos enganarmos crendo-a falsa!)

XXVII

As condições mais fáceis de viver segundo o mundo são as mais difíceis de viver segundo Deus: e, ao contrário, nada é tão difícil segundo o mundo como a vida religiosa; nada é mais fácil , do que passá-la segundo Deus: nada é mais fácil do que ter um grande cargo e grandes bens segundo o mundo; nada é mais difícil do que nele viver segundo Deus, e sem dele tomar parte e gosto.

XXVIII

O Antigo Testamento continha as figuras da alegria futura, e o Novo contém os meios de alcançá-la. As figuras eram alegria, os meios são penitência; e, contudo, o cordeiro pascoal era comido com alfaces selvagens, cum amaritudinibus(53) (Êxodo, XII, 8 ex Hebr.), (para marcar que não se podia achar a alegria senão na amargura.)

XXIX

A palavra Galileu, que a multidão dos judeus pronunciou como por acaso, acusando Jesus Cristo perante Pilatos (Lucas, XXIII, 5), deu motivo a Pilatos para enviar Jesus Cristo a Herodes; em que foi realizado o mistério, segundo o qual ele devia ser julgado pelos judeus e os gentios. O acaso em aparência foi a causa da realização do mistério.

XXX

Uma pessoa me disse, um dia, que sentia grande alegria e confiança ao sair da confissão; uma outra me disse que ficava com medo. Pensei, então, que das duas se faria uma boa, faltando em cada uma o sentimento da outra.

XXXI

Há prazer de estar num barco batido pela tempestade, quando se está certo de que ele não perecerá. As perseguições que trabalham a Igreja são dessa natureza.

A história da Igreja deve ser propriamente chamada história da verdade.

XXXII

Como as duas fontes dos nossos pecados são o orgulho e a preguiça, Deus nos descobriu duas qualidades suas para curá-las: a misericórdia e a justiça. A propriedade da justiça é abater o orgulho, por santas que sejam as obras, et non intres judicium(54); e a propriedade da misericórdia é combater a preguiça convidando às boas obras, segundo esta passagem: A misericórdia de Deus convida à penitência (Romanos, 4), e esta outra dos Ninivitas: Façamos penitência, para ver se porventura ele terá piedade de nós (Jonas, III, 9). E assim, bem longe da misericórdia autorizar o relaxamento, que é, ao contrário, a qualidade que o combate formalmente, de sorte que, em lugar de dizer: Se não houvesse em Deus misericórdia, seria preciso fazer toda sorte de esforços para a virtude; é preciso dizer, ao contrário, que é por haver em Deus misericórdia que é preciso fazer toda sorte de esforços.

XXXIII

Tudo o que está no mundo é concupiscência da carne, ou concupiscência dos olhos, ou orgulho da vida, libido sentiendi, libido sciendi, libido dominandi(55) (João, II, 16). Infeliz a terra de maldição que esses três rios de fogo abrasam em lugar de regarem! Felizes os que, estando sobre esses rios, não mergulhados, não arrastados, mas imovelmente firmes, não de pé, mas sentados num assento baixo e seguro, de que nunca se levantam antes da luz, mas, depois de terem repousado em paz, estendem a mão ao que os deve levantar para fazê-los ficar de pé e firmes nos pórticos da santa Jerusalém, onde o orgulho não poderá mais combatê-los e abatê-los; e que, entretanto, choram não de ver escoarem-se todas as coisas perecíveis, que as torrentes arrastam, mas de saudade de sua pátria, da Jerusalém celeste, de que se lembram sem cessar na extensão do seu exílio!

XXXIV

Um milagre, diz-se, consolidaria minha crença. Diz-se isso quando não se vê. As razões que, sendo vistas de longe, parecem limitar nossa vista, não a limitam mais quando se chegou; começa-se a ver ainda além. Nada detém a volubilidade do nosso espírito. Não há, diz-se, regra que não tenha alguma exceção, nem verdade tão geral que não tenha alguma face por onde falha. Basta que ela não seja absolutamente universal para nos dar motivo de aplicar a exceção ao assunto presente, e dizer: Isso não é sempre verdadeiro; portanto, há casos em que isso não o é. Não resta mais senão mostrar que aquilo o é; e é em que se é bem desajeitado ou bem desgraçado se tal não se acha algum dia.

XXXV

A caridade não é um preceito figurativo. Dizer que Jesus Cristo, que veio tirar as figuras para pôr a verdade, só veio para pôr a figura da caridade, para tirar a realidade que era antes, é horrível.

XXXVI

Quantos seres as lunetas nos descobriram que não existiam para os filósofos de outrora! Atacava-se maldosamente a Escritura santa por causa do grande número de estrelas, dizendo: Existem somente mil e vinte e duas;, nós o sabemos.

XXXVII

O homem é feito de tal maneira que, à força de lhe dizer que é tolo, ele o crê; e, à força de se dizer isso a si mesmo, faz-se com que o creia. Com efeito, o homem tem sozinho uma conversação interior, que importa regular bem: Corrumpunt mores bonos colloquia mala(56) (I, Coríntios, XV, 33). É preciso ficar em silêncio tanto quanto se puder,. e só se importar com Deus, que se sabe ser a verdade; e assim a gente se persuade a si mesmo.

XXXVIII

Que diferença entre um soldado e um cartuxo, quanto à obediência? Pois são igualmente obedientes e dependentes, e em exercícios igualmente penosos. Mas, o soldado espera sempre tornar-se senhor, e nunca se torna, pois até os capitães e os príncipes são sempre escravos e dependentes; mas, espera sempre e trabalha sempre para chegar a isso; ao passo que o cartuxo faz voto de nunca ser senão dependente. Então, não diferem na servidão perpétua que ambos têm sempre, mas na esperança que um tem sempre e o outro nunca.

XXXIX

A própria vontade nunca se satisfaria, quando tivesse poder de tudo o que quer; mas, fica-se satisfeito desde o instante em que se renuncia a isso. Com ela, só se pode estar descontente; sem ela, só se pode estar contente.

A verdadeira e única virtude é odiar a si mesmo, pois se é odiável pela própria concupiscência, e procurar um ser verdadeiramente amável, para o amar. Mas, como não podemos amar o que está fora de nós, é preciso amar um ser que esteja em nós, e que não esteja em nós. Ora, só o Ser universal o é. O reino de Deus está em nós (Lucas, XVII, 21); o bem universal está em nós mesmos, e não somos nós.

XL

É ser supersticioso ter esperança nas formalidades; mas, é ser soberbo não querer submeter-se a elas.

XLI

Todas as religiões e todas as seitas do mundo têm tido a razão natural por guia. Só os cristãos têm sido adstringidos a tomar suas regras fora de si mesmos, e a se informarem das que Jesus Cristo deixou aos antigos para nos serem transmitidas. Há pessoas que se aborrecem com esse constrangimento. Querem ter, como os outros povos, a liberdade de seguir as suas imaginações. É em vão que lhes gritamos, como os profetas faziam outrora aos judeus: Ide à igreja; informai-vos das leis que os antigos lhe deixaram e segui esses atalhos. Respondem como os judeus: Não iremos; queremos seguir os pensamentos do nosso coração, e ser como os outros povos.

XLII

Há três meios de crer: a razão, o costume, a inspiração. A religião cristã, que é a única que tem razão, não admite como verdadeiros filhos os que crêem sem inspiração: não que exclua a razão e o costume, ao contrário; mas, é preciso abrir o espírito às provas, assegurar-se destas pelo costume, oferecer-se pelas humilhações às inspirações, que são as únicas que podem fazer o verdadeiro e salutar efeito: Ut non evacuetur crux Christi(57) (Coríntios, I, 17).

XLIII

Nunca se pratica o mal tão plena e tão alegremente como quando praticado por um falso princípio de consciência.

XLIV

Os judeus que foram chamados a dominar as nações e os reis foram escravos do pecado; e os cristãos, cuja vocação foi servir e ser sujeitos, são os filhos livres.

XLV

Haverá coragem num homem moribundo que, na fraqueza e na agonia, afronta um Deus todo-poderoso e eterno?

XLVI

Eu creio de bom grado nas histórias cujas testemunhas se fazem degolar.

XLVII

O bom temor, vem da fé; o falso temor vem da dúvida. O bom temor traz a esperança, porque nasce da fé e porque se espera no Deus em que se crê: o mau leva ao desespero, porque se teme o Deus no qual não se tem fé. Uns temem perdê-lo, outros achá-lo.

XLVIII

Todos os pagãos falavam mal de Israel, e o profeta também; e bem longe está de que os israelitas tivessem o direito de lhe dizer: Falais como pagãos, pois sua maior força está em que os pagãos falem como ele.

XLIX

Deus não entende que submetêssemos a nossa crença a ele sem razão, e não pretende sujeitar-nos com tirania. Mas, não pretende também dar-nos satisfação de todas as coisas; e, para pôr de acordo essas contrariedades, entende fazer-nos ver nele, claramente, por provas convincentes, marcas divinas que nos convençam do que ele é, e atrair a si autoridade por maravilhas e provas que não possamos recusar; e que, em seguida, acreditássemos sem hesitar nas coisas que nos ensina, quando nelas não encontrássemos outra razão para recusá-las, a não ser que não podemos nós mesmos conhecer se elas são ou não.

L

Só há três espécies de pessoas: umas, que servem Deus, tendo-o encontrado; outras, que se empenham em procurá-lo, não o tendo encontrado; e outras, que vivem sem procurá-lo nem o ter encontrado. As primeiras são razoáveis e felizes; as últimas são loucas e infelizes; as do meio são infelizes e razoáveis.

LI

Os homens tomam, muitas vezes, sua imaginação por seu coração; e julgam estar convertidos desde que pensam converter-se.

A razão age com lentidão e com tantas vistas e sobre tantos princípios, os quais é preciso que sejam sempre presentes, que a toda hora adormece e se afasta por não ter todos esses princípios presentes. O sentimento não age assim: age num instante e está sempre pronto a agir. É preciso, pois, pôr nossa fé nos sentimentos do coração; de outro modo, ela será sempre vacilante.

LII

Se há um Deus, é preciso amar somente a ele, e não as criaturas passageiras. O raciocínio dos ímpios, na Sabedoria, é fundado exclusivamente sobre que não há Deus. Por conseguinte, dizem eles, gozemos as criaturas: é o que há de pior. Mas, se soubessem que há um Deus que amar, teriam concluído justamente o contrário. E eis a conclusão dos sábios: há um Deus; não gozemos, pois, as criaturas. Portanto, tudo o que nos incita a nos ligar às criaturas é mau, pois isso nos impede, ou de servir Deus se o conhecemos, ou de procurá-lo se o ignoramos. Ora, somos cheios de concupiscência: portanto, somos cheios de mal; portanto, devemos odiar-nos a nós mesmos, e a tudo o que nos excita a outro liame que não seja Deus somente.

LIII

Quando queremos pensar em Deus, não há nada que nos desvie e que nos tente a pensar em outra coisa? Tudo isso é mau e nasceu conosco.

LIV

É falso que sejamos dignos de que os outros nos amem: é injusto que o queiramos. Se nascêssemos razoáveis ou indiferentes e conhecendo-nos a nós e aos outros, não daríamos essa inclinação à nossa vontade. Nascemos, no entanto, com ela: nascemos, portanto, injustos, pois tudo tende a si. Isso é contra toda ordem: é preciso tender ao geral; e a tendência para si é o começo de toda desordem, em guerra, em polícia, em economia, no corpo particular do homem. A vontade está, pois, depravada.

Se os membros das comunidades naturais e civis tendem ao bem do corpo, as próprias comunidades devem tender a um outro corpo mais geral, de que são membros.

Quem não odeia em si o seu amor-próprio e esse instinto que o leva a se fazer Deus é bem cego. Quem não vê que nada é tão oposto à justiça e à verdade? pois é falso que merecêssemos isso; e é injusto e impossível chegar a isso, uma vez que todos pedem a mesma coisa. É, pois, uma manifesta injustiça em que nascemos, da qual não podemos desfazer-nos e da qual é preciso desfazer-nos.

No entanto, nenhuma religião (a não ser a cristã) notou que isso fosse um pecado, nem que nele tenhamos nascido, nem que fôssemos obrigados a resistir a ele; nem pensou em nos dar os remédios para ele.

LV

(Há uma) guerra intestina do homem entre a razão e as paixões. (Ele poderia gozar de alguma paz) se só tivesse a razão sem paixões... se só tivesse as paixões sem razão. Mas, tendo ambas, não pode existir sem guerra, só podendo ter paz com uma tendo guerra com a outra. Assim, está sempre dividido e contrário a si mesmo.

Se é uma cegueira sobrenatural a de viver sem procurar o que se é, terrível é a de viver mal crendo em Deus.

LVI

É indubitável que a alma é mortal ou imortal Isso deve pôr uma diferença completa na moral; e, no entanto, os filósofos conduziram a moral independentemente disso (Que estranha cegueira !)

O último ato é sangrento, por bela que seja a comédia em todo o resto. Lança-se, enfim, terra sobre a cabeça, e isso para sempre.

LVII

Tendo feito o céu e a terra sem sentir a felicidade do seu ser, quis Deus fazer seres que conhecessem e compusessem um corpo de membros pensantes, pois nossos membros não sentem a felicidade de sua união, de sua admirável inteligência, do cuidado que a natureza tem de neles influir os espíritos e fazê-los crescer e durar Como seriam felizes se o sentissem, se o vissem! Mas, seria preciso, para isso, que tivessem inteligência para conhecê-lo e boa vontade para consentir à da alma universal. É que, se, tendo recebido inteligência, se servissem dela para reter em si mesmos a nutrição, sem deixá-la passar para os outros membros, seriam não só injustos, mas ainda miseráveis, e se odiariam em lugar de se amarem: consistindo a sua beatitude, assim como o seu dever, em consentir à conduta da alma inteira a que pertencem e que os ama mais do que eles se amam a si mesmos.

LVIII

Ser membro é só ter vida, ser e movimento pelo espírito do corpo e para o corpo. O membro separado, não vendo mais o corpo ao qual pertence, não tem mais que um ser perecente e moribundo.

No entanto, acredita ser um todo; e, não se vendo corpo do qual dependa, crê não depender senão de si e quer fazer-se centro e o próprio corpo. Mas, não tendo em si princípio de vida, não faz senão afastar-se e se assombra na incerteza do seu ser, sentindo bem que não é corpo e não vendo, contudo, que seja membro de um corpo. Enfim, quando vem a se conhecer, é como se tivesse voltado a si, e se ama exclusivamente para o corpo; lamenta os seus desvios passados.

Ele não poderia por sua natureza amar outra coisa, senão para si mesmo e para sujeitá-la a si, porque cada coisa se ama mais do que tudo. Mas, amando o corpo, ama-se a si mesmo, porque só tem ser em si, por si e para si: qui adheret Deo unus, spiritus est(58)

O corpo ama a mão; e a mão, se tivesse uma vontade, deveria amar-se da mesma maneira por que a alma a ama: todo amor que vai além é injusto.

Adherens Deo unus, spiritus est(59)a gente se ama porque é membro de Jesus Cristo. Ama-se Jesus Cristo porque ele é o corpo de que se é membro. Tudo é um. Um é o outro, como as três pessoas.

É preciso amar somente a Deus e odiar somente a si.

Se o pé tivesse sempre ignorado que pertence ao corpo e se houvesse um corpo de que ele dependesse, se ele só tivesse tido o conhecimento e o amor de si e viesse a conhecer que pertence a um corpo do qual depende, que desgosto, que confusão de sua vida passada, de ter sido inútil ao corpo que lhe influiu sua vida, que o teria aniquilado se o tivesse rejeitado e separado de si, como ele se separava dele! que súplicas para que nele fosse conservado! e com que submissão se deixaria governar à vontade que rege o corpo, até consentir em ser amputado quando preciso, ou perderia sua qualidade de membro, pois é preciso que todo membro queira bem perecer para o corpo, que é o único para quem tudo é.

Para fazer que os membros sejam felizes, é preciso que tenham uma vontade e que a conformem ao corpo.

A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações puramente humanas: a concupiscência faz os voluntários: a força, os involuntários.

LIX

Os platônicos, e mesmo Epíteto e seus sectários, acreditam que Deus é o único digno de ser amado e admirado, e desejaram ser amados e admirados pelos homens; e não conhecem sua corrupção. Se se sentem cheios de sentimentos para amá-lo e adorá-lo, e se acham nisso a sua alegria principal, estimem-se bons enquanto é tempo. Mas, se se acham repugnantes, se não têm nenhuma tendência senão para quererem estabelecer-se na estima doa homens, e se, por toda perfeição, fazem somente que, sem forçar os homens, os façam achar a sua felicidade em amá-los, direi que essa perfeição é horrível. Como! conheceram Deus e não desejaram unicamente que os homens o amassem, mas que os homens se detivessem neles; quiseram ser o objeto da felicidade voluntária dos homens!

LX

É verdadeiro que há dificuldade em entrar na piedade. Mas, essa dificuldade não vem da piedade que começa a existir em nós, mas da impiedade que em nós ainda existe. Se os nossos sentidos não se opusessem à penitência, e se a nossa corrupção não se opusesse à pureza de Deus, não haveria nisso nada de penoso para nós. Só sofremos à proporção que o vício que nos é natural resiste à graça sobrenatural O nosso coração sente-se dilacerado entre esses esforços contrários. Mas, seria bem injusto imputar essa violência a Deus, que nos atrai, em lugar de atribuí-la ao mundo, que nos retém. É como uma criança cuja mãe arranca-a dos braços dos ladrões e que deve amar no desgosto que sofre a violência amorosa e legítima de quem procura a sua liberdade, e só detestar a violência impetuosa e tirânica dos que a retém injustamente. A guerra mais cruel que Deus pode fazer aos homens, nesta vida, é deixá-los sem essa guerra que ele veio causar. Eu vim trazer a guerra, disse ele; e, para instruir dessa guerra, vim trazer o ferro e o fogo (Mateus, X, 34; Lucas, XII, 46). Antes dele, o mundo vivia numa falsa paz.

LXI

Deus só observa o interior: a Igreja só julga pelo exterior. Deus absolve logo que vê a penitência no coração; a Igreja, quando a vê nas obras. Deus fará uma Igreja pura por dentro, que confunda por sua santidade interior e toda espiritual a impiedade interior dos sábios soberbos e dos fariseus; e a Igreja fará uma assembléia de homens cujos costumes exteriores sejam tão puros que confundam os costumes dos pagãos. Se há hipócritas tão bem disfarçados que ela não conhece o seu veneno, tolera-os; com efeito, ainda que eles não sejam recebidos por Deus, que não podem enganar, o são pelos homens, que enganam. Assim, ela não é desonrada por sua conduta, que parece santa

Mas, quereis que a Igreja não julgue nem o interior, porque isso só compete a Deus, nem o exterior, porque Deus só se detém no interior, e assim, tirando-lhe toda escolha dos homens, retendes na Igreja os mais depravados e os que a desonram tanto que as sinagogas dos judeus e as seitas dos filósofos os teriam exilado como indignos e os teriam abominado como ímpios.

LXII

A lei não destruiu a natureza, mas a instruiu: a graça não destruiu a lei, mas a fez exercer. Faz-se um ídolo da própria verdade: pois a verdade, fora da caridade, não é Deus: é a sua imagem e um ídolo que não se deve amar nem adorar; e ainda menos se deve amar e adorar o seu contrário, que é a mentira.

LXIII

Todos os grandes divertimentos são perigosos para a vida cristã; mas, dentre todos os que o mundo inventou, não há nenhum que seja mais temível do que a comédia. É uma representação tão natural e tão delicada das paixões, que as excita e as faz nascer em nosso coração, sobretudo a do amor, principalmente quando representado muito casto e muito honesto. Com efeito, quanto mais parece inocente às almas inocentes, tanto mais estas são capazes de se comover. Sua; violência agrada ao nosso amor-próprio, que forma logo um desejo de causar os mesmos efeitos que se vêem tão bem representados; e se faz ao mesmo tempo uma consciência fundada sobre a honestidade dos sentimentos que se vêem, que extingue o medo das almas puras, as quais imaginam que não é ferir a pureza amar com um amor que lhes parece tão sábio. Assim, saímos da comédia com o coração tão cheio de todas as belezas e de todas as doçuras do amor, a alma e o espírito tão persuadidos de sua inocência, que ficamos inteiramente preparados para receber as suas primeiras impressões, ou antes, para procurar a ocasião de fazê-las nascer no coração de alguém, para receber os mesmos prazeres e os mesmos sacrifícios que vimos tão bem pintados na comédia.

LXIV

As opiniões relaxadas agradam tanto aos homens que é estranho que as deles(60)lhes desagradem. É que eles excederam todos os limites. E, além disso, há muita gente que vê o verdadeiro e não pode atingi-lo. Mas, há pouca que não saiba que a pureza da religião é contrária às nossas corrupções. Ridículo é dizer que uma recompensa eterna é oferecida a costumes escobartíneos.

LXV

Receio que tenha escrito mal, vendo-me condenado; mas, o exemplo de escritos tão piedosos me faz acreditar no contrário. Não é mais permitido escrever bem, de tal maneira a Inquisição é corrompida e ignorante.

É melhor obedecer a Deus do que aos homens. Nada receio; nada espero; os bispos não são assim. O Port-Royal receia, e é má política separá-los; pois não recearão mais e se farão mais recear.

O silêncio é a maior perseguição. Nunca os santos se calaram. É verdade que é preciso vocação, mas não são as sentenças do conselho que, é preciso conhecer quando se é chamado; e sim a necessidade de falar.

Se as minhas Cartas são condenadas em Roma, o que eu nelas condeno é condenado no céu.

A Inquisição e a Sociedade, dois flagelos da verdade.

LXVI

A máquina aritmética produz efeitos que aproximam mais do pensamento do que tudo o que fazem os animais; mas, não faz nada que possa fazer dizer que ela tem vontade como os animais.

LXVII

A natureza tem perfeições, para mostrar que é a imagem de Deus; e defeitos, para mostrar que é apenas a sua imagem.

LXIX

Tirai a probabilidade, não se pode mais agradar ao mundo: ponde a probabilidade, não se pode mais desagradar-lhe.

LXX

O ardor dos santos em investigar e praticar o bem seria inútil se a probabilidade fosse certa.

LXXI

Para fazer de um homem um santo, é preciso que haja a graça; e quem duvida disso não sabe o que é ser santo nem homem.

LXXII

Deseja-se a certeza. Deseja-se que o papa seja infalível na fé e que os doutores graves o sejam em seus costumes, afim de ter a sua certeza.

LXXIII

É preciso não julgar o que é o papa por algumas palavras dos Pais, como diziam os gregos num concílio (regra importante!), mas pelas ações da Igreja e dos Pais, e pelos cânones.

LXXIV

O papa é o primeiro. Que outro é conhecido por todos? Que outro é reconhecido por todos como tendo poder de insinuar em todo o corpo, porque detém a noiva branca que se insinua por toda parte?

LXXV

Há heresia em explicar sempre omnes(61)por todos, e heresia em não explicar às vezes por todos. Bibite ex hoc omnes(62): os huguenotes, hereges, explicando-o por todos. In quo omnes peccaverunt(63): os huguenotes, hereges, excetuando os filhos dos fiéis. É preciso, pois, seguir os Pais e a tradição para saber desde quando há heresia que temer por toda parte.

LXXVI

O menor movimento importa a toda a natureza: o mar inteiro se modifica com uma pedra. Assim, na graça, a menor ação importa, por suas conseqüências, a tudo. Portanto, tudo é importante.

LXXVII

Todos os homens se odeiam naturalmente entre si. Servimo-nos como podemos da concupiscência para fazê-la servir ao bem público. Mas, é só fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois que, no fundo, é só ódio. Esse vil fundo do homem, figmentum malum(64) está apenas coberto; não está omisso.

LXXVIII

Se se quer dizer que o homem é pouco demais para merecer a comunicaçã9 com Deus, é preciso ser bem grande para julgar isso.

LXXIX

É indigno de Deus juntar-se ao homem miserável; mas, não é indigno de Deus tirá-lo de sua miséria.

LXXX

(Quem nunca o compreendeu! Que absurdos!) Pecadores purificados sem penitência, justos santificados sem a graça de Jesus Cristo. Deus sem poder sobre a vontade dos homens, uma predestinação sem mistério, um Redentor sem certeza.

LXXXI

Unidade, multidão. Considerando a Igreja como unidade, o papa, quem quer que seja ele, é o chefe, é como tudo. Considerando-a como multidão, o papa é apenas uma parte dela. A multidão que não se reduz à unidade é confusão; a unidade que não depende da multidão é tirania.

LXXXII

Deus não faz milagres na conduta ordinária de sua Igreja. Seria estranho que a infalibilidade estivesse em um; mas, estar na multidão, isso parece tão natural, quanto a conduta de Deus estar oculta sob a natureza, como em todas as suas outras obras.

LXXXIII

(Que a religião cristã não é única), bem longe está de que isso seja uma razão que faça crer que não é verdadeira, pois que, ao contrário, é o que faz crer que o é.

LXXXIV

A Escritura santa não é uma ciência do espírito, mas do coração. Só é inteligível para os que têm o coração direito. O véu que existe sobre a Escritura para os judeus também existe para os cristãos. A caridade é não só o objeto da Escritura santa, mas é também a sua porta.

LXXXV

Se nada fosse preciso senão para o certo, nada se deveria fazer pela religião: pois ela não é certa. Mas, quantas coisas se fazem pelo incerto! as viagens por mar, as batalhas! Digo, pois, que nada absolutamente seria preciso fazer, pois nada é certo; e que há mais certeza na religião do que na esperança de vermos o dia de amanhã: pois não é certo que vejamos amanhã; mas, é certamente possível que não o vejamos. Não se pode dizer o mesmo da religião. Não é certo que ela o seja; mas, quem ousará dizer que é certamente possível que não o seja? Ora, quando se trabalha para amanhã e pelo incerto, age-se com razão.

LXXXVI

As invenções doa homens vão avançando de século em século. A bondade e a malícia do mundo em geral, também.

LXXXVII

É preciso ter um pensamento retrógrado e julgar tudo por isso: falando, todavia, como o povo.

LXXXVIII

A força é a rainha do mundo, e não a opinião; mas, é a opinião que usa da força.

LXXXIX

O acaso dá os pensamentos, o acaso Os tira; nenhuma arte para conservar nem para adquirir.

XC

É feito padre quem quer sê-lo, como sob Jeroboão.

XCI

Só se consultam os ouvidos porque não se tem coração.

XCII

As crianças que têm medo do rosto que lambuzaram são crianças; mas, o meio de que o que é tão fraco sendo criança seja bem forte sendo mais idoso? Não se faz senão mudar de fraqueza.

XCIII

Incompreensível que Deus seja, e incompreensível que não seja; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma, que o mundo seja criado, que não o seja, etc.; que o pecado original seja, e que não seja.

XCIV

Ateísmo marca força de espírito, mas até certo ponto somente.

XCV

Incrédulos, os mais crédulos. Crêem nos milagres de Vespasiano, para não crer nos de Moisés.

XCVI
Sobre a filosofia de Descartes

É preciso dizer em grosso: Isso se faz por figura e movimento, pois isso é verdadeiro; irias, dizer quais e compor a máquina, é ridículo; pois é inútil, e incerto, e penoso. E, quando isso fosse verdadeiro, não estimamos que toda a filosofia valha uma hora de trabalho.

XCVII

A fé é um dom de Deus. Não acrediteis que disséssemos que é um dom de. raciocínio. As outras religiões não dizem isso de sua fé; davam somente o raciocínio para chegar a ela, que não vem apesar de tudo.

Deus serviu-se da concupiscência dos judeus para fazê-los servir a Jesus Cristo.

XCVIII

Abraão não tomou nada para si, mas somente para os seus servidores; assim, o justo não toma nada para si do mundo e dos aplausos do mundo, mas somente para as suas paixões, das quais se serve como senhor, dizendo: Vai e volta. Sub te erit appetitus tuus(65) As paixões assim dominadas são virtudes; a avareza, a inveja, a cólera, o próprio Deus as atribui a si; e são tanto virtudes como a demência, a paciência e a constância, que são também paixões. É preciso servirmo-nos delas como escravos, e, deixando-lhes seu alimento, impedir que a alma compartilhe; pois, quando as paixões são as senhoras, elas são vícios, e então dão à alma seu alimento, e a alma com elas se nutre e se envenena.

XCIX

A nossa religião é sábia e louca; sábia, porque é a mais sábia e a mais fundada em milagres, profetas, etc.; louca, porque não é tudo isso que faz o que se é; o que faz é condenar os que não o são, mas não crer nos que são. O que os faz crer é a cruz: Ne evacuata sit crux(66). E, assim, São Paulo, que veio em sabedoria e em sinais, disse que não veio nem em sabedoria nem em sinais, porque vinha para converter. Mas, os que só vêm para convencer, podem dizer que vêm em sabedoria e em sinais.

C

Fascinatio nugacitatis(67). A fim de que a paixão não prejudique, façamos como se só houvesse oito dias de vida.

CI

De tudo o que existe sobre a terra, ele (o verdadeiro cristão) só toma parte nos desprazeres, não nos prazeres; ama os seus próximos, mas a sua caridade não se encerra nesses limites e se espalha sobre os seus inimigos, e depois sobre os de Deus.


 

ARTIGO XVII

CONHECIMENTO GERAL DO HOMEM

 

I

Eis aonde nos conduzem os conhecimentos naturais. Se estes não são verdadeiros, não há verdade no homem; e, se o são, descubro nisso um grande motivo de humilhação; e, uma vez que ele não pode subsistir sem crer neles, desejo, antes de entrar em maiores indagações da natureza, que a considere uma vez seriamente e com vagar, que se observe também a si mesmo e julgue se tem alguma proporção com ela pela comparação que fará desses dois objetos.

Que o homem contemple, pois, a natureza inteira em sua alta e plena majestade; que afaste a vista dos objetos baixos que o cercam; que observe essa brilhante luz posta como uma lâmpada eterna para o universo; que a terra lhe pareça como um ponto, à custa da vasta volta que esse astro descreve(68); e que se admire de que até essa vasta volta não passe de um ponto insignificante em relação à que os astros, que rolam no firmamento, abraçam. Mas, se a nossa vista se detém ai, que a imaginação passe além: ela se deixará antes de conceber que a natureza de fornecer. Todo este mundo visível não é senão um traço imperceptível no amplo seio da natureza. Nenhuma idéia se aproxima disso. É inútil dilatar nossas concepções além dos espaços imagináveis: só damos à luz átomos, em relação à realidade das coisas. É uma esfera infinita cujo centro está em toda parte, a circunferência em nenhuma parte(69). Enfim, o maior caráter sensível da onipotência de Deus é que a nossa imaginação se perca nesse pensamento.

Que o homem, tendo voltado a si, considere o que é em relação ao que existe; que se considere perdido nesse cantão desviado da natureza; e que, desse pequeno cárcere em que se acha instalado, e entendo o universo, aprenda a estimar a terra, os remos, as cidades e a si mesmo segundo o seu justo valor.

Que é um homem no infinito?

Mas, para apresentar-lhe outro prodígio tão assombroso, que investigue no que conhece as coisas mais delicadas. Que um oução lhe ofereça, na pequenez do seu corpo, partes incomparavelmente mais pequenas, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias, humores nesse sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas; que, dividindo ainda estas últimas coisas, esgote suas forças em tais concepções, e que o último objeto a que pode chegar seja agora o do nosso discurso; pensará, talvez, que é essa a extrema pequenez da natureza. Quero fazer-lhe ver aí dentro um abismo novo. Quero pintar-lhe não só o universo visível, mas a imensidade que se pode conceber da natureza, no âmbito desse esboço de átomo. Que ele veja aí uma infinidade de universos, cada um dos quais tem o seu firmamento, seus planetas, sua terra, na mesma proporção que o visível; nessa terra, animais, e, enfim, ouções nos quais tornará a achar o que os primeiros deram e, achando ainda nos outros a mesma coisa, sem fim e sem repouso, que se perca nessas maravilhas tão assombrosas em sua pequenez quanto as outras por sua extensão; com efeito, quem não admirará que o nosso corpo, que há pouco não era perceptível no universo, imperceptível ele próprio no seio de tudo, seja agora um colosso, um mundo, ou antes, tudo, em relação ao nada aonde não se pode chegar?

Quem se considerar assim admirar-se-á de si mesmo e, considerando-se sustentado na massa que a natureza lhe deu, entre esses dois abismos do infinito e do nada tremerá ao ver essas maravilhas; e creio que a sua curiosidade, transformando-se em admiração, estará mais disposta a contemplá-las em silêncio do que a investigá-las com presunção.

Pois, enfim, que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada: um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de compreender os extremos, o fim das coisas e o seu princípio estão para ele invencivelmente ocultos num segredo impenetrável; igualmente incapaz de ver o nada de onde foi tirado e o infinito que o absorve.

Que fará, pois, senão perceber alguma aparência do meio das coisas, num desespero eterno de não conhecer nem seu princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e foram trazidas até ao infinito. Quem seguirá esses assombrosos movimentos? O autor dessas maravilhas compreende-as; ninguém mais pode fazê-lo.

Sem ter contemplado esses infinitos, os homens entregaram-se temerariamente à investigação da natureza, como se tivessem alguma proporção com ela.

É uma coisa estranha que tenham querido compreender os princípios das coisas e daí chegar até a conhecer tudo, por uma presunção tão infinita quanto o seu objeto. Pois é sem dúvida que não se pode formar esse desígnio sem uma presunção ou sem uma capacidade infinita com a natureza.

Quando se é instruído, compreende-se que a natureza, tendo gravado a sua imagem e a do seu autor em todas as coisas, estas têm quase a sua dupla infinidade. É assim que vemos que todas as ciências são infinitas na extensão das suas pesquisas; pois quem duvida que a geometria, por exemplo, tenha uma infinidade de infinidades de proposições que expor? Elas são também infinitas na multidão e delicadeza dos seus princípios; pois quem não vê que os que se propõem para os últimos não se sustentam por si mesmos e são apoiados sobre outros que, tendo outros como apoio, não admitem nunca o último?

Mas, fazemos com que os últimos apareçam à razão como se faz com as coisas materiais em que achamos um ponto indivisível aquele além do qual os nossos sentidos não percebem mais nada, embora divisível infinitamente e por sua natureza.

Desses dois infinitos de ciências, o de grandeza é bem mais sensível, e eis porque acontece que poucas pessoas tenham pretendido conhecer todas as coisas. Vou falar de tudo, dizia Demócrito.

Vê-se, à primeira vista, que só a aritmética fornece propriedades sem número, e cada ciência também.

Mas, a infinidade em pequenez é bem menos visível. Os filósofos, muito ao contrário, pretenderam chegar a isso, e foi nisso que todos tropeçaram. Foi o que deu lugar a estes títulos tão ordinários, Dos Princípios das Coisas, Dos Princípios da Filosofia, e a semelhantes, tão faustosos na realidade, embora não em aparência, quanto este outro que salta aos olhos: De omni scibili(70).

A gente se julga, naturalmente, bem mais capaz de chegar ao centro das coisas do que de abraçar a sua circunferência. A extensão visível do mundo nos ultrapassa visivelmente; mas, como somos nós que ultrapassamos as pequenas coisas, julgamo-nos mais capazes de possui-las; e, no entanto, é preciso não menos capacidade para ir até ao nada do que até ao tudo. É necessário que ela seja infinita para ambos, e me parece que quem tivesse compreendido os últimos princípios das coisas poderia também chegar até a conhecer o infinito. Um depende do outro, e um conduz ao outro. As extremidades se tocam e se reúnem à força de serem afastadas, e tornam a encontrar-se em Deus, e em Deus somente.

Conhecemos, pois, o nosso alcance; somos alguma coisa e não somos tudo. O que temos de ser nos rouba o conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada, e o pouco que temos de ser nos oculta a visão do infinito.

A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas inteligíveis, a mesma ordem que o nosso corpo na extensão da natureza,

Limitados de toda forma, esse estado que ocupa o meio entre dois extremos se acha em todas as nossas potências.

Os nossos sentidos nada percebem de extremo. Demasiado barulho nos ensurdece; demasiada luz deslumbra; demasiada distância e demasiada proximidade impedem a visão; demasiado comprimento e demasiada brevidade do discurso o obscurecem; demasiada verdade nos assombra: eu sei que não podem compreender que quem de zero tira quatro fica zero. Os primeiros princípios têm evidência demais para nós. Demasiado prazer incomoda; demasiadas consonâncias desagradam na música; e demasiados benefícios irritam: queremos ter com que sobrepagar a divida: Beneficia eo usque laeta a sunt dum videntur exsolvi posse; ubi multum antevenere, pro gratia odium redditur(71).

Não sentimos nem o extremo quente, nem o extremo frio. As qualidades excessivas nos são inimigas e não sensíveis: não as sentimos, toleramo-las. Demasiada juventude e demasiada velhice impedem o espírito; instrução demais e pouca demais. Enfim, as coisas extremas são para nós como se não existissem, e nós não existimos em relação a elas: elas nos escapam, ou nós a elas.

Eis o nosso verdadeiro estado. Eis o que nos torna incapazes de saber com certeza e de ignorar em absoluto. Vogamos num meio vasto, sempre incertos e flutuantes, impelidos de uma extremidade a outra. Algum termo em que pensássemos ligar-nos e firmar-nos, abala e nos abandona; e, se o seguimos, ele escapa à nossa captura, escorrega-nos e foge com uma fuga eterna. Nada se detém para nós. É o estado que nos é natural e, todavia, o mais contrário à nossa inclinação: queimamos de desejo de achar assento firme e uma última base constante para nela edificar uma torre que se eleve ao infinito; mas, todo o nosso fundamento estala e a terra se abre até aos abismos.

Não busquemos, pois, segurança e firmeza. Nossa razão está sempre caída pela inconstância das aparências; nada pode fixar o finito entre os infinitos que a encerram e a evitam.

Bem compreendido isso, creio que se ficará em repouso, cada qual no estado em que a natureza o colocou.

Esse meio que nos coube em partilha, estando sempre distante dos extremos, que importa que o homem tenha um pouco mais de inteligência das coisas? Se a tem, toma-as um pouco mais de cima.

Não está ele sempre infinitamente afastado da extremidade, e a duração da nossa vida não está também infinitamente afastada da eternidade, para durar dez anos mais?

Diante desses infinitos, todos os finitos são iguais; e não vejo porque assentar a imaginação antes sobre um que sobre o outro. Só a comparação que fazemos de nós com o finito nos causa pena.

Se o homem se esforçasse por ser o primeiro, veria quanto é capaz de passar além. Como admitir que uma parte conheça o todo? Mas, ele aspirará, talvez, à conhecer ao menos as partes com as quais tem proporção. Mas, as partes do mundo têm todas uma tal relação e um tal encadeamento uma com a outra, que julgo impossível conhecer uma sem a outra e sem o todo.

O homem, por exemplo, tem relação com tudo o que conhece. Tem necessidade de lugar para contê-lo, de tempo para durar, de movimento para viver, de elementos para compô-lo, de calor e de alimentos para nutrir-se, de ar para respirar. Vê a luz, sente os corpos; enfim, tudo cai sob a sua aliança.

É preciso, pois, para conhecer o homem, saber porque é que ele tem necessidade de ar para subsistir; e, para conhecer o ar, saber porque tem ele relação com a vida do homem, etc.

A chama não subsiste sem o ar: portanto para conhecer um, é preciso conhecer o outro.

Portanto, todas as coisas, sendo causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediata e imediatamente, e todas entretendo-se por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, não mais que conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.

E o que acaba a nossa impotência de conhecer as coisas é que elas são simples em si mesmas e que nós somos compostos de duas naturezas opostas e de diversos gêneros: de alma e de corpo. Pois é impossível que a parte que raciocina em nós seja outra senão espiritual; e, quando se pretendesse que fôssemos simplesmente corporais, isso nos excluiria mais do conhecimento das coisas, não havendo nada tão inconcebível como dizer que a matéria se conhece a si mesma. Não nos é possível conhecer como ela se conheceria.

E assim, se somos simplesmente materiais, não podemos conhecer absolutamente nada; e, se somos compostos de espírito e de matéria, não podemos conhecer perfeitamente as coisas simples, espirituais e corporais.

Eis porque quase todos os filósofos confundem as idéias das coisas e falam das coisas corporais espiritualmente e das espirituais corporalmente, pois dizem ousadamente que os corpos tendem para baixo, que aspiram ao seu centro, que evitam a sua destruição, que temem o vazio, que têm inclinações, simpatias, antipatias, que são todas as coisas que só pertencem aos espíritos. E, falando dos espíritos consideram-nos como em um lugar e lhes atribuem o movimento de um lugar para outro, que são coisas que só pertencem aos corpos Em lugar de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos das nossas qualidades e impregnamos o nosso ser composto (em) todas as coisas simples que contemplamos.

Quem não acreditaria, ao ver-nos compor todas as coisas de espírito e de corpo, que essa mistura nos seria bem compreensível? E, contudo, a coisa que menos se compreende. O homem é, em si mesmo, o mais prodigioso objeto da natureza; pois não pode conceber o que é corpo, e ainda menos o que é espírito, e menos que nenhuma coisa como um corpo possa ser unida com um espírito. Eis aí o cúmulo de suas dificuldades, e, no entanto, é o próprio ser: Modus quo corporibus adaeret spiritus comprehendi ab hominibus non podest; et hoc tamen homen est(72).

Eis uma parte das causas que tornam o homem tão imbecil para conhecer a natureza. Ela é infinita de duas maneiras, e ele finito e limitado; ela permanece e se mantém perpetuamente em seu ser, e ele passa e é mortal; as coisas em particular se corrompem e se transformam a cada instante, e ele só as vê de passagem; elas têm o seu princípio e o seu fim, e ele não conhece nem um nem outro; elas são simples, e ele é composto de duas naturezas diferentes. E, para consumar a prova da nossa fraqueza, acabarei por esta reflexão sobre o estado da nossa natureza.

II
Dois infinitos. Meio.

Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende nada.

Vinho demais e pouco demais não lho deis, ele não pode achar a verdade; dai-lho demais, também.

A natureza nos colocou tão bem no meio que, se mudarmos um lado da balança, mudamos também o outro. Isso me faz crer que há molas em nossa cabeça, de tal maneira dispostas que quem toca uma toca também a contrária.

Se somos jovens demais, não julgamos bem; velhos demais, também.

Se não meditamos bastante nisso, se não meditamos demais, teimamos e encasquetamos.

Se considerarmos a nossa obra imediatamente depois de a termos executado, ainda somos bastante prevenidos; se muito tempo depois, não a entendemos mais.

Também os quadrados vistos de muito longe, e de muito perto; e só há um ponto indivisível que é o verdadeiro lugar: os outros estão perto demais, longe demais, alto demais ou baixo demais. A perspectiva destina-o à arte da pintura; mas, na verdade e na moral, quem o destinará?

III

Cremos tocar órgãos ordinários quando tocamos o homem: são órgãos, na verdade, mas bizarros, cambiantes, variáveis, cujas cordas não se seguem por graus conjuntos. Os que só sabem tocar os ordinários não produziriam acordes.

IV

Conhecemo-nos tão pouco que muitos pensam morrer quando estão passando bem, e muitos parecem passar bem quando estão próximos da morte, não sentindo a febre próxima ou o abcesso prestes a se formar.

Quando considero a pequena duração de minha vida absorvida na eternidade precedente e seguinte, memoria hospitis unius diei proetereuntis(73), o pequeno espaço que encho, e mesmo que vejo abismado na infinita imensidade dos espaços que ignoro, e que tu ignoras, espanto-me e assombro-me ao ver aqui antes que lá, pois não havia razão por que aqui antes que lá, por que agora antes que então! quem me pôs aqui? Por ordem e conduta de quem este lugar e este tempo me foram destinados?

Porque meu conhecimento é limitado? meu talhe? minha duração em cem anos em lugar de mil? Que razão teve a natureza de ma dar tal, e de escolher este número em lugar de outro na infinidade, dos quais não há mais razão de escolher um do que o outro, nada tentando um mais do que o outro?


 

ARTIGO XVIII

GRANDEZA DO HOMEM

 

I

Censuro, igualmente, não só os que tomam o partido de louvar o homem, como também os que tomam o de o censurar e os que tomam o de o divertir; e só posso aprovar os que procuram gemendo. Os estóicos dizem: Tornai a entrar dentro de vós mesmos; é ai que encontrareis o vosso repouso: e isso não é verdadeiro. Outros dizem: Saí e buscai a felicidade divertindo-vos: e isso não é verdadeiro. Vêm as doenças: a felicidade não está nem em nós, nem fora de nós; está em Deus, tanto fora como dentro de nós.

II

A natureza do homem se considera de duas maneiras: uma segundo seu fim, e, então ele é grande e incomparável; outra, segundo a multidão, como se julga da natureza do cavalo e do cão, pelo hábito de ver neles a corrida e pelo animum arcendi(74); e, então, o homem é abjeto e vil. Eis as duas vias que fazem julgar disso diversamente, e que fazem os filósofos discutirem tanto: pois um nega a suposição do outro; um diz: Ele não nasceu para esse fim; pois todas as suas ações lhe repugnam; outro diz: Ele se afasta do seu fim quando pratica essas ações baixas.

III

Temos uma idéia tão grande da alma do homem que não podemos tolerar que sejamos desprezados e não sejamos estimados por uma ,alma, e toda a felicidade dos homens consiste nessa estima.

A maior baixeza do homem é a procura da glória, mas nisso mesmo está a maior marca de sua excelência; porque, alguma posse que ele tenha sobre a terra, alguma saúde e comodidade essencial que possua, não está satisfeito se não está na estima dos homens. Ele estima tão grande a razão do homem que, alguma vantagem que tenha sobre a terra, se não está colocado vantajosamente também na razão do homem, não está contente. É o mais belo lugar do mundo: nada pode desviá-lo desse desejo; e é a qualidade mais indelével do coração do homem. E os que desprezam mais os homens, e que os igualam aos animais, ainda querem ser por isso admirados e acreditados, e se contradizem a si mesmos por seu próprio sentimento: a sua natureza, que é mais forte que tudo, convencendo-os da grandeza do homem mais fortemente que a razão os convence de sua baixeza.

IV

Mau grado a visão de todas as misérias que nos tocam, que nos pegam pela garganta, temos um instinto que não podemos reprimir, que nos eleva.

V

A grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua miséria. Porque ao que é natureza nos animais nós chamamos miséria no homem, por onde reconhecemos que a natureza sendo hoje semelhante à dos animais, ele caiu de melhor natureza que lhe era própria outrora.

Por que, quem se acha infeliz por não ser rei, senão um rei destronado? Achava-se Paulo Emílio infeliz por não ser cônsul? Ao contrário, toda a gente achava que ele era feliz por o ter sido, porque sua condição não era de o ser sempre. Mas, achava-se Perseu tão infeliz por não ser mais rei, porque sua condição era de o ser sempre, que se achava estranho que ele suportasse a vida.

Quem se acha infeliz por só ter uma boca? e quem não se achará infeliz por só ter um olho? Nunca talvez se tenha alguém lembrado de afligir-se por não ter três olhos; mas, ninguém se consola de não os ter.

VI

Não se é miserável sem sentimento. Uma casa em ruínas não o é. Só o homem é miserável. Ego vir videns(75).

VII

A grandeza do homem é grande na medida em que ele se conhece miserável. Uma árvore não se conhece miserável. É, pois, ser miserável conhecer-se miserável; mas, é ser grande conhecer que se é miserável. Todas essas misérias provam sua grandeza. São misérias de grande senhor, misérias de um rei destronado.

VIII

Concluindo-se a miséria da grandeza, e a grandeza da miséria, uns concluíram a miséria tanto mais quanto por prova tomaram a grandeza; e outros, concluindo a grandeza com tanto mais força, quanto concluíram da própria miséria, tudo o que uns puderem dizer para mostrar a grandeza só serviu de argumento aos outros para concluir a miséria, uma vez que é ser tanto mais miserável quanto de mais alto se caiu: e outros, ao contrário. Foram levados uns sobre os outros por um círculo sem fim: sendo certo que, à medida que os homens têm luz, acham tanto grandeza como miséria no homem. Numa palavra, o homem conhece que é miserável. Ele é, pois, miserável, de vez que o é; mas, é bem grande, de vez que o conhece.

IX

Eu posso conceber um homem sem mãos, pés, cabeça, pois é só a experiência que nos ensina que a cabeça é mais necessária que os pés; mas, não posso conceber o homem sem pensamento; seria uma pedra ou um bruto.

É, pois, o pensamento que faz é ser do homem, sem o que não se pode concebê-lo. Que é que sente prazer em nós? É a mão? o braço? a carne? o sangue? Ver-se-á que é preciso que seja alguma coisa de imaterial.

X

Não é do espaço que devo indagar minha dignidade, mas da regulação do meu pensamento. Não terei mais possuindo terras. Pelo espaço, o universo me compreende e me engole como um ponto; pelo pensamento, eu o compreendo.

XI

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo. (Um vapor, uma gota dágua, é o bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universo tem sobre ele, o universo a ignora.

Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É dai que é preciso nos elevarmos, não do espaço e da duração que não saberíamos encher. Trabalhemos, pois, para bem pensar: eis o princípio da moral.

XII

O homem é visivelmente feito para pensar; é toda a sua dignidade e todo o seu mérito, e todo o seu dever é pensar como é preciso: ora, a ordem do pensamento é começar por si, e por seu autor e seu fim.

Ora, em que pensa o mundo? Nisso, nunca; mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em correr o anel, etc., em construir-se, em fazer-se rei, sem pensar no que é ser rei e ser homem.

XIII

Toda a dignidade do homem está no pensamento.

O pensamento é, pois, uma coisa admirável por natureza. Era preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezível. Mas, tem tais que nada é mais ridículo.

Como é grande por sua natureza! como é baixo por seus defeitos!

XIV

É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais, sem lhe mostrar sua grandeza. É ainda perigoso fazer-lhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo ignorar ambas. Mas, é muito vantajoso representar-lhe ambas.

Não é preciso que o homem creia que é igual aos animais, nem que ignore ambos; mas, que saiba ambos.

XV

Que o homem, agora, se estime a seu valor. Que se ame, pois tem em si uma natureza capaz do bem; mas, que não ame por isso as baixezas que nela existem. Que se despreze, porque essa capacidade é vazia; mas, que não despreze por isso essa capacidade natural. Que se odeie, que só ame: ele tem em si a capacidade de conhecer a verdade e de ser feliz; mas, não a tem de verdade, ou constante, ou satisfatória.

Eu desejaria, pois, levar o homem a querer encontrá-la, a estar pronto e desembaraçado das paixões para segui-la onde a encontrar; sabendo quanto seu conhecimento se obscureceu pelas paixões, eu desejaria que ele odiasse em si a concupiscência que o determina por si mesma, afim de não o cegar ao fazer sua escolha e não o deter quando tiver escolhido.

XVI

À medida que se tem mais luz, mais grandeza e baixeza se descobre no homem.

O comum dos homens. Aqueles que são mais elevados.

Os filósofos: assombram o comum dos homens.

Os cristãos: assombram os filósofos.

Quem se assombrará, pois, ao ver que a religião não faz senão conhecer a fundo o que se reconhece tanto mais quanto mais luz se têm?

XVII

Sinto que posso não ter existido; pois o eu consiste no meu pensamento: portanto, eu, que penso, não teria existido se minha mãe tivesse morrido antes de eu ter sido animado; portanto, não sou um ser necessário. Não sou também eterno, nem infinito; mas, vejo bem que há na natureza um ser necessário, eterno e infinito.


 

ARTIGO XIX

VAIDADE DO HOMEM, IMAGINAÇÂO, AMOR-PRÓPRIO

 

I.
Vaidade

Não nos contentamos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: queremos na idéia dos outros uma vida imaginária, e nos esforçamos por assim parecer. Trabalhamos incessantemente por embelezar e conservar esse ser imaginário, e neglicenciamos o verdadeiro; e, se temos ou a tranqüilidade, ou a generosidade, ou a fidelidade, apressamo-nos em fazê-lo saber, afim de ligar essas virtudes a esse ser de imaginação: nós as destacaríamos antes de nós para juntá-las a ele, e seríamos de bom grado poltrões para adquirir a reputação de ser corajosos. Grande marca do nada do nosso próprio ser, não estar satisfeito com um sem o outro, e renunciar muitas vezes a um pelo outro! Pois, quem não morresse para conservar sua honra, esse seria infame.

A doçura da glória é tão grande que, a alguma ; coisa que se ligue, mesmo à morte, é amada.

II

O orgulho contrapesa todas as misérias. Ou as oculta, ou, se as descobre, glorifica-se de conhecê-las. Ele nos detém de uma posse tão natural no meio das nossas misérias, dos nossos erros, etc., que perdemos mesmo a vida com alegria, desde que se fale disso.

III

A vaidade está de tal forma arraigada no coração do homem, que um soldado, um criado, um cozinheiro, um malandro, se gaba e quer ter seus admiradores; e os filósofos também o querem. É os que escrevem contra (a glória) querem ter escrito bem, e os que o lêem querem ter a glória de o ter lido; e eu, que escrevo isto, talvez tenha essa vontade, e talvez os que me lerem... (também a tenham).

IV

Somos tão presunçosos que desejaríamos ser conhecidos de toda a terra, e até das pessoas que vierem quando nela não estivermos mais; e somos tão vãos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos cercam nos diverte e nós contenta.

V

Curiosidade não é senão vaidade. O mais das vezes, não se quer saber senão para falar disso. De outro modo, não se viajaria por mar para nunca dizer nada a respeito, e só pelo prazer de ver, sem esperança de nunca comunicá-lo.

VI

As cidades por onde se passa, a gente não se importa de ser nelas estimado; mas, quando se deve ai ficar algum tempo, a gente se importa. Quanto tempo é preciso? Um tempo proporcionado à nossa duração vã e mesquinha.

VII

Quem quiser conhecer por completo a vaidade do homem não tem senão que considerar as causas e os efeitos do amor. A causa é um não sei quê (Corneille) e os efeitos são espantosos. Esse não sei quê, tão pouca coisa que não se pode reconhecê-lo, revolve toda a terra, os príncipes, os exércitos, o mundo inteiro.

Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, toda a face da terra teria mudado.

VIII

Que uma coisa tão visível como é a vaidade do mundo seja tão pouco conhecida, que seja uma coisa estranha e surpreendente dizer que é uma tolice procurar as grandezas, isso é admirável!

IX
Amor-próprio (76)

A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amar senão a si, e não considerar senão a si. Mas, que fará ele? Ele não saberia impedir que esse objeto que ama não seja cheio de defeitos e de misérias: quer ser grande e se vê pequeno: quer ser feliz e se vê miserável: quer ser perfeito e se vê cheio de imperfeições: quer ser o objeto do amor e da estima dos homens, e vê que os seus defeitos só merecem a sua aversão e o seu desprezo. Esse embaraço em que se acha produz nele a mais injusta e mais criminosa paixão que é possível imaginar-se; pois concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e o convence dos seus defeitos. Desejaria aniquilá-la e, não podendo destruí-la em si mesma, ele a destrói, tanto quanto pode, no seu conhecimento e no dos outros; isto é, põe todo o seu cuidado em ocultar seus defeitos aos outros e a si mesmo, e não pode tolerar que o façam vê-los, nem que os vejam.

É sem dúvida um mal ser cheio de defeitos; mas, é ainda um mal maior ser cheio deles e não querer reconhecê-los, de vez que isso é ajuntar-lhes ainda o de uma ilusão voluntária. Não queremos que os outros nos enganem; não achamos justo que queiram ser estimados por nós mais do que merecem: não é, pois, justo também que os enganemos e queiramos que nos estimem mais do que o merecemos.

Assim, quando eles só descobrem em nós imperfeições e vícios que na realidade temos, é visível que não nos fazem injustiça, pois não são eles a causa disso; e nos fazem um bem, pois nos ajudam a nos livrarmos de um mal, que é a ignorância dessas imperfeições. Não devemos aborrecer-nos pelo fato de as conhecerem, sendo justos, e nos conhecerem pelo que somos, e nos desprezarem se somos desprezíveis.

Eis os sentimentos que nasceriam de um coração que fosse cheio de eqüidade e de justiça. Que devemos dizer, pois, do nosso, vendo nele uma disposição inteiramente contrária? Pois não é verdadeiro que odiamos a verdade e os que no-la dizem, e gostamos que se enganem em nosso benefício, e queremos ser por eles julgados outros que não somos na realidade?

Eis disso uma prova que me causa horror. A religião católica não obriga a descobrir seus pecados indiferentemente a toda a gente: tolera que se fique oculto a todos os outros homens, mas excetua um só a quem recomenda descobrir o fundo do seu coração e fazer-se ver tal qual se é. Só há esse único homem no mundo que ela nos ordena que desenganemos, e obriga a um segredo inviolável, que faz que esse conhecimento esteja nele como se não o estivesse. Pode-se imaginar nada mais caritativo e mais doce? E, contudo, a corrupção do homem é tal que acha ainda dureza nessa lei, e é uma das principais razões que fazem revoltar contra a Igreja uma grande parte da Europa.

Como o coração do homem é injusto e extravagante, para achar mau que o obriguem a fazer em relação a um homem o que seria justo, de certa maneira, que ele fizesse em relação a todos os homens! Pois é justo que nos enganemos?

Há diferentes graus nessa aversão pela verdade; mas, pode dizer-se que ela existe em todos em algum grau, porque é inseparável do amor-próprio. É essa má delicadeza que obriga os que estão na necessidade de repreender os outros a escolher tantos atalhos e temperamentos para evitar chocá-los. Precisam diminuir os nossos defeitos, fazer menção de desculpá-los, misturar a isso louvores e testemunhos de afeição e estima. Com tudo isso, essa medicina não deixa de ser amarga ao amor-próprio. Ele toma o menos que pode e sempre com desgosto, e muitas vezes mesmo com um secreto despeito contra os que lha apresentam.

Acontece, por isso, que, quando se tem algum interesse em ser amado por nós, evita-se dar-nos um ofício que se sabe nos ser desagradável; tratam-nos como queremos: odiamos a verdade, no-la ocultam; queremos ser adulados, adulamos; gostamos de ser enganados, enganam-nos.

É o que faz que cada grau de boa fortuna que nos eleva no mundo nos afaste mais da verdade, porque se receia mais ferir aqueles cuja afeição é mais útil e cuja aversão mais perigosa. Um príncipe será a fábula de toda a Europa, e somente ele nada saberá. Não me admira: dizer a verdade é útil àquele a quem a dizem, mas desvantajoso aos que a dizem, porque eles se fazem odiar. Ora, os que vivem com os príncipes amam mais os seus interesses do que os do príncipe que servem; e, assim, não se incomodam de lhe proporcionar uma vantagem prejudicando-se a si mesmos.

Essa infelicidade é, sem dúvida, maior e mais ordinária nas maiores fortunas; mas, as menores não estão isentas, porque há sempre algum interesse em se fazer amar pelos homens. Assim, a vida humana não é senão uma ilusão perpétua; não se faz outra coisa senão enganar-se e adular-se mutuamente. Ninguém fala de nós em nossa presença como fala em nossa ausência. A união que existe entre os homens é fundada .exclusivamente sobre esse recíproco ludíbrio; poucas amizades subsistiriam se um soubesse o que seu amigo diz de si quando ele não está, embora falando sinceramente e sem paixão.

O homem não é, pois, senão disfarce, mentira e hipocrisia, quer em si mesmo, quer em relação aos outros. Não quer que se lhe diga a verdade, evita dizê-la aos outros; e todas essas disposições, tão afastadas da justiça e da razão, têm uma raiz natural em seu coração.

X
Imaginação.

É essa parte enganadora no homem, essa senhora de erro e de falsidade, tanto mais velhaca quanto não o é sempre; pois seria regra infalível de verdade, se o fosse infalível de mentira. Mas, sendo o mais das vezes falsa, não dá nenhuma marca de sua qualidade, marcando com o mesmo caráter o verdadeiro e o falso.

Não falo dos loucos, falo dos mais sábios, e é entre eles que a imaginação tem o grande dom de persuadir os homens. A razão tem ocasião de gritar, não pode pôr preço às coisas.

Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em controlá-la e em dominá-la para mostrar quanto pode em todas as coisas, estabeleceu no homem uma segunda natureza. Tem seus felizes, seus infelizes, seus sãos, seus doentes, seus ricos, seus pobres; faz crer, duvidar, negar a razão; suspende os sentidos, fá-los sentir; tem seus loucos e seus sábios: e nada nos despeita mais do que ver que ela enche seus hóspedes de uma satisfação, bem ao contrário, plena e completa, que não a razão. Os hábeis por imaginação se comprazem, bem ao contrário, em si mesmos, de que os prudentes não se possam razoavelmente agradar. Observam as pessoas com império; disputam com ousadia e confiança; os outros, com medo e desconfiança: e essa alegria de rosto lhes dá muitas vezes vantagem na opinião dos ouvintes, de tal maneira os sábios imaginários gozam de favor junto aos juizes do mesmo modo que a natureza! Ela não pode tornar sábios os loucos; mas, os torna felizes em relação à razão, que só pode tornar seus amigos miseráveis, uma cobrindo-os de glória, a outra de vergonha.

Quem dispensa a reputação? quem dá o respeito e a veneração às pessoas, às obras, às leis, aos grandes, senão essa faculdade imaginante? Todas as riquezas da terra são insuficientes sem o seu consentimento.

Não diríeis que esse magistrado, cuja velhice venerável impõe respeito a todo um povo, se governa por uma razão pura e sublime e que julga coisas por sua natureza, sem deter-se nessas vãs circunstâncias que só ferem a imaginação dos fracos? Vêde-o entrar num sermão em que traz um zelo todo devoto, reforçando a solidez da razão pelo ardor da caridade. Ei-lo pronto a ouvir com um respeito exemplar. Que o pregador chegue a aparecer: se a natureza lhe deu uma voz rouquenha e uma fisionomia esquisita, se o seu barbeiro o barbeou mal, se o acaso ainda por cima o lambuzou, por maiores que sejam as verdades que ele anuncia, aposto pela perda da gravidade do nosso senador.

O maior filósofo do mundo, sobre uma tábua mais larga do que é preciso, se há em baixo um precipício, embora a razão o convença de sua segurança, a imaginação prevalecerá. A maioria não poderia sustentar o pensamento sem empalidecer e suar.

Quem não sabe que a visão dos galos, dos ratos, o esmagamento de um carvão, põe a razão fora dos gonzos? O tom de voz impõe aos mais sábios e muda um discurso e um poema de face.

A afeição ou o ódio mudam a justiça de face: e quanto um advogado bem pago adiantadamente acha mais justa a causa que defende! quanto o seu gesto ousado o faz parecer melhor aos juizes enganados por essa aparência! Divertida razão que um vento maneja em todos os sentidos!

Não quero relacionar todos os seus efeitos(77); eu relacionaria quase todas as ações dos homens que quase só se abalam por suas sacudidelas. Pois a razão tem sido obrigada a ceder, e a mais sábia toma por seus princípios os que a imaginação dos homens temerariamente introduziu em cada lugar.

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas túnicas vermelhas, os arminhos com que se enfaixam de gatos pingados, os palácios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário: e, se os médicos não tivessem sotainas e galochas, e os doutores não tivessem bonés quadrados, e túnicas muito amplas de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que não pode resistir a esse monstro tão autêntico. Só os homens de guerra não estão disfarçados assim, porque na realidade a sua parte é mais essencial: estabelecem-se pela força, ao passo que os outros pela careta.

Eis porque os nossos reis não investigaram esses disfarces. Não estão mascarados de hábitos extraordinários para parecer tais; mas, estão acompanhados de guardas, de alabardas: essas carrancas armadas que não têm mãos e força senão para eles, as trombetas e os tambores que marcham na frente, e essas legiões que os cercam, fazem tremer os mais firmes. Não têm o hábito somente, têm a força. Seria preciso ter uma razão bem purificada para observar como outro homem o Grande Senhor cercado, em seu soberbo serralho, de quarenta mil janízaros.

Se eles(78)tivessem a verdadeira justiça, se os médicos tivessem a verdadeira arte de curar, não precisariam fazer bonés quadrados: a majestade dessas ciências seria bastante venerável por si mesma. Mas, só tendo ciências imaginárias, precisam tomar esses vãos instrumentos que ferem a imaginação com que se relacionam; e, por isso, na realidade se fazem respeitar.

Não podemos nem mesmo ver um advogado com sotaina e o boné na cabeça, sem uma opinião favorável de sua suficiência.

A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade, que é tudo no mundo. Eu desejaria de bom grado ver o livro italiano, do qual só conheço o titulo, que vale sozinho muitos livros, Della Opinione, Regina del Mondo(79). Subscrevo-o sem o conhecer, salvo o mal, se nele existe.

Eis, aproximadamente, os efeitos dessa faculdade enganosa que parece nos ser dada de propósito para induzir-nos a um erro necessário. Temos princípios bem diferentes.


 

ARTIGO XX

FRAQUEZA DO HOMEM; INCERTEZA DE SEUS CONHECIMENTOS NATURAIS

 

I

O homem não é senão um sujeito cheio de erro natural e indelével sem a graça. Nada lhe mostra a verdade; tudo o engana. Esses dois princípios de verdade, a razão e os sentidos, além de não terem sinceridade, se enganam reciprocamente. Os sentidos enganam a razão com falsas aparências; e até essa balela que impingem à razão, recebem-na dela por sua vez. Ela se vinga: as paixões da alma perturbam os sentidos e lhes causam impressões falsas: mentem e se enganam mutuamente.

II

O que me assombra mais é ver que nem todos se admiram de sua fraqueza. Age-se seriamente e cada um segue sua condição, não porque seja bom, de fato, segui-la, de vez que a moda é fazê-lo, mas como se cada um soubesse com certeza onde estão a razão e a justiça. Achamo-nos caídos a toda hora, e, por uma agradável humildade, acreditamos que seja sua falta, e não a da arte.(80), que nos gabamos sempre de possuir. Mas, é bom que haja tanta gente assim no mundo, que não seja pirroniana pela glória do pirronismo, afim de mostrar que o homem é bem capaz das mais extravagantes opiniões, desde que é capaz de crer que não está nesta fraqueza natural e inevitável, e que está, ao contrário, na sabedoria natural.

III

As impressões antigas não são as únicas capazes de nos iludir: os encantos da novidade têm o mesmo poder. Dai provêm todas as disputas dos homens, que se recriminam, ou por se deixarem levar por falsas impressões da infância, ou por seguirem temerariamente as novas. Quem tem o justo meio? Que apareça e que o prove. Não há princípio, por natural que possa ser, mesmo desde a infância, que não se faça passar por uma falsa impressão, seja da instrução, seja dos sentidos. Porque, diz-se, acreditastes desde a infância que um cofre estava vazio quando nele não víeis nada, acreditastes o vazio possível; é uma ilusão dos vossos sentidos, fortificada pelo costume, que é preciso que a ciência corrija. E os outros dizem: Porque vos disseram na escola que não há vazio, corromperam o vosso, senso comum, que o compreendia tão nitidamente antes, com essa má impressão que é preciso corrigir recorrendo à vossa primeira natureza. Quem, pois, enganou? os sentidos ou a instrução?

Temos um outro princípio de erro, as moléstias. Elas nos prejudicam o julgamento e os sentidos. E, se as grandes o alteram sensivelmente, não duvido que as pequenas causem impressão em sua proporção.

O nosso próprio interesse é ainda um maravilhoso instrumento para nos furar os olhos agradavelmente. Não é permitido ao mais eqüitativo dos homens do mundo ser juiz em própria causa: conheço, ao contrário, os que, para não caírem nesse amor-próprio, têm sido os mais injustos do mundo. O meio seguro de perder um negócio inteiramente justo era fazer recomendá-lo a eles por seus parentes próximos. A justiça e a verdade são duas pontas tão sutis que os nossos instrumentos são embotados demais para tocar-lhes exatamente. Se o conseguem, amassam a ponta e apoiam tudo ao redor, mais sobre o falso que sobre o verdadeiro.

IV

O espírito desse soberano juiz do mundo não é tão independente que não esteja sujeito a ser perturbado pelo primeiro barulho que se faça em volta dele. Não é preciso o ruído de um canhão para impedir os seus pensamentos: basta o ruído de um cata-vento ou de uma roldana. Não vos espanteis se ele não raciocina bem agora; uma mosca zumbe aos seus ouvidos: é o bastante para torná-lo incapaz de conselho. Se quereis que ele possa achar a verdade, expulsai esse animal que põe sua razão em xeque e perturba essa poderosa inteligência que governa as cidades e os reinos. Que deus divertido! O ridicolissimo herói!

V

Como é difícil propor uma coisa ao julgamento de outrem, sem corromper o seu julgamento pela maneira de lha propor! Se digo: Acho-o belo, acho-o obscuro ou outra coisa semelhante, induzo a imaginação a esse julgamento, ou, ao contrário, irrito-a. É melhor nada dizer; e então ele julga segundo o que é, isto é, conforme as outras circunstâncias, das quais não é autor, se tiverem apresentado. Mas, ao menos, nada se terá introduzido, a não ser que esse silêncio faça também o seu efeito, conforme a vez e a interpretação que lhe aprouver dar-lhe, ou conforme conjeturar movimentos e fisionomia ou tom da voz, conforme seja fisionomista: de tal maneira é difícil não desmontar um julgamento do seu assento natural, ou antes, tão pouco tem ele de firme e estável!

VI

A coisa mais importante na vida é a escolha de uma profissão. É o acaso que dispõe. O costume faz os pedreiros, soldados, empalhadores. É um excelente empalhador, diz-se; e falando dos soldados: São bem loucos, diz-se; e os outros, ao contrário: Não há nada de grande senão a guerra; os outros homens são velhacos. À força de ouvir louvar na infância esses ofícios, e desprezar todos os outros, escolhe-se; com efeito, naturalmente, ama-se a virtude e odeia-se a loucura. Essas palavras nos comovem: só se peca na aplicação; é tão grande a força do costume que, daqueles que a natureza só fez homens, se fazem todas as condições dos homens; com efeito, países inteiros são todos de pedreiros, outros todos de soldados, etc. Sem dúvida que a natureza não é tão uniforme. É, pois, o costume que faz isso, pois constrange a natureza; e, às vezes, também, a natureza o vence e retém o homem no seu instinto, mau grado todo costume, bom ou mau.

VII

Não ficamos nunca no tempo presente. Antecipamos o futuro como demasiado lento para vir, como para apressar o seu curso; recordamos o passado, para pará-lo, como demasiado pronto: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e não pensamos só no que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que não são mais nada e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente de ordinário nos fere. Ocultamo-lo à nossa vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, arrependemo-nos de vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar.

Que cada um examine o seu pensamento, e o achará sempre ocupado com o passado e o futuro. Quase não pensamos no presente: e, quando pensamos, é só para tirar dele a luz para dispor do futuro. O presente nunca é o nosso fim. Assim, não vivemos nunca, mas esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que não o sejamos nunca, (se não aspiramos a outra beatitude além da que se pode gozar nesta vida.)

VIII

A nossa imaginação nos aumenta tanto o tempo presente, à força de sobre o mesmo fazer reflexões contínuas, e diminui de tal forma a eternidade, à falta de refletir sobre ela, que fazemos da eternidade um nada e do nada uma eternidade; e tudo isso tem suas raízes tão vivas em nós que toda a nossa razão não nos pode impedir disso.

IX

Cromwell teria destruído toda a cristandade, a família real se teria perdido e a sua se tornado poderosa como nunca, se não fosse um pequeno grão de areia que se introduzira em sua uretra. E até Roma teria tremido sob o seu domínio, se essa areiazinha, que não valia nada em outro lugar, introduzindo-se ali, não o tivesse morto, derrubando sua família e restabelecendo o rei.

X

A vontade é um dos principais órgãos da crença: não que forme a crença, mas porque as coisas são verdadeiras ou falsas, segundo a face pela qual são observadas. A vontade, que se compraz mais em uma do que na outra, desvia o espírito de considerar as qualidades daquela que ela não gosta de ver; e assim o espírito, marchando juntamente com a vontade, detém-se em observar a face que ama; e, assim, julga pelo que vê.

XI

A imaginação aumenta os pequenos objetos até encher deles a nossa alma por uma estimação fantástica; e, por uma insolência temerária, diminui os grandes até à sua medida, como falando de Deus.

XII

Todas as ocupações dos homens consistem em obter o bem; eles não saberiam ter titulo para mostrar que o. possuem por justiça, pois têm apenas a fantasia dos homens, nem força para possuí-lo com certeza. O mesmo sucede com a ciência; a moléstia no-la tira.

XIII

Se sonhássemos todas as noites a mesma coisa, ela nos afetaria tanto quanto os objetos que vemos todos os dias; e, se um artesão estivesse certo de sonhar, todas as noites, durante doze horas, que é rei, creio que ele seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse, todas as noites, durante doze horas, que era artesão. Se sonhássemos todas as noites que somos perseguidos por inimigos e agitados por fantasmas penosos, e se se passassem todos os dias em diversas ocupações, como quando se faz uma viagem, sofrer-se-ia quase tanto como se isso fosse verdadeiro, e se teria receio de dormir como se tem de despertar quanto se teme entrar (realmente) em tais desgraças. Com efeito, esses sonhos causariam quase os mesmos males que a realidade. Mas, porque os sonhos são todos diferentes e se diversificam, o que se vê neles afeta bem menos que o que se vê em vigília, por causa da continuidade, que não é, contudo, tão contínua e igual que não mude também; mas, menos bruscamente, se não raramente, como quando se viaja; e então se. diz: Parece-me que sonho; pois a vida é um sonho um pouco menos inconstante.

XIV

Supomos que todos os homens concebem e sentem da mesma maneira: mas, nós o supomos bem gratuitamente, pois não temos disso nenhuma prova. Bem vejo que se aplicam as mesmas palavras nas mesmas ocasiões e que, todas as vezes que dois homens vêem um corpo mudar de lugar, exprimem ambos a visão desse mesmo objeto pelas mesmas palavras, dizendo cada qual que ele se moveu; e dessa conformidade de aplicação se tira uma poderosa conjectura de uma conformidade de idéias: mas, isso não é absolutamente convincente da última convicção, embora seja bem o caso de apostar pela afirmativa, uma vez que se sabe que se tiram muitas vezes as mesmas conseqüências de Suposições diferentes.

XV

Quando vemos um efeito acontecer sempre da mesma forma, concluímos daí uma necessidade natural como se amanhã fosse hoje, etc.; mas, muitas vezes, a natureza nos desmente e não se sujeita às suas próprias regras.

As ciências têm duas extremidades que se tocam: a primeira é a pura ignorância natural em que se acham todos os homens ao nascer; a outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo o que os homens podem saber, acham que não sabem nada e se tornam a encontrar nessa mesma ignorância de onde partiram. Mas, é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles dentre os que saíram da ignorância natural e não puderam chegar à outra têm alguma tintura dessa ciência suficiente, e fazem-se de entendidos. Esses perturbam o mundo e julgam mais mal de tudo que os outros. O povo e os hábeis compõem, de ordinário, o trem do mundo: os outros o desprezam e são desprezados.


 

ARTIGO XXI

MISÉRIA DO HOMEM

 

Nada é mais capaz de nos fazer entrar no conhecimento da miséria dos homens do que considerar a causa verdadeira da agitação perpétua na qual passam a vida.

A alma é lançada no corpo para ai fazer uma estadia de pouca duração. Sabe que é apenas uma passagem a uma viagem eterna e que só dispõe do pouco tempo que dura a vida para se preparar. Às necessidades da natureza lhe arrebatam uma parte muito grande dela. Só lhe resta muito pouco de que possa dispor. Mas, esse pouco que lhe resta a incomoda tanto e a embaraça de modo tão estranho que ela só pensa em perdê-la. É, para ela, uma pena insuportável ser obrigada a viver consigo e a pensar em si. Assim, todo o seu cuidado consiste em se esquecer de si mesma e deixar correr esse tempo tão curto e tão precioso sem reflexão, ocupando-se com coisas que a impedem de pensar nisso.

Eis a origem de todas as ocupações tumultuárias dos homens e de tudo o que se chama de divertimento ou passatempo, nos quais, de fato, não se tem por fim senão deixar neles passar o tempo sem o sentir, ou antes, sem se sentir a si mesmo, e evitar, perdendo essa parte da vida, a amargura e o desgosto interior que acompanhariam necessariamente a atenção que se prestasse a si mesmo durante esse tempo. A alma não acha nada em si que a contente; não vê nada que não a aflija quando medita. É o que a constrange a transbordar-se e a procurar, na aplicação às coisas exteriores, perder a lembrança do seu estado verdadeiro. Sua alegria consiste nesse esquecimento, e basta, para torná-la miserável, obrigá-la a se ver e a estar consigo.

I

Encarregam os homens, desde a infância, do cuidado de sua honra, do seu bem, e ainda do bem é da honra dos seus amigos Atormentam-nos com negócios, com a aprendizagem das línguas e das ciências, e fazem-nos entender que não poderiam ser felizes sem a sua saúde, a sua honra, a sua fortuna e a dos seus amigos estarem em bom estado, e que uma só coisa que falte os tornaria infelizes. Assim, dão-lhes cargos e negócios que os fazem labutar desde o despontar do dia. Eis, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como! que se poderia fazer? Bastaria tirar-lhes todas as suas preocupações: e, então, eles se veriam, pensariam no que são, de onde vêm, para onde vão; e, assim, não se pode ocupá-los e desviá-los .tanto; e eis porque, depois de lhes terem preparado tantos negócios, se eles têm algum tempo de folga, aconselham-nos a empregá-lo exclusivamente em diversões, passatempos e ocupações.

II

Quando me pus, algumas vezes, a considerar as diversas agitações dos homens e os perigos e as penas a que se expõem, na corte, na guerra, de onde nascem tantas querelas, paixões, empresas ousadas e muitas vezes más, eu disse muitas vezes que toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto. Um homem que tem bastante fortuna para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia para ir à praia, ou à sede de um lugar. Só se comprará tão caro um posto no exército porque se achará insuportável permanecer na cidade; e só se procuram a conversação e os divertimentos dos jogos porque não se pode ficar em casa com prazer.

Mas, quando observei de mais perto e, depois de ter achado a causa de todas as nossas infelicidades, quis descobrir a razão disso, achei que há uma bem efetiva, que consiste na infelicidade natural da nossa condição fraca e mortal e tão miserável que nada nos pode consolar, quando pensamos nisso de perto.

Qualquer condição que se imagine, quando se comparam todos os bens que podem pertencer-nos, a realeza é o mais belo posto do mundo, e, no entanto, imagine-se um rei acompanhado de todas as satisfações que podem tocá-lo, se ele está sem divertimento, deixem-no considerar e fazer reflexões sobre o que é, e essa felicidade languecente não o sustentará; ele cairá por necessidade nas vistas que o ameaçam das revoltas que podem irromper e enfim da morte e das doenças que são inevitáveis; de maneira que, se está sem o que se chama divertimento, ei-lo infeliz e mais infeliz que o menor dos seus súditos que brinca e se diverte.

A dignidade real não é bastante grande por si mesma para tornar feliz aquele que a possui pela simples visão do que é? Será preciso ainda diverti-lo desse pensamento, como as pessoas comuns? Bem vejo que é tornar um homem feliz desviá-lo da visão de suas misérias domésticas, para encher todo o seu pensamento do cuidado de dançar bem. Mas, será assim também com um rei, e será ele mais feliz ligando-se a esses vãos divertimentos do que à visão de sua grandeza?

Que objeto mais satisfatório se poderia dar ao seu espírito? Não seria, então, prejudicar-lhe a alegria ocupar sua alma com o pensar em ajustar os passos à cadência de uma ária, ou em colocar destramente uma bola, em lugar de deixá-lo gozar em repouso da contemplação da glória majestosa que o cerca? Tire-se a prova disso; deixe-se um rei sozinho, sem nenhuma satisfação dos sentidos; sem nenhum cuidado no espírito, sem companhia, pensar em si inteiramente à vontade; e se verá que um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias. Tanto se evita isso cuidadosamente que nunca deixa de haver junto da pessoa do rei um grande número de pessoas que velam por fazer suceder o divertimento aos seus negócios, e que observam todo o tempo do seu lazer para lhe fornecer prazeres e jogos de sorte que não haja vazio; isto é, fica cercado de pessoas que têm um cuidado maravilhoso de zelar para que o rei não fique só e em estado de pensar em si, sabendo bem que ele será miserável, por mais rei que seja, se o pensar.

Também a principal coisa que sustenta os homens nos grandes cargos, aliás tão penosos, é que estão sem cessar desviados de pensar em si.

Acautelai-vos. Que outra coisa é ser superintendente, chanceler, primeiro presidente, senão estar numa condição em que se tem, desde manhã, um grande número de pessoas que vêm de todos os lados para não lhes deixar uma hora no dia em que possam pensar em si mesmos? E, quando estão na desgraça e os mandam para as suas casas de campo, nas quais não lhes faltam nem bens, nem criados para assisti-los nas suas necessidades, não deixam eles de ser miseráveis, porque ninguém os impede mais de pensar em si.

Daí resulta que o jogo e a conversação das mulheres, a guerra, os grandes empregos sejam tão procurados. Não é que haja, com efeito, felicidade nisso, nem que se imagine que a verdadeira beatitude esteja no dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que se persegue. Isso não seria desejado se fosse oferecido. Não é esse hábito indolente e pacato, que nos deixa pensar em nossa feliz condição, que se procura, nem os perigos da guerra, nem o trabalho dos empregos, mas a azáfama que nos desvia de pensar nisso e nos diverte.

Daí resulta que os homens gostem tanto do barulho e do reboliço; daí resulta que a prisão seja um suplício tão horrível; daí resulta que o prazer da solidão seja uma coisa incompreensível E, finalmente, que o maior motivo de felicidade da condição dos reis consista em procurar diverti-los sem cessar e proporcionar-lhes todas as variedades de prazeres.

Eis tudo o que os homens puderam inventar para tornarem-se felizes. E os que assim se fazem de filósofos, e que acreditam que o mundo seja bem pouco razoável para passar o dia inteiro a correr atrás de uma lebre que não desejassem comprar, não conhecem a nossa natureza. Essa lebre não nos preservaria da visão da morte e das misérias que nos desviam dela, mas a caça nos preserva. E assim, quando acusados de que o que procuram com tanto ardor não poderia satisfazê-los, se respondessem, como deveriam fazê-lo se meditassem bem, que procuram tão somente uma ocupação violenta e impetuosa que os desvie de pensar em si, e que é por isso que se propõem um objeto atraente que os encante e os atraia com ardor, deixariam seus adversários sem resposta. Mas, não respondem isso, porque não se conhecem a si mesmos; não sabem que é somente a caça e não a presa o que procuram.

Imaginam que, se tivessem obtido esse cargo, repousariam em seguida com prazer, e não sentem a natureza insaciável de sua cupidez. Julgam procurar sinceramente o repouso, e só procuram, na realidade, a agitação.

Têm um instinto secreto que os leva á procurar a diversão e a ocupação fora, que vem do ressentimento de suas misérias continuas; e têm outro instinto secreto que resta da grandeza da nossa primeira natureza, que os faz conhecer que de fato a felicidade consiste apenas no repouso e não no tumulto; e, desses dois instintos contrários, forma-se neles um projeto confuso, que se oculta à sua vista no fundo de sua alma, que os leva a tender ao repouso pela agitação e a imaginar sempre que a satisfação que não têm lhes chegará, se, vencendo algumas dificuldades que encaram, puderem abrir dessa forma a porta ao repouso.

Assim se escoa toda a vida Procura-se o repouso combatendo alguns obstáculos; e, vencidos estes, o repouso se torna insuportável. Com efeito, ou se pensa nas misérias que se têm, ou nas que nos ameaçam. E, mesmo quando nos víssemos bastante ao abrigo em todos os sentidos, o enjôo, por sua autoridade privada, não deixaria de surgir no fundo do coração onde tem raízes naturais, e de encher o espírito com seu veneno.

O conselho que se dava a Pirro, para tomar o repouso que ele ia procurar com tantas fadigas, encontrava bastantes dificuldades.

Assim, o homem é tão infeliz que se aborreceria mesmo sem nenhuma causa de aborrecimento, pelo próprio estado de sua compleição; e é tão vão que, sendo cheio de mil causas essenciais de aborrecimento, a menor coisa como um bilhar e uma bola que ele joga bastam para diverti-lo.

Mas, direis, que objeto tem ele em tudo isso? O de se gabar amanhã, entre os amigos, de ter jogado melhor do que o outro. Assim, os outros suam no seu gabinete para mostrar aos estudiosos que resolveram uma questão de álgebra que não se teria podido solucionar até então; e tantos outros se expõem aos últimos perigos para se gabarem em seguida de uma praça que tomaram, tão estupidamente em minha opinião. E, enfim, outros se matam para notar todas essas coisas, não para se tornarem assim mais sábios, mas apenas para mostrar que as sabem; e esses são os mais tolos do bando, pois o são com conhecimento, ao passo que não se pode pensar que outros o seriam mais se tivessem esse conhecimento.

Tal homem passa sua vida sem aborrecimento, jogando todos os dias pouca coisa. Dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que pode ganhar diariamente no cargo que não joga, e o tomais infeliz. Dir-se-á, talvez, que é porque procura divertimento no jogo, e não no ganho. Fazei-o, então, jogar por nada, e não se entusiasmará e se aborrecerá. Não é, pois, só o divertimento o que ele procura: um divertimento languecente e sem paixão o aborrecerá. É preciso que se entusiasme e que se iluda, imaginando que seria feliz ganhando o que não desejaria que se lhe desse sob a condição de não jogar, afim de formar para si um motivo de paixão e excitar sobre isso o seu desejo, a sua cólera, o seu zelo pelo objeto que formou para si, como as crianças que têm medo do rosto que lambuzaram.

Como se explica que esse homem que perdeu há poucos meses o filho único e que, atormentado por processos e querelas, estava hoje de manhã tão perturbado, já não pense nisso agora? Não vos admireis: ele está preocupado em ver por onde passará aquele javali que os cães perseguem com tanto ardor há seis horas. Não é preciso mais: o homem, por mais triste que esteja, desde que se possa conseguir que entre em algum divertimento, ei-lo feliz durante esse tempo.

E o homem, por mais feliz que seja, se não está se divertindo e ocupado com alguma paixão ou algum divertimento que impeça que o aborrecimento se espalhe, ficará logo aflito e infeliz. Sem divertimento, não há alegria; com o divertimento, não há tristeza. E também o que forma a felicidade das pessoas de grande condição é que têm uma porção de pessoas que as divertem e o poder de manter-se nesse estado.

III

A morte é mais fácil de suportar sem pensar-se nela do que o pensamento da morte sem perigo.

IV

Se o homem fosse feliz, ele o seria tanto mais quanto menos se divertisse, como os santos e Deus.

Sim; mas, não é ser feliz ser reconfortado pelo divertimento? Não, porque ele vem de longe e de fora, e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.

V

A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e, no entanto, é a maior das nossas misérias.

Com efeito, é isso que nos impede principalmente de pensar em nós. Sem isso, ficaríamos desgostosos e esse desgosto nos levaria a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas, o divertimento nos alegra e nos faz chegar insensivelmente à morte.

VI

Condição do homem: inconstância, desgosto, inquietude.

VII

Quem não vê a vaidade do mundo é bem vão em si mesmo. Quem não a vê também, exceto jovens que estão todos no barulho, no divertimento e no pensamento do futuro? Mas, tirai o seu divertimento, e os vereis consumir-se de desgosto; sentem então o seu nada sem conhecê-lo: com efeito, é mesmo ser infeliz estar numa tristeza insuportável logo que se fica reduzido a se considerar e a não ter diversão para isso.

VIII

Se a nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos deixar de pensar para nos tornarmos felizes.

Pouca coisa nos consola, porque pouca coisa nos aflige.

IX

Nada é tão insuportável ao homem como estar em pleno repouso, sem paixão, sem ocupação, sem diversão, sem aplicação. Ele sente, então, o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Incontinente, sairá do fundo de sua alma o aborrecimento, a melancolia, a tristeza, a aflição, a raiva, o desespero.

X

Quando um soldado se queixa do trabalho que tem, ou um lavrador, etc., deixemo-los sem fazer nada.

XI
Filósofos

Bela coisa gritar a um homem que não se conhece a si mesmo que se dirija a Deus por si mesmo! E bela coisa dizê-lo a um homem que se conhece a si mesmo!

XII
Procura do verdadeiro bem

O comum dos homens põe o bem na fortuna e nos bens de fora, ou ao menos no divertimento. Os filósofos mostraram a vaidade de tudo isso, e o puseram onde puderam.

Para os filósofos, 280 soberanos bens.

Disputa do soberano bem. Ut sis contentus temetipso, it ex te nascentibus bonis(81). Há contradição; pois eles (os filósofos, os estóicos) aconselham, enfim, a se matar. Oh! que vida feliz essa da qual a gente se desembaraça como da peste!

XIII

Como a natureza nos torne sempre infelizes em todos os estados, os nossos desejos nos figuram um estado feliz, porque juntam ao estado em que estamos os prazeres do estado em que não estamos; e, quando chegássemos a esses prazeres, não seríamos felizes por isso, porque teríamos outros desejos conformes a esse novo estado.

Que cada qual examine os seus pensamentos, e os achará sempre ocupados com o passado e com o futuro. Quase não pensamos no presente; e quando pensamos, é apenas para tomar dele a luz para dispor do futuro. O presente não é nunca o nosso fim; o passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é o nosso fim. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; é, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.

XIV

Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, acharam de bom aviso, para se tornarem felizes, não pensar nisso; eis tudo o que puderam inventar para se consolarem de tantos males. Mas, é uma consolação bem miserável, de vez que acaba, não por curar o mal, mas por ocultá-lo simplesmente por pouco tempo e, ocultando-o, fazer que não se pense em curá-lo de verdade. Assim, por um estranho desequilíbrio da natureza do homem, resulta que o desgosto, que é o seu mal mais sensível, seja até certo ponto ó seu maior bem, porque pode contribuir mais que todas as coisas para fazê-lo procurar a sua verdadeira cura; e que o divertimento, que ele encara como o seu maior bem, é na realidade o seu maior mal, porque impede, mais que todas as coisas, que ele procure o remédio para os seus males: e ambos são uma prova admirável, da miséria e da corrupção do homem e, ao mesmo tempo, da sua grandeza, de vez que o homem se aborrece de tudo e só procura essa multidão de ocupações porque tem a idéia da felicidade que perdeu e que, não a achando em si, é por ele procurada inutilmente nas coisas exteriores, sem poder contentar-se nunca, porque ela não está nem em nós nem nas criaturas, mas somente em Deus.

XV

Salomão e Jó conheceram melhor e falaram melhor da miséria do homem: um, o mais feliz; e o outro, o mais infeliz; um, conhecendo a vaidade dos prazeres por experiência; o outro, a realidade dos males.


 

ARTIGO XXII

CONTRARIEDADES ESPANTOSAS QUE SE ENCONTRAM NA NATUREZA DO HOMEM EM RELAÇÃO À VERDADE, À FELICIDADE E A VÁRIAS OUTRAS COISAS

 

I

Nada é mais estranho na natureza do homem do que as, contrariedades que nela se descobrem em relação a todas as coisas. Feito para conhecer a verdade, deseja-a ardentemente, procura-a, e, no entanto, quando trata de apreendê-la, deslumbra-se e se confunde de tal sorte que dá motivo para que lhe disputem a posse dela. E o que faz nascer as duas seitas de pirronianos e de dogmatistas, dos quais uns quiseram roubar ao homem todo conhecimento da verdade, e os outros tratam de assegurar-lho; mas, cada um com razões tão pouco verossímeis que elas aumentam a confusão e o embaraço do homem quando este não tem outra luz além da que encontra em sua natureza.

As principais forças dos pirronianos, e deixo as menores, são que não temos nenhuma certeza da verdade desses princípios, fora da fé e da revelação, senão no que sentimos naturalmente em nós. Ora, esse sentimento natural não é uma prova convincente de sua verdade, de vez que, não tendo certeza, fora da fé, se o homem foi criado por um Deus bom, por um demônio mau, ou por acaso, ele está em dúvida se, esses princípios nos são dados ou verdadeiros, ou falsos, ou incertos, segundo a nossa origem, Além disso, ninguém tem certeza fora da fé, se vela ou se dorme, visto como, durante o sono, julgamos velar tão firmemente como fingimos; julgamos ver os espaços, as figuras, os movimentos; sentimos correr o tempo, medimo-lo, e, enfim, agimos da mesma forma que despertados. De sorte que, passando a metade da vida em sono, por nossa própria confissão ou porque assim nos pareça, não temos nenhuma idéia do verdadeiro, todos os nossos sentimentos sendo, então ilusões. Quem sabe se essa outra metade da vida em que pensamos velar não é um outro sono um pouco diferente do primeiro, do qual despertamos quando pensamos dormir?

Eis as principais forças por toda parte.

Deixo as menores, como os discursos que fazem os pirronianos contra as impressões do hábito, da educação, dos costumes, dos países, e as outras coisas semelhantes que, embora arrastem a maior parte dos homens comuns que só dogmatizam sobre esses vãos fundamentos, são derrubadas pelo menor sopro dos pirronianos. Basta ver seus livros, se não estivermos bem persuadidos disso: bem depressa o ficaremos e talvez demais.

Detenho-me no único forte dos dogmatistas, que é que, falando de boa fé e sinceramente, não se pode duvidar dos princípios naturais.

É contra isso que os pirronianos opõem, numa palavra, a incerteza da nossa origem, que encerra a da nossa natureza; é a isso que os dogmatistas ainda estão para responder desde que o mundo é mundo.

Eis, aberta entre os homens, a guerra em que é preciso que cada um tome partido e se enfileire, necessariamentente, ou no dogmatismo ou no pirronismo; pois quem pensar em ficar neutro será pirroniano por excelência. Essa neutralidade é a essência da cabala: quem não é contra eles é excelentemente por eles. Não são nem por si mesmos são neutros, indiferentes, superiores a tudo, sem excetuar-se a si mesmos.

Que fará, pois, o homem nesse estado? Duvidará de tudo? duvidará que desperta, que o beliscam, que o queimam? Duvidará que duvida? duvidará que existe? Não se pode chegar a uma conclusão; e tenho como um fato que nunca houve pirroniano efetivo perfeito. A natureza sustenta a razão impotente e impede que ela extravague até a esse ponto.

Dirá ele, então, ao contrário, que possui certamente a verdade, ele que, por pouco que o empurremos, não pode mostrar disso nenhum título, sendo forçado a desistir?

Que quimera é, então, o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que motivo de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra, depositário do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erro, glória e escória do universo.

Quem desfará essa confusão? A natureza confunde os pirronianos, e a razão confunde os dogmatistas. Que vos tomareis, pois, oh homem, que procurais qual é a vossa verdadeira condição por vossa razão natural? Não podeis evitar uma dessas seitas, nem subsistir em nenhuma.

Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois em vós mesmo. Humilhai-vos, razão impotente; calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem passa infinitamente o homem, e ouvi do vosso senhor a vossa condição verdadeira que ignorais. Escutai Deus.

Pois enfim, se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com segurança, em sua inocência, tanto da verdade como da felicidade. E se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não teria nenhuma idéia nem da verdade nem da beatitude. Mas, infelizes que somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, não temos uma idéia da felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade, e só possuímos a mentira: incapazes de ignorar em absoluto e de saber com certeza, de tal maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente caímos!

Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. Os pirronianos, que só têm isso trabalham inutilmente. Sabemos que não sonhamos, por maior que seja a impotência em que estamos de prová-lo pela razão; essa impotência não conclui outra coisa senão a fraqueza da nossa razão, mas não a incerteza de todos os nossos conhecimentos, como eles o pretendem. Pois o conhecimento dos primeiros princípios, como o de que há espaço, tempo, movimento, números, é tão firme como nenhum dos que nos dão os nossos raciocínios. E é sobre esses conhecimentos do coração e do instinto que é preciso que a razão se apoie e funde todo o seu discurso. O coração sente que há três dimensões no espaço e que os números são infinitos; e a razão demonstra, em seguida, que não há dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por diferentes vias. E é tão ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus primeiros princípios, para querer consentir neles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para querer recebê-los.

Essa impotência deve, pois, servir apenas para humilhar a razão que quisesse julgar tudo; mas, não para combater a nossa certeza, como se só houvesse a razão capaz de nos instruir. Prouvesse a Deus que, ao contrário, nunca tivéssemos necessidade dela e conhecêssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! Mas, a natureza nos recusou esse bem, e só nos deu, ao contrário, muito poucos conhecimentos dessa espécie; todos os outros só podem ser adquiridos pelo raciocínio.

(Eis o que é o homem para o homem em relação à verdade. Consideremo-lo, agora, em relação com a felicidade que procura com tanto ardor em todas as suas ações.)

Todos os homens procuram ser felizes: não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que faz que uns vão para a guerra e outros não vão é esse mesmo desejo que está em ambos, acompanhado de diferentes opiniões. A vontade não dá nunca o menor passo senão para esse objeto. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão enforcar-se. E, no entanto, depois de tão grande número de anos, nunca ninguém, sem a fé, chegou a esse ponto a que todos visam continuamente Todos se lamentam: príncipes, súditos; nobres, plebeus; velhos, jovens; fortes, fracos; sábios, ignorantes; sãos, doentes; de todos os países, de todos os tempos, de todas as idades e de todas as condições.

Uma prova tão longa, tão contínua e tão uniforme deveria convencer-nos de nossa impotência para alcançar o bem por nossos esforços; mas, o exemplo não nos instrui. Nunca é tão perfeitamente semelhante que não haja uma delicada diferença; e é por isso que esperamos que a nossa esperança não seja frustrada nessa ocasião como na outra. E assim, como o presente nunca nos satisfaz, a experiência nos engana e, de infelicidade em infelicidade, nos conduz até à morte, que é o seu cúmulo eterno.

Que nos gritam, pois, essa avidez e essa impotência, senão que houve, outrora, no homem, uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam, agora, a marca e o traço todo vazio, que ele tenta inutilmente encher de tudo o que o rodeia, procurando das coisas ausentes o socorro que não obtém das presentes, mas que são todas incapazes disso, porque esse abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto é, o próprio Deus.

Somente Deus é o seu verdadeiro bem, e, desde que o homem o abandona, é estranho que não haja nada na natureza capaz de lhe tomar o lugar: astros céu, terra, elemento, plantas, couves, alhos, animais, insetos, veados, serpentes, febre, peste, guerra, penúria, vícios, adultério, incesto. Quando perde o verdadeiro bem, tudo ao homem, indiferentemente, parece poder substitui-lo, até a sua própria destruição, embora tão contrária a Deus, à razão e à natureza inteira.

Uns o procuram na autoridade, outros nas curiosidades e nas ciências, outros nas volúpias. Outros que, na realidade, mais se aproximaram dele consideram que é necessário que o bem universal, que todos os homens desejam, não esteja em nenhuma das coisas particulares que só podem ser possuídas por um só e que, sendo repartidas, afligem mais o seu possuidor pela falta da parte que não tem do que o contentam pelo gozo da que lhe cabe. Compreenderam que o verdadeiro bem devia ser tal que todos pudessem possuí-lo ao mesmo tempo, sem diminuição e sem inveja, e que ninguém pudesse perdê-lo contra a vontade.. (Compreenderam-no, mas não puderam achá-lo; e, em lugar de um bem sólido e efetivo, abraçaram apenas a imagem vazia de uma virtude fantástica.)

O nosso instinto nos faz sentir que é preciso procurar a nossa felicidade fora de nós. As nossas paixões nos levam para fora, mesmo quando os objetos não se oferecessem para excitá-las. Os objetos de fora nos tentam por si mesmos e nos chamam, mesmo quando não pensamos neles. E, assim, os filósofos disseram em vão: Tornai a entrar em vós mesmos, e achareis assim o vosso bem; mas, não se acredita neles, e os que acreditam são os mais vazios e os mais tolos. (Pois que há de mais ridículo e de mais vão do que o que propõem os estóicos, e de mais falso do que todos os seus raciocínios? Concluem eles que se possa sempre) que se pode às vezes; e que, como o desejo da glória faz com que façam alguma coisa aqueles que ele possui, os outros também o poderão. São movimentos febris que a saúde não pode imitar.

A guerra interior da razão contra as paixões fez com que os que quiseram ter a paz se dividissem em duas seitas: uns quiseram renunciar às paixões e tornar-se deuses; outros quiseram renunciar à razão e tornar-se brutos. Mas, não o conseguiram nem uns nem outros; e a razão, ficando sempre, acusa a baixeza e a injustiça das paixões e perturba o repouso dos que a elas se abandonam; e as paixões estão sempre vivas nos que querem renunciar a elas.

(Eis o que pode o homem por si mesmo e por seus próprios esforços em relação ao verdadeiro e ao bem.)

Temos uma impotência de provar, invencível a todo o dogmatismo; temos uma idéia da verdade, invencível a todo o pirronismo. Desejamos a verdade, e só descobrimos em nós incerteza. Procuramos a felicidade, e só achamos miséria e morte, somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes tanto de certeza como de felicidade. Esse desejo nos foi deixado, tanto para nos punir como para nos fazer sentir de onde caímos.

II

Se o homem não foi feito por Deus, porque só é feliz com Deus? Se o homem foi feito por Deus, porque é tão contrário a Deus?

III

O homem não sabe em que ordem colocar-se. Está visivelmente perdido e caiu do seu verdadeiro lugar sem poder tornar a encontrá-lo, procurando-o por toda parte, com inquietude e sem êxito, em trevas impenetráveis.

IV

Imagine-se uma porção de homens na cadeia todos condenados à morte: uns são diariamente degolados à vista dos outros, enquanto os que ficam vêem a sua própria condição na dos seus semelhantes e, entreolhando-se com dor e sem esperança, esperam a sua vez. É a imagem da condição dos homens.


 

ARTIGO XXIII

RAZÕES DE ALGUMAS OPINIÕES DO POVO

 

I

Passagem continua do pró para o contra.

Mostramos que o homem é vão pela estima que faz das coisas que não são essenciais. E todas essas opiniões estão destruídas. Mostramos, em seguida, que todas essas opiniões são muito sãs e que, assim, sendo todas essas vaidades muito bem fundadas, o povo não é tão vão quanto se diz. E, assim, destruímos a opinião que destruía a do povo.

Mas, é preciso destruir, agora, essa última proposição, e mostrar que continua sempre a ser verdadeiro que o povo é vão, embora suas opiniões sejam sãs, porque não sente a verdade delas onde ela existe e porque, pondo-a onde não existe, as suas opiniões são sempre muito falsas e muito malsãs.

II

É verdadeiro dizer que toda a gente vive na ilusão: pois que, embora as opiniões do povo sejam sãs, não o são em sua cabeça, pois ele pensa que a verdade existe onde não existe. A verdade está nas suas opiniões, mas não ao ponto em que eles imaginam.

III

O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hábeis as honram, não pelo pensamento do povo, mas por um pensamento mais elevado. Os devotos, que têm mais zelo do que ciência, as desprezam, mau grado essa consideração que as faz honrar entre os hábeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes dá. Mas, os cristãos perfeitos as honram por uma outra luz superior. Assim vão as opiniões sucedendo-se do pró ao contra, segundo se tem luz.

IV

O maior dos males são as guerras civis. Elas são certas se se quer recompensar o mérito, pois todos diriam que merecem. O mal que temer de um tolo que sucede por direito de nascimento não é nem tão grande nem tão certo.

V

Porque se segue a pluralidade? E porque eles têm mais razão? Não, mas mais força. Porque se seguem as antigas leia e antigas opiniões? E porque são mais sãs? Não, mas porque são únicas e nos tiram a raiz da diversidade.

VI

O império fundado sobre a opinião e a imaginação reina algum tempo, e esse império é doce e voluntário: o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.

VII

Como se faz bem em distinguir os homens pelo exterior, e não pelas qualidades interiores Quem passará de nós dois? Quem cederá o lugar ao outro? O menos hábil? Mas, eu sou tão hábil quanto ele. Será preciso nos batermos por isso. Há quatro lacaios, e eu só tenho um: isso é visível; basta contar; sou eu a ceder, e sou um tolo se contesto. Eis-nos em paz por esse meio: o que é o maior dos bens.

VIII

O costume de ver o rei acompanhado de guardas, de tambores, de oficiais, e de todas as coisas que levam o mundo ao respeito e ao terror, faz com que o seu rosto, quando ele está às vezes sozinho e sem esses acompanhamentos, imprima em seus súditos o respeito e o terror, porque não se separa no pensamento a sua pessoa do seu séquito, que se vê de ordinário juntamente com ele. E o mundo, que não sabe que esse efeito tem sua origem nesse costume, acredita que isso provenha de uma força natural; daí estas palavras: O caráter da Divindade está impresso no seu rosto, etc.

A potência dos reis é fundada sobre a razão e sobre a loucura do povo, e bem mais sobre a loucura. A maior e mais importante coisa do mundo tem por fundamento a fraqueza: e esse fundamento é admiravelmente seguro; pois não há nada mais seguro do que isso, que o povo será fraco; o que é fundado sobre a sã razão é bem mal fundado, como a estima da sabedoria.

IX

As coisas do mundo mais desarrazoadas se tornam as mais razoáveis por causa do desregramento dos homens. Que há de menos razoável do que escolher para governar um Estado o primeiro filho de uma rainha? Não se escolhe, para governar um barco, aquele dentre os viajantes que tem melhor casa: seria uma lei ridícula e injusta. Mas, porque o são e o serão sempre, ela se torna razoável e justa; pois, quem se escolherá? O mais virtuoso e o mais hábil? Eis-nos incontinente embaraçados: cada um pretende ser esse mais virtuoso e esse mais hábil. Liguemos, pois, essa qualidade a alguma coisa de incontestável. É o filho mais velho do rei. Isso é claro, não há discussão. A razão não pode fazer melhor, pois a guerra civil é o maior dos males.

X

Santo Agostinho viu que se trabalha pelo incerto, no mar, na batalha, etc.; não viu a regra dos partidos que demonstra que se deve fazê-lo. Montaigne viu que nos ofendemos com um espírito claudicante, e que o costume pode tudo; mas, não viu a razão desse efeito. Todas essas pessoas viram os efeitos, mas não viram as causas. São, em relação, aos que descobriram as causas, como os que só tiveram olhos em relação aos que têm o espírito. Pois os efeitos são como sensíveis, e as causas são visíveis somente ao espírito. E, embora esses efeitos se vejam pelo espírito, esse espírito é, em relação ao espírito que vê as causas, como os sentidos corporais em relação ao espírito.

XI

Como se explica que um coxo não nos irrite, e que um espírito coxo nos irrite? E que um coxo reconhece que andamos direito, e um espírito coxo diz que somos nós que coxeamos; sem isso, teríamos piedade dele, e não raiva.

Epíteto pergunta, com muito mais força, porque não nos zangamos quando nos dizem que somos malucos, e nos zangamos quando nos dizem que raciocinamos mal ou que escolhemos mal. O motivo é que estamos certos de não sermos malucos, e de não sermos coxos; mas, não estamos tão certos de escolher o verdadeiro. De sorte que, só tendo certeza porque vemos com toda a evidência, quando um outro vê com toda a evidência o contrário, Isso nos deixa vacilantes e nos assombra, e ainda mais quando mil outros zombam da nossa escolha, pois é preciso preferir as nossas luzes às de tantos outros, o que é arriscado e difícil. Nunca há essa contradição nos sentidos em relação a um coxo.

O respeito consiste nisto: Incomodai-vos. Embora vão em aparência, isso é muito justo; pois significa: Eu me incomodaria se tivésseis, necessidade, pois o faço sem que isso vos sirva: além disso, o respeito é para distinguir os grandes. Ora, se o respeito consistisse em estar numa poltrona, respeitaríamos toda a gente, e, assim não distinguiríamos; mas, sendo incomodados, distinguimos muito bem.

XIII

Ser elegante não é muito vão: pois é mostrar que um grande número de pessoas trabalha para si; é mostrar, pelos cabelos, que temos um criado grave, um perfumista, etc.; pelo ornato, o fio, os passamanes, etc.

Ora, não é uma simples superfície, nem um simples arnês, ter vários braços (para o próprio serviço).

Quanto mais braços se têm, mais forte se é. Ser elegante é mostrar a própria força.

XIV

É admirável: não querem que eu honre um homem vestido de brocado e acompanhado de sete ou oito lacaios! Como! ele mandará açoitar-me se eu não o saudar. Esse hábito é uma força; o mesmo não acontece com um cavalo bem arreado em relação a um outro.

Montaigne diverte-se por não ver que diferença existe, admirando-se de que se ache alguma e perguntando a razão.

XV

O povo tem as opiniões muito sãs: por exemplo, 1o.) escolher o divertimento e a caça em lugar da poesia: os semi-sábios zombam e triunfam em mostrar com isso a loucura do mundo; mas, por uma razão que não penetram, tem-se razão; 2o.) distinguir os homens por fora, como pela nobreza ou pela fortuna: o mundo. triunfa, ainda, em mostrar quanto isso é desarrazoado; mas, é bem razoável; 3o.) ofender-se por ter recebido uma bofetada; ou desejar tanto a glória; mas, isso é muito desejável, por causa dos bens essenciais que lhe são inerentes; e um homem que recebeu uma bofetada sem magoar-se é atormentado por injúrias e necessidades; 4o.) trabalhar pelo incerto; viajar por mar; passar sobre uma prancha.

XVI

É uma grande vantagem a qualidade, que, há dezoito ou vinte anos, torna um homem apto, conhecido e respeitado, como um outro o poderia ter merecido em cinqüenta anos: são trinta anos ganhos sem trabalho.

XVII

Um homem que se põe à janela para ver os passantes, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs à janela para ver-me? Não, pois não pensa em mim em particular. Mas, quando gostamos de uma pessoa por causa de sua beleza,, gostamos dela? Não; pois a varíola, que tirará a beleza sem matar a pessoa, fará que não gostemos mais; e, quando se gosta de mim por meu juízo, ou por minha memória, gosta-se de mim? Não; pois posso perder essas qualidades sem me perder. Onde está, pois, esse eu, se não no corpo nem na alma? É como amar o corpo ou a alma, se não por essas qualidades, que não são o que faz o eu, de vez que são perecíveis? Com efeito, amaríamos a substância da alma de uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem? Isso não é possível, e seria injusto. Portanto, não amamos nunca a pessoa, mas somente as qualidades(82).

XIX

As coisas que nos prendem mais, como ocultar o seu pouco bem, isso não é, muitas vezes, quase nada; é um nada que a nossa imaginação transforma em montanha. Um outro esforço de imaginação no-lo faz descobrir sem dificuldade.

XX

Os que são capazes de inventar são raros; os mais fortes em número só querem seguir e recusam a glória aos inventores que a procuram com suas invenções. E, se se obstinam em querer obtê-la e em desprezar os que não inventam, os outros lhes darão nomes ridículos, lhes dariam pauladas. Não nos escandalizemos, pois, com essa sutileza, ou nos contentemos com nós mesmos.


 

ARTIGO XXIV

DA JUSTIÇA

 

I

Todas as boas máximas estão no mundo; só nos resta aplicá-las. Por exemplo, não duvidamos que seja preciso expor a própria vida para defender o bem público, e muitos o fazem; mas, para a religião, não.

É necessário que haja desigualdade entre os homens; isso é verdadeiro, Mas, sendo concedido, eis a porta aberta, não somente à mais alta dominação, mas à mais alta tirania. É necessário relaxar um pouco o espírito; mas, isso abre a porta aos maiores abusos. Marquem-se os limites; não há limites nas coisas: as leis querem criá-los, mas o espírito não pode suportá-los.

II

A razão nos ordena bem mais imperiosamente do que um senhor: com efeito, desobedecendo a um, somos infelizes; e, desobedecendo à outra, somos tolos.

III

Porque me matais? Como! Não ficais do outro lado da água? Meu amigo, se ficásseis deste lado, eu seria um assassino, seria injusto matar-vos da mesma maneira; mas, desde que ficais do outro lado, sou um bravo, e isso é justo.

IV

Sobre que fundará o homem a economia do mundo que quer governar? Será sobre o capricho de cada particular? Que confusão! Será sobre a justiça? Ignora-a.

Certamente, se a conhecesse, não teria estabelecido esta máxima, a mais geral de todas as que existem entre os homens: Siga cada um os costumes do seu país. O brilho da verdadeira eqüidade teria sujeitado todos os povos, e os legisladores não teriam tomado por modelo, em lugar dessa justiça constante, as fantasias e os caprichos dos persas e alemães. Vê-la-íamos plantada por todos os Estados do mundo e em todos os tempos, ao passo que quase nada se vê de justo ou de injusto que não mude de qualidade mudando de clima. Três graus de altura do polo derrubam a jurisprudência. Um meridiano decide da verdade; em poucos anos de posse, as leis fundamentais mudam; o direito tem suas épocas. A entrada de Saturno no Leão nos marca a origem de um tal crime. Divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém doa Pireneus, erro além.

Eles confessam que, a justiça não existe nesses costumes, mas que reside nas leis naturais conhecidas , em todo pais. Decerto a sustentariam obstinadamente, se a temeridade ,do acaso, que semeou as leis humanas, tivesse encontrado nelas ao menos uma que fosse universal; mas, a brincadeira é tal, que o capricho dos homens se diversificou bastante, que não há nenhuma.

O latrocínio, o incesto,, o morticínios das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas. É possível nada mais divertido do que um homem ter direito de me matar porque fica além da água, e do que o seu príncipe demandar contra o meu, embora eu não demande com ele? Há sem dúvida leis naturais; mas, essa bela razão corrompida corrompeu tudo: Nihil amplius nostrum est; quod nostrum dicimus, artis est; ex senatus-consultis et plebiscitis crimina exercentur; ut olim vitiis, sic nunc legibus laboramus.(83)

Dessa confusão resulta que um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador; outro, o costume presente, e é o mais certo: nada, seguindo a sua razão, é justo em si; tudo se abala com o tempo. O costume faz toda a eqüidade, por esta única razão de que é recebido; é o fundamento místico de sua autoridade. Quem o reconduz ao seu princípio, aniquila-o. Nada é tão falível como essas leis que reparam as faltas: quem lhes obedece, porque são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à essência da lei, que está toda amontoada em si: é lei, e nada mais. Quem quiser examinar o motivo disso o achará tão fraco e tão ligeiro que, se não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha adquirido tanta pompa e reverência. A arte de agredir e subverter os Estados consiste em abalar os costumes estabelecidos, sondando até na sua fonte, para marcar a sua falta de justiça. É preciso, diz-se, recorrer às leis fundamentais e primitivas, do Estado que um costume injusto aboliu: é um jogo certo para perder tudo; nada será justo nessa balança. No entanto, o povo presta facilmente ouvidos a esses discursos. Sacodem o jugo desde que o reconhecem; e os grandes disso se aproveitam para sua ruína e para a desses curiosos examinadores dos costumes recebidos. Mas, por um defeito contrário, os homens acreditam, às vezes, que podem fazer com justiça tudo o que não é sem exemplo. Eis porque o mais sábio dos legisladores dizia que, para o bem dos homens, é preciso, muitas vezes, enganá-los; e um outro, bom político: Cum veritatem qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur(84). Não é preciso que ele sinta a verdade da usurpação: esta foi introduzida, outrora, sem razão; tornou-se razoável; é preciso fazê-la observar como autêntica, eterna, e ocultar o seu começo, se se quiser que não se acabe logo.

V

Os que vivem no desregramento dizem aos que vivem na ordem que são estes que se afastam da natureza, e julgam segui-la como os que estão num barco julgam que os que estão na margem fogem. A linguagem é semelhante em toda parte. É preciso ter um ponto fixo para julgar. O porto julga os que estão no barco; mas, onde tomaremos um porto na moral?

VI

Veri juris(85)— Não o temos mais: se o tivéssemos, não tomaríamos como regras de justiça seguir os costumes do próprio pais.

VII

Passei longo tempo de minha vida julgando que houvesse uma justiça; e nisso me enganava; porque há uma na medida em que Deus no-la quis revelar. Mas, eu não o julgava assim, e era nisso que me enganava; porque acreditava que a nossa justiça fosse essencialmente justa e que eu tivesse com que conhecê-la e julgá-la.

Mas, achei-me tantas vezes em erro de julgamento certo que, por fim, acabei desconfiando de mim e, depois, dos outros. Vi todos os países e homens mudarem; e assim, depois de muitas mudanças de julgamento em relação à verdadeira justiça, verifiquei que a nossa natureza não passava de uma contínua mudança, e não mudei mais desde então; e, se mudasse, confirmaria a minha opinião.

VIII

É arriscado dizer ao povo que as leis não são justas; pois ele só lhes obedece porque as julga justas. Eis porque é preciso dizer-lhe, ao mesmo tempo, que é preciso obedecer porque são leis, do mesmo modo porque é preciso obedecer aos superiores, não porque sejam justos, mas porque são superiores. E, assim, em toda sedição prevenida, se se pode fazer entender isso; é propriamente essa a definição da justiça.

IX

Montaigne não tem razão: o costume só deve ser seguido porque é costume, e não porque seja razoável ou justo. Mas, o povo o segue por esta única razão de que o julga justo; do contrário, não o seguiria mais, embora fosse costume, pois só queremos estar sujeitos à razão ou à justiça. O costume, sem isso, passaria por tirania; mas, o império da razão e da justiça não é tão tirânico quanto o da deleitação. São os princípios naturais ao homem.

Portanto, convém obedecer às leis e aos costumes, porque são leis; que ele(86)saiba que não há nenhuma verdadeira e justa que introduzir; que não sabemos nada e que, assim, é preciso somente seguir as recebidas: por esse meio, não as abandonaremos nunca. Mas, o povo não é susceptível dessa doutrina, e, assim como julga que a verdade se pode encontrar e que está nas leis e costumes, também acredita nelas e toma a sua antigüidade como uma prova de sua verdade (e não de sua simples autoridade sem verdade). Assim, ele obedece-lhes, mas está sujeito a se revoltar desde que se lhe mostre que elas não valem nada; o que se pode fazer ver de todas observando-as de um certo lado.

X

A natureza do homem é toda natureza: omne animal(87).

Não há nada que não se torne natural; não há natural que não se faça perder.

Perdida a verdadeira natureza, tudo se torna sua natureza.

Assim também, perdido o verdadeiro bem, tudo se torna o seu verdadeiro bem.

Que são os nossos princípios naturais senão os nossos princípios acostumados? E, nas crianças, os que receberam do costume dos pais, como a caça nos animais?

Um diferente costume dará outros princípios naturais. Isso se vê por experiência; e, se os há indeléveis ao costume, há também costumes contra a natureza, indeléveis à natureza e a um segundo costume: isso depende da disposição.

Os pais receiam que o amor natural das crianças se apague. Que é, pois, essa natureza sujeita a ser apagada? O costume é uma segunda natureza que destrói a primeira. Porque o costume não é natural? Tenho muito medo de que essa natureza também não passe de um primeiro costume, como o costume é uma segunda natureza.

XI

A justiça é o que está estabelecido; e, assim, todas as nossas leis estabelecidas serão necessariamente tidas como justas sem ser examinadas, uma vez que estão estabelecidas.

XII

Assim como a moda faz a graça, assim também faz a justiça.

XIII

Summum jus, summa injuria.(88) A pluralidade é a melhor via, porque é visível e porque tem força para se fazer obedecer; no entanto, é a opinião dos menos hábeis.

Se se tivesse podido, ter-se-ia posto a força entre as mãos da justiça: mas, como a força não se deixa manejar como se quer, porque é uma qualidade palpável, ao passo que a justiça é uma qualidade espiritual de que se dispõe como se quer a justiça foi posta entre as mãos da força; e, assim, se chama justo ao que força de observar.

Vem daí o direito da espada, pois a espada dá, um verdadeiro direito.

De outro modo, ver-se-ia a violência de um lado e a justiça do outro.

Vem dai a injustiça da Fronda, que eleva a sua pretensa justiça contra a força.

Não acontece o mesmo na Igreja; pois há uma justiça verdadeira e nenhuma violência.

XIV
Justiça. Força.

É justo que o que é justo seja seguido. É necessário que o que é mais forte seja seguido.

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica.

A justiça sem força é contradita, porque há sempre maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo.

A justiça é sujeita a disputas: a força é muito reconhecível, e sem disputa. Assim, não se pode dar a força à justiça, porque a força contradisse a justiça e disse que ela era injusta, dizendo que ela é que era justa; e, assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo.

XV

As únicas regras universais são as leis do país nas coisas ordinárias; e a pluralidade nas outras. De onde vem isso? da força que existe nelas.

Eis porque os reis, que têm a força fora, não seguem a pluralidade dos seus ministros.

Sem dúvida, a igualdade dos bens é justa; mas, não podendo fazer que seja força obedecer à justiça, fez-se que seja justo obedecer à força; não podendo fortificar a justiça, justificou-se a força, afim de que o justo e o forte existissem juntos, e que a paz existisse, que é o soberano bem.

XVI

Eles são constrangidos a dizer: Não agia de boa fé; não deveríamos, etc. Como gosto de ver essa soberba razão humilhada e suplicante! Com efeito, não é essa a linguagem de um homem a quem se disputa o seu direito e que o defende com as armas e a força na mão. Ele não se diverte em dizer que não se age de boa fé; mas, pune essa má fé pela força.

XVII

Quando se trata de julgar se se deve fazer a guerra e matar tantos homens, condenar tantos espanhóis à morte, é um homem só que decide, ainda interessado: deveria ser um terço indiferente.

XVIII

Esses discursos são falsos e tirânicos: Sou belo, logo devem temer-me; sou forte, portanto devem amar-me. Sou... A tirania consiste em querer ter por uma via o que só se pode ter por uma outra. Dão-se diferentes deveres aos diferentes méritos: dever de amor à graça; dever de modo da força; dever de crença na ciência. Tais deveres devem ser cumpridos; é injusto recusá-los, e injusto reclamar outros. E é também ser falso e tirânico dizer: Ele não é forte, logo não o estimarei; não é hábil, logo não o temerei. A tirania consiste no desejo de dominação universal e fora de sua ordem.


 

ARTIGO XXV

PENSAMENTOS DIVERSOS

 

I

Há vícios que só permanecem em nós em virtude de outros; suprimindo o seu tronco, vão-se como ramos.

II

Quando tem a razão do seu lado, a malignidade se torna arrogante e ostenta a razão em todo o seu lustre: quando a austeridade ou a escolha severa não conseguiu o verdadeiro bem e é preciso voltar a seguir a natureza, ela se torna arrogante na volta.

O homem está cheio de necessidades: só ama os que, podem satisfazê-las todas. É um bom matemático, dir-se-á, mas, não tenho que fazer matemáticos: ele me tomaria por uma proposição. É um bom guerreiro: ele me tomaria por uma praça sitiada. É preciso, pois, um bom homem que possa acomodar-se a todas as minhas necessidades em geral.

IV

Quando nos sentimos bem, ficamos admirados de que possa suceder o mesmo quando estamos doentes; quando estamos doentes, tomamos remédio com alegria: o mal assim resolve. Não temos mais paixões nem os desejos de divertimentos e de passeios que a saúde inspirava e que são incompatíveis com as necessidades da moléstia. A natureza inspira, então, paixões e desejos conforme ao estado presente. Só os temores, que nós mesmos nos inspiramos, e não a natureza, é que nos perturbam: porque juntam ao estado em que estamos as paixões do estado em que não estamos.

V

Os discursos de humildade são matéria de orgulho para as pessoas gloriosas, e de humildade para os humildes. Assim, os do pirronismo são matéria de afirmação para os afirmativos. Pouco falam de humildade humildemente; pouco da castidade castamente; pouco do pirronismo duvidando. Somos apenas mentira, duplicidade, contrariedade, escondendo-nos e disfarçando-nos a nós mesmos.

VI

As belas ações ocultas são as mais estimáveis. Quando vejo algumas na história, elas me agradam muito. Mas, enfim, não estavam completamente ocultas, pois se tornaram conhecidas; e, embora se tenha feito tudo para ocultá-las, esse pouco pelo qual apareceram estraga tudo, pois o que nelas há de mais belo é ter querido ocultá-las.

VII

Dizedor de boas palavras, mau caráter.

VIII

O eu é odioso: Vós, Miton, Couvier, não o sois por isso: sois, portanto, sempre odiosos.

Não (direis); porque agindo, como fazemos, cortesmente com todos, não há motivo para nos odiar. Isso seria verdadeiro se só se odiasse no eu o desprazer que nos causa. Mas, se o odeio porque é injusto e se faz centro de tudo, odiá-lo-ei sempre. Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se centro de tudo; e incômodo aos outros, querendo sujeitá-los: porque cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros. Tirais dele a incomodidade, mas não a injustiça: e, assim, não o tornais amável aos que odeiam a injustiça: só o tornais amável aos injustos, que nele não descobrem mais o seu inimigo; e assim ficareis injusto e só podeis agradar aos injustos.

IX

Não admiro o excesso de uma virtude, como do valor, se não vejo ao mesmo tempo o excesso da virtude oposta, como em Epaminondas, que tinha o extremo valor e a extrema benignidade; porque de outro modo não é subir, é cair. Não mostramos nossa grandeza ficando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo. Mas, talvez seja apenas um súbito movimento da alma de um a outro desses extremos, e talvez ela não esteja nunca senão num ponto, como o tição de fogo (que se faz girar). Seja. Mas ,ao menos, isso marcará a agilidade da alma, se não marcar a sua extensão.

X

Eu passara longo tempo no estudo das ciências abstratas, e a pouca comunicação que se pode ter delas me desgostara. Quando comecei o estudo do homem, vi que essas ciências abstratas não lhe são próprias, e que eu me desviava mais da minha condição penetrando-as do que os outros ignorando-as; perdoei aos outros o conhecê-las pouco. Mas, julguei encontrar, ao menos, bastantes companheiros no estudo do homem, que é o verdadeiro estudo que lhe é próprio. Enganei-me. Os que o estudam são ainda menos numerosos do que os que se dedicam à geometria.

Procurar o resto revela apenas que não se sabe estudar. Mas, não será que não é ainda essa a ciência que o homem deve ter e que lhe é melhor ignorar para ser feliz?

XI

Quanto tudo se revolve igualmente, nada se revolve em aparência: como num barco. Quando todos caminham para o desregramento, ninguém parece fazê-lo. Aquele que se detém faz notar o arrebatamento dos outros, como um ponto fixo.

XII

Porque preferirei dividir a minha moral em quatro e não em seis? Porque estabelecerei a virtude de preferência em quatro, em dois, em um? porque em abstine(89) e sustine(90), e não em seguir a natureza, ou realizar os negócios particulares sem injustiça, como Platão, ou outra coisa? Mas, direis, eis que tudo se encerra numa palavra. Sim, mas isso será inútil se não se explicar; e, quando se chega a explicar, desde que se abre esse preceito que contém todos os outros, eles se retiram na primeira confusão que quisésseis evitar: assim, quando estão todos encerrados num, ficam ocultos e inúteis, como num cofre e só aparecem em sua confusão natural. A natureza estabeleceu-os todos sem encerrar um no outro, eles subsistem independentemente um do outro. Assim, a única utilidade de todas essas divisões e palavras consiste apenas em ajudar a memória e servir de direção para encontrar o que eles encerram.

XIII

Quando queremos repreender com utilidade, mostrando a alguém que ele se engana, é preciso observar por que lado encara a coisa, pois é verdadeira ordinariamente desse lado, e confessar-lhe essa verdade, mas descobrir-lhe o lado pelo qual ela é falsa. Contenta-se com isso, pois vê que não se enganava e que apenas lhe faltava ver todos os lados. Ora, não nos importamos de não ver tudo, mas não queremos ser enganados; e talvez isso provenha de que, naturalmente, o homem não pode ver tudo e de que, naturalmente, não pode enganar-se quanto ao lado que encara, porque as apreensões dos sentidos são sempre verdadeiras.

XIV

O que pode a virtude de um homem não deve medir-se por seus esforços, mas pelo que de ordinário ele faz.

XV

Os grandes e os pequenos têm os mesmos acidentes, os mesmos aborrecimentos e as mesmas paixões; mas, um está no alto da roda, e o outro perto do centro, e assim menos agitado pelos, mesmos movimentos.

XVI

Embora as pessoas não tenham interesse pelo que dizem, é preciso não concluir daí, em absoluto, que não mentem; pois há pessoas que mentem simplesmente por mentir.

XVII

O exemplo da castidade de Alexandre não faz tantos continentes como o da sua embriaguez fez intemperantes. Não é vergonhoso não ser tão virtuoso quanto ele, e parece escusável não ser mais vicioso do que ele. Julgamos não ter todos os vícios do comum dos homens quando temos os vícios desses grandes homens, e, todavia, não nos importamos que estes tenham os do comum dos homens. Apegamo-nos a eles da mesma maneira por que eles se apegam ao povo; com efeito, por mais elevados que estejam, unem-se aos menores dos homens por algum lugar. Não estão suspensos no ar, inteiramente abstraídos da nossa sociedade. Não, não. Se são maiores do que nós, é que têm a cabeça mais elevada; mas, têm os pés tão baixo quanto os nossos. Estão todos no mesmo nível e se apoiam na mesma terra; e, por essa extremidade, estão tão baixo quanto nós, quanto os pequenos, quanto as crianças, quanto os animais.

XVIII

Nada nos agrada como o combate, mas não a vitória. Gostamos de ver os combates dos animais, não o vencedor encarniçado sobre o vencido. Que queríamos ver, se não o fim da vitória? E, desde que esta se verifica, enfastiamo-nos. Assim no jogo, assim na pesquisa da verdade. Gostamos de ver, nas polêmicas, o combate das opiniões; mas, não gostamos, em absoluto, de contemplar a verdade encontrada. Para fazê-la observar com prazer, é preciso vê-la fazer nascer da polêmica. Assim também, nas paixões, há prazer em ver dois contrários se chocarem; mas, quando uma é senhora, há apenas brutalidade. Nunca procuramos as coisas, mas a pesquisa das coisas. Assim, na comédia, as cenas alegres, sem o medo não valem nada, nem as extremas misérias sem a esperança, nem os amores brutais, nem as severidades ásperas.

XIX

Não se ensina aos homens a serem honestos, mas ensina-se-lhes tudo o mais; e eles nunca se incomodam tanto por nada saberem do resto como por serem homens honestos. Não se incomodam por saberem apenas a única coisa que não aprendem.(91)

XX

Que tolo projeto teve (Montaigne) de se pintar! e isso não por acaso e contra suas máximas, porque acontece a toda a gente errar, mas por suas próprias máximas, e por um desígnio primeiro e principal. Com efeito, dizer tolices por acaso e por fraqueza é um mal ordinário; mas, dizê-las por desígnio é o que não é suportável, e dizê-las tais como essas... Não é em Montaigne, mas em mim que descubro tudo o que creio nelas.

XXI

Lamentar os infelizes não é contra a concupiscência, ao contrário; é muito fácil ter de dar esse testemunho de amizade e atrair para si reputação de ternura sem dar nada

XXII

Quem tivesse a amizade do rei da Inglaterra, do rei da Polônia e da rainha da Suécia, julgaria poder prescindir de retiro e de asilo no mundo?(92)

XXI

As coisas têm diversas qualidades, e a alma diversas inclinações; pois não é simples nada do que se oferece, à alma, e a alma nunca se oferece simples a nenhum sujeito. Eis porque, às vezes, choramos e rimos de uma mesma coisa.

XXIV

Diversas câmaras de fortes, de belos, de bons, de piedosos espíritos, cada qual reinando em sua casa, não fora, e às vezes, quando se encontram, batendo-se tolamente o forte e o belo para decidir quem será o senhor um do outro, pois sua senhoria é de diversos gêneros: não se entendem, consistindo seu erro em querer reinar par toda parte. Ora, nada o pode, nem mesmo a força: esta não faz nada no reino dos sábios; só é senhora das ações exteriores.

XXV

Ferox gens nullam esse vitam sine armis rati(93). Preferem a morte à paz; os outros preferem a morte à guerra. Toda opinião pode ser preferida à vida, cujo amor parece tão forte e tão natural.

XXVI

Estamos contentes de repousar na sociedade dos nossos semelhantes. Miseráveis como nós, não nos ajudarão: morreremos sós. É preciso, pois, fazer, como aí estivéssemos sós, e então construiríamos casas soberbas, etc.? Procuraríamos a verdade sem hesitar; e, se no-lo recusarem, testemunharemos estimar mais a estima dos homens do que a pesquisa da verdade.

XXVII

A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral em tempo de aflição; mas, a ciência dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências exteriores.

XXVIII

O tempo cura as dores e as querelas, porque mudamos, não somos mais a mesma pessoa. Nem o ofensor, nem o ofendido, são mais eles próprios. É como um povo que irritássemos e tornássemos a ver depois de duas gerações: são ainda os franceses, mas não os mesmos.

XXIX

César era muito velho, parece-me, para ir divertir-se em conquistar o mundo. Esse divertimento ficava bem em Alexandre: era um rapaz difícil de conter; mas, César devia ser mais maduro.

XXX

O sentimento da falsidade dos prazeres presentes e a ignorância da vaidade dos prazeres ausentes causam a inconstância.

XXXI

O meu humor não depende do tempo. Tenho os meus nevoeiros e o meu bom tempo dentro de mim; o bem e o mal dos meus próprios negócios pouco fazem nesse particular. Esforço-me, às vezes, por mim mesmo, contra a fortuna; a glória de domá-la faz com que eu a dome alegremente, ao passo que às vezes me faço de desgostoso na boa fortuna.

XXXII

Ao escrever o meu pensamento, ele às vezes me escapa; mas, isso me faz lembrar-me da minha fraqueza, que a todo instante esqueço; isso me instrui tanto quanto o meu pensamento esquecido, pois minha tendência consiste apenas em conhecer o meu nada.

XXXIII

É uma coisa divertida considerar que há no mundo pessoas que, tendo renunciado a. todas as leis de Deus e da natureza, façam outras às quais obedecem exatamente; como, por exemplo, os ladrões, os soldados de Maomé, os hereges, etc., e assim os lógicos.

XXXIV

Esse cão é meu, diziam essas pobres crianças; lá está o meu lugar ao sol: eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.

XXXV

Tendes má fisionomia. Escusai-me, por favor... Sem essa escusa, eu não teria percebido que houve injúria. Reverência no falar, não há nada de mau que lhes escuse.

XXXVI

Em geral, só imaginamos Platão e Aristóteles com grandes túnicas de pedantes. Eram pessoas honestas e como as outras, rindo com os seus amigos; e, quando se divertiram em fazer as suas leis e a sua política, fizeram-nas brincando. Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida. A mais filosófica era viver simples e tranqüilamente.

Se escreveram sobre política, foi como para regular um sanatório de loucos; e, se fizeram menção de falar dela como de uma grande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavam julgavam ser reis e imperadores; entravam nos seus princípios para moderar a própria loucura ao menos mal possível.

XXXVII

Sinto-me mal com estes cumprimentos: Eu vos dei bastante trabalho; Receio importunar-vos; Receio que isso seja longo demais: ou se atrai, ou se irrita.

XXXVIII

Um verdadeiro amigo é uma coisa tão vantajosa, mesmo para os maiores senhores, afim de que ele diga bem deles e os sustente mesmo em sua ausência, que eles tudo devem fazer para tê-lo. Mas, escolham bem; pois, se fazem todos os esforços para possuir tolos, isso lhes será inútil, por muito bem que estes falem deles; e nem mesmo falarão bem se se revelarem mais fracos, pois não têm autoridade; e, assim, os desacreditarão como companhia.

XXXIX

Quereis que se fale bem de vós? Não o faleis.

XL

Tenho como um fato que, se todos os homens soubessem o que dizem uns dos outros, não haveria quatro amigos no mundo. É o que evidenciam os dissídios causados pelas informações indiscretas que às vezes se dão a respeito.

XLI

Cada coisa é aqui verdadeira em parte, falsa em parte. A verdade essencial não é assim: é toda pura e toda verdadeira. Essa mistura desonra-a e anula-a. Nada é puramente verdadeiro, e assim nada é verdadeiro, entendendo-o puro verdadeiro. Dir-se-á que é verdadeiro que o homicida é mau: sim, pois conhecemos bem o mal e o falso. Mas, que se dirá que seja o bom? A castidade? Eu digo que não; pois o mundo acabaria. O casamento? Não: a continência melhor. Não matar? Não; pois as desordens seriam horríveis, e os maus matariam todos os bons. Matar? Não; pois isso destrói a natureza. Não temos nem verdadeiro nem bem senão em parte, e misturado de mal e de falso.

XLII

O mal é fácil, há uma infinidade; o bem, quase único. Mas, um certo gênero de mal é tão difícil de achar como o que se chama bem, e muitas vezes se faz passar por bem, com essa marca, esse mal particular. É preciso mesmo uma grandeza de alma extraordinária para alcançá-lo, assim como ao bem.

XLIII

As cordas que ligam o respeito de uns para com os outros, em geral, são cordas da necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus: é que todos os homens querem dominar, e nem todos o podem, mas alguns o podem. Essas cordas que ligam, pois, o respeito a tal e tal em particular são cordas de imaginação.

XLIV

Somos tão infelizes que só podemos achar prazer numa coisa sob a condição de nos desgostar se sai mal; o que mil coisas podem fazer e fazem a toda hora. Quem achasse o segredo de se regozijar do bem, sem se desgostar do mal contrário teria resolvido a dificuldade.

XLV

À medida que se tem mais espírito, acha-se que há mais homens originais. As pessoas comuns não acham diferença entre os homens.

A diversidade é tão ampla que todos os tons de voz, todos os andares, tosses, assoamentos, espirros, são diferentes. Distinguem-se das frutas as uvas, e entre estas a moscatel, a Condrieu, e depois a Desargues, e depois a Cette entre estas; é tudo? Já produziu (a natureza) dois cachos semelhantes e um cacho com dois grãos semelhantes? etc.

XLVI

Todo o nosso raciocínio se reduz a ceder ao sentimento. Mas, a fantasia é semelhante e contrária ao sentimento; (semelhante, porque não raciocina; contrária, porque é falsa): de sorte que não se pode distinguir entre esses contrários. Um diz que o meu sentimento é fantasia; outro, que a sua fantasia é sentimento. Seria preciso ter uma regra. A razão se oferece; mas, é flexível em todos os sentidos; e, assim, não há regra.

XLVII

É desagradável estar na exceção da regra. É preciso mesmo ser severo e contrário à exceção. Mas, contudo, como é certo que há exceções da regra, é preciso julgar isso severamente, mas com justiça.

XLVIII

Persuadimo-nos melhor, de ordinário, com as razões que nós mesmos descobrimos do que com as que ocorrem ao espírito de outrem.

XLIX

O espírito crê naturalmente, e a vontade ama naturalmente; de sorte que, à falta de verdadeiros objetos, é preciso que eles se liguem aos falsos.

L

Esses grandes esforços de espírito, que a alma às vezes atinge, são coisa em que ela não permanece. Apenas salta daí para logo tornar a cair.

LI

O homem não é nem anjo nem besta; e a infelicidade quer que quem quer ser anjo seja besta.

LII

Os animais não se admiram. Um cavalo não admira o seu companheiro. Não é que não haja entre eles emulação na corrida, mas é sem conseqüência; pois, estando no estábulo, o mais pesado e mais mal talhado não cede sua aveia ao outro, como os homens querem que se lhes faça. Sua virtude se satisfaz por si mesma.

LIII

Assim como estragamos o espírito estragamos também o sentimento. Formamos o espírito e o sentimento pelas conversações. Assim, as boas ou as más o formam ou o estragam. Importa, pois, de todo, saber escolher bem para o formarmos e não o estragarmos; e não podemos fazer essa escolha se já não o formamos e não o estragamos. Assim, isso faz um circulo, de onde são bem felizes os que saem.

LIV

O coração tem sua ordem; o espírito tem a sua, que é por princípios e demonstrações; o coração tem uma outra. Não se prova que se deve ser amado expondo por ordem as causas do amor: seria ridículo.

Jesus Cristo e São Paulo têm a ordem da caridade e não a do espírito; pois queriam animar, não instruir; Santo Agostinho também. Essa ordem consiste principalmente na digressão sobre cada ponto que tem relação com o fim, para mostrá-la sempre.

LV

Que vaidade a pintura, que atrai a admiração pela semelhança com as coisas cujos originais não se admiram!

LVI

A verdadeira eloqüência zomba da eloqüência; a verdadeira moral zomba da moral, isto é, a moral do julgamento zomba da moral do espírito, que não tem regra.

LVII

Zombar da filosofia é verdadeiramente filosofar.

LVIII

Há muita gente que ouve o sermão da mesma maneira por que ouve as vésperas.

LIX

Os rios são caminhos que marcham e que conduzem aonde queremos ir.

LX

Dois rostos semelhantes, doa quais nenhum faz rir em particular, fazem rir juntos pela sua semelhança.

LXI

Os astrólogos, os alquimistas, etc., têm alguns princípios, mas abusam deles. Ora, o abuso das verdades deve ser tão punido quanto a introdução da mentira.

LXII

A natureza recomeça sempre as mesmas coisas, os anos, os dias, as horas; os espaços também, e os números estão nos dois sentidos em seguida uns dos outros. Assim, faz-se uma espécie de infinito eterno. Não é que haja nada de tudo isso que seja infinito e eterno; mas, esses seres terminados se multiplicam infinitamente. Assim, parece-me, só o número que os multiplica é infinito.

LXIII

Não somente observamos as coisas por outros lados, mas com outros olhos: não temos cuidado de as achar semelhantes.

Ele já não ama essa pessoa que amava há dez anos. Creio bem, ela já não é a mesma, nem ele tão pouco: ele era moço, e ela também; ela é inteiramente outra; ele talvez ainda a amasse tal como ela foi então.

LXIV

Tudo o que se aperfeiçoa por progresso perece também por progresso. Tudo o que foi fraco não pode nunca ser absolutamente forte. É inútil dizer: ele cresceu; ele mudou; ele é ainda o mesmo.

LXV

A teologia é uma ciência, mas, ao mesmo tempo, quantas ciências há? Um homem é um membro; mas, se o anatomizarmos, será ele a cabeça, o coração, o estômago, as veias, cada veia, cada porção de veia, o sangue, cada humor do sangue?

Uma cidade, uma aldeia, de longe é uma cidade e uma aldeia; mas, à medida que nos aproximamos, são casas, árvores, telhados, folhas, plantas, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se envolve sob o nome de aldeia.

LXVI

Há plantas sobre a terra; nós as vemos: da lua não as veríamos; e sobre essas plantas, pêlos, e nesses pêlos pequenos animais; mas, depois disso, mais nada. Oh presunçoso! os insetos são compostos de elementos, e os elementos não. Oh presunçoso! eis um traço delicado: é preciso não dizer que há o que não se vê; é preciso dizer como os outros, mas não pensar como eles.

LXVII

Nossa natureza está em movimento; o repouso completo é a morte.

LXVIII

Quando dizemos que o calor é apenas o movimento de alguns glóbulos e a luz o conatus recedendi(94) que sentimos, isso nos assombra. Como o prazer não seria outra coisa senão o bailado dos espíritos? Concebemos dele uma idéia tão diferente, e esses sentimentos nos parecem. tão, distantes dos outros, que dizemos serem os mesmos que aqueles aos quais nós os comparamos! O sentimento do fogo, esse calor que nos afeta de maneira tão diversa da do tato, a recepção do som e da luz, tudo isso nos parece misterioso, e, no entanto, é grosseiro como uma pedrada. É verdadeiro que a pequenez dos espíritos que entram nos poros toca outros nervos; mas, são sempre nervos.

LXIX

A natureza se imita. Uma semente lançada em boa terra produz. Um princípio lançado num bom espírito produz.

Os números imitam o espaço, que são de natureza tão diferente.

Tudo é feito e conduzido por um mesmo Senhor: a raiz, o ramo, os frutos, os princípios, as conseqüências.

LXX

A natureza age por progressos: itus et reditus(95). Passa e volta; depois, vai mais longe; depois, duas vezes menos; depois, mais do que nunca, etc.

A natureza do homem não é ir sempre; tem suas idas e vindas.

A febre tem seus tremores e seus ardores, e o frio mostra tão bem a grandeza do ardor da febre quanto o próprio calor.

LXXI

A admiração estraga tudo desde a infância. Oh! como isso está bem dito! como foi bem feito! como é sábio! etc.

Caem na negligência os filhos de Port-Royal aos quais não se dá esse estimulo de inveja e, de glória.

LXXII

Não nos sustentamos na virtude por nossa própria força, mas peio contrapeso de dois vícios opostos, assim como ficamos de pé entre dois ventos contrários: tirai um desses vícios, e caímos no outro.

LXXIII

Dizem eles que os eclipses pressagiam desgraças, porque as desgraças são comuns; de sorte que acontece tão freqüentemente o mal, que muitas vezes eles adivinham; ao passo que, se dissessem que pressagiam felicidade, mentiriam freqüentemente. Não atribuem a felicidade senão a raros acidentes do céu; assim, deixam pouco freqüentemente de adivinhar.

LXXIV

Não é bom ser livre demais.

Não é bom ter todo o necessário.

Instinto e razão, marca de duas naturezas.


 

NOTAS

(1) – É esse o título da edição de Port-Royal, 1670; a de Condorcet traz: DA NECESSIDADE DE SE OCUPAR COM AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE UMA VIDA FUTURA; a edição de Bossut, 1779: NECESSIDADE DE ESTUDAR A RELIGIÃO; e a de Faugère, 1844: PREFÁCIO GERAL.

(2) – "Deus absconso".

(3) – Esse artigo tem, na edição de 1779, este titulo: COMO É DIFÍCIL DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE DEUS PELAS LUZES NATURAIS, MAS COMO O MAIS SEGURO É CRER NELA; e, no volume de Cousin e na edição de Faugère, o seguinte: INFINITO, NADA. O título da presente edição é o da de 1670.

(4) – Ou, segundo a edição de Port-Royal: "Não há tão grande desproporção entre a unidade e o infinito como entre a nossa justiça e a de Deus."

(5) – "Dissera Montaigne antes de Pascal: "Precisamos embrutecer para tornarmo-nos sábios." E São Paulo: Nemo se seducat: si quis videtur inter vos sapiens esse in hoc sceculo, stultus fiat ut sit sapiens; sapientia enim hujus mundi stultitia est apud Deum. (Epist. ad Corinth., III, 19).

"Ninguém se iluda: se alguém, dentre vós, julga ser sábio neste século, faça-se louco para ser sábio; porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. (Epístola aos Coríntios, III, 19)."Em Pascal como em São Paulo, embrutecer não deve ser tomado à letra, mas na profundeza do sentido cristão: é uma dessas palavras que a verdadeira filosofia aceita e defende contra as declamaç6es de uma filosofia superficial e contra os excessos de uma devoção abusiva". [Nota de Faugère.]

(6) – "Na verdade, tu és Deus absconso."

(7) – A tradução literal é: "Esperei a tua salvação, Senhor." (Gênese, XLIX, 18).

(8) – "Porque o louco é de Deus, o sábio é dos homens."

(9) – "Inclina o meu coração, oh Deus, ao teu testemunho."

(10) – É o seguinte o título desse artigo na edição de 1779: DOS JUDEUS, CONSIDERADOS EM RELAÇÃO COM A NOSSA RELIGIÃO; e o da de Faugére: DO POVO JUDEU.

(11) – 0 autor tem em vista as palavras de Cristo aos judeus: "Abraão, vosso pai, desejou ardentemente ver o meu dia: e o viu, e ficou cheio de alegria." (João, VIII, 56). E mais: "...antes que Abraão fosse, eu sou." (idem, 58).

(12) – "Sela a lei entre os meus discípulos."

(13) – "Em lugar da negação absoluta, o autor pode ter dito: Não o foi tão claramente; com efeito, os três tempos e meio de Daniel (Daniel, VII, 25, e XII, 7) e os quarenta e dois meses de São João (Apocalipse, XI, 2, e XIII, 5) parecem levar a isso, segundo os teólogos. Mas, que significam esses tempos e esses meses? É o que a Escritura não diz. Jesus Cristo anuncia também os sinais que precederão o fim do mundo, e acrescenta: Quando virdes todas essas coisas, sabei que o Filho do homem está perto (Mateus, XXIV, 33; Marcos, XIII, 29; Lucas, XXI, 31)." [Nota da edição de 1787.]

(14) – "Tatearás ao meio-dia. O livro será dado ao que, conhecendo as letras, disser: Não posso ler.!

(15) – "Senta-te à minha direita."

(16) – "Luz para revelação dos gentios."

(17) – "Não fez assim com todas as nações."

(18) – "Fez de outro modo com todas as nações."

(19) – "Derramei o meu espírito sobre toda carne."

(20) – "Um povo descrente e contraditor."

(21) – De edificantes, isto é, os que trabalhavam na edificação do templo.

(22) – Isto é, a esquina, o ângulo que deve reunir os dois povos, o judeu e o gentio, na adoração de um mesmo deus.

(23) – "De todas as iniqüidades."

(24) – "Não temos um rei, a não ser César."

(25) – "De vinte anos", teria querido dizer Pascal, sendo de supor um lapso gráfico de sua parte, escrevendo 200, isto é, um zero a mais, em lugar de 20.

(26) – "Com o teu gládio potentíssimo."

(27) – "Em santificação e em escândalo."

(28) – Entre os hebreus, do mesmo modo que entre os gregos, cada letra do alfabeto tem um valor numérico.

(29) – "Rasgai os vossos corações."

(30) – "Disse também Deus ao pecador".

(31) – Na edição de Faugère, uma parte desse artigo tem este titulo: PREFÁCIO DA SEGUNDA PARTE.

(32) – Esse trecho tem a seguinte variante na edição de 1670: "A maior parte dos que empreendem provar a divindade aos ímpios começam de ordinário pelas obras da natureza."

(33) – "Ninguém conhece o pai a não ser o filho, e aquele a quem o filho quiser revelá-lo."

(34) – V. a nota 6.

(35) – "Os que conhecerem por curiosidade esquecerão por soberba."

(36) – Do manuscrito só consta uma parte desse parágrafo, que aparece completo, porém, na edição de 1670 e na História da Abadia de Port-Royal, 1752, tomo IV, págs. 468-470.

(37) – "Sabemos que com Deus vieste, oh mestre; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele."

(38) – O dia de sábado, que, segundo a lei de Moisés, deve ser consagrado ao repouso.

(39) – "Por isso que não receberam a caridade da verdade para que fossem salvos, de forma que Deus lhes envia a operação do erro para que creiam na mentira."

(40) – Refere-se Pascal às religiosas de Port-Royal.

(41) – Isto é, no calvinismo.

(42) – "Vê se há em mim algum caminho de iniquidade."

(43) – Possível alusão ao padre Annat.

(44) – "Este homem não é de Deus, pois não guarda o sábado."

(45) – "Como pode um homem pecador fazer tais sinais?"

(46) – "Vós que elaborais leis iníquas."

(47) – "As minhas delícias estão com os filhos dos homens." (48). V, a nota 19.

(48) – V. a nota 19.

(49) – "Sois deuses, etc."

(50) – "Toda carne é feno".

(51) – "0 homem comparou-se às bestas incipientes e fez-se semelhante a elas".

(52) – "Disse eu no meu coração, dos meus filhos, que Deus os provará e mostrará serem semelhantes às bestas".

(53) – "Com amargosos."

(54) – "E não entres em juízo".

(55) – "Desejo de sentir, desejo de saber, desejo de dominar".

(56) – "Os maus colóquios corrompem os bons costumes."

(57) – "Para que não se torne vã a cruz de Cristo".

(58) – "O que adere a Deus é o espírito".

(59) – Idem.

(60) – Dos jesuítas.

(61) – "Todos".

(62) – "Bebei todos disto"

(63) – "Em que todos pecarão".

(64) – "Mau fingimento".

(65) – "Debaixo de ti estará o teu apetite".

(66) – Que a cruz não seja vã".

(67) – "A fascinação da fugacidade".

(68) –. É o seguinte o título desse artigo no Relatório de Cousin e na edição de Faugère: DESPROPORÇÃO DO HOMEM.

(69) – Supondo, ai, que é o sol que gira em torno da terra.

(70) – "De tudo o que se pode saber".

(71) – "Os benefícios são agradáveis na medida em que são vistos como podendo ser pagos; quando chegam em grande quantidade, o ódio é dado pelo favor. (Tácito: Anais, livro IV, XVIII).

(72) – "0 modo pelo qual o espírito adere aos corpos não pode ser compreendido pelas homens; apesar disso, o homem existe". (Santo Agostinho: Do Espírito e da Alma).

(73) – "Na memória do hóspede do dia precedente".

(74) – "Ânimo de contê-los".

(75) – "Vejo-me homem".

(76) – Tanto esse trecho como o que se lhe segue (Imaginação) figuram na edição de Faugère sob o título: DAS POTÊNCIAS ENGANOSAS.

(77) – Os efeitos da imaginação.

(78) – Os magistrados.

(79) – "Da Opinião, Rainha do Mundo".

(80) – A arte da vida, a experiência.

(81) – "Para que estejas contente, teme a ti mesmo e aos teus bons instintos".

(82) – Pascal sofisma: como muito bem observa Havet, não existem qualidades separadas das coisas.

(83) – "Nada de mais amplo é nosso; o que dizemos nosso é da arte; os crimes são exercidos pelos decretos do senado e pelos plebiscitos; do mesmo modo que outrora com os vícios, assim também agora trabalhamos com as leis".

(84) – "Com a verdade que ignora seja livrado, com a que expede seja enganado".

(85) – "Do verdadeiro direito.

(86) – Pascal refere-se, sem dúvida, ao povo.

(87) – "Toda animal".

(88) – "Supremo direito, suprema injúria".

(89) – "Abstém-te".

(90) – "Sustém-te".

(91) – "É a origem dessa frase que se atribui a Boileau, quando se dirige a uma pessoa jovem: Ensinaram-vos tudo, exceto a agradar: é, porém, o que sabeis melhor". [Nota de Havet.]

(92) – Alusão às três revoluções que se verificaram ao tempo de Pascal: a que levou à morte Carlos I, rei da Inglaterra, em 1649; a que forçou João Casimiro, rei da Polônia, a fugir para a Silésia, em 1655; e a que obrigou Cristina, rainha da Suécia, a abdicar, em 1654.

(93) – "0 povo belicoso nenhuma vida imaginaria sem as armas".

(94) – "0 impulso de retroceder",

(95) – "A ida e a volta".


 

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