Panfleto do Nojo
Abdul Cadre
1ª Edição Convencional 1991
Collection Poésie Palmipède
ALBATROZ
Boîte Postal 404
75969 Paris Cedex 20
FRANCE
Versão para eBook
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2001 Agosto
Fonte Digital
Documento do Autor
Copyright:
© 2001 Abdul Cadre
abdul.cadre@netc.pt
Apartado 59
7084-909 Vendas Novas
PORTUGAL
Vinte demagógicos poemas
de prosa
em cinco andamentos
(ou partes)
para avisar os incautos
Os poetas que estão sentados não sonham, fazem versos e estão sentados.
São burocratas da palavra.
Os outros, coitados!
Limpam inúteis suores com lenços enxovalhados...
e fazem filhos sempre que podem.
(A inutilidade dos gestos, a desnecessidade dos actos, o moinho das palavras, tudo nos é alheio. Somos páginas emurchecidas dum destino comandado e espúrio).
Os grandes acontecimentos medem-se nas manchetes dos jornais, que os poetas não escrevem.
Aliás, os poetas não escrevem!
Divididos que estão entre oficiantes da hora e vagabundos do sonho...
De qualquer forma, fazer versos é um grande pecado quando há tanta coisa que nos mandam fazer.
Não há urgência de águas-furtadas ao sol com sardinheiras floridas.
Não há urgência de pequenos gestos não premeditados.
É inútil o sorriso!
Temos um destino programado e a única urgência é que se proíba o sonho.
Viva a cibernética!
Morte aos poetas!
Já!
No reino dos mendigos
há poetas de fome
e desespero de naus
oitocentos anos
de cansaço e maldição
com índias de improviso
em aventuras provisórias
de pimenta e raiva
e
enquanto caem as pétalas
uma a uma
um povo adormecido espera
a hora que tarda
num Outono de Abril
há tanto tempo
Havia o medo
em todas as ruas do meu país
cravos vieram
inebriaram de promessas
olhos crentes
riram nas armas floreiras
e todas as ruas do meu país
vestiram de sol
onde estão
cravos e sol
ó ruas do meu país?
agora
nesta hora de Outono provisório
de esmaecidos cravos
em que o medo do medo
espreita nas esquinas
há um rio expectante
um cântico suspenso
onde está o sonho florido
que parecia tão verdadeiro?
que se abram as comportas
ó ruas do meu país!
Que sangue novo
nas veias ferva!
nas veias
um fogo novo!
Assobiamos no escuro
para espantar a desdita
que uma ameaça de cruzes
nos encruzados do tempo
tem sempre uma pomba branca
dum auto de fé cativa
no render da nau do sonho
sitiada pelo medo
que nem o grito consente
os pulsos pedem algemas
e é o tempo dos grilhões
em que o canto se amortalha
Ah!
que se agitem os panfletos
tapem-se os muros
cubram-se os tectos
violem-se escuros
extirpem-se medos
lancem-se setas
firam-se credos
rebentem pulmões
trombetas
Que sangue novo
nas veias ferva!
nas veias
um fogo novo!
Vivemos
como quem se espreguiça
dizemos viva
dizemos chiça
gente de todas as cores
usamos rostos imprecisos
e temos dores
e temos risos
espingardas
flores
e casas pardas
somos polícias
somos doutores
que andam nas ruas como basbaques
cospem no chão
e também dão
por vezes traques
Temos dilemas
de ir às buates
ir aos cinemas
bebermos vates
Somos gente de paz
gente de guerra
que filhos faz
e enche a Terra
Na ténue memória das flores
de Abril crentes e descuidadas
se esvai o sonho em pétalas emurchecidas
nesta esquina do tempo de ampulhetas
esclerosadas
onde vivemos a paz desencantada
dum cemitério frio
à sombra dos ciprestes
que não quisemos plantados
Não há um grito
um trovão
um chicote vivo de raiva e seiva
só o silêncio
Enquanto pesa o sono
nos olhos do desejo
há uma guerra de permanências
na mesa despojada
na fresta da barraca
no salário sonegado
e a morte anestesiada incha o ventre
e tumefaz os olhos das ovelhas de Viriato.
Os senhores da guerra ocultam a mão
e as alabardas imponderáveis
enquanto o sangue esfria
nas veias de multidões expectantes.
Onde os exércitos neutrónicos?
Só o saque subtil!
Ó requiem!
que nem de superstições se agitam as
sombras
dos expectantes de olhos baços
Ó raiva!
das sombras ainda possíveis
talvez porque o sol nasce todos os dias
e o sono espera
a hora do grito nas lágrimas represas
E D. Sebastião não chega!
D. Sebastião nunca chega!
Amestrados a morrer de vagar
mas sempre bem
só sabemos de guerras vivas lá fora...
Podemos morrer confiadamente
na palha de Agosto
seca
seca
com que moldámos esta pedra de sermos
e esperar sossegadamente pelo telejornal
porque a palha
quando espicha
espicha sem um ai
E no entanto
em plainos à nossa porta
há clarins de angústia
velando o pasto das moscas gulosas
e um degredo assiste à nossa solidão.
Há ameaças sombrias
veladas
nas páginas de todos os jornais
e muitos olhos tristes pelas ruas
E vive-se!
Vive-se?
Se viver é sentar-se a gente na sala de
espera
do consultório do médico que não chega
vive-se
Mas se viver é qualquer coisa diferente
do hábito de estar vivo
diferente do vício do fumo
do ajeitar o nó da gravata
ou cuspir para o chão
então os corvos que se apressem para o
festim
porque a morte fede
neste imenso sepulcro escancarado
Poeta
louco
ou vagabundo
eu não sei se viver é preciso
eu não sei se navegar é preciso
Apenas acredito
que devemos aceitar a vida como ofício
e o navegar como missão
buscando as rotas inexploradas
na corrente dos sonhos renovados
E vós
gigolôs e prostitutas
que todos somos
sabei que o mundo é quadrado
e que nos seus quatro cantos se morre de
fome
Sabei que há chatos em Lisboa
e que ninguém se coça
Um ai
um grito
um urro
e tudo seria diferente.
Alegres não rimos
tristes não choramos
Frente ao despolido espelho da vida
o sorriso não tem eco
fica-nos o pavloviano esgar
que teimamos solitários
que o mais que plantamos
é esta indizível solidão pejada de gestos
e de sombras sem sentido
As ruas vão cheias de crânios sem rosto
e a ressaca dos sonhos
é privilégio de vagabundos
Somos marinheiros ancorados
nas rotas vencidas no passado
já sem sobressaltos de Adamastor
amortalhados na esperança adormecida
com as lágrimas represas
E D. Sebastião não chega!
D. Sebastião nunca chega!
São de plástico as orquídeas
que adornam as jarras de Taiwan
pintadas à mão
e murcham os nossos olhos secos
nas horas citadinas desta cidade-jarra
que não inventámos
Não há sombra de magnólias
só o asfalto tem um sentido
mas o sentido do asfalto
é o sentido dos nossos gestos
que alheios nos são
Aqui nos perdemos na pressa das ruas
debruadas a betão
onde zumbimos vermos cinzentos
nas colmeias apáticas
a azáfama buliçosa do vidro e do néon
Para gáudio dos nossos olhos baços
só as tetas da Bo Dereck
provocantemente brancas
nos escaparates do metro...
Tudo o mais
é uma fuga a escorrer pelas esquinas
onde só os mendigos esperam e não correm
As grutas labirintos e pirâmides
esvaziaram-se de sentido
mas
porque a noite ainda existe
seria preciso criar um grande mistério
Porém
construímos cidades sem memória
onde riscamos a noite de néon
para prolongar o dia
que alienámos da rota do sol
Ofuscam-se-nos os olhos de luzes
que nenhuma imagem consentem
e os balões das tardes de domingo
apodrecem no asfalto
como impudicas bexigas
sem serventia nem cor
Somos acorrentados daltónicos
da hora que passa
e os nossos passos e gestos
transportam a pressa desmedida
de comandados destinos
neste inútil navegar
das rotas repetidas
onde o amor e o sexo são
arqueológicas memórias de fumo e rotina
com que imaginamos ilusórios prazeres
Fazemos amor programado
como quem enche pneus
néscios heróis cibernéticos
filhos da porca e do parafuso
na alegria do êmbolo
na dinâmica da cambota
Faz-nos falta
um grande mistério!
Um ai
um grito
um urro
e tudo seria bem diferente
Basta de bastar-nos o fino curso das areias
de seio a seio na fria ampulheta
dum destino sem mistérios
Exige-se quem ouse
um feito louco e preciso
Derrubar a República?
(essa velha prostituta
de carnes flácidas e sexo putrefacto)
Pois que seja!
Mas sobretudo
Ah!
que não me falem de democracias
que o felatio seca-me os rins
fraqueja-me os joelhos
e hoje estou surdo
para os vossos megafones
de incenso
Ó pornografia
de vozes e gestos!
Quem hipócrita ousa de pança opulenta
pregar submissões democráticas
à fome dos ventres opados?
Precisamos precisamente da precisão
dos nossos próprios passos
caminhar afastados dos caminhos gastos
com o sol no zénite da luz
Faz-nos falta um grande mistério!
Um ai
um grito
um urro
e tudo seria diferente
A rádio não anuncia
que há um tempo de fogo
num relógio que não pára
e que o dilema persiste
em tudo ser ou não ser
Hibernamos cibernéticos
entre a mecânica e o poema
imponderáveis
inconsistentes
no tédio da hora
em que prostituídos navegamos
nauseados de néon
masturbados de palavras
neste ventre putrefacto
da cidade
grande
grande
Ah!
sonho-névoa cansado
do fermento da desdita
nesta raiva amordaçada
que espera a hora do grito!
E a rádio não anuncia
que há um tempo de fogo
em clepsidras de marfim
que um arrepio percorre
as corolas de pedra
deste deserto habitado
violado e descontente
Que as virgens se perturbem!
porque os dragões adormecidos
com os seus dentes acerados
o enxofre não renegam
Inventámos o medo
o tédio
a esclerose
Perdemos preciosos e muitos séculos
a conceber deuses e tiranos
Hoje
infectados de rotina e desalento
procuramos contudo
nesta esquina do tempo
a luminosa invenção clara
do Homem Novo
que apenas sonhámos
É por isso
que esta impotência provisória
resiste ainda
ao apelo dum suicídio consolador
e na espera
germinam os anticorpos necessários
para debelar a infecção que nos corrói
Que se exterminem os poetas!
sempre o poema renascerá
das cinzas de corolas inusitadas
em cada hausto último de vida
nunca derradeiro
Que se escarneça o poema!
atrás de lua lua virá
e mil loucos
mil poetas
mil vagabundos
de falo em riste
emprenharão a noite de sonhos
na flor dos sentidos
na gestação do sol
Que nos imponham
cassetes de preconceitos!
Coloquem-nos processadores na alma
transístores no peito!
que mil loucos
mil poetas
mil vagabundos
voarão como dardos de fogo
e afogarão de fel
as consciências adormecidas
Quem nos impôs este deserto por dentro
que orvalho
choro
chuva
não há que obste a secura
que mirra as nossas almas
perturbadas e exauridas?
Esvaído de memórias e de mitos
desfaz-se o pergaminho
seco
seco
na inexorável consumissão
temporal e necessária
(felicidade já
nada conter
que sirva salvar!)
As grutas
os labirintos
as pirâmides
esvaziaram-se de sentido
Urge forjar o novo texto indelével
na aurora áurea da palavra
e esconjurar as lágrimas impróprias
Premeditadamente
beber o orvalho das horas claras
para que a chuva sirva a fartura do trigo
na transmutação das areias
que os verdes oásis imploram
Ó muda esfinge
de petrificados mistérios!
quem nos poderá impor
o deserto por dentro
ou paralisar o gesto
se nas mãos os dedos aço?
Se uma maldição vela
na hora dos claustros violados
e se apagam as estrelas
consequentes de pânico
enquanto as monjas se masturbam
frente aos altares em chamas
onde angustiados ardem os crucificados
impotentes de manguitos
Se toda a crença é uma heresia
e a religião o refúgio dos mansos
Ah!
que não me chamem de blasfemo
os que amam os céus
desconsoladamente
só porque abomino os dedos
apontados às rotas repetidas
e as certezas sem mistério
Recuso ser crucificado sem um arrepio
cedo o me lugar à direita do Deus-Pai
e como verdade
basta-me a minha loucura
Por isso me nasce o grito
num uivo extravasado de garras
mesmo sem encontrar os meus olhos
do outro lado do espelho
desesperadamente
E vós!?
gigolôs e prostitutas que todos somos
porque não tomais a loucura
como um sexo aberto em hora de cio?
como um falo de raiva?
Sabei que mil poetas mil loucos mil
vagabundos
voarão como dardos de fogo
na noite dos mistérios
com os olhos reflectidos
no aço dos espelhos
na gestação do sol
bêbados de sentido
Há medo e tédio a escorrer
das páginas de todos os jornais
e muitos olhos tristes pelas ruas
Neste imenso sepulcro escancarado
muito fede a morte
na almofada do sonho!
Ah!
que felizmente há coragem ainda
para uma explosão de corolas
no exército engrinaldado do sonho!
Ah!
que felizmente há ameias de resistência
em dunas de raiva e as palmeiras
acenam oásis no deserto que desmentem
no prumo do não
neste tempo de nem sim nem não
entre o nada e o infinito
Um vídeo-pack de salamandras
um disck-drive de enxofre
velam a hora computadorizada
dos rumos inauditos
É a hora!
Obsoletas trombetas de Jericó
o pó é vosso!
Mil loucos
mil poetas
mil vagabundos
vão emprenhar de sentido
a rota do sol
Se navegar é preciso
entre ser e não ser
urge navegar o amanhã
como nautas permanentes
que escreverão com mel e fogo
as novas sagas
Barreiro, 26 de Maio de 1986
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