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eBookLibris

Vera Siqueira

MIMINHA E O CURURU



—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Miminha e o Cururu
Vera Siqueira

Edição
Ridendo Castigat Mores
Fonte Digital
http://www.jahr.org
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia
(1947-2002)

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

© 2000 — Vera Maria Ferraz de Siqueira
Todos os direitos reservados


 

A AUTORA

 

Minha cidade natal chama-se Serra Negra, no interior do Estado de São Paulo, muito conhecida pelas suas águas, das mais radioativas do Brasil. Aí eu morei num casarão do Largo da Matriz. A chave da porta era enorme. E eu ficava imaginando que a chave de São Pedro deveria ser daquele tamanho... Nos fundos do casarão tinha um quintal, onde até passava um rio. E o que eu brincava, tanto no quintal quanto no Largo, nem pode ser descrito: correrias, esconde-esconde, acusado...

Minha mãe e minhas tias eram grandes contadeiras de estórias. Eu adorava ouvi-las e pensava: “Um dia ainda vou inventar as minhas também”.

Dito e feito. Cresci, morei em várias cidades do interior, fiz Magistério, estudei na USP, onde me graduei e pós-graduei, sempre escrevendo estórias, a maioria delas até hoje guardadas na gaveta.

Mãe sete vezes, é claro que minhas crianças ouviram quase todas, principalmente à hora de dormir. Mesmo agora, estando elas já criadas e crescidas, ainda invento estórias. Misturo lembranças de minha infância com fatos ocorridos em outros lugares e casos que ouço contar. Como me interesso muito pelo nosso Folclore (cultura popular, você sabe), sempre coloco alguma coisa dele no que escrevo.

Vera Siqueira
(1927-1988)


 

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Menção honrosa no Prêmio Governador do Estado
1973


 

O sapo da lagoa

 

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Era uma vez um sapo.

Um sapo feio e triste que morava numa lagoa.

Ele sabia que era feio porque a lagoa era seu espelho. Mas não se importava com isso.

De dia ficava por ali, coaxando, comendo bichinhos. E à noite, ah! então é que se sentia feliz. À noite ele via a lua. Saía para a beirada da lagoa e ficava olhando. Lá estava ela: tão linda, naquelas alturas! Toda branca, contrastando com o céu escuro. Ele olhava tanto para ela que seus olhos estavam ficando maiores e mais saltados. Parecia que, a qualquer momento, eles iam se desprender e subir.

No quarto minguante, o sapo ficava triste, vendo a lua magrinha. Todo preocupado, dizia de si para consigo:

— Será que ela está doente? Ou estão maltratando a pobrezinha...

Na lua cheia, ele exultava:

— Agora, sim, ela está forte e bonita.

E ficava olhando, olhando, deslumbrado.

Em resumo: o sapo era apaixonado pela lua.

Um belo dia, ou melhor, uma bela noite, ele pensou:

“Assim não posso continuar: só olhando de longe para ela, só a vendo refletida na lagoa.”

Esperou amanhecer. A lua foi embora, o sol apareceu, como uma imensa bola de fogo.

Então, o sapo saiu da lagoa, pulando, pulando.

Bem-te-vi! gritou um passarinho que morava numa árvore ali por perto.


 

Corrupaco papaco

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Depois de muito pular, eis que o sapo encontrou o que queria: o papagaio no seu poleiro, perto da casa da chácara. (Esqueci de contar que a lagoa ficava numa chácara e que os donos moravam numa casa tão bonitinha que dava gosto ver.)

— Corrupaco, papaco.

O papagaio, todo orgulhoso na sua roupa verde amarela, nem viu o pobre sapo.

Este pigarreou e foi notado: — O que você veio fazer aqui? Não mora na lagoa?

— Moro, mas vim por sua causa. Preciso pedir um conselho.

— Mas, por que para mim? Acho que bateu em porta errada. Veja: Pingo, o cachorro, é muito mais inteligente e o boi Garrido tem fama de filósofo. Por que eu?

A boca do sapo ficou maior ainda, toda aberta num sorriso:

— Porque você fala. Fala como os homens e isso é maravilhoso.

— Dizem que eu falo mas não penso. Não vê que os homens usam o verbo “papaguear” quando querem dizer que alguém fala por falar, sem saber o que diz?

— Não importa. Eu preciso de alguém que fale, para dar um recado a uma pessoa.

O papagaio desandou a rir:

— Corrupaco-paco! É um recado para a lua? Todos aqui na chácara sabem que você é apaixonado por ela.

O sapo ficou sério:

— Eu falei “pessoa” e a lua não é pessoa.

O papagaio ficou curioso:

— Quem é?

— Miminha. Você conhece Miminha?

— Claro, é a minha dona. O Pingo também é dela e para falar a verdade, é a dona de tudo aqui.

— Pois é, respondeu o sapo. Quero que ela me dê um conselho. Você pergunte a ela como posso fazer para me comunicar com a lua.

O papagaio riu de novo.

— Já vem você com essa mania de lua. Eu posso dar o recado. Mas, você mesmo pode falar com ela.

— Não tenho fala de gente, gemeu o sapo.

— Não faz mal. Miminha entende. Sabe, há algumas pessoas — é verdade que poucas — que conseguem entender a voz das coisas e dos animais. Miminha é uma delas.

Os olhos verdes de Miminha se movimentaram. Tem sapo por aqui — gritou a menina. E toca a procurá-lo.

Remexeu nos canteiros, espiou nos arbustos, procurou na moita de begônias. Nada. Por fim, descobriu o nosso amigo sobre uma pedra.

— Olhe o danado, onde foi ficar. Confundiu-se com a pedra. É um sapo tão simpático! Sabe, eu sempre quis ter um sapo. Vou adotar você. Quer?

— Quero. Posso vir todos os dias. Fico aqui na minha pedra, devoro os bichinhos que estragam suas plantas, converso com você. Mas, de noite, vou para a lagoa. Você sabe, eu preciso olhar a lua.

— Você é um sapo romântico. Diferente de um de uma estória que eu sei. Aquele, invejava um boi. Queria ficar do tamanho dele. E tanto inchou que arrebentou.

— Eu já não sou deste tipo, Miminha. Estou contente com o meu tamanho. Também com o lugar onde moro. A lagoa é para mim, um mundo. Mas... o que eu quero é impossível.

— Conte, Cururu, conte o que é. Estou morrendo de curiosidade.

Ele hesitou, ficou meio encabulado, por fim falou:

— Eu quero mandar um bilhete para a lua. Quero convidá-la para vir passar uns dias aqui.

Miminha ficou boquiaberta e só não riu porque tinha o coração gentil e não sabia caçoar de ninguém. Muito menos de um pobre sapo.

Bem-te-vi! — gritou o passarinho que havia seguido o sapo e gostava de arreliá-lo.


 

A voz das coisas e dos bichos

 

Miminha pensou um pouco e começou a falar:

— Olhe, sapo, dizem que eu sou aérea, que vivo no mundo da lua. Mas você ganhou de mim. Eu nunca pensaria numa coisa dessas.

— Pode ser. Além de tudo, sou teimoso. Quando ponho uma idéia na cabeça, ninguém tira. Cismei de mandar um bilhete para a lua. Quero que ela venha. E como a lagoa é triste e fria, vou mandar fazer uma casa para hospedá-la.

Desta vez Miminha não se conteve e riu:

— Então você pensa que a lua é essa bola pequena que você vê lá no alto? Ela parece pequena porque está muito longe de nós. Mas é bem grande!

O sapo fingiu que não ouviu. Ele só ouvia o que lhe interessava.

Miminha continuou:

— Sabe, agora os homens estão chegando até a lua. Eles se vestem com lindas roupas cor de prata, entram em foguetes e... pronto! Vão para lá.

Esta parte da conversa interessou ao sapo. Ele arregalou ainda mais os olhos:

— Que bom! Assim eu posso mandar meu bilhete à lua.

Miminha tentou desiludi-lo:

— É tão longe o lugar donde partem esses homens da roupa de prata. Milhas e milhas e mar que não tem fim.

— Não faz mal, a gente dá um jeito.

— Gente? Você é gente?

— Modo de dizer. Mas, escute. Eu estou sendo egoísta e mal educado. Até agora, só falei de mim, do meu caso, do meu problema. E você? Conte alguma coisa de você. Como é que entende a voz dos animais e das coisas?

— Sabe, Cururu, eu fui cega por algum tempo. Vivi numa noite escura e então aprendi a ouvir e a sentir. E quando voltei a ver de novo, achei tudo tão belo! As cores, as formas! É que a gente acostuma e não dá mais valor. O céu, as árvores, as flores, o rio — tudo é tão lindo. E as pessoas, diferentes umas das outras.

— E a lua, completou o sapo, voltando à sua idéia fixa.

— Também. Mas, ela está muito longe. Sabe, eu aprendi também, durante esse tempo, a pensar nos outros.

— Como assim, Miminha?

— É, pensei nas outras pessoas, nas outras crianças. Nas que não são felizes, nas que têm fome, nas que não sabem ler nem escrever.

— E o que você tem com isso?

A esta altura, Miminha perdeu a paciência:

— Tenho muito. Não sou um sapo egoísta que tem por mundo a lagoa e só vive pensando na lua.


 

Miminha

 

O sapo agradeceu e deixou o papagaio cantarolando:

— Corrupaco, papaco. Dá o pé, louro!

Papagaio real de Portugal!

Foi pulando, pulando e entrou no jardim da casa de Miminha.

Para não perder tempo, começou a comer uns bichinhos que estragavam as plantas.

Depois, ficou olhando a casa. Tão bonitinha, de telhado e venezianas vermelhas, com um terraço rodeando-a. E o terraço cheio de trepadeiras. Perto da porta, vasos de gerânios vermelhos. De dentro da casa vinha um cheiro de café coado na hora.

Nisto uma voz de mãe, meio zangada, meio brincalhona:

— Que menina! Vive no mundo da lua!

O sapo quase rebentou de contentamento. Mundo da lua! Então Miminha iria compreender o seu caso, com toda certeza.

A menina saiu para o jardinzinho, sentou-se na escada. O vento atrapalhava seu cabelo comprido.

— Quac, quac — coaxou o sapo.

— Eu sou um sapo poeta.

— É, mas os poetas também podem se preocupar com os outros e, com a sua poesia, ajudar alguém.

— Eu quero saber é de mandar um bilhete à lua.

Miminha já estava brava. Deu de ombros:

— Sapo alienado!

Ele coaxou:

— Que palavra bonita! Mas não sei o que é.

— Procure no dicionário, ora esta! E foi embora.


 

Eureka

 

— Bem-te-vi! O passarinho caçoista estava gozando com essa cena.

O sapo ficou encabulado. Não queria perder sua amiga. Afinal, Miminha era uma menina inteligente, lia muito, era ótima aliada.

Ele voltou pulando para a lagoa. No caminho, o papagaio o saudou:

— Corrupaco, papaco! Já voltou? Como foi a conversa?

— No começo, tudo bem. Miminha me pareceu inteligente, entendida. Depois, descombinamos.

— Por quê? O que houve?

— Porque eu disse que não me preocupava com os problemas dos outros.

— É. Miminha não deve ter gostado. Eu sei como ela é.

O sapo mudou de assunto.

— Vou indo. Está anoitecendo, vê? Daqui um pouco a lua aparece lá no céu. Linda. Como uma rainha, toda vestida de branco, com as estrelas, que são suas princesas.

O papagaio riu:

— Corrupaco, papaco! Sapo poeta é o que você é.

Ele continuou pulando e pensando:

— Havia de mandar um bilhete à lua. Pois Miminha não disse que os homens de roupa prateada chegavam até ela? Sim, devia haver um jeito de mandar um bilhete. Iria pensar, pensar...

Chegou na lagoa e ficou pensando, enquanto contemplava a sua amada.

De repente, coaxou mais alto. Se soubesse falar uma palavra grega, gritaria “eureka” que quer dizer: achei!


 

No pombal

 

No dia seguinte, cedinho, saiu da lagoa, com seu jeitão desengonçado e foi pulando até o pombal.

As pombas já iam saindo das suas casinhas, para longas revoadas. Brancas, cinzentas, batendo as asas, fazendo um barulhinho no ar.

— Quac, quac. Bom dia, coaxou o sapo. As pombas se assustaram com aquela feiura toda. Ele percebeu, mas não se deu por vencido. Era teimoso.

— O que você quer? — conseguiu falar, toda trêmula, uma tímida pombinha branca.

— Olhem, não tenham medo. Sou um sapo de boa paz. Trouxe uns bichinhos para vocês comerem. Dá um bom almoço, olhem.

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A pombinha tímida se aproximou e ficou mais animada, vendo um pequeno cesto cheio de bichinhos.

Levou a provisão para dentro do pombal e esperou que o feio visitante falasse.

— Eu preciso conversar já com o sr. Pombo-Correio.

A pombinha ficou espantada:

— Ele é ocupadíssimo. Só atende com hora marcada. Eu sou a secretária dele.

— É um sujeito de gosto, disse o sapo, galanteando. Tem uma secretária tão linda!

A pombinha ficou sem graça. Era tímida. Mas, arrancou uma pena da asa e escreveu no livro de assentamentos: meio-dia.

— Paciência, eu espero. Preciso mesmo falar com ele.

Sentou-se ali por perto e aguardou um tempão, até que passaram umas crianças cantando:

Meio-dia
Macaco assobia
Panela no fogo
Barriga vazia.

Foi assim que o sapo conseguiu saber que estava na hora. Ouviu um barulho de asas e eis que o sr. Pombo-Correio, todo impertigado, compareceu para a entrevista.

Depois das saudações de costume, o sapo foi falando que achava admirável o sentido de orientação do pombo-correio, que as andorinhas tinham, também, mas que não eram capazes de levar bilhetes.

O pombo, vendo-se elogiado na sua profissão, ficou todo vaidoso e disse que sim, que conhecia todos os caminhos, que levava bilhetes para toda parte.

O sapo explicou que o lugar era longe; tinha que atravessar o mar e chegar até uns homens de roupa prateada. Miminha daria as indicações certas, escreveria um bilhete e ... pronto!


 

O bilhete

 

O sapo voltou à lagoa, embalando o seu sonho. Mandaria, afinal, um bilhete à sua amada. E como era poeta, começou a redigir, na cabeça, em versos, uma cartinha em que falaria do seu amor à distância, em que a convidaria para sair de suas alturas e descer até a lagoa. Ele mandaria fazer uma casinha linda para ela.

Assim pensando, foi até o jardim de Miminha. Precisava fazer as pazes com a menina, pois dela dependiam tantas coisas!

Miminha estava sentada na escada que saía do terraço e dava para o jardim. Estava costurando um vestido branco, cor da lua.

Então Miminha picou o dedo com a agulha e começou sair sangue.

O sapo colheu uma pétala de rosa, pegou a peninha da asa da pomba secretária e pediu à menina:

— Miminha, por favor, escreve com esta pena molhada em sangue, um bilhete para a lua. Ela ficará impressionada.

O sapo foi ditando, a menina foi escrevendo. Ela não podia deixar de sorrir vendo o romantismo do sapo. Por fim foi para dentro e voltou com um envelope azul, no qual colocou o bilhete. Trouxe também uma fitinha, para amarrar o envelope (com o endereço, é claro) no pescoço do pombo-correio.

— Pronto! Fiz tudo o que você pediu, porque gosto de ajudar os outros e vi que você precisava de mim. Mas quero saber quais os seus planos, depois que mandar este bilhete.

— Já planejei tudo. Apesar de ser poeta, sou um sapo organizado. Vou mandar fazer uma casa para hospedar a lua. Providenciarei também a mobília, tudo bonitinho e em ordem.

Miminha duvidou dos planos do sapo.

— Não creio que você consiga.

— Quer vir comigo? Já vou tomar as providências. Você verá.

A menina largou a costura. O sapo foi pulando, com certo cuidado, pois levava consigo o precioso envelope.


 

Um bom engenheiro

 

Pula que pula, chegaram perto de uma árvore.

Miminha olhou e não viu nada de mais. Uma árvore igual às outras.

Mas o sapo começou a coaxar e logo apareceu um passarinho.

O sapo fez uma reverência e apresentou:

— Miminha, uma amiga.

— O Doutor João de Barro.

O passarinho acomodou os óculos no nariz:

— Prazer. Às suas ordens.

O sapo foi falando:

— Olhe Miminha, este é o melhor engenheiro civil entre a bicharada. Como é de muita ação, projeta e constrói ele mesmo. É de uma atividade!

O João-de-barro, modesto e satisfeito, apontou com o bico para a árvore:

— Olhe lá. É a minha casa.

Miminha reparou e viu um primor de casa, com porta e tudo.

Ele continuou: uso o barro como material. E faço questão de localizar a casa em boa face, em relação ao sol e ao vento.

A menina estava admirada com aquela sabedoria que dava resultados práticos.

O sapo pigarreou:

— O senhor aceita serviços?

— Estou aqui para servi-lo.

— Pois eu preciso de uma casa. Por hoje, só queria saber se podia contar com seus bons préstimos. Logo mais virei procurá-lo para os detalhes.

(Este sapo está me saindo tão pedante — pensou a menina.) Despediu-se do eficiente engenheiro, refletindo que ele era uma ótima relação. Ela também poderia precisar dele um dia. Por que não? Com uns planos que tinha na cabeça...


 

Na oficina do marceneiro

Continuaram a caminhar. Ele, pula-pulando; ela, no seu passinho catita de menina bonita.

Miminha não pode deixar de elogiar o Dr. João de Barro para o sapo:

— Sujeito formidável aquele seu conhecido. Ativo, caprichoso.

— Meus amigos são todos assim. Você vai, agora, conhecer o outro. Mas este, mora mais longe. Temos de entrar naquele pequeno bosque, adiante do rio.

— Vamos.

Já estavam no meio do bosque, quando Miminha começou a ouvir um barulho desconhecido. Aguçou os ouvidos.

O sapo explicou:

— Estamos perto. Esse ruído faz parte da profissão do meu amigo.

De fato, um passarinho simpático logo se adiantou.

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— Sejam benvindos, o meu amigo sapo e a sua amiguinha.

— Não queremos atrapalhar seu serviço, senhor Pica-pau.

Ele coçou a cabeça e disse: Isto de ser marceneiro é muito bom, muito bonito, mas é um trabalhão. É encomenda que não acaba mais.

— Mas haverá um tempinho para um trabalho a mais, não é? Vou precisar do senhor. Ele balançou a cabeça, pensou e acabou concordando.

— Sempre se arranja tempo para servir os amigos.

O sapo ficou todo inchado de orgulho:

— Pois bem. Voltarei no tempo oportuno para encomendar, madeiramento e uns móveis.

Assumiu um ar todo misterioso, ao despedir-se. Já iam se afastando, quando o pica-pau gritou:

— Se forem pela esquerda devagarinho, sem fazer barulho, poderão apreciar um espetáculo maravilhoso.

O sapo abriu a bocarra para pedir explicações, mas o passarinho já tinha voltado ao serviço.


 

Uma dança diferente

 

Se Miminha era curiosa, o sapo era mais ainda. Assim, de comum acordo, seguiram devagarinho, pela esquerda.

— Veja se não faz tanto barulho para pular, pediu a menina.

— E você, fale mais baixo.

De repente, o sapo estacou e fez sinal para que a pequena se escondesse. Cochichou no ouvido dela: — Já sei do que se trata. A senhorita Tangará vai, hoje, escolher um pretendente, entre os muitos que tem. Eles dançam; cada qual quer se sair melhor, para ser o escolhido. Olhe lá.

Miminha olhou e viu numa clareira, a senhorita Tangará, muito elegante, no seu traje esverdeado. Os pretendentes estavam em fila, muito garbosos na sua plumagem azul, vermelha e preta. Começou a dança dos tangarás. Passos estudados, meneios de asas, cabeças, virando para cá e para lá. A senhorita casadoura atenta, a observar as evoluções. Uma verdadeira dança.

A voz do sapo tirou Miminha do seu encantamento:

— Vamos; preciso chegar antes da noite. Tenho encontro com a lua.

A menina retirou-se, aborrecida. Estava tão linda a dança!

— Ainda bem que eu não preciso dançar para conquistar a lua, caçoou o sapo para distrair a pequena.


 

Uma louca aventura

 

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Miminha estava assustada; nem podia crer.

Como? Então, o sapo resolveu não mandar bilhete nenhum? Sem a consultar, achou que era melhor ir ele mesmo. Foi pulando, pulos enormes, verdadeiros saltos mortais até chegar no mar. Um peixe imenso, do tamanho de uma casa, ofereceu-se para transportá-lo. Montou no lombo escamado, improvisou umas rédeas e “cavalgou” sobre as ondas. Havia vagalhões enormes e o sapo se agarrava ao peixe, correndo cada vez mais. Depois da perigosa viagem, chegou a um país estranho, onde falavam uma língua esquisita, diferente da de Miminha e da do papagaio.

Uma sombra, de repente, escureceu o sol. Ele olhou. Era uma ave imensa.

— Quer me levar? — pediu. Preciso ir até uns homens de roupa prateada que vão entrar num foguete, para alcançar a lua.

— Vamos, disse o pássaro. Suba no meu pescoço. Voaram, voaram. O sapo, acostumado com a vidinha pacata da lagoa, não se aguentava de cansado. O mar, o lombo do peixe gigante. Agora, os ares, nas costas do pássaro monstro. Era demais para um pobre sapo!

— Preciso voar com maior velocidade — gritou o pássaro. O foguete vai partir logo mais. Você vai perder a condução!

— Mais depressa, por favor, implorava o sapo. Se eu não for agora ver a lua, depois será difícil. Corre! Corre!

Por fim chegaram. Os homens da roupa de prata já iam entrando na nave.

Todo mundo parou para ver a ave gigantesca e o sapo aproveitou a ocasião e deu um pulo para dentro da cabine.

Encolheu-se, bem disfarçado e ali ficou quieto, exausto. Dormiu. Os astronautas se trancaram na nave e começou a viagem espacial, numa velocidade louca, muito maior que a do pássaro monstro. Os homens manejavam complicados aparelhos.

Saíram da terra. E então, sem a força de gravidade, o sapo começou a flutuar na cabina.

Os astronautas levaram um susto danado e pelo rádio avisaram a terra de que alguma coisa estava errada.

Miminha deu um grito e acordou, mas, depois, lembrando o estranho sonho, não podia deixar de rir do sapo flutuando na cabina...


 

Bem-te-vi

 

Enquanto ela sonhava, o sapo estava na beira da lagoa, olhando a lua. Como estava clara a noite, ele resolveu reler o bilhete que Miminha escreveu. Para seu desespero, não o achou. Onde estaria o pequeno envelope azul? Procura daqui, dali, e nada!

Desesperado, Cururu resolveu percorrer novamente os lugares por onde passara. A caminhada era longa e precisaria entrar no bosque.

Deixaria para amanhã? À luz do dia, tudo é mais fácil. Mas, seria perder tempo. Em algumas horas, muita coisa pode acontecer. E se providenciasse outro bilhete? Não daria certo: Miminha iria censurá-lo, chamá-lo descuidado, desorganizado, e não sei mais o quê. Além disso, não é todo dia que se consegue um bilhete escrito com sangue do dedo de uma menina bonita. O melhor era, mesmo, partir sem perda de tempo. Olhou longamente para a lua tão branca, tão linda, lá no alto. Pegou dois vagalumes, para lanterninhas. Acendeu-os bem e foi pulando. Percorreu os mesmos lugares. Foi até a árvore do joão-de-barro, depois entrou no bosque, sempre procurando. Aproximou-se da árvore que o pica-pau estava serrando, quer dizer, da oficina do pássaro marceneiro. Nada! Tudo dormindo, em silêncio e escuridão.

Foi voltando, então para o lugar onde se realizou o baile dos tangarás. Procura que procura, com as lanterninhas bem acesas. Nem sinal! O dia ia clareando e os galos, que são os bichos despertadores, começaram a cantar:

— Cocoricó!

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— Cocoricó!

E o passarinho que diz: "Maria é dia" se fez ouvir, avisando a todas as Marias que é hora de começar o trabalho.

Então, bem no ouvido do sapo soou aquela falinha que o irritava e pela qual tinha a mais solene birra:

— Bem-te-vi!

Ele ficou danado:

— Diga, diga logo, o que é que você viu? Não conheço outro bicho mais novidadeiro.

O passarinho assumiu uns ares misteriosos:

— Pois eu vi um envelope azul, com fitinha.

O sapo gelou. Seria possível? O melhor, agora, era mudar de tática e agradar o passarinho:

— Pois olhe só! É isso mesmo que eu estou procurando, desde ontem à noite. Onde é que você viu o meu bilhete? Sabe, é muito importante para mim. Imagine você que é a cartinha que eu vou mandar à lua.

— Não quero saber de lua nem de meia-lua. Eu só digo onde está o envelope se você me ajudar a soltar da gaiola um amigo meu que o menino mau prendeu.


 

Pássaro preso

 

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O sapo não gostou muito da estória. Era egoísta, só se interessava por si mesmo e em resolver o seu problema. Entretanto, se não se dispusesse a agir, adeus bilhete. Conformou-se e disse:

— Está bem. Ajudo. Onde é que mora o menino mau?

— Lá em cima, naquela casinha branca, vê? É o terror da bicharada: prende passarinhos, amarra lata nos rabos dos cachorros, judia dos burros. Com os sapos, nem conto o que ele faz. Se você souber, não vai libertar o meu amigo.

O sapo engoliu em seco:

— Está bem. Vou dar um jeito. Procure-me amanhã, a esta mesma hora.

O passarinho saiu voando:

— Bem-te-vi! Bem-te-vi!

Então o sapo foi à oficina do pica-pau e com toda sua lábia convenceu-o a acompanhá-lo. A princípio, o marceneiro relutou: tinha um mundo de trabalho, encomendas para serem entregues com dia marcado, compromissos sérios. Mas o sapo tanto pediu que ele acabou cedendo. Deixou um aprendiz em seu lugar e lá se foram os dois: o sapo por terra, aos pulos; o passarinho no ar, em vôo baixo e lento, para poder acompanhar seu vagaroso amigo.

Quando iam se aproximando da casinha do menino mau, o sapo tratou de tomar suas precauções. Afinal de contas, não iria expor sua vida assim, sem mais nem menos. Sabia lá o que o garoto podia fazer com ele?

O pica-pau estava apressado. Não podia perder tempo:

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— Diga logo o que tenho a fazer, amigo sapo. Preciso voltar para a oficina. Hoje é dia de trabalho.

O sapo sondou, sondou:

— Estamos de sorte. Não está ninguém em casa. A dona deve andar fora, lavando roupa e o menino mau está longe, empinando papagaio. Olhe lá.

De fato. A uma boa distância, um papagaio colorido volteava no ar.

O sapo continuou:

— Olhe, naquele alpendre que cerca a casa está pendurada uma gaiola. Você vai trabalhar nela, até que o pássaro que está dentro possa fugir.

— Servicinho à-toa, comentou convencido o pica-pau.

E começou a picar a madeira da gaiola:

Pica-pau pau, pau.

Enquanto isso, o sapo ficou olhando o papagaio de papel de seda que o vento embalava. De cá para lá.

— Pronto gritou o pica-pau.

O sapo recomendou ao prisioneiro:

— Pode sair. Pode voar livre e feliz. Adeus.

O passarinho rápido, cortou os ares.


 

Onde está o bilhete

 

Depois de mil agradecimentos ao pica-pau, o sapo começou a voltar. Ia pulando e pensando na cara que o menino mau ia fazer quando encontrasse a gaiola vazia.

Passou pela casa de Miminha. Ouviu a voz dela lendo alto. Era um ponto de História, em que havia capitanias e donatários. A menina precisava saber os nomes de umas e de outros. Não quis interrompê-la e seguiu, pensando que, afinal de contas bem que era bom ser sapo. Não precisava saber as capitanias. Era verdade que tinha outros problemas, como agora, por exemplo, a localização do bilhete perdido.

A voz de Miminha ainda veio de longe, trazida pelo vento: Pernambuco, Duarte Coelho Pereira; São Vicente, Martim Afonso de Souza...

Mais adiante, encontrou o papagaio, papagueando seu eterno corrupaco.

— Corrupaco, papaco, disse ele. Você anda sumido... Até pensei que estivesse no mundo da lua.

— Ainda não. Tem tempo!

— Não sei quem passou por aqui, procurando você. Não me lembro. Ando com a memória tão fraca!

— Bem-te-vi! Bem-te-vi! — gritou o passarinho xereta que ia se aproximando. Sua presença avivou a memória do louro:

— Foi ele. Foi ele que passou por aqui à sua procura.

— Apressado, hein? ralhou o sapo. Eu não disse para você me procurar amanhã?

— Mas, eu sabia que você não era sapo para deixar as coisas para mais tarde. Que tal?

— Tudo resolvido. Seu amigo já está livre. Pode ir procurá-lo!

— Você é formidável. Como conseguiu?

— Ora, o meu amigo pica-pau serrou a gaiola, sabe?

O bem-te-vi ficou encabulado:

— E esta, agora! Como é que não me lembrei disso? Uma coisa tão fácil!

— Fácil, depois que eu tive a idéia e a executei. Peça para a Miminha ler uma lição do livro de leitura dela: chama-se o Ovo de Colombo...

O bem-te-vi, desapontado, desconversou:

— Quer dizer que agora eu posso dizer onde está o famoso bilhetinho.

O sapo ardia de curiosidade. Seus olhos não cabiam mais na cara.

O bem-te-vi quis fazer um clima de “suspense” e foi falando devagarinho:

— Eu vou estudar para detetive, uma profissão que corresponde à minha curiosidade, ou “xeretice”, como diz você.

O sapo impacientou-se.

— Ande, diga logo. Já não agüento mais.

O bem-te-vi impertigou-se:

— O envelope, com o bilhete, fitinha e tudo estão na carapuça do saci!

O sapo quase desmaiou.


 

Planos e mais planos

 

Quando se recobrou do susto, viu o velho papagaio cochilando no seu poleiro e o bem-te-vi, com arzinho de caçoada, olhando para ele, sapo.

— Não sei o que fazer; que falta de sorte a minha! O bilhete não poderia estar em pior lugar. Nem quero pensar nas dificuldades que vou ter.

O bem-te-vi despediu-se:

— Estou ansioso para encontrar meu amigo que saiu da prisão. Temos tanto assunto atrasado! Eu guardei mil e uma novidades para contar a ele.

Voou rápido e o sapo ficou a meditar.

Resolveu procurar o joão-de-barro. Foi logo explicando que este não era o serviço a que havia se referido quando o visitou. Ia precisar de uma casinha linda para hospedar uma criatura muito querida, mas isso seria bem mais tarde . “Qual é o problema no momento?” indagou o passarinho engenheiro que não gostava de demoras. Enquanto perguntava, deu um jeito de pôr à mostra o anel de grau que tinha em um dos dedos.

O sapo apressou-se:

— Agora, preciso de uma casa bem forte, para aprisionar o Saci.

O joão-de-barro achou meio estranho, mas não costumava discutir os problemas particulares de seus clientes.

Combinaram o preço: 5 pequenos balaios cheios de bichinhos.

— Preciso da casa, no bosque, além do rio, para sexta-feira à meia-noite.

— Combinado. Já vou providenciar o material de construção. Saiu em vôo rápido. Era do mesmo tipo do pica-pau: não brincava em serviço.

Enquanto isso, o sapo foi procurar o boi Garrido que era habitante antigo do lugar e sabia muitas coisas.

Puxou conversa com ele, assim como quem não quer nada. Um assunto puxa outro e ele acabou perguntando se o boi já tinha ouvido falar no Saci.

— Claro que sim. Todos nós ouvimos e eu que moro por aqui há tempo e observo muito, sei de coisas a respeito dele.

— Então, conte — pediu o sapo, interessado.

O boi não tinha o que fazer àquela hora. Estava em plena sesta, e, assim sendo, não lhe custava atender ao pedido do sapo.

— O que sei é que o saci é um pretinho danado, um moleque remador, que faz mil travessuras. Pequeno, tem uma perna só, está sempre pulando.

— Deve ter raça de sapo.

— Acho que sim. Ele fuma um pito e usa uma carapuça vermelha na cabeça.

— Será que ele dorme?

— Dizem que somente dá um cochilo à meia-noite de sexta-feira.


 

Fumo-de-rolo

 

Terminada a conversa com o boi, o sapo ouviu a vozinha conhecida, que agora não o irritava mais.

— Bem-te-vi!

— Ora, viva! Eu ia procurar você para saber onde posso encontrar o Saci. Você disse que vai ser detetive. Pois bem: me dê a pista.

O bem-te-vi ficou todo orgulhoso e procurou falar usando termos técnicos. Falou em vestígios, rastros e só faltou dizer que tinha as impressões digitais do Saci.

Para concluir, disse que o diabrete costumava ficar por perto da lagoa do bosque.

“Graças a Deus não é a minha”, suspirou o sapo, aliviado.

Contou, então, seu plano ao bem-te-vi.

Discutiram os dois por longo tempo.

— Pena eu não poder pedir umas idéias a Miminha, lamentou o sapo. Ela é tão inteligente!

— Por que não pede? Com a ajuda dela, o nosso plano sairia melhor ainda.

— Não posso. Ela nem sabe que perdi o bilhete. Não quis contar, porque ela ia dizer que sou um relaxado, sem interesse...

— Mas, precisa procurá-la, para pedir o fumo.

— É mesmo. Vou indo para lá.

— Combinado, então! Sexta-feira, às onze e meia da noite, perto da lagoa do bosque.

— Certo! Não esqueça de dar o recado para o joão-de-barro. Ele que não se esqueça da encomenda!

— Bem-te-vi! — foi cantando o passarinho, enquanto se afastava.

O sapo foi até o jardim de Miminha. Acomodou-se na sua pedra e começou a coaxar. A menina estava mais adiante, estudando, sob um caramanchão de maracujá. Largou o livro e foi procurar o sapo.

— Olhe ele aqui! Pensei que tivesse ido procurar a lua. Está sumido... Por onde anda? Fazendo poesias?

— Ando por aí mesmo, ora na lagoa, ora tratando de negócios.

— Eu tenho estudado um bocado e pensado na vida. Fui com mamãe visitar pessoas que moram na redondeza, nessas casas pequenas e pobres. Fiquei impressionada.

— O que você tem com elas?

— Olhe que vamos brigar outra vez.

— Você já vai me chamar de ali ... ali...

— Alienado!

— Isso. Mas ainda não consegui um dicionário.

— Sabe o que é? aquele que vive fora do mundo, alheio ao que se passa ao redor de si.

— Como um sapo que admira a lua?

— Assim mesmo.

— Ah! escute, Miminha, preciso de um favor. Você me dá um pedaço de fumo, daquele de rolo, que seu pai usa?

Ela quis saber para que ele queria, mas o sapo replicou:

— Eu bem ouvi dizer que as mulheres são curiosas.

Para não dar o braço a torcer, a menina foi para dentro, voltou com um pedaço de fumo, deu para ele e não perguntou mais nada.


 

Saci-pererê

 

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Sexta-feira. Quase meia-noite.

No bosque, perto da lagoa, o silêncio é quebrado por uns cochichos. O sapo, o bem-te-vi e o joão-de-barro, disfarçados, escondidos, ali estão.

— Está bem forte a casinha? pergunta, preocupado, o sapo.

— Serviço completo. É a mais resistente de todas as que fiz até hoje.

— Eu achei que está ótima, confirmou o bem-te-vi. E olhem que vi de perto, na hora em que fui colocar o fumo lá dentro. Os três olharam para a árvore onde joão-de-barro fez a casa. Nisto, um assobio estridente soou no mato.

— É ele — disseram baixinho os três. De fato, lá vinha o pretinho, aos pulos, numa sarabanda louca. Parou perto da árvore onde estava a casinha. Começou a farejar.

— Cheiro bom de fumo! Eu bem preciso de um pedaço para encher meu pito! Fumo faz mal para os homens. Para saci, não. Foi trepando pela árvore, com o maior desembaraço. Ia assobiando, até que chegou na casinha de barro. Farejou mais:

— Achei! Que fumo cheiroso!

Entrou com cuidado, para que a carapuça não lhe caísse da cabeça. Foi pegando o fumo, quando o sapo que sabia ver as horas à noite, pelas estrelas, falou baixinho:

— É hora!

Meia-noite. O saci deu um cochilo. E o joão-de-barro voou para a casinha, afastou a carapuça vermelha do saci adormecido e pegou no bico o envelope. Saiu voando, em disparada, seguido do bem-te-vi. O sapo, de um salto, mergulhou na lagoa próxima. Nenhum deles tinha vontade de experimentar a vingança do saci. Quando este acordou de seu rápido sono, viu-se dentro da casinha, com o fumo de corda na mão e a carapuça caída. Logo procurou o envelope. Nada.

Ficou muito acabrunhado, pensando apenas que devia haver outro saci pelo bosque. Para fazer uma dessas... O melhor era mudar de lugar. Dois é muito. Mas, para seu consolo, levaria o fumo. Pegou o pedaço com cuidado, arrumou a carapuça, saiu da casa. Nunca se viu desaponto igual.

— Que pena ter perdido o bilhetinho. Tão lindo, escrito em pétalas de rosa. Afinal, ele também gostava da lua e o bilhete já estava pronto...

Começou a picar fumo, com seu canivete afiado. Encheu o pito, tirou uma baforada. E mais satisfeito, ficou olhando a fumaça que desenhava figuras no ar.


 

O bilhete reconquistado

 

Cocoricó! Cocoricó!

O canto do galo Pimpão acordou gentes e bichos, menos o sapo, porque ele nem dormiu, com todos aqueles medos e sustos.

Quando o saci foi embora, ele saiu da lagoa do bosque, onde esteve um bom tempo, durante o qual aproveitou para visitar uns primos.

— Fique uns dias aqui, — pediram estes — tão raro você aparecer! Uma sapinha dengosa suspirou na despedida. Mas, ele não gostava de outras lagoas. Só da sua. E além disso, de manhã cedinho precisava ir buscar o bilhete com o joão-de-barro, e pagar o serviço. Deu, pois, mil desculpas aos primos, prometendo voltar. Foi para a sua lagoa, ficou olhando a lua que estava tão magrinha, que dava dó!

E de manhãzinha, logo que o Pimpão cantou, ele foi procurar o joão-de-barro. Agradeceu o serviço que considerou perfeito, deu um balaio a mais de bichinhos em pagamento.

O joão-de-barro ficou muito satisfeito. Fazia o anel revirar no dedo e oferecia seus préstimos:

— Volte quando precisar, Mestre Sapo. Terei gosto em fazer aquela casinha linda que você vai encomendar.

O sapo segurou com todo cuidado o bilhete. Gostava mais ainda dele, depois que o perdeu e teve trabalho para encontrá-lo.

— Deus me livre de ficar outra vez sem meu querido envelope azul...

Assim pensando, chegou ao pombal. Estava resolvido a deixar ali, guardado, o precioso papel, até que fosse hora de enviá-lo.

Ele mesmo não podia conservar o bilhete. Morava na lagoa e a água o destruiria. Para arranjar esconderijo em alguma árvore ou pedra, era arriscado. A chuva e o vento estragariam tudo. Ou o saci o acharia, novamente.

— Quac, quac, quac — coaxou.

E logo apareceu aquele amor de pombinha tímida, que desta vez não se espantou tanto com a feiura do sapo. Já estava se acostumando.

Ele procurou falar bem doce:

— Olhe, eu trouxe esta flor que colhi no caminho para você. Está vendo? Ainda tem uma gotinha de orvalho. A flor é linda como você.

A pombinha era sensível aos galanteios, mesmo que viessem de um pobre sapo.

Pegou a flor, pôs no pescoço, como se fosse um colar.

— Muito obrigada. Em que posso servi-lo?

— Quero que guarde este envelope azul para mim e esta fitinha. Muito cuidado, pois é um papel importantíssimo!

Ela ficou meio ofendida!

— Saiba que meu patrão é muito exigente e que nossos arquivos são bem cuidados. Temos endereços, mapas, tudo bem organizado. Pode me entregar o envelope sem susto.

A pombinha parou, admirada de ter falado tanto. Recebendo o envelope, o sapo despediu-se:

— Eu volto aqui na ocasião de mandar o bilhete; trago o endereço.

— Está bem. E eu vou entrar porque tenho um mundo de cartas para escrever. Meu patrão dita tão depressa!

Entrou apressada no pombal, toda elegante, com a flor no pescoço.


 

Girassol

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Já era quase meio-dia, o sol estava quente, queimando. Foi então que o sapo reparou num girassol que estava perto do pombal. Bem lá em cima, no alto da haste, lá estava a flor com suas folhas grandes, amarelas, e o miolo todo marrom.

Girassol cor do sol.

Tudo combinado. E ela, gloriosa, olhando para o astro querido.

— Quac, quac, começou o sapo, querendo puxar prosa com a flor.

O girassol abaixou-se um pouco, viu o bicho:

— Como vai? Há tempo não aparece!

— Sabe o que eu estou pensando? Que você é o meu contrário.

— Como assim? — indagou, intrigado, o girassol que não tinha muito jeito para decifrar charadas.

— Porque você segue o sol, eu, a lua. Sua hora feliz é o dia, a minha é a noite.

— É mesmo, concordou o girassol. Engraçado, eu nunca pensei nisso. Nós temos destinos parecidos.

— Cada um tem o seu objetivo, como diz a Miminha. Objetivo quer dizer finalidade, me explicou ela.

— É, sim, concordou o florão. Meu objetivo é o sol, que eu sigo sempre. O seu é a lua. Tão longe os dois!

O sapo suspirou.

O girassol se lamentou:

— Você é mais feliz do que eu, pode mover-se, pular de cá para lá. Vai à casa do pica-pau, do joão-de-barro, vai ao pombal, conversar com a pombinha bonita.

— De fato, eu ando um bocado. E vou sempre que posso, ao jardim de Miminha.

— É. Você se movimenta. Fica na lagoa quando quer, mas eu estou preso na terra... Tenho raiz.

O sapo foi forçado a concordar que era mais feliz.

Como o girassol estava triste e era preciso distraí-lo, o sapo foi falando:

— Olhe, Miminha acha que eu sou egoísta, que só penso em mim. Ultimamente tenho achado que ela tem alguma razão. O girassol deu uma viradinha para acompanhar o sol. Depois, perguntou:

— E ela, então, não é egoísta?

— De modo algum. Ela acha que devemos ajudar os outros, tomar conhecimento dos problemas alheios.

— Talvez tenha razão. Eu, pobre de mim, vivo preso, só posso mesmo seguir o sol. Mas você, bem podia deixar essa mania de lua ... Você quer se comunicar com ela, lá naquela distância, quando aqui na terra, bem perto de nós, há tanta coisa para fazer!

O sapo não respondeu. Disse até logo ao girassol que ficou girando, seguindo o sol...


 

A cara do menino mau

 

No caminho, encontrou o bem-te-vi que, novidadeiro como era, veio logo com as suas notícias.

— Sabe, foi dizendo, sem que ninguém perguntasse. — Eu fui espiar o menino mau, logo que o pica-pau soltou o meu amigo. Queria só ver a cara dele.

— Ah, foi? — respondeu o sapo que, na verdade estava morrendo de curiosidade para saber isso.

— Mas já faz tempo .

— Por que não me contou antes?

— Porque andamos tão ocupados com aquele negócio do bilhete! Só pensávamos nisso, não?

— É mesmo. Foi um tempo duro. Ainda bem que deu certo.

— Vá perder outra vez, hein?

— Não há perigo. Está num lugar muito seguro. Você conhece a pombinha branca, secretária do pombo-correio?

— Claro que sim. É a coisinha mais linda que existe por esta redondeza.

— Pois é. Ela guardou o bilhete para mim. Mas sabe? Engraçado... Ultimamente tenho pensado na vida, nas coisas que Miminha diz. A lua tão longe... E tanta coisa a fazer por aqui.

— Mas você é um sapo poeta...

— Posso ser, mas nem por isso devo deixar de olhar para a terra...

— Bem-te-vi! Bem-te-vi! — gritou o passarinho, aprontando-se para ir embora.

O sapo o reteve:

— Não pense que você vai sem contar o que me prometeu.

— O que foi mesmo? Eu ando tanto por aí, sei tanta novidade...

— Quero saber qual foi a reação do menino mau.

— Ah, sim! Mas, como você está falando bonito. Vou precisar um dicionário de bolso para consultar, enquanto proseamos.

O sapo encabulou:

— Vamos, largue de bobagens.

— Pois bem. Assim que você me disse que meu amigo tinha sido solto, fiquei em dúvida se voaria para o bosque, para vê-lo ou se iria espiar o menino mau. Resolvi seguir esta última idéia.

— Por quê? (O sapo estava, aos poucos, virando filósofo e queria saber o porquê das coisas...)

— Eu pensei assim: tenho muito tempo para ver meu amigo e conversar com ele. Mas, ver a cara do menino mau logrado, é uma vez só.

— Quac, quac, riu o sapo. — Deve ter sido divertido. Ele que sempre lograva os outros.

— Pois é. Ele acabou de empinar o papagaio, recolheu a linha e voltou. Quando chegou perto da gaiola, foi logo olhando para ver o “seu prisioneiro”, como o chamava.

Quando viu a gaiola vazia, ficou branco e começou a tremer.

“Não é possível” gritava. Pegou a gaiola, revirou-a de todos os lados. Viu a madeira serrada.

— Não entendo, disse com raiva. Só se foi arte do saci. E jogou a gaiola longe.


 

Idéias de Miminha

 

— Faz tanto tempo que não vejo Miminha! Já estou com saudade dela, — pensou o sapo, na beira da lagoa, deixando, por uns momentos, de contemplar a lua. — Amanhã mesmo vou vê-la.

Dito e feito. No dia seguinte, de manhã, foi ver sua amiguinha. Ela estava fazendo lição embaixo de uma árvore. Miminha não gostava muito de ficar em lugares fechados.

— Dá aflição, dizia. Já chegavam as horas em que ficava na sala de aula, na escola da cidadezinha, perto da chácara.

— Quac, quac!

— Olhe quem está aí! Viva! Até que enfim apareceu.

— Ando muito ocupado.

Miminha riu:

— Você? Não faz outra coisa a não ser pensar na lua .

— É, você não pode falar de mim. Outro dia mesmo ouvi sua mãe dizer que você vive no mundo da lua.

— Eles não entendem. Os grandes, sabe? Os “adultos”, como dizem. Escute: eu vivia aérea porque estava pensando. Tinha idéias, entende? E eles achavam que eu andava no mundo da lua, como certa criatura...

O sapo disfarçou:

— E agora?

— Agora que já pensei, já lidei com as idéias, quero fazer alguma coisa. Primeiro a gente pensa. Depois realiza.

— Você está muito complicada. E ainda diz que eu sou pedante. Ela virou as costas:

— Estou perdendo tempo com você. Ele queria agradá-la.

— O que você está estudando, hoje? É ainda aquele negócio de capitanias hereditárias?

Miminha riu:

— Graças a Deus aquilo já acabou. Dou um doce se você adivinhar o que estou estudando hoje.

— A lua, gritou ele triunfante.

— Errou! Essa, eu estudei a semana passada. Em geografia, sabe? O sapo fez muitas tentativas. Nada.

Mudou de assunto. Era orgulhoso e não gostava de ser derrotado.

— Por que você não me conta quais são as suas idéias, o que você pensa fazer?

Ela ficou satisfeita:

— Que bom! Estou vendo que você anda menos egoísta.

— Não sei se menos egoísta ou mais curioso. Sou pior que o bem-te-vi.

Miminha virou as costas, de uma vez.

— Não posso conversar com você, seu batráquio.

— O quê? O quê? coaxou ele, fulminado por aquele nome. Como a menina ousava xingá-lo assim?

Ela foi embora, mas o livro em que estava estudando, ficou aberto.

Ele olhou. A lição era sobre o sapo...


 

Liberdade

 

Miminha, de vez em quando, precisava “tomar uns ares”, como dizia: dar umas voltas, apanhar sol, descansar a cabeça. Senão, não há quem agüenta.

A manhã estava bonita, as lições todas prontas. Sabia as Capitanias, os batráquios, tinha feito um mundo de contas e problemas, sabia os sinônimos na ponta da língua. Agora, podia até falar bonito.

Foi andando devagarinho, aproveitando cada passo. Respirava fundo aquele arzinho gostoso. E o sol, tão bom, tão amigo a aquecia.

Nisto, viu um passarinho e exclamou:

— Nossa, você por aqui? Não estava preso na gaiola do menino mau?

— Era eu mesmo. Mas, o pica-pau me livrou. É uma estória comprida, que um dia o Cururu pode contar.

— Danado, não me disse nada! Anda com segredos. Escute, conte como era a sua vida na gaiola.

— Eu tinha de tudo: alpiste, água.

— Então o menino mau não era tão mau assim?

— Era. Ele me tratava bem, não por mim, mas por ele mesmo. Se eu não tivesse comida nem água, morreria.

— E ele não teria mais o seu pássaro, aquele que ele conseguiu prender no alçapão, não é? — continuou Miminha.

— É. E isso não me interessava. Era mais cômodo, é verdade, eu não precisava ter trabalho, procurar comida, lutar, enfim.

— Então...

— Então, eu era infeliz, pois me faltava tudo, quer dizer: a liberdade. Só se sabe o quanto ela vale, quando se perde.

— Para as pessoas é a mesma coisa. É esse o maior bem. E para conservá-lo, os homens sempre lutaram.

— Pode ser uma gaiola de ouro, continuou o pássaro, mas, sendo prisão, não serve.

— Eu tenho um ponto de História que acho lindo. Nem se compara com o das capitanias, que é só nome para decorar. É a história de um homem que morreu pela liberdade. Tiradentes, sabe?

— Não sei. Não entendo dos casos que se passam com os homens. Só sei que para nós, os pássaros, liberdade é tudo. Miminha voltou para casa pensando muito nessa conversa.

Liberdade!


 

Turismo

 

O sapo resolveu tirar umas férias. Ele também estava cansado. Não estudava, é certo, e seu trabalho não era dos mais duros: catar bichinhos. Mas, de tanto olhar para a lua, de tanto pensar nela, estava ficando esgotado. E aquele caso da perda do bilhete o deixou exausto.

Iria, desta vez, dar um giro mais longo. Pegou os folhetos que o pombo-correio lhe trouxera, na véspera, da capital. Foi examinando um por um, bem perto dos olhos.

— Acho que estou precisando de óculos, reclamou.

— Corrupaco, paco!

O papagaio que estava por perto deu uma gargalhada.

— Imaginou sua cara de óculos?

— Ficaria até simpático, respondeu ele e não deu mais confiança.

Continuou examinando. As figuras eram lindas e as palavras, um verdadeiro convite:

“Visitem a floresta amazônica. Vão ouvir o uirapuru cantar. Seu canto encanta: os outros pássaros param para ouvi-lo”. A figura do pássaro, com o bico aberto, era linda e o fundo, todo verde: uma floresta.

— Esta viagem eu já fiz. De fato, é ótima. Nunca pensei que um pássaro pudesse cantar tão bem. Parece que engoliu uma flauta. Dizem que um homem conseguiu gravar seu canto.

Pegou outro folheto:

— Vão ao Canadá. Não deixem de conhecer o Castor, o engenheiro hidráulico mais famoso entre os bichos.

O sapo era viajado:

— Esta viagem já fiz também. Vou recomendá-la ao joão-de-barro. Ele é que gostaria de ver o colega fazendo pontes e barragens.

Outro livreto dizia: Vá ao polo. Vale a pena observar a vida dos pingüins.

Não quero ver nada de bichos. Quero uma coisa diferente. Preciso fazer “higiene mental” como diz a Miminha.

— Corrupaco-papaco. Por que não vai ao mundo da lua? perguntou o papagaio.

— Nada de lua. Quero é me distrair, para deixar justamente de pensar nela.

Continuou vendo folhetos, em busca de algo diferente. Separou um.

— É este! É este!

Afastou todas as outras ilustrações que o papagaio ficou remexendo. Ficou apenas com uma. Leu alto:

“Faça uma viagem diferente. Romântica. Visite o reino das cantigas esquecidas, daquelas que as meninas cantavam à noite, à luz da lua.”

Talvez esta última sentença tivesse, de fato, interessado o sapo. Vinha de encontro à sua idéia fixa.

— Pronto. Resolvido. Deve ser algo diferente, fascinante. “As cantigas esquecidas”! Nada melhor para as férias de um sapo poeta.


 

E a lua chorou

 

A lua cheia, lá no alto, com sua enorme cara espiava para a terra. E pensava. Pensamentos de lua, imaginem só o que seriam.

— Eu vivo aqui tão longe, tão no alto! A terra, da qual sou o satélite, lá está.

Antigamente, os poetas e os namorados gostavam tanto de mim! Os poetas faziam poesias lindas, cheias de comparações. Os namorados decoravam esses versos e os diziam às suas queridas. Bons tempos!

Agora, os homens não se contentam em me admirar de longe, em dizer que sou de prata, cor de leite, que pareço um grande queijo...

Não, agora eles estão chegando. Eles entram em seus foguetes, com as roupas prateadas, se atiram espaço afora, saem da terra, numa corrida louca.

Eu, aqui, de cima, vendo tudo. Há milhões e milhões de anos aqui estou e nunca tinha sido tocada por um ser vivo. Mas agora...

E eu pergunto: O que vêm eles fazer aqui? Será que na terra não têm grandes problemas a resolver? Pobreza? Ignorância?

O que pretenderão fazer aqui, no meu deserto cheio de crateras, nos meus montes rochosos?

Quem sabe vão fazer casas confortáveis, com ar condicionado, aparelhos elétricos e tudo mais. Grandes hotéis. Roteiro de agências de turismo: “Fim de semana na lua. Viagem à lua. Vá agora e pague depois, a longo prazo. Descanse à beira do mar da Tranqüilidade”.

Isso ainda passa.

Se me machucarem, como temo, ainda perdoo. Mas, se trouxerem a guerra para cá? A discórdia, a morte, a destruição? Ah, os bons tempos, a época em que os homens me adoravam como uma deusa, na antigüidade, ou os que os poetas e namorados me apreciavam tanto!

E as meninas cantadeiras, onde estão? Aquelas que à noite faziam roda na rua? E as crianças que brincavam comigo?

A bênção dindinha lua me dá pão com farinha p'ra eu dar à minha galinha que está presa na cozinha?

E a lua então chorou de tristeza e de saudades.


 

As lágrimas da lua

 

imagemOra, as duas lágrimas da lua caíram no espaço, em forma de duas pedras preciosas grandes e raras.

Iam caindo, caindo.

Nisto o vento, o vento forte que ia passando, as viu e assobiou:

— Que lindas pedras preciosas! Nunca vi outras iguais. E olhem que eu caminho tanto, eu vejo tantas e diferentes coisas!

Mas as pedras estavam preocupadas:

— Não importa, senhor vento, nossa beleza e raridade. Estamos soltas no espaço. Vamos caindo, mas não sabemos onde vamos parar. O senhor já pensou em nossa situação? Não temos experiência alguma, não sabemos nada .

— Eu posso ajudá-las, disse o vento que apesar de amalucado e de viver em correrias loucas, era cavalheiro.

— Olhem, disse ele, eu posso levá-las para um lugar bom e tranqüilo, onde ficarão bem guardadas.

— Está bem. Faça o favor, então.

Girando, correndo, rodopiando, num corrupio maluco, eis que o vento foi levando as duas lindas pedras.

— Para onde?

— Para que lugar?

Para a chácara de Miminha!

A mãe desta gritou:

— Entre, menina, que vem ventania! Vou recolher toda roupa e você fecha as janelas.

Pica-pau, joão-de-barro, papagaio, bem-te-vi, pombo-correio, cada um tratou de abrigar-se.

O sapo, assustado, coaxava.

E o vento foi até a lagoa.

O sapo, naquele turbilhão, pôde ouvir o barulho de alguma coisa caindo na água.

O vento passou e ele ainda viu dois círculos na lagoa, marcando o lugar onde algo havia caído.

— O que será? pensou ele. Agora não posso ver, estou muito ocupado com os preparativos da viagem. Na volta vou descobrir isso.

E saiu, pulando.


 

As encomendas do sapo

 

Miminha estava costurando no quintal, perto de um pé de bico-de-papagaio todo florido. Cada florão vermelho que dava gosto ver! E ela ali perto, com os cabelos soltos, os olhos grandes e verdes, estava uma beleza. Dava para fazer um cartão postal. O sapo veio vindo, acomodou-se na pedra de costume. Na “sua cadeira” como dizia.

— Quac, quac, quac.

— Lá está ele, gritou Miminha. Mas, não pense que eu vou furar o dedo outra vez. Se quiser bilhete, procure outra tinta.

E balançava os dedos no ar:

— Olhe, agora tenho dedal!

O sapo olhou e viu uma galanteza de dedal de prata, protegendo o dedinho da menina.

— Não quero outro bilhete; aquele é o único que me interessa. Está bem guardado e só espero uma oportunidade para mandá-lo.

— Você está falando cada dia mais difícil. Diga: o que quer hoje? Seu interesseiro! Se for mais fumo, não dou. Papai reparou que faltava um pedaço no rolo. E fumo faz mal, ouviu?

— Nada mais de fumo. Deus me livre. Aquele pedaço me serviu e muito. Hoje quero encomendar umas coisas para você.

Miminha deu uma risada:

— Você, sempre com suas artes! O que quer agora?

— Umas roupas, para uma viagem de férias que vou fazer.

— Você, tirar férias?

— Claro. Todo ano eu tiro. É um direito que tenho. Pensa que não cansa ficar à beira da lagoa, catar bichinhos, pular de cá para lá?

— Pensei que, só de olhar a lua, à noite, você descansasse a idéia.

— Engano, isso até me cansa mais.

— Para onde você vai?

— Vou para o reino das cantigas esquecidas.

Miminha ficou encabulada:

— Você inventa cada coisa! Mas, pensando bem, deve ser até uma viagem interessante.

— Se é! Cansei de fazer viagens em que os bichos eram a principal atração. Esta é diferente e por isso mesmo, quero ir bem preparado. Olhe, você me faz dois ternos esportes, um pouco de roupa branca e um terno a rigor. Posso precisar.

Miminha quase morreu de rir.

— Este Cururu! Só faltava essa, agora! Eu feita costureira de sapo. Imaginem só! Mas, vá, faço. Sua sorte é que estou de férias e tenho uns retalhos de feltro. Até que vai ser divertido.


 

Em socorro do menino mau

 

— Bem-te-vi!

— Olhe, quem está por aqui, disse gentilmente o sapo que, desde há algum tempo, tratava o passarinho com amabilidade.

— O que há de novo?

— Tudo bem com os nossos amigos, todos ocupados, trabalhando: o joão-de-barro, sempre acelerado nas suas construções. O pica-pau, entregando encomendas que não acaba mais, o pombo-correio, com a correspondência sempre aumentando.

— E a pombinha secretária? — arriscou o sapo que a achava linda.

— Vai bem, sempre ocupada no seu serviço. Sabe, quem não vai bem é o menino mau.

— Bem feito. O que há com ele?

— A mãe está muito aborrecida, diz que não pode mais com a vida dele, que vai para a cidade a qualquer hora, entregar o pobre para o Juizado de Menores.

— Pobre? Você tem dó dele?

— Claro que sim, respondeu o bem-te-vi que tinha bom coração.

Continuaram a conversa e daí a algum tempo Miminha chegou, esbaforida, quase sem fôlego:

— Olhem, nós precisamos ajudar o menino mau.

O sapo e o bem-te-vi se entreolharam. Nenhum entendia como a menina ficou sabendo da conversa de ambos. Mas, a curiosidade deles foi logo satisfeita:

— Eu estava bem sossegada em casa, quando ouvi, na janela:

— Corrupaco, papaco.

Fui espiar o que era e ouvi o papagaio repetindo, tim-tim-por-tim-tim a conversa de vocês.

O sapo e o bem-te-vi caíram na risada. Danado do papagaio!

Miminha entrou na conversa e, num minuto tomou uma decisão:

— Vamos até a casa do menino mau.

— Deus me livre — gritou o bem-te-vi. Ele me prende na hora.

— Eu também não vou, disse o sapo, muito assustado. Ouvi dizer que ele maltrata os ... os ... como é mesmo aquele nome que você diz, Miminha?

— Batráquios.

— Isso mesmo. Tenho medo.

A menina compreendeu o temor dos dois e se conformou em ir sozinha.

O sapo só pensava em si mesmo:

— Não vá se preocupar muito com o caso do menino mau e esquecer as minhas roupas. Quero o paletó, com quatro botões, hein!

— Sempre egoísta! Não tenha medo; há tempo para tudo. Não se esqueça de que estou de férias!


 

Até a volta

 

O sapo está à beira da lagoa. A lua, no céu, parece espiá-lo e se reflete na água.

Ele se lembra de uma cantiga que Miminha canta às vezes, para arreliá-lo:

Sapo cururu da beira do rio
que chora,
que chora
quando faz noite de frio.

Não. Não serve para ele, que é de lagoa e não de rio. Além disso, ele não tem frio. Olha, orgulhoso, para a maleta que acabou de arrumar. Cheia de roupinhas de feltro, tão lindas! E, além das encomendas, Miminha deu, de presente, um casaco. Um sobretudo. Vestiu-o e se mirou no espelho da lagoa. Assentadíssimo.

Miminha usou moldes para bonecas e deu certinho. Frio, ele não teria. E nem fome, pois sempre há bichinhos para comer. Mas Miminha diz que há quem tenha fome e frio.

O sapo interrompeu o pensamento neste ponto. Não queria continuar.

Arrumou tudo, não esqueceu de pôr na bagagem um cogumelo que colheu de manhã. Sempre era bom prevenir-se e levar um guarda-chuva.

Com imenso cuidado, guardou os óculos numa caixinha: uns aros feitos de arame de gaiola que o menino mau jogou fora. Deu um trabalhão para fazer: precisou tomar emprestadas as ferramentas do pica-pau. Mas, valeu a pena. Ficaram lindos.

E ele, de óculos, ficava distintíssimo. Poderia, até passar por Dr. Cururu.

De madrugada, todo pronto para a partida, mandou um beijo à lua, que ia embora.

— Até a volta!

O galo Pimpão tirou-o da contemplação com um retumbante:

— Cocoricó!

O sapo viu que já podia ir despedir-se dos amigos. Era sociável e fazia questão de levar a sério suas obrigações.

Foi, pulando, procurar um por um. Todos lhe desejaram boa viagem e o invejavam, por sair de férias.

Ele ria, satisfeito, com um riso que ia de um lado a outro da cara.

— É. Faz bem sair um pouco. É preciso arejar as idéias, conhecer outros lugares, ver coisas novas.

Todos se encantavam com sua sabedoria e com sua vestimenta e o joão-de-barro quis saber quem havia feito aquele sobretudo.

A maquininha de retrato a tiracolo foi um sucesso.

Quando foi se despedir do pombo-correio, recomendou cuidado com o bilhete. Na volta das férias, providenciaria para enviá-lo.

— Pelo visto, você não está com muita pressa, criticou o pombo.

A pombinha secretária, deixando sua timidez de lado, pediu que ele lhe trouxesse um “souvenir” da viagem.

— Não sei o que é isso, mas trago.

— É uma lembrança, ora esta. Você sabe, estudei francês no Colégio.

E abanou as asinhas, toda catita.

Miminha fez milhões de recomendações. Queria saber quais os meios de transporte, quais os hotéis.

— Não sei de nada. Não quero aborrecimentos. Deixei tudo por conta da agência de turismo...


 

...E o menino mau?

 

Enquanto o sapo partia para sua viagem, Miminha se ocupava em ajudar o menino mau.

Teve uma longa conversa com a mãe dele e acabou conseguindo que ela deixasse para mais tarde a idéia de mandá-lo para o Juizado de Menores.

— A senhora me deixa fazer uma experiência, durante uns dois meses... pediu a menina.

— Não pense em conseguir alguma coisa com ele, avisou a mãe. Ninguém consegue! Mas, pode experimentar. Miminha chamou o menino, que não queria chegar e estava à distância, meio arisco. Veio vindo. Ela perguntou o nome dele.

— Todos por aqui me chamam de Menino mau. Outros me tratam de Espalha-brasa.

— Mas, eu não vou chamar você assim. É muito feio. Quero saber seu verdadeiro nome.

— É Daniel.

— Que bonito, um nome tão doce!

O menino ficou encabulado:

— Nunca ninguém me falou assim.

— Pois eu falo e vou dizer outra coisa ainda: vou ensinar você a ler, escrever, desenhar. Quer?

— Não sei. Acho que não aprendo.

— Vamos experimentar. Todos os dias, às 9 da manhã, espero você na escada do jardim. Com um lápis e um caderno. Combinado?

Ele acenou a cabeça, consentindo e no outro dia mal o galo Pimpão gritou cocoricó, o menino mau, digo, Daniel, já estava pronto para a sua aula.

Miminha, por sua vez, improvisou uma salinha de aula, embaixo do caramanchão de maracujá. Com caixotes, tocos de árvores e muito jeito, ficou um primor.

Em cima de sua “mesa” pôs até um vaso. E os passarinhos, seus amigos, vieram, cada qual com uma flor do campo. Ficou uma beleza!

A mãe de Miminha espiou tudo aquilo e disse ao marido:

— E eu que pensava que ela vivia no mundo da lua ... Olhe só.

Ficaram os dois espreitando pela janela. Viram quando o menino mau chegou. Observaram Miminha, toda empenhada, ensinando-o.

A mãe olhou para o pai, aprovando. E os dois precisaram conter o riso quando, algum tempo depois, o papagaio que estava por perto repetiu a lição com sua voz estridente:

O boi é bonito.
Bebê vê o boi.
O boi bebe...
Ba — be — bi — bo — bu!


 

Uma rua

 

Miminha se empenhava em ensinar o menino mau.

— Ele não é mau, explicava a menina. Acontece que os outros não o entendem e ele faz maldades porque é ignorante e não tem o que fazer. Vocês vão ver.

— Até quando você vai brincar de escola? — caçoou a mãe. Miminha se ofendeu:

— Eu não estou brincando. É a coisa mais séria que já fiz. (— Esses adultos, pensou, não entendem bem a gente...) Enquanto isto se passava, o nosso amigo sapo, feliz, despreocupado, gozava suas férias.

A agência de turismo ofereceu um original meio de condução. Nada de ônibus, carro, trem, avião, mas sim algo diferente: um autêntico tapete mágico, daquele das mil e uma noites. Nada mais emocionante para o sapo que pulou para o tapete, acomodou-se e pronto! Lá foi pelos ares, em ótimo vôo, até o reino das cantigas esquecidas. Não enjoou, não cansou. Uma beleza.

Quando desceu, estava meio tonto. Um grande portão se abriu para ele passar e eis que vê deslumbrado, uma rua larga e comprida, toda calçada — adivinhem de quê — de brilhantes. Ele esfregou os olhos, pensando que ainda estava tonto da viagem no tapete.

Mas, era verdade. Foi andando, ou melhor, pulando, quando ouviu lindas vozes cantando:

Se esta rua
se esta rua
fosse minha,
eu mandava
eu mandava
ladrinhar,
com pedrinhas
com pedrinhas
de brilhante,
para o meu
para o meu
amor passar.

— Que beleza! — exclamou o sapo aguçando os ouvidos e colocando os óculos escuros, por causa do brilho dos brilhantes. As vozes continuaram:

Nesta rua
nesta rua
há um bosque.
Que se chama
que se chama
Solidão.
Dentro dele
dentro dele
mora um anjo
que roubou
que roubou
meu coração.

De fato, a rua de brilhantes acabava num bosque, verdejante e fechado. O sapo não podia deixar de visitá-lo, afinal, um turista que se preza, não deixa nada de lado.


 

Um bosque

 

O sapo entrou no bosque, à procura do tal anjo de que a cantiga falava.

Anjo-asas-vôo-lua deve ter sido a marcha de seu pensamento. Não viu anjo nenhum e sim uma linda moça que o tratou muito bem, o acompanhou a diversos lugares, conversando sempre. Mostrou um bando de crianças que, de mãos dadas corria de um lado para outro cantando:

— Vamos passear no bosque, enquanto seu lobo não vem. O sapo comentou que, graças a Deus, não temos lobo por aqui, mas a moça respondeu que a cantiga era assim mesmo e ela nada podia fazer.

Ele acabou tomando parte no brinquedo: pulava atrás das crianças que davam gritos fingindo susto.

Num recanto do bosque, viu um canteirinho lindo e nele, brigando, um cravo e uma rosa. Discutiram. Ela, com seus espinhos, machucou o namorado. E um coro de lindas vozes narrou o episódio:

O cravo brigou com a rosa
em frente à minha casa.
O cravo saiu ferido
e a rosa despedaçada.

Mas, como em todas as brigas de quem se quer bem, logo fizeram as pazes:

O cravo ficou doente,
a rosa foi visitar.
O cravo teve um desmaio
e a rosa pôs-se a chorar.

O sapo comoveu-se com a cena e a moça explicou que era assim mesmo: eles brigavam muito, mas no fim tudo dava certo. Foram andando e encontraram, quase no fim do bosque, um lago. Numa canoa, crianças remavam, brincando. O lago era rasinho, não havia perigo. De vez em quando, a canoa virava e era aquela algazarra:

A canoa virou,
Pois deixá-la virar.
Foi por causa da Maria
que não soube remar.

O sapo adorou a brincadeira. Estava em lugar próprio: um lago.

Bem que teve saudade de sua lagoa. Disfarçou e resolveu pular para dentro da canoa. Foi um pânico daqueles e quase a canoa virou de uma vez.

— Você vai continuar me acompanhando? perguntou o nosso amigo à moça bonita. — Acho que é ótima guia de turismo.

— Não posso, suspirou ela. Estou condenada a ficar sempre dentro do bosque.

— Por quê?

— Você não ouviu a canção, falando de um anjo que roubou um coração? Sou eu.

O sapo mostrou o maior espanto.

— Anjo? e as asas?

— É um modo de dizer.

— Já sei. É uma moça bonita como você.

Ela sorriu, meio vaidosa.

— Quer dizer que você também não roubou coração nenhum?

— É outro modo de dizer. É porque um feiticeiro gostou muito de mim e eu não gostei dele. Então, ele se vingou.

Disse isso e voltou correndo para dentro do bosque.


 

Outros passeios

 

Mal saiu da mata, o nosso herói viu enorme roda, formada por crianças de todas as cores: pretas, brancas, amarelas, vermelhas. De mãos dadas.

No meio, uma menina linda. Era alva, cor de cera:

Ciranda, Cirandinha,
vamos todos cirandar.
Vamos dar a meia volta,
volta e meia vamos dar.

Na mão, ela segurava um anel. Ia colocá-lo num dos dedos, mas, ai! Ele caiu e se quebrou. Chorando, Ciranda cantou com sua vozinha doce:

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas
era pouco

e se acabou.

A roda foi se desfazendo, as crianças desapareceram, Ciranda sumiu, com anel quebrado e tudo.

Um latido perto do ouvido fez o sapo dar um gigantesco pinote. Caiu em cima de uma pedra. Lá, sim, de camarote, estaria pelo que desse e viesse.

Vozes festivas cantaram:

Cachorrinho está latindo
lá no fundo do quintal,
Cala a boca, cachorrinho,
deixa meu amor passar...

O cão já ia indo embora, sempre latindo, e eis que vem um pessoal ricamente vestido, com trajes antigos e nobres. Damas e cavalheiros rodeiam uma jovem senhora, de rosto velado, coberta de jóias.

— O que será isto? perguntou o sapo a si mesmo. Parecem nobres espanhóis. Vi uns assim num livro da Miminha.

A cantiga se fez ouvir:

Senhora dona Sancha,
Coberta de ouro e prata,
descubra seu rosto
queremos ver sua cara.

A moça do meio da roda afastou a mantilha e apareceu um rosto lindo: moreno, cabelos pretos. O sapo bateu uma fotografia.

Os nobres, à volta, se curvaram. A cantiga continuou:

Somos filhos do Conde
e netos do Visconde.
Senhor rei mandou dizer
para todos se esconder.

Foi um corre-corre. Sumiram.

Então, ouviu-se um barulho de corpo caindo no chão:

— Bumba!

— Pobre dona Sancha, pensou o sapo. Que tombo! Olhou. Não era mais dona Sancha. Era uma menina que nada tinha de nobre. Era como Miminha, como as outras (Melhor assim, esse negócio de nobreza não dá certo nos dias de hoje...) A cantiga explicava:

Teresinha de Jesus
De uma queda foi ao chão
acudiram três senhores
todos três de chapéu na mão.

(De fato, vinham vindo os três. Tão raro ver homem de chapéu hoje em dia...)

O primeiro foi seu pai,
o segundo seu irmão,
o terceiro foi aquele
a quem ela deu a mão.

Certinho. Depois de posar para uma foto que o sapo bateu, o casal se afastou, de mãos dadas, escoltado pelo pai e pelo irmão de Teresinha.

Atrás deles, um grupo cantando e pulando:

Pirulito que bate-bate
Pirulito que já bateu,
quem gosta de mim é ela,
quem gosta dela sou eu.


 

Arte moderna

 

Deixemos o sapo em sua excursão, ouvindo todas aquelas cantigas, vendo-as representadas e vividas.

Precisamos saber o que anda fazendo Miminha.

Lá está ela, em plena atividade. Já ensinou muita coisa ao menino que era mau e este, interessado, pediu para levar mais amigos.

A menina coçou a cabeça. Gostava muito de ajudar os outros, sua idéia era essa mesma, porém não pensava realizá-la assim depressa. Disse que sim, que ensinaria os dois outros também. Seria mais interessante “dar aula” para três.

— Vou ter de realizar logo minha idéia: uma escolinha! Mas, para isso é preciso ter dinheiro.

Miminha estava na fase da pintura. Dera de pintar, ultimamente. Às vezes se exercitava nos lugares que menos se esperava: nas cascas das árvores, nos vasos de flores, no madeiramento do terraço.

Bem que tinha jeito, a danada!

Antes de começarem as férias, ela leu, na escola, que ia se realizar um concurso de pintura entre os alunos. O prefeito da cidade iria dar três prêmios em dinheiro aos melhores colocados.

Um pouco por amor à arte, outro pouco por causa do dinheiro, Miminha decidiu concorrer. O trabalho deveria ser original. Ei-la sentada embaixo do seu querido caramanchão de maracujá, na sua “mesa de professora”. Está pensando. Jeito, ela tem. Gosto também. Só falta a idéia original.

Começou a chuviscar, apesar do sol forte. Daniel, que estava escrevendo na sua “carteira”, gritou:

— Sol e chuva Casamento da viúva!

imagemMiminha respondeu:

— Chuva com sol casa a raposa com o rouxinol.

O arco-íris apareceu no céu. Miminha pediu:

— Empreste-me suas lindas cores, por favor. Preciso pintar.

O arco-íris foi descendo e ficando pequenino, pequenininho.

Quando a menina olhou, ele estava na sua mesa, engastado num pedaço de papelão. Era uma paleta. Como dos pintores.

— Aqui estou. Use-me, Miminha. Misture com arte minhas cores e faça algo de belo.

— Já tenho tintas. Resta-me resolver onde pintarei. Preciso ser original.

Deixou de olhar para o céu. Baixou os olhos para o chão. Viu alguma coisa que lhe chamou a atenção.

Deu um pulo de alegria. Seria, agora também, sua vez de gritar:

— Eureka!

De fato, a idéia estava ali. Agora, mãos à obra. Iria fazer tudo em silêncio. Uma surpresa.

Pegou sua paleta, foi correndo para casa.

No dia seguinte, começou a trabalhar, cercada do maior mistério. Quando saía do quarto, fechava-o à chave.

— Alguma arte ela deve estar aprontando, pensava a mãe.

— Estou pintando, explicava ela, com ar longínquo. Se ganhasse um prêmio na exposição de pintura!...


 

Um tesouro no fundo da lagoa

 

O sapo voltou da viagem. Feliz, descansado. Logo que as fotografias ficaram prontas, convidou os amigos para uma reunião à beira da lagoa. Contou tudo o que viu, leu trechos do diário, mostrou retratos. Todos acharam linda a rua de brilhantes e o papagaio comentou que, se Miminha pilhasse umas pedras daquelas, poderia construir sua escola.

As fotografias de dona Sancha e de Teresinha de Jesus foram muito apreciadas.

O bem-te-vi disse que, se estivesse naquele reino, desvendaria toda aquela estória da moça do bosque. Onde se viu uma beleza daquelas ficar presa ali, só porque roubou o coração do tal feiticeiro? Ele que se danasse ... Pois quando pudesse, tiraria umas férias para investigar esse caso.

Todos riram com os comentários e alguém perguntou ao sapo se ele havia voltado mais apaixonado pela lua, ou menos.

Ele pensou, pensou:

— Acho que menos. Miminha tanto falou que estou achando que a lua está distante demais para mim... Durante o tempo em que estive fora, aproveitei para pensar na vida. Acho que estou mesmo é virando filósofo. Cheguei à conclusão de que sou um egoísta. Só penso em mim .

Os convidados ficaram sem saber o que dizer e para disfarçar o desapontamento geral, o papagaio começou a cantar “Meu limão, meu limoeiro”, sua música predileta. Todos se distraíram e o cururu, depois disso, pôs na vitrolinha portátil um disco com gravação do canto do canário e do sabiá.

— Grandes cantores, comentavam os bichos.

— Nada como a música para distrair.

Depois de comerem bichinhos escolhidos, servidos pelo dono da casa, despediram-se e cada qual tomou seu rumo. Ficando sozinho, o sapo lembrou-se do dia da ventania e teve curiosidade em saber o que havia caído na lagoa.

— Vou dar um mergulho.

Esteve lá embaixo por algum tempo e voltou à tona, todo animado.

— “Bem-te-vi”, gritou o passarinho que estava por perto.

— Você não viu nada, desta vez, porque o que eu vi está no fundo da lagoa.

Curioso como sempre, o bem-te-vi pôs-se a indagar o que era.

— Creio que há um tesouro no fundo da lagoa... Não posso dizer mais nada.

Separaram-se e o sapo, depois de ir ao pombal levar uma lembrança à pombinha secretária, dirigiu-se à casa de Miminha.

Sentou-se na sua pedra do jardim e ficou ali, olhando as flores e as borboletas. Afinal, pensou, as borboletas nada mais são que flores com asas. Tão lindas!

Miminha demorou muito para aparecer. A mãe já gritara duas vezes:

— Menina, chega de pintar! Faz tanto tempo que você está trancada aí!

Finalmente, ela saiu para o jardim. O papagaio, logo que a viu, repetiu o que tinha ouvido há pouco:

— Corrupaco, papaco. Creio que há um tesouro no fundo da lagoa. Não posso dizer mais nada...


 

Conversa com o vento

 

O vento vinha passando, não tão agitado como da outra vez. Vinha curioso para saber o que estava acontecendo com as duas lágrimas da lua que estavam na lagoa.

Parou um pouco no jardim de Miminha, brincando de agitar as folhas das plantas. Com um assoprão provocou um bailado de folhas soltas e levou para o alto o papagaio colorido que Daniel lá longe empinava. Ele foi soltando a linha, muito contente. Miminha vinha chegando no jardim, para descansar um pouco dos seus “acessos de pintura”, como dizia a mãe.

O vento atrapalhou o cabelo dela e levantou um pouco o vestido.

— Vento malcriado, ralhou a menina.

— Desculpe. Vou soprar mais fraquinho senão você não pode conversar comigo.

— Acho bom, mesmo. E, por falar nisso, eu preciso que você me ajude.

— Com todo gosto, respondeu o vento que, como sabemos, era gentil.

— Eu andei pensando, pensando e resolvi realizar a minha idéia de fazer uma escolinha aqui, sabe?

— É uma bela idéia.

— Eu quero ensinar o pouquinho que sei aos que não sabem. Mais tarde vou ser professora. Não é lindo?

— Se é! E eu no que posso ajudá-la, dona Miminha?

— Não brinque. Você, que anda por aí, pode contar aos bichos meus amigos o que pretendo e pedir que me ajudem. No momento, não posso eu mesma ir, porque preciso terminar minha pintura.

— Você sempre inventando moda, hein, Miminha?

— O prazo vence amanhã. Preciso entregar meu trabalho.

— Miminha, quem pode ajudar você é o sapo. Ele tem um tesouro dentro da lagoa.

— Bem que o louro estava repetindo isso, outro dia.

— Mas o sapo é egoísta e já tem um bilhetinho para mandar à lua. É uma idéia fixa, sabe?

— Eu queria era saber onde está esse bilhetinho, para consumir com ele.

— Bem-te-vi!

O passarinho xereta foi chegando.

— O que é que você viu? — perguntou o vento.

— O bilhete. Está no pombal.

E saiu voando, em busca de novidades.


 

Primeiro Prêmio

 

Na escola onde Miminha estuda há um grande movimento. Os alunos vão levando seus trabalhos e colocando, eles mesmos, no salão. Os julgadores, numa mesa à parte, conversam animadamente e observam o entusiasmo das crianças.

Quando o prefeito chegou, houve música e muita alegria.

— Tudo pronto? — indagou.

A professora esclarece: — Falta uma concorrente. Mora longe, numa chácara e está atrasada. Tem muito jeito para pintura. Inventa cada coisa aquela menina! As crianças aproveitavam a demora para arrumar melhor seus quadros e trabalhos.

— Olhem só! Miminha chegou!

De fato, ela entrou, gloriosa, com uma grande caixa nas mãos. De dentro, tirou seu trabalho.

Houve uma exclamação geral. Os julgadores olharam, boquiabertos, o pessoal todo ficou de queixo caído. Houve um burburinho pela sala.

imagemMiminha colocara na mesinha reservada a ela um grande jabuti com a casca pintada artisticamente.

— Que cores mais lindas! — cochichou um dos julgadores ao outro. Parecem tiradas do arco-íris...

— Além da beleza da pintura, nunca vi coisa mais original, acrescentou o presidente da comissão julgadora. Enquanto isso, o jabuti dava uns passos, muito vagarosos, como é seu costume, exibindo a casca pintada com aquelas cores maravilhosas.

Para encurtar a estória: Miminha tirou o primeiro prêmio. Voltou muito feliz para casa, transportando a caixa com a obra prima, o dinheiro e tudo. O pai guiava o carro devagarinho, conversando, orgulhosamente, com a filha. E a mãe ao lado, feito mãe coruja, comentava:

— Nunca pensei que essa fase de pintura da Miminha fosse dar tão certo.

Quando chegaram em casa, a menina desceu depressa do carro para ir guardar seu dinheiro. Ia atravessando o jardim, quando as notas voaram de sua mão. O vento deu um assoprão.

— Não acho graça, zangou a menina, enquanto corria de um lado para outro, para catar seu dinheiro.

— Foi o jeito de fazê-la parar um pouco. Você ia entrando em casa como uma ventania. Miminha riu da graçola do vento. Este continuou:

— Dei seu recado aos amigos todos. Eles vêm, reunidos, falar com você. Fiz mais: dei um assoprão tamanho no pombal que o bilhete voou longe. Deixei a pombinha branca em prantos.

— Coitadinha! Ela é tão responsável! Deve estar desolada. Mas, conte! E o sapo, o que fez?

— Assim que soube, ficou meio triste. Depois, disse que isso parecia um aviso e que ia pensar na vida. Deixei-o à beira da lagoa coaxando, coaxando...


 

Uma sapinha na lagoa

 

Lá está o sapo, olhando a lua cheia. Ele a admira ainda, mas de modo diferente. Miminha tanto falou que conseguiu convencê-lo de que o amado satélite está muito alto, muito longe... Há tanto o que fazer por aqui e ele não quer mais ser um sapo egoísta

O bilhete sumiu e desta vez não saiu procurando. Também, sabia lá onde o maluco do vento o levou? Pior que o saci...

Desistiu da idéia da casa para a lua. Afinal, era um absurdo mesmo. O joão-de-barro e o pica-pau saberiam compreender que a encomenda teria de ser suspensa. Eles, tão bons, tão sensatos! Continuou olhando a lua, mas, de repente, eis que ela desapareceu. O sapo ficou encabulado, pensando que ela também achava que aquele caso não dava certo mesmo.

Se Miminha estivesse ali, teria explicado que houve um eclipse da lua, mas não estava e ficou por isso mesmo.

— Bem-te-vi!

— Eu também estou vendo. A lua se escondeu de mim.

— Eu tenho um recado para você.

— Já recebi um da Miminha, para ajudá-la e vou amanhã cedo, junto com os outros amigos.

— Não é dela. É de outra, explicou o novidadeiro, com ar misterioso.

— Já sei, é da pombinha branca, exclamou o sapo, triunfante.

— Não. Ela nem quer ver você, depois que o vento carregou o bilhete. Eu a vi se lastimando, arrancando as penas da asinha, de tanto desespero.

— Bobagem dela. Eu não estou me importando. Mas... de quem é o recado?

— De uma prima sua, de uma sapinha daquela lagoa do bosque em que você esteve na noite do saci, lembra-se?

— Acho que sim. Uma que ficou suspirando quando eu vim embora?

— Essa mesma, seu convencido! Ela mandou convidar você para uma reuniãozinha que vai fazer no aniversário, no último dia do mês. A “orquestra dos sapos batutas” vai tocar.

— Pois eu vou. Sabe, mais vale uma sapinha na terra que uma lua no céu.

— Está ficando ajuizado, isso sim. Vou indo dar o recado à sua prima.

Saiu voando. O sapo abanou a cabeça: — Passarinho maluco! Isto é hora de estar acordado?

Olhou para o céu. Não viu a lua. Então, mergulhou na lagoa. Tinha algo muito importante para resolver, lá no fundo...


 

Os amigos todos

 

Miminha estava sentada perto do caramanchão de maracujá, todo florido. Colheu uma flor, pôs-se a observar. Linda. Flor-da-paixão. Roxa, com os pregos, a coroa de espinho e tudo.

Daniel estava ali por perto. Sua voz chegou até a menina:

Hoje é domingo
Pé de cachimbo
cachimbo de barro
bateu no jarro
jarro é fraco
caiu no buraco
buraco é fundo
acabou-se o mundo.

— Acabou nada, pensou Miminha. Até que para mim vai começar o mundo. O importante é fazer alguma coisa de bom, é querer ajudar os outros. Tenho agora um dinheirinho para começar a Escola. Meus amigos vão me ajudar. Sei disso. Tenho certeza.

De fato, eles foram chegando, de um por um, oferecendo os préstimos.

O joão-de-barro, com o anel de doutor brilhando no dedo, foi logo dizendo que Miminha podia contar com ele para o que desse e viesse. O pica-pau, por sua vez, afirmou que o que estivesse ao alcance dele, faria com todo gosto. E o pombo-correio ofereceu-se para recados e mensagens. A pombinha branca, tímida e triste, conseguiu dizer que estava às ordens da menina. Quando tivesse de guardar alguma coisa, teria todo cuidado com o vento.

E o papagaio lembrou que, sempre que fosse preciso repetir um falatório, contasse com ele.

— Vai ser uma espécie de gravador, não é? — caçoou o bem-te-vi.

— E você, o que vai fazer? — perguntou a menina ao passarinho.

— Posso “descobrir” as coisas para você. Vou ser detetive, você sabe!

— Então, comece já. Descubra o sapo para mim. Falta só ele nesta nossa reunião.

O bem-te-vi deu um vôo rápido e voltou, instantes depois, às gargalhadas.

— Está escondido lá adiante. Diz que o menino mau está muito perto e tem medo. Ouviu dizer que ele faz horrores com sapos.

— Fazia, corrigiu a menina. E continuou:

— Você vai voando devagarinho, até onde está o sapo. Eu vou atrás.

Foi indo, no caminho convidou Daniel para seguir junto.

Chegaram no lugar indicado pelo bem-te-vi e a menina mostrou ao garoto o sapo, todo encolhidinho, com ar medroso.

— Olhe, disse ela. — Lembra-se de nossa lição de ontem? O que foi que eu contei sobre o sapo?

O menino foi logo dizendo:

— É um animal útil. Ajuda a gente. Ele come bichinhos que estragam a plantação, devora as pragas da lavoura.

— Muito bem. Nota dez. Agora, a última pergunta: Se é amigo da gente, como deve ser tratado?

— Muito bem. Não se deve judiar dele, nem matar, não é?

Nem bem acabou de falar, já estava longe, atrás do seu papagaio de papel.


 

É preciso fazer alguma coisa

 

Cururu estava inchado de alegria. Sentia-se importante, era assunto de lição! Além de batráquio (este nome não o agradava) era animal útil.

Miminha foi voltando para perto do caramanchão. Estava corada e bonita, com uma flor de maracujá no cabelo.

No caminho, o sapo foi explicando que mudara de idéia, resolvera deixar de lado aquela paixão pela lua.

— E a casa?

— Eu ia desistir da encomenda, mas, pensando bem durante a noite, resolvi mandar fazer. Será uma surpresa para minha prima sapinha, uma que mora na lagoa do bosque... Ela vai ser, no futuro, a senhora Cururu .

Miminha riu, compreendendo.

— Cocoricó!

Pimpão atravessou-se no caminho, dizendo que, quando Miminha precisar de um despertador, ele está às ordens.

— Claro que aceito. Com tanto trabalho pela frente, é preciso madrugar.

Chegaram onde estavam os outros bichos. Só faltava o sapo fazer seu oferecimento. Como ele tinha fama de egoísta, havia uma ansiedade geral.

Ele pigarreou e todo solene, foi falando:

— Estou disposto a ajudar os outros. Mudei de vida. Não sou mais aquele sapo egoísta, aquele... como é mesmo Miminha?

— Alienado. Você não consegue decorar esse nome!

— É mesmo. Não sou papagaio. Mas, sei o que quer dizer: afastado, longe do que se passa. Agora não sou mais assim. Não quero viver olhando a lua. Quero fazer alguma coisa. Todos estavam admirados e o papagaio repetia, como num eco, as últimas palavras:

— Fazer alguma coisa. Corrupaco, papaco.

O sapo parou para descansar e a pombinha secretária trouxe um pouco d'água numa folha de inhame. Ele bebeu e continuou:

— Além de meus serviços de animal útil, quero oferecer para Miminha duas pedras que recolhi no fundo da lagoa. Tirou do balainho duas pedras lindas, brilhantes e diferentes.

— Devem valer alguma coisa .

Miminha ficou encantada, pegou-as, agradeceu e disse que ia pedir para o pai vendê-las. O dinheiro seria para a escola. Livros, material escolar, merenda, tudo isso custa uma nota. Os bichos começaram a despedir-se. Todos tinham o que fazer. O sapo foi o último a partir, pois fez questão de ver a pintura de Miminha e não se cansava de contemplar o jabuti que, no seu passo vagaroso, já meio convencido, desfilava com aquela carcaça espetacular.

— De outra vez, você pinta a minha pele, Miminha. Quem sabe eu fico mais bonito... gracejou o cururu.

E foi embora, pulando.

O vento passou, embaralhou o cabelo da menina e jogou longe a flor do maracujá.

E trouxe também a voz do papagaio, repetindo uma frase que lhe ficou lá no fundo da cachola:

— É preciso fazer alguma coisa...

Este livro foi escrito antes que o homem fosse à lua.


 

Ridendo Castigat Mores
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