Henrique VIII - William Shakespeare capa

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HENRIQUE VIII

WILLIAM SHAKESPEARE

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Henrique VIII
William Shakespeare

Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
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Fonte Digital
www.jahr.org

Copyright:
Autor: William Shakespeare
Tradução: Carlos A. Nunes
Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Mores
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


 

A FAMOSA HISTÓRIA DA VIDA DO REI

HENRIQUE VIII

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William Shakespeare


 

ÍNDICE

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PERSONAGENS
PRÓLOGO
ATO I
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
ATO II
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
ATO III
Cena I
Cena II
ATO IV
Cena I
Cena II
ATO V
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
EPÍLOGO


 

PERSONAGENS

O REI HENRIQUE VIII.
CARDEAL WOLSEY.
CARDEAL CAMPEIO.
CAPÚCIO, embaixador do imperador Carlos V.
CRANMER, Arcebispo de Cantuária.
DUQUE DE NORFOLK.
DUQUE DE SUFFOLK.
DUQUE DE BUCKINGHAM.
CONDE DE SURREY.
LORDE CHANCELER.
LORDE CAMAREIRO.
GARDINER, Bispo de Winchester.
BISPO DE LINCOLN.
LORDE ABERGAVENNY.
LORDE SANDS.
SIR TOMAS LOVELL.
SIR HENRIQUE GUILDFORD.
SIR ANTÔNIO DENNY.
SIR NICOLAU VAUX.
Secretários de Wolsey.
CROMWELL, criado de Wolsey.
GRIFFITH, gentil-homem da câmara da Rainha Catarina.
Três gentis-homens.
Oficial da Ordem da Jarreteira.
Doutor Butts, médico do rei.
Intendente do Duque de Buckingham.
Brandon e um sargento de armas.
Porteiro da Câmara do Conselho.
Porteiro e seu ajudante.
Pajem de Gardiner.
Pregoeiro.
RAINHA CATARINA, esposa do Rei Henrique; depois, divorciada dele.
ANA BOLENA, sua dama de honra; depois, rainha.
Uma velha dama, amiga de Ana Bolena.
PACIÊNCIA, dama da Rainha Catarina.
Nobres e damas; criadas da rainha; espíritos que lhe aparecem; escrivães, oficiais, guardas e outros servidores.


 

PRÓLOGO

 

Hoje não venho provocar-vos riso. Cenas agora de mais peso e siso, sérias, graves e tristes, imponentes e nobres quadros, que vos hão de ardentes lágrimas arrancar é o que em verdade viemos aqui trazer. Quem de piedade for capaz, pode dar à nossa peça uma lágrima ou duas, porque ela essa homenagem merece. Quem dinheiro só despende em assunto verdadeiro, nela achará verdade. Quem se alegra com uma ou duas vistas e, de regra, não regateia aplausos, se paciente se revelar e calmo, há de, contente, multiplicar o seu vintém modesto num rápido espetáculo e em tudo honesto. Somente quem deleite acha na vista de cena alegre ou torpe, e que imprevista barulheira agradece, golpes, duelo de algum tipo vestido de amarelo, será decepcionado. Pois, de fato, gentis ouvintes, por um pugilato, fazer entrar um bobo numa peca, não seria faltar, tão-só, a promessa de nosso próprio crédito, no intento de vos representar algo a contento, mas também alienar para o futuro de um amigo sensato o afeto puro. Em nome, pois, do céu, por serdes tido na conta do auditório mais sabido, do mais esclarecido da cidade, mostrai, como o desejo, gravidade: imaginai na forma mais notória as pessoas de nossa nobre história, tal como em vida foram. Na grandeza própria as acompanhai, na mais acesa companhia de tantos seguidores, turba anelante que enche os corredores. Mas vede agora como a cena séria vai bater tristemente na miséria, e vos direi, se rirdes um momento, que é possível chorar num casamento.


 

ATO I

CENA I

 

Londres. Na antecâmara do palácio. Entra por uma porta o Duque de Norfolk; por outra, o Duque de Buckingham e Lorde Abergavenny.

 

BUCKINGHAM — Feliz encontro e venturoso dia. Como passastes desde que nos vimos ultimamente em França?

NORFOLK — A Vossa Graça muito agradeço. Com saúde, e sempre admirador de quanto vi por lá.

BUCKINGHAM — Um acesso de febre inoportuna me fez ficar no quarto prisioneiro, quando esses sóis da glória, luminares da humanidade, em Ardres se encontraram.

NORFOLK — Foi entre Guines e Ardres. Eu me achava presente e os vi saudarem-se a cavalo; contemplei-os depois, quando se apearam, e abraçarem-se os vi de tal maneira, como se confundidos estivessem. E se assim fosse, mesmo, onde acharíamos quatro tronos que, postos na balança, eqüivalessem a esse trono duplo?

BUCKINGHAM — Todo esse tempo eu prisioneiro estava no meu quarto de doente.

NORFOLK — Então perdestes a visão do que a terra tem de grande. Poder-se-ia dizer que até aquela hora solteira estava a pompa e que nesse ato com algo se casou acima dela. Cada dia vencia os anteriores, até que chegasse o último e deixasse como próprio o prodígio deles todos. Quando os franceses, somente ouro e brilho, como deuses pagãos nos ofuscavam, no dia imediato nós fazíamos da Grã-Bretanha a Índia: qualquer homem que se alçasse, uma mina parecia. Os anõezinhos pajens dir-se-iam querubins, todos de ouro; as próprias damas, não afeitas à lida, quase suavam sob o peso do orgulho, de tal forma que o trabalho de enfeite lhes servia. Se qualquer mascarada se dissesse incomparável, a da subseqüente noite a deixava estúpida e mendiga. Cada um dos dois monarcas, de igual lustre, mais ou menos brilhante se ostentava, conforme aparecesse. Era louvado de per si qualquer deles; quando juntos, dizia-se que um só se percebia, não se atrevendo os próprios entendidos a confrontá-los nunca, que esses astros — pois assim lhes chamavam — desafiavam, por seus arautos, para as altas justas seus espíritos nobres, realizavam feitos além de quanto é concebível, de tal forma que as fábulas de antanho, como possíveis tendo-se afirmado, ganharam novo crédito, levando-nos a ter por certo o que nos conta Bevis.

BUCKINGHAM — Oh! ides muito longe.

NORFOLK — Tão verdade como em ser nobre e a honestidade na honra procurar sempre: os diferentes lances dessa festa algum brilho perderiam nos mais altos discursos, pois para eles a melhor língua era dos próprios feitos. Tudo ali era real; nenhuma parte colidia com outra; a ordem fazia ressaltar tudo, executando todas as funções seu papel à maravilha.

BUCKINGHAM — Quem dirigiu, pergunto, quem, segundo vossa opinião, reuniu o corpo e os membros dessa esplêndida festa?

NORFOLK — Alguém, decerto, que inclinação nenhuma demonstrara para um negócio desses.

BUCKINGHAM — Por obséquio, milorde, quem fez isso?

NORFOLK — Regulado foi tudo pelo engenho extraordinário do muito reverendo Cardeal de York.

BUCKINGHAM — O diabo que o carregue! Em todo bolo mete o dedo ambicioso. Que tinha ele que ver com tanto excesso de vaidade? Espanto-me de ver que uma montanha de sebo, só com seu volume, possa os raios absorver do sol benéfico e da terra desviá-los.

NORFOLK — Certamente, senhor, há nele estofo que assegura tão grande resultado, pois o apoio não tendo de linhagem mui notória, cujo prestígio abre caminho aos netos, nem havendo prestado altos serviços à coroa, nem tendo como aliadas pessoas de valor, mas, como a aranha que de si própria tece a fina teia, prova que é a força de seu próprio mérito que lhe franqueia a estrada, dom celeste que um lugar lhe assegura junto ao trono.

ABERGAVENNY — O que lhe deu o céu, não sei dizê-lo; que olhar mais penetrante isso descubra. Mas seu orgulho posso ver, que espia por todos os seus traços. De onde o obteve? Se não do inferno, é que é mesquinho o diabo, ou já deu quanto tinha, e ele outro inferno dentro de si se pôs a criar de novo.

BUCKINGHAM — Nessa excursão de França, por que diabo chamou a si o encargo, à revelia do rei, de designar os que deviam constituir seu séqüito? Ele mesmo a lista preparou dos gentis-homens, de maneira geral só escolhendo os a que ele pretende impor um fardo muito grande para honra secundária. Uma simples cartinha de seu punho — sem consulta ao Conselho generoso — faz do destinatário auxiliar dele.

ABERGAVENNY — Sei de parentes meus — três, nesse caso, pelo menos, se encontram — que com isso de tal modo esgotaram seus haveres, que jamais poderão voltar ao prístino bem-estar da família.

BUCKINGHAM — Oh! muita gente teve a espinha quebrada pelo peso de suas propriedades, só para irem nessa imponente viagem. Tanta mostra de vaidade, no entanto, tão-somente serviu para animar umas conversas de consistência nula.

NORFOLK — É pesaroso que eu penso que essa paz entre os franceses e nós não vale quanto nos custou.

BUCKINGHAM — Não houve quem, depois da tempestade que veio logo após, não se sentisse como inspirado e, sem consulta prévia, não fizesse, de pronto, a profecia de que essa tempestade, assim tirando da paz o tênue véu, só pressagiava sua ruptura súbita.

NORFOLK — É bem claro, pois já quebrou a França o compromisso e embargou em Bordéus a carga toda de nossos mercadores.

ABERGAVENNY — Foi por isso que nosso embaixador foi despedido?

NORFOLK — Sim, sem dúvida alguma.

ABERGAVENNY — Belo pacto, comprado por um preço exorbitante.

BUCKINGHAM — E todo esse negócio, dirigido foi por nosso cardeal mui reverendo.

NORFOLK — Perdoe-me Vossa Graça, todo o Estado conhecimento tem da desavença que entre vós e o cardeal há muito existe. Assim, vos aconselho — e aceitai isto de um coração que vos deseja apenas honra e prosperidade muito sólida — considerardes como equivalentes o poder do cardeal e sua astúcia; e mais: que a tudo quanto seu grande ódio deseje pôr em prática, não há de faltar nunca o instrumento sempre a jeito. Não ignorais a natureza dele; sabeis que é vingativo, e eu tenho ciência de que sua espada é de mui fino corte. E comprida; podemos dizer, mesmo, que alcança longe; e onde atingir não possa, decidido ele a joga. No imo peito guardai este conselho, pois haveis de achá-lo salutar. Eis que vem vindo a rocha que evitar vos aconselho.

(Entra o Cardeal Wolsey; a bolsa é trazida na sua frente; alguns guardas e dois secretários com papéis o seguem. De passagem, o cardeal e Buckingham trocam olhares desdenhosos.)

WOLSEY — Olá! O processo do inspetor do Duque de Buckingham está ai?

PRIMEIRO SECRETARIO — Aqui se encontra, senhor.

WOLSEY — E ele está pronto, pessoalmente?

PRIMEIRO SECRETARIO — Sim, quando a Vossa Graça for servido.

WOLSEY — Bem; depois trataremos desse assunto. Buckingham vai baixar o olhar altivo.

(Sai Wolsey com seu séquito.)

BUCKINGHAM — Esse cão de açougueiro tem a boca venenosa e eu não posso amordaçá-la. Assim, não despertá-lo é aconselhável. O livro do mendigo tem vantagem sobre o sangue de um nobre.

NORFOLK — Como assim! Ficastes exaltado? É conveniente pedir a Deus moderação, que é o único remédio que reclama vossa doença.

BUCKINGHAM — Li algo contra mim nos olhos dele. Seu olhar me humilhou, como ao mais ínfimo dos servos, e ora mesmo me traspassa traiçoeiramente. Foi falar com o rei; sigo-lhe já no encalço, para os olhos obrigá-lo a baixar.

NORFOLK — Parai, milorde, e que vossa razão com vossa cólera se ponha a discutir sobre esse intento. Quem altos montes galga, de começo progride lentamente. A zanga é como um cavalo ardoroso que, podendo seguir por onde queira, o próprio fogo logo o deixa cansado. Na Inglaterra não há quem poderia aconselhar-me como vós; sede pois para vós mesmo o que seríeis para vosso amigo.

BUCKINGHAM — Vou procurar o rei, e pela boca da honra aos gritos farei que a empáfia desse tipo de Ipswich ao pó lançada seja; se não, proclamarei que se anularam todas as diferenças entre os homens.

NORFOLK — Sede sensato, não deixando quente por demais a fornalha do inimigo, para que não venhais a cair nela. Ultrapassar podemos, por excesso de rapidez, a meta a que almejávamos, perdendo-a, assim, por esse próprio excesso. Como o sabeis, a chama que o licor faz subir na vasilha e derramar-se, parecendo aumentá-lo, o esgota apenas. Sede sensato, torno a aconselhar-vos. Na Inglaterra não há cabeça alguma capaz de dirigir-vos como a vossa, se quiserdes com a seiva da prudência, quando não apagar, deixar mais brando o fogo da paixão.

BUCKINGHAM — Senhor, por isso vos fico agradecido; vou guiar-me por vossa prescrição. Mas esse tipo arqui-orgulhoso — não me leva o excesso de cólera a nomeá-lo desse modo, mas honesta emoção — por muito certos indícios, provas claras como as fontes no mês de julho, quando distinguimos no fundo os grãos de areia, tenho em conta de corrupto e traiçoeiro.

NORFOLK — Não “traiçoeiro”; não digais isso.

BUCKINGHAM — Vou dizê-lo ao rei, e minhas provas hão de ser tão fortes como praia de rocha. Sede atento. Esta santa raposa, ou lobo, ou ambos — pois tão voraz ele é quanto astucioso, e tão propenso a excogitar maldades, a executá-las sempre, de alma e posto que reciprocamente se infeccionam, contanto que estadeie aqui e em França toda essa pompa — ao nosso soberano sugeriu esse pacto tão custoso, essa entrevista que absorveu tesouros de tal valia e que acabou partindo-se, qual vidro ao ser limpado.

NORFOLK — É certo, é certo, por minha fé; fez isso.

BUCKINGHAM — Por obséquio, senhor! Esse cardeal astuto e fino redigiu os artigos do contrato como bem entendeu, tendo sido eles ratificados com ter declarado: “Faça-se assim!” Mas são tão úteis como muletas para um morto. Pouco importa! Foi o conde-cardeal o autor de tudo; o digno Wolsey, que errar não pode nunca, foi quem fez isso. Mas o que se segue — que a meu ver é uma espécie de ninhada da velha mãe Traição — é apenas isto: Carlos, o imperador, sob o pretexto de vir ver a rainha sua tia — foi apenas pretexto, que, em verdade, veio ele para cochichar com Wolsey — fez-nos uma visita. Ele temia que do encontro marcado entre os monarcas da Inglaterra e da França lhe pudesse surgir qualquer prejuízo, que, em verdade, nessa liga ele via qualquer coisa que podia ameaçá-lo. Assim, com nosso cardeal ele tratou muito em segredo — como imagino, sim, tenho certeza, pois convencido estou de que o monarca pagou antes de obter o prometido, com o que teve a intenção assegurada bem antes de enunciá-la. — Em suma, havendo franqueado a estrada e de ouro atapetado, desta arte o imperador manifestou-se: que nele estava obter que o rei o curso desviasse da política e o contrato de paz viesse a romper. É necessário que o rei saiba — e por mim virá a sabê-lo — que o cardeal deste modo compra e vende a honra do reino, e tudo em seu proveito.

NORFOLK — Entristece-me ouvir tais coisas dele; desejara saber que há nisso equívoco.

BUCKINGHAM — Não, nem no menor ponto; apresentei-o com os verdadeiros traços com que ele há de desmascarado ser dentro de pouco.

(Entra Brandon, precedido de um sargento de armas.)

BRANDON — Vosso ofício, sargento, executai-o. É convosco, senhor Duque de Buckingham e Conde de Hereford, Stafford e Northampton; em nome de nosso alto soberano, por crime de traição eu te detenho.

BUCKINGHAM — Milorde, sobre mim caiu a rede; a vida perco por traição e astúcia.

BRANDON — Pesa-me ver-vos sem a liberdade e ter de ao fim levar esta incumbência. A determinação de Sua Alteza é que sejais levado para a Torre.

BUCKINGHAM — Protestar inocência fora inútil; a mancha que em mim pesa deixa negra minha própria brancura. Seja feita a vontade do céu, agora e sempre. Obedeço. Oh! adeus, adeus, milorde de Abergavenny.

BRANDON — Não; ele também vos fará companhia.

(A Abergavenny.)

É da vontade do monarca que vades para a Torre até poderdes ser certificado do que ele decidir.

ABERGAVENNY — Tal como o duque, também direi que em tudo seja feita a vontade do céu, e obediente me declaro ao prazer do soberano.

BRANDON — Ordem expressa aqui trago do rei para a prisão de Lorde Montacute, devendo, após, prender João de la Car, o confessor do duque, um tal Gilberto Peck, seu chanceler...

BUCKINGHAM — Bem, bem; os membros dessa conspiração. É tudo, creio.

BRANDON — Há um monge cartuxo.

BUCKINGHAM — Como! Como! Nicolau Hopkins?

BRANDON — Esse.

BUCKINGHAM — É um miserável meu intendente. O cardeal imenso lhe ofereceu dinheiro. Tenho os dias contados; sou a pobre sombra, apenas, de Buckingham, que neste instante a forma de uma nuvem assume, para escuro deixar meu claro sol. Milorde, adeus.

(Saem.)


 

CENA II

 

Sala do Conselho. Entra o rei, apoiado no ombro do cardeal, os nobres do Conselho, Sir Tomás Lovell, oficiais e pessoas do séquito. O cardeal vai sentar-se aos pés do rei, ao lado direito.

 

REI HENRIQUE — Sim, toda a minha vida, do mais fundo do coração vos agradece tanto cuidado e vigilância. Eu me encontrava na iminência de ser estraçalhado pela deflagração de uma conjura. Mas frustraste-la; muito agradecido. Trazei a nossa frente o gentil-homem da família de Buckingham; desejo ouvi-lo pessoalmente. Vai contar-me mais uma vez, sem discrepância alguma, as traições de seu amo.

(Ouvem-se vozes, dentro: “Passagem para a rainha!” Entra a Rainha Catarina, introduzida pelos Duques de Norfolk e de Suffolk. Ela ajoelha-se. O rei se alça do trono, levanta-a, beija-a e fá-la sentar-se ao seu lado.)

RAINHA CATARINA — Não; preciso ficar de joelhos? vim como pedinte.

REI HENRIQUE — Levantai-vos e, ao nosso lado, vinde tomar vosso lugar. Não é preciso que nos digais metade do pedido. A metade possuís de nosso mando; sem ser pedida, a outra metade é vossa. Dizei o que quereis, que já está feito.

RAINHA CATARINA — Muito agradeço a Vossa Majestade. Que vos ameis e, nesse grande afeto, não deixeis nunca de atender vossa honra, nem de vosso alto posto a dignidade, o objeto constitui de meu pedido.

REI HENRIQUE — Senhora, continuai.

RAINHA CATARINA — Tenho-me visto solicitada por não poucos súditos, os de maior apreço, que se queixam de grandes aflições que todos sofrem. Para eles comissões têm sido enviadas que o coração estraçalhar conseguem da lealdade de todos. E conquanto, meu bom Lorde Cardeal, eles dirijam contra vós as censuras mais acerbas, de serdes o fautor dessas violências, o rei, nosso senhor — que o céu conserve seu nome isento de qualquer vileza! — escapar não consegue dos discursos desrespeitosos, sim, dessa linguagem que os flancos arrebenta da lealdade e quase em rebelião se manifesta.

NORFOLK — Não “quase”; manifesta-se, realmente. Pois sob esses impostos tão pesados, todos os fabricantes de tecidos, sustentar não podendo tanta gente, em massa despediram seus fiandeiros, pisoeiros, tecelões e cardadores, que, incapazes de uma outra atividade, pela fome acossados, sem recurso, premidos pelo desespero, os fatos atacam pela frente. Todos se acham presentemente em franca rebelião, servindo em suas filas o perigo.

REI HENRIQUE — Impostos? De que espécie? Quais são eles? Senhor cardeal, que vos achais conosco censurado igualmente por tudo isso, que sabeis a respeito desse imposto?

WOLSEY — Se o permitis, senhor, conheço apenas uma pequena parte dos negócios relativos ao Estado e me coloco junto dos outros que comigo marcham.

RAINHA CATARINA — Sim, milorde, é verdade: mais que os outros não sabeis; mas sois vós o autor de coisas que do conhecimento são de todos e que não são saudáveis para quantos ignorá-los de todo quereriam, mas forçados se vêem a conhecê-las. Sim, essas exações, de que informado quer ser o soberano, só o ouvi-las nos causa mal as ouças; suportá-las... não resistimos sob o peso delas. Dizem que fostes vós o autor da idéia; não sendo assim, estais sendo inculpado por maneira mui grave.

REI HENRIQUE — Como! Como! Mais exações? Vejamos: de que espécie? De que espécie são elas?

RAINHA CATARINA — Grande risco existe em pôr a prova, desse modo, vossa paciência; mas encontro apoio na promessa de Vossa Majestade, de que me perdoaria. A geral queixa provém das comissões, que deles todos exige a sexta parte dos haveres, que arrecadada tem de ser com urgência, sendo o pretexto que para isso alegam, vossas guerras na França. Isso dá pábulo às línguas atrevidas; longe as bocas cospem todo o respeito e se congela nos frios corações toda a lealdade. Onde moravam preces, moram pragas, chegando tudo ao ponto de que a dócil obediência em escravo transformou-se da vontade exaltada. Desejara que sem delongas Vossa Alteza desse a máxima atenção a esse negócio. Mais urgente não há.

REI HENRIQUE — Por minha vida, contraria isso tudo nosso gosto.

WOLSEY — Por mim, não fui mais longe nisso tudo do que por meio de um singelo voto, só o tendo dado após o assentimento de juizes ponderados. Se acusado estou sendo por línguas ignorantes que, sem nada saberem de meus planos e de minha pessoa, de meus feitos em crônica se arvoram, permiti-me dizer-vos que essa é a sorte de meu posto, a vereda de espinhos que a virtude terá de atravessar. Não é possível coibir-me de fazer o que é preciso, com medo de ir bater nos maliciosos censuradores, que procedem sempre como peixes vorazes, que na esteira se põem de barco de recente fábrica, embora outra vantagem não consigam, além da inveja inútil. Muitas vezes o que fazemos de melhor, no juízo dos fracos ou maldosos julgadores, feito não foi por nós, ou implica abuso, e nossos piores atos — é freqüente — interpretados por grosseiro espírito, são proclamados como grandes feitos. Se imóveis nos pusermos, pelo medo de que possam zombar de nossos passos, ou cobri-los de opróbrio, criaremos raiz onde estivermos, ou ficamos na posição de estátua, simplesmente.

REI HENRIQUE — A ação louvável, feita com cuidado, a si mesma se isenta de censura, mas de temer em suas conseqüências é a que não acha apoio no passado. Em algum precedente vos baseastes para tal exação? Em nenhum, creio. Arrancar não devemos nossos súditos de nossas leis, nem menos amarrá-los ao nosso despotismo. A sexta parte dos haveres? Que imposto apavorante! É como se tirássemos das árvores a copa, a casca e parte, até, do tronco; muito embora as raízes lhes deixássemos, mutilada a esse ponto, o ar absorvera, sem falta, toda a seiva. Que se enviem cartas nossas a todos os condados em que houve lançamento desse imposto, perdão amplo anunciando a todos quantos à nossa execução se revoltaram. Por favor, cuidai logo desse assunto; deixo isso a vosso encargo.

WOLSEY (ao secretário) — Uma palavra muito em particular. Enviai missivas a todos os condados, anunciando graça e perdão da parte do monarca. É-nos contrário o povo desgostoso. Fazei, por isso, propalar o boato de que houve nossa interferência nessa revogação e no perdão de todos. Sobre esse assunto vos darei em breve maiores instruções.

(Sai o secretário.)

(Entra o intendente.)

RAINHA CATARINA — Sentida me deixou saber que o Duque de Buckingham caiu recentemente no vosso desagrado.

REI HENRIQUE — Muita gente, também, ficou sentida. É um gentil-homem muito instruído, orador de raros dotes, com quem foi liberal a natureza, de tal educação que poderia conselhos ministrar e ensinamentos aos mais conspícuos mestres, sem que nunca para si próprio ajuda procurasse. E, contudo, quando esses altos dotes não são bem aplicados, corrompida que a alma se torne, em vícios todos eles se transformam, dez vezes mais horrendos do que antes eram belos e atraentes. Esse homem tão completo, que alistado foi entre as maravilhas, que, do gozo de ouvi-lo nos fazia ter uma hora de conversa por um fugaz minuto; esse mesmo, senhora, às qualidades que lhe eram próprias emprestou roupagens monstruosas e ficou tão negro como se o próprio inferno o houvesse enegrecido. Ao nosso lado vinde ora sentar-vos. Ouvireis coisas — este gentil-homem já foi de sua inteira confiança — de deixar a honra triste. Ele que conte mais uma vez os fatos horrorosos de que fugir não poderemos nunca bastantemente, como não quiséramos sobre eles ouvir nada.

WOLSEY — Apresentai-vos e relatai com corajoso espírito, como compete a um súdito zeloso, quanto pudestes arrancar do Duque de Buckingham.

REI HENRIQUE — Com liberdade fala.

INTENDENTE — Primeiramente, como era costume dele, todos os dias empestava seu discurso dizendo que, no caso de vir o rei a falecer sem prole, arranjaria as coisas de maneira que o cetro a obter viria. Ouvi quando ele essas mesmas palavras disse ao genro, Lorde Abergavenny, a quem ele a jura fez de tomar vingança do cardeal.

WOLSEY — Observe Vossa Alteza a criminosa traça desse projeto. Não se achando com sua própria aspiração de acordo, profundamente hostil sua vontade se tornou contra vossa alta pessoa. Vai mais além: vossos amigos fere.

RAINHA CATARINA — Interpretai com caridade tudo, sábio Lorde Cardeal.

REI HENRIQUE — Vamos adiante. Como ele a presunção justificava, uma vez consumada nossa queda? Ouviste-o discorrer sobre esse ponto?

INTENDENTE — Foi levado a pensar dessa maneira por uma falsa e inútil profecia de Nicolau Hopkins.

REI HENRIQUE — Quem é esse Hopkins?

INTENDENTE — É um cartuxo, senhor, confessor dele, que a todos os momentos o alimenta com palavras de trono e de realeza.

REI HENRIQUE — E como soubeste isso?

INTENDENTE — Pouco tempo antes de Vossa Alteza ir para a França, na Rosa estando o duque, na paróquia de São Lourenço Poultney, perguntou-me que se falava em Londres dessa viagem. Temiam, respondi-lhe, uma perfídia por parte dos franceses, perigosa para nosso monarca. E logo o duque retrucou que em verdade havia causa para isso e que talvez se confirmasse certo dito profético de um monge de grande santidade, “que freqüentes vezes”, acrescentou, “me tem mandado recado para que eu autorizasse meu capelão, João de la Car, a assunto de relevância dele ouvir em hora previamente assentada. E após haver-lhe solenemente o capelão jurado, tal como em confissão, que quanto dele pudesse ouvir, a ser nenhum com vida, a não ser a mim mesmo, transmitira, com toda a gravidade e segurança disse ele devagar: Nem o monarca nem seus herdeiros — contai isso ao duque — poderão prosperar; que ele se esforce por ganhar o favor do povo miúdo. Reinar ainda há de o duque na Inglaterra”.

RAINHA CATARINA — Se estou bem informada, já estivestes como intendente dele, tendo o posto perdido pela queixa dos rendeiros. Tomai cuidado, para não manchardes uma nobre pessoa com vosso ódio, vindo a perder, assim, vossa nobre alma. Digo: tende cuidado; sim, concito-vos de todo o coração a fazer isso.

REI HENRIQUE — Deixai-o continuar; vamos, prossegue.

INTENDENTE — Só direi a verdade, por minha alma. Disse a milorde, o duque, que esse monge bem poderia vítima estar sendo das ilusões do diabo, e que era muito perigoso para ele demorar-se num pensamento desses até o ponto de formar algum plano que factível lhe parecesse, tal como acontece freqüentemente. Respondeu-me: “Cala-te! nunca isso poderá prejudicar-me”, tendo dito depois que se o monarca morrido houvesse na última doença, Sir Tomás Lovell e o cardeal teriam cortadas as cabeças.

REI HENRIQUE — Oh! que zelo! Há maldade nesse homem. Tens alguma coisa mais a contar?

INTENDENTE — Tenho, senhor.

REI HENRIQUE — Então, prossegue.

INTENDENTE — Achava-me em Greenwich, de uma feita, depois que Vossa Alteza censura fez ao duque, por motivo de Sir Guilherme Blomer...

REI HENRIQUE — Lembro-me ainda desse fato: sendo ele do meu feudo, entre os vassalos dele o pôs o duque. Bem; e depois?

INTENDENTE — No caso, disse-me ele, de eu ter sido mandado para a Torre por causa disso, como fora crível, representado houvera a mesma parte que meu pai quis representar no tempo do usurpador Ricardo: em Salisbury se achando, permissão pediu de à frente comparecer do rei. Caso tivesse sido atendido — e era pretexto as suas homenagens prestar-lhe — apunhalado haveria o monarca.

REI HENRIQUE — Oh gigantesco traidor!

WOLSEY — Que achais, senhora: poderia Sua Alteza viver tranqüilamente, estando esse homem livre?

RAINHA CATARINA — Possa tudo em Deus achar remédio!

REI HENRIQUE — Alguma coisa parece que ainda tens para contar-nos. Continua.

INTENDENTE — Depois de ter falado “na parte de meu pai” e, também, “faca”, pôs-se de pé e, a mão assim na espada, a outra no peito, levantando os olhos, soltou um juramento pavoroso, dizendo que se viesse a sofrer algo, tanto ao pai se adiantara, quanto dista da execução o plano irresoluto.

REI HENRIQUE — Era seu fim fazer de nosso corpo bainha para espada. Já está preso. Levai-o sem demora ao julgamento. Se puder encontrar na lei amparo, concedido há de sê-lo; do contrário, em nós não há de achá-lo. Oh! noite e dia! revela na traição grande mestria!

(Saem.)


 

CENA III

 

Um quarto no palácio. Entram o Lorde Camareiro e Lorde Sands.

 

CAMAREIRO — Como! Será possível que os encantos da França agora obriguem tanta gente a seguir essas modas arbitrárias?

SANDS — A moda, embora chegue a ser ridícula, indigna até dos homens, é seguida.

CAMAREIRO — Pelo que vejo, todas as vantagens que os ingleses ganharam nessa viagem não passam de uma ou duas carantonhas. Mas são horrendas; pois, ao assumi-las, poderíeis jurar no mesmo instante que seus narizes foram conselheiros de Pepino ou Clotário, tal a sua majestade e imponência.

SANDS — Todos eles têm pernas novas, porém sempre mancas. Quem nunca antes os visse andar, pensara que sofressem manqueira.

CAMAREIRO — Pela Morte, milorde! A roupa deles é de talho tão pagão, que é certeza haverem gasto tudo o que de cristãos possuíam antes.

(Entra Sir Tomás Lovell.)

Então, Sir Tomás Lovell! Que há de novo?

LOVELL — Por minha fé, milorde, não conheço novidade nenhuma, se tirarmos o edito que acabaram de afixar na porta do castelo.

CAMAREIRO — E seu objeto?

LOVELL — A reforma dos nossos perfumados viajantes, que de brigas deixam cheia a corte, de conversas e alfaiates.

CAMAREIRO — Isso me alegra. Agora pediria a esses monsieurs que aos cortesãos ingleses concedessem bom senso, embora nunca tivessem visto o Louvre.

LOVELL — É necessário — as condições são essas — que eles ponham de lado as plumas e demais tolices que trouxeram da França, juntamente com os muito honrosos pontos da ignorância que disso fazem parte, como duelos e fogos de artifício, o menosprezo de pessoas que valem mais do que eles e que alvo são do pedantismo exótico... Libertem-se da fé que têm no tênis, nas meias altas e calções com fofos, e todos esses símbolos da viagem, voltando a ser, como antes, gente honesta, ou as malas aprontem e retornem para os seus companheiros de loucura, onde eles poderão — é o que presumo — gastar cum privilegio o que lhes resta de impudicícia, à custa do ridículo.

SANDS — É tempo de lhes dar algum remédio; a doença está ficando contagiosa.

CAMAREIRO — Que perda para nossas damas, essa de tão raras vaidades!

LOVELL — Oh! decerto. Vai haver muito choro, meus senhores; esses bastardos astuciosos têm manha para fazer que as damas caiam: fazem grandes milagres.

SANDS — Que lhes sirva de rabequista o diabo! Bem, que partam todos eles, pois, é certeza, nunca virão a endireitar. Dagora em diante, qualquer fidalgo honesto da campanha, como eu, por tanto tempo conservado fora do jogo, poderá sua ária modesta apresentar e ser ouvido durante uma hora, sim, pela Madona, e até passar por músico aceitável.

CAMAREIRO — Muito bem, Lorde Sands; ainda tendes vossos dentes de leite.

SANDS — E conservá-los pretendo, enquanto me restar um coto.

CAMAREIRO — Para onde ides agora, Sir Tomás?

LOVELL — À casa do cardeal, e sei que Vossa Senhoria também foi convidado.

CAMAREIRO — Oh! decerto! Hoje à noite em casa dele vai haver um banquete de mão-cheia, para muitos fidalgos e senhoras. As belezas do reino hão de presentes estar à festa, posso asseverar-vos.

LOVELL — De coração magnânimo é esse príncipe da Igreja e mão fecunda como a terra, que alimento nos dá. Por toda parte se espalha o orvalho dele.

CAMAREIRO — É certo: é nobre. Boca negra há de ter quem outra coisa disser a seu respeito.

SANDS — Não lhe faltam razões, milorde, para ser magnânimo. No caso dele a economia fora pecado mais nocivo que a heresia. Os homens de seu timbre devem sempre ser liberais. O exemplo parte deles.

CAMAREIRO — Perfeitamente; porém poucos hoje dão tão grandes exemplos. Minha barca por mim espera; Vossa Senhoria irá comigo. Vamos, meu bondoso Sir Tomás; chegaremos atrasados; com Sir Henrique Guildford indicado fui para ser mordomo dessa festa.

SANDS — Fico às ordens de Vossa Senhoria.

(Saem.)


 

CENA IV

 

Sala no palácio de York. Oboés. Uma pequena mesa sob um dossel, para o Cardeal Wolsey; uma mesa grande para os hóspedes. Por uma porta entra Ana Bolena acompanhada de várias damas e senhoras de qualidade, como hóspedes; pela outra entra Sir Henrique Guildford.

 

GUILDFORD — Minhas senhoras, cordiais boas-vindas vos trago aqui por parte de Sua Graça. A todos vós e à distração dedica esta noite o cardeal, estando certo de que nenhum dos componentes deste nobre bando de casa trouxe a mínima preocupação. A todos ele almeja a alacridade que o bom vinho, as boas companhias e o bom acolhimento, de regra, a toda gente boa ensejam.

(Entram o Lorde Camareiro, Lorde Sands e Sir Tomás Lovell.)

CAMAREIRO — Ainda sois moço, Sir Henrique Guildford.

SANDS — Sir Tomás Lovell, se o cardeal tivesse metade, apenas, de meus pensamentos mundanos, asseguro-vos que muitas destas senhoras hoje encontrariam, antes de irem dormir, um bom refresco, oh! muito mais do agrado delas todas.

LOVELL — Se de uma ou duas Vossa Senhoria fosse hoje o confessor!

SANDS — Oh! quem me dera! Encontrariam branda penitência.

LOVELL — Branda, como?

SANDS — Tão branda quanto um leito de plumas ensejasse.

CAMAREIRO — Caras senhoras, não quereis sentar-vos? Sir Henrique, ficai daquele lado, que eu me encarrego deste. Sua Graça vem já. Não, não podeis ficar geladas; quando se sentam juntas duas damas, o tempo deixam frio. Lorde Sands, vós é que ireis deixá-las sempre espertas; vinde sentar-vos entre estas senhoras.

SANDS — Por minha fé, a Vossa Senhoria sou muito agradecido. Com licença, gentis senhoras.

(Senta-se entre Ana Bolena e outra dama.)

Se se der que eu fale com certo estouvamento, desculpai-me, que isso é herança paterna.

ANA — Ele era louco?

SANDS — Oh, em excesso! Louco, a conta inteira; no amor, também. Mas a ninguém mordia; como ora faço, poderia vinte beijos vos dar num fôlego.

(Beija-a.)

CAMAREIRO — Bem dito, milorde; agora, sim, estais sentado num bom lugar. A culpa, cavalheiros, será só vossa, se estas lindas damas daqui saírem com fechado rosto.

SANDS — Deixai-me só com o pouco que me toca.

(Oboés. Entra o Cardeal Wolsey, acompanhado, e vai sentar-se sob o dossel.)

WOLSEY — Sede bem-vindos, belos convidados. A gentil dama ou o nobre cavalheiro que não mostrar franca alegria agora, não tem amor a mim. Sede bem-vindos novamente. À saúde de vós todos.

(Bebe.)

SANDS — Vossa Graça é gentil. Dêem-me uma taça que conter possa os agradecimentos e um discurso me poupe.

WOLSEY — Lorde Sands, muito vos agradeço. Deixai ledas vossas vizinhas; não estão alegres. Cavalheiros, quem tem a culpa disso?

SANDS — Primeiro o rubro vinho há de subir-lhes, senhor, às belas faces, para que elas de tanto conversar nos deixem mudos.

ANA — Milorde Sands, sois um par alegre.

SANDS — Quando posso escolher a contraparte. Eis vinho para Vossa Senhoria. Se quiserdes beber... Porque se trata de uma coisa...

ANA — Que não podeis mostrar-nos.

SANDS — Não disse a Vossa Graça que haveriam de soltar logo a língua?

(Ouve-se toque de trombetas e de tambores; descarga de artilharia.)

WOLSEY — Que aconteceu?

CAMAREIRO — Alguém vá ver o que houve.

(Sai um criado.)

WOLSEY — Que ruído belicoso será esse? Que significará? Minhas senhoras, nada temais, pois tendes privilégios assegurados pelas leis da guerra.

(Volta o criado.)

CAMAREIRO — Então, que aconteceu?

CRIADO — Um nobre bando de estrangeiros, parece. Já saltaram do barco e se aproximam como grandes embaixadores de estrangeiros príncipes.

WOLSEY — Bondoso Lorde Camareiro, dai-lhes as boas-vindas, pois falais francês, e até nós os trazei, para que a todos este céu de belezas ilumine completamente. Alguns o ajudem nisso.

(Sai o Lorde Camareiro, acompanhado. Todos os convivas se levantam; são removidas as mesas.)

Tivestes o banquete interrompido; mas saberei remediar isso. Boa digestão a vós todos. E de novo vos dou as boas-vindas. Sois bem-vindos.

(Oboés. Entram o rei e outros fidalgos, mascarados e fantasiados de pastores, introduzidos pelo Lorde Camareiro. Dirigem-se diretamente para o cardeal e o saúdam graciosamente.)

Que nobre companhia. Que desejam?

CAMAREIRO — Pedem que diga a Vossa Graça, visto nenhum falar inglês, que, tendo ouvido pela alta Fama que uma companhia bela e nobre haveria de reunir-se neste ponto hoje à noite, não puderam menos de abandonar os seus rebanhos, movidos do respeito que à beleza sempre têm demonstrado, e sob o vosso patrocínio licença vos impetram para ver estas damas e uma hora de distração passar com todas elas.

WOLSEY — Dizei-lhes, Lorde Camareiro, que eles fazem muita honra à minha pobre casa; muito lhes agradeço e a todos peço que aqui procedam como bem quiserem.

(Cada um tira uma dama para dançar; o rei tira Ana Bolena.)

REI HENRIQUE — A mão mais bela que eu jamais toquei. Ó linda! Até hoje eu não te conhecera!

(Música. Dança.)

WOLSEY — Milorde!

CAMAREIRO — Vossa Graça?

WOLSEY — De minha parte, por favor, dizei-lhes que deve haver uma pessoa entre eles mais digna deste assento do que eu próprio, a quem, se a conhecesse, o cederia com meu amor e todo o meu respeito.

CAMAREIRO — Pois não, milorde.

(Os mascarados cochicham uns para os outros.)

WOLSEY — Que é que estão dizendo?

CAMAREIRO — Confessam que há, realmente, essa pessoa, mas querem que a descubra Vossa Graça, porque o lugar oferecido aceite.

WOLSEY — Vou tentar.

(Levanta-se de seu lugar.)

Cavalheiros, com licença: neste aqui faço a minha real escolha.

REI HENRIQUE (tirando a máscara) — Achaste-lo, cardeal. Encantadora companhia aqui tendes. Bem pensado. Sois um homem da Igreja; do contrário, cardeal, eu vos teria em mau conceito.

WOLSEY — Alegro-me por ver que Vossa Graça se mostra espirituoso.

REI HENRIQUE — Por obséquio, milorde camareiro, aproximai-vos: quem é aquela dama encantadora?

CAMAREIRO — Se me permite Vossa Graça, é filha de Sir Tomás Bolena, do Visconde de Rochefort; ela é dama da rainha.

REI HENRIQUE — Pelo céu, é adorável. Minha jóia, descortesia fora rematada tirar-vos para a dança sem beijar-vos. Um brinde, meus senhores! Bebam todos.

WOLSEY — Sir Tomás Lovell, pronto está o banquete na câmara privada?

LOVELL — Sim, milorde.

WOLSEY — Vossa Graça, receio-o, pela dança ficou algo animado.

REI HENRIQUE — Em demasia, tenho muito receio.

WOLSEY — Na outra sala, milorde, o ar é mais fresco.

REI HENRIQUE — Levem todos suas damas. Afável companheira, não poderei deixar-vos por enquanto. Alegremo-nos todos. Meu bondoso Lorde Cardeal, beber ainda pretendo meia dúzia de brindes com estas damas e novamente à dança concitá-las. Depois disso, cada um terá licença de imaginar que foi o de mais sorte. Vamos! que soe a música!

(Saem, com toque de trombetas.)


 

ATO II

CENA I

 

Westminster. Uma rua. Entram dois gentis-homens, que se encontram.

 

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Por que tamanha pressa?

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Oh! Deus vos guarde. Ia direito à sala do conselho para ouvir o que vão fazer do grande Duque de Buckingham.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Então vos poupo, senhor, esse trabalho. Já está tudo concluído, tirante a cerimônia de levar novamente o prisioneiro.

SEGUN1)O GENTIL-HOMEM — Estivestes presente?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sim, decerto.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Que aconteceu? Dizei-me, por obséquio.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Adivinhar podeis mui facilmente.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Ficou reconhecida a culpa dele?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sem dúvida nenhuma, tendo sido, como tal, condenado.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Triste fico perante essa notícia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Como muitas outras pessoas.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Mas, por gentileza, como se passou tudo?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Vou contar-vos em resumo o que vi. O grande duque apresentou-se ao tribunal, e a todos os itens que contra ele formularam respondeu, declarando-se inocente e alegando razões de muito peso porque da lei livrar-se conseguisse. O advogado do rei, por outro lado, fazia carga sobre o questionário, provas e confissões das testemunhas, com as quais o duque quis ser confrontado para, de viva voz, poder falar-lhes, depois do que contra ele depuseram seu intendente, Sir Gilberto Peck, também chanceler dele e, assim, John Car, que foi seu confessor, e aquele monge diabólico, sim, Hopkins, que culpa teve de tudo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Não foi esse monge que o empanturrou com suas profecias?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Precisamente. Todos o acusaram com veemência. De grado ele teria destruído tantas provas; mas não pode. E assim, ante a evidência, os próprios pares o declararam réu de alta traição. Ele se defendeu por muito tempo e com sabedoria, porque a vida viesse a salvar; mas tudo foi somente lastimado ou esquecido na mesma hora.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — E após isso, como ele se portou?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ao ser trazido novamente à barra do tribunal para o funéreo toque, sua sentença, ouvir, de grande angústia ficou tomado, em bagas lhe escorrendo pelas faces o suor; falou colérico qualquer coisa, apressado e sem sentido. Porém voltou a si em pouco tempo e, serenado, até o fim mui nobre resignação mostrou.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Não acredito que tenha medo à morte.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Não, decerto; jamais foi pusilânime. Contudo, tinha razão para ficar nervoso.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Com certeza o cardeal tem parte nisso.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — A pensar desse modo nos obrigam todas as conjeturas. De começo, foi detido Kildare, quando ainda era deputado da Irlanda. Uma vez ele retirado do posto, foi mandado para substituí-lo o Conde Surrey, com toda a urgência, porque não pudesse levar auxílio ao pai.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Essa manobra política revela muita astúcia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Quando o conde voltar, isso é certeza, há de querer vingar-se dele. É fato mui notório que todas as pessoas que o monarca distingue, logo arranja jeito o cardeal para ocupá-la alhures, bem distante da corte.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Todo o povo lhe vota ódio entranhado e, por minha alma, desejaria de bom grado vê-lo dez braças sob a terra, enquanto ao duque todos são afeiçoados, só o chamando de generoso Buckingham é espelho de toda a cortesia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Fazei pausa nessa altura, senhor, e vede o nobre par arruinado, sobre que faláveis.

(Entra Buckingham, reconduzido do julgamento; oficiais de justiça o precedem, de machado, com o corte virado para o lado dele; alabardeiros de ambos os lados. Vêm com ele Sir Tomás Lovell, Sir Nicolau Vaux, Sim William Sands e gente do povo.)

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Vamos ficar mais perto, para vê-lo.

BUCKINGHAM — Ó boa gente que de longe viestes por vos compadecerdes de meu fado: ouvi quanto vos digo e, abandonando-me, retornai para casa. Hoje a sentença recebi de traidor, sendo forçoso morrer com esse labéu. Contudo, sirva-me o céu de testemunha: caso eu tenha consciência, só desejo que, no instante de cair o machado, ela me deixe, tendo eu sido desleal. Não recrimino por minha morte a lei: justa foi ela, uma vez admitidas as premissas. Porém que fossem mais cristãos quisera aqueles que a aplicaram. Mas perdôo-lhes quanto eles intentaram. Não se mostrem jactanciosos, no entanto, na malícia, nem pretendam construir sua maldade no sepulcro dos grandes, que contra eles meu inocente sangue clamaria. Esperança não tenho de esta vida terrena prolongar, nem imploro isso, ainda que mais graças o rei tenha do que eu pecados cometer ousasse. Ó vós, pequeno número de amigos que me tendes amor e revelastes coragem de chorar a triste sorte de Buckingham, seus nobres companheiros e amigos, cuja despedida é a única amargura, para ele como a morte: como anjos bons vinde até o fim comigo. E quando sobre mim cair o longo divórcio de aço, um doce sacrifício fazei com vossas preces, elevando minha alma para o céu. Vamos; levai-me logo, em nome de Deus.

LOVELL — Por caridade suplico a Vossa Graça: se algum ódio em qualquer tempo contra mim guardastes no coração, perdoai-me francamente.

BUCKINGHAM — Sim Tomás Lovell, tudo vos perdôo, tal como desejara ser perdoado. Perdôo tudo. Haver não pode ofensas inumeráveis que eu capaz não seja de esquecer por completo. A negra inveja não há de assinalar-me a sepultura. Recomendai-me a sua Graça; caso a Buckingham venha ele a referir-se, dizei-lhe, por obséquio, que o encontrastes a caminho cio céu. Meus votos todos e as orações ao rei dizem respeito, e enquanto não se despedir minha alma, só há de suplicar bênçãos para ele. Que mais anos viver ele consiga do que tempo me sobra de contá-los. Amado e amável seja seu governo. E ao baixar ao sepulcro em muita idade, num monumento viva com a bondade.

LOVELL — É preciso que eu leve Vossa Graça para o outro lado da água, onde este encargo transmitirei a Sir Nicolau Vaux, que ao vosso fim terá de acompanhar-vos.

VAUX — Preparai tudo! O duque está chegando. Ponde a barca de jeito e decorai-a de acordo com a grandeza que lhe é própria.

BUCKINGHAM — Não, não, Sir Nicolau; deixai tudo isso, que minha posição, de agora em diante, de mim só poderá fazer chacota. Quando aqui vim, era o alto condestável, Duque de Buckingham; porém agora sou apenas o pobre Eduardo Bohun. Porém mais rico sou do que os meus baixos acusadores, que jamais souberam o que fosse a lealdade, que ora eu selo com o próprio sangue, o qual há de fazê-los algum dia gemer. Meu nobre pai, Henrique de Buckingham, que contra a tirania de Ricardo foi o primeiro a rebelar-se, tendo pedido asilo em casa de seu criado Banister, porque estava na desgraça, foi traído por esse miserável, vindo logo a morrer sem julgamento. Que a paz de Deus seja com ele! Henrique VII, ao trono após tendo subido, sinceramente lastimando a sorte de meu pai, como príncipe às direitas, reintegrou-me nas honras e das ruínas fez meu nome sair com maior brilho. Mas agora seu filho Henrique VIII vida, honra e nome, quanto me deixava feliz, de um golpe fez que para sempre sumisse deste mundo. Julgamento concedido me foi, sendo forçoso que o declare: mui nobre, isso me deixa um pouco mais feliz do que o meu muito desventurado pai. Mas numa coisa nos iguala o destino: o termos sido traídos pelos criados, justamente pelas pessoas a que mais amávamos. Desleal serviço e contra a natureza! Seus fins o céu em toda a parte mostra. Porém vós que me ouvis, de um moribundo recebei este aviso indubitável: Sempre que fordes liberal com vossos conselhos e afeição, tende cautela, pois os próprios amigos que fizerdes, o coração lhes dando, ao perceberem a menor diferença em vossa sorte, de vós se afastarão como o faz a água, só retomando para assoberbar-vos e tragar-vos por fim. Gente bondosa, rezai por mim. Forçoso é que vos deixe. A hora postrema já soou de minha vida tão dilatada e cansativa. Adeus. Quando algo triste relatar quiserdes, contai como eu caí. Aqui termino. E que Deus me perdoe.

(Sai Buckingham e o séquito.)

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Que coisa lamentável! Isso chama, senhor, receio-o muito, inumeráveis maldições sobre os próprios responsáveis.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Se inocente estiver o duque nisso, é terrível, de fato. No entretanto, poderia mostrar-vos uns indícios de uma calamidade em perspectiva, que, se vier a se dar, será, sem dúvida, muito maior do que esta.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Anjos bondosos, afastai-a de nós! Qual será ela? Confiai, senhor, tenho certeza disso, em minha discrição.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Esse segredo é de tal monta que requer a máxima confiança porque possa ser contado.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Revelai-mo; não sou de muita prosa.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Confio em vós, senhor; vou revelar-vo-lo. Não ouvistes, acaso, alguns rumores nestes últimos dias sobre o próximo divórcio entre o monarca e Catarina?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ouvi, mas já passou, pois o monarca ficou encolerizado quando soube do que se comentava e mandou ordem para o Lorde Maior, porque fizesse parar in continenti esses rumores e as línguas responsáveis aquietasse.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Contudo, meu senhor, essa calúnia mostrou-se verdadeira, pois renasce com mais viço que nunca, estando todos convictos de que o rei vai tentar isso. Se não foi o cardeal, um dos validos da corte, por maldade tão-somente contra a boa rainha, sugeriu-lhe certo escrúpulo que há de arruiná-la. Confirma-se a notícia com a chegada muito recente do Cardeal Campeio, que veio só para isso, julgam todos.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Foi o cardeal, é certo; e tão-somente para do imperador tomar vingança, por não haver obtido o arcebispado de Toledo, conforme lhe pedira.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Estou certo de que batestes no alvo. Mas não é doloroso que seja ela, justamente, que venha a pagar tudo? Obterá o cardeal o que deseja, que é a queda da rainha.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Oh! é terrível. Mas aqui nos achamos muito à vista, para falarmos disso. Conversemos mais de espaço em algum lugar seguro.

(Saem.)


 

CENA II

 

Uma antecâmara do palácio. Entra o Lorde Camareiro lendo uma carta.

 

CAMAREIRO — “Milorde: os cavalos que Vossa Senhoria encomendou foram, com todo o zelo, escolhidos por mim, montados e arreados. Eram mui novos e vistosos, e da melhor raça do Norte. Quando tudo já se achava no jeito de serem eles enviados para Londres, um dos homens do Lorde Cardeal, munido de comissão e de plenos poderes, mos arrebatou, sob a alegação de que seu amo tinha de ser servido, antes de qualquer súdito e até mesmo antes do rei, o que nos entupiu a boca, senhor.” Sim, receio que o seja. Pois que fique com eles! Quer ficar com tudo, penso.

(Entram os Duques de Norfolk e de Suffolk.)

NORFOLK — Feliz encontro, Lorde Camareiro.

CAMAREIRO — Muito bom dia para Vossas Graças.

SUFFOLK — Que faz o rei?

CAMAREIRO — Deixei-o só, entregue a pensamentos tristes e a cuidados.

NORFOLK — E qual a causa disso?

CAMAREIRO — O casamento com a mulher de seu mano, ao que parece, mui de perto perturba-lhe a consciência.

SUFFOLK — Não; a consciência dele é que perturba de perto outra senhora.

NORFOLK — É assim, realmente. É obra do cardeal; do rei-cardeal. Esse filho dileto da fortuna, esse padre sem olhos, vira todas as coisas pelo avesso. Mas um dia quem ele é há de o rei ficar sabendo.

SUFFOLK — Deus o permita; pois, de outra maneira, jamais há de a si mesmo conhecer-se.

NORFOLK — Que santidade em todos os seus atos! Que zelo põe em tudo! Agora que ele a liga pôs por terra que entre o grande sobrinho da rainha e nós havia, o imperador, no coração mergulha do nosso rei, onde semeia dúvidas, remorsos de consciência, desesperos, perigos e temores, e tudo isso só por motivo desse casamento. E para o rei tirar desse embaraço aconselha o divórcio, a jogar longe de si próprio quem, como jóia rara, lhe pendeu do pescoço por vinte anos, sem que perdesse o brilho, a da que o ama com esse amor inefável que dedicam aos homens bons os anjos, juntamente a ela, que até sob o mais rude golpe da sorte, ainda abençoará o rei. Tudo isso não revela santidade?

CAMAREIRO — Deus me proteja contra tais alvitres! É bem verdade que essas novas andam por toda a parte; todos as comentam, sem que haver possa coração honesto que por isso não chore. Quem de perto se atreve a examinar esse negócio, o fim supremo dele enxerga logo: a irmã do Rei da França. O céu um dia os olhos há de abrir ao rei, que, para este homem mau, há tanto tempo dorme.

SUFFOLK — E livrar-nos de sua servidão.

NORFOLK — Precisamos rezar com fervor para sermos libertados; caso contrário, esse homem prepotente, de príncipes que somos, a nós todos vai transformar em pajens. Diante dele todas as honrarias a aparência tomam de massa informe que ele molda como bem lhe parece.

SUFFOLK — Por meu lado, senhores, nem amor ele me inspira, nem medo em mim desperta. Eis o meu credo. Não lhe devendo o meu estado, fico sendo o que sou, se ao rei for isso grato. Suas bênçãos me são indiferentes e suas maldições: um simples vento que passa sem ferir-me. Conheci-o como o conheço ainda; assim, o entrego a quem o fez tão orgulhoso: ao papa.

NORFOLK — Vamos entrar. Quem sabe se outro assunto distrai o rei dessas idéias tristes que tanto ora o deprimem? Companhia não nos fareis, milorde?

CAMAREIRO — Desculpai-me, mas o monarca me enviou alhures. Além do mais, receio que o momento não seja muito próprio... A ambos desejo muita e muita saúde.

NORFOLK — Agradecido, meu mui bondoso Lorde Camareiro.

(Sai o Lorde Camareiro.)

(Norfolk abre uma porta de duas folhas; aparece o rei, sentado e lendo com ar pensativo.)

SUFFOLK — Que ar de tristeza! É fato: algo o preocupa.

REI HENRIQUE — Olá! Quem está aí?

NORFOLK — Permita Deus que ele se encontre calmo.

REI HENRIQUE — Quem está aí? repito; como ousastes intrometer-vos desse modo em minhas meditações privadas? Quem sou eu?

NORFOLK — Um rei gracioso que perdoa a todas as ofensas isentas de maldade. Um negócio do Estado foi que a quebra do dever nos impôs, para sabermos qual seja a vossa decisão real.

REI HENRIQUE — Sois muito ousados. Ide! Hei de fazer-vos conhecer vossas horas de serviço.

(Entram Wolsey e Campeio.)

Quem está aí? Meu bom Lorde Cardeal! Ó meu Wolsey bondoso, o lenitivo de minha consciência tão ferida! És o remédio próprio de um monarca. (A Campeio.) Sois bem-vindo, mui sábio e reverendo senhor, a nosso reino. Podeis dele dispor como de nós. (A Wolsey.) Bondoso lorde, tomai cuidado para que eu não venha a dizer coisas sem nenhum sentido.

WOLSEY — Senhor, não nas direis, se Vossa Graça nos conceder uma hora apenas, para conversarmos à parte.

REI HENRIQUE — (a Norfolk e Suffolk) — Ide; estamos ocupados agora.

NORFOLK (à parte, a Suffolk) — Não é certo que esse padre é orgulhoso?

SUFFOLK (à parte, a Norfolk) — É insuportável. Não quisera estar doente até esse ponto, nem mesmo a troco de seu posto agora. Mas é impossível que isso continue.

NORFOLK (à parte, a Suffolk.) — Se tal se der, arriscarei medir-me com ele numa queda.

SUFFOLK (à parte, a Norfolk.) — Eu também, noutra.

(Saem Norfolk e Suffolk.)

WOLSEY — Deu Vossa Graça uma lição de grande sabedoria a todos os monarcas, submetendo de grado vossas dúvidas à voz da cristandade. Quem agora poderia mostrar-se aborrecido? Que ódio vos alcançara? A Espanha, pelo sangue e pelos favores a ela presa, terá de confessar, se for sincera, que o debate foi justo e em tudo nobre. Todo o clero — refiro-me aos mais sábios da cristandade — têm opinião livre. Roma, esse berço da sabedoria, por vossa solicitação enviou-nos uma língua geral, este bom homem, este santo e erudito sacerdote, Cardeal Campeio, que de novo apresento a Vossa Alteza.

REI HENRIQUE — E, de braços abertos, eu de novo lhe dou as boas-vindas, ao sagrado conclave agradecendo o amor que todos assim me certificam, pois me enviaram o homem que desejar eu poderia.

CAMPEIO — Vossa Graça merece o amor de todos os estrangeiros, por tão nobre serdes. Nas mãos de Vossa Alteza ora deponho minha alta comissão, por cuja força e expressa ordem de Roma, associais-vos comigo, servo dela, vós, milorde Cardeal de York, para, com isenção de ânimo, julgarmos esse assunto.

REI HENRIQUE — Ambos são dignos. Vai ficar a rainha neste instante sabendo o que vos trouxe. Onde está Gardiner?

WOLSEY — Sei bem que Vossa Majestade sempre a amou com tantas veras, que impossível vos será recusar-lhe o que outra dama de menos posição exigiria com base no direito: alguns juristas com liberdade para defendê-la.

REI HENRIQUE — Sim, poderá dispor dos mais notáveis; e desde já prometo o meu amparo para o que a defender com maior brilho. Deus o contrário disso não permita. Por obséquio, cardeal, chamai-me Gardiner, meu novo secretário. Acho-o muito hábil.

(Sai Wolsey.)

(Volta Wolsey com Gardiner.)

WOLSEY (à parte, a Gardiner.) — Dai-me a mão; alegria vos desejo, muita prosperidade. Desde agora pertenceis ao monarca.

GARDINER (à parte, a Wolsey.) — Porém para mandado sempre ser por Vossa Graça, cuja mão me elevou.

REI HENRIQUE — Vem para perto, Gardiner.

(Conversam à parte.)

CAMPEIO — Por acaso, Lorde de York, não ocupava um Doutor Pace o posto que este homem ora ocupa?

WOLSEY — Justamente.

CAMPEIO — E não passava por um grande sábio?

WOLSEY — Sem dúvida nenhuma.

CAMPEIO — Podeis crer-me, Lorde Cardeal, mas corre um boato feio que vos toca de perto.

WOLSEY — A mim! Como isso?

CAMPEIO — Sem reservas proclamam que o invejáveis. De medo que ele viesse a subir muito, por ser de grande mérito, o mantínheis ocupado nas cortes estrangeiras, o que tanto o magoou, que morreu louco.

WOLSEY — Que a paz do céu seja com ele. Como cristão é só o que digo. Para os vivos que murmuram, castigos não lhes faltam. Mas esse era um idiota, que queria ser virtuoso. Aquele outro que ali vedes faz tudo o que eu mandar, sem discrepância. Só quero gente assim junto do trono. Aprendei isto, irmão: não desejamos ser perturbados pelos subalternos.

REI HENRIQUE — Entregai com respeito isto à rainha.

(Sai Gardiner.)

Quero crer que o lugar mais adequado para essa erudição seja Black-Friars. Ali vos reunireis para esse assunto de tamanha importância. Meu caro Wolsey, mandai arranjar tudo. Oh! como custa, milorde, para quem tem sentimento, abandonar tão doce companheira. Mas, consciência, consciência! És delicada por demais. É preciso abandoná-la.

(Saem.)


 

CENA III

 

Uma antecâmara dos aposentos da rainha. Entram Ana Bolena e uma velha dama da corte.

 

ANA — Por isso também não. Nisso é que o espinho nos provoca mais dor. Tendo Sua Alteza vivido ao lado dela tanto tempo, e sendo ela senhora tão bondosa, que jamais língua alguma dizer pode nada contra sua honra... Sim, de fato: nunca a ninguém fez mal... E agora, tendo ficado sobre o trono tantos cursos do sol, em plena pompa e majestade, que deixar é mil vezes mais amargo do que é doce alcançar, ser repelida depois de ter vivido desse modo, comover poderia qualquer monstro.

A VELHA DAMA — Os corações da têmpera mais dura se fundem em lamentações por ela.

ANA — O céu assim o quis. Bem melhor fora não ter a pompa conhecido nunca. Conquanto temporal, quando a Fortuna rixenta nos obriga a abandoná-la, produz-se um sofrimento tão pungente como o de separar-se do corpo a alma.

A VELHA DAMA — Volta a ser estrangeira! Pobre dama!

ANA — Mais um motivo para que a piedade se derrame sobre ela. Pois vos juro que é preferível vir de um berço obscuro e contente viver com gente humilde, a pavonear-se numa dor brilhante e carregar uma tristeza de ouro.

A VELHA DAMA — O que de melhor temos é a alegria.

ANA — Por minha fé e minha virgindade, não desejara ser rainha nunca.

A VELHA DAMA — Pois eu quisera sê-lo, por minha alma, e a própria virgindade arriscaria, bem como vós, com todo esse tempero de falsidade. Sendo possuidora, como o sois, dos encantos femininos, também tereis um coração de acordo, que sempre ambicionou a preeminência, soberania, bens, que são legítimas bênçãos, para ser franca, sendo certo que, a despeito de todos esses dengues, vossa consciência branda como pele de cabrito decerto aceitaria, bastando que para isso a distendêsseis.

ANA — Não, não, por minha fé.

A VELHA DAMA — Qual fé, qual nada! É certo: não quiséreis ser rainha?

ANA — Não, por quanto ouro sob o céu se encontra.

A VELHA DAMA — interessante! Pois qualquer moedinha me compraria — velha como me acho — para subir ao trono. Mas dizei-me, por favor, que pensais de uma duquesa? Tendes força bastante para o peso suportar desse título?

ANA — Nenhuma.

A VELHA DAMA — É que nascestes fraca. Diminuamos a carga um pouco. Não quisera ver-me em vossa estrada, como um conde jovem, para deixar-vos mais do que corada. Se vosso dorso não suporta o fardo, é que para uma criança é muito fraco.

ANA — Como falais! Pois juro novamente que nem por todo o mundo eu desejara chegar a ser rainha.

A VELHA DAMA — É muito certo: pela Inglaterrazinha arriscaríeis empunhar firme o cetro. Eu, do meu lado, fá-lo-ia pelo Carnavon, embora não mais do que isso pertencesse ao trono. Mas quem vem vindo aí?

(Entra o Lorde Camareiro.)

CAMAREIRO — Muito bom dia, minhas senhoras. Quanto me pedíreis para me revelardes o segredo sobre que conversáveis?

ANA — Não compensa vossa pergunta, meu bondoso lorde. A falar nos achávamos da sorte de nossa soberana.

CAMAREIRO — Mui louvável tema, decerto, e em tudo condizente com o sentimento de pessoas boas. Mas há esperança de que tudo ainda venha a terminar bem.

ANA — É só o que a Deus peço. Que assim seja.

CAMAREIRO — Tendes mui nobre coração. As bênçãos celestes caem sempre nas pessoas semelhantes a vós. E, bela dama, para mostrar-vos quão sincero eu falo e a que ponto têm sido apreciadas vossas altas virtudes, a grandeza do rei vos testemunha seu apreço, determinando honrar-vos de maneira não menos florescente do que o título de Marquesa de Pembroke vos dando, ao qual Sua Graça uma pensão ajunta de mil libras anuais.

ANA — Saber não posso de que maneira demonstrar-lhe todo meu reconhecimento. Tudo quanto sou é menos que nada; minhas preces não são santificadas, não passando meus votos de palavras sem substância. Ainda assim, só posso oferecer-lhe meus votos e orações. Suplico a Vossa Senhoria que exprima toda a minha gratidão e obediência a Sua Alteza, como de jovem que enrubesce e reza pela saúde dele e seu governo.

CAMAREIRO — De reforçar não deixarei, senhora, a opinião favorável que o monarca tem a vosso respeito. (A parte.) Examinei-a muito bem. A beleza e a dignidade de tal maneira nela se misturam, que o rei deixaram preso. Quem nos diz que desta dama não sairá uma jóia capaz de iluminar toda nossa ilha? (Alto.) Vou ver o rei; direi que nos falamos.

ANA — Muito estimado lorde!

(Sai o Lorde Camareiro.)

A VELHA DAMA — Como as coisas se passam! Vede! Vede! Dezesseis anos mendiguei na corte, e ainda sou mendiga, sem que nunca entre o cedo demais e o muito tarde pudesse achar o meio certo para meus pedidos de libras. E, oh destino! vós, um peixinho novo — fora! fora! com a sorte tão forçada! — encheis a boca antes mesmo de abri-la.

ANA — Estou perplexa.

A VELHA DAMA — Que gosto tem? É amargo? Não, aposto quarenta pences em como é bem gostoso. Era uma vez uma senhora — antigo conto assim começava — que por nada deste mundo quisera ser rainha; em absoluto, nem por toda a lama do Egito. Conhecei-lo?

ANA — Estais brincando.

A VELHA DAMA Com vosso tema aos céus eu remontara. Marquesa de Pembroke! Com uma renda de mil libras, por pura reverência, sem outra obrigação! Por minha vida, isso promete mais alguns milheiros. A cauda da grandeza é mais comprida que a frente do vestido. Agora vejo que podeis carregar uma duquesa. Não é certo que agora estais mais forte?

ANA — Minha boa senhora, distraí-vos com vossa fantasia, mas deixai-me fora desse brinquedo. Morrer quero, se isso é capaz de alvoroçar-me o sangue. Desfalecer me sinto à só idéia do que virá depois. A rainha se encontra inconsolável e nós nos esquecemos dela, ausentes assim por tanto tempo. Por obséquio, nada deveis dizer-lhe do que ouvistes.

A VELHA DAMA — Decerto! Que pensais a meu respeito?

(Saem.)


 

CENA IV

 

Uma sala em Black-Friars. Trombetas; fanfarras e toque de cornetas. Entram dois oficiais de justiça com varinhas de prata; seguem-nos dois escrivães com vestes de doutor; a seguir, o Arcebispo de Cantuária, sozinho; depois, os Bispos de Lincoln, Ely Rochester e Santo Asaph. Depois deles, a pequena distância, vem um gentil-homem com uma bolsa, o grande selo e um chapéu cardinalício; depois, dois padres, trazendo cada um uma cruz de prata. A seguir, entra um gentil-homem da câmara do rei, com a cabeça descoberta, acompanhado de um sargento de armas, que traz um cetro de prata; depois, dois gentis-homens, carregando dois grandes pilares de prata. Depois deles, lado a lado, os dois cardeais, dois cavalheiros com espada e cetro. Depois entram o rei e a rainha, com os respectivos séquitos. O rei se assenta sob o baldaquim; os dois cardeais se sentam abaixo dele, como juizes; a rainha se assenta a certa distância do rei; os bispos se colocam de cada lado da corte, em forma de consistório. Abaixo deles, os escrivães. Os nobres se sentam junto dos bispos. O pregoeiro e os outros oficiais de serviço se colocam no palco em ordem conveniente.

 

WOLSEY — Até que nossa comissão de Roma seja lida, mandai que haja silêncio.

REI HENRIQUE Qual a necessidade disso? Feita já foi publicamente essa leitura; sua validez está reconhecida de ponta a ponta. Assim, fora possível poupardes Esse tempo.

WOLSEY — Seja. Adiante!

ESCRIVÃO — Gritai: Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

PREGOEIRO — Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

REI HENRIQUE — Presente.

ESCRIVÃO — Gritai: Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

PREGOEIRO — Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

(A rainha não responde; levanta-se de seu lugar, atravessa a sala, dirige-se para o rei, ajoelha-se aos pés dele e depois fala.)

RAINHA CATARINA — Só direito e justiça é o que vos peço, senhor, e que de mim tenhais piedade. Sou uma pobre mulher, uma estrangeira, que veio ao mundo longe dos domínios que vos são próprios. Não disponho agora nem de juiz imparcial nem de esperança de tratamento equânime da corte. Ai de mim! Em que posso, acaso, tem-vos ofendido, milorde? Que motivo de desgosto vos deu minha conduta, para pensardes em mandar-me embora, de vossa graça e afeto me privando? O céu é testemunha de que sempre vos fui esposa humilde e verdadeira; sempre me conformei ao vosso alvitre; com medo sempre, até, de despertar-vos desgosto, busquei sempre acomodar-me ao menor gesto vosso, alegre ou triste, conforme vos notasse. Em que momento tentei opor-me a qualquer ordem vossa, sem que fizesse minha? A qual dos vossos amigos por amar não me esforcei, muito embora na conta de inimigo sempre o tivesse tido? Ou a que pessoa de minhas relações eu continuei revelando afeição, quando ela vossa cólera provocasse? Na mesma hora não lhe fazia ver que passaria daí por diante a ser meu inimigo? Recordai-vos, senhor, de que durante mais de vinte anos, obediente sempre, hei sido vossa esposa e tive a bênção de vos dar muitos filhos. Se no curso desse tempo puderdes um só fato mencionar e provar contra minha honra, minha fidelidade, meu afeto, o respeito que devo a vossa sacra pessoa: em nome, sim, de Deus, lançai-me de vossa vista e que o mais negro opróbrio venha fechar-me as portas, entregando-me ao rigor mais severo da justiça. Escutai-me, senhor: o soberano vosso pai sempre foi considerado um príncipe prudente, de excelente julgamento e de muita perspicácia. Ferdinando, meu pai e Rei da Espanha, passava pelo príncipe mais sábio daquela terra, desde muitos anos, sendo fora de dúvida, portanto, que em cada reino eles reunido houvessem um conselho de sábios, que julgaram legal nossa união, depois de haverem bem estudado o assunto. Por tudo isso, senhor, humildemente vos suplico que me poupeis até que eu tenha tempo de me comunicar com meus amigos de Espanha e lhes pedir que me aconselhem. Mas em nome de Deus, caso contrário, também nisso se faça o que quiserdes.

WOLSEY — Senhora, aqui dispondes destes padres reverendos — a escolha tendes livre — homens de singular integridade e, todos eles, de saber mui raro, a nata da nação, que aqui se encontram para vos defender. Inútil fora, por isso, adiar o julgamento, tanto para vosso sossego como para deixar o rei sem causa de inquietude.

CAMPEIO — Com todo o acerto e muito sabiamente Sua Graça falou. Por isso tudo, senhora, é conveniente que prossiga esta real sessão, devendo logo ser apreciadas as razões das partes.

RAINHA CATARINA — Lorde Cardeal, é a vós que eu me dirijo.

WOLSEY — Qual é o vosso prazer, minha senhora?

RAINHA CATARINA — Senhor, estou no ponto de chorar. Mas refletindo que rainha somos — pelo menos assim me vi em sonhos por muito tempo — e com certeza filha de um monarca, transformo minhas lágrimas em chispas abrasantes.

WOLSEY — Ficai calma.

RAINHA CATARINA — Ficarei, quando humilde vos mostrardes; antes, não, porque Deus me puniria. Creio, firmada em provas convincentes, que sois meu inimigo. Assim, declaro-vos suspeito para funcionardes como juiz em minha causa, pois as chamas que se alçam entre mim e meu marido nasceram de vosso hálito. Prouvera que o orvalho do Senhor possa apagá-las! Mais uma vez declaro: abominando-vos como vos abomino, com toda a alma, para meu julgador não vos aceito, porque — tomo a dizer — vos considero inimigo maldoso, e não vos posso ter em conta de amigo da verdade.

WOLSEY — Preciso confessar que vos estranho por causa da linguagem, que bondosa sempre vos revelastes, demonstrando disposição gentil e em tudo branda, sobre sabedoria patenteardes que ultrapassava o sexo. Enormemente, senhora, me ofendeis; ódio não tenho com relação a vós, nem fui injusto jamais convosco ou com qualquer pessoa. Tudo quanto até agora tenho feito, da comissão do consistório emana, direi melhor: de todo o consistório de Roma. Contra mim fizestes carga de que eu soprei as chamas deste incêndio. Não é assim, o rei está presente. Se ele achasse que falso eu me mostrara, em seu poder estava castigar-me mui merecidamente a falsidade, sim, com o mesmo rigor com que zurzistes minha veracidade. Se ele sabe que eu me encontro inocente dessa pecha, sabe também que me fazeis ofensa. Dele depende, assim, reabilitar-me, o que pode fazer de vós tirando semelhantes idéias. Por tudo isso, antes que Sua Alteza a falar venha, graciosa dama, instante vos conjuro a retratar-vos, nunca mais voltando a usar essa linguagem.

RAINHA CATARINA — Ó milorde! eu sou uma mulher simples, muito fraca para lutar com toda vossa astúcia. Sois brando e de linguagem sempre humilde. Exerceis vosso posto e ministério com mostras exteriores de brandura, de perfeita humildade, mas de orgulho tendes o coração inflado sempre, de arrogância e rancor. Favorecido pela fortuna e o amparo de Sua Graça, subir pudestes com facilidade os degraus mais de baixo, ora encontrando-vos numa altura em que todos os poderes se constituíram vossos seguidores. Vossas palavras, como humildes servos, prestam-se a executar vossos desejos em tudo o que quiserdes. Sou-vos franca: mostrais-vos mais zeloso do prestígio pessoal do que mesmo dos deveres de vossa profissão em tudo digna. Como juiz recuso-vos, declaro-o novamente; e ora, em frente de vós todos, apelo para o papa, resolvida a levar minha causa até à presença de Sua Santidade, porque seja julgada com justiça.

(Inclina-se diante do rei e faz menção de retirar-se.)

CAMPEIO — Mui rebelde contra a justiça mostra-se a rainha, inclinada a acusá-la e desdenhosa de suas decisões. Não é bom isso. Já se vai retirando.

REI HENRIQUE — Convocai-a novamente.

PREGOEIRO — Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei ante este tribunal!

GR1FFITH — Chamaram-vos, senhora.

RAINHA CATARINA — Por que prestastes atenção a isso? Segui vosso caminho, por obséquio. Dai meia volta, quando vos chamarem. Deus venha em minha ajuda; é insuportável. Vamos; não ficarei aqui mais tempo, nem nunca mais porei os pés nas cortes convocadas por causa deste assunto.

(Sai a rainha com seu séquito.)

REI HENRIQUE — Vai, Kate; continua teu caminho. Se houver no mundo quem ousar gabar-se de ter acaso esposa mais valiosa, que em nada seja crido após tão grande, tão patente mentira. Estás sozinha com tuas raras qualidades, tua bondade natural, benignidade como de santa, dignidade em tudo feminina, obediência no comando... Todas essas virtudes soberanas e religiosas, se falar pudessem, te aclamariam, bem o sei, rainha das rainhas da terra. Tem nobreza de nascimento, e por maneira nobre, com relação a mim, se portou sempre.

WOLSEY — Mui gracioso senhor, humildemente conjuro a Vossa Alteza que se digne declarar ante todos os presentes — pois onde eu fui roubado e acorrentado solto tenho de ser, mesmo no caso de não chegar a obter a merecida satisfação — se todo este negócio foi por mim sugerido a Vossa Alteza ou se, de qualquer modo, fiz escrúpulos em vós nascerem, que vos decidissem a propor a questão; se qualquer dito da boca me saiu — senão apenas louvores ao Senhor, por alcançado terdes tão alta esposa — que pudesse em detrimento vir do estado dela ou de leve atingir sua pessoa.

REI HENRIQUE — Milorde, eu vos desculpo. Por minha honra, absolto vos declaro. Não preciso dizer-vos quantos inimigos tendes, que o motivo de o serem desconhecem, aos cachorros de aldeia semelhantes, que ladram por ouvir ladrar os outros. Um desses contra vós fez irritar-se o ânimo da rainha. Desculpado — de todo vos achais. Mas se quiserdes que a justificação seja completa, direi que sempre desejastes que este negócio adormecesse, não querendo que fosse despertado. Muitas vezes, sim, muitos empecilhos levantastes nos caminhos que fossem dar até ele. Por minha honra declaro que o bondoso Lorde Cardeal não teve parte nisso. Absolvo-o por completo. Quanto às causas que me determinaram neste passo, da atenção dos presentes e do tempo pretendo ora abusar. Vede o começo. Foi assim; atenção prestai a tudo. Minha consciência viu-se perturbada pela Primeira vez, com certo escrúpulo, como que espicaçada, ante as palavras do embaixador francês numa dada época, o Bispo de Baiona, que aqui viera para negociar o casamento entre o Duque de Orléans e nossa filha Maria. No decurso das conversas, antes de termos assentado nada, ele — a saber: o bispo — requereu-nos que em suspenso deixássemos o assunto para que ele consulta ao rei fizesse sobre se nossa filha era legítima com relação ao nosso casamento com a rainha-mãe, que fora esposa de nosso próprio irmão. Esse intervalo abalou-me a consciência até ao mais fundo, na alma me penetrou com força ingente, a tremer o imo peito me deixando. Abrindo, assim, caminho, inumeráveis perplexidades em tropel afluíram, assoberbado me deixando o espírito. De início me ocorreu que o céu deixara de sorrir para mim, pois, tendo o mando sobre a natura, havia-lhe ordenado que se um filho varão de mim o ventre de minha esposa a conceber viesse, não lhe haveria de fazer serviço mais relevante do que faz aos mortos a sepultura. Com efeito: todos os filhos masculinos ou morriam onde gerados tinham sido, ou logo depois de respirarem o ar do mundo. Daí me ter nascido o pensamento de que isso era um castigo, que meu reino digno de ter o mais brilhante herdeiro, de mim não lhe viria essa alegria. Pus-me a pensar, depois, todo o perigo a que o país sujeito se encontrava, pela falta de herdeiro, o que do peito me arrancou sentidíssimos gemidos. Desse modo, flutuando no agitado mar de minha consciência, pus a mira neste remédio que é o motivo certo de nossa reunião. Por outros termos: pretendia aliviar minha consciência, que então sentia gravemente enferma e que ainda não se acha muito boa, em que possam ter feito os reverendos prelados e os doutores cá da terra. Comecei, Lorde Lincoln, consultando-vos em caráter privado. Certamente deveis estar lembrado como ao peso dessa opressão eu suspirava, quando pela primeira vez vos falei nisso.

LINCOLN — Perfeitamente, meu senhor.

REI HENRIQUE — Falei-vos longamente. Dizei vós mesmo agora o que, por consolar-me, então fizestes.

LINCOLN — Se a Vossa Majestade for do agrado, de tal modo confuso esse problema de início me deixou, não só por sua transcendente importância, como pelas terríveis conseqüências que seriam de esperar, que o conselho mais ousado à dúvida confiei, havendo logo proposto a Vossa Alteza a idéia que ora se concretiza aqui.

REI HENRIQUE — Falei convosco, Milorde de Cantuária, havendo obtido vosso consentimento para que esta reunião viesse a ser feita. Não há membro desta colenda corte que eu deixasse de consultar, foi tudo feito, tudo, com o apoio formal e o selo expresso ele cada um e de todos. Por tudo isso; prossegui, pois nenhuma antipatia contra a pessoa da gentil rainha, mas aqueles acúleos lancinantes das razões aduzidas suscitaram semelhante debate. Se provardes que nosso enlace é válido, por minha vida, por minha régia dignidade, felizes somos por participarmos com ela deste nosso mortal curso, com Catarina, nossa soberana, que antepomos a todas as criaturas do mundo, por mais primas e exemplares que porventura sejam.

CAMPEIO — Vossa Alteza me perdoe, mas a ausência da rainha nos impõe o adiamento desta corte. Até essa nova data deveremos insistir com empenho junto dela para que ela desista do recurso que em mandar pensa a Sua Santidade.

(Levantam-se para sair.)

REI HENRIQUE — Noto que estes cardeais estão fazendo troça de mim. Odeio essas delongas, essas manhas de Roma. Ó meu fiel Cranmer, meu sábio servidor e muito amado, conjuro-te a voltar, pois tua vinda, tenho certeza, me trará conforto. — Suspendei a sessão, digo... Saiamos.

(Saem todos, na mesma ordem com que entraram.)


 

ATO III

CENA I

 

O palácio de Bridewell. Um quarto dos aposentos da rainha. A rainha e suas damas de companhia estão trabalhando.

 

RAINHA CATARINA — Menina, vai buscar teu alaúde, que minha alma está aflita de cuidados. Se puderes, dispersa-os com teu canto. Larga o trabalho.

(Canção)
Com sua lira Orfeu fazia
dobrar-se a montanha fria
e os troncos, quando cantava.
Até, sem chuva e sem sol,
se via um lindo arrebol
e a primavera pompeava.

Ouvindo-o as coisas cantar,
as próprias ondas do mar
se quedavam pensativas.
Tem o canto tal condão
que as dores do coração
se tornam logo cativas.

(Entra um gentil-homem.)

RAINHA CATARINA — Que é que há?

GENTIL-HOMEM — Se Vossa Graça o permitir, encontram-se os dois grandes cardeais aí fora, à espera.

RAINHA CATARINA — Querem falar-me?

GENTIL-HOMEM — Tenho instruções deles para dizer que sim.

RAINHA CATARINA — Dizei-lhes que entrem.

(Sai o gentil-homem.)

Que quererão de mim, sendo eu tão pobre, uma fraca mulher, já sem prestigio? Quanto mais penso nisso, menos acho prazer nessa visita. Homens virtuosos deviam ser, de posição tão digna... Mas o hábito não faz o monge, é certo.

(Entram Wolsey e Campeio.)

WOLSEY — Paz para Vossa Alteza.

RAINHA CATARINA — Vossas Graças como dona de casa ora me encontram. O medo do futuro é que me obriga a estar em condições de fazer tudo. Reverendos senhores, qual a causa de quererdes falar-me?

WOLSEY — Se do agrado vos for, nobre senhora, passaremos para vosso aposento reservado, onde vos exporemos os motivos desta nossa visita.

RAINHA CATARINA — Mesmo aqui poderemos falar, pois, em consciência, até hoje nada fiz que não pudesse revelar francamente em qualquer parte. Prouvera ao céu que todas as mulheres pudessem declarar a mesma coisa com igual liberdade. Meus senhores, uma felicidade sempre tive: isso de não ligar nunca importância ao fato de meus gestos comentados serem por toda a gente, de ficarem sob a vista de todos, e como alvo dos ataques da inveja e da calúnia, tão certa me acho de ter vida limpa. Se vindes para examinar a minha conduta como esposa, sede francos. Sempre a verdade ama linguagem rude.

WOLSEY — Tanta est erga te mentis integritas, regina serenissima.

RAINHA CATARINA — Oh! nada de latim, meu bom senhor. Não tenho estado tão ociosa, desde minha chegada, que não aprendesse a língua dos que vivem no meu meio. Em língua estranha minha causa toma-se mais estranha e suspeita. Por obséquio, dai forma inglesa ao vosso pensamento. Se a verdade disserdes, as pessoas presentes vos serão agradecidas por sua pobre senhora. Acreditai-me: tratada tem sido ela rudemente. Lorde Cardeal, meu mais premeditado pecado pode ser perfeitamente absolvido em inglês.

WOLSEY — Nobre senhora, pesa-me ver que a minha integridade, e toda a devoção com que vos sirvo e a Sua Majestade só despertam suspeitas, apesar de toda a minha boa fé e lealdade. Aqui não vimos para acusar, para manchar uma honra que recebido tem somente bênçãos das almas bem formadas, nem, tampouco, para vos provocar novas tristezas — que é o que tendes bastante — mas apenas para ficarmos conhecendo como julgais a grave dissidência que houve entre o monarca e vós, e para dar-vos. — como pessoas livres e sinceras — nossa justa opinião e algum conforto.

CAMPEIO — Muito honrada senhora, o Lorde de York, movido por sua nobre natureza, pelo zelo e obediência que ele ainda professa a Vossa Graça, e já esquecido, por ser homem de bem, de vosso ataque contra ele próprio — muito longe, muito, vos deixastes levar — vos oferece, como o faço, os serviços e conselhos.

RAINHA CATARINA (à parte) — Para trair-me. (Alto.) Meus senhores, a ambos agradeço a intenção. Falastes como gente honesta — prouvera ao céu que o fôsseis! — Mas dar uma resposta tão de súbito sobre assunto de tanta gravidade, que tão de perto a honra vem ferir-me e muito mais, talvez, a própria vida... Com meu fraco juízo, diante de homens de tanta erudição e gravidade, com franqueza, não sei como fazê-lo. Encontrava-me em meio às minhas damas de companhia, longe — Deus o sabe — de pensar em visitas de tal porte e em semelhante assunto. Assim, em nome do que eu fui — pois percebo que se encontra no fim minha grandeza — a Vossas Graças suplico conceder à minha humilde causa um pouco de tempo e reflexão. Ah! sou uma mulher fraca, sem amigos, sem esperança alguma.

WOLSEY — Nobre dama, ofendeis a afeição do soberano com semelhante medo. Não têm número vossos amigos, vossas esperanças.

RAINHA CATARINA — Na Inglaterra, de quase nenhum préstimo. Acreditais, senhores, que um inglês se atreveria a dar-me algum conselho, dizer-se amigo meu, abertamente, contra o prazer agir de Sua Alteza — dado que houvesse algum desesperado que honesto se mostrasse — continuando, depois disso, com vida? Não, decerto. Os amigos que o fardo poderiam sopesar de meu grande sofrimento, em quem confiar de todo eu poderia, aqui não vivem. Todos eles, como qualquer outro consolo, muito longe se acham daqui, na minha própria pátria.

CAMPEIO — Desejaria que por uns instantes Vossa Graça deixasse essas tristezas e ouvisse meu conselho.

RAINHA CATARINA — Qual é ele, senhor?

CAMPEIO — À proteção do soberano confiar a vossa causa. Ele é bondoso e por demais amável. De vantagem fora para vossa honra e vossa causa, pois se vos atingir o legal juízo, desonrada saireis.

WOLSEY — É com acerto que ele vos aconselha.

RAINHA CATARINA — Ele aconselha o que ambos desejais: minha ruína. É um conselho cristão? Oh! que vergonha para vós ambos! Ainda há céu, lá no alto um juiz se encontra a que nenhum monarca poderá corromper.

CAMPEIO — Vossa paixão nos interpreta mal.

RAINHA CATARINA — Pois tanto pior para ambos. Eu pensava que ambos fôsseis homens santos; é certo, por minha alma, duas cardeais virtudes e eminentes. Mas ambos não passais, receio-o muito, de pecados cardeais, corações falsos. Que vergonha, senhores! Reformai-vos! Esse é o vosso consolo, o lenitivo que trazeis a uma dama desgraçada? a uma mulher perdida neste meio, ridicularizada, escarnecida? Nem a metade, ao menos, vos desejo das infelicidades que me oprimem. Tenho mais caridade. Mas lembrai-vos de que ora vos advirto. Tomai tento, pelo céu, porque o fardo de meus males sobre vós não recaia.

WOLSEY — Nobre dama, estais fora de vós; isso é delírio; em suspeita mudais os bons intentos.

RAINHA CATARINA — E vós a mim, em nada. Amaldiçoados sejam todos os falsos conselheiros como vós. Quereríeis — se piedade tivésseis, sentimento de justiça, se de membros da Igreja possuísseis alguma coisa mais do que a roupagem — que nas mãos minha causa eu depusesse de quem só me tem ódio? Ai! há que tempo da afeição do monarca estou banida, e também do seu leito! Já estou velha, meus senhores; agora só perdura de nossa ligação minha obediência. Que é que de pior podia acontecer-me além dessa desgraça? Vosso esforço me acarretou a maldição que vedes.

CAMPEIO — O pior é Vosso medo.

RAINHA CATARINA — Vivi tanto — deixai que eu mesma o diga, que a virtude com amigos não conta — como esposa dedicada e — declaro-o sem vanglória — sem que a suspeita nunca me tivesse lançado o seu ferrete; tendo sempre dedicado ao monarca o meu afeto; depois de Deus, amando-o; obedecendo-lhe, levando meu amor à idolatria, chegando mesmo, para ser-lhe amável, a descuidar das orações, e tudo para premiada ser desta maneira? Oh! é duro, senhores! Apontai-me uma mulher constante a seu marido, uma mulher que nunca uma alegria sonhado houvesse além do prazer dele, a após ter ela feito tudo, tudo, a meu favor um mérito eu reclamo: minha grande paciência.

WOLSEY — Nobre dama, fugis dos bons intuitos que nos movem.

RAINHA CATARINA — Não quero cometer, milorde, o crime de renunciar de grado ao nobre título que me ligou ao vosso soberano. Somente a morte pode divorciar-me de minha dignidade.

WOLSEY — Ora atendei-me.

RAINHA CATARINA — Antes o pé nunca eu tivesse posto no solo da Inglaterra. nem provado da lisonja que nele cresce tanto. Tendes o rosto de anjo, mas é certo que vossos corações o céu conhece. Qual será a sorte desta desgraçada? Não há mulher tão infeliz quanto eu.

(A suas damas de companhia.)

Ah, pobrezinhas! que futuro tendes, naufragadas num reino onde a esperança não medra, nem amigos, nem piedade; onde por mim não chora um só parente e onde mal me concedem um sepulcro! Como a açucena, outrora soberana dos campos, onde havia florescido, pendo a cabeça e morro.

WOLSEY — Se pudesse Vossa Graça chegar a convencer-se de que nossos intuitos são honestos, mais tranqüila ficara. Por que causa, boa dama, por que motivo havíamos de vos prejudicar? Ah! nossos postos, o caráter de nossa dignidade, nos impedem de tal. Curar as mágoas é nossa missão própria, não semeá-las. Pelo céu, refleti no que fizerdes, como podeis prejudicar-vos, como, com tal procedimento, poderíeis afastar-vos de todo do monarca. O coração dos príncipes dá beijos na obediência, a tal ponto gosta dela; mas, em frente aos espíritos teimosos, levantam-se, explodindo tão terríveis como as grandes tormentas. Estou certo de que sois de gentil e nobre gênio, de alma tão calma como o mar tranqüilo. Pelo que somos, por favor, tomai-nos: mediadores da paz, amigos, servos.

CAMPEIO — Senhora, haveis de convencer-vos disso. Prejudicais demais vossa virtude com esse medo de mulheres débeis. Um espírito nobre como o vosso rejeita essas suspeitas como moedas de cunho duvidoso. O rei vos ama. Cuidai de conservar sempre o amor dele. Se confiardes em nós, estamos prontos a provar nosso zelo de servir-vos.

RAINHA CATARINA — Fazei o que quiserdes, meus senhores, e desculpai-me, por favor, no caso de eu me ter comportado incivilmente. Sabeis que sou mulher e que careço da arte de conversar com propriedade com pessoas tão altas. Meus respeitos oferecei a Sua Majestade; fazei-me esse favor. Ele ainda é dono do coração que neste peito bate, e enquanto eu tiver vida, será dono de minhas orações. Vinde, mui dignos padres, aconselhai-me. Agora implora quem não pensou desde o primeiro dia que tão cara a realeza lhe sairia.

(Saem.)


 

CENA II

 

Antecâmara dos apartamentos do rei. Entram o Duque de Norfolk, o Duque de Suffolk, o Conde de Surrey e o Lorde Camareiro.

 

NORFOLK — Se em vossas queixas ora vos unirdes e com vossa insistência as reforçardes, ao cardeal resistir será impossível. Mas no caso de não aproveitardes esta oportunidade, só vos digo que tereis de agüentar novas desgraças, além das que já tendes.

SURREY — Rejubilo-me por achar ocasião, embora mínima, que lembrado me faz de que meu sogro, o duque, tem de ser vingado nele.

SUFFOLK — Qual dos pares não foi menosprezado por ele, ou, quando nada, por maneira sempre estranha, esquecido? Em que pessoa, tirante a própria, ao cunho da nobreza respeito ele mostrou?

CAMAREIRO — Falais, milordes, somente o que sentis. Sei bem o que ele de mim e vós merece; mas, se há modo de contra ele fazermos qualquer coisa, nesta oportunidade. é o que duvido. Se o caminho barrar-lhe não puderdes que vai ter até ao rei, não tenteis nada nesse sentido, pois a língua dele sobre o monarca exerce poder mágico.

NORFOLK — Oh! nada de receios! Seu feitiço sobre o rei já acabou. pois o monarca contra ele descobriu alguma coisa que há de estragar o mel de seus discursos de uma vez para sempre. Ele se encontra definitivamente mergulhado no desprazer do rei.

SURREY — Como eu ficara satisfeito de ouvir uma notícia como essa de hora em hora!

NORFOLK — É verdadeira, podeis acreditar. Sua conduta, dúplice, no divórcio está patente. Nisso ele apareceu como eu quisera que aparecesse meu pior inimigo.

SURREY — Como se descobriram seus embustes?

SUFFOLK — Do modo mais estranho.

SURREY — Oh! Como? Como?

SUFFOLK — A carta que o cardeal mandara ao papa se extraviou, vindo ter às mãos do rei, e o rei viu que o cardeal pedia instante a Sua Santidade que parasse com a sentença a respeito do divórcio, “porque, sendo alcançado“, acrescentava, “é certo o rei achar-se apaixonado por uma das criaturas da rainha, Ana Bolena”.

SURREY — O rei tem essa carta?

SUFFOLK — Ficai certo.

SURREY — E será de algum efeito?

CAMAREIRO — O rei, com isso, vê como ele corta direito ou se desvia nos caminhos de seus próprios intentos. Mas sobre isso falham todas as artes; o remédio chega depois da morte do paciente: o rei já desposou a bela dama.

SURREY — Oh, quem nos dera!

SUFFOLK — Possa esse desejo deixar-vos venturoso, pois afirmo-vos que já está realizado.

SURREY — Alegremente saúdo esse consórcio.

SUFFOLK — Digo amém.

NORFOLK — Como todos o fazem.

SUFFOLK — Já estão sendo dadas as ordens para a coroação. Mas isso é novidade muito fresca, não é para ser dita a toda a gente. Mas, meus senhores, ela é uma criatura realmente extraordinária, assim no espírito como na forma extrema. Estou convicto de que dela virá tal ou qual bênção para esta terra, digna de memória.

SURREY — E o rei vai engolir aquela carta do cardeal? Não permita Deus tal coisa.

NORFOLK — Com a breca! Amém.

SUFFOLK — Não, não! Há outras vespas que em torno do nariz lhe estão zumbindo, para apressar o efeito da picada. Sem despedir-se, o Cardeal Campeio partiu furtivamente para Roma. Não deu remate à causa do monarca. Foi despachado no papel de agente do nosso Cardeal Wolsey, para força dar a suas intrigas. Asseguro-vos que o rei disse “Ah!” ao ter notícia disso.

CAMAREIRO — Que Deus o deixe exasperado, para dizer “Ah!” com mais força.

NORFOLK — Mas, milorde, quando retorna Cranmer?

SUFFOLK — Já se encontra de volta, sempre fiel à sua antiga maneira de pensar, e, juntamente com os colégios de mais subida fama de toda a cristandade, justifica o divórcio do rei. Dentro de pouco, quero crer, o segundo casamento será tornado público, assim como a coroação da nova soberana. Catarina não mais será chamada de rainha, porém princesa e viúva do falecido Artur. Oh! esse Cranmer é um sujeito de peso; teve muito trabalho com os negócios do monarca.

SUFFOLK — Decerto; e ainda havemos de, por isso, vê-lo como arcebispo.

NORFOLK — Ouvi falar a esse respeito.

SUFFOLK — É certo. Eis o cardeal!

(Entram Wolsey e Cromwell.)

NORFOLK — Observai-o! observai-o! Está zangado.

WOLSEY — Entregastes ao rei o embrulho, Cromwell?

CROMWELL — No quarto de dormir; dei-lho em mão própria.

WOLSEY — Viu de que se tratava?

CROMWELL — Na mesma hora tirou o selo, e o que pegou primeiro leu com ar muito sério, revelando grande preocupação. Mandou dizer-vos que hoje bem cedo viésseis esperá-lo.

WOLSEY — Pretende sair logo?

CROMWELL — Penso que ele não deve demorar.

WOLSEY — Deixai-me agora por uns instantes.

(Sai Cromwell.)

(À parte.)

Deve ser a Duquesa de Alençon, irmã do Rei da França. É essa que ele há de escolher para esposa. Ana Bolena! Não, não quero para ele a Ana Bolena. Não basta ter uma bonita cara. Ora, Bolena! Não queremos nada com Bolena nenhuma. Que demora com as notícias de Roma! Ora, a Marquesa de Pembroke!

NORFOLK — Ele não está contente.

SUFFOLK — Talvez já saiba que contra ele a cólera o rei já está afiando.

SURREY — Ó Deus! deixai-a com bom corte, se fores justo em tudo.

WOLSEY — Dama de companhia da rainha, filha de um cavaleiro, ama da ama, rainha da rainha! Esta candeia não está dando chama muito clara. Tenho de espevitá-la. Então, que acabe. Tem mérito e é virtuosa... Mas, que importa? Sei que ela é luterana apaixonada. Não é saudável para nossa causa que ela repouse do monarca ao peito, que tão dificilmente é governado. Depois, apareceu recentemente um herético, um herético dos piores, esse Cranmer, que no ânimo do rei soube insinuar-se e agora é dele o oráculo.

NORFOLK — Alguma coisa o deixa preocupado.

SURREY — Desejara que fosse alguma coisa que lhe estragasse a corda, a corda mestra do coração.

(Entra o rei, lendo um codicilo, e Lovell.)

SUFFOLK — O rei! O rei vem vindo!

REI HENRIQUE — Que quantidade imensa de riquezas soube ele acumular para si próprio, e que enormes despesas a toda hora de suas mãos escoam. De que modo pode ele conciliar as duas coisas? — Então senhores, vistes o cardeal?

NORFOLK — Aqui nos encontrávamos milorde, a observá-lo. Algo estranho tem no cérebro: morde os lábios, assusta-se, detém-se subitamente, os olhos no chão crava e, de repente, leva o dedo à fronte; sem que se espere, ágil estuga os passos; depois, detém-se, o peito fere duro, volvendo a olhar mais uma vez à lua. Nas mais estranhas posições o vimos.

REI HENRIQUE — Pode ser que em revolta tenha o espírito. Papéis do Estado esta manhã mandou-me, conforme lhe pedira. Poderíeis acaso imaginar o que entre os mesmos fui encontrar, por pura inadvertência, posso vos garantir, da parte dele? O inventário, em verdade, relativo sua prataria, seus tesouros, finíssimos tecidos, ornamentos de sua casa que julga serem mostras de excessiva opulência, que ultrapassa de muito as posses de qualquer vassalo.

NORFOLK — O céu tem parte nisso; algum espírito decerto entre os papéis pôs essa lista para com ela os olhos abençoar-vos.

REI HENRIQUE — Se acreditar pudéssemos que suas meditações pairavam sobre a terra e alguma multa espiritual visavam, pudera prosseguir no devaneio. Mas receio que sejam sublunares suas idéias e, por isso, indignas de séria reflexão.

(Senta-se no trono e fala baixo a Lovell, que se dirige a Wolsey.)

WOLSEY — Deus me perdoe! Que o céu proteja sempre Vossa Alteza.

REI HENRIQUE — Meu bondoso senhor, mostrais-vos cheio de coisas celestiais e guardais na alma o inventário da graça mais preciosa, que decerto relíeis neste instante. Será difícil para vós, desse ócio pio tirar o mais fugaz momento para as contas terrestres. Considero-vos a esse respeito um péssimo intendente e alegre me declaro por achar-vos muito igual a mim mesmo neste ponto.

WOLSEY — Meu soberano, eu tenho um tempo para meus deveres sagrados, outro para dedicar aos negócios que me forem designados no Estado. A natureza, por sua vez, a fim de conservar-se, reclama alguns momentos que eu, por força, como seu filho frágil e no jeito de meus irmãos mortais, tenho de dar-lhe.

REI HENRIQUE — Palavras acertadas.

WOLSEY — Desejara que Vossa Alteza associasse sempre — como por merecê-lo hei de esforçar-me — com as palavras meus atos acertados.

REI HENRIQUE — Novamente bem dito; com acerto já procede quem fala desse modo. No entretanto, palavras não são atos. Meu pai vos estimava; assim dizia, tendo com os atos coroado o dito. Desde que o sucedi, sempre vos tive perto do coração. Assegurei-vos posições de proventos vantajosos. Mais: entrei em meu próprio patrimônio para vos estender meus benefícios.

WOLSEY (à parte) — Que quererá ele dizer com isso?

SURREY (à parte) — Deus faça prosperar este negócio.

REI HENRIQUE — Fiz de vós o primeiro homem do Estado, o primeiro, pois não? Dizei-me, peço-vos, se confirmais o que ora vos declaro. No caso de o fazerdes, respondei-nos se nos deveis obrigação por isso. Que nos dizeis?

WOLSEY — Meu digno soberano, confesso que as reais graças diariamente sobre mim derramadas ultrapassam de muito quanto eu vos fazer pudesse. Sim, vencem mesmo todo esforço humano. Sempre aquém meus esforços se deixaram ficar de meus desejos, porém nunca de minha habilidade. Meus intuitos pessoais só mereciam ser chamados de pessoais na medida em que tendiam para o bem da pessoa sacratíssima de Vossa Majestade e o bem do Estado. Por todas essas graças derramadas sobre mim, tão indigno e pequenino, só agradecimentos de vassalo vos posso dirigir e minhas preces ao céu por vós, assim como a lealdade muito própria, que tem sempre crescido e sempre há de crescer, até que a morte, esse inverno, a aniquile.

REI HENRIQUE — Bela frase; retrata um obediente e fiel súdito. A honra o recompensa, como o opróbrio; caso contrário, será o seu castigo. Penso que ao tempo em que com benefícios vos estendia a mão, sincero afeto por vós do coração se me expandia, honras do trono sobre vós chovendo, mais do que sobre outra qualquer pessoa. Por isso tudo, vossa mão, o cérebro, o coração e todas as partículas de vosso ser deviam — não por força dos deveres gerais da vassalagem, mas, por assim dizer, por um afeto muito particular — ser-me afeiçoados, a mim, o vosso amigo, mais que aos outros.

WOLSEY — Só sei dizer que sempre hei trabalhado mais para o bem de Vossa Majestade do que para o meu próprio. Assim fui sempre, assim sou e hei de ser. Embora todos os homens viessem a quebrar as juras que a vós os prendem, arrancando-as da alma; muito embora os perigos se amontoassem em maior quantidade do que pode representar o próprio pensamento, sob formas pavorosas me surgindo: ainda assim, qual penedo em meio às ondas impetuosas, o meu dever de súdito desviaria a torrente irresistível e se conservaria sempre vosso.

REI HENRIQUE — Palavras muito nobres. Tomai nota, senhores, que ele tem muito leal peito, pois o vistes aberto. Ora lede isto.

(Entrega-lhe uns papéis.)

E, em seguida, isto; e, após, o vosso almoço, se apetite tiverdes para tanto.

(Sai o rei, lançando um olhar colérico para o Cardeal Wolsey; os nobres se apressam a segui-lo, sorrindo e cochichando uns com os outros.)

WOLSEY — Que quer dizer tudo isso? Essa ira súbita? Como fui provocá-la? Ele afastou-se com o rosto carrancudo, parecendo dos olhos irradiar minha ruína. É desse modo que o leão furioso encara o ousado caçador; ferido, muito embora, o aniquila. É necessário que eu leia este papel. Temo que nele se ache a história de toda a sua cólera. É isso mesmo; esta folha aniquilou-me. É a relação do mundo de riquezas que eu amontoei para proveito próprio, especialmente para ver se a sede do papado alcançava, e meus amigos de Roma, assim, pagar. Oh negligência! digna de pôr um imbecil por terra! Que demônio maldoso me teria levado a colocar este segredo de tamanha importância no pacote que eu mandei para o rei? Não há recurso para remediar isto? Traça alguma que esta idéia do cérebro lhe tire? Sei que ele vai ficar muito abalado; mas um meio conheço, que no caso de ser bem aplicado — embora a sorte se possa opor — me tirará do aperto. Que será isto? “Ao Papa!” A própria carta que eu enviei a Sua Santidade! Por minha vida! Agora está acabado. Não há remédio. Já alcancei o ponto mais alto da grandeza, e desse pleno meridiano de minha grande glória baixarei apressado para o ocaso. Vou cair como um lúcido meteoro, que ninguém mais enxerga.

(Voltam os Duques de Norfolk e de Suffolk, o Conde de Surrey e o Lorde Camareiro.)

NORFOLK — Escutai o prazer do rei, cardeal. Entregar-vos ordena sem delongas em nossas mãos o selo e à casa de Asher vos recolher, à sede do bispado de Winchester, até novas mais precisas terdes de Sua Alteza.

WOLSEY — Alto! Onde se acham vossos plenos poderes? Só palavras nunca trazem tão grande autoridade.

SUFFOLK — Quem pode contrariá-las, se da boca do rei, diretamente, elas dimanam?

WOLSEY — Até que eu veja mais do que palavras, ou vontade somente e a falsidade que vos caracteriza, ficai certos, senhores oficiosos, que eu me atrevo, que eu devo contestá-las. Vejo agora de que metal grosseiro fostes feitos: de inveja. Com que empenho seguis todos minha desgraça, como se alimento dela mesma tirásseis! Que brandura, que maciez revelais em tudo quanto pode apressar-me a queda! Em vosso curso de inveja continuai, homens maldosos; os deveres cristãos vos dão apoio; mas há de vir o tempo em que, sem dúvida, sereis recompensados. Este selo que de mim reclamais com tanto empenho, o soberano — meu senhor e vosso — com suas mãos me deu, asseverando que em toda a minha vida eu gozaria do posto e dignidade a ele inerentes. E para sua generosidade deixar bem clara, confirmou o dito com suas cartas patentes. Assim sendo, quem se atreve a tomar-mo?

SURREY — O rei, que o deu.

WOLSEY — Que seja ele em pessoa, então.

SURREY — Não passas de um traidor arrogante, padre.

WOLSEY — Mentes, lorde atrevido! Há quarenta horas, Surrey preferiria ter queimado a língua a falar desse modo.

SURREY — Tua empáfia, ó pecado escarlate, esta chorosa terra privou do muito nobre Buckingham, meu sogro. Todas as cabeças, todas de teus irmãos cardeais, contigo e quanto tiveres de melhor, pesavam menos que um só cabelo dele. A peste leve toda a vossa política. Enviastes-me para a Irlanda, afastando-me da ajuda que podia prestar-lhe, do monarca, de quantos o teriam desculpado do crime a ele imputado, enquanto a vossa grande bondade, por piedade santa, o absolveu com um machado.

WOLSEY — Isso, e assim tudo quanto este lorde falador quisesse doravante assacar-me, afirmo, é falso. Por lei o duque recebeu seu prêmio. De como eu fui isento de maldade particular na queda dele, prova-o o nobre júri e a própria ação nefanda. Milorde, se eu gostasse de discursos muito compridos, ora vos diria que sois destituído tanto de honra como de honestidade e que a respeito de lealdade e verdade ao soberano — meu sempre leal senhor — me considero melhor homem que Surrey e que todos quantos suas loucuras aprovavam.

SURREY — Padre, essa roupa longa vos protege, por minha alma. Se não fora isso, havias de sentir minha espada no teu sangue. Podeis, milordes, continuar ouvindo por mais tempo tamanhas arrogâncias? E logo deste tipo? Se mostrarmos mansidão a esse ponto, que permita a um retalho escarlate fazer pouco de nós todos, então: adeus, nobreza! Que prossiga Sua Graça e vos enxote com seu chapéu, tal como a cotovias.

WOLSEY — Para esse estômago é veneno o mérito.

SURREY — Sim, mas o mérito de haver reunido por meio da extorsão toda a riqueza da terra em vossas mãos, cardeal; o mérito do embrulho interceptado, da missiva que para o papa contra o rei mandastes. Já que me provocastes, vosso mérito vai ficar conhecido à saciedade. Milorde de Norfolk, se é que de nobre família descendeis e fazeis caso do bem-estar de todos, da grandeza de nossa condição espezinhada, de nossos filhos que, dificilmente, se ele viver, virão a ser fidalgos, lede a lista de todos os seus crimes, o resumo de todos os seus atos. Muito mais assustado vou deixar-vos do que o sagrado sino, quando aquela rapariga morena em vossos braços se recosta, cardeal, e vos dá beijos.

WOLSEY Como eu podia desprezar este homem, se não fosse impedir-me a caridade!

NORFOLK — Milorde, a lista de seus crimes se acha com o próprio rei, mas basta que o declare: são todos horrorosos.

WOLSEY — Mais formosa com isso, e imaculada, há de mostrar-se minha inocência, quando o soberano conhecendo ficar minha lealdade.

SURREY — Isso não vai salvar-vos. Felizmente tenho boa memória; ainda me lembro de alguns itens da lista. Vou dizê-los. Se capaz de corar ainda fordes, cardeal, e de dizer “culpado” a tudo, um resto mostrareis de honestidade.

WOLSEY — Falai, senhor, pois desafio vossas acusações. Corar eu poderia, mas por ver um fidalgo que de todo perdeu a compostura.

SURREY — Antes perdê-la que perder a cabeça. E agora ouvi-me. Primeiro, sem que o rei tivesse tido ciência disso ou nisso consentido, conseguistes o posto de legado, com o que mutilastes os direitos de nossos bispos.

NORFOLK — A seguir, em tudo quanto escrevíeis para o rei e para príncipes estrangeiros, sempre usáveis a pretensiosa fórmula seguinte: “Ego et Rex meus” com o que do rei fazíeis um subalterno vosso.

SUFFOLK — Mais, ainda: sem ter o rei nem o Conselho ciência, quando de embaixador servistes junto do imperador, tivestes a ousadia de a Flandres carregar o grande selo.

SURREY — Item, poderes plenos de vós teve Gregório de Cassado, para um pacto firmar entre Ferrara e Sua Alteza, sem de nada saber o rei e o Estado.

SUFFOLK — Depois, por simples ambição, mandastes gravar vosso chapéu sagrado em todas as moedas do rei.

SURREY — Depois, enviastes somas enormes — deixo agora à vossa consciência os meios por que foram ganhas — para Roma comprar e abrir caminho para mais altos postos; isso tudo sob as ruínas do país inteiro. Há mais; porém por serem coisas vossas, são odiosas; não vou sujar a boca.

CAMAREIRO — Ó senhor! não façais pressão tão grande contra um homem que cai; é caridade. Às leis estão patentes suas faltas; que elas, não vós, se incumbam de puni-lo. Aperta-se-me o coração por vê-lo precipitado de tão grande altura.

SURREY — Por mim, perdôo-lhe.

SUFFOLK — Lorde Cardeal, eis o que o rei decide: tendo em vista que quanto ultimamente praticastes dentro deste país, na qualidade de legado, se encontra no domínio de um praemunire, contra vós se expressa uma ordem de confisco, relativa a tudo o que possuís, terras, castelos e quanto mais tiverdes, declarando-vos fora da proteção do soberano. Essa é a minha mensagem.

NORFOLK — E com isso a vossas reflexões vos entregamos, para vos reformardes. Quanto à vossa resposta de há momentos, obstinada, de não nos entregar o grande selo, o rei será informado e, certamente, vos agradecerá. E agora, adeus, meu pequenino e bom Lorde Cardeal.

(Saem todos, com exceção de Wolsey.)

WOLSEY — Adeus ao pouco bem que me votáveis. Adeus, um longo adeus a toda a minha grandeza. Esse é o destino de todo homem: hoje lhe nascem as folhinhas tenras da esperança; amanhã ele floresce, carregado ficando de honrarias; mas no terceiro dia vem a geada, uma geada mortal, e no momento preciso em que ele — quão simplório e calmo! — crê que sua grandeza está madura, ela a raiz lhe morde, caindo ele tal como agora eu caio. Aventurei-me como crianças que nadam com bexigas, durante estios vários num oceano de glórias, mas profundo em demasia. Minha vaidade, inflando-se ao extremo, arrebentou sob mim, ora deixando-me cansado e envelhecido no serviço, ao sabor de uma rude correnteza que para sempre acabará tragando-me. Glórias vãs deste mundo, pompas fúteis, tenho-vos ódio! O coração se me abre a novos sentimentos. Triste a sorte de quem depende do favor dos príncipes! Entre o sorriso a que ele aspira tanto, o aspecto prazenteiro do monarca, e sua ruína há mais angústia e medo do que na guerra ocorre ou nas mulheres. E quando a queda vem, quem cai é Lúcifer, privado da esperança.

(Entra Cromwell, com aspecto consternado.)

Que é que há, Cromwell?

CROMWELL — Para falar, senhor, não tenho forças.

WOLSEY — Como! Minha desgraça te consterna? Admitir teu espírito não pode que um grande homem decline? Estais chorando! Devo, então, ter caído de verdade.

CROMWELL — Como vai Vossa Graça?

WOLSEY — Bem, decerto; nunca fui tão feliz, bondoso Cromwell. Agora me conheço. No meu íntimo sinto uma paz que paira sobre todas as dignidades terrenas, uma consciência clara e tranqüila. Devo ao rei a cura; agradecido sou a Sua Graça, humildemente o digo. Destes ombros, por piedade, tirou pesado fardo que afundar poderia até uma frota: honra excessiva. Oh! que pesado fardo! É um fardo, meu bom Cromwell excessivo para quem põe no céu toda a esperança.

CROMWELL — Alegro-me por ver que Vossa Graça compreende a situação por essa forma.

WOLSEY — Penso que sim, convicto estando agora — graças à força que no peito sinto — de que suportarei mais sofrimentos e muito mais intensos do que quantos meus inimigos de ânimo mesquinho a me infligir se atrevam. Que há de novo?

CROMWELL — A novidade pior e mais penosa é a boa graça do rei terdes perdido.

WOLSEY — Deus o ampare!

CROMWELL — A segunda é que nomeado foi em vosso lugar Sir Tomás More; é o Lorde Chanceler.

WOLSEY — É um tanto súbita, parece-me, a ascensão; mas é pessoa de saber comprovado. Faço votos para que ele por muito tempo saiba conservar-se nas graças do monarca e a justiça aplicar segundo as regras imparciais do dever e da consciência. Desse modo seus ossos, quando o curso completado ele houver e já se achar na bem-aventurança adormecido, alcançarão um túmulo banhado nas lágrimas dos órfãos. Há outras novas?

CROMWELL — Cranmer voltou e foi bem recebido; foi nomeado Arcebispo de Cantuária.

WOLSEY — Oh! isso é novidade!

CROMWELL — Finalmente, que Lady Ana, com quem muito em segredo havia muito tempo, o rei casara, hoje foi vista em público, quando ia para a capela real, sendo tratada como rainha. Só se fala agora em sua coroação.

WOLSEY — Foi esse peso que me jogou por terra. Oh Cromwell, Cromwell! O rei se me escapou. É para sempre, para sempre que eu perco minhas glórias nessa única mulher. Jamais o sol voltará a proclamar minha grandeza nem a doirar de novo os novos grupos que sempre meus sorrisos aguardavam. Afasta-te de mim, bondoso Cromwell; sou um pobre homem decaído, indigno de ser agora teu senhor e mestre. Vai procurar o rei. Jamais ocaso há de ter este sol, é o que desejo. Quem és lhe disse e quanto verdadeiro. Decerto há de ajudar-te. Algum resquício de consideração a meu respeito — conheço-lhe a alma nobre — há de impedi-lo de apagar teu serviço meritório. Bondoso Cromwell, não te esqueças dele; cuida de teu futuro, promovendo tua estabilidade.

CROMWELL — Ó meu senhor! Vou deixar-vos? Forçoso é, então, que eu perca tão bondoso senhor, tão leal e nobre? Atestem-me as pessoas que de ferro não têm o coração, em como é cheio de tristeza que Cromwell se despede de seu senhor e mestre, O soberano meus serviços terá; mas minhas preces sempre vossas serão, oh! sempre, sempre!

WOLSEY — Cromwell, nunca pensei que uma só lágrima viria a derramar em minha queda. Mas com tua lealdade e singeleza ao papel de mulher me reduziste. Enxuguemos os olhos. E ora escuta-me. Quando esquecido eu já estiver — que é certo vir a sê-lo — e dormir no frio mármore, quando ninguém pronunciar meu nome, dirás que eu te mostrei, dirás que Wolsey — que as estradas da glória percorrera e os abismos sondara mais profundos e as sirtes do comando — em seu naufrágio te mostrou o caminho da grandeza, o caminho seguro e confortável que ele próprio perdera. Observa apenas minha queda e o que fez minha ruína. Despe-te de ambição, Cromwell, te peço. Esse pecado derrubou os anjos; como útil poderia ser aos homens, de Deus feitos à imagem? Não reveles egoísmo; ama aos próprios inimigos. Não lucrarás por meio do suborno mais do que com a verdade. Traze sempre na destra a doce paz, pala que as línguas invejosas reduzas ao silêncio. Se justo e nada temas. Que tuas metas se identifiquem sempre com as da pátria, de Deus e da verdade, pois, ó Cromwell! no caso de caíres, tua queda será a de um grande mártir. Serve ao rei e, por obséquio, deixa-me. O inventário farás de tudo quanto tenho, tudo, até o último pêni; ao rei pertence. Minha lealdade ao rei e minhas vestes é tudo o que me resta. Ó Cromwell, Cromwell! Se ao meu Deus eu tivesse revelado metade, só, do zelo com que sempre servi o soberano, ele decerto não me teria, nesta idade, entregue nu aos meus inimigos.

CROMWELL — Meu bondoso senhor, tende paciência.

WOLSEY — Tenho muita. Esperança da corte, agora, adeus; minha esperança se concentra em Deus.

(Saem.)


 

ATO IV

CENA I

 

Uma rua de Westminster. Entram dois gentis-homens, que se encontram.

 

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Mais uma vez, bem-vindo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Como vós.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Viestes tomar lugar, porque a Lady Ana possais ver, quando vier da coroação?

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Perfeitamente. Ao nosso último encontro deixava o tribunal o grande Duque de Buckingham.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Porém naquele dia tudo era só tristeza. Hoje, por toda parte reina a alegria.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — E com razão. Os cidadãos revelam plenamente que dedicados são ao rei e ao trono. Façamos-lhe justiça; sempre se acham prontos a celebrar esta efeméride com representações, troféus e emblemas.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Mas nunca festivais houve tão belos, isso asseguro, nem mais adequados.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Se desculpardes a pergunta, posso saber que papel é esse?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ora, sem dúvida. É a relação dos que vão pedir hoje novos postos, de acordo com o costume dia coroação. É o primeiro o Duque de Suffolk, que deseja ser nomeado grão-senescal; o Duque de Norfolk vem depois, como conde-marechal. Lede o resto vós mesmo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Agradecido; se eu já não conhecesse esse costume, vosso papel muito útil me seria. Mas, por favor, dizei-me: que foi feito de Catarina? Falo da princesa viúva. Em que pé está o seu negócio?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Poderei informar-vos. O Arcebispo de Cantuária, com vários outros membros reverendos e sábios de sua ordem, reuniu uma corte de justiça há pouco, em Dunstable, distante só seis milhas de Ampthill, onde a princesa está morando, a qual diversas vezes foi citada, mas não apareceu. Para ser breve: por causa de sua ausência e dos escrúpulos recentes do monarca, proclamado foi o divórcio por geral consenso dos sábios personagens, sem efeito tendo ficado o casamento de ambos. Transferida depois foi ela para Kimbolton, onde agora se acha doente.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Pobre senhora!

(Toque de trombetas.)

Toque de trombetas! Basta, basta! A rainha vem chegando.

(A ordem do cortejo). (Oboés.)

1 — Dois juizes.

2 — O Lorde Chanceler, precedido da bolsa e da maça.

3 — Coristas cantando.

(Música.)

4 — O prefeito de Londres, com a maça; depois, o rei de armas, em traje de rigor, trazendo na cabeça uma coroa de cobre dourado.

5 — O Marquês Dorset, com um cetro de ouro, trazendo na cabeça uma meia coroa de ouro. Com ele vem o Conde de Surrey com o bastão de prata encimado por uma pomba, trazendo na cabeça uma coroa de conde; ao pescoço, colar da ordem, em forma de SS.

6 — O Duque de Suffolk, com seu manto de Estado, coroa pequena na cabeça, empunhando a varinha branca do grão-senescal. Com ele, o Duque de Norfolk, com o bastão de marechalato e coroa pequena. Colar de SS.

7 — Um dossel carregado por quatro barões dos Cinco-Portos; sob ele, a rainha, em traje de cerimônia; está coroada e com os cabelos enfeitados de pérolas. Ladeiam-na os Bispos de Londres e de Winchester.

8 — A velha Duquesa de Norfolk com uma grinalda de flores de ouro, sustentando a cauda da rainha.

9 — Numerosas damas nobres ou condessas com simples aros de ouro na cabeça, sem flores.

(Atravessam o palco em ordem e com solenidade.)

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Por minha vida! um séquito admirável! Conheço aqueles. Quem carrega o cetro?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — O Marquês Dorset; o bastão é o Conde de Surrey que carrega.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — É um gentil-homem nobre e valente. E aquele, porventura não será o Duque de Suffolk?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — O mesmo; como grão-senescal.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — E esse, milorde de Norfolk?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ele mesmo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — (olhando para a rainha) — O céu te ampare! Tens o mais belo rosto que eu já vi. Senhor, por minha vida, ela é um anjo. No braço leva o rei ambas as Índias, sendo muito mais rico, oh! sem medida, quando nos braços cinge esta senhora. Não censuro a consciência do monarca.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Os que sobre ela o baldaquim sustentam, são quatro dos barões de Cinco-Portos.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Que homens felizes! e assim todos quantos se encontram perto dela. E acaso aquela que lhe segura a cauda do vestido não será a veneranda e nobre dama, a Duquesa de Norfolk?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ela mesma, como condessas são todas as outras.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — As coroas o dizem. São estrelas todas elas; algumas, em declínio.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sobre isso não falemos.

(Sai a procissão ao toque estridente de fanfarras.)

(Entra um terceiro gentil-homem.)

Deus vos salve, senhor! Onde ficastes tão assado?

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Na abadia, onde o povo se aglomera de modo tal, que nem um dedo fora possível meter lá. Quase me matam com tanta exuberância de alegria.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Vistes a cerimônia?

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Vi.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — E o jeito?

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Mui digno de ser visto.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Bom amigo, contai-nos como foi.

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Do melhor modo que possível me for. Tendo a rainha levado até um lugar no coro, a esplêndida onda de nobres damas e senhores um tanto se afastou. Lá, Sua Graça sentou-se um pouco, cerca de meia hora, num trono rico, ao povo patenteando toda a sua beleza. Acreditai-me, senhor: ela é a mulher mais admirável que ao lado já dormiu de qualquer homem. Quando o povo a admirou assim de perto, levantou-se um barulho como fazem as enxárcias num mar em tempestade, assim violento e vário: chapéus, mantos, creio que até casacos, tudo voava. E se as cabeças fixas não se achassem, nesse dia perdidas ficariam. Nunca vi tanto júbilo; mulheres grávidas, na semana já do parto, como os velhos aríetes de guerra, entre a turba se metiam, brechas abrindo facilmente. Não podia ninguém dizer: “Minha mulher é aquela”, de tal maneira entrelaçados todos num só bloco se achavam.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — E após isso?

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Finalmente Sua Graça levantou-se e com passos modestos dirigiu-se para o altar, ajoelhou-se e, na postura de uma santa, no céu fitando os olhos, rezou devotamente. Levantando-se, fez uma reverência para o povo. Após isso, o Arcebispo de Cantuária lhe deu as reais insígnias de seu posto: o óleo sagrado, a coroa que já fora de Eduardo, o Confessor, a vara, a pomba da paz e todos os demais emblemas nobremente ao seu lado foram postos; logo depois, o coro, acompanhado da música melhor de todo o reino cantou o Te Deum. Assim foi ela embora, com a mesma cerimônia com que viera, para o palácio de York, onde festejos se estão realizando.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Doravante, senhor, já não será palácio de York. Isso foi no passado, pois o título com a queda do cardeal ficou extinto. Ora é do rei e o nome de Whitehall.

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Perfeitamente. Porém tão recente foi a mudança, que seu velho nome me ocorre mais amiúde.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Qual o nome dos dois bispos tão graves que marchavam ao lado da rainha?

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Stokesly e Gardiner, um, Bispo de Winchester; foi promovido; secretário do rei era até há pouco. O outro, Bispo de Londres.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — O de Winchester não é tido na conta de afeiçoado ao arcebispo, o virtuoso Cranmer.

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Todo o país sabe isso. Por enquanto, porém, a divergência ainda é pequena. Mas se vier a aumentar, há de achar Cranmer um amigo que nunca há de deixá-lo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Quem pode ser? Dizei-me.

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Tomás Cromwell, pessoa que desfruta de muito alto prestígio junto ao rei; amigo certo, sem dúvida nenhuma. O rei fez dele o avaliador de seu real tesouro, já tendo sido nomeado para seu conselho privado.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Há de outros postos elevados obter.

TERCEIRO GENTIL-HOMEM — Sim, nem há dúvida. Vamos juntos, senhores; vou à corte; ali sereis meus hóspedes; disponho de alguma autoridade. De caminho, sobre isso falaremos mais de espaço.

AMBOS — Estamos, meu senhor, às vossas ordens.

(Saem.)


 

CENA II

 

Kimbolton. Entra a ex-Rainha Catarina, doente, conduzida por Griffith e Paciência.

 

GRIFFITH — Como se sente agora Vossa Graça?

CATARINA — Oh Griffith! É mortal minha doença. Como galhos de chumbo tenho as pernas, dobradas para a terra e desejosas de se desvencilharem de seu fardo. Trazei-me uma cadeira. Assim; agora me sinto mais a gosto. Não disseste, Griffith, quando me vinhas amparando, que esse famoso filho da grandezas o Cardeal Wolsey, tinha falecido?

GRIFFITH — Disse, minha senhora; mas pensava que ouvido não me tinha Vossa Graça, em virtude de vossos sofrimentos.

CATARINA — Conta-me, por obséquio meu bom Griffith, de que modo morreu. Se morreu bem, partiu na minha frente certamente para me dar exemplo.

GRIFFITH — Todos dizem, senhora, que foi bem. Após ter sido detido em York pelo altivo Conde Northumberland e conduzido para justificar-se das mais graves culpas que pesavam sobre ele, mui de súbito sentiu-se doente e de tal modo fraco que nem pode montar em sua mula.

CATARINA — Pobre homem!

GRIFFITH — Finalmente, a muito custo, Leiscester alcançou, tendo apeado na abadia, onde foi bem recebido pelo abade com todos os seus monges, a quem falou assim: “Ó padre abade, um ancião alquebrado pelas grandes tempestades do Estado, aqui se encontra para entre vós deixar os lassos ossos. Por caridade, concedei-lhe ao menos uma pouca de terra”. Conduziram-no sem mais delongas para a cama, tendo feito a doença rápido progresso. E, já bem fraco, na terceira noite, pelas oito horas — que ele próprio havia predito que sua última seria — arrependido, em lágrimas banhado, contínuo meditar e ininterruptas preocupações, restituiu ao mundo suas pompas, ao céu a imortal parte, e adormeceu em paz.

CATARINA — E assim repouse Que não lhe pesem suas grandes faltas. Mas uma coisa, Griffith, me permite que a seu respeito eu diga, sem faltar-lhe com a caridade. Ele era um indivíduo de orgulho desmedido, que gostava de se ombrear com os príncipes, um homem que por meios secretos conseguira dominar todo o reino. A simonia para ele era o normal; seu próprio arbítrio, toda a lei. Até mesmo ante a evidência assoalhava mentiras; sempre dobre nas intenções e em tudo o que dizia. Piedade não mostrava, salvo quando premeditava arruinar alguém. No prometer, magnífico, tal como era ele então; mas, quanto a realizá-las, tal como é agora: nada. Pecou muito na própria carne, dando, assim, exemplo péssimo a todo o clero.

GRIFFITH — Nobre dama, os defeitos dos homens são gravados no bronze, mas as boas qualidades escrevemo-las na água. Vossa Alteza permitirá que bem eu fale dele?

CATARINA — Pois não, bondoso Griffith; de outro modo, maldosa eu me mostrara.

GRIFFITH — Esse cardeal, apesar de sua origem muito humilde, foi fadado, decerto, desde o berço para altas honrarias. Foi um sábio maduro e mui capaz, de extraordinária sagacidade, sempre bem falante e de grande poder de persuasão. Áspero e altivo para os desafetos, mas, como o estio, doce para todos os que o iam procurar. E muito embora no adquirir ele fosse incontentável — o que é grande pecado — revelava-se principesco no dar, nobre senhora. Sempre hão de provar isso esses dois gêmeos da ciência que ele para vós criou: Oxford e Ipswich; um, que caiu com ele, por não querer sobreviver ao próprio benfeitor; o outro, embora ainda incompleto, de marcha ascensional tão admirável, que nunca deixará a cristandade de tecer-lhe elogios. Sua queda fez sobre ele chover felicidades, pois a partir daí — nunca antes disso — pode adquirir consciência de si próprio, felicidade achando na ventura de ser pequeno, o que lhe deu mais honras à velhice que os homens o fariam. Morreu temente a Deus.

CATARINA — Depois de eu morta, não desejo outro arauto, mais brilhante relator de meus atos, porque fique da corrupção minha honra sempre isenta, do que um cronista honesto como Griffith. Quem em vida eu odiei, tu me obrigaste, com tão pia modéstia e reverência, a honrar depois de morto. Em paz descanse. Fica perto de mim, Paciência; deixa-me mais baixa um pouco; não vou dar-te incômodo por muito tempo mais. Bondoso Griffith, aos músicos ordena que ora toquem a ária tristonha que eu chamar costumo de meu dobre funéreo, pois sentada me quedarei a meditar naquela celestial harmonia que mui breve terei de conhecer.

(Música triste e solene.)

GRIFFITH — Está dormindo. Sentemo-nos, menina, bem quietinhos, para não despertá-la. Sem barulho, gentil Paciência.

(A visão. Entram solenemente, uma após outra, seis personagens, vestidas de branco, com grinaldas de louro na cabeça e máscara de ouro no rosto; nas mãos trazem palmas de louro. Saúdam primeiro a rainha e depois dançam; a determinadas mudanças de figura, as duas primeiras sustentam sobre a cabeça da rainha uma grinalda pequena, ao tempo em que as outras quatro se inclinam com reverência. Depois, as duas que seguram a grinalda a passam para as duas seguintes, que observam a mesma ordem na mudança dos passos, mantendo-a sobre a cabeça da rainha. Depois, passam-na para as duas últimas, que repetem a cerimônia, com o que — como que por inspiração — a rainha faz no sono sinais de aprovação e levanta as mãos para o céu. As aparições, sem parar de dançar, desaparecem, levando a grinalda. A música continua.)

CATARINA — Espíritos da paz, para onde fostes? Já desaparecestes e na minha miséria me deixastes?

GRIFFITH — Aqui estamos, minha senhora.

CATARINA — Não falei convosco. Vistes alguém entrar durante o tempo em que a dormir fiquei?

GRIFFITH — Ninguém, senhora.

CATARINA — Não? Não vistes entrar neste momento um coro de anjos que me convidavam para um banquete? De brilhantes rostos, me iluminavam como o sol radioso, felicidade eterna me auguraram, lindas grinaldas me trouxeram, Griffith, que eu de aceitar ainda não sou digna. É cedo, porventura.

GRIFFITH — Regozijo-me por ver, senhora, que tão belos sonhos vos prendem os sentidos.

CATARINA — Manda a música parar; é dura e deixa-me abatida.

(Cessa a música.)

PACIÊNCIA — Notastes a mudança que de súbito Sua Graça apresenta? Como o rosto ficou mais longo! Como ela está pálida e fria como argila! Os olhos vede-lhos!

GRIFFITH — Está morrendo, filha. Reza! Reza!

PACIÊNCIA — Possa o céu ampará-la.

(Entra um mensageiro.)

MENSAGEIRO — Se Vossa Graça...

CATARINA — Sois impertinente. Não merecemos mais respeito, acaso?

GRIFFITH — Censura mereceis, pois bem sabendo que ela abdicar não quer da costumeira majestade, falais com tal rudeza. Ajoelhai! Ajoelhai!

MENSAGEIRO — Humildemente peço perdão a Vossa Majestade. A pressa foi que me deixou grosseiro. Ai fora há um gentil-homem que deseja falar-vos. Vem da parte do monarca.

CATARINA — Griffith, manda-o entrar, mas que este tipo eu enxergar não torne.

(Saem Griffith e o mensageiro.)

(Volta Griffith com Capúcio.)

Se minha vista não me engana, da parte agora vindes do imperador, meu muito real sobrinho, e vos chamais Capúcio.

CAPÚCIO — Ele, senhora, servidor vosso.

CATARINA — Ó meu senhor, os tempos e os títulos mudaram muito, muito, desde que me ficastes conhecendo. Mas, por obséquio, que quereis de mim?

CAPÚCIO — Em primeiro lugar, nobre senhora, a Vossa Graça oferecer meus préstimos; depois, o rei determinou que eu viesse fazer esta visita. Muito aflito ele está por saber-vos assim fraca e por meu intermédio vos envia suas reais condolências, desejando sinceramente que crieis coragem.

CATARINA — Ó meu senhor! Este encorajamento me chega muito tarde; é como graça depois da execução. Esse remédio benigno, administrado em tempo certo, me teria curado. Mas agora, consolo algum me serve, se excetuarmos apenas a oração. E Sua Alteza como passa?

CAPÚCIO — Senhora, com saúde.

CATARINA — Que continue assim, florente sempre, quando eu morar com os vermes e meu pobre nome estiver banido deste reino. Paciência, foi enviada aquela carta que eu te mandei fazer?

PACIÊNCIA — Ei-la, senhora.

(Entrega a carta a Catarina.)

CATARINA — Senhor, humildemente vos conjuro a entregar isto ao rei, meu soberano.

CAPÚCIO — De bom grado, senhora.

CATARINA — Recomendo nela à sua bondade a vera imagem de nosso casto amor, a filha dele — que em bênçãos incessantes caia o orvalho sempre do céu sobre ela! — e lhe suplico que lhe ministre educação virtuosa. É muito nova e de modesta e nobre natureza, esperando eu que ela saiba praticar a virtude, e que um pouquinho de amor lhe vote em consideração da mãe que o amou tão ternamente como só do céu é sabido. O outro pedido que humildemente faço é que Sua Graça tenha piedade destas infelizes mulheres que durante tanto tempo me acompanharam, sempre dedicadas, na fortuna variável, não havendo, posso afirmá-lo — e nisso falsidade não poderei dizer — nenhuma delas que, por virtudes e beleza da alma, honestidade e nobre compostura não mereça um marido de alto mérito. Que seja nobre, até, pois, em verdade, serão felizes os que as escolherem. Meu último pedido é para os criados. Pobres são todos, mas de mim não pode tirar nunca a pobreza nenhum deles. Sejam-lhes pagos, pois, os ordenados, sem falta alguma, com algum acréscimo, como recordação de minha parte. Se um pouco mais de vida o céu me houvesse concedido, e recursos, nos teríamos despedido melhor. Eis toda a carta, senhor. Por tudo quanto neste mundo tendes de caro, pela paz cristã que desejais aos mortos, sede amigo destes coitados, insistindo junto do soberano, para que ele esta última justiça me conceda.

CAPÚCIO — Pelo céu, assim farei, ou despojar-me quero desta figura humana.

CATARINA — Agradecida, muito digno senhor. Humildemente falai de mim a Sua Majestade. Dizei-lhe que já vai deixar o mundo o autor de seus cuidados demorados. Contai-lhe que eu o abençoei na morte, pois vou fazê-lo. Tenho os olhos turvos. Adeus, senhor; Griffith, adeus. Paciência, não, não saias ainda. Chama as outras; preciso ir para a cama. Estando eu morta, boa menina, trata-me com honra. Virginais flores põe no meu sepulcro, para que todos saibam que uma esposa casta eu fui até à morte. Embalsamai-me e exibi-me. Conquanto não rainha, como rainha quero que me enterrem, como filha de rei. Não posso mais...

(Saem, levando Catarina.)


 

ATO V

CENA I

 

Londres. Uma galeria do palácio. Entram Gardiner, Bispo de Winchester, um pajem com um archote, que encontram Sir Tomás Lovell.

 

GARDINER — Já é uma hora, menino?

PAJEM — Neste instante acabou de bater.

GARDINER — Uma hora dessas dicada deveria ser a nossas necessidades, não a diversões, momento para reparar as forças com salutar repouso, sem o tempo desperdiçarmos. Sir Tomás, boa noite. Para onde ides tão tarde?

LOVELL — Acaso viestes do rei, senhor?

GARDINER — Sim, Sir Tomás; deixei-o jogando uma partida de “primeiro” com o Duque de Suffolk.

LOVELL — Vou procurá-lo antes de ir me deitar. De vós despeço-me.

GARDINER — Não, não, Sir Tomás Lovell. Que acontece? Revelais muita pressa. Se puderdes — não havendo mal nisso — alguma coisa contai ao vosso amigo, do negócio que tão tarde vos prende. Esses assuntos que passeiam no jeito dos espíritos, à meia-noite, são de natureza mais estranha do que a dos que de dia procuram seu despacho.

LOVELL — Muito afeto vos dedico, milorde, e ouso confiar-vos segredo de mais peso que estas minhas ocupações. A soberana se acha em trabalho de parto e em grande risco; é o que dizem. Receio que sucumba.

GARDINER — Oro ferventemente pelo fruto que ela carrega, para que a bom termo venha a nascer e viva. Mas, quanto à árvore, Sir Tomás, vê-la quero sem raízes.

LOVELL — Capaz me sinto de dizer amém. Porém diz-me a consciência que ela é uma criatura boníssima, senhora de valor, que merece nossos votos.

GARDINER — Porém senhor, senhor! Prestai-me ouvidos, Sir Tomás. Sois fidalgo do meu jeito. Sei que sois muito sábio e religioso, mas deixai que vos diga: nunca, nunca há de isto acabar bem. Não, Sir Tomás, podeis acreditar-me, enquanto Cranmer e Cromwell, as mãos dela, juntamente com ela não dormirem no sepulcro.

LOVELL — Ora vos referistes aos dois homens mais notáveis do reino. Quanto a Cromwell, além de auferidor do real tesouro, foi nomeado arquivista e secretário de Sua Majestade, sem contarmos que se acha mesmo no momento azado de ter novos encargos. O arcebispo é a língua e a mão do rei; quem ousaria contra ele pronunciar uma só sílaba?

GARDINER — Há, sim, quem o ouse, Sir Tomás; eu próprio me arrisquei a expressar o pensamento. Hoje mesmo, senhor, posso dizer-vos, inculquei nos senhores do Conselho a idéia de que ele é — pois o conheço como tal, o que todos também sabem — um arqui-herético, uma pestilência que o país todo infecta. Comovidos com o que lhes disse, ao rei falaram logo, e este, do alto de sua grande graça, dos seus reais cuidados, pressentindo os terríveis perigos que lhe expunham nossas razões, ouviu nossos queixumes e convocou para amanhã bem cedo a reunião do Conselho. É erva daninha, Sir Tomás, que precisa ser cortada. Mas estou vos detendo muito tempo. Boa noite, Sir Tomás.

LOVELL — Muito boas noites. Ainda e sempre vosso servidor.

(Saem Gardiner e o pajem.)

(Entram o rei e Suffolk.)

REI HENRIQUE — Carlos, deixemos de jogar por hoje. Não me concentro; sois por demais forte.

SUFFOLK — Senhor, nunca antes de hoje eu vos vencera.

REI HENRIQUE — Sim, raras vezes, Carlos, e assim mesmo quando me distraía na partida. Lovell, então? Há alguma novidade da parte da rainha?

LOVELL — Pessoalmente não lhe dei a mensagem que mandastes, mas por uma de suas camareiras fi-la chegar a ela, que em resposta me disse que a rainha humildemente vos agradece e pede a Vossa Alteza rezar por ela com fervor agora.

REI HENRIQUE — Que disseste? Eu, rezar por ela? Como! Está sentindo dores?

LOVELL — Pelo menos, foi o que disse a sua camareira, havendo acrescentado que suas dores à dor da morte mesma quase igualam.

REI HENRIQUE — Pobre senhora!

SUFFOLK — Possa Deus do fardo aliviá-la com pouco sofrimento, porque se alegre Vossa Majestade com a vinda de um herdeiro.

REI HENRIQUE — É meia-noite, Carlos; vamos dormir. Em tuas preces não te esqueças de minha pobre esposa. Deixa-me só, pois tenho pensamentos que não vão bem na companhia de outrem.

SUFFOLK — São meus votos que Vossa Majestade tenha uma noite calma. Hei de lembrar-me da minha bondosíssima rainha nas minhas orações.

REI HENRIQUE — Boa noite, Carlos.

(Sai Suffolk.)

(Entra Sir Antonio Denny.)

Então, senhor: que é que há?

DENNY — Trouxe milorde arcebispo, senhor, como o ordenastes.

REI HENRIQUE — Como! Cantuária?

DENNY — Sim, meu bom senhor.

REI HENRIQUE — É certo, é certo. E onde está ele, Denny?

DENNY — Aguarda o bom prazer de Vossa Alteza.

REI HENRIQUE — Faze-o entrar.

LOVELL (à parte) — É sobre aquele assunto de que o bispo falou: cheguei a tempo.

(Volta Denny com Cranmer)

REI HENRIQUE — Deixai a galeria.

(Lovell faz menção de ficar.)

Não vos disse? Retirai-vos!

(Saem Lovell e Denny.)

CRANMER — Bastante medo sinto. Por que franze de assim o sobrecenho? O aspecto é do terror. Algo vai mal.

REI HENRIQUE — Então, milorde, desejais que eu diga porque vos fiz chamar?

CRANMER (ajoelhando-se.) — Ficar às ordens de Vossa Alteza é meu dever de súdito.

REI HENRIQUE — Levantai-vos, vos peço, meu gracioso Lorde de Cantuária. Vinde; juntos vamos dar uma volta. Tenho novas para contar-vos. Vamos: dai-me a mão. Ah! meu bondoso lorde, é com tristeza que vos falo; compunge-me o que tenho de vos dizer. Ouvi recentemente — contrariado, asseguro-vos — bastantes queixas de vós. É certo, é o que vos digo, milorde: queixas graves, que, tomadas em consideração, nós e o Conselho decidimos que à nossa frente viésseis esta manhã. E como estou convicto de que justificar-vos cabalmente não podereis, enquanto organizado não for o questionário a que resposta tereis de dar, será preciso agora que tenhais paciência muita, para na Torre preparar vossa morada. Por serdes par do reino, é necessário que eu faça, como faço; do contrário, não haverá ninguém que se resolva contra vós a depor.

CRANMER (ajoelhando-se) — Humildemente Vos agradeço. Mui feliz me sinto por se me oferecer esta excelente ocasião de no crivo ser passado, vindo a ficar, assim. todo o meu trigo separado do joio, pois é certo que não há quem como eu — um pobrezinho — se veja alvo das línguas caluniosas.

REI HENRIQUE — Bom Cantuária, levanta-te; a lealdade, a integridade que te é própria, criaram raiz profunda em nós, em teu amigo. Dá-me tua mão; levanta-te; passemos, por obséquio. Mas, pela Mãe de Deus, que espécie de homem sois? Eu estava certo, milorde, de que havíeis de pedir-me que eu me desse ao trabalho de levar-vos à presença de vossos inimigos, e mais: de vos ouvir em liberdade.

CRANMER — Augusto soberano, só me apoio na minha honestidade e em meu direito. Se eles me abandonarem, juntamente com meus inimigos cantarei triunfo, por ver-me derrubado, pois sem eles careço de valor. Não tenho medo de quanto contra mim possa dizer-se.

REI HENRIQUE — Não sabeis o que todo o mundo sabe, qual seja a vossa situação no mundo? São numerosos vossos inimigos, e não pequenos; suas artimanhas são de igual importância, sendo certo que nem sempre a justiça de uma causa sentença favorável assegura. Com que facilidade almas corruptas podem peitar escravos corrompidos, para em juízo deporem? Fatos desses já têm acontecido. Muito fortes são vossos inimigos, de maldade que ao seu poder se iguala. Estais bem certo de que nisso de falsas testemunhas vireis a ter mais sorte do que o Mestre de que ministro sois, durante o tempo em que passou pela mesquinha terra? Vamos, vamos! julgais seja possível sem perigo saltar um precipício, e procurais a própria destruição.

CRANMER — Que Deus e Vossa Majestade amparem minha inocência, pois de outra maneira fugir não poderei desta armadilha.

REI HENRIQUE — Criai coragem. Não irão mais longe do que eu lhes permitir. Tranqüilizai-vos sem que pela manhã à frente deles deixeis de aparecer. Se porventura vossa prisão pedirem, em virtude das queixas contra vós acumuladas, não deixeis de usar grandes argumentos de poder persuasório, com a veemência que a ocasião vos ditar. Se vosso esforço não vos der resultado, apresentai-lhes este anel e apelai para nós próprio, na frente deles todos. Mas que é isso. A chorar o bom homem! Por minha honra, é honesto. Pela santa Mãe de Deus, é de coração leal, posso jurá-lo. Alma melhor não se acha no meu reino. Ide embora e fazei como vos disse.

(Sai Cranmer.)

Às lágrimas a fala lhe abafavam.

(Entra uma velha dama.)

GENTIL-HOMEM (dentro) — Voltai! Que ides fazer?

VELHA DAMA — Não voltarei; a notícia que eu tenho para dar-lhe deixa cortes o meu atrevimento. Que os bons anjos agora pairem sobre tua real cabeça e com suas asas benditas te protejam.

REI HENRIQUE — Leio tua mensagem no teu rosto. Deu-se o parto? Dize depressa “sim” e que é um menino.

VELHA DAMA — Sim, sim, meu soberano; e que menina! Que ora e sempre a abençoe o Deus do céu. É uma menina, que vos assegura para o futuro um filho. Vossa esposa, senhor, de vós reclama uma visita, para que conheçais essa estrangeira. Parece-se convosco como duas cerejas de um só galho.

REI HENRIQUE — Lovell! Lovell!

(Volta Lovell.)

LOVELL — Senhor?

REI HENRIQUE — Dai-lhe cem marcos. Vou depressa visitar a rainha.

(Sai.)

VELHA DAMA — Só cem marcos? Por esta luz, mereço mais. A um criado comum é que se paga desse modo. Hei de obter mais, ou brigarei com ele. Para ganhar tão pouco foi que eu disse que ela era a cara dele? Hei de obter mais; do contrário, desdigo-me. Batamos com força, enquanto o ferro está vermelho.

(Saem.)


 

CENA II

 

Um corredor que vai dar à Câmara do Conselho. Entra Cranmer; pajens e oficiais, de pé.

 

CRANMER — Penso que não estou nada atrasado. No entanto, o gentil-homem que mandado me foi pelo Conselho, urgentemente pediu que me apressasse. Quê! Fechado? Que significará tal coisa? Olá! Quem é que está de guarda?

(Entra o porteiro.)

Conheceis-me?

PORTEIRO — Sim, milorde, conheço-vos; mas hoje não vos posso ajudar.

CRANMER — Por quê?

PORTEIRO — Forçoso será que Vossa Graça aguarde o aviso.

(Entra o Doutor Butts.)

CRANMER — Está bem.

BUTTS — Em tudo isto há só maldade. Fico contente por haver passado por aqui sem tropeço. O soberano vai ser logo informado.

CRANMER (à parte) — É Butts, o médico do rei. Quando passava, que terrível olhar me dirigiu! O céu permita que com isso sondado não tivesse minha infelicidade. Com certeza concebido foi tudo Por pessoas que me têm ódio — queira Deus mudar-lhes de todo o coração nunca a malícia provoquei de ninguém — para humilhar-me. Deviam ter vergonha de deixar-me à espera. assim, na porta, um conselheiro como eles, entre pajens e lacaios! Mas faça-se a vontade deles todos. Paciente, esperarei.

(O rei e Butts aparecem em uma janela, no alto.)

BUTTS — A Vossa Graça quero mostrar um quadro muito estranho.

REI HENRIQUE — Que quadro, Butts?

BUTTS — Decerto Vossa Graça coisa igual não tem visto muitas vezes.

REI HENRIQUE — Com a breca! Onde é que há isso?

BUTTS — Ali, milorde; o alto posto ali vedes de Sua Graça de Cantuária, de guarda ora postado diante da porta, entre serventes, pajens e oficiais.

REI HENRIQUE — Ah! é certo. É ele mesmo. É assim que eles se acatam mutuamente? É bom que ainda haja alguém acima deles. Pensei que eles tivessem ainda um pouco de honestidade, ou mesmo algum resquício de decoro, que não lhes permitisse deixar um homem da posição dele e tão chegado a nós, numa antecâmara, na expectativa apenas da vontade de Suas Senhorias, como um criado carregado de embrulhos. Pela Santa Maria, Butts, isso é procedimento de gente sem caráter. Mas deixemo-los; corramos as cortinas; ainda havemos de ouvir falar sobre isso mais de perto

(Saem.)


 

CENA III

 

A Câmara do Conselho. Entram o Lorde Chanceler, o Duque de Suffolk o Duque de Vorfolk, o Conde de Surrey, Lorde Camareiro, Gardiner e Cromwell. O chanceler se coloca na ponta de cima da mesa, à esquerda, ficando acima dele vazia uma cadeira, Como que destinada para o Arcebispo de Cantuária. Os demais se sentam por ordem, de ambos os lados da mesa. Cromwell, na ponta de baixo, como secretário. O porteiro, em seu lugar.

 

CHANCELER — Abri a audiência, mestre secretário. Que nos traz hoje aqui?

CROMWELL — Se Vossas Honras me permitem, o principal assunto diz respeito à Sua Graça de Cantuária.

GARDINER — Já foi ele informado?

CROMWELL — Já.

NORFOLK — Quem se acha à espera, aí?

PORTEIRO — Fora, meus nobres lordes?

GARDINER — Sim.

PORTEIRO — Milorde arcebispo; há meia hora vossas ordens aguarda.

CHANCELER — Então, que entre.

PORTEIRO — Vossa Graça já pode entrar na sala.

(Cranmer entra e se aproxima da mesa do Conselho.)

CHANCELER — Meu bom lorde arcebispo, é com tristeza que eu aqui me acho e vejo esta cadeira privada de seu dono. Mas nós todos somos homens, de natureza frágil e sujeitos à carne; muito poucos serão anjos. Assim, pela fraqueza levado e a irreflexão, vós que a nós todos devíeis dirigir, vós desmandastes, gravemente, ofendendo o soberano, depois, as leis, e enchendo o reino todo, pelas prédicas próprias e dos vigários — já soubemos de tudo isso de doutrinas recentes, muito estranhas e perigosas, puras heresias, que, se não forem reformadas, podem produzir grande dano.

GARDINER — Nobres lordes, urge que essa reforma seja pronta. Quem quer domar cavalos pelas mãos não os leva, porque dóceis a ficar venham, mas lhes tapa a boca com freio resistente e a espora calca nos flancos até que eles obedeçam. Se permitirmos — por condescendência, por piedade pueril, pelo conceito, tão-só, de um homem — que se alastre doença tão contagiosa: então, adeus remédio! Quais serão do desídio as conseqüências? Revoltas, comoções, o Estado todo contaminado. Caro testemunho disso mesmo nos dão nossos vizinhos da alta Alemanha; é mui recente a coisa que a memória dorida nos compunge.

CRANMER — Lutei até hoje, meus bondosos lordes, assim na profissão como na vida, não sem grande trabalho, porque as minhas doutrinas e o decurso poderoso de minha autoridade, sempre juntos a mesma via certa percorressem. Sempre o bem tive em mira. Não existe — falo, milordes, com sinceridade — criatura que em consciência e no exercício de sua profissão mais ódio sinta do que eu aos destruidores da paz pública. Permita o céu que nunca o soberano venha a encontrar menos fiéis vassalos. Os que vivem da inveja e da malícia tortuosa ousam morder os mais prestantes. Suplico instante a Vossas Senhorias que nesta causa os meus acusadores, sejam quais forem, sejam confrontados comigo e falar possam livremente.

SUFFOLK — Não, não, milorde; sois um conselheiro; assim, ninguém se atreverá a acusar-vos.

GARDINER — Visto termos assuntos de mor peso, milorde, vamos ser convosco breves. É parecer de Sua Alteza e nosso que, visando à vantagem do processo, sejais daqui levado para a Torre, onde, voltando vós a ser um simples particular, vereis que muita gente contra vós deporá com ardimento maior do que esperais, receio-o muito.

CRANMER — Agradecido, meu bom Lorde de Winchester, sempre vos revelastes meu amigo. Por vosso parecer, sereis a um tempo jurado e juiz. Sois muito generoso. Percebo vosso intento: arruinar-me. Doçura e amor, milorde, mais assentam a um sacerdote do que a vã cobiça. Voltai a conquistar almas transviadas; não repilais nenhuma. Porque eu possa purificar-me, todo o peso ponde sobre minha paciência; tão pequeno trabalho isso há de dar-me, como escrúpulo vos causa praticar o mal amiúde. Poderia dizer muito mais coisas, mas o respeito a vosso ministério me obriga a moderar-me.

GARDINER — Não, milorde! A verdade, milorde, pura e simples é que sois um sectário. Vossas glosas tão polidas, a quantos vos compreendam não passam de palavras sem substância.

CROMWELL — Milorde de Winchester sois muito duro; permiti que vos diga. Os indivíduos de tal nobreza, ainda que faltosos, respeito sempre merecer deviam por tudo quanto foram. E crueldade fazer pressão em quem já está caindo.

GARDINER — Peço perdão, meu caro secretário; mas de quantos aqui na mesa se acham, sois o último a poder manifestar-se.

CROMWELL — Por quê, milorde?

GARDINER — Pois não sei, acaso, que sois adepto dessa nova seita? Não sois limpo.

CROMWELL — Limpo não sou?

GARDINER — Repito-o: não sois limpo.

CROMWELL — Quem dera que a metade disso fôsseis honesto, que então preces vos seguiriam, não o medo, apenas.

GARDINER — Nunca me esquecerei dessa linguagem desaforada.

CROMWELL — Nem de vossa vida desaforada

CHANCELER — É muito! É muito! Basta milordes. Que vergonha!

GARDINER — Pronto.

CROMWELL — Pronto.

CHANCELER — Voltando a vós, milorde, decidido, quero crer, foi por todos, que levado para a Torre sejais sem mais delongas. onde deveis ficar até sabermos o que decide o rei. Concordam todos, milordes?

TODOS — Concordamos.

CRANMER — Não há outro caminho de clemência? É inevitável que eu seja conduzido para a Torre?

GARDINER — Que outro caminho achar pretenderíeis? Sois enfadonho em demasia. Venham alguns guardas daí, para levá-lo.

(Entra um guarda.)

CRANMER — Para levar-me? Dais-me o tratamento que se dá aos traidores?

GARDINER — Recebei-o e até à Torre o levai com segurança.

CRANMER — Meus bons lordes, parai. pois ainda tenho algo para dizer. Olhai para isto, meus bons senhoras. Pela só virtude deste anel, eu retiro minha causa das garras destes homens e a confio a um mais nobre juiz: o rei meu mestre.

CHANCELER — É o próprio anel do rei.

SURREY — Sim, não é falso.

SUFFOLK — Sim, pelo céu, é o verdadeiro. A todos eu vos disse, no instante de quererdes tocar neste penhasco perigoso, que viria acabar por esmagar-nos.

NORFOLK — Acreditais, milordes, que o monarca permitirá que no dedinho, ao menos, deste homem nós toquemos?

CAMAREIRO — Não há dúvida; é mais que certo. E quanto a vida dele não vale junto ao rei! Só desejara poder sair decentemente disto.

CROMWELL — Tinha um pressentimento, quando fábulas e acusações fictícias reunia contra tal homem — cuja honestidade somente o diabo inveja e seus discípulos — que atiçáveis o fogo que vos queima. Agora, suportai-o.

(Entra o rei, lança-lhes um olhar severo e se assenta.)

GARDINER — Terrível soberano, como todos ao céu agradecemos diariamente por brindado nos ter com um tal príncipe, não só bondoso e sábio: religioso; um rei que com a máxima humildade da Igreja faz o principal objeto da própria honra, e que para dar mais força a esse dever sagrado, com respeito piedoso comparece pessoalmente ao nosso tribunal, porque sabendo fique da luta que se trava entre ela e seu grande ofensor.

REI HENRIQUE — Sempre mostrastes, Bispo de Winchester, grande habilidade no improvisar brilhantes elogios. Mas sabei que não vim para ouvir essas adulações de frente. São vazias por demais, muito finas, porque possam mascarar a maldade. Mas com isso não me atingis. Adulador cãozinho pareceis, que pretende conquistar-me só com mexer a língua. Porém faças de mim o juízo que fizeres, tenho-te por uni sujeito mau e sanguinário.

(A Cranmer.)

Senta-te, meu bom Cranmer. Só desejo ver quem tem a ousadia, o atrevimento de contra ti alçar um só dedinho. Por quanto há de sagrado, melhor fora morrer de inanição que um só momento pensar que este lugar não te pertence.

SURREY — Se a Vossa Graça for do agrado...

REI HENRIQUE — Não! não é do meu agrado! Imaginara que tinha em meu Conselho homens sisudos, de algum discernimento, mas não vejo nenhum como o quisera. Achais decente deixar que este homem, este bondoso homem — dentre vós muito poucos esse título podiam merecer — que este honesto homem ficasse à espera diante de uma porta como um sórdido criado? Uma pessoa da vossa posição? Oh, que vergonha! Estáveis obrigados pelas minhas instruções a esquecer-vos de vós próprios? Dei-vos poderes para que o julgásseis não como a um criado, mas um conselheiro. Entre vós vejo muitos que sem dúvida — mais por malícia do que honesto zelo — às mais terríveis provas o poriam, se viessem para isso ter ensejo. Mas tal não se dará, por certo, enquanto eu estiver com vida.

CHANCELER — Queira Vossa Graça, meu mui temido soberano, deixar que a todos nós eu justifique. A prisão dele foi deliberada — se há boa fé nos homens — mais para ele mesmo justificar-se plenamente perante o mundo do que por malícia, ao menos eu outro pensar não tive.

REI HENRIQUE — Bem, bem. Então honrai-o, meus senhores; dai-lhe, acolhendo-o, todo o tratamento, que ele o merece. A seu favor só digo que se um rei devedor pode sentir-se com relação a um súdito, eu me sinto desse modo a ele preso não somente pela sua afeição, mas por seus préstimos. Assim, deixai de me criar tropeços. Abraçai-o, abraçai-o! Sede amigos. Oh! por pudor! Milorde de Cantuária, quero fazer-vos um pedido e espero que não mo refuseis: ainda se encontra por batizar uma gentil menina. Vós sereis o padrinho, respondendo pelo futuro dela.

CRANMER — O mais potente monarca vivo ficaria ufano de uma tão subida honra. Como posso merecê-la, tão pobre e humilde súdito?

REI HENRIQUE — Vamos, vamos, milorde; estais querendo poupar vossas colheres. Tereis duas companheiras para esse ato: a velha Duquesa de Norfolk e a Marquesa de Dorset. São do vosso agrado? Mais uma vez concito-vos, milorde de Winchester: abraçai e amai este homem.

GARDINER — De todo o coração e amor fraterno.

CRANMER — O céu é testemunha de quão ledo me deixa esta palavra.

REI HENRIQUE — Bom amigo! Essas alegres lágrimas revelam teu fido coração. A voz do povo vejo em ti confirmada. É nestes termos: “Fazei ao Lorde de Cantuária alguma partida de mau gosto e um grande amigo ganhareis para sempre”. Vamos, vamos, senhores; perdemos muito tempo. Já não vejo o momento de fazermos uma cristã da minha pequerrucha. Unidos quero ver-vos até à morte. Honrados ficareis; eu, sempre forte.

(Saem.)


 

CENA IV

 

Pátio do palácio. Barulho e tumulto por trás da cena. Entram o porteiro e seu ajudante.

 

PORTEIRO — Não parais com esse barulho, marotos? Pensais que a corte seja jardim de urso? Rústicos, parai com esse falatório!

UMA VOZ (dentro) — Bom mestre porteiro, eu faço parte da despensa.

PORTEIRO — Pertenceis mas é à forca, para serdes enforcado, biltre. Isto aqui é lugar para tamanhos urros? Arranje-me uma dúzia de varas de macieira, mas bem fortes, que estas não passam de gravetos. Vou fazer-vos cócegas na cabeça. Tereis de ver batizados. Grosseirões! viestes procurar aqui cerveja e bolos?

AJUDANTE — Tende paciência, meu senhor; a menos que usássemos canhões, tão impossível nos será dispersá-los neste instante como obrigá-los a dormir na cama na primeira manhã do mês de maio. Isso nunca acontecerá. Mais fácil do que expulsá-los nos seria a igreja de São Paulo abalar.

PORTEIRO — De que maneira conseguiram entrar?

AJUDANTE — Como sabê-lo? Como é que a maré sobe? Tanto quanto distribuir pauladas foi possível a um pau de quatro pés — os pobres restos ainda podeis ver — não poupei nada, senhor.

PORTEIRO — Nada fizestes; é isso mesmo.

AJUDANTE — Não sou Sansão, nem Guido, nem Colbrando, para a todos ceifar. Mas se um, que fosse, eu poupei, que tivesse uma cabeça boa para alvo, seja moço ou velho, ele ou ela, cornudo ou corneador, que nunca mais um bom assado eu veja, no que jamais consentirei, nem mesmo por uma vaca inteira. Deus a livre!

UMA VOZ (dentro) — Estais ouvindo, mestre porteiro?

PORTEIRO — Não demora, já chego aí, meu bom senhor velhaco. Toma conta da porta, maroto.

AJUDANTE — Que quereis que eu faça?

PORTEIRO — Que tereis de fazer, senão derrubá-los às dúzias? Acaso isto aqui é Moorfield, para fazerem uma parada? Ou terá chegado a esta corte alguma índia do estrangeiro, com uma grande cauda, para que as mulheres nos venham sitiar dessa maneira? Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está acontecendo atrás das portas! Por minha consciência de cristão, este batizado vai dar nascimento a um milheiro de outros batizados; vai haver aqui hoje pais e padrinhos, tudo junto.

AJUDANTE — Tanto maiores serão as colheres, senhor. Ali perto da porta há um sujeito que pelo rosto deve ser um caldeireiro, porque, por minha consciência, traz no nariz vinte dias de canícula. Todas as pessoas que se acham junto dele já passaram a linha; não precisam de outra penitência. Por três vezes bati na cabeça desse dragão de fogo, e três vezes seu nariz disparou para o meu lado; acha-se ali como um morteiro, para bombardear-nos. Ao lado dele está a mulher de um merceeiro, de muito pouco espírito, que tanto deblaterou contra mim, que lhe caiu da cabeça a sopeira de buracos, tal foi a conflagração que eu fiz despertar na república. De uma feita eu errei o meteoro e acertei na tal mulher, que começou a gritar: “Cacete, aqui!” Então percebi de longe que vinham em seu socorro uns quarenta bastoneiros, a esperança de Strand, onde ela tinha seus quartéis. Eles atacaram; eu resisti com galhardia; por último, vieram para cima de mim com cabos de vassoura. Continuei firme. Mas, de súbito, por trás deles, uma bateria de garotos, pequenos atiradores, dispararam para o meu lado tamanha saraivada de pedras, que eu tive de resguardar a honra e ceder-lhes o campo. O diabo estava no meio deles, por minha fé; tenho certeza disso.

PORTEIRO — São os rapazes que trovejam no teatro e se batem por pedaços de maçãs, e que nenhum auditório pode suportar a não ser o da Tribulação de Towerhill ou os freqüentadores de Limehouse, seus dignos confrades. já pus um par deles no Limbo Patrum, onde terão de dançar estes três dias, sem contar a sobremesa de duas chibatadas que ainda terão de receber.

(Entra o Lorde Camareiro.)

CAMAREIRO — Santo Deus! quanta gente aqui reunida! E sempre a chegar mais de toda parte! Até parece feira. Onde se metem esses porteiros, esses preguiçosos? Belo trabalho, amigos, consentindo que essa gentalha entrasse. Todos eles são vossos fiéis amigos dos subúrbios? Muitos lugares vão sobrar, decerto, para as senhoras, quando retornarem do batizado.

PORTEIRO — Como vê Vossa Honra, somos homens, apenas. Tudo quanto foi possível fazer sem que em pedaços nos deixassem, fizemos. Um exército não poderá contê-los.

CAMAREIRO — Por minha honra, se o rei me censurar por qualquer coisa, hei de pôr-vos em ferros, e isso logo, cingindo-vos as frontes, por castigo, com uma multa redonda. Sois mandriões; esvaziais os odres, quando tendes tanta coisa a fazer! Ouvi: trombetas! De retorno já estão do batizado. Rompei a multidão e abri caminho porque passe o cortejo livremente; se não, hei de encontrar algum convento em que possais vos divertir dois meses.

PORTEIRO — Ala para a princesa!

AJUDANTE — Olá, seu grandalhão! saí do caminho, se não quiserdes que eu vos dê dor de cabeça.

PORTEIRO — E vós aí, de jaqueta de camelão: descei da grade, se não quiserdes que eu vos empale com um desses varapaus.

(Saem.)


 

CENA V

 

O palácio. Entram trombeteiros, tocando uma fanfarra; depois, dois vereadores, o Lorde Maior, o pregoeiro, Cranmer, o Duque de Norfolk com o seu bastão de marechalato, o Duque de Suffolk, dois nobres com duas grandes bacias para os presentes do batizado; depois, quatro nobres carregando um baldaquim, sob o qual vem a Duquesa de Norfolk, como madrinha, que carrega a criança envolvida em um rico manto; uma dama da corte sustenta a cauda de seu vestido; depois vem a Marquesa de Dorset como segunda madrinha, e outras damas da corte. O cortejo atravessa a cena e o pregoeiro fala.

 

PREGOEIRO — Ó céu! do alto de tua infinita bondade envia uma vida próspera, longa e sempre feliz para a muito alta e poderosa Princesa da Inglaterra, Elisabete!

(Fanfarra. Entra o rei com seu séquito.)

CRANMER (ajoelhando-se.) — A Vossa Graça real e à boa rainha eis a minha oração e a dos meus nobres companheiros: que todas as venturas, toda a alegria que o céu tem de parte para a dita dos pais, a todo instante caiam sobre esta mui graciosa dama.

REI HENRIQUE — Meu bom Lorde Arcebispo, agradecido. Qual é o nome dela?

CRANMER — Elisabete.

REI HENRIQUE — Levantai-vos, senhor.

(O rei beija a menina.)

Com este beijo recebe minha bênção. Deus te ampare; nas mãos dele te entrego.

CRANMER — Amém.

REI HENRIQUE — Minhas nobres comadres, fostes pródigas. De coração vos agradeço. O mesmo fará esta senhorita, quando o inglês dela for suficiente.

CRANMER — Permiti-me falar, senhor, que o céu é que me inspira, sem que ninguém como lisonja tome minhas palavras, que há de o tempo dar-lhes plena confirmação. Esta real criança — que o céu a ampare sempre! — embora ainda no berço se ache a este país promete bênçãos inumeráveis, que maduras hão de ficar com o tempo. Há de tornar-se — dos presentes mui poucos hão de vida ter para ver tal coisa — inigualável modelo para todos os monarcas de seu tempo e dos tempos porvindoiros. Nunca a Rainha de Sabá foi vista mais ávida e sequiosa de virtude e de sabedoria do que esta alma pura há de revelar-se. As graças todas que as criaturas reais sempre exornaram e as virtudes que aos bons servem de adorno nela serão dobradas. A verdade vai niná-la; os celestes e sagrados pensamentos serão seus conselheiros. Será temida e amada ao mesmo tempo; os seus a abençoarão; seus inimigos hão de tremer como no campo o trigo, de tristeza cair deixando a fronte. Crescerá o bem com ela; em seu reinado todos hão de comer tranqüilamente, no seu lar próprios o que plantado houverem, cantando para todos os vizinhos belas canções de paz. Reconhecido será Deus em verdade; os que a cercarem, por ela guiados, entrarão na via direita da honra, assim engrandecendo, não por meio de sangue. Nem com ela há de acabar a paz. Do mesmo modo que essa ave prodigiosa, a virgem fênix, das cinzas, ao morrer, engendra a herdeira tal como ela, há de assim, Elisabete deixar a alguém seus peregrinos dotes — quando o céu a tirar desta caligem — que das cinzas sagradas da honra dela como astro se alçará a igual altura, fixo aí se mantendo. O amor, o medo, o sossego, a verdade, a plenitude que tiverem servido a esta criança passarão a esse alguém, indo apegar-se-lhe como a vinha ao tutor. Onde o brilhante sol do céu irradiar, a glória dele brilhará, a grandeza de seu nome novas nações fundando. Há de florir; e, como o cedro da montanha, os ramos estenderá para a planície em torno. Nossos bisnetos ou tataranetos hão de ver isso e ao céu entoar louvores.

REI HENRIQUE — Maravilhas nos contas.

CRANMER — Para a dita da Inglaterra será princesa idosa. Muitos dias verá, mas nenhum dia sem um feito qualquer para coroá-lo. Oh! desejara não saber mais que isso. Mas terá de morrer; sim, porque os santos a querem ainda virgem; como lírio imaculado baixará à terra e o mundo todo chorará por ela.

REI HENRIQUE — ó milorde arcebispo! Homem de novo me fizeste. Nunca, antes do nascimento desta criança, tivera eu qualquer coisa. Esta inefável profecia encantou-me de tal forma que, ao me encontrar no céu, ver só desejo o que esta criança faz e entoar louvores ao meu Criador. A todos agradeço. Meu bom Lorde Maior, a vós e aos vossos bons colegas declaro-me obrigado. A presença de todos me honrou muito; haveis de achar-me sempre agradecido. Sigamos, meus senhores; a rainha tereis de ver. Ela há de agradecer-vos, que, do contrário, ficaria doente. Não cuide ora ninguém de ir para casa. Hoje aqui todos ficarão, porque esta menina o dia vai encher de festa.

(Saem.)


 

EPÍLOGO

 

Aposto dez contra um em como a peça não cumpriu para todos a promessa. Uns aqui vieram só por desfastio, para dormir um ato ou dois a fio, tendo eu receio, assim, que despertado tivessem com as trombetas. Nesse estado, não admira que digam: “Bem fraquinha!” Outros desejariam ver na espinha toda a cidade e, assim: “Que espirituoso!” gritar por entre palmas; o que é ocioso, pois não fizemos tal. Dessa maneira, receio que a acolhida lisonjeira com que eu contava para nossa peça dependa agora da alegria expressa das nossas boas damas de virtude. Uma assim lhes mostrei. Se de atitude mudarem, pois, e rirem, afirmando: “Até que não foi má!” já estou jurando que, dentro de um minuto, os cavalheiros aplausos nos darão muito fagueiros, pois fora indício ele viciosas almas patear, quando as senhoras pedem palmas.


 

© copyleft 2001 — Ridendo Castigat Mores

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Outubro 2001

 

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