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A DIVINA COMÉDIA
— PARAÍSO —
Dante Alighieri

Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro

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A DIVINA COMÉDIA
— PARAÍSO —
DANTE ALIGHIERI

Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882
Ilustrações de Gustave Doré
1832-1883

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Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DE
D. GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO: ATENA EDITORA
RUA JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO - 1955

© 2003 — Dante Alighieri


 

A DIVINA
COMÉDIA

Dante Alighieri

—PARAÍSO—


 

Índice

Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
Canto XI
Canto XII
Canto XIII
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XXIV
Canto XXV
Canto XXVI
Canto XXVII
Canto XXVIII
Canto XXIX
Canto XXX
Canto XXXI
Canto XXXII
Canto XXXIII


PARAÍSO

 

CANTO I

 

Invocando Apolo, o Poeta conta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu, atravessando a esfera do fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio peso e subir. É atraído pelo invencível amor.

Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, em redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, a nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do respectivo planeta.

 

À GLÓRIA de quem tudo, aos seus acenos,
Move, o mundo penetra e resplandece,
3 Em umas partes mais em outras menos.

No céu onde sua luz mais aparece,
Portentos vi que referir, tornando,
6 Não sabe ou pode quem à terra desce;

Pois, ao excelso desejo se acercando,
A mente humana se aprofunda tanto
9 Que a memória se esvai, lembrar tentando.

Os tesouros, porém, do reino santo,
Que arrecadar-me pôde o entendimento,
12 Serão matéria agora de meu canto.

Faz-me neste final cometimento,
Bom Febo, do teu estro eleito vaso,
15 Que tenha ao louro amado valimento.

Fora-me assaz um cimo do Parnaso;
Daquele e do outro necessito agora
18 Para vencer na liça a que me emprazo.

Cala em meu peito, alenta o que te exora!
Sê como quando a Marsias arrancado
21 Hás do corpo a bainha protetora!

Se, divinal virtude, eu for entrado
Tanto de ti, que a sombra represente
24 Do reino que em minha alma está gravado,

Ao teu querido lenho eu, diligente,
Irei, por ter a c’roa merecida
27 De ti e deste assunto preminente.

Tão rara vez é, Padre, igual colhida
Quando triunfa César ou poeta
30 (Culpa e vergonha do querer nascida)

Que à Délfica Deidade a predileta
Fronde excitar devera alta alegria,
33 Se um coração por tê-la se inquieta.

Grande incêndio em centelha principia;
Voz, após mim, talvez, mais eloqüente
36 Mais graça em Cirra alcance e mais valia!

Por várias portas surge refulgente
A lâmpada do mundo; mas daquela,
39 Onde orbes quatro brilham juntamente

Com três cruzes, caminha sob estrela
Melhor, em modo que a mundana cera
42 Mais ao seu jeito retempera e assela.

Dali nascia a luz; daqui viera
A noite; e um hemisfério branquejava
45 Enquanto ao outro a treva enegrecera,

Eis vi que à esquerda Beatriz fitava
Olhos no sol: jamais águia afrontara
48 Tanto desse astro o lume, que ofuscava.

Como o raio, que a luz de si despara,
Reflete outro, que preito retrocede,
51 Qual romeiro, que à volta se prepara,

Esse ato, com que assim Beatriz procede,
Meu se tornou nos olhos infundido,
54 E o fitei mais que a um homem se concede.

Muito do que é na terra defendido,
No Paraíso é dado à humana gente,
57 A quem fora por dote prometido.

Fitar o sol não pude longamente.
Mas assaz para o ver fulgir no espaço,
60 Qual ferro, que do fogo sai candente.

Eis cuidei ver um dia, ao mesmo passo,
Luzir com outro, qual se Deus fizera
63 Do céu um sol segundo no regaço.

Sorvidos Beatriz na eterna esfera
Os olhos tinha; os meus que eu desviara
66 Dali no seu semblante embevecera.

Contemplando-a, o meu ser se transformara;
Tal Glauco, portentosa erva comendo,
69 Igual do mar aos Deuses se tornara.

Significar per verba não podendo
O que é transumanar o exemplo baste
72 Ao que o exp’rimente, a graça recebendo.

De ti, que por teu lume me exaltaste,
Amor do meu Senhor é conhecido,
75 Se em mim somente havia o que criaste.

Quando as Sferas, no giro, conduzido
Por ti no eterno anelo, me enlevaram
78 Com hino ao teu compasso dirigido,

Tantos etéreos plainos se mostraram
Inflamados do sol, que nunca os rios,
81 Nem as chuvas um lago igual formaram.

Essa luz, esses sons (jamais ouvi-os)
De saber tais desejos me acenderam
84 Que tão pungentes de antes não senti-os.

Ela em meu coração os viu como eram:
Por serenar-me o ânimo agitado,
87 Sem me escutar, seus lábios se moveram,

E disse: — “O teu espírito anda errado
Com falso imaginar: ’starias vendo
90 O que não vês, se houveras afastado.

“Te enganas, sobre a terra achar-te crendo:
O raio tão veloz do céu não desce,
93 Como tu que p’ra o céu vais ascendendo.” —

Se a dúvida primeira desaparece,
À voz que o riso segue, lhe escutando,
96 Inda mais outra a mente me escurece.

— “Modera-se o meu pasmo” — lhe tornando
Falei — “mas ora muito mais me admira
99 Como estes corpos leves vou passando.” —

Ouvindo, Beatriz terna suspira
E me encara piedosa, com semblante
102 De mãe que fala ao filho que delira.

— “Conservam” — respondeu-me — “ordem constante
As cousas entre si: esta é a figura
105 Que o universo ao Senhor faz semelhante.

“Ali vê cada uma alta criatura
Do Poder Sumo, bem ao claro, o selo,
108 Alvo sublime, que essa lei procura.

“Cada um entre na ordem, que eu revelo,
Se vai por modos vários inclinando,
111 Mais ou menos, ao seu princípio belo.

“Para portos dif’rentes navegando
No vasto mar do ser, cada qual segue
114 Os instintos que Deus lhe deu, criando.

“Por Ele a flama à lua alar consegue,
Por Ele o coração mortal se agita
117 E a terra em sua contração prossegue.

“Seu poder não somente se exercita,
Qual arco em seta, em bruto inconsciente,
120 Mas nos entes, que amor, razão concita.

“Tudo ordenando, o Autor Onipotente
Com sua luz tem o céu sempre aquietado,
123 Em que gira o que vai mais velozmente.

“Até lá, como a um alvo decretado,
Desse arco impele a força poderosa,
126 Quem conduz tudo a venturoso estado.

“Mas, como, às mais das vezes, revoltosa
A forma não responde ao intento da arte,
129 Porque a matéria é na surdez teimosa,

“Assim desta vereda se desparte
A criatura, para o bem guiada,
132 Que pode propender para outra parte,

“Se, de falso prazer sendo arrastada,
Baixa à terra, qual fogo desprendido,
135 De súbito, da nuvem carregada.

“Não seja mais de espanto possuído:
Como ao val rio cai de monte altivo,
138 Para a esfera estelífera és erguido.

“De maravilha fora em ti motivo
Não subindo; pois stás de estorvo isento;
Não fica imoto em terra o fogo vivo.” —

142 Disse e os olhos fitou no firmamento.

 

14. Febo, Apolo. — 16. Parnaso, o monte Parnaso tinha dois cimos; num moravam as Musas com Baco, no outro (Elicão ou Cirra) morava Apolo. — 20 Marsias, o sátiro Marsias desafiou Apolo e foi esfolado pelo deus. — 31. Délfica deidade, Apolo. — 36. Cirra, parte do Parnaso consagrada a Apolo. — 38. A lâmpada do mundo, o sol, 38-41. Daquela onde orbes quatro, etc. o ponto do céu no qual se conjuntam quatro círculos celestes, os quais entrecortando-se formam três cruzes. Caminha sob estrela melhor, a constelação do Áries. — 41. Mundana cera, a matéria terrestre. — 43-45. Dali nascia a luz; daqui viera a noite, no hemisfério do Purgatório amanhecia; no nosso hemisfério caía a noite. — 68. Glauco, pescador mitológico, ao comer uma erva marinha transformou-se em deus do mar. — 122-23. O Céu sempre aquietado, em que gira o que vai mais velozmente, o Empíreo imóvel, dentro ou embaixo do qual gira o primeiro móvel, que é o mais veloz dos céus.

 


 

CANTO II

 

Sobem à lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da lua dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz confuta o erro. Todos os astros são iluminados pela virtude que do primeiro móvel se difunde aos céus sotopostos. Na lua a virtude é menor que nos outros céus.

 

VÓS, que em frágil barquinha navegando,
Desejosos de ouvir, haveis seguido
3 Meu baixel, que proeja e vai cantando,

Volvei à plaga, donde haveis partido,
O pélago evitai; que, em me perdendo,
6 Vosso rumo talvez tereis perdido.

Ondas ninguém cortou, que vou correndo,
Sopra Minerva e me conduz Apolo
9 E o Norte as Musas mostram-me, a que eu tendo.

Vós, que, raros, a tempo haveis o colo
Erguido ao pão dos anjos, que alimenta,
12 Mas não sacia, no terráqueo solo,

A vossa nau guiai, de medo isenta,
No salso argento, após a minha esteira,
15 Enquanto água o seu sulco inda apresenta.

A que em Colcos surgiu gente guerreira,
Menos que vós, atônita ficara
18 Jasão vendo aplicado à sementeira.

Perpétua, inata sede nos tomara
Do império deiforme e nos levava
21 Quase bem como o céu, que jamais pára.

Olhava o céu Beatriz, eu a encarava.
Tão depressa talvez, quanto arrojada
24 Ao ar, a seta do arco se destrava,

Cousa vi, que prendeu maravilhada
A vista minha súbito; e então ela,
27 Que do meu cogitar stava inteirada,

Voltou-se e disse leda, quanto bela:
“A Deus eleva a mente, agradecido,
30 Chegados somos à primeira estrela.”

Lúcido, espesso, sólido e polido
Vulto, qual nuvem, nos cobrir parece,
33 Quase diamante pelo sol ferido.

Na per’la eterna entramos: assim desce
Raio de luz pela água, que recebe
36 No seio, mas unida permanece.

Se eu era corpo, e aqui se não percebe
Como uma dimensão outra compreende,
39 Senão se um corpo em outro corpo embebe,

Com mais razão desejo em nós se acende
De ver aquela essência, que é patente
42 Como a nossa natura a Deus se prende.

Ali o que por fé se crê somente
Sem provas por si mesmo será noto,
45 Como a verdade prima o que o home’ assente.

— “Ante o Senhor com ânimo devoto
Humilho-me” — tornei-lhe — “enternecido,
48 Pois do mundo mortal me tem remoto.

“Mas dizei: neste corpo o que tem sido
As manchas negras, com que lá na terra
51 Sobre Caim se hão fábulas urdido.” —

Sorriu-se e respondeu: — “Se assim tanto erra
Dos mortais o juízo no que a chave
54 Dos sentidos verdade não descerra,

“Não mais depois o espanto em ti se agrave;
Pois vês como, aos sentidos se rendendo,
57 Nos curtos vôos a razão se trave.

“Mas fala, idéias tuas me dizendo.” —
— “O que parece aqui ser diferente
60 De corpo raro e denso vir stou crendo.” —

— “Tu verás” — replicou — “bem claramente
Ser falsa a crença tua, se escutares
63 Os argumentos, que lhe oponho em frente.

— “Na oitava esfera há muitos luminares,
Nos quais, por qualidade e por grandeza,
66 Notam-se aspetos vários, singulares.

“Se o denso e o raro atua, com certeza
Virtude única em todos tem regência,
69 Influindo com mais, menos graveza:

“São as virtudes várias conseqüência
Dos princípios formais que destruídos
72 Seriam, exceto esse: é de evidência.

“Se são por corpo raro produzidos
Tais sinais, ou neste astro muitos postos
75 De matéria estão destituídos,

“Ou, como o gordo e o magro sobrepostos
No corpo vês, quadernos diferentes
78 Este astro em seu volume tem dispostos.

“Nesse caso estariam bem patentes
Nos eclipses do sol da luz efeitos,
81 Que são, nos corpos raros, transparentes.

“Assim não é. No outro, se desfeitos
Forem seus fundamentos, demonstrado
84 Terei teu erro em ambos os respeitos.

“Não indo o raro de um ao outro lado
Limite deve haver onde, já denso,
87 Não possa o corpo ser atravessado;

“E sobre si o lume torne intenso,
Bem como a cor, por vidro refletida,
90 Ao qual o chumbo é por detrás apenso.

“Dirás que a luz se mostra escurecida
Aí, mais do que outra e em qualquer parte,
93 Por ser de mais distância refrangida.

“Desta instância consegue libertar-te
Experiência, se dela te ajudares,
96 Por ser sói a fonte de toda arte.

“De espelhos três se a dois tu colocares
Com igual intervalo, e o derradeiro
99 Mais longe, entre os primeiros encarares;

“Se houveres pelas costas um luzeiro,
Que os espelhos já ditos esclareça,
102 Dos dois repercutido e do terceiro:

Conquanto uma extensão menor pareça
No espelho que se avista mais distante,
105 Verás como igual luz o resplandeça.

“Como aquecida do astro rutilante,
A neve se derrete e se esvaece,
108 A frigidez perdendo e a cor brilhante,

“Assim, pois que o teu erro desparece,
Mostra-te clarão vou tão refulgente,
111 Que cintila qual luz que do céu desce.

“No céu da paz divina um corpo ingente
Gira: em sua virtude está guardado
114 O ser de quanto é ele o continente.

“O céu seguinte, de astros marchetado,
Aquele ser reparte por essências
117 Distintas, mas que tem nele encerrado.

“Os outros céus, por várias influências,
Distinções que contêm, dispõe, lhes dando
120 Quanto serve aos seus fins e conseqüências.

“Esses órgãos do mundo (estás notando)
Seguem, pois, gradação, que não varia;
123 Vêm de cima os que abaixo vão passando.

“Comprendes já como é segura a via,
Por onde ir à verdade desejada:
126 Depois o vau tu passarás sem guia.

“Deve aos santos motores imputada
Ser, como ao fabro o efeito do martelo,
129 Dos céus a ação, desta arte revelada.

“E o céu, que tantos lumes fazem belo,
Do Ser Supremo, que no espaço o agita.
132 A imagem toma e a insculpe como selo.

“E como alma, que a humana argila habita,
Por diferentes membros atuando,
135 Faculdades diversas exercita,

“A Inteligência assim multiplicando
Dos astros nos milhões sua bondade,
138 Sobre a Unidade sua vês girando.

“Cada virtude, em sua variedade,
A cada precioso corpo é unida
141 A que dá, como em vós vitalidade.

“A virtude, em tais corpos infundida
Refulge, de um ser ledo procedente
144 Qual ledice em pupila refletida.

“Daí vem que uma luz de outra é dif’rente,
Não por efeito do que é denso e raro:
Esse é formal princípio eficiente

148 Conforme a sua ação o turvo e o claro.” —

 

11. Pão dos anjos, teologia. — 14. Salso argento, o mar. — 16. A que em Colcos surgiu gente guerreira, os Argonautas que se espantaram quando Jasão arou o campo com dois touros que expeliam flamas pelas narinas e semeou os dentes do monstro que havia matado, do que surgiram guerreiros (Ovídio, Met. VII). — 34. Per’la eterna, a lua. — 51. Sobre Caim se hão fábulas urdido, segundo uma crendice popular, as manchas da lua representavam Caim carregando um feixe de espinhos. — 60. De corpo raro e denso, Dante havia escrito no Convívio que as manchas lunares eram partes rarefeitas do astro. — 73-90. Se a lua tivesse algumas partes transparentes não haveria possibilidade de verificar-se o eclipse do sol. Se as partes rarefeitas não são transparantes deveria haver ao oposto delas, como num espelho, partes densas que impediriam a transparência. Nesse último caso, porém, os raios externos, como no espelho, deveriam refletir-se. — 112. No céu da paz, o Empíreo. — 112-13. Um corpo ingente gira, o primeiro móvel, que influencia os outros céus. — 127. Santos motores, os anjos que agem em cada um dos céus. — 130-132. E o céu, que tantos lumes fazem belo etc., aquele Céu que tantas estrelas fazem belo, recebe da divina inteligência a virtude e a imprime nos outros céus.

 


 

CANTO III

 

Na lua estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos. Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati, que resolve uma sua dúvida sobre o contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra-lhe como foi violentamente tirada do mosteiro. Indica-lhe a alma da imperatriz Constança.

 

O SOL por quem primeiro ardeu meu peito,
Provando e refutando, me mostrara
3 Da formosa verdade o doce aspeito.

Por confessar-me do erro, em que vagara,
Quanto possível fosse, convencido,
6 Mais alto a fronte para a sua alçara.

Eis fui de uma visão tal possuído,
Que olvidei meu desejo inteiramente,
9 Ficando em contemplá-la submergido.

Bem como em cristal puro e transparente,
Ou nágua clara, límpida e tranqüila,
12 Que deixa à vista o fundo seu patente,

A imagem nossa quase se aniquila,
Em modo, que uma per’la em nívea fronte
15 Se faz mais perceptível à pupila,

Assim, dispostas a falar defronte
Várias figuras vi: eu no erro oposto
18 De Narciso caí amando a fonte.

Eu, cuidando as feições do seu composto
Ver num espelho, súbito volvia,
21 Por bem saber quem fosse, atrás o rosto.

Ninguém vi. Logo o gesto me atraía
Da doce guia, que, a sorir-me estando,
24 Dos santos olhos no esplendor ardia.

— “No sorriso, não pasmes, reparando,
A causa é” — diz — “teu pueril engano,
27 À verdade caminhas vacilando.

“Andas em falso, como sóis, de plano:
Verdadeiras substâncias estás vendo;
30 Trouxe-as aqui dos votos seus o dano.

“Interroga, o que ouvires crer devendo;
Pois da verdade a luz, que as esclarece,
33 As conduz, de todo erro as defendendo.” —

Volto-me então à sombra, que parece
Mais desejosa de falar: torvado
36 Começo, e a voz impaciência empece.

— “Tu, espírito eleito, que, enlevado,
Da vida eterna aqui fruis a doçura,
39 Que entende só quem tem expr’imentado,

“Grã mercê me farás, se porventura
Disseres o teu nome e a sorte vossa.” —
42 A responder-me leda se apressura.

— “Ao bom desejo a caridade nossa,
Como a que manda a corte sua inteira
45 Imitá-la, defere quanto possa.

“Eu era lá no mundo virgem freira:
Diz-te a memória, se as feições me guarda,
48 Que sou, posto mais bela, e verdadeira.

“Atenta bem: verás que sou Picarda:
Estou nesta bendita companhia,
51 Venturosa na esfera, que é mais tarda.

“As nossas afeições que inflama e guia
Somente a inspiração do Esp’rito Santo,
54 Enlevam-se em cumprir ordens que envia.

“A sorte, ao parecer somenos tanto,
Nos coube, por ter sido descurado
57 O sacro voto e em parte posto a um canto.” —

Respondi-lhe: — “No aspeito sublimado
Vosso rebrilha um não sei que divino,
60 Que o tem do que foi de antes transmutado.

“Não fui, pois, em lembrar-me repentino;
Porém, do que disseste me ajudando,
63 Eu do que hás sido em recordar-me atino.

“Mas vós que estais aqui dita logrando
Não sentis de outro céu desejo ardente
66 Por ver mais alto mais amor gozando?” —

Sorriu-se a sombra e as outras docemente;
E disse da alegria radiante,
69 O seu primeiro amor como quem sente:

“Rege o nosso querer, em paz constante,
A caridade, irmão: só desejamos
72 O que ora temos e não mais avante.

“Anelando ir mais alto do que estamos,
Seríamos rebeldes à vontade,
75 A que aprouve esta estância, que habitamos.

“Pois nos cumpre existir na caridade,
Surgir não pode em nós tal pensamento,
78 Dessa virtude oposto à santidade.

“Condição de eternal contentamento
É preceito cumprir do Onipotente:
81 Um só com ele é logo o nosso intento.

“Do reino em cada plaga refulgente
Somos, do reino todo muito ao grado
84 E do Rei, que à sua lei nos molda a mente.

“Seu preceito a paz nossa se há tomado:
Ele é mar a que tudo precipita,
87 Que cria, ou faz natura ao seu mandado.” —

Conheço então que o Paraíso habita
Quem stá do céu em qualquer parte, e vejo
90 Não chover de um só modo a suma dita.

Mas, se um manjar sacia, dado o ensejo,
E de outro resta o apetite vivo,
93 Um se agradece, expondo-se o desejo.

Por gesto e voz assim fiz-me expressivo
Para a tela saber que a lançadeira
96 Não rematara com lavor ativo.

— “Perfeita em vida, em mérito altaneira
Acima santa está, que há regulado
99 Vestes e véus, com que professa freira,

“Até finar-se, vele ou durma ao lado
Desse esposo, que todo voto aceita,
102 Se lhe é por caridade consagrado.

“Menina e moça, à sua regra estreita
Submeti-me, e do mundo me apartando
105 Jurei aos seus preceitos ser sujeita.

“Roubou-me à paz do claustro iníquo bando,
Mais à maldade do que ao bem afeito:
108 Qual foi Deus sabe o meu viver, penando!

“Este fúlgido esp’rito, em cujo aspeito
(À direita demora-me) se acende
111 Quanto lume o céu nosso tem perfeito,

“O que digo de mim de si o entende;
Sendo freira, como eu foi-lhe arrancado
114 O santo véu, que o voto à fronte prende.

“Mas, ao mundo tornando de mau grado,
Que os seus piedosos usos ofendia,
117 Guardou fiel seu peito ao sacro estado.

“É a excelsa Constância a que radia:
Deu de Suábia ao Imperador segundo
120 Herdeiro, em que extinguiu-se a dinastia.” —

Calou-se; e logo do Ave o hino jucundo
Cantou: cantando aos olhos desparece,
123 Qual peso, que mergulha em mar profundo.

Segui-la a vista quis quanto pudesse;
De desejo invencível atraída,
126 Voltou-se, quando em todo se esvaece,

E em Beatriz fitou-se embevecida.
Mas era o rosto seu tão fulgurante,
Que ante o lume sentiu-se esmorecida.

130 Pelo efeito atalhei-me titubante.

 

1. Sol da beleza, Beatriz — 17-18. No erro oposto de Narciso, Narciso se enamorou da sua imagem na fonte, tomando-a por pessoa verdadeira. Dante caiu no erro oposto. — 49. Picarda Donati, irmã de Forese e de Corso, freira de Santa Clara, foi obrigada pela sua família a casar-se com Rossellino della Tosa. — 95-96. A tela a saber que a lançadeira etc., o motivo pelo qual faltou aos votos que tomara — 98. Acima Santa está, Santa Clara. — 118. Constância, filha de Rogério, rei das Apúlias e de Sicília, casada com Henrique VI e mãe de Frederico II.


imagem

Atenta bem: verás que sou Picarda


 

CANTO IV

 

Duas dúvidas agitam o espírito do Poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas voltam para as estrelas donde saíram. A outra, se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória? Beatriz responde à primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro, quando tiveram possibilidade de fazê-lo.

 

DE igual modo distantes e atraentes,
Homem livre entre cibos dois morrera
3 De fome, antes que num metesse os dentes.

Cordeiro assim, sem se mover, temera
No meio de dois lobos truculentos;
6 Um galgo entre dois gamos não correra.

Calando-me entre opostos pensamentos,
Louvor não merecia, nem censura;
9 Necessário era então nos meus intentos,

Mas no semblante o anelo se afigura;
Constrangido silêncio o denuncia
12 Melhor que a voz, quando expressão apura.

Fez Beatriz, qual Daniel fazia
Para os assomos moderar da ira,
15 Que ao mal Nabucodonosor movia.

— “Dos desejos cada um tua alma tira”
— Disse — “e estando em tais laços enleada,
18 Tolhido o raciocínio, não respira.

“Discorres: se a vontade contrastada
No bem persiste, pode porventura
21 Em méritos julgar-se amesquinhada?

“Turbar-te inda outra dúvida procura:
Se das estrelas a alma torna ao meio,
24 Como Platão filósofo assegura.

“Destes problemas dois te nasce o enleio.
No derradeiro o exame principia
27 Porque do erro mais fel há no seu seio.

“Não têm anjo, que em Deus mais se extasia
Moisés e Samuel, João Batista,
30 O Evangelista, nem também Maria,

“Lugar em céu dif’rente do que a vista
De espíritos te deu que hão se mostrado:
33 Num só têm todos a eternal conquista.

“O Empíreo é por todos adornado,
Hão todos doce vida variamente,
36 Conforme o eterno sopro é facultado.

“Se nesta esfera os viste, certamente,
Não foi por destinada lhes ter sido,
39 Grau só denota menos eminente.

“Assim por mente humana comprendido
Será, pois se eleva ao entendimento
42 Do que é pelos sentidos percebido.

“Por ter do que sois vós conhecimento
A Escritura atribui, mas al entende,
45 Pés e mãos ao Senhor do firmamento.

“Em figurar a Igreja condescende
Gabriel e Miguel e o que a Tobia
48 Curou, sob a feição, que à humana tende.

“Timeu esta verdade contraria
No que acerca das almas argumenta;
51 Parece crer à letra o que anuncia.

“Ao seu astro voltar a alma sustenta,
Supondo que ela à terra descendera,
54 Quando, por forma ao corpo unida, o alenta.

“Talvez diversa idéia concebera
Do que nas vozes suas emitira,
57 Escarnecida ser não merecera.

“Se a honra ou vitupério atribuíra
Aos astros de influir na vida humana,
60 Na verdade talvez firmasse a mira.

“Mal entendido, o seu princípio dana
O mundo quase inteiro, que prestara
63 A Jove e a Marte adoração insana.

“A dúvida segunda te depara
Menos veneno, pois o mal, que encerra
66 Para longe de mim não te afastara.

“Que a Justiça Divina lá na terra
Pareça injusta é, de péssima heresia,
69 Argumento de fé, que jamais erra.

“Mas, como a humana mente poderia
Às alturas alar-se da verdade,
72 Vou dar-te, o que o desejo te sacia.

“Constrangimento havendo, se, à maldade
A vítima se opondo, em luta insiste,
75 Desculpa elas não têm, sem dubiedade.

“Não se abate a vontade, se persiste;
Sempre se ergue, qual flama cintilante:
78 A força a estorce, vezes mil resiste.

“Por menos que se dobre vacilante,
Cede à força: voltar ao santo abrigo
81 Puderam, tendo o ânimo constante.

“Se o querer fosse inteiro no perigo,
Como Lourenço no braseiro ardente,
84 Ou Múcio, que à mão sua deu castigo,

“Em livres sendo, a estrada incontinênti
Do dever seguiriam pressurosas;
87 Mas raro é tal valor na humana gente.

“Se atendeste, razões dei poderosas
Para ficar tua dúvida solvida:
90 Causa te fora a angústias afanosas.

“Mas ante os olhos ora vês erguida
Outra ainda mais grave, que, por certo,
93 Não fora por ti só desvanecida.

“Já te hei bem claramente descoberto
Que não pôde mentir alma ditosa
96 Pois da Suma Verdade é sempre perto.

“Narrou depois Picarda que extremosa
No seu amor ao véu fora Constância,
99 Ao revés do que eu disse cautelosa.

“Na existência há mais de uma circunstância,
Em que se faz, perigos receando,
102 O que é vedado ou move repugnância.

“Do pai ardentes rogos respeitando,
A sua mãe Alcmeon cortava a vida,
105 Por piedade impiedoso se tornando.

“Fique, pois, a tua mente convencida
De que ao querer se a força anda ajustada,
108 Não há desculpa à falta cometida.

“A vontade absoluta é declarada
Inimiga do mal: cede temendo
111 Ser, pela oposição, mais lastimada.

“A verdade absoluta em mira tendo,
Picarda discorreu: de outra eu falava.
114 Verdade ambas estamos defendendo.” —

Do santo rio a luz assim manava,
Da Fonte da verdade é derivada:
117 Cada um dos meus desejos contentava.

— “Ó do Primeiro Amante excelsa amada!
Ó santa” — eu disse — “cuja voz me anima,
120 Me inunda e a força aviva à alma abrasada!

“Afeto meu que ao extremo se sublima,
Não basta por tornar graça por graça:
123 Que o Senhor minha dívida redima!

“Não há, bem sei, não há quem satisfaça
A mente, se a Verdade não comprende
126 Fora da qual outra nenhuma passa.

“A mente ali se refocila e prende,
Qual fera, que em seu antro empolga a presa:
129 De outra sorte o desejo em vão se acende.

“E por isso ao pé nasce da certeza,
Como vergôntea, a dúvida e nos leva
132 De cimo em cimo até sublime alteza.

“Com toda a reverência que vos deva,
Ouso pedir-vos me expliques, Senhora,
135 Outra verdade, que me está na treva:

“Os rotos votos, que homem sente e chora,
Pode suprir com mérito dif’rente,
138 Que iguale em peso o que perdera outrora?” —

Beatriz me encarou: tão refulgente
Lhe rebrilhava o olhar e tão divino,
Que me volto, sentindo a força ausente,

142 E, quase aniquilado, a fronte inclino.

 

13. Qual Daniel etc., Beatriz interpretou o pensamento de Dante, como Daniel o sonho de Nabucodonosor, que queria mandar matar os seus sábios por não terem podido interpretá-lo. — 24. Como Platão filósofo assegura, segundo a teoria platônica as almas são criadas antes dos corpos e habitam as estrelas, a elas voltando, depois da morte do corpo. — 28-32. Não tem anjo etc., todos os anjos e santos não têm, no céu, lugar diferente daquele dos espíritos que agora apareceram. — 47. O que a Tobia curou, o Arcanjo Gabriel que curou a cegueira de Tobias. — 49 Timeu, diálogo de Platão no qual se fala da imortalidade da alma. — 61-63. Mal entendido, o seu princípio dana, etc., a opinião, mal entendida, da ação das estrelas sobre a alma, talvez, leva ao erro, e, por isso, deram-se aos planetas os nomes de Jove e Marte e foram eles adorados. — 83. Lourenço, condenado a morrer queimado vivo. — 84. Muzio, Scevola, para punir-se, fez queimar sua mão sobre um braseiro. — 104. Alcmeon, filho de Anfiarau, matou a mãe Erifiles, v. Purgatório, XII, 50.

 


 

CANTO V

 

Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos.

Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta.

 

SE no fogo do amor te resplandeço
Em modo, que o terreno amor precede;
3 Se aos olhos teus a força desfaleço;

“Não te espantes: efeito é que procede
Desse perfeito ver, que o bem compreende,
6 E, o compreendendo, em se apurar progrede.

“Já patente me está quanto resplende
Na inteligência tua a Luz eterna,
9 Que, apenas vista, sempre amor acende;

“E, se outro objeto humano amor governa,
Vestígio dela é só mal percebido,
12 Só transluzindo em sua forma externa.

“Saber queres se um voto não cumprido
É de outras obras resgatado, e tanto,
15 Que em juízo de Deus fique absolvido.” —

Começou Beatriz desta arte o canto;
E, como quem no discorrer não pára,
18 Seguiu assim no seu elóquio santo:

“O mor bem que ao universo Deus doara,
O que indicara mais sua bondade
21 O que em preço mais alto avaliara,

“Foi do querer, por certo, a liberdade,
Que a toda criatura inteligente
24 Há dado em privativa faculdade.

“Daqui, por dedução, fica evidente
Do voto a alta valia, quando é feito
27 Por acordo entre Deus e a humana mente.

“Por contrato, entre Deus e o home’ aceito,
Esse tesouro é vítima imolada,
30 Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.

“Pode ser porventura compensada?
Se cuidas usar bem do que ofertaste,
33 Crês fazer bem com prata mal ganhada.

“Certo do ponto capital ficaste;
Com a dispensa a Igreja, parecendo
36 Em tal caso contrário ao que escutaste,

“Convém, que um pouco à mesa te detendo,
Para o rijo manjar, que hás ingerido,
39 Socorro aguardes, que te dar pretendo.

“Ao que te explico atento presta ouvido
E guarda-o na alma; pois não dá ciência
42 Ouvir o que depois fica no olvido.

“Exige do sagrado voto a essência
Aquele objeto em sacrifício dado
45 E do próprio contrato a consistência.

“Jamais pode ser este obliterado,
Ainda que infringido: já bem clara
48 Demonstração sobre este ponto hei dado.

“Lei rigorosa a Hebreus determinara
Fazer pia oblação; mas concedida
51 A permuta da oferta lhes ficara.

“Da matéria do voto é permitida
Conversão quando ensejo se oferece,
54 Sem ser por isso falta cometida.

“Mas não se muda, quando bem parece,
O fardo; só se a Igreja, tendo usado
57 Das chaves de ouro e prata, o concedesse.

“Crê que toda permuta é passo errado,
Quando o antigo no novo não se inclua,
60 Bem como quatro em seis vês encerrado.

“Se o voto é tal na gravidade sua,
Que obrigue a se inclinar toda balança,
63 Outro voto não há, que o substitua.

“Não contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os, mas não Jefté imitando,
66 A quem deu louco voto a desesp’rança.

“— Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por não fazer pior cumprindo-o. Estulto
69 Foi o potente Rei dos gregos, quando

“À filha fez chorar seu belo vulto
E à piedade moveu quantos ouviram
72 Falar daquele abominável culto.

“A razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! não sêde pluma a qualquer vento!
75 As nódoas com toda a água se não tiram!

“Tendes o Velho e o Novo Testamento
E da Igreja o pastor, que os passos guia:
78 Que mais quereis por vosso salvamento?

“Se má cobiça o peito vos vicia,
Homens sêde e não brutos animais:
81 Que entre vós o Judeu de vós não ria.

“Como o cordeiro simples não façais,
Que contra si combate petulante,
84 Da mãe o leite não querendo mais.” —

Beatriz assim disse. Eis anelante
E arrebatada em êxtase voltou-se
87 À parte, onde o universo é mais brilhante.

Ante o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se o meu desejo impaciente:
90 De outras questões, já prestes, refreou-se.

Como a seta, que o alvo de repente
Atinge antes que a corda esteja quieta,
93 No céu segundo entramos velozmente.

Tão leda eu via Beatriz dileta,
Daquele céu nas luzes penetrando,
96 Que mais vivo esplendor mostra o planeta.

E se a estrela sorriu, se transformando,
Como não fiquei eu, que fez natura
99 Mudável, impressões todas tomando?

Como viveiro de água mansa e pura,
Pela esp’rança, de pasto, que se of’reça,
102 Sofregamente o peixe o anzol procura,

Mais de mil esplendores vindo à pressa,
— “Eis aí quem nos traz de amor aumento!” —
105 A voz de cada qual nos endereça.

De cada sombra o alegre sentimento,
Em se acercando a nós, se denuncia
108 No fulgor do seu claro luzimento.

Quão sôfrego o desejo não seria
Em ti leitor, se acaso interrompesse
111 A narração de quanto então se via?

Imaginas, portanto, o que eu tivesse
De conhecer aquela grei formosa,
114 Tanto que ante os meus olhos aparece.

— “Ó criatura, que assim vês ditosa
Os tronos do eternal triunfo, inda antes
117 De finda a terreal guerra afanosa,

“Nos lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos: te darei, se as pretenderes,
120 Ao teu desejo informações bastantes.” —

Assim falou. — “Responde que assim queres.” —
A Beatriz ouvi — “diz com franqueza,
123 E crê como divino o que entenderes.”

— “O ninho tens, já vejo com certeza,
Na luz eterna: o seu fulgor revela
126 Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.

“Mas não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem por que por degraus tens esta esfera,
129 Que aos mortais nos clarões de outra se vela.”

Assim disse, voltado à luz que houvera
Primeira a voz alçado: refulgindo,
132 Mais coruscante a vi ao que antes era.

Bem como o sol os lumes encobrindo
No seu próprio esplendor quando esvaece
135 As cortinas que estavam-nos cingindo,

Da alegria no excesso desparece
Nos próprios raios a figura santa.
Na sua luz envolta que recresce,

139 Disse o que o canto que se segue canta.

 

56-57. Só se a Igreja etc., só se a Igreja, que possui a chave de prata (da ciência) e de ouro (da autoridade) o permitir. — 65. Jefté, juiz de Israel, fez o voto, se vencesse os Amonitas, de sacrificar a primeira pessoa que encontrasse no caminho; e esta foi a sua filha. — 69. O potente rei dos Gregos, Agamenon prometeu aos deuses o que possuía de mais belo. Chorou depois a beleza da sua filha Ifigênia.


imagem

Mais de mil esplendores vindo à pressa


 

CANTO VI

 

A alma do imperador Justiniano fala ao Poeta. Narra-lhe a história do Império, de Enéias a César, a Tibério, a Tito, a Carlos Magno, para mostrar-lhe a santidade da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Provença.

 

“DEPOIS que Constatino a Águia voltara
Contra o curso do céu, que ela seguira
3 Pós o herói, que Lavínia conquistara,

“Duzentos anos já passados vira
Da Europa em confins de Deus essa ave,
6 Vizinha aos montes, donde se partira;

“Das plumas sob a sombra ampla e suave,
De mão em mão o mundo há dominado,
9 Té comigo reger do Império a nave.

“César, Justiniano fui chamado.
Do Amor, que sinto, por querer movido,
12 O supérfluo das leis hei cerceado.

“Antes de ter a empresa cometido,
Uma só natureza acreditava
15 Ter Cristo e andava nessa fé perdido.

“Mas de Agapeto santo que mandava
De Roma Santa Igreja, a voz potente
18 Levou-me à crença pura, que eu deixava.

“O que então disse, eu vejo claramente,
Pois, como vês, contradição implica
21 Uma falsa asserção e outra evidente.

“Quando eu cri no que a Igreja certifica,
Minha mente, de Deus por alta graça,
24 Logo à sublime empresa se dedica.

“Belisário a reger as armas passa;
No favor, que lhe deu poder divino
27 Sinal vi que me ordena a paz se faça. —

“A responder-te, o que ouves tem destino;
Mais o que hei dito agora a tanto obriga,
30 Que a mor explicação dar-te me inclino.

“Verás que sem razão vontade imiga
Move-se contra esse estardarte santo,
33 Quando o tenta usurpar, quando o profliga.

“Pelos fatos verás respeito quanto
Mereceu desde a honra em que Palante
36 Morreu por dar-lhe de sob’rano o manto.

“Em Alba sabes como foi constante
Por mais de anos trezentos té lutarem
39 Três contra três por que ele fosse avante.

“Sabes quanto ele fez por se curvarem
Vizinhos desde o roubo das Sabinas
42 Té Lucrécia expirar e os Reis findarem.

“Sabes que glória teve nas mãos di’nas
De heróis, que Breno e Pirro combateram,
45 E de outros reis coligações mali’nas;

“Décios, Fábios, Torquatos lhe deveram
E Quíncio Cincinato, que amo e louvo
48 A fama das vitórias, que tiveram;

“Calcou o orgulho do Africano povo,
Que por fraguras, donde, o Pó, te envias,
51 Sob Aníbal, abriu caminho novo.

“Fez triunfar da juventude em dias
Cipião e Pompeu, e assaz desgosto
54 Causou às tuas pátrias serranias.

“Perto dos tempos, em que o céu disposto
Havia, por seus fins, dar paz ao mundo.
57 Em mãos de César Roma o teve posto.

“O que ele fez do Var ao Rin profundo
Isara há visto e o Era, há o Sena
60 E esse vale, onde o Rone é sem segundo.

“Passando o Rubicon, após Ravena,
Com César a Águia tanto em vôo alçou-se,
63 Que o não pôde seguir nem voz, nem pena.

“Depois que para a Espanha remontou-se,
A Durazzo e a Farsália acometia:
66 Do efeito o ardente Nilo perturbou-se.

“O Simoente e Antandro então revia,
Seu berço, em que a de Heitor cinza descansa;
69 E sem detença a Ptolomeu se envia.

“Dali, qual raio, logo Juba alcança;
Depois volve-se às terras do Ocidente,
72 Onde os sons de Pompeu a tuba lança.

“Nas mãos de outro o que fez essa ave ingente
No inferno Bruto e Cássio estão sentindo,
75 Sofrem Perúgia e Módena tremente.

“Cleópatra inda vai triste carpindo
Atroce morte, que da serpe toma,
78 Da Águia os assaltos pávida fugindo.

“Até o Roxo mar tudo a Águia toma,
E ao mundo tão serena a paz se inclina,
81 Que em fim de Jano as portas fecha Roma.

“O que fez e faria a ave divina
Para trazer à fama sua aumento
84 Nesse império mortal, em que domina,

“Parece escasso em seu merecimento,
Quando em mãos de Tibério a contemplamos
87 Com puro afeto e claro entendimento;

“Pois que a viva justiça, que adoramos
Lhe há nessas mãos a glória concedido
90 De dar vingança às iras, que incitamos.

“Sê, me ouvindo, de espanto possuído:
Águia a vingança do pecado antigo
93 Depois com Tito há por tornar corrido.

“Quando, mordida por lombardo imigo,
Gemia a Santa Igreja, à sombra da ave
96 Salvou-a Carlos Magno do perigo.

“Podes julgar, portanto, do erro grave
Daqueles, cujas faltas hei notado,
99 Causa do mal que vês quanto se agrave.

“Contra o sacro estandarte um tem hasteado
Áureo lírio, outro o quer por seu partido:
102 Custa dizer qual seja o mais culpado.

“Gibelinos, no iníquo andar sabido
Outra bandeira sigam; que à justiça
105 Culto esta exige nunca interrompido.

“Carlos novo a batê-la em vão cobiça
Com Guelfos; temas as garras, que arrancaram
108 A mais forte leão juba inteiriça.

“Mais de uma vez os filhos já choraram
Pelas culpas do pai: é louca a esp’rança, —
111 De que de Deus favor lírios ganharam.

“O planeta, em que habito agora, estança
É de almas generosas que honra e fama
114 Aspiraram do mundo na lembrança.

“Quando os desejos deste modo inflama
O incentivo da glória, aos céus ascende
117 Do vero amor menos ativa a chama.

“Mas nossa dita em parte compreende
Dos méritos e prêmio no confronto:
120 Nem menor, nem maior nenhum se entende

“Pois da viva justiça o feito pronto
Tanto os afetos nos ameiga e apura,
123 Que nequícia os não torce em nenhum ponto.

“Vozes várias de sons formam doçura:
Assim os vários graus na eterna vida
126 Doce harmonia fazem nesta altura.

“Nesta per’la, em que estás, bela e polida,
Rebrilha de Romeu claro luzeiro,
129 Virtude ínclita e mal agradecida.

“Os provençais, pelo ato traiçoeiro,
Não se riram; caminho segue errado
132 Quem o bem de outro inveja sobranceiro.

“Às filhas grato de rainha o estado
Conseguiu Beranguer: tal bem devia
135 A Romeu, nome humilde e não falado.

“Preso na trama que a calúnia urdia,
Que aumentado no quinto o erário havia;
138 Do erário contas exigiu do justo,

“Romeu partiu-se então pobre e vetusto:
Se o mundo o coração lhe aquilatara,
Quando, mendigo, se mantinha a custo,

142 Louvor muito maior lhe dispensara.” —

 

1-3. Depois que Constantino a Águia voltara etc., depois que Constantino transferiu o Império de Roma para Bizâncio. — 10. Justiniano, imperador romano e grande legislador, que reinou duzentos anos depois de Constantino, pois começou o seu reinado em 527. — 14. Uma só natureza etc., a doutrina de Eutíquio segundo a qual Cristo tinha só a natureza humana. — 16. Agapeto, o papa Agabito. — 25. Belisário, grande capitão que combateu na Itália contra os Godos. — 32. Esse estandarte sacro, o emblema do Império, que representava a águia. — 35. Palante, companheiro de Enéias, morreu combatendo contra Turno. — 37. Alba, cidade fundada por Ascânio, filho de Enéias. — 39. Três contra três, combatimento dos Horácios contra os Curiácios. — 41. O roubo das Sabinas, o rapto das mulheres dos Sabinos, efetuado pelos Romanos. — 42. Lucrécia, mulher de Colatino, foi violentada por Tarquinio, daí resultando a rebelião dos Romanos contra a monarquia. — 44. Breno e Pirro, o primeiro general dos Galos, o segundo rei do Épiro, que invadiram a Itália. — 46-47. Décios, pai, filho e neto morreram pela pátria; Fábios, ilustre família romana; Torquatos, T. Manlio Torquato; Quíncio, Q. Lúcio Cincinato. — 51. Aníbal, general cartaginês que invadiu a Itália. — 67. Simoente, rio perto de Tróia; Antadro, cidade da Frísia. — 73. Nas mãos do outro o que fez César, Augusto vingou a morte de César. — 76. Cleópatra, rainha do Egito, suicidou-se. — 93. Tito, destruiu Jerusalém, cujos habitantes tinham crucificado a Jesus Cristo. — 94. Lombardo imigo, Desidério, último rei longobardo que foi derrotado por Carlos Magno. — 101. Áureo lírio, as armas da Casa de França. — 106. Carlos novo, Carlos II de Anjou, chefe do partido guelfo. — 128. Romeu, segundo conta G. Villani, foi administrador de Raimundo Beranguer, conde de Provença, aumentando-lhe o patrimônio e conseguindo casar as filhas de Raimundo com quatro reis. Caluniado, não quis mais ficar na corte de Provença e, velho e pobre, desapareceu.

 


 

CANTO VII

 

Desaparecem os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por Deus. Os anjos e os homens por sua natureza são livres e imortais. O homem porém, pecando, abusou da sua liberdade, e deformou a imagem de Deus que tinha em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto quanto Adão, em seu orgulho, quis subir. A Deus convinha ou perdoar ou punir. Na sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu no mesmo tempo. Puniu a humanidade em Jesus Cristo e nele a fez novamente livre.

 

“HOSANNAH Sanctus Deus Sabaoth,
Superillustrans daritate tua

3 Felices ignes horum malacòth!

Assim, voltando à melodia sua,
Cantar ouvi essa alma venturosa
6 Em quem dúplice lume se acentua.

Tornam todas à dança jubilosa,
E súbito da vista se apartaram
9 Velozes, como flama fulgurosa.

Disse entre mim, pois dúvidas me entraram:
“Fala à senhora tua, fala; à sede
12 Rocio as palavras suas te deparam.”

Torvação me assenhora e a voz me impede,
Que apenas B com I C E conjugava:
15 Acurvei, como quem ao sono cede.

Mas Beatriz do enleio me tirava,
Com sorriso, que a mente me ilumina
18 E aditara entre as chamas começava:

— “Como bem vejo, dúvida domina
A tua alma: — a vingança, que foi justa,
21 Punição teve, da justiça di’na?

“Esclarecer-te o espírito não custa.
Atende bem: verdade preminente
24 Das vozes minhas co’a expressão se ajusta.

“Aceitar não querendo, obediente,
Saudável freio, o homem, sem mãe nado,
27 Perdeu-se a si, perdeu a humana gente.

“Muitos séc’los enferma do pecado,
Jazeu ela não erro engrandecido
30 Té que o Verbo de Deus fosse encarnado.

“Por ato só do Eterno Amor, unido
À natureza se há, que ao mal se dera,
33 Depois de esquiva ao Criador ter sido.

“No que vou te dizer bem considera.
A natureza, a que se uniu beni’no
36 Em pessoa, nasceu boa e sincera.

“Por si mesma, fugindo em desatino
Da vereda da vida e da verdade,
39 Do Paraíso se exilou divino.

“Da Cruz a pena, em face da maldade
Da natureza, a que Jesus baixara,
42 Foi a mais justa em sua gravidade.

“Nunca injustiça igual se praticara,
Atenta essa Pessoa, que há sofrido,
45 Que à natureza humana se ajuntara.

“Contrastes, pois, de um ato hão procedido:
Folgam Judeus da morte a Deus jucunda,
48 Foi ledo o céu e o mundo espavorido.

“E não te mova sensação profunda
Ouvir que uma vingança, que foi justa,
51 Vingada ser devia por segunda.

“Vejo-te a mente por vereda angusta
Levada a estreito nó de dubiedade,
54 Que solver mor esforço ora te custa.

“Dirás: — discerne o que ouço, na verdade;
Mas porque Deus nos desse está-me oculto,
57 Remindo-nos tal prova de bondade. —

“Este decreto irmão, está sepulto
Aos olhos do que ainda o entendimento
60 Não tem de Amor na flama ainda adulto.

“É mistério em que luta o pensamento
Sem fruto conseguir de tal porfia,
63 Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento!

“A Divina Bondade que desvia
De si o desamor, arde e flameja,
66 Por eternais primores se anuncia.

“Diretamente o que emanado seja
Dela é sem fim; eterna impressão fica
69 Do que no seu querer supremo esteja.

“O que assim nasce, não sujeito fica
Das causas secundárias à influência
72 E liberdade plena significa.

“Mais lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que o santo Amor que em toda cousa brilha,
75 Mais vivo é no que encerra esta excelência.

“Aos homens de tais bens cabe a partilha:
De tais predicados se um falece,
78 Sua nobreza já decai, se humilha.

“Só por pecado dessa altura desce;
Do Sumo Bem não mais reflete o lume,
81 Semelhança não mais dele oferece.

“E o grau sublime seu não mais assume,
Se não contrapuser ao do pecado
84 Deleite mau das penas o azedume.

“Quando o gênero humano, infeccionado
Todo no germe seu, foi dessa alteza
87 E do seu Paraíso deserdado,

“Reaver só pudera (com certeza
Verás, se bem cogitas), intervindo
90 Um dos meios, que aponto por clareza:

“Ou Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou — porque, de si mesmo, se convença —
93 Das culpas suas o homem se remindo.

“Para sondar a profundeza imensa
Dos eternos conselhos, prende à mente
96 As razões que o discurso meu dispensa.

“O homem não podia, de indigente,
As dívidas solver: nunca pudera
99 Curvar-se tanto, humilde e reverente,

“Quanto, rebelde, se elevar quisera.
Eis por que redimir-se do pecado
102 Só por si mesmo ao homem não coubera.

“E, pois há sido do divino agrado,
Por clemência ou justiça e ambas juntando,
105 Ser ele à vida eterna aparelhado.

“A feitura do Autor ao gosto estando
Inda mais, quando a imagem nos of’rece
108 Do peito, de quem vem piedoso e brando,

“A Bondade que em tudo transparece,
Em prol vosso os dois modos reunia:
111 Um somente bastar-lhe não parece.

“Entre a noite final e o primo dia
Ato igual não se fez alto e formoso
114 Desse modo por um, nem se faria.

“Dando-se, há sido Deus mais generoso,
Por que o home’ a se erguer se habilitasse,
117 Do que só perdoando carinhoso.

“Outro meio qualquer, que se empregasse
Não bastara à Justiça, se humilhando
120 De Deus o Filho à carne não baixasse.

“Para de todo seres doutrinado
Eu torno a um ponto, por que vejas claro,
123 Como eu, o que zelosa hei te explicado.

“Dizes: — no fogo e no ar, se bem reparo
Na terra e nágua vejo e em seus compostos
126 Corrupção que destrói sem anteparo.

“Na criação por Deus foram dispostos:
De corrupção isentos ser deveram,
129 Certos sendo os princípios por ti postos. —

“Criados, meu irmão, se consideram
Os anjos e dos céus o que há no espaço,
132 Inteiros, puros sempre quais nasceram.

“Elementos e quanto no regaço
Da natura por eles se combina
135 De virtude criada of’recem traço.

“Criou-lhes a matéria a lei divina,
Criando logo a força informativa,
138 Que nos astros, que os cercam, predomina.

“Dos lumes santos moto e luz deriva
Dos brutos alma, e plantas igualmente,
141 Por compleição potencial passiva.

“A vida nossa vem diretamente
De Deus, Supremo Bem, que em nós acende
144 Amor tal, que o deseja eternamente:

“Daí, por dedução, também descende
Vossa ressurreição, se ao ser e à essência
Da humana carne o teu esp’rito atende,

148 Quando o primeiro par teve existência.” —

 

1-3. Hosannah, sanctus Deus Sabaoth, expressão constituída por palavras latinas e hebraicas: “Salve, Deus dos exércitos, que iluminas com a tua luz os felizes lumes deste reino.” — 18. E aditara, do verbo aditar, tornar feliz. — 26. O homem sem mãe nado, Adão. — 46-48. Contrastes, pois, de um ato procedido etc., a morte de Jesus Cristo deu satisfação a Deus, porque reparava a ofensa de Adão e deu satisfação aos Judeus pela raiva deles contra Jesus; a terra ficou espavorida pela crucificação de Deus e o Céu alegre porque se abria novamente à humanidade.

 


 

CANTO VIII

 

Dante e Beatriz elevam-se à estrela de Vênus, onde estão os espíritos daqueles que outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontro com Carlos Martelo, o qual referindo-se à índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica-lhe como se dá que de um bom pai possa nascer um filho mau e, enfim, quanto providencial é a Natureza nos seus decretos e quão vaidosos são os homens que não lhe seguem as indicações.

 

O MUNDO com perigo verdadeiro
Creu que Ciprina bela dardejava
3 Louco amor do epiciclo que é terceiro.

Sacrifícios não só lhe consagrava,
Preces e votos essa antiga gente
6 No erro antigo fatal, que a transviava,

Mãe e filho adoravam juntamente,
Dione e o seu Cupido, que fingiram
9 De Dido reclinado ao seio ardente;

Dessa falsa deidade o nome uniram
Ao planeta, que o sol sempre namora,
12 Quando raiam seus lumes, quando expiram.

Como ao astro eu me alcei, a mente ignora,
Mas certo fui de haver lá penetrado,
15 Mais formosa por ver minha senhora.

Como se vê fagulha em fogo ateado,
Como uma voz é de outra discernida,
18 Firme o som de uma, o de outra variado,

Outros clarões notei na luz subida,
Mais ou menos velozes se volvendo,
21 Lá da eterna visão, creio, à medida.

Ou visíveis ou não, ventos rompendo,
Em rápida invasão, de nuve’ escura,
24 Demorados stariam parecendo,

A quem pudesse ver cada luz pura,
Que ao nosso encontro vem deixando a dança
27 Que marcam serafins dos céus na altura.

Trás a grei, que primeiro nos alcança.
Tão doce hosana soa, que, incessante,
30 De inda ouvi-lo o desejo jamais cansa.

Dos espíritos um, que vem diante
Só principia: — “Todos nós queremos
33 Quanto para aprazer-te for prestante.

“Num só ardor e giro nos movemos
Cos Príncipes, celestes esplendores
36 De quem no mundo hás dito (bem sabemos):

— “Vós, do terceiro céu sábios motores!” —
Por te agradar nos é doce o repouso
39 Tão vivos são do nosso amor fervores!” —

De Beatriz ao gesto luminoso
Depois que alcei os olhos reverente
42 E certo fui do seu querer donoso,

À luz, que se mostrou condescendente
Em tanto grau — “Quem és” — falei, de afeito
45 Estremecido possuída a mente.

Ó das palavras minhas raro efeito!
Maior a vi brilhar; nova delice
48 A alegria aumentou do claro aspeito.

— “Bem pouco o mundo” — a refulgir-me, disse —
“Me teve; se algum tempo mais vivesse,
51 Mal, que há de vir, por certo ninguém visse.

“O júbilo que em torno me esclarece,
Aos teus olhos me encobre, como inseto,
54 Que dos seus véus de seda se guarnece.

“Com razão me votaste o extremo afeto;
Pois, em mais longa vida, eu te mostrava
57 Por ações quanto me eras tu dileto.

“Aquela região, que o Rone lava
À sestra, quando ao Sorga corre unido,
60 Por senhor seu um dia me esperava.

“Como da Ausônia o litoral partido
Por Bari, por Gaeta e por Crotona.
63 Onde é do Tronto e Verde o mar nutrido.

“Da c’roa a fronte minha já se entona
Do vasto reino, que o Danúbio rega,
66 Quando as plagas tudescas abandona.

“Trinácria, a cujos céus névoa carrega
Sobre o golfo, em que mais Euro embravece,
69 De Paquino a Peloro, em mor refega,

“Que não Tifeu, mas súlfur escurece,
O trono guardaria à prole minha,
72 Que de Carlo e Rodolfo antigos desce,

“Se o mau jugo, que os povos amesquinha,
A gritar — morra! morra! — não movesse
75 Palermo, a quem temor não mais continha.

“Se mais prudência meu irmão tivesse,
Dos Catalanos a indigência avara
78 Fugira, por que o mal seu não crescesse.

“Urgente, na verdade, se tomara
Que, por si ou por outrem, não deixasse
81 Mais onerar a barca, que adernara.

“Quando a índole nobre transtornasse
Avareza, milícia ter devia,
84 Que só de encher seus cofres não curasse.” —

— “Como creio” — tornei-lhe — “a essa alegria,
Que me infundes, Senhor, a origem tira
87 De Deus que todo bem finda e inicia.

“Comigo a sentes: mor prazer me inspira.
Quanto me hás dito, me é no extremo caro,
90 Pois vês, de Deus no espelho tendo a mira.

“Ledo me hás feito; assim tornar-me claro
O que por teu dizer stá duvidoso:
93 Semente doce brota fruto amaro?” —

— “Vendo a verdade” — disse — “pressuroso
Darás o dorso ao que ora dás o rosto,
96 Verás claro o que julgas tenebroso.

“O Bem, que os céus, que sobes, há disposto,
Os move e alegra, sem pôr providência
99 Nestes corpos que vês virtude posto.

“E não só com perfeita previdência
Cousas terrestres acham-se ordenadas,
102 Mas as preserva a sua onipotência;

“Porque as setas, deste arco arremassadas,
Predestinadas são a um ponto certo,
105 Infalíveis ao alvo enderaçadas.

“O céu aliás, aos olhos teus aberto,
Só feituras sem arte produzidas
108 Abrangera e ruínas no deserto.

“Foram então de perfeição despidas
As Substâncias, que regem as estrelas
111 E a mão, que as fez assim destituídas.

“Verdades são: mais claras queres vê-las?” —
— “Não” — repliquei — “supor não poderia
114 Natura escassa em suas obras belas.” —

— “Um mal, dize-me, fora” — prosseguia —
“Não ser o homem cidadão na terra?” —
117 — “Por certo; e a razão sei” — lhe respondia.

— “Sociedade haverá, se não encerra
Misteres vários, que cada um pratica?
120 Não, se o teu Mestre em seu pensar não erra.” —

Deduzindo, a evidência significa,
E logo concluiu: — “Causa dif’rente
123 Efeito diferente sempre indica.

“Nasce um Sólon, e Xerxe outro é furente,
Melquisedeque ou Dédalo perito,
126 Que no ar perdeu o filho seu demente.

“Perfeito é o giro pelos céus descrito;
Na cera humano o seu sinal fazendo,
129 Mas solar não distingue, nem distrito.

“Daí vem que Esaú, logo em nascendo,
Difere de Jacó; toma Quirino
132 Marte por genitor, seu pai vil sendo.

“Natureza gerada, em seu destino
Seria sempre igual à que a fizera,
135 Se não vencesse o decretar divino.

“O rosto ora diriges à luz vera;
Mas inda um corolário te ofereço,
138 Pois de agradar-te em mim desejo impera.

“Sempre natura, se da sorte excesso
A contraste, produz fruto danado,
141 Como semente posta em solo avesso.

“Se meditasse o mundo, desvelado,
Nos fundamentos, que natura lança,
144 De melhor gente fora povoado.

“Mas quem próprio seria à militança
Na soledade monacal definha,
Bem pregara quem, Rei, em vão se cansa.

148 E fora assim da estrada se caminha.” —

 

2. Ciprina bela, Vênus. — 8. Dione, filha de Oceano e de Tétis, mãe de Vênus. — 9. De Dido reclinado ao seio ardente, no I Livro da Eneida, Cupido, sob a aparência de Ascânio, leva a Dido os presentes de Enéias. — 58 e seg. quem fala é Carlos Martelo, filho de Carlos II de Anjou e que Dante conheceu em Florença em 1294. — 61. Ausônia, a Itália. — 67. Trinácria, a Sicília. — 70. Tifeu, segundo a lenda o gigante Tifeu, sepultado na Sicília, expele fumo e caligem. — 72. De Carlo e Rodolfo, Carlos de Anjou e Rodolfo de Habsburgo. 74. A gritar — morra! morra! — não movesse Palermo, alusão às Vésperas Sicilianas. - 76. Meu irmão, Roberto de Anjou. — 120. O teu mestre, Aristóteles. — 131. Quirino Rómulo, fundador de Roma.


imagem

Por senhor seu um dia me esperava


 

CANTO IX

 

Depois de Carlos Martelo, fala a Dante, Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino. Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e de Pádua, e uma negra traição do bispo de Feltre. Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica a alma resplendecente de Raab, que favoreceu os hebreus na conquista da Terra Santa. Invectiva contra Florença e contra a Cúria Romana.

 

DEPOIS que Carlos teu, bela Clemência
Instruiu-me, narrou traições e enganos,
3 Que ter devia a sua descendência;

Mas disse: — “Cal’-te! Deixa o curso aos anos!” —
Dizer só posso, pois, que justo pranto
6 Há de vir por vingança aos vossos danos.

E voltou-se de novo o lume santo
Para o Sol que de júbilos o enchia,
9 Sendo ele o Bem que para tudo, e tanto.

Ah! mortais iludidos! raça impia,
Que, em pensamentos fátuos se engolfando,
12 Do Bem Supremo os corações desvia!

Eis outro vi pra mim se encaminhando:
De aprazer-me a vontade anunciava,
15 O brilho da luz sua acrescentando.

Os olhos Beatriz em mim fitava,
Bem como de antes: grandioso assenso,
18 Ao meu desejo claramente dava.

— “Ó ser bendito, ao meu querer intenso
Defere logo” — exclamo — “ e dá-me a prova
21 De que em ti se reflete o que ora penso.” —

A luz então, inda aos meus olhos nova,
Dês que a vi lá na altura onde cantava
24 Diz como quem cortês rogos aprova:

— “Nessa parte da Itália opressa e escrava,
Que situada entre o Rialto
27 E as nascentes do Brenta e do Piava,

“Colina vê-se que, não surge ao alto:
Lá centelha, depois ígnea procela,
30 Que a toda a região deu grande assalto.

“De um só tronco brotamos eu com ela.
Cunizza me chamei: aqui resplendo,
33 Porque venceu-me a flama desta estrela.

“Da sorte minha a causa não me sendo
Desgosto, eu ma perdôo alegremente
36 Talvez estranhe o vulgo o como entendo.

“Da luz, que me está perto, refulgente,
Amada jóia desta nossa esfera,
39 Revive grande a fama, e permanente

“De séc’los cinco mais será na era.
Vê se homem com razão à glória aspira,
42 Se extinta a vida, outra no mundo o espera!

“A este alvo, porém, não levam mira
Os que o Ádige cerca e o Tagliamento:
45 Nem dos seus erros o infortúnio os tira.

“Punido em breve, o povo truculento
De Pádua o lago tingirá, que banha
48 Co’as águas, de Vicência o fundamento;

“Onde o Cagnan do Sile se acompanha
Se trama o laço que fará cativo
51 Quem mostra no perder soberba estranha.

“Do ímpio Pastor procedimento esquivo
Há-de Feltro chorar, tal ribaldia
54 A Malta não levou nunca homem vivo.

“De enormes dimensões tonel seria,
Que o sangue recebesse de Ferrara,
57 Pesá-lo o esforço humano esgotaria,

“Em tal cópia o bom Padre o derramara
Em preito ao seu partido! Os dons malvados
60 Da terra sua a índole explicara.

“Espelhos no alto (Tronos são chamados)
A nós refletem quanto Deus indica:
63 Crê, pois, ora nos fatos revelados.” —

Calando-se Cunizza significa,
Ao giro seu anterior voltando,
66 Que em diverso cuidado imersa fica:

Aquele, a que aludira, rebrilhando,
Com preclaro esplendor, mostrou-se à vista.
69 Como ao sol rubi fino flamejando.

Alegria no céu fulgor aquista,
Como a nossa no riso se declara;
72 Mas os gestos no inferno a dor contrista.

“Deus vê tudo, e o teu ver nele se aclara” —
Falei — “ditoso espírito: patente
75 Te é sempre quanto o seu querer depara.

“Porque a voz tua, enlevo permanente
Do céu, de anjos no canto a sócia sendo,
78 Que em seis asas têm veste resplendente,

“Não satisfaz desejos, em que ardendo
Estou? Falara, sem mais ser rogado,
81 Se eu visse em ti bem como em mim stás vendo.” —

— “O maior vale de águas inundado”
— Desta arte a responder-me começava —
84 “Do mar, em torno à terra derramando,

“Opostas plagas, se estendendo, lava
Contra o sol, e assim faz meridiano
87 Esse horizonte, em que primeiro estava.

“Nessa parte do val mediterrano
Nasci, entre Ebro e Macra, que separa
90 Do domínio de Gênova o Toscano.

“Quase um meridiano se depara
Para Bugia e o ninho meu querido:
93 Sangue dos seus seu porto avermelhara.

“Chamei-me Folco e assim fui conhecido:
Este céu da luz minha é penetrado
96 Como eu fora da sua possuído;

“Pois Dido, que ciúmes há causado
A Creusa e a Siquei, não mais ardera
99 Do que eu, enquanto à idade me foi dado;

“Nem Rodópea infeliz, a quem perdera
Demofonte; nem Hércules outrora,
102 Que o coração a Iole oferecera.

“Não há remorso aqui; folga-se agora,
Não pela culpa, já no esquecimento,
105 Pela Virtude, cuja lei se adora.

“Arte aqui se contempla, em que portento
Tão alto brilha; e o Bem se patenteia,
108 Que influir faz na terra o firmamento.

“Para ser a medida toda cheia
Dos teus desejos, nados nesta esfera,
111 Do meu discurso inda prossegue a teia.

“Ora queres saber a luz quem era,
Que aí perto de mim tanto cintila,
114 Como o sol, que na linfa reverbera.

“Sabe, pois, que ali vês leda e tranqüila
Raab: à nossa ordem reunida
117 Em grau superior clara rutila.

“Foi neste céu, que a sombra procedida
Da terra não alcança, em triunfando
120 Jesus Cristo, a primeira recebida.

“Devia dar-lhe um céu por palma, quando
Assinalar lhe aprouve a alta vitória,
123 Que na Cruz teve, as palmas entregando;

“Pois que por ela começara a glória,
Que colheu Josué na Terra Santa,
126 Que se apagou do Papa na memória.

“A tua pátria, que foi daquele a planta,
Que ao Criador revel primeiro há sido
129 E causou pela inveja aflição tanta,

“Tem flor maldiçoada produzido,
Que, ovelhas e cordeiros transviando,
132 Traz o pastor em lobo convertido.

“O Evangelho, por ela, abandonado
E os Doutores, às páginas usadas
135 Das Decretais stão muitos se aplicando.

“O Papa e os Cardeais, nisto engolfadas
Tendo as idéias, Nazaré esquecem,
138 Que viu do Arcanjo as asas desdobradas.

“Mas Vaticano e os sítios que enobrecem
A Roma e têm sido o cemitério
Dos que, fiéis a Pedro, lhe obedecem,

142 Livres serão em breve do adultério.” —

 

25-28. Nessa parte, etc., a Marca Trevisana. — 26. Rialto, Veneza — 28. Colina, onde está situado o castelo da família de Ezzelino de Romano. — 32. Cunizza, irmã de Ezzelino III, mulher de fama duvidosa pela sua vida livre, morta em Florença, onde talvez se penitenciou. — 37. Da luz etc., é a alma de Folco de Marselha, trovador e poeta. — 44. Os que etc., os habitantes da Marca Trevisana. — 51. Quem mostra no perder etc., Ricardo de Camino, senhor de Treviso, que foi morto traiçoeiramente pelos seus inimigos. — 52-54. Do ímpio Pastor etc., Alexandre Novello, bispo de Feltre entregou ao Papa, em 1314, vários gibelinos de Ferrara, que foram condenados à morte. — 67. Aquele, Folco. — 88-89. Nessa parte etc., Marselha onde Folco morou. — 97. Dido, rainha de Cartago, amando Enéias, ofendeu a Creusa, mulher de Enéias e ao seu marido Siqueu. — 100. Rodópea, matou-se ao ser abandonada por Demofonte. — 102. Iole, amante de Hércules, que, por ciúme, foi morto, por Dejanira. — 116. Raab, meretriz de Jericó, escondeu os espiões que Josué havia mandado a Jericó, facilitando a queda da cidade e, por isso, foi salva da morte, depois da vitória dos hebreus. — 118. Neste céu etc., segundo Tolomeu a sombra da Terra se projetava até o limite de Vênus. — 126. Que se apagou do Papa na memória, o Papa não se interessa pela Terra Santa, que está sob o domínio dos Sarracenos. — 127. A tua pátria etc., Florença teve origem demoníaca. — 130. Flor maldiçoada, o dinheiro, o florim de ouro de Florença. — 135. Decretais, os livros das leis canônicas, que asseguravam vantagens aos eclesiásticos.

 


 

CANTO X

 

Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus na criação do Universo, narra o Poeta como sem aperceber-se achou-se elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles, S. Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros.

 

O PODER inefável e primeiro,
O Filho a contemplar co’ Amor sublime,
3 De um e outro, eternal, vindo o terceiro,

Quanto à vista e à razão nossa se exprime
Com tal ordem criou, que, o efeito vendo,
6 De adorar seu Autor ninguém se exime.

As esferas, leitor, olhos erguendo
Nota a parte, onde estão dois movimentos
9 Um para o outro oposição fazendo.

E começa a mirar de arte os portentos,
Que tanto dentro em si o senhor ama,
12 Que lhes tem sempre os olhos seus atentos.

Vê como desse ponto se derrama
Em linha oblíqua, o círc’lo, que transporta
15 Os planetas que o mundo aguarda e chama.

Se lhes assim, não fosse a estrada torta,
Muita força no céu fora perdida
18 E aqui potência quase toda morta.

Se fora essa vereda preterida
Mais ou menos, ficara transtornada
21 A ordem no universo estatuída.

Ora leitor, meditação pausada
Faz de quanto comigo prelibaste:
24 Leda a mente hás de ter, não saciada.

Dou-te iguaria: come, pois, se praz-te.
A matéria, em que escrevo, não consente,
27 Nem por instantes, que a atenção se afaste.

Da natura o ministro mais potente
Que a influência do céu na terra imprime
30 E o tempo mede com sua luz fulgente,

À parte, que outro verso acima exprime,
Se unindo, para o ponto se volvia,
33 Onde mais cedo as trevas nos dirime.

Já no seu seio estava e o não sabia,
Como não pode alguém seu pensamento
36 Saber, quando inda à mente não surgia.

E Beatriz, em quem notava aumento
De bem para melhor, tão de repente,
39 Que o tempo fora ante o seu ato lento,

De si mesma quanto era refulgente!
O que era lá no sol onde eu me entrara,
42 Não por cor, por seu brilho mais nitente,

Posto que arte, uso, engenho me ajudara
Descrever por imagens não pudera;
45 Mas crer se pode e ver-se desejara.

Não se estranhe, se baixa parecera,
Querendo a tanto alar-se, a fantasia;
48 Além do sol ninguém olhos erguera.

Quarta família aqui resplandecia
Do Sumo Pai, que sempre da Trindade
51 No inefável spetáculo a sacia.

E disse Beatriz: — “Tanta Bondade
Humilde ao Sol dos anjos agradece,
54 Que ao sol sensível te alça à claridade.” —

Peito mortal jamais ardor aquece
De sentir tão devoto e tão piedoso,
57 Que a Deus a gratidão inteira expresse,

Quanto é meu ao convite carinhoso.
E em tanto enlevo o coração se acende,
60 Que a Beatriz olvida, fervoroso.

Não lhe despraz, e no seu riso esplende
Tanto brilho dos olhos expressivos,
63 Que do êxtase profundo me desprende.

Fulgores então vi claros e vivos,
De nós centro de si c’roa fazendo,
66 Mais suaves em voz que em luz ativos.

A filha de Latona se movendo
Vemos assim de um cinto rodeada,
69 No ar úmido as cores, se mantendo.

Dos céus a corte, donde volto, ornada
De jóias stá sublimes e formosas:
72 Só nos céus pode a estima lhes ser dada.

As vozes eram tais, que ouvi donosas.
Quem não tem plumas para ir lá voando
75 Pergunte a um mudo cousas portentosas.

Aqueles sóis, em torno a nós cantando,
Volveram-se três vezes: semelharam
78 Astros em roda aos pólos circulando.

Damas imitam, que no baile param,
Em silêncio outras notas esperando
81 Para seguir na dança que encetaram.

E uma voz do seu seio disse: — “Quando
Da Graça o raio em que o amor se acende
84 Sublime, pelo amor se acrescentando,

“Multiplicado em ti tanto resplende,
Que te conduz pela celeste escada,
87 Que a subir torna quem de lá descende,

“O que à sede em que tens a alma abrasada
Vinho negasse, irmão, livre não fora,
90 Qual linfa de correr embaraçada.

“Saber desejas como a c’roa enflora,
Que cinge, contemplando-a a pulcra Dama,
93 Que para o céu te guia protetora.

“Um anho fui da santa grei que chama
De Domingos a voz pelo caminho,
96 Onde prospera só quem mal não trama.

“Tomás de Aquino sou; me está vizinho,
À destra de Colônia o grande Alberto
99 A quem de aluno e irmão devo o carinho.

“Se dos mais todos ser desejas certo,
Na santa c’roa atenta cuidadoso,
102 A tua vista a voz siga-me perto.

“Nesse esplendor sorri-se jubiloso
Graciano que num e noutro foro
105 Di’no se fez de ser no céu ditoso.

“Aquele outro ornamento deste coro
Foi Pedro: como a pobre a of’renda escassa,
108 À Santa Igreja deu rico tesouro.

“A quinta luz, que as mais em lustro passa
Se acende em tanta luz, que anela o mundo
111 Saber se goza da celeste Graça.

“O alto esp’rito encerra, tão profundo,
Que se o Verbo de Deus é verdadeiro,
114 De saber tanto não se alçou segundo.

“Ao lado seu lampeja esse luzeiro,
Que os anjos, seu mister, sua natura
117 Em conhecer na terra foi primeiro.

“Sorri na luz menor, serena e pura,
Dos séculos cristãos esse advogado
120 De Agostinho tão útil à escritura.

“Se os olhos da tua mente acompanhado
De luz em luz me tens nestes louvores
123 Saber já tens da oitava desejado.

“Do Sumo Bem se enleva nos fulgores
Essa alma santa, havendo demonstrado
126 As mentiras do mundo e os seus rigores;

“Jaz daquela alma o corpo despojado
Em Cieldauro; e ela veio à paz divina
129 Após martírio e exílio amargurado.

“Mais longe, em cada flama purpurina,
Beda, Isidoro estão, Ricardo esplende,
132 Que além do humano o pensamento afina.

“Esse, de quem tua vista se desprende
A mim tornando, achou, grave e prudente,
135 Que morte pronta um grande bem compreende:

“É Siger, que assim luz eternamente.
Na rua de Fouare lera outrora
138 Verdades, que ódio hão provocado ingente.” —

E qual relógio, que nos chama em hora,
Em que, desperta, do Senhor a Esposa
141 Matinas canta e o seu amor implora;

Que, no girar das rodas, tão donosa
Nota faz retinir, de amor enchendo
144 Devota alma, que o escuta fervorosa;

O glorioso círc’lo, se movendo,
Assim vi eu, com tal suavidade
E doçura de vozes, que comprendo

148 Só haja iguais do céu na eternidade.

 

49. Quarta família, as almas que estão no Sol, que é o quarto Céu. — 67. A filha de Latona, Diana ou a lua. — 97. Tomás de Aquino, Santo teólogo (1225-1274). — 98. De Colônia o grande Alberto, o célebre teólogo Alberto Magno. — 104. Graciano, de Chiusi, em Toscana, escreveu no século XII um volume de Cânones eclesiásticos, que foi chamado o Decreto de Graciano. — 107. Pedro, Pedro Lombardo, bispo de Paris, morto em 1164 que, ao oferecer à Igreja o seu livro “Sentenciaram” comparava-se à viúva do Evangelho de S. Lucas, XXI. — 109. A quinta luz, o sapiente rei Salomão, filho de Davi. — 115-117. Esse luzeiro etc. Dionísio Aereopagita, que escreveu uma obra “De Coelesti Hierarchia.” — 119-120. Esse advogado etc., Paulo Orósio, que, aconselhado por Santo Agostinho, escreveu a História, em defesa da religião cristã. — 125-128. Essa alma santa etc. Severino Boécio, autor do livro “De consolatione philosophiae”, aprisionado e, depois, morto por Teodorico em 524. — 131. Beda, bispo inglês, Ricardo, padre de Escócia, Isidoro, S. Isidoro de Sevilha, os três doutos teólogos. — 136. Siger de Brabante, professor de teologia na Universidade de Paris no século XIII, a qual tinha a sua sede na Rua Fouare.

 


 

CANTO XI

 

Dante elogia a vida contemplativa. — As palavras proferidas no canto anterior por S. Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a primeira, esboça a vida de S. Francisco de Assis.

 

Ó DOS mortais aspirações erradas!
Em que falsas razões vos enlevando
3 Tendes à terra as asas cativadas!

Qual seguia o direito; qual buscando
Já aforismos; qual o sacerdócio;
6 Qual reinava, sofisma ou força usando;

Qual roubo amava, qual civil negócio;
Qual, a salaz deleite entregue a vida,
9 Afanava-se; qual passava no ócio;

Enquanto eu, livre da terrena lida,
Ao céu com Beatriz me alevantava,
12 Aceito lá com glória tão subida.

Cada alma santa ao ponto já tornava
Do círculo em que de antes demorara;
15 E como círio em candelabro estava.

Então da luz, que de antes me falara
Voz suave escutei; e assim dizendo
18 Do seu brilho a pureza se aumentara:

— “O lume eterno, em que me inspiro e acendo,
Eu, contemplando, claramente leio
21 Teu pensamento e a origem lhe compreendo.

“Desejas tu, da dúvida no enleio,
Que eu aproprie da tua mente à esfera
24 O que dizer-te, há pouco, me conveio.

“Eu te disse — caminho onde prospera —
— De saber tanto não se alçou segundo: —
27 Aqui é, pois, que a explicação te espera.

“A Providência, que governa o mundo
Com tão sábio conselho, que, torvada
30 Sente a vista quem quer sondar-lhe o fundo.

“Por ser ao seu dileto encaminhada
Casta Esposa daquele, que alto grito,
33 Desposando-a, soltou na Cruz Sagrada,

“Com ânimo mais forte e à fé restrito,
Dois príncipes, lhe deu, que, em seu desvelo,
36 O caminho mostrassem-lhe bendito.

“Um seráfico foi no ardor do zelo,
Outro ostentou, por seu saber na terra,
39 De querúbica luz esplendor belo.

“De um só te falarei; pois num se encerra
O que de outros aos louvores mais se estende:
42 Quem der aos dois o mesmo fim não erra.

“Entre Tupino e o rio, que descende
Do outeiro, que escolhera santo Ubaldo,
45 Fértil encosta de alto monte pende.

“Dali baixa a Perúgia o frio e o caldo
Pela porta do Sol; atrás padece
48 Em duro jugo Nócera com Gualdo.

“Onde o declive menos agro desce
Nasceu ao mundo um sol tão luminoso,
51 Como o que ao Gange às vezes esclarece.

“Desse lugar quem fale portentoso
Não diga Assis, que pouco declarara:
54 Chame Oriente o berço glorioso.

“Do nascente este sol pouco distara,
Quando o conforto a receber a terra
57 Já das virtudes suas começara.

“Contra seu pai, adolescente, em guerra
Entrou por dama, a quem bem como à morte,
60 Ninguém a porta com prazer descerra.

“Então da Igreja a recebeu na corte,
E coram patre, por esposa amada
63 E amor votou-lhe cada vez mais forte.

“Vivera ela viúva e desprezada
Séculos onze e mais, e de outro amante,
66 Senão deste, não fora requestada;

“Em vão se disse que no lar, constante,
De Amiclas a encontrou esse guerreiro,
69 De quem tremera o mundo titubante;

“Em vão fiel, de coração inteiro,
Quando Maria ao pé da Cruz ficara,
72 Com Cristo ela subira-se ao madeiro.

“Para fazer minha linguagem clara,
Em suma, o nome sabe dos amantes:
75 Com pobreza Francisco se casara.

“Dos dois santa união, ledos semblantes,
Seu terno olhar e afeito milagroso
78 Dão a todos lições edificantes.

“Aquela paz anela cobiçoso
Venerável Bernardo que, primeiro,
81 Descalço corre e crê ser vagaroso.

“Riqueza inota! Ó Bem só verdadeiro!
Descalço vai Egídio, vai Silvestre,
84 Porque amam-na, do esposo no carreiro.

“Dali se parte aquele pai e mestre
Com terna esposa e com família santa
87 Que de corda o burel cinge campestre.

“Não baixa os olhos, nem se torna e espanta
Por filho ser de Bernardone obscuro,
90 Nem por sofrer desdém em cópia tanta.

“Mas afouto mostrou o intento duro
A Inocêncio de quem primeiro obteve
93 Assenso ao regimento austero e puro.

“E quando a pobre grei progresso teve,
Após aquele, a cuja heróica vida
96 Melhor no céu louvor de anjos se deve,

“Foi a c’roa segunda concedida
Por Honório, que o Santo Espírito alenta
99 Daquele arquimandrita a santa lida.

“Em breve a sede do martírio o tenta,
E do Soldão soberbo na presença
102 Cristo anuncia e a lei que o representa.

“Vendo rebelde o povo à nova crença.
Por não ficar seu zelo sem proveito
105 Da Itália volta para a messe extensa.

“Na dura penha, que se interpõe ao leito
Do Tibre e do Arno, o derradeiro selo
108 Cristo lhe pôs: dois anos dura o efeito.

Quando a Deus, que a bem tanto quis movê-lo,
O prêmio prouve dar-lhe merecido,
111 Na humildade cristã por seu desvelo,

“Essa esposa, que amara estremecido,
Aos irmãos confiou por justa herança,
114 Para afeto lhe terem sempre fido.

“Do seio da pobreza então se lança,
Tornando ao reino seu, a alma preclara:
117 Nesse jazigo o corpo seu descansa.

“Pensa, pois, o que foi quem Deus julgara
Di’no após ele, de reger a barca
120 Que Pedro, no alto mar encaminhara.

“Coube a tarefa ao nosso patriarca:
Quem, fiel, aos preceitos lhe obedece,
123 Sabe tesouros arrecadar na arca.

“Sua grei novo pascigo apetece,
E tanto é dos desejos impelida,
126 Que em diferentes campos aparece.

“Quanto mais cada ovelha é seduzida
Do mundo pelo pérfido atrativo,
129 Tanto mais ao redil volta inanida.

“Poucas temendo o lance decisivo,
Acolhem-se ao pastor: escasso pano
132 É já para vesti-las excessivo.

“Se claro te falei, livre de engano,
Se tens estado ao que te digo atento,
135
Se da memória não receias dano,

“Ao teu desejo, em parte, dei contento,
Pois da planta bem vês qual seja a rama;
E o corretivo está neste argumento:

139 Onde prospera só quem mal não trama.”

 

25. Eu te disse etc. V. Canto X, v. 95-96 e 114. — 37. Um seráfico etc., S. Francisco de Assis. — 38. Outro ostentou etc., São Domingos. — 43-48. Entre Tupino etc., descreve a situação geográfica da cidade de Assis, na qual S. Francisco nasceu. — 59. Dama a quem etc., a pobreza. — 64-66. Viúva e desprezada etc., o primeiro esposo da Pobreza foi Jesus e, por isso, ficou viúva mais de onze séculos. — 68. Amiclas, Júlio César ficou admirado pela alegre pobreza do pescador Amiclas (V. Lucano, Farsálias V, 519). — 80. Bernardo, primeiro companheiro de S. Francisco. — 83. Egídio e Silvestre, companheiros de S. Francisco. — 89. Bernardone, Pietro Bernardone, pai de S. Francisco. — 92. Inocêncio III, papa que deu autorização à Ordem Franciscana, em 1214. — 98. Honório III, que em 1223, pela segunda vez, aprovou a Ordem de S. Francisco. — 99. Arquimandrita, pastor. — 100-105. Em breve etc., S. Francisco em 1219 esteve no Egito tentando converter os infiéis, mas voltou logo para a Itália. — 106-108. Na dura penha etc., no monte Alvérnia, no Casentino, S. Francisco recebeu os estigmas de Jesus crucificado e os manteve dois anos, pois depois de dois anos morreu.

 


 

CANTO XII

 

Acabando S. Tomás de falar, ajunta-se à primeira coroa de doze espíritos resplendentes, mais uma coroa de igual número de espíritos. Um destes, S. Boaventura, franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícia acerca dos seus companheiros.

 

QUANDO o lume bendito proferira
Do discurso a palavra derradeira,
3 A coréia, como eu já a vira,

Inda uma volta não fizera inteira,
Logo outra turma em círculo a encerrava
6 Em voz acordes ambas e em carreira.

Essa harmonia tanto superava
Das Musas e sereias a cadência,
9 Quanto ao reflexo a luz que rutilava.

Como arcos dois das nuvens na aparência
Curvam-se iguais na cor e equidistantes,
12 Se de Íris Juno exige diligência,

Nascendo um do outro, em forma semelhantes,
Qual voz da que de amor foi consumida
15 Como do sol as névoas alvejantes,

E crer fazendo que há de ser mantida
A promessa, a Noé por Deus firmada,
18 De não ser mais a terra submergida:

Assim de nós em torno ia agitada
Cada grinalda das perpétuas rosas,
21 Uma com outra em tudo conformada.

Tanto que a dança e festa jubilosas,
Por cantos e esplendores flamejantes
24 Dessas luzes suaves e amorosas,

Quedar eu vi nas rotações brilhantes,
Quais olhos, juntamente ao nosso grado,
27 Se abrindo e se fechando vigilantes,

De um dos novos clarões voz, que, enlevado,
Volver-me para si fez de repente,
30 Qual à estrela polar ímã voltado:

— “Amor” — diz — “que a beleza dá-me ingente
Me induz a te falar do Mestre Santo,
33 Que ao meu foi de louvor causa eminente.

“Um se memore onde outro bilha tanto:
Sob a mesma bandeira hão militado;
36 Brilha a glória dos dois também no canto.

De Cristo, a tanto custo restaurado,
O exército o estandarte seu seguia,
39 Já raro, lento, de temor tomado,

“Quando à milícia, que o valor perdia
O Eterno Imperador deu provimento,
42 Só por Graça: esse bem não merecia;

“E da Esposa enviou por salvamento
Dois campeões, de cuja voz movida,
45 A transviada gente cobra o alento.

“Na terra, em que, ao seu hábito, convida
O Zéfiro a se abrirem novas flores,
48 De que se vê a Europa revestida,

“Em plaga, onde se embate em seus furores
O mar, em que, o seu curso terminado,
51 O sol esconde às vezes seus ardores,

“Jaz Calaroga em solo afortunado,
Que o poderoso escudo protegera,
54 No qual leão subjuga e é subjugado.

“Ali o atleta heróico à luz viera,
Da fé cristã esse indefesso amante,
57 Que, aos seus beni’no, aos maus guerra fizera.

“Foi virtude em sua alma tão possante,
Que, ainda estando no materno seio,
60 Do porvir fez a mãe vaticinante.

“Quando a firmar-se o desposório veio
Entre ele e a Fé, na fonte consagrada,
63 De muita salvação seguro meio,

“De dar pôr ele o assento a encarregada
A messe viu em sonhos milagrosa,
66 Que dele e herdeiros seus era esparada.

“Do seu destino em prova portentosa,
Anjo baixou ao fim só de chamá-lo
69 Do Senhor de quem era a alma piedosa.

“Domínico foi dito e eu dele falo,
Como o operário, que elegera Cristo,
72 Da vinha no lavor para ajudá-lo.

“Servo e enviado mostrou ser de Cristo
Por quanto o amor primeiro, que há mostrado,
75 Foi a primeira lei que nos deu Cristo.

“Muitas vezes a mãe o achou prostrado,
Em profundo silêncio e bem desperto,
78 Como a dizer: — A isto eu fui mandado.

“Oh! foi seu genitor feliz por certo!
Oh! sua mãe realmente foi Joana
81 Se há no sentido que lhe dão, acerto!

“Não pelo amor do mundo, que se engana,
Do Ostiense e Tadeu nos livros lendo,
84 Mas de Jesus pelo maná se afana,

“Sapiente doutor em breve sendo,
Da santa vinha guarda vigilante,
87 Que presto seca, pouco zelo havendo.

“De Roma à sede quando foi perante,
Que aos justos era compassiva outrora,
90 Hoje, por culpa do que a rege, errante,

“Onzenárias dispensas não lhe implora,
Nem primeira prebenda, que vagasse,
93 Nem dízimas, que são do pobre, exora.

“Mas contra o mundo, que no qual compraz-se,
Pede o favor de defender a planta,
96 Da qual tens flores vinte e quatro em face.

“Com seu querer e com doutrina santa,
Como a torrente, que da altura desce,
99 De apóstolo por zelo o mundo espanta.

“Dos hereges se arroja à infanda messe,
E onde a resistência mais porfia
102 Das forças suas o ímpeto recresce.

Dele brotaram rios, que hoje em dia
Têm o jardim católico regado
105 E aos seus arbustos dão viço e valia.

“Se tal foi uma roda do afamado
Carro, em que defendeu-se a Santa Igreja,
108 E a civil guerra em campo há superado,

“Da outra o alto mérito qual seja
Já te disse Tomás, eu stando ausente:
111 Dele nas vozes seu louvor lampeja.

“Porém daquela roda o sulco ingente
Ficou em desamparo tal, que o lodo
114 Onde era a flor domina tristemente.

“Vê-se a família sua por tal modo
Da vereda de outrora transviada,
117 Que esqueceu-lhe as pegadas já de todo.

“Logo a cultura má será provada
Na seara, zizânia sendo ao vento,
120 Em vez de ir ao celeiro, arremessada.

“Que nosso livro folheasse atento
Veria, creio, página, em que lesse:
123 — Sou, como sempre, de impureza isento. —

“Em Casal e Água-Sparta igual não vê-se:
Lá de tal jeito entende-se a Escritura,
126 Que um tíbio a foge, outro excessivo a empece.

“De Bargnoregio eu sou Boaventura,
Que, exercendo altos cargos, repelia
129 Dos interesses temporais a cura.

“Vê, dos irmãos descalços primazia,
Iluminato, de Agostinho ao lado:
132 Cada qual no burel por Deus ardia.

“Hugo vê de S. Vítor premiado
Como Pedro Mangiadore e Pedro Hispano
135 Pelos seus doze livros celebrado.

“Natã Profeta e o Metropolitano
João Crisóstomo, Anselmo e o afamado
138 Donato, na primeira arte sob’rano.

“Vê Rabano, a brilhar vê ao meu lado
O calabrês Abade Giovachino,
141 De espírito profético dotado.

“Aos louvores do excelso paladino
Moveu-me a caridosa cortesia,
O dizer sábio de Tomás de Aquino,

145 E comigo a esta santa companhia.”

 

12. Íris, personificação mitológica do arco-íris. — 14. Qual voz do que de amor foi consumida, como voz da ninfa Eco que se consumiu pelo amor por Narciso. — 28. Um dos novos clarões, a alma de S. Boaventura. — 46. Na terra etc., na Espanha. — 53-54. Escudo etc., o escudo dos reis da Castela representava dois leões, um debaixo e outro em cima de um castelo. — 64-66. A encarregada etc., quando do batismo de S. Domingos, a madrinha o viu com uma estrela na testa. — 80. Sua mãe realmente foi Joana. Joana em hebraico tem o significado de “portadora de graças.” — 83. Ostiense, o cardeal Henrique de Susa, que comentou os “Decretais”; Tadeu Aldreotti, florentino, médico; ou, segundo outros comentadores, Tadeu dei Pepoli, jurista bolonhês. — 90. Por culpa etc., de Bonifácio VIII. — 95-96. A planta etc., a fé, de que se alimentaram os espíritos dos vinte e quatro teólogos que estão na presença de Dante. — 124-126. Em Casal e Agua-Sparta, alude à divisão dos franciscanos em dois partidos, um chefiado por libertino de Casale e outro por Mateus d’Acquesparta. — 131. Iluminato e Agostinho, dois companheiros de S. Francisco. — 133-135. Hugo de S. Vitore, Pedro Mangiatore e Pedro Hispano, egrégios teólogos. — 136-139. Natã, o profeta que repreendeu Davi; S. João Crisóstomo, patriarca da Igreja; Donato, gramático latino; S. Anselmo, bispo de Canterbury. — 139-140. Rabano e o abade Giovachino, escritores sacros.


imagem

Essa harmonia tanto superava


 

CANTO XIII

 

O Poeta descreve a dança das duas coroas de espíritos celestes. S. Tomás resolve a segunda dúvida de Dante. Adão e Jesus Cristo são seres perfeitíssimos, por serem obra imediata de Deus. Mas ele não pode ser comparado nem a Adão nem a Jesus Cristo. Conclui o Santo advertindo do perigo dos juízos precipitados, e de quanto é sujeito a enganar-se quem julga das coisas pelas aparências.

 

O QUE hei visto e refiro quem deseja
Entender, imagine, (e bem sculpida,
3 Como em rocha, na mente a imagem seja)

Quinze estrelas, que luz tanta espargida
Tem por celestes regiões dif’rentes,
6 Que é do ar a espessura esclarecida,

Da carroça imagine as refulgentes
Rodas, sempre girando, noite e dia,
9 Pelos espaços do céu nosso ingentes;

Da trompa a boca mostre a fantasia,
Que lá no extremo do axe, ao qual a esfera
12 Primeira contorneia, principia.

Se em signos dois tais astros considera,
Iguais à c’roa que no céu fulgura,
15 Dês que Ariadne à morte se rendera;

E, os raios misturando da luz pura,
Para lados contrários se movendo
18 Aqueles círc’los dois na etérea altura:

Imagine, mas quase a sombra tendo
Dos versos astros, dessa dupla dança,
21 Que em torno a nós estava se volvendo.

Que a verdade essa imagem tanto alcança,
Quanto a Chiana a rapidez imita
24 Do céu, que a todos os mais céus se avança.

Nem Pean cantam, nem de Baco a grita;
Mas Três Pessoas com divina essência
27 E numa o humano ser, que a Deus se adita.

Os hinos tendo e a dança intermitência
Em nós os santos lumes se fitaram;
30 Compraz-lhes dos cuidados a seqüência.

O silêncio que os coros dois formaram,
As vozes rompem, que a espantosa vida
33 Do mendigo de Deus me recontaram.

— “Quando a palha é do trigo dividida,
Quando a colheita fica enceleirada,
36 A bater outra doce Amor convida.

“Crês que ao peito onde a costa foi tirada
Para a boca gentil formar motivo
39 Da pena ao mundo inteiro fulminada,

“E ao da aguda lança o golpe esquivo
Padeceu e a balança, em morte e vida,
42 Da culpa alçou com peso decisivo,

“Quanta ciência aos homens permitida
Ser poderia pela mão divina,
45 Que um e outro criou, fora infundida.

“Tua mente, pois, a dúvidas se inclina
Me ouvindo que em ciência sem segundo
48 Subira quem a luz quinta domina.

“Olhos abre à razão, em que me fundo:
Como teu crer confundida tens de vê-la
51 Na verdade, qual centro num rotundo.

“O que não morre, o que por morte gela
É só splendor da Idéia, que, nascendo
54 Do Senhor nosso, o seu amor revela;

“Por quanto essa luz viva, procedendo
Do foco seu, do qual se não desune,
57 Nem do Amor, que o terceiro fica sendo,

“Só por Bondade sua, o fulgor une,
Como em spêlho, em céus nove, e o concentrando,
60 Tem a unidade eternalmente imune.

“As últimas potências se abaixando,
Já de ato em ato enfraquecida fica,
63 As breves contigências vai formando.

Contigências palavra é que te indica
Essas cousas, que o céu, no movimento,
66 Com semente ou sem ela multiplica.

“Não mostra arte ou substância um só intento
E modo, mais ou menos transluzindo
69 O selo do Supremo Entendimento.

“Vê-se, pois, a mesma arv’re produzindo,
Segundo a espécie, ou bons ou ruins frutos;
72 E vós à luz com várias manhas vindo.

“Brilhava o selo inteiro nos produtos,
Se a cera em ponto apropriado fora,
75 E os influxos do céu nunca interruptos;

“Porém natura as impressões desdoura,
Procedendo, assim como faz o artista:
78 Treme-lhe a mão que é da arte sabedora.

“E, pois, se ardente amor a clara vista
Da virtude primeira imprime e adapta,
81 A perfeição aqui toda se aquista.

“Assim a argila foi condigna e apta
A toda perfeição da criatura,
84 E concebeu a Virgem pura, intacta.

“Segues, portanto opinião segura:
Como nos dois jamais tão alta há sido,
87 Nem jamais há de ser vossa natura.

“Se eu porventura houvesse concluído,
Com razão me tiveras perguntado:
90 — Como disseste — igual não tem subido?

“Da verdade por seres informado,
No que era pensa e à sua escolha atende,
93 Quando — Pede — por Deus foi-lhe ordenado.

“Claro falei, tua mente bem comprende
Que foi Rei quem pediu sabedoria
96 Para fazer o que o bom Rei pretende.

“Não quis saber qual número seria
Dos motores ao céu, nem se necesse
99 Com contigente um seu igual faria.

Non si est dare primum motum esse,
Ou se um triâng’lo sem ter âng’lo reto
102 Traçar em simicírc’lo se pudesse.

“E pois, o dizer meu que ora completo,
Quando falava na sem par ciência,
105 A prudência real ia direto.

“Dando ao — “Subiu” — devida inteligência,
Hás de ver que somente aos Reis se aplica,
108 Muitos na soma, poucos na excelência.

“E feita a distinção que exposta fica,
Meu dizer à tua fé no pai primeiro
111 E em nosso Redentor não contra-indica.

“Prende assim chumbo ao pé sempre; ligeiro
Não vás, imita o caminhante lasso;
114 Ao não ao sim não corre aventureiro.

“Mostra ser dos estultos o mais crasso
Quem afirma, quem nega leviano
117 Sem distinção ou num ou noutro passo.

“Daí vem muitas vezes por seu dano,
Que o juízo do vulgo se transvia
120 E o entendimento enleia afeto insano.

“Mais do que em vão do porto se desvia:
Incólume não volta da jornada
123 Quem pós verdade da arte não seguia.

“A prova dão, por fatos confirmada
Parmênides, Melisso, Brisso e quantos
126 Partiram sem saber o rumo e a estrada.

“Assim Ário fez, Sabélio e tantos,
Que, como espadas, deram na Escritura,
129 Mutilando o sentido aos textos santos.

“Quem no julgar as cousas se apressura
Imita aquele, que estimasse o trigo,
132 Quando a seara inda não stá madura.

“No inverno hei visto espinho dar castigo
Ao que imprudente as ramas lhe tocara;
135 Rosas depois oferecia amigo.

“E nau vi, que segura navegara,
Em viagem feliz, o salso argento,
138 Soçobrar, quando o posto já tomara.

“De Deus antecipar-se ao julgamento
Não queiram Dona Berta e Dom Martinho:
Se um rouba e é outro às oblações atento,

142 Pode um se erguer, cair outro em caminho.” —

 

15. Ariadne, filha de Mimos, depois de morta, foi transformada por Baco numa constelação. — 23. Chiana, rio da Toscana. — 25. Pean, hino que os antigos cantavam nas festas de Apolo. — 33. Mendigo de Deus, S. Francisco. — 37-39. Ao peito onde a costa gentil, etc., Adão de cuja costa foi tirada Eva, a qual comeu a maçã que foi fatal para a humanidade. — 40. Ao da aguda lança etc., Jesus Cristo. — 47. Em ciência sem segundo, Salomão. — 98-99. Se nascesse contigente etc., se duas premissas, uma necessária e outra contigente tenham conseqüência necessária. — 100. Si est dare etc., se se deve admitir a existência de um movimento que não derive de outro. — 125. Parmênides, Melisso, Brisso, filósofos gregos, confutados por Aristóteles. — 127. Ário e Sabélio, hereges condenados pela Igreja. — 140. Dona Berta e Dom Martinho, nomes de pessoas comuns e ignorantes.

 


 

CANTO XIV

 

Beatriz pergunta a um espírito celeste, em nome de Dante, se depois da ressurreição dos corpos permanecerá a luz que emana de suas almas e se essa luz não prejudicará a sua vista. O espírito responde que, depois da ressurreição, a vista dos espíritos aumentará. Aparecem novos espíritos. Sem perceber, Dante encontra-se no planeta Marte, onde estão aqueles que defenderam com as armas a religião cristã. Aí o aspecto do céu vence toda beleza passada, porque quanto mais se sobe, mais cresce o esplendor dos céus.

 

DO centro à borda e assim da borda ao centro
Água num vaso circular se agita,
3 Se a comovem de fora, se de dentro.

Isto que digo a mente me visita
Súbito, quando o esp’rito glorioso
6 De Tomás suspendeu a voz bendita,

Por semelhar-se ao efeito poderoso
Da sua voz e ao que Beatriz causava,
9 Quando assim disse em tom grave e donoso:

“O que saber este homem precisava
Com voz não disse, e, se o cogita, o ignora:
12 De outra verdade com raiz se trava.

“A auréola, dizei-lhe, em que se inflora
A substância, que é vossa eternamente,
15 Convosco há de existir, bem como agora?

“Se este esplendor em vós é permanente,
Quando visíveis fordes, ressurgindo,
18 A vista sofrerá luz tão fulgente?” —

Como em coréia as vozes vão subindo
E recresce a alegria, algum motivo
21 De alvoroço aos dançantes sobrevindo,

Assim aos santos círculos mais vivo
Júbilo mostram no girar, no canto
24 Ante o rogo piedoso e compassivo.

Quem, por chegar a morte, sente espanto,
Para lograr no céu viver divino,
27 Da eterna chuva desconhece o encanto.

Quem sempre reina, é uno, é duplo, é trino,
Em três, em dois, em um sempre perdura,
30 Não abrangido — e tudo abrange — em hino

De tão suave e cônsona doçura
Dos coros foi três vezes aclamado,
33 Que um prêmio fora da virtude pura.

No lume, de fulgor mais sinalado,
Ouvi, do menor círc’lo voz modesta,
36 Como a do arcanjo à Virgem deputado.

— “Quanto no Paraíso eterna a festa
Há de ser, tanto o nosso amor vestido
39 Será de luz em torno manifesta.

“O brilho seu do ardor há procedido
E o ardor da visão, que é tão gozosa,
42 Quanto a Graça o valor faz mais subido.

“E quando a carne santa e gloriosa
Revestirmos, será nossa pessoa
45 Completa e mais jucunda e mais ditosa.

“E o gratuito lume, que nos doa
O Sumo Bem, será mais rutilante:
48 A Glória sua a ver nos afeiçoa.

“A visão se fará mais penetrante,
Mor o ardor se fará que ali se acende,
51 E o esplendor, que este dá, mais coruscante.

“Qual carvão, que de si flamas desprende
E pelo vivo ardor as escurece
54 Tanto, que entre elas seu rubor resplende,

“Este doce fulgor, que em nós parece,
Ver deixará o corpo ressurgido,
57 Quando o sono, em que jaz um dia cesse.

“Nenhuma será das luzes ofendido:
Starão corpóreos órgãos adaptados
60 A quanto a deleitar-nos for provido.” —

Os coros dois tão ledos e apressados
Responderam — amém — que bem mostraram
63 Quanto os trajos carnais são desejados.

Não por si sós talvez os cobiçaram,
Mas por amor dos pais, de entes queridos,
66 Antes que ternas flamas se tornaram.

Eis, em torno, de lumes incendidos
Novo círculo aos outros se acrescenta:
69 Qual nitente horizonte, os tem cingidos.

E como, quando à tarde a sombra aumenta,
No céu começam de assomar estrelas,
72 Cuja luz dúbia aos olhos se apresenta,

Assim me pareceu que via aquelas
Novas substâncias, que, também girando,
75 Moviam-se em redor das c’roas belas.

Vero fulgor do Esp’rito Santo! Oh! quando
Te mostraste de súbito, candente,
78 Os olhos meus venceste, deslumbrando.

Mas Beatriz tão bela e tão ridente
Rebrilhou, que a visão maravilhosa,
81 Bem como outras, seguir não pode a mente.

Aos olhos força deu tão poderosa,
Que se alçaram; e com ela transportado
84 Vi-me à esfera mais alta e luminosa.

Fui da minha ascensão certificado
Da purpurina estrela pelo gesto,
87 Em que rubor notei não costumado.

Nesse falar, a todos manifesto
Do coração, a Deus vivo holocausto,
90 Por sua nova graça, humilde presto.

Do peito meu não era ainda exausto
Do sacrifício o ardor, que convencido
93 De estar aceito fui, e ser-me fausto.

Tão lúcidas, tão rubras, confundido
Vi luzes em dois raios fulgurantes,
96 Que disse — Ó Hélios, como os tens vertido! —

Galáxia, em astros mais, menos brilhantes
Branqueja, entre dois pólos colocados,
99 E os doutos deixa em dúvida hesitantes:

De igual maneira em Marte constelados
O signo os raios formam venerando,
102 Diâmetros iguais sendo cruzados.

Me está memória o engenho superando:
Se na cruz lampejar eu via Cristo,
105 Como acertar, exemplos procurando?

Quem toma a Cruz e na jornada Cristo
Segue, desculpe o que falta em arte,
108 Vendo nesse esplendor rutilar Cristo.

Da cruz em cada braço, em toda parte
Cintilantes mil fogos se moviam;
111 Qual desce, qual se eleva, qual desparte.

Assim sutis argueiros se veriam,
Retos ou curvos, rápidos ou lentos,
114 De formas, que multíplices variam,

De Sol em réstea que entra os aposentos,
Onde da calma o homem se repara
117 Apurando do engenho e da arte inventos;

E como da harpa e lira se depara
Nas cordas várias doce melodia
120 A quem notas ignora e não compara;

Assim desses luzeiros que ali via
Na Cruz formosa, extático escutava,
123 Sem comprendê-la, angélica harmonia.

Que eram altos louvores bem julgava
Ressuscita e triunfa — acaso ouvindo:
126 Confusamente o hino me soava.

Ouvia em tanto enlevo me sentindo,
Que inda não sinto cousa que mais queira,
129 A mente ao canto em doce enleio, unindo.

Ousado sou talvez desta maneira,
Parecendo pospor os olhos belos,
132 Em que a minha alma se embevece inteira.

Mas quem reflete que os eternos selos
Vão da beleza no alto se apurando,
135 E aos olhos não voltava-me por vê-los,

À falta me achará perdão, notando
A verdade que digo: o prazer santo
Não excluo que em vê-la ia gozando;

139 Com a altura, se eleva o puro encanto.

 

28-30. Quem sempre reina, é uno, é duplo, é trino, etc., Deus. — 35. Voz modesta, Salomão. — 96. Hélios, o Sol. — 97. Galáxia, a Via Láctea, cuja cor deixa em dúvida os sábios, pois não sabem explicar qual seja a sua natureza.


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...Vi-me à esfera mais alta e luminosa


 

CANTO XV

 

As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, vexilo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa cruz move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É Cacciaguida, seu trisavô. Descreve ele a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada.

 

BENÉVOLO querer, que significa
Sempre esse amor, que a caridade inspira,
3 Como a cobiça o mau querer indica,

Silêncio pondo àquela doce lira;
Os sons às cordas santas suspendida,
6 Que lá do céu a destra afrouxa e estira.

Como aos claros espíritos seria
Em vão meu justo rogo, se excitá-lo
9 De acordo se calando, lhes prazia?

Ah! pranteie sem tréguas e intervalo
Quem, do amor transitório cativado,
12 Pôde do amor eterno avantajá-lo!

Como o sereno azul, atravessado
Às vezes é por fogo repentino,
15 Que aos olhos nos salteia inesperado;

Disséreis astro a procurar destino,
Se algum faltasse à parte, onde se acende
18 Esse instantâneo lume peregrino:

Assim do braço, que à direita estende,
Da cruz ao pé vi deslizar um astro
21 Dessa constelação, que ali resplende.

Não desfiou-se a per’la do seu nastro;
Pela brilhante linha descendera,
24 Como fogo a luzir sob o alabastro.

De Anquise a sombra pia assim correra,
Se fé merece a Mantuana Musa,
27 Quando Enéias do Elísio aparecera.

O sanguis meus! O superinfusa
Gratia Dei; sicui tibi cui
30 Bis unquam coeli janua reclusa?”

Minha atenção na luz, que o diz, se imbui;
Voltei depois pra Beatriz o viso;
33 Aqui e ali estupefato eu fui.

Nos olhos seus ardia um tal sorriso,
Que, encarando-a cuidei tocar o fundo
36 De ventura no eterno Paraíso,

E esse esp’rito, a se ver e ouvir jucundo,
Vozes aduz, que a mente não compreende,
39 Tanto o sentido seu era profundo.

Andrede a obscuro o seu dizer não tende;
Mas por necessidade o seu conceito
42 Além da esfera dos mortais ascende.

Quando o arco afrouxou do ardente afeito,
E em proporção do humano entendimento
45 Do seu falar manifestou-se o efeito,

Pude esta vozes distinguir, atento:
“Bendito sejas, Deus, Um na Trindade,
48 Que à prole minha dás tão alto alento!

“Meu longo e caro anelo, na verdade
Dês que no grande livro hei ler podido,
51 Imutável na sua eternidade,

“Cumpres, ó filho; e desta luz vestido
Aquela, que ao teu vôo sublimado
54 Prestou asas, eu louvo agradecido.

“Tu crês que o teu pensar me é derivado
Do ser Primeiro, como da unidade
57 Sabida o cinco e o seis se vê formado.

“E pois, quem sou e a minha alacridade,
Maior que a de outros nesta grei contente,
60 Não mostras de saber curiosidade.

“Crês a verdade: o Espelho refulgente
Desta vida reflete o pensamento
63 Antes que nasça e a todos faz patente.

“Mas, para o sacro amor, que traz-me atento
Em perpétua visão, doce desejo
66 Me acendendo, alcançar contentamento,

“Com voz clara, segura e alegre, ensejo
De ouvir tua vontade me oferece:
69 Qual resposta hei de dar-te eu já antevejo.” —

Pra Beatriz voltei-me: já conhece
Quanto intento, e, acenando prezenteira,
72 Ao querer meu as asas engrandece.

— “A cada qual de vós dês que a Primeira
Igualdade mostrou-se, amor, ciência
75 Se fizeram em vós de igual craveira;

“Pois ao Sol, que vos deu tão viva ardência
E luz tal dispensou, tanto se igualam,
78 Que não tem na igualdade competência.

“Mas nos mortais o afeito e o saber se alam,
Pela causa, a vós outros manifesta,
81 Com plumas, que, dif’rentes se assinalam

“Eu, pois, que sou mortal, sujeito a esta
Desigualdade, de alma unicamente
84 Respondo à tua carinhosa festa.

“Suplico, assim, topázio resplendente,
Que adornas esta jóia preciosa,
87 Me faças do teu nome ora ciente.” —

Falei. Com voz tornou-me maviosa:
— “Ó flor, que tanto eu, sôfrego, esperava,
90 Do tronco meu brotaste primorosa!

“Aquele, em quem teu nome começara,
Que, há mais de um séc’lo já, no monte erguido
93 Do primeiro degrau se não separa,

“Meu filho foi, teu bisavô há sido:
Por obras deves lhe encurtar fadiga,
96 Quando à vida mortal hajas volvido.

“Florença dentro em sua cerca antiga,
Onde ressoa ainda a Terça e a Noa,
99 Vivia honesta e sóbria em paz amiga.

“Não tinha áureos colares, nem coroa,
Chapins, cintos de damas em que havia
102 Mais que ver do que graças da pessoa.

“No pai, nascendo, a filha não movia
Temor; em tempo azado se casava
105 E o dote as proporções nunca excedia.

“Cada qual do seu lar se contentava;
Não alardava então Sardanapalo
108 Da alcova o que no encerro se ocultava.

“Não era inda vencido Montemalo
Por vosso Uccelatojo que, excedido
111 Na altura, há-de, ao cair, dar mor abalo.

“Bellincion Berti eu vi andar cingido
De couro e de osso, e também vi-lhe a esposa
114 Voltar do espelho sem rubor fingido.

“Vestindo pele simples, não fastosa
Nerlis e Vecchios vi, no fuso e roca
117 Tendo as consortes vida deleitosa.

“Ditosas! A nenhuma a dor sufoca
Sperando o esposo, que roubou-lhe a França,
120 Nem o jazigo ignora, que lhe toca.

“Uma o berço do filho seu balança,
E o consola naquele doce idioma
123 Que aos pais o coração no enlevo lança;

“Outra, estirando do seu fuso a coma,
Reconta aos filhos o que houvera outrora
126 Em Fiésole, em Tróia e antiga Roma.

“Nesse bom tempo maravilha fora
Uma Cianghella, um Lapo Salterello,
129 Como Cornélia e Cincinato agora.

“Da cidade naquele viver belo,
No seio dessa gente honrada e fida,
132 Nessa doce mansão, da paz modelo,

“Deu-me Maria à minha mãe dorida,
E em vosso Batistério hei recebido
135 Os nomes de cristão e Cacciaguida.

“Irmãos Moronto e Eliseu hei tido,
Minha esposa nasceu em Val-di-Pado:
138 Dessa origem provém teu apelido.

“Segui na guerra Imperador Conrado,
Que me armou cavaleiro na milícia,
141 Altos feitos me tendo assinalado.

“Com ele pelejei contra a nequícia
Do infiel, que o direito vosso oprime
144 De culpado Pastor pela malícia.

“Da torpe gente o assalto lá me exime
Dos enganosos vínculos do mundo,
Cujo amor nódoas tantas na alma imprime:

148 Mártir, vim ao repouso sem segundo.” —

 

25. De Anquise a sombria pia etc., Enéias visitou nos Campos Elísios a sombra do seu pai Anquise, como o descreve Virgílio, Eneida, VI. — 28-30. O sanguis meus etc., Ó sangue meu! Ó infinita graça de Deus! A quem senão a ti será aberta duas vezes a porta do Céu? — 90 e segu., Do tronco meu etc. É Cacciaguida quem fala, que foi bisavô de Dante, morto numa cruzada em 1173. Foi pai do primeiro Alighiero do qual derivou o nome dos Alighieri. — 97. Florença dentro em sua cerca antiga etc., no pequeno espaço, limitado por seus antigos muros, no qual se ouviam os sinos tocarem as horas. — 107. Sardanapalo, rei da Assíria, célebre pela sua luxúria. — 109-10. Montemalo, monte Mário de Roma; Uccellatoio, monte a cavaleiro de Florença. Que excedido etc., Florença superava Roma em magnificência; assim a superará na decadência. — 112. Bellincion Berti dei Ravignani, ilustre florentino. — 116. Nerlis e Vecchio, as nobres famílias florentinas Nerli e Del Vecchio. — 128. Cianghella dei Tosighi, mulher desonesta. — Lapo Saltarelli, jurisconsulto florentino tido em conta de homem corrupto. — 139. Imperador Conrado 3.° de Hohenstaufen, que chefiou a segunda cruzada. — 143. Ao infiel, os maometanos. — 144. Culpado pastor, o Papa.

 


 

CANTO XVI

 

O poeta orgulha-se pela nobreza da sua família. Cacciaguida continua falando a respeito da própria família e da antiga Florença. Deplora a chegada em Florença de cidadãos de outras terras. Lembra as maiores famílias da cidade, muitas das quais, no tempo de Dante, eram empobrecidas ou maculadas de infâmia.

 

Ó MESQUINHA nobreza de alto sangue!
Se tanto homem de haver-te se gloria
3 Neste mundo, em que o afeto enfermo langue,

Maravilhar-me já não poderia,
Pois me senti, por causa tal, ufano
6 No céu, onde o apetite não varia.

És manto exposto em breve a estrago e dano:
Se te faltar reparação constante,
9 A mão do tempo te cerceia o pano.

A responder começo à luz brilhante
Por “vós” de que, primeira, Roma usara,
12 Mas que em vulgar dicção não foi avante.

Beatriz, que algum tanto se afastara,
Fez, sorrindo-se, como a que tossira,
15 Quando a primeira vez Ginevra errara.

— “Vós sois meu pai” — disse eu — “em vós se inspira
Para falar-vos do ânimo a ousadia,
18 Me alçais mais do que a mente própria aspira.

“Por tantos rios se enche de alegria
Minha alma que em ledice é transformada,
21 Pois do prazer não vence-a a demasia.

“Dizei-me, pois, minha primícia amada,
Os ascendentes vossos e em qual era
24 Foi a vossa puerícia assinalada.

“De São João a grei como vivera
Dizei-me e os que em seu seio se mostraram,
27 A quem mais alta distinção coubera.” —

Como ao sopro do vento mais se aclaram
As flamas no carvão, dessa arte àquela
30 Luz, me ouvindo, os fulgores se avivaram;

E quanto aos olhos se ostentou mais bela,
Tanto com voz mais doce e mais suave
33 Respondeu, sem falar vulgar loquela.

Disse: — “Do dia, em que se ouvia o Ave
Ao momento, em que ao mundo a mãe querida,
36 Hoje santa me deu no transe grave,

Do Leão foi aos pés reacendida
De Marte a luz quinhentos e cinqüenta
39 Vezes mais trinta na incessante lida.

“O lugar, onde o sesto último assenta,
Dos jogos anuais termo à carreira,
42 Meu berço e o dos avós te representa.

Deles te baste esta noção primeira:
O que hão sido, onde é sua permanência
45 Calar prefiro a dar notícia inteira.

“Dos que haviam então suficiência
Para a guerra, entre Marte e João Batista,
48 São quíntuplo os que têm ora existência.

“Toda gente, porém, que se vê mista
Co’a de Campi, Certaldo, e mais Figghine
51 Pura estava, do nobre até o artista.

“Acerto fora do que bem combine
Tê-los vizinhos, linha demarcando,
54 Que com Trepiano e com Galuz confine,

“Em lugar de hospedar o infeto bando
Dos vilões de Aguglion junto aos de Signa,
57 Da fraude expertos no mister nefando.

“Se a gente, hoje no mundo a mais maligna,
A César não se houvesse declarado
60 Cruel madrasta em vez de mãe benigna,

“Quem se diz Florentino e à usura é dado,
Vende e merca, tornava a Simifonte,
63 Onde o avô mendigava esfarrapado.

“Ainda em Montemurli foram Conti,
Os seus Cerchi ainda Acone conservara
66 E, talvez, Valdigrieve os Buodelmonti.

“Sempre de castas confusão depara,
Como a de cibo em corpo mal disposto,
69 Mal à cidade, e danos lhes prepara.

“Touro cego primeiro em terra é posto
Que anho cego; e melhor corta uma espada
72 Do que cinco num feixe bem composto.

“Se de Urbisaglia a sorte desgraçada
E a de Luni tu vês, se igual espera
75 Chiusi e Sinigaglia malfadada:

“Dos solares mau fim não perecera
À tua mente estranheza ou caso forte,
78 Pois no exício de Estados considera.

“Terrenas cousas todas sofrem morte,
Como vós; mas de algumas, perdurando,
81 Quem curta vida tem não sabe a sorte.

“E como a lua, sem cessar girando
Cobre ou descobre as praias do oceano,
84 De Florença a fortuna vai mudando;

“Assim que não suponhas mais que humano
O que eu disser de exímios florentinos,
87 A cuja fama o tempo já fez dano.

“Eu vi os Ughi, vi os Catellinos,
Fillippe, Greci, Ornami e os Albericos
90 Decadentes, mas ainda nobres, di’nos.

“Grandes em fama, de virtudes ricos
Os de Sanella vi; também os de Arca,
93 Soldanieri, Ardingos e Bastichos.

“À porta de São Pedro, que ora abarca
Infâmia nova tanto em peso ingente,
96 Que fará soçobrar em breve a barca,

“Estavam Ravignans; seu descendente
Foi Conde Guido e quantos ao diante
99 De Bellincione o nome têm fulgente.

“Della Pressa em governo era prestante
E Galligaio no solar dourara
102 Punho e copos da espada fulgurante.

“A Coluna do Esquilo se elevara,
Sacchetti, Giuochi Fifanti e Barucci
105 Galli e quem pelo alqueire se pejara.

Era já grande o tronco dos Calfucci
E às cadeiras curuis tinham subido,
108 Assumindo o poder, Sizi e Arragucci.

“Quanto lustre daqueles, que abatido
Tem soberba! Que feito viu Florença
111 Sem ser de Esfera de Ouro enobrecido?

“Eram pais dos que julgam glória imensa
No concistório, vago o episcopado,
114 Cevar-se dos banquetes na licença.

“Surgia o bando já sem pejo e ousado,
Dragão que investe a quem lhe teme a ira,
117 Cordeiro em vendo bolsa ou braço armado;

“De princípio tão vil a origem tira,
Que Donato Ubertino se afrontava,
120 Quando a um desses o sogro a filha unira.

“Já Caponsacco no Mercado estava,
De Fiésole vindo; e lá já era
123 Giuda, Infangato: o nome os ilustrava.

“Incrível cousa vou dizer, mas vera:
No recinto uma porta outrora havia,
126 À qual deu nome a gente della Pera.

“Fidalgo, que o brasão belo trazia
Do barão cujo nome, glória e vida
129 De São Tomé celebra-se no dia;

“Lhe deve o privilégio e honra subida;
Mas hoje ao popular partido se une
132 Trazendo de ouro a faixa guarnecida.

“Já Gualterotti viam-se e Importuni;
E em Borgo a paz de todo se perdera,
135 Quando uma turba nova em si reúne.

“A casa, de que o mal vosso nascera,
Que vos deu morte, justamente irada,
138 E ao feliz viver vosso o fim pusera,

“Em si, na prole sua fora honrada:
Por que sua aliança recusaste
141 Por sugestão, o Buondelmonte, errada?

“Quando à cidade a vez primeira entraste,
Se do Ema às águas Deus te houvesse dado,
144 Ledice fora o pranto, que causaste:

“Forçado era que ao mármore quebrado,
Da ponte guarda, vítima imolasse
147 Florença, de sua paz o fim chegado.

“Com esses e outros, que inda eu mais lembrasse,
Florença vi gozar fausto repouso,
150 Sem motivo que pranto lhe excitasse.

Com esses e outros vi tão glorioso
E junto o povo, que ao rever lançado
Não era na hástea o lírio seu formoso,

154 Nem por facções em rubro transformado.” —

 

11. Por “vós” etc., Dante falou a Cacciaguida com o “vós” em lugar de ”tu”, como faziam os romanos quando falavam a pessoas de respeito e que não se usava mais no tempo de Dante. — 13-14. Beatriz etc., sorriu como maliciosamente sorriu a camareira de Ginevra, no romance de Lancelot, quando a sua dona foi beijada pela primeira vez pelo amante. — 33. Sem falar vulgar loquela, em latim. — 37-39. Do Leão etc., Marte aproximou-se 580 vezes da constelação do Leão, isto é, passaram 1091 anos a começar pela anunciação do nascimento de Jesus. — 40. O lugar etc., a casa de Cacciaguida estava situada no bairro (sesto) que ficava por último nas corridas de S. João, isto é, no bairro de S. Pedro. — 47. Entre Marte e João Batista, entre a estátua de Marte e a igreja de S. João Batista. — 49-51. Toda gente etc., os cidadãos de Florença não se haviam mesclado aos camponeses das redondezas. — 58. Se a gente hoje no mundo a mais maligna, a Cúria Romana. — 61. Quem se diz etc., alusão a personagem que não foi possível identificar. — 62. Simifonte, castelo no vale do Rio Elsa. — 94. À porta de S. Pedro que ora abarca infâmia nova, no bairro de S. Pedro morava a família dos Cerchi. — 101. Dourada punho e copos etc., havia recebido insígnias de nobreza. — 103. A coluna do Esquilo, no brasão da família Pigli havia uma coluna. — 105. E quem pelo alqueire se pejara, a nobre família Chiaromonti usava pesos e medidas falsas. — 111. Esferas de ouro, no brasão da família Lamberti havia esferas de ouro. — 112. Eram pais etc., dos Visdomini e dos Tosinghi, os quais administravam fraudulentamente as rendas episcopais. — 115. O bando sem pejo e ousado etc., a família dos Amidei. — 118-120. De princípio tão vil etc., de origens tão baixas que Ubertino Donati ficara ofendido quando o sogro deu em casamento uma das filhas a um Adimari. — 126. Gente della Pera, a família della Pera, extinta no tempo de Dante, era de origem ilustre. — 127. Fidalgo, que o brasão belo trazia etc., o barão Hugo de Brandeburgo cujo brasão foi usado por diversas famílias. Hugo morreu no dia de S. Tomé e, nesse dia, a sua memória era honrada na igreja da Badia, onde fora sepultado. — 131. Mas hoje ao popular partido etc., Giano della Bella, embora de família nobre, que usava o brasão de Hugo com faixa de ouro, chefiou em 1295 o partido popular. — 136-141. A casa etc., os Amidei, indignados contra Buondelmonte dei Buondelmonti por haver faltado ao compromisso de casamento com uma moça da sua família, deram origem às lutas civis em Florença. — 143. Se do Ema etc., teria sido melhor se os Buondelmonti se tivessem afogado no rio Ema, ao atravessá-lo, quando foram para Florença. — 145. Ao mármore quebrado etc., Buondelmonti foi assassinado pelos Amidei perto da estátua de Marte.


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Vós sois meu pai...


 

CANTO XVII

 

Dante pede a Cacciaguida que lhe declare qual sorte lhe está reservada. Este prediz-lhe o exílio, a perseguição pelos inimigos e o seu refúgio na corte dos Scaligeros, Exorta-o a falar do que viu e ouviu na sua viagem, sem receio de ofender ninguém.

 

QUAL a Climene explicações rogava
De quanto em desconcerto próprio ouvira
3 O que austeros depois os pais tornava,

Tal fiquei, tal efeito pressentira
Com Beatriz a santa luz brilhante,
6 Que da Cruz eu da altura descer vira.

E disse Beatriz: — “Desse anelante
Desejo a flama exibe e nela esteja
9 Ao que tens na alma imagem semelhante,

“Não, por que mais ao claro em ti se veja,
Mas porque, sendo a sede revelada.
12 Prestada em proporção água te seja.” —

— “Ó cara estirpe minha à Glória alçada! —
Como conhecem as terrenas mentes
15 Não dar a obtusos dois triâng’lo entrada,

“Assim vês tu as cousas contingentes
Lá no porvir, o Centro contemplando,
18 A quem todos os tempos stão presentes;

“Em quanto eu a Virgílio acompanhando,
Subia o monte, onde ao pecado há cura,
21 E também pelo inferno penetrando,

“Sobre a existência minha ouvi futura
Agras palavras, posto que me sinta
24 Impertérrito aos golpes da ventura.

“Folgara em ter ciência bem distinta
Dos reveses, que a sorte me prepara:
27 Menos mogoa a seta ao que a pressinta.”

Ao spírito, que, há pouco me falara,
Meu desejo hei desta arte declarado,
30 Como a senhora minha me ordenara.

Sem ambages, que aos homens enviscado
Tinham, antes de Deus ser o Cordeiro,
33 Que os pecados remiu, sacrificado,

Mas em preciso estilo e verdadeiro,
Logo tornou-me o paternal afeito,
36 Velado e transparente em seu luzeiro:

— “A contingência, que do espaço estreito
Da matéria os limites não transcende,
39 Toda se pinta no eternal aspeito.

“Necessidade, entanto, não a prende,
Como não prende a vista em que se espelha
42 A nau, que as águas rápida descende.

“De lá bem como se transmite à orelha
Doce harmonia de órgão, refletido
45 O tempo me é que a ti já se aparelha.

“Qual de Atenas Hipólito há partido
Pela perfídia da madrasta ímpia,
48 Tal deixarás Florença perseguido.

“Assim se quer e a trama principia;
Será em breve executado o plano
51 Lá onde a Cristo vendem cada dia.

“A culpa o mundo a quem padece o dano
Dará; mas terá pena merecida,
54 Da verdade em vingança, o algoz insano.

“Deixarás toda a causa a mais querida,
Chaga primeira de tormentos cheia,
57 Do desterro pelo arco produzida.

“Sentirás quanto amarga; quanto anseia
O sal de estranho pão; que é dura estrada
60 Subir, descer degraus da escada alheia.

“Tua angústia há de ser mais agravada,
Te acompanhar no val do exílio vendo
63 Ignóbil gente, estólida malvada.

“Ingrato, louco e mau te acometendo
O bando se há de unir: será corrido
66 Ele, não tu, o opróbrio merecendo.

“Seu bestial instinto conhecido
Terão seus feitos; glória consumada
69 Terás; tu só formando o teu partido.

“Te há de ser acolhida franqueada
Primeira pelo exímio e grã Lombardo
72 Que por brasão tem Águia sobre Escada.

“Terá contigo tão cortês resguardo,
Que, o rogo prevenindo, o dom se apresse,
75 Que sói entre outros, se mostrar mais tardo.

“Verás com ele o que ao nascer merece
Tanto deste astro bélico a influência,
78 Que a fama a glória ao nome lhe engrandece.

“Inda ignorada jáz tanta excelência:
Só voltas nove em torno lhe tem dado
81 Estas esferas na anual cadência.

“Mas antes que o Gascão tenha enganado
Henrique excelso já fará patentes
84 De ouro o desdém e o ânimo esforçado.

“Serão grandezas suas tão fulgentes,
Que inimigos malgrado as contemplando,
87 Terão de as proclamar por preminentes.

“Nele confia, o bem dele esperando;
A sorte mudará de muita gente,
90 Ricos, mendigos condição trocando.

“Dele o que eu digo inculcarás na mente,
Sem narrá-lo.” — E prozeas predizia,
93 Incríveis inda a quem lhe for presente. —

— “Eis, filho, o comentário” — prosseguia —
“Do que se foi já dito; eis a emboscada,
96 Que num período breve se encobria.

“Mas por ti dos vizinhos invejada
Não seja a sorte; prolongada a vida,
99 Verás sua perfídia castigada.” —

Depois que essa alma santa concluída,
Calcando-se, mostrou já ter a trama
102 Da tela, que eu lhe oferecera urdida,

Com tom de voz falei de homem, que clama
Por bom conselho, ao recear perigo,
105 De quem, sábio e discreto, o bem de outro ama.

— “Vejo, ó pai, que, investindo, o tempo imigo
Contra mim corre para o golpe dar-me,
108 Mais grave, porque opor-me não consigo.

“De prudência, portanto, é bem que me arme;
Não suceda, ao perder pátria guarida,
111 Dos meus versos por causa outra faltar-me.

“No mundo, onde em perpétua dor se lida,
Da montanha subindo o excelso cume,
114 Donde elevou-me Beatriz querida,

“E depois pelo céu de lume em lume
Cousas tais aprendi, que, se as redigo,
117 Travo terão a muitos de azedume.

“Se da verdade eu for remisso amigo,
Morrer temo dos homens pelo olvido,
120 Que o tempo de hoje hão de chamar antigo.” —

A luz, onde o tesouro era escondido,
Que eu achara, se fez tão coruscante,
123 Como o sol de áureo espelho refletido.

E disse: — “A consciência vacilante
Por próprios atos ou vergonha alheia
126 Teu falar haverá por cruciante.

“Mas deves repelir mentira feia;
Toda a tua visão faz manifesta,
129 Coce-se a pele, que é de lepra cheia.

“Ao primeiro sabor será molesta
Tua palavra; mas vital sustento
132 Deixará depois, quando for digesta.

“Há de o teu braço assemelhar-se ao vento,
Que ao mais soberbo cimo ousado investe;
135 Há de isto ao nome teu dar lustre e aumento.

“Ante os olhos aqui, no céu, tiveste,
No santo monte e lá no val das dores
138 Almas, que a fama com seu brilho veste.

“Pois de ouvintes o ânimo ou leitores
Preço não dá ao exemplo derivado
De origem vil, sem nota, sem louvores,

142 Nem a outro argumento mal fundado.” —

 

1. Qual a Climene etc., Fetonte (que com o seu exemplo faz com que os pais sejam austeros com os filhos) perguntou à mãe Climene se ele era verdadeiramente filho do Sol. — 46. Qual de Atenas etc., Hipólito filho de Teseu, não querendo sujeitar-se aos desejos de sua madrasta Fedra, foi banido de Atenas, caluniado por ela. — 51. Lá onde a Cristo vendem todo dia, a Cúria Romana. — 71. Grã Lombardo etc., Bartolomeu della Scala, senhor de Verona. — 76-77. O que ao nascer etc., Cangrande della Scala, irmão de Bartolomeu, que foi notável capitão. Cangrande em 1300 tinha nove anos. — 82-83. Mas antes que o Gascão tenha enganado etc. Clemente V, papa de origem francesa, depois de ter prometido a Henrique VII que o reconheceria como imperador, quando Henrique chegou à Itália, em 1312, o adversou.

 


 

CANTO XVIII

 

Beatriz conforta o Poeta. Cacciaguida mostra-lhe outros espíritos que combateram pela fé cristã. Sobem depois a Júpiter, ande estão as almas dos príncipes que governaram com justiça. Os espíritos se dispõem de maneira a desenhar palavras de conselho aos que governam; por último se compõem na forma de uma águia.

 

JÁ gozava em silêncio do seu verbo
Essa alma venturosa e eu cogitava,
3 O doce temperando pelo acerbo;

Mas aquela, que a Deus me encaminhava,
— “Muda o pensar; que perto” — me dizia —
6 “Eu sou do que injustiças desagrava.” —

Voltei-me à voz, que sempre me infundia
Valor: dos santos olhos a ternura
9 Descrever a palavra renuncia.

Não só a língua em vão dizer procura;
Mas sobre si tornando, desfalece
12 A mente sem socorro lá da altura.

Ora somente referir se of’rece
Que outro desejo, a santa contemplando,
15 Do coração, ao todo, desparece.

Como a delícia eterna, rebrilhando
Direta em Beatriz, me extasiava
18 Do gesto seu por um reflexo brando,

Com riso, de que a luz me subjugava,
— “Volve-te, escuta ainda; o Paraíso
21 Não stá só nos meus olhos” — me falava.

Como a paixão, no seu dizer conciso
Pelos olhos se exprime, na alma enquanto
24 Tolhe o prestígio seu todo o juízo,

Assim no flamejar do fulgor santo,
Voltando-me, o desejo vi patente
27 De aditar ao que disse ora algum tanto.

— “Na quinta estância da árvore, que, ingente,
Pelo cimo se nutre” — principia —
30 “Que frutos sempre dá, sempre é virente,

“Espíritos habitam, que algum dia
Nome tinham na terra tão famoso,
33 Que opimo assunto às Musas prestaria.

“Da cruz os braços olha cuidadoso:
Os que eu te nomear verás fulgindo,
36 Qual relâmpago em nuvem pressuroso.” —

Na Cruz vi perpassar, o nome ouvindo
De Josué, um traço rutilante,
39 Mal acabara a voz, presto surgindo.

Disse o grã Macabeu: no mesmo instante
Outro acorria, sobre si rodando,
42 Tange alegria esse pião brilhante;

Assim fez Carlos Magno, assim Orlando.
Atento, os movimentos seus esguardo,
45 Qual monteiro ao falcão no ar voando.

Seguiram-se Guilherme e Rinoardo;
Distingue o duque Godofredo a vista,
48 E logo após se assinalou Guiscardo.

Depois com os outros esplendores mista
Provou-me a alma ditosa, que há falado,
51 Ser nos coros do céu sublime artista.

Voltei-me então para o direito lado
Por conhecer de Beatriz o intento,
54 Em palvras ou gestos declarado.

Nos olhos puros seus vi tal contento,
Fulgor tal, que excedia o seu semblante
57 Quando de antes prendeu-me o pensamento.

Como, ao sentir prazer inebriante,
Cada vez que o bem faz homem conhece
60 Ir da virtude na vereda avante,

Assim mais amplo o arco me parece
Do círc’lo, em que vou co’o céu girando
63 Ao ver quanto prodígio tal recresce.

Tão presto, como em nívea face, quando
A chama do pudor se acende, volta
66 A cor a ser qual de antes, branqueando,

Pelo doce candor, que a vista envolta
Me teve, conheci que a sexta estrela
69 Nos recebera a mim e a minha escolta.

De Júpiter na esfera argêntea e bela
O cintilar de amor, que ali resplende,
72 Linguage’ humana aos olhos me revela.

De aves qual bando, que se estreita ou estende,
Do rio junto à borda e que à verdura
75 Do pascigo, a folgar os vôos tende,

Tal em seus lumes grei ditosa e pura,
Adejando, cantava e descrevia
78 De D, de I, de L uma figura.

Ao compasso dos hinos se movia
E em silêncio quedava, se detendo,
81 Quando alguma das letras concluía.

Pegásea Diva, ó tu, que, concedendo
A glória ao gênio, lhe dilatas vida,
84 Cidades, reinos imortais fazendo!

Brilha em mim! por que seja referida
Cada figura, qual me foi presente!
87 Faz tua força em meus versos conhecida!

E cinco vezes sete claramente
Vogais e consoantes vi, notando
90 Cada qual pelo traço refulgente:

DILIGITE JUSTITIAM” indicando
Verbo e nome primeiros na escritura;
93 “QUI JUDICATIS TERRAM” terminando.

Colocando-se assim cada luz pura,
No fim pausaram no vocáb’lo quinto:
96 Sobre o argento de Jove ouro fulgura.

De outros lumes, que descem, vi distinto
Do M o cimo: cantam, lá pousados,
99 Bem que os atrai ao divinal precinto.

Como carvões ardentes encontrados
De centelhas um jorro de si lançam,
102 Presságios por estultos venerados,

Muitos mil fogos para o ar avançam,
Subindo à altura, que lhes há marcado
105 O Sol, de quem beleza e brilho alcançam.

Já, cada qual ao seu lugar tornado,
De Águia o colo a meus olhos se mostrava,
108 Rematando em cabeça, desenhado.

Guia não teve o artista que os traçava:
É seu todo o primor, toda a mestria,
111 Que em cada ninho forma própria grava.

A santa grei, porém, que parecia
De ornar de c’roa o M estar contente,
114 Movendo-se, a figura perfazia.

Quanta jóias, ó astro refulgente,
Mostraram-me provir justiça humana
117 Do céu de que és ornato permanente!

À Mente, pois, suplico de que emana
O moto e a força tua, atenta veja
120 Da névoa a causa que o teu brilho empana;

E de ira inda uma vez tomada seja
Contra os que mercadejam no seu templo,
123 Que do sangue dos mártires flameja.

Celestial milícia, que eu contemplo,
Roga por esses, que ora estão na terra
126 Transviados, seguindo hórrido exemplo.

Com gládio outrora se travava a guerra;
Hoje em tirar o pão, que Deus tem dado,
129 Dos combatentes o valor se encerra.

Tu que escreves pra ser logo emendado
Pensa que Pedro e Paulo hão ressurgido,
132 Pela vinha morrendo que hás talado.

Tu bem podes dizer: — “Devoto hei sido
Do que, ao deserto dando tanto apreço,
Sofreu martírio à dança oferecido:

136 O pescador e Paulo não conheço.” —

 

28. Da árvore que, ingente, pelo cimo se nutre, o Paraíso que recebe vida de Deus. — 38. Josué, sucessor de Moisés na chefia do povo hebreu e que conquistou a Terra Prometida. — 40. O grã Macabeu, Judas Macabeu que combateu contra Antíoco. — 43-48. Orlando, paladino de Carlos Magno; Guilherme, d’0range; combateu contra os infiéis; Rinoardo, companheiro de Guilherme; Godofredo de Bouillon, conquistou a cidade de Jerusalém; Roberto Guiscardo, libertou as Apúlias dos Sarracenos, no século XI. — 49-51. Depois com os outros etc., Cacciaguida cantou, provando que era um sublime artista. — 82. Pegásea Diva, a musa Caliope. — 91-93. Diligite etc., amai a justiça vós que governais o mundo. — 107. Águia etc., a águia é o símbolo da justiça e da monarquia. — 130. Tu que escreves etc., alusão ao papa Bonifácio VIII, que escrevia as censuras, para emendá-las depois de ter recebido dinheiro. — 134-136. Do que etc., a moeda florentina, o florim, trazia a efígie de S. João Batista, que sofreu o martírio por causa da dança de Salomé.


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Adejando, cantava e descrevia


 

CANTO XIX

 

Dante fala à Águia externando uma sua antiga dúvida se alguém possa salvar-se não tendo conhecimento da lei de Cristo. Respondendo, a Águia aproveita a ocasião para repreender os malvados reis cristãos do seu tempo que nunca obterão a graça de Deus.

 

DE asas pandas formosa se ostentava
Essa imagem, que enlevos de alegria
3 Nas almas enlaçadas excitava,

E rubi cada qual me parecia,
Em que raio de sol, fúlgido ardendo,
6 Os lumes nos meus olhos refrangia.

O que eu agora descrever pretendo
Voz não contou, nem pena há referido,
9 Nem criou fantasia encarecendo.

O bico da Águia vi falar, e o ouvido
Eu e meu nas palavras distinguia,
12 Mas nós e nosso estava no sentido.

— “Porque fui justo e pio” — assim dizia —
“Exaltado me vejo a tanta glória,
15 Que excede a quanto o anelo aspiraria.

“De mim deixei na terra tal memória,
Que apregoam-na os homens pervertidos,
18 Sem exemplos seguir, que narra a história.” —

Como em pira dão lenhos incendidos
Um só calor, aqueles mil amores
21 Da imagem stavam num falar contidos.

Então lhes disse: “Ó vós, perpétuas flores
Do júbilo eternal, que num perfume
24 Sentir fazeis multíplices olores,

“Esta fome fartai, que me consome,
Há largo tempo, na terrestre vida,
27 Onde alimento nunca achar presume.

“Se do céu noutro reino é refletida
A divina Justiça em claro espelho,
30 Sei que sem véus no vosso é percebida.

“Sabeis que, atento, a ouvir-vos me aparelho;
Sabeis também que, nunca saciado,
33 Ardo em desejo que se fez já velho.” —

Qual falcão, do capelo desvendado,
Que a fronte move, as asas exercita
36 E se apavona ledo e alvoroçado,

Tal vi a insígnia, que essa grei bendita,
Louvor da graça divinal, formara,
39 Com hinos próprios da mansão que habita.

Depois dizia: — “Aquele, que traçara
Com seu compasso o mundo e no começo
42 De ocultas, claras cousas o dotara,

“Não pôde tanto seu poder impresso
No universo deixar, que o Eterno Verbo
45 A criação não teve infindo excesso.

“Prova-o bem quem primeiro foi soberbo;
Pois, sendo ele perfeita criatura,
48 Não esperando a luz, caiu acerbo.

“Todo ente, pois, somenos em natura
Conter o Bem sem fim não circunscrito
51 Não pode e em si guarda a mensura.

“Nossa vista, de alcance tão finito,
Posto seja um dos raios dessa Mente,
54 Que as cousas todas enche no infinito,

“Não é, por natureza, tão potente,
Que não discirna a sua Causa Eterna,
57 Do que ela é na verdade diferente.

“Penetra na justiça sempiterna
A vista concedida ao vosso mundo,
60 Bem como o olhar, que pelo mar se interna:

“Se junto ao litoral lhe enxerga o fundo,
No pélago o não vê: certo é que existe,
63 Mas encoberto está por ser profundo.

“Se do Lume não vem, que só persiste
Sempre sereno, a luz torna-se em treva,
66 Ou da carne é veneno, ou sombra triste.

“Já compreendes que o véu romper se deva,
Que a Divina Justiça te escondia,
69 E a tão freqüentes dúvidas te leva.

“Junto ao Indo — tua mente assim dizia —
Um varão vem á luz: de Cristo o nome
72 Nem por voz, nem por letras conhecia.

“Os feitos e desejos são desse home’
Bons no quanto julgar à razão cabe;
75 Em pecar ditos e atos não consome.

“Quando sem fé e sem batismo acabe,
Há justiça em ser ele condenado?
78 Pode ter culpa quem não crê, não sabe?

“Mas tu quem és, que, em tribunal sentado,
Julgas, de léguas em milhões distante,
81 Se mal vês o que a um palmo é colocado?

“Em duvidar, por certo, iria avante
Quem assim sutilezas apurara,
84 Sem a luz da Escritura triunfante.

“Terrenos vermes! raça estulta, ignara!
A primeira Vontade, por si boa,
87 De si, Supremo Bem, se não separa.

“Justo é somente o que com ela soa,
A si nenhum criado bem a tira,
90 Todo o bem, radiando, ela afeiçoa.” —

Como a cegonha, que o seu ninho gira,
Os filhotes já tendo apascentado,
93 Enquanto cada qual, farto, a remira,

Assim, os olhos quando eu tinha alçado
Fez o pássaro santo; e asas movia,
96 Por múltiplas vontades sustentado.

Volteando cantou; depois dizia:
“As notas não comprendes do meu canto,
99 Como os mortais de Deus sabedoria.” —

As flamas quando já do Esp’rito Santo
Quedaram nessa imagem, que alcançara
102 Aos Romanos do mundo temor tanto,

Prosseguiu: — “Este reino não depara
Jamais quem não acompanhou a Cristo
105 Nem antes, nem depois que à Cruz se alçara.

“Dizem muitos em grita — Cristo! Cristo!
Menos perto, em juízo, do que o infido
108 Lhe hão de ser que jamais conheceu Cristo.

“Há de os danar o Etíope descrido,
Quando em grei rica e pobre eternamente
111 For o gênero humano repartido.

“Dos reis cristãos o que dirão em frente
Os Persas, lendo no volume aberto,
114 Onde tanto flagício está patente?

“Ali hão de se ver entre os de Alberto
Os que serão em breve registados:
117 De Praga o reino tornarão deserto.

Se hão de ver sobre o Sena acumulados
Os do Rei, que a moeda falsifica,
120 Da fera morto aos dentes afiados.

Se há de ver a soberba, atroce, inica
Quem me demência o Escocês e o Bretão lança:
123 Nenhum nos seus confins contente fica.

“E se há de ver quanto em luxúria avança
O Rei de Espanha e o que a Boêmia rege,
126 Que mostra ao seu dever tanta esquivança.

“Ninguém ao Coxo de Sião inveje:
Com I sua bondade se assinala,
129 Com M o que em contrário ama e protege

“Se há de ver que a avareza à ignávia iguala
No Rei da ilha, em que morreu Anquise,
132 E donde o fogo, a trovejar, se exala.

“Porque do seu valor mal se ajuíze,
Em cifra a história sua é resumida,
135 Que muito em pouco espaço localize,

“Será patente a vergonhosa vida
Do tio e desse irmão, que hão desonrado
138 Dois cetros e a ascendência enobrecida.

“O Rei de Portugal será notado
E o Rei de Noruega e mais aquele,
141 Que de Veneza os cunhos tem falsado.

“Ditosa Hungria! que de si repele
O jugo da opressão! Feliz Navarra,
144 Quando em seus montes que defensa vele!

“E creiam todos que já d’isto em arra
Nicósia e Famagusta se lamentam,
Bramindo de uma fera sob a garra:

148 Os exemplos dos mais não o escarmentam.” —

 

28. Noutro reino, em outra ordem de bem-aventurados. — 34. Qual falcão de capelo desvendado, libertado pelo caçador que lhe tira a venda. — 46. Quem primeiro foi soberbo, Lúcifer. — 102. Aos Romanos do mundo temor tanto etc., a águia era a insígnia de Roma. — 110-11. Quando em grei rica e pobre etc., quando os justos e os pecadores serão divididos eternamente em duas partes, uma delas rica de todos os bens e a outra pobre e danada. — 115. Alberto I, de Áustria, que em 1304 devastou a Boêmia. — 119-120. Rei que a moeda falsifica etc., Filipe o Belo, que falsificou o dinheiro para pagar os mercenários, morreu em 1314 por efeito de uma queda de cavalo, numa caçada. — 122. O Escocês e o Bretão etc., os reis Roberto da Escócia e Eduardo da Inglaterra, em guerra entre si. — 125. O rei da Espanha, Fernando IV; e o que a Boêmia rege, Venceslau IV. — 127-129. O coxo de Sião etc., Carlos II de Anjou, rei de Apúlia e de Jerusalém, será marcado no livro da justiça divina com I pela sua bondade e com 1000 (M) pelas suas malvadezas. — 131. O rei da ilha em que morreu Anquise, Frederico II de Aragão, rei da Sicília. — 137-136. Do tio, Jaime, rei de Maiorca e Minorca; desse irmão, Jaime II, rei de Aragão. — 139. O rei de Portugal, D. Diniz, o lavrador. — 140-141. O rei de Noruega, Acon VII; e mais aquele etc., o rei de Ragusa, na Dalmácia, que falsificou a moeda de Veneza. — 143. Feliz Navarra etc., o Poeta faz votos para que a Navarra se defenda contra o opressão dos reis franceses para não cair na opressão como a ilha de Chipre (Nicósia e Famagosta são cidades dessa ilha), que está sendo tiranizada por Henrique II.


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De asas pandas formosa se ostentava


 

CANTO XX

 

A Águia louva alguns reis antigos que foram justos e virtuosos. Depois solve a Dante uma dúvida, como possam estar no Céu alguns espíritos que, na sua opinião, quando em vida não tinham tido fé cristã.

 

QUANDO esse astro, que a todos alumia
Deste hemisfério nosso já descende
3 E se consome em toda parte o dia,

O céu, que dele só de antes se acende,
Cintilante se mostra de repente
6 Por mil luzeiros, em que um só resplende.

Do céu surgiu-me essa mudança à mente
Depois que o santo pássaro calou-se,
9 Dos reis, no mundo, insígnia refulgente;

Pois desses vivos lumes ateou-se
Inda mais o clarão, hino cantando,
12 Que na memória instável apagou-se.

Ó doce amor! num riso te velando,
Quanto indicas arder nos esplendores,
15 Que estão santo pensar só respirando!.

Quando as gemas sublimes nos fulgores,
De que o sexto planeta se adornava
18 Findaram seus angélicos dulçores,

De rio o murmurar ouvir julgava,
Que, em claras espadanas debruçado
21 Com sua veia abundante as rochas lava.

Da cít’ra em braço como o som formado,
Como o sopro na avena penetrando
24 Em melódicas notas modulado,

Assim formou-se um murmúrio brando,
Que subiu, logo após, da ave formosa,
27 Pelo canal do colo, se exalando.

Então em voz tornou-se harmoniosa,
Que do bico em palavras irrompia:
30 Em minha alma insculpiram-se ansiosa.

— “Na parte atenta, que em mim vê” — dizia —
“Que até na águia mortal afronta ousada
33 O sol, quando rutila ao meio-dia;

“Porque dos fogos, de que sou formada,
Aqueles, com que a vista me cintila,
36 No céu graduação tem sublimada,

“Esse, que brilha em meio por poupila,
Foi o régio cantor do Esp’rito Santo,
39 Que a Arca trasladou de vila em vila.

“Conhece ora a valia de seu canto,
Qual foi o efeito desse ardente zelo,
42 Galardão recebendo tal e tanto.

“Dos cinco, que o sobrolho me ornam belo,
Consolou o que ao bico está mais perto
45 Viúva em dó do filho, seu desvelo.

“Quanto custa lhe está bem descoberto
A Cristo não seguir, pela exp’riência
48 Do céu e do penar pungente e certo.

“E o que está logo após na circunf’rência
Do sobrolho, onde vês arco superno,
51 Morte adiou por vera penitência.

“Conhece agora que o juízo eterno
Não muda, se o rogar do arrependido
54 Em crástino tornar fato hodierno.

“A mim e às leis esse outro há transferido
À Grécia, do Pontífice em proveito:
57 Boa intenção mau fruto há produzido.

“Conhece agora que o maligno efeito
Dessa obra pia lhe não é nocivo,
60 Posto haja o mundo horrendo desproveito.

“O que vês do sobrolho no declive
Guilherme é, por quem chora o reino opresso
63 De Frederico e Carlo ao mando esquivo.

“Conhece agora bem com quanto excesso
Ao Rei justo ama o céu: do seu semblante
66 Ainda no fulgor se mostra expresso.

“Quem crer pudera em vosso mundo errante
Que entre estas luzes santas quinta seja
69 Rifeu Troiano, da justiça amante?

“Conhece agora que mistério esteja
Na Graça — aquilo, que inda o mundo ignora —
72 Bem que o fundo inefável não lhe veja.” —

Qual codorniz que os vôos seu demora,
Paira cantando e cala-se, enlevada
75 Nas doçuras finais da voz sonora:

Tal parece-me a imagem sinalada
Pelo eterno prazer, que, a seu desejo,
78 Faz que seja quanto é cousa criada.

Posto a dúvida minha neste ensejo,
Como no vidro a cor, fosse patente,
81 Não mais espero a solução, que almejo.

Cedendo à força do seu peso urgente.
Prorrompo logo: — Que mistério imenso! —
84 Da águia o júbilo fez-se mais fulgente.

Brilho tendo nos olhos mais intenso
A sacrossanta forma respondia
87 Por não mais ter-me atônito e suspenso:

— “Bem vejo que tu crês” — assim dizia —
“Não porque entendas, mas porque assevero:
90 Ocultas cousas são, mas fé te guia.

“És como quem da cousa o nome vero
Aprende; mas inota fica a essência,
93 Se não a explica espírito sincero.

“Dos céus o reino sofre um violência
Do ardente amor e da esperança viva,
96 Que triunfam da própria Onipotência.

“Mas não é, qual vitória humana, esquiva:
Vencido é Deus por ser assim servido;
99 Tem, vencido, vitória decisiva.

“Maravilhado, ao veres, te hás sentido,
Do meu sobrolho a luz quinta e primeira
102 Neste império aos eleitos concedido.

“Não morreram gentios: crença inteira
No Redentor futuro ou no já vindo
105 Tinham antes da hora derradeira.

“À vida um, lá do inferno ressurgindo,
Onde não se corrige o condenado,
108 A mercê recebeu anelo infindo,

“Vivo anelo, que ardor tanto empenhado
Em suplicar a Deus tal graça havia,
111 Que pôde o seu querer ser abalado.

“Quando voltou à carne e à luz do dia,
Em que não fez detença a alma ditosa,
114 Naquele há crido que a salvar podia;

“E foi na fé, no amor tão fervorosa,
Que ao passar nova morte há merecido
117 Sublimar-se à existência gloriosa.

“E do outro, pela Graça protegido,
Que provém de uma origem tão profunda,
120 Que a nascente olho algum não lhe há sabido,

“Foi no amor à justiça sem segunda:
De graça em graça a Redenção futura
123 Mostrou-lhe Deus revelação jucunda.

“À fé se entrega; e a sua mente pura
A perversão gentílica rejeita,
126 Do mundo repreendendo a vida impura

“As damas três que achavam-se à direita,
Do carro, o seu batismo efetuaram,
129 Anos mil precedendo a lei perfeita.

“Ó predestinação! Não te alcançaram
A raiz esses olhos, que a primeira
132 Cousa jamais ao todo interpretaram.

“Mortais! Oh! não julgueis tão de carreira!
Porque nós que Deus vemos não sabemos
135 Dos preferidos seus a grei inteira.

“Esta ignorância por ditosa havemos;
Que o nosso bem por este bem se afina,
138 De ser quanto Deus quer o que queremos.” —

Por essa imagem de feição divina
Assim, para aclarar-me a curta vista,
141 Dada me foi suave medicina:

E como a um bom cantor bom citarista
Acompanha, vibrar fazendo a corda,
144 E desta arte mais graça o canto aquista,

Assim a fala (a mente me recorda)
Da ave santa os luzeiros dois seguiam
Como dos olhos o bater concorda,

148 Com sua voz igualmente se moviam.

 

37. Esse, que brilha etc., Davi rei de Israel e autor dos Salmos. — 44. Consolou o que, o imperador Trajano, que foi justo com a viúva (V. Canto X, 82 do Purgatório). — 46-48. Quanto custa etc. Uma crença popular afirmava que Trajano tivesse sido libertado do Inferno pelas preces de S. Gregório. Por isso Trajano podia estabelecer uma comparação entre o Inferno e o Paraíso. — 49-51. E o que está etc., Esequias, rei de Judá, o qual, pela predição do profeta Isaías soube que estava no fim da sua vida, mas, pedindo a Deus, obteve mais quinze anos de vida e expiou os seus pecados. — 55-57. Esse outro etc., Constantino que transferiu para Bizâncio a capital do Império Romano. — 62. Guilherme II, rei de Apúlia e da Sicília. — 63. Frederico II de Aragão e Carlos II Anjou. — 69. Rifeu Troiano, personagem da Eneida; homem justo e honesto, morreu combatendo pela sua pátria. — 101. A luz quinta e primeira, Rifeu e Trajano. — 103-105. Crença inteira no Redentor futuro ou no já vindo, Rifeu acreditou na futura paixão de Jesus, Trajano na paixão que Cristo já tinha sofrido. — 127. As damas três, as três virtudes teologais. — 129. Anos mil etc., mil anos antes que Cristo instituísse o batismo.

 


 

CANTO XXI

 

Dante sobe do céu de Júpiter ao de Saturno, no qual encontra as almas dos que se dedicaram na vida à celeste contemplação, onde vê uma escada altíssima pela qual vai subindo o descendo uma multidão de almas resplendentes. S. Pedro Damião vai ao encontro do poeta e lhe fala do dogma da predestinação.

 

DE Beatriz no gesto o entendimento,
Acompanhando os olhos, embebia;
3 De ai não cuidava absorto o pensamento

Beatriz, sem sorrir-se, me dizia:
— “O sorriso contenho; de outra sorte,
6 Como Semele, em cinzas te veria.

“Minha beleza, viste já, mais forte
Refulge, quanto mais se eleva a escada,
9 Por onde ascende para a eterna corte.

“Teu vigor, se não fora moderada,
Ao seu fulgor, de todo fenecera,
12 Qual fronde, pelo raio espedaçada.

“À sétima chegamos clara esfera,
Que sob o peito do Leão ardente
15 Da luz mais viva do que de antes era.

“Teus olhos acompanhe pronta a mente;
Sejam-te espelho a quanto este astro belo,
18 Que um espelho é também, fará patente.” —

Quem bem coubesse a força do desvelo,
Com que a vista em seu gesto se pascia,
21 Quando voltei-me a impulso de outro anelo,

Quanto contente fui conheceria,
Minha guia celeste obedecendo,
24 Após uma gozando outra alegria.

No cristal, que, em seu giro se movendo,
O nome do Monarca tem querido,
27 Que a todo vício foi flagelo horrendo,

De áurea cor, em que o sol é refletido,
Escada vi de tão sublime altura,
30 Que o topo aos olhos stava-me escondido.

Pelos degraus brilhando com luz pura
Descia soma tanta de esplendores,
33 Que os clarões todos ver se me afigura.

Como, ao seu modo, aos matinais albores,
As gralhas, pelos ares se movendo,
36 Aquecem-se, do frio nos rigores,

Umas se vão não mais voltar querendo,
Tornam outras, buscando o pouso amado,
39 Rodam outras, os vôos seus contendo:

Tal dos lumes o bando sublimado
Pela escada formosa parecia,
42 Até certo degrau terem tocado.

E o que parou mais perto resplendia
Tão claro, que eu pensei: — Luz, que eu venero
45 Em ti, amor, em que ardes, denuncia.

Mas Beatriz de quem sinal espero
Pra dizer ou calar, grave emudece:
48 Eu pois o anelo meu, reprimir quero.

Ela, que o meu pensar então conhece,
Pois quem tudo prevê lho manifesta,
51 — “Cumpre” — disse — “o que a mente ora apetece.” —

E comecei: — “Direito não me presta
A resposta o meu mérito apoucado:
54 Mas por aquela, que o valor me empresta,

“Espírito ditoso, que velado
Stás por tua alegria, me declara
57 Por que tão perto a mim te hás colocado;

“E por que muda está na esfera clara
Do paraíso a doce sinfonia,
60 Que tão devota noutras escutara.” —

— “Como os olhos o ouvido” — respondia —
“Tens mortal: nesta esfera não se canta,
63 Nem Beatriz sorri, como soía.

“Tantos degraus desci da escala santa
De prazer por te dar mostra evidente
66 Em vozes e na luz que me abrilhanta.

“Não que me apresse o afeto mais ardente,
Pois lá por cima igual ou mais se acende,
69 Como te prova o flamejar ingente.

“Mas alta caridade, que nos prende
A quem por seu querer tudo governa,
72 Quais vês, marca os lugares como entende.” —

— “Bem conheço” — tornei — “sacra luzerna,
Como o livre amor do céu na corte
75 Basta para cumprir vontade eterna;

“Mas como, entre a dos teus santa coorte,
Tu só chamado a este cargo hás sido,
78 Por discernir não hei mente assaz forte.” —

A voz final não tendo proferido,
Qual veloz roda, sobre si girando,
81 Volveu-se o lume, súbito movido.

O amor, que encerrava, então falando
— “Em mim dardeja” — disse — “a luz divina,
84 Esta, que me circunda, penetrando.

“Com meu ver, sua ação, que assim combina,
Tanto me alteia, que a Suprema Essência,
87 Donde ela emana, a mim se descortina.

“Daí vem do meu júbilo esta ardência;
Pois a minha visão quanto é mais clara,
90 Da claridade em mim sobe a eminência.

“Alma, porém, que mais no céu se aclara,
O serafim, que em Deus mais se embevece,
93 Resposta ao teu dizer não deparara.

“Tanto o que me perguntas desparece
Dos eternos conselhos no infinito,
96 Que a vista a todos pávida esmorece.

“Ao mundo isto por ti deve ser dito,
Que da verdade saiba quanto aberra,
99 Os pés movendo ao transcedente fito.

“Alma, que é flama aqui, fumo é na terra:
O que no céu jamais saber alcança,
102 Como ver pode, quando a cinza a encerra?” —

Em tanto enleio o seu dizer me lança,
Que humilde, outras perguntas evitando,
105 Em lhe saber o nome pus a esp’rança.

— “De mares dois no meio demorando,
De Florenca não longe, estão rochedos,
108 Aos trovões sobranceiros se empinando.

“Catria chama-se a giba dos penedos:
Ao pé se vê um claustro consagrado
111 Da alma com Deus aos místicos segredos.” —

Terceira vez o santo me há tornado.
E disse, prosseguindo: — “Nessa ermida
114 Somente a Deus servir me hei dedicado.

“Com suco de oliveira por comida,
Contente a calma e frio suportava,
117 Passando ali contemplativo a vida.

“Nesse retiro ao céu se aparelhava
Ampla seara; estéril tanto agora,
120 Que o véu já cai que o mal dissimulava.

“Fui Pedro Damiano; um Pedro outrora
Dito Pecador junto ao Ádria esteve
123 Na casa em que invocou Nossa Senhora.

“Da vida me restava espaço breve,
Quando ao claustro arrancado, me cingiram
126 Chapéu, que a indignas fontes já se deve.

“Magros descalços a missão cumpriram,
O Vaso de Eleição e Cefas, tendo
129 O pão de cada dia, que pediram.

“Hoje o pastor, a custo se movendo,
Anda de um lado ao do outro carregado,
132 Quem o sustente por de trás querendo.

“Seu manto, o palafrém tendo embuçado,
Dois brutos numa pele está fingindo:
135 Ó paciência, quanto hás suportado!” —

Calou-se. Luzes mil eu vi, fulgindo,
Descer em veloz giro a excelsa escada:
138 Seu brilho, em cada volta, ia subindo.

Parando em torno a essa alma afortunada,
A voz em som tão alto despediram,
Que não pudera ser de outro igualada.

142 Não sei, torvado, o que elas proferiram.

 

6. Semele, amada por Júpiter, a conselho da ciumenta Juno, pediu ao deus que se lhe mostrasse em todo o esplendor da sua majestade e morreu abrasada. — 25. No cristal, que, em seu giro se movendo etc., no lúcido planeta que, girando no universo, tem o nome de Saturno, o qual reinou no século de ouro, no qual foi banida do mundo qualquer malícia. — 121-123. Pedro Damiano, monge beneditino, foi prior do mosteiro de Santa Cruz; e, posteriormente, em 1057 foi nomeado cardeal pelo papa Estevão IX. Pedro Pecador, S. Pedro degli Onesti, fundador do convento de Santa Maria do Porto, perto de Ravena. — 128. O Vaso de Eleição, S. Paulo; Cefas, S. Pedro.


imagem

..Descia soma tanta de esplendores...


 

CANTO XXII

 

Outros espíritos bem-aventurados aproximam-se do Poeta, entre eles S. Bento, o qual lhe indica alguns dos seus santos companheiros; depois lamenta profundamente a corrupção da ordem por ele fundada. Sobe daí o Poeta à oitava esfera que é a das Estrelas Fixas.

 

VOLTEI-ME a Beatriz, de espanto entrado,
Qual menino, que busca sempre o amparo
3 De pessoa, em quem mais há confiado.

Beatriz, como a mãe, que ao filho caro
Súbito acorre ao vê-lo espavorido,
6 Com voz, que sói lhe ser terno anteparo,

— “Ao céu” — disse — “não vês que foste erguido?
Ignoras tu que o céu em tudo é santo
9 E a caridade a tudo há presidido?

“Pois comover-te o grito pôde tanto,
Oh! quanto o meu sorriso te abalara
12 E dos celestes coros o alto canto!

“Se esse grito os seus rogos revelara,
Já de agora souberas a vingança,
15 Que inda antes de morrer, verás, amara.

“Do céu a espada pune sem tardança,
Mas sem pressa, conquanto o não pareça
18 A quem no medo aguarde e na esperança

“Mas por voltar o rosto ora começa:
Que tens de ver espíritos famosos,
21 Se a vista, como eu digo, se endereça.” —

Como ordenara, os olhos curiosos
Alcei: glóbulos vejo mais de cento,
24 Que os raios seus cruzavam luminosos.

Eu estava como quem reprime atento
Do desejo o aguilhão, e receava
27 Por perguntas mostrar molesto intento;

Eis uma dessas pér’las, que ostentava
Entre as outras mais brilho, mais grandeza.
30 Para dar-me contento se acercava.

— “Se como eu” — disse a sua voz — “certeza
Da caridade houvesse, que em nós arde,
33 Teu desejo exprimiras com franqueza.

“Por que maior demora não retarde
Teu fim sublime, eu te darei resposta,
36 Posto em silêncio o teu pensar se aguarde.

“O monte, que o Cassino tem na encosta,
Estava, em seu cabeço, povoado
39 Por gente ignara, ao erro e ao mal disposta

“Ali, primeiro, o Nome hei proclamado
Daquele, que aos humanos a verdade
42 Trouxe que humanos tanto há sublimado.

“Da Graça em mim luziu tal claridade,
Que salvar pude os povos circunstantes
45 Do culto, que perdera a humanidade.

“Eremitas hão sido esses brilhantes
Fogos, que vês: na flama se acenderam,
48 Que frutos brota e flores vicejantes.

“Macário e Romualdo aqueles eram,
Estes os meus irmãos, que, os pés firmando
51 No claustro, os corações ao Senhor deram.” —

— “Esse afeto, que mostras me falando” —
Tornei — “e o bem-querer, que tão patente
54 Nos esplendores vossos ’stou notando,

“O ânimo dilata-me: igualmente
O sol faz, quando à rosa purpurina
57 O seio desabrocha rescendente.

“E, pois, te rogo, ó Padre meu, te inclina
A declarar-me se a mercê mereço
60 De ver-te a face, mas sem véu, beni’na.” —

— “O teu sublime anelo todo apreço
Há de achar” — disse — “irmão, na extrema esfera,
63 Onde todos e o meu terão seu apreço.

“Madura, inteira ali se considera
Perfeita a aspiração; ali somente
66 Demora cada parte sempre onde era.

“Sem pólos, sem lugar é permanente;
Até lá nossa escada vai subindo;
69 Foge-te à vista a sua altura ingente.

“Viu-a Jacó, o topo lhe atingindo,
Quando em sua visão a contemplava
72 De inumeráveis anjos refulgindo.

“Mas ninguém por subi-la os pés destrava
Hoje da terra; e a minha regra escrita
75 Inutilmente nos papéis se grava.

“A morada monástica bendita
É covil; o capuz se há transformado
78 E farinha contém ruim, maldita.

“Não seja usura havida por pecado
Tão grave contra Deus, quanto a avareza,
81 Que aos monges tem os corações eivado;

“Pois quanto a Igreja poupa é da pobreza,
Que de Deus por amor seu pão mendiga,
84 Não pra cevo a parentes, ou a torpeza.

“Na terra a carne ao homem tanto obriga,
Que haver um bom princípio não bastara
87 Entre a planta em nascendo e a sua espiga.

“Sem ouro e prata Pedro começara,
Eu com jejuns, com orações; convento
90 Francisco humildemente levantara.

“De cada qual à origem estando atento,
Verás o branco em negro transformado,
93 Se depois tens seu fim no pensamento.

“Maior milagre foi, quando tornado
Para trás, o Jordão do mar fugia,
96 Do que socorro a tanto mal levado.” —

Calou-se, e a santa grei logo se unia;
Cerrou-se a grei, e o espírito com ela,
99 Qual turbilhão, na altura se encobria.

Na escada alcei-me após, da dama bela
Ao oceano; por seu poder mudada
102 A natureza minha se revela.

Naturalmente nunca acelerada
Descida houve na terra, nem subida,
105 Que possa ao meu voar ser igualada.

Seja-me assim, leitores, concedida
A glória, pela qual choro e suspiro,
108 Bata nos peitos de alma compungida,

Como eu, enquanto o dedo meto e tiro,
Do fogo o signo, de que está seguido
111 O Tauro, vi, e entrei logo em seu giro.

Gloriosas estrelas, luz que hás sido
Por grã virtude a causa de que emana
114 Humilde engenho, que há em mim nascido,

Convosco na carreira, em que se afana,
Andava o que a mortal vida origina,
117 Quando aspirei primeiro ar da Toscana.

E quanto permitiu Graça Divina
Nesse alto céu entrar, que vos compreende,
120 Por vós passar me deu sorte beni’na.

Por vós devoto anelo em mim se acende
Para alcançar virtude nesse forte,
123 Árduo passo que a si me atrai, me prende.

— “Perto à ventura extrema és de tal sorte,
Que a vista clara tens e penetrante” —
126 Diz Beatriz, o meu formoso norte.

“Mas antes de te ergueres mais avante,
Remira abaixo, e vê, por mim guiado,
129 Sob os pés quanto mundo está distante;

“Por que teu peito, em júbilo inundado,
Seja presente ao povo triunfante,
132 Que nesta esfera avança extasiado.” —

Então, volvendo os olhos anelante
Às sete esferas, nosso globo vejo
135 Tal, que sorri-me do seu vil semblante.

Quem lhe dá pouco apreço em todo ensejo
Aplaudo, e grande sábio, em meu conceito,
138 É quem põe noutra parte o seu desejo.

Vejo da filha de Latona o aspeito
Sem a sombra, que fosse em parte densa,
141 Em parte rara imaginar me há feito.

Do filho, Hiperião, a flama intensa
Pude olhar; perto e em torno lhe giravam
144 Maia e Dione em volta pouco extensa.

Como aos do pai e filho temperavam
De Jove os fogos, vi e o movimento
147 Vário, que em roda ao centro seu formavam.

Dos orbes sete eu contemplava atento
Grandeza e rapidez, e comprendia
150 Distâncias e postos seus no firmamento.

Como o curso dos Gêmeos eu seguia
De montes, mares via todo envolto
O canto estreito, em que homem se gloria:

154 Olhos depois aos belos olhos volto.

 

13-15. Se esses gritos etc., se tivesses ouvido o que foi dito, saberias a vingança de Deus sobre os maus padres, que virá bem cedo. — 37-39. O monte que o Cassino etc., Montecassino, sobre o qual S. Bento, no V século, fundou o célebre mosteiro, no local onde havia um templo a Apolo. — 49. Macário (S.), de Alexandria, que, no século IV, fundou vários mosteiros; Romualdo (S.), monge do século X, nascido em Ravena, que fundou a ordem dos Camaldolenses. — 70. Viu-a Jacó etc., o patriarca Jacó viu em sonho uma escada que da terra subia até o Céu, Gen. XXVIII, 12. — 74. A minha regra escrita etc. Na terra ninguém observa a minha regra de viver religiosamente. — 94. Maior milagre etc., quando Deus fez com que o Jordão retirasse suas águas e o mar Vermelho deixasse seu leito descoberto para o povo de Israel passar Jos. III, 14. — 110-111. O signo, a constelação dos Gêmeos. — 115-117. Convosco etc., Dante nasceu no mês de maio, quando o Sol se encontra no signo dos Gêmeos. — 139. Filha de Latona, a Lua. — 142. Hiperião; alguns mitólogos fazem do Sol um nume diferente de Febo e filho de Hiperião. — 144. Máia, mãe de Mercúrio; Dione, mãe de Vênus. — 145-146. Aos do pai etc., Júpiter (Jove) temperava a frieza do pai (Saturno) e o calor do filho (Marte).

 


 

CANTO XXIII

 

Descem Cristo e Maria no meio de anjos e de almas bem-aventuradas. Cristo, porém, logo desaparece; e o arcanjo Gabriel, em forma de chama, coroa a Maria. Depois, Maria sobe no Empíreo reunindo-se ao seu divino filho.

 

QUANDO tudo em seus véus a noite esconde,
Sobre o ninho dos filhos seus amados
3 Ave, pousada entre a dileta fronde,

Para ver os seus gestos desejados
E buscar cibo que lhes dê sustento,
6 Desvelos, que lhes são bem compensados,

Da rama espia o tempo de olho atento
E com sôfrego anelo espera o dia,
9 Da alvorada aguardando o nascimento;

Tal vigilante Beatriz eu via
Para a plaga voltada luminosa,
12 Onde mais lento o sol me parecia.

Vendo-a assim pronta em vista e cuidadosa,
Homem fiquei, que melhorar-se aspira
15 E na esperança alenta a alma cuidosa.

Porém, breve, a demora logo expira
Entre atentar e ver que o céu se aclara
18 Com luz, que, viva mais e mais, subira.

— “Eis a milícia” — a dama diz preclara —
“Da vitória de Cristo! Eis a colheita,
21 Que o giro entre as esferas nos depara!”

Parece a face ter de flamas feita;
Arde nos olhos seus tanta alegria,
24 Que a palavra a dizê-la não se ajeita.

Qual Trívia em plenilúnios irradia
Entre as ninfas eternas se sumindo,
27 De que o céu nos recessos se alumia,

Sobre milhões de fogos refulgindo
Um sol vi, que os clarões seus lhes prestava,
30 Como aos astros o nosso a luz partindo.

Por entre o aceso lume fulgurava
A Divina Substância tão brilhante
33 Que a vista, contemplando-a, desmaiava.

— “Ó Beatriz! Ó guia doce e amante!” —
Tornou-me: — “O que te enleia a inteligência
36 Força invencível tem, sem semelhante.

“Aqui stá o Saber e a Onipotência,
Que para o céu caminho abrindo à terra,
39 Cumpriu-lhe inextinguivel apetência.”

Como o fogo da nuvem se descerra,
No seio, estreito já, se dilatando,
42 E, devendo subir, baixa e se aterra,

Assim, entre delícias se alargando,
Alma senti num êxtase arroubada;
45 Qual fui não sei, de todo me olvidando.

“Abre os olhos e vê qual sou tornada;
Pois te foi dado ver tanto portento
48 Já posso, ora a sorrir ser contemplada.” —

Estava eu como quem, no pensamento
De passada visão vestígio tendo
51 Salvá-los quer em vão do esquecimento,

Quando a sublime oferta recebendo,
De gratidão me entrei, que não se apaga
54 Do livro, em que o passado está vivendo.

Se quantos c’as irmãs Polínia afaga,
Com dulcíssimo leite os alentando,
57 Por eloqüência me ajudassem maga,

Na milésima parte eu, me afanando,
Cantar não conseguira o santo riso,
60 Que raiava no aspeito venerando.

Desta arte, descrevendo o Paraíso
Saltar deve este meu sacro poema,
63 Como em caminho às vezes é preciso.

Mas quem pensar que é ponderoso o tema
E débil o ombro, que lhe está sujeito,
66 A mal não levará, se ao cargo eu trema.

Não é para baixel pequeno e estreito
O mar que a proa vai cortando agora,
69 Nem para nauta a se poupar afeito.

— “Porque tanto o meu gesto te enamora,
Que não contemplas o jardim formoso,
72 Que aos doces raios de Jesus se enflora?

“Tem a Rosa, em que o Verbo milagroso
Carne se fez; os lírios têm, que ensinam
75 O bom caminho pelo odor mimoso.” —

Assim diz Beatriz. Pois me dominam
Seus conselhos, aos transes se oferecem
78 Meus olhos, que ante a luz débeis se inclinam.

À sombra estando, às vezes me aparecem
Prados vestidos de formosas flores
81 Do sol aos raios que entre nuvens descem;

Assim turbas distingo de esplendores,
A que do alto baixaram mil ardentes
84 Clarões sem ver a causa dos fulgores.

Ó Virtude beni’na que esplendentes
Os fazes, deste espaço, assim subindo,
87 Aos meus olhos, pra ver-te inda impotentes.

Da bela flor o doce nome ouvindo,
Que noite e dia invoco sempre, atento
90 No lume, que maior stava fulgindo,

Quando em sua grandeza e luzimento
Vi com meus olhos essa viva estrela,
93 Que vence, como aqui, no firmamento;

Do céu baixando flama se revela,
Que em forma circular, como coroa
96 Cingiu-a, se agitando em torno dela.

A melodia que mais branda soa
Na terra e as almas para si mais tira,
99 Trovão seria, que das nuvens troa,

Comparada à doçura dessa lira,
Que, do azul mais suave em céu vestido,
102 C’roava a bela, divinal safira.

— “Sou angélico amor, que, assim movido,
Mostro o prazer, que vem do seio santo,
105 Que ao Salvador do mundo albergue há sido.

“Hei de girar, do céu Senhora, enquanto
Deres, do filho entrando em companhia,
108 À suma esfera mais divino encanto.” —

Cantava assim da c’roa a melodia.
Dos outros lumes todos almo canto
111 O nome proclamava de Maria.

Dos orbes o primeiro, régio manto,
Que sente mais fervor, que mais se anima,
114 Do Supremo Senhor ao sopro, tanto

De nós distante se internava acima,
Que o aspecto seu na imensidade pura,
117 De distinguir a vista desanima.

Dos olhos meus a força em vão se apura,
Seguir querendo a flama coroada,
120 Que após seu Filho ergueu-se para a altura.

Qual criança, de leite saciada,
Que, ávida ainda, à mãe estende os braços,
123 No afeto seu mostrando-se inflamada,

Cada esplendor, subindo nos espaços,
Tendia-se, a Maria revelando
126 Quanto os prendem de amor excelso os laços.

Depois ver se fizeram modulando
Regina coeli” em tanta consonância,
129 Que me perdura na alma esse hino brando.

Oh! dos celestes prêmios que abundância
Se contém nesses cofres, que hão guardado
132 Frutos colhidos na terrena estância!

No céu se frui tesouro acumulado,
No pranto e em Babilônia conseguido,
135 Onde o ouro ficara desdenhado.

Do filho de Maria conduzido,
Lá triunfa, por sua alta vitória,
Das duas leis aos santos reunido,

139 Quem guarda chaves da celeste glória.

 

25. Trívia, é um dos nomes de Diana, isto é da lua. — 29. Um sol, Jesus Cristo. — 32. A divina substância, Jesus Cristo — 37. O Saber e a Onipotência, Jesus Cristo — 55. Polínia, a musa da poesia lírica. — 73. Rosa, a rosa mística, a Virgem Maria. — 74. Os lírios, os Apóstolos. — 88. Da bela flor o nome etc., a Virgem Maria. — 92. Essa viva estrela, a Virgem Maria. — 112. Dos orbes o primeiro, régio manto, o nono céu, isto é, o primeiro móvel, que envolve os oito céus inferiores. — 119. A flama coroada, a Virgem Maria, coroada pelo arcanjo Gabriel. — 138. Das duas leis os santos, os santos do Velho e do Novo Testamento. — 139. Quem guarda as chaves etc., S. Pedro.

 


 

CANTO XXIV

 

Beatriz roga aos santos que iluminem o intelecto de Dante. Eles manifestaram o seu assentimento. O mais luminoso entre os santos, S. Pedro, aproxima-se mais do Poeta, o interroga sobre a Fé. O apóstolo aprova inteiramente as respostas de Dante o abençoa, cingindo-o três vezes com o seu esplendor.

 

“Ó SODALÍCIO, à ceia convidado
Do cordeiro de Deus, que dá sustento
3 Tal, que o apetite heis sempre saciado,

Se inda antes de chegar ao passamento
Preliba este homem — assim Deus dispensa —
6 Da mesa, em que comeis, tênue fragmento:

Alívio dai-lhe em sua sede imensa.
Na fonte sempre hauris, de que deriva
9 Quanto ele, sôfrego aspirando, pensa.” —

Disse então Beatriz. Com flama viva,
À guisa de cometa, a grei contente,
12 Como esferas em pólos, gira ativa.

Em relógio quem põe atenta a mente,
Das rodas uma cuida estar sem moto
15 E correndo estar outra velozmente:

Pelo vário compasso que lhes noto
Nas coréias, já lento, já apressado,
18 Da glória sua a estimativa adoto.

Do círc’lo em mor beleza assinalado
Um lume vi surgir tão venturoso,
21 Que outro nenhum ficara avantajado.

Em torno a Beatriz girou formoso
Por vezes três com tão divino canto,
24 Que trasladar não posso o som donoso.

Screver não cabe à pena enlevo tanto,
Cores não tem palavra ou fantasia,
27 Que exprimam propriamente o doce encanto.

— “Santa irmã nossa, que dessa arte envia
Devotos rogos, teu ardente afeito
30 Dessa bela coréia me desvia.” —

Parando, o bento lume ao claro aspeito
De Beatriz o sopro há dirigido,
33 Que falou do que eu disse pelo jeito.

— “Eterna luz desse varão subido,
Que de Deus” — torna — “as chaves da alegria
36 Que infinda à terra deu, hás recebido,

“Deste homem como queiras avalia
O saber sobre a Fé lhe perguntando,
39 Pela qual sobre o mar andaste um dia.

“Se bem crê, se bem spera, terno amando,
Certo sabeis, pois tens fitado a vista
42 Onde tudo se está representando.

“Mas como cidadãos o céu conquista
Pela Fé verdadeira, para honrá-la
45 Explique ele por que na Fé persista.” —

O bacharel apresta-se e não fala
Té que o Mestre a questão haja of’recido,
48 Por aprová-la, não por terminá-la:

Assim, de todas as razões munido,
Dispus-me, enquanto Beatriz se explica,
51 A tal assunto, por tal Mestre arguido.

— “Teu pensar, bom cristão, me significa:
O que é Fé?” — Presto, ouvindo, o rosto alçava
54 Para a luz, que a questão desta arte indica.

Voltei-me a Beatriz: já me acenava
Para que sem detença água fizesse
57 Brotar da interna fonte, onde a guardava.

— “A graça, que concede eu me confesse
Ao sublime Primópilo” — assim digo —
60 “Permita que os conceitos claro expresse!

“Como escrito, Pai meu,” — depois prossigo —
“Foi com verdade pelo irmão amado,
63 Que Roma em bom caminho pôs contigo,

“É a Fé a substância do esperado
E argumento evidente do invisível:
66 Da Fé a essência assim tenho julgado.” —

Tornou-me: — “O parecer teu é plausível,
Se o porque foi substância definida
69 E argumento te fica inteligível.” —

— “De mistérios” — disse eu — “soma crescida,
A mim nestas esferas revelada,
72 Está na terra aos olhos escondida.

“Sua existência em crença é só firmada,
Em que se fundamenta alta Esperança:
75 Substância, pois, tem sido intitulada.

“E como em crença o raciocínio lança
As premissas sem ter mais outra vista,
78 Por isso de argumento o nome alcança.” —

— “Se quanto lá na terra homem conquista
Por doutrina, assim fosse comprendido,
81 Lugar faltava ao engenho do sofista” —

Daquele aceso amor foi respondido;
E mais: — “Nesta moeda examinado
84 Metal e peso muito bem tem sido.

“Mas diz: na bolsa a tens arrecadado?” —
— “Sim” — tornei — “tão redonda é, tão polida,
87 Que do bom cunho estou certificado.” —

A voz então, desse esplendor saída
Perguntou-me: — “Essa pedra preciosa,
90 Em que toda virtude se acha erguida

“Donde a tens?” — Eu: — “A chuva copiosa,
Pelo Espírito Santo derramada
93 Na Lei antiga e nova portentosa,

“Razão é, porque foi-me demonstrada
Com agudeza tal, que outra seria
96 Obtusa, se lhe fora comparada.” —

— “Porque divina lei pareceria
A nova e a antiga” — a voz logo retorna —
99 “Que a tão profunda convicção te guia?” —

— “É prova que a verdade clara torna
De obras a série” — eu disse — “a que natura
102 Nunca ferro aqueceu, bateu bigorna.” —

A luz me replicou: — “Quem te assegura
Que as obras fossem tais? Quem defendido
105 Por provas deve ser. Quem mais to jura?

Então falei: — “Se o mundo convertido
Sem milagres de Cristo à lei se houvesse,
108 Este o maior milagre houvera sido;

“Porque pobre, em jejum, para ter messe
Semeado hás na terra ótima planta:
111 Onde foi vinha, hoje espinhal só cresce.” —

Mal concluía, quando a corte santa
Nas esferas — Louvemos Deus! — entoa
114 Nessa toada, em que no céu se canta.

Do sublime Barão, que até a c’roa
De ramo em ramo me elevado havia,
117 Naquele exame, a voz de novo soa.

— “A graça com tua mente consorcia
Tanto, que por teus lábios tem falado:
120 Té aqui respondeste o que cumpria.

“Dou, pois, assenso ao que me tens tornado;
Mas tua crença exprime, lhe acrescendo
123 De que fonte à tua alma ela há brotado.” —

— “Ó Santo Padre, ó Spírito, que vendo
Stás quanto creste, tanto que chegaste
126 Ao Sepulcro, o mais moço antecedendo,

“Direi” — lhe torno — “(assim determinaste)
Da minha Fé a fórmula evidente,
129 Sua origem direi como ordenaste.

“Em um só Deus eu creio onipotente,
Eterno, que, imutável, os céus move
132 No desejo e no amor sempre clemente.

“São, para que tal crença se comprove,
Metafísica e física discretas;
135 Mas da verdade a prova também chove

“Por Moisés, pelos salmos, por profetas,
Pelo Evangelho e escritos, que inspirado
138 Vos tem o Esp’rito Santo, almas seletas.

“Nas Três Pessoas creio afervorado;
Creio na essência delas Una e Trina,
141 Tanto que é stá com são bem conjugado.

“O que de altos mistérios da divina
Condição digo, em traços mil se assela
144 Em mim pela evangélica doutrina.

“Este o princípio, esta a fagulha bela,
Que depois se dilata em flama ardente
147 E em mim cintila, qual nos céus estrela.” —

Qual patrão, que de servo diligente
Aprazíveis notícias escutando,
150 Feito o silêncio, o abraça de contente,

Assim, quando acabei, me abençoando
E cantando, três vezes me acercava
O esplendor apostólico, mostrando

154 Das respostas que eu dei quanto folgava.

 

20. Um lume, S. Pedro. — 39. Pela qual sobre o mar andaste um dia, sobre as águas do Mar de Tiberíade, S. Mateus, Ev. XIV. — 59. Primópilo, assim chamava-se, no exército romano, o centurião da primeira coorte; aqui indica S. Pedro. — 62. Irmão amado, S. Paulo. - 64-66. A fé etc., Dante repete a definição que da fé deu S. Paulo na Epístola aos Hebreus, XI, 1. — 98. A nova e a antiga, o novo e o velho testamento. — 106-108. Se o mundo convertido etc., Dante repete a argumentação de S. Agostinho, De Civ. Dei, livro XXIV, cap. 5. — 125-126. Que chegaste ao sepulcro etc. S. Pedro chegou ao sepulcro de Jesus, depois da ressurreição, antes de S. João Evangelista. João XX, 1-9.

 


 

CANTO XXV

 

S. Tiago examina o Poeta sobre a Esperança, perguntando em que ela consiste, se ele a possui, de onde veio nele. À segunda pergunta responde Beatriz; às outras duas responde Dante. Aproxima-se S. João Evangelista, e diz a Dante que o seu corpo, apesar da comum opinião, morrendo, ficara na Terra.

 

SE este sacro poema houver podido
(Em que tem posto a mão o céu e a terra
3 E em que hei por tanto tempo emagrecido)

Aquele ódio abrandar que me desterra
Do belo aprisco, onde eu dormi cordeiro,
6 Contrário aos lobos, que lhe movem guerra;

Com voz e lã melhor que de primeiro
Voltando, eu do batismo sobre a fonte
9 Hei-de, vate, cingir-me de loureiro;

Pois lá entrei na fé, que uma alma insonte
Aproxima de Deus e causa há sido
12 De girar Pedro em torno à minha fronte.

Então a nós um lume vem saído
Da grei, a que a primeira pertencia
15 Dos vigários, que há Cristo instituído.

Beatriz, resplendente de alegria,
— “Olha!” — me disse — “Eis o Barão famoso
18 Por quem vai-se à Galízia em romaria!

Quando à consorte acerca-se amoroso
O pombo, cada qual mostra, girando
21 Entre arrulhos o ardor seu amoroso:

Os dois Príncipes vi tão ledos, quando
Da glória sua no esplendor se acolhem
24 O manjar, que se frui no céu louvando.

Depois que as saudações entre si colhem
Coram me cada um tácito fica
27 Com tais clarões, que de os olhar me tolhem.

Sorrindo, Beatriz assim se explica:
— “Ó alma egrégia, por quem foi descrita
30 Delícia, de que a nossa igreja é rica,

“Aqui a Esp’rança faz ouvir bendita:
Mostraste-a, toda vez que aos três há dado
33 Jesus de vê-lo em sua Glória a dita.” —

— “Ergue o rosto com spírito esforçado,
Pois da terra quem sobe a tanta altura
36 Ser deve ao brilho nosso afeiçoado.” —

O ânimo desta arte me assegura
A luz segunda; a vista, pois, levanto
39 Aos montes, cujo lume a fez escura.

— “Se o nosso Rei te há dado favor tanto,
Que vês os condes seus antes da morte
42 Do seu palácio no recinto santo,

“Porque, vindo é verdade desta corte,
A Esperança, que tanto os homens prende,
45 Em ti, nos mais o coração conforte.

“O que ela seja diz, como se acende
Em tua alma; diz donde se origina.” —
48 Estas palavras inda o santo expende.

E quem as plumas conduziu beni’na
Das asas minhas neste vôo ingente,
51 Tornou, por que a resposta me previna:

“A militante Igreja um mais ardente
Filho não tem na Esp’rança, como escrito
54 É no Sol, que alumia a nossa mente.

“Eis por que Deus permite que do Egito,
Para ver a Sião tinha chegado
57 Antes de estar o tempo seu prescrito.

“Os outros pontos dois lhe hás perguntado,
Somente por que à terra ele respira
60 Quanto és desta virtude deleitado.

“Lhos deixo, sem que assim vangloria aufira;
Poderá responder ao teu contento,
63 Se a Graça divinal o alenta e inspira.

“Como discíp’lo, que a seu Mestre atento
De assunto fala, em que é perito e experto, —
66 Folgando de mostrar zelo e talento,

“Esperança é” — disse tu — “guardar certo
Da Glória, pela Graça produzida
69 E mérito provado e descoberto.

“Sendo luz de astros muitos procedida,
Pelo sumo cantor do Sumo Guia
72 Foi-me primeiro na alma introduzida.

“Espere em ti — na excelsa Teodia
Disse — aquele, que o nome teu conhece:
75 Com fé como eu, quem não conheceria?

“Como seu rocio, também sobre mim desce
O da Epístola sacra e, redundante,
78 Outros inunda a chuva, que recresce.”

Falava assim: do seio coruscante
Daquele incêndio tremulava chama,
81 Qual relâmpago, súbita, incessante.

Respondeu-me: — “Esse amor que inda me inflama
Pela virtude, que me dera alento
84 No martírio, ao findar da vida a trama,

“Atrai-me a ti, que tens contentamento
Por ela; e, pois, me diz de qual ventura
87 A Esperança te fez prometimento.” —

E eu: — “Foi declarado na Escritura
O sinal (sua forma está sabida)
90 De almas, que, amigas, o Senhor apura

“Disse Isaías: cada qual cingida
Em sua pátria será de dupla veste,
93 E a pátria sua é nesta doce vida.

“Por que mais a verdade manifeste,
Das cândidas estolas discorrendo
96 Mais claro teu irmão falou do que este.” —

Palavras tais eu proferido havendo.
Sperant in te” ressoa lá da altura,
99 Ao hino os coros todos respondendo.

Lume entre eles depois tanto fulgura,
Que, se o Câncer tivesse igual estrela,
102 Fora do inverno um mês luz sem mistura.

Como leda no baile entra a donzela
E, para a noiva honrar, dança inocente
105 Sem que vício ou vaidade impere nela:

O clarão assim vi resplandecente
Aos dois se apropinquar, que circulavam
108 Quanto convinha ao seu amor ardente.

Entrou no canto e dança, que formavam:
Qual sem voz sposa imota, aos três o aspeito
111 De Beatriz os olhos contemplavam.

— “O santo é este, que estreitava ao peito
O nosso Pelicano e dele há sido
114 Sobre a cruz à missão sublime eleito.” —

Assim diz Beatriz. Sempre embebido
O seu olhar está na luz terceira
117 Depois, como antes de eu a ter ouvido.

Quem do sol fita os olhos na carreira,
Crendo vê-lo de eclipse anuviado,
120 Para ver sente o efeito da cegueira:

Por esse lume assim fui deslumbrado.
— “Por que te afanas procurando” — fala —
123 “O que no céu não pode ser achado?

“Na terra o corpo meu à terra iguala,
Até que o nosso número complete
126 O que eterno propósito assinala.

“Ter vestes duas só do céu compete
No claustro aos lumes dois, que se elevaram:
129 Esta verdade ao mundo teu repete.” —

Calou-se e os esplendores três pararam
E com eles a doce melodia,
132 De que os sons a coréia acompanharam.

O remo, assim, que o mar de antes feria,
Se há fadiga ou perigo, é bem que cesse,
135 Logo ao sinal do apito, que assobia:

Na mente ai! quanto a comoção recresce,
Quando o gesto não pude ver formoso
De Beatriz ainda que eu stivesse

139 Ao seu lado e no mundo glorioso!

 

1-6. Se este sacro poema etc. Dante exprime a esperança que o seu Poema abrande os espíritos dos seus concidadãos e lhe seja concedida a volta a Florença. — 17-18. O Barão etc., S. Tiago, cujo corpo foi sepulto em Compostela, na Galícia. — 24. O manjar, Deus. — 29-30. Por quem foi descrita etc. refere-se Dante à chamada epístola católica que, porém, por muitos é atribuída a S. Tiago Zezedeu. — 32-33. Toda vez etc.: no Evangelho os três apóstolos Pedro, João e Tiago figuram as três virtudes teologais, a fé, a caridade e a esperança.

 


 

CANTO XXVI

 

O apóstolo S. João interroga Dante a respeito da terceira virtude teologal, a Caridade. Responde Dante e os seus conceitos são aplaudidos por toda a corte celeste. Beatriz reaviva no Poeta a vista que estava ofuscada. Aproxima-se Adão que lhe fala e esclarece alguns pontos duvidosos de Dante.

 

FOSSE já morta a vista eu receava,
Eis da fúlgida flama, que ofuscara,
3 Atento fez-me a voz, que assim falava:

— “Enquanto a força a vista não repara,
Que em minha nímia luz hás consumido
6 Compensação no discursar depara.

“Começa e diz pra onde é dirigido
Teu espírito e sabe que, se escura
9 A vista sentes, não a tens perdido;

“Pois quem te guia na divina altura
Virtude tem no olhar, como Anania
12 Nas mãos tivera, que a cegueira cura.” —

— “Quando bem lhe aprouver” — eu respondia —
“Remédio aos olhos dê, por onde a chama
15 Com ela entrou, que sempre incendia.

“O Bem, que pelo céu prazer derrama
Alfa e Ômega há sido na escritura,
18 Que amor ou forte ou leve em mim proclama.”

Aquela mesma voz, que me assegura
Não haver eu de súbito cegado,
21 Inda excitar-me a lhe falar procura.

— “Por mais estreito crivo ser passado
Deves” — disse — “e portanto denuncia
24 O que ao fito há teu arco endereçado.” —

— “Razões” — tornei — “da sã filosofia
E autoridade, que daqui descende,
27 Me influem desse amor toda a energia.

“O bem, enquanto bem, quando se entende,
Ateia amor que é tanto mais ardente,
30 Quanto mais de bondade em si comprende.

“É pois, essência, em si tanto excelente,
Que todo bem, que ser lhe possa externo
33 Reflexo é só da sua luz fulgente;

“Atrai, mais que outra, o espírito, que, terno,
Amando, conhecer pode a verdade,
36 Que desta prova é o alicerce eterno.

“Dessa verdade eu vejo a claridade
Naquele, que demonstra o amor primeiro
39 De todo ente, a quem cabe eternidade.

“Vejo na voz do Autor, só e verdadeiro,
Que de si disse, a Moisés falando:
42 — O bem te hei-de mostrar perfeito e inteiro. —

“Também tu mo revelas, começando
O sublime pregão, que à terra ensina,
45 Mais que os outros, o arcano venerando.” —

— “Pela razão” — ouvi — “pela divina
Autoridade, que com ela acorda,
48 O amor teu, e mais que tudo a Deus destina.

“Diz-me, porém: não sentes outra corda,
Que para Deus te arrasta? Faz patente
51 Com quantos dentes esse amor te morda.” —

Da Águia de Cristo não me foi latente
O propósito santo e onde queria
54 Na profissão levar-me diligente.

— “Estímulos, que possam” — lhe eu dizia —
“Para Deus impelir a humana essência,
57 Tem minha caridade noite e dia;

“Porque do mundo o ser; minha existência;
A morte que sofreu para que eu viva;
60 O que espera um cristão da fé na ardência;

“Do bem, que eu disse, a inteligência ativa,
Me afastaram do mar do amor culpado,
63 Do santo amor me conduzindo à vida.

“As flores, de que o horto é todo ornado,
Do Jardineiro eterno, eu amo tanto,
66 Quanto ele em perfeição lhes tem doado.” —

Calei-me e resoou melífluo canto
Pelo céu, que Beatriz acompanhava,
69 Dizendo todos: — Santo! Santo! Santo! —

Como pungente luz olhos destrava
Do sono, a vista, o brilho procurando,
72 Que as pálpebras descerra, invade, agrava;

E o desperto, os motivos ignorando
Da súbita vigília, olhos desvia,
75 Na mente, entanto, a reflexão calando:

Em mim, dessa arte, a névoa desfazia
De Beatriz o olhar, que pelo espaço
78 De mais de milhas mil resplendecia.

Então mais claro que antes a ver passo:
Quarta luz perto a nós, maravilhado,
81 Diviso e uma pergunta logo faço.

E ela: — “Nesse lume, ora chegado,
Seu Criador contempla a alma primeira
84 Que a Virtude primeira haja criado.” —

Qual fronde, que, ao soprar da aura ligeira,
O cimo curva e, logo após, se erguendo
87 Pela força, que a torna sobranceira,

Tal eu, essas palavras lhe entendendo
Atônito fiquei; depois seguro
90 Fez-me um desejo, que me estava ardendo.

— “Único pomo, que nasceu maduro!
Dos homens pai, que hás visto filha e nora
93 Em cada esposa então e no futuro!

“Devota e humilde a minha voz te exora!
Fala-me, pois! Do meu desejo és certo;
96 Almejo ouvir-te, e não to expresso agora.” —

Como de manto um animal coberto
Movimento, que os membros seus agita
99 Pelo envoltório, deixa descoberto:

Assim essa primeira alma bendita
Pelo tremor da sua luz mostrava
102 O prazer de agradar-me quanto a excita.

— “Não hei mister declares” — me tornava —
“Teu desejo, melhor que tu sabendo
105 Quanto a certeza em tua mente grava.

“Nesse espelho infalível estou lendo,
Em que é todo o visível refletido,
108 Cousa nenhuma o refletir podendo.

“Ouvir aspiras quando vindo hei sido
Lá no santo jardim, donde, guiado
111 Por tão comprida escada, tens subido;

“Quanto tempo ali fui deliciado;
Da cólera divina a causa vera;
114 Que idioma falei, por mim formado.

“O pomo, ó filho meu, não considera
Motivo só por si do acerbo exílio,
117 Mas ordens transgredir, que Deus me dera.

“Lá donde Beatriz moveu Virgílio
Quatro mil e trezentos e dois anos
120 A ventura anelei deste concílio.

“Do desterro senti na terra os danos,
Enquanto vezes novecentas trinta
123 Seu giro fez o sol do céu nos planos.

“Antes que a gente de Nemrod consinta
Em meter mãos à obra interminável,
126 A língua, que falei, se achava extinta.

“De homem feitura sempre perdurável
Não é; vem do capricho e um dia cessa,
129 Do céu segundo o influxo variável.

“A humana fala a natureza expressa;
Por ela o modo de falar deixado
132 Ao homem está, segundo lhe interessa.

“Antes de eu ter no inferno penetrado
El o supremo bem significava,
135 Que desta leda luz me há circundado;

“Depois em Eli o nome se mudava;
Qual rama dos mortais uso varia,
138 Sucede a folha nova à que secava.

“No monte, que mais alto ao ar se envia
Santa vida vivi, depois culpada,
Da hora prima à sétima do dia,

142 Noutro quadrante o sol fazendo entrada.”

 

2. Fúlgida flama, S. João Evangelista. — 11. Anania; a mão de Ananias teve a virtude de restituir a vista a S. Paulo, que ficara cego pela luz do céu que o investiu (Atos dos Apóstolos IX, 10-17). — 38. — Naquele etc. Dante se refere ou a Platão ou a Aristóteles, em algum ponto dos seus livros no qual declaram que Deus é a suprema causa. — 44-45. O sublime pregão, o Evangelho de São João. — 83-84. Alma primeira, Adão; Virtude primeira, Deus. — 118-120. Lá donde etc. o limbo. — Dante, seguindo o cálculo d’Eusébio, crê que da criação do mundo até a morte de Jesus Cristo passaram 5.232 anos, subtraindo dos quais os 950 que Adão viveu, ficam 4302 anos. — 139-141. No monte etc., Adão viveu no Paraíso Terrestre, isto é, na parte mais alta do monte Purgatório, apenas sete horas.


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Atento fez-me a voz...


 

CANTO XXVII

 

S. Pedro exprobra os maus pastores da Igreja; e todos os santos manifestam a sua aprovação às palavras do Apóstolo. Novamente o Poeta contempla a Terra, e, depois, com Beatriz, eleva-se ao Primeiro Móvel.

 

GLÓRIA ao Pai! Glória ao Filho! ao Espírito Santo!
Uníssono entoava o Paraíso:
3 Senti-me inebriado ao doce canto.

Pareceu-me o que eu via um doce riso
Do universo: tomava-me a ebriedade
6 Pelos olhos e ouvidos o juízo.

Ó júbilo! Ó inefável f’licidade!
De paz ó vida inteira e de ternura!
9 Riqueza certa, isenta de ansiedade!

Fulgia-me ante os olhos a luz pura
Dos esplendores quatro; mais brilhante
12 O que veio primeiro eis se afigura!

E tal se me apresenta o seu semblante,
Qual fora Jove, se, aves ele e Marte,
15 A plumagem trocassem rutilante.

A Providência, que no céu reparte
Tarefa a cada qual, calar fizera
18 O venturoso coro em toda parte,

Quando lhe ouvi: — “A cor se em mim se altera
Não o estranhes: enquanto estou falando
21 Mudança igual em todos ver espera.

“Quem, meu lugar na terra ora usurpando,
Meu lugar, meu lugar, vago em presença
24 De Cristo o deixa, converteu nefando

“Meu cemitério na sentina imensa
De sangue e podridão, com que o perverso,
27 Do céu lançado, frui delícia intensa.” —

O céu então eu vi todo submerso
Na cor, que por manhã e à tarde acende
30 Sobre as nuvens o sol do lado adverso.

Qual a dama, que à virtude cultos rende
E, de si bem segura, se enrubesce,
33 Quando torpezas de outra ouve e compreende,

Beatriz transmudada me parece,
Ao céu ante a paixão do Onipotente
36 Igual eclipse em seio que envolvesse.

Prosseguiu logo o Apóstolo eminente;
E tanto a voz lhe estava demudada,
39 Que mais não fora o vulto seu rubente.

— “Com sangue meu a Igreja alimentada
Não foi, nem Lino e Cleto o seu lhe deram
42 De ouro em ganância para ser mudada.

“Como Calixto e Pio mereceram,
Urbano e Sixto a sempiterna vida?
45 Pós muito pranto o sangue seu verteram.

“Por nossos sucessores dividida
Não quisemos a grei — parte chamada
48 À destra, parte à esquerda repelida;

“Nem que das chaves fosse a insígnia usada
Por estandarte em campo sanguinoso
51 Contra cristãos em guerra encarniçada.

“Nem que, por privilégio mentiroso
De traficância, em selo eu figurasse
54 Quanta vez de pudor me acendo iroso!

“Com vestes de pastor lobo rapace
Daqui em cada pascigo se avista:
57 Para que não surgiu Deus, que os fulminasse?

“De Gasconha e Cahors raça malquista
Beber-nos sangue vem: belo começo,
60 O indi’no fim que tens, quanto contrista!

“Mas Deus que a Roma, do seu mal no excesso,
De mundo em glória os Cipiões mandava,
63 Dará socorro, como foi-me expresso.

“E tu, que o peso da matéria grava,
Voltando, ó filho, ao mundo lhe revela
66 Quanto eu te digo dessa gente prava.” —

Como o vapor nos ares se congela,
E em flocos baixa, quando o sol tocado
69 Pelas pontas está da Cabra bela;

Assim vi eu o éter adornado
De clarões triunfantes, que detido
72 Haviam-se na altura ao nosso lado.

Tinha-os a vista na ascensão seguido
E os seguiu té que enfim subir avante
75 Pelo espaço não foi-lhe permitido.

Que eu não podia ver mais adiante
Notando, Beatriz disse: — “Repara
78 Quanto agora, girando, estás distante.” —

Desde a hora, em que a terra eu contemplara,
Por todo o arco, que o clima faz primeiro,
81 Do meio até o fim, já me avançara.

A passagem, que Ulisses aventureiro
Além Gades tentou e a plaga via,
84 Em que Europa foi cargo prazenteiro,

Naquela área inda mais divisaria;
Porém sob os meus pés o sol andava
87 Distância, que a de um signo precedia.

A namorada mente, em que reinava
Sempre a Senhora minha, no incentivo,
90 Mais que nunca de olhá-la se inflamava.

Se de arte ou natureza almo atrativo
Pelos olhos prender nos pode a mente,
93 Seja em pintura, seja em corpo vivo,

Nada foram, conjuntas, certamente,
Ante o enlevo que o peito me ilumina,
96 Quando me volta ao gesto seu ridente.

Virtude, olhando-a em mim tanto se afina
Que do ninho de Leda me destrava
99 E ao céu velocíssimo me empina.

Tanto na altura e brilho se mostrava
Uniforme este céu, que eu não sabia
102 Qual pouso Beatriz me destinava.

Ela, porém, que o meu desejo via
No sorriso tão leda assim começa,
105 Que em seu rosto exultar Deus parecia.

— “O movimento, que no centro cessa,
Em torno ao qual, porém, tudo o mais gira,
108 Daqui partindo à roda se endereça.

“Somente a sua ação este céu tira
Da soberana Mente, em que se acende
111 O amor, que o move, o influxo, que respira.

“De luz e amor um círculo o compreende,
Assim como ele aos mais; deste precinto
114 Unicamente quem lho cinge entende.

“Seu movimento é por si só distinto,
Por ele os outros céus medidos sendo,
117 Como dez por metade e por seu quinto.

“Ficas, portanto, ao claro conhecendo
Como o tempo a raiz neste céu tenha,
120 As ramas pelos outros estendendo.

“Fatal cobiça; que os mortais despenha
Em tão profundo pélago, que alçar-se
123 Do abismo fora a vista em vão se empenha!

“Nos homens o querer pode enflorar-se,
Mas de chuvas contínuas açoutado
126 Bom fruto são não há-de conservar-se.

“Fé, inocência, abrigo têm buscado
Nas crianças; mas cada qual se esquiva
129 Antes que à face o buço haja apontado.

“Quem balbucia de comer se priva;
Em tendo solta a língua, a qualquer hora
132 Mostra em toda iguaria fome ativa.

“Quem balbucia a mãe respeita e adora;
Mas, quando a voz já sente desprendida,
135 Vê-la em mortalha o seu desejo exora.

“Assim de alva se torna enegrecida
A cutis da gentil filha daquele,
138 Que traz manhã, da noite em despedida.

“Estranheza, porém, de ti repele
Vendo o gênero humano transviado:
141 Quem há que em bem regê-lo se desvele?

“Por força do centésimo olvidado
Inda antes de deixar Janeiro o inverno,
144 Hão de as esferas dar tão forte brado,

“Que a fortuna, de esp’rança alvo hodierno
Fará que as popas dêm lugar às proas,
A armada correrá com bom governo

148 E após as flores virão frutas boas.” —

 

10-11. A luz pura dos esplendores quatro, as almas dos três apóstolos e de Adão. — 13-14. O seu semblante, qual fosse Jove etc., S. Pedro de branco que era ficou vermelho, como o planeta de Marte. — 22. Quem, meu lugar na terra ora usurpando, o papa Bonifácio VIII, que, segundo o Poeta, obteve o Papado usando de fraudes. — 25. Meu cemitério, Roma ou mesmo o Vaticano, onde segundo a tradição foi sepultado o corpo de S. Pedro. — 41. Lino e Cleto, S. Lino e S. Cleto foram sucessores de S. Pedro. — 43-44. Sixto foi elevado ao Papado no ano 128; Pio em 154; Calixto em 218 e Urbano em 231. — 58-59. De Gasconha e Cahors; o Poeta alude a João XXII de Cahors, elevado ao papado em 1316 e a Clemente V de Gasconha, papa em 1305. — 79-84. Desde a hora etc.; desde a hora em que pela primeira vez eu olhara para a terra, notei que havia percorrido a quarta parte da esfera e, por isso, eram passadas seis horas. — 98-99. Ninho de Leda, constelação dos Gêmeos (Castor e Pólux nasceram dos amores de Leda com o cisne). — 142-144. Por força do centésimo olvidado etc., antes do mês de janeiro não mais pertencer ao inverno, e sim à primavera, pela acumulação das frações de tempo que não foram calculadas na reforma do calendário efetuada por Júlio César, que ainda vigorava no tempo do Poeta. — 147. A armada, a humanidade.


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Glória ao Pai! Glória ao Filho! ao Espírito Santo...


 

CANTO XXVIII

 

Dante volve os olhos para Beatriz, que estava atrás dele; depois mira para a frente e vê um ponto brilhantíssimo, em torno do qual se movem nove círculos de luz, que giram mais rapidamente e são mais brilhantes quanto mais próximos estão dele. Aquele ponto é Deus; os círculos são os coros angélicos.

 

DEPOIS que acerca do existir presente
Dos míseros mortais mostrou verdade
3 Aquela a que emparaísa a mente,

Como quem vê no espelho a claridade
De tocha, que de trás esteja acesa,
6 Suspeita inda não tenho da verdade;

E, para olhar voltado, tem certeza
De que o vidro é fiel ao que apresenta,
9 Como o canto é do metro a natureza:

Assim minha memória representa
Que eu fiz, nos belos olhos me enlevando,
12 Com que amor cativou minha alma isenta.

De os contemplar, porém, os meus deixando
E no que esse orbe faz onipotente,
15 Quando em seu giro atenta-se os fitando,

Um ponto vi, que lume tão fulgente
Dardejava, que a vista deslumbrada,
18 Fechava-se ante o lume translucente;

Estrela, ao parecer, mais apoucada,
Junto dela, de lua figurada,
21 Como estrela ao pé de outra colocada.

Como a c’roa talvez, que se depara
Cingindo astro, que a torna luminosa,
24 Quando o vapor que a tem mais condensara,

Ígneo círc’lo, em carreira impetuosa.
Distante, ao Ponto mais veloz cercava
27 Do que a esfera que vai mais pressurosa.

Este círc’lo primeiro outro abraçava;
Ao terceiro o segundo, outro ao terceiro,
30 Ao quarto o quinto e o sexto o circundava.

Tão largo o sétimo era, que, inda inteiro,
Abrangido, por certo, o não teria
33 Aquele, que de Juno é mensageiro.

Oitavo e nono assim: mas se movia
Mais lento cada qual, segundo ele era
36 Mais longe do primeiro, que corria.

E a flama rutilava mais sincera
No que da Excelsa luz mais perto estava
39 Creio que em fluxo seu mais recebera.

Mas Beatriz, que o enleio meu notava
— “Daquele Ponto o céu e a natureza
42 Estão na dependência” — me falava.

“Olha o círc’lo mais próximo e a presteza,
Que tanto lhe acelera o movimento:
45 De ardentíssimo amor punge-o a viveza.” —

— “Se do mundo.” — eu lhe disse — “o regimento
Fosse qual nestes orbes aparece
48 Do que ouço eu conseguira já contento;

“Mas no mundo sensível me parece
Ser cada esfera tanto mais divina,
51 Quanto mais longe do seu centro desce,

“Se instruir-me o querer teu determina
Neste seráfico, estupendo templo,
54 Que só com luz e com amor confina,

“Explicar-me te digna, porque o exemplo
Não se conforma em tudo ao seu modelo:
57 Por saber a razão em vão contemplo” —

— “De desatar o nó se ardente anelo
Teus dedos não contentam, não te espante:
60 Tal é, porque ninguém tentou solvê-lo.” —

Tornou-me ela e seguiu: — “Terás bastante
No que direi de luz ao entendimento:
63 Aguça o engenho e escuta vigilante.

“Nos círc’los corporais o crescimento
Regula pelo influxo, que é spargido
66 Nas partes que lhes formam complemento.

“Mor bondade, mor bem tem produzido
De mor bem foi mor corpo aquinhoado,
69 Se igual primor nas partes é contido.

“O círc’lo, pois, do qual arrebatado
Gira o alto universo, é referente
72 Ao de amor e ciência mais dotado.

“Se à virtude a medida propriamente
Adaptas, não regendo-te a aparência
75 Das substâncias, que em círc’los tens em frente,

“Mirífica hás de ver correspondência
Entre maior e mais, menor e menos
78 Em cada céu e a sua inteligência.” —

Como os ares são fúlgidos, serenos,
Se Bóreas sopra aquela face inchando,
81 Que os hálitos difunde mais amenos.

Resolvendo-se a névoa e se apagando
A sombra que o hemisfério enegrecia,
84 E o céu, a rir-se, as pompas ostentando:

Assim eu, quando aquela que me guia
Com sua explicação minha alma aclara,
87 E a verdade, qual astro, me alumia.

Depois que as vozes suas rematara,
Bem como ferro a faiscar fervente,
90 Dos círculos cad’un flamas dispara.

Cada centelha incêndio faz ingente
Em soma tal, que a do xadrez passava,
93 Dobrando-se o algarismo infindamente.

De coro em coro hosana ressoava
Ao Ponto, que ao seu ubi, onde têm stado
96 E onde sempre estarão pra sempre os trava.

Ela, o espírito meu vendo atalhado,
Disse-me: — “Aqueles círculos primeiros
99 Te hão Serafins e Querubins mostrado.

Assim nos orbes seus volvem ligeiros
Por semelhar-se ao Ponto e o conseguindo,
102 Segundo a vê-lo estão mais altaneiros.

“Os Amores, que em torno estão, seguindo,
Tronos se chamam do divino aspeto
105 O primeiro ternário concluindo.

“Prazer, bem sabes, todos têm seleto,
Quanto mais sua vista se aprofunda
108 Na verdade, alto fito do inteleto.

“Desta arte se conhece que se funda
Mais na visão celestial ventura
111 Do que no amor, ação, que vem segunda.

“Da visão é a medida a mercê pura,
Por vontade e por graça produzida:
114 De grau em grau se enalça a criatura.

“Outro ternário, que do céu movida.
Germina em primavera sempiterna,
117 Pelo Áries noturno não despida,

Hosana entoa na harmonia eterna
Com três coros; que soam de alegria
120 Em ordens três, em cujo seio interna.

“Ordens três compreende a jerarquia,
Dominações, Virtudes, ocupando
123 Potestades final categoria.

“Nos penúltimos círculos girando,
Principados e Arcanjos resplandecem;
126 E dos Anjos, após festivo bando.

“No Ponto as Ordens todas se embevecem,
De baixo a Deus são todas atraídas,
129 E uma das outras a atração padecem.

“Contemplando-as, idéias tão subidas
Dionísio formou com tanto zelo,
132 Que as fez, como eu, por nomes conhecidas.

“Não quis Gregório como norma tê-lo;
Neste céu quando entrou, porém, se ria
135 Do erro, em que estivera, ao percebê-lo.

“Mortal, que o grã mistério compreendia
E o disse à terra, não te mova espanto:
Quem tinha-o visto aqui lhe descobria

139 E mais verdade deste império santo.” —

 

33. Aquele que de Juno é mensageiro, Íride, o arco-íris. — 38. Excelsior luz, Deus. — 64. Circ’los corporais, os céus do mundo sensível. — 67-69. Mor bondade etc.; os corpos que contêm em si maior bondade difundem maior bem. — 73-78. Se a virtude etc.; medindo os Céus não pela aparência, mas pela virtude, verás que o menor que está mais perto de Deus corresponde ao maior no mundo sensível; e assim por diante. — 94-96. De coro em coro etc.; os coros hosanavam a Deus que os mantém no seu lugar, onde estiveram e ficarão por toda a eternidade. — 109-111. Desta arte se conhece etc. Era uma questão da escolástica: a beatitude celeste consiste na visão ou no amor? Dante segue S. Tomás que a põe na visão de Deus. — 121-126. Ordens três etc. O Poeta colocou nos primeiros três círculos os Serafins, os Querubins e os Tronos; nos três círculos sucessivos estão as Dominações, que ensinam a arte de dominar para o bem, as Virtudes que operam os milagres, e as Potestades que ensinam a respeitar a autoridade. Nos últimos círculos estão os Principados e os Anjos e Arcanjos. — 131. Dionisio, o Aeropagita, que escreveu um livro sobre as hierarquias celestes. — 133. Gregório, o papa S. Gregório Magno que divergiu das opiniões de S. Dionisio sobre as hierarquias celestes. — 138. Quem tinha-os visto etc., S. Paulo, que em vida teve uma visão das cousas celestes e foi mestre de S. Dionisio.


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De coro em coro hosana ressoava...


 

CANTO XXIX

 

Beatriz esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres mentirosos que esquecem que o escopo da predicação é persuadir os homens a serem cristãos, e vendem as indulgências para obter bens materiais.

 

QUANDO aos dois gentis filhos de Latona,
Um por Áries coberto, outro por Libra,
3 A um tempo cinge do horizonte a zona,

Quanto espaço o zênite os equilibra,
Té que mude o hemisfério e, desprendido
6 Deste cinto um e outro se deslibra,

Tanto calou-se Beatriz, luzido
De riso tendo o rosto e olhos fitando
9 Nesse Ponto que os meus tinha vencido.

— “Teu desejo” — falou-me — “antecipando
Agora não te inquiro: já o hei visto
12 No centro de todo o ubi e todo o quando.

“Não para ter mais perfeição, pois isto
Fora impossível, mas porque fulgindo
15 O seu splendor dizer pudesse, — Existo, —

“Na Eternidade, o tempo não medindo
Nem o lugar, criar se há dignado
18 Amores nove o Eterno Amor se abrindo.

“Antes não tinha na inação ficado:
Nem antes, nem depois era existente,
21 Quando Deus sobre as águas foi levado.

“Matéria e forma puras, juntamente,
Quais setas de tricorde arco voando
24 Saíram do ato da Infalível Mente.

“Como, em vidro, em cristal, em âmbar quando
Luz do sol toca, é logo refletida
27 Do vir ao ser distância não se dando,

“Tal a obra triforme, concluída
De uma só vez, no ser raiou perfeita
30 Sem star parte por outra antecedida.

“Ordem foi concriada, a que é sujeita
Cada substância; o cimo foi marcado
33 No mundo a que por ato puro é feita;

“À força pura imo lugar stá dado;
São no meio travados força e ato
36 Por nó que indissolúvel se há tornado.

“Jerônimo escreveu que longo trato
De séc’los antes de outro mundo feito
39 Fora dos anjos o império nato.

“A verdade, porém, stá no conceito
De escritores, que influi o Espírito Santo
42 Verás, pensando, da verdade o efeito.

“Razão em parte o vê também, porquanto
Compreender não pudera que os motores
45 Inertes fossem por espaço tanto.

“Sabes, pois, onde e quando esses Amores
Criados foram e de qual maneira:
48 Do teu desejo apago três ardores.

“Em menos tempo do que a soma inteira
De um a vinte se faz, dos anjos parte
51 Turbou vosso elemento sobranceira.

“Fiel a outra emprega-se dessa arte,
Que vês: assim girando jubilosa,
54 Deste excelso mister se não disparte.

“O mal causou soberba criminosa
Do que hás visto no abismo do tormento,
57 Do mundo sob a mole ponderosa.

“Mas estes, com modesto pensamento,
Mostraram-se à Bondade agradecidos,
60 Que lhes deu tão sublime entendimento.

“Na vista se exaltando, enriquecidos
São de mérito e graça iluminante,
63 Por querer certo e firme dirigidos.

“Não duvides; e sabe, de ora avante,
Que receber a graça é meritório,
66 Segundo o afeto mostrar-se constante.

“Já, pois, este celeste consistório,
Se quanto ora te hei dito a mente alcança,
69 Bem podes contemplar sem adjutório.

“Como em vossas escolas se afiança,
Na terra, que é da angélica natura
72 O querer, o entender, o ter lembrança,

“Eu devo ainda revelar-te a pura
Verdade, que entre vós se há confundido,
75 Sendo enleada por tão má leitura.

“Estas substâncias, o prazer obtido
De verem Deus, jamais rosto voltaram
78 Dos olhos a que nada oculto há sido.

“Seu ver, novos objetos não cortaram;
Não há razão, por que se lhes suponha
81 Rememorar idéias, que passaram.

“Assim na terra sem dormir se sonha,
Crendo e não crendo proferir verdade:
84 Neste caso há mais culpa e mais vergonha.

“De opiniões não tendes fixidade
Filosofando, tanto vos transporta
87 Da ostentação e de o pensar vaidade.

“No céu menos do que isto se suporta —
Ser a Santa Escritura desdenhada
90 Ou ter inteligência errada e torta.

“Para ser pelo mundo semeada
Quanto sangue custou pouco se atenta,
93 E quanto a crença humilde a Deus agrada.

“Qual para alardear engenho, inventa;
Quando o Santo Evangelho está calado
96 Tais invenções o púlpito comenta.

“Qual diz que a lua, tendo atrás voltado,
No ato da Paixão de Cristo, houvera,
99 Interpondo-se, a luz do Sol velado.

“Qual afirma que o lume se escondera
Por si mesmo; e o eclipse à Índia, à Espanha
102 Comum como à Judéia, se fizera.

“Em Florença não há cópia tamanha
De Lapi e Bindi quanto só num ano
105 O púlpito de contos desentranha.

“Desta arte a ovelha, que não sabe o engano,
Do pasto volta túmida de vento,
108 Desculpa não lhe dá não vendo o dano.

“Não disse Jesus Cristo ao seu convento:
Parti e ao mundo apregoai mentira;
111 Mas deu-lhes da verdade o fundamento;

“Ele tão alto, em sua voz se ouvira,
Que foi-lhes o Evangelho escudo e lança
114 Nos prélios, de que a Fé vitriz saíra.

“Ora em sermões o trocadilho, a chança
Estão na voga; o riso provocando
117 Incha o capuz; por nada mais se cança*.

“Se o vulgo vira o pássaro nefando,
Que em cógula se aninha, não quisera
120 Indulgências, em que se anda confiando;

“Stultícia tal da terra se apodera,
Que, em prova e testemunho não firmado,
123 Qualquer a dá-las apto considera.

“De Santo Antônio assim medra o cevado
E outros muitos, que os porcos mais ascosos,
126 Que pagam com dinheiro não cunhado.

“Mas longa vai a digressão; cuidosos
Os olhos volve à verdadeira estrada;
129 O tempo é curto, andemos pressurosos.

“É tanto a grei dos anjos avultada,
Que nem por voz, nem por humana mente
132 Ser pode a conta sua calculada.

“Bem te demonstra a reflexão prudente
Que não diz dos milhares, que revela
135 A soma Daniel precisamente.

“A luz primeira, que irradia nela,
É por maneiras tantas recebida,
138 Quantos fulgores são, que a fazem bela.

“E, pois que a percepção logo é seguida
Do amor, do afeto angélico a doçura
141 Está em graus diversos aquecida.

“Do Poder Eternal vê, pois, a altura
E grandeza, que em espelhos tão brilhantes
A sua imagem multiplica pura,

145 Permanecendo um sempre como de antes.”

 

1-9. Quando aos dois etc. Quanto tempo o Sol e a Lua, quando essas duas estrelas estão – o Sol perto de Aries no poente, e a Lua perto da Libra no oriente – encontrando-se simultaneamente no mesmo horizonte por poucos momentos, tanto tempo Beatriz ficou calada, fixando o Ponto luminoso, isto é Deus. — 18. Amores nove, os nove círculos de anjos. — 22. Matéria e forma etc.; Deus criou no mesmo tempo a forma pura (os anjos), a matéria pura (os elementos), a forma conjunta à matéria (os corpos e as almas). — 31-36. Ordem foi concriada etc.; na parte superior do Universo foram colocados os anjos (ato puro); na inferior a matéria pura; e no meio a forma conjunta à matéria. — 37-41. Jerônimo etc. S. Jerônimo escreveu que os anjos foram criados antes do mundo sensível; mas o Poeta está de acordo com outros escritores, que se baseiam sobre os livros sagrados. — 50-51. Dos anjos parte etc., os anjos rebeldes convulsionaram a Terra. — 56. Do que hás visto etc., Lúcifer. — 97-102. Qual diz etc. Os pregadores discutem sem base nenhuma sobre a origem do eclipse que se deu no dia da morte de Jesus. — 104. Lapi e Bindi, nomes comuns em Florença, no tempo de Dante. — 109. Convento, os Apóstolos. — 124. De Santo Antônio etc.; com essas fraudes os padres engordam.

* Conservou-se a grafia original (cança) em lugar da atual (cansa) para preservar a rima. [NE]

 


 

CANTO XXX

 

Os nove coros angélicos aos poucos vão desaparecendo, Dante volve os seus olhos novamente para Beatriz, cuja beleza é agora maravilhosa a tal ponto que renuncia a descrevê-la. Eles estão no Empíreo, e Dante vê um rio de luz, cujas ribas estão esmaltadas de flores. Do rio saem centelhas que formam flores e depois voltam para as ondas. Enfim vê uma grande rosa de luz na qual aparecem anjos e os bem-aventurados. No meio há um trono preparado para o imperador Henrique VII.

 

TALVEZ milhas seis mil de nós distando,
A hora sexta ferve e deste mundo
3 A sombra vai-se ao nível inclinando,

Quando o meio do céu, p’ra nós profundo,
Tal se faz que não mostra o seu semblante
6 Mais de uma estrela deste val ao fundo;

E enquanto vem do sol a radiante
Núncia, o céu olhos cerra, adormecido
9 Um após outro até o mais brilhante:

Tal o triunfo, sem cessar movido
De gáudio, em torno ao Ponto deslumbroso,
12 Que parece, contendo estar contido,

Extinguiu-se aos meus olhos vagaroso.
Não vendo a pompa mais, a amor cedendo,
15 A Beatriz voltei-me fervoroso.

Num só louvor eu, resumir querendo
Dela o que vezes mil tenho cantado,
18 Frustara o intento, o esforço meu perdendo.

Pelo humano ideal imaginado
Não seria o primor, que vi mas, creio,
21 Gozá-lo todo, só a Deus é dado.

Neste árduo passo superado, anseio:
Vate jamais em trágico poema
24 Ou cômico sentiu tamanho enleio;

Quanto a vista ao clarão do sol mais trema.
Tanto a memória do seu doce riso
27 As potências do espírito me algema.

Dês que vi do seu gesto o paraíso
Na terra até me alçar a visão pura
30 Meu canto renovar não foi preciso.

Mas seguir-lhe a sublime formosura
Nos versos meus agora não me atrevo,
33 Como artista, que o extremo esforço apura.

Beatriz, sendo tal que a deixar devo
A tuba, mais que a minha, sonorosa,
36 Enquanto esta árdua empresa ao termo levo,

Com gesto e voz de guia cuidadosa,
— “Ao céu que é pura luz” — disse — “ao presente
39 Alçamo-nos da esfera mais vultosa,

“Luz intelectual, de amor ardente,
Amor do sumo bem, que enche a alegria;
42 Alegria em dulçores transcendente.

“Do céu verás, na santa bizarria,
Uma e outra milícia: uma no aspeto
45 Que hás de ver do final Juízo em dia.”

Como aos visivos espíritos direto
Relâmpago, que a ação lhes tolhe e os priva
48 De discernir o mais patente objeto,

Circunfluiu-me assim uma luz viva
Com véu do seu fulgor, que me impedia
51 Em claridade ver tanto excessiva.

— “Sempre o Amor, que este céu tanto extasia,
Por ser o círio à flama aparelhado,
54 Este saudar a quem recebe envia.” —

Bem não tinha estas vozes escutado,
Eis senti que virtude milagrosa
57 A força minha havia sublimado;

Senti vista mais que antes poderosa
E tal, que a luz mais penetrante e pura
60 Afrontar poderia valorosa.

Fúlvido lume um rio me afigura,
Entre margens correndo, que esmaltava
63 A primavera da celeste altura.

Do seio essa corrente arremessava
Centelhas; que entre as flores se espargiam
66 Como rubis, que o ouro circundava.

Quando ébrias de perfumes pareciam
Reprofundavam na ribeira bela:
69 Se umas entravam, outras emergiam.

— “O desejo, que te urge e te desvela,
De saber quanto vês maravilhado
72 Me agrada neste excesso que revela.

“Não serás em tal sede saciado
Senão dessa água tendo já bebido” —
75 Dos meus olhos o sol me há declarado.

“Os topázios, que movem-se, o luzido
Rio e das flores o matiz ridente
78 Prefácio umbroso da verdade hão sido.

“Não, por ser isto impenetrável à mente,
Mas por defeito da fraqueza tua,
81 Que te veda visão tanto eminente.” —

Não há criança, que tão presto rua
Ao seio maternal, em despertando
84 Mais tarde do que está na usança sua,

Como eu: melhor espelho desejando
Fazer dos olhos, à água me inclinava,
87 Que flui, pureza e perfeição nos dando.

Das pálpebras apenas se molhava
A borda, a forma, que antes vi comprida,
90 Do rio, circular se apresentava.

Como quem sob a máscara escondida
A face teve e logo diferente
93 Se mostra, essa aparência removida,

Assim flores, centelhas, mais fulgente
Alegria mostraram e eu já via
96 Do céu ambas as cortes claramente,

Ó de Deus esplendor, por quem já via
O triunfo do reino da verdade,
99 Dá-me valor; que eu diga o que já via.

Lá alto há luz de tanta claridade,
Que Deus visível faz à criatura,
102 Que em vê-lo tem da paz a f’licidade.

Ela se estende em circular figura,
Tão vasta que o seu âmbito faria
105 Ao sol desmarcadíssima cintura.

Um raio era o que dela aparecia
Refletido no Móbile Primeiro,
108 A que assim vida e influxo principia.

Qual em cristal do próximo ribeiro
Se espelha, como para ver as flores
111 E verdura, que o vestem, lindo outeiro,

Miravam-se, da luz aos esplendores,
De degraus em milhões almas tornadas
114 Da terra para os célicos fulgores.

Se claridades tantas derramadas
Stão no imo degrau, como da Rosa
117 No cimo hão de as grandezas ser esmadas?

Sem turbar-me, a amplitude portentosa,
Notava o qual e o quanto da alegria,
120 Em que se enleva aquela grei ditosa.

De perto, ao longe igual resplendecia;
Pois onde por si mesmo Deus governa
123 Da natureza a lei não mais regia.

Ao centro áureo da Rosa sempiterna,
Que em degraus dilatada rescendia
126 Louvor ao sol da primavera eterna,

Como quem cala, mas falar queria,
Beatriz, me atraindo, disse: — “Atenta
129 Dos brancos véus na imensa jerarquia

“O espaço vê, que esta cidade ostenta!
Quanto cada fileira está cerrada!
132 A poucos lugar vago se apresenta.

“Essa grande cadeira assinalada
Já de coroa, que te move espanto,
135 Antes de teres nesta boda entrada,

“Será de Henrique excelso, que há de o manto
Vestir de Augusto, para a Itália vindo
138 Antes de afeita ao regimento santo.

“Cega cobiça, a tantos iludindo,
Iguais vos torna a infante, que sem tino
141 De ama o seio não quer, fome sentindo.

“Será então Prefeito no divino
Foro aquele, que, oculto ou descoberto,
144 Não há de ser de acompanhá-lo di’no.

“A Deus, porém, apraz que esteja perto
Tempo, em que perderá cargo sagrado!
Terá com Simão Mago o lugar certo,

148 E o de Anagni será mais soterrado.” —

 

1-6. O Poeta quer que se entenda como desapareceu aos seus olhos a visão de que é objeto o canto anterior; e compara o desaparecimento ao apagar-se das estrelas no começo do dia. — 7-8. Do sol a radiante núncia, a aurora. — 44. Uma e outra milícia, os santos que combateram contra os vícios e os anjos fiéis, que combateram contra os rebeldes. 44-45. Uma no aspecto etc., os santos com os corpos com os quais aparecerão no Juízo Final. — 116. Rosa; o imenso círculo no qual se encontram os bem-aventurados tem a forma de uma rosa. — 136. Henrique VII, eleito imperador em 1308, coroado em Milão em 1311, e em Roma em 1312. Morreu em Buoncovento em 1313. — 142. Prefeito no divino foro, papa. — 143-144. Aquele etc., Clemente V que aparentemente será seu amigo, mas ocultamente será seu inimigo. — 147. Terá com Simão Mago o lugar certo, no Inferno entre os simoníacos. — 148. O de Anagni, Bonifácio VIII.

 


 

CANTO XXXI

 

Enquanto Dante contempla a rosa do Paraíso, Beatriz sobe e vai ocupar o lugar que lhe pertence, no meio dos bem-aventurados. S. Bernardo é o último guia de Dante. Ele lhe indica a Virgem Maria, toda brilhante de luz celeste.

 

FORMA assumindo de uma branca rosa,
Tinha ante os olhos a milícia santa,
3 Que em seu sangue fez Cristo sua Esposa.

A outra, que, adejando, vê, decanta
Do Onipotente a glória, que a enamora,
6 E a bondade, que deu-lhe alteza tanta,

Bem como abelhas, cujo enxame agora
Nas flores se apascenta, agora torna
9 À colmeia, onde os favos elabora,

Descia à flor imensa que se adorna
De folhas tantas, e depois subia
12 Ao centro, onde o amor seu sempre sojorna.

Nas faces viva flama refulgia,
Nas asas ouro, em tudo mais alvura,
15 Que a candidez da neve escurecia.

De sólio em sólio entrando na flor pura
E as asas agitando, derramavam
18 Ardor e paz, colhidos lá na altura.

As multidões aladas, que giravam,
Ao Senhor se interpondo e à flor brilhante,
21 Nem vista, nem splendores atalhavam,

Que a luz divina cala penetrante
No universo, segundo ele merece;
24 Nada lhe empece o brilho triunfante.

O gaudioso império, onde aparece
A par da grei antiga a grei recente
27 De olhos, de amor num fito se embevece.

Trina luz, que, num astro unicamente,
Fulgindo, alma lhes tens inebriada,
30 Conosco nas procelas sê clemente!

Se os Bárbaros, da terra enregelada
Vindos, que Hélice cobre cada dia
33 No seu giro, do filho acompanhada,

A pompa ao ver, que a Roma enobrecia,
Pasmavam, quando já Latrão famoso
36 Do mundo as maravilhas precedia;

Da terra eu ido ao trono luminoso,
Exalçado do tempo à eterna vida
39 E de Florença ao reino virtuoso,

Quanto havia de ter a alma transida!
Nem ouvir, nem falar apetecera:
42 Tanta alegria ao passo estava unida!

Bem como o peregrino considera
O templo, a que seu voto o conduzira,
45 E o que vê recontar, tornando, espera,

Na ardente luz a minha vista gira
De degrau em degrau, e agora acima,
48 Abaixo logo e em derredor remira.

Rostos eu vi, que a caridade anima
Com lume divinal; seu doce riso
51 Por suave atrativo se sublima.

Sem deterem-se mais do que o preciso,
Os olhos meus haviam rodeado
54 Em sua forma geral o Paraíso:

Vivo desejo em mim stando ateado,
A Beatriz voltei-me; ter queria
57 A solução do que era inexplicado

Ao que eu pensava o oposto respondia:
Nos gloriosos trajos de um eleito,
60 Em vez de Beatriz, um velho eu via.

Nos olhos transluzia-lhe e no aspeito
Alegria beni’na e o continente
63 De pai era, à ternura sempre afeito.

— “E Beatriz?” — exclamo eu de repente.
Tornou-o: — “Baixar me fez do meu assento
66 Por contentar o teu desejo ardente.

“Verás, do cimo ao círc’lo tércio atento,
Beatriz nesse trono colocada,
69 Que lhe há dado imortal merecimento.” —

Olhos alçando, à Dama sublimada,
Divisei que de c’roa era cingida,
72 Da eterna luz, em refração, formada.

Da região etérea a mais subida
Vista mortal, no pego profundando,
75 De tão longe não fora dirigida,

Como olhos meus, em Beatriz fitando.
Via-a, porém: a efígie livremente
78 Descia a mim do vulto venerando.

— “Senhora! Esp’rança minha permanente!
Que não temeste, por me dar saúde,
81 Teus vestígios deixar no inferno horrente!

“De tantas cousas, quantas eu ver pude
Ao teu grande valor e alta bondade
84 A graça referir devo e virtude.

“Sendo eu servo, me deste a liberdade,
Pelos meios e vias conduzido,
87 De que dispunha a tua potestade.

“Seja eu do teu valor fortalecido,
Porque minha alma, que fizeste pura
90 Te agrade ao ser seu vínculo solvido.” —

Desta arte orei. Lá da sublime altura,
Em que estava sorrindo-se encarou-me;
93 Depois voltou-se à eterna Formosura.

— “Por chegares” — o velho assim falou-me —
“Ao termo da jornada, como anelas,
96 A que seu rogo e santo amor mandou-me,

“Teus olhos voem pelas flores belas:
Eles mais hão-de se acender, no esguardo
99 Para alçar-se ao divino raio, em vê-las.

“E a Rainha do céu, por quem eu ardo
Cheio de amor, nos há de ser beni’na,
102 Pois sou seu servo, o seu fiel Bernardo.” —

Como quem da Croácia se destina
A ver Santo Sudário em romaria,
105 Por fama antiga da feição divina;

Devoto a contemplar se não sacia,
Dizendo em si: “ó Jesus! meu Deus piedoso!
108 Tal o semblante vosso parecia!”

Assim notei o afeito caridoso
Daquele, que em seus êxtases no mundo
111 A paz celeste prelibou ditoso.

— “Filho da graça, este viver jucundo
Ser-te não pode” — prosseguia — “noto,
114 Se os olhos teus não alças cá do fundo.

“Dos círculos atenta ao mais remoto:
Lá no trono a Rainha está sentada;
117 Seu reino, o céu, lhe é súdito e devoto.” —

O rosto ergui. Bem como na alvorada
A parte, em que o sol nasce no horizonte
120 Excede a que franqueia à noite entrada,

Assim, quase a subir de vale a monte,
No píncaro eminente parte eu via
123 Vencer em lume a qualquer outra fronte.

Como lá donde espera-se do dia
O carro, que perdeu Fetonte, a flama
126 Aumenta e noutros pontos se embacia,

Assim essa pacífica oriflama
Se avivava no meio; e a cada lado
129 Por modo igual se enfraquecia a chama.

De milhares o centro rodeado
Stava de anjos voando como em festa,
132 Cada um na arte e no brilho assinalado.

De os ver e ouvir contento manifesta
A Beldade: que extremos de alegria
135 A outros santos nos seus olhos presta.

Se eu tivera opulenta fantasia
E a eloqüência não menos, desse encanto
138 Um só traço exprimir não poderia.

No vivo lume e ao ver Bernardo quanto
Os meus olhos, absortos, se fitavam,
Volveu-lhe os seus, acesos de ardor tanto,

142 Que a mais fervor meu êxtase enalçavam.

 

2. A milícia santa, os santos. — 3. Os outros, os anjos. — 32. Hélice, a ninfa Hélice ou Calixto que foi transformada por Júpiter na constelação da Ursa Maior. — 33. Do filho acompanhada, o filho de Hélice foi transformado na constelação da Ursa Menor. — 35. Latrão, foi por algum tempo a sede dos imperadores romanos. — 102. Bernardo, S. Bernardo, abade de Clairvaux, na Borgonha, que foi devotado ao culto da Virgem Maria. — 104. Santo Sudário, ou Verônica (imagem verdadeira), imagem de Jesus impressa num véu, relíquia que se conserva em Roma. — 116. A rainha, a virgem Maria. — 125. O carro que perdeu Fetonte, o sol. — 127. Oriflama, estandarte de guerra dos reis de França; aqui indica a Virgem.


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Forma assumindo de uma rosa branca...


 

CANTO XXXII

 

S. Bernardo esclarece a Dante a composição da rosa do Paraíso. De um lado estão os santos cristãos; do outro os hebreus, que acreditaram no Cristo que devia vir. Entre uns e outros a Virgem Maria. Embaixo de Maria, mulheres hebréias; mais embaixo as crianças mortas logo depois do batismo.

 

DE contemplar no seu prazer sorvido,
De instruir-me, espontâneo, se incumbia,
3 E este santo discurso há proferido:

— “A chaga, que sarou e ungiu Maria
Abrira a bela, que aos seus pés sentada
6 Divisas, do homem no primeiro dia.

“Stá na tércia fileira entronizada
Logo abaixo Raquel; resplendente
9 Ao lado Beatriz vês colocada.

“Sara, Rebeca, Judite e a prudente
Bisavó do cantor, que lamentara,
12 Miserere clamando, a culpa ingente:

“Num degrau cada uma se depara
Da rosa, folha a folha, descendendo
15 Como seu nome a minha voz declara.

“Estão, do degrau sétimo descendo,
Como de lá subindo, em seguimento
18 Hebréias, dividida a Rosa sendo:

“Formam elas, assim, repartimento,
Segundo em Cristo a fé predominara,
21 Da santa escada em todo o comprimento.

“Da parte, em que da flor se completara
Em cada folha o número, exalçado
24 Vês quem a Cristo no porvir sperara;

“Da parte, onde o hemiciclo é sinalado
De alguns lugares vagos, se apresenta
27 Quem creu em Cristo ao mundo já chegado.

“Como de um lado a divisão se ostenta,
Da Virgem pelo trono demarcada
30 E pelos mais, que a vista representa,

“Assim do oposto a sede destinada
Ao que no ermo e martírio sempre há sido
33 Santo e em dois anos da infernal estada,

“Lugar que, tem por conta, há precedido
Aos de Francisco, de Agostinho, Bento
36 E outros, de um degrau cada um descido.

“De Deus ora contempla o sábio intento:
Igualmente a fé nova e a antiga crença
39 Hão de encher o jardim do firmamento.

“Abaixo do degrau da escada imensa,
Que as divisões reparte, está sentado
42 Ninguém, porque ao seu mérito pertença,

“Mas pelo alheio, e ao modo decretado.
Seus corpos tais espíritos deixaram
45 Antes que discernir lhes fosse dado.

“Bem à luz da evidência to declaram
Pela voz infantil e pelo gesto:
48 Olha, escuta, e tuas dúvidas se aclaram.

“Duvidas e o não fazes manifesto;
Sutil pensar em nó te prende estreito;
51 Mas deste enleio vou livrar-te presto.

“Crer-se não pode em casual efeito
Do reino divinal no infindo espaço;
54 Nem há fome, nem sede ou triste aspeito.

“De eternas leis vincula tudo o laço,
E, como o anel no dedo, justamente
57 Da criação responde tudo ao traço.

“Portanto aquela prematura gente
Sine causa não sobe à vida eterna;
60 Mais ou menos, cada um entra excelente.

“Deste reino o Monarca, que o governa
De amor em tanto extremo, em tal ventura,
63 Que desejo nenhum além se interna,

“Criando, de sua face na doçura,
Os espíritos, dota-os a seu grado.
66 Isto basta saber: não mais apura.

“Ao claro está nos gêmeos demonstrado,
Que haviam, — na Escritura se refere,
69 Já no materno ventre batalhado.

“Assim a luz altíssima confere
A grinalda da Graça dignamente
72 Segundo a cor da coma, que prefere.

“Graduação, portanto, diferente
Lhes cabe sem ter méritos na vida:
75 Visão primeira os distinguiu somente.

“Nos primitivos tempos conseguida
Estava a salvação, quando a inocência
78 À fé dos pais se achava reunida.

“Às primeiras idades em seqüência,
Dos filhos trouxe às asas inocentes
81 Circuncisão, virtude e permanência.

“Depois de anunciada a Graça às gentes.
Sem batismo perfeito haver de Cristo
84 Não valeu a inocência desses entes.

“Ora atento na face, que à de Cristo
Mais se assemelha; a sua luz tão pura
87 Só te pode dispor a veres Cristo.” —

Vi chover de alegria tal ternura,
Que a Maria os espíritos levavam
90 Para voar criados nessa altura,

Que quanto os olhos antes contemplavam
Tais portentos patentes não fizera:
93 Os assomos de Deus se revelavam.

Dos anjos o primeiro, que viera,
Cantando “Ave, Maria, gratia plena”,
96 Ante Maria as asas estendera.

Respondendo à divina cantilena
De toda parte a gloriosa corte,
99 Resplendeu cada face mais serena.

— “Ó santo Pai, que a caridade forte
Em prol meu fez deixar o doce assento,
102 A ti marcado por eterna sorte,

Diz-me que anjo com tal contentamento
Da soberana a fronte olha divina,
105 No amor mostra do fogo o encendimento.” —

Desta arte inda vali-me da doutrina
Daquele, que enlevava-se em Maria,
108 Como no sol a estrela matutina.

Tornou-me: — “Alacridade e bizarria,
Quanta em anjo haver possa e nalma humana,
111 Há nele; assim nos dá suma alegria:

“Foi ele o que à bendita Soberana
Levou a palma, o filho de Deus quando
114 Quis assumir a nossa carga insana.

“Minhas vozes tua vista acompanhando,
Do justíssimo império alça aos formosos
117 Patrícios, de alto nome, venerando.

“Os dois, que acima brilham, venturosos
Por starem perto da Sob’rana Augusta;
120 São desta Flor princípios gloriosos:

“À sestra sua aquele, que se ajusta,
O Pai é que, tentado por mau gosto
123 Tanta amargura à sua prole custa.

À destra o Pai primeiro se acha posto
Da santa Igreja; as chaves lhe entregara
126 Da Rosa Cristo e o fez o seu preposto.

“E o que antes de morrer vaticinara
Duros tempos daquela amada Esposa,
129 Que por lanças e cravos se alcançara,

“Fica-lhe a par; e, junto, a glória goza
O capitão da gente ingrata, insana,
132 Que viveu de maná, revel, teimosa.

“Em frente a Pedro vês que senta-se Ana,
Tão leda a excelsa Filha contemplando,
135 Que imóveis olhos tem, cantado hosana.

“Em frente ao Pai dos homens venerando,
É Luzia: a Beatriz há suplicado,
138 Quando ias para o abismo te inclinando

“Mas da tua visão o assinalado
Tempo foge: paremos, pois, fazendo
141 Do pano, que há, vestido bem talhado.

“E para o Amor Primeiro olhos erguendo,
Saibamos se do seu fulgor no seio
144 Penetras, quanto possas te absorvendo.

“Mas, de que retrocedas no receio,
Movendo as asas, em vez de ir avante,
147 Impetra graça, de piedade cheio,

“Daquela, que em valer é tão pujante.
Em mente a voz me segue fervoroso,
Com vivo afeto e coração amante.” —

151 E esta santa oração disse piedoso:

 

5. A bela que aos seus pés etc. Eva. — 8. Raquel, mulher de Jacob. — 10-11. Sara, mulher de Abrão; Rebeca, mulher de Isaque; Judite, que livrou o povo de Israel, matando Olofernes; a prudente bisavó etc., Rute, bisavó de Davi. — 32. Ao que etc., S. João Batista. — 35. Francisco, Agostinho e Bento, santos fundadores de ordens religiosas. — 67-69. Gêmeos, Esaú e Jacob. — 79-81. Às primeiras idades etc., nos tempos que passaram de Abrão até Cristo, a circuncisão era requisito indispensável para a salvação. — 82-84. Depois de enunciada etc., depois de Cristo é indispensável o batismo. — 85. Na face que à de Cristo etc., Maria Virgem. — 112. Foi ele o que etc., Gabriel. — 122. O pai etc., Adão. — 124. O pai primeiro etc., S. Pedro. — 127-129. E o que etc., S. João Evangelista. — 131. O capitão etc., Moisés. — 133. Ana, mãe da Virgem. — 137. Luzia, Santa Luzia, virgem e mártir, v. Inferno II, 97-102.


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Ave Maria, gratia plena


 

CANTO XXXIII

 

S. Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio vê figurada a efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer o modo da união da natureza divina com a humana. Um repentino esplendor lhe revela o mistério da encarnação de Cristo; e aqui termina a sublime visão.

 

“VIRGEM Mãe, por teu Filho procriada,
Humilde e sup’rior à criatura,
3 Por conselho eternal predestinada!

“Por ti se enobreceu tanto a natura
Humana, que o Senhor não desdenhou-se
6 De se fazer de quem criou, feitura.

“No seio teu o amor aviventou-se,
E ao seu ardor, na paz da eternidade,
9 O germe desta flor assim formou-se.

“Meridiana Luz da Caridade
És no céu! Viva fonte de esperança
12 Na terra és para a fraca humanidade!

“Há tal grandeza em ti, há tal pujança,
Que quer sem asas voe o seu anelo
15 Quem graça aspira em ti sem confiança.

“Ao mísero, que roga ao teu desvelo
Acode, e, às mais das vezes, por vontade
18 Livre, te praz sem súplica valê-lo.

“Em ti misericórdia, em ti piedade,
Em ti magnificência, em ti se aduna
21 Na criatura o que haja de bondade.

“Esse mortal, que da ínfima lacuna
Do mundo até o empíreo, passo a passo,
24 Viu quanto a vida esp’ritual reuna,

“Te exora auxílio ao seu esforço escasso:
A mente sublunar lhe seja dado
27 A Suma Dita no celeste espaço.

“Eu que, no meu ardor, nunca aspirado
Hei mais por mim o que em prol dele peço
30 Meus rogos todos alço esperançado.

“Te digna conseguir que o véu espesso
Da humanidade sua despareça,
33 E assim lhe seja o Sumo Bem concesso.

“Depois da alta visão dá que ainda eu peça
Que conserves, Rainha Onipotente,
36 Sempre pura sua alma e ao mal avessa.

“De perversas paixões guarda-o clemente:
Vê Beatriz e o céu inteiro unidos,
39 Juntando as mãos, ao voto meu fervente!” —

Os olhos, que por Deus são tão queridos
No santo orador fitos demonstraram
42 Que eram seus ternos rogos atendidos.

Após ao Lume eterno se elevaram,
Em que, se deve crer, da criatura
45 Olhos, em modo tal, não profundavam.

E dos desejos eu, que à mor altura
Suba, o ardor cessar, como devia,
48 Senti, me apropinquando da ventura.

Bernardo, me acenando, me sorria,
Que para cima olhasse; mas eu estava
51 Já por mim mesmo tal qual me queria.

A vista, que em pureza sublimava,
Do alto, que é por si toda a Verdade,
54 Mais e mais pelos raios penetrava.

E o que eu vi, desde então, na imensidade
Transcendeu quanto o verbo humano intente:
57 Cede a memória a tanta majestade.

Qual homem, que, a sonhar, vê claramente,
Depois só guarda a sensação impressa,
60 E o mais em todo lhe não volta à mente;

Tal eu; quase a visão inteira cessa.
Mas no meu coração quase destila
63 Doçura que em seu êxtase começa.

Assim ao sol a neve se aniquila,
Assim na leve folha, entregue ao vento,
66 Se dispersava o orác’lo da Sibila.

Flama excelsa, que o humano pensamento
Excedes tanto, oh! presta ao meu, piedosa,
69 Um pouco de inefável luzimento.

E a língua minha faz tão poderosa,
Que uma centelha só da tua Glória
72 Aos pósteros transmita venturosa;

Pois que, em parte surgindo-me à memória
E sendo por meus versos celebrada,
75 Melhor se entenderá tua vitória.

Da luz pela agudeza suportada,
Eu me perdera, creio, com certeza,
78 Se da luz fora a vista desviada.

E, recordo-me, pois mor afouteza
Tomei, tanto, que face a face olhando,
81 Encarar pude na Infinita Alteza.

Tu ó Graça abundante, me animando,
Olhos fitar ousei na luz eterna,
84 A visão almejada consumando.

E lá na profundeza vi que se interna
Unido pelo amor num só volume
87 O que pelo universo se esquaderna:

Acidente, substância e o seu costume,
Conjuntos entre si por tal maneira,
90 Que da verdade exprimo um frouxo lume.

Creio que a forma universal inteira
Vi desse nó; porquanto mais ao largo
93 Sinto, ao dizer, ledice verdadeira.

Um só instante à mente dá letargo
Maior, que séc’los vinte e cinco à empresa
96 Que admirar fez Netuno a sombra de Argo.

De êxtase assim minha alma toda presa,
Atenta, absorta, imóvel se imergia,
99 E sempre em contemplar mais stava acesa.

E essa Luz tal efeito produzia,
Que em deixá-la por ver dif’rente aspeto
102 Consentir impossível me seria:

Que o Bem da sua aspiração objeto,
Todo está nela; é tudo lá perfeito,
105 Como fora de lá tudo é defeto.

Meu dizer de ora avante mais estreito
Será no que recordo que o do infante
108 Ainda ao seio maternal afeito;

Não porque presentasse outro semblante
A viva Luz, que a contemplar eu stava,
111 Antes, como depois, sempre constante;

Mas, como, olhando, a vista se alentava,
A Imutável Essência parecia
114 Mudar, quando só eu me transformava.

Na substância profunda e clara eu via
Da excelsa Luz três círc’los dicernidos
117 Por cores três, de igual periferia,

Íris de íris, um de outro refletidos
Estavam, flama o têrcio parecia
120 Spirando, por igual, de um, de outro unidos,

Quanto é curta expressão! Quanto a excedia
Meu pensar, ao que eu vi, este já sendo
123 Tal, que pouco bastante não diria.

Lume eterno, que a sede em ti só tendo,
Só te entendes, de ti sendo entendido,
126 E te amas e sorris só te entendendo!

O girar, que, dessa arte concebido
Via em ti como flama refletida,
129 Quanto foi dos meus olhos abrangido,

No seio seu da própria cor tingida
A própria efígie humana oferecia:
132 Foi nela a vista minha submergida!

Geômetra, que o espírito crucia
Para o cir’lo medir, em vão procura
135 Princípio, que ao seu fim mais conviria:

Assim eu ante a nova visão pura
Ver anelara como a image’ humana
138 Ao círculo se adapta e ali perdura.

Às asas minhas fora empresa insana,
Se clareado a mente não me houvesse
141 Fulgor, que a posse da verdade aplana.

À fantasia aqui valor fenece;
Mas a vontade minha a idéias belas,
Qual roda, que ao motor pronta obedece,

145 Volvia o Amor, que move sol e estrelas.

 

66. O orác’lo da Sibila; Virgílio (Eneida III) diz que a Sibila Cumana escrevia os seus oráculos sobre folhas soltas e depois as jogava no ar, sendo dispersadas pelo vento. — 94-96, Um só instante etc., um só instante do tempo transcorrido depois da visão me causa maior esquecimento que não aquele que vinte e cinco séculos causaram ao episódio dos Argonautas, o qual surpreendeu a Netuno. — 118-120. Íris de íris etc., o Filho parecia refletido no outro, no Pai como íris de íris; e o terceiro, o Espírito Santo parecia fogo procedente de um e de outro. — 127-131. O girar que, dessa arte etc., aquele dos círculos, isto é, o segundo, que parecia refletido do outro, pareceu-me tivesse efígie humana, tingida, porém, de cor divina. — 134. Para o círc’lo medir, para encontrar a quadratura do círculo, isto é um quadrado cuja área seja igual à de um determinado círculo. — 143. Mas a vontade minha etc., mas o Amor, isto é, Deus, que move o Sol e as estrelas, movia a minha vontade, concordemente à sua, como uma roda que obedece ao motor.

 

 


 

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