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NOITES BRANCAS

Fédor Dostoievski

www.ebooksbrasil.org


 

Noites Brancas
Fédor Dostoievski
Tradução: Carlos Loures

Créditos da digitalização: Site “O Dialético”
www.odialetico.hpg.ig.com.br/

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Site “O Dialético”

Créditos das imagens:
Capa:
Parte do poster do filme russo de 1960
Dirigido por Ivan Pyr'ev
Artista: Iu. Tsarev
fonte: www.pitt.edu
Interna:
Ilustração de Mstislav Dobuzhinsky para a edição russa de 1922
Fonte: www.abcgallery.com

©2003 — Domínio Público[*]


 

NOITES BRANCAS

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F. DOSTOIEVSKI


 

 

PRIMEIRA NOITE

 

Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e capri­chosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril, mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!...

Meditando sobre senhores caprichosos e irritados, não pude impedir-me de recordar a minha própria conduta — irrepreen­sível, aliás — ao longo de todo esse dia. Logo pela manhã, fora atormentado por um profundo e singular aborrecimento. Subitamente afigurou-se-me que estava só, abandonado por todos, que toda a gente se afastava de mim. Seria lógico, na verdade, que perguntasse a mim mesmo: mas quem é, afinal, «toda a gente»? Na realidade, embora viva há oito anos em Sampeters­burgo, quase não consegui estabelecer relações com outras pessoas. Mas que necessidade tenho eu de relações? Conheço já todo Sampetersburgo e foi talvez por isso que me pareceu que toda a gente me abandonava, quando todo o Sampetersburgo se ergueu e bruscamente partiu para o campo. Fui tomado pelo receio de me encontrar só e durante três dias inteiros errei pela cidade mergulhado numa profunda melancolia, sem nada com­preender do que se passava comigo.

Percorri a Perspectiva, fui ao Jardim, errei através do cais1, e não vi sequer um dos rostos que encontrava habitualmente nesses mesmos locais, sempre à mesma hora e ao longo de todo o ano. Eles, evidentemente, não me conhecem, mas eu conheço­-os. Conheço-os intimamente. Estudei as suas fisionomias — sinto-me feliz quando estão alegres e fico acabrunhado quando se velam de tristeza. Estabeleci laços quase de amizade com um velhinho que todos os dias encontro, sempre à mesma hora, na Fontanka2. Tem uma expressão muito grave e pensativa e sussurra permanentemente, falando consigo mesmo, agitando a mão esquerda enquanto com a direita segura uma longa e nodosa bengala com um castão de ouro. Ele próprio me reco­nhece, dedicando-me um cordial interesse. Se, por qualquer eventualidade, eu não aparecesse à hora do costume nesse tal sitio habitual na Fontanka, tenho a certeza de que teria um acesso de melancolia. Assim, sentimos, por vezes, a tentação de nos cumprimentarmos, principalmente, quando estamos am­bos de bom humor. Recentemente, como não nos víssemos há já dois dias, ao terceiro, quando nos encontramos, íamos já a levar as mãos aos chapéus, mas reprimimos a tempo essa intenção, baixamos os braços e passamos com simpatia um pelo outro.

Para mim, também as casas são velhas amigas. Quando pas­seio, cada uma delas parece correr ao meu encontro na rua: olha-me com todas as suas janelas, dizendo-me algo como isto: «Bom dia! Como estás? Eu vou bem, graças a Deus, muito obrigada! Em Maio vão-me aumentar um andar.» Ou: «Como vais? Amanhã vou entrar em obras.» Ou: «Estive quase a arder e tive bastante medo.» E outras coisas semelhantes.

Tenho algumas preferidas, íntimas. Uma delas tem intenções de fazer uma cura, neste Verão, nas mãos de um arquiteto. Irei vê-la todos os dias, não vá ele matá-la; nunca se sabe. Deus a guarde!

Nunca esquecerei a história de uma linda e pequena casa cor-de-rosa claro. Era uma casinha de pedra, olhava-me com um ar tão afável e mirava tão orgulhosamente as suas frias vizinhas, que o meu coração se alegrava sempre que passava diante dela. Subitamente, na semana passada, ia a passar na rua, olhei para a minha amiga e que ouço eu? Um grito dilacerante: «Pintaram-me de amarelo!» Malandros! Bárbaros! Não tiveram piedade de nada, nem das colunas, nem das cornijas; eis a minha amiga amarelo-canário. Quase tive, por causa disto, um derramamen­to de bílis, e até agora não tive coragem para ir ver a pobrezinha, estropiada, pintalgada com as cores do Celeste Império.

Por aqui já vê, amigo leitor, como tenho relações com todo Sampetersburgo.

Já disse que durante três dias fui atormentado por uma grave inquietação até ao momento em que descobri a sua causa. Na rua sentia-me indisposto (este ausentou-se, aquele saiu da cidade; para onde terá ido aquele outro?), e na minha casa também me sentia mal. Passei duas noites a perguntar a mim mesmo: que faltará no meu quarto?; por que razão me incomo­dará tanto aqui estar? — e, perplexo, examinava as paredes verdes, enegrecidas de fumo, o tecto coberto pela teia de aranha, com tanto êxito cultivada por Matriona, passei em revista todo o meu mobiliário, examinei cadeira por cadeira: não estará aqui o mal (pois se uma só cadeira: que seja não estiver no seu lugar habitual já não me sinto bem)? Olhava pela janela — trabalho perdido: não conseguia o menor alívio! Fui ao ponto de chamar Matriona e de ali mesmo lhe dirigir uma paternal censura por causa da teia de aranha e, de uma maneira geral, pela sua falta de asseio: ela limitou-se, porém, a olhar-me surpreendida; virando-me as costas sem proferir uma única palavra, de modo que a teia de aranha pende ainda intacta do tecto. Em suma, apenas esta manhã adivinhei do que se trata. Eh, não há dúvida de que foi para se livrarem de mim que eles fugiram para o campo!

Perdoem-me a vulgaridade com que me exprimo: não me sinto com disposição para usar um estilo requintado...; a verdade é que todo o Sampetersburgo fugira ou partira para o campo; a verdade é que todos os respeitáveis cavalheiros da burguesia tinham, aos meus olhos, o ar de quem está em vias de tomar um fiacre; como respeitáveis pais de família que, após o trabalho quotidiano, se dirigissem sem bagagens para o seio da família que estava no campo; a verdade é que todos os transeun­tes tinham agora um ar completamente especial que parecia dizer a cada pessoa que com eles se cruzava algo como isto: «Bem sabem, só aqui estamos de passagem. Dentro de duas horas partimos para o campo.» Se acaso via abrir-se uma janela em cujas vidraças haviam tamborilado uns dedinhos delicados, brancos como o açúcar, e debruçar-se para a rua a cabecinha de uma linda rapariga para chamar o vendedor de vasos de flores, de repente parecia-me que aquelas flores eram compradas por comprar (isto é, de modo algum para usufruir da Primavera e de flores na atmosfera sufocante de um quarto) e que em breve, rapidamente, iriam todos para o campo levando-as consigo.

Além disso, fizera já progressos tais dentro desta ordem particular de descobertas, nova para mim, que podia agora, infalivelmente, à primeira vista, determinar para que aldeia tinha ido esta ou aquela pessoa. Os turistas de Kamenny Ostrov e das ilhas Aptekarsky ou da estrada de Peterhof3 distinguiam­-se pela estudada elegância das suas maneiras, pelos seus moder­nos fatos de Verão e pelas belas carruagens em que se desloca­vam à cidade. Os habitantes de Pargolovo4 e das povoações mais afastadas distinguiam-se imediatamente pela sua sensatez e pelo seu ar grave. Os visitantes de Krestovski Ostrov5 eram reconhecíveis pela sua imperturbável jovialidade.

Encontrava, acidentalmente, uma longa procissão de carro­ceiros que caminhavam indolentemente, segurando as rédeas nas mãos, a par dos seus carros carregados de móveis diversos, mesas, cadeiras, divãs turcos e outros, e mais material domésti­co em cima do qual ia muitas vezes, sentada, no topo de toda aquela pilha, uma magra criada vigiando ciosamente os haveres dos seus amos; via as barcas pesadamente carregadas de uten­sílios domésticos, deslizando sobre o Neva ou sobre o Fontan­ka, dirigindo-se para o rio Negro ou para as Ilhas6 e, carroças ou barcas, multiplicavam-se por dez, por cem, aos meus olhos. Parecia-me que tudo se pusera em marcha pelas estradas, que todos emigravam, em enormes caravanas, para os campos e que Sampetersburgo ameaçava transformar-se num deserto, de tal modo que acabei por ficar envergonhado, humilhado, aflito: eu não tinha sequer um lugar no campo para onde ir, nem qualquer razão para o fazer. Estava, no entanto, disposto a partir a pé, com cada carroça que passava, a acompanhar cada cavalheiro de aparência respeitável que alugava um fiacre. Nem um só, porém, absolutamente ninguém, me convidou: como se eu estivesse esquecido, como se, na verdade, fosse um estranho para eles!

Andei muito e durante muito tempo, de tal modo que chegara já ao ponto de, conforme era meu hábito, esquecer onde estava, quando, de súbito, me encontrei às portas da cidade. Senti-me, num instante, tomado de alegria e passei a barreira. Avancei então pelo meio de campos semeados e de prados. Não experi­mentava a mínima fadiga, sentindo apenas, com toda a força do meu ser, que uma espécie de fardo deixava de pesar sobre a minha alma. Todos os transeuntes me olhavam tão amavelmente que por pouco ter-me-iam cumprimentado; respiravam, todos eles, uma espécie de contentamento e todos eles, sem excepção, fumavam charutos. Eu também me sentia contente como nunca me sentira antes. Dir-se-ia que subitamente fora transportado para Itália, de tal modo o esplendor da natureza me deslumbra­va, a mim, citadino meio enfermo, meio asfixiado entre as minhas quatro paredes.

Existe algo muito comovente, difícil de exprimir, na paisa­gem dos arredores de Sampetersburgo quando, à aproximação da Primavera, manifestando subitamente toda a sua violência, todas as forças que recebeu do Céu, se cobre de viçosa verdura, se adorna com o colorido das flores... Faz-me involuntariamen­te lembrar uma jovem macilenta que olhássemos umas vezes com piedade, outras com uma paciência complacente e cuja presença quase não notamos, até que, de repente, num instante lhe encontramos uma maravilhosa e inexplicável beleza, ao mesmo tempo que, estupefactos, nervosos, nos interrogamos contrariados: que força terá feito brilhar com um tal fulgor estes olhos pensativos e tristes? Que terá tingido de sangue estas faces magras e pálidas? Que terá acendido a paixão nestes delicados traços? Por que motivo arfa deste modo este peito? Que terá, tão subitamente, povoado de força, de vida e de beleza o rosto desta pobre rapariga, iluminando-o com semelhante sorriso e enchendo-o de uma alegria tão radiosa e fulgurante? Olharemos em torno de nós, procuraremos alguém, adivinharemos... Mas, passado este instante, encontraremos talvez no dia seguinte novamente o mesmo olhar pensativo e distraído que tinha antes, o mesmo rosto pálido, a mesma submissão e timidez nos movimentos e até mesmo um arrependimento e os vestígios de um mortificante aborrecimento ou despeito por aquele arrebata­mento de um minuto... Lamentaremos então que aquele fulgor, que aquela efêmera beleza, tenha tão depressa, tão irrevogavelmente, fenecido — lamentaremos por não termos sequer tido tempo de a amar...

E no entanto a minha noite foi mais proveitosa do que o dia! Eis como as coisas se passaram:

Regressei muito tarde à cidade e já tinham dado as dez horas quando me aproximei da minha casa. O caminho que percorri passava junto do cais do canal, onde, àquela hora, não se encontrava vivalma. Na realidade, moro num bairro bastante afastado. Caminhava cantando, pois quando estou contente gosto de cantarolar, como qualquer homem feliz que não tenha amigos, nem conhecidos, e que nos seus momentos de felicida­de não tem com quem Compartilhar a sua alegria. Subitamente, aconteceu-me a mais inesperada das aventuras.

Num recanto, apoiada ao parapeito da muralha, estava uma mulher. Com os cotovelos apoiados no gradeamento, parecia olhar com muita atenção a água turva do canal. Trazia um bonito chapelinho amarelo e uma encantadora mantilha negra. «É uma rapariga e certamente morena», pensei. Parecia não ouvir os meus passos e nem sequer se moveu quando passei por ela, retendo a respiração e com o coração a bater violentamente. «Estranho!», pensei «Deve ter, sem dúvida, uma grande preo­cupação»; e bruscamente detive-me, como que pregado ao solo. Sim, não me enganara: a jovem chorava. Um momento depois, ouvi um novo soluço. Santo Deus! O meu coração comprimiu-se de angústia. Embora habitualmente seja tímido com as mulheres, a verdade é que este caso era excepcional!... Voltei atrás, uns passos na sua direção e teria forçosamente dito:

«Menina!», se não tivesse a consciência de que esta exclamação fora pronunciada já mil vezes em todos os romances mundanos. Foi a única coisa que me deteve. Porém, enquanto procurava uma palavra, a jovem recompôs-se e, dominando-se, passeou um olhar em torno de si, baixou a cabeça e deslizou à minha frente ao longo do canal. Imediatamente, caminhei em sua perseguição, mas ela, descobrindo-o, deixou o cais, atravessou a rua e foi para o passeio do outro lado. Não ousei atravessar, O meu coração palpitava como o de um pássaro apanhado numa armadilha. De súbito, uma casualidade veio em meu auxílio.

No passeio para que a rapariga atravessara surgiu subitamente, perto dela, um cavalheiro de fraque, com uma idade muito respeitável, mas com um ar que não o era tanto. Cambaleava, apoiando-se cautelosamente nas muralhas. A rapariga caminha­va apressada e timidamente, como sucede geralmente com as raparigas que não querem que se lhes ofereça para as acompa­nhar à noite até suas casas, e, por certo, o oscilante cavalheiro nunca a teria conseguido apanhar se a minha boa estrela o não tivesse induzido a recorrer a meios de circunstância. De repen­te, sem dizer palavra, o sujeito encheu-se de coragem e, com todas as suas forças, desatou a correr em perseguição da minha desconhecida. Ela fugia, célere como o vento, mas o senhor, embora cambaleando, ia ganhando terreno, até que a atingiu. Ela soltou um grito a eu:.. dei graças aos Céus pela excelente e nodosa bengala que trazia na mão direita. Num abrir e fechar de olhos, eis-me do outro lado da rua, e, também num abrir e fechar de olhos, o intruso deteve-se, tomou em consideração o meu pesado argumento, calou-se, ficou para trás, e apenas ‘quando íamos já muito longe me apostrofou em termos assaz enérgicos. As suas palavras, porém, perderam-se na distância.

— Dê-me o braço — disse à desconhecida —, pois assim ele não ousará voltar a abordá-la.

Silenciosa, estendeu-me o braço ainda trêmulo de emoção e de susto. Oh, intruso, como te abençoei naquele momento! Olhei-a furtivamente: conforme calculara, era muito bela e morena; sob as suas pestanas negras brilhavam ainda pequenas lágrimas, lágrimas provocadas pelo susto recente ou pelo des­gosto que a fizera chorar junto da muralha, não sabia. Nos seus lábios, contudo, resplandecia já um sorriso. Olhou-me também de soslaio, enrubesceu levemente e baixou os olhos.

— Está a ver, Se não me tivesse repelido, nada disto acontecido...

— Mas eu não o conhecia. Julguei que o senhor também...

— E agora, já me conhece? ­

— Um pouco. Olhe, por exemplo, porque treme?

— Oh! Adivinhou logo! — respondi, entusiasmado com o fato de aquela jovem ser inteligente: a inteligência só favorece beleza. — Sim, logo à primeira vista adivinhou quem eu era. Com efeito, sou tímido com as mulheres, não nego que estou emocionado, pelo menos tanto como a menina o estava há momentos, quando aquele sujeito a assustou... Sinto uma espécie de medo, nesta altura. Dir-se-ia que vivo num sonho, mas mesmo em sonhos nunca acreditei que poderia um dia falar com uma mulher, fosse ela quem fosse...

— O quê? Será possível?...

— Sim, a minha mão treme, pois nunca nela se apoiou uma tão linda mãozinha... Perdi completamente o hábito de lidar com mulheres; isto é, nunca tive esse hábito... Bem vê, vivo só. Nem sei como se lhes deve falar. Olhe, ainda agora, consigo, não sei se já lhe disse alguma tolice. Se assim aconteceu, diga-­mo francamente, pois aviso-a de que não sou susceptível...

— Não, não disse qualquer tolice, antes pelo contrário. E se na verdade quer que lhe seja sincera, pois bem, dir-lhe-ei que mulheres apreciam essa timidez. E se ainda quer que vá mais longe, digo-lhe que não fujo à regra e que não o despedirei até me ter acompanhado a casa.

— Dada a maneira como me está a tratar — comecei, anelante de entusiasmo —, deixarei agora mesmo de ser tímido e, então, adeus todas as minhas vantagens!...

— As suas vantagens? Mas quais vantagens? Isso é que já não está bem.

— Perdão, não insistirei. A palavra escapou-se-me. Mas como quer que num momento como este não tenha o desejo de...

— De agradar, talvez?

— É isso mesmo! Mas, por amor de Deus, seja benévola! Tente compreender-me. Tenho já vinte a seis anos, bem vê, e nunca me relacionei com ninguém. Assim, como quer que fale como deve ser, com à-vontade e oportunamente? Será melhor para ambos se falarmos com sinceridade... Quando o meu coração fala, a minha boca não se sabe calar. Bem, mas é a mesma coisa... Poderá acreditar-me? Nem uma mulher, nunca, nunca! Nem sequer um amigo! Apesar disso, todos os dias sonho que, finalmente, tarde ou cedo, encontrarei alguém. Ah, se soubesse quantas vezes me apaixonei desta maneira!

— Mas como? Por quem se apaixonou então?

— Por ninguém, por um ideal, apenas, por aquela que em sonhos me visita. Criei, nos meus sonhos, romances completos! A verdade é que não me conhece! A bem dizer, não podia ser de outra maneira: encontrei duas ou três mulheres — mas seriam elas mesmo mulheres? Eram sempre criadas ou donas de casa que... Vou fazê-la rir se lhe disser que tentei, por mais de uma vez, entabular conversa, como agora fazemos, muito simplesmente, com uma aristocrata, na rua, estando ela sozinha, evidentemente; entabular conversa, claro, timidamente, respei­tosamente, apaixonadamente. Dizer-lhe que morro de solidão, que não me repila, que não tenho maneira de conhecer nenhuma mulher, dando-lhe mesmo a entender que é dever das mulheres não recusar a tímida súplica de um homem tão infeliz como eu. Que, em suma, tudo o que peço se resume a dirigir-me algumas palavras fraternas, uma ou duas palavras de afeto, a não me repelir logo à primeira tentativa, a acreditar na minha boa-fé, a escutar o que lhe disser a zombar de mim, se assim entender, mas a dar-me esperança dizendo-me duas palavras, duas pala­vras apenas, mesmo com a condição de nunca mais nos ver­mos!... Está-se a rir... De fato, o que lhe digo não para menos...

— Não se zangue. Rio-me, pois o senhor é o seu próprio inimigo, pois, se o tivesse tentado, teria talvez obtido êxito, mesmo que isso se passasse na rua: quanto mais simples se é, melhor... Não haveria nenhuma mulher, a não ser que fosse uma tola ou então que estivesse de mau humor nesse momento, que tivesse coragem de lhe recusar essas duas palavras que lhe implorava tão timidamente... Pensando melhor, que digo eu? Certamente que o tomaria por um louco. A verdade é que julgo as outras por mim. Bem sei como esta gente é!

— Agradeço-lhe muito! — exclamei. Nem sequer pode compreender o bem que acaba de me fazer!

— Bem, bem! Diga-me lá uma coisa: como concluiu que eu era a mulher que... que o ia considerar digno de atenção, de afeto... em suma, que não era uma criada ou uma dona de casa, como as outras de que falou? Por que razão decidiu a abordar-me?

— Porquê? Porquê? Talvez porque estava só, porque aquele cavalheiro era demasiado atrevido, por ser de noite: tem de reconhecer que não podia fazer outra coisa que era o meu dever...

— Não, não. Refiro-me a momentos antes, junto da muralha.

— Não é verdade que tinha já nessa altura a intenção de me abordar?

— Junto da muralha? Mas, na realidade, nem sei como lhe responder, temo... Sabe? Hoje sentia-me feliz, caminhava, cantava, tinha ido até aos arrabaldes, nunca vivera horas de tanta alegria. E a menina.., talvez tenha sido só impressão minha.., enfim, desculpe-me se lho recordo, mas tive a impres­são de que chorava, e então eu.... não suportei tal coisa... o coração apertou-se-me... Meu Deus, não teria acaso o direito de me entristecer por sua causa? Terá sido pecado experimentar por si uma fraterna compaixão?... Desculpe, eu disse «compai­xão»... Em suma, para terminar, tê-la-ei ofendido por me ter ocorrido involuntariamente a idéia de me dirigir a si?...

— Deixe! Basta! Não continue... — interrompeu, baixando a cabeça e apertando-me a mão. — Fui eu quem andou mal em lhe ter falado nisto... Mas sinto-me feliz por não me ter enganado a seu respeito... Chegamos já perto da minha casa, é ao fundo desta rua, a dois passos daqui.. Adeus, estou-lhe muito grata...

— Então é possível? Será possível que não nos voltemos a ver... Tudo ficará por aqui?

— Está a ver? — respondeu, rindo-se. —Primeiro só queria duas palavras, e agora... Mas, de fato, não lhe direi adeus... Pode ser que nos voltemos a encontrar...

— Virei amanhã. Oh, desculpe-me, eis-me já a exigir.

— Sim, o senhor está impaciente quase exige...

Escute-me só por um momento! — interrompi-a. — Perdoe-me se lhe digo mais uma coisa... É o seguinte: não posso deixar de aqui voltar amanhã. Sou um sonhador; a minha vida real tão reduzida que momentos como estes que agora vivo são para mim de tal modo preciosos que não poderei evitar de os reproduzir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todo o ano. Voltarei obrigatoriamente aqui amanhã, justamente aqui, a este mesmo local, a esta mesma hora, e sentir-me-ei feliz por recordar o que hoje aconteceu. Doravante, este lugar é sagrado para mim. Tenho já dois ou três locais como estes em Sampetersburgo. Uma vez, cheguei mesmo a chorar por causa de uma recordação semelhante à que de si vou guardar... Quem sabe, talvez que também a si, há dez minutos, fosse uma recordação que a fazia chorar... Mas desculpe-me, esqueci-me novamente... Talvez que um dia a menina tenha sido particularmente feliz aqui...

— Bem — disse a jovem —, admitamos, voltarei aqui amanhã, às dez horas, como hoje. Vejo que não o posso impedir... A verdade é que tenho necessidade de aqui vir; não vá julgar que lhe concedo uma entrevista. Repito-lhe, tenho de vir aqui por razões pessoais. Mas, está bem... Vamos lá, dir-lho-ei com franqueza: não me desagradará se o encontrar. Além de mais, pode suceder-me algum dissabor como o de hoje... Em suma, agradar-me-ia vê-lo novamente.., para lhe dizer duas palavras. No entanto, veja bem, não vá julgar-me mal, não creia que habitualmente concedo entrevistas com tanta facilidade... Não lho faria se... Mas isto é o meu segredo! Só lhe ponho previamente uma condição...

— Uma condição? Fale, diga, diga já tudo; estou de acordo com tudo, estou pronto para tudo! — exclamei, entusiasmado. — Respondo por mim, serei obediente, respeitoso... bem me conhece...

— Justamente porque o conheço é que o convido para amanhã — respondeu, rindo. — Conheço-o já perfeitamente. Mas aten­ção, só pode vir com uma condição (seja suficientemente bom para fazer o que lhe peço, bem vê que lhe falo francamente): não se apaixone por mim... É impossível, asseguro—lho. Se quiser vir por amizade, será bem-vindo, aqui tem a minha mão... Mas por amor, não, suplico-lhe!

— Juro-lho! — exclamei, segurando a sua minúscula mão...

— Basta, não jure nada: sei que o senhor é inflamável como a pólvora. Não me censure por lhe falar assim. Se soubesse... Também eu não tenho ninguém com quem trocar palavras, a quem pedir um conselho. Como é evidente, não é na rua que se deve procurar conselheiro, mas o senhor é uma excepção. Conheço-o como se fôssemos amigos há vinte anos... Não é verdade que não me trairá?...

— Vai ver... Só não sei como vou passar toda esta noite e todo o dia de amanhã.

— Durma bem. Desejo-lhe, uma boa noite e lembre-se de que confiei em si. O senhor ainda há pouco dizia que é preciso darmos conta de cada um dos nossos sentimentos, até mesmo de uma fraterna amizade! Disse isso de tal modo que subitamente me ocorreu a idéia de lhe confiar...

— O quê, por amor de Deus? Confiar-me o quê?

— Até amanhã! Que isso permaneça por ora como um segre­do. E melhor para si: pelo menos, assim isto parecer-lhe-á um romance. Pode ser que lho diga... Falaremos primeiro e travare­mos um conhecimento mais amplo...

— Eu contar-lhe-ei amanhã toda a minha história! Mas o que se passa? Dir-se-ia que algo de prodigioso me aconteceu... Onde estou eu, meu Deus? Então, diga-me: não se sente contente por não se ter zangado comigo, como teria sucedido com qualquer outra, de não me ter imediatamente repelido? Em dois minutos tomou-me feliz para sempre! Sim, feliz! Quem sabe, talvez tenha conseguido reconciliar-me comigo mesmo, resolvido as minhas dúvidas... Talvez que fique para sempre preso a estes minutos... Enfim, amanhã contar-lhe-ei tudo, saberá tudo...

— Está bem, aceito. O senhor falará primeiro....

— De acordo.

— Até amanhã!

— Até amanhã!

E separamo-nos. Caminhei pelas ruas durante toda a noite: não me decidia a voltar ao meu quarto. Sentia-me tão feliz...

«Até amanhã!»


 

 

SEGUNDA NOITE

 

— Como vê, sempre passaram esta noite e este dia! — disse-me ela estreitando-me ambas as mãos.

— Há já duas horas que aqui estou. Nem pode imaginar de que maneira vivi todo este longo dia!

— Eu sei, eu sei... Mas vamos ao que importa! Sabe porque vim hoje? Decerto que não foi para tagarelar tolamente, como sucedeu ontem. Doravante devemo-nos conduzir mais inteli­gentemente. Ontem pensei longamente em tudo isto.

— «Mais inteligentemente»; mas em quê?. Pela minha parte, estou disposto a isso. Em toda a minha vida, porém, nunca me sucedeu nada que fosse mais inteligente do que aquilo que ontem se passou.

— Na verdade? Primeiramente, peço-lhe, não me aperte as mãos dessa maneira; além disso, informo-o de que refleti hoje longamente a seu respeito.

— E então, a que conclusão chegou?

— A que conclusão? Concluí que era necessário recomeçar tudo desde o início, pois verifiquei hoje que o senhor me é ainda perfeitamente desconhecido e que ontem me comportei como uma criança, como uma rapariguinha, e concluí justamente que a culpa foi sem dúvida do meu bom coração; em suma, fiz o meu elogio, como, no fim de contas, sempre acaba por suceder quando nos dedicamos à tarefa de nos analisarmos Assim, para reparar o meu erro, decidi informar-me a seu respeito da maneira mais pormenorizada possível. Como, porém, não conheço ninguém que me possa informar, será o senhor mesmo quem terá de me contar tudo, tudo até ao mais ínfimo pormenor. Portanto, diga-me: que espécie de homem é o senhor? Depres­sa, Comece, conte a sua história!

— A minha história? — exclamei, assustado. — A minha histó­ria? Mas quem lhe disse que eu tinha uma história? Eu não tenho história...

— Então, como viveu até agora, se não tem história? —interrompeu-me, rindo-se.

— Tenho vivido absolutamente sem a mais pequena história! Tenho vivido, assim, como se Costuma dizer, metido no meu buraco, isto é, só, absolutamente só, perfeitamente só... Com­preende o que isto significa: só?

— Que entende por só? Quer com isso dizer que nunca vê ninguém?

— Não é isso! No que se refere a ver pessoas, vejo-as, mas, no entanto, estou só.

— Então, nunca fala com ninguém?

— No sentido mais estrito da palavra: a ninguém.

— Mas, nesse caso, quem é o senhor? Explique-se! Espere, deixe-me adivinhar. Tem, por certo, uma avó, tal como eu. Ela é cega e há uma eternidade que não me deixa ir a nenhum lado, a ponto de eu quase já não saber falar. Como, há dois anos, cometi uma tolice, concluiu que não tinha mão em mim e, chamando-me junto dela, prendeu a sua saia à minha com um alfinete. E assim temos passado dias inteiros: ela faz meia, embora seja cega, e eu sou obrigada a estar junto dela, a coser ou a ler-lhe em voz alta. É um hábito esquisito, este de estar pregada já há dois anos...

— Santo Deus, que sorte a sua! Mas não, não tenho uma avó assim.

— Nesse caso, como pode ficar todo o dia em casa?

— Ouça, quer saber quem sou?

— Evidentemente que sim!

— Quer sabê-lo exatamente?

— Exatamente!

— Pois bem, vou-lhe fazer a vontade; eu sou... um tipo.

— Um tipo? Mas que espécie de tipo? — exclamou a jovem,rindo com tanta vontade que dir-se-ia não rir há mais de um ano.

—O senhor é muito divertido! Olhe, há aqui um banco: sentemo­-nos... Ninguém passa por aqui , ninguém nos ouvirá e... portan­to, comece depressa a sua história, pois, embora me tenha querido fazer acreditar no contrário, o senhor tem uma história; o que acontece é que a esconde. Antes de mais, o que é um tipo?

— Um tipo? Um tipo é um excêntrico, é um sujeito ridículo! —respondi, desatando a rir para fazer coro com as suas gargalha­das infantis. — É um caráter assim. Escute: sabe o que é um sonhador.

— Um sonhador? Desculpe, mas como não havia de o saber? Eu própria sou uma sonhadora! Por vezes, quando estou sentada ao lado da avó, não imagina o que me passa pela cabeça!... Olhe, uma pessoa começa a sonhar e já não é capaz de parar... Veja, uma ocasião fui ao ponto de imaginar que casara com um príncipe chinês... Na verdade, às vezes, faz tão bem sonhar!... Vendo melhor, não... Quem sabe! Sobretudo se não há mais nada em que pensar... — acrescentou, agora já com um ar muita grave.

— É isso mesmo! Se já casou, um dia, com o imperador da China, nesse caso vai portanto compreender-me maravilhosa­mente. Ouça então... Mas desculpe: não sei ainda o seu nome.

— Finalmente! Só agora se lembrou disso!

— Ah, meu Deus! A verdade é que isso não me ocorreu até agora; não me pareceu indispensável...

— Chamo-me Nastenka.

— Nastenka... nada mais?

— Nada mais. Não lhe é suficiente? O senhor é difícil de contentar!

— Se me é suficiente? Pelo contrário, chega-me perfeitamen­te, perfeitamente, Nastenka! A menina é uma bela rapariga e agradeço-lhe que, para mim, consinta em ser simplesmente Nastenka!

— Na verdade? E então?

— Então, Nastenka, escute e veja como é ridícula a minha história.

Sentei-me junto dela, assumindo uma pose de uma seriedade estudada e comecei, como se estivesse a ler um livro:

— Existem, não sei se o sabe, Nastenka, existem em Sampe­tersburgo lugares muito insólitos. Nesses sítios, dir-se-ia que não penetra o mesmo sol que brilha para os outros habitantes da cidade: o sol que ali entra parece ser outro, um novo sol, feito de encomenda para os tais lugares. Nesses sítios, minha querida Nastenka, leva-se uma vida completamente diferente, que em nada se assemelha à que se desenvolve junto de nós, que pode existir num mundo desconhecido, mas não no nosso, na nossa época séria, ultra-séria. Esta vida é uma mistura de algo de puramente fantástico, de encarniçadamente idealista e, simultaneamente — ai de mim, Nastenka —, de grosseiramente prosaico e comum, para já não dizer de insolitamente vulgar.

— Uf! Meu Deus, que preâmbulo! Que terei ainda de ouvir?

— Vai saber, Nastenka (parece-me que nunca me cansarei de lhe chamar Nastenka), vai saber que nesses lugares vivem seres esquisitos: os tais sonhadores. Sabe? O sonhador, para o definir pormenorizadamente. não é um homem, é uma espécie de criatura do gênero neutro. Aloja-se, na maior parte do tempo, num inacessível refúgio, como se pretendesse até ocultar-se da luz do dia, e, uma vez encolhido na sua toca, metido na sua casota como o caracol, ou pelo menos parece-se muito, neste aspecto. com esse curioso bichinho que é simultaneamente um animal e uma casa e que se chama tartaruga. Na sua opinião, por que razão gostará ele tanto das suas quatro paredes, monotonamente pintadas de verde, sujas, tristes e enegrecidas pelo fumo do tabaco? Por que razão esse ridículo sujeito, quando algum dos seus raros conhecimentos o vem visitar (e ele procede de tal modo que, a pouco e pouco, os seus amigos acabam todos por desaparecer), por que razão esse homem acolhe o visitante com tal embaraço com um rosto de tal modo perturbado e tão confuso como se acabasse de cometer um crime, ali, entre as suas quatro paredes, como se fosse apanhado a fabricar notas falsas ou a escrever versinhos para enviar a qualquer revista com uma carta anônima, dizendo que o verdadeiro poeta morreu e que um seu amigo considera como dever sagrado publicar a sua obra? Por que razão, diga-me. Nastenka, a conversa se estabelece com tanta dificuldade entre estes dois interlocutores? Porque motivo não se soltam gargalhadas e não se troca qualquer palavra espirituosa com este amigo surgido de improviso, o qual em qualquer outra circunstância tanto gosta das gargalhadas e das palavras espirituosas, dos discursos sobre o belo sexo e sobre outros assuntos agradáveis? Por que razão, em suma, este amigo, por certo um conhecimento de fresca data, logo à primeira visita — porque, em casos destes, não haverá uma segunda visita —, por que razão o próprio visitante se sente tão perturbado e frio, com o seu espírito (isto se alguma vez o teve) embotado, ao ver o rosto transtornado do seu anfitrião, o qual, por seu turno, está agora completamente destituído do seu derradeiro grão de sensatez, após ter feito esforços gigantescos, mas vãos, para remover as dificuldades da conversa e para a tomar agradável, mostrando a sua expe­riência da sociedade, falando também sobre o belo sexo e, pelo menos através desta concessão, tentar ajudar aquele pobre diabo caído por engano em sua casa? Por que razão, ainda, o visitante agarra de repente no chapéu e se retira rapidamente, lembrando-se de súbito de um assunto absolutamente inadiável, que nunca existiu, e liberta de qualquer maneira a mão do caloroso aperto do anfitrião, empenhado agora em manifestar o seu pesar e a ganhar o tempo perdido? Por que razão, ao afastar­-se da porta, o amigo solta uma grande gargalhada e promete a si mesmo nunca mais voltar a casa daquele excêntrico — se bem que, no fundo, este excêntrico seja um excelente rapaz — e, ao mesmo tempo, não se pode impedir de conceder à sua imaginação um pequeno devaneio: comparar, ainda que longinquamente, a fisionomia do seu interlocutor de há momentos durante toda a visita, com o aspecto daquele infeliz gatinho perseguido, aterrorizado, torturado de todas as maneiras pelas crianças que o aprisionaram traiçoeiramente e que, o mais assustado possí­vel, lhes conseguiu finalmente fugir para debaixo da mesa, onde, mergulhado na obscuridade, à sua vontade, se espregui­çou e lavou, alisando o pêlo com as patinhas, após as ter passado pelo seu focinho desconfiado e que, depois, cumprida esta tarefa, olhou longa e hostilmente a natureza, a vida e até os restos da refeição dos donos que a cozinheira benévola lhe reservou?

— Escute — interrompeu Nastenka, que me escutava surpreen­dida desde o começo. com os olhos e com a boca muito abertos — escute: não sei, de modo algum, a que título vem tudo isso, nem por que motivo me faz perguntas tão estranhas. Do que eu tenho a certeza é de que todas essas aventuras lhe sucederam a si, de fio a pavio.

— Sem dúvida — respondi com um rosto grave.

— Então, se não tem dúvidas, continue, pois estou ansiosa para saber como isso irá acabar.

— A Nastenka quer saber o que faz no seu reduto o nosso herói ou, dizendo melhor, o que eu faço, pois o herói de toda a história sou eu, a minha própria e modesta pessoa. Quer saber por que razão é que fiquei de tal modo perturbado e desvairado durante todo o dia, após a inesperada visita do meu amigo? Quer saber porque fiquei confundido e enrubescido quando abriram a porta do meu quarto e sucumbi tão miseravelmente ao peso da minha própria hospitalidade?

— Na verdade, quero! — respondeu Nastenka —, pois aí é que reside todo o problema. Ouça: o senhor sabe contar as coisas muito bem, mas não haveria maneira de as contar um pouco pior? Assim, quando fala, dir-se-ia que está a ler num livro.

— Nastenka! — respondi com uma voz grave e severa e fazendo esforços para não me rir —, minha querida Nastenka, bem sei que conto bem, mas, desculpe-me, não sei contar as coisas de outra maneira. Neste momento assemelho-me ao espírito do rei Salomão, que permaneceu durante mil anos encenado numa ânfora, selada com sete selos, e que; finalmente, foi liberto desses sete selos. Neste momento, minha querida Nastenka, em que nos voltamos a reunir após uma separação tão longa, pois já a conheço há muito tempo, Nastenka. porque há já muito tempo que procurava uma certa pessoa, e isto significa que a procurava a si e que estava escrito que nos veríamos agora — neste momento, abriram-se no meu cérebro milhares de válvulas e tenho de deixar as palavras afluírem em torrente, pois, caso contrário, sufocada. Por isso, peço-lhe que não me interrompa, Nastenka, e que me escute com submissão e docilidade. De outro modo, calar-me-ei.

— Não, não, não! Não quero! Fale! A partir de agora não pronunciarei nem mais uma palavra.

— Eu continuo. Nastenka, minha amiga, há uma hora do dia de que gosto extraordinariamente. E aquela em que cessam quase todas as ocupações, funções e obrigações e em que toda a gente se apressa a voltar a casa para jantar ou descansar e durante esse mesmo tempo imagina ir encontrar ainda outros motivos de alegria na noite e em todo o tempo de liberdade que resta. A essa hora, também o nosso herói — pois permitir-me-á, Nastenka, que faça a minha narrativa na terceira pessoa, pois se o fizesse na primeira pessoa envergonhar-me-ia terrivelmente —, assim, portanto, a essa hora também a nosso herói, que tão-pouco está desocupado, segue os outros. Uma bizarra sensação de contentamento, porém, resplandece no seu rosto pálido e levemente enrugado. Ele não permanece indiferente ao pôr do Sol que, lentamente, estende o seu manto sobre o céu frio de Sampetersburgo. Se dissesse que ele o contempla, mentira; não o contempla, olha-o, sim, mas sem disso se aperceber. tal como um homem fatigado ou ocupados nesse mesmo momento, na observação de outro motivo mais interessante, de maneira que só por instantes, quase involuntariamente ele pode conceder atenção àquilo que o rodela. Sente-se satisfeito porque inte­rrompeu. até ao dia seguinte, assuntos aborrecidos e contente como um colegial a quem libertassem dos deveres escolares mandando-o para o recreio, para os seus jogos e travessuras favoritas.

«Olhe-o disfarçadamente. Nastenka:, verá logo que esse sentimento de alegria já se refletiu felizmente nos seus débeis nervos, atuando sobre a sua imaginação doentiamente excitada. Veja, pensa em qualquer coisa... No que será? No seu jantar? Em como irá passar o serão de hoje? O que olhará daquela maneira? Será aquele cavalheiro de ar grave, que acaba de cumprimentar de maneira tão pitoresca uma senhora que passou por ele, há poucos momentos, na sua elegante carrua­gem, na sua flamante caleça? Não, Nastenka, o que lhe poderia agora interessar tais ninhadas? Agora é rico, rico na sua vida interior, enriqueceu de um momento para o outro e não foi em vão que brilhou tão radiosamente diante dele o derradeiro raio do Sol moribundo, fazendo florescer no seu coração rejuvenes­cido um enxame de sensações. Agora, mal repara no caminho que segue, embora os mínimos pormenores desse mesmo caminho lhe mobilizassem habitualmente a atenção. Agora, a «deusa Fantasia» (já leu Jukovski7, minha querida Nastenka?) teceu com mão caprichosa a sua trama de ouro e traçou diante dos seus olhos os arabescos de uma vida maravilhosa, estranha, e — quem sabe? — talvez, com a sua mão caprichosa, o tenha transportado ao sétimo céu de cristal, através deste excelente passeio de granito por onde se encaminha para sua casa. Tente detê-lo, agora, pergunte-lhe bruscamente onde está neste mo­mento, os ardis por que passou; estou certo de que não se recordará de nada, nem donde esteve, nem onde está nesse momento, e, enrubescendo de despeito, inventará qualquer mentira para salvar as conveniências.

«Eis a razão por que estremeceu de tal modo, quase gritando e olhando assustado em tomo de si só porque uma anciã muito respeitável o interpelou delicadamente no meio do passeio, perguntando-lhe o caminho para sua casa, pois perdera-se. Com os sobrolhos franzidos pelo mau humor, continuou a caminhar, mal notando que mais de um transeunte sorriu ao observá-lo e se voltou para o seguir com o olhar e que uma rapariguinha, após lhe ter receosamente cedido passagem, explodiu em sonoras gargalhadas fitando com os olhos arregalados o seu largo sorriso contemplativo e os gestos dos seus braços. Foi ainda, porém, a Fantasia quem arrebatou no seu vôo jovial a anciã, os transeuntes curiosos, a rapariguinha zombeteira e os homens 4que jantam ali, nas suas barcas que obstruem a Fontanka (suponhamos que o nosso herói passava justamente por aí nesse momento); a todos envolveu maliciosamente no seu véu, tal como se fossem moscas apanhadas numa teia de aranha, e, com esta nova aquisição, o excêntrico entrou finalmente no seu quarto, na sua toca dileta, sentou-se à mesa, jantou lentamente e apenas voltou à realidade quando Matriona, a criada, medita­tiva e eternamente enferma, após ter levantado a mesa, lhe veio trazer o seu cachimbo; voltou à realidade e, com surpresa, verificou que acabara completamente de jantar sem ter a mínima noção do que comera e como comera.

«O quarto está imerso na obscuridade a sua alma, está vazia e triste; todo um reino de quimeras se desmoronou em seu redor, se desmoronou sem deixar rasto, sem ruído nem tumulto, passando como um sonho, e ele nem sequer se recordou de ter acalentado essas quimeras. Porém, uma espécie de obscura sensação, que magoou levemente o seu peito. uma espécie de novo desejo seduz, estimula e irrita a sua imaginação e suscita furtivamente um exército de novos fantasmas. No exíguo quarto reina o silêncio; a solidão é a ociosidade acariciam-lhe a imaginação e ela lentamente vai-se inflamando e. lentamente, atinge o estado de ebulição, como a água na cafeteira da velha Matriona, que. imperturbável, ao lado, na cozinha, se ocupa a preparar o seu café caseiro. Ei-la que se evola em girândolas e o livro em que distraidamente pegara cai das mãos do meu sonhador, que nem sequer leu até à terceira página. Excitada, a sua imaginação de novo ganha asas, e, bruscamente, mais uma vez, uma nova vida o vem fascinar. Novo sonho: nova felicida­de’ Volta a beber o veneno delicioso e requintado do sonho! Que importa a vida real? Nós vivemos uma vida tão ociosa, tão parada, tão desprezível, estamos tão descontentes da nossa sorte, tão enfastiados da nossa existência! E, na verdade, verifique como, á primeira vista, tudo se apresenta, na nossa vida, tão amargo como hostil... ‘Pobres criaturas!’. pensa o meu sonhador. Nada de surpreendente existe no seu pensamen­to! Repare nesses mágicos fantasmas que diante dele se for­mam: fascinantes, caprichosos, amplamente e sem limites, num fantástico quadro animado onde se encontra no primeiro plano, naturalmente, corno figura principal, a preciosa pessoa do nosso herói. Veja: que aventuras variadas, que infinito turbilhão de sonhos exaltados! Perguntará talvez: com que sonha ele? Para quê fazer semelhante pergunta? Como é evidente, sonha com tudo... Vê-se no papel de um poeta, a princípio ignorado e depois consagrado; na sua amizade com Hoffmann, na matança da noite de São Bartolomeu, em Diane Vernon8, num papel heróico quando da tomada de Cazã por Ivã, o Terrível, Clara Movbray9. Effle Deans10, em Huss comparecendo perante os prelados reunidos em concílio, na revolta dos mortos em Roberto, o Diabo (lembra-se da música? Transporta-nos ao cemitério!), em Mimna e em Brenda11, na batalha do Beresina. na leitura de um poema no palácio da condessa V...a D...a12 em Danton, em Cleópatra e i suoi amanti, na casinha de Kolomna13, num pequeno refúgio onde, a seu lado, um ente amado o escutasse, numa noite de Inverno, com a sua boquinha e com os seus grandes olhos verdes abertos — como a Nastenka me escuta agora!...

«Não, Nastenka, que lhe interessa a ele, a esse ser mergulha­do na volúpia da ociosidade, essa vida à qual nós aspiramos? Na sua opinião, trata-se de uma pobre vida miserável, sem adivinhar que, também pata ele, talvez venha a chegar a bom amarga em que por um só dia dessa vida miserável dará toda a sua bagagem de devaneios fantásticos e ainda não por alegria ou felicidade, e em que não quererá mesmo escolher, nesse mo­mento de dor, de arrependimento e de infinito desgosto. Mas, enquanto não chega essa temível hora, não deseja nada, está acima dos desejos, pois nada lhe falta, está saciado, é o demiurgo da sua própria vida, construindo-a à medida da sua fantasia de momento. E, com efeito, este mundo fantástico do faz-de-conta cria-se com tanta facilidade, tão naturalmente! Como se, na verdade, tudo isso não fosse ilusão! Em certas alturas, somos verdadeiramente levados a acreditar que toda esta vida não é uma exaltação dos sentidos, de uma miragem, de um equívoco da imaginação, mas sim de algo de real, de autêntico, de existente! Por que motivo então, diga-me, Nasten­ka, por que motivo nessas alturas a respiração se lhe prende? Por que sortilégio, mercê de que desconhecida vontade, as pulsações se lhe aceleram e as lágrimas jorram dos olhos do sonhador, inundando-lhe as faces pálidas e ardentes e invadindo todo o seu ser de uma felicidade irresistível? Por que razão passam vertiginosamente as noites de insônia, envoltas numa alegria e numa felicidade inesgotáveis, e quando a aurora trespassa as janelas com a sua luz rósea e o sol da madrugada incendeia o seu triste quarto com a sua fantástica e difusa luminosidade, como sucede sempre em Sampetersburgo, por que razão o nosso sonhador, fatigado, esgotado, se deixa tombar sobre o leito e adormece, com uma respiração doentia­mente sacudida pelo entusiasmo e com um sofrimento tão languidamente delicioso no coração?

«Sim, Nastenka, enganamo-nos, embora contra a nossa vontade, ao acreditarmos que a paixão verdadeira, autêntica, atormenta a alma, ao acreditai-mos que existe algo de vivo, de tangível, nos sonhos imateriais! Mas que ilusão; veja, por exemplo: o amor avassalou o seu peito com toda a sua inesgotá­vel alegria, com todos os seus extenuantes tormentos... Deite-lhe apenas um olhar rápido e convença-se daquilo que lhe digo! Bastará olhá-lo para acreditar, minha querida Nastenka, que ele nunca conheceu realmente aquela que tanto amou no seu exaltado sonho? Será possível que apenas a tenha visto entre esses fantasmas fascinantes e que essa paixão não tenha sido para ele mais do que um sonho? Será possível que nunca haja estreitado as mãos dela ao longo de tantos anos da sua vida, sós, entregues a si mesmos, ignorando todo o universo e unindo cada um deles o seu universo, a sua vida, à vida do outro? Será possível que não tenha sido ela quem, ao crepúsculo, no momento da separação, se tenha reclinado, soluçante e desespe­rada, sobre o seu peito, sem escutar a tempestade desencadeada debaixo de um céu lúgubre, sem ouvir o vento que arrancava e arrastava com fúria as lágrimas que brotavam dos seus cílios negros? Será possível que tudo isto não tenha passado de um sonho, este jardim melancólico, abandonado e selvagem, com as suas áleas provoadas de musgo, solitário e hostil, por onde tantas vezes passearam ambos, esperando, desesperando, amando, amando-se mutuamente, durante tanto tempo, tão longa e ternamente”? E essa velha mansão ancestral, insólita, onde ela viveu solitária e triste durante tantos anos, com o seu velho e sombrio marido, perpetuamente silencioso e bilioso, um marido que os assustava, pois eram ambos tímidos como crianças, melancólicos e receosos, ocultando-se mutuamente o seu amor? Como se atormentavam, como tinham medo, como era puro e inocente o seu amor e como (isto é evidente, Nastenka) as pessoas eram más! E, Deus meu, não foi ela quem ele encontrou depois, longe da pátria, sob um céu estrangeiro, meridional e ardente, na maravilhosa Cidade Eterna, no esplen­dor de um baile, ao som da música, num palazzo (forçosamen­te, num palazzo) mergulhado num mar de fogo, nessa varanda engrinaldada de mirtos e de rosas onde, tendo-o reconhecido, arrancara apressadamente a sua máscara e sussurrando-lhe: «Sou livre!», trêmula e soluçante se lhe lançara nos braços; então, num grito de entusiasmo, apertados um contra o outro, esqueceram num abrir e fechar de olhos o desgosto e a separa­ção e todos os tormentos, a espera cruel, o velho, o sombrio jardim da pátria distante e o banco sobre o qual, com um derradeiro e apaixonado beijo, ela fugira ao seu amplexo, aturdida por um sofrimento sem esperança... Oh. tem de o confessar, minha querida Nastenka, foi caso para desejar fugir, para ter ficado perturbado e corado como um colegial que acabasse de esconder no bolso a maçã roubada no jardim vizinho, quando um rapaz seu amigo, sadio e alto, alegre e jovial, bem falante, abre sem se ter anunciado a porta do quarto e grita como se nada se tivesse passado: ‘Sou eu, meu caro, acabo de chegar de Pavlovsk!’ Santo Deus, o velho conde morreu, eis enfim a felicidade, uma indescritível felicidade, e nesta altura é que o tal tipo lhe apeteceu chegar de Pavlovsk14»

Tendo terminado as minhas patéticas exclamações, calei-me (pateticamente). Lembro-me bem, tinha uma terrível vontade de rebentar em gargalhadas, de rir desmesuradamente, pois sentia crescer dentro de mim um diabinho inimigo, que a minha garganta começava a estar presa, que o queixo me tremia e que cada vez mais os olhos se me marejavam de lágrimas... Esperava que Nastenka, que me escutava atentamente, com os seus grandes e inteligentes olhos verdes muito abertos, ia explodir em gargalhadas infantis, irresistivelmente jovial, e já me começava a arrepender de ter ido demasiado longe, de ter contado em vão aquilo que desde há tanto tempo me enchia o coração, aquilo de que podia falar como se estivesse a ler num livro, pois? desde longa data a minha sentença sobre mim mesmo estava decidida (e eu não me impedira de a ler, ainda que, confesso-o não esperasse ser compreendido)... Porém, com grande surpre­sa minha, ela guardou silêncio, deixou decorrer um momento, comprimiu levemente a minha mão e com uma tímida simpatia perguntou:

— É verdade que passou desse modo toda a sua vida?

— Toda a minha vida, Nastenka — respondi —, toda a minha vida, e, segundo me parece, acabá-la-ei da mesma forma!

— Não, é impossível — replicou com tranqüilidade—. não será assim. Será dessa maneira, isso sim, que irá decorrer a minha junto da avó. Escute: sabe que não se deve viver assim?

Eu sei, Nastenka, eu sei! — exclamei, sem poder conter a minha emoção. — E agora sei melhor do que nunca que perdi gratuitamente os melhores anos da minha vida! Agora sei-o, e, cruelmente, tenho disso uma consciência mais aguda desde que Deus a enviou junto de mim, a si, meu bom anjo, para mó dizer e provar. Agora, que estou sentado junto de si e que falo consigo, tenho medo de pensar no futuro, pois no futuro será ainda a solidão, ainda esta vida inútil e reservada.., e no que poderei depois sonhar quando, acordado, ao seu lado, fui de tal modo feliz? Seja bendita, minha querida, por não me ter repelido imediatamente, por me ter permitido dizer hoje que. pelo menos, pude viver duas noites em toda a minha vida!

— Oh, não, não! — gritou Nastenka, e pequenas lágrimas refulgiram nos seus olhos. — Não, isso nunca acontecerá. Não nos separemos assim! Que são duas noites?

— Nastenka, Nastenka! Sabe que conseguiu reconciliar-me por muito tempo comigo mesmo? Sabe que não terei, a partir de agora, uma opinião de mim próprio tão má como tive em certos momentos? Sabe que doravante não lamentarei mais, talvez, ter cometido um crime e um pecado na minha existência (porque uma vida como a minha é um crime e um pecado)? E não julgue que estou a exagerar; por amor de Deus, não pense uma coisa dessas, Nastenka, porque vivi alturas de um tal desespero, de um tal tédio...; porque nessas alturas começa a afigurar-se-me que nunca serei capaz de iniciar uma vida autêntica, porque me pareceu já que tinha perdido todo o tacto, toda a noção do presente, do real; porque, em suma, cheguei a amaldiçoar-me a mim próprio; porque após as minhas noites fantásticas passei por pavorosos momentos de abatimento! No entanto, ouvimos à nossa volta a multidão bramir e rodopiar no turbilhão da vida, ouvimos e vemos viver os homens, viver bem acordados, vemos que a vida não lhes é interdita, que a vida não se lhes evaporará como um sonho, uma visão, que a vida deles é perpetuamente renovada, eternamente jovem, sem que uma hora se assemelhe à seguinte, enquanto a tímida fantasia é sombria e monótona até à banalidade, escrava da sombra, da idéia, escrava da primeira nuvem que de súbito obscurecerá o Sol e oprimirá de angústia o verdadeiro coração sampetersburgês, tão cioso do seu sol... Ora, na angústia não pode existir fantasia!

«Sentimos que, por fim, essa inesgotável fantasia se fatiga, se esgota numa perpétua tensão, porque amadurecemos e supe­ramos os nossos ideais antigos, os quais se desfazem em pó e se desmoronam, e, se não existe outra vida, é preciso construí-la mesmo com essas minas. E, no entanto, é algo de diferente aquilo que a alma solicita e quer! E, pois, em vão que o sonhador procura entre as cinzas dos seus velhos devaneios pelo menos qualquer cintilação para lhe soprar em cima e aquecer com um fogo novo o seu coração arrefecido e nele ressuscitar tudo o que outrora era tão agradável, tudo à que lhe sensibiliza­va a alma, tudo o que lhe fazia palpitar o sangue, tudo o que lhe inundava de lágrimas os olhos e iludia de maneira tão magní­fica! Sabe, Nastenka, ao que eu cheguei? Sabe que me vejo obrigado a celebrar o aniversário dos meus sentimentos, o aniversário daquilo que dantes me era tão caro e que, na realidade nunca existiu — porque esse aniversário se celebra sempre em memória dos mesmos tolos devaneios — e, em última análise, esses próprios tolos devaneios não existem, porque não há possibilidade de os extrair da vida: até os sonhos nascem da vida, não é verdade?

«Sabe que gosto agora de lembrar e de visitar, em certas datas, locais onde um dia fui feliz à minha maneira; gosto de edificar o meu presente de harmonia com o irreversível passado, e, muitas vezes, vagueio como uma sombra, sem objetivo, sombrio e triste, por sítios afastados e pelas ruas de Sampeters­burgo?

«Que recordações! Lembro-me, por exemplo, de que neste local, há justamente um ano, precisamente a esta hora, neste mesmo passeio, vagueei tão solitário e tão sombrio como hoje! E repare que nessa altura também os pensamentos eram tristes; ainda que não fosse mais feliz, sentia, apesar de tudo, que a vida era mais fácil e tranqüila, não existindo nela esta idéia negra que agora a mim se apegou; nada desses problemas de consciência, sombrios e severos remorsos, que nem de dia nem de noite me deixam descansado. E uma pessoa interroga-se: mas então onde estão os teus sonhos? E sacode a cabeça, dizendo: como os anos passam depressa!... E novamente nos interrogamos: mas o que fizeste tu dos teus anos? Onde foste enterrar o teu tempo mais precioso? Viveste verdadeiramente? Sim ou não? Repara, dize­mos para nós mesmos, repara como o mundo arrefeceu. Passa­rão ainda mais anos e, após eles, virá a triste solidão, virá com a sua bengala a vacilante velhice e, após eles, o tédio e o desespero. O teu mundo fantástico empalidecerá; os teus so­nhos morrerão, fenecerão, cairão como as folhas mortas caem das árvores... Oh, Nastenka, como será triste ficar só, completamente só, e não ter absolutamente nada a lamentar, nada de nada..., pois tudo o que se perdeu, tudo isso junto, não significa nada, é um zero estúpido e perfeito, tudo não terá passado de um sonho!

— Vamos, não me comova mais! — pediu Nastenka, enxugan­do uma pequena lágrima que lhe rolara dos olhos. — Agora tudo isso acabou! Agora somos dois. Agora, suceda o que suceder, nunca nos separaremos. Escute. Eu sou uma rapariga simples, estudei pouco, se bem que a minha avó me tenha contratado um professor; apesar disso, eu compreendo-o, pois tudo o que acaba de me contar eu própria já o vivi quando a avó me pregou à sua saia. Certamente que não teria sido capaz de o narrar tão bem como o senhor, pois, como já lhe disse, os meus estudos não foram grandes — acrescentou timidamente, pois experimen­tava sempre um certo respeito em relação ao meu tom patético e ao meu estilo grandiloqüente. — Agora conheço-o perfeitamen­te, conheço-o dos pés à cabeça. E quer saber uma coisa? Vou­ lhe contar a minha história e vou-a contar a mim própria, sem nada ocultar, e, depois disso, em compensação, o senhor dar-me-á um conselho, pois é um homem inteligente. Promete dar-me esse conselho?

— Ah, Nastenka — respondi eu —, nunca fui conselheiro de quem quer que fosse, e muito menos um conselheiro inteligen­te, mas vejo agora que, se continuarmos a conviver desta maneira, isso será já em si inteligente e, portanto, cada um de nós proporcionará ao outro uma grande quantidade de conse­lhos inteligentes! Então, minha gentil Nastenka, qual é o conselho que me irá pedir? Diga-mo francamente. Agora estou tão alegre, tão feliz, audacioso e inteligente, que as palavras me ocorrerão sem esforço.

— Não, não! — interrompeu Nastenka, rindo-se. — Do que preciso não é somente de um conselho inteligente, mas sim de um conselho vindo do fundo do coração, de um conselho fraterno, como se me tivesse amado durante toda a sua vida!

— De acordo, Nastenka, de acordo! — exclamei num arrebata­mento. — E se a amasse desde há vinte anos não a poderia amar mais nem melhor.

— Dê-me a sua mão!

— Ei-la! — respondi, estendendo-lha.

— Vou começar então a minha história!


 

 

A HISTÓRIA DE NASTENKA

 

— Metade da história sabe-a já o senhor, isto é, sabe que tenho uma velha avó...

— Se a outra metade não é maior do que essa. — interrompi, rindo-me.

— Cale-se e escute. Antes de prosseguir, façamos uma combinação: não me interrompa, pois de outra maneira sou capaz de perder o fio à meada. Então, escute lá com juízo.

«Tenho uma velha avó. Fui para casa dela muito pequenina, pois perdera o meu pai e a minha mãe. É de crer que a avó foi rica em tempos, pois ainda hoje recorda esses dias melhores. Foi ela que me ensinou francês e, depois, me contratou um professor. Quando fiz quinze anos — tenho agora dezessete —. abandonei os estudos. Foi nessa altura que cometi a tal tolice de que lhe falei. Não lhe direi que tolice foi; basta que lhe diga que a falta não foi grande. Apesar disso, uma bela manhã, a avó chamou-me junto dela e disse-me que, como era cega e não podia andar atrás de mim, resolvera prender a sua saia à minha com um alfinete, acrescentando que, deste modo, iríamos passar toda a vida presas uma à outra, a não ser que eu me emendasse. Em suma, nos primeiros tempos não havia maneira de me conseguir afastar: para trabalhar, ler, estudar, tinha de estar sempre junto da avó. Uma vez tentei uma manha e convenci Fiokla15 a tomar o meu lugar. Fiokla é a nossa criada e é surda. Fiokla sentou-se no meu lugar; a avó, durante esse tempo, adormecera na sua poltrona e eu saí com uma amiga para bastante longe. Pois bem, a história acabou mal. A avó, durante a minha ausência, acordou e perguntou qualquer coisa, pensando que eu continuava ajuizadamente sentada no meu lugar. Fiokla via bem que a avó lhe estava a perguntar fosse o que fosse, mas não conseguia ouvir. Pensou e tomou a pensar no. que devia fazer e, não encontrando solução, abriu o alfinete e fugiu...

Neste ponto, Nastenka deteve-se e desatou em sonoras gargalhadas. Eu ri com ela. Parou imediatamente de rir.

— Ouça lá, não se ria da minha avó. Eu rio-me porque acho isto divertido... O que quer... uma vez que a avó é assim... só eu, apesar de tudo, lhe tenho um pouco de amor. Bem... naquela altura isso arreliou-me bastante: imediatamente me obrigou a voltar ao meu lugar e, depois, nada a fazer, proibição de me mexer.

«Vamos, esqueci-me ainda de lhe dizer que nós temos, ou, melhor, que a avó tem, uma casa dela, ou, melhor ainda, uma casinha, três janelas ao todo, uma casinha de madeira, tão velha como a própria avó; em cima tem uma mansarda. Pois bem, um belo dia um novo hóspede veio morar para essa mansarda.»

— Quer então dizer que havia um antigo hóspede? — fiz notar.

— É verdade — respondeu Nastenka —, e por acaso até era capaz de estar calado, coisa que não sucede consiga... Na verdade, mal podia mexer a língua. Era um velhinho, seco, muda, cego, coxa, de tal modo que por fim já não lhe era passível estar no mundo e acabou por morrer; então, tomava-se necessário arranjar um novo hóspede, pois não podíamos passar sem esse recurso, que, com a pensão da avó, constituía quase todo o nosso rendimento. Este novo hóspede, nem de propósito, era um jovem, não aqui da cidade, mas de passagem. Como ele não discutiu o preço, a avó aceitou-o. Depois, um dia, pergun­tou-me: «Então, Nastenka, o nosso hóspede é novo ou não?» Eu não lhe quis mentir: «Bem, avó, é velho de mais para ser jovem e demasiado jovem para ser velho.»

«‘— Bom... e é fisicamente agradável?’, perguntou a avó. «Novamente, não lhe quis mentir. ‘Sim’, disse eu, ‘é fisi­camente agradável, avó! E ela: ‘Ah, maldição, maldição! O que diga, minha filha, é que não te distraias a olhá-lo. Que século o nosso! Veja-se só isto, um hóspede como este, que não tem nada, e é fisicamente agradável! Noutros tempos tudo era diferente!’

«Para a avó só existem os outros tempos. A verdade é que noutros tempos ela era mais jovem e o sol era mais quente noutros tempos, e noutros tempos as natas não azedavam tão depressa: sempre noutros tempos! — Permaneci sem dizer pala­vra: porque seria que a avó me fazia lembrar as coisas, me perguntava se ele era bonito e jovem? Mas, como já lhe disse, fiquei calada, apenas a pensar, e, imediatamente, recomecei a contar as malhas e a tricotar a minha meia e, depois, acabei por esquecer completamente o assunto.

«Ora uma vez, pela manhã, o hóspede entrou em nossa casa para lembrar que lhe tinham prometido mudar o papel das paredes do seu quarto. Palavra puxa palavra, e a avó — ela é bastante faladora — disse-me: ‘Nastenka, vai ao meu quarto e traz o ábaco.’ Dei um salto, corando até à raiz dos cabelos, sem, saber porquê, e esqueci que estava pregada; em vez de soltar discretamente o alfinete para que o hóspede não se apercebesse de nada, saltei de tal modo que a poltrona da avó veio atrás de mim. Vendo que o hóspede sabia agora toda a minha história, corei, fiquei como se estivesse colada ao chão, e, de súbito, debulhei-me em lágrimas: estava de tal maneira envergonhada e desgostosa naquela altura, que me apetecia morrer! A avó gritou: ‘Que estás tu aí a fazer especada?’, e eu cada vez pior... O hóspede, vendo-me tão envergonhada diante dele, cumpri­mentou e saiu imediatamente.

«Desde então, ao menor ruído que ouvisse no corredor, ficava como morta. É, dizia para comigo, a hóspede que vai a passar, e, dissimuladamente, abria o alfinete. A verdade é que nunca era ele quem vinha. Passaram-se duas semanas: o hóspe­de mandou dizer através de Fiokla que tinha muitos livros franceses, tudo boas obras que podiam ser lidas: a senhora não desejaria que a menina os lesse, para ajudar a passar o tempo? A avó consentiu reconhecidamente; no entanto, estava sempre a perguntar se eram livros morais ou não, pois, no caso de serem imorais, ‘seria conveniente que tu não os lesses, Nastenka, porque neles aprenderias coisas más’.

«‘— E que coisas más são essas, avó? Que vem escrito nesses livros imorais?’

«‘— Ora! Descreve-se neles como os rapazes seduzem as raparigas honestas; como, sob o pretexto de as quererem desposar, as raptam de casa do pais; como, depois, abandonam essas infelizes à sua triste sorte e como elas acabam por morrer da maneira mais triste. Eu’, dizia a avó, ‘eu li muitos desses livros e tudo aquilo está escrito de tal maneira que a noite passa num instante quando os lemos. Por isso, Nastenka, toma cuidado, não os leias. Mas, diz-me lá, que livros emprestou ele?’.

«‘— São todos eles romances de Walter Scott, avó’.

«‘— Romances de Walter Scott! Mas, espera lá, não haverá dentro deles alguma velhacaria? Vê bem, não teria ele posto entre as páginas algum bilhetinho?’

«‘— Não, avó, não há qualquer bilhetinho.’

«‘— Vê debaixo da encadernação. Às vezes eles escondemos debaixo da pele da encadernação, esses marotos!...’

«‘— Não, avó, debaixo da encadernação também não há nada. Não há bilhete nenhum.’

«‘— Bem, está bem.’

«E começamos a ler Walter Scott; ao cabo de um mês, já tínhamos lido quase metade dos livros emprestados. Depois, ele emprestou outros e outros ainda, emprestou Pushkin, de tal modo que por fim eu já não podia viver sem livros e deixei de sonhar em casar com um príncipe chinês.

«Estavam as coisas neste pé, quando, uma vez, encontrei o nosso hóspede na escada. A avó mandara-me ir procurar já não sei o quê. Ele parou, eu corei e ele corou também; apesar disso, riu-se e deu os bons-dias, perguntou pela avó e disse: ‘Então, já leu os livros?’ Respondi: ‘Sim’. ‘E de quais gostou mais?’ Eu disse: ‘Ivanhoe e Pushkin, mais do que qualquer outro.’ Dessa vez, ficamos por aí.

«Uma semana depois, voltei a encontrá-lo na escada. Nessa altura não fora a avó quem me mandara, mas sim eu que tinha necessidade de qualquer coisa. Eram mais de duas horas e o hóspede era a essa hora que entrava habitualmente em casa. ‘Boa tarde!’, disse-me ele. E eu: ‘Boa tarde!’

«‘— Então’, disse ele, ‘a menina não se aborrece todo o dia metida em casa com a sua avó?’

«A esta pergunta, não sei bem porquê, corei, tive vergonha, e novamente me senti humilhada, sem dúvida porque as pessoas já se permitiam fazer-me perguntas a este respeito. Tive vonta­de de não responder e de fugir, mas nem tive forças para tal.

«‘— Ouça’, disse-me ele, ‘a menina é boa rapariga. Desculpe se lhe digo isto, mas pode estar cena, desejo o seu bem, mais do que a sua avó. Não tem amigas a quem possa ir visitar?’

«Disse-lhe que não, que tivera uma, Machenka, mas que partira para Pskov.

«‘— Escute’, disse ele, ‘quer vir comigo ao teatro?’

«‘— Ao teatro? E então a avó?’

«‘— Pois bem, sem a avó saber...’

«‘— Não’, disse eu, não quero enganar a avó. Adeus!’

«‘— Então, adeus’», disse ele, e não acrescentou mais nada.

«Somente depois do jantar veio a nossa casa. Sentou-se, falou durante muito tempo com a avó, perguntou se ela saía algumas vezes, se tinha pessoas amigas e, inesperadamente:

«‘— A propósito, hoje comprei um camarote para a Ópera, levam O Barbeiro de Sevilha; tinha combinado ir com uns amigos, mas depois mudaram de idéias; por isso, o bilhete ficou sem préstimo.

«‘— O Barbeiro de Sevilha!...’, exclamou a avó. ‘É o mesmo Barbeiro que levaram noutros tempos?’

«‘— Sim, é o mesmo Barbeiro!’, disse ele, lançando-me um olhar. Eu já compreendera tudo, corei e o meu coração saltou de esperança!

«‘— Como não havia de me lembrar?’, disse a avó. ‘Lembro-­me até muito bem. Eu própria, noutros tempos, fiz o papel de Rosine num teatro de amadores.’

«‘— Pois bem, a senhora quer vir ouvi-lo hoje?’, disse o hóspede. ‘De outro modo, o meu bilhete não servirá para nada’

«‘— De fato, se nós fôssemos?’, disse a avó. ‘Porque não havemos de ir? Veja, a minha Nastenka nunca foi ao teatro.’

«Santo Deus, que alegria! Fomo-nos imediatamente preparar e vestir e saímos. A avó, apesar de ser cega, tinha o desejo de ouvir a música e, além disso, tem bom coração: queda princi­palmente que eu me distraísse; sozinhas, nunca teríamos ido. Nem lhe direi a impressão que me causou O Barbeiro de Sevilha. Digo-lhe só que durante todo o espetáculo o nosso hóspede me olhou de tal modo, me falou de tal maneira, que vi logo que, nessa manhã, me quisera apenas por à prova, quando me propôs que fosse sozinha com ele. Meu Deus, que alegria! Deitei-me tão orgulhosa, tão alegre, o meu coração batia com tanta força, que tive um pequeno acesso de febre e durante toda a noite revivi, no meio do delírio, O Barbeiro de Sevilha.

«Pensei que, depois disto, ele viria a nossa casa com maior freqüência. Mas não: quase deixou de vir. Uma vez por mês, talvez, entrava apenas para nos convidar para irmos ao teatro.

Fomos mais duas vezes. Porém, eu não me sentia contente. Via que, pura e simplesmente, ele tinha piedade de mim, de me ver com a avó naquele estado. Com a continuação, isso foi-me enlouquecendo: já não era senhora de mim, lia sem ler, traba­lhava sem trabalhar, às vezes ria-me e dedicava-me a irritar a avó, outras vezes, muito simplesmente, chorava. Finalmente, emagreci e estive quase a cair doente. A época da Ópera terminou e o nosso hóspede deixou completamente de nos visitar; quando nos encontrávamos — sempre na escada, natural­mente —, cumprimentava sem dizer palavra, com um ar tão grave que parecia não querer falar, e já ele estava no patamar e eu ainda permanecia a meio da escada, vermelha como um pimentão, pois sempre que o encontrava o sangue me afluía às faces.

«Estou a chegar ao fim. Há justamente um ano, em Maio, o hóspede chegou à nossa casa e disse à avó que terminara com êxito os seus assuntos aqui e que tinha de voltar, por um ano, para Moscovo. Ao ouvir estas palavras, empalideci e caí numa cadeira, como morta. A avó nada notara e ele, após ter dito que ia deixar o quarto, cumprimentou e saiu.

«Que fazer? Refleti bastante, desgostei-me bastante e tomei enfim a minha decisão. Ele partiria no dia seguinte, e decidi resolver tudo à noite, quando a avó se fosse deitar. Foi o que aconteceu. Fiz uma trouxa de todos os meus vestidos, de toda a roupa de que necessitava, e com essa trouxa na mão, mais morta do que viva, subi a escada até à mansarda de nosso hóspede. Pareceu-me ter gasto mais de uma hora para percorrer os degraus. Quando abri a porta, ele soltou um grito ao ver-me. Tomou-me por um fantasma, tão pálida eu estava. Correu a buscar me um copo de água, pois mal me sustentava de pé. O coração batia-me com tanta força que sentia a cabeça perturba­da, a ponto de ter quase perdido a consciência. Quando voltei a mim, comecei por pousar a minha trouxa em cima da cama e sentei-me ao lado, escondi o rosto entre as mãos e chorei como uma Madalena. Ele, segundo creio, compreendeu tudo num abrir e fechar de olhos. Estava em pé diante de mim, pálido, e ornava-me tão tristemente que eu sentia o coração despedaçado.

«‘— Ouça!’, começou. ‘Ouça-me, eu não posso fazer nada; sou pobre; nesta altura nada tenho de meu, nem mesmo um emprego estável; de que iríamos nós viver se eu casasse consigo?’

«Falamos durante muito tempo, mas, por fim, enraiveci-me e disse que não podia continuar a viver com a avó, que fugiria de casa dela, que não queria estar presa por um alfinete e, quisesse ou não, o seguiria para Moscovo, pois não podia viver sem ele. Vergonha, amor, orgulho, tudo se mesclava na minha ira, e estive prestes a cair em cima da cama com convulsões, de tal modo temia uma recusa!

«Ele permaneceu alguns minutos sentado sem proferir uma palavra; em seguida, ergueu-se, aproximou-se de mim e segu­rou-me na mão.

«‘— Escute, minha boa, minha querida Nastenka!’, começou através das lágrimas que lhe embargavam a voz. ‘Escute. Juro-lhe que, se um dia estiver em situação, de me poder casar, é consigo que o farei. Escute, portanto: parto para Moscovo e passarei aí justamente um ano. Espero organizar os meus assuntos. Quando voltar e se continuar a amar-me, juro-lhe que seremos felizes. Agora, isso é impossível, não tenho possibilidades nem o direito de prometer o que quer que seja. No entanto, repito-lhe, mesmo que isso não se realize dentro de um ano, realizar-se-á certamente um dia, isto, bem entendido, se Nastenka não escolher outro, pois não a posso nem quero vincular a qualquer juramento.’

«Eis o que me disse, e no dia seguinte partiu. Decidíramos de comum acordo nada dizer à avó. Foi ele que assim quis. Pois bem, bem vê, está quase terminada a minha história. Passou exatamente um ano e ele chegou a Sampetersburgo já há três dias e...

— E... quê? — exclamei, na minha impaciência de conhecer o. fim.

— E não veio ainda procurar-me! — respondeu Nastenka, como se tivesse, para tal, reunido todas as suas forças. —Nem uma palavra...

Aqui deteve-se, permaneceu por momentos silenciosa, reclinou a sua cabecinha e, bruscamente, ocultando o rosto entre as mãos, explodiu em soluços que me dilaceraram o coração.

De modo algum esperava semelhante desenlace.

— Nastenka! — comecei com uma voz tímida e persuasiva —, Nastenka!, por amor de Deus, não chore! Quem sabe se ele ainda não chegou...

— Ele está na cidade! — replicou ela. — Está aqui e eu sei-o. Tínhamos combinado uma coisa, naquela noite, na véspera da sua partida: após termos trocado as palavras que lhe narrei, combinamos que viríamos até aqui; justamente até este cais. Eram dez horas; estávamos sentados precisamente neste banco, eu deixam já de chorar, deleitava-me a ouvir o que ele me dizia... Disse-me que logo que chegasse viria a nossa casa e que, se não o repelisse, diríamos tudo à avô. A verdade é que já chegou, tenho a certeza, e nada, nada!...

E de novo se debulhou em pranto.

— Deus meu! Não haverá então qualquer meio de remediar o seu desgosto? — exclamei, erguendo-me do banco, completa­mente desnorteado. — Diga-me, Nastenka, não poderia eu ir a casa dele?...

— Parece-lhe possível? — perguntou, levantando bruscamente o rosto para mim.

— Não, na verdade, não! — reconheci, desalentado. — Mas veja, há outra solução: escreva-lhe uma carta.

— Não, é impossível, não é possível! — respondeu, convenci­da, mas mantendo a cabeça baixa e sem me fitar.

— Impossível, porquê? — continuei, obstinando-me no meu projeto. — Veja, Nastenka, que espécie de carta? Há cartas e cartas... Ah, é isso mesmo. Confie em mim, bem sabe que não lhe daria um mau conselho. Tudo se pode remediar! A Nastenka deu o primeiro passo, porque não, agora...

— Não, não! Pareceria querer vinculá-lo a um juramento...

— Ah, minha querida Nastenka! — interrompi-a, sem ocultar um sorriso. — Não, nada disso! Tem esse direito, uma vez que ele lhe prometeu. Aliás, por tudo aquilo que me confidenciou, vejo que ele é um homem de bons sentimentos e que se comportou com nobreza — continuei, entusiasmando-me pro­gressivamente com a lógica das minhas próprias deduções e exortações. — Sim, como se comportou ele? Disse que não Casaria senão consigo, caso decidisse casar-se; á Nastenka, pelo contrário, deixou plena liberdade, até de o recusar agora... Nestas condições, pode dar o primeiro passo, tem o direito de o fazer, pois tem uma vantagem sobre ele, quanto mais não fosse por exemplo, para o desligar da sua palavra...

— Ouça: como é que lhe escreveria essa carta?

— O quê?

— Sim, a cana de que falou.

— E muito simples, escreveria assim «Senhor...»

— É absolutamente necessário pôr: «Senhor»?

— Sem dúvida! Na verdade, deixe-me pensar

— Bem, bem! E depois?

— «Senhor,

«‘Perdoe se...’ Vendo melhor, não, nada de perdões! O fato em si justifica tudo. Escreva simplesmente:

«‘Escrevo-lhe. Perdoe a minha impaciência; porem, dura’ um longo ano, permaneci inebriada de esperança. Será culpa minha se agora não consigo suportar um único dia de dúvida. Agora, que regressou, poderá talvez ter mudado de intenções Neste caso, esta minha carta servirá para lhe assegurar que fico ressentida e não o acusarei. Não o acusarei por não ter já t lugar no seu coração: este era, sem dúvida, o meu destino!

«‘O senhor é generoso. Não sorrirá nem se zangará com minhas impacientes palavras. Lembre-se de que as escreveu uma pobre e solitária rapariga, que não tem quem a auxilie ou aconselhe e que não sabe dominar os impulsos do seu coração. Perdoe-me, no entanto, se na minha alma, mesmo por instante, uma dúvida se tenha insinuado. O senhor é incapaz mesmo por pensamentos, ofender aquela que tanto vos amava e ama ainda.’

— Sim, sim: é isso mesmo o que eu pensava! — exclamou Nastenka, com a alegria a brilhar-lhe nos olhos. — Oh, o senhor resolveu as minhas dúvidas, foi Deus quem o enviou! Agrade­ço-lhe. Como lhe estou grata!

— Mas de quê? Por Deus me ter enviado? — respondi, olhando com entusiasmo o seu lindo e resplandecente rosto.

— Sim, quanto mais não fosse por isso.

— Ah, Nastenka! Agradecemos por vezes às pessoas o que conosco vivem, não é verdade? Eu agradeço-lhe só por a ter conhecido, da recordação que deixará em toda a minha vida.

— Bem, chega, chega! Por ora, veja, escute-me: como lhe disse, fora combinado que, mal ele chegasse, me assinalaria a sua chegada deixando uma carta num certo local, em casa de amigos meus, pessoas boas e simples que nada sabem de tudo isto; ou então que, caso não tivesse maneira de. me escrever, pois há muita coisa que não pode ser dita numa carta, viria aqui, no próprio dia, precisamente às dez horas, pois este foi o local onde nos decidimos encontrar. Da sua chegada já tenho conhe­cimento, mas decorrem já três dias e nem escreve nem aparece. Pela manhã é-me impossível deixar a avó. Entregue o senhor mesmo a minha carta a essa boa gente de que já lhe falei; eles fála-ão chegar até ele e, caso haja uma resposta, trar-ma-á à noite, às dez horas.

— Mas... e a carta? Primeiro que tudo, é preciso escrevê-la: tudo isso só poderá fazer-se depois de amanhã.

— A carta... — respondeu Nastenka, um pouco embaraçada — a carta..., mas...

Não chegou a acabar, pois antes disso desviou de mim a seu rostozinho, ficou vermelha como uma rosa e, subitamente, senti na mão uma carta, visivelmente escrita há muito tempo, pronta e lacrada. Uma recordação graciosa, amável e conhecida, atravessou-me o espírito.

R, o — Ro; s, i — si; a, e — ne», comecei.

«Rosine!», cantamos ambos, eu quase a enlaçando no meu entusiasmo, ela corando tanto quanto podia corar e rindo através das lágrimas que tremulavam como pérolas suspensa dos seus cílios negros.

— Vamos, basta, basta! Adeus! — disse ela, rapidamente. Tome a carta e o endereço onde a deve ir levar. Adeus! Até vista! Até amanhã!

Apertou-me fortemente ambas as mãos, acenou-me com cabeça e dirigiu-se, rápida como uma flecha, na direção da sua meia. Durante muito tempo permaneci no mesmo lugar, acompanhando-a com os olhos.

«Até amanhã! Até amanhã!» Estas palavras atravessaram-me o cérebro quando ela tinha já desaparecido.


 

 

TERCEIRA NOITE

 

Hoje, o dia esteve triste, chuvoso, sem luz, como a minha futura velhice. Fui assediado por estranhos pensamentos; senti­mentos turvos, questões ainda obscuras para mim, compri­miam-se dentro do meu cérebro, sem que eu tivesse força ou vontade para as solucionar. Não, não seria eu quem poderia resolver tudo isso!

Hoje não nos veremos. Ontem, quando nos deixamos, as nuvens espalhavam-se no céu e o nevoeiro adensava-se. Disse que o dia seria mau; ela não respondeu, pois não queria falar contra si própria: para ela, este dia é luminoso e claro e nenhuma nuvem poderá eclipsar a sua felicidade.

«Caso chova, não nos veremos», dissera ela, «não virei.» Pensei que ela não iria notar a chuva de hoje, mas, no entanto, não veio.

Ontem foi o nosso terceiro encontro, a nossa terceira noite branca.

Ainda assim, como a alegria e a felicidade tomam belas as Pessoas! Como o amor enche o coração! Quando nos sentimos felizes, parece-nos que o coração nos vai transbordar para o coração do ente amado. Queremos que todos estejam alegres, que todos se riam. E como é contagiosa, esta alegria! Ontem exprimia-se nas suas palavras a ternura e a bondade que, em relação a mim, existiam no seu coração... Como ela se preocu­pava comigo, como me acariciava, como encorajava o meu coração! Oh, quanta garridice a felicidade inspira! E eu... tomava tudo como coisa segura, fui ao ponto de pensar que ela...

Mas, Deus meu, como posso ter acreditado em tal coisa? Como posso ter sido tão cego que não vi que nenhum daqueles tesouros me era destinado e que, afinal, aquela ternura, aquela solicitude, aquele amor... sim, o seu amor por mim, nada era, em suma, mais do que a alegria, que se antevia próxima, de ir estar com um outro e, por outra lado, o desejo de impor, a mim também, a sua felicidade?... Quando ela viu que ele não chegava, que esperáramos em vão, então entristeceu, ficou tímida e receosa. Todos os seus gestos, todas as suas palavras, se tomaram menos naturais, menos joviais e menos alegres. E, coisa estranha, as suas atenções por mim redobraram, como se tivesse instintivamente querido derramar sobre mim o que desejava para si própria, o que começava a temer que não se realizasse. A minha Nastenka estava agora de tal modo tímida e amedrontada que me parece que compreendera, finalmente e só nessa altura, que eu sofria e que a amava, apiedando-se do meu pobre amor. Na verdade, quando estamos infelizes, sentimos com maior violência a infelicidade dos outros; o sentimento não se destrói, concentra-se...

Eu viera com o coração aberto, contando as horas que faltavam para o encontro. Nem sequer admitia que hoje iria ficar deprimido, que tudo acabaria de uma maneira diferente da habitual.

Ela resplandecia de felicidade, esperava ansiosamente a resposta, e a resposta era ele próprio. Ele ia chegar, acorrer ao seu apelo. Nastenka viera antes de mim, uma boa hora antes. Primeiro, explodia em gargalhadas ao mínimo pretexto, qual­quer palavra minha lhe provocava o riso. Comecei a falar e depois calei-me.

— Sabe por que razão estou hoje tão contente — perguntou —, tão contente por o ver? Porque gosto tanto de si hoje?

— Diga lá — pedi, e o meu coração batia descompassadamen­te.

— Gosto de si porque o senhor não se apaixonou por mim. Outro, no seu lugar, importunar-me-ia, insistiria, suspiraria. desfaleceria; o senhor, pelo contrário, é tão gentil....

Nesta altura, apertou a minha mão com tanta força que quase dei um grito. Riu-se.

— Meu Deus, que amigo o senhor tem sido! — continuou ao cabo de um minuto, num tom muito sério. — Foi Deus que opôs no meu caminho! Pense no que seria de mim se o senhor não estivesse agora ao meu lado! Como é desinteressado! Como gosta de mim! Quando casar, seremos muito amigos, mais do que se fôssemos irmãos! Amá-lo-ei quase tanto a si como a ele...

Naquele instante senti uni pungente desgosto. Algo houve, no entanto, que em mim se agitou como uma gargalhada.

— A Nastenka está excitada — disse eu —, está com medo, receia que ele não venha.

— Vá para o diabo! — respondeu. — Se eu estivesse menos feliz, julgo que choraria devido à sua descrença e às suas censuras. Aliás, o senhor deu-me uma idéia e forneceu-me matéria para reflexão. Mas isso é para mais tarde: agora. confesso-lhe, o que disse é verdade. Não, eu não estou no meu estado normal, estou completamente na expectativa e, além disso, vivo sempre as coisas com muita violência... Mas basta, deixemos os sentimentos em paz!...

Nessa altura, ouviram-se passos, e na obscuridade destacou­-se a silhueta de um transeunte que avançava na nossa direção. Ambos estremecemos; ela esteve quase a dar um grito. Deixei cair a mão e esbocei o gesto de me afastar. Mas estávamos enganados: não era ele.

— De que tem medo? Por que razão largou a minha mão? disse-me ela, dando-me novamente a mão. — Pois bem, que interessava isso? Vamos acolhê-lo os dois. Quero que ele veja como eu e o senhor nos amamos.

— «Como eu e o senhor nos amamos!» — repeti.

«Oh, Nastenka, Nastenka», pensei, «as coisas que tu disseste com essa palavra! Há momentos em que um amor como este arrefece o coração e pesa na alma. A tua mão está fria e a minha arde como fogo. Como és cega, Nastenka! ... Como é insuportá­vel ser-se feliz em certos momentos! Mas, apesar de tudo, não posso zangar-me contigo!...»

Em suma, o meu coração transbordava.

— Escute, Nastenka! — exclamei.— Sabe o que me sucedeu durante todo o dia?

— Diga lá: que foi? O quê, diga! Conte depressa! Que foi me ocultou até agora?

— Primeiramente, após ter cumprido todas as suas incumbên­cias, de ter entregue a carta em casa dos seus amigos, depois disso... depois disso, voltei ao meu quarto e deitei-me.

— É tudo? — interrompeu ela com uma gargalhada.

—Sim, quase tudo — respondi, com o coração apertado, pois a os meus olhos afluíam já lágrimas tolas. — Despertei uma hora antes do nosso encontro, mas foi como se não tivesse dormido. Não sei o que se passou comigo. Vinha a caminho para lhe contar tudo isto, dir-se-ia que o tempo se detivera para mim, que uma única sensação, um só sentimento, iria desde esse momen­to perdurarem mim perpetuamente, que um único minuto se iria prolongar por toda uma eternidade, em suma, que toda a vida fora suspensa para mim... Ao despertar, pareceu-me que um certo tema musical que conheço desde há muito tempo, ouvido outrora em qualquer parte, esquecido e agradável, me vinha à memória. Parecia-me que toda a vida se exalara da minha alma e que apenas agora...

— Meu Deus! Meu Deus! — interrompeu Nastenka —, como pode isso ser? Não compreendo nem uma palavra.

— Ah, Nastenka! Eu gostaria de lhe comunicar de maneira satisfatória esta estranha impressão... — comecei eu como uma voz lastimosa, onde se ocultava ainda uma esperança, ainda que longínqua.

— Basta, acabe com isso! — disse ela.

Num relâmpago, ela adivinhara, a marota!

Bruscamente, pusera-se extraordinariamente tagarela, ale­gre, travessa. Deu-me o braço, ria-se, queria que eu me risse também, e cada comovida palavra que eu pronunciava lhe provocava um acesso de riso, tão sonoro, tão prolongado... Começava a irritar-me; subitamente, começava a revelar garri­dice.

— Escute então — disse ela. — Na verdade, sinto-me um pouco despeitada por o senhor não se ter apaixonado por mim. Vá lá a gente compreender os homens! Da mesma maneira, senhor inflexível, não me pode felicitar pela minha modéstia. Digo-lhe tudo a si, todas as tolices que me passam pela cabeça.

—Ouça! São onze horas, segundo julgo... — disse eu quando as pancadas sonoras de um sino ressoaram ao longe numa torre do centro da cidade.

Ela deteve-se e, imediatamente, deixou de se rir e começou a contar.

— Sim, onze! — disse finalmente, com uma voz irresoluta e tímida.

Logo me arrependi de lhe ter metido medo, de a ter obrigado a contar as horas, e amaldiçoou-me por este acesso de maldade. Fiquei desgostoso por causa dela e não sabia como reparar a minha falta. Impus-me a tarefa de a consolar, de justificar as razões da ausência do outro, de criar diversos argumentos. diversas provas. Naquele instante, não havia ninguém mais fácil de enganar do que ela, e, aliás, todas as criaturas escutam com alegria qualquer consolação e se sentem felizes por encon­trar a mínima sombra de justificação.

— E, aliás, a Nastenka é tonta— continuei, entusiasmando-me cada vez mais e admirando a extraordinária limpidez das minhas provas—, aliás, ele não podia vir. A Nastenka enganou­-me também a mim, e fui de tal modo arrastado pelos seus devaneios que perdi a noção do tempo... Reflita um pouco: ele mal teve tempo para receber a carta; suponhamos que lhe foi impossível ter vindo e que responde por escrito. A ser assim, a carta só chegará amanhã de manhã. Amanhã, logo pela manhã, irei a casa dele e virei imediatamente dizer-lhe o que se passou. Suponha ainda mil e uma coisas possíveis: ele não estava em casa quando a carta chegou e, portanto, não a pôde ainda ler... Tudo pode acontecer, não é verdade?

— Sim, sim! — respondeu Nastenka. — Não tinha ainda pensado nisso... Naturalmente, tudo pode acontecer — conti­nuou ela com uma voz totalmente conciliadora, uma voz onde se apercebia uma desagradável dissonância, um pensamento longínquo e desfasado daquilo que dizia. — Olhe, eis o que deve fazer — continuou —: irá amanhã, o mais cedo possível, e, se obtiver qualquer informação, virá transmitir-ma imediatamen­te. Sabe onde eu moro? — E repetiu-me o seu endereço.

Depois ficou, subitamente, muito terna e tímida comigo... Tinha o ar de escutar com atenção o que eu lhe dizia, mas, quando lhe fiz não sei que pergunta, ficou em silêncio, pertur­bou-se e desviou o rosto. Olhei-a nos olhos: era o que eu temia; estava a chorar.

— Então, como é possível? Não seja criança... não continue, por favor!

Ela tentou sorrir é acalmar, mas o queixo tremia-lhe e o seio agitava-se, arfante.

— Penso em si — disse-me, após um minuto de silêncio. — O senhor é tão bom que seria preciso ser de pedra se não o sentisse... Sabe o que acaba de me ocorrer? Comparo-vos um ao outro. Porque não é ele o senhor? Porque não é como o. senhor? Não é tão bom, e no entanto amo-o mais do que a si.

Eu nada respondi. Ela esperava, segundo me pareceu, que eu dissesse qualquer coisa.

— É verdade que talvez não o compreenda ainda completa­mente, que não o conheça totalmente. Bem vê, sempre tive uma espécie de medo dele, tinha um ar sempre tão grave, dir-se-ia, mesmo, tão orgulhoso. De fato, eu sei, apenas tem o ar de ser assim e no seu coração existe mais ternura que no meu... Lembro-me de como me olhou no momento em que — recorda-se? — fui ao seu quarto com a trouxa na mão. Apesar de tudo, respeito-o muito e, deste modo, é como se não fôssemos iguais. não é verdade?

— Não, Nastenka, não — respondi —, isso apenas significa que o ama mais do que a tudo no mundo e que o ama muito mais do que a si mesma.

— Sim, admitamos que seja assim — respondeu a minha ingênua Nastenka. — Mas sabe o que me veio de repente à idéia? Agora não é dele que vou falar, mas em geral; desde há muito tempo que trago isso na cabeça. Escute então: porque não somos todos uns para os outros como irmãos e irmãs? Por que razão mesmo o melhor dos homens tem sempre qualquer coisa a esconder a outro e se cala diante dele? Porque não dizer francamente, à vontade, o que está no coração, quando se sabe que não se falará em pura perda? Pelo contrário, todos se dão ares de serem mais ferozes do que o são na realidade, como se temessem desvirtuar os seus sentimentos ao exprimirem-nos demasiado depressa...

— Sim, Nastenka! É verdade o que acaba de dizer! Mas isso sucede por bastantes razões — interrompi, recalcando os meus sentimentos de uma maneira a que nunca me vira até então obrigado.

— Não, não! — respondeu ela com profunda convicção. —Veja, por exemplo: o senhor não é como os outros. Sim, não sei como lhe exprimir o que sinto, mas parece-me que o senhor, por exemplo... pelo menos neste momento..., parece-me que está a sacrificar qualquer coisa por mim — acrescentou ela timidamen­te, lançando-me um rápido olhar. — Perdoe-me se lhe falo assim: sou uma rapariga simples, não conheço bem o mundo e, na verdade, existem momentos em que não sei falar — prosseguiu ela, com uma voz trêmula, devido não sei a que sentimento oculto, e esforçando-se ao mesmo tempo por sorrir —, mas queria apenas dizer-lhe que lhe estou muito grata, que gostaria de lho poder provar... Que Deus lhe dê felicidade em paga do que fez por mim! Olhe, o que me contou sobre o seu sonhador é absolutamente falso, quer dizer, não lhe diz, de modo algum, respeito a si. O senhor é um santo, é verdadeiramente um homem diferente daquele que me pintou. Se um dia amar alguém, que Deus lhe dê, com ela, a felicidade! Quanto a ela, nada lhe desejo, pois será feliz consigo. Sei-o bem, sou mulher, e tem de acreditar em mim quando lhe digo isto...

Calou-se e estreitou-me fortemente a mão. Emocionado, eu também não podia dizer nada. Decorreram vários minutos.

— Sim, bem vejo que ele não virá hoje! — disse ela finalmente, erguendo o rosto. — Já é tarde!

— Virá amanhã — disse-lhe eu, com uma voz tão firme e convincente quanto me foi possível.

— Sim — acrescentou ela, animada —, agora vejo-o bem, só amanhã ele virá. Pois bem, então até à vista, até amanhã! Se chover, talvez não venha. Mas, depois de amanhã, virei, virei de qualquer modo, suceda o que suceder: esteja aqui, pois quero vê-lo, contar-lhe-ei tudo.

E depois, no momento da despedida, estendeu-me a mão e disse, fitando-me francamente:

— Então, agora, estamos unidos para sempre, não é verdade?

Nastenka, Nastenka! Se tu soubesses em que solidão me encontro agora!

Quando deram as nove horas, não pude manter-me por mais tempo no meu quarto, vesti-me e saí, apesar de estar mau tempo. Estive no cais e sentei-me no nosso banco. Dei um pequeno passeio pela sua rua, mas tive vergonha e voltei para trás sem erguer os olhos para as suas janelas. Entrei no meu quarto num desespero como nunca conhecera outro igual. Que tempo úmido e fastidioso! Se tivesse estado bom, teria passea­do por aquelas paragens durante toda a noite...

Mas até amanhã, até amanhã! Amanhã ela contar-me-á tudo.

No entanto, não veio qualquer carta hoje. Mas, de fato, é a ordem natural das coisas. Eles estão já os dois juntos...


 

 

QUARTA NOITE

 

Meu Deus, como tudo isto acabou! De que modo acabou! Cheguei às nove horas. Ela já lá estava. Vira-a já de longe. Estava como da primeira vez, com os cotovelos apoiados no parapeito da muralha, e não se apercebeu da minha aproxima­ção.

— Nastenka! — chamei, reprimindo a custo a minha emoção.

Voltou-se rapidamente para mim.

— Sim — disse ela —, venha depressa!

Olhei-a, perplexo.

— Então, onde está a carta? Trouxe-a? — repetiu, apoiando as mãos no parapeito.

— Não, não há carta... — disse eu finalmente.— Então ele não está ainda em sua casa?

Ela empalideceu terrivelmente e olhou-me sem fazer sequer um movimento. Eu destruíra a sua derradeira esperança.

— Então, que Deus o guarde! — proferiu, com uma voz entrecortada. — Que vá para o diabo, já que me abandona assim.

Baixou os olhos, depois quis fitar-me, mas não foi capaz. Por alguns minutos ainda, procurou dominar a sua perturbação, mas bruscamente voltou-se e, apoiando os cotovelos na balaustrada do cais, rompeu em pranto.

— Basta! Vamos! — disse eu, mas, ao vê-la assim, não tive coragem para prosseguir e, aliás, que lhe teria podido dizer?

— Não procure consolar-me — disse-me ela, chorando —, não me fale dele, não me diga que virá, que não me abandonou cruelmente, desumanamente, conforme é evidente que fez. E porquê, porquê? Haveria alguma coisa na minha carta... nessa infeliz carta?...

Aqui, os soluços cortaram-lhe a voz. O meu coração dilace­rava-se só de a ver.

— Como é cruelmente desumano! — repetiu. — E nem uma linha, nem uma linha! Se ao menos tivesse respondido que não tinha necessidade de mim, que me repelia..., mas nem uma única linha em três dias inteiros! Como lhe é fácil ofender, humilhar, uma pobre rapariga indefesa, cujo único crime foi amá-lo! Como tenho sofrido durante estes três dias! Meu Deus, meu Deus! Quando penso que fui eu quem foi ter com ele a primeira vez, que me rebaixei perante ele, que chorei, que implorei dele uma gota de amor... E depois disto tudo!... Ouça — disse, dirigindo-se a mim, e os seus olhos negros brilharam —, mas não, não é assim! Isso não pode ser verdade. Não é natural! Ou o senhor ou eu estamos enganados. Pode ser que não tenha recebido a carta! Pode ser que não saiba ainda nada! Como seria possível, veja lá bem, diga-me, em nome de Cristo, explique-­mo, pois não consigo compreender, como se pode atuar com a grosseria e com a crueldade que ele usou comigo? Nem uma palavra! A mais miserável das mulheres merece mais comisera­ção. Terá ouvido dizer coisas a meu respeito, alguém lhe disse mal de mim? — exclamou, voltando-se para mim com um ar interrogador. — Diga. Que pensa disto?

— Ouça, Nastenka, amanhã irei ter com ele.

— E então?

— Interrogá-lo-ei, contar-lhe-ei tudo.

— Bem, bem.

— Escreva uma carta. Não diga que não!

Obrigá-lo-ei a respeitá-la, saberá tudo, e se...

—Não, meu amigo, não — interrompeu ela. — Basta! Nem uma palavra, nem uma palavra a meu respeito, nem uma linha; já chega! Já não o conheço, já não o amo, vou esquecê-lo...

Não conseguiu terminar.

— Acalme-se, acalme-se! Sente-se aqui, Nastenka — disse eu, instalando-a no banco.

— Mas estou calma. Basta! Não é nada.

São apenas lágrimas, isto secará. Então, julgou que eu me mataria, que me atiraria à água?...

O meu coração estava oprimido. Queria falar, mas não podia.

— Ouça! — continuou, segurando-me a mão. — Diga: não teria agido assim, pois não? Não teria abandonado quem lhe tivesse vindo oferecer voluntariamente o seu amor, não lhe teria lançado ao rosto o imprudente desprezo do seu estúpido cora­ção... Tê-la-ia poupado a isso, não é verdade? Pensaria que estava só, incapaz de se guiar por si mesma, incapaz de se defender do seu amor por si, inocente, sim, inocente, pois afinal.., ela nada fez... Meu Deus, meu Deus!...

— Nastenka! — exclamei, por fim, não podendo já superar a minha emoção. — Nastenka, está a torturar-me! Dilacera-me o coração, assassina-me, Nastenka! Não posso mais calar-me! Vejo-me forçado a falar, a dizer-lhe o que se passa no meu coração...

Enquanto proferia estas palavras, soerguera-me no banco. Ela segurou-me a mão e olhou-me com uma expressão de surpresa.

— Que se passa? — disse por fim.

— Ouça-me! — disse eu, decidido. — Ouça-me, Nastenka! O que lhe vou dizer agora não passa de uma tolice, é irrealizável, é disparatado! Sei que tal coisa nunca sucederá, mas, no entanto, não posso calar-me. Em nome de tudo aquilo por que sofre, peço-lhe antecipadamente perdão. Perdoe-me!...

— Mas o quê? Que se passa? — disse ela. Deixara de chorar e olhava-me fixamente, enquanto uma estranha curiosidade bri­lhava nos seus belos olhos surpreendidos. — Que tem o senhor?

— É irrealizável, mas amo-a, Nastenka! É isto o que tenho. Agora já disse tudo — proferi com um gesto de desespero. — Deixo pois ao seu critério se deve ou não continuar a falar-me, como até há momentos, se pode finalmente escutar tudo o que lhe vou dizer...

— Pois bem, que tem isso? — interrompeu. — Que mal tem isso? Sabia desde há muito tempo que me amava, mas parecia-me que me amava singelamente, assim. .. Ah, meu Deus, meu Deus!

— Primeiramente foi... «assim», Nastenka, mas agora... agora... estou exatamente no mesmo estado em que a Nasten­ka estava quando subiu ao quarto dele com a trouxa. Pior ainda, pois ele não amava outra pessoa, enquanto a Nastenka ama...

— Que está a dizer? Não o compreendo, afinal de contas! Mas escute então, como sucedeu isso, por que razão o senhor, subitamente... Santo Deus, estou a dizer tolices! Mas o se­nhor...

E Nastenka perturbou-se completamente. As suas faces incendiaram-se; baixou os olhos.

— Que fazer, Nastenka, que posso eu fazer? A culpa foi minha, abusei... Não, não! A culpa não é minha, Nastenka; sofro-o, sinto-o, pois o meu coração diz-me que tenho razão, porque eu nunca poderia ofendê-la, nunca a poderia ferir! Era seu amigo; pois bem, continuo a ser seu amigo; não traí coisa nenhuma. Veja, as lágrimas correm-me pelo rosto, Nastenka! Deixe-as correr, deixe-as correr, não incomodam ninguém. Secarão, Nastenka...

— Mas sente-se, sente-se! — disse-me, querendo obrigar-me a sentar no banco. — Meu Deus!

— Não, Nastenka, não me sentarei. Não posso ficar mais aqui, não pode voltar a ver-me. Direi tudo e depois vou-me embora. Quero apenas dizer que nunca teria sabido que a amo. Teria enterrado o meu segredo. Não a atormentaria, agora, neste momento, com o meu egoísmo. Mas não consegui dominar-me: foi a Nastenka quem primeiro falou, a culpa é sua, a Nastenka é a única culpada e eu estou inocente. Não pode mandar-me embora...

— Mas não o mando embora, nem pensar nisso! — disse Nastenka, escondendo o melhor possível a sua emoção, a pobrezinha!

— Não me manda embora? Não? E eu que queria já fugir para longe de si! Aliás, irei, mas primeiro direi tudo, pois quando a Nastenka aqui falava, eu não podia estar tranqüilo, quando aqui chorava, quando aqui se atormentava com aquele que... pois bem, com aquele — tratarei as coisas pelos seus nomes —, com aquele que a repelia, que recusava o seu amor, senti, verifiquei que existia no meu coração tanto amor por si, Nastenka, tanto amor!... E lamentava imenso não a poder ajudar, com es amor... que o meu coração se dilacerasse e eu... e eu não calar-me, fui obrigado a falar, Nastenka, fui obrigado a falar!.

— Sim, sim! Fale-me, fale-me dessa maneira disse ela com uma indizível animação. — Talvez lhe pareça estranho que diga isto, mas... fale-me, eu falarei depois de si! Dir-lhe-ei tudo!

— Tenha piedade de mim, Nastenka. Só lhe peço que piedade de mim, minha amiga! O que está feito, está feito! C que já se disse já não se pode evitar de dizer. Não é verdade? Pois bem, assim, sabe tudo, agora. Bem, isto é o ponto de partida. Muito bem! Agora está tudo perfeito. Escute-me só por mais uns momentos. Quando estava sentada a chorar, pensava com os meus botões (deixe-me dizer aquilo que penso!), pensava que (já sei, Nastenka, é impossível), pensei que a Nastenka..., pensei que, de uma maneira ou de outra... enfim, que de uma maneira completamente... independente, a Nasten­ka não o amava. Então — já ontem e anteontem, Nastenka, pensei assim —, então pensei que se assim fosse tudo faria de modo que me amasse; não o disse já uma vez — sim, a própria Nastenka já o disse — que estava quase apaixonada por mim? Bem, e depois? Pois bem, tenho pouco mais para dizer: resta apenas acrescentar o que sucederia se fosse correspondido. Mas, a este respeito, nem mais uma palavra! Ouça-me então, minha amiga — pois continua, apesar de tudo, a ser minha amiga, não é verdade? Sou, na verdade, um homem simples, pobre, extremamente insignificante; mas não é disso que se trata (não sei porquê, nunca mais digo aquilo que quero dizer: é por causa da emoção, Nastenka); eu tê-la-ia amado de tal maneira, de tal maneira que, mesmo que o continuasse a amar, a ele, a amar aquele que não conheço, não chegaria a sentir-se incomo­dada com o meu amor. Teria só experimentado, teria apenas sentido, a cada momento, que junto de si batia um coração reconhecido, pleno de reconhecimento, um coração ardente que por si... Oh, Nastenka, Nastenka, o que fez de mim!...

— Não chore, não quero que chore — disse ela, erguendo-se rapidamente do banco. — Vamo-nos embora, levante-se, venha comigo, não chore mais. — Enquanto falava, enxugava-me as lágrimas como o seu lenço. —Vamos, vamo-nos agora embora. Dir-lhe-ei talvez qualquer coisa... sim, uma vez que ele me abandonou, que me esqueceu, se bem que ainda o ame (não o quero enganar a si)... mas escute-me,, responda-me. Se, por exemplo, eu o tivesse amado, quero dizer, se apenas eu... Oh, meu amigo, meu amigo, quando. penso nisto, quando penso quanto o fiz sofrer, quando ri do seu amor, louvando-o por não se ter apaixonado!... Oh, meu Deus, como não adivinhei, como não adivinhei.., como fui tola... mas... enfim, bem, estou decidida, direi tudo...

— Ouça, Nastenka: sabe uma coisa? Vou deixá-la, eis tudo! Na verdade, só a estou a atormentar. Olhe, neste momento sente remorsos por ter zombado, e eu não quero, não quero que, além do seu desgosto... A culpa foi minha, é evidente, Nastenka, portanto, adeus!

— Espere! Espere um pouco! Não pode esperar?

— Esperar o quê? Como?

— Eu amo-o, mas isto passará; tem de passar. Está mesmo já a passar, bem o sinto... Quem sabe, talvez hoje mesmo chegue ao fim, pois detesto-o, por ele zombar de mim, enquanto o senhor, o senhor chorou aqui comigo e não me teria repelido como ele fez, porque o senhor me ama, enquanto ele nunca me amou, suma... Sim, eu também o amo a si! Amo-o como o senhor ama. Fui eu própria quem lho disse, antes de o senhor mo dizer ouviu, não é verdade? E amo-o porque é melhor do que mais nobre do que ele, é porque ele...

A pobrezinha estava de tal modo emocionada que conseguiu terminar; apoiou a cabeça no meu ombro, depois sobre o meu peito, e chorou amargamente. Eu consolava-a, encorajava-a, mas nada lhe conseguia deter a mágoa; continuava a apertar-me a mão e dizia por entre os soluços: «Espere, espere. Vai ver, isto vai parar já! Quero dizer-lhe... não que estas lágrimas... não, elas vêm-me assim, é da franqueza espere que isto passe... » Finalmente, parou de chorar, limpe as lágrimas, e recomeçamos a caminhar. Eu queria falar, ela, ainda durante muito tempo, continuou a pedir-me esperasse. Calamo-nos... Por fim, reuniu toda a sua coragem começou a falar.

Olhe — disse com uma voz débil, mas onde bruscamente ressoou algo que me traspassou violentamente o coração e produziu uma agradável dor —, não me julgue inconstante volúvel, não pense que sou capaz de esquecer e de trair levianamente e tão depressa. Durante todo um ano amei-o juro-o diante de Deus, nunca, nem mesmo por pensamentos lhe fui infiel. Ele desprezou isso e zombou de mim. Que sirva de proveito! Feriu e humilhou e meu coração. Eu... eu o amo, pois não posso amar senão quem for generoso, compreenda e seja nobre de sentimentos, porque eu própria assim e ele é indigno de mim: por isso, que lhe sirva de proveito a traição! Foi melhor assim do que só mais tarde, após ter sido iludida nas minhas esperanças, viesse a saber quem ele era... Não é verdade? Mas, quem sabe? Talvez que todo o meu amor não tenha passado de uma ilusão dos sentidos e da imaginação, talvez que tenha começado por criancice, por tolice, por estar tão severamente vigiada pela minha avó. Talvez que amasse nele outro homem completamente diferente, que tivesse com­paixão de mim e... e... Vamos, deixemos isto! Deixemos isto! — Interrompeu-se, ofegante de emoção. — Eu queria só dizer­-lhe... eu queria só dizer-lhe que, ainda que o ame (não, ainda que o tenha amado), se, apesar disso, o senhor quiser ainda.., se sente que o seu amor é suficientemente’ grande para poder afugentar do meu coração o amor que antes o habitava.., se quiser ter piedade por mim, se não quiser abandonar-me ao meu destino, sem consolação, sem esperanças, se quiser amar-me tanto quanto me ama agora, então, juro-lhe, a minha gratidão... o meu amor acabará por ser digno do seu... Aceitaria nestas condições a minha mão?

— Nastenka! — exclamei, sufocado pelos soluços—, Nastenka, oh, Nastenka!...

— Bem, basta, basta. Vamos lá, basta por agora! — disse ela, dominando-se com dificuldade. — Por ora, tudo está dito. Não é verdade? Não lhe parece? Pois bem, o senhor sente-se feliz e eu sinto-me também feliz! Mas nem mais uma palavra a este respeito. Espere. Poupe-me... É melhor falar de qualquer outra coisa, por amor de Deus!...

— Sim, Nastenka, sim! Basta de falarmos a este respeito; agora sinto-me feliz, eu... Bem, Nastenka, bem, falemos de outra coisa, depressa, depressa, falemos de outra coisa... Sim! Estou pronto...

E não sabíamos o que dizer, ríamo-nos, chorávamos, dizí­amos mimares de palavras sem seqüência e sem significado; tanto íamos por um passeio como, bruscamente, arrepiávamos caminho e atravessávamos a rua; depois detínhamo-nos e voltá­vamos a passar pelo cais; comportavamo-nos como crianças...

— Agora vivo só, Nastenka — comecei —, mas amanhã... Na verdade, bem o sabe, Nastenka, sou pobre, tenho ao todo mil e duzentos rublos, mas isso não interessa...

— É evidente, isso não interessa; a avó tem a sua pensão e não nos será pesada. É preciso que a avó vá viver conosco.

— Por certo, ela irá viver conosco... Simplesmente há Matriona...

— Ah, mas nós também temos Fiokla!

— Matriona é uma boa mulher. Só tem um defeito: carece de imaginação, Nastenka, não possui uma réstia de imaginação. Mas isso não tem importância!...

— Pois, não interessa, elas podem ficar as duas. Mas o senhor, a partir de amanhã, virá instalar-se na nossa casa.

— Em vossa casa?... Bem, estou de acordo...

— Sim, passará a ser nosso hóspede. Temos um quartinho na mansarda. Está desocupado. A anterior hóspede, uma anciã nobre, foi-se embora, e a avó, eu sei, quer que o quarto seja ocupado por um jovem. Eu pergunto-lhe: «Porquê um jovem?» Ela responde: «Por nada, eu já estou velha e assim... Não penses, Nastenka, que to quero dar por marido...» Mas adivi­nhei logo que era justamente essa a idéia dela...

— Ah, Nastenka...!

E desatamos ambos a rir às gargalhadas.

— Vamos, basta, basta então! Mas onde mora? Esqueci-me de lhe perguntar — disse ela.

— Junto da ponte, na edifício Barannikov.

— É no grande edifício?

— Sim, no grande edifício.

— Sim, conheço: é um belo prédio. Apesar disso deixe a casa e venha viver conosco o mais depressa possível...

— A partir de amanhã, Nastenka, a partir de amanhã. Tenho ainda qualquer coisa a pagar da aluguel, mas não tem importância... Estou quase a receber os meus proventos...

— Além de mais, talvez eu possa dar lições. Aprenderei primeiro e darei depois lições...

— Pois bem, isso é estupendo... e eu estou prestes a receber uma gratificação, Nastenka...

— Então, venha amanha e será meu hóspede...

— Sim, e iremos ouvir O Barbeiro de Sevilha, pois vão levá-lo à cena novamente.

— Sim, iremos... — concordou, rindo-se, Nastenka. — Não, será melhor não ver O Barbeiro, mas outra ópera qualquer...

— Sim, ótimo, outra ópera qualquer... Certamente, será preferível. Não tinha pensado nisso...

Falando assim, caminhávamos ambos como que embriaga­dos, imersos num nevoeiro, não sabendo nós próprios definira que nos estava a acontecer. Tão depressa nos detínhamos para conversar, ficando longamente parados, como recomeçávamos a andar e íamos dar Deus sabe onde e novamente explodíamos em gargalhadas, em lágrimas... como Nastenka decidia, brus­camente, voltar a casa, não ousando eu retê-la e querendo acompanhá-la até à porta; púnhamo-nos a caminho e, subitamente, ao cabo de um quarto de hora, voltávamos para o cais, para diante do nosso banco. Inesperadamente, ela soltava um suspiro e, de novo, uma lágrima brotava dos seus olhos e eu ficava tímido, gélido... Mas logo estreitava a minha mão na sua e me arrastava de novo, a caminhar, tagarelar, conversar...

— Agora basta, são horas de voltar para casa. Deve ser já muito tarde — disse finalmente Nastenka. — Chega de criancice!

— Sim, Nastenka. Simplesmente. já não conseguirei dormir: não voltarei esta noite ao meu quarto.

—Eu também não; estou certa de que também não conseguirei dormir. Em todo o caso, acompanhe-me.

— Certamente.

— Mas desta vez iremos mesmo para casa, tem de ser.

— Absolutamente, absolutamente...

— Palavra de honra?... É que, apesar do que aconteceu, temos de ir para casa, cedo ou tarde.

— Palavra de honra! — respondi, rindo-me.

— Então, vamos!

— Veja o céu, Nastenka, veja! Amanhã iremos ter um dia magnífico. Que céu azul, que Lua! Olhe aquela nuvem que está prestes a ocultá-la, veja, veja!... Não, passou-lhe ao lado. Mas olhe, veja bem!...

Nastenka não olhava para a nuvem: conservava-se silencio­sa, como que pregada ao chão; um momento depois estreitou-se timidamente contra mim. A sua mão tremia na minha; eu olhava... Apoiou-se em mim ainda com mais força.

Nesse instante, diante de nós. passou um jovem. De súbito, deteve-se, olhou-nos fixamente e, em seguida, andou mais alguns passas. O meu coração começou a bater...

— Nastenka — disse a meia voz —, quem é?

— É ele! disse-me ela num sussurro, apertando-se ainda mais, tremulamente, contra o meu corpo... Mal me sustinha sobre as pernas.

— Nastenka, Nastenka, és tu! — disse uma voz atrás de nós, e ao mesmo tempo, o jovem deu alguns passas na nossa direção...

Santo Deus, que grito! Como ela tremia! Como se soltou do meus braços para voar ao encontro dele!...

Destroçado, fiquei a contemplá-los. Logo que lhe estendeu a mão, porém, mal se lançou nos seus braços, voltou-se de súbito para mim; surgiu a meu lado, como o vento, como um relâmpago, e, antes que tivesse recuperado a consciência, agarrou-se me ao pescoço fortemente, com ambos os braços, e deu-me um beijo caloroso. Depois, sem me dizer uma palavra, correu de novo para ele, agarrou-lhe as mios e arrastou-o atrás de si.

Durante muito. tempo permaneci ali, seguindo-os com os olhos... Finalmente, desapareceram ambos.


 

 

A MANHÃ

 

As minhas noites acabaram naquela manhã. Estava um dia medonho. A chuva caía e batia tristemente nas vidraças. O pequeno quarto estava imerso na obscuridade, pois, lá fora, o céu estava coberto. A cabeça andava-me à roda, estava com uma enxaqueca e a febre insinuava-se por todo o meu corpo.

— Uma carta para ti. patrão! Foi o correio que a trouxe — ouvi dizer a voz de Matriona.

— Uma carta! De quem? — exclamei, saltando da cadeira.

— Ora! Sei lá! Olha, pode ser que esteja escrito por dentro de quem é.

Quebrei o lacre. Era dela!

«Peço-lhe perdão!», escrevia Nastenka.

«Suplico-lhe de joelhos que me perdoe. Enganei-o e enganei-me a mim própria. Era um sonho, um fantasma... Hoje sofri por si mil mortes. Perdão! Peço-lhe perdão’

«Não me censure, pois não mudei fosse o que fosse quanto a si. Disse-lhe que o amaria e continuo a amá-lo, faço mais do que amá-lo. Meu Deus, se pudesse amar-vos a ambos ao mesmo tempo! Se o senhor fosse ele! Se ele fosse o senhor!» Esta frase atravessou-me o cérebro. São as tuas próprias palavras; Nastenka, que me vêm à memória.

«Deus é testemunha daquilo que eu gostaria de fazer agora por si! Sei que está mergulhado no acabrunhamento e no desgosto. Causei-lhe mal, mas, quando amamos, lembramo­-mos das ofensas? Ora, o senhor ama-me, não é verdade?

«Obrigada, sim, obrigada por esse amor! Ele está impresso na minha memória como um sonho delicioso, daqueles que recordamos muito tempo depois de termos já despertado; porque recordarei eternamente o instante em que tão fraternal­mente o senhor me abriu o seu coração e em que tão magnanimamente aceitou a oferta do meu coração magoado, para o conservar, acalentar e proteger... Se me perdoar, a sua recorda­ção será erigida por mim num sentimento eterno e nobre que nunca mais se apagará da minha alma... Conservarei essa recordação, ser-lhe-ei fiel, não o trairei, não trairei o meu coração: ele é demasiado constante para que isso possa suceder. Ainda ontem, como viu, ele voltou tão depressa à posse daquele a quem para sempre pertence.

«Voltaremos a encontrar-nos, o senhor virá a nossa casa, não nos abandonará, será perpetuamente meu amigo, meu irmão... E quando me vir, dar-me-á a sua mão... sim?

Dar-ma-á, pois ter-me-á perdoado, não é verdade? Continua­rá a amar-me como até aqui?

«Sim, ame-me, não me abandone, pois eu amo-o de tal maneira neste instante, porque sou digna do seu amor, porque eu o mereço.., meu querida amigo! Casamos na próxima semana. Ele continua apaixonado, nunca me esqueceu... Não se zangue por lhe falar dele. Quero que o conheça: será amigo dele, não é verdade?

«Perdoe-me! Recorde e ame a sua

Nastenka.»

 

Li esta carta diversas vezes. As lágrimas toldavam-me os olhos. Por fim, caiu-me das mãos e escondi o rosto.

— Meu rapaz! Eh, meu rapaz! — disse Matriona.

— Que foi, velhota?

— Já tirei a teia de aranha do tecto. Agora até já te podes casar, se quiseres, convidar amigos, tudo irá ficar em ordem...

Fitei Matriona .. Era uma mulher ainda cheia de vivacidade, uma velha jovem; mas, não sei porquê, pareceu-me de súbito com o olhar baço, com rugas no rosto, curvada, estragada... Não sei porquê, subitamente, pareceu-me que o quarto envelhe­cera como Matriona. Paredes e soalho estavam sem cor, tudo ficara turvo e obscuro; pareceu-me que as teias de aranha se tinham multiplicado. Não sei porquê, ao olhar através da janela pareceu-me que, por seu turno, o prédio em frente também escurecera, que o reboco das suas colunas se esboroava e caía, que as cornijas tinham enegrecido e aberto fendas e que as paredes, de um amarelo carregado e gritante, tinham perdido a cor...

Ou, então, um raio de sol que surgira subitamente por detrás de uma nuvem carregada de chuva escondera-se de novo atrás dela, e tudo pareceu escurecer novamente diante dos meus olhos; ou talvez que diante de mim tenha num ápice perpassado, desagradável e triste, toda a perspectiva do meu futuro e eu me tenha visto, exatamente como sou hoje, quinze anos depois, envelhecido, no mesmo quarto, com a mesma Matriona, à qual todos esses anos não teriam tomado mais esperta.

Mas que só eu recorde a minha dor, Nastenka! Que eu não chame com amargas censuras uma nuvem sombria sobre a tua clara e tranqüila felicidade, que não desperte no teu coração o arrependimento nem o amargure com um secreto remorso ou o obrigue a bater com tristeza nos momentos de felicidade. Que não faça fenecer as ternas flores que colocarás nos teus cabelos negros no dia em que irás com ele ao altar... isso nunca! Nunca! Que o teu céu seja luminoso, que seja claro e sereno o teu gentil sorriso e bendita sejas tu própria pelo minuto de felicidade e de alegria que proporcionaste a um coração solitário e grato.

Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?...


 

 

NOTAS

 

1 – A Perspectiva Nevski, o Jardim de Verão e os cais do Neva são os três mais belos itinerários de Sampetersburgo (actual Leninegrado).

2 – O canal que atravessa o centro de Sampetersburgo.

3 – Localidades próximas do centro da cidade, mas onde a população abastada ia de passeio ou gozar férias.

4 – Pargolovo fica a cerca de 15 km de Sampetersburgo, na estrada da Finlândia. Nas margens do seu lago estão instaladas numerosas vivendas.

5 – Uma das «ilhas» do delta do Neva que serviam de passeio aos sampetersburgueses.

6 – Por «Ilhas», designa-se o grupo das ilhas Petrovski, Krestovski, Elaghine, Kamenny, apreciadas pelos seus espaços verdes e pelas suas casas de campo. O rio Negro encontra-se no continente, mais a norte, atrás de Novala Derévnia.

7 – Poeta sentimental e idealista (1783-1852) que, ainda em vida, era considerado clássico na Rússia.

8 – Personagem do romance Rob Roy, de Walter Scott.

9 – Personagem de Walter Scott em Saint Roman‘s Well.

10 – Personagem de Walter Scott em Hearth of Midlorhian.

11 – Personagens de Walter Scott no romance citado na nota anterior.

12 – Talvez Vorontsova Dachkova.

13 – Poema de Pushkin.

14 – Pequena cidade, estância de férias a 25km ao norte de Sampetersburgo, célebre pelos seus concertos.

15 – Tecla.


 

Versão eletrônica do livro “Noites Brancas”
Autor: Fédor Dostoievski
Tradução: Carlos Loures
Créditos da digitalização: Site “O Dialético”
Endereço: http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/

A distribuição desse arquivo (e de outros baseados nele) é livre, desde que se dê os créditos da digitalização ao Site “O dialético” e se cite o endereço do Site no corpo do texto do arquivo em questão, tal como está acima.


 

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