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Leonardo Trevisan

INSTITUIÇÃO MILITAR E ESTADOBRASILEIRO

—Ridendo Castigat Mores—


 

Instituição militar e Estado brasileiro
Leonardo Trevisan
Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
www.jahr.org

Copyright © 2.000
Autor: Leonardo Trevisan
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia
(1947-2002)


ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia

INSTITUIÇÃO MILITAR E ESTADO BRASILEIRO
I
QUEM DECIDE O QUE É TEMPO DE CRISE?
II
A SAUDADE DO PERIGOSO EQUILÍBRIO:
PENSANDO O PODER MODERADOR.
III
O INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA E O SENTIDO DA REPÚBLICA.
IV
O LONGO CAMINHO DA ESPADA SEM RUMO ATÉ A "POLÍTICA DO EXÉRCITO".
V
QUESTIONANDO O TEMA DE SEMPRE:
LIBERALISMO, OS DEMOCRATAS E A PORTA DOS QUARTÉIS.
VI
1954/1964/1968?
OS VÁRIOS ENSAIOS GERAIS DO MESMO DRAMA.


INSTITUIÇÃO MILITAR
E
ESTADO BRASILEIRO

[imagem]

Leonardo Trevisan


APRESENTAÇÃO

A Instituição militar e o Estado Brasileiro é um trabalho interessante para quem quiser entender o papel das Forças Armadas no Brasil, desde os seus primórdios até 1964.

Seu autor, Leonardo Trevisan, é professor e jornalista. Leciona na PUC/SP desde 1982. Desde 1987 trabalha em “O Estado de São Paulo”. É doutor em Ciência Política pela FFLCH da USP, título obtido em 1993, com pós-doutoramento na Universidade de Londres (set.96/set.98).

Nélson Jahr Garcia


I

QUEM DECIDE O QUE É TEMPO DE CRISE?

 

Quando falamos em Ordem Constitucional, Estado de Direito, a preocupação maior é sempre com a exceção, com o anormal, e muito pouco com a regra, com a rotina. O objetivo constante das nossas maiores atenções é o momento em que se quebra a ordem, o momento em que se rompe com a normalidade. Neste instante, ou pelo menos na iminência dele, paramos para a reflexão: uns tentando entender para encontrar o esconderijo certo, o porto seguro, outros em busca dos culpados para o competente acerto de contas.

Em nossa fantástica Latino-América, geralmente, a exceção, como nós por costume a chamamos, caracteriza-se sempre pela intervenção dos militares na ordem política. A escolha destas palavras, em seu eufemismo, revelam outros aspectos do tema. Primeiro, de fato, não é uma intervenção, é um ataque de quem detém a força sobre quem não a possui. Segundo, constitui-se em uma desordem da velha “ordem das coisas” e que eternamente esquecemos. Os militares abandonam sua profissão, funcionários do Estado que são, e invadem esfera que não lhes pertence: a política — coordenadora da ação do Estado — espaço de ação e reação exclusiva dos civis, até mesmo porque são sobre estes, essencialmente, que recaem os efeitos da “citada política”, sorrindo com seus acertos, sofrendo com seus erros.

Palavras, palavras.., como diria um inglês famoso de alguns séculos atrás. Realmente, é muito importante repor o verdadeiro sentido, o verdadeiro significado que as palavras têm. Porém, talvez alcance maior importância analisar melhor o tema da intervenção militar propriamente dita do que uma longa discussão semântica. Uma observação inicial: visto da maneira como redigimos no parágrafo anterior, a intervenção armada parece a ação de um monstro mau, talvez de origem extraterrestre, que despenca e invade um paraíso de concordância e felicidade. Nada mais enganoso, e todos nós sabemos que o processo não é tão simples assim. Esta visão de monstro mau, que antes de mais nada é ingênua sobre o tema, abre uma questão: como seria possível o assalto, e mais ainda, a longa permanência no poder do estamento militar, sem nenhum apoio, sem um consentimento, mesmo que disfarçado, de parcela considerável da população? A História da espécie humana não registra nenhum caso de ocupação eterna do poder, pela força, que não implicasse em constantes rebeliões, imensos massacres. Não é o caso de nossa América Latina e muito menos do espaço brasileiro dela. Se constatamos que a vida política desta parte do continente está impregnada dos eternos “pronunciamentos” que se sucedem, em uma desesperante monotonia (existindo mesmo um Estado com mais golpes do que anos de vida independente) o que passa a nos interessar não é esta troca do ocupante do poder um outro assunto — mas sim o “sucesso” desta forma de governo, deste tipo de exercício de poder. A primeira etapa deste trabalho busca entender os motivos deste triste sucesso.

O caso brasileiro é o objeto principal de nosso texto e vamos utilizá-lo como exemplo, guardadas suas especificidades dentro do contexto latino-americano. A última “visita” da força do poder constitucional foi em 1964 — o que é discutível, mas enfim aceitamos a versão mais conhecida. Passadas mais de duas décadas, serenadas as paixões políticas daquele momento, a mais autêntica oposição da época, reconhece hoje em suas próprias análises a mínima resistência; resistência militar mesmo só a simbólica do General Zerbini no Vale do Paraíba; popular, o registro é muito reduzido e a resistência política foi ainda menor. Por quê? Cansaço da situação anterior, reconhecimento do “poder da força”, enfado da velha ordem? A questão do consentimento, da disfarçada ou não permissão para a aventura, para a ocupação do poder pela força permanece sem resposta.

O tema das raízes ibéricas

Uma interpretação que expomos para este consentimento, explícito ou implícito pouco importa, justifica-se pelo que chamaríamos, por falta de melhor expressão de um espírito de cega obediência. A compreensão da idéia exige um mergulho nas próprias origens de “nuestra América Latina”, em suas esquecidas raízes ibéricas. Ë importante perceber que a idéia de obediência vincula-se à idéia de Metrópole, pois o primeiro dever da Colônia era a obediência, inviabilizando qualquer conceito de negociar poder, de participação nele, já que a centralização absoluta era o princípio inerente à existência do próprio sistema colonial. Porém, como bem observou Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico Raízes do Brasil, a obediência já era a virtude suprema entre ibéricos, muito antes de conhecerem a América, constituindo-se a citada obediência cega no “único princípio político verdadeiramente forte”. O autor afirma que: “a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens” formavam a única forma de “disciplina concebível” entre portugueses e espanhóis em sua tradição histórica. Esta herança colonial teria vínculos com nossa cúmplice passividade frente aos “pronunciamentos militares” tão típicos? Esta herança estaria presente em nossos costumes políticos contemporâneos?

Talvez, os melhores argumentos para o debate desta interpretação encontra-se não nas grandes esferas da ordem política, nos degraus superiores do exercício do poder, mas sim na análise das próprias formas de poder bem mais próximas de nós, bem do dia-a-dia de qualquer um. Por exemplo, todo brasileiro urbano convive diretamente com um exercício de poder discricionário bem próximo dele: o síndico de seu prédio, o sucessor da figura caída em desuso do velho “inspetor de quarteirão”. Quem de nós já não observou a mutação ocorrida com o vizinho de ontem, quieto, respeitoso, algo cabisbaixo, enfim obediente, como plenipotenciário síndico de hoje: falante, exigente, discursivo, inquiridor, vivendo o seu momento de “disposição de mandar”. Assim que “perde” o mandato (e geralmente o perde e não o entrega), cumpre a amarga viagem de regresso à “disposição de cumprir ordens”, voltando ao seu costumeiro silêncio respeitoso. A reflexão quanto a esta forma de ação política é obrigatória: o uso do poder pressupõe o sonho da autoridade plena, do poder sem negociação, sem “sócios”, sem participante, ou então... o silêncio da obediência. Heranças históricas são heranças históricas e nada mais. Todos os que revelam o apetite de mando, o ímpeto da liderança, cresceram neste quadro, assim como todos os seus liderados. O estudo do triste sucesso das formas autoritárias de poder passa por uma compreensão quase antropológica de nuestra obediência cega. Em tempo. Seria desnecessário afirmar que nada é eterno e muito menos imutável, porém também sabemos que o exorcismo de qualquer mito, principalmente os de caráter político-social, começa pela ousadia de enfrentar a realidade, e não por negá-la, imaginando que somos exatamente o contrário do que o espelho nos revela.

Por que são sempre os militares?

Assim, buscamos compreender quais as raízes dos “sucessos” das intervenções militares. A análise exige uma segunda etapa: por que os militares e não os padres, ou os fazendeiros ou os médicos etc., são sempre os protagonistas essenciais dos golpes? A resposta rápida, da possibilidade do uso da força, porque detêm a posse da arma é, em si mesma, limitada. A arma, sua compra ou mesmo sua manutenção custa recursos que não são gerados e nem geridos por quem está na guarda dela, sejam soldados ou oficiais; depois, o próprio uso da força, como poder emanado exclusivamente dele, tem duração muito curta. A posse da arma é importante para a manutenção do poder, mas é prescindível para a conquista dele. O que propomos é que o militar age sempre como agente interventor frente à ordem constitucional muito mais pela força institucional que possui e menos porque tem o fuzil nas mãos.

Este aspecto, o peso institucional, é básico para a compreensão do relacionamento entre as Armas e a Política, principalmente no caso brasileiro. É preciso um retorno ao nosso momento de Independência, às características gerais deste processo para a compreensão desta expressão “peso institucional”. A experiente burocracia metropolitana portuguesa, com a Abertura dos Portos de 1808, concilia seus interesses com os produtores internos, transformando-se em seus representantes políticos naturais. E este o motivo, como bem observou Oliveiros Ferreira em seu estudo O Estado e a Oligarquia e o Sistema, que faz o Estado ser o “autor” da Independência e garantia da unidade nacional em termos territoriais, exatamente pela eficiência desta estrutura burocrática.

E esta burocracia, em todos os seus limites ou em toda a sua eficiência que propõe um Projeto alicerçado no desenvolvimento de uma estrutura sócio-política típica, que antes de mais nada priorizava o que chamaríamos de o arco de poder burocrático. A maior dificuldade para a implantação deste Projeto consistia na própria reprodução desta burocracia (já que o celeiro natural, Coimbra, enfrentava obstáculos que o próprio sentido de país independente impunha) foi resolvida com a rápida formação das Faculdades de Direito em 1827, São Paulo e Recife, as fábricas de bacharéis que sustentariam, por longo tempo, a demanda de quadros necessários para o exercício do poder. Qualquer alternativa a este Destino para o país, traçado pelo mundo dos bacharéis, exigiria, para ter expressão social, um peso de Instituição. É por isto mesmo que o Exército já nasceu vigiado desde os primeiros momentos do país independente. “Ele”, enquanto instituição, era a única possibilidade de perigo.

Desde a Constituinte de 1823 o Exército ameaça; e não é só porque tenha fuzis e canhões, e sim porque pode oferecer ascensão social a seus quadros, possui uma alternativa viável ao poder burocrático, e por isto mesmo sintetiza um risco. Não vamos adiantar o texto, pois o tema é assunto de capítulo específico, mas os problemas criados para D. Pedro I, pelo General Avilez, tem o mesmo teor dos criados por Góes Monteiro, em seu tempo, guardadas as proporções históricas que um século e tanto de diferença provocam. Desde o P. Feijó que em 1831 cria a Guarda Nacional, para contrabalançar o poder das Armas (será tão simples assim?), as mais engenhosas soluções são tentadas pelo que chamamos de “arco burocrático”, para equacionar o eterno problema militar. Porém o problema esfria, diminui, controla-se, mas não se extingue; volta e meia da roda da História “ele” ressurge porque insolúvel é a sua premissa: o Destino para a nação brasileira, traçado pela burocracia, nem sempre é único. E sempre encontrará na outra instituição nacional, as Armas, o seu oponente natural. É por este motivo que golpes à ordem constitucional restringem-se sempre ao mesmos autores, mudando simplesmente a cor de farda.

A seqüência das intervenções

Estes dois elementos: o princípio da obediência cega ao lado da alternativa, enquanto Destino para o país, que os militares representam, compõem uma estranha aliança que justifica nossa argumentação de que a crise é eterna; em pouco mais de século e meio de vida independente, quantas intervenções conhecemos? Enumeramos somente anos básicos dos envolvimentos dos militares com a ordem política: 1821/1823, 1889, 1893, 1922, 1924, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1955, 1956, 1959, 1961,1964.

Duas palavras sobre esta impressionante seqüência: a longa estabilidade da Era Imperial é questionável para alguns, devido a ausência da data de 1868, já que a versão histórica mais comum costuma apontar uma crise sensível — equívoco que inclusive já cometemos — neste momento; tanto o fato como as versões merecem uma interpretação mais cuidadosa. Outro detalhe: porque paramos em 64, pois todos os brasileiros sabem que a Revolução deste ano conheceu outras revoluções dentro da primeira; para ficarmos simplesmente na data mais ostensiva, lembraremos de dezembro de 1968. Insistimos que estes dois temas, exatamente por sua importância, serão objeto de capítulos específicos.

Contudo, retomemos a seqüência cronológica, mesmo com seus necessários reparos. A simples observação das datas, a quantidade de intervenção, afiança a idéia de que a crise é sucessiva, constante. Porém, o poder foi exercido oficialmente pelos militares por pouco tempo: logo após a República e por duas décadas em seqüência à Revolução dos anos 60. De fato, se olharmos a galeria dos Presidentes da República, vestem farda um número ínfimo deles. Porém, todo historiador reconhece a importância da opinião dos militares e a própria seqüência cronológica das crises é a prova. Mas os civis quase sempre foram governo e fica a pergunta: enfim, como a ordem política, o mundo do civis contornaram as intervenções?

Utilizando a Constituição, a lei, o texto escrito? Qualquer brasileiro adulto duvidaria, e muito, da eficácia do “apelo constitucional” para o controle do poder das Armas. E esta opinião não poderá ser diferente se tomarmos como referência o nosso passado histórico. Como simples exemplo, ocupemo-nos da longa Era Imperial, indicada como um período sem intervenções armadas; mesmo nesta época não foi o texto constitucional que “os” impediu de dar golpes. A Constituição de 1824 especificava simplesmente que as Armas deveriam ser “essencialmente obedientes” e ponto. E se durante o Império os fuzis e os canhões, incluindo os de mar foram obedientes, o foram por outro motivo, o próprio mecanismo de poder do Império (que analisaremos em conjunto ao próprio conceito de Poder Moderador) e não porque o texto constitucional assim os ordenava. Quanto à República, a própria seqüência cronológica apresentada demonstra o volume do envolvimento dos militares com a ordem política, dispensando algumas vezes por completo o “apelo constitucional”. Contudo, não percamos de vista nossos objetivos essenciais, com discussões introdutórias, conceituais, que já se alongam demais. O objetivo primeiro deste livro é apresentar os momentos históricos em que a instabilidade ficou mais aguda, debatendo o caráter, o sentido histórico-político que cada uma destas instabilidades tomou.

E para cumprir esta tarefa, escolhemos alguns destes momentos em que o “termômetro” subiu muito e deles consideramos as diferentes versões, visando mais uma análise e menos uma longa exposição informativa. De fato, o que o leitor encontrará neste texto é um pouco da descrição do cenário e as justificativas da atuação dos atores de alguns dos atos deste eterno drama das investidas da força sobre a ordem política vigente.


II

A SAUDADE DO PERIGOSO EQUILÍBRIO:

PENSANDO O PODER MODERADOR

 

Enquanto procurávamos argumentos que justificassem ao leitor nossa idéia de que sempre é tempo de crise, encontramos um personagem histórico um tanto desconhecido: o General Avilez. Em verdade, este militar português foi protagonista principal de um elucidativo episódio sobre o relacionamento entre políticos e militares, ocorrido quando já vivíamos um clima de quase infidelidade à Metrópole: junho de 1821. A descrição minuciosa do episódio pertence a Varnhagen em sua História da Independência do Brasil. Oliveiros Ferreira, em seu estudo já citado, foi quem primeiro notou a importância do episódio.

D. Pedro fica informado ainda a 4 de junho de 1821 da “distribuição das proclamações na cidade e de que a divisão se preparava para, em armas, lhe fazer no dia 5 um requerimento.., que o próprio Avilez era quem estava à frente das tropas”. o Príncipe pretendendo antecipar-se aos fatos, durante a madrugada do dia 5 “julgando com sua presença evitar o rompimento” dirigiu-se em pessoa ao Rocio onde “se estava reunindo os demais corpos da guarnição, todos em armas”. Varnhagen retrata bem o clima do momento... “chegando ao Rocio perguntou o Príncipe com ênfase — “quem fala aqui?” — “Eu, pela tropa” respondeu Avilez. — “E que querem?” — “Jurar as bases constitucionais portuguesas”. O Príncipe contra-argumentava que “unicamente sentia que tivessem posto em dúvida seus sentimentos constitucionais”. Passam todos à sala do vizinho Teatro de São João onde D. Pedro insinua uma ausência de legitimidade de quem “pediu a palavra”, por sinal um Padre, José Narciso, que falara “em nome do povo”.

O impasse que D. Pedro tentara é imediatamente anulado; o relato deste momento do episódio não deixa dúvidas sobre quem podia fazer exigências: “a isto intervieram alguns oficiais declarando que, não estando eles habituados a orar, haviam pedido ao padre, que era pregador, que fosse deles o órgão”. O Príncipe percebe perfeitamente as suas possibilidades, e medindo as palavras faz a resistência possível (aliás, a de sempre em nuestra tierra a da frase de apelo racional... Bem, prosseguiu então o Príncipe, ouvi-lo-ei da parte dos oficiais e da tropa. Mas devo-lhes advertir que a tropa não é a Nação: pertence à Nação; mas como tropa, nem é admitida a votar nas eleições”.

A “rendição” é completa do poder desarmado. Acompanhamos a seqüência do episódio: “sendo-lhe pelo padre, em nome da tropa, pedida a demissão do Conde dos Arcos, perguntou ele: — “E quem há de substituir?” — Respondeu-lhes que a ele competia a nomeação. — “Bem, mas quem julgam bom?” Proferindo em seguida alguns nomes, lembrou-se um oficial de citar o desembargador do Paço, Pedro Alvares Diniz, que era da sua terra. Ao que respondeu logo o Príncipe: — “Pois será o desembargador Alvares Diniz”.

D. Pedro insinuara uma resistência alertando a tropa que pertencia à Nação; porém, ao mesmo tempo — revelando perfeita consciência de seus limites — é a “eles” que pergunta: mas quem julgam bom? Não seria necessário lembrarmos as “coincidências”, a eterna repetição desta mesma cena cuja primeira representação data dos momentos finais do nosso período como Colônia. Quantas vezes conheceu o poder a obrigatoriedade de perguntar: mas quem julgam bom? A tropa pertence à Nação, porém... Como contê-la? Como lembrá-la de que é submissa, se o próprio poder — mesmo lembrado de que é poder — pergunta a quem o é de fato: quem julgam bom?

 

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OS TEMPOS MUDARAMJeca (a Pedro I) — Bem. Em 1822 podia sê difícel. Mas hoje quarquer malandro faz a INDEPENÇA. (A propósito da comemoração do dia 7 de setembro) — Careta (5.9.1953).

 

Frente a estas situações-limites, como preferimos chamar, o comportamento dos civis, ocupantes oficiais e formais dos cargos de poder é quase sempre o mesmo. Permitamos que Varnhagen complete o seu relato... “Ainda que se achavam já presentes três dos secretários de Estado, faltando só o Ministro Conde dos Arcos, que se deu por doente, nenhum deles tomou a si prestar-se a tomar a palavra e a ajudar o Príncipe. O Conde da Louzã começou a chorar e a pedir que lhe dessem uma junta, a fim de evitar-lhe a responsabilidade no tesouro, e foi necessário para o calar que o Príncipe lhe desse um safanão no braço, perguntando-lhe se tinha perdido a cabeça”. Aparentemente nada se perdeu no episódio exceto a honra, como diriam os antigos. Se elucidativo é o comportamento, ou melhor as lágrimas de alguns, se resquícios de dignidade ainda sobraram ao Príncipe, a questão essencial permanece a mesma: a tropa pertence “mesmo” à Nação? Como fazer para lembrá-la de que então é submissa?

A palavra responsabilidade

O Império montou uma estrutura — oriunda da Constituição de 1824, depois aprimorada ou completada — que revelou ao longo do tempo sua eficiência em estabelecer princípios ordenadores na relação entre a Nação e as Armas. A essência dessa estrutura, sem dúvida alguma, é o velho tema do Poder Moderador. A expressão fala um pouco por si mesma: moderador é o que exerce contenção dos extremos, a eqüidistância entre os contrários e, portanto, exige o constante uso da sábia virtude do meio-termo, resolvendo o fato, que também está contido na expressão — e às vezes perdemos este outro sentido da expressão de vista — de que o moderador seja ele de qualquer situação, deve estar revestido de poder para levar a bom termo sua atuação.

Estes dois significados da expressão “moderador” estão presentes na Constituição de 1824. Com os olhos postos na realidade do país o texto legal que vigorou até a República equacionou o Poder Moderador ao lado dos tradicionais Executivo, Legislativo e Judiciário, buscando uma forma jurídica bem ostensiva, de assegurar o papel que o Estado deveria “continuar” a ter no Brasil recém-independente. Constitucionalmente cabia ao Poder Moderador exercido pelo Imperador, a nomeação e a evidente demissão de Ministros, estes oriundos sempre pelo Sistema Parlamentarista da Câmara dos Deputados, eleitos oficialmente pelo povo; competia também escolher os Senadores em lista tríplice, podendo dissolver a Câmara, convocando novas eleições, facultando até mesmo suspender ou transferir magistrados. O volume de poder outorgado legalmente ao Moderador exige uma compreensão melhor do próprio sentido deste sistema.

O problema básico para bem compreendermos o Moderador é o conceito de responsabilidade, pois a essência deste poder Moderador está em que ele, enquanto poder, não presta contas a nenhuma força, seja ela política ou jurídica, acabando por ser, de fato, irresponsável frente a qualquer julgamento. É por este motivo que o Poder Moderador é exercido pela pessoa do Soberano que prescinde de justificativas à sua atuação, já que a lei máxima não propõe nenhuma instituição com caráter superior, constitucionalmente reconhecido, para empreender o julgamento dos Atos do Imperador.

O sistema em si mesmo pouco significaria frente à possibilidade de “pronunciamentos”, porém a sua própria dinâmica, ao lado de certos aprimoramentos como a instituição do Conselho de Estado — 1841 —, criado posteriormente para evitar os riscos do militarismo, a ponto de Joaquim Nabuco poder afirmar na Câmara: “entre nós não há perigo de militarismo”, lutando pelo direito de voto dos praças. Em que pese este otimismo precoce de Nabuco, o fato é que o Imperador, com o exercício do seu Poder Moderador, regulando a sucessão dos Gabinetes, tivessem ou não maioria na Câmara, impedia o crescimento até o imponderável, das crises políticas, pois mesmo um hipotético enfrentamento entre militares e políticos seria um enfrentamento entre as Armas e aquele Ministério, daquele momento, por não receber a necessária competência política, cairia aquele ministério, mesmo com maioria, por ato do Moderador sendo dissolvida a Câmara e convocadas novas eleições, preservando-se a figura do Imperador, esteio de todo aquele arcabouço político.

Como manter Armas “essencialmente obedientes”

Contudo, a questão das Armas não estava completamente equacionada, pela eficácia de funcionamento da ordem política do Império; tensões existiam e devem ser compreendidas em seus exatos limites. Provas destas tensões são o desenvolvimento de outros mecanismos de controle, mais ou menos ostensivos, para que o poder armado permanecesse “essencialmente obediente”. O primeiro deles, e é preciso tê-lo sempre em vista, por mais elementar que pareça, é a disponibilidade mínima de recursos, a absoluta ausência de maiores verbas para o Exército e Marinha, na dotação orçamentária de todo o Império. Faoro, em trabalho de leitura obrigatória, Os Donos do Poder, fornece os dados destes recursos: em 1850, a parcela era de 40% , em 1872 cai para 34%, para depois de 1877 fixar-se em menos de 20%.

Também a própria carreira das Armas estava destinada essencialmente ao pobre. O soldo, seja de soldado ou oficial, era ínfimo, eternamente atrasado, sendo inúmeros os exemplos, em uma vasta literatura que sempre procura demonstrar que “a vida da caserna era mantida como uma espécie de castigo”, reafirmando a verdadeira miséria em que viviam militares, mesmo de patente superior. Se esta política era fruto de objetivos definidos, cumprindo um plano pré-estabelecido é difícil comprovar; porém, que limitava, sem dúvida alguma, o espaço de manobras dos homens de Armas, principalmente porque roubava da própria carreira o prestígio social, elemento básico para pretensões mais altas. Como veremos, esta situação quase penúria, principalmente pós-Guerra do Paraguai, ateou — ao contrário de controlar a chama mantida em fogo — brandamente todo o Império, da intervenção militar.

Se oferecer poucos recursos econômicos era um mecanismo de controle de duvidosa eficiência, a criação e manutenção da Guarda Nacional caracterizou-se em um mecanismo ostensivo para exorcizar o risco do “pronunciamento”. Esta visão, que pela própria repetição transformou-se em mais uma verdade histórica incontestável, merece alguns comentários. O primeiro deles refere-se à própria situação em que a Guarda Nacional é criada: em 1831, auge da crise da abdicação de D. Pedro I, quando era muito forte o movimento por uma restauração portuguesa, de inspiração liberal, toda a sua estrutura foi organizada a partir do comando de um oficial do próprio Exército, ninguém menos do que o futuro Duque de Caxias. E um fato que a partir da década de 1850, em um novo contexto político, a Guarda poderia ser um instrumento de contenção dos desmandos da tropa de linha. Porém, estes não eram os seus objetivos de origem, e nem o seu comportamento, pelo menos até a Guerra do Paraguai. A Guarda constituía-se em uma tropa auxiliar, sempre utilizada por Caxias para a repressão dos movimentos regionais, daí a sua exigência constante de ser nomeado Presidente da Província para, legalmente, comandar a Guarda Nacional da área em sedição.

Um outro aspecto que deve sempre ser considerado para a compreensão desta tão longa estabilidade do Império frente à questão das intervenções militares, é o mecanismo de cooptação para o jogo político-partidário, das principais lideranças do Exército, seja para os conservadores ou liberais. Caxias e Osório são os exemplos mais significativos desta participação política em que todos, incluindo os generais, aceitavam a regra e a “moderação” do regime, porque dele participavam. É só a partir do final da Guerra do Paraguai, ou melhor, da humilhante e urgente desmobilização praticada, que este quadro conhecerá um lento processo de mudança até a sua superação plena. A geração de oficiais que fez a guerra efetivamente, e não a que a comandou, terá uma visão diferente do Império e passará da desconfiança ao desprezo por suas Instituições.

Os magros recursos, a “concorrência” da Guarda Nacional eram mecanismos de controle pouco eficientes quando comparados à cooptação política. É verdade que o grosso da oficialidade do Império, até 1870, tinha reservas quanto aos políticos, que não era partilhada por seus Comandantes maiores. Porém eram reservas, nada além destas, embora um texto interessante de John H. Schultz, O Exército e o Império, fale de um jornal datado de 1855 — O Militar — em que os “legistas”, ou seja, os políticos, são os “grandes, talvez os únicos responsáveis pelo atraso do Império”, e que reservaram aos militares um “manto espesso de ignomínia e de miséria”. Contudo, o próprio Schultz reconhece que as relações políticas eram fundamentais para as promoções do oficialato, que fariam esquecer certas “opiniões do tempo da Academia”.

Os problemas entre o General e o Gabinete

E este envolvimento de lideranças militares com a luta político-partidária justifica o célebre incidente entre Caxias e Zacarias, de 1868; de fato o incidente caracterizou-se por uma luta entre políticos, compreendendo-se Caxias como tal e não, note-se bem, uma luta entre políticos e militares. Em verdade, o incidente conhecia graves precedentes que em nada envolviam diretamente o Gabinete e o General, pois começou com a “compra”, pelo Gabinete Zacarias, do Diário do Rio de Janeiro, transformado em um porta-voz ministerial. O caso redundaria em enorme escândalo meses depois quando o jornalista Navarro de Andrade, do Diário, um dia antes de partir para a Europa para assumir o Consulado prometido e após receber a competente ajuda de custos, procurou o jornal da posição, dos Conservadores, revelando-lhes toda a trama. O Jornal dos Conservadores publicou que o verdadeiro motivo do repentino consulado europeu para o jornalista não era o prêmio mas sim uma dispensa, uma expulsão, tendo em vista que Navarro, em seus artigos sobre o Paraguai, cobria de elogios a atuação de Caxias, o que não agradava o Ministério dos Liberais. Era um mero pretexto para abrir uma luta política entre políticos, e não uma contenda de princípios entre militares e políticos. Mesmo porque, como afiança Sérgio Buarque de Holanda, em seu estudo Do Império à República, analisando em detalhes o incidente, assegura: “nem é de crer que Caxias se dispusesse a servir de instrumento”. Contudo, o jornal conservador insistia em uma disputa entre o General e o Ministério, visando a queda do gabinete liberal de Zacarias.

O desenvolvimento da guerra em 1868, para Caxias, indicava o seu término, o que provocava grandes desentendimentos, pois o Gabinete não endossava plenamente esta posição do Comandante. O confronto de posições repercutira politicamente no Rio. Caxias envia um ofício pedindo exoneração do Comando, alegando problemas de saúde que pouco convenceram, pretendendo quase ostensivamente uma renovação da confiança nele depositada. A questão alcançou proporções políticas exclusivamente: sai o Gabinete dos liberais ou o comandante general aliado dos Conservadores? Ou mantém-se ambos, renovando o compromisso de confiança no Comandante? O Conselho de Estado pronuncia-se pela manutenção de ambos, por unanimidade. O Imperador, contudo, exige uma solução motivado pela urgência de Guerra. O Conselho, em sua maioria, mesmo com votos de amigos pessoais de Caxias, vota pela manutenção do Ministério. D. Pedro II fez sentir o seu desagrado com a decisão e o próprio Ministério provoca um incidente “para sair”, por perceber que o Poder Moderador tinha retirado a confiança nele depositada.

 

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As falas do trono fabricadas pelos nossos governos parecem não ter outro fim senão abalar o próprio trono e colocar a monarquia em tristíssima posição. (Rodolfo Dantas, chefe da oposição, põe D. Pedro no chão, enquanto o garoto da Revista e o índio brasileiro gozam a cena, de camarote.) — Revista Ilustrada (21.1.1882)

 

De fato e de direito o ofício de Caxias não representou nenhum ultimatum ao Ministério, e muito menos ao Império, algo absolutamente fora de cogitação, especificamente para o militar envolvido neste incidente. Contudo, bem diferente, como já propomos é “a volta”, quando do fim da Guerra do Paraguai; um Exército algo desiludido, com oficiais que viveram uma guerra desesperada, voltam sem festa, sem prêmio e olhados com mais desconfiança, exatamente porque vitoriosos. O caso do Império, para repetirmos a expressão consagrada, reporia em termos totalmente novos o velho tema das Armas e da Política.


III

O INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA E O SENTIDO DA REPÚBLICA

 

O desenvolvimento, o despertar de um novo regime, surge não necessariamente das contradições do velho, mas quase sempre surge dos seus erros da avaliação, principalmente quando subestima a possibilidade de reação de opositores em potencial. É o caso específico do Império brasileiro. O sistema político que o caracterizava funcionava bem, exatamente porque permitia reformar-se. Bom exemplo desta capacidade de auto-rever-se é a atuação do último Gabinete Imperial, o do Visconde de Ouro Preto definido como: ...“mas é a República, mantendo-se o Império!” na manifestação parlamentar bastante conhecida. Exemplo melhor desta capacidade é a manobra da Abolição, bandeira habilmente roubada dos republicanos, uma ação que expõe as boas possibilidades que o Império oferecia de reciclar-se politicamente. Porém, o velho regime descuidou-se ou avaliou mal as potencialidades de um elemento de poder básico: o Exército.

Duas visões impõem-se para análise deste “descuido”. A primeira propondo que o Exército só chegou a ser um componente básico no arco de poder nos finais do II Reinado, já que é um fato o desprestígio das Armas, desde as origens do Império. A segunda visão parte de premissa absolutamente distinta: o “descuido” de fato não aconteceu, sugerindo que o Império não tivera tempo suficiente para jugular o “inimigo”; este percebeu com antecipação a manobra e formalmente abortou a tentativa, aproveitando a oportunidade para eliminar o perigo para sempre: extinguiu o Império, criando uma outra equação de poder. Ou, ainda, a propaganda republicana fez o Exército acreditar que o Império tramasse a sua extinção, provocando a esperada reação. Talvez estas visões completem-se e não anteponham-se, como acompanharemos.

É importante perceber que o desprestígio do militar — quase histórico — acontece até determinado momento, quando sua importância lentamente começa a crescer, provocando boas preocupações à velha ordem imperial. O leitor cobrará detalhes, que virão a seu tempo. Quanto ao desprestígio, os aspectos essenciais já são conhecidos; quanto ao momento histórico em que o destino das Armas conhece uma reversão inédita — o final da Guerra do Paraguai, dele também já comentamos alguns dados. Falta uma exposição até certo ponto minuciosa desta preocupação dos militares com a estranha tentativa de aniquilação do Exército, para a exata compreensão dos novos termos em que será colocada a relação entre as Armas e a Política, posteriores à Proclamação da República.

As conseqüências da vitória sobre o Paraguai

Como já assinalamos, até com certa insistência, o final da Guerra do Paraguai é um marco histórico. Sobre este conflito, a obra clássica para os militares brasileiros é a do General Tasso Fragoso. Este historiador militar, em um trabalho bastante completo sobre o conflito, quando de suas reflexões finais, capta bem o clima que tomou conta dos veteranos, sejam oficiais ou soldados: todos evitavam confirmar a sua participação no conflito. Reproduzimos as amargas conclusões deste militar: “os velhos guerreiros andavam escondidos, temerosos desse conceito”. Esta imagem era real e ultrapassava um simples “estado de espírito”. Afinal o Exército brasileiro, vitorioso de uma guerra desesperada, não fora impedido sobre todas as formas de fazer um desfile da vitória no Rio de Janeiro? O próprio Imperador, D. Pedro II, não os chamara para quem quisesse ouvir de “assassinos legais”? Os fatos simplesmente serviram para a produção da amargurada imagem. Todo este quadro de desprezo marcou principalmente a média oficialidade, que ainda não estava envolvida no sutil jogo da cooptação política do Império. E sem dúvida devolverá o desprezo, com a mesma moeda, no momento certo. E não será instantâneo: o incêndio republicano do 15 de novembro será aquecido lentamente desde a vitória do Paraguai até a Proclamação.

 

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DE VOLTA AO PARAGUAI
Cheio de glória, coberto de louros, depois de ter derramado seu sangue em defesa da pátria e libertado um povo da escravidão, o voluntário volta ao seu país natal para ver sua mãe amarrada a um tronco! Horrível realidade!...
A. Agostini. A Vida Fluminense (11.6.1870)

 

A década imediatamente seguinte ao final da Guerra — a de 1870 — trará pequenas alterações no relacionamento entre as Armas e o Poder. A desmobilização fora imediata, dos 100 mil durante a guerra para menos de 19 mil um ano depois. Rápida demais, muito próximo da humilhação. Porém, Caxias e Ozório, líderes incontestes de seus pares, envolvidos em posições ministeriais, asseguravam uma efetiva tranqüilidade, mantendo os militares “essencialmente obedientes”. O desaparecimento sucessivo de ambos, 1879 e 1880, ao mesmo tempo que deixa o Exército sem uma chefia expressiva no topo da hierarquia, um ponto importante em favor do Império, de outro modo anula um trunfo igualmente importante: perde-se os interlocutores confiáveis.

O encanto (?) com as novas idéias: Positivismo, República...

E este mesmo tempo, a década de 1870, marca também a presença de novos elementos na tensão entre militares e “legistas”: outras opções ideológicas aparecem no horizonte político. A fundação do Partido Republicano e o desenvolvimento do proselitismo positivista terão, sem dúvida, a sua participação no processo, porém com os devidos limites. A importância destes componentes ideológicos — tão cara a alguns historiadores - não deve ser esquecida mas também ou principalmente, não deve ser superestimada.

Quanto ao primeiro componente, o Partido Político, de conteúdo mais explosivo, em uma análise mais fria se revelará pouco preocupante. Sobre os republicanos é bom não esquecer a feliz expressão de Sérgio Buarque, que os caracterizava como “liberais mal-humorados”, enfim políticos que de um modo ou de outro participavam das benesses do sistema imperial. É sempre lembrada a chegada de Lafaiete Rodrigues Pereira, um republicano convicto e proselitista, aos Conselhos da Coroa. Não era um caso isolado, já que as possibilidades de subir politicamente eram reais também aos republicanos, desde que sob o manto protetor do regime. Os militares percebiam bem esta perspectiva e convenientemente se afastaram. É um fato que o conceito República viajava na cabeça da oficialidade, mas nebuloso, quase só uma opção frente ao desprestígio rotineiro que o Império oferecia. Bem diferente é um envolvimento efetivo com o Partido Republicano, visto sempre como mais uma reunião de um “tipo diferente de legista” que provocava a habitual reserva dos militares. O próprio conflito imediato, a Proclamação, entre o Partido Republicano, principalmente a facção paulista e os militares, confirmam estas reservas que de fato tinham mão dupla.

Quanto ao segundo componente, a presença positivista, sua capacidade explosiva, digamos assim, é ainda menor. O caráter essencialmente doutrinário, o apelo ao rigor científico, a visão matemática da realidade, faziam do positivismo e dos positivistas, muito mais homens de reflexão do que homens de ação. E destes, o Império pouco sentia-se ameaçado. A aspiração ao progresso, desde que prevalecesse a ordem, fazia com que mesmo a Ditadura Republicana suportasse a preservação de D. Pedro II, ou seu sucessor constitucional, pois esta República seria a “prescrita pela política científica e pela moral”, pouco importando o chefe desde que cumprido os preceitos doutrinários. Este apelo científico, matemático e, antes de tudo, ordeiro, para a mudança, existia em verdade desde 1850, mas é na década de 70 que ganha inúmeros adeptos entre a oficialidade. Quantos oficiais compreendiam exatamente seus postulados, quantos mantinham uma regularidade em seus estudos da moral positivista, é uma questão em aberto. A suposição de que uma parcela mínima intelectualizada, em círculos do ensino da própria Academia Militar assim procedesse parece ser o mais próximo do real. Porém, quase toda a oficialidade, sem maiores exceções e sem maiores radicalismos, diziam-se positivistas. Em si mesmo, este componente ideológico pouco preocupava, pois sua maior proposição era a reforma e nunca a revolução.

 

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Ele — O cidadão Ministro?
Ela — Ainda não veio.
Ele — Apois queira le entregar-lhe esta listra de adesões e of'recer-lhe a minha espada em nome da Guarda Nacional para a defesa da República. Saúde e fraternidade.
Ela — Sim, cidadão. — Vida Fluminense, Série 1ª (1º.12.1889)

 

É importante perceber, contudo, que o positivismo, enquanto doutrina, agregava interesses diversos dentro da Instituição, e frente a qualquer ameaça à instituição a doutrina seria como um interessante cimento unificador. Contudo, é um fato que estas opções ideológicas do tempo — inovadoras sim, radicais de modo algum — não tiveram um peso muito significativo para a explosão republicana, influenciando em limites até mesmo estreitos. Outros fatores, restritos a problemas internos dos quartéis, questões envolvendo o funcionamento próprio da Instituição, tiveram um peso muito maior para lentamente acirrar os ânimos entre as Armas e o Império. Ao longo de toda a década de 1880, ocorreu uma seqüência de episódios, incidentes, pequenos enfrentamentos que acabou sendo batizada com um nome apropriado: a Questão Militar. Sobre ela o Império não revelou a costumeira capacidade política; primeiro tentou a descaracterização, diminuindo-lhe o poderio — conseguiu aumentar o descontentamento. Depois, percebeu o risco e imaginou medidas acauteladoras. Foi destruído na tentativa. Acompanhemos os fatos.

O primeiro incidente importante data ainda de 1879, quando a Comissão de Marinha de Guerra da Câmara dos Deputados eliminou alguns postos de oficiais em várias unidades. Um grupo de oficiais frustrou o projeto debatendo-o publicamente, destacando-se a atuação de Sena Madureira e Saldanha da Gama. O segundo e mais relevante incidente ocorre em 1883. Um jornalista, Apulcro de Castro, através de seu jornal, o Corsário, difamara a honra pessoal de um oficial do 1º Regimento de Cavalaria da Corte. Um grupo de oficiais deste quartel assassina, a punhaladas e tiros, o jornalista. O chefe de polícia exonera-se a pedido, mas o inquérito resulta em nada. Interessante observar que o Imperador em pessoa faz uma visita “de rotina” ao referido quartel, dias depois do fato. A Imprensa e políticos classificam a visita como, no mínimo, inoportuna. A temperatura indicava prudência e D. Pedro II compreendeu bem os ânimos. Em 1884 os incidentes de maiores proporções, pois envolviam o próprio conceito de hierarquia. A homenagem que um oficial comandante de tropa fizera a um líder abolicionista e o revido do Coronel Cunha Matos, pela imprensa, de um ataque de um deputado em um discurso da Câmara. A prisão do Coronel provoca uma reação de toda a Corporação - o velho tema dos militares e dos “legistas”. Apesar de contornados, os episódios deixaram seqüelas. Em ambas as direções, e isto precisa ficar bem especificado.

Conspiração? Guarda Negra? Fim do Exército e da Marinha?

O comportamento do Exército durante o auge da campanha abolicionista deve ser visto como um marco entre o eterno descaso e uma certa desconfiança do Império quanto às Armas. Em 1887, o recém-fundado Clube Militar, sob a Presidência de Deodoro, nega-se a cumprir ordens de prender escravos fugidos, em histórica reunião. Se o Império foi capaz de cortar a própria carne, e fazer a Abolição em hábil manobra, por que não o seria para controlar as Armas? O que importa conhecer é que tipo de controle estava sendo arquitetado. Tentaremos a reprodução dos ânimos, a reconstrução do clima entre militares e políticos, às vésperas da República. O comentário constante insistia sempre na existência de um Plano, ou melhor, na existência de um projeto de golpe político: o golpe do III Reinado. Dada a avançada idade do Imperador, ocorreria uma inesperada abdicação, em nome de sua filha, seguido de nada mais nada menos de uma extinção do Exército e da Armada, os únicos obstáculos reais ao plano. Acompanhariam o projeto uma série de medidas favoráveis à lavoura, “roubando” mais uma vez o apoio que poderia haver entre os fazendeiros aos republicanos.

O mentor de tão ambicioso e maquiavélico plano também seria conhecido: o próprio Visconde de Ouro Preto, que como sabemos tomava medidas bastante ousadas para um Gabinete Imperial. Porém, como conquistar ouvidos crédulos, em tanta ousadia? Que provas apresentam? Alguma medida estaria sendo tomada pelo Gabinete, em preparação ao Plano? E preciso perceber sempre o tom de conspiração, com que tudo era apresentado. Ouro Preto organizava um batalhão da Guarda Nacional, sediado no Rio de Janeiro, equipando-o militarmente, com que objetivos? O aumento dos efetivos dos corpos de Polícia promovido pelo Gabinete obedecia a quê interesses? Não acontecera a remoção de um Corpo de Infantaria da Capital, fato sem explicação? Não ocorriam informações de que organizava-se uma Guarda Negra, com postos de escravos libertos que lutariam em agradecimento à Princesa Izabel? Todos estes argumentos funcionavam perfeitamente para alimentar o tom da conspiração. Seria desnecessário afirmar que era dos redutos republicanos que partiam as mais completas e repetidas versões da conspiração.

Sem dúvida, um Plano de tais dimensões pareceria, à primeira vista, impraticável a qualquer observador, algo despropositado até, beirando o absurdo. Porém, são vários os depoimentos da época que atestam a existência, principalmente do medo, do clima conspirativo, enfim do boato vulgar que grassava, diríamos atualmente, em off. Clima conspirativo ou não, o próprio Ruy Barbosa preocupou-se com ele, publicando um documento: “O Plano contra a Pátria”, em que afirma e dá fé a cada uma das acusações. Oliveiros Ferreira, em um artigo “As Forças Armadas na Constituição”, esmiuça exaustivamente a possibilidade, reproduzindo na íntegra o texto de Ruy. Realidade ou fantasia, o “Plano” de Ouro Preto, ou sua versão, servia perfeitamente aos objetivos da propaganda republicana. É bom lembrar que a Abolição roubara um trunfo básico desta propaganda; era urgente encontrar outro: o plano ou sua menção de existência, cabiam perfeitamente.

Esperar que tanta insensatez ocupasse a visão de homens experientes como o Visconde de Ouro Preto é acreditar em contos de fadas. Acreditar que homens que estavam promovendo uma reforma — que fariam as alterações para perpetuar a ordem imperial — tomassem tal atitude, é desconhecer completamente a capacidade destes políticos. Porém, o que importou mais foi a habilidade dos republicanos — e aqui a publicação do documento de Ruy Barbosa foi fundamental — de fazer o Exército acreditar, ou melhor os seus comandantes do alto da hierarquia, que o referido “Plano” existia.

O Império, sem dúvida alguma, desconfiava das Armas; temia o “pronunciamento” e tomou algumas medidas para afastar o medo — só e exclusivamente. De medidas de proteção a imaginar-se a extinção do Exército, isto fica por conta da “teoria conspirativa”. Oliveiros Ferreira, no artigo citado, analisou exemplarmente os elementos que garantem o sucesso desta “teoria”. O chefe Deodoro — atenção à hierarquia que é básico — um homem da ordem, exausto de um tempo de tensão, perdeu a capacidade de diferenciar o que era vontade dos republicanos ativistas, sejam militares ou civis, do que eram possibilidades reais de execução — e acreditou na existência do Plano entre 10 e 11 de novembro. A ordem do Império desapareceria para dar lugar a um regime que essencialmente é filho da espada. Quanto à Proclamação, esta guarda em si mesma uma exclusiva importância episódica.

Tentar expor os elementos que garantiam a inviabilidade do plano seria desperdiçar a atenção do leitor. A possibilidade de abdicação existia pela idade avançada do Imperador, o que de resto era um direito constitucional antes de mais nada. Efetivamente houvera um reforço da polícia e um arremedo de organização de um batalhão da Guarda Nacional no Rio, mas que, em absoluto, poderia trazer preocupação ao Exército, mesmo que fosse completo o armamento, incluindo artilharia, como propunha o artigo de Ruy. E o treinamento destes homens? O Exército com toda a sua estrutura institucional enfrentava tanta dificuldade, o que dizer da Guarda que partiria do zero? Este batalhão da Guarda talvez tivesse função de efeito-demonstração. Sem outra conotação. Quanto à remoção do batalhão de Infantaria, esta fora feita a pedido, por necessidade de serviço do principal conselheiro militar de Ouro Preto: Floriano Peixoto (?), quanto à eficácia de uma Guarda Negra, seria desnecessário qualquer avaliação de suas possibilidades frente ao Exército regular. O que de fato existia era uma constante diminuição de recursos para as tropas de linha; razões do próprio estado do Tesouro Imperial ou tentativa de controle disfarçado, de verdade este era o único elemento real — a falta de verbas — para a análise do comportamento dos políticos quanto às Armas. O restante ficou por conta das versões dos fatos e da habilidade dos ativistas republicanos.

O conceito constante de golpe preventivo

Um detalhe importante para o desfecho da Proclamação: a participação dos civis, principalmente na explosão, no momento da ação. De alguns civis, de muito poucos, era conhecido o medo que estava despertando no topo da hierarquia militar, a existência do Plano de extinção do Exército. Mesmo os mais ativos republicanos foram pegos na mais absoluta surpresa pelo 15 de novembro. Os civis da propaganda republicana tiveram a capacidade de aumentar o medo, criando o clima necessário para que a razão saísse de cena — civis em geral ou a pena caprichosa junto ao prestígio pessoal de Ruy? — e os militares deixassem de ser “essencialmente obedientes”. Mas é preciso que se conheça bem o sentido deste 15 de novembro: o fato, a ação, a decisão, incluindo a de que os civis eram necessários, que deveriam aparecer, era “deles”, exclusivamente.

A famosa expressão “bestializado” da carta de Aristides Lobo, tem significado específico na frase completa, que merece lembrança: “por ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração de elemento civil foi quase nula. O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”. É importante saber que Aristides Lobo fazia parte da seleta parcela de civis, menos de dezena talvez, que estava inteirado do clima dos quartéis, e participou da reunião decisiva com Deodoro a 10 de novembro. Sua expressão é suficientemente precisa: “o fato foi deles”.

Se a roda da História caminhou para este ostensivo poder da força, as conseqüências, contudo, para o sistema político, foram imediatas. Se o Poder Moderador era irresponsável, e aqui residia tanto sua força quanto sua estabilidade, o fato da República ter sido feita sem povo negando o seu sentido até mesmo enquanto palavra, trouxe uma outra estrutura de poder: o 15 de novembro tornou o Estado dependente das Armas, pois é destas que efetivamente passa a emanar o poder. Por ironia que a História sempre se reserva, o nome do regime é republicano. O motivo das crises, da impressionante sucessão de intervenções militares da era republicana é esta origem, que ao longo das décadas posteriores tentou ser contornada, disfarçada, fantasiada até, mas jamais anulada por uma outra equação de poder.

Os homens do Império temiam o pronunciamento muito mais pelo senso político do que por devoção ao velho regime, pressionado para que abrisse mais espaço político aos militares, Ouro Preto escreveu: “não é sua missão em país regularmente organizado. A força armada não deve governar pela óbvia razão de que para lhe resistir aos desmandos, fora mister que as outras classes se armassem também, situação intolerável e absurda”. O temor da guerra civil, aparentemente embutido nestas palavras, não aconteceu a não ser em episódios esporádicos, que talvez não merecessem tal denominação. Porém, o fato incontestável é que as Armas eram o fiador plenipotenciário do regime surgido com a Proclamação. Isto forçava o abandono da noção de sistema político ordenado que exige participação, que pressupõe um debate, por menor que seja, até o consenso, substituído pelo regime cujo princípio repousa na hierarquia, às vezes restrita às regras de uma única instituição. Para contornar a situação insustentável, ou o “desmando”, seria necessário vencer o “chefe”, e isto só com uso de força ainda maior. O método não se coaduna com um país “regularmente organizado”. Este era o medo e o sentido básico das palavras de Ouro Preto. E era um resumo do medo coletivo dos homens da velha ordem.

 

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OS SONHOS DO PROCLAMADOR
Getúlio — Que tal a sua República?
Deodoro — Irreconhecível...
Theo. Careta (15.11.1952)

 

Os primeiros passos do Regime Republicano foram claudicantes. A constituinte de 1891 visa essencialmente repor tudo em seus devidos lugares. O capítulo referente às Forças Armadas conhece uma redação diferente, quase surpreendente. A Constituição Republicana transforma os termos do “essencialmente obedientes” e, captando o clima de medo que enfim trouxera a Proclamação, promulga que as Armas são “instituições nacionais permanentes”, ou seja, não sofrerão a ameaça de extinção porque assim reza a própria Lei Maior. O “Plano” de Ouro Preto, ou melhor, sua versão, ainda trazia conseqüências, estas constitucionais.

Uma observação importante. Os militares, enquanto corporação, movem-se somente frente a uma ameaça à Instituição; neste caso agem com espírito de corpo, de forma unitária, obedecendo aos comandos hierárquicos naturais. Os civis, incapazes de mudar a ordem das coisas por si mesmos, pedem a ajuda das Armas. Elas cobrarão seu preço. O método para convencê-“los” a agir consiste em trabalhar seus valores essenciais: a honra, a hierarquia e a sobrevivência da própria instituição. Se os ativistas republicanos tiveram a suficiente habilidade de assim provocá-los, foram felizes em seus objetivos imediatos. Amargaram posteriormente dias difíceis, e só os aspectos circunstanciais — atente-se bem à expressão circunstanciais —, afastaram os militares do poder. De fato, as Armas serão apeadas do mando supremo muito mais por não conhecerem os meandros, o dia-a-dia do trato dos negócios públicos, do que por um eventual fortalecimento do poder civil. A política econômica do “encilhamento”, filha da ansiedade por desenvolvimento tão a gosto dos militares, terminaria em fracasso de sensíveis proporções. A era de Floriano será objeto de observações mais detalhadas, mas percebe-se o sentido do processo: as circunstâncias — diriam alguns aspectos de conjuntura — farão com que os militares saiam dos centros de governo. Mas voltarão, porque intacta está a origem do regime.


IV

O LONGO CAMINHO DA ESPADA SEM RUMO ATÉ A “POLÍTICA DO EXÉRCITO”!

 

O fato foi “deles”. A República era um ato militar antes de qualquer outra análise. Porém, o efetivo comando do País republicano pouco permaneceu em mãos militares. A Presidência de Deodoro, em verdade um militar da velha ordem, perdeu-se em sua gestão econômica. O fracasso do desenvolvimentismo rapidamente repôs a política econômica do país em mãos dos seus velhos “donos agrários”. Agora mais educados, quase todos paulistas falando francês, sem maiores exceções, respeitadores da Constituição, porém reproduzindo os mesmos conceitos econômicos do regime deposto: um país quase monocultor, em bases eminentemente rurais que ostentava um Balanço de Comércio de importações generalizadas, com um único produto de aceitação internacional: o café. A política econômica republicana proposta em uma concepção diferente, quase rapidamente migra para as mãos donas do café porque, enfim, esta era a ordem natural das coisas ... Que experiência no trato dos negócios públicos, principalmente no complexo mundo das finanças possuíam as mãos fardadas, donas da Proclamação? Quase nenhuma e portanto cederam. Quanto ao comando político propriamente dito, tentaram mantê-lo o quanto foi possível porque enfim os militares representavam a República, a ordem nova.

Se a ordem econômica mantinha seus princípios — e a industrialização nascente não os alterava porque a indústria, sem dúvida, é filha do café, cresce à sua imagem e semelhança — a ordem social se não apresentava inovações, ao menos contornos diferentes. Porém a sociedade brasileira, que permanecia essencialmente rural (herança de sua própria formação colonial) desde os finais do século XIX, ganhava alguns ímpetos urbanizadores. O mundo da cidade ganhava alguma importância e consolidava a sua influência na equação do poder. É deste contorno distinto da ordem social. É este impreciso mundo da cidade, que produz o apoio decisivo para o que chamamos de sucesso da “lógica do poder florianista”. Deodoro é quase um personagem ainda do velho regime. Um monarquista que as circunstâncias forçaram a derrubá-lo. Bem diferente era o General Floriano Peixoto. O poder para este militar tinha um outro sentido; o seu exercício obedecia a outros princípios.

A construção da lógica de poder florianista

Floriano concebia o desenvolvimento econômico como objetivo, exemplo o porto de Santos, obra obrigatória mas sempre adiada por dificuldades técnicas e financeiras, que em seu tempo foi reconstruído e modernizado. Com toques nacionalistas e populares tabelou gêneros alimentícios, destruiu cortiços e construiu casas para os pobres. Estes objetivos não eram para serem contestados ou mesmo discutidos. A oposição não poderia discordar do certo, do correto. A República chegara para fazer o certo e estava fazendo, portanto.

A oposição mais aguerrida, com alguns aspectos monarquistas, terminou em uma revolta armada em 1893, capitaneada essencialmente pela Marinha. Esta Arma sentia-se meio órfã da República, filha predileta que era da Monarquia. Ocorreu até o bombardeio marítimo da cidade do Rio de Janeiro, chegando-se mesmo ao reconhecimento do estado de beligerância interna, por parte dos Estados Unidos. O quadro era de enfrentamento à ordem republicana e como tal foi tratado: violências de todo tipo, fuzilamentos sumários até que o consenso, ou melhor, a autoridade da Presidência da República foi totalmente consolidada.

 

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LENDO O FUTURO
— Então, cigana, qual o meu futuro?
— Pela carta que tenho na mão...é espada!
Seth. Careta (19.4.1919)

 

Para consumo externo, criava-se a figura do “Marechal de Ferro”, o homem forte, símbolo da autoridade do Estado, ente superior, tão a gosto da mentalidade do princípio da cega obediência de que já tratamos. Para consumo interno, entre a “sua” oficialidade, cuidava-se de projetar a figura do “sentinela do tesouro”, capaz de afastar as pretensões “politiqueiras”. A imagem ganhava um contorno definitivo; não consolidava simplesmente a República, consolidava um estilo que agradava a todos os Policarpos Quaresmas que, inocentemente, povoavam o mundo da cidade. A ironia que a obra de Lima Barreto reservou a este tempo de Floriano e a seu tratamento aos Policarpos, merece uma constante lembrança.

O interessante é sempre o estilo, mais que o homem. Em Floriano referimo-nos ao exercício do poder. Sérgio Buarque de Holanda, em seu trabalho A Fronda Pretoriana consegue uma síntese deste estilo que desdenha qualquer dúvida ou debate de uma decisão, instantaneamente transformado em um desígnio inabalável e impávido. Sérgio Buarque, em seu trabalho, reproduz uma frase de Floriano, no Palácio do Itamarati, diante dos que buscavam dar uma aparência de legalidade às medidas repressivas por ele ordenadas, para os manifestantes contrários ao prolongamento de um mandato, em circunstâncias que a Constituição não previu: “Está bem. Fiquem discutindo que eu vou mandando prender”. Era a construção, ou melhor, o exercício da lógica de poder florianista. Que haveria de fazer escola, a seu tempo e em seus condicionamentos históricos.

O General Floriano Peixoto ocupava o comando político do País, exercendo o poder consoante os seus métodos. Quanto à política econômica, as questões menores diríamos assim, eram efetivamente decisões presidenciais. O café e seus representantes ocupavam-se das grandes decisões. Este quadro teve influência na sucessão do Marechal. As eleições asseguraram a vitória de Prudente de Morais, um civil cafeicultor que chega ao poder em 1894, com um imenso fantasma a enfrentar: o militarismo, o filho predileto da lógica de poder florianista. Como contê-lo, em limites aceitáveis, era a questão. As circunstâncias históricas auxiliaram o processo.

Dois elementos são importantes para a compreensão da queda passageira de prestígio do que chamamos de lógica do poder florianista. A primeira foi o assassinato do General Carlos Machado de Bittencourt, antiflorianista radical, escolhido por Prudente de Morais para seu Ministro da Guerra. Em um atentado que visava o Presidente eleito, mata-se o Gal. Bittencourt. Todos perceberam o sentido do crime, mas principalmente as suas origens. Mesmo que não fossem exaustivamente investigadas. Os próprios adeptos do florianismo deploraram o “método”. O segundo elemento, que implicou em um profundo desgaste da imagem do militarismo foi a Revolta de Canudos. O Exército chamado a enfrentar uma multidão de miseráveis precisou de 4 expedições diferentes para vencê-los, chegando-se a perder em combate dois coronéis e inúmeros oficiais superiores. Foram necessários dois anos de combate para vencer “civis” que nenhum conhecimento bélico organizado possuíam.

Defesa Nacional: um outro sentido para o conceito

O militarismo como opção de governos ou mesmo a lógica de poder florianista, tinham sua imagem prejudicada. O próprio Exército conhecia uma crise sem precedentes: seu desempenho profissional, suas técnicas de combate, sua operacionalidade estavam posta em dúvida. Talvez o próprio positivismo — ou o que dele se professava — reinante na Academia Militar, fosse o responsável. Um general, Tito Escobar, traça um quadro dramático da oficialidade formada na primeira década deste século: “raros soldados produziram as escolas militares; sobraram-nos entretanto, enraizados burocratas, literatos, publicistas e filósofos, engenheiros e arquitetos notáveis, políticos sôfregos e espertíssimos, eruditos professores de matemáticas, bons amigos da santa paz universal, inimigos da guerra, adversários do exército permanente”. Eram bacharéis fardados a concorrer com bacharéis sem farda, na conhecida expressão de Murilo de Carvalho. As próprias elites civis perceberam que este despreparo era um risco tão grave quanto o militarismo excessivo.

O Ministro Rio Branco, utilizando os recursos diplomáticos do Itamarati, envia jovens cadetes brasileiros para servirem no Exército Alemão, em turmas sucessivas de 1906, 1908 e 1910. O Exército apóia, concedendo licença com vencimentos a estes cadetes. Seguem algumas dezenas deles, destacando-se Bertholdo Klinger, Euclides Figueiredo e Leitão de Carvalho. O Exército prussiano preparava-se para a I Guerra e estes jovens oficiais conhecem os armamentos mais eficientes e técnicas mais modernas. Sem dúvida, estes oficiais passam também a ter uma outra perspectiva de exército, de sua função, de seu papel, absolutamente diferente de seus pares. Passam a conhecer as idéias de Clausewitz e Moltke. Quando retornam, fundam a revista A Defesa Nacional para a divulgação dos conhecimentos adquiridos.

A Revista, fundada ainda em 1913, funcionava como um centro emissor de idéias novas. A princípio, exclusivamente técnicas, profissionais, administrativas. Em 1915 apóiam a campanha do serviço militar obrigatório. Em 1918 apoiado pela Revista, o Exército conquistou o término da Guarda Nacional, o que significava o absoluto controle militar interno, desarmando as elites oligárquicas locais. A chegada da Missão Militar Francesa, em 1920, completa o quadro das mudanças internas da instituição. Começava a delinear-se as mudanças “externas”, fruto das alterações até então técnicas da instituição militar.

A idéia de Defesa Nacional alterou-se radicalmente. Abandonou-se o conceito de defesa limitado à proteção da fronteira, incluindo-se a idéia de defesa como mobilização de recursos humanos, técnicos e econômicos. A Defesa Nacional passou a ter novos princípios: todos os aspectos da vida do país importam, desde a preparação militar até o desenvolvimento de indústrias estratégicas, como a siderúrgica. O problema “defesa” deixou de ser uma questão militar; passou a ser uma questão de todos, principalmente uma questão ligada ao desenvolvimento nacional. Vincula-se obrigatoriamente um aspecto a outro: desenvolvimento e defesa, ganhando as Armas uma outra função, a de mola propulsora do desenvolvimento.

Os mesmos cadetes enviados à Alemanha na primeira década do século, cumprem carreira. Sem dúvida, são mais competentes, melhor preparados; seu destino natural é a própria Academia Militar, como instrutores das novas gerações. Os anos 20, com toda a sua agitação, encontram estes professores que pedem eficiência e mobilização, na Academia do Realengo. O “tenentismo” em toda a sua imagem, seja de renovação, seja de utopia, é filho deste processo. A sucessão de revoltas, os seguidos 5 de julho de 1922,em Copacabana; em 1924 em São Paulo, a Coluna Prestes/Miguel Costa são a concretização desta ansiedade por mudar o País, o que conduziria ao tão sonhado desenvolvimento. Ainda em 1927, em plena República Velha, cria-se o Conselho de Defesa Nacional para preparar a “mobilização nacional” que incluía aspectos econômicos e psicológicos.

Os famosos Tenentes da década de 1920 apresentavam um quadro difuso de suas perspectivas. Definiam-se por uma mudança da ordem das coisas, sem maiores projeções e contornos. Sua rebeldia quando no interior dos quartéis referia-se aos altos oficiais “bacharelescos”, incapazes, e segundo as típicas acusações do tempo, manchados pela corrupção. Fora dos quartéis revoltavam-se com as conexões estabelecidas com os políticos responsabilizados pelo atraso do País. Imbuídos de um salvacionismo autoritário, propunham essencialmente a moralização do País. Não Ocorria a nenhum deles a intenção de popularizar o movimento. A opção marxista era uma alternativa excluída de forma absoluta. Havia uma preocupação constante em que a revolução não provocasse “desordem”, que incitasse em demasia as camadas populares. Vários manifestos dos revolucionários pediam a substituição do sufrágio universal e do voto direto pelo censo alto e eleição indireta.

Porém, constituem um quadro difuso, principalmente quanto às aspirações políticas. Difuso talvez não seja a expressão mais correta; era essencialmente ingênua a visão política destes jovens militares. Imaginavam a salvação do Brasil pela ordem das Armas, contestavam o poder estabelecido sem discernir corretamente o que mudar e principalmente como mudar. Sempre preocupados com a “corrupção dos carcomidos” da I República, sonhavam com a disciplina e o desprendimento material característico da vida militar como a chave para o futuro melhor, imbuídos, sempre, da costumeira lógica de poder florianista.

As mudanças de 1930: militares ingênuos? Políticos espertos?

A ameaça que os tenentes representavam era circunscrita a pequenos círculos. Militarmente o perigo era limitado e politicamente era ainda mais inexpressivo. A Revolução de 1930 representou, a estes jovens militares idealistas, a oportunidade da mudança. Não foram os tenentes que “a” fizeram, dela participaram como protagonistas principais. Como sabemos, as mudanças revolucionárias se compõem de atitudes militares e políticas. A imensa maioria dos atores fardados da mudança de 1930 compreendia a revolução quase só em seus aspectos militares, importantes, sem dúvida, mas não exclusivos. Quanto às atitudes políticas, os tenentes mesmo com a revolução vitoriosa, revelavam a costumeira ingenuidade. Contudo, a revolução de 3 de outubro conheceria um caminho diferente porque diferente era o militar comandante: Pedro Aurélio de Góes Monteiro. Este militar, um tenente-coronel, escolhido para chefiar militarmente o movimento pela competência profissional e espírito de liderança sobre seus pares, não dispensava as atitudes políticas. Muito ao contrário, pautava todas as suas ações, mesmo e principalmente as militares, por um conteúdo político. As relações entre as Armas e a Política começam a ter uma outra direção.

Quanto a Góes Monteiro, o importante não é destacar a sua meteórica carreira profissional, sempre caracterizada por um destaque de competência frente a seus companheiros. O desempenho profissional era o elemento que justificava, institucionalmente, a sua liderança entre a oficialidade. Porém, sem dúvida, a sua visão da Política ao lado de um incontido apetite de poder (sem qualquer ingenuidade tão típica) muda o tradicional relacionamento entre militares e os políticos. Oliveiros Ferreira encontrou uma definição bastante feliz para esta atuação de Góes: “intelectual do partido fardado”. É com este militar de carreira que o Exército desperta para pensar a política. E agir conforme as “suas” conveniências.

Para aceitar o comando militar do movimento de 1930 o tenente-coronel Góes Monteiro impõe condições bastante precisas: “aceito sob duas condições: primeira, obediência completa às minhas ordens; se verificarem que não estou satisfazendo as expectativas decidam substituir-me na chefia; mas de outra maneira nunca aceitarei intervenção nos meus atos, nem nas ordens que der; segunda, não conspirarei com os senhores, nem com qualquer entidade política para não perder minha autoridade de chefe. Enquanto merecer confiança será assim. Darei as ordens até sobre a maneira como devem conspirar”.

O “aviso” era suficientemente preciso para permitir qualquer má interpretação. Contudo, os políticos interessados na derrubada de uma velha ordem que teimava em resistir, precisavam da competência e liderança daquele tenente-coronel. Mesmo um político sagaz como Osvaldo Aranha, incontestavelmente o chefe civil da conspiração, apresenta Góes Monteiro a Getúlio Vargas nestes termos: “Trago à sua presença o chefe militar, o técnico. E ele de uma voz confirmará o que lhe tenho dito sobre as nossas possibilidades” Mesmo que a frase tenha só o sentido de convencer Vargas das possibilidades da revolução, as palavras revelavam uma perspectiva política errada, principalmente após a vitória.

O controle dos militares sobre o movimento foi total. Escudado nos valores das “únicas instituições verdadeiramente nacionais” — dada a incapacidade do políticos que “reinavam” durante toda a I República — caberia ao Exército e à Marinha a tarefa da “organização nacional”. Em sua única obra publicada, A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército, Góes explica o porquê da escolha destas instituições: “só à sombra deles é que, segundo nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade. O Exército e a Marinha são por conseguinte os responsáveis máximos pela Segurança interna e externa da Nação, precisando para este fim serem evidentemente tão fortes quanto possível”.., nestas condições as forças militares tem de ser, naturalmente, forças construtoras”.

Historicamente, as funções constitucionais das Forças Armadas previam a defesa da integridade territorial e a Republicana de 1891 previa a manutenção da ordem interna, O texto de Góes estende as funções das Forças Armadas até o papel de “forças construtoras”, definindo precisamente como deveria ser o Exército para construir o país: “Um órgão essencialmente político; e a ele interessa fundamentalmente, sob todos os aspectos, a política verdadeiramente nacional, de que emanam até certo ponto, a doutrina e o potencial de guerra. A política geral, a política econômica, a política industrial e agrícola, o sistema de comunicações, a política internacional, todos os ramos de atividades, de produção e de existência coletiva, inclusive a educação do povo, tudo enfim afeta a política militar do país”.

 

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A hora da política do Exército

As idéias apresentadas por Góes Monteiro são uma síntese do conceito de “guerra total” de Ludendorff que, inclusive cronologicamente devem ter estado presente na formação intelectual do General Góes. O interessante é observar a adaptação do conceito promovida pelo militar brasileiro à nossa realidade política, onde despontava como tradição uma certa ingenuidade do fardado; Góes é suficientemente preciso em sua expressão: “sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército e não a política no Exército... A política do Exército é a preparação para a guerra e esta preparação interessa e envolve todas as manifestações e atividades da vida nacional, no campo material — no que se refere à economia, à produção e aos recursos de toda a natureza”.

O importante deste texto é a justificativa do porquê o País deveria seguir a “política do Exército”. Era básico para a sua defesa, era necessário para a sua própria segurança. O termo “segurança nacional” nascerá espontâneo na própria lógica de argumentação do General Góes como uma síntese de toda esta preparação para a guerra, que deveria envolver a tudo e a todos. Portanto; para termos uma efetiva segurança nacional, caberia ao País aceitar a política “do” Exército. E quem define esta política do Exército são os militares, ou mais especificamente, os integrantes do Estado Maior do Exército, isto é, a elite da oficialidade, onde “políticos” não tem assento, pela própria ordem natural da guerra.

A competência do General Góes não se restringia ao desempenho técnico. Era preciso isolar os militares dos políticos e dar aos primeiros o comando. O meio eficiente é o uso das próprias atribuições profissionais. A sagacidade dos políticos não estaria na razão direta da ingenuidade dos militares, porque estariam atuando em esferas diferentes, e importante, em esferas hierarquicamente diferentes. Os senhores da guerra imporiam a sua organização porque assim era preciso.

Seria interessante observar a aceitação constitucional, quase imediata, que as idéias do General Góes encontra. A Constituição de 1934 insere as Forças Armadas em um título próprio: “Da Segurança Nacional”. A expressão chegava à Constituição para nunca mais sair, como observou um importante jurista. Entre os militares, principalmente entre a oficialidade mais intelectualizada, a adoção da Doutrina Góes — como preferimos chamar o conjunto das idéias deste militar sobre a segurança nacional — vinculou-se à própria eficácia da luta contra o comunismo, um passo adiante quanto ao simples discurso agressivo, ameaçador, quase inútil. Para consumo externo, o “discurso de Inquisição” bastava. A própria Intentona Comunista de 1935, militarmente inexpressiva, incumbiu-se de alimentar este discurso por décadas. Mas para uma oficialidade melhor preparada, era insuficiente o destempero verbal, exigiam ações, atitudes planejadas, e era exatamente isto que a Doutrina Góes lhes oferecia, desde os primeiros anos da década de 30.

Contudo, é importante observar um aspecto básico da Doutrina: a “política do Exército” é a partitura mas não deve ser o maestro. A sociedade deve dirigir-se, e ao Exército não cabe nunca envolver-se nas questões políticas confundidas quase sempre com questões político-partidárias A Doutrina Góes estabelece um plano de organização nacional que implica em imposição de uma determinada ordem. Atenção, não é ordem social, respeito à lei, que isto é assunto da Polícia; não é absolutamente função do Exército ou da Marinha. As Forças Armadas responsáveis pela Defesa Nacional, valor supremo a qualquer país independente, elaboravam um plano que envolvia tudo e todos no país: a “política do Exército” e esta deveria ser cumprida porque era necessário para o bem de todos. Quanto à política, o dia-a-dia do país, isto continuava função dos políticos, gananciosos pelo governo, que inclusive deveriam atrapalhar o menos possível com suas querelas políticas, a execução da tarefa da organização nacional tão obrigatória. Também os políticos que compreendessem melhor a “política do Exército”, deveriam ter melhores atenções e preferivelmente cargos.

Posterior à Doutrina Góes, as relações entre as Armas e a Política, seguiu outro caminho. Essencialmente o que mudou era quem “utilizava” quem, para os seus objetivos. O golpe do Estado Novo, ao contrário do que pode parecer a primeira vista, foi um acidente do percurso. O Estado Forte facilita o processo, mas não era recomendável pois forçava aos militares o exercício do pleno poder, o que não é, pela própria Doutrina, função das Armas. As circunstâncias, elas ainda uma vez, obrigaram o golpe de 1937. Os motivos ainda mereceriam maiores estudos: a proximidade das eleições com candidatos pouco afeitos à Doutrina é uma hipótese de análise; os ventos internacionais de Estados fortes vitoriosos, compõem outra visão deste tempo; ou talvez a hipótese de uma sedição efetiva do Rio Grande do Sul, chefiada pela dissidência de Flores da Cunha, com maiores e efetivas possibilidades de sucesso que a de São Paulo de 1932, exigiu uma ação antes que fosse tarde demais. São hipóteses de análise que pouco alteram a essência do quadro do novo relacionamento entre os militares e os políticos a partir dos limites da Doutrina Góes.

Como já utilizamos a expressão “ventos internacionais”, seguimos com ela. O fim da II Guerra, a vitória dos Alíados, das democracias liberais contra as experiências totalitárias, forçaram mudanças pelo mundo todo. O Brasil, com uma participação que inclui um batismo de fogo real, acompanhou o ciclo de alterações. Quase por um encanto, por estas mágicas que a ironia da História reserva sempre aos Homens, todos sem maiores exceções, tomaram-se liberais convictos e confessos. O fim do Estado Novo, a Constituinte de 1946, marcam o início do que os contemporâneos deste período chamavam de o tempo da esperança por um mundo melhor. Os seres humanos precisam de sonhos, e isto é bom. Porém, acreditar em mudança tão rápida de uma ordem social que vivia a séculos sobre o princípio da obediência cega, para uma ordem liberal, parece-nos um tanto apressado. De certo modo o país continuava rural, com uma industrialização minúscula e hiperconcentrada. Tudo mudou, menos os homens. Quanto aos militares, a Doutrina Góes lhes dava um roteiro para conviverem com o mundo de fora dos quartéis, principalmente com os políticos. A tarefa daquele momento era adaptar a Doutrina aos “ventos novos”. Sem alterar os seus pontos essenciais. E a adaptação foi feita, com engenhosidade, criatividade e principalmente com razoável competência.


V

QUESTIONANDO O TEMA DE SEMPRE:

O LIBERALISMO, OS DEMOCRATAS E A PORTA DOS QUARTÉIS

 

Um conceito importante deve ser repetido: “política do Exército” é uma partitura, e não o maestro. A regência da orquestra social deve permanecer em mãos civis. O General Góes era absolutamente enfático quanto a este ponto. Para consumo dos iniciados, digamos assim, Góes Monteiro justificava que o exercício do poder político traria graves riscos à disciplina e à hierarquia militar. Os “iniciados”, contudo, compreendiam bem que as funções das Armas eram maiores que a mera regência: competia-lhes a organização nacional, sob todos os pontos de vista; competia-lhes desenhar o Projeto que comportasse os diferentes aspectos do conceito de desenvolvimento; competia-lhes, enfim; “pensar” o País para bem defendê-lo. Bem pensado o caminho, cabia à nação cumpri-lo. Quanto a como cumprir este caminho, quase um tema menor, aqui estaria a própria tarefa do mundo civil, esta seria a tarefa da nação.

E o regente deveria sair dos próprios quadros do mundo civil. Sena melhor para a harmonia do conjunto. Só condições excepcionais justificariam um maestro dos quadros militares. Resistências ao caminho traçado, desvios de curso, suficientemente graves ou então ameaças razoavelmente coordenadas de repensar o rumo, seriam as únicas justificativas para o maestro vestir farda. Insistimos que o Estado Novo, embora tivesse o General Góes como o poder plenipotenciário, não significava a consolidação efetiva de sua Doutrina; o Estado em “suas” mãos significava facilidades para a execução, mas não cumpria a essência da Doutrina. A forma escolhida para o fim da ditadura, o modo como se deu a transição de 1945 é a melhor confirmação desta afirmativa.

1945/1946: a evolução (controlada) até a democracia

A recordação dos dados históricos não necessita ser exaustiva e nem minuciosa. O barco da primeira era Vargas fazia água, principalmente pelo abandono de muitos dos seus principais marinheiros que percebiam muito bem a direção dos ventos. A “abertura” de fevereiro de 1945, para os comícios, para a organização partidária, tinha o sentido notório de preparar com a devida antecedência o futuro de tantos “ocupantes” do barco. Como utilizamos, continuamos com a expressão: os “ventos internacionais” estavam suficientemente definidos para indicar a direção das brisas internas, desde o primeiro semestre de 1944 quando os Aliados já tinham praticamente assegurado a Vitória na II Guerra.

O ano de 1945 marca a descompressão, lenta e gradual. Em janeiro, o I Congresso Brasileiro de Escritores pede liberdade de expressão e eleição direta sem ser molestado. Em 22 de fevereiro a voz dissidente de José Américo de Almeida, que uma vez precisara pedir respeito aos vencidos de 1937, em extensa entrevista, sustenta a necessidade de eleição para Presidente, “sem candidatura Vargas”. O fato que fora entendido como cochilo da censura, seria avaliado em sua plenitude a 28 de fevereiro, quando o governo emite um Ato Adicional fixando o prazo para marcar a data das eleições. Março ainda é de tensão, com comícios reprimidos com velhos métodos, mas é também a hora de promessa de Vargas de não candidatar-se. A anistia vem em abril para todos, inclusive Prestes e o seu partido, que em maio já podem fazer comício em praça pública. Em julho, o recém organizado PSD, o Partido Social Democrático, formaliza o apoio à candidatura Dutra, o Ministro da Guerra de todo o Estado Novo. Se desde fevereiro um outro militar, o Brigadeiro Eduardo Gomes, já era cantado em prosa e verso, por toda a oposição varguista, em agosto, a jovem UDN, União Democrática Nacional, “fecha” o seu apoio ao histórico Tenente. Setembro é o tempo do “queremismo” a “intenção estranha” da Constituinte — que seria para construir o futuro — com Vargas. Garantia de manutenção das conquistas sociais para uns, manobra para manter o ditador — pois as eleições presidenciais seriam adiadas e, em seu lugar, disputaria-se a Constituinte com Getúlio no poder — para outros.

As circunstâncias, sempre elas, forçam as necessárias definições. Vargas não incentivava mas também não desmentia o queremismo. Em outubro, com o País em plena efervescência política, o governo emite um decreto antecipando as eleições estaduais e municipais para o mesmo 2 de dezembro, data das eleições presidenciais. A oposição denuncia a antecipação como manobra sórdida, pois como era obrigatória a desincompatibilização, Vargas nomearia “gente sua” para os cargos regionais, o que prejudicaria uma eleição livre. A “temperatura” sobe muito, quando a 25 de outubro, João Alberto, também histórico tenente, é demitido da Chefia de Polícia do Distrito Federal, sendo substituído por Benjamim Vargas, irmão do Presidente, figura marcada por denúncias muito ostensivas de corrupção. O “clima” não era propício a tal substituição, para dizer-se o mínimo, e João Alberto leva as suas queixas a Góes Monteiro, então “oficialmente” Ministro da Guerra, já que substituíra Dutra, obrigado a desincompatibilizar-se devido à sua própria candidatura.

Góes Monteiro “instituiu” (?) que chegara a hora certa; as circunstâncias eram absolutamente favoráveis: estava bem definido o pretexto imediato — a demissão de João Alberto. Uma curiosidade: Dutra na tarde de 29 de outubro, vai ao Palácio tentar convencer Vargas a retirar a nomeação de seu irmão. Antes da resposta, o Palácio já estava cercado e Góes tinha absoluto controle da situação militar. O ditador sai para local de sua escolha, sem exílio, emitindo um comunicado em que afirma: “não tenho razões de malquerença para as gloriosas Forças Armadas de minha Pátria”. O Estado Novo termina sem nenhuma saída pela porta dos fundos. Principalmente, sem culpados.

 

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QUANDO AS CIRCUNSTÂNCIAS PERMITEM
A velha — Moço, este bonde passa na rua da Constituição?
Getúlio — Às vezes.
J. Carlos. Careta (9.9.1950)

 

É importante perceber as mãos que dão vida ao novo regime. As Forças Armadas construíram a ordem do 10 de novembro e a vão desarticular quando e como lhes for conveniente. O Exército — seria muito herética a personificação exclusiva no General Góes? — mais do que acompanhar, intervém nas circunstâncias. As Armas, a garantia de fato da “velha ordem”, chamam o Judiciário — um apelo que deveria ser melhor analisado — a quem entregam a responsabilidade dos feitos eleitorais De garantia da ordem vencida, as Forças Armadas passam a ser os fiadores das novas esperanças. A apólice mudou de dono; o “seguro” passou a ser para a democracia.

Às vezes, torna-se imperiosa obrigação o realce do óbvio. Góes não é Deodoro. A única semelhança é que ambos são homens da ordem vencida. Construíram suas carreiras nela; as semelhanças param neste único ponto. Enquanto Deodoro, monarquista convicto, tem o seu esprit de corps aguçado pela pena e capacidade de provocação de Ruy Barbosa, derruba o regime monárquico sem a percepção exata do que seria “o dia seguinte”, do que seria o exercício do poder. Góes Monteiro é o preciso reverso da medalha. O tenente-coronel, comandante da Revolução de 1930, sabia perfeitamente o que queria; e mais, sabia perfeitamente o que fazer do poder, inclusive como mantê-lo, dando a ostensiva impressão de que tudo mudara, quando isto foi preciso. Os homens de Armas permanecem, o que muda no cenário são os políticos, não o inverso. O principal valor da Doutrina Góes é ensinar esta verdade cristalina aos militares, para o seu eterno trato com os políticos.

Insistimos, mesmo com o risco do detalhamento desnecessário, no desenrolar do processo da redemocratização de 45. O destaque que nos interessa é a “evolução” do relacionamento entre políticos e militares, dentro do primeiro meio século republicano. A Proclamação é instigada, os militares “fazem” o novo poder de 1889, mas dele não usufruem, a não ser em curta temporada, com maiores danos do que benefício, à imagem da instituição. A lição foi duramente assimilada. A ordem liberal constitucionalista de 1945 emerge de mãos fardadas, “algo” já ensaiado na revolução de 1930. E sempre que for necessário o fato, a origem será lembrada. O ditador não caiu pela ação da oposição, seja ela liberal de verdade, liberal-conservadora, liberal-reacionária ou qualquer outro rótulo. Vargas saiu porque assim era o desejo do Alto Comando. O fato era suficientemente ostensivo e, quando necessário, “lembrado” com todas as letras. Inclusive ou principalmente para a aguerrida oposição udenista. Já em 1950, em seu discurso que praticamente garante a posse de Vargas, agora Presidente por eleição direta, Góes Monteiro adverte que sabia, em outubro de 1945, que Vargas venceria uma eleição, porque “o povo estava ao seu lado” mas que este modo não parecera o melhor às Forças Armadas. O “recado” seria repetido, adaptando-se as palavras a cada circunstância, sempre que assim se fizesse necessário.

E como todos sabemos, as origens são muito importantes, fator até mesmo muito significativo, seja nos comportamentos individuais, seja nos curiosos comportamentos coletivos. E é nesse tipo de comportamento coletivo curioso que enquadramos a sofrida oposição a Vargas e ao Estado Novo, capitaneada pelos nossos sempre combativos liberais, em todas as suas matizes, cores e nuances diversas. A redemocratização de 1945, embora feita sob os auspícios das Armas, digamos assim, provocou toda uma aspiração coletiva, uma ansiedade que chegava quase às massas por democracia. Como em um passe de mágica, todos que exaltavam as qualidades do Estado Forte, a eficiência da ação fulminante do Executivo, as mazelas do Parlamento, mudaram de discurso e mesmo mudaram de “time”. Dormiram autoritários empedernidos e acordaram democratas convictos. De fevereiro a outubro de 1945, o tempo de uma gestação humana, operou-se o milagre da multiplicação das convicções democráticas.

Era o tempo de exaltação do império da lei, da Constituição, da importância parlamentar, enfim o tempo da vitória da consciência liberal. É verdade que o Sr. José Linhares, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, a síntese de “todo o poder ao Judiciário”, tratou de manter muito perto de si o Sr. Góes Monteiro, se não como Ministro da Guerra, cargo recusado pelo próprio por modéstia..., mas como Comandante-em-Chefe do Exército, cargo até então inexistente. Uma outra curiosidade: a Constituinte de 1946 referenda este cargo como função do Presidente da República. Uma coincidência talvez..., ou seria uma homenagem? Contudo, o principal é a própria imagem deste período, como era de esperança, como tempo de uma convivência democrática, calcada em princípios liberais. Sem dúvida era uma síntese, tanto dos famosos “ventos internacionais”, fruto da derrota do nazifascismo, como de todas as aspirações maiores da oposição ao Estado Novo. Os homens de pensamento liberal e de pensamento socialista, incontestavelmente, foram os que mais sofreram, com o exílio, prisões e pressões de toda a ordem, durante a ditadura varguista. Quando esta ditadura termina, se esta oposição liberal não chega diretamente ao poder, como não chegou, pelo menos “ela dá o tom” da Constituinte que vai passar o País a limpo.

A consciência liberal e o problema da derrota gloriosa

O problema é que se a Constituição mudava, o que infelizmente continuava mais ou menos igual era o País. As eleições para os cargos majoritários, a começar da própria Presidência da República asseguravam uma ampla vitória do passado: o Ministro da Guerra, o sustentáculo básico do poder do Estado Novo, ganha as eleições com 55% dos votos.

 

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QUANDO FALA O CORAÇÃO
UDN — Bobagem, titio! Que é que o senhor entende de amor!
Carlos Estevão. O Jornal

 

A oposição, ostensivamente liberal, consegue 35%, mesmo exibindo o “seu” militar, o Brigadeiro Eduardo Gomes. A esquerda surpreende com 10% dos votos. O problema ficava “pior” em relação ao Parlamento. Os partidos de apoio a Vargas somavam 52% (PSD, 42% e PTB 10%), enquanto a UDN conseguia só 26% devido à representação parlamentar dos pequenos partidos. Era quase inacreditável: os homens do passado ganharam as eleições, mesmo em uma era de crenças liberais? O que aconteceu: o povo não compreendeu bem o discurso dos liberais ou talvez momentaneamente, naquela eleição, “tivesse o povo errado”? O importante era a própria vida democrática, o importante era tentar de novo: denunciar a corrupção, denunciar “aquele” estilo de política, enfim, esclarecer o povo que os votos viriam naturalmente.

O “pior” é que o “erro” volta a acontecer logo na eleição seguinte — 1950 — com o agravante de que, desta vez, o próprio “ditador” voltava eleito, praticamente com a maioria absoluta, 48,7% dos votos. Eduardo Gomes, em nova tentativa udenista, desta vez não chega a completar 30% dos votos. Mas era o melhor candidato, o homem comprovadamente íntegro, tinha o melhor projeto de governo, representava as melhores lideranças do País e perdera, quase de forma humilhante. Não importava, esta não era uma derrota qualquer, era uma “derrota gloriosa”.

Embora a descoberta da derrota gloriosa se constituísse em um eficiente consolo, as cúpulas liberais enfrentavam um impasse: permanecerem fiéis aos princípios até a próxima derrota gloriosa, ou ... esquecer momentaneamente o ideário e bater às portas dos quartéis, o poder de fato, “pedindo providências”. Como conciliar princípios de ação política e a própria conquista do poder de fato, se o povo continuava “errando” nas eleições?

O impasse era, o quanto fosse possível, escondido, disfarçado ou adiado, pela cúpula udenista. Até que as próprias circunstâncias, diriam uns, ou as situações-limites, diriam outros, desnudassem o mascarado impasse. Em uma destas “circunstâncias”, em agosto de 1954, um dos mais representativos destes liberais, Otávio Mangabeira, com a sua habitual sinceridade, em um inflamado discurso parlamentar, expõe a total nudez do rei: “ou se fazem revoluções ou não se fazem. Percamos pois a mania das revoluções legais, ou das legalidades revolucionárias. O mal do 24 de agosto foi fazer-se a revo1ução pela metade”.

As próximas palavras deste discurso, reproduzido por Maria Vitória Benevides, em um trabalho de título sugestivo: A UDN e o udenismo: ambigüidade do liberalismo brasileiro refere-se à queixa de uma certa mentalidade que Mangabeira reputava como dos bacharéis, mas enfim encontra-se embutida na nossa tão famosa consciência liberal. O parlamentar udenista afirmava com todas as letras, completando o seu discurso, sobre os acontecimentos de agosto: “Tenho uma queixa Sr. Presidente, dos bacharéis do Brasil, porque, ainda nas horas mais graves e mais tremendas da nacionalidade, ficam eles preocupados com fórmulas jurídicas menos sensíveis às realidades”. Qual será a diferença destes argumentos, por mais arrepios que possa provocar a comparação, com a síntese da lógica de poder florianista, exposta com idêntica sinceridade na frase: “continuem discutindo, que eu vou mandando prender”? Quais seriam as “fórmulas jurídicas” que estavam atrapalhando as “realidades”? Sem dúvida, o elogio mais completo que se possa fazer à figura maior de Otávio Mangabeira, é a sua honestidade e sinceridade ímpar.

A tragédia da paisagem e a ação política

A preocupação constante é sempre os porquês, os motivos de alguns comportamentos curiosos como estes dos liberais brasileiros que acabam acolhendo certas atitudes totalitárias com uma “lepidez ideológica” de ida e vinda, como lembrou Roberto Schwarz, que faz inveja ao mundo. Descobrir motivos tarefa complexa, talvez levantar “pistas” fosse mais aconselhável. Mestre Sérgio Buarque lembra que: “de todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das idéias pareceu-nos a mais significante em nossa difícil adolescência política e social”. Palavras interessantes. Quando a paisagem se assegura tão triste, tão duramente real, uma boa “solução” é darmos as costas a ela e sonharmos despertos. Esta crença mágica de que fala Sérgio Buarque é uma forma eficiente de conviver com a paisagem trágica, dada a quase plena impossibilidade de mudá-la.

Paisagem trágica? Seria “isto” que justificaria a lepidez ideológica de nossos liberais? M. Vitória Benevides, no livro acima citado, lembra um artigo de Plínio Barreto, inconformado com a vitória de Adhemar de Barros, com voto popular nas eleições para Governador de 1947 onde o articulista “ensina”, em O Estado de S. Paulo, de 26 de janeiro de 1947, como ganhar eleições conquistando massas que “como aquela personagem de Machado de Assis tem uma irresistível tendência para o pulha...” A eleição seria assim uma espécie de jogo do bicho. O ideal será a abolição completa da gramática e esterilidade absoluta de idéias. Procure apenas glosar os ditos populares e as frases em voga. Tudo isto no estilo dos cafés, dos bilhares e do futebol. O candidato que não consiga disfarçar sua distinção estará perdido. A vulgaridade deve ser completa: nas idéias, na linguagem, no vestuário, nas maneiras e até na cara“. Paisagem trágica ou observação pessimista da imutável realidade?

Sem dúvida o refúgio do mundo das idéias será mais compensador que olhar a paisagem. Porém, terá alguma eficiência na ação política, esta que acontece, exclusivamente no campo da realidade absoluta? Para a ação política, as derrotas gloriosas deixavam o gosto da “jornada de tolos”. Era preciso “compreender” que as “atitudes liberais” deveriam adaptar-se à paisagem, já que o inverso não ocorria. O liberalismo de origem anglo-saxônica, em sua versão brasileira, vive “respirando o bolor bragantino”, como apontou com felicidade Faoro. Os liberais baterem às portas dos quartéis, já que o “povo errou”, parece coerente — absurdamente coerente, diríamos nós — com a herança deixada pelo princípio da cega obediência, matriz primeira da lógica de poder florianista, na qual estamos todos mergulhados. Ou seriam os liberais, seres privilegiados que pairam sobre o meio social, sobre os quais as pesadas heranças históricas não fazem seus efeitos?

O parto da ordem democrática de 1945 fora feito por mãos fardadas. Era a sua origem, ou melhor, seu vício de origem. A famosa era da esperança, inaugurada com a derrota do nazifascismo, no fim do Estado Novo, não suporta crises porque não foi da sociedade, de seus conflitos próprios, de seu próprio aprendizado com seus erros, que se fez o Estado democrático. A arquitetura de poder que trouxe a democracia tinha um único pilar mestre, de fato; e era a este pilar que os desencantados da paisagem recorriam: as Armas. Mesmo que a Constituição, o “livrinho” ou a simples consciência apontassem para outra direção, eram “delas” que partiam as soluções que vingavam.

 

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A Cartomante — As cartas dizem que o futuro presidente será um militar.
Getúlio — Um militar?!
A Cartomante — Sim, um militar cheio de corpo...
Getúlio — Será que eu fui convocado?
Theo. O Globo (4.4.1945)

 

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O Condutor ao Fiscal — Não marque aquele pequenino que vai ao estribo. Todo mundo sabe que ele nunca foi "passageiro".
Theo. O Globo (14.6.1945)

 

Problemas típicos de uma paisagem quase repetitiva. Se o povo elege o passado — talvez porque não conheça outro — e, a consciência liberal não soluciona o seu impasse entre crença e ação, como impedir que a verdadeira esfera de poder circule entre mãos fardadas, instituição síntese da hierarquia absoluta e da “ordem dada é para ser cumprida”? Utilizamos, por costume, a expressão “hiato constitucional” para definir o período 1945/1964. A expressão mereceria ser revista porque, como definir — tomando um único exemplo — a seqüência de pronunciamentos militares de novembro de 1955? Este período não produziu uma frase, atribuída a um juiz da mais Alta Corte do país do que “os tanques fizeram um outro Direito”? Hiato Constitucional?

A exposição cronológica da seqüência de crises entre as Armas e a Política que caracterizaram o período 1945/1964, mesmo as posteriores a 1964 precisam ser compreendidas (tema especificado no capítulo seguinte), a partir de sua própria origem: a partitura a “política do Exército”, cabe ao maestro executá-la. Sem maiores distinções quanto ao berço, a cor, ou mesmo a roupa que o referido maestro estiver usando. A oposição conforma-se à partitura, ou será conformada.., a maioria das vezes, nem é preciso coagi-la, ela mesma, por si, vem docemente pedir para aprender as notas musicais certas.


VI

1954/1964/1968?
OS VÁRIOS ENSAIOS GERAIS DO MESMO DRAMA

 

A seqüência cronológica das “visitas” que as Armas fazem ao poder político tem uma freqüência de todos conhecida, ao longo do período constitucional iniciado em 1946. Como apontamos, a posse do primeiro Presidente eleito com a Constituição democrática em vigor teve de ser garantida por discursos militares. Mesmo assim, ou exatamente por esta garantia, todos os demais governos oriundos daquela ordem constitucional (excetuando-se o período Dutra), existiram enquanto tiveram a famosa “sustentação” militar. Sem este pilar, este ou aquele governo, e depois o próprio regime — como em 1964 — não resistiam.

Alguns argumentarão que a Carta de 1964 previa eleições para o Executivo e Legislativo e de seus resultados emanava o poder. Tudo seria tão simples assim? Tudo tão “europeu”, seja no modo, na linguagem ou no comportamento? Talvez muito mais próximo da realidade estaria a versão de que em nosso Poder Legislativo os dois maiores grupos antagônicos — PSD e UDN — procuravam criar o clima para o triunfo de “seus” aliados militares sobre “os” do adversário. Interessante observar o princípio que sustenta a inversão que propomos: o “duelo” das diferentes opiniões militares acontece no Parlamento e não ao contrário.

A crise de novembro de 1955 é o melhor terreno para verificarmos o acerto desta propositura. Esta crise tem origens dentro e fora dos quartéis; ela tem uma história própria de diferentes perspectivas para o País dentro da própria instituição militar. Dois grupos antagônicos disputavam uma certa hegemonia intelectual frente às instituições armadas, principalmente o Exército. Com todos os riscos que os “rótulos” contém, digamos que o primeiro deles apresentava-se como nacionalista-racional, pregando um desenvolvimento para o país de forma aberta e internacional; o segundo diferenciava-se por um nacionalismo-radical acentuando um desenvolvimento baseado na preservação das riquezas nacionais. Duas concepções do mundo das idéias que às vezes serviam como pretexto para explicar a divisão entre os homens, escondendo os outros motivos: a mesquinhez humana, “coisas de almas pequenas”, estas sim as reais origens de suas profundas diferenças. Porém, como o registro histórico que quase sempre permanece é o das “grandes idéias” para explicar a divisão entre os seres humanos, seguimos acompanhando esta forma de explicação.

A eleição de Vargas, quase por maioria absoluta, indicava uma tendência popular. O Clube Militar em sua eleição de 1950 acompanha: ganham os radicais. Acendem-se os debates, a própria diretoria do Clube é transferida do Rio. A cada número da Revista do Clube seguem-se manifestos e abaixo-assinados da oficialidade, enfim, a Instituição debate quase de forma pública. Isto era grave. Hierarquia e disciplina, bens maiores, corriam riscos. A eleição seguinte, 1952, indica a verdadeira tendência: 8.500 votos a quem prometia acabar com os debates; 4.500 para a tendência que pretendia dar continuidade A maioria silenciosa preservava a instituição.

A crise de 1954/1955: profissionalismo de Lott ou presença de Denys?

Os episódios de 1954 devem ser vistos nesta dimensão; Os acontecimentos de agosto: o atentado a Lacerda e o suicídio de Vargas, são fatos políticos plenos; são acontecimentos encadeados que demandam conseqüências políticas estruturais. Porém, em termos militares, se buscamos entender o envolvimento das Armas em todo este ciclo de instabilidade, o importante não agosto, é fevereiro de 1954 com o famoso Manifesto dos Coronéis (42 coronéis e 39 tenentes-coronéis). Em forma de Memorial, cumpridas todas as formalidades hierárquicas, o Manifesto insistia que o Exército passava por uma crise de autoridade, que poderia provocar o fim da “coesão da classe militar”. Desta premissa partia para uma análise técnica: falta de material, de equipamento, veículos e, principalmente, baixos salários.

O tom do Manifesto é técnico e acima de tudo profissional. E era representativo, significativo da opinião da oficialidade superior. A projeção de Henrique Lott deve ser vista no sentido deste Manifesto: era o oficial general que melhor enquadrava-se neste perfil de exigências profissionais da oficialidade. Quando tudo “piora” em agosto e 27 generais assinam um documento pedindo a renúncia do Presidente, entre eles havia alguns antigetulistas extremados, mas a maioria revelava a preocupação com a divisão pró e contra o governo, a ameaça à coesão. Deste processo emana a autoridade moral do General Lott, frente à tropa, elemento importante para o sucesso da intervenção de novembro do ano seguinte.

Realizadas as eleições em outubro de 1955, o constante fator de crise reaparecia: ausência de maioria absoluta para a posse de Juscelino, eleito pelo PSD. Um problema interno da instituição: obediência à ordem do Ministro da Guerra, o General Lott, não cumprida pelo Coronel Mamede, toma todos os contornos de um fato político. Este Coronel expõe publicamente uma posição contrária à posse, contrariando a orientação do Ministro. Uma manobra política tentada a partir da crise interna entre os militares: o Vice-Presidente em exercício, Café Filho, tira uma licença beneficiando Carlos Luz, ostensivo oponente político de Juscelino. O Coronel Mamede ficaria sem punição — se consumada a troca do Ministro da Guerra pelo novo Presidente Carlos Luz — e a ameaça à posse de Kubitscheck passaria a ser um fato.

A autoridade moral de Lott que falamos antes, tornou-se útil, assim como o apoio básico do General Denys. Os tanques saíram às ruas a 11 de novembro, em um golpe bem executado, e o demitido é Carlos Luz e não Lott, entregando-se a Presidência a Nereu Ramos. A 21 de novembro, Café Filho recupera-se fisicamente e pretende recuperar a Presidência também. O Exército coloca outra vez seus tanques na rua, cercando inclusive os próprios prédios da Marinha e Aeronáutica, O Congresso, frente à situação de fato, “desconsidera” Café Filho como Presidente e mantém o Sr. Nereu Ramos na Presidência. Seria absolutamente desnecessário dizer que a Constituição não previa “tal situação”. O PSD deu a necessária cobertura parlamentar para o “acerto”, tendo em vista os seus óbvios interesses em toda aquela situação.

A observação é de absoluta importância. “Aquele” golpe era “bom”, era interessante. Os discursos poderiam até mesmo transformá-lo em democrático se preciso fosse. Outro golpe se beneficiasse o adversário, este seria golpe mesmo. Em 1955, os aliados militares do adversário ganharam e o Parlamento ouviu inflamados discursos udenistas de pregação constitucional, de respeito à ordem etc. Caso os mesmos tanques tivessem outros comandantes, impondo outras soluções, os discursos inflamados seriam pessedistas. Quanto à Constituição propriamente dita, esta era uma preocupação jurídica que às vezes não se “adaptava” à realidade.

Se prestamos atenção em aspectos jurídicos, o período de novembro de 1955 é pródigo em ensinamentos. Café Filho “destronado” em plena vigência constitucional bate às portas do Supremo Tribunal Federal com mandado de segurança e habeas corpus — Ambos os pedidos negados, com a exceção de um único voto. Não é demais repetir a frase atribuída: “os tanques fizeram um outro direito”. O triste é que continuariam fazendo tantos “direitos” quantos fossem necessários para legitimar as suas vontades.

Insistimos que as lições da crise de novembro são muitas e definitivas, O Exército age vitorioso a partir de uma liderança de fundo moral, de discurso técnico profissional, e este fato merece análises bem atentas. Depois, o Exército revela uma hegemonia forçada, quase necessariamente imposta, às forças co-irmãs. A especulação com as idéias talvez seja o maior lucro do leitor, em um texto sem compromissos acadêmicos como este. As Armas, essencialmente o Exército, o grosso de sua oficialidade pensante, percebeu que não estava suficientemente uno, indivisível, com um Projeto de intervenção na organização do país (para o desenvolvimento como pregava a Doutrina Góes). Havia bolsões de resistência que precisavam ser convencidos, ganhos para a causa, caso contrário deveriam ser expulsos quando existisse suficiente “munição” para tanto. As outras duas Armas precisariam estar igualmente coesas, possuindo grupos hegemônicos próprios, porém identificados intelectualmente com o respectivo grupo hegemônico do Exército.

Enquanto estas balizas não estivessem suficientemente conquistadas, “ainda não seria a hora para o exercício completo do poder”. Dever-se-ia, enquanto isso, manter o resultado das urnas, mesmo sem maioria absoluta. Dentro desta visão é mais compreensível o espaço adquirido pela liderança “profissional” de Lott — sempre sombreado pela figura do General Denys — e esquecido quando foi preciso. Interessante a lembrança que Denys acompanha a crise de 1955; é a principal liderança militar de sustentação a Juscelino; é o Ministro da Guerra de Jânio e depois, em 1964 conforme inúmeros depoimentos, elimina todos os recalcitrantes importantes, simplesmente “conversando no telefone” e estes abandonam, de imediato, a contestação, passando ao apoio incondicional ao movimento de março. Mas, como dissemos, são especulações, idéias soltas.

E quanto ao outro lado da mesma moeda, os políticos, principalmente aqueles donos dos mandatos parlamentares? Qual o conjunto de regras que marcavam as suas atuações? Celso Furtado, em um artigo sempre lembrado — Obstáculos Políticos ao Crescimento Econômico, de 1965 — insiste em apontar um “conservadorismo ostensivo” do Legislativo frente a um Poder Executivo “constantemente progressista e inovador”; o conceito assim exposto provocou forte debate, embora não se conseguisse apagar muito da ênfase da observação, principalmente ao que se refere ao período 1946/1964. O entrechoque das forças políticas marcava-se essencialmente não pela proposta do novo (pois isto nunca acontecia por Projetos Parlamentares, mas sim pela reação ao novo quase sempre vindo “de fora”, ou seja, de proposta do Executivo (o Legislativo, quase por tradição, eternamente reagia e nunca agia).

Os motivos deste comportamento são discutíveis, porém, sem dúvida, qualquer proposta inovadora sempre fere interesses que podem “vingar-se” na próxima eleição. O risco sempre foi convenientemente afastado, “culpando-se” o Governo, e ostensivamente demonstrando ao eleitorado cativo que se carregava às costas, a proposta inovadora, como pesado fardo, “obrigado pela política do Executivo”. A própria atuação da esquerda, em suas posições parlamentares, em muito pouco afastou-se desta premissa básica de sobrevivência política. A atuação parlamentar, por essência conservadora, se por um lado garantia o próximo mandato, por outro escancarava a principal fraqueza do Legislativo: só caminhava à reboque do Executivo.

Esta “mancha”, esta demonstração mista de medo, fraqueza e defesa, em verdade de interesses pessoais e não públicos, permite perceber porque sempre foi possível manter a pão e a água o Legislativo, garantia maior do eterno sucesso da lógica de poder florianista. Este “legado de miséria” — extrapolando um pouco a expressão de Machado de Assis — em verdade é o que permite entender por que em plena vigência de uma Constituição ostensivamente liberal, os dois grandes grupos políticos — UDN e PSD — não procuravam demonstrar força, partindo da representatividade que oficialmente possuíam, falando em nome da parcela da sociedade que os elegera, mas sim expondo, de forma meio dita sempre nas entrelinhas do discurso, que aquela era a opinião dos “seus” aliados militares, contra “os” do adversário, como já dissemos.

E no momento em que entre os homens de Armas se conseguiu um consenso mínimo, com a efetiva hegemonia de uma forma de pensamento, ironicamente, desgraçadamente, o Parlamento deixou de fazer sentido, enquanto caixa de ressonância de diferentes visões sobre o País. Conseguido o “consenso” entre os homens de Armas, foi só aguardar o momento certo para a ação “saneadora”. Quando o Executivo “saiu da linha”, como em março de 1964, ninguém, ninguém mesmo lembrou-se de consultar o Supremo quanto à Constituição. E desta vez os tanques não iam fazer só um outro Direito, iriam fazer também um outro País.

1964: A crise do Executivo e a tutela das Armas

Utilizamos uma expressão, “saiu da linha”, em referência ao Executivo pré-64 que exige algumas explicações. O início dos anos 60 caracterizaram-se por uma retomada do crescimento econômico em nível internacional, muito acentuada. Este crescimento fazia os brasileiros perceberem ainda mais as suas carências, o tamanho da sua pobreza. Os pedidos de mudança eram atendidos só nas promessas populistas. A cobrança das promessas acabaram por acuar o populismo, herança varguista que o governo Goulart de certa forma acentuara. Todas as carências, insolúveis para um único mandato, provocavam exigências de mudança até por meios violentos. A inflação, triste herança recebida por Jango, agravou tudo. Como manter a proposta populista em um período inflacionário em que era preciso segurar os salários? O contexto internacional completava o quadro de tensão, principalmente devido a Cuba que assegurava muitos argumentos aos que cultivavam os medos da Guerra Fria. A sociedade brasileira exigia reformas. Porém, “como reformar” dividia os brasileiros.

O Governo Goulart vivia um impasse. O radicalismo de alguns de seus membros esbarrava no caráter conservador do Congresso, pois mais de dois terços dos parlamentares pertenciam à UDN e PSD, ambos absolutamente adversos a radicalismos. O impasse facilitava a agitação política que significava, conforme a melhor tradição política brasileira, em ameaças de golpe. Da direita contra o Governo, da esquerda em seu benefício, e mesmo do próprio governo que fecharia o Congresso, instalando a tão ameaçadora República Sindicalista.

Como para a execução de golpes é necessário o uso da força, todos foram bater às portas de quem a possuía: as Forças Armadas. Era a situação exata que Góes Monteiro previra em sua Doutrina, com uma diferença: agora os militares sabiam precisamente o que queriam e como agir para alcançar tais objetivos, foi só aguardar que o próprio governo criasse as condições para o “pronunciamento”; tentando enfrentar a animosidade da maioria dos oficiais superiores, Goulart tocou nos valores sagrados para as Instituições armadas: a hierarquia e a disciplina.

Os fatos são bastante conhecidos. Houve uma escalada de incidentes até a célebre visita à reunião dos Sargentos, a 30 de março. Conselhos mal dados ou não, “as coisas tinham ido longe demais”, como admitiu posteriormente o próprio General Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência da República e principal assessor militar de Goulart. Tudo foi muito rápido e sem resistência Porém, quem se beneficiou com o golpe? De todos que foram às portas dos quartéis, quem realmente alcançou seus objetivos?

Os civis, que colaboraram com a Revolução logo perceberam o rumo que tudo tomava. O sonho de um serviço rápido, da imposição de ordem e retomo às suas funções logo transformava-se em um pesadelo. O jornal O Estado de São Paulo, núcleo da oposição liberal a Goulart, a 9 de abril quando se define com quem ficaria o poder, percebe a jornada de tolos em que embarcara, e não omite isto em suas páginas. Decorridas duas décadas, o mesmo jornal, em editorial, chamaria o Movimento de março como a “revo1ução que não houve”, destacando a frase em negrito.

Os políticos, civis com mandato, sonharam por mais tempo. Não distinguindo corretamente o rumo de tudo, tomaram o barco das ilusões e foram fazendo concessão sobre concessão, sem perceber que nada se perdia, exceto a honra. Seria ingenuidade acreditar que cinco governadores dos principais estados da Federação, um ex-Presidente da República e mais uma boa dúzia de astutos senadores e deputados não soubessem quem, “de fato”, exercia o poder. Sonharam acordados, cada um deles de olhos postos em seus projetos pessoais, acreditando que aqueles “ingênuos” generais acabariam “caindo” mais uma vez em suas espertas armadilhas, e que o rio voltaria a correr no leito antigo, com os militares simplesmente exercendo o seu poder à sombra.

Quando “acordaram”, o País era outro, outra era a equação do poder, era outra a “natural ordem das coisas”. Os políticos eram admitidos e esta condição era ostensiva, quase oficial. Um país moderno, democrático, tem Congresso, portanto. A Instituição permanecia funcionando quase por tradição, quase por um preço a pagar a uma certa herança européia. Quanto ao poder, este seria diretamente exercido pelos militares, em seu primeiro escalão e daí para baixo pela figura símbolo da era de desenvolvimento tecnológico que se inaugurava: o tecnoburocrata, como assim chamaram tantos estudiosos. Chamamos a atenção do leitor para não desprezar o poder deste segundo escalão. Filho direto da lógica de poder florianista, o “técnico” justifica seus desmandos com uma incompreensível verdade científica, que legitima seu autoritarismo. Aspecto importante, diríamos o básico, da arquitetura de poder emanada da Revolução de 1964, que mereceria melhor estudo. Quanto aos políticos, para eles sobrariam um significado quase pejorativo, e nenhum poder.

Poder civil? Poder armado?

A questão básica que permanece é como foi possível uma desarticulação quase completa do poder civil em um Estado organizado sob uma Constituição liberal que garantia, sobremaneira, este poder civil? De fato ocorreu uma resistência que durou, digamos assim até 1968/1969. O símbolo deste tipo de resistência encontramos na angustiada afirmação do udenista Adaucto Lúcio Cardoso à frente das tropas do Coronel Meira Matos que invadiriam o Congresso Nacional; o bacharel tentando impedir a ocupação afirma: — “Eu represento o poder civil”. A resposta do Coronel em uniforme de campanha é imediata: — “E eu represento o poder armado”. As frases são atribuídas, mas a verdade deve andar muito perto destas palavras. E uma excelente síntese do que mudou.

O Coronel Meira Matos recebeu uma missão e foi cumpri-la, sem questionamentos, porque para isto foi treinado desde menino. A educação política do bacharel Adaucto via o Congresso Nacional como o símbolo de uma determinada ordem social. Dois discursos, duas visões de mundo. A UDN, partido de Adaucto, conhecia as derrotas gloriosas e às vezes culpava as massas e a sua irresistível tendência para o pulha por estas derrotas. O seu discurso e a sua ação não tinham representatividade social e, por isto, não brecaram as tropas do Coronel Matos. O ato e a “resposta” do Coronel provocaram a felicidade escondida de todos os adeptos do velho princípio da cega obediência.

E foram estes adeptos que legitimaram, em uma legitimidade ostensiva, que não precisou ser medida em nenhuma pesquisa de opinião e nem mesmo em qualquer tipo de consulta às urnas, a construção lenta, mas segura, deste período que preferimos chamar de o ciclo do poder armado. Tempo em que não haviam dúvidas, em que o caminho a ser percorrido já estava definido, porque era o melhor para o progresso, desenvolvimento e segurança do país. Para uma platéia seleta, demonstrava-se “cientificamente” cumpridas todas as “razões técnicas” que aquele era o caminho correto; justificar não, demonstrar simplesmente já que a justificativa pode pressupor questionamento, a demonstração não. Os militares assistiam a demonstração do técnico e garantiam a execução do caminho. Anda bem quem percebe a essência do poder na aliança dos técnicos com burocratas e não na aparência dele, em quem cumpre as formalidades do cargo executivo, quase sempre o militar. Há mais coisas entre o céu e a terra, como assegurava um inglês famoso. A questão maior, contudo, permanece: quando e como foi possível defenestrar os políticos que eram a essência e a aparência do poder, principalmente durante o período em que vigorou, bem ou mal, com seus limites, a Constituição de 1946?

É um costume atribuir-se como marco a edição do Ato Institucional n. 5, para esta vitória completa do poder armado. Parece-nos um engano, pois, efetivamente, antes da edição do AI-5, no início de 1968, o General Jaime Portela, ministro-chefe da Casa Militar da Presidência da República, conseguira que a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional se dividisse em subchefias: a de Assuntos Políticos; a de Assuntos Econômicos; a de Assuntos Psicossociais e a de Assuntos Militares. A primeira subchefia cuidava da política interna e externa. A segunda de todo o complexo econômico, desde a produção industrial e agrícola até transportes e energia. Na psicossocial cabia desde sindicalismo, arte, religião, até toda a educação. Quanto à quarta subchefia, esta cuidava do caráter operacional das Forças Armadas. O país passara a ter um comando militarizado, maior que o Ministério, constituindo-se, de fato, no verdadeiro Conselheiro da Presidência. O Poder Civil desaparece com esta subdivisão. O AI-5, a 13 de dezembro, torna público, ostensivo, o que já ocorria de fato.

O título deste capítulo contém um ponto de interrogação. Quinze de março de 1985 é o marco oficial para o término deste ciclo iniciado em 1964, que conheceu diferentes fases, mas que insistimos em defini-lo como ciclo do poder armado. Preferimos manter um prudente ceticismo quanto ao tão alardeado refluxo da perspectiva de intervencionismo militar. Walder de Góes, um estudioso competente da questão militar, tem alertado constantemente que as premissas básicas do intervencionismo mantêm-se intactas e que o retorno aos quartéis é muito limitado, lembrando sempre que foram os próprios militares que afirmaram a volta aos quartéis, cabendo à ordem civil acreditar nessa premissa.

Porém, acompanhemos algumas hipóteses de análise quanto à possibilidade deste refluxo, deste retorno aos quartéis. Lembramos que permanece intocado o esquema de ação da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional. Duas são as funções básicas deste órgão: elaborar estudos e fornecer pareceres que alicerçam diretamente as decisões da Presidência da República e também promover uma ação coordenada entre burocratas e militares, para a resolução de questões essenciais para o desempenho da Administração Pública. Permanece desconhecido também o limite de atuação do Serviço Nacional de Informações. Seria desnecessário reafirmar que todo Estado com a realidade do mundo contemporâneo não pode prescindir de um serviço de informações. Esta é uma realidade inegável e insistimos que o problema está em seus limites de atuação e não em sua existência. Todas as democracias ocidentais criaram fórmulas próprias adaptadas às suas realidades nacionais, de controle de seus complexos de informação. Os Estados Unidos entregaram a tarefa a Comissões Secretas do Congresso; Israel ou a Itália imaginaram outras fórmulas, porém efetivaram um controle de um serviço que é por sua própria natureza, secreto e de atuação informal. Estes dois temas permanecem insolúveis em referência a um primado do poder civil de forma ampla.

Uma outra hipótese de análise quanto aos limites de um refluxo absoluto é a própria existência, desde meados da década passada, de uma indústria bélica brasileira que constituiu-se em um excelente espelho do desenvolvimento tecnológico do país que produziu um êxito comercial sem precedentes. Dados insuspeitos sustentam que o Brasil consolidou uma posição de maior exportador de armamento convencional do Terceiro Mundo. De maneira evidente, a eficiência deste complexo produtivo implica em um redimensionamento da posição das Forças Armadas, tanto em aspectos de política interna como externa.

Do aspecto interno, ressaltamos que praticamente 400 empresas empregando mais de cem mil trabalhadores, de forma direta, constitui-se em um dado mais do que significativo. Este parque industrial instalado possui evidentes imbricações com toda a atividade produtiva do país, envolvendo praticamente uma maioria das indústrias de bens de capital. A direção das empresas pode ser privada mas a orientação, todos os estímulos, os apoios para as mais que necessárias pesquisas tecnológicas, vem das Forças Armadas, principalmente do Exército. Este processo redefine o papel em âmbito interno da Instituição Armada, tornando irreversível a sua presença. Se o General Eisenhower, sob todos os pontos de vista insuspeito para esta observação, alertou para os problemas advindos de uma exacerbação da importância do que batizou como “complexo industrial-militar”, o que deveríamos pensar nós, com nossa sociedade civil tão frágil, com nossas instituições tão débeis?

Quanto à política externa, um país produtor de armas abre perspectivas bem maiores às suas potencialidades geopolíticas. Não concordamos que os “desejos de hegemonia” — para usarmos uma expressão jornalística — tenham origem e desenvolvimento exclusivo nas Forças Armadas, pois, parece-nos uma ambição natural, fruto do próprio desenvolvimento econômico de qualquer país. Porém, a independência de iniciativa que uma indústria bélica atuante e moderna permite redefine o próprio papel dos militares quanto ao planejamento da Política Externa brasileira, que por definição constitucional é exclusiva do Presidente da República.

Comentamos algumas hipóteses de análise que propõem alguma reflexão sobre o tema do retorno aos quartéis. Com muita freqüência propõe-se quase como uma verdade messiânica que a melhor forma de impedir-se a intervenção é acentuar a profissionalização das Forças Armadas, e “tudo” estaria resolvido. Parece-nos apressada a opinião, pois quanto mais isoladas do meio social — além do seu isolamento natural, fruto da sua própria condição de estamento — quanto mais as Armas estiverem voltadas só para o seu “público interno” mais a incompreensão mútua ocorrerá. Insistimos: quanto maior for o isolamento, menos os militares compreenderão as “flutuações” dos civis e estes menos ainda compreenderão as características institucionais próprias dos militares. A extrema profissionalização não tem o dom mágico de alterar a ordem das coisas: o Exército que continuará armado e poderoso, em contraposição a uma sociedade civil que ainda é desarticulada; frente a qualquer estímulo conjuntural, para usarmos uma expressão sociológica, este Exército pode ser quase instantaneamente repolitizado. E o processo voltará a repetir-se em todas as suas características trágicas.

Um leitor com uma menor dose de paciência apontaria as nossas poucas esperanças de primado do poder civil, dos riscos da volta do ciclo de poder armado. Em tempo, é preciso que as palavras sejam bem compreendidas para evitar dupla interpretação: será que estaríamos sentenciados ao autoritarismo? Primeiro, os riscos de um retorno dos militares ao centro de poder é real e a obrigação de um texto que pretendeu analisar as relações entre militares e políticos é analisar estes riscos. Quanto ao tema de uma vigência permanente de uma perspectiva autoritária, a complexidade é bem maior. Dizem alguns que a Arte tem uma capacidade infinita de apreender a realidade, em maior profundidade do que a Ciência. Talvez seja mesmo, pois um compositor de música popular brasileira, o Sr. Caetano Veloso, em uma de suas obras, afirma: “Será que nunca faremos senão confirmar/A incompetência da América Católica! Que sempre precisará de ridículos tiranos?”

Versos interessantes. Observe-se que o referido compositor não utilizou a expressão América Latina, preferindo utilizar América Católica. Uma excelente pista para a reflexão sobre as origens e os motivos da manifestação, por séculos de uma mentalidade autoritária. Será que este amor pela autoridade absoluta, esta eterna vitória do princípio da cega obediência, esta divisão de homens entre os que são plenamente justos e os outros que são totalmente pecadores, a que estamos tanto acostumados, explica essa nossa condenação ao autoritarismo? O único caminho possível para lentamente livrar-nos desta mentalidade autoritária é o exercício democrático, não aquele que principia pelo conceito de que a rota do paraíso está reservada só para os que pensam como nós e o adversário ou simplesmente aquele que discordou, é antes de mais nada um herético e como tal deve ser tratado. Heranças históricas são exatamente o que são: heranças. O primeiro passo da “cura” é olhar para elas de frente e não fingir que elas não existem. Enquanto continuarmos pensando no mundo dividido entre os que optaram a nosso favor e, portanto, bons e os que optaram contra, portanto, os maus, as Armas continuarão visitando o poder porque numa sociedade assim pensada o poder não emana do consenso e sim da força. Diríamos que a Instituição armada será sempre poder enquanto não aprendermos a proteger, coletivamente, a discordância. Em um país em que tantos tem a “certeza na frente” de vários tipos e quase sempre todos se julgam com a “história na mão”, propomos o que há de mais perturbador: a dúvida.


 

Ridendo Castigat Mores
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