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A Ordem Privada e a Organização Nacional

(Contribuição à Sociologia Política Brasileira)

Nestor Duarte

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A Ordem Privada e a Organização Nacional
(Contribuição à Sociologia Política Brasileira)
Nestor Duarte
Versão para eBook
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Fonte digital:
digitalização de edição em papel
Brasiliana - Vol. 172
Biblioteca Pedagógica Brasileira
Companhia Editora Nacional - 1939
©2006 Nestor Duarte


O Autor

Nestor Duarte Guimarães (Caetité, Bahia, 3 de fevereiro de 1902 - Salvador, Bahia, 25 de dezembro de 1970), jurista, romancista e político brasileiro.

Autor de livros marcados pela visão crítica do povo sertanejo. Ardoroso defensor do regime democrático e do estado de direito. Jurista, com obra centrada na visão sociológica do Direito.

Nestor Duarte era filho do magistrado Francisco Duarte Guimarães, e Maria Amélia Tavares Guimarães. Escritor, político e jurista, Nestor Duarte iniciou sua carreira ainda no Governo Góes Calmon, tendo também ocupado a função de Secretário de Agricultura no Governo de Otavio Mangabeira, ocasião em que fundou o Instituto Biológico da Bahia. Deputado na Constituinte, em 1946 – 1947, ali apresentou proposta para Reforma Agrária. Como jurista, foi reconhecido professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, além de autor de obras consagradas como "Direito: Noção e Norma"; "A Ordem Privada e a Organização Política" e, finalmente, o estudo "A Reforma Agrária".

Como romancista produziu três obras de ficção, retratando as agruras do sertão: Tempos Temerários, Cavalo de Deus e Gado Humano, esta última tendo merecido elogios do cronista Rubem Braga.

Defensor ardoroso da Democracia, foi um dos fundadores do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e dos grandes opositores, ao lado de Ulysses Guimarães, do Regime Ditatorial.

Embora pouco numerosa, sua obra mereceu resenha do renomado Luiz Recasens Siches em "Pensamento Jurídico do Século XX", e é ainda verbete da Enciclopédia Larousse.

Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre

A Ordem Privada e a Organização Política Nacional foi editado como volume 172 da coleção Brasiliana, em 1939 e uma segunda edição, da Editora Nacional, em 1966. Temos ainda a seguinte referência bibliográfica: A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, Brasília, Ministério da Justiça, 1966/1997. O título não se encontra disponível para aquisição nas livrarias online, nem disponível no site do Ministério da Justiça, nem no da Editora da Universidade de Brasília.


 

a

Afrânio Peixoto
Otávio Mangabeira
Anísio Teixeira


SUMÁRIO

CAPÍTULO 1.°

PORTUGAL — ANTECEDENTE BRASILEIRO. A organização da Sociedade Política Portuguesa. Traços de sua História. A índole do Processo Político Português, O Estado Nacional em Portugal. O Português-Homem Privado. Determinantes Históricas. Atualidades Político-Jurídicas. Resultantes para o Caso Brasileiro

CAPÍTULO 2.°

A EXISTÊNCIA DO ESTADO NO BRASIL. A Crise Feudal. A Ordem Privada e a Ocupação do Solo. A Colonização e o Povoamento. O seu Estilo Econômico-Político Feudal. O Bandeirantismo e o Desdobramento dos Interesses da Ordem Privada. A Bandeira como Organização Militar de Caráter Privado. A sua Conformidade com o Regime Feudal. O Poder Político na Colônia

CAPÍTULO 3.°

A SOCIEDADE COLONIAL. A sua Estrutura e o seu Caráter. A Dispersão Colonial reflexo da Ocupação do Solo. A Dissociação Social. A Vida Política e a Posição do Estado Português. Reflexões sobre uma Realidade Singular. A Igreja concorrendo e substituindo o Estado. O Dualismo de Jurisdição e a sua Repercussão na Disciplina Social. A Grande Força de Organização da Sociedade Colonial. Revisão de um Conceito

CAPÍTULO 4.°

A FAMÍLIA BRASILEIRA. O Poder Familiar. Unidade Econômica Política. A Casa Grande contra o Estado. O Estado apoiado na Organização Familiar. A Organização Privada descentralizando e... unindo: Uma Resultante para a Unidade Nacional. Organização Familiar e Municipalismo. O Paradoxo do Município Feudalizado. O Exclusivismo do Vínculo da Domesticidade. A Igreja dentro da Influência da Casa Grande. O Centripetismo Familiar. O Escravo e o seu Papel nessa Ordem. Escravidão e Domesticidade. A Família do Rico e a Família do Pobre. Porque diferem num mesmo Sistema Jurídico. O Senhor que Manda e Governa

CAPÍTULO 5.°

O POVO BRASILEIRO. O seu Valor Político. Alfabetização e Idade Política. Um Povo Rural que ainda não se deslocou para as Cidades. As Migrações Internas. A População da Independência. A Independência. A Independência e o Estado. Porque não se modificou a índole do Estado. O Império dentro dos Compromissos Coloniais. Análise de sua População. O Senhoriato, o seu Poder e a Estabilidade do Império. A Luta inicial de Classes e a sua Significação. O Interior e o Litoral. Uma População distanciada do Estado. O Estado Democrático e sua Influência Educativa nessa População. A Democracia como Educação Política de um Povo. O Senhoriato como Classe Política e o Espírito Público

CAPÍTULO 6.°

O PROBLEMA POLÍTICO BRASILEIRO NA ATUALIDADE. A Nação e a Unidade Política. Redução de Problema e Redução de Solução. O Brasileiro Político e a sua falta de Historicidade. Como se reflete o Passado na Ação Atual. Irredutibilidades de Espírito e Costumes. As Contradições de que padece o Homem Público Brasileiro. O Fim deste Ensaio


 

CAPÍTULO I

 

Portugal — antecedente brasileiro. A organização da sociedade política portuguesa. Traços de sua história. A índole do processo político português. O Estado Nacional em Portugal. O português — homem privado. Determinantes históricas. Atualidades político-jurídicas. Resultantes para o caso brasileiro.

 

Por mais surpreendentes que fossem as condições do meio americano à sociedade que se veio fundar no Brasil, por iniciativa dos portugueses, e por mais novos e originais que viessem a ser os processos de acomodação a que teve ela de se submeter, é fora de dúvida que a história do Brasil, com a interpretação conseqüente de sua organização social, deve começar antes do descobrimento. Os elementos sociais e os agentes humanos que a formam, ainda que modificados de logo, determinam e continuam no País, que se vai constituir, um desdobramento de origem, como imprimem a essa sociedade a índole e a essência da organização donde provêm e se deslocam.

O Novo Mundo, a terra nova, sob clima exótico, com todas as emoções das longínquas paragens, como a violenta subversão da catequese no selvagem, e no africano escravizado inclusive, não bastariam para inaugurar, como acontecimento isolado e singular no tempo, uma vida nova, sem passado, nos três elementos de formação do núcleo humano do Brasil. O homem social, o que vale dizer o homem, para onde for ou onde quer que o ponham, carrega consigo, na trama de seus hábitos, de sua técnica de adaptação e processos de cultura, como nas fibras mais íntimas de sua personalidade, a sociedade em que até então viveu e que o integrou num passado qualquer. Ele a leva consigo, ainda que abandone atrás tantas realizações intransportáveis, ou melhor, ela viaja e se desprende com ele.

O Novo Mundo, que o era para o branco e para o negro, como para o índio também pelas novas condições de existência que criou para todos depois do descobrimento do Brasil, não ia, apesar disso, gerar imediatamente uma sociedade nova. Esta sociedade nova iria formar-se ainda. E se formou lenta e gradativamente do âmago de estruturas anteriores que permaneciam de pé, ainda que para desaparecer sob outras formas de organização. Toda organização social, desde que chegue a denunciar-se por certa forma e tendência, constitui processo persistente e duradoiro. Tende a continuar-se. Tocada de morte ou contendo embora os germens de transformação, perdura e reluta por conservar-se.

O Brasil de 1500 vinha assim de longe. Seria antes de tudo um acampamento destinado a experiências de tipos sociais diversos que se iriam interpenetrar e chocar-se ou fundir-se. Apesar, porém, de tais choques e fusões, ao tipo social português, sobretudo ao seu espírito, caberia a posição de predomínio e o papel de padrão no País em que se prolongara, como verdadeira derrama, a organização social lusitana. Em todos os processos de acomodação ou de antagonismos que veio a sofrer e suportar, e os sofreu de logo, guardou a portuguesa a situação de sociedade invasora e dominante, quando não teve, livre da concorrência do agente negro ou índio, a oportunidade de ficar intacta, até que se modificasse por si mesma dentro do novo habitat brasileiro.

Mais do que a língua, por exemplo, pôde o português preservar dos outros elementos étnicos no Brasil a forma e a índole de sua organização civil e política. Foi em que Portugal continuou mais português no Brasil.

Dizia Capistrano de Abreu que a história do Brasil começa em Portugal. Valeria talvez dizer que o Brasil começava por uma continuação da sociedade portuguesa antes e depois da transmigração para a América.

Quem pretenda, pois, analisar tal ou qual aspecto da sociedade brasileira, a forma por que se organizou, as tendências mais vivas que lhe denunciam a natureza e os rumos, deverá empreender o exame da sociedade portuguesa, não como simples antecedente, mas como essa própria sociedade, que só depois seria a brasileira, com as modificações e misturas que a transmigração por si só não vai processar de inopino.

Dessa sociedade, ao fim que nos propomos neste trabalho, importa estudar, senão a organização, a significação do seu processo e comportamento políticos. Não será o estudo de uma estrutura política sob qualquer preocupação teórica de ordem constitucional e técnica publicística, mas a possível indagação do sentido social político do português, como povo e componente de determinada organização política, seja ela qual for, e como procede, sente e reage dentro da civitas política.

No retraçar características e tendências para surpreender o que o português tenha de mais vivo e próprio, como povo político, cumpre fazer, guardar e seguir, dentro dos limites da atitude interpretativa, referências à história de Portugal, ainda que se busquem menos os fatos e acontecimentos, do que aquelas características e tendências mais altas e mais gerais.

É fora de dúvida que cada povo sofre o processo político de maneira mais ou menos própria que a ele se adapta diferentemente aqui e ali.

Quem quer que olhe e observe a história política de Portugal, principalmente na época de formação do estado nacional, notará que o português era e continuará a sê-lo, o que é mais mencionável, um povo eminentemente particularista, comunal, impregnado e convicto do espírito de fração. Embora externamente se apresente nacionalizado, íntegro dentro do estado político (e para isso muito haveria de concorrer a vizinhança com a Espanha, a pô-lo em posição de sentido e alerta), internamente o português, cuja organização política nunca atinge processos normais, é melhor definido como tipo social dentro da organização privada. É esta a sua organização de base e, mais que isso, aquela de espírito mais vivo e vertical no sentimento e no comportamento do indivíduo.

Sem perder de vista os riscos de toda generalização, podemos assentar que o português é, comparativamente, menos político, como povo e como indivíduo, do que muitos outros povos nacionalizados da Europa. Frente à organização política, o português há de sempre revelar-se mais ou menos irredutível a essa totalização a que o Estado submete o indivíduo, cortando ou reduzindo antes todos os laços que o prendem aqui e ali aos grupos intermediários e subjacentes de uma sociedade. O português não se deixou desprender desses grupos como o fizeram, no limite da necessidade do processo político, outros povos, em que a ordem e o espírito político ganham de logo equilíbrio, superpondo-se à ordem privada. Ele antes resiste, opondo-se a essa acomodação, ou, como revela a sua história, chega à fase política por via e compromisso desses grupos e ao envolver-se no processo do Estado nacional unificado, guarda a índole do fragmentário, do homem do subgrupo, ainda que já subjugado pelo grupo maior do Estado. Unidade política se dá para a defeza do território, para lutar contra as monarquias vizinhas, para resistir à Espanha a lhe morder o costado, para extremar-se moral e religiosamente do mouro, mas no íntimo o português permanece infenso ao Estado, porque está mais que tudo organizado em grupos anteriores ou que se desviam do sentido do Estado, como o familiar e ó religioso, para assim acastelar e esconder talvez o seu individualismo de natureza anárquica. O tecido de sua organização particular, por isso mesmo, o prende de, tal jeito que forma de alguma sorte uma basta trama, como as raízes de certas gramíneas, que o defende do poder tentacular do Estado.

Se a história do Estado é, por excelência, uma vitória constante contra todos os grupos e instituições que lhe possam entravar o exercício do mando e a expansão, em certas sociedades, como a portuguesa, tais grupos se destroem ou se submetem, mas reajem pelo espírito que os caracteriza. Espírito grupal institucional, reacionário e invencível tanto mais quanto o Estado, pelo poder expansional, e por isso mais superficial, não tem o sentido de profundidade que permite a esses grupos menores, mais proximamente ligados aos indivíduos, um poder de intensidade que aquele perdeu em proveito do sentido extensivo.

O português é mais um homem privado do que político.

Não há negar que Portugal atingiu às formas superiores do Estado moderno, representou em certa hora um momento universal da história humana. Foi imperialista, o que revela unidade política. Navegou pelo planeta com esse sentido da “distância” ou do “longínquo”, de que nos fala Frobenius, como um dos grandes sentimentos heróicos e expansionistas dos povos, para enfim realizar a aventura do comerciante audaz, tocado de cobiça demoníaca e tenaz, que é uma surpresa bem grande na sua história talhada antes para miniaturas. Mas o homem, ainda nesse instante de fuga heróica e de império, permanece inesquecido de sua casa, do seu pequeno canto regional e um dia a ele voltará, que seja ao menos pelo espírito que animou sempre a sua organização moral e sentimental. Aventura de Ulisses saindo ao mundo, mas rendendo-se por fim ao prestígio de Penelope...

O desenvolvimento e a acentuação desse espírito se denunciam, como podem, em várias formas de cultura e de atividade social do povo português. Vêm de determinantes históricas. O processo político nacional não anula esse espírito. Não o remove. Antes se compromete com ele.

O desdobramento do fenômeno político, como um processo social de diferenciação, na história moderna, na Europa pelo menos, é assinalado pela luta do poder real contra poderes concorrentes, como o poder feudal.

Em Portugal essa luta tem aspectos comuns a outros povos, mas revela, também, cores próprias da originalidade portuguesa.

A monarquia lusa, antes de unificar-se com o Conde D. Henrique e o infante D. Afonso Henriques que lhe obtém a independência, já estava social e economicamente preparada contra o feudalismo pela organização comunal, em que se vinha formando e distinguindo o povo português no seu curso histórico. Se é, porém, na comuna com os seus vilãos armados de uma espécie de cidadania extraordinária, como bem era uma carta de foro, que o poder real vai reivindicar e restabelecer o império e a potestas — atributos próprios do poder político — animando e favorecendo esse tipo de organização, não há inferir que a comuna houvesse surgido e florescido por um favor real. E tanto não é, que o poder real, ao se consolidar e unificar sobre um território disputado, com o apoio da comuna e do vilão, cresce e se revigora ali e acolá, mas se reduz aqui territorial e politicamente pela comuna e pelo vilão.

Quem penetra na essência dos forais portugueses e lê a história da vida comunal ou das cidades, vilas e termos de Portugal, que toda ela é a história da formação e vida da nação portuguesa, pode de logo depreender que o poder real luta vitoriosamente contra a nobreza feudal, mas tem à sua frente, a concorrer-lhe em jurisdição e primazia, a comuna como poder sobre território e indivíduos.

Em Portugal, o poder político nunca se totalizou, como na forma aberrativa do absolutismo, nem se integrou territorialmente numa soberania incontrastável e única, da maneira e forma que outros povos experimentaram, porque o poder comunal, dentro dos seus forais remotos, como a Igreja, seria um limite e um estorvo à extensão máxima de sua autoridade e ocupação jurisdicional.

A comuna portuguesa era bem território livre, defendido por coutos e regalias, até onde não podia penetrar jurisdição de poder algum. Letelier, aliás, nos afirma que as cidades com suas imunidades reduziam, tanto como o feudalismo, a limites muito estreitos a autoridade real. (Gênesis dei Estado pag. 444). E prova disso é essa passagem interessantíssima que se colhe na “História de Portugal” de Alexandre Herculano:

“Nós N. alcaide e N. e N e o Conselho de Coimbra chamados e apontados por nosso pregoeiro, de sciencia certa e de espontânea vontade, consentimos e concedemos que el-rei nosso senhor faça feira e tenha açougues (mercado permanente de victualhas), fangas (mercado de arinhas), e alfândegas com sua estalagem, no sitio em que lhe parecer na al-medina, sendo em chão seu, mandando vender tudo pela maneira que vai determinado”.

A comuna, ou o município, precedendo à monarquia nacional portuguesa, floresce com o gênio peculiar da península, encontrando em Portugal, sobretudo, desde a Idade Média, a sua fase mais “enérgica” e “vivaz”, para repetir Herculano.

Mas, é o espírito do fragmentário, da divisão, da adesão à entidade local e regional a dominar historicamente todo o povo português desde as suas origens, a flama animadora da organização municipal.

Bem nos adverte disso Alexandre Herculano, às pags. 87 do vol. 3.° de Hist. de Portugal:

“O caráter dos municípios, ainda que obedeça a tipos preexistentes, não atende a um princípio geral e invariável, que a civilização moderna ajunta a certas doutrinas de direito público”.

É a prova de que o município se cria, cada um de circunstâncias próprias, segundo uma certa história e ocorrência isoladas, a revelar antes uma luta de fervilhantes antagonismos, uns em face de outros, e nessa luta, a índole especial para esse tipo de instituição, a que se afez, como nenhum outro, o povo peninsular. Herculano comenta, o que ele aliás empresta, apenas, nessa passagem, ao espírito medieval:

“A Idade Média, época avessa às regras gerais em nenhuns costumes, em nenhumas instituições o era tanto como na organização dos municípios. A razão é óbvia. Representam eles de modo verdadeiro e eficaz a variedade contra a unidade, a irradiação da vida política contra a centralização...” (Pag. 172 — vol. 7.° opus. cit.).

Não há municípios iguais, forais que contenham as mesmas disposições e privilégios.

As circunstâncias especiais de localidade, como relembra Herculano, razões e fatos históricos e próprios e originais de cada lugar, “em suma mui fatos sociais variáveis de lugar para lugar, uns que era necessário destruir, outros que importava estabelecer, modificavam diversamente as garantias e os direitos, bem como os deveres dos vilãos. Daqui nascia essa variação e singularidade das disposições contidas nas respectivas cartas municipais” (pag. 69, vol. 8.°, opus. cit).

Cada município era um núcleo histórico e político próprio e singular. E assim dividido em frações comunais, também díspares, constituía-se em povo o território português.

Coelho da Rocha, no seu “Ensaio de História de Governo e Legislação de Portugal”, às pags. 75, visando antes toda a história de seu País, é ainda mais expressivo quando alude aos forais e ao conjunto de leis locais, privilégios de distritos:

“Ditados (os forais) pelo direito senhoria! e não pela consideração de ordem geral, e circunscrito a interesses locais, em lugar de centralizar o governo e dar unidade à legislação, e aos povos espírito de nacionalidade, estas leis somente serviam de os isolar e de cortar entre eles relações sociais”.

Em um território, ainda que pequeno, retalhado em mosaicos tão diversos, era a própria soberania da potestas política que, por sua vez, se dividia e limitava, esbarrando-se nessas verdadeiras fronteiras de autonomia da organização municipal.

Mas, a unidade e integração do processo político não tem à sua frente tamanhos tropeços, tão somente.

Ninguém poderia mais atormentar, desviar e impedir a formação do Estado português, naquele curso normal que outras nacionalidades seguiram, do que a Igreja. A Igreja foi sempre em Portugal, nos limites territoriais de sua soberania nacional, um poder concorrente e, por vezes, durante séculos, em épocas e tempos alternados, um poder superposto ao político. A autoridade e o prestígio temporal que lhe vêm da Idade Média, a Igreja prolonga e continua em Portugal até a idade moderna e contemporânea.

É preciso não esquecer que D. Afonso Henriques conquista a independência política de Portugal, para empenhá-la à Santa-Sé, de que Portugal ficou instituído feudo.

Suserano de Portugal, era o Papa, apesar de seus Reis nacionais, quem o governava, durante séculos.

Arcebispos e Bispos, e todo o clero, enfim, constituíam a casta política dominante do País.

Ocupavam os conselhos dos Reis, detinham os melhores e mais importantes cargos de governo e da administração.

“Toda esta grande massa, diz Coelho da Rocha, à pag. 56 do livro já citado, obedecia menos ao monarca do que ao Sumo Pontífice, o qual, em virtude do duplicado poder de Vigário de Cristo e Suserano de Portugal avocava a si, ou diretamente, ou pelos seus legados, o conhecimento de todos os negócios graves. O Clero, imbuído das mesmas idéias, não só apoiava as decisões de Roma, mas afetava tratar os Reis com tal superioridade que chegava a contestar-lhes as prerrogativas reais”.

Na famosa luta com o Arcebispo de Braga — colhe-se a referência nesse mesmo autor — D. Afonso IV foi insultado pelo papa Honório III que o ameaçou de interditar todo o reino, além de desobrigar os povos de juramento de fidelidade ao Rei e mandar outros príncipes despojarem-no dos seus estados, (pag. 60)

A Santa Sé chegou a destronar, sem protestos do povo, um rei de Portugal. Dir-se-ia, porém, que tais fatos, ainda que excepcionais, eram explicáveis na Idade Média.

A Igreja, contudo, ia reviver no século 16.°, sem antes tê-lo perdido de todo, o seu prestígio do século 13.°.

Confirmado o Concílio de Trento em 1565, Pio IV mandou que se o observasse. Muitas nações se recusaram a aceitar a parte disciplinar, porque viam ali a reminiscência de máximas ultramontanas e do temido prestígio pontifício sobre os governos civis. Alguns príncipes o admitiram com restrições. O cardeal D. Henrique, que não fazia, como reinante, a política dos Richelieus, o mandou observar sem limitação alguma, diz o historiador. D. Sebastião, o novo Rei, não só ratificou o ato de D. Henrique, como mandou aos bispos exercerem a autoridade que o Concílio novamente lhes dava, ainda que fosse com prejuízo da jurisdição real. O Papa Pio V, escrevendo ao Rei sobre isto, não se atreveu aplaudir a sua ação, diz Coelho da Rocha.

Ainda nesse século 16.°, da descoberta do Brasil e do ciclo da navegação, período áureo do imperialismo português, as dioceses se regiam e regiam os povos de Portugal, numa jurisdição tão ampla e complexa, por um conjunto de códigos sistemáticos, com os nomes de constituições. É nesses textos e “constituições” que se pode ver a poderosa extensão da jurisdição civil da Igreja, porque de par com regras disciplinares, de caráter espiritual, crescia e vigorava uma legislação de caráter civil, criminal e forense sobre bens, pessoas e coisas. Organizadas sob a égide do Direito Canônico, deste adotavam decisões que a legislação civil e temporal reprovava. Sua parte penal ia, além das penas religiosas, às multas e à pena capital e ao degredo.

Os juízes da Coroa não ditavam ordens aos prelados, serviam-se das palavras: “Rogo e encomendo” (Coelho da Rocha. Opus. eit).

E diga-se que no fim do século anterior, golpeada a nobreza, com a condenação à morte do Duque de Bragança e o assassinio do Duque de Viseu pelo próprio Rei, o poder real, que havia também cerceado o prestígio do clero, procurara entrar na sua fase de absolutismo.

Portugal, porém, só retomará a autoridade política plena, com prestígio do poder real, no reinado de D. José, sob a ditadura feroz de Pombal, que retirara, por exemplo, do controle pontifício e famoso e indigno Tribunal do Santo Ofício, que, por sinal, como tribunal eclesiástico, só foi extinto em 1820 pela revolução dita liberal dessa data.

Todos os países e territórios que Portugal conquistara no ultramar eram considerados eclesiásticos. Sobre eles, como no reino, a jurisdição eclesiástica ia concorrer até os nossos dias, com a jurisdição civil.

* * *

Tais fatos e diretrizes da história política de Portugal não devem constituir elementos suficientes e exclusivos para as conclusões a que desejamos chegar. Mas, valem como constantes denunciadoras do espírito da organização social em que se manifestam, e reajem como modificadores de rumos normais de um processo social.

Por tantas causas desviadoras, bem atormentada é a formação do Estado português, como esdrúxulas as razões de sua unidade. Admira por isso mesmo que certos observadores, como Manuel Bomfim, no Brasil, aludam, depois de acentuarem, como ele, à “precocidade política” de Portugal e de seu pequeno reino por ser a primeira nação a surgir completa na Europa do Século 16.°. Uma coisa, porém, é essa unidade e outra as causas que a determinam, como o sentido que a conduz. Portugal unido o é menos pela força e pelo espírito da potestade política do que por outras forças de união, como a religiosa. Se à primeira vista, parecerá que maior e mais íntima é essa unidade porque maior o número de forças que se contam para forjá-la, internamente, no âmago dessa unidade, a principal delas, que deveria ser o poder político, sofre a concorrência, a disputa das demais que a enfraquecem material e moralmente, atingindo a própria natureza de autoridade incontrastável que a deve caracterizar nesse momento.

A organização municipal, de espírito típico e próprio, como Portugal conheceu, é, por exemplo, infensa à formação do espírito político nacional, pela sua índole de divisão e de fragmentação. Se a organização municipal serve de apoio à realeza para combater classe poderosa, como a nobreza, esse apoio é antes uma aliança de forças diversas e até contrárias em face de um inimigo comum. Aliados que sejam, são, entretanto, hostis entre si.

A comuna, porém, nem prepara o espírito nacional de um povo nem forma o homem político na acepção do cidadão, porque dos grupos e associações territoriais é o menos político por ser o mais privado, pois não há confundi-la com a cidade, tipo de associação urbana de originário sentido político. Atenas era o Estado.

Portugal, tão comunal e municipalista, com população relativamente densa em vista da exigüidade territorial, são propende para a vida urbana na proporção do seu espírito comunal. Ao contrário, o conselho português não é a cidade. Esta, no testemunho de um João Lúcio de Azevedo, tem vida miserável ao lado da população e da edificação rural. Este ruralismo lusitano é significativo.

Há pelo menos na organização municipal uma indistinção de esferas, quando não seja o predomínio do espírito privado sobre o público.

A larga controvérsia entre autores e publicistas portugueses quanto ao caráter dos forais e cartas municipais, se têm ou não o feitio e a natureza de leis públicas ou leis privadas, é bem a prova disso. Herculano afirma, contrariando os demais, que os forais são cartas políticas. A quem os lê, porém, sem propósitos de divergências, parece antes um conjunto de leis privadas e públicas em que se salienta a regulamentação das relações familiares e da propriedade. Indistinção que é essencialmente própria do medievalismo jurídico que, aliás, se manifestou pela preponderância do direito privado sobre o direito público, emprestando àquele, sem lhe matar os princípios e contrariar o conteúdo, uma categoria política. O município representa e continua essa tendência, principalmente aquele município romano e medieval como é o português.

A organização municipal prolonga, assim, até a esfera da res-publica o conjunto e a massa de interesses e sentimentos da vida e da organização privada.

O próprio Herculano é quem o diz:

“A família constituía a base do regime municipal, porque o homem casado e com filhos ou pelo menos com casa e familiares, era o verdadeiro bonus-homo o que enfim tinha a capacidade política para exercer magistraturas, fato que resulta de outros documentos... ”

... “Para ser da comunidade municipal, ou melhor para ser morador ou vizinho de um conselho era mister estar incluído no recenseamento ou registo geral feito por paróquias”.

O foral de Castelo-Bom, referido por Herculano, diz:

“Quem não tiver filhos e mulher em Castelo-Bom não seja admitido aos cargos públicos”.

Deixar a casa sem família fazia perder o direito de vizinho, isto é, o direito de cidade.

O homem solteiro pagava portagem, um gravame sobre o celibato.

“A família, embora no sentido mais lato que vulgarmente damos a esta palavra, é aqui o elemento, a molécula da organização municipal”. Herculano. (Ops. cit. Vol. 8 pags. 10, 11 e 12).

O município, ainda que uma ordem política, tem base e índole privadas.

O português é um homem privado, porque é, antes de tudo, histórica e socialmente municipalista e comunal.

Não se diga, entretanto, que o homem público português de caráter tão privado, só o é o histórico, por força de uma organização social remota, já passada.

O que ele foi ontem, continua a ser hoje, ainda com desviações, porque essa é sua natureza mais profunda.

A atual Constituição Portuguesa, num regime que se presume dar a felicidade à nação porque restabelece as suas fontes históricas, diz no art. 11:

“O Estado assegura a constituição e a defesa da família, como fonte da conservação e do crescimento da raça, como base primeira da educação, da disciplina e da harmonia social, e como fundamento de toda ordem política e administrativa por sua comunhão com a comuna e com o município, assim como por sua representação nesses mesmos organismos”. (1)

Nenhuma constituição política no mundo contém um dispositivo como este.

E revivendo o espírito dos velhos forais medievais, diz ainda essa Constituição, no art. 17, que o direito de eleger os conselhos comunais — juntas de freguesia — pertence exclusivamente aos chefes de família.

Comentando o novo direito público português, em livro que deve ter a chancela oficial, diz o Sr. F. I. Pereira Santos em “La Constitution Sociale et Politique Portugaise” que a família é o fundamento primordial de toda organização política, tese que não tem apoio sociológico, afirmando, em forma de aplausos, que nenhum texto constitucional é mais preciso e exato no consagrar esse princípio, do que o texto da nova Constituição Portuguesa.

E bem justo lhe parece, porque a seu ver, a comuna, por exemplo, não é senão um prolongamento da família. (Opus. cit. pag. 68).

Se o fortalecimento do espírito municipal nas federações de grandes territórios concorre para a centralização do poder político, é porque acarreta, ipso facto, — e aí está a sua razão de ser — o enfraquecimento dos estados federados, sem poder substituir-lhes a força e o prestígio com que concorrem com o poder político central, mas guarda em sua essência, quando livremente se antepõe ao poder central, a tendência para a descentralização e o fracionamento.

Mas, a maior conseqüência que a organização e o espírito comunal, já de si fracionário e antinacional, provoca na ordem política consiste em assegurar, fomentar e estimular a idéia, o sentimento e o interesse privado.

Ora, todo o interesse, como sentimento privado, que interfira na esfera política, é hostil à ordem e ao processo político.

A família, como família, isto é, como conjunto de interesse, sentimento e espírito privado não é base e fundamento do Estado, considerado este como a organização, a ordem do fenômeno político diferenciado. A família é antes um grupo hostil ao grupo político, refratário, enfim, ao espírito que domina a organização estatal.

* * *

Não vale aqui digressar sobre a natureza conceitual e histórica do Estado, como fenômeno político, mas, é oportuno insistir que do ponto de vista conceitual, que corresponde aliás ao histórico e social, o Estado é o fenômeno político diferenciado, ou seja a organização, chamemo-la grupo ou ordem, pouco importa, que se constitui para exercer, com a força social, a função mais geral e extensiva de dirigir e governar a todos os membros e grupos menores componentes de uma determinada comunidade nacional.

Seja dito de logo que essa função de direção e governo não se exercita por dependência e conseqüência de outra função ou atividade social.

A família, por exemplo, detém poder de mando e direção por força da atividade genésica e para assegurar tão só os interesses que lhe são próprios. A religião, por igual, exerce mando ou exercita uma considerável força de direção e mando por bem da atividade religiosa e só enquanto interesse aos fins da comunidade eclesiástica. O poder nesses grupos é uma conseqüência e um meio. Na ordem estatal, o poder do mando e governo é o próprio fim da organização, que só se institui para caracterizar e precisar esse poder. O Estado é a organização do poder para o poder mesmo. Não o exerce por uma conseqüência de outra função ou atividade social. É, assim, o próprio grupo que a necessidade de direção e governo da comunidade em geral engendra e forma para melhor expressar e exercer o poder de governo da sociedade.

É o governo desta, enquanto os outros são o poder ou governo desse ou daquele grupo ou subgrupo em que ela se divide.

Não é, por isso, o Estado um poder familiar, ou religioso ou econômico. É um poder diferenciado. Este é o seu conceito de fenômeno puro, extreme dessa ou daquela ideologia ou teoria que o conceba dessa ou daquela forma.

E surgindo histórica e socialmente, ele se forma e cresce com tendência de logo a diferenciar-se, ainda que a princípio se confundir possa com o poder militar, religioso ou familiar, aos quais toma assim de empréstimo, como a outros grupos que lhe são preexistentes, força e apoio para sobrepor-se a toda e qualquer potestade interna do meio social, para o que começa por esvaziar dos demais centros de poder todo o conteúdo de governo ocasional que eles, na sua ausência, possam ter nessa ou naquela fase da vida social.

Caracteriza-se, assim, a potestas política pela capacidade de extensão com que abrange as demais esferas de poder, e pela força de subordinação, a que submete os demais grupos. Estende-se para ganhar generalidade, sem perder o sentido da centralização, para melhor atender ao fim da subordinação. Ainda que haja, com sucesso, fórmulas mais ou menos felizes de acomodação, a verdade é que o Estado, por índole, não se ajusta em plano de igualdade com outro qualquer centro de influência e poder de grupos, corporações, famílias, associações territoriais, comunidades religiosas, etc.

Ele visa ser, no âmbito interno, mesmo que vá condescendendo aqui e ali, um poder incontrastável, inconcorrente, único, como se teorizou enfaticamente, segundo o conceito tradicional, a sua soberania. E é do espírito político, por isso que extenso e largo, com nítido sentido extra-grupal, ser infenso a tudo que restrinja, particularize e divida a força social de que precisa dispor.

Dirije-se, por assim dizer, ao geral, à generalidade, cuja expressão mais própria e justa é o termo res-publica, a coisa pública, que ele traduz e representa.

Ora, a família expressa idéia antitética ao Estado — é a ordem restrita, refratária à extensão, pelo seu espírito de reclusão e de segregação de grupo fechado típico. É a res-privata, a ordem privada, eminentemente exclusivista, como é o laço parental.

Nada nega mais o Estado do que a família. Aristóteles na “Política” já dizia que a diferença entre a família e o Estado não é quantitativa, de menos para mais, mas essencialmente específica. E Platão, apesar de admitir origem patriarcal ao Estado, deu sempre menor valor e importância à família na sua “República”, para que não dificultasse, segundo o seu propósito, a vida da cidade e a existência do Estado.

Incompatível com o poder político, a família ainda que intente ou venha realmente a exercê-lo, dado que historicamente possa ter alcançado e possuído o poder e conteúdo políticos naquelas sociedades simples e sem densidade, conforme teimosa hipótese clássica, desnatura o poder político a serviço do seu nepotismo.

Em face do Estado, quando este a absorve ou limita a potestade doméstica, a família começa a desencadear uma força de resistência e de oposição. Porque o seu espírito é mais vivo e intenso do que o do Estado, com um fundamento sentimental que aquele desconhece, ela prepara e arma indisfarçáveis antagonismos à vida pública, opondo o homem privado ao homem público com tal sentimento dialético que os torna irreconciliáveis.

Ressalte-se, por fim, mais uma vez, a circunstância de estar a família mais próxima e presente ao indivíduo do que o Estado, criando, de seu lado, uma hierarquia para prendê-lo pela só pressão sentimental. Por isso mesmo, o indivíduo, quando livre de sua influência ultrapassa o âmbito doméstico, se revela anárquico, ou melhor, indisposto a toda hierarquia que não tenha aquele sentido e colorido.

O individualismo anárquico, como toda expressão de hostilidade ou inadaptação à hierarquia social e política, eminentemente assentimental como é, tem esse fundamento de ordem psíquica e moral. A hierarquia religiosa cristã católica é muito menos contrária ou repulsiva ao espírito desse individualismo anárquico porque se carrega desse mesmo colorido sentimental, ou propende a isso, pelo menos, em certos povos, como os ibéricos.

Vale por isso salientar que se um povo, como o português, faz da família e da religião, sem as distinguir, as ordens mais afeiçoadas ao seu espírito como aquelas organizações mais próprias à sua índole social, a razão está em que a religião e a família se reúnem e se unificam pela natureza e propensão sentimental em que se vêem identificar.

O caráter privado do português, o seu individualismo anárquico que outros já assinalaram, não se contrariam nem se constrangem dentro do círculo religioso. É que a hierarquia religiosa já antes assume ou tem, por natureza, moldagem privada para propiciar justa acomodação a essa índole do português. Fustel de Coulanges já o disse na “Cidade Antiga”:

“O Cristianismo distinguiu as virtudes privadas das virtudes públicas. Rebaixando estas, levantou aquelas e colocou Deus, a família, a pessoa humana, acima da pátria; o próximo acima do cidadão”.

Ainda que empolgando o poder político, a Religião Católica modificou o sentido romano do fenômeno político, para exercê-lo, como na Idade Média, sob a forma do interesse, da relação e do direito privado.

Fundiu-o às instituições da família e da propriedade para impedir a sua diferenciação e ascendência. Por um salutar sentido universalista que ela ainda herda da cultura antiga, a Igreja não pode sofrer indiferente o embate de certas forças nacionais, daí desenvolver a sua ação mais profunda e sutil em favor de todas as outras forças de oposição ao Estado. É esse um dos aspectos de sua dialética histórica e do seu corporativismo tão contrário, na intenção, ao corporativismo do Estado fascista.

O português teria experimentado em todas as épocas do seu processo nacional a pressão dessas forcas morais que vieram atuando em substratos mais íntimos do seu espírito e de seu comportamento. Desconheceu ou permaneceu, assim, sem a vocação do espírito e da mística do Estado.

O seu chefe nacional teria sido Cristo, quando muito. E aquele D. Sebastião, abrasado de fé religiosa, a pedir mais um claustro do que um trono, foi, ao traduzir um dos maiores complexos sentimentais de que um povo pode padecer, amado e querido, antes de tudo, como representante da mística em Cristo, e não como chefe de uma nacionalidade.

Pode-se arrematar, assim, a síntese histórica, concluindo que uma nação de espírito comunal e de sentido religioso, como foi a portuguesa, jamais pôde deixar de refletir, desde seus precedentes mais remotos até os acontecimentos mais vivos e impressivos, uma tendência e uma natureza muito pouco propiciadoras à implantação e à irradiação do espírito político, como da idéia do Estado, no tecido orgânico do cidadão nacional, que preferiu sempre guardar-se de transpor e penetrar os limites da ordem política.

Do português, disse o Sr. Pereira Santos, ao criticar, como convém à la mode, o parlamentarismo em seu País, que é bem um povo “peu initié aux problèmes politiques, il n'aurait aucun goût, ni aucune compétence pour intervenir dans les affaires publiques”.

Em compensação, ele trará através de sua história, porque cada povo representa uma preferência por essa ou aquela forma de disciplina e organização, o gosto e a propensão para a organização privada. Há, por processo histórico e por temperamento, um privatismo português.

Será ele, por confirmação histórica, um antecedente da sociedade brasileira no jogo de forças de sua organização política.


CAPÍTULO II

 

A existência do Estado no Brasil. A crise feudal. A ordem privada e a ocupação do solo. A colonização e o povoamento e o estilo econômico-político feudal. O bandeirantismo e o desdobramento dos interesses da ordem privada. A bandeira como organização militar de caráter privado. A sua conformidade com o regime feudal. O poder político na colônia.

 

O Estado, como idéia, representação e poder viria enfraquecer-se e padecer de inelutáveis vicissitudes no Brasil, ao se passar, para o território colonial, a organização social portuguesa.

Dois poderosos fatores, transmigrados com essa organização e de logo exaltados pelas novas condições do meio, iam agravar de óbices e tropeços o curso normal da atividade funcional do Estado — o feudalismo, um feudalismo atípico, se quiserem, sem as cores tradicionais do sistema europeu, antes de anacronismos e arremedos e mais de tendências, e a família, a grande família patriarcal do Brasil que é no ocidente, na idade moderna, e contemporânea, a maior reminiscência, talvez, da antiga família dos rudes tempos romanos.

Do feudalismo, ainda que discordem historiadores e intérpretes de nossa história, há que dizer que reponta entre nós na primeira forma de organização territorial econômica e social da Colônia. As capitanias são, por tendência e desdobramento de seus fins, uma organização feudal. Caracteriza-se a instituição feudal em relação ao Poder Real por dois requisitos: a) transmissão da propriedade plena e hereditária e b) a fusão da soberania e da propriedade. Vejamos se o sistema capitaneal atende a esses requisitos, ou deles se aproxima, pelo menos. Apesar de ser inicialmente uma criação oficial, e o sistema feudal não principia de outro modo, o regime das donatarias começaria por vincar na propriedade imóvel os caracteres indisfarçáveis da organização feudal.

Pela importância e pelo êxito do seu livro “HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL”, vale citar o Sr. Roberto Simonsen como um dos poucos dos nossos historiadores que julgam não se deva acentuar os aspectos feudais do sistema das donatarias, inaugurado em 1534 no Brasil, embora reconheça que a quase totalidade dos nossos historiadores assim o fazem, chegando alguns a considerar o sistema, em relaçáo à época e à própria organização de Portugal, um retrocesso. Realmente, já a legislação portuguesa, influenciada pela Lei Mental de D. João I, não poderia permitir, sem contrariar seus próprios princípios, o estabelecimento em Portugal de uma organização feudal. É contra as ordenações Manuelinas que D. João III cria as capitanias do Brasil.

Nega Roberto Simonsen que os requisitos da organização feudal se possam confundir com os caracteres da propriedade e do poder de que dispunha o donatário, fazendo ver que, numa carta de donataria a extensão do poder e de certos privilégios não difere de uma concessão moderna de terras ou de uma exploração ou empresa de hoje. Falta, demais, ao feudalismo brasileiro aquela distribuição de classe organizada pelo critério profissional corporativo, a perpetuar vínculos de sujeição para o servo e o artesão, que aqui puderam ascender a outras classes e prosperar. Justo que seja o argumento, nem por isso essa circunstância descaracteriza, entre nós, a organização feudal, nem essa distinção de classe pelo critério profissional, a que alude Schmoller, é peculiar do sistema feudal. É mais conseqüência do sistema, cujo conceito não há de ser formado tão só com os elementos do regime medieval europeu. O Japão feudal se extinguiu em 1867. E a China de nossos dias, segundo Granet, ainda era ou é feudalizada. Demais, lá estão nas cartas de foral que completam aquelas doações, a verdadeira hierarquia econômica, pois que são “um contrato enfitêutico perpétuo em virtude do qual se constituem perpétuos tributários da Coroa e dos donatários capitães-mores, os solarengos que recebessem terras de sesmaria”. É a hierarquia feudal, o rei no cimo e nos degraus inferiores os senhores territoriais e abaixo deles o sesmeiro e o colono”. (Vide Martins Júnior: “História do Direito Nacional”. João Francisco Lisboa: “Obras”. Oliveira Martins: “O Brasil e as Colônias Portuguesas”).

Afonso Arinos de Melo Franco mostra-nos no “Conceito de Civilização Brasileira”,

“que além do rico senhor repimpado na casa grande do seu engenho feudal, labutavam na terra os colonos livres, obrigados a entregar àquele as suas canas para moer, mediante uma participação leonina nos rendimentos do açúcar. Extorsão disfarçada sob o nome de aluguel da terra ou obrigação mantida mesmo depois da venda dela ao pequeno proprietário”.

Esses e outros fatos que a exploração territorial e açucareira vão acarretar mais tarde são conseqüências confirmadoras do sistema econômico jurídico que se inaugura com a organização capitaneal.

Se. porém, os termos de concessão de privilégios de uma carta de donatário se confundem com a linguagem do direito dominical moderno da propriedade, essa identidade, que ao ver do eminente autor da “História Econômica do Brasil”, não bastaria para assinalar o regime feudal, é bem a prova de sua existência àquela época, porque ainda no direito moderno semelhante linguagem é reminiscência da velha organização senhorial. Afirme-se, porém, que nem o direito de propriedade moderno nem as grandes concessões de privilégios e monopólio do período hodierno do capitalismo contêm a soma de poder que resumia em suas mãos o donatário. É ver uma carta de donataria outorgada por D. João III. O donatário era “de jure e herdade” dono das terras de sua capitania. Se ele, a certos aspectos, era um mandatário oficial do Rei, recebendo a incumbência de fazer suceder uma empresa real, na verdade quem representava o Estado nas suas terras eram os feitores, almoxarifes e escrivães encarregados do fisco. Os foros, privilégios e poder de caráter político que o donatário ia gozar e exercer defluíam de sua qualidade de senhor e proprietário das terras da capitania. Como donatário, tinha jurisdição civil e criminal em terras de sua propriedade. Nessas terras não podiam penetrar em tempo algum “corregedor, alçadas de algumas outras justiças reais para exercer jurisdição, nem haveria direitos de sisa nem imposições, nem saboarias, nem imposto de sal”. É a imunidade feudal.

Só um século depois, em 1628 e em 1654, vêem-se disposições d'El Rei mandando que em ditas terras entrassem corregedor ou alçada a serviço da Coroa, mas não se suprime a jurisdição criminal do donatário.

Ao donatário deu o Rei a capitania e a governança e “sua vontade era que ambas andassem sempre juntas e se não apartassem ou alienassem em tempo algum”. E diz conclusivo Capistrano de Abreu no livro “Capítulos da História Colonial”, que vimos lendo:

“Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, D. João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações de solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história portuguesa na Idade Média”.

Eis assim demonstrada a existência daqueles requisitos que caracterizam teoricamente a organização feudal na propriedade plena e hereditária da Capitania em face do Rei e na fusão da soberania na propriedade mesma.

Para o sentido moral de classe e orgulho de casta, junte-se a tais requisitos a condição de nobreza que desde Portugal os donatários portavam e traziam entre aqueles direitos senhoriais e políticos que aqui começaram a eriçar de imponência roqueira a casa fortificada contra o índio e o flibusteiro. O donatário da Baía é um descendente de Marialva que os tupinambás comeram.

Bem verdade é que com a constituição do governo geral em 1549, tenta-se inaugurar na Colônia o exercício mais perfeito do poder real, restabelecendo as suas prerrogativas entregues a proprietários particulares, mas “sem abolir de todo o regime feudal”. Foi, todavia, o mal conseqüente que toda organização feudal acarreta ao poder político — o mal da divisão e do enfraquecimento da autoridade estatal — a principal razão dessa medida:

“... sendo iguais os poderes dos donatários, estando as capitanias na condição de estados estrangeiros umas relativamente às outras, impossibilitava qualquer ação coletiva...” (Capistrano. Opus. cit.).

Era a “anarquia intercapitanial”, o conflito de jurisdições concorrentes na função de governo, distribuído, por igual, a todos os donatários. Morto Francisco Pereira Coutinho, donatário da Capitania da Baía, reivindica o Rei a propriedade e o governo da Capitania, rasgando assim concessões perpétuas de privilégios e criando as chamadas capitanias reais, ou capitanias da Coroa, malgrado protestos que os houve. Ainda assim, teve o Rei que pagar a Manuel Coutinho, sucessor do infortunado donatário, um padrão para si e seus herdeiros de 400$000 de juro por ano.

Em que pese o insucesso econômico de muitas delas, as capitanias, como sistema, prolongaram pelos tempos coloniais afora a sua forma de organização e retiveram, pelo próprio papel importante que representavam na organização geral de Colônia, vindo como uma ordem logo abaixo da estatal, os elementos e o espírito da estrutura da sociedade colonial.

Os nossos historiadores, mesmo que divirjam no analisar a importância desse empreendimento no Brasil, não esquecem de salientar que o regime capitanial fincou entre nós os marcos e as traves de uma organização definitiva. Com ele se fixa solidamente o europeu no Brasil, interrompendo o verdadeiro nomadismo aventuresco dos primeiros colonos e das feitorias dispersas do chamado período pré-colonial, e se inicia uma forma de exploração econômica que implica atividade econômica organizada pela condição superior do sedentarismo agrícola.

É o primeiro estabelecimento de uma sociedade constante e duradoura no Brasil.

O estudo que se queira fazer da futura sociedade brasileira, das camadas que a formam, das estruturas que a compõem e sustentam, deve partir dessa época, sobretudo se se quer proceder a uma observação dos planos primeiros e mais profundos dessa sociedade. Um corte longitudinal há de nos revelar, ainda que soterrados pela sedimentação ulterior de novas camadas formadas por tantas influências diversas e remotas, os traços dessa organização a se refletirem nas formas e composição dos futuros estádios de nossa sociedade, principalmente na sua atividade de ocupação e apropriação do solo e relações econômicas e sociais que essa atividade suscitou e engendrou.

O sistema das donatarias nos transmitiu o estilo e a forma de uma ocupação do solo que é uma das constantes de nossa sociedade e a própria condição de suas lindes territoriais que ainda hoje perduram na configuração de muitos dos nossos Estados federados.

Essa ocupação do solo se fará, antes de tudo, pela forma de uma apropriação privada, com a instituição e reconhecimento pelo próprio poder real da propriedade privada plena e hereditária cobrindo uma extensão territorial muito mais compatível com o “ager publicus”. Este, por isso mesmo, desaparece ou nunca existiu no solo ocupado e povoado, senão quando o Rei, o poder político, o reivindica, por sinal et pour cause, pela maneira violenta de uma lesão a direitos privados, como na constituição das capitanias reais. E para resgatar as capitanias de donatários levou a Coroa séculos quase, porque as duas últimas a de Joanes ou Marajó e a de S. Vicente só foram incorporadas ao Estado em 1764 e em 1791 (Vide Oliveira Lima e Varnhagen).

Nessa ocupação do solo e povoamento há que assinalar preliminarmente diretrizes de profundo significado para o espírito e compreensão da sociedade colonial.

Em primeiro lugar, o sistema feudal, vale repeti-lo, ainda que venha fundir a propriedade e a soberania, a “governança”, enfim, não contém, em sua própria natureza e história, a propensão para desenvolver ou permitir que se desenvolva o espírito político ou o sentido da coisa pública. Ao contrário, uma e outra só existem por dependência da propriedade privada e para servi-la, exaltando as suas prerrogativas senhoriais. A feudalidade, para repetir René Hubert, é uma decomposição política.

Quando o poder real retira ou revoga a concessão de direitos e prerrogativas políticas aos donatários, não interrompe ou extingue o espírito da organização feudal que vai continuar a viver por hostilidade, o que não a torna menos perigosa ao espírito político ou público.

Demais, a nova providência do Rei, com a instituição do governo geral, é menos propósito, do que parece, contra o regime feudal. O governador geral é mais um chefe militar, o que não se confunde com o chefe político, e com essa preocupação militar procura atender até a iniciativa oficial do urbanismo, um urbanismo à Tomé de Souza que é, antes de tudo, o da fortaleza e da cidadela fortificada, como exigia o dever e impunham as condições do meio e do tempo. Pelo regimento legal que trazia, era essa a obrigação precípua de Tomé de Souza.

Os donatários e os povos das capitanias continuariam, assim, a ajudar a nascer e a crescer uma sociedade entregue principalmente aos elos e aos interesses da relação territorial da propriedade, com todos os estilos próprios e o sentimento e a mentalidade desse tipo de organização feudalizante.

O solo do país é conquistado, ocupado e povoado pelo proprietário privado.

Donatários, donos de sesmarias, senhores de engenhos e de fazenda e de currais, embora só os primeiros detivessem, por outorga legítima, a jurisdição civil e a governança, continuaram a desenvolver longe e indiferentes, ou refratários a um poder de Estado tão distante, a índole feudal ou feudalizante da sociedade.

Entre eles, seriam até os primeiros donatários, que tinham a governança “e a capitania” e representavam, por dizê-lo, um feudalismo legal e permitido, o elemento menos hostil ao curso e à função normal do poder político ou real, porque de alguma sorte sentiam-se mandatários do Rei, pelo sentimento de proximidade nascido de uma recente concessão ou doação real. Estariam, por isso, mais ligados ao Rei pelos propósitos solidários que animavam a empresa daquela colonização.

Ao Rei caberia os territórios desertos da colônia, a terra inocupada, porque o território social, o solo ocupado, como o que se conquistasse, pertencia e ia pertencer ao proprietário privado.

O próprio poder político que se institui de logo no Brasil, com caráter diferenciado, além de exercer mais a função específica do chefe militar, seria antes um poder de coordenação, do que tipicamente de subordinação, entre os donatários senhores de terras. Foi a necessidade de entrelaçar e ligar entre si os governos das capitanias que levou a Coroa a estabelecer um governo geral. Eram, assim, as relações inter-capitaniais a tarefa a que se deveria entregar o governador geral e por isso é que com o governo geral se restringiram as prerrogativas reais aos donatários, mas não se extinguia o sistema feudal. Um século depois, ainda se proibia aos governadores visitarem as capitanias, sem prévia licença real!

Ora, um poder político mais de coordenação do que de subordinação sempre foi conseqüência de todo regime feudal. A Idade Média, correndo aos influxos da Igreja, não conheceu nem quis admitir outro papel e função para o poder político.

Com tais elementos de organização social e política que, como sempre, reflete a própria organização econômica, como esta traduz condições naturais, a sociedade que daí surgiu e nasceu, pôde crescer infundindo o seu espírito e índole própria à natureza da sociedade brasileira posterior.

Não importa dizer que essa forma de colonização foi adotada em outros países e que nem por isso prevaleceu como uma constante da sociedade que lhe sobreviveu. É precisamente, porém, essa profunda repercussão, que logrou ter entre nós o fato mais significativo e característico, que cumpre assinalar como fator de grande interesse para a compreensão de nossa sociedade.

Poder-se-à, também, aduzir que é regra geral a ocupação de todo solo nacional pelo proprietário e pela propriedade privada. Mas, o fenômeno que desejamos retraçar e apontar consiste menos nessa simples ocupação de todo o solo pela propriedade privada, do que na circunstância do proprietário privado guardar e exercitar o governo, precedendo ao pocler político, propriamente dito, que só surge e vive, modificado pela concorrência e hostilidade daquele.

Desse espírito, dessa índole, como conseqüência daquela forma de organização, exemplifique-se o fato tão constante, como se verá adiante, da ausência de urbanismo como forma de ocupação do solo. O urbanismo não atende ao interesse do grande proprietário feudal nem ele haveria de estimular, porque ele próprio não sentia, a necessidade da associação urbana. A cidade é, por seu caráter social e histórico, centro político por excelência, aglutinador do poder público, por surgir, acima de tudo, como expressão anti-privada e anti-dissociadora.

Capistrano, que seguia a interpretação sociológica quando fazia história, referindo-se à densa população do rio S. Francisco, já nos princípios do século 18.°, com ausência de vilas e termos, proclama que há na maneira de apreciar e analisar as municipalidades mais uma prova da diferença entre as capitanias da Coroa e as de donatários (Op. cit. pag. 15).

Enquanto nas terras reais, o empenho seria semear e fazer crescer vilas e cidades, nas dos donatários elas não existem ou surgem como plantação mofina e esporádica.

Ninguém melhor entre nós estudou a história da luta contra a cidade do que Gilberto Freyre nos “Sobrados e Mocambos”, livro da série da grande obra sociológica que ele vem desenvolvendo e criando no Brasil.

Mas, o anti-urbanismo, a que no País condições do meio físico favoreceram, é espírito e tendência não só de toda vida rural predominante numa sociedade, como o resultado de todo sistema infenso à prevalência da organização política pura.

Vejamos, porém, o curso do processo de ocupação do solo e a formação concomitante de nossa sociedade.

Dois sentidos guardam de logo esta ocupação. Um, que é o seu ciclo sedentário, fixa o homem, planta-o imediatamente à terra pelo estímulo altamente lucrativo da lavoura e indústria do açúcar, gerando o tipo social, de grandeza desproporcionada, que é o senhor de engenho. O outro, ao contrário, representa a ocupação móvel, a ocupação propriamente de conquista, que é o ciclo da bandeira, e que expressa um tipo social de excepcional importância também, a marcar, como o primeiro, a fisionomia dessa sociedade — o bandeirante.

A entrada do homem branco no território brasileiro é inicialmente uma conquista do solo, desde os seus primeiros palmos de terra, mas gera imediatamente o tipo sedentário do proprietário de engenho, homem litorâneo por excelência, para fazer ressurgir mais tarde o primeiro conquistador no bandeirante que, por sua vez, vai gerar, a seu modo, outro tipo sedentário — o do fazendeiro e proprietário de currais — para em seguida, e, ao mesmo tempo, formar o minerador.

Como o senhor de engenho, ainda que preceda ao bandeirante, represente um tipo de estádio social superior e ulterior àquele da conquista do solo, e o sobreviva, prolongando, além desse conquistador, os efeitos naturais e peculiares de sua existência e atuação, colocá-lo-emos melhor no capítulo referente à família brasileira.

O bandeirante quase nunca foi estudado entre nós senão pelo seu lado heróico, sob o critério individualista do esforço sobre-humano, em que se esquecem desprevenidamente os aspectos, as significações e as conseqüências sociais que são nele de incalculável importância.

É iniludível que a bandeira, por mais que vá dilatando a fronteira política da colônia portuguesa e conquistando terras para a soberania do Rei de Portugal, representa uma iniciativa privada, atende a fins e a interesses da propriedade privada.

O próprio poder real deveu estimular o interesse privado do bandeirante, assegurando-lhe todos os proventos — índios, ouro, terras — para dele obter serviços oficiais. Soldado, assim, da fortuna, servindo ocasionalmente ao Rei.

Ainda que constitua empresa assinalável para toda organização política a conquista e dilatação territorial — elemento de caráter e significação política tão importante — não é a bandeira uma iniciativa oficial, obra empenhada, por natureza e propósito, do poder político. Nela não se serve o Estado, mas a si mesmo, ao fim de lucro pessoal que domina a empresa. Mesmo que contenha interesses políticos não é a eles que tem em mira, senão indireta e despreocupadamente, mas aos interesses da ordem privada.

Há, por certo, bandeiras oficiais, como as primeiras que se iniciam na Baía, descritas por Urbino Viana, e, por exemplo, aquela, entre outras, que o governo colonial mandou organizar para fundar, a cem léguas de Curitiba, já no século 18.°, a povoação de Lages (Oliveira Viana). Apesar disso, porém, esta última, por exemplo, se desloca como um desdobramento da família e da economia privada, nada custando ao governo, pois para municiá-la e prepará-la, despendeu o seu chefe “muitos mil cruzados”. Menos mandatário do que dono acabaria sendo quem jogava, assim, a sua fortuna particular nesse empreendimento. O fim, porém, dessa bandeira a exclui do tipo comum das bandeiras outras. A bandeira para fundar cidades é antes a tentativa e o esforço para corrigir o fim normal — que acentua, aliás, o seu caráter — de todas as bandeiras que começam pela Baía, desde a segunda metade do século 16.°, qual seja a dispersão desordenada e irregular aos fins políticos, com que, entrando pelo sertão, o domínio particular semeia a população colonial na área geográfica do País. O caráter feudal dessa ocupação vai, assim, de início e em seguida, marcando o espírito de alheiamento, indiferença e de dissociação dessa população à integração política. A bandeira para fundar povoações e cidades é realmente de natureza política, mas a bandeira típica de todo o período da conquista do solo, não funda cidades nem aglutina homens senão enquanto serve aos destinos econômicos em que eles se empenhem.

Além de empreendimentos privados, as bandeiras, tão apartadas estavam da influência do poder público, que contrariavam até, cumpre dizê-lo, os interesses políticos momentâneos do Estado português em suas disputas de terras e de comércio com a Espanha. A legislação portuguesa chegou, por vezes, a proibir o surto sertanista, a impedir a entrada para o interior, a fim de poder manter o domínio político do litoral ameaçado da invasão estrangeira e conseqüente desintegração territorial do País.

A bandeira vai ligar-se, assim, ao caráter dominante da organização capitanial e continuar a desenvolver o sentido econômico feudal que a domina, agravando, sob certas formas, consideravelmente, a índole daquele sistema inicial, com a oportunidade que lhe abre de deter outras funções que se não são propriamente políticas, emprestam-lhe uma relevância extraordinária no regime feudalizante em que se desenvolve e espraia. A bandeira, é o que vale dizer, constitui o ensejo e o meio para o senhor privado retomar a função e a chefia militar. Já Oliveira Viana nos fala nas milícias privadas dos grandes senhores rurais.

Ora, não há maior fator de enfeudalização de um sistema político do que a ocorrência de exércitos inoficiais num regime econômico. A bandeira é o poder militar do proprietário, o seu exército privado. E não será o auxílio que ela, como força militar, possa prestar ao governo, circunstância para desmentir a assertiva ou desmerecer a significação deste fato. É o bandeirante que destrói a república negra de Palmares. Considere-se, porém, a importância e o prestígio que assume e adquire um exército particular depois de servir ao Estado e sentir-se útil e necessário ao Poder Público.

Como nenhuma ordem política poderá suportar a perda do poder militar, nem sobreviver íntegra sob a concorrência de uma força armada organizada, o ciclo da bandeira foi um dos maiores fatores de enfraquecimento e dissolvência da autoridade política e, sob sua influência, ainda hoje se processam muitos dos acontecimentos que têm posto em crise e tormentos a força pública do Estado no interior do Brasil. É que no bandeirantismo estão e continuam a atuar as origens mais profundas de uma organização social, cheia do espírito de irredutibilidade a toda ordem superposta, que represente poder e disciplina que não sejam os próprios de índole e sentimento da ordem a que serve a bandeira.

Tal era a distância em que se organizou o espírito bandeirante do sentido político, que, apesar da exaltação do instinto guerreiro e da carreira das armas que o alimenta, o colono não queria ser soldado do governo e, acautelados em privilégios e isenções, os grandes da terra fugiam por forma tão tenaz do serviço militar, que o Conde da Cunha haveria de dizer que soldado para a Colônia só mandado vir de Portugal. Seriam os paulistas então, em que se aninhara a alma bandeirante, os que mais se obstinavam em não prestar serviço militar, argüindo os próprios serviços de bandeirantes para se eximirem da atividade guerreira da Coroa. Cartas régias viriam consagrar essas isenções.

Nada, porém, indicará melhor o caráter de empreendimento privado da bandeira do que o seu próprio custeio e organização, como os meios que a ditam e os resultados a que chega e logra atingir. Se aqui ou ali, o bandeirante leva muitas vezes em sua expedição uma autorização, mandato ou título oficial, o móvel principal é o seu próprio interesse, e o resultado constante, inalterável, da empresa é a aquisição ou expansão do direito de propriedade.

Quando Cristovam de Barros empreende a tarefa de bater os Caetés que lhe devoraram o irmão e o bispo Don Fernandes Sardinha, após naufrágio de conseqüências tão famosas, o seu resultado é conquistar as terras que hoje formam o Estado de Sergipe, delas se fazer proprietário, como de sua gente habitante. Por efeito dessa expedição ainda hoje várias famílias baianas têm ali terras que, repartidas entre os da antiga nobreza de Santo Amaro, são objetos de referência e partilha, segundo o testemunho de Wanderley de Pinho, nos inventários de nossos dias. Da bandeira vicentista diz Oliveira Viana, em “Populações Meridionais do Brasil”:

“Ou seja para explorar os veieiros auríferos de Sabará, ou seja para povoar de gado os campos do vale do S. Francisco, ou os altos platôs do Iguassú, ou as planícies do Rio Grande, a bandeira é um fragmento do latifúndio”.

A caça do índio, despovoando o solo da raça primitiva, como a descoberta e conquista, das terras para povoá-las do branco ou dos seus mestiços — o que define, conforme os nossos historiadores, o caráter despovoador e povoador das bandeiras — são movimentos animados do mesmo interesse particular, a que obedece o bandeirante. A bandeira despovoadora é então a mais rica de influência e repercussão nos costumes, na índole, no tipo da sociedade que nos serviu de base. A ela, por certo, devemos uma das nossas atitudes peculiares de independência rebelde, orgulho individualista, como o traço psicológico de nosso complexo de violência e pendor para a luta armada interna, nesse campo sertanejo onde se desdobra e se perde.

A certas luzes, demais, essa bandeira é uma regressão e vem constituir um dos exemplos confirmadores do choque da organização agrícola que ficou no litoral e dos seus interesses em face da organização da caça e da pesca e da tendência que é natural na primeira de destruir ou escravizar, o que dá no mesmo, o nômade do tipo caçador. Em que pesem anacronismos históricos e sociais, o homem branco da Europa regride na bandeira, diante de uma cultura e organização primitivas, àquela emergência lógica de todo um grupo se constituir em organização expedicionária militar para fazer a conquista e a submissão de outros, arrastado pelos mesmos interesses, desejos e cobiça cruenta de que padecem e sofrem estádios humanos de civilização mais recuada e bárbara. Por isso, a crueldade, o poder destruidor, a impavidez sanguinária dessas bandeiras só não surpreendem e horrorizam mais porque têm a própria lógica desses recuos.

Elas iam, porém, exacerbar de tal modo a já desenvolta liberdade do conquistador e criar o ensejo para a expansão livre e desordenada do homem branco transmigrado para o Brasil, que a dispersão, a desordem política, a ausência de disciplina e de vínculos contensores da sociedade da colônia encontram aí a sua razão mais viva e estimulante.

E o Brasil foi ocupado e povoado depois, desse modo. Em poucos anos para um movimento populacional tão imenso, toda a sua extensão geográfica é cortada do litoral ao centro e do sul a norte, numa dessas arrancadas que só o próprio ímpeto menos pensado da cobiça e do instinto de presa pode explicar e dar sentido lógico.

O bandeirante, quando penetra a mata a dentro, não traz em mente realizar um estabelecimento definitivo. Não é uma ordem que ele quer criar, nem uma civilização, em cujo nome e princípios pretenda ser o fundador e continuador.

Ainda que leve essa civilização, porque não lhe seria possível subtrair-se ao tipo social a que se modelou e serviu, não se empregará nessa tarefa pela idéia de quem atende a um plano construtivo a realizar. Ele é, ao contrário, o homem à solta, munido de uma força e de um poder destrutivo que, à falta de outra disciplina superior e que viesse de uma organização social que o prendesse a vínculos de autoridade e submissão, constitui verdadeiro desvario para a sua ação e caminhada livres.

Nada por isso seria mais propício ao seu individualismo, um individualismo, porém, anárquico, sem admitir nem ter mesmo ensejo de admitir qualquer hierarquia.

A extensão de sua penetração pelo deserto e o afastamento em que se encontrava de qualquer ação coatora de uma sociedade que lhe ficara tão longe, não fazem dele um homem apenas livre, mas um indivíduo a que faltasse de repente o equilíbrio de que essa liberdade pudesse ser uma resultante normal.

Longe do mundo, ou do seu mundo moral, ele seria a própria vítima da crise de destruição de que padecia. A raça de cultura inferior e menos armada para enfrentá-lo, sofreu, por isso que o enfrentou, as conseqüências daqueles mais terríveis instintos quando desaçaimados — o instinto de morte e o instinto genésico.

Homem de guerra ele o foi, mas da guerra mais simplista e brutal, a que se empreende para matar, sem aproveitar conscientemente nenhum dos valores do vencido, a não ser o valor físico do corpo e do braço escravo, A destruição do conquistador espanhol tem mais grandeza trágica, porque acomete e aniquila civilizações e povos mais altos e superiores, mas não é mais profunda e radical do que a que o português realiza no leste sul americano.

E como é esse tipo de homem que devassa e povoa, afinal, o Brasil, fácil é conjecturar-se e avaliar a sociedade que lhe surgiria depois à margem do caminho. Ela representaria núcleos de fixação temporária, ou traria, pelo menos, esse sentido, multiplicando-se descontinuadamente num território também vastíssimo e descontínuo. Não poderia ser, por isso mesmo que refletia o espírito desse bandeirantismo desligado de qualquer plano oficial de colonização, uma sociedade que guardasse, por exemplo, o estilo do sedentarismo profundo que só vem a adquirir mais tarde, embora para agravar no feudo agrícola a dissociação dominante em todos os seus núcleos. A própria economia a que se entregava, a economia da atividade exploradora e extratora de recursos naturais, não lhe permitiria fundar estabelecimentos mais complexos e aglutinadores de homens. Demais — e esta é a linha do sistema econômico — o que fixa e edifica aqui e ali são estabelecimentos privados — as fazendas e currais — que constituem simples ocupação do solo, sem mais modificação da natureza, a não ser a casa, a que falta sempre a pedra, o cercado tosco do curral e o fosso da aguada, quando necessário, no campo sem limite. O fogo da técnica primitiva do selvagem abriria as clareiras, como é constante até agora, para que a relva e a gramínea baixa renasçam com mais força dos adubos químicos das cinzas, se o sol o permite.

O pastoreio rude, se constitui uma das mais notáveis bases econômicas da Colônia e do País hoje, é um dos estados mais retardados de organização. É forma mais próxima do nômade do que do sedentário. Ele pouco modifica as condições físicas se não está aliado à atividade agrícola. A vida pastoril que o bandeirante funda no nosso interior mal se associou a essa atividade agrícola que, como ainda agora, é absolutamente copiada da cultura indígena. Há, pois, ainda do ponto de vista da técnica e da atividade econômica, uma regressão do homem branco que faz a bandeira e se entrega à primeira forma de trabalho e de economia. Regredindo demais pela língua, pois que perde a sua para formar uma língua popular do idioma tupi, o bandeirante, porque estivesse apressando e sofrendo uma radical adaptação e acomodação ao nosso meio, era e foi o tipo menos apropriado para continuar e levar a organização reinol, de complexidade superior, ao campo tão elementar de sua atuação. Agente já perdido para o estilo e a cultura européia, donde provinha, ele era absolutamente impróprio para conduzir uma aparelhagem, como a estatal, aos rincões sertanejos que, aliás, não a exigiam.

Como povoador, o bandeirante não poderia fazer obra mais desgarrada, do que fez, do Estado português, arrastado e modificado, como foi de logo, por circunstâncias tão alheatórias a qualquer política previamente traçada para meio tão desconhecido e diverso.

Se a fixação da população se dá por determinantes físico-econômicas — o vale dos rios e por onde se encontram e passam os veios auríferos que são os elementos aglutinadores do fazendeiro e do minerador — os seus núcleos vão marcando, de logo, a fisionomia de uma sociedade dirigida por um sentido totalmente apolítico, de que a falta de urbanismo, determinada também pela forma da produção econômica, é uma das expressões mais interessantes.

A mineração, por ter sido uma atividade eminentemente aglutinadora, acaba fundando cidades, as primeiras que se fixam, como edificação de grande porte, no sertão da Colônia. É vê-las, porém, com que desalinho se formam, a revelar as circunstâncias ocasionais que as geram, e qual o seu estado até à constituição do Império. No “Conceito da Civilização Brasileira”, Afonso Arinos de Melo Franco dá-nos, em súmula da opinião de todos os nossos historiadores, um retrato fiel dessas cidades que o ciclo do ouro, principalmente, criou e com ele desapareceram em grande parte.

Desde os arruados sinuosos e irregulares, até à falta de qualquer plano com que se fundaram e cresceram, essas cidades são antes casas juntas de homens que estão também juntos, a recordarem, quase sempre, o acampamento apressado do minerador aventureiro ou o traçado da velha fazenda na grande praça que ainda é curral. Esta é a fisionomia das cidades e vilas que o gado formou. Cidades de feira de gado. As do ouro cobrem-se de luxo e fausto. Mas, esse fausto como essa riqueza são menos da rua, do edifício para a via pública, do que dos interiores das igrejas e do ambiente doméstico. De luxo público, só a arte religiosa.

Cidades do acaso, de forças espontâneas e intermitentes, elas não podem marcar um novo sentido na forma desse povoamento. Faltam-lhes os atributos e as insígnias da associação política. Do burgo, por exemplo. Cidades sem dignidade de fórum, do edifício público que se confunde sempre com qualquer casa particular mais modesta, que se tomou de empréstimo para alugar a um poder público de segundo plano, inconsiderado e esquecido.

Constituem em geral construções tão elementares que Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, afirma que “não são um produto mental”, nem “chegam a contradizer o quadro da natureza e sua silhueta confunde-se com a linha da paisagem”. E em Pedro Calmon, esses reparos de viajantes estrangeiros que retratam à maravilha o caráter e o espírito desse urbanismo fruto da desordem pública:

“Comme chacun a fait bâtir la maison à la fantaisie, tout est irrégulier, de sorte qu'il parait que la Place principale ne se trouve là que par hazard”. (La Barbinais).

“Observa-se que cada casa foi construída segundo o capricho do dono, sem que se atendesse à conveniência pública”. (Charles Waterton). E em comentário mais amplo: ... “é que o Brasil não foi até os últimos; anos para o governo e para os súditos, mais que um lugar de passagem...” (Koster) (Vide Pedro Calmon — História Social do Brasil).

Se o ouro incrementa a vida das cidades e, de certo modo, tem na vida colonial o mérito de criar um desequilíbrio salutar à organização agrária do açúcar que chega a estremecer em suas bases, com o êxodo da população a correr para as minas, não há esquecer que o seu ciclo econômico, ainda que modifique a paisagem social, não melhora o espírito alheatório da associação do colono. O ganho fácil, a riqueza prodigiosa, obtida pelos esforços do mais audaz e na pressa que se não detém em escrúpulos, na febre própria que o ouro dá, estimulam de tal modo o gosto aventureiro, o desamor do futuro, o rompimento do passado, que tornam o agente humano incapaz das obras e empresas demoradas e lentas que definem toda cultura superior. O símbolo desse homem é aquele Sebastião Pinheiro Raposo que, já rico de ouro, escravos e mulheres, vem de Minas Gerais e só numa noite, no veio fabuloso do Rio de Contas, na Baía, extrai e reúne nove arrobas de ouro e, depois, com o seu tesouro às costas da burrama suarenta, penetra pelo sertão a dentro, com suas mulheres e escravos, para perder-se de uma vez para sempre, depois de tingir o caminho do sangue de uma de suas amantes que não o pudera acompanhar. Ou então o Rei João V que, vivendo entre loucuras e esbanjamentos, como diz Paulo Prado, foi enterrado com o dinheiro emprestado por um negociante de Lisboa!

O ciclo da mineração, apesar das fixações que vem criar nessa ocupação tão dispersiva, é, assim, a última tarefa a que se entrega o bandeirante, pondo termo às suas entradas e correrias sertanejas, mas não constitui nem gera uma organização com o sentido do duradouro e de um equilíbrio permanente.

É, demais, nesse período de maior complexidade na estrutura e nas relações sociais da vida colonial, que o poder público, chamado a desempenhar o seu papel precípuo de força contensora e reguladora, dá justamente mostras de aberrantes desviações do sentido intrínseco de sua função política. Com o descobrimento e exploração das minas, o Estado português que as vinha procurando, de cofres esfalfados, com preocupação vesânica, penetra no recesso das cidades, populações e distritos que o ouro e o diamante formam, para ser um poder público que é, apenas, o fisco monstruoso — um poder público com ganas de proprietário, a disputar o quinhão maior, sob uma modalidade de desmedida opressão pessoal que é ainda uma das grandes fontes de hostilidades, a armarem o homem de incompreensões e resistências contra a autoridade política.

Ao fim dessa época, que é o terceiro século da colonização, o Brasil está descoberto, ocupado e povoado, como batida e aniquilada ou absorvida a sua população primitiva, mas o Estado ainda não cobriu, apesar das penetrações, esse território, ou vive a disputá-lo para a implantação de sua autoridade numa luta desigual, que bem caracteriza a disparidade de planos em que se desenvolvem os processos sociais, e que perdura até agora, com vivos reflexos da grande crise colonial.


CAPÍTULO III

 

A sociedade colonial. A sua estrutura e o seu caráter. A dispersão colonial reflexo da ocupação do solo. A dissociação social. A vida política e a posição do Estado Português. Reflexões sobre uma realidade singular. A Igreja concorrendo e substituindo o Estado. O dualismo de jurisdição e a sua repercussão na disciplina social. A grande força de organização da sociedade colonial. Revisão de um conceito.

 

Quem estudar a formação do Brasil, a conquista e ocupação do seu território, desde esse período febril, descoordenado que são os três séculos da colonização, e seguir, pois, o homem conquistador, ocupante de terras, desbravador de núcleos de povoamento, sente, como traço impressivo e dominante, que nesse homem europeu o sentimento maior é o de liberdade individual, de autonomia de ação e de iniciativa que revelam a libertação da ordem social que deixara distante, sem tempo ainda de criar e submeter-se, com a mesma intensidade, aos liames da sociedade nova que ia constituindo e formando.

Seria um desagregado, tanto quanto de relativo tenha o significado dessa expressão, um desagregado a provocar e a suportar novas acomodações, sem oportunidade para engendrar e engolfar-se em outro ambiente social, pelo menos compacto e complexo, como o que deixara na Europa.

No velho Continente, o homem de 1500 e 1600, como o de “quatrocentos”, vinha presenciando e sofrendo profundas modificações de estrutura social. Essas modificações que se passam em todos os sentidos, são também e sobretudo de caráter político, porque assinalam a generalização do processo do homem nacional, a se modelar prisioneiro de uma disciplina política com outra direção — a do Estado nacional, unificado e unificador, que representaria uma nova ordem para o indivíduo ou vinha, pelo menos, desviar o eixo da disciplina social, a fim de dirigi-lo no sentido da empresa e do destino a que se propunham as comunidades nacionais, dentro da nova forma de concorrência econômica.

Este período econômico, a que os economistas chamam a “Revolução Comercial”, iria precisar e mobilizar todas as forças imperiais de conquista para a sua expansão, impondo, assim, aos estados a centralização nacional, a formação dos grandes exércitos e das grandes marinhas, o que significava a luta contra o espírito de subdivisão, de ordens diversas e concorrentes, que todas estão prestes a desaparecer ou a enfraquecer-se ante o poder renascido do Estado individualista.

O novo Estado, ainda que estivesse forjando um vínculo de sujeição e disciplina por vezes mais vivo e perigoso para o indivíduo, oferecia, ou assegurava, assim, no primeiro momento, ao homem novas formas de libertação que ele antes não conhecia — a liberdade religiosa e a econômica — que vão encontrar a sua expansão mais requintada e intensa no individualismo filosófico e político que vem logo depois dessa época, como flor de sementeiras tão propícias.

É, porém, de qualquer forma uma crise o que a nova ordem social acarreta. São as reações, os desequilíbrios, os antagonismos e revoltas que todo novo sentido de vida, contenha embora uma nova liberdade, acarreta e exalta.

O homem, porém, que vem depois, o homem novo que será, por exemplo, o indivíduo do século 18.°, trará o espírito próprio e agravado das deformações dessa época. A onda de individualismo filosófico, religioso e moral, como político e econômico, é bem o reflexo, no pensamento e na atividade social, daquela libertação e dessa revolta interior.

No campo do pensamento, só o positivismo e o marxismo virão mais tarde retificar esse delírio individualista, estabelecendo o primado do social sobre o individual, cujo desequilíbrio o tomismo social já antes evitara em séculos anteriores.

O português, apesar da dura disciplina moral e social da Igreja, foi sob muitos aspectos esse europeu que penetrou no Brasil já senhor de sua liberdade econômica e tocado da crise moral e social que lhe oferece o velho Continente e que ele leva aos ombros, sem ter, entretanto, melhor espírito e preparação política para aceitar e intensificar, como força de compensação, o novo vínculo que o Estado renascido haveria de lhe impor.

Demais, se na Europa essa crise e esse desequilíbrio se processam dentro de quadros gradativos e que poderiam, assim, seguir o seu curso de transição normal, na Colônia, no deserto, como em face de quadros sociais estranhos, como o da cultura selvagem, iriam encontrar o seu instante de culminância. É que aquela crise como aquele desequilíbrio iriam encontrar e seguir o caminho convergente de outra crise e de outro desequilíbrio próprios da Colônia e do Novo Mundo.

O português não seria o agente humano mais dotado e capaz, pelos seus antecedentes históricos e processos sociais próprios de sua vida política, para sobrepor-se a essa crise ou derivá-la. Compare-se-o com o anglo-saxão que ocupa e faz a América do Norte. Sem querermos estabelecer paralelos para apontar e assinalar superioridades que nem sempre são reais nem justas, referimo-nos propositadamente ao colono que chega à América do Norte, para retraçar, tão só, o seu contraste com o português. Naquele, uma outra unidade e disciplina vão de logo conduzindo o trabalho da colonização para quadros certos e fixos que, desde cedo, modelam e informam a futura nação americana (Paulo Prado), dentro, porém, de ambiente mais fácil à implantação de uma cultura como a européia. Entre nós, esse tipo humano parece que não chegaria a formar uma nação das terras que ocupasse nos trópicos, preferindo, diante de meio tão hostil a tudo que lhe é inerente como raça, conforto e dieta, explorá-lo sem se dar, como continua a fazer o inglês imperial e imperialista quando ocupa imensas terras quentes, sem se perder nem despojar-se de sua ilha nacional que o manda para fora como o simples “colonial” da moderna acepção.

Essa irredutibilidade do saxão que é para muitos um elemento de superioridade, pode expressar antes uma incapacidade de adaptação que não é a melhor qualidade nem de uma raça nem de um povo.

O português, porém, com outra maleabilidade, veio para os trópicos se dar intensamente à nova terra e às novas condições de vida, jogando-se na grande aventura, ao acaso, sem mais preocupação, nem maior pegadio à tradição pátria, porque ele é antes um povo que sobrou e está se derramando, mesmo que ainda reste lugar na sua pátria empobrecida e em começos de decadência.

Mas, saiu um pouco à solta, conforme o espírito de sua época européia, certo de que não mais será vigiado e preso a laços e compromissos incômodos à sua índole, quanto mais se engolfa no deserto tropical, que ele afronta com uma coragem e resistência que o saxão não pode, nessa conjuntura, possuir.

Como, porém, a autoridade política do seu Rei ou do seu Estado, não lhe pode acompanhar os passos por tão longe, ele se sente, desde logo, ainda mais embriagado de uma liberdade efetiva que se estende até ao campo religioso. Como além do equador “não há pecado”, abre-se-lhe o peito opresso não só de pecados como de toda idéia de autoridade e submissão.

Além de livre, no Brasil logo cedo ele vai mandar. Tem assim a dupla oportunidade de ser mais livre e imperar como elemento invasor e branco. Marinheiro, artesão, condenado ou perseguido, seja qual for a forma de sujeição ou inferioridade econômica e social que padeça, ele vai ser senhor, pela simples diferenciação racial.

Seu complexo de dominação vai encontrar livre campo. Tudo conspira em favor dessa liberdade e dominação — condições sociais, econômicas, étnicas e até físicas.

Não podia ser outra, por isso mesmo, a sociedade que aqui formou. Ele a faz sozinho, ou sem compromissos morais, que os próprios religiosos se acomodam a seu jeito, sem embaraços da lei e dos regulamentos estatais.

Bem disse Pedro Calmon que “a administração portuguesa não criou o Brasil dirigindo-lhe a colonização, limitou-se a regulá-la deixando que a iniciativa particular espontânea suprisse as deficiências do Estado pobre, oberado de dificuldades externas, vencido pelas suas preocupações religiosas, pelos desastres do oriente, pelo comércio inglês e pela incômoda vizinhança de Espanha” (Hist. Social do Brasil. Tomo I, pag. 233).

Complicada regulamentação essa, que se modifica com o tempo, que dispõe aqui e ali dessa ou daquela forma, variando conforme os interesses e diretrizes politicas da Coroa e as necessidades e vícios da Colônia, mas que vale ser um direito mais de papel, porque não iria alterar as condições econômicas e psicológicas que serviam de base à colônia e ao colono e que perdurariam assim durante três séculos, ou seja todo o período colonial.

* * *

Chamou Silvio Romero o primeiro século de nossa colônia — o nosso século feudal, a nossa Idade Média. Retifica-lhe o conceito, com outro acerto e procedência de crítica, Martins Júnior, afirmando que essa Idade Média, ou vale dizer, esse feudalismo, avança pelo 2.° e 3.° séculos, com todos “os fenômenos de elaboração tormentosa e de fermentação fecunda...” até porque por três séculos continua a viger a sua própria organização de “característica feudal”.

E vale menos seguir a vida dessa sociedade pelo que dizem e dispõem os textos legais, do que pelo que se evidencia na sua realidade histórica.

Após um século de povoamento e colonização, o retrato, que uma visão poderosa de crítica, como a de Capistrano, nos dá, é o seguinte:

“Em suma dominavam forças dissolventes, centrífugas, no organismo social; apenas se percebiam as diferenças; não havia consciência de unidade, mas de multiplicidade” (Op. Cit. pag. 79).

E isso porque a colônia não era um quadro perfeito. Era mais um acampamento incerto, um ajuntamento de homens irreconciliados dentro de suas classes econômicas, dos seus ódios entre reinóis e mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamelucos, mulatos, caboclos e caribocas, ressaltando a desafeição da raça pela condição social ou intelectual e econômica de seus representantes, numa amálgama que é mistura e confusão, mas não é ainda síntese e compreensão.

Pouco importava o sistema legal da época, a providência da política já alertada da Coroa de querer unir, sistematizar e disciplinar.

A organização oficial, como vinha de Portugal, se misturava com a organização eclesiástica na disputa de regular e ordenar os homens e a colônia, mas ambas, ainda por seus choques íntimos, representavam o fraco poder político e moral, diante de um homem e de uma terra sem estruturas sociais que dessem base e apoio ao exercício e desdobramento de qualquer poder e disciplina.

Até aí, para esse homem mais que livre, numa terra sem profundidade social, nenhum sentimento geral havia para o unir e conclamar em torno de um centro, de uma dessas idéias e forças de unidade que cristalizam toda coesão humana. As guerras flamengas, ainda no dizer de Capistrano, são o único apelo mais forte para criar o elo momentâneo de um sentimento solidário entre os colonos e partes da colônia.

Tais acontecimentos, além de esporádicos, não teriam força para alterar as condições e tendências que explicavam e modelavam a fisionomia da sociedade colonial, porque são antes as condições territoriais e as determinantes da ordem econômica que dispõem da forma e do sentido dessa organização.

E como não é possível esquecer, no retrato que dessa época nos dá Capistrano, a forma por que se constituiu e continuou a constituir-se essa sociedade, ao ocupar o solo da colônia, referimo-nos mais uma vez a esse povoamento e colonização que a explicam, através de um historiador e sociólogo, como Oliveira Viana, ao aludir às bandeiras:

“... expandindo-se pelos imensos chapadões florestosos ou pastoris do grande maciço central, não obedeceram ao princípio da continuidade geográfica, da migração de proche en proche, como os saxões e germanos na sua expansão pelo velho e pelo novo continente, ou os gregos antigos pelos litorais do Mediterrâneo; ao contrário, colonizaram à sua moda, por assim dizer aos saltos, sem a menor atenção ao princípio da continuidade social. Os núcleos humanos formados: os currais, as fazendas, os engenhos, os arraiais, as aldeias, as povoações, as “vilas reais”, foram surgindo como que por explosão, sem respeito a essa relação de dependência com o núcleo inicial, que rege a expansão das raças modernas pelo mundo. Isto é, foram surgindo dis­per­si­va­mente, de­sar­ti­cu­la­da­mente, de­sa­gre­ga­da­mente, a imensas distâncias, uns dos outros, no Rio Grande, no Paraná, nos cerros mineiros, no S. Francisco, nos vales goianos, em Mato-Grosso, no Tocantins, no Araguaia, pelo Brasil quase todo, em menos de dous séculos”. (Pequenos Estudos de Psicologia Social — pag. 153).

Ao correr, porém, dos anos e dos dois séculos que se seguem, cresce essa sociedade, densifica-se a sua população, vários ciclos econômicos assinalam a atividade próspera ou não, mas sempre em sentido ascendente, do País.

O ciclo da madeira tintorial, do açúcar e do ouro acarreta profunda modificação no comércio internacional. Há momentos em que a colônia, bem o mostra Roberto Simonsen, empolga o mercado mundial.

Acontecimentos históricos dos mais vivos, a defesa da colônia contra inimigos externos, as guerras flamengas por exemplo, a conquista do Prata e do Amazonas, a dilatação territorial, enfim, realçam de grandeza essa obra colonizadora segregada do mundo.

Ao fim desses séculos, o português tem no ativo da sua obra imperialista e colonial um resultado singular — inaugurou e formou a mais considerável e notável civilização de origens e raízes européias na época moderna na zona tropical, conforme já afirmaram escritores como Gilberto Amado e Gilberto Freyre.

Tais fatos e resultados, que não tornam, apesar disso, menos céptico o juízo desse mesmo Capistrano, quando volve a considerar os séculos restantes da colônia, não devem, entretanto, modificar a análise que se há de fazer, bem como as conclusões que se hão de tirar da organização social do País antes da Independência, por exemplo.

Importa que consideremos o meio interno da colônia, seus aspectos, o ambiente que mais impressiona a essa análise e a essa crítica.

Nessa análise ressaltemos de logo que um dos fatos físicos mais determinantes da forma, estilo e orientação da organização social brasileira não é propriamente o clima, a sua bioquímica, como a flora, a fauna.

É sim, a extensão territorial de que dispõe o homem e de que precisou dispor para acudir às necessidades econômicas e aos fins a que o instinto econômico o conduz ou devia conduzir.

Toda forma de produção no Brasil teve e tem que se fazer à grande. É uma forma de produção de espaço, acima de tudo. Desde a extração do pau Brasil, o homem teve que percorrer e ocupar grandes territórios.

O açúcar, nas exigências da monocultura que Gilberto Freyre tão bem estudou no “Nordeste”, exigiu, por igual, espaço e impôs a procura de mais espaço e distância territorial a todo outro gênero de produção agrícola, a que ele se revelou hostil e inimigo. A criação do gado foi então um dos maiores consumidores de espaço nessa atividade econômica.

O índio e o ouro, concretização de ideal econômico a que o homem mais se rendeu ao penetrar e devassar os territórios da colônia, exigiam enfim uma exploração e ocupação de espaço que atingem às raias do dramático e do grandíloquo.

O café e o cacau continuariam mais tarde o ciclo dessa extensão territorial.

Não será, pois, exagero dizermos que a nossa formação social se deu em função da extensão territorial, quase continental, que o colono branco teve que cobrir e ocupar.

Dispersiva e descontínua teve, assim, que ser essa sociedade que foi surgindo e florescendo em espraiamento irregular pelo País.

Dessa dispersão e descontinuidade provieram a sua falta de unidade e a descoordenação dos seus elos. Seus núcleos são núcleos de arquipélagos. E ela se desdobra como descosida trama, tênue e larga, sem força de tentáculos para associar e promover a comunhão.

Derramou-se em sentido extensivo, sem profundidade e espessura que lhe permitissem a justaposição e a superposição de estruturas dos agrupamentos compactos.

Por isso, o homem além de bandeirante, andejo e nômade, continua, quando se fixa, dissociado e isolado, amando essa dispersão que lhe vai agravando a descontinuidade social e desviando para o isolamento o seu individualismo que se torna anti-comunhal, ainda que nem todo individualismo seja divisionário e refratário à associação.

Nessa colônia, de população tão difundida e tresmalhada, entre os seus aspectos de morfologia social o mais significativo e constante é, por certo, a inexistência das formas de acomodação e atividade social que impliquem sociabilidade, ou, se quiserem, o que na linguagem vulgar se denomina por “vida social”.

Nada que induza vínculos, intensos e sobretudo gerais de associação é normal. Na colônia foi difícil senão impossível a existência desses grandes elos que compassam e demarcam as comunhões numerosas e as sociedades de população cerrada.

Por iguais razões, faltaram-lhe os sentimentos e os ideais que formam ou permitem formar mais tarde, as grandes escalas sociais, como a regional e a nacional.

Da falta, aliás, desses sentimentos gerais e compreensivos tirou a Coroa, e o Império mais tarde, um notável proveito — o de não ter que enfrentar e sofrer grandes movimentos de ação e reação social, do tipo das revoluções separatistas, como veremos.

Nesse meio sem densidade, há que ver antes de tudo o homem. Por mais adaptável que seja de todos os animais às variações de clima, de técnica e de ambiente social, o homem deve, apesar disso, modificar-se, no curso dessas variações, na sua armadura social pelo menos.

Sem exagerar essas modificações, convém salientar o seu processo nos diversos agentes humanos que vieram habitar ou constituir a nossa sociedade.

No português, o novo meio determinou, além de modificações orgânicas provindas dos fatores físicos circundantes e até dos sociais, como a escravidão (Gilberto Freyre), variações psico-sociais das mais interessantes.

Em face de sua organização social anterior, dão-se nele, na Colônia, verdadeiros desnudamentos. Há nele regressões notáveis. Umas de ordem psíquica, resultantes da caça ao índio, como já frisamos, ou da escravidão e da falta de mulheres brancas. Outras propriamente sociais, impostas ainda pela escravidão, pela monocultura, pelo contacto de culturas inferiores das quais teve de adotar vários processos técnicos e intelectuais — como a forma de agricultura e a língua dos índios — bem como as de influência moral, que essas também as raças inferiores impuseram, pela simples aproximação, à sua atitude, comportamento e caráter.

Por efeito dessas condições, contactos e aproximações, o português ora se despe de sua armadura social anterior, ora a altera, acrescentando ou diminuindo os seus atributos, mas sempre sofrendo tais modificações que lhe não permitem continuar íntegro e igual, como embarcou no Tejo.

A sociedade que vai forjar, além de refletir essas modificações, acarretará outras que promanarão de sua dinâmica e estrutura morfológica.

Se é indiscutível o asserto de que a sociedade modela o homem até na sua trama mais íntima, o português comprova esse asserto de maneira flagrante.

De modo genérico, que dispensa maiores referências e anotações, digamos que todos os caracteres e tendências, que ostenta e a que obedece a sociedade colonial dentro do seu meio geográfico extensíssimo, reagem e vão repercutir no português, ainda que com as refrações próprias e naturais que sofrem ao se passarem para o plano individual.

Na apreciação da organização social da colônia, o português, não há dúvida, deve ser considerado como um fator modificado em muitos pontos. Ele e as demais raças.

São essas modificações, como a parte que permanece irredutível de sua personalidade, que formarão mais tarde os elementos importantes do caráter brasileiro.

Para a Colônia que se forma, Portugal mandou “o chefe militar, a justiça togada, a instituição municipal, um bispo e os seus padres, missionários e arrecadadores das rendas públicas — deixando que o colono realizasse, de acordo com a própria inspiração, plasmado pelo meio, reagindo sobre o meio, modificado pelo contacto dos povos submetidos, os seus tipos originais de economia e sociedade”. (Pedro Calmon, Op. cit. pag. 234, vol. I).

Manda-lhe mais homens e pouco dinheiro. A sociedade colonial vai, porém, formar-se entregue a si mesma, apesar de tantas autoridades e funcionários que nos anos seguintes se multiplicam, fechada para o mundo, como as obras de gestação silenciosa e ignorada.

De sua organização política, fácil é traçar as lindes e os princípios pelo quadro das autoridades da Coroa. Essas autoridades são, antes de tudo, funcionários, distribuídos e divididos em hierarquia e setores que formam todo um serviço público.

Mas, essa organização oficial é menos política do que administrativa, como convém e compete a um território colonial que está sempre em desnível em face da função política.

E é próprio da colônia, dos territórios sern autonomia, o exercício mais do que os romanos chamavam vida civil em contraposição à vida publica.

Se, entretanto, normal era a ausência dessa vida pública por falta de função política interna, ou originária de autonomia interna, o Estado português, a que estaria territorial e politicamente incorporada a colônia, surge e se apresenta ante ela sob aspectos lastimáveis de fraqueza, deformação e ineficiência como poder, além de inoperante naquela finalidade de cultura política, a que se afaz o homem como cidadão e membro da comunidade política. Ainda sem autonomia interna, é sempre possível a um determinado território social organizar-se politicamente e desenvolver o espírito político em que se formará e se há de prender o seu habitante. Haverá assim para o seu povo um constante apelo para o cumprimento e satisfação de deveres públicos, de atividades, enfim, de caráter político que lhe darão a consciência e o sentimento daquele plano político, em que ele se vê transferido e solicitado para atender a uma função social de natureza especial, digamos — a função propriamente política que tanto difere das demais no seu comportamento social.

Sem ensejos, pois, para exercer a função política ou atender a essa série complexa e constante de obrigações que constituem as relações do governado e do governante em face do Estado, a vida social da colônia é, sobretudo, vida de relação civil, própria e exclusiva do convívio do homem com o homem e dos rendimentos e trocas estimulados e entabulados pelas suas atividades particulares.

O Estado português, além de distante e fraco, e por causa dessas condições mesmas, jamais poderia treinar o indivíduo para os misteres e os sentimentos próprios da vida pública. Largava-o, deixando de antemão que se desenvolvesse por livre iniciativa, ou o abandonava porque desistisse de lutar improficuamente com súdito em conjunturas tão pouco propícias à sua ação disciplinadora e vigilante.

Que este lhe pagasse uns tantos direitos e dízimos e voltasse a ser e a permanecer o que lhe aprouvesse, nos rumos que melhor lhe ditassem o destino econômico e as determinantes fisiográficas da terra.

Tempo houve até que essa função fiscal estava entregue ao particular como arrematante de cargos, empregos e serviços destinados aos dízimos e impostos da fazenda real, o que aliás não era prática original e exclusiva da administração portuguesa.

É, assim, notável a crise do Estado português na colônia.

Mas, não se diga que essa é uma condição normal de toda colônia. A crise e vicissitudes por que passou o poder político português são de ordens e fatores vários. Essa crise que é, antes de tudo, orgânica no Estado Português, e resulta de seu próprio processo histórico em Portugal, como vimos em capítulo anterior, e que é também a crise decorrente das próprias condições de todo regime colonial, provém, sobretudo, e isso é o que vale retraçar, das condições especiais da colônia brasileira, da sua extensão territorial e da forma por que se organizou essa colônia.

Ao lado de uma organização econômica feudalizada com os males próprios com que vai brechando o poder político, a extensão territorial da colônia é ainda um dos fatores peculiares do meio brasileiro mais decisivos no enfraquecer o Estado e impedir o desempenho de sua ação subordinadora específica.

Colide sempre com os interesses do Estado e os fins a que se propõe, a existência de uma população mais ou menos nômade e dispersa num território ilimitado aos seus movimentos livres.

Sobre um território impreciso e quase que variável, e que se dilata com prodígios de verdadeiro derrame populacional, o Estado ou não consegue constituir-se ou não vale mais do que um poder contingente e discutível.

Oliveira Viana em “Populações meridionais do Brasil” já havia notado que a expansão de nossa sociedade tem sido sempre maior do que a expansão geográfica do Estado.

“É geral, aliás, diz o nosso escritor político, em toda a nossa evolução nacional, essa sorte de heterocronia entre a marcha territorial da sociedade e a marcha territorial do poder, essa sorte de discordância entre os dois perímetros, o social e o político, por modo que este é sempre incomparavelmente menor do que aquele. Grande parte, senão todas as anomalias constitucionais do nosso povo se explicam racionalmente por esta grande causa geral”.

Essa “disparidade entre a área da expansão social e a área da eficiência política”, é, ao lado das antecedentes, uma das mais vivas causas deformadoras da ação estatal que as condições particulares e singulares da colonização brasileira poderiam oferecer ao curso histórico da implantação e do desenvolvimento do poder político no Brasil.

Mas, enquanto o velho fator da extensão territorial modifica, altera e orienta nesse ou naquele sentido a forma de produção e o estilo da ocupação do solo, criando uma peculiar maneira de organização econômica, em face da organização política ele age sempre como causa deformadora, quando não seja como causa impediente, sem antes modificar e variar apenas o processo, como fez ali no fenômeno econômico.

Três séculos de colônia com cem anos de independência, em meio de uma área de socialização tão intensa dessas rudes terras desérticas da América portuguesa, não bastaram ao Estado para lhe permitir assumir e desempenhar a sua tarefa de redução de homens e de grupos ao seu vínculo político.

Ainda que sobrassem ao Estado português, tão fraco no meio interno, espírito e poder para atender a esse desideratum, ele teria soçobrado, como soçobrou, na vastidão da terra colonial em que se perdeu, como todo impulso num terreno mole, sem consistência.

Diz-se que o segredo da invencibilidade do sertanejo, rebelado nas lutas armadas, consistiu sempre em não oferecer resistência aberta ao inimigo, em não ser visível, antes negando-se e fugindo, dentro da terra e da “catinga” aparentemente despovoadas, ao ofensor incauto que se encontra sob a necessidade e a impaciência dos avanços.

Ao Estado, como na realidade coube sempre à sua força armada, outra não foi a contingência que lhe criou e ofereceu uma sociedade rural, pastoril e desurbanizada, defendida pela floresta, pela catinga e pela distância, sobretudo.

As tendências anarquistas, ou melhor anti-politicas, de nossa sociedade são assim também de um tipo abstruso de anarquismo geo-social.

Já foi moda, entre nós, falar-se em influências cósmicas atuantes no homem americano. Se essa frase, porém, tem algum sentido concreto, ele está a palpitar dentro nessas reações e condições que o meio físico impôs ao homem e à sua organização social no Brasil.

A extensão territorial, ainda que a afirmativa tenha visos de paradoxo, impediu, assim, entre nós, digamos em termo de cátedra, a territorialização do Estado, condição de seu desenvolvimento e da própria implantação do seu poder.

Se mais de 2/3 da nossa organização social estão sujeitos à influência direta desse fator — extensão territorial — essa proporção indica, em sentido inverso, que só um terço, ou menos do que isso, do nosso volume populacional poderia e poderá concorrer, em parte, como elemento mais decisivo para a formação do povo que integra propriamente a nossa comunidade política dentro do Estado português ontem e do brasileiro hoje.

Realmente, se os óbices e impedimentos ao crescimento da organização política, na colônia e dentro da nação depois, proviessem tão só e exclusivamente de nossa imensa extensão territorial, a parte do grupo brasileiro que não sofresse imediatamente os seus efeitos, e essa parte seria a que ocupou e se fixou no litoral, estaria apta a receber e escolher, quando não estivesse já em condição de maturação para criá-lo, o processo de sua politização pela pressão e presença de uma metrópole, se infelizmente o Estado português, ao se transmigrar para a colônia, não viesse para ela com os seus males orgânicos e vícios e padecimentos inerentes ao seu próprio processo histórico-social.

Não se pense, apesar de nós próprios já o termos insinuado aqui, que a Coroa portuguesa se dispôs sempre a ignorar a sua colônia na América.

Se a própria condição de colônia, mais para ser explorada e enriquecer a Metrópole sequiosa, e se o conceito pouco apreciativo que dela poderia fazer o ciúme do reinol, eram elementos pelos quais haveria de sofrer o Brasil um tratamento justificadamente desigual na corte, a verdade é que, mau grado isso, por vezes em várias fases do seu colonato, a política portuguesa, buscando talvez um refúgio e destino históricos para os ideais de grandeza e segurança de um país tão ameaçado na Europa, como era Portugal, imprimiu à sua obra o desejo de fundar no Brasil um vasto império português. Se a consecução desse propósito esbarrava, como positivamente esbarrou, no receio de que, concorrendo para a fundação desse império, a mãe-pátria estaria, ao mesmo tempo, entregando à sua colônia os meios de alcançar a sua própria separação e independência, nem assim o governo da Metrópole deixou de atender em muitos momentos a esses desígnios mais profundos no ânimo dos seus reis e dos seus ministros. Já antes de D. João VI, a Coroa de Portugal havia deixado em vários empreendimentos e obras a concretização desse desígnio.

Não será, pois, pelo natural desleixo, imprevidência e desacerto de sua política no Brasil, que o Estado português deveu aqui os seus verdadeiros padecimentos.

Fraco e comprometido no seu poder já vinha ele de Portugal. A Igreja, por exemplo, lá estava a disputar-lhe jurisdições e prerrogativas e assim em porfia acirrada penetraram ambos no Brasil.

As terras da América, como todas de além mar, eram antes “terras eclesiásticas”, sob a égide do Pontífice católico e dos seus bispos. O rei de Portugal para mandar sobre elas, fazia-o mais por uma prerrogativa transferida. Era menos como Rei do que como Grão-Mestre da Ordem de Cristo, que presidia a muitos dos normais misteres de um chefe de Estado.

Com a soberania já dividida com os capitães-mores só lhe restava íntegra a função militar dos seus governadores gerais, que ainda assim haveriam de sofrer a concorrência dos exércitos particulares dos proprietários chefes de bandeiras.

A função disciplinadora, por excelência, aquela que cria elos e vínculos de respeito e obediência, quer de ordem moral, quer de coação física, cabia muito mais à autoridade e aos funcionários eclesiásticos.

A Igreja soube penetrar mais fundo no território colonial e no coração das almas do que o Estado português. Até onde não chegavam, mesmo em séculos subseqüentes, o termo e a vila, lá estava, como edificação dominante e senhorial, a Igreja, a matriz.

Como conviria ao espírito da época, agravado na índole da sociedade portuguesa, era em nome da Igreja, da sujeição moral religiosa, que se procurava fundir e caldear a sociedade colonial. Sentimento coletivo era o religioso, como religiosa a mística coletiva que poderia imprimir um certo sentido de unidade ao homem e a seu grupo aqui formado. O mesmo sentido moral a cuja sombra a nação portuguesa se forma com tantas singularidades no seu processo político.

Em nome da fé se fazia a catequese, a adaptação e utilização do selvagem. “O principal fim por que se manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica”, dizia o Reg. real dado a Tomé de Souza. Ainda que só para o selvagem se instituísse expressamente a obra das “reduções” jesuíticas, a verdade é que toda a empresa de coordenação e disciplina que o homem colonial encontrou nessa América se dirigia para a “redução” do seu espírito, do seu sentimento e do seu corpo ao império da potestas religiosa.

O português deveria ser, assim, menos o nacional componente de um Estado do que o crente mobilizado sob a bandeira de Cristo. Em nome da fé e pela fé ele empreendeu a conquista do Novo Mundo, ele o colonizou, ele construiu o que há e o que se fez na América, como em nome da fé ele mentiu e justificou a guerra ao índio — o pagão a que poderia escravizar. Pela fé, podendo ignorar que defendia a soberania de sua nação, ele ainda fez a guerra contra franceses e holandeses, como hereges de sua crença, sentimento que ele guarda até mais tarde como hostilidade a todo estrangeiro.

Era, pois, a Igreja que, além de oferecer o vínculo de disciplina mais eficiente da colônia, inspirava os ideais de congregação e de solidariedade passiva e ativa no colono. Mas, ela, se unia e congregava, não o fazia para um Rei, discutido portador do poder temporal. Que esse era o seu espírito basta vê-lo bem preciso e claro na obra da catequese do jesuíta, que representa, ainda que não a possamos nimbar sempre de pureza, o único esforço de hierarquia moral e de inteireza de justiça que essa colônia desenvolta e lúbrica ou amolentada e frouxa conheceu. Em todas as aldeias, “reduções” e missões que os jesuítas fundaram e mantiveram na América, o processo de catequese consiste sempre em formar verdadeiras colônias autônomas e livres da intervenção estatal, enquistadas no seio da colônia. Como não era o cidadão o que ao jesuita importava formar, mas o crente, com essa orientação ele se denuncia até na tolerância e respeito com que tratava e fazia tratassem o morubixaba — chefe militar e possível chefe político da organização índia — em contraposição ao vivo empenho em destruir e depor de suas funções, até com as armas do ridículo, o pajé, porque era o sacerdote de uma religião concorrente.

Sobre a colônia, como no próprio Portugal, regia um dualismo jurisdicional — o da Igreja e o do Estado — que é bem a vergôntea retardada do medievalismo no tronco do Estado e que se revigora ainda pelo alvará de 12 de setembro de 1564, que mandou adotar e observar os preceitos do Concílio de Trento em todos os territórios da soberania portuguesa.

Já antes, D. João III, para permitir que aos índios se dessem machados e outros instrumentos técnicos, como “facas pequenas” e “tesouras de dúzia”, criando exceção à proibição de se fornecerem armas aos selvícolas, teve que aguardar a dispensa que para esse fim solicitou ao Papa! Lá está no Reg. dado a Tomé de Souza.

Que de barreiras pequenas ou grandes deveriam impedir e comprometer a ação da política portuguesa!

E Igreja e Estado entraram no Brasil a discutir competências, a reivindicar jurisdição, disputar poderes, com grave dano tão só, porém, para o prestígio da Coroa, que vem vindo, já de longe, arrastando uma autoridade concorrente e concorrida, na hora histórica precisamente em que o poder real em outras nações encetou o ciclo do Estado Moderno.

Todos os nossos historiadores, desde os mais insuspeitos, registam o desenrolar dessa pendência pela conquista do poder entre a Igreja e o Estado na colônia.

Já na legislação estão os flagrantes e as feridas dessa luta. As cartas régias de 7 de maio de 1624, de 26 de janeiro de 1696, de 6 de março de 1696, de 17 de janeiro de 1699, de 6 de março de 1699 atestam, entre outras, a concorrência e os conflitos das duas jurisdições — a real e a eclesiástica, com o esforço despendido, quase sempre improficuamente, pelo Estado para defender a sua supremacia nos próprios limites estreitos a que se reduzira e constrangia o seu poder.

No Regimento dado ao governador Roque Barreto, a Coroa advertia e mandava que cumpria:

“Impedir que o bispo e mais eclesiásticos usurpem a sua própria jurisdição ou a alheia, guardando-lhes também da sua parte, e fazendo guardar a deles, pagando-lhes pontualmente as suas côngruas e ordinárias que para isso são os dízimos, usando com eles toda a boa correspondência ...”

O pior, entretanto, é que essa luta transfugia das raias do mundo oficial e das câmaras eclesiásticas para empolgar a população, que, assim, se dividia em partidos e facções dos bispos e dos governadores.

Essas brigas de bispos e funcionários reais da Coroa, por mais que se apequenassem em intrigas de campanário, maledicências de vizinhos e chalaças das ruas, passaram à história e sobre elas, detendo-se, a crítica provecta de um João Francisco Lisboa ou de um Capistrano de Abreu, achou coisa de alta monta com que fazer referências e comentários históricos.

Por vezes, principalmente no curso posterior do último século, o Estado vinga-se da Igreja, e a autoridade real, por um excesso que ainda evidencia o desequilíbrio entre os dois poderes, penetra na câmara eclesiástica para nomear bispos, requestar-lhe funções próprias de clerezia, mas a concorrência no mesmo plano de igualdade é o fato normal nas relações das duas ordens. O rei e o bispo chegavam a porfiar o direito de servirem melhor à Igreja, porque tão impregnado estava o Estado do sumo religioso que nem mais sabia prosseguir e atender ao intuito de diferenciação de esferas, a que deveu o seu fortalecimento e a própria existência no organismo social moderno.

Não será possível negar-se a repercussão da continuação dessa luta na alma popular de uma sociedade, ainda no período de gestação de sua crisálida política, que toda ela traz na essência e na determinante de sua própria evolução. Um futuro povo que cedo se afeiçoa ao dualismo de governos tão discutidos e negados entre si, que nasce, enfim, sob a concorrência de duas disciplinas, ambas se malbaratando nesses choques, cedo também vai se despreparando ou retardando o seu preparo à recepção do espírito gremial político.

Demais, resulta disso que uma Igreja em concorrência com o poder político acabaria insinuando no ânimo do seu clero o gérmen de uma rebeldia que pelo menos seria o próprio hábito desse dissídio.

O padre foi, assim, em toda a sociedade colonial, como no Império, um desajustado dentro da organização política.

Não era, como não foi, uma força conservadora, antes os primeiros recrutas do espírito revolucionário, a agitar ou a dirigir, como inconfidentes e cabecilhas, todos os nossos motins e reações políticas.

Se para essa indisciplina clerical concorre o próprio meio colonial e o despreparo moral e cultural desse clero, principalmente aquele que Pombal mandou formar e ordenar em poucos meses para enviar, com pressa, à colônia, indiscutível é, entretanto, que aquelas razões de luta formariam o próprio caldo de rebeldia contra o odiado poder político.

E quem avaliar sabe o prestígio e o papel de “leader” que ao padre sempre coube, como diretor espiritual e monopolizador das letras e da cultura do tempo, poderá compreender e, por igual, apreciar o valor de sua atuação social, tomasse essa atuação esse ou aquele desígnio.

Circunscrito à zona litorânea, por deparar-se com população mais fixa, densa e urbanizada, o Estado nem assim pôde assistir ao exercício tranqüilo e serenamente indiscutido dos seus órgãos e prepostos. Sofrendo a concorrência da Igreja que ajudara a nacionalizar o português menos para ele do que para ela, o Estado português encontra um nacional mais imperfeito do que saiu da Metrópole, mais anárquico do que nunca ao seu poder e hierarquia, além de ter de enfrentar um meio que, aos males próprios de toda colônia, lhe oferecia novos e irredutíveis obstáculos pela indisciplina e dissociação, que caracterizam, segundo o testemunho dos nossos historiadores, a nossa sociedade colonial.

Imagine-se o português do 1.°, 2.° e 3.° séculos coloniais que corresponde ao português dos séculos XVI, XVII e XVIII saindo da Europa e das viagens marítimas, tocado pelo demônio das Índias, com um sentido de liberdade e autonomia econômica que antes o homem jamais experimentara e conhecera, e penetrando depois na colônia, onde também se reúnem condições de liberdade e licença que homem algum encontraria sobre a terra, e ter-se-á a visão da passagem e da atuação do colono branco no Brasil.

“Individualismo infrene”, anárquico pela “volatilização dos instintos sociais”, cada qual tendo no peito a mais formidável ambição que nenhuma lei ou nenhum homem limitava... Como exclusiva preocupação viver e dominar...” (Paulo Prado — Retrato do Brasil — pag. 63).

Todas as forças conspiram pela livre disposição de seus passos e projetos, como pelo livre poder de classe e raça dominante sobre os mais indefesos e submissos escravos do mundo — o negro e o próprio índio.

Autonomia individual, autarquia de classe econômica dominante, hierarquia racial e supremacia de senhor de escravos, formam o complexo de condições que tornam o português colono mais refratário e hostil ao Estado do que o português reinol municipalista e familial.

Para ele, pela incapacidade persuasiva de um poder político pouco influente e desprestigiado, só havia, nos momentos mais dramáticos de crise, a violência física brutal a que recorre sempre o Estado fraco e negado. Governadores e Vice-Reis chegavam, assim, até à crise da violência para debelar ou atenuar a crise própria do fraco poder político que representavam.

Mas, a Santa Madre Igreja Apostólica Romana não viveu isenta dessa crise colonial nas suas “terras eclesiásticas” da América Portuguesa. Desde o primeiro século, os bispos e os padres se aperceberam que um homem mais solto e mais pecaminoso, para falar em termos de moral religiosa, cumpria-lhes pastorar e conduzir.

Homens de presa e cobiça, lúbricos, com fome de mulher que acabaram encontrando sempre dócil no amor rebaixado da escrava e da fêmea primitiva, sabiam e podiam aqui provar de todos os frutos do mal. A mulher branca só entrou no Brasil para casar com o colono e ainda assim em número reduzidíssimo para tão só os moradores principais da terra, no meado da século XVI.

Lutando contra os jesuítas, por exemplo, que lhes estorvam os crimes contra a indiada que conseguiam sempre escravizar, malgrado as leis que, ora hoje, ora amanhã, proibiam a sua escravização, que, entretanto, se manteve até 1831 quando veio a ter afinal golpe decisivo e sincero, os colonos brancos, os portugueses de D. Sebastião e Alcacequibir, só se acomodavam com o clero quando este de alguma sorte se acumpliciava pelo silêncio e pela tolerância, senão pelas mesmas práticas, com a sua desenvoltura.

Reduzidos embora à fé cristã, os índios das missões eram roubados aos jesuítas em lutas predatórias de crueza incrível, como aquelas que se deram no sul com os paulistas e no norte nas terras do Grão Pará e no Maranhão. De São Paulo, por exemplo, são expulsos os jesuítas. E nem a Igreja nem o Estado português nem a câmara municipal conseguem dissuadir os poderosos da terra desse intento. São eles mesmos entre si, por acordo, que acabam permitindo a volta dos loiolistas aos seus conventos e propriedades.

As vicissitudes da Igreja de Cristo, sob cujo signo e égide se dizia fazer o País, não ficariam só nos crimes e pecados que a cobiça inspira e açula. A incontinência sexual do português que é para nós uma causa menos étnica do que social, haveria de atormentar o clero colonial, se antes já não o envolvesse também na tentação da fêmea, a que se rende com ganas de labrego.

Persiste em nós a convicção de que a aptidão sexual do português não é maior do que a de outros povos louros ou mais ou menos louros habitando regiões mais frias do que a sua. A sua exacerbação, porém, que o tem levado a ser julgado mais lúbrico do que outros grupos étnicos, tem origem nas condições sociais e morais de sua organização.

A moral religiosa, sem poder suprimir nem castrar o impulso sexual, ainda que o desvie às vezes para a mística de certas freiras e padres, não consegue senão recalcá-lo para dar lugar a erupções escandalosas. O português que não podia dar vaza ao seu impulso natural, sem os tormentos da sanção religiosa, amava de qualquer forma pela maneira mais requintada da perversidade sexual, amava como pecado, mas amava sempre, amando até e por isso mesmo com mais volúpia e incontinência. Ou o escândalo dos desejos sopitados, ou a dissimulação, para continuar a render-se à libido, na forma hipócrita em que se baseou toda moral sexual do português, como a do espanhol, que sofreu a influência das mesmas causas. O próprio refrão contra a carne, ligada sempre à idéia de crime era outro apelo à imaginação sexual do macho e da fêmea oprimidos.

Na colônia, além desses fatores ético-psíquicos, vai desnudar e escaldar a lubricidade do reinol não a falta de mulheres, que nunca houve, mas a ausência da mulher branca.

A fêmea índia ou negra impunha ao colono uma outra regressão e volta às formas naturais e livres, próximas da promiscuidade sexual que as culturas primitivas podem oferecer, como forma de dissolução, para outras culturas diversas e superiores.

A mulher branca era o matrimônio, a forma socialmente organizada da relação genésica do europeu e forma superior em correspondência ao estado do colono branco. A sua falta na colônia eqüivaleu a um notável desequilíbrio da organização sexual do português. Esse fator social é muito mais importante do que os tais fatores étnicos e orgânicos com que se busca demonstrar a sexualidade do português nos trópicos. Por isso ele se desmandou em mulheres fáceis, fáceis para seus preconceitos, como a índia e a negra que amavam livremente, ainda que não fossem mais lúbricas e dissolutas pelo fato de serem apenas fêmeas primitivas. Elas, porém, de condição e moral sexuais tão diversas, seriam para ele o pecado em vez do casamento.

Já Nóbrega, escrevendo ao Rei, pedia-lhe mulheres brancas porque assim “os homens de cá apartar-se-ão do pecado”. E era esperto e sábio o conselho do bom jesuíta. Quando essas mulheres brancas vieram, porém, e em número tão escasso, já era tarde — o colono preferiu não mais escolher e selecionar, mas ficar com todas as fêmeas que encontrasse, em forma de poligamia, a que não foi estranho o próprio inglês inapetente na zona escravocrata da Norte América, segundo o testemunho de Gilberto Freyre.

* * *

O último século da colônia se inicia e se fecha à sombra do ouro. É o ouro que, completando e continuando embora a ocupação do solo, ia dar-lhe o sentido de sua moral e do seu espinhaço social. Nunca é demais acentuar as singularidades próprias da colonização do ouro e que menos do que o propósito confessado e piedoso de colonizar o Brasil “para catequisar o seu gentio”, foi o desígnio mais profundo, embora ímpio, que moveu desde o 1.° século a preocupação da Coroa em descobrir e povoar o Brasil.

A mineração agravou o estado moral da colônia, com acentuar-lhe o caráter aventuresco e aleatório das relações humanas, espicaçou a cobiça infrene, constituiu a sua época mais tumultuária, provocou desequilíbrios econômicos na atividade agrícola, ainda que fomentasse a pecuária que a sustentou, e criou, por exemplo, percalços mais duros à disciplina religiosa. Mas, diga-se que não agravou de per si as condições da organização colonial em face do Estado. Se este se apresentou mais despótico na fúria de seus impostos e na repressão ao contrabando, ou teve, enfim, que arcar com motins e revoluções tão graves como a chamada guerra dos “Paulistas e Emboabas” e como a “Inconfidência Mineira”, encontrou, de seu lado, uma sociedade mais densa, mais aglomerada, a iniciar o seu processo mais constante de urbanização, que são outras tantas condições prodrômicas de um processo político mais regular. Só a mineração, retendo por outra forma o homem, desruralizando, de alguma sorte, na vastidão do vice-reino, os seus núcleos, permitiu ao Estado maior penetração e um domínio menos inseguro no nosso hinterland.

Realmente, a corrida ao ouro deslocou o proprietário rural. Desenquistou-o do seu reduto. Se acarretou com isso, pela deslocação dessa massa e transmigração populacional de uma zona econômica para outra, uma crise, crise que é do latifúndio agrícola, por outro lado é um dos raros movimentos da colônia que consegue, de certo modo, abalar os eixos da organização feudal territorial, que se mantém sempre irremovível como forma de produção e de interesse.

É muito mais com o ouro e pela gana do ouro que o Estado português pode iniciar sertão a dentro a ocupação territorial da colônia. Data também dessa época econômica, como já vimos, uma prática mais sistemática da política portuguesa em proteger a cidade, a floração urbana no Brasil. Ainda assim são aquelas mesmas cidades fundadas antes por circunstâncias alheias à política portuguesa. Por isso que continuam a não obedecer a um traçado prévio de edificação, refratárias à linha reta, ao plano e ao quadrado, elas, como filhas da aventura que são, representarão antes o retrato fiel de uma sociedade sem o espírito urbano, que lhes é inimiga e que não as construiu porque viesse evolvendo melhor de suas bases anteriores.

Cita-nos Oliveira Viana exemplos de cidades formadas por imposição violenta das autoridades coloniais, que obrigam os moradores a construir cada um uma casa na vila, sob pena de multa, mas é o mesmo governo que, de outra feita, considera francamente revolucionário e prende por isso e castiga os moradores que fundaram vilas ou cidades, como entidades políticas, sem prévio pedido à Coroa.

O estado crônico de impotência da autoridade política vai continuar assim por essa época a “constante” colonial, porque está na inerência mesma de todos os fatores formadores e continuadores dessa sociedade.

Fraco para se impor, sempre irregular na sua política — e é mais um exemplo disso o mandar conquistar terras e proibir as comunicações entre as capitanias ou impedir a abertura de estradas para evitar o contrabando do ouro — alheio mesmo ao sentido histórico e aos rumos originais e inapercebidos do País novo que se criava menos por sua vontade e querer conscientes, o já comprometido Estado português, além de não encontrar na colônia condições favoráveis ao desdobramento de sua função, iria por todo o sempre lutar com a falta de necessidade mesma de sua presença, de sua função, do seu papel social no meio colonial.

Pouco importa saber se essa desnecessidade provinha de sua incapacidade, ou se lutou em vão por implantar-se, incapaz de vencer o meio hostil ou indiferente pela pré-existência dessa desnecessidade. O que é verdade é que, de uma forma ou de outra, como causa ou como efeito, essa desnecessidade era acentuante, fosse pela lei da causa e efeito, fosse pela lei de efeito-causa.

A sociedade que os nossos historiadores descrevem, como organismo eminentemente descontínuo, dispersivo e simplificado, composto de uma população tão difusa e por seu lado tão pouco ligado por vínculos e relações intensas e complexas, a ponto de um Saint-Hilaire ainda dizer mais tarde que “dans ce pays la société n'existe point”, podia prescindir do Estado, se este é, por excelência, a organização de centralização e controle dos meios densos e de população compacta na associação territorial numerosa.

Se à primeira vista podemos dizer que essa sociedade é desorganizada — e a expressão não tem nem procura ter valor propriamente exato — se tamanha dispersão, aliada ao individualismo infrene de seu componente, pode dar a impressão genérica, a grosso modo, de que a colônia não obedece a uma organização, como se possível fosse a qualquer aglomerado considerável, como o seu, viver como horda sem lei nem regras, uma reflexão mais demorada nos levará a retificar o conceito, para concluirmos que essa sociedade colonial dispersa, arquipelágica, móvel, inafixável, irrequieta, só é desorganizada, ou melhor, inorganizada, no sentido político. Sua indisciplina é propriamente política. É uma sociedade apenas anárquica por ser apolítica ou anti-política. “Uma terra em que nenhum homem é repúblico”, para repetir Simão de Vasconcelos.

Antes das próprias condições do meio, já a Coroa portuguesa preparara a futura colônia, a sua população, enfim, para prescindir do vínculo e da autoridade política. A sua organização feudal, inicial, a sua forma oficial de ocupação do solo, o incitamento que deu às primeiras bandeiras, pelo menos, a utilização constante, em todos os três séculos coloniais, dos exércitos particulares que, sem mesmo a ajuda do dinheiro público, desempenham todas as funções repressivas coletivas da força armada oficial, o cometimento, enfim, de todas as empresas oficiais ou oficiosas a particulares, sob os encargos exclusivos da fazenda particular de cada um, são causas, fatos e acontecimentos pelos quais se revela que o Estado português preparou, desde início, a sua colônia a viver sem ele e para prescindir dele, ainda que ele não prescindisse dela, pois, como bem acentua Gilberto Freyre, a atitude da Coroa, claramente vista, era “povoar sem ônus os ermos da América. Desbravá-los do Mato-Grosso, defendê-los do corsário e do selvagem, transformá-los em zona de produção correndo as despesas por conta dos particulares...”

Mas acrescenta que disso só poderia resultar “de vantajoso o desenvolvimento da iniciativa particular estimulada nos seus instintos de posse e de mando; de maléfico, a monocultura desbragada, o mandonismo dos proprietários de terras e de escravos. Os abusos e violências dos autocratas das casas grandes. O exagerado privatismo ou individualismo” (in Casa Grande e Senzala — pags. 274 e 275).

Ajunte-se a isso agora aquelas condições de meio físico, já aludidas, tão desfavoráveis à associação territorial típica que serve de base ao Estado superior e temos enfim que dar com os resultados já assinalados. Uma sociedade anárquica, ou sem hierarquia política, havia de ser fatalmente a colônia.

Quando no princípio do século do ouro, em começos de um processo de densificação maior da população e propensão mais urbanizadora da sociedade, os emboabas, organizados em expedição de guerra e em batalha, elegem o seu chefe e vaiam o representante do Rei, que não os pôde conter nem comandar, não fazem mais do que expressar a desnecessidade de outro chefe que não o seu próprio, que as circunstâncias habituais anteriores ou ocasionais daquela emergência lhes apontam e indicam. Eles são reinóis face a face com o nativismo paulista. Não parece que representem a rebeldia contra determinada autoridade política. Estão antes a traduzir a desnecessidade de todo e qualquer comando que não o das próprias condições de organização em que viviam.

Os paulistas, com Pedro Ortiz de Camargo à frente, mandaram um dia dizer ao governador do Rio de Janeiro que era desnecessária a sua presença em São Paulo. Já os pernambucanos expulsaram o seu 4.° governador, o Capitão General Jeronimo de Furtado Mendonça, para o Reino, depois de o prenderem.

* * *

Anárquica, sem ser porém desorganizada ou revolucionária, seja dito de passagem, a sociedade colonial tem, entretanto, uma outra organização sólida, indestrutível que é sua própria estrutura de base — é a ORGANIZAÇÃO PRIVADA.

Dentro dela, o Rei de Portugal, a representar um poder político ausente, longínquo, além de fraco e desnecessário, deve guardar, apenas, um papel e função de senhor eminente de terras. Senhor proprietário, sem a dominação direta e que poderia, além do mais, esperar dos seus vassalos o desempenho da função de governar, de guerrear e de zelar pela sua colônia.

Dizer, porém, que nessa sociedade colonial prepondera o privatismo, é muito pouco.

Alguns dos nossos escritores e historiadores tocam, de certo modo, nessas tintas. Vêm antes, porém, cambiantes, registam aspectos desse privatismo, chegam a afirmar a generalização do fenômeno, mas não o tomam como fato a sistematizar na interpretação e na explicação dessa organização social. Oliveira Viana, por exemplo, observa o fenômeno, mas já o esquece ou o abandona quando quer explicar tais ou quais tendências ou diretrizes de nossa fenomenologia social e política, que, aliás, encontra nele um dos seus primeiros e agudos analistas, a quem tanto devemos.

Pedro Calmon, que escreveu o livro mais representativo de suas qualidades de historiador, que é a História Social do Brasil, refere-se ao primado da família em nossa organização colonial, mas interrompe o curso de sua observação tão viva e brilhante, contentando-se com a conclusão, que deveria se contrariar no seu espírito, de que a família é o elemento primário e base do Estado (vide Op. cit. vol. I — pag. 104). É a tese tradicional a afirmar que o Estado provém do poder familiar. De Bonald é, fora da Igreja, o seu hábil sistematizador. No entanto, já o próprio Aristóteles havia refutado a assertiva, mostrando que a família diferindo do Estado por natureza e fim não podia chegar até ele.

Já antes, Oliveira Viana se denuncia aqui e ali no quase apologismo que faz da instituição familiar e da organização tribal e gentílica.

Gilberto Freyre expressa, entretanto, um pensamento e uma orientação precisa e permanente em torno do nosso familialismo. Ele, porém, que afirma que a “família, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social e político”, que mais adiante repete que o senhor de engenho “é o verdadeiro dono do Brasil”, que a “força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais”, acrescenta em seguida, a jeito de quem pretende restringir um pensamento, que “a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo o brasileiro”. (Vide Op. Cit. 1a. edição. Introdução — pags. XIX, XXI e XXX).

E o seu estudo, que é um marco em nossa cultura sociológica, é mais a análise da casa-grande de fora para dentro, procura ser mais uma história social íntima, ainda que nele esteja contida quase toda a nossa sociedade até ontem, do que a análise do papel que a Casa-Grande ou o nosso familialismo representou do lado de fora, no mundo político da colônia.

Refletindo, porém, o propósito claramente denunciado de ligar esse familialismo ao fenômeno político brasileiro, deu-nos Sérgio Buarque de Holanda um livro — “Raízes do Brasil” — que se lê divergindo e negando, por vezes, mas que se deixa cheio de idéias e rico de conceitos, como uma visão que se amplia. Já ali o fenômeno familiar é encarado como grupo social em oposição ao Estado, como o faz vitoriosa corrente so­cio­ló­gica con­tem­po­râ­nea.

O livro, porém, que não é propriamente um ensaio político, não chega a alargar e sistematizar o problema que não é o central na sua interpretação. É que Sérgio Buarque de Holanda visa, antes de tudo, o problema cultural brasileiro, fatores morais, psicológicos, para nos dar uma obra de mérito, como nos deu.

Nós, de nossa parte, queremos ficar, apenas, no ensaio político que vimos tentando até aqui.


CAPÍTULO IV

 

A família. O poder familiar. Unidade econômica — unidade política. A Casa Grande contra o Estado. O Estado apoiado na organização familiar. A organização privada des­cen­tra­li­zando e... unindo: uma resultante para a unidade nacional. Organização familiar e municipalismo. O paradoxo do município feudalizado. O exclusivismo do vínculo da domesticidade. A Igreja dentro da influência da Casa Grande — o centripetismo familiar. O escravo e o seu papel nessa ordem. Escravidão e domesticidade. A família do rico e a família do pobre. Porque diferem num mesmo sistema jurídico. O senhor que manda e governa.

 

O privatismo característico da sociedade portuguesa veio encontrar, no meio colonial brasileiro, condições excepcionais para o fortalecimento da organização familiar, que se constitui a única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu.

É mesmo o único centro de organização que essa sociedade possui. Tudo mais nela ou é desorganização, a indicar a transplantação difícil ou impossível de formas anteriores, ou está em via de organizar-se, sem tempo e condições ainda para processar-se definitivamente. Haja vista as cidades, o poder civil, a organização política nacional, a integração do País futuro.

A organização familiar, porém, transplanta-se com a índole própria da organização portuguesa, e aqui renasce em circunstâncias altamente propícias ao seu primitivo prestígio e força nas origens das sociedades humanas. Verdadeira revivência dos tempos heróicos ou, se quiserem, dos tempos feudais.

Como não é possível a sobrevivência de qualquer forma de associação sem um princípio de organização e ordem que a resuma e a explique, claro é de ver que a colônia, pela sua dispersão mesma, que tanto impressiona aos seus críticos e historiadores, pela forma de ocupação do solo com seus vínculos jurídicos e políticos, pela natureza de sua organização econômica — de caráter feudal indiscutível — essa colônia, enfim, porque assim era como sociedade e porque assim devera ser, haveria de resultar num corpo social de organização privada, tendo a família como centro econômico e político em torno ao qual vinha resumir-se e fixar-se.

Tipo de organização próprio a uma sociedade descontínua, a família seria no meio colonial a única forma de organização em correspondência com esse meio tão disperso, sem densidade e com uma população, que além de móvel, quase nômade por vezes, se distribuía por núcleos tão irregulares, como já vimos.

Sem unidade, à falta de grandes vínculos efetivos de associação e intercâmbio, esse meio só poderia favorecer a grupos fechados, exclusivistas, como o grupo familiar, que por sua vez haveria de dificultar e impossibilitar todo e qualquer processo de unidade maior a que pudesse propender essa ordem social.

A família portuguesa na Colônia brasileira, assim, resulta de três fatores, a saber:

1.°) da própria índole viva e preponderante que mantém na sociedade portuguesa;

2.°) das condições que lhe oferece a organização econômica, toda ela inoficial, particular e de caráter feudal que se inicia e desenvolve no Brasil com sentido antagônico e infenso ao Estado;

3.°) das determinantes do território extenso e ilimitado que já modela a forma de ocupação do solo e implica a forma de produção.

Na “volatilização dos instintos sociais”, que é mais uma frase do que uma sentença verdadeira, o português, ao emigrar para o Brasil, não deixou que lhe escapasse, na desagregação e retrocesso de que veio a padecer na Colônia, o seu profundo sentimento familiar, que seria, assim, o seu mais arraigado e irredutível instinto gregário.

Desenvolto e livre, como o surpreendemos antes, entregue a conjunturas tão favoráveis ao seu individualismo anárquico, o português colonial pôde assim trazer para a América a única trave forte de sua organização para iniciar a ocidentalização dos trópicos que sua raça ocupou.

Tudo mais pode cair em crise — o seu sentimento político, já fraco, o seu sentimento religioso, a própria organização sexual, o seu espírito moral, como o estilo de sua cultura e até a portuguesa língua neo-latína que esteve a pique de fundir-se na “língua geral”, mas a sua organização familiar e o seu familialismo, não.

Como portador e fundador de uma civilização na América, é com a família que ele pratica a sua mais perfeita transplantação. Ele viria improvisar o resto, como improvisado ele mesmo o foi em meio tão original, onde as coisas do ocidente europeu não nascem facilmente “de galho”. De galho, porém, aqui iria crescer e florescer a instituição familiar da primeira tradição romanística, sem modificações mais notáveis.

Pouco valem clima e regiões diversas, como fatores étnicos os mais díspares, para uma forma ou processo social, se novamente se reúnem aqui ou ali as causas que o determinaram alhures.

Se o português pode fundar a família no Brasil, porque esta é a melhor forma que acode à sua personalidade social, como ao seu temperamento gregário, não é para desprezar-se, entretanto, como simples fator acessório de seu sucesso no Brasil, as condições próprias e peculiares da Colônia e do seu sistema de organização.

Organização feudal e organização familiar se confundem em muitos pontos e convergem quase sempre para os mesmos fins. Há no fundo de ambos os processos uma natureza a identificar-se, como uma base comum, sobretudo se nós os encararmos nas suas resultantes econômicas e políticas. A família, por exemplo, que guarda posição dialética ao Estado, está, entretanto, na base da organização feudal. Família, propriedade e feudalismo é transcurso de um só processo. É precisamente na fase feudal que a família revela a sua índole institucional contrária ao espírito institucional político diferenciado. Dê-se força de governo e mando à instituição familiar e ela não se desdobrará até à fase posterior do Estado puro, desvia-se antes, desviando também o processo político, para uma forma de deformação que é o feudalismo.

No Brasil colonial temos a confirmação histórica desse processo social, o que mostra que certos conceitos típicos de formas sociais são mais teóricos do que reais, porque ainda que essa ou aquela forma de organização não obedeça a seus modelos clássicos, o que importa considerar, para reconhecer a sua natureza, é saber como se desdobra em suas conseqüências e a que fins acaba por atingir. Se o feudalismo brasileiro é atipico, se nele faltam certas resultantes, nem por isso deixa de denunciar a sua índole e natureza, quando age como força conseqüente na família e em face do poder político. Se do ponto de vista teórico, o feudalismo é o sistema que indiferencia e confunde o poder político com o poder familiar, a este resultado ele chega exaltando o poder familiar, com o enfraquecimento conseqüente ou parada de desenvolvimento daquele.

Sem outra forma de concorrência, era claro que a iniciativa privada seria a única fonte de economia social da Colônia. O poder oficial não só a deixou operar por si, como a estimulou e dela tudo esperou e exigiu. Deu-lhe por isso considerável parcela de governo e teve que suportar a usurpação que ela acabou por fazer já como conseqüência inevitável do seu ciclo e de sua autonomia.

O colono português, por sua vez, já por seu familialismo, haveria de desenvolver essa iniciativa particular em termos e forma de produção do grupo familiar que tinha assegurado, para o seu exagerado crescimento, três condições notáveis — a propriedade imóvel, a escravidão e a função política.

O território extenso, inocupado, determinando intensa atividade rural e a exigir povoamento e mando, dera ensejo a que a instituição familiar no Brasil pudesse desempenhar plenamente a tríplice função necessária ao seu prestígio e à sua força no organismo social — a função procriadora, a função econômica e a função política.

Tudo determinava, por exemplo, que a família Colonial fosse eminentemente prolífica e numerosa — a sua situação num meio de exclusiva atividade rural, a forma de economia de cooperação parental ou doméstica e as próprias exigências da função militar e do mando político.

Nesse meio, ela pôde crescer e estender-se, sem perigo de intercâmbios e reações com outras massas ou agrupamentos, como verdadeira autarquia fechada. Só o laço parental e doméstico definia e resumia a cooperação econômica e social. A senzala e o escravo ainda são termos de comunhão doméstica. Endogamiza-se quase e só se estende para alargar a cooperação até outra família, pelo laço parental dos casamentos cruzados, na tendência em fundir-se numa só, ainda maior e numerosa, para dar lugar a verdadeira tribo de coesão por parentesco.

A função econômica e a função política fizeram-lhe de logo agravar o seu agnatismo por espírito e organização, que vai explicar a condição de inferioridade e sujeição em que se encontrou sempre a mulher colonial e brasileira.

Como família que já vinha formada pela época, sob o império do homem ou dos homens como centro da associação, ela por isso exaltou a autoridade do marido, chefe indisputado, austero e orgulhoso, a mandar as mulheres, relegadas para a copa e para a cozinha, numa situação de quase menores e assim tratadas, como aos filhos, sob absoluto rigor e desprezo. A linha do parentesco só poderia ser efetiva quando provinha do homem e por isso é a mulher que perde, além de qualquer ascendência moral, a consangüinidade do laço de sua família, para adotar a do esposo, sem ter como transmitir o seu nome. Agnatismo parental e agnatismo moral. Um e outro determinando, se não implica, um patriarcalismo absoluto que transforma o marido, pai ou avó, num pater-familias, tão típico como o romano antigo.

A propriedade imóvel, o poder econômico dentro da “economia naturista” (Capistrano de Abreu), ou da economia tão só de consumo, a força guerreira que o bando numeroso dos parentes e domésticos lhe dá, tornam esta família de uma unidade notável, que ela, aliás, tudo faz para manter e agravar, guardando, por exemplo, indivisa a propriedade, ou, quando muito, dividindo-a na própria família, para que se resguarde o regime comunitário, não só antes como depois da extinção do morgadio. Porque esse é seu espírito e sua necessidade econômica, ela se defende contra a divisão e fracionamento da propriedade imóvel, como pode, hostilizando francamente o sistema jurídico oposto ao morgadio, que quisera perdurasse indefinidamente. Outra razão não explica melhor as dificuldades das partilhas post-mortem, a repulsa aos inventários familiares com que luta ainda entre nós a justiça civil, como a prática quase sistemática e generalizada no meio rural do Brasil de hoje, do cônjuge superstite, em sendo o varão, lesar os filhos ou constrangê-los a continuar na indivisão da meiação materna, sem entregar os quinhões hereditários. E verdadeiro senhor morgado acaba sendo o filho varão, em face da mãe viúva e dos demais irmãos e irmãs, da herança indivisa, se lhe cabe administrá-la ou geri-la.

A associação parental, pois, com o seu sistema comunitário, dentro do quadro fechado de uma unidade sob a base e centro do chefe varão, é característica desse grupo familiar, no qual é de ver-se constantemente verdadeira forma da “convention taisible”, de que nos rememora o tipo o velho direito francês, isto é, a solidariedade econômica, o trabalho em comum para uma produção também em comum, para todos.

Compare-se essa forma de associação familiar com a família moderna, a chamada família conjugal, porque é só constituída dos dois cônjuges e dos filhos quando menores, e veja-se como diferem. A família conjugal moderna é só procriadora. Associação mínima e reduzida, parte-se logo que os filhos cresçam e vão constituir novas famílias da mesma precaridade. Nela a função econômica é quase nenhuma. Quase não há cooperação doméstica, economia doméstica. A produção econômica se realiza fora do pequeno grupo. E nenhuma é a função política. Tão reduzido é o grupo que nem o homem chega a ser chefe, nem há o que mandar e dirigir. A mulher, por sua vez, à falta dessa necessidade de hierarquia, coloca-se num mesmo plano de direitos e deveres em face do homem. Família, enfim, de função exclusivamente genésica e de assistência aos filhos, quando menores. Tipo de família mais biológica do que social, não fosse o conjunto de certos direitos e deveres e relações de parentesco que lhe dá um caráter de fenômeno social. Schmoller vê nela um grupo moral, apenas. Tão pequeno é o seu valor de força econômica e grupo produtor na economia industrial moderna, como nenhuma sua valia para ponderar e intervir em qualquer forma de organização de governo, que ninguém se lembraria de proclamá-la base do Estado, claro como é que só lhe resta, na sociedade industrial e complexa de hoje, aquele papel de organizar a função genésica. Ao contrário, é o Estado que intervém nela como fato de maior significação, penetrando dia a dia mais fundo no interior da vida doméstica. (Durkheim).

A outra família, que a Europa já não conhece, a família que além da função genésica, detém a função econômica de grupo produtor e de grupo de mando, é mais do que um fator de ordem social, é uma ordem social própria pela multiplicidade e importância das funções que exerce e detém.

Como na organização tribal, ela é a base de todo o sistema social, mas este em vez de se apoiar nela, para constituir-se sobre ela, modela-se antes por ela e nela se enfecha. Não há outra ordem social porque ela é toda a ordem social.

Em dois momentos pelo menos é possível esse fenômeno — na sociedade de relação tribal ou na de relação feudal, com a variante apenas de que na tribo ainda não há ensejo para a diferenciação do processo político, ou constituição do Estado e, nesse caso, a função de mando se resume nas mãos do chefe da tribo que manda e governa, menos por um vínculo político, que ainda não existe, do que pelo vínculo do parentesco, ao passo que no sistema feudal, em que pese à constituição familiar e privada da ordem social, existe fenômeno político diferenciado, mas este ou tende a se confundir no poder familiar e do senhor proprietário ou coexiste fraco e limitado, em luta com aquele que quanto mais resume e modela o sistema social, mais o absorve e destrói. Ora, se o Estado, como já vimos, é uma hierarquia que há de excluir, na esfera de sua competência, outra qualquer, depreende-se que toda espécie de grupo com função de mando ou que venha a ter conteúdo político, a ele se opõe e com ele concorre.

É o que se deu no Brasil, com o regime capitanial, com a organização guerreira e expedicionária das bandeiras, com o proprietário da fazenda, com o senhor de engenho que resume, melhor que todos, as características de um mesmo fenômeno.

Dentro desse complexo social que se traduz e compõe de agnatismo parental e moral, de patriarcalismo exacerbado e de um processo econômico, político e militar de caráter feudal, se constitui toda a ordem social da Colônia em face do Estado e por isso contra o Estado.

A concretização material dessa ordem é a Casa Grande, a que já alude Capistrano e de que Gilberto Freyre faz o estudo notável que todos conhecemos.

A Casa Grande, porém, menos por seus aspectos de história íntima de uma sociedade, é o maior índice de uma organização social extra-estatal, que ignora o Estado, que dele prescinde e contra ele lutará, porque pode disputar-lhe a função de mando e disciplina.

Depois de enfeixar toda a atividade social da Colônia e de conter em seus muros e paredes o homem e sua atividade econômica, bastando-lhe completamente, porque o protege e constrange, ela surge diante do Estado, sem que mais nenhuma ordem ou poder se interponha entre ambos, pois que nada mais resta no território social da Colônia. Ou o que reste é mínimo para lutar contra ela em apoio do Estado.

E tão poderosa é essa ordem privada que o Estado há de resignar-se a viver dela e a apoiá-la por isso mesmo, até depois da transformação política da Colônia em Império brasileiro.

Essa Casa Grande, além de representar a ordem privada, em que a sociedade colonial deseja resumir-se, continua a desenvolver o espírito que lhe é próprio contra qualquer modificação que essa sociedade possa vir a sofrer.

É ela que impede a urbanização da massa populacional, já dispersa na vasta extensão territorial, é ela que defende a propriedade imóvel contra a propriedade móvel que vai dar surto ao comércio das cidades, e permitir a formação e ascenção da burguesia, como classe eminentemente comercial e anti-ruralista, bem como será ela que impedirá ou dificultará a constituição dos grupos regionais, ou esse regionalismo de espírito, sentimento, caráter e de usos e costumes que poderia ser agravado entre nós, pela falta mesmo de uma unidade nacional, se não fosse o acentuado fracionamento, a subdivisão dispersa que a família impôs à sociedade, proibindo-lhe outros círculos e relações que não fossem os parentais e domésticos.

Ela dividiu e dissociou tanto, que fora dela nem a região se permitiu aglutinar para comprometer a unidade do Império. Essa unidade, por isso mesmo, resulta muito de um desses paradoxos do espírito dissocionista familiar e privado. E é quando a cidade começa a preponderar sobre a Casa Grande, e sempre como um movimento do litoral contra o centro rural, que surgem os primeiros e únicos arremedos de separatismo entre nós. A razão é que, além do mais, tais movimentos de caráter político já se processam sob o influxo do espírito e do sentimento políticos que a organização privada da Casa Grande não possui. Se o sertão, a população rural de atividade agrícola e pastoril, empreende ou empenha-se nalguma atividade revolucionária, o caráter de suas revoluções, quando não é absolutamente apolitico, como Canudos, por exemplo, é antes um movimento de reação e desequilíbrio contra a implantação de qualquer autoridade política. Todas as nossas lutas sertanejas têm esse sentido, quando nós não lhe enxergamos o claro sentido econômico, de desajustamento de classe em face de uma estrutura econômica que lhe é hoje francamente desfavorável.

Esse meio rural, de caráter privado, de absenteísmo político, não faz nunca uma revolução política.

Os nossos caudilhos, como os chefes de capangadas que perduram na República, são ainda os persistentes redutos da organização privada, viciada de mando, ou com o sabor do mando, e em luta por conquistá-lo contra o Estado, seja ele qual for, desde que represente a máquina oficial com seus funcionários e prepostos.

Toda a paz dessa sociedade se assegura por um compromisso do Estado com a Casa Grande. Ele lhe transfere o poder que pode transferir, consente que lhe retire quase toda a oportunidade de interferência no governo da Colônia, enquanto ela, por sua vez, o apoiará assim, porque de acordo com o sentido de seus interesses. E enquanto não se rompe esse compromisso, ela é, por igual, a força conservadora da Colônia, anti-revolucionária, aliada do poder político. Mas a aliança que constituiu esse notável equilíbrio da Colônia e que explica a sobrevivência de uma sociedade eminentemente fracionária e tão pouco solidária, batida de tantos contrastes, essa aliança é uma retirada do Estado da arena social, ou a sua sujeição integral aos interesses da Casa Grande. Será bem uma reprodução para outras épocas daquela situação social que Fustel de Coulanges encontrou na Germania: “la famille resta plus longtemps forte, et l'État resta tonjours faible”.

Por isso, não precisa fazer revoluções, e, apesar de contar, mais do que o litoral, com a força material e econômica para as fazer, não só não as faz, como se opõe a toda e qualquer que possa levar a perigo o Estado, porque será contra aquele compromisso e equilíbrio.

Que outro não é o papel do Estado e a posição que ocupa nessa aliança ou conformidade de interesses, basta ver como se desenvolve no Brasil a organização municipal, por exemplo.

* * *

Se a organização municipal já não propendesse, como propende, para o círculo privado, viria a participar na Colônia do privatismo totalitário, digamos sem intenção, de sua sociedade.

Salientamos de logo que o português não pôde transplantar para o Brasil o seu municipalismo, a sua tão arraigada organização municipal, enfim, com a índole histórica da Metrópole. Se em Portugal a comuna é uma ordem eminentemente popular, formada do homem sem foro nem privilégios pessoais, se ela é a forma propriamente plebéia e viloa que se constitui com caráter anti-feudal e anti-aristocrático, se o município é, na própria linguagem comovida de Alexandre Herculano, o reduto das liberdades democráticas e o primeiro estabelecimento de uma ordem de maiores garantias populares, na Colônia, no Brasil, o município português é um contraste original e surpreendente de tudo isso. Devendo ser, como foi, a única ordem que iria permitir ao povo o exercício da função política e dar ao colono também a única oportunidade da classificação pública com o seu sistema eleitoral, de eleitor e eleito, nem assim o município logrou desempenhar o papel que a sua história e os propósitos da legislação oficial dele esperavam.

Foi sempre na Colônia e no Brasil uma ordem aristocrática e veio, o que é mais atordoante, resumir os interesses do senhor de engenho, do senhor feudal, do proprietário da Casa Grande. Ainda hoje, sem sentirmos a profunda contradição que a expressão encerra, falamos e aludimos a feudos municipais, expressão que bem traduz, aliás, o caráter e a fisionomia do município brasileiro, cujos órgãos se instituem e são exercidos pelo senhor proprietário, que estendeu até ele o poder e o espírito de sua organização econômico-política. Comentando para os nossos dias o município na constituição de 91, bem diz o professor de Direito na Baía, Jayme Junqueira Ayres, que

“o município célula democrática é apenas uma velha locução de compêndio, um tropo das arengas eleitorais. Na realidade, é um feudo onde se instalou um senhorio partidário com fumos de aristocracia, extremado e meticuloso na maior parte das vezes, em conservar esse feudo fechado a toda estranha influência generosa e civilizadora...” (Comentário ao art. 68 da Constituição — pag. 52).

Nesse município feudalizado, compõem as suas câmaras, ou o senado de suas câmaras, os senhores de engenho, os nobres da terra que reivindicam verdadeiro privilégio de serem os únicos eleitos. A massa informe do povo não participa dessa comuna, porque esse povo não existe nem poderia existir para constituir a associação comunal.

Esta comuna é apenas uma assembléia do senhoriato, não desce a acolher o vilão, o homem do povo, o artesão nem o pequeno burguês do comércio. O comerciante da cidade, a futura classe inspirada de outro espírito civil e político, está proibida de entrar na organização municipal, isto é, de ingressar no seu senado, ela, que estaria mais do que qualquer outra apta a desenvolver o espírito público. Está, porém, impedida pelo senhor de engenho e, o que é mais, proibida por lei. O Estado mantém a sua aliança com a Casa Grande. O comerciante é muito mais o reinol, o português de espírito metropolitano. O Estado deveria contar com isso, como esperar desse nacional, como tipo urbanizado, um outro apoio e terreno para a implantação do poder político, mas nem assim ousa contrariar o senhor proprietário rural. Há lutas. Vence, porém, o senhor de engenho. Luta de classe tipica — proprietários rurais contra negociantes. Luta do campo contra a cidade. Olinda contra Recife.

E as câmaras e os seus senados, iludindo o espírito municipal e dando uma demonstração falsa do vigor do sistema comunal, lutam como corporações dos senhores contra os governadores gerais, tanto quanto representam estes um preposto mais intervencionista do Estado, porque este enquanto for apenas a Coroa, mais simbolismo do que poder efetivo, convive, sem subordinar, no meio colonial. E a Coroa por isso tolera e transige e assim nunca é atingida diretamente pelas injúrias da rebeldia.

Oliveira Viana, que começa aliás um capítulo de impressionante estudo a respeito de nossas instituições municipais, com a afirmativa absolutamente desprevenida de que o nosso meio social é hostil à solidariedade pública, como à solidariedade privada, mostra como o latifúndio fazendeiro deformou a instituição municipal, núcleo, apenas, de caudilhismo territorial, ou corporação de potentados, e assim pela sua “formidável função simplificadora” do meio social nem a própria vicinagem permite formar-se como primeiro rudimento da vida pública. (Op. cit. Capítulo — “Instituições Municipais” — passim).

Envolvendo, desse modo, a organização municipal e lhe imprimindo o seu espírito privado, depois de descaracterizá-la historicamente, a constituição familiar denuncia bem claramente a sua posição em face do Estado ou o papel deste junto a ela.

Mas, o centripetismo dessa Casa Grande vai adiante. O meio colonial não pode conhecer outra ordem, outro centro de convergência de atividades. A ordem privada quando não os destrói, deforma-os inteiramente.

Seria perfeitamente lógico que em meio apolítico como esse, se desenvolvesse à maravilha o corporativismo de classes, se essa sociedade não estivesse toda ela enfeixada e resumida dentro dos limites da propriedade imóvel particular. E por isso, realmente, a Colônia não conhece exemplos dessas associações profissionais, núcleos sindicais dos “guilds” medievais. Nem só a economia doméstica indiferençava a produção e o trabalho técnico, como não permitia, fora da domesticidade, outro vínculo de associação. Não há na Colônia corporações civis ou de ordem econômica, daí, como de resto em tudo mais, essa ausência do espírito associacionista do clube, do grêmio social que faz e constitui o que se chama a “vida social” de uma sociedade. Essas associações e grêmios são sempre de caráter religioso e é sob o elo da associação religiosa que se formam algumas corporações profissionais, dando assim a falsa idéia de grupos profissionais nascidos à sombra da Igreja, quando esta, como na Idade Média, foi comunidade proprietária e desenvolveu considerável atividade produtora econômica, de que é exemplo o próprio Portugal.

Sob a invocação de santos padroeiros, pedreiros e marinheiros etc. formam por vezes associações religiosas mais ou menos rivais, para melhor emulação do devotamento aos seus paraninfos santificados, e sua atividade é mais desperdiçada nas galas processionais dos grandes dias de festas agiológicas, do que na assistência a pessoas, bens e interesses que acaso representassem.

A Igreja, entretanto, essa dominadora Igreja, senhora de jurisdição civil, entra também para o ciclo de convergência da família e torna-se culto privado, ordem também privada, para melhor corresponder ao único elo de aglutinação entre os homens. Se isso de alguma sorte, tanto quanto atenda à sua índole anti-estatal, é natural decorrência do seu espírito dialético ao Estado, e se por outro lado não contraria a ordem sentimental que desenvolve no indivíduo, representa, apesar de tudo, a vitória do centripetismo familiar incompatível com a hierarquia que ela precisa deter como órgão de sanção e disciplina. É a Igreja, não há dúvida, a maior força penetrante, intervencionista, com que se depara essa ordem privada, mas a Casa Grande consegue transmitir-lhe o seu estilo e a sua fisionomia. Já Gilberto Freyre mostrou esse fenômeno na subordinação da Capela à casa senhorial, do capelão domesticado, girando em torno do engenho ou da fazenda, perigo de que Antonil advertiu ao padre, em nome dos próprios zelos da Igreja. Gilberto Freyre vai mais adiante, observa verdadeiros sinais de culto paterno, a jeito de religião de deuses lares, como se a família viesse a propender para a sua antiga função religiosa de grupo de seita.

É, porém, a Igreja, ainda assim, a única ordem que consegue, por vezes, preencher o espaço vazio entre a família e o Estado no território da Colônia. De alguma sorte, ela representa um sentido independente, sai fora dos muros da ordem privada e edifica a sua casa, a matriz, que acaba por abrir ensejo a uma atividade externa que terá que ser o primeiro movimento em prol da associação extra-familiar, como processo de caráter em via de urbanização e que constituirá a freguesia, futura comuna e mais tarde a própria vila. Este centro de deslocação que é a matriz, em torno da qual vai se aglutinando uma população e crescendo o casario, não só é a forma normal ainda hoje no interior do País de surgimento de muitos dos núcleos urbanos, como a única e exclusiva convergência dos homens para um serviço fora da unidade doméstica. Sucede ficar, porém, essa tentativa muitas vezes na só edificação e no serviço religioso. Capelas perdidas no meio dos ermos agrestes, com função ancilar de cemitérios, ou nem isso, um cruzeiro, apenas, acabam por ser o único marco a revelar o esforço de uma comunhão difícil e intermitente.

Não é comum, entretanto, dissídio entre a religião e a família. Elas se associam antes, para guardar e continuar o espírito dessa ordem social que, resumida embora no engenho e na fazenda, nem por isso traduz sempre a preponderância da família sobre a Igreja.

A religião católica tem uma predileção especial pela criança e pela mulher, como centros mais aptos à sua influência moral e pedagógica, para atingir ao fim de sua tarefa de ortodoxia.

Religião mais feminina do que masculina, no Brasil pelo menos. Os homens entre nós sempre praticaram um catolicismo modificado pelo que eles reputam dignidade e diferenciação de sexo. Comungam muito menos do que as mulheres e as crianças e não se entregam ao culto externo e às práticas exteriores de fé e crença, com a mesma facilidade e desembaraço, por um sentimento que a própria Igreja combate e chama “respeito alheio”. Hostis, por igual, às demonstrações de obediência e humildade, não se sentem prontos ao beija-mão ao sacerdote nem ao ajoelhar contrito e respeitoso, mesmo nos atos religiosos. Como igual preferem tratar ao padre cura que, aliás, é o freqüente parceiro benevolente e acomodado da mesa, do jogo e das disputas políticas.

Se nos grandes centros do País, como o Rio de hoje, impressionam certas demonstrações de fé masculina, a ponto de ali se ter a impressão de uma maior religiosidade do que, por exemplo, na Baía, que é uma cidade de outra tradição religiosa, o fenômeno parece comprovar que só o Rio e poucas cidades do sul começam a escapar a esse verdadeiro uso ou costume religioso, que é generalizado pelo Brasil afora. Como se explica, porém, variante tão interessante e tão notável de nossa prática religiosa? Desigualdade de cultura entre os dois sexos, de modo que o masculino estaria mais próximo senão do agnosticismo, pelo menos de um espírito crítico mais apurado? Não parece verossímil essa hipótese, não só porque não está demonstrado esse desnível de cultura, pelo menos no meio rural, nem a população carioca de hoje, por exemplo, deixará de ser a mais culta, como é, do País. A explicação do fato está, por certo, na própria natureza do nosso privatismo, na posição de relevo e importância que o senhoriato colocou o homem no Brasil, dando-lhe e atribuindo-lhe o mando e a dignidade de chefe, de que ele não se despoja, ao contrário continua a manter nas oportunidades do culto religioso doméstico. Se ele não oficia nesse culto, a ele comparece sem perder a sua qualidade de dono da casa, de chefe da família, proprietário da Capela onde se diz a Missa, protetor da religião, seu maior contribuinte e pagante generoso. A nossa ordem privada é apanágio do varão, do orgulho masculino, do mando e da hierarquia do marido e do pai. Uma Igreja associada a essa ordem não consegue modificar essa moda ou estilo religioso do varão. Sem ferir o orgulho que o senhoriato infunde, ela se volta por isso com mais freqüência e tato sutil para a mulher e a criança e obtém por ambos, sem tocar na hierarquia da Casa Grande, atingir ao homem. Nas grandes horas de emoção e sofrimento ele chega até ela, pagando-lhe, pela vida toda, o preço da humildade e do arrependimento contrito.

Onde quer que toda seita ou Igreja tenha o direito de ter a criança em suas mãos para educá-la e imprimir-lhe a continuidade da sua crença, não haverá conflitos. E nisso essa ordem privada foi magnânima com a Igreja.

Com a mulher e o menino, o próprio colomi do índio, a religiosidade entre nós adquire, porém, tal expressão sentimental de que jamais se pôde curar, pelo rigor da disciplina intelectual, o catolicismo brasileiro. Jamais conseguiu intelectualizar-se nem adquirir a severidade da sua própria disciplina moral.

A mulher, demais, encontrou na Igreja uma fuga para a sua condição de inferioridade social na família despótica do pai ou do marido.

Mais dos costumes do que das leis, essa inferioridade da mulher chega a denunciar uma tirania de sexo exercida sobre o outro. Rebaixada no tratamento e no conceito, de que o nosso folk-lore e a paremiologia dão exemplos flagrantes, a ela se negou qualquer iniciativa e liberdade, como qualquer papel diretor na nossa ordem privada. Reclusa em casa, como nos conventos que chegaram a provocar verdadeira desproporção de sexos, pela superlotação de meninas recolhidas à clausura (Pedro Calmon), a mulher, entre nós, durante o predomínio econômico e social do senhoriato, sofreu verdadeira degradação em casa, na rua, até onde não ia senão raras vezes, na mesa, nas vestes caseiras e mundanas, na conversa de que quase nunca participava, donde lhe ter advindo um caráter de soturnidade e timidez que a desfigura como a uma escrava, no meio de tantos recalques e proibições. O sentimento do macho, o seu ciúme fundado numa moral sexual de profunda desigualdade deram à mulher, sob esse senhoriato, uma tal situação de aviltamento que só não foi mais sentido porque a própria vítima aceitava a legitimidade dessa moral compressiva. Ela, por isso, como a criança aterrorizada, forneceu as fisionomias de tristeza da Colônia, de que tanto se exagera, entre nós. Tristeza, porém, familiar, do casarão sombrio, limoso, com camarinhas fechadas, inimigas do sol, e não traço orgânico do brasileiro em geral.

A autoridade patriarcal chegou a confundir severidade com tristeza, silêncio com respeito, gestos tardos com dignidade pessoal e esse é o seu traço fisionômico que, como única vantagem, trouxe a de atenuar a ênfase verbal, a elasticidade facial e a mobilidade nervosa do brasileiro irrequieto.

Desse misoginismo social não padeceu só a senhora branca do sobrado ou da Casa Grande. Já a mulher índia se encontra em face de uma ordem que lhe é absolutamente desfavorável, na qual parece pré-existiu até verdadeira rivalidade sexual ativa, de que seja ainda exemplo aquele rito misterioso e secreto que o jovem macho tem que participar, como iniciação da puberdade, e de que Gilberto Freyre nos faz, na sua obra que vimos citando, uma descrição tão sugestiva. Enfim, essa sociedade não foi inteiramente inimiga da mulher, ainda que a procurasse com verdadeiro delírio erótico, porque já a negra traz de sua cultura africana, ou pelo menos aqui soube conquistar, assinalável prestígio social entre os de sua raça. Ela é chefe de seita, mãe de santo e de terreiro e conseguiu fazer-se, assim, centro de uma ordem e de uma autoridade. Feiticeira e sacerdotisa, ela chega ainda, em face da paternidade incerta e promíscua nas devesas da escravidão, sem os luxos do matrimônio monogâmico, a exercer um rudimento de matriarcado de quem não tem marido nem homem para mandar-lhe em casa e cuidar dos filhos, que estão exclusivamente às suas costas.

Com esse domínio sobre a mulher e a criança, a Igreja pôde, sem conflitos, penetrar nessa ordem privada e estender-se pela sociedade da Colônia, obtendo perfeita adaptação de sua hierarquia, sem incomodar nem ser hostilizada pelo senhoriato.

Religião em família ou apenas das grandes festas públicas para edificação e divertimento de um povo, sem vida de comunidade social, que estava sempre a exigir mais padres, que eram por isso ordenados até em poucos meses, para atender aos múltiplos misteres de jurisdição e de culto.

A Igreja, porém, devia estar em toda parte e por falta de padre lastimava-se, por exemplo, Domingos Jorge não poder fazer-se ao largo do sertão com sua bandeira. E por ele, como funcionário obrigado de sua expedição, teve que esperar impaciente como um capitão aborrecido. O capelão da bandeira como o do engenho definem muito bem a situação e a posição da Igreja nessa organização social privada. Um e outro não podiam desfrutar posto de maior relevo do que o chefe expedicionário e o senhor de engenho. Restavam, porém, os bispos. Estes, entretanto, não concorriam com a Casa Grande, lutavam com o Governador Geral ou com o ouvidor-mor numa esfera além dos domínios privados.

Modelando assim toda a sociedade brasileira pela fisionomia que lhe é própria, essa ordem familiar não poderia desempenhar função mais relevante e de padronização do que na estrutura econômica desse organismo social.

Tal como é, a família senhorial representa a propriedade imobiliária e nela se alicerça, impede o regime de troca comercial pela ausência da riqueza móvel, como evita, quase estaríamos a dizer, a divisão do trabalho social, unificando e indiferenciando toda a produção e toda a técnica de produção, por contrariar a especialização do profissional e a formação das classes profissionais. Ela foi desse modo contra o negociante e contra o artesão. É precisamente como unidade econômica que a família proprietária e produtora simplificou e reduziu o meio social da Colônia e a zona interior do País, rarefazendo ainda mais a sua população e as relações que intensificam os homens e as classes que os comportam.

Absorvendo todo o trabalho social, como grupo produtor e consumidor, a família continuou nessa ordem econômica o seu eminente papel redutor da vida e da atividade da Colônia. É ainda nesse sentido que podemos repetir Capistrano e Pedro Calmon, quando afirmam que entre a família e o Estado não havia mais nenhuma ordem ou círculo de atividade nesse meio colonial.

Se afirmarmos, porém, que ao lado do grupo familiar outras esferas de atividades conseguiam, apesar de tudo, desenvolver-se, acrescentaremos que elas existiam apesar da família, porque mais uma vez essa instituição familiar desenvolve o seu espírito de resistência e luta contra o deslocamento do seu centro de unidade e absorção. Contrária ao negociante e ao artesão, como à formação de uma classe média, enfim, que se desdobrasse mais além do vínculo doméstico, a família se opôs à formação da cidade, à urbanização da população, sem ensejo que esta ficaria de erguer-lhe um ciclo econômico autônomo, tão poderoso como o seu.

Mais uma vez a economia familiar, representando toda a economia social, armava o espírito privado contra a prevalência do espírito público de que toda organização citadina deve nutrir-se.

Na família e no campo, onde esta crescera e tinha possibilidade de expandir-se, é que se encontram as bases, o eixo e o centro de gravitação dessa sociedade. Vida familiar-vida agrícola, vida agrícola-vida familiar. Nesses termos se equacionam a vida, a morfologia e o espírito da Colônia brasileira em três séculos de fundação de uma sociedade no Brasil.

* * *

Já é tempo porém de trazer ao primeiro plano desse estudo o fator, aliás inesquecido, da escravidão.

Quem quer que repare a posição que a escravidão ocupou no Brasil e deseje situá-la na esfera própria onde ela encontra o seu sistema de inferência e atuação, não a vê nem a coloca senão na família e dentro da família brasileira. Toda a formidável influência que exerceu em nosso meio é por via da instituição familiar que ela a exerce e revela. Não diremos pouco, por conseguinte, afirmando que a nossa escravidão é uma forma de escravidão doméstica, ainda que essa seja a forma mais ou menos normal de apresentação da escravidão histórica e moderna, principalmente. Pondere-se, porém, que outra poderia ser a sua forma, se outro fosse o regime econômico e político do Brasil escravagista.

Se o País, por exemplo, se dedicasse de preferência à mineração, ou ao pastoreio, ou fosse mais um povo de atividade mercantil e navegante, outra seria a posição do escravo nessa sociedade, como de outra forma atenuada o caráter de sua influência no seio dessa sociedade.

A escravidão brasileira foi eminentemente caseira e constituiu a maior força em que se apoiou a instituição familiar para desenvolver a sua economia própria, esteio de sua unidade e do seu centripetismo. Se ela pôde exercer o poder que exerceu, indiferenciando classes, decompondo o poder político e reduzindo todo o organismo social à sua ordem privada, deve-o indiscutivelmente, em magna parte, à força e ao vínculo do patronato. O escravo que bastava ao senhor era a condição, ou melhor, o trunfo econômico de que dispunha este para impor o estilo do domínio social e econômico que o fez procurado e obedecido — domínio que constrange e subordina os demais homens livres, que não participam do senhoriato, mas que, por sua vez, constitui a única força de proteção e amparo a que o fraco era forçado a recorrer. Além dos filhos e dos escravos, a pequena classe dos livres, sem especialização profissional nem poder econômico autônomo em face da propriedade senhorial, constituía o mundo dos agregados mais ou menos vinculados ao engenho ou à fazenda, lavradores de “cana obrigada”, numa incipiente forma de servidão da gleba, rendeiros, meeiros, “sitiantes”, vaqueiros de “quarto” ou “terço”, formando pelos laços da sujeição econômica e da proteção moral e política, uma verdadeira clientela para maior tipificação desse patronato.

Este elo de sujeição e proteção vai constituir uma das grandes bases de solidariedade da grande massa rural em torno dos chefes senhoriais, reforçando as fontes do caudilhismo ora conservador ora turbulento, conforme se mantenha ou rompa o compromisso entre o Estado e essa ordem privada. Mas, a só organização rural, o predomínio dos direitos senhoriais sobre a terra, não bastariam para explicar o prestígio do patronato. A escravidão é que aviltando o trabalho para os homens livres e o absorvendo, vinculou essa massa, mais ou menos desajustada, à orbita da Casa Grande ou à propriedade latifundiária, impedindo-a ou de diferenciar-se em classe profissional, cujo rumo seria normalmente o da cidade, ou de constituir-se em proprietária de terras, permanecendo no campo. Mas, nem pôde impor-se como classe profissional distinta nem continuar a atividade agrícola, como detentora da pequena propriedade, porque esta não é só difícil, é impossível nesse regime econômico e dadas as condições físicas que determinavam a cultura agrícola, a que já aludimos em capítulo anterior.

Aliás, a força do latifúndio não reside na extensão da terra mais ou menos de fácil aquisição, mas no número de braços de que possa dispor para atender às exigências das culturas extensas. A pequena propriedade não pode florescer nesse regime porque lhe falte terras para ocupar, mas sim porque é improdutivo todo o esforço dos que só dispõem de poucos braços.

As grandes culturas extensivas exigem além de grande ocupação do solo, grandes exércitos de trabalhadores — daí os grandes domínios e a grande força de quem os possuísse. Se pela sua facilidade de aquisição, a terra não podia impedir a implantação desses domínios, o seu único óbice seria a carência e o preço do trabalhador, se a escravidão não estivesse pronta para atender a toda exigência de braço humano para o trabalho.

Como instrumento de produção, era ela quem assegurava ao proprietário o poder de ocupação e exploração à larga do solo. Sem ela, por isso mesmo, era inútil a ocupação maior ou menor desse solo. O homem livre, pois, para continuar livre só tinha um meio — ser senhor de escravo. Ou isso ou continuar a ser o cliente da Casa Grande, porque não é possível a existência do proletário livre onde há o proletário escravo. De igual modo, se o escravo exercia as funções do artesanato, este perdia imediatamente a possibilidade de sobreviver livre ou de, pelo menos, constituir considerável classe independente.

Esta organização econômica, pois, só tinha dois pólos — ou o do senhor de escravo ou o do escravo.

Mas, o que cabe salientar é que ainda aqui mais uma vez as condições da ordem privada brasileira determinavam a única forma desse senhorio sobre o escravo. O senhor de escravo devia ser antes o senhor ou chefe de uma comunidade doméstica. Na família escravocrata se o senhor é o centro, o escravo é a sua base. Na família brasileira o escravo não tem função fora dela. Não se o vê, a não ser na mineração, empregado em grandes empresas públicas, nem há, em regra, quem os explore por empreitadas a terceiros. Poderia ainda, pela sua aptidão ao trabalho mecânico, de técnica tão rudimentar como a da época, formar facilmente grandes colegiadas de artesãos, a serviços de seus senhores. Nem isso. Ele está integrado na comunidade e na economia domésticas e sobre ele se edificam a Casa Grande ou o sobrado, o engenho, as grandes fazendas agrícolas do sul e o seu número chega, por vezes, a se elevar a mil ou mais que isso, nesses grandes latifúndios. Só a família Breve possuiu, ainda no século passado, 12 mil escravos! Se profunda é a distância entre o senhor e ele, a própria promiscuidade da comunhão familiar abria-lhe o ensejo de uma proximidade que é a grande causa de sua influência na sociedade branca brasileira, A mistura se fez melhor por isso, como a fusão da cultura por igual razão. E a mulher negra, na cama e na cozinha, desempenha outra vez a função central que lhe cabe, ainda que escrava, no meio dessa organização tão desigual para os de sua raça e condição servil. Influência moral, cultural, como as eminentemente técnicas e artísticas.

Acreditamos que a influência da cultura, principalmente técnica, do índio é maior no povo do que a negra, mas esta, sobretudo, é mais profunda e atingiu à classe mais alta, a do senhoriato aristocrático. A do índio todos a absorveram diretamente — a sua agricultura, os seus produtos agrícolas, os seus processos culinários, os seus alimentos, a sua viola, a sua rede, a sua paliçada como os seus instrumentos de trabalho. O maior alimento nacional é do índio. Mas, utilizando-nos do que o índio podia dar, esquecemos o índio, ou o assimilamos menos como elemento humano do que seria de esperar em face do patrimônio que nos deixou.

O negro, ao contrário. Ficamos com ele no espírito e no corpo, mais do que parecia prever sua situação aviltada de escravo. Dignificamos o índio, tratamo-lo melhor, chegamos a reconhecer que ele transmitia uma certa aristocracia de sangue ou de origem, mas nem assim pôde preencher um papel sentimental tão íntimo e cordial como o negro. O negro se dá ou nós o fundimos no branco com outra liberdade e abundância. É ele propriamente que fica conosco para misturar-se conosco. O outro dá o que tem e desaparece ou fica alheiado, ainda que presente. O negro acompanha-nos sempre e só desaparece para misturar-se melhor. Essa superioridade do negro sobre o índio se não provém do seu próprio ser social será talvez apenas a primazia do escravo doméstico que o índio não foi ou não soube ser, como o africano escravo.

O índio é ainda o homem livre, a raça conquistada e destruída. Deixou-nos a sua cultura e morreu. Viverá por ela. O negro deixa de ser o africano original. Modifica-se até organicamente (Gilberto Freyre), mas vai ficar e permanecer nessa sociedade, como um dos seus elementos mais vivos.

Foi, porém, a domesticidade que lhe deu esse primado sobre o índio, mais distante, taciturno e “introvertido”. A domesticidade lhe permitiu influir na sentimentalidade do nosso meio social, carregando-o de atributos psicológicos que se não são do africano, são do escravo, ou, melhor, da escrava negra, que é, depois do senhor e da senhora, a terceira pessoa na tripeça de criação do brasileiro.

O negro foi, assim, a maior fonte das chamadas “virtudes negativas” do caráter do brasileiro — a bondade, a sensibilidade comovida, o gosto do perdão, da acomodação, da transigência, do desprendimento, virtudes que não exigem violência de sentimento, antes decorrem dessa sensibilidade à flor da pele. O português e o africano escravo se identificam nessa fronteira sentimental comum.

Não deu, entretanto, ao brasileiro nenhum elemento das virtudes positivas — a energia de querer, o sentimento de justiça rígida ou o ódio justiceiro, a inteireza da conduta impessoal, a objetividade de ação.

Cúmplice do nosso privatismo sentimental, o negro ainda mais concorreu por que o brasileiro esquecesse de que podia ser um cidadão.

No extremo oposto, o senhor, quando não se deixa render pela influência insinuante do negro, busca nele o ensejo para exercer o seu gosto de mandar, desenvolvendo o complexo de autoridade e de subordinação, inconciliável com a disciplina espontânea do obedecer. Esse orgulho íntimo de império é bem aquele “gosto de mando” de que nos fala Gilberto Freyre:

“gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada política ou de administração pública, ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo o brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho” (pag. 80 de “Casa Grande e Senzala”).

Por esse gosto de mando é que ele reluta ainda contra o deslocamento da autoridade de outro centro que não o seu. O sentido de sua autarquia tem também o sentido desse hábito inveterado de mandar. Pelo governo da comunidade privada, ele corre até à função pública em busca do governo do Estado, mas se não o consegue, desequilibra-se ou será fator de desequilíbrio do Estado. E mais uma vez reponta o seu anarquismo de índole refratário à obediência ou desacostumado a uma subordinação mais compressiva que o atinja.

Do senhoriato para a classe governante do Estado é, apenas, um passo, mas ao perder as rédeas daquele e ter que se entregar à disciplina desconhecida da subordinação política, o choque foi e é tão grande, que se desmanda, por vezes, no conflito violento ou se achata para ser mais resistente na hostilidade passiva, em que tanto mais perde o Estado quanto lhe escapa o ensejo para empregar a pressão violenta.

* * *

O homem branco e pobre, apesar das mesmas leis e do mesmo sistema jurídico-social, não consegue formar a família patriarcal do senhor branco, rico proprietário de terras e de escravos.

Além de estar deslocado pelo eixo da domesticidade da “Casa Grande”, de que sempre participa direta ou indiretamente, seja como colaborador do trabalho da comunhão familiar, seja pelo laço da sujeição econômica ou da proteção política, que o prende a essa comunidade poderosa, o homem sem terras e sem escravo só pode constituir e criar uma pequena família precária, ainda que de prole numerosa, que logo se dispersa pelas exigências do desajustamento econômico em que se encontra. Decorre disso, a mobilidade desse homem, se não encontra melhores condições de aderir e agregar-se ao latifúndio contrípeto. Dessa mobilidade, a que está obrigado, resulta ainda a sua índole dispersiva, o seu hábito de transmigrador impenitente, a correr terras, a correr engenhos e fazendas, ou a procurar as cidades a fim de ser soldado de linha, por exemplo, podendo refluir novamente para o campo para ser tropeiro ou para constituir verdadeira massa de recrutamento dos exércitos particulares, do caudilhismo ou do banditismo contemporâneo. Se se fixa sem terras no campo, a sua situação é a mais miserável possível. Nem proletário livre definido, nem escravo com pão e teto assegurados, pelo interesse do senhor.

As próprias condições desfavoráveis à instituição de sua família retiram-lhe o sentimento de legitimidade da mesma. Ela se constitui, em via de regra, sem solenidades nem sacramentos, apesar do esforço dos padres, pelos laços tão só da mancebia, que a falta de mulher branca, de sua condição, ainda mais facilita e predispõe.

É por isso o maior fator da mestiçagem brasileira, embora o senhor de engenho acabe por deixar sempre numerosa bastardia de mulatos e cafusos. Tão frouxos são esses laços familiares que a dispersão da família pode dar-se, antes da criação de toda a prole. Nada mais freqüente do que os filhos abandonarem a casa, e os pais deixarem mulher e filhos com a pressa e a rapidez de quem foge e desaparece.

Na história de todas elas há sempre os sumidos e os desaparecidos que a extensão territorial protege de toda coibição, como aos fugidos da justiça de penas e das cadeias.

Este homem, cuja situação econômica é menos grave pela injustiça e servidão, a que o submetem, do que pela falta de continuidade e fixação que não se lhe dá, se não representa nenhum fator preponderante, atuante e positivo dessa organização social, assume sombria proporção como elemento negativo da sociedade brasileira. Não vale pelo que é, mas pelo que deixou de ser e representar na base da organização econômica e política.

A sua ausência agravou o violento desnível de classes da Colônia, abriu maior espaço entre o senhoriato e o Estado, rarefazendo a população política do futuro império.

Pôde, assim, o grande proprietário rural, na altura e eminência do seu poder, mandar e governar sozinho, protegido pela dispersão territorial, sobranceiro ao Estado, num espaço social dividido e subdividido não só pela sua ocupação econômica como pelo exercício de uma jurisdição, legítima ou não, mas sempre efetiva, que é o mais notável acontecimento dessa organização política. É ele que transforma o poder da Coroa numa soberania teórica, no dizer de Caio Prado Júnior.

Em geral, quando aludimos a esse poder da organização senhorial, acode-nos sempre estudá-lo como índice da profunda descentralização da Colônia. O governo geral, se seguirmos os vários degraus em que vem descendo e se repartindo, quer política quer administrativamente no meio colonial, impressiona-nos, de logo, pela sua grande descentralização. A falta de comunicação entre as frações do seu poder torna-as absolutamente independentes e autônomas.

Oliveira Viana, que examinou o problema na “Evolução do Povo Brasileiro”, já não fala em fragmentação do poder. Esta é tão intensa que o fenômeno para ele é de verdadeira pulverização e dissolução do poder. E cita um cronista colonial:

“O governo do País ficou reduzido, a tantas governanças patriarcais quantos eram esses distritos, recorrendo os seus moradores nas suas dependências e desavenças aos seus poderosos, e dando esses as decisões das dúvidas, segundo ditavam o amor ou o ódio” (pags. 218 e seguintes).

Se atentarmos melhor, porém, veremos que o fenômeno a salientar aqui não é o dessa descentralização, mas o da modificação da índole do próprio poder, que deixa de ser o da função política para ser o da função privada. Para repetir o próprio Oliveira Viana, quando se refere aos caudilhos territoriais, diremos com suas palavras:

“São eles que governam, são eles que legislam, são eles que justiçam, são eles que guerreiam contra as tribos bárbaras do interior, em defesa das populações que habitam as convizinhanças das suas casas fazendeiras, que são como os seus castelos feudais e as cortes dos seus senhorios”.

Sim, translação e modificação de poder.


CAPÍTULO V

 

O povo brasileiro. O seu valor político. Alfabetização e idade política. Um povo rural que ainda não se deslocou para as cidades. As migrações internas. A população da Independência. A Independência e o Estado. Porque não se modificou a índole do Estado. O Império dentro dos compromissos coloniais. Análise de sua população. O senhoriato, o seu poder e a estabilidade do Império. A luta inicial de classes e a sua significação. A ausência de classe média e a repercussão na existência do Estado. O interior e o litoral. Uma população distanciada do Estado. O Estado democrático e sua influência educativa nessa população. A democracia como educação política de um povo. O senhoriato como classe política e o espírito público.

 

Bem raros países, como o Brasil, podem oferecer exemplo mais frisante da distinção, que é mais viva na realidade do que no conceito dos publicistas, entre massa populacional e povo no sentido político.

Nação prolífica, com um índice de crescimento notável, apesar de sua mortalidade infantil, o Brasil tem em curto prazo procurado preencher, nesse esforço procriador, a sua vasta extensão territorial. Espontâneo e normal, esse crescimento é ainda resultado das condições físicas da terra e da forma de produção de caráter rural extensiva, principalmente. O homem nasce aqui para a terra inocupada ainda. Ou pode crescer com essa possibilidade, sem que lhe seja imposto continuar uma ocupação preexistente da mesma comunidade.

É assim um movimento de ampliação populacional de conquista da terra por outra forma — a do crescimento. O seu ponto de irradiação foi a costa marinha, inicialmente, mas é no campo que essa irradiação buscou o seu apoio para tomar novo curso. Daí não reflui, continua a estender-se. Embora grande parte da população rural, a da faixa litorânea mais fértil, assuma caráter mais de permanência do que de mobilidade, a nossa população dos campos tem duplo caráter ou se divide em duas partes — a que se fixa na propriedade imóvel, a população fazendeira, que assegura os quadros da tradição, e a que continua a mover-se corrida pelos desajustamentos econômicos do latifúndio e da monocultura, ou ainda pela carência de alimentação, por força das secas sobretudo, e que busca sempre novas terras, como amortecida vaga conquistadora que seguisse o impulso do período Colonial, em procura simplesmente de zonas mais ricas de cultura, seja para fixar-se, seja para atender a uma estação de colheita, como o nortista, por vezes, na zona cafeeira do sul.

O meio rural é, desse modo, uma região de intensas migrações freqüentes a se processarem, com ignorância da costa e das cidades marinhas, pelos caminhos terrestres e fluviais do País.

Depois de caminhar toda no sentido horizontal do oeste, essa população tomou o rumo vertical de subir o norte e descer o sul, partindo ontem de São Paulo para a zona da vacaria até o Rio Grande do Sul, ou pelo São Francisco, Minas, Baía, Goiás, Pernambuco, Piauí, etc. para abrir-se em leque conforme os rios, os veios auríferos e os campos de criação. Hoje esses caminhos que os paulistas percorreram ao subir o norte, são as maiores estradas dessas migrações internas em demanda oposta, a do sul. Dir-se-ia que os descendentes dos velhos paulistas e vicentistas retornam...

Não é o mar, interessa notar, a estrada das nossas migrações. A via marítima e o litoral são antes caminhos e portos da imigração. Esta já não tem poder de penetração, a não ser no sul, e fixa-se nas cidades para estender-se lentamente a outros centros urbanos litorâneos.

Puro engano será o de certas vozes que começam a clamar, entre nós, contra o êxodo dos campos em benefício das cidades litorâneas. O fenômeno, ao contrário, não tem nenhum caráter de generalidade, nem encontra a sua razão única de ser e de causação na produção industrial, que é incipiente, ou ainda inexistente entre nós. Se é considerável a densidade do litoral citadino ou não, isso resulta da própria densidade inicial do período colonial e do afluxo constante da imigração, mas nunca de um refluxo normal da população campesina do centro.

O País continua “essencialmente agrícola”, radicado ao campo, indeslocável no meio rural, a não ser pela grande máquina de amanhã. Essas migrações, por isso, não são refluências para as cidades, nem retorno às regiões marítimas. São movimentos terrestres de deslocamentos rurais para novas ocupações rurais. Se as nossas grandes cidades litorâneas, as capitais, enfim, não crescessem por si mesmas ou não se avolumassem por novas imigrações, não representariam até aqui consideráveis centros de refluxo da massa humana do Brasil interior.

Em 1911, segundo o Barão Homem de Melo, citado por Oliveira Viana, as populações das capitais do Brasil não iam além de 1.689.000 habitantes(2). Se considerarmos que a imigração concorreu poderosamente para o aumento de habitantes de quase todas elas, concluiremos, em face dessa pequena população que ainda apresentam a esse tempo, que o brasileiro continua afastado dos seus centros urbanos mais importantes, avolumando a sua população rural, que, em todo o Norte e no Brasil central, guarda quase surpreendentemente a fisionomia de sua economia e organização colonial. Muitas de suas regiões, não só a amazônica, repetem o drama da conquista. Acreditamos que foi Pedro Calmon quem já disse que à proporção que nos afastamos do litoral, recuamos também aos séculos XVIII, XVII e XVI, mas quase todo o País produz e pensa pelo século XIX, antes da revolução industrial.

Todavia, essa população brasileira importa que se considere menos quantitativa do que qualitativamente. Aliás, sobre o critério quantitativo, ela representa, se não levamos em conta a extensão territorial que tem que ocupar, ponderável massa humana, maior do que a de muitas das velhas nações do ocidente. Qualitativamente, porém, nem todos os critérios servem à definição e conceito de seu valor. Do seu valor político, sobretudo.

Em geral, com severo exclusivismo, para chegar a julgamento que não é menos severo na condenação, conclui-se apressadamente o desvalor político de nosso povo pelo grau de seu analfabetismo, o que é muito pouco como critério qualitativo, quando não seja, a certas luzes, um erro.

A alfabetização, embora seja condição para o exercício de importantes direitos políticos nas organizações estatais modernas, eminentemente racionalizadas, não é a porta por onde um povo adquiriu ontem e possa adquirir hoje o sentimento e o espírito políticos.

Um povo político é, antes de tudo, um produto histórico. Terá vivido certos acontecimentos e precisará, além disso, atingir a certa idade social e estado de organização que o predisponham à forma política ou que já a exijam como condição de sua coexistência e sobrevivência.

A inexistência ou não de um povo político no Brasil terá que ser deduzida desses vários fatores, mas sobretudo da forma de organização social que a sua população viveu ontem e continua a viver hoje.

Ora, essa forma de organização social além de ser indisposta ao fenômeno político, pôde caminhar prescindindo do poder do Estado. Não há antecedente histórico mais proeminente do que este na base da vida da nação brasileira. É ele uma das grandes origens remotas, próximas e contemporâneas ainda de nossa vida como organização política.

O Brasil é um Estado com um passado contra, dentro de uma organização econômica hostil aos próprios requisitos e fundamentos do exercício do poder político.

* * *

Seria supérfluo dizer que a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro e a independência do Brasil, nos princípios do século XIX, não interromperam a grande crise colonial do Estado.

Tais acontecimentos e deslocamentos de superfície e de periferia iriam mostrar, apenas, que a história política, propriamente brasileira, por todo o sempre não teria força de penetração e poder de submergência na estrutura do País, conforme a já velha observação saida da pena dos nossos escritores políticos.

Pouco importa por isso mesmo considerar a Independência como o começo de um período da vida do Estado no Brasil. Uma data ainda não é um acontecimento, se não assinala um fato de profunda revolução ou modificação geral e intensiva na estrutura social.

As cenas políticas que se passam entre D. João VI e D. Pedro I são tão iguais, como a própria deslocação do poder, sem choque, das mãos do pai para as mãos do filho. Uma sucessão natural, apenas. Se o povo que as assiste não é, como no comentário de José Veríssimo, tão somente aquele carreiro do quadro de Pedro Américo, que olha, surpreendido e perplexo à margem do caminho que lhe tomaram, o espetáculo do Grito da Independência, continuou a guardar o mesmo lugar, a mesma posição, conforme os rumos mesmíssimos a que as condições econômicas e sociais, inalteradas até então, lhe haviam conduzido.

É o que precisamos ver.

Em 1822, a população do novo império, segundo os cálculos que Roberto Simonsen nos fornece, era de 3.400.000 habitantes, sem computar os índios. Dentro da grande e desmedida expansão territorial a que se entregou essa população durante os três séculos coloniais, é de ver-se a sua dispersão e a sua descontinuidade sobre esse território.

A esse tempo, o surto das cidades continua a padecer as influências da organização rural, e aquelas que o ciclo do ouro fundara, se não acompanharam o seu declínio, estacionaram isoladas dentro de um País sem estradas ou em meio das regiões estéreis em que se edificaram (Simonsen). Só por golpes violentos do poder público, algumas como o Rio de Janeiro e a Baía entraram, no dizer de Pedro Calmon, em fase de remodelação. As demais, como assinalaram antes Capistrano, Paulo Prado, Afonso Arinos de Melo Franco, etc., trariam e prolongariam pelo século XIX a existência miserável do fim da era colonial, em que as mais importantes, as que eram propriamente cidades, segundo Caio Prado Júnior, não continham mais de 5,7 % da população total.

O prestígio da sociedade rural viria, entretanto, a ser maior no século da Indepedência. Ela que sofrerá certo abalo no século anterior, pelo desequilíbrio que lhe acarretou a mineração, acabava de receber os refluxos dos que já não podiam fazer a corrida do ouro, e se multiplicava pelo sul abrindo o ecúmeno do café que vai garantir o equilíbrio do eixo centro — meridional em face do Norte ainda em sua hegemonia.

Se a ela, na sua solidez, pouco importariam as idéias economistas da época, vale dizer, apesar disso, que os primeiros passos para a independência da Colônia se faziam sob a mais entusiasta e decidida inspiração do liberalismo econômico de que D. João VI, os seus ministros e os seus conselheiros ingleses estavam profundamente imbuídos, e, sob signo tão favorável, a nova organização política representa para essa sociedade territorial um largo desafogo contra a política de compressão fiscal de uma Coroa ávida por ouro no século XVIII.

Nesse clima intelectual, o novo Estado brasileiro, sem apelos ao intervencionismo econômico, vinha amparar o statu quo do senhoriato territorial da Colônia, protegê-lo, ou melhor, nele se apoiar para continuar o velho compromisso da Coroa portuguesa com o poder, conservador e redutor de problemas e de processos, da propriedade privada.

Três séculos de ampla liberdade privada, de extenso poder de iniciativa particular, de vitorioso e incontestável individualismo econômico, se resumiam agora, sob melhores cores, sob mais segura proteção, na fórmula de um Estado Liberal, que correspondia ainda aos desejos e tendências autárquicas da classe econômica, expressados pela forma sentimental do nativismo, do ódio ao reinol e ao comerciante português, que já vinha representando vivo contraste, a da atividade urbana, com seus interesses, em choque com a atividade rural.

O poder político do senhoriato se desdobra, porém, sem sair, entretanto, de suas mãos. Se antes, o senhoriato mandava em suas terras, impondo aos elos de sua influência e poder econômico toda uma população que volteava, em seus degraus sucessivos, em torno da propriedade senhorial, mando tanto mais forte quanto se fundava na dissociação dessa sociedade dividida em núcleos fechados bastando a si mesmos, com a nova ordem política, ele, apenas, era chamado a continuar esse mando e poder nas esferas e redobras do Estado.

Esse desdobramento que vai ser, antes de tudo, o exercício desse poder da aristocracia rural em outra posição, vinha pôr em função e movimento a nova ordem estatal.

Realizado esse fenômeno, tanto mais fatal quanto o poder político se encerra nas mãos dos que detêm o poder econômico, a organização política brasileira iria começar a sua história às costas dessa poderosa ordem privada que, se a carregava, também a conduzia. Como não se modificara a sociedade colonial, a sua dispersão, a sua desintegração, à falta de vínculos sociais mais gerais e amplos, essa ordem privada continuaria a ser a única organização de base e de estrutura superior do império, e dentro dela este teria de conseguir e formar uma futura sociedade política.

É esta penosa diferenciação política de uma sociedade de elos, sentimento e poder privados tão arraigados, a história mais profunda, por vezes ignorada e despercebida, de nosso processo político. O Estado, a se apoiar comprometido nessa ordem privada, viria confirmar a velha definição, com tanto ranço medieval, de Diderot de que o “Estado é uma reunião de famílias”.

Essa reunião de famílias, mas de famílias que a si reservariam a propriedade senhorial e o monopólio do mando, seria a classe política do Império. Fora dela, mas com ela, só os doutores, os letrados, os padres e alguns nomes da militança, todos a constituir ainda gente sua, transformada apenas pela cultura e pela educação literária da Europa, formavam o pequenino corpo dos governantes propriamente ditos, os primeiros profissionais da política e que encarregados estavam de ensaiar as fórmulas e as leis políticas, como as constituições, entre nós. Profundamente distanciados pela cultura e pelas idéias daquela classe política dominante, guardando, assim, uma verdadeira disparidade entre o pensamento que concebe e modela e a ação que o realiza, eles eram, entretanto, por tradição, por sentimento, por interesse e por esse instinto conservador de todo poder, representantes dela e por ela agindo nas esferas do governo.

A luta que entre eles e ela se travava era luta exclusivamente ideológica, no campo do pensamento abstrato, em que eles se refugiavam pelas contingências mesmas da realidade hostil, mas sem força de continuidade no campo de ação pragmática, em que ambos se aproximavam e ligavam pela própria base comum em que se teriam de apoiar.

Seriam eles os idealizadores das constituições perfeitas, das leis e práticas políticas modelares, homens enfim paradigmas a bosquejarem paradigmas numa realidade ignorada e ignorante.

Seriam eles ainda os que iriam nutrir a dialética dos partidos, a controvérsia doutrinária, a divisão das correntes parlamentares. Constituiriam, assim, o chamado idealismo do império, a realizar movimentos de superfície. Repelidos do País, porque já vinham da Europa, voltavam para a Europa o pensamento, o coração e a imaginação, bebendo sequiosos nessas duas fontes de idealidade que eram a Inglaterra e a França, que nos vinham cultivando, mas também perturbando.

Esse idealismo, entretanto, pelo exercício do pensamento abstrato, pela tentativa e pelo esforço da prática impessoal, no desejo de subordinar homens e instituições à força dos grandes ideais, esse idealismo, em que pese seu colorido romântico sentimental, sua generosidade derramada, foi o primeiro núcleo de diferenciação de nosso senso político e de um espírito público mais puro e mais livre. Será ele um dos primeiros resultados da praticagem da vida política, da ação e função política sobre os homens que a exerciam. Foi nele, com o pensamento de educar-se e, por sua vez, provocar as pequenas revoluções de mentalidade e de idéias no País, que se arrimaram os nossos homens de melhor espírito público, os “leaders” de nossos movimentos políticos, os professores de política do Brasil, sejam eles, em épocas diversas, um Otoni, um Tavares Bastos, um Joaquim Nabuco, um Rui Barbosa ou um Eduardo Nogueira Argelim, como muitas daquelas figuras, de projeção menor, que ornam os movimentos revolucionários, principalmente do primeiro meado do século XIX.

Agitam antes as grandes cidades, as massas mais cultas ou aquelas que já se vão, nesses centros maiores, se desajustando na estrutura econômica tradicional que vem da sociedade rural, e com elas conseguem aqui e ali, em todo o País, antes e depois da Independência e pelos tempos afora, desencadear as revoluções políticas que despertam, por sua vez, os recrutas, como os primeiros sinais de consciência de um povo político.

No período atormentado da Regência, então, enquanto os governantes buscam novos ajustamentos e o próprio poder político tateia por encontrar o caminho seguro da tal política conservadora, que é a política do senhoriato territorial, os movimentos que manifestam as primeiras demonstrações de uma consciência popular ou os sinais de um povo político incipiente, são múltiplos e fecundos em todo o País, no norte, no Pará, em Pernambuco, na Baía, no sul, no Rio, como no extremo da fronteira meridional, e representam, não há dúvida, a luta pela diferenciação e predomínio de uma classe, com propósitos já definidos de classe econômica.

Confundidos e aviltados como vagas da “anarquia”, da patuléia desenfreada e, por vezes, justificando, na própria transição incoerente de todo processo social em princípio, essa confusão e os seus desvios, esses acontecimentos como os seus “leaders”, a contrário do julgamento histórico com seu conteúdo de prevenções, apriorismos e sentimento de classe, revelam admiravelmente as mostras distanciadas, inconseqüentes e iterativas da formação política de um povo.

Esses motins, revoltas e revoluções, em que há de incluir-se também a Revolução dos Farrapos, sem saber o que querem e contradizendo-se com proclamarem-se ora separatistas ora não, como a “Sabinada”, que Luiz Viana Filho descreve, atordoados, enfim, nos seus rumos, nas suas ideologias, variando ainda, no calor das batalhas, entre o respeito monárquico, a fidelidade ao imperador e o pensamento republicano federalista, sem que seja possível absolutamente dar coordenação teórica a tantos dogmas e princípios colidentes, essa “onda de anarquia generalizada” é bem a crise inicial de um reduto do povo, de uma classe, procurando realizar o seu processo de politização ou tentando atingir a sua categoria política.

Contra essa gente de motins e revoluções, contra esses fazedores de “anarquia”, luta precisamente a anarquia conservadora dos grandes proprietários rurais, os senhores que estão no campo e que marcham, em apoio à tropa de linha do governo, contra a população urbana amotinada.

Os “anarquistas” e os “desordeiros” que iriam ser batidos e condenados e destruídos em nome do Estado, devem sê-lo antes, porém, em nome da Ordem que o senhoriato representa e do compromisso que entre ele e o Poder Político se forma para atender ao equilíbrio de interesses de ambos.

Porque é fácil confundir revolução com anarquia, escapa-nos sempre o significado de tais choques e não chegamos a descobrir atrás deles a contrastabilidade de duas ordens — uma a representar a sociedade como ela é até aí e que assim deverá continuar sendo daí por diante, segundo a tradição sólida de poder e de domínio de uma organização econômica no seu apogeu — a outra uma quase frustra divisão e diferenciação dessa sociedade, na hora mesma em que ela vai receber uma nova organização política. Enquanto uma dessas ordens, a que está mais próxima da índole e da essência do Estado, por isso que já apresenta uma revolução social em sua direção, é batida ou contida pela outra, apesar de mais anárquica na sua índole e essência, o fenômeno só não constitui verdadeiro paradoxo ou contradição porque esse Estado ainda não pode acompanhar nenhuma dessas revoluções de estrutura, nem tem forças para desencadeá-las contra essa ordem tradicional, em que precisa se apoiar momentaneamente para viver. Não é, enfim, um Estado a que chegasse o processo social em evolução. É, antes, uma precipitação de forças sociais em busca de uma derivação momentânea para sentimentos coletivos e interesses econômicos em luta, como o nativismo e os interesses da propriedade rural contra o comércio reinol, que são acontecimentos e fatores que vinham alimentando sobremodo o movimento da Independência. Esta, por isso mesmo, não representará ainda um progresso na natureza desses processos políticos.

Assim, apesar de todo o brilho de que por vezes se reveste a instituição política parlamentar, a porção de homens ilustres e grandes que ela consegue formar, o Império, até a penúltima década do século XIX, assistiria ao prolongamento da influência da organização social que a Colônia lhe herdara. Movimentos em outro sentido, crises de deslocamentos do poder, maior preponderância do comércio e das cidades, como o nascimento de outras classes econômicas, não implicam ainda uma revolução nas camadas mais profundas dessa sociedade que, após a Abolição e a República, guardou fora do litoral os seus arcabouços mais ou menos resistentes, aqui ou ali, aos novos tempos que corriam ou correm longe dela.

A grande paz do Império, o seu equilíbrio e o seu esteio estão nesse senhoriato territorial que é a força econômica e o poder material do Estado. É ele também a única parcela “política” da população brasileira, o que tornou impossível a implantação de qualquer ordem política fora dele, como seria absurdo querer-se, por acaso, identificar esse Estado de tal idade econômica com a ideologia de antecipação que os “leaders” intelectuais avançados esperavam que ele traduzisse.

Gilberto Amado em notável estudo sobre as “instituições políticas e o meio social no Brasil”, já em 1916 provava a inexistência de “povo” brasileiro dentro das seguintes considerações em torno de dados estatísticos:

“Tome-se, por exemplo, o recenseamento de 1872, o primeiro que se fez no Brasil. Foi Paranhos, um dos raros que, com Tavares Bastos, Mauá, Capanema, tiveram a preocupação dos assuntos práticos fora ou dentro do Governo, quem o realizou. Por esse recenseamento, vê-se que a população total do Brasil era então de 9.930.478 habitantes, compreendendo 8.419.673 homens livres e 1.510.782 escravos. Segundo a raça, eram 3.801.722 mulatos e mestiços de vários graus; 3.787.289 brancos; 1.959.452 de raça africana e 386.955 de raça indo-americana. Segundo os sexos, vemos que o número de pessoas de sexo masculino eram de 5.123.869 livres e escravos; 4.806.609 de sexo feminino, livres e escravos. Nesse total cumpre contar quase 300.000 estrangeiros, portugueses na maioria”.

E depois de fazer o desconto de crianças naquela soma de 5.123.869, de homens livres e escravos e de se referir ao grau de sua capacidade econômica e da instrução de seu espírito, tendo em vista, como diz, a extensão enorme do País e os seus núcleos sociais mais preponderantes, oferece à nossa ponderação o “coeficiente de pessoas verdadeiramente capazes sobre as quais, em um país que a extensão desarticula, haviam de exercer-se as instituições constitucionais...”

E arremata a sua crítica:

“O ‘povo brasileiro’ não poderia ser o milhão e meio de escravos, o milhão de índios inúteis que a contagem do governo reduziu, com evidente imprecisão, a quatrocentos mil apenas; não poderia ser os cinco milhões de agregados das fazendas e dos engenhos, caipiras, matutos, caboclos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos artífices, operários rurais primitivos, pequenos lavradores dependentes; não podiam ser os dous milhões ou o milhão e meio de negociantes, empregados públicos ou particulares, criados e servidores de todas as profissões. O povo brasileiro existente como realidade viva, não podia deixar de ser apenas as 300.000 ou 400.000 pessoas pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho...”

Até 1872, época desse recenseamento, até a Abolição e às portas da República, o resultado a que temos de chegar, por conseguinte, é que após a ocupação e o espraiamento irregular e descontínuo de uma escassa população em tão ilimitado espaço territorial, ocupação e espraiamento tão irregular quanto a própria junção de raças e de culturas tão diversas, após, enfim, as primeiras surpresas e choques do meio físico, e a conquista desse sertão hostil, a sociedade que se forma entregue a si mesma, isolada do mundo nessa longa gestação da época colonial, dela sai para inaugurar a vida de um País independente, formada de tal maneira e organizada de tal forma, que toda ela se resume em duas classes definidas que lhe esteiam o poder econômico e o poder político — a do senhor de escravo e a do escravo. A outra, a classe média oscila entre as duas por dependência e conseqüência, sem poder ter predomínio e constituir grande base de apoio.

Ora, seria essa classe média, se ela pudesse crescer, se ela pudesse ter peso econômico, a classe propriamente capaz de formar o melhor contingente de um povo político sobre o qual o Estado poderia, por sua vez, fundar-se e alargar-se, livre de autarquias concorrentes e de castas dominantes. Mas, vale dizer que essa classe média estaria mais apta para formar o povo político, menos por via de sua alfabetização e da instrução literária que viesse a ter para exercer o voto e compreender as instituições políticas, do que pela propensão, que lhe é própria, de desfeudalizar as castas, a família rural e a propriedade territorial, não só pela divisão desta na pequena propriedade, como pelo sentido mais acentuadamente urbano de sua atividade e de sua índole, abrindo-se, assim, com outro espírito, à recepção do fenômeno político estatal, por não representar nenhum predomínio fechado e exclusivista no meio da organização social em que se coloca. Crescendo sempre e constituindo, por isso, a massa mais numerosa de uma determinada população, essa classe média é que, em todos os sistemas feudais ou com sentido feudal, permite ao poder político a sua liberação e a sua hegemonia.

É, demais, dessa classe que saem o artífice, o comerciante, o letrado, o advogado, o operário ainda sem classe própria, o pequeno burguês, como o pequeno proprietário, o citadino, o funcionário, um homem, enfim, sem outros compromissos com grupos poderosos e que oferece ao Estado outra superfície à extensão normal do Poder Público.

Antes, pois, de julgarmos o “povo brasileiro” ou a sua valorização política pelo grau de sua alfabetização e instrução, é necessário apreciá-lo pelos seus caracteres morfológicos e pela sua constituição orgânica.

A parcela, como vimos, da população brasileira que forma o povo brasileiro, no seu conceito político, é até essa época, a do senhoriato, a do proprietário territorial de que fala, entre outros, Gilberto Amado. O Estado teria que se apoiar, assim, numa classe política que é sobretudo uma casta, casta familial de elo parental feudalizado. Veja-se a respeito o comentário de Caio Prado Júnior ao projeto de Constituição de 1823 (Opus. cit. pags. 99 e 100).

Esta circunstância, aliás, coerentíssima nas condições em que o Poder Político vinha encontrar a sociedade brasileira, define de logo o sentido que o fenômeno político haveria de tomar e assumir dentro da sua chamada organização política.

Pouco importa, pois, considerar essa política pelos seus homens de primeira cena, pelo que falam, pela cultura que representam, pelas idéias que pensam representar. Individualidades muitas vezes brilhantes, a traduzir uma ideologia realmente tentadora, esses estadistas imbuídos do direito público inglês ou francês, repetindo a linguagem do democratismo universal, numa oratória política de tantas rutilâncias, estavam, apenas, representando na primeira plana, sem o saberem ou sem o quererem saber, uma sociedade patriarcal, no orgulho rude de seu ruralismo econômico e do qual eles só saíam, como advogados, médicos e padres, pela cultura literária, sem perderem, entretanto, o sentimento familiar e o sentido do seu domínio econômico. Se outros começam a traduzir interesses e sentimentos diferentes, e se transformam, à falta de outro nome e bandeira, em os liberais revolucionários, não porque pertencessem ao “partido liberal”, mas porque começam a expressar uma diferenciação nessa classe política, jamais tiveram as rédeas do governo como tal, e são apenas os primeiros contingentes de uma oposição que, já não sendo uma simples oposição oficial, virá se avolumando lentamente, quando não é reabsorvida pela corrente dominante, até engrossar-se nas facções que vão definir mais tarde o abolicionismo, a federação e a república, que assinalam mui justamente o começo de ascenção de uma outra qualidade de classe política, na hora de trazer o seu concurso ao processo político contemporâneo, em luta inconsciente ou não, contra o velho senhoriato que a República não destrói, mas a cuja decadência vem assistindo.

Não é preciso dizer que o Império é esse senhoriato e tão dependente dele se achava que cai quando permite que o abalem e golpeiem. Cotegipe, que não era um escravocrata, mas um anti-revolucionário, soube assim sentenciar a perda do Império pelo golpe que ia ferir o senhoriato, de que ele e outros representam o tipo do intelectual e do profissional político.

Tão só devido às idéias democráticas, o choque dessas duas classes se fez mais atenuado, confundindo até o sentido de sua contrastabilidade. A democracia, sem nos fazer democratas, permitiu, assim, que se formasse uma zona comum de idéias e sentimentos que ia aplainando o antagonismo dessas duas ordens, dos seus interesses e a própria luta mais viva a que poderiam chegar.

Afinal, todos queriam atender a essa vocação democrática, que era a vocação do século, e sob sua influência se procuravam disfarçar privilégios, o orgulho de certas distinções sociais, a impudência do espírito da classe de domínio.

A força de uma ideologia não chega a alterar diretamente uma estrutura social, mas consegue modificar, substituir ou iludir a ideologia própria dessa estrutura. E é este fato, tão lógico nos processos sociais e políticos, que, no Brasil, nos fez ignorar o sentido mais profundo desse desnível econômico e político e, por outro lado, nos levou a propender, mais tarde, para a tendência, que é normal, de confundir e aplainar esses contrastes, ainda que antes sirva perigosamente à mistificação da ordem de predomínio.

Aliás, dentro do ideal democrático se estabeleciam e guardavam os dois extremos — uma delas procurava servi-lo pelo radicalismo, pela revolução, buscando-o, sobretudo, como um estímulo de luta dentro do desequilíbrio e do desajustamento em que se encontrava, enquanto a outra procurava conciliá-lo dentro dos interesses de seu predomínio e de sua hegemonia como classe política já no poder.

Quando esta ordem vence a primeira, ou a coíbe no seu nascedouro, o Império estabiliza-se. E com esse equilíbrio, restitui-se a continuidade de uma organização social, cujos fundamentos e estilo a Colônia já havia edificado e construído.

Ora, quem quiser saber de que espécie era o nosso “povo”, a qualidade e extensão do seu espírito público, como o próprio sentimento nacional que o animava, terá que fazer a sondagem da classe que forma o nosso senhoriato e que vai ser uma classe governante.

O litoral citadino, o seu nascente brilho posterior, o ruído de sua ideologia, é outra causa deformadora de nossa visão quando observamos o Brasil. Há sempre quem lhe empreste, pelo papel que vai tendo agora, uma função de “leader”, orientador e modelador de nossa vida pública e assim só procuramos ver o Brasil por intermédio do litoral e depois de passar por ele.

A verdade é que, ainda que custe a acreditar, a vida política do Brasil, como a sua força econômica, veio do interior para o litoral.

Abrindo o seu livro “Evolução do Povo Brasileiro”, afirmou Oliveira Viana:

“Toda a nossa história é a história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização”, (pag. 49).

E Sérgio Buarque de Holanda, na sua obra já citada, declara:

“Toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora das cidades. Esse fato é do mais vivo interesse para quem quiser compreender um estado de coisas, que, em seus aspectos essenciais, prevaleceu até o final da monarquia ou mais precisamente até a abolição da escravidão. 1888 é o marco divisório entre duas épocas — o instante talvez mais decisivo em toda a nossa evolução de povo” (pag. 43).

Assim, ainda que estejamos a repetir um conceito já assente na opinião de outrem, vale insistir sobre ele, tanto quanto perdura a crença, em forma de um dos hábitos mentais mais vulgarizados entre nós. de que o litoral orientou e dirigiu sempre os rumos e o sentido de nossa política e de nossa economia. É o que podemos chamar uma falsa transposição de fatores e de suas influências recíprocas.

O litoral emprestou ao interior a ideologia, que lhe era tão artificial como as concepções doutrinárias de suas leis, mas foi sempre o interior rural que teve força de refletir-se sobre o País, de pesar na sua estrutura, ao tempo em que ia reagir contra aquelas ideologias, criando logo a sua desviação.

Este Brasil rural, quando não é o Brasil senhorial, é a massa populacional mais amorfa e dissociada que é possível observar-se, sem outra idéia de conjunção que não, como vimos, a da unidade econômica e moral daquela ordem privada, que já analisamos.

Forçada a exercer um poder ou a estruturar um Estado, ela transforma e tem essa ordem privada não só como uma ordem de base social, mas também como a única ordem de base de sua vida política.

Se o Estado, em si, não tem outra função no seu espírito e na sua índole, muito menos terá a concepção doutrinária ou teórica que possa representar. O problema, pois, perante ela, não é o de saber qual a melhor forma de Estado que lhe convém ou que ela venha a aceitar, mas o de indagar até que ponto ela começa a fletir para o Estado ou propender para o fenômeno político.

Durante todo o período colonial, ela viveu fora do Estado ou só conheceu o fenômeno da substituição deste pelo senhor territorial no curso do processo feudalizante do mando. Não só desconheceu o Estado, que não tinha força extensiva para acompanhá-la, como prescindiu dele.

Não chegou a atingir à idade política, nem pôde, assim, constituir-se em povo político. Se não revelou, também, a lógica falta de sentimento nacional, é porque inexistia, por igual, ensejo para isso, mas tudo que pudesse mostrar, por inércia e por omissão, a inexistência desse sentimento é flagrante. Como o espírito político e o sentimento nacional estão sempre juntos, ou se ligam pelas manifestações exteriores coincidentes, podemos chegar à ausência de um pela inexistência do outro.

Sob essa massa populacional, que sempre representou a porção mais considerável da população de todo o País, o senhoriato, patronato, ou patriciado, pouco importa o nome ao fim a que desejamos chegar, não pôde e nem nunca poderia exercer uma função de educação política e de diferenciação do espírito público.

Se o senhoriato, ao encontrar-se com as influências do litoral, participa, no terreno abstrato, do jogo das idéias deste, quando reflui à sua base, ao seu “habitat”, continua a manter os elos tradicionais e orgânicos de sua índole e natureza, para impedir, já agora, que o Estado penetre essa população e lhe dê outro sentido social. Ao exercer o papel de classe política, deformando, conforme lhe é próprio, o fenômeno político, o senhor de engenho, o fazendeiro, barão do Império, coronel da República, ao substituir o Estado nesse país rural e agrícola, impediu até agora a aproximação do mesmo dessa população.

Sem exagerar, podemos dizer que o senhor ou o chefe rural acabou sendo fator de deformação do Estado e causa impediente de sua penetração nessa sociedade rural já tão distanciada territorialmente dele.

Por sua vez, essa população se formou nos seus três elementos humanos, de tipos sociais os mais distanciados de uma sociedade e de um passado político — o português, já de si desafeiçoado ao espírito público e que perdendo o seu passado político não pôde, nessa conjuntura, formar outro; o negro, a quem a escravidão e a domesticidade destruíram o seu tipo social anterior, além de formar um indivíduo absolutamente estranho e indiferente à comunidade política da qual estava expulso por lei e pelo preconceito racial; e o índio, cuja idade social não passara do clan indiferençado, ou da organização tribal familiar, sem tempo de assistir à projeção do seu chefe militar ou “morubixaba”, mais além da função política ocasional, extemporânea.

Se, pois, as condições, já analisadas, de território e de organização sócio-econômicas não despreparassem essa população à comunidade política, os próprios contingentes, com que cada qual dos seus elementos constitutivos participa dessa sociedade brasileira, seriam absolutamente refratários à formação de uma comunidade política.

Não importa, pois, afirmar que essa população pela sua falta de instrução e de alfabetização é incapaz de compreender a complexa instituição política que se inaugurou no Brasil em 22, mas antes assentar que ela nem chegou à sua fase política ou de politização diferenciada.

O próprio Estado democrático, com o seu apelo constante à massa, com as oportunidades que lhe cria de manifestar-se pelo exercício constante do voto e pela estrada mais acessível que lhe abre para chegar até ele, não conseguiu treiná-la ou dar-lhe o sentido da vida política.

Se outra fosse, porém, a forma do Estado entre nós, se, por exemplo, em vez da forma democrática, instituíssemos um Estado ainda mais ausente do povo ou com um poder de emanação menos direta dos órgãos populares, pior, bem pior, seria a condição espiritual dessa população brasileira em face dos acontecimentos políticos, como mais rebaixada e primária a sua educação para a vida pública.

Assim, o Estado democrático, padeça embora de todas as deformações e negações de nossa realidade política, como influiu em sentido benéfico nas elites do País, constitui, entre as formas estatais, aquela de poder educacional mais vivo e direto para interessar uma população, tão alheia e indiferente como a nossa, nos acontecimentos políticos e problemas de uma nação.

O curso histórico de nossa vida política demonstra, desse modo, que a democracia, entre nós, deveria ter sido buscada e defendida para atender ao sentido moral de um regime que, ainda que não lograsse integral aplicação imediata, valesse como processo ou sistema para chegar-se melhor e mais rapidamente à educação política de nossa gente.

Vale insistir, porém, que dentro das condições de apolitismo e indiferença da população brasileira, a organização do senhoriato tinha clima próprio para desenvolver-se em circunstâncias de absoluta concordância para o seu fastígio. O meio brasileiro e só ele, pela originalidade de seus caracteres e propriedade dos fatores que o engendram, daria esse cunho também original e próprio que teve e tem essa classe senhorial.

E como todo o País, no seu ruralismo, se compôs e se definiu na órbita, no espírito e no mando dessa classe, foi ela que lhe deu até aqui a sua tradição, o sentido profundo de sua psicologia, a índole de suas concepções e dos seus sentimentos coletivos.

A superveniência do Estado dentro dessa organização fez com que, de logo, o poder político assumisse o estilo dessa ordem, como esta o obrigou ainda a aceitar, sem modificar, aqueles elos e relações sociais com que havia forjado e tecido trama social tão interessante quanto resistente e profunda.

Por esta sorte, quando esta classe recebe o poder político e vai desempenhar o papel de classe propriamente política, com o surgimento do Estado brasileiro, é ele, mais do que ela, que se reduz e se simplifica para identificar-se com ela. Ele se define por ela, como se exerce através dela. O exercício da autoridade então, a execução funcional do poder público, se faz pela mediação do senhoriato ou do patronato, na interposta pessoa dos seus chefes que se responsabilizam pelo respeito às leis, pelo acatamento aos prepostos e aos agentes públicos, como se comprometem pela disciplina social. Não admirará, desse modo, que nessa comunidade senhorial se resumam as atividades políticas, o prestígio eleitoral e o domínio sobre o votante que é, enfim, a grande massa da clientela econômica, da clientela moral e portanto da clientela política, e com ela e nela encerre e feche o círculo da chamada representação política.

O Estado só começa a existir além dessa ordem, e, o que é mais, só se exerce, como se desenvolve e circunscreve, dentro do novo círculo que ela lhe abre acima daquele primeiro círculo de sua atuação direta. Depois de o reduzir, assim, territorial e funcionalmente, ela, por sua vez, o penetra como classe política, para infundir o seu espírito e a sua índole, após impregná-lo dos seus interesses. E limita-o, ainda mais, na zona propriamente do litoral, das cidades, o que é verdadeiro fenômeno de geopolitismo bem brasileiro.

Quando a força dessa classe, depois de deter e exercer tamanho poder social e político, começou a declinar, nem por isso deixou de continuar no Brasil a prevalecer pelo poder de sua tradição demorada. Enquanto tudo se modifica, o País sofre várias mutações, tudo apresenta a inconsistência das tentativas e das experiências repetidas em meio e condições tão novas e desconhecidas, enquanto todas as conquistas e empresas ainda não têm tempo de adquirir intensidade e profundeza, essa ordem senhorial é a construção mais fixa e inabalável do Brasil, a que contou tempo ininterrupto, viveu séculos. É, enfim, a tradição de 400 anos do brasileiro. O tempo lhe deu profundidade e uma história, o que vale dizer que lhe permitiu fazer um estilo e uma cultura!

Por isso, é bem maior a sobrevivência do que poderemos chamar o seu espírito institucional, tanto mais resistente e arraigado quanto chegou a formar do brasileiro um tipo social próprio e que transparece inconfundível nas nuances da nossa psicologia social, por seus caracteres morais, sentimentais e até fisionômicos indisfarçáveis.

O Império refletiu esse tipo social, a sua moral, a sua gravidade, os seus hábitos mentais, o seu orgulho, como a sua autoridade, de par com o seu instinto conservador e de paz, o feitio de sua sentimentalidade e esse cunho, diríamos, de pessoalidade que ele transmite às relações sociais, por forma que denuncia bem claramente um individualismo sentimental, a se traduzir em todos os contactos de amizade, de transações, de convivência e de política profissional.

Tipo de aristocracia a refinar-se, depois de uma feudalidade guerreira e rude, na época final de sua estabilidade e do seu apogeu.

Bem o diz Oliveira Viana, com certo saudosismo ao rememorá-lo:

“O longo período do Império comparado com o periodo anterior é, por isso, um remanso amorável e ameno, onde domina uma aristocracia rural, majestosa na sua grandeza moral, soberbamente assentada sobre bases econômicas de perfeita estabilidade: o criatório, a cana de açúcar, o café”.

“O gosto pela vida rural, por outro lado, se apura e refina, despindo-se dos aspectos grosseiros do período da conquista: a posse de um latifúndio fazendeiro se torna aspiração comum a todos os espíritos amantes da tranqüilidade e da paz. Os elementos do escol social, os políticos em evidência, os estadistas, como todos os que querem possuir urn pouco de autoridade social, procuram o ponto de apoio de um domínio rural; de modo que, na vida pública e privada, agem com o decoro, a independência e a hombridade, que só podem ter aqueles cujo problema de subsistência está resolvida de uma maneira estável e cabal — “O brasileiro que pode — diz um publicista do II Império — é agricultor; vai exercer a única verdadeiramente nobre profissão da terra. Os empregos servis, ele os pospõe. Recordai-vos dos ares senhoris e certas maneiras fidalgas do grande proprietário — eis o tipo do brasileiro rico”.

E acentua:

“Essa aristocracia rural é que fornece todos os elementos dirigentes da política do período imperial” (Evolução do Povo Brasileiro, 2.“ edição — pags. 102 e 103).

* * *

É momento de saber-se, porém, se essa classe já política, pela continuação do exercício do poder político, e pelas transformações por que passou, encontrou-se em condições de transmitir enfim à sociedade que “lidera” o sentido do espírito público que ela acaso viesse a possuir, através de sua longa oportunidade de governo. Não é sediça a indagação, apesar de nossas afirmações até aqui feitas indicarem quais as nossas conclusões.

Vale antes separar, para não confundir, do caráter e do espírito de classe desse patriciado rural, os resultados objetivos da política do Império — a unidade nacional, a centralização do poder, o conjunto, enfim, de práticas governamentais pelas quais o Estado monárquico realizou o melhor de sua obra política, entre nós, a qual aliás no que não for independente dela, não contraria o seu espírito e os seus interesses.

Apesar desse senhoriato estar ligado à obra de paz, como à empresa da centralização do poder e da chamada unidade nacional que se costuma pôr em correlação àquela centralização, assenhoreou-se ela durante todo o Império, da cidadania política sem ter o espírito dessa cidadania política, que além de exercer deformada e desviada, restringiu-a singularmente, impedindo a formação de um povo brasileiro, quer o das cidades, que reprimiu e venceu quando dos seus perigosos e desorientados movimentos convulsivos, quer o da extensa e penetrante região agrícola e pastoril, que tutelou e afastou da ação direta do poder público.

O estudo dessa luta contra as cidades, nos seus aspectos sociais e costumes mundanos, seus choques, desajustamentos, bem como seus processos de acomodação posterior, está feito por Gilberto Freyre em “Sobrados e Mocambos”. Dali é só tirar as conseqüências de suas repercussões e influências no terreno da vida política, onde iguais choques, desajustamentos e processos de acomodação se deram com o mesmo sentido e a normal de um mesmo rumo.

Na seção rural do País, entretanto, é preciso acentuar que tanto ou mais do que a extensão dispersiva do território, foi essa classe que ocasionou, como vimos, o fenômeno da inocupação do Estado sobre as populações campesinas, criando, assim, ao lado daquela distância geográfica de que fala Oliveira Viana, uma outra distância, uma distância social de separação do Estado.

Os dois aspectos dessa iniludível contraposição ao Estado — o guerreiro caudilhesco, violento e sangrento, e o pacífico, resistente, com outra capacidade de sobrevivência — denunciam a velha e grande crise do fenômeno político no Brasil, com uma atualidade que só se disfarça aos olhos dos que acreditam que ela se debela com a simples pacificação dos nossos sertões. Porque a verdade é que a pacificação do meio sertanejo, a sua integração na “ordem”, com a redução dos seus focos de guerra e de irredentismo, não dirime a crise, modifica apenas o aspecto de sua presença, para dar lugar a uma forma fria, acomodada até, ao problema da legalidade, que retira ao Estado qualquer oportunidade de intervenção e de luta. Resistência passiva, sem frente nem flanco para investidas, o seu choque é mais o surdo embate de “uma” natureza contra “outra” natureza que tem contra si, além da própria falta de terreno, a inexistência de uma profundidade orgânica, que na outra é insuperável. Tanto quanto a luta do costume contra a lei, do hábito contra o novo, essa ordem privada é a velha ordem formando um mundo moral e um mundo sentimental, com outro sentido humano para viver e resistir contra a outra ordem, mais seca, sem riqueza emocional e tão mais perigosamente abstrata, como é a do Estado em si mesmo.

Saindo de sua base, de seu habitat, para alcançar o resto do País pelo litoral mais político e mais independente dela, essa ordem, com o domínio político e apesar do exercício político, prolonga o seu espírito institucional na comunidade política. Sofre assim, por certo, modificações de forma, como alterações de acomodação na nova soma de valores e de fatores a que vai servir. Ela mesma se constitui um dos elementos indispensáveis, no caso brasileiro, do processo político nascente, mas vai imprimir-lhe, quanto pode, os seus caracteres orgânicos, a sua índole, o seu espírito essencial.

Em outros termos de simplicidade e redução, ela, apesar de ser a classe dominante dessa comunidade política, que ajuda a nascer, leva para ela nas esferas mesmas do poder, é o que temos de concluir desse estudo, a luta e os antagonismos entre o espírito privado e o espírito público.


CAPÍTULO VI

 

O problema político brasileiro na atualidade. A Nação e a unidade política. Redução de problema e redução de solução. O brasileiro político e a sua falta de historicidade. Como se reflete o passado na ação atual. Irredutibilidades de espírito e de costumes. As contradições de que padece o homem público brasileiro. O fim deste ensaio.

 

Um dos preconceitos mais sutis e influentes de nossas concepções políticas consiste em identificar o processo de formação de nossa nacionalidade com a política da centralização do poder.

Em geral, compreendendo a nacionalidade dentro dos termos da unidade territorial e da centralização do poder, encaramo-la sempre à luz das tendências maiores ou menores do chamado espírito regional e das leis que se inclinam para o separatismo ou o combatem e repulsam.

Muitos há que seguindo o curso histórico de nossas leis políticas, pensando que assim seguem o próprio caminho histórico da nação, simplificam o problema para resolvê-lo dentro, apenas, do conceito de centralização e de descentralização.

Dão, assim, grande relevo ao papel das leis políticas como a 1a. Constituição do Império que marca a tendência centralizadora do Poder Político brasileiro, com a autonomia do município contra a hegemonia das províncias; como o Ato Adicional que inverte aquela tendência, descentralizando o Poder, por atribuir maior autonomia às províncias, em detrimento do município; ou como a lei chamada de interpretação de 1840. que recentraliza o Poder Político, com sacrifício da província, passando o município, pela maior independência que se lhe dá, a ser, na frase do Prof. Junqueira Ayres, o antídoto teórico contra o federalismo.

Aos olhos dos apologistas do Império, a empresa maior da monarquia em prol da nacionalidade foi a sua política centralizadora.

O problema, assim posto, ainda revive hoje na opinião do País, dividindo-a em partidos e corrente de idéias. Na Carta de 10 de Novembro de 1937, a questão ressurge, dentro dos mesmos termos e do mesmo espírito dialético, com as restrições que ela impôs ao regime federativo, que a república nos dotou, para deslocar, por isso mesmo, o eixo originário da representação política para os municípios.

Uma das principais conseqüências desse julgamento é insinuarmos a convicção de que o nosso processo nacional se faz pela integridade territorial com a centralização do Poder. E sem querer, porque reduzimos o problema, reduzimos também a solução.

A verdade, porém, é que uma organização nacional tem que atender a outros termos, em que a integridade territorial e a acidental “centralização” do Poder Político são antes elementos materiais do seu processo orgânico. Se uma nação é, antes de tudo, um conceito político, cumpre compreendê-la como uma comunidade que é, e surpreender o espírito que a reflete e anima.

Comunidade de homens, de um povo, enfim, uma nação, estará tanto mais formada quanto maior for a unidade do seu espírito e a solidariedade orgânica do seu todo. A unidade territorial como o Poder Político único, centralizado ou não, devem refletir essa unidade orgânica.

Pode-se, porém, inverter o processo histórico de uma nação que resulte, principalmente, da luta, tão constante, entre grupos nacionais concorrentes, com a hegemonia de um deles e destruição dos demais, sujeitos a submissão. Há nações que se formam, por exemplo, pela imposição primeira de um território individido a povos de nacionalidades diversas, sob a disciplina de um poder político único. É a nacionalização violenta, dando lugar, com freqüência, às reações de irredentismo regional.

Se ninguém se lembrou de incluir o caso brasileiro nessa hipótese, que dele se distancia como das demais nações criadas pela colonização, não é injusto dizer-se que tal hipótese se admite implicitamente na maneira errônea de se apreciar o nosso processo nacional ou no modo e critério de estudar os meios para desenvolvê-lo e intensificá-lo.

É interessante notar, apesar disso, que não erramos ou não incidimos no mesmo vício, quando se trata de estabelecer fatos apenas, porque na realidade sabemos compreender o Brasil, antes de tudo, como a conseqüência da reunião, por subordinação violenta ou fusão pacífica, de vários grupos étnicos sobre um território cuja ocupação são eles os primeiros a realizar.

Tais grupos reunidos formariam, mais que tudo, uma comunidade econômica sob uma mesma língua, sujeitos, mais ou menos, a idênticas reações e acomodações. Esta comunidade, entretanto, não tinha espírito político e nacional. Os seus elementos étnicos, por sua vez, não o possuíam e aquele, como o branco, quando perdeu o seu, não foi porque o substituísse imediatamente por outro que proviesse dela.

Contrastes de língua, de processos de colonização talvez, e, sobretudo, rivalidades políticas que herdou da respectiva Metrópole, fizeram com que se diferenciasse de outras comunhões vizinhas que ocuparam territórios da América. Essa diferenciação que já é autonomia, como originalidade econômica, vai dar-lhe a independência política por outro contraste — o da dominação comum da Metrópole Portuguesa. Unida sob essa dominação metropolitana, unida estaria para a independência contra ela.

Uma vez independente, essa unidade, porém, se torna mais precária, desde que desaparecia uma das mais fortes razões que a explicavam. Haveria por isso mesmo que alicerçá-la sobre novo eixo e outras bases. Essa “política” se resume de logo num meio — a centralização, e num fim — a integridade territorial. O horror à separação é a emoção mais viva dessa “política”, que se esforça imediatamente por policiar de cima para baixo, do centro para as periferias distantes.

Sob o governo centralizado no território individido e íntegro, não se alcançou, porém, a solidariedade política pela presença influente do Estado. É que no meio interno, considerado de baixo para cima ou dos extremos para o centro, não havia o espírito da comunhão política para aderir ao Estado. A centralização centralizava até onde podia alcançar, mas seria ilusão pensar que alcançava até onde chegava e se estendia o território integralizado e indiviso.

Se esse Estado inextenso pôde servir à unidade íntima da nação, manter o território íntegro, é porque não encontrou, por seu lado, forças que desunissem e separassem para outras direções.

Sem unidade política, nem sentimento político de qualquer espécie, restou, apenas, a comunhão ocasional saída da reunião daqueles grupos étnicos a se fundirem violentamente ou não, conforme a índole da acomodação e da mestiçagem luso-brasileira, mas passivamente indiferentes à tarefa do Poder Político no centro. À centralização escapava a irredutibilidade da grande massa populacional que formava círculo mais vasto, sem idéia política nem consciência nacional e que mal acudia a raras e vagas representações que traduzem a idéia e o sentimento de uma nação.

Se esta realidade se atenua grandemente com a queda da velha ordem tradicional, ou se disfarça sob os aspectos contemporâneos de novos influxos e fatores, não deixa, apesar disso, de constituir uma poderosa história de que os dias de hoje refletem as cores mortiças e as refrações.

* * *

O brasileiro político é, assim, o resultado de um produto histórico irregular, deformado e incompleto, como irregular e deformado é o curso de vida do Estado brasileiro.

As instituições nascem de um longo processo histórico, a denunciar similitude e sucessão de fatos e acontecimentos que acabam por constituí-las e consagrá-las. São processos do tempo, sob a regularidade de certos fenômenos sociais. Cada instituição tem uma história social e, tanto como elas, as políticas são produtos históricos demorados.

É assim que elas se modelam e se formam, adquirindo índole própria, como o espírito e o caráter que as animam e as fazem com que se reflitam nos indivíduos.

A vida das instituições políticas no Brasil, pelo intercurso de tantos acontecimentos e fatores de ordem diversa que a sobresaltam de crises e desvios, evoluiu sob condições penosas e desfavoráveis. O Estado nem pôde desenvolver normalmente a ocupação territorial do País, nem contou com uma comunidade humana em condições de organização e de idade social preparada para recebê-lo.

Rememoremos: extensão geográfica, descontinuidade territorial, dissociação social, sob profundo espírito privado, feudalidade de mando com o monopólio da função pública pela própria classe senhorial, que representava e resumia a organização privada, são os fatores e acontecimentos mais vivos e importantes do seu processo histórico no Brasil.

Claro é que esses fatores não atuam da mesma maneira, seguindo a mesma constância. Modificam-se, atenuam-se, por vezes chegam a perder a aparência, mas, de qualquer forma e ainda que desaparecendo, são eles os fenômenos mais salientes e regulares da história social do Estado na Colônia portuguesa e no Brasil independente, já em pleno caminho da nacionalidade e do exercício da função política própria.

A nossa história dita política, o conjunto das leis que atestam a existência constitucional da nação, a atuação e diretriz dos homens públicos mais representativos, revela antes o trabalho, consciente ou não, para modificar e contornar esses fatores e acontecimentos, em procura dos rumos e condições propícias à existência e ao desenvolvimento permanente das instituições políticas e do poder público.

Não representará, assim, marcos nem documentos para o estudo do processo de nossa vida pública, senão enquanto signifique os recursos, expedientes e ficções jurídicas criados e observados para sanar e remediar justamente as causas dos males inerentes à vida do Estado, entre nós.

Consideradas em outro sentido, as nossas leis podem iludir, como nos têm levado a ilusões e erros, quando interpretamos e buscamos compreender os fenômenos de nossa vida política. Já ninguém hoje tem o direito, por exemplo, de pensar que o nosso constante apelo à lei escrita, a adoção de constituições perfeitas na forma e nas concepções políticas, como o emprego e imitação de práticas políticas de outros povos, sejam a prova de que já evoluímos bastante para atingir a esses estádios superiores da organização política. Ao contrário, o nosso jurismo como o amor à concepções doutrinárias, com que modelamos nossas constituições e procuramos seguir as formas políticas adotadas, são bem a demonstração do esforço por construir com a lei, antes dos fatos, uma ordem política e uma vida pública que os costumes, a tradição e os antecedentes históricos não formaram, nem tiveram tempo de sedimentar e cristalizar.

Por outro lado, diga-se que as leis e práticas políticas que temos posto em vigor e seguido não constituem violências ou violações às chamadas realidades brasileiras, presupõem e vêm sendo antes a concretização de experiências, tentativas e esperanças por vezes ingenuamente convencidas em face de uma realidade negativa, para construir a estrutura de um Estado. É este o sentido da nossa vida política no Império e na República. Um trabalho de construção ora desproporcionado, ora artificial, sempre com maior ou menor contraste, sobre o terreno vazio.

E é natural que tudo mais, como as nossas atividades políticas e partidárias e o próprio governo, guarde esse caráter e tenha aquele mesmo sentido.

Em quantos conflitos profundos se debate a ação governamental no Brasil!

Constituindo quase que o único fulcro de nossa vida política, resumindo e absorvendo toda a atividade seja partidária ou não da comunidade política, é o governo o grande obreiro nessa tarefa construtiva. Mas, é precisamente porque lhe cabe realizar essa construção, em que se confunde, que nele se refletem o erro, o artificialismo, como os choques dessa construção diante do meio e do terreno em que se eleva.

Fraco para tarefa tamanha, ele pede, por isso mesmo, mais força, mais centralização e mais autoridade, para alcançar por golpes o que será antes resultado de lentos processos do tempo e da ação ininterrupta sob programas demorados.

Como o Estado não tem vida própria para desenvolver-se por si mesmo, nem está organizado para objetivamente atender a seus fins, confunde-se todo ele na ação direta e imediata do governante ocasional.

A nossa concepção de governo forte é, assim, sem nenhuma transição nem disfarce, a própria noção do governo de força, do governo pessoal. Pessoal tem sido todo ele, como pessoalmente poderosa a figura do governante, porque à falta de uma abstração impessoal do que seja governo, acabamos por admitir como regular a anormalidade de um Estado que é só o governante, de uma ação governamental que é só o poder pessoal do chefe do governo. Mas, é que o chefe do Estado, como pessoa e pelos seus caracteres pessoais, é a única concretização do Poder Político numa organização política sem conteúdo histórico nem espírito institucional para viver e nutrir-se de princípios e de fórmulas objetivas, como a nossa.

O Estado se compõe e biparte, em antagonismo violento quase sempre, na legalidade escrita, daí a importância da lei no Brasil como função teórica e tradução de concepção doutrinária, e a ação pessoal, direta, do governante.

É a lei escrita que organiza o Estado e a ação do governante que o realiza. Nada mais entra nessa composição. Nem tradição, nem costumes — os costumes, como estratificação histórica, de que nos fala Montesquieu, como fatores necessários à vida das nações, pois que, segundo ele, mais povos pereceram por violarem os seus costumes do que as leis escritas — nem a cooperação e a presença de um povo, impregnado do espírito e da índole da comunidade política que devia representar.

Se já é chocante a disparidade entre a legalidade escrita e a ação do governante, mais flagrante é o desequilíbrio desta ao se desenvolver nas mãos e nos móveis de nossos homens públicos. O homem público brasileiro, seja ele o político que exerce o poder governamental, seja o preposto da administração, seja o que desempenha vida partidária e constitui partidos, é, tanto quanto represente uma expressão média e típica de nossa vida pública, o lógico produto do processo social que acreditamos ter descrito em capítulos anteriores.

Todas as vezes que quisermos fazer a crítica desse homem público, como a análise de nossa vida política, é forçoso prolongar no passado a explicação do seu caráter, de suas qualidades e defeitos, de sua personalidade enfim, porque este homem em si, com a sua mentalidade contemporânea e intenções atuais, pouco vale e significa sem esse passado de forte peso tradicional, que o define e que o formou, esculpindo-lhe sentimentos e hábitos sociais, como costumes mentais e morais.

A força desse passado há de ser naturalmente superior à força das idéias e dos princípios abstratos. Na ação, então, o que é psicolologicamente certo é seguirem-se antes tendências e hábitos arraigados na conduta, do que idéias puras sem poder de impulsão para vencer, sopitar e apagar aqueles hábitos e tendências.

Um dos dramas do homem público entre nós está nas contradições de nosso passado político.

Ele terá que fazer um grande esforço de abstração para conceber e criar uma nação brasileira à moderna, seguindo as fórmulas e os princípios das agremiações superiores, e voltar-se imediata e violentamente para a massa informe e inorganizada de uma realidade que lhe oferece estádios sociais inatuais para o seu tempo e para o espírito logicamente contemporâneo de suas idéias e concepções políticas. Para ele se inverte o dissídio dos fatos e das idéias. Se é comum na estrutura jurídica, os fatos se renovarem e imporem modificações na lei e nas ideologias — “luta dos fatos contra a lei” — entre nós, face à realidade política, são as idéias e as leis que as representam, que lutam contra os fatos no esforço de renovação e modificação que eles impedem e contrariam.

E como é nesse homem que se representa esse passado, é nele que se chocam as suas contradições.

Todo esse passado está aí a refletir-se na nossa sociedade política contemporânea e no tipo de homem público em que se resume essa sociedade. O processo de revolução orgânica que ela vem sofrendo, porque dia a dia a nacionalidade vai atingindo ao que poderíamos chamar a sua politização, ainda não logrou anular os efeitos dessas causas históricas, como apagar esse passado tão tradicionalmente vivo, quando já não esteja, sob muitos aspectos, presente, como está, em várias formas de ser de nossa organização social, principalmente no Brasil interior, onde nenhuma revolução chegou até agora para modificar costumes, hábitos e sentimentos, como a posição do individuo, como parcela da comunidade política.

Como as tarefas de que o tempo se encarrega só o próprio tempo as conclui, a República, apesar de ter precipitado essa revolução, assiste ainda à luta dessa difícil diferenciação política.

Não há de ser indiferente à vida do Estado a sobrevivência de uma velha comunidade dentro da qual continuam em choque e em disputa de predomínio todos os grandes interesses e sentimentos daquela extensíssima ordem privada que veio de ocupar, concorrendo com o Poder Público, todo o espaço social de nossa organização nacional. E como essa confusão ou subversão da ordem pública na ordem privada atinge a própria essência e natureza do Estado, é claro de ver que ela comprometeu também a conduta e a atitude dos indivíduos em face desse Estado.

Sérgio Buarque de Holanda chega aos momentos mais brilhantes e agudos de sua análise em obra tão rica de méritos como é “Raízes do Brasil”, quando alude, com outra autoridade, a esse mesmo problema. Depois de referir-se ao nosso familialismo, a que dá notável relevo na conduta sentimental e afetiva do brasileiro e no fenômeno de sua cultura, mostra a força do quadro familiar e do seu “correlativo psicológico” nos individuos, escrevendo com absoluta propriedade para o nosso fim:

“a entidade privada precede sempre neles à entidade pública. A nostalgia desse quadro compacto, único e intransferível, onde prevalecem sempre e necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, deixou vestígios patentes em nossa sociedade, em nossa vida política, em todas as nossas atividades”.

E conclui, após outras considerações, que “resultava dessa circunstância um predomínio quase exclusivo, em todo o mecanismo social, dos sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e anti-política, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela Família”. (Opus. cit. pag. 89).

Para o autor de “Raízes do Brasil”, porém, tamanha circunstância só explica o que chama “a nossa adaptação difícil ao princípio do Estado democrático e os obstáculos que se ergueram contra a formação de um aparelhamento burocrático eficiente entre nós” (idem).

Para nós, ao contrário, um problema de tanta profundidade e com tal poder de repercussão, não se pode restringir a tão poucas conseqüências e efeitos.

Ele atinge à questão mesma do Estado e não a essa ou aquela forma de organização estatal. Não seria o Estado democrático, como vimos, o que maiores incompatibilidades ofereceu à recepção e implantação do fenômeno do Poder Político numa organização social como a que tivemos até aqui.

Tanto quanto se distinga um governo do povo de um governo para o povo, haveria de se exigir do Estado, no desempenho mesmo desse endereço, que se dirigisse, com outro poder de modificação e reforma, a uma massa populacional indiferente como a nossa, para dar-lhe o sentido e a expressão de um povo político. É o que se precisaria obter e esperar dele.

Ante a realidade do Brasil, o papel do Estado não é refletir e conservar tal ou qual ambiência, mas assumir a função de reformar, criar, educar um povo.

Não nos parece razoável, nem de acordo com a nossa condição e cultura histórica, que nos limitemos a ter surpresas com a adaptação difícil desse ou daquele princípio político entre nós, mas, já certos, de antemão, dessas dificuldades para todo e qualquer princípio político, o que nos caberá é avaliar essa prevista adaptação difícil, seguir o seu processo e escolher os meios de reduzi-la.

Não é pelo Estado democrático que nós explicamos a nossa adaptação difícil a um princípio político. É, entretanto, a demora ou dificuldade de adaptação ou redução da comunidade brasileira ao elo e princípio políticos, que explica as incompatibilidades de um Estado, democrático ou não, que esteja a sofrer a luta da diferenciação política.

* * *

A ausência do Estado ou a sua imperfeita acomodação no dorso de uma sociedade que pôde subsistir prescindindo de sua presença, tirou ao indivíduo os ensejos de atingir aquela condição de cidadania, de categoria política, ou não lhe deu tempo ainda de alcançá-la pela forma compreensiva e total que marca o nascimento e a construção social do homem público.

Dentro de uma ordem política assim imperfeita ou inacabada, a que se contrapôs uma ordem privada tão viva e extensa, a resultante foi o desequilíbrio, antes de mais nada.

Numa história em que tudo foi contra o Estado, favorecendo, por outro lado, a vitória e a revivescência de outros grupos e princípios de mando e de organização, a instituição política, além de sua precária projeção objetiva, por não ter prolongamento até aos centros de força e disciplina da comunidade, como nos seus hábitos e costumes, perdeu igualmente o poder de repercussão no espírito dessa comunidade, a que não pôde imprimir, nítido e inequívoco, o sentido público diferenciado.

É sob esse critério, à luz de sua própria história, que o Brasil é uma nação nova pelo que falte completar o processo de sua diferenciação política, e um velho povo, vivendo sob uma velha ordem, no que persista em guardar e relembrar as formas e o espírito preexistentes que essa história mesma guarda e transmite à realidade contemporânea.

O que se desorganiza é esse regime. O Estado não. Pelo contrário, de uma fase de inorganização inicial, demorada e tormentosa para a vida nacional, a instituição estatal veio entrando em seu momento de organização e de diferenciação.

Da sólida e impenetrável organização feudal, ou, pelo menos, com caráter anárquico em relação à hierarquia do Estado, a resumir o seu longo passado enquanto presidiu à gestação e ao desenvolvimento de uma sociedade mais que tricentenária, a comunhão brasileira começou, quase aos nossos olhos e ainda empreende, a substituição da disciplina e dos princípios contensores tradicionais pela disciplina e pela contensão do Estado.

Nós não partimos, pois, de um caos social, de um desses estados confusos de desorganização, indisciplina e desagregação, como descrevem os nossos cronistas, para entrar na estrada segura da organização política.

O Estado não teria sido, desse modo, senão um refúgio, um desses recursos de salvamento, a que acorresse uma comunhão em desordem, antes de perecer e desagregar-se. A vida do Estado, entre nós, não foi porém a história de uma submissão a um princípio de autoridade tanto mais rápida e violentamente obtida, quanto necessária e procurada, pelo próprio instinto de conservação e solidariedade de uma comunidade entre cansaços e perigos de fracionamento e indisciplina.

Ao revés disso, o Estado viveu, como teve que se desenvolver, enfrentando uma ordem de rara força e intensidade que possuía a sua disciplina, o seu prestígio de autoridade e mando e que pôde desempenhar, na sociedade brasileira, a função de centro e princípio de organização que a manteve e sustentou até nossos dias. Bastava a essa sociedade. Foi por isso mais penosa e chocante a substituição dessa ordem por outra, cuja implantação nem sempre traduzia uma dessas aspirações e necessidades comuns tão vivas e claramente expressas, às vezes, em povos e nações nos instantes dos grandes perigos externos ou na hora em que vão encetar a sua aventura expansionista. Desconhecendo tais momentos tão ricos de conseqüências, na precipitação do processo nacional e político, a sociedade brasileira poderia, sob muitos aspectos, continuar à sombra de sua tradição rural e patriarcal, compensando a necessidade de governo com o sistema da enfeudação do mando, para adiar a oportunidade da universalidade do Poder Político puro.

O Estado, quando muito, seria um poder de presença, contingência que lhe é muitas vezes imposta ainda pela realidade brasileira, e, nessa conjuntura, tão ineficiente quanto não se lhe oferecia nem espaço nem oportunidade para se fazer necessário como instância de recurso, apelo e proteção.

Uma sociedade de elos tão apoliticos ou, o que é mais notável, de um sistema de domínio a deformar a natureza do poder político, foi sempre animada de um espírito inconformado, mais ou menos irredutível, ao poder do Estado, à compreensão de sua natureza e da sua índole que se perdem em vaga noção, vazia de conteúdo concreto, ou se confundem, para se perder do mesmo modo, na exteriorização material da força ou da violência pessoal.

Daí aquela formula brasileira: Um Estado fraco a nutrir-se da violência dos governos chamados fortes.

A própria violência é um dos aspectos de sua falibilidade.

Esse apelo à força ou a outros recursos de ação direta e elementar, denuncia a carência de um espírito público em que a instituição política pudesse apoiar-se e ganhar, por sua vez, outra ascendência no sentimento e no ideal coletivo. É um Estado que nem conquistou a força de uma idéia, nem a nitidez de uma noção para impor-se como representação viva e clara na alma da comunhão a que serve e domina.

Interroga-se como uma perplexidade incompreendida ou se rebaixa a símbolo simplista e deformado. E como é impossível ignorar-se ou diminuir o valor do elemento ideológico na conclusão de um processo social, um Estado, a que falte esse elemento psicológico, não ganhou ainda a consistência das instituições e do espírito que as anima.

Sem que possa, como a instituição familiar e religiosa, alcançar recamos sentimentais, ou integrar-se em qualquer mística que o desnaturaria até à opressão brutal e estúpida, o Estado pode, contudo, encontrar uma certa base afetiva no sentimento de pátria ou nalguma missão histórica que lhe crie uma possível atmosfera emocional.

Falta, porém, ainda no caso brasileiro, ao sentimento patriótico nacional riqueza suficiente para lançar à idéia do Estado tamanho contraforte.

A nossa idéia de pátria como de nação é, antes de tudo, um complexo geográfico. Se lhe analisarmos o conteúdo deparamos sempre um sentimento, mais ou menos distinto, de orgulho pela extensão da terra brasileira, a grandeza de múltiplos aspectos físicos, a imponência de certos quadros paisagísticos cheios de águas caudalosas e florestas virgens. Nesse estado de alma, a que se chega ao verdadeiro lirismo, um lirismo exaltado que canta a terra, os rios e as montanhas, não se encontra quase nunca o elemento histórico. É assim um sentimento de pátria mais geográfico do que histórico, de pátria que não foi feita pelo homem, que não foi construída, de uma pátria, enfim, sem historicidade, que é mais rincão dado e descoberto por acidente feliz e em que o espírito como que se compraz tão só em contemplar, no entusiasmo do sentido visual. Falta-lhe quase sempre a recordação do esforço do homem, de sua luta por conquistá-la e por fazê-la através de perigos e de guerra, que um passado ilustre e remoto engrandecesse e prestigiasse.

Esta ausência de elemento histórico, pela inexistência mesma de uma história mais cheia de traços e passagens humanas, contribuiu para que o nosso sentimento nacional se ligasse mais à idéia da terra, da sua paisagem, dos seus recursos materiais inexplorados, da que à noção, com outra conseqüência moral, de uma comunidade trabalhada de episódios e de acontecimentos em que a terra passasse a ser simples acessório, por não ter o mesmo valor na reminiscência coletiva.

Por isso é que esse sentimento propende para aquele lirismo, para o canto, enfim, das coisas inumanas, sem o sentido trágico que os povos trazem do passado e que lhes dá outra intensidade emotiva à idéia nacional. Bem observou um francês, o Sr. Louis Mouralis, em livro que escreveu recentemente sobre nós, esse patriotismo brasileiro a repousar “sur une admiration amoureuse de la nature tropicale, de sa splendeur, de sa force, de sa générosité, sur l'assurance obscure qu'elle enveloppe la vie humaine d'un charme qu'on ne saurait trouver ailleurs”. Mas acrescenta:

“On ne songe pas assez qu'une nationalité n'est pas une qualité, un don du ciel, qui existe une fois pour toutes et se surajoute miraculeusement à l'individu, mais bien une oeuvre humaine (à laquelle, il est vrai, nous devons les trois quarts de ce que nous sommes), une création jamais achevèe, toujours menacèe, et qu'il faut travailler à consolider sans cesse. (Un Séjour aux États-Unis du Brésil — pags. 97 e 98).

Um sentimento de tal conteúdo é inassimilável ao mundo social da idéia eminentemente histórica do Estado e nele o que se anima de historicidade, o que representa o lado humano de esforço construtivo dos homens ou dos indivíduos, quase não recorda, na história brasileira, a presença do Estado, ainda naquelas empresas maiores, em que lhe cabia resumir e conter a vontade e a aspiração de toda uma coletividade.

Sem sentir o Estado ligado ao seu destino nem ao mundo dos seus ideais e sentimentos, o homem brasileiro tanto que seja um homem histórico, um homem produto do fenômeno brasileiro, é tão apolitico e anárquico quanto o passado que nele revive.

A vida pública como o exercício da atividade política constituem para ele uma verdadeira exorbitação de tudo que lhe é tradicionalmente próprio e habitual. É como uma experiência nova a que se entrega contrafeito, inseguro de si mesmo e incerto nos seus propósitos. O meio e os costumes não lhe ensinam como dirigir-se nem como deverá construir o seu sentimento político. Como homem público faz-se por si mesmo, naquele esforço próprio do autodidata que terá de agir sempre ao arrepio dos fatos, dos acontecimentos e da massa que o rodeia, acabando por traduzir, nas menores expressões, o descontentamento de toda existência singular ou desintegrada e que forma o fundo de suas atitudes, explica de certa sorte o feitio revolucionário de suas idéias e a propensão para a luta veemente e o combate dispersivo. Esse descontentamento que chega a formar partido, entre nós, é, apesar disso, uma vaga e imprecisa emoção de hostilidade sentida que não é só a do “patriota” sofredor ou a do indignado “revolucionário” que condena erros, desmandos e desonestidades dos grupos de governo e de administração do País. Ela reflete a imprecisão do meio para a vida pública ou a ausência de rumos e correntes, as verdadeiras correntes sociais, que determinam e conduzem, facilitando o programa e a ação voluntária dos homens, os acontecimentos, os ideais e os sentimentos a que eles devem servir e representar.

Ou esse descontentamento, ou a simples conivência, que define temperamentos, dos que seguem sem resistências, com suave cepticismo contemporizador, a marcha dos fatos e das realidades ambientes, sem outro espírito de reforma e de inconformação, que modela o conservador acomodado que não agrava os contrastes nem acentua as contradições.

Desse pessimismo comum, há um traço interessante na base sentimental de duas formas díspares de reação recente, de causas aliás tão complexas — a revolução de 30 e o movimento integralista — o que bem demonstra que a sua principal conseqüência não é a descrença dissolvente, mas a crença desesperada.

O homem público não existe, na vida política militante ou não, livre desses choques ou dessas contradições. Aquela esfera mínima que o Estado ocupa na comunidade nacional é, por sua vez, o espaço limitado de que dispõe para atender ao sentido e às funções da vida pública. Tem ele por isso os seus movimentos cerceados, como diminuída a projeção de sua força condutora, além de ignorar os contactos do povo, que ele não pode sentir esteja presente influindo dessa ou daquela forma na sua carreira, como no timbre e substância das idéias que formam a sua opinião e o seu sentimento público. Esta ausência de repercussão ou influência da coletividade ou da massa geral da comunhão, em si mesmo, acaba por fazê-lo um crente da ação pessoal, da iniciativa voluntária que ele a si próprio atribui, inclinando-o a conceber e a desejar ambientes de elite em que situa o seu mundo moral, o problema da cultura, como o da política que pensa e dirige uma nação.

Por esse mesmo processo de suas convicções, termina afinal por adquirir um sentimento de classe, de classe alta principalmente, em que se envolve e vai lentamente estabelecendo distâncias e separações.

Se, porém, transpõe essa esfera, encontra mais além um país que o recebe dentro de outro estilo de vida, estruturado em bases diametralmente opostas àquelas donde pensa provir, o qual lhe impõe de logo novos elos e vínculos de acomodação e relações sociais, para violentamente despojá-lo de sua personalidade primeira, criando-lhe, sobretudo, uma outra forma de conduta e ação. Ele se encontra, enfim, no brasileiro tradicional, profundamente ligado às constantes do seu passado, coerente até aqui com a estrutura social em que veio sobrevivendo, alheio ao que não for familiar à sua ordem, ao seu gênero de vida e ao mundo das convicções diretoras de sua atividade e pensamento.

O que marca esta zona extensa do país brasileiro é, até aqui, a sua inconformação dentro da estrutura e, mais que isso, dentro do sentimento do Estado. O homem público como a ação pública não encontram, por isso, mais superfície para projetar-se e estender-se. Não só ele se modifica, como ela se desnatura.

Começa então o grande conflito do nosso processo político. Uma realidade infensa que a ele se submete, também o perverte. Ou o reduz e simplifica.

Ignorar essa realidade tem sido o nosso sistema de interpretação histórico-social. O desejo talvez de criar uma nação nos tem feito esquecer a oportunidade de analisá-la. Há, porém, uma forma de ignorar, ainda que pretenda estudar. Quando inicialmente o espírito se volve para determinada realidade na esperança de que se não afaste de todo das inspirações de certos ideais, é freqüente deformá-la ou perder diante dela a acuidade para as suas imperfeições reais ou presumidas.

* * *

Este ensaio, todavia, não se encerra com o propósito de perseguir conseqüências e esgotar conclusões. Não quer mesmo, ser um livro de conclusões. Visa antes trazer para o primeiro plano das cogitações do que se vem chamando com razão “estudos brasileiros”, os elementos e conseqüente interpretação de certas formas e constantes da vida brasileira, na certeza de que eles podem fazer luz ou explicar muitas das irredutibilidades do meio brasileiro e do seu tipo social, aos vínculos e sentido do processo político a que uma nação que se forma há de propender e chegar.

 

FIM


Notas

(1) Traduzido do francês.

(2) Aliás, o Anuário Estatístico de 1937, baseado no recenseamento de 1900, tomando como cálculo a taxa de crescimento anual média de 0,0286, avalia para o ano de 1911 a população das Capitais brasileiras em 2.666.789 habitantes. De uma forma ou de outra, esses números não infirmam as considerações aqui expendidas.



©2006 Nestor Duarte

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Junho 2006

 

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