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A VIZINHA DE NOÉ

Ana Vitória Vieira Monteiro

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A Vizinha de Noé
Ana Vitória Vieira Monteiro

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Fonte Digital
Documento da Autora

© 2000,2006 Ana Vitória Vieira Monteiro
maraka@zaz.com.br

 

 


 

Í N D I C E

Introdução
Primeiro Tempo
Segundo Tempo
Terceiro Tempo
Quarto Tempo
Quinto Tempo
Breve Histórico de Ana Vitória

 


"A VIZINHA DO NOÉ"

Ana Vitória Vieira Monteiro

Personagens:
LUCIMARA/VIZINHA
NOÉLCIO/NOÉ


 

PREFÁCIO

 

A idéia do fim dos tempos não é nova.

Sempre estamos esperando que algo extraordinário aconteça a cada virada de século, milênio, ou de uma era.

Todos os sinais são sinais do divino, apontados por profetas, adivinhos, ou pessoas que foram reconhecidas como santas pela Igreja. Todos afirmam que o mundo vai passar por radicais mudanças e que o apocalipse chegará.

Como podemos comprovar, as religiões estão cheias de adeptos que receberam mensagens vindas de outras dimensões.

Os mitos estão ao nosso alcance para que possamos aprender com eles.

Eles nos lembram que qualquer movimento da natureza pode tanto destruir a nós como aos animais; vivendo apenas aqueles que conseguem adaptar-se à nova ordem.

O FIM do mundo termina ao mesmo tempo em que o BARQUEIRO solta os animais (o corvo e a pomba) pela única janela existente em seu barco. Deixando evidente que o fim não atinge a todos. Mas todos tiveram que fazer algum esforço para salvar as suas vidas.

ANA VITÓRIA — 1999

 


 

PRIMEIRO TEMPO

 

LUCIMARA, jovem adolescente, despede-se dos amigos depois de uma festa Junina no sítio de seus pais; fica com ela um rapaz que é amigo da família.

 

LUCIMARA — Tchau, obrigada por terem vindo!

CORO INTERNO — Tchau, adorei pular fogueira!!!

LUCIMARA — Até a próxima festa de São João!

CORO INTERNO — Valeu menina, valeu!

LUCIMARA — Me telefona!

CORO INTERNO — Pro celular!

LUCIMARA — Tá !

(Ouvem-se barulhos de carros e motocas saindo, ela aparece na porta que dá para o pátio em que a festa foi feita)

LUCIMARA — (ajeita a blusa preta com um desenho de FÊNIX no peito, diz pro amigo dormindo no chão) "Dorme que te fa bene"! Que festa! (olhando a bagunça deixada) Este é o verdadeiro dia seguinte! Uma casa depois da festa de São João. É um espetáculo, cartuchos de rojão para todos os lados... E o outro aí dormindo, deve ter tomado muito vinho quente! E pensar que ele ficou com a desculpa de ajudar na arrumação, vou acreditar nisso, acho que o carinha quer é me namorar... ainda bem que apagou legal, até que se ele não fosse tão pancadinho... Acho que vai precisar de um batalhão de limpeza, pra dar conta do recado. Ai, (grita) Como arde isso, nossa, (olha para as mãos) o rojão quase estourou na minha mão! A minha mãe vai fazer um discurso daqueles, (imitando a mãe): "Não se pode confiar em você, olha o que seus amigos fizeram com o meu sítio, pisaram nas minhas flores, sujaram e estragaram tudo, selvagens, primatas. Os meus caseiros não são seus escravos! Quando é que você vai tomar juízo menina, quando? Nunca mais peça o meu sítio emprestado!" (canta)

..."São João, São João,
acende a fogueira do meu coração"...

Nem batata doce sobrou, o pessoal come feito formiga, parece que terão que sobreviver a uma hecatombe nuclear.

..."São João, São João
acende a fogueira do meu coração"...

Ainda tem um pouquinho de quentão? Milagre!!! (senta perto da fogueira com o copo nas mãos, olha para o tênis sujo de terra) Isso vai ser duro de sair do meu tênis novinho em folha. Esta terra vermelha é pior do que a lama deixada pelo dilúvio do tal Noé. Ai meu Deus como eu sou exagerada, (ironizando) comparar uma terra destas com o dilúvio, aquilo sim é que deixou o mundo em lama...literalmente falando. Pára Lucimara, pára!

..."O Balão vai subindo,
vai caindo a garoa,
o céu é tão lindo,
a noite é tão boa.
São João, São João,
acende a fogueira do meu coração"...

(distraída acende uma estrelinha, depois cochila sem querer perto da fogueira) Que quentinho, bom demais, bom mesmo...


 

SEGUNDO TEMPO

 

Os grilos já cantam com os primeiros pássaros da manhã, um cachorro late em algum lugar distante. Lucimara sonha que Noé está no seu jardim.

 

LUCIMARA — Noé!?

NOÉ — Está queimando as minhas madeiras, novamente?.

LUCIMARA — Eu?

NOÉ — Quem mais está aqui queimando madeira? Ou estou tendo alucinações?

LUCIMARA — Eu é que estou tendo um pesadelo.

(passa um carro com o motor roncando alto, e Noé se assusta)

NOÉ — Que barulho é este?

LUCIMARA — Motor de uma moto.

NOÉ — Não. Este barulho eu conheço, são os dinossauros, eles voltaram, estão aí, (apavorado) esconda-se. (ele se esconde) Não fique aí parada.

LUCIMARA — Não se assuste. Pobre velhinho! Noé!! O que você está fazendo, sai daí, não há dinossauros; só cachorro, pato, galinha, passarinho... Toma um copo de vinho, vai te fazer bem!

NOÉ — Que bebida é esta sua beberagem?

LUCIMARA — É um vinho tinto, da melhor safra (ri debochada, servindo). É um São Roque legítimo.

NOÉ — Muito bom, gostei, feito a partir de quê?

LUCIMARA — De uvas!

NOÉ — É?! O que é isso?

LUCIMARA — É, uvas, (mostra um cacho de uvas), embriaga um pouco, tem álcool, cuidado. Quando você bebe também fica meio alegre?

NOÉ — Não sei. A ultima vez que me embriaguei fiquei nu, mas isso não é da tua conta. Posso confiar que só tem isso, sem outras ervas venenosas...?

LUCIMARA — Evidente que não há nada além de uva, só algum aditivo químico.

NOÉ — Químico? O que é isso, nova erva?

LUCIMARA — Tome logo que não faz mal, eu não minto, só exagero um pouco... Você além de assustado, me parece preocupado.

NOÉ — É verdade, tenho que confessar, esqueci do que não deveria ter esquecido jamais!

LUCIMARA — Posso saber do que se trata?

NOÉ — Não sei se devo...

LUCIMARA — Um segredo?

NOÉ — Digamos que sim.

LUCIMARA — Tá bom, provoca a minha curiosidade, depois diz que não sabe se deve. Afinal se você está aqui, de alguma forma tem a ver com o que procura.

NOÉ (cauteloso) — Tem razão. Ao mesmo tempo em que acho que não devia, sinto que devo. Pensando bem, talvez possa me ajudar. Estou tentando lembrar as medidas da Arca.

LUCIMARA — Que Arca?

NOÉ — A que Deus me mandou fazer! Por acaso você lembra das medidas?

LUCIMARA — Porquê deveria?

NOÉ — Está sempre espiando tudo.

LUCIMARA — Eu!!! Nem sei do que você está falando, não falei que isso sobe, você está bêbado.

NOÉ — Pode resolver o meu caso, é urgente, (suplicante) se eu não lembrar destas medidas a humanidade está perdida. (Lucimara se toca que está diante de um louco varrido e topa brincar que acredita nele)

LUCIMARA — Loucura por loucura eu sou mais eu — É comigo mesmo, tio!

NOÉ — Tio? Por acaso sou irmão de seus pais?

LUCIMARA — Tenho as medidas da Arca.

NOÉ — Louvado seja!

LUCIMARA — Não sai daí. Espera que eu já volto (sai correndo gritando). Tomara que a minha mãe tenha deixado a Bíblia no quarto.

NOÉ — (olhando as plantas) Meu Deus onde estou?! No céu não me parece... aqui tem fogueira, estrelas, árvores, bicho cantando, tem gente com roupas estranhas, (olhando pra casa) mas não é igual a nada que conheço (toma mais um pouco de vinho).Que linda uva, tem sementes?! (pega uma uva e come, tira as sementes, pega mais um punhado de uvas e coloca no bolso de seu manto com cuidado, em seguida experimenta outra taça de vinho, apreciando o sabor de ambas, e promete:) — Se conseguir as medidas da ARCA a primeira coisa que farei é plantar estas sementes. Farei vinho delas e tomarei um bom porre! Para não esquecer este dia! (esconde a uva)

LUCIMARA — (volta saltitante com o livro "E A BÍBLIA TINHA RAZÃO") — Tá aqui, não é a BÍBLIA mas deve servir.

NOÉ — O que é BÍBLIA?

LUCIMARA — Não interessa, vamos, tem papel e lápis?

NOÉ — Que é isto?

LUCIMARA — Com quem estou falando, meu Deus? Ele não sabe também o que é isso. Pelo menos tem boa memória.

NOÉ — Ter eu tenho, mas ando esquecido, fale devagar que vou memorizar, sim.

LUCIMARA — Preparado, atenção: Trezentos côvados o comprimento da arca. O que é côvado? (Noé demonstra)

NOÉ — Trezentos côvados o comprimento da arca... Continue, (impaciente) por favor.

LUCIMARA — É de cinqüenta côvados a sua largura, e trinta côvados a sua altura. Aqui tá dizendo que: "Farás na arca uma janela de um côvado que acabará em cima". (pára de ler) Não entendi. (Noé demonstra e ela continua) "E a porta da arca porás ao seu lado," e farás na arca um andar embaixo, um segundo e um terceiro andar".

NOÉ — (pensando) Cinqüenta côvados a sua largura, trinta côvados a sua altura e uma única janela de um côvado que acabará em cima. E a porta da arca será ao seu lado, e no andar embaixo, um segundo e um terceiro andar... Com este tamanho será que vai dar para levar todos os bichos?

LUCIMARA — Se forem todos filhotes, bem pequenos dá, senão é realmente impossível, mesmo assim é barra. Como você agüentou? Perdão, vai agüentar conviver com essa bicharada por mais de um mês?

NOÉ — Tolerância e paciência é o que não me faltam. Mas que memória estupenda! Aqui entre nós, você anda ouvindo as minhas conversas. Confessa, agora é a tua vez.

LUCIMARA — Tá reclamando?

NOÉ — Não estou reclamando, Deus me livre, acredito no que vejo, é apenas uma curiosidade natural... Como conseguiu estes dados?

LUCIMARA — Estas medidas foram recebidas pelo sacerdote Utnapistim

NOÉ — Utnapistim? Não conheço. Ou conheço?.

LUCIMARA — Adorador do Deus EA, da trindade babilônica.

NOÉ — Sim, sim, claro ANU, EA, BEL, de onde mesmo?

LUCIMARA — Da Suméria. Ele deixou seus escritos gravados em tabuinhas.

NOÉ — Você disse deixou?

LUCIMARA — Deixou.

NOÉ — Ele registrou? Isto aconteceu? Estou vivendo no passado? Não pode ser, estou bem vivo, não morri e não caduquei.

LUCIMARA — É isso aí (se divertindo)!

NOÉ — Pensei... ter sido o único escolhido para esta tarefa. Que o resto dos homens seriam destruídos.

LUCIMARA — Não foram todos destruídos. (pausa). Sabe, outros sacerdotes também ouviram Júpiter mandar chover por ver a violência humana aumentar... o que não mudou nada até agora.

NOÉ — Não me diga! O susto não valeu?

LUCIMARA — E Deucalião fez uma arca com animais. Igual a você!

NOÉ — É!!!!

LUCIMARA — Muito decepcionado?

NOÉ — Não pode ser, só se houve mais alguma destruição divina?

Ouve-se um trovão

LUCIMARA — É melhor correr, pode acreditar, quando a meteorologia prevê que o tempo vai mudar, é porque vai mesmo. Corre Noé, que já vai chover. É o dilúvio chegando! (Noé desaparece ao ouvir o trovão e Lucimara acorda gritando — vendo Noé desaparecer, ainda meio dormindo) Noé! Noé! Essa é legal. Noé em pessoa, preciso falar mais com ele, onde está, volta velhinho, volta aqui, é brincadeira, não vai ter mais dilúvio nenhum. Noé, volta, volta Noé.Onde está você, Noé!!! Foi embora mesmo... (deita novamente e dorme)

 


 

TERCEIRO TEMPO

 

(Lucimara acorda repentinamente em sobressalto do sonho)

 

LUCIMARA — Será que vai chover?! Mas não tá com cara? Que pesadelo, nunca mais tomo cerveja e vinho na mesma noite! Mas sonhar com o velho Noé deve ser sinal de chuva, na certa, é chuva das grandes, inundação, toró. É melhor entrar. Ou será um aviso divino que os animais estão em perigo de vida? (olha o amigo que está dormindo na grama) Noélcio sai do chão animal, vai chover. Sai, levanta logo.

NOÉLCIO — Não acredito nisso, é real mesmo que você está me acordando desta maneira? Com este céu estrelado, Cruzeiro do Sul brilhando. Tá louca tá?

LUCIMARA — É que eu acabei de sonhar com o Noé?!

NOÉLCIO — E eu com isso, não conheço Noé.

LUCIMARA — Como não?

NOÉLCIO — Não fui apresentado, ou se fui não lembro, tinha tanta gente na festa, não vou lembrar de todos os nomes, não há registro na minha mente de nenhum Noé, preciso tomar fosfato urgente.

LUCIMARA — Vai ver que os neurônios que estavam com esta informação queimaram. Claro que conhece!

NOÉLCIO — Também, vem tanta gente, você faz tantos amigos, (debochando) com esse carisma todo. Ou é paixão nova? Confessa!

LUCIMARA — Tá com ciúmes? Não tenho nada para confessar não. É o da Bíblia, do dilúvio mundial. Da pomba.

NOÉLCIO — Que pomba?

LUCIMARA — Do arco-íris, depois do dilúvio que deu na Terra faz tempo.

NOÉLCIO — O da Arca? Cheia de bicho?

LUCIMARA — Exatamente.

NOÉLCIO — Viu algum bicho? (puxa o caderninho de notas)

LUCIMARA — Não!

NOÉLCIO — Cobra?

LUCIMARA — Não.

NOÉLCIO — Macaco?

LUCIMARA — Não.

NOÉLCIO — Jacaré?

LUCIMARA — Pára! Acho que tem torneira ligada, foi você? Tem mania de não desligar as torneiras. Sócio da SABESP? (trovão)

NOÉLCIO — Não, não sou, mas juro que queria ser. Ia te dar um iate de presente (brincando canta alegremente)

"Qual cisne branco em noite de lua
Vai deslizando no mar azul
O meu navio também flutua
nos verdes mares de norte a sul"

(trovão) Agora vai chover mesmo. Tomara que não seja chuva ácida, ouviu o estrondo?

LUCIMARA — Trovão mesmo, marinheiro!

(Os dois rindo recolhem as mantas do chão)

NOÉLCIO — Salvar primeiro mulheres e crianças!

LUCIMARA (de dentro da casa) — Noélcio, você dorme no sofá da sala?

NOÉLCIO — Não é o lugar que sempre dormi? A não ser que queira que eu vá pra porta de seu quarto, como um escravo sempre a sua disposição.

LUCIMARA — Não começa...sua barata tonta.

 


 

QUARTO TEMPO

 

Enquanto isso nos tempos bíblicos, Noé, em meio de bichos pra todos os lados, discute com a sua vizinha.

 

VIZINHA — Seu velho louco, nunca caiu água do céu, não é agora que isso vai acontecer. Da terra saem vapores que se transformam em água. Sempre foi assim.

NOÉ — Vai acontecer sim. Esta é a novidade, o imprevisível. A natureza muda, se acomoda, lentamente ela sofre alterações, e nós aqui sofremos...

VIZINHA — Se não é previsível, como é que você prevê? Adivinhação?

NOÉ — Não dá para explicar para uma descrente como você, que não acompanha o meu raciocínio, acho que é pedir demais para Deus!

VIZINHA — Ouvi direito? Está me chamando de burra? (slide e sons de burro)

NOÉ — (irônico) Não, foi uma voz que se manifestou.

VIZINHA — Agora é a toda hora, em todo lugar. Já percebeu? Que este Deus não te dá sossego? Só fala com você, ninguém mais ouve nada... está querendo que eu acredite nisso; este teu Deus é tímido por acaso? É gago?

NOÉ — Este é o seu engano. Sonhei que teve mais gente que ouviu o que eu ouvi. Um dia isto será provado.

VIZINHA — Prova você agora! Prova!

NOÉ — (abre a mão e mostra uma uva) Trouxe de lá. (aponta para o céu) U — v — a — s!

VIZINHA — O que é isto?

NOÉ — Não pediu provas? Mas não tenho nada que te dar satisfações. Vizinho não tem que se intrometer no que eu faço, Vizinha não é parenta (barulho de bicho).

VIZINHA — Desde que não me tire o sono com tanto barulho de bicho berrando a noite toda e marteladas o dia inteiro, fora o desmatamento pra fazer esta Arca. Um homem velho como você, com mulher, coitada que não tem boca para nada, com filhos...enlouquecer nesta idade! Noé!

NOÉ — Isto vai acabar logo, e quando as águas estiverem subindo pode pedir e implorar, não vou levar ninguém.

VIZINHA — Entrar nessa coisa, só com uma janela e uma porta?! Quem não quer sou eu! Doido, espalhando terror, está é com medo de dinossauro, de gigante, é isso. Eu não vou sair daqui, quero ver esta tua "agüinha". (Trovão)

NOÉ — O mundo vai acabar, só eu e os meus vamos viver.

VIZINHA — Claro! Só eu é que envelheço, fico doente... E ainda tenho que ser castigada por este teu Deus? Você não!? Pode fugir com as formigas, os passarinhos, as galinhas, tudo que é bichinho, fácil de controlar na tua idade...

NOÉ — Seiscentos anos apenas!!!

VIZINHA — Mas rinoceronte, gigante, brontossauro, tiranossauro, esses não interessam! Podem ficar todos pra morrer comigo não é? Não enxerga a incoerência?

NOÉ — Foi Deus quem mandou!

VIZINHA — Este teu Deus serve de desculpa para tudo. Na terra de onde eu vim isso tem outro nome: alucinação, esclerose, medo. Não vamos discutir.

NOÉ — Já que você me acha maluco, vou falar mais algumas coisas malucas até pra mim.

VIZINHA — Fala, que eu gosto de papo de doido.

NOÉ — Não sei qual é o mistério, mas no meu sonho, vi uma menina que me lembrou das medidas da Arca, que estavam num livro de um deus chamado de EA. (demonstra os côvados novamente). Ela era parecida com você! Até em sonho você me atormenta.

VIZNHA — (de repente, dispara a falar) Pode ser que as coisas sejam intercaladas, que futuro e presente sejam uma questão de conceito, que eu esteja aqui e em outro lugar ou em outra dimensão ao mesmo tempo, algo como ressonância; como eu ouvi seu papo com Deus, acho que vim do futuro, para te lembrar no presente, através de um mecanismo de rede mental invisível de átomos e partículas da atmosfera sensíveis à transmissão, que se conectam com todo o universo pelo intrincado caminho do cérebro, passando por janelas no hiper espaço. Partindo do princípio que há relatividade em todas as coisas e que o tempo não existe, as comunicações são projetadas por um signo sinal, aleatoriamente, de um único ponto criador, que retornam ao emissor enriquecidas. Você se conectou por acaso e assimilou a instrução.

NOÉ — Assim simples, assim? Continue...

VIZINHA — Esta janela deve sempre dizer a mesma coisa, com as mesmas mensagens de urgência. Então na hora em que vê é verdadeiro; já foi visto antes mas não é coisa do passado. A única coisa que me preocupa é o choque entre as dimensões e seus prováveis danos de ambos os lados. (retornando) — O que você acha disso?

NOÉ — É o primeiro raciocínio bom que vejo você fazer !

VIZINHA — (para si, rindo) Cantar pra louco dançar, é o meu destino?!

NOÉ — Se eu tiver razão, o que é que eu ganho?

VIZINHA — Nada. Estarei morta e comida pelos urubus que você não vai levar.

NOÉ — Vou levar corvo!

VIZINHA — Não se intimide, vá em frente Noé! Quer dizer que só você vai se salvar da enchente?

NOÉ — Eu, minha família, e todos os animais de médio porte.

VIZINHA — Tua mulher não tem medo de ser picada por uma cobra?

NOÉ — Pensei nisso, vou acomodar os bichos em gradeados e colocar todos para dormir, usando ervas que dão muito sono e tiram a fome, hibernação. Minha preocupação é que a minha mulher não suporta grilo cantando. Que você acha disso?

VIZINHA — Ô Noé, tem algum filho solteiro por aí?

NOÉ — Não. (saindo impaciente) Só me faltava ter você como nora!

VIZINHA — Até que me esforcei... Vou tentar pegar carona na outra barca.

NOÉ — (ouve-se somente a sua voz) Vire-se, vá à luta!

VIZINHA — Será que dá tempo de chegar na Suméria? Louco volta e meia tem razão...

(Trovões, grilos e vaga-lumes ao mesmo tempo para todos os lados.)

 


 

QUINTO TEMPO

 

NOÉLCIO — (procurando a amiga) Lucimara você parece alma penada, andando de um lado pro outro. Não dá pra dormir, quanto mais sonhar, e eu que vim pra tentar descansar.

LUCIMARA — É que você não é igual a mim, Noélcio, que durmo em céu aberto, no tempo, na maior. Os animais que dormem no tempo são os mais ferozes.

(Ronco de motocicleta)

NOÉLCIO — Que medo, nossa! E eu? Estava dormindo aonde? Quem me acordou?

LUCIMARA — Tem razão, tenho mania de achar que tudo só acontece pra mim. Acho que vai chover!

NOÉLCIO — Não vai não, pára com isso, desencana; é trauma infantil?! Embalo, o que é? A festa foi boa, menina!

LUCIMARA — Você acredita que o mundo já acabou em água?

NOÉLCIO — Se já acabou, não fez muito estrago, e eu nem percebi. Pensa, se tivesse acabado o que estaríamos fazendo aqui? Somos fantasmas por acaso? Você não tá vendo muito filme de extra-terrestre?

LUCIMARA — É que eu sonhei com Noé, aquele da Gênese, se fosse religiosa até acharia normal, mas logo eu! Isso não tá certo, tá?

NOÉLCIO — Sabe, o mistério vem de longe. O avô de Noé, quando saiu do planeta Terra foi levado por enormes naves, chamava-se Enoque. Era com certeza um extra-terrestre autêntico!

LUCIMARA — Cada um tem o amigo que merece. Não brinca comigo! Pára de tirar sarro, leva a sério um pouco.

NOÉLCIO — É verdade, tinha uma espaço-nave perto de Saturno, que de comprimento vai daqui até o Rio de Janeiro, pegue a Bíblia! Troque as palavras de nuvem por nave — Anjo por Ser, vai ver o que dá!

LUCIMARA — Você acha que ela ainda está lá? A NASA deveria saber disso. Você tá com febre, dormiu perto da fogueira, faz mal. Este papo é furado mesmo.

NOÉLCIO — Quem falou com Noé foi você! (bem humorado) Sua doida de pedra. Querida, eu sou racional, uso a cabeça. Participei da morte de Deus.

LUCIMARA — Foi?

NOÉLCIO — "Zaratruzta", de Nietshe, já leu?

LUCIMARA — "Se Deus morreu vou buscar outro no Piauí!" Oswald de Andrade. Tá! Aposto que o ufólogo aí não leu!

NOÉLCIO — Ufologia é uma ciência.

LUCIMARA — E quem falou do avô dele foi você. Já que não vai chover, vamos apagar a fogueira.

NOÉLCIO — (como quem não ouve) Soube que está tendo um enorme incêndio no Amazonas?

LUCIMARA — É, tô com medo (debochando), vai ver que o mundo vai acabar em fogo desta vez. Vou odiar ver queimar meu computador.

NOÉLCIO — Índio morrendo queimado e a sua preocupação é esta?

LUCIMARA — Índio só não, e as árvores? Vai faltar papel. Eu escrevo em tela de computador, uso o mínimo de papel. Consciência ecológica, meu caro! Você por acaso se importa com os índios, desde quando?

NOÉLCIO — Você é doidinha mesmo, andando enviesada no tempo.

LUCIMARA — Foi você quem falou em extra-terrestre, e se está preocupado com o incêndio na floresta porque não vai lá apagar?

NOÉLCIO — Querida, o incêndio de lá é devido à seca, percebe, tudo pega fogo sozinho.

LUCIMARA — Garimpeiro, madeireiro e índio não põem fogo não? (zangada)

NOÉLCIO — Quer casar comigo, antes que o mundo acabe?

LUCIMARA — Casar, como, se nem namorados somos! E a doida sou eu é?

NOÉLCIO — Gosto de você, é tudo que quero agora, acabe o mundo ou não, promete que vai levar a sério, promete?

LUCIMARA — Não falei, não falei...

NOÉLCIO — Não! Eu quero ficar com você.

LUCIMARA — É?! Daqui a quantos anos benzinho... Leva a sério um pouco, o mundo já acabou em água, agora vai acabar em fogo!

NOÉLCIO — Que garota difícil. Tem chance de acabar em terremoto, tá cheio de terremotos por aí.

LUCIMARA — Pode ser os dois, fogo e terremoto. Soube que tem vulcão no fundo do oceano, e que existe uma rachadura bem grande no mar, do Atlântico ao Pacífico, assim ó (demonstra) dá a volta no planeta.

NOÉLCIO — Pode até já estar acabando e a gente não viu, será que já morremos? Somos os novos Adão e Eva? Disse o Senhor: "crescei e multiplicai". Adoro este mandamento!

LUCIMARA — Pára, Noélcio, pára!

NOÉLCIO — Só tô pensando, minha cabeça não pára de pensar, tá até esquentando, dando nó.

LUCIMARA — Eu sei, o lado esquerdo brigando com o direito.

NOÉLCIO — Os dois nunca se entendem, é um inferno; e os neurônios?

LUCIMARA — É verdade, neurônio pra mim é kamikaze, suicida diário, e tem outros neurônios que estão na boa, dormindo, que pensam que a cabeça da gente é hotel. Além de tudo estas ameaças divinas, não se tem sossego mesmo, quando a gente pensa que vai melhorar, piora, não entendo. Ô, sabe tudo de plantão?!

NOÉLCIO — O quê?

LUCIMARA — Pode explicar? (Joga terra na fogueira e pisa em cima, saindo os dois com os tênis sujo de cinza)

NOÉLCIO — É que Deus não tem coerência, falta lógica, desisti de entender, ele só faz o que quer, não deve satisfações a ninguém, besteira se revoltar, ou desafiar, é punk paca. O cara cria minhoca sem perna, aí em seguida cria outro bicho igualzinho só que com cem pernas, pra variar; só pode ser do time da Coruja Branca, cujo o lema é: "quanto pior melhor", sacou?

LUCIMARA — Não, explica!

(Noélcio fala mais devagar e sedutoramente)

NOÉLCIO — É doido, o cara faz o mundo, depois desfaz, e faz outra vez. Parece sofrer de crise perpétua de perfeição, às vezes fico pensando se Deus é Deus mesmo ou não é nada; é pirante, entendeu?

LUCIMARA — Não, explica! Não entendi mesmo, se Deus não é Deus então é o quê?

(Noélcio chega mais perto)

NOÉLCIO — Boa pergunta, Deus é doido, faz o mundo, depois desfaz, e faz outra vez. Parece sofrer de crise perpétua de perfeição, às vezes fico pensando qual é a do cara; até fez da costela de Adão a mulher... É lindo mas é pirante, entendeu?

LUCIMARA — Não, explica!

(Noélcio cada vez mais paciente, pega uma maçã da fruteira)

NOÉLCIO — Boa pergunta, Deus é doido, faz o mundo, depois desfaz, e faz outra vez. Parece sofrer de crise perpétua de perfeição, às vezes fico pensando qual é a do cara; como foi criar a árvore do paraíso, a serpente... É louco, entendeu?

LUCIMARA — Não, explica!

(Noélcio beijando Lucimara...)

"O balão vai subindo
vai caindo a garoa
A noite é tão linda
A festa é tão boa

São João, São João
acende a fogueira
do meu coração...

(Desaparecem aos poucos no jardim, e um único foco de luz permanece na fogueira)

... o balão vai subindo
vai caindo a garoa
A noite é tão linda
A festa é tão boa

São João, São João
acende a fogueira
do meu coração".

F I M


 

BREVE HISTÓRICO DE ANA VITÓRIA

 

Nasci em 2/2/45. Devido à vitória dos aliados na guerra recebi o nome de VITÓRIA, na cidade de São Carlos. Aos 5 anos junto com minha a família vim para São Paulo e aqui permaneci, estudando piano, fazendo os estudos primários e secundários no bairro da Penha, FUI trabalhar no jornal da Penha onde tinha uma coluna para jovens, FUI para a Radio Marconi, casei com o radialista e jornalista Gil Gomes, indo morar no Jardim da Saúde. Tivemos três filhos, estudei astrologia, pintura e tapeçaria espanhola. 14 anos depois nos separamos. Estudei então acupuntura, shiatsu, doin e parapsicologia, abrindo a Clínica Vitalista Pára Celsus como terapeuta acupunturista. Recomecei a escrever editando jornais alternativos, participei de movimentos de Ecologia, de preservação animal e vegetal, dei palestras por todo o Brasil.

Tornei a me relacionar amorosamente, encontrei Marcos um quiromancista inigualável que depois de dois anos, se matou por saber ser portador de uma doença incurável.

Fechei o consultório depois de 12 anos e FUI em busca de realizar meu sonho.

Ser escritora.

Mudei de casa, mudei de vida, mudei de calendário passei a me reger pelo calendário Maia. Formei um grupo de estudos xamanicos somente com artistas. Compus poesias e músicas.

No entanto meu filho primogênito Guilherme Gil Gomes, depois de perder sua filha de incompetência médica na hora do nascimento, algum tempo depois, veio a falecer prematuramente de hepatite C depois de anos de luta contra este grande mal que o atormentou nos últimos anos de vida sem cura.

Daniel entrou para a faculdade de direito e se casou, deu-me três netas se tornou pastor da Igreja Renascer

Vilma se formou advogada abriu escritório e casou e veio morar comigo.

Entrei para o mundo VIRTUAL, criei um saite e passei a responder milhares de e-mails por dia, descobri um novo mundo de muitas janelas.

Embalada por impulsos interiores tive a loucura de não desistir até que meu sonho virasse realidade! Escrevi para TEATRO as peças — O DISCO SOLAR — CHICO MENDES e o ENCANTADO — BRASIL OUTROS 500 — A VIZINHA de NOÉ — E outros textos inédito — MÃE da MINHA MÃE — PRATOS LIMPOS — FOGO ETERNO — CASACO DE ANTÌLOPE — monólogo FENIX

Minha história e nem as historias que escrevo ainda não acabaram pois a vida que vivo continua no mundo material no mundo teatral e no mundo virtual, apesar de que os que amei terem se transferido para o no mundo espiritual.

FUI

 


 

© 2000,2006 — Ana Vitória Vieira Monteiro
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__________________
Setembro 2000

 

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Abril 2006

 

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