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MENSAGEIROS DAS FÚRIAS

Janer Cristaldo


 

 

Mensageiros das Fúrias (1881)
Janer Cristaldo

Título original
Approches d’un thème littéraire: la révolte chez Albert Camus et Ernesto Sábato
Tradução
Tania Koetz

Capa
Editora da UFSC, 1983

© Janer Cristaldo
janercr@terra.com.br


MENSAGEIROS
DAS FÚRIAS

— uma leitura camusiana de Ernesto Sábato —

Janer Cristaldo

Tradução
Tania Koetz


 

Para
Katica Culavkova


 

NOTA DA TRADUTORA

 

Este ensaio, originalmente intitulado Approches d’un thème littéraire: la révolte chez Albert Camus et Ernesto Sábato, foi apresentado, em março de 1981, na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III) como tese de doutorado, obtendo a menção Très Bien. Participaram do júri M. Daniel Pageaux, orientador, M. Paul Verdevoye e Mme. Denise Brahimi. Eventuais referências a fatos posteriores à data de defesa da tese foram acrescentadas pelo autor para atualizar seu trabalho.


 

SUMÁRIO

Carta de un remoto muchacho
Introdução

I – O VAZIO AXIOLÓGICO
A hipótese de um Deus enlouquecido
Entre Deus e o suicídio
A tentação marxista
Sem Deus nem Marx

II – HOMENS QUE NÃO ADEREM A NADA
A nova Igreja
A affaire Lyssenko
O indivíduo e a história
O escritor ante o impasse

III – ALÉM DO NIHILISMO
Da fissão à ficção
Da tuberculose à literatura
Sábato e os censores
O mensageiro das Fúrias

IV – O ROMANCE COMO RESPOSTA
O parto de Heróis e Abadon
O romance total
Um outro Ernesto
Em torno a uma queda

V – AS NOVA FORMAS DA REVOLTA EM UMA NOVA GEOGRAFIA
Romance e sonho
Tango e metafísica
Em busca da Argentina
A cavalo sobre dois continentes

CONCLUSÃO

ANEXOS
Charlas
Carta de Sábato ao Che
Resposta de Che Guevara
Seamos nosotros mismos
Cronologia
Obra
Traduções
Fortuna crítica
O escritor visto pela crítica
O pintor visto pela crítica


 

 

CARTA DE UN REMOTO MUCHACHO

 

Caríssimo e muito próximo Sábato

 

Há seres que são apenas pontes entre duas pessoas, como diz um de seus personagens, frágeis pontes como as que improvisam os exércitos sobre um abismo, e que são recolhidas tão logo as tropas tenham passado. Lá pelos anos 70, antes de uma viagem a Buenos Aires, fui procurado por um destes seres que, uma vez cumprida sua missão de transitória ponte, desapareceu de minha existência tão abruptamente como havia surgido. Me pedia que lhe comprasse Sobre Héroes y Tumbas, “desse extraordinário argentino, Ernesto Sábato”. Ora, eu já ouvira falar desse nome, e dele não guardava a melhor das lembranças. Em meus dias de adolescente havia lido El Túnel, que me parecera uma vulgar história de ciúmes, o que só comprova que cada livro tem uma idade certa para ser lido, e é perigoso antecipar esta leitura. Naqueles dias, víamos Buenos Aires com secreta inveja: era a capital cultural da América do Sul, metrópole onde tínhamos acesso a livros e filmes proibidos no Brasil, onde se respirava toda uma busca de latinidade.

Invadidos pela parafernália musical ianque, era com reverência quase religiosa que acariciávamos os discos de Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa nas livrarias de Florida. Atravessar o Plata era para nós, brasileiros, mais ou menos como ir à Europa, com a vantagem de que o Plata não era tão largo como o Atlântico. Voltávamos com as espáduas curvadas sob – literalmente – o peso da cultura. Um amigo queria uma coleção de Crisis, outro pedia um livro de Roberto Arlt, um terceiro os últimos contos de Borges e, na falta de poder transportar filmes, tínhamos de voltar com um detalhado resumo de realizações como Le Dernier Tango à Paris, La Grande Bouffe, The Devils, État de Siège, Z, etc.

Mas os tempos mudam, e mudam com rapidez na América Latina. Antes porém que os tempos mudassem, aquele ex-amigo, discreta ponte, me pedia que comprasse um de seus livros. Comprei-o, mais precisamente na livraria La Ciudad, cuja atmosfera sempre me fascinou. Fui a um bar, creio que na Lavalle com Suipacha, para um “trago largo”. Tinha vários dias livres pela frente para dedicar-me ao conhecimento físico da cidade, e pressa nenhuma. Enquanto esperava o garçom fui remexendo minhas compras, algumas pessoais, mais as inevitáveis encomendas de amigos. Abro Sobre Héroes y Tumbas e me deparo com a nota policial que abre o livro: um crime e um suicídio ocorridos em circunstâncias misteriosas, frutos aparentemente de um gesto de loucura. Mas certas inferências conduziam a uma hipótese mais tenebrosa, em virtude de um estranho “Informe sobre Ciegos” que Fernando Vidal Olmos havia concluído na noite de sua morte. Antes mesmo de chegar o “trago largo”, minha tentação era passar as páginas, cair diretamente no Informe. Preferi obedecer a ordem dos fatos estabelecida pelo autor e, durante duas gordas centenas de páginas, permaneci fascinado pela ausência onipresente de Vidal Olmos. Escusado dizer que naqueles dias abandonei todos meus projetos turísticos. Debruçado sobre teu livro, descobri uma Buenos Aires profunda e subterrânea, escondida ao visitante que não dispõe de um guia como Sábato. Após ter percorrido com Olmos cavernas, seitas e incestos, ao chegar àquele repouso final, quando o angustiado Martín urina ao lado de Bucich, o chofer de caminhão, sob o poncho estrelado da pampa, tomei uma decisão imediata: comprei sua obra completa. Era preciso reler El Túnel, quem escrevera Sobre Héroes y Tumbas não podia ter cometido bobagens. E mais Uno y el Universo, vamos ouvir o primeiro vagido do autor. Como também El Escritor y sus Fantasmas, cujo título me excitava. Eram os dias de lançamento de Abaddón, el exterminador. Considero que um bom livro é o melhor presente. Para espanto do livreiro, apanhei vários exemplares.

Falava no ex-amigo que me levou a teu encontro. Entusiasmado com a independência intelectual de Sábato ante os engodos de esquerda e direita, passei a divulgar tua obra entre amigos e nos jornais para os quais escrevia. Mas vivemos tempos dogmáticos, em que ideologias doentias se sobrepõem a este antiquíssimo e quase esquecido sentimento, a amizade. O amigo que me encomendara Héroes, por ver em Sábato um escritor que tratava dos problemas da condição humana, fechava-se agora em um azedo mutismo, resmungando qualquer coisa sobre “literatura psicológica e decadente”. Vivíamos então no Brasil – e vivemos ainda – sob o império das patrulhas ideológicas, fenômeno que não lhe é estranho: um homem pensa com a própria cabeça e logo se vê entre dois fogos. Primeiro, a censura do stablishment, que detesta todo pensamento novo. Depois, a censura de uma pretensa oposição, que também detesta o novo, já que suas ambições não giram exatamente em torno a um mundo mais humano, mas visam à posse imediata do poder. O silogismo é tão ridículo quanto primário: só os marxistas ou compagnons de route são bons escritores. Ora, Sábato não só não é marxista como ainda abandonou – e ousou criticar – o marxismo. Logo, Sábato não é bom escritor.

Obedecendo ao mesmo processo mental que fez um dia Sartre dizer a Camus que “l’amitié, elle aussi, tend à devenir totalitaire; il faut l’accord en tout ou la brouille, et les sans-parti eux-mêmes se comportent en militants de partis imaginaires”, um belo dia o amigo que me levara a teu encontro passou a acusar-me de reacionário pelo fato de defender os mesmos ideais libertários que defendes. Cumprida sua missão como ponte, este amigo desaparece de cena e destas reflexões.

Nasci em Santana do Livramento, caríssimo Sábato, e este detalhe não é gratuito. Filho do campo, me criei entre contrabandistas e muitas vezes cevei um mate para um guarda aduaneiro vindo da cidade. A meia légua dali, alguns paisanos passavam bois ou ovelhas para o Uruguai ou no sentido inverso, conforme o preço da lã ou da carne. Contrabandista desde o berço, muito cedo me desinteressei por gado, mas nem por isso abandonei este vício de fronteirista. Após aquele “trago largo” a Suipacha, atravessei o Plata com o cérebro repleto de uma mercadoria inefável, imperceptível aos vigias de fronteiras. Pois o contrabando mais importante não é o de bois ou ovelhas, mas o das experiências que nos fecundam o espírito quando mergulhamos em outra cultura.

Disto terão se apercebido mais tarde os homens de aduana. Quando voltei à Argentina para dar-te um abraço e apanhar o barco que me traria à Europa, em minhas malas os guardinhas buscaram uma mercadoria específica.

— Que tiene Usted en este bulto?

— Ropas.

— Y en este?

— Regalos.

— Y en este otro?

— Libros.

— Abralo.

O pequeno funcionário subitamente tomou ares de crítico literário e, com a nonchalance de quem despetala um malmequer, afirmava: este é bom, este não é, este sim, este outro não. A Argentina havia mudado. De mais importante centro editorial da América do Sul, passara a ser governada por homens que temiam livros, isto é, idéias.

Naqueles anos, caro Sábato, vivi meus dias de Juan Pablo Castel: havia perdido Deus, em Marx meu intelecto se recusava a crer e pouca ou nenhuma confiança alimentava em mim mesmo. Na Filosofia buscara resposta a certas angústias e na Filosofia só encontrei abstrações que me conduziam a becos sem saída. No Direito, tentara encontrar satisfação a meus ideais de justiça, e no Direito via um sistema de opressão de um povo por uma elite desprovida de qualquer senso de humanidade. Para comer, fazia jornalismo, sem maiores entusiasmos, consciente da definição gideana: jornalismo é o que amanhã interessa menos do que hoje. Alguns ensaios e contos publicados, e a suspeita atroz de que literatura talvez não fosse meu melhor rumo. Foi quando li aquela sua mensagem jogada ao mar, aquelas densas e sofridas páginas de Abaddón, el Exterminador, dirigidas a “un querido y remoto muchacho”.

“Te desanimás porque no sé quién te dijo no sé qué. Pero ese amigo o conocido (que palabra más falaz!) está demasiado cerca para juzgarte, se siente inclinado a pensar que porque comés como el es tu igual; o, ya que te niega, de alguna manera es superior a vos. Es una tentación comprensible: si uno come con un hombre que escaló el Himalaya, observando con suficiencia como toma el cuchillo, uno incurre en la tentación de considerarse su igual o superior, olvidando (tratando de olvidar) que lo que está en juego para ese juício es el Himalaya, no la comida”.

Para mim, que vivia uma perigosa fase de descrença em tudo e em todos, tuas frases me soaram como tábua lançada a um náufrago. Talvez o mundo não fosse assim tão negro, negro seria meu pessimismo. “Y por eso tan pocas veces el creador es reconocido por sus contemporáneos: lo hace casi siempre la posteridad, o al menos esa espécie de posteridad contemporánea que es el extranjero. La gente que está lejos. La que no ve cómo tomás el café o te vestis”.

Nem tudo estava perdido, pois. O ex-advogado descrente do Direito, o ex-aprendiz de filósofo fugitivo de filosofias que reduziam o homem a conceitos, o ex-jornalista cansado de jornais que pingavam sangue e mentira, voltou a bater numa porta esquecida, gonzos enferrujados, além da qual suspeitara um dia não existir saída. Pergunto-me quantas respostas terá recebido tua carta e quantos jovens terão sido salvos do vácuo no qual naufragaram Castel e Meursault.

Hoje, olhando para trás e tentando tirar de minhas errâncias algum ensinamento, primeiro quero te agradecer a mão de longe estendida. Depois, agradecer a Deus por não existir, ausência que permite ao homem este vagido “solitário e solidário”, como escreveu Camus, que chamamos literatura.


Même si l’on part de l’hypothèse que Dieu n’existe pas, on devrait positivement l’inventer, rien que pour lui casser la gueule. Dieu est vase clos dans lequel l’homme doit déverser sa haine”.
Fritz Zorn


 

 

INTRODUÇÃO

 

Deus morto, as ideologias em falência, à arte resta a mais radical manifestação contemporânea da revolta. Que é um homem revoltado? – pergunta-se Albert Camus. É “um homem que diz não. Mas se ele nega, ele não renuncia: é também um homem que diz sim, desde seu primeiro movimento”. Segundo Camus, esta recusa se exprime sob três formas.

Primeiro, no homem que recusa sua condição e a criação toda, encontramos a revolta metafísica, movimento contemporâneo do cristianismo. O autor constata esta negação nas primeiras teogonias, em um “Prometeu acorrentado a uma coluna, nos confins do mundo, mártir eterno excluído para sempre de um perdão que ele recusa solicitar”. A revolta não encontra terreno fecundo em uma cultura onde os deuses perambulam entre os homens, onde o estrangeiro é recebido com a fórmula clássica: “quem quer que sejas, homem ou deus...” Será a noção de um deus único, responsável por toda a criação, introduzida pelo cristianismo, que canalizará este sentimento vago intuído pelos antigos. Esta revolta “é metafísica, pois contesta os fins do homem e a criação”.

Logo, como conseqüência lógica da revolta metafísica, “o mesmo esforço desesperado e sangrento para afirmar o homem face àquilo que o nega”, a revolução explode na História. Recusando-se à luta contra Deus, o homem se engaja no temporal. É a revolta histórica que, insiste Camus, não deve ser confundida com a rebelião. Spartacus não aspira à revolução, ele não quer senão direitos iguais aos do senhor, ele quer ser senhor no lugar do senhor. Nos encontramos face a uma rebelião. Se a rebelião mata homens, a revolução mata homens e princípios.

E, por fim, a revolta pela criação, pela via desta rivalidade com Deus que é a arte, “movimento que exalta e nega ao mesmo tempo. Nenhum artista suporta o real, dizia Nietzsche. “É verdade – responde Camus – mas nenhum artista pode prescindir do real”.

Ernesto Sábato, o escritor solitário de Santos Lugares – pequena cidade a uma hora de Buenos Aires – teve seu primeiro romance recomendado à editora Gallimard, em Paris, por Camus. Hoje, com apenas três romances, recebeu o prêmio Médicis na França, o Cervantes na Espanha e o Gabriela Mistral nos Estados Unidos. Afastado dos modismos literários, desenvolveu sua ficção com paciência de monge: entre cada romance medeiam treze anos. El Túnel foi publicado em 1948, Sobre Héroes y Tumbas, em 1961, e Abaddón, el Exterminador em 1974. Implacavelmente autocrítico, estes dois últimos romances foram salvos do fogo por Matilde Kuminsky-Richter, sua mulher, e por alguns amigos. “Destruí e queimei mais do que publiquei. Sou uma pessoa descontente por natureza”.

Sua obra, saudada por muitos críticos como a mais profunda manifestação metafísica do romance contemporâneo, foi, precisamente por isto, ignorado por certa crítica. “Esperam de nós a descrição de cavalgadas selvagens na planície, solicitam ou anelam o exotismo e a cor local”. Tanto seus romances como ensaios têm uma relação considerável com o pensamento de Camus. Para os dois escritores, a arte tem suas raízes na revolta ante a condição humana, sentimento que os leva a escrever. “Tínhamos em comum” – diz Sábato falando de Camus– “as inquietações metafísicas, a preocupação ética e uma posição política muito semelhante”.

Nesta viagem através da obra dos dois autores, é nosso propósito isolar estas três manifestações da revolta: a busca de Deus, a revolução e a arte. Em um primeiro momento, analisamos a atitude destes dois autores face ao vazio axiológico, face a um mundo onde Deus está ausente e onde tudo, mesmo o assassinato, é permissível. Sem Deus, como aliás vários outros pensadores da época, ambos fazem uma aposta na História e se aproximam do marxismo. Mas a nova fé é exigente, implica escravidão mental e cumplicidade com o crime por razões de Estado. Homens que não aderem a nada, eles se afastarão da nova Igreja, não sem analisar, para si próprio e para seus públicos, as razões deste afastamento. Como nos parece ser impossível abordar a vida e obra de escritores surgidos na primeira metade do século sem evocar Stalin, tocaremos alguns fatos que influenciaram estes dois autores, particularmente o grande fiasco dos anos 40, a affaire Lyssenko.

Sem Deus nem Marx, Sábato e Camus têm uma mesma reação: escrevem um romance onde não há saída para os personagens. Superando o nihilismo, assumem a condição de ficcionistas, condição que Sábato define como a de um “mensageiro das deusas Fúrias”. O romance se apresenta como uma possível resposta e adquire, segundo o autor argentino, novas configurações. Finalmente, examinaremos as novas formas da revolta em uma nova geografia, onde o romance se identifica com os sonhos de uma comunidade e onde as angústias metafísicas se manifestam até mesmo no tango.


 

 

O VAZIO AXIOLÓGICO

 

 

A hipótese de um deus enlouquecido

Dezenas de obras e milhares de artigos foram escritos sobre o problema de Deus e, conseqüentemente, do Mal em Camus. O tema se manifesta com veemência em Calígula e A Peste. Calígula, como também os personagens mais marcantes de Sábato, é um homem possuído por uma lógica absoluta. Jovem imperador, inteligente e sensível, encontra-se um dia face à Morte. Não face à sua própria morte, o que talvez lhe fosse suportável, mas face à morte de Drusila, irmã e amante (e aqui já encontramos uma situação muito do agrado do escritor argentino). De repente, ele descobre que “os homens morrem e não são felizes”. As alegrias não são eternas, nem mesmo as tristezas. Calígula não perdeu da criança – que, segundo Aristóteles, origina o filosofar – e quer o que não é dado ao homem querer: a lua, a perfeição do universo, a coerência nos seres humanos. Se esta lógica não existe neste mundo, urge buscá-la alhures, e aqui já encontramos o eco das leituras nietzscheanas de Camus: “Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho então necessidade da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente, mas que não seja deste mundo”.

Se comparamos este trecho a um aforismo de Nietzsche em Além do Bem e do Mal, retomado por Camus em O Homem Revoltado, temos já uma idéia da raça à qual pertence Calígula: “Torna-se claro que a coisa principal sobre o céu e sobre a terra é obedecer muito tempo e em uma mesma direção: com o tempo resulta qualquer coisa pela qual vale a pena viver sobre esta terra, como, por exemplo, a virtude, a arte, a música, a dança, a razão, o espírito, qualquer coisa de refinado, de louco ou de divino”.

O perigo é que Calígula imperador, além de estar armado de poderes absolutos, se pretende homem lógico e faz a escolha de Ivan Karamazov: “ser virtuoso e ilógico, ou lógico e criminoso”. O imperador alerta seu intendente: “Tudo bem pensado, eu decidi ser lógico. Como detenho o poder, vocês vão ver o quanto lhes custará a lógica. Exterminarei os contraditores e as contradições. Se for preciso, começarei por ti”.

Como Deus e a imortalidade não existem, segundo o grito célebre de Dostoievski, ao novo homem é permissível tornar-se Deus. Calígula leva a sério suas novas funções. O Tesouro tem problemas? A solução é simples, Calígula vira do avesso a economia pública em dois tempos. Todas as pessoas do Império que dispõem de fortuna devem deserdar os filhos e legá-la ao Estado. Tais pessoas serão assassinadas conforme as necessidades do Estado, isto é, Calígula. Os cidadãos serão executados na ordem de uma lista estabelecida arbitrariamente. Conforme a ocasião, a ordem poderá ser modificada, sempre arbitrariamente, afinal a ordem das execuções não tem importância alguma. Ou melhor, as execuções têm uma importância igual. Em outras palavras, não a têm absolutamente. “Escuta, imbecil. Se o Tesouro tem importância, então a vida humana não a tem”.

Calígula assume o “rosto idiota e incompreensível dos deuses”. Sabe que a menor guerra empreendida por um tirano custaria mil vezes mais caro que seus caprichos. Diante de um espelho, fala a si mesmo, acusando-se de ter decidido ser lógico, indagando-se até onde o conduziria tal decisão:

“Se te trouxessem a lua, tudo seria diferente, não é verdade? O que é impossível se tornaria possível e, ao mesmo tempo, por uma só vez, tudo seria transfigurado. Por que não, Calígula? Quem pode sabê-lo? (...) Mortes demais, mortes demais, isto esvazia. Mesmo se me trouxessem a lua, eu não poderia voltar arás. Mesmo se os mortos se movessem novamente sob a carícia do sol, nem por isto voltariam a reentrar na terra. A lógica, Calígula, é preciso perseguir a lógica. O poder até o final, o abandono até o final. Não, não é possível voltar atrás e é preciso ir até a consumação!”

O imperador organiza pequenos jogos de salão, composições improvisadas propostas aos poetas. Tema? A morte. Prazo? Um minuto. Juiz? Ele próprio, já que há muito escrevera sobre o tema: &dquo;A meu modo, eu a recito todos os dias”. Mas as composições não agradam o imperador. Um falso poeta é punição excessiva para Calígula: “Saiam em ordem! Vocês vão desfilar à minha frente lambendo suas tábuas para apagar os traços de suas infâmias. Atenção! Adiante!”

Em A Peste, o homem que faz o papel de demiurgo – esteja este investido de poderes sobre a terra ou sobre seu pequeno reino – se anula. O Mal não é mais a morte de uma irmã bem-amada, mas a peste que grassa em Oran. Não mais encontramos o indivíduo que decide brincar com as forças malignas, mas toda uma equipe que quer enfrentar a catástrofe. Os europeus a identificaram com o nazismo, mas Camus não a batiza. Seu livro se pretende “contra todo terror, qualquer que seja seu rosto. Pois o terror os tem vários, o que justiça que eu não tenha nomeado nenhum, para melhor poder atacar a todos”.

A peste se abate sobre Oran, durante meses os esforços para combatê-la se revelam inúteis. Tarrou, um ativista que militou na Europa, mais os médicos Rieux e Castel, o jesuíta Paneloux e também Grand, o empregado da prefeitura, reúnem suas forças para conjurar o mal. Pouco a pouco, Castel consegue descobrir o soro que faz a peste recuar. Para o padre Paneloux, a bondade divina não pode ser posta em questão. Se os homens estão em desgraça, é porque a mereceram. Para salvar sua fé, Paneloux acusa os homens:

“Este flagelo aparece pela primeira vez na história para golpear os inimigos de Deus. Faraó se opõe aos desejos eternos e a peste o faz cair de joelhos. Desde o começo de toda história, o flagelo de Deus derruga a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditem sobre isto e caiam de joelhos”.

Paneloux faz uma longa exposição sobre os flagelos que acometeram os homens por vontade divina. Como o Cristo, ele aceita passivamente o Mal, sem mesmo se interrogar sobre as eventuais motivações da divindade. Se o Cristo, em um momento de sua agonia, deixa escapar o “lamma sabachtani”, Paneloux morrerá sem uma só palavra nos lábios.

“Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, de se obter a eternidade. Aqueles que não haviam sido atingidos se enrolavam nos lençóis dos pestíferos para terem a certeza da morte. Sem dúvida, este desejo furioso de saúde não é recomendável, pois denota uma deplorável precipitação, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado do que Deus. Tudo o que pretende acelerar a ordem imutável, estabelecida de uma vez por todas, conduz à heresia. Mas este exemplo, pelo menos, traz sua lição. Para nossos espíritos mais clarividentes, faz luzir este brilho delicado de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento. Esta luz ilumina os caminhos crepusculares que conduzem à libertação. Ela manifesta a vontade divina que, sem falhar, transforma o mal em bem”.

Submissão total. Não existissem homens como Rieux que, frente à peste, julga ser necessário “fazer o que é necessário”, talvez não restasse na mítica Oran de Camus sobrevivente algum para contar sua história. O autor, que vê na doutrina do Cristo o assentimento total, a não-resistência ao Mal, considerava A Peste como seu livro mais anticristão.

Nem mesmo a agonia de uma criança abala a fé do padre:

“— Eu compreendo, murmurou Paneloux, isto é revoltante porque ultrapassa nossas medidas. Mas talvez se deva amar o que não conseguimos entender”.

Rieux, médico e laico, protesta:

“— Não, padre. Tenho uma outra idéia do amor. Me recuso até a morte a amar esta criação onde as crianças são torturadas”.

Jean Onimus, em seu estudo sobre Camus, via em O Estrangeiro a obra irritada de um homem consciente de uma ausência da qual ninguém o pode consolar. Mas via em Calígula o oposto de Meursault. Se este não é senão indiferença, o outro é pura consciência.

O imperador, onipotente sobre a terra e impotente face à morte, manifesta sua revolta através de um humor negro que beira a loucura. É o grito de um homem solitário que sabe o quanto é inútil pedir socorro aos seus quando se trata de lutar contra a morte. Neste sentido, ele é mil vezes mais danado que os personagens de A Peste. Estamos ainda frente ao Mal – cego e sem rosto – que espreita e se abate sobre os mortais. Desta vez, o ataque é dirigido contra a comunidade. Os homens, precisamente aqueles que não acreditam em Deus, se organizam para combatê-lo. A esperança é permitida. Para Jean Onimus, “o constante esforço de Camus, após ter tomado consciência das conseqüências da recusa de Deus, consistirá em superar o absurdismo e nihilismo que ela implica. Ele chama este esforço de revolta e a palavra terá nele um sentido positivo: é sempre um não superado.

Vejamos as manifestações desta revolta metafísica em alguns personagens de Sábato. Para começar, em Juan Pablo Castel. Ele mata sua amante por não encontrar nela a perfeição que lhe atribuía. Não estamos diante do criminoso vulgar das páginas policiais mas face a um homem que, como diz Jean Onimus a propósito de Meursault, tomou consciência de algo de cuja ausência não admite consolação alguma. Castel, desesperado, grita: “Meu Deus, se não era para desconsolar-se da natureza humana, ao pensar que entre certos instantes de Brahms e uma cloaca há ocultas e tenebrosas passagens subterrâneas!”

Se a trama de El Túnel pode se resumir, grosso modo, à história de um pintor que mata sua amante, a mesma simplificação é inviável no caso de romances como Sobre Héroes y Tumbas e Abaddón, el Exterminador. Destes dois livros, que em verdade constituem uma só obra, vamos retirar alguns personagens. Para começar, Alejandra. Educada em um colégio religioso, sua revolta contra o deus cristão a conduz ao sacrilégio. Ela rasga uma cruz que havia sobre sua cama, joga santinhos no vaso sanitário e usa as vestimentas de primeira comunhão como papel higiênico. Em outra ocasião, em meio a uma tempestade, exige que Deus se manifeste, mesmo que seja por raios:

“Uma energia atroz me possuía, eu me sentia uma mistura de força cósmica, de ódio e de indizível tristeza. Rindo e chorando, abrindo os braços, com essa teatralidade que temos quando adolescentes, gritei várias vezes ao alto, desafiando a Deus que me aniquilasse com seus raios, se é que existia”.

Angústia hereditária. Fernando Vidal Olmos, pesquisador do Mal – e pai de Alejandra, é bom antecipar – não se preocupa tanto em bater-se com Deus, preferindo emitir hipóteses sobre suas natureza. Quando pequeno, assumia a seu modo as funções divinas. Sobre um formigueiro, armado de um martelo, matava formigas a torto e a direito. Quando as sobreviventes tentavam escapar correndo em qualquer direção, Fernando lhes jogava água com uma mangueira e se punha a imaginar as providências dentro do formigueiro, as obras de emergência, corridas, ordens e contra-ordens para salvar depósitos de alimentos, ovos, segurança da rainha, etc. Quando o desastre parecia ter chegado ao fim, Fernando removia tudo com uma pá. Punha-se então a pensar sobre o sentido geral da existência e sobre as inundações e terremotos entre os homens. Nestas ocasiões, conceber que o mundo fosse regido por um deus onipotente, onisciente e bondoso lhe soava como piada. Fernando elabora então sete possibilidades:

1 – Deus não existe.

2 – Deus existe e é um canalha.

3 – Deus existe, mas às vezes dorme: seus pesadelos são nossa existência.

4 – Deus existe, e tem acessos de loucura: esses acessos são nossa existência.

5 – Deus não é onipresente, não pode estar em todas as partes. Às vezes está ausente. Em outros mundos? Em outras coisas?

6 – Deus é um pobre diabo, com um problema demasiado complicado para suas próprias forças. Luta com a matéria como um artista com sua obra. Algumas vezes, em alguns momentos, consegue ser Goya, mas geralmente é um desastre.

7 – Deus foi derrotado antes da História pelo Príncipe das Trevas. Derrotado, convertido em suposto Diabo, é duplamente desprestigiado, já que se lhe atribui este universo calamitoso.

Sábato diz ser um homem que busca Deus. Seu método, a escritura. Não é de surpreender que, em uma charla com Borges, sustente as mesmas hipóteses de Fernando Vidal Olmos:

— Sim, mas podia ser um Deus imperfeito. Um Deus que não consegue controlar muito bem as coisas, que não consegue impedir os terremotos. Ou um Deus que dorme e tem pesadelos ou acessos de loucura: seriam as pestes, as catástrofes...

Em Heterodoxia, o ensaísta já havia aflorado o tema quase com as mesmas palavras, no capítulo “O universo como obra de um louco”:

“Os sistemas filosóficos, as teorias científicas, as máquinas, a organização, corresponderiam a seus momentos de lucidez. As guerras, os cataclismas, as pestes, os assassinatos, seriam engendrados em seus momentos de loucura”.

Em Abadon, o Exterminador, ao relatar a tortura de Marcelo Carranza, o autor volta mais uma vez à hipótese de um Deus tomado pela loucura:

“Deus teve um ataque de loucura e todo seu universo se quebra em pedaços, entre uivos e sangue, entre imprecações e restos mutilados. Volta a pensar em Toríbio, volta a repetir sua oração infantil, como se ela pudesse ter força naquele inferno. Onde estava Deus? Que queria provar com o suplício, com o estupro de um ser tão humilde como Esther? Que queria dizer? Talvez quisesse dizer algo a todos, mas não conseguiam compreender”.

Repetições abusivas? Sábato sustenta que as obras sucessivas de um romancista são como as cidades que se elevam sobre as ruínas de cidades anteriores. Ironizando um certo senhor Albalat, que denunciava as repetições de Stendhal, diz: “com toda certeza, os romances deste professor, anunciados nos frontispícios do mesmo livro, estão isentos deste desagradável defeito”. Com evidente saitsfação, Sábato cita Camus quando este toma a defesa destas repetições, afirmando que a criação única de um homem se fortifica em seus aspectos sucessivos, que são suas obras. Umas completam as outras, as corrigem ou as repetem e inclusive as contradizem. Com sua característica de retomar em outros personagens os temas que mais o obcecam, Sábato rediz pela voz de Quique estas mesmas preocupações, desta vez no estilo fútil da crônica social:

“Ou também podia ser que o universo que conhecemos seja apenas uma fração de todo o criado, e que nos tenha tocado o pior, algo assim como as páginas sociais de um jornal, e para outros lugares coube a seção de esportes, ou pelo menos a de política, em vez desta cagada, se me permitem o gros mot, que nos tocou na partilha. Ou também podia ocorrer que o Cara dormisse e seus pesadelos fossem nossa realidade, após ingerir um talharim com muito molho caseiro: se morre tua santa mãe, que jamais fez o menor mal, todo mundo se queixa de como Deus pode permitir semelhante besteira, e acontece que o Cara não tinha responsabilidade alguma porque naquele momento estava dormindo, e a morte de tua santa mãe é um pesadelo decorrente da comilança”.

Ainda outra vez, na conferência do estranho professor Gandulfo:

“Mas, voltando ao que estava dizendo, tanto o afundamento da Atlântida como a destruição de Sodoma e Gomorra, o assassinato de Abel, os males que desde então se esparramaram sobre a face da Terra, são obra de Satanás. O Pai Celestial, que é a essência da bondade, nunca foi nem pode ser este ente sanguinário e cruel, que pode destruir com tanta ferocidade o que criou com tanto amor. Doutos e ignaros, que atribuem a Deus estes fatos horrendos, vivem enganados por Satanás”.

Mais tarde, comentando com Beba a conferência do professor Gandulfo, é Sábato-personagem que afirma:

“Há várias possibilidades, como vais ver. Uma vez derrotado Deus, Satanás faz circular a versão de que o derrotado é o Diabo. E assim acaba de desprestigiá-lo, como responsável por este mundo espantoso. As teodicéias que inventam esses teólogos desesperados são acrobacias para demonstrar o impossível: que um Deus possa permitir que haja campos de concentração onde morre gente como Edith Stein, crianças mutiladas no Vietnã, inocentes convertidos em monstros pela bomba de Hiroshima. Tudo isto é uma sinistra empulhação. O certo, o indubitável, é que o Mal domina a terra. Claro, nem todo mundo pode ser enganado, sempre há homens que suspeitam. E assim, durante dois mil anos têm enfrentado a tortura e a morte por atrever-se a dizer a verdade. Foram dispensados, aniquilados, atormentados e queimados pela Inquisição, já que o Demônio não está aí para delicadezas. Bastaria a existência dessa Inquisição para provar quem governa o mundo. Povos inteiros foram aniquilados ou dispersados. Lembra os albigenses. Desde a China até a Espanha, as religiões de Estado (outras organizações do Demônio) limparam o planeta de qualquer intento de de revelação. Pode-se dizer que lograram seu objetivo”.

Através de seus personagens, o autor retoma antigas hipóteses gnósticas a propósito da divindade. Em Païens et chrétiens dans un âge d’angoisse, E. R. Dodds escreve que, para a maioria dos gnósticos, era inimaginável que um mundo assim tivesse sido criado pelo Deus Supremo. Seria provavelmente obra de um demiurgo inferior qualquer, “seja como Valentim pensava, um demônio ignorante, desconhecendo que se podia fazer melhor; seja, como pensava Márcio, o Deus duro e sem inteligência do Antigo Testamento; seja, como em outras teorias, um anjo ou anjos em revolta contra Deus”.

Esta teoria de um criador ignorante ou malfazejo, segundo Dodds, não é certamente grega, muito menos judia, e parece ter sido aventada pela primeira vez no século II D.C. Segundo o autor, pensadores como Marco Aurélio, Plotino e Paladas poderiam reconhecer, com Platão, que este mundo era necessariamente freqüentado pelo mal e “sentir que a ação do homem é coisa sem importância, não muito séria, não completamente real – em verdade absurda, no sentido que Camus dá a essa palavra”. (A propósito, o sistema gnóstico e, sobretudo, o problema do mal, será o tema de um ensaio de Camus, Entre Plotin et Saint Augustin, memória destinada à obtenção de seu D.E.S. – Diploma de Estudos Superiores). O grande erro do cristianismo teria sido seu ciúme em relação a outros deuses. Ao destruí-los, põe sobre os ombros de um só deus a responsabilidade de toda esta bagunça que grassa no universo. O que foi enunciado com verve por Camus, e nos faz compreender a revolta de Martín, Alejandra ou Olmos: em O Homem Revoltado, o ensaísta afirma que a noção de um deus pessoal, criador e portanto responsável por todas as coisas, por si só dá sentido ao protesto humano. “Pode-se assim dizer, sem paradoxo, que a história da revolta é, no mundo ocidental, inseparável da do cristianismo. É ao deus pessoal que a revolta pode pedir pessoalmente contas”.

Uma primeira aproximação entre Sábato e Camus, no que diz respeito à uma instância omni-responsável, já foi feita por Tamara Holzapfel:

“O revoltado metafísico não é um ateu, mas ele denuncia Deus como o pai da morte e ultraje supremo. Ele reconhece que o homem é só neste mundo e precisa criar seus valores a partir de sua própria vida. A humanidade jamais será livre de situações desmesuráveis, perigo e sofrimento, mas o indivíduo precisa constantemente lutar pela liberdade, justiça e autopromoção”.

Esta interrogação, dirigida a um céu mudo, angustia quase todos os personagens sabatianos. Em seus ensaios, o autor afirma que os personagens são emanações do criador. Fernando Vidal Olmos será certamente sua hipóstase mais significativa. Holzapfel prossegue:

“Fernando é pintado como um revoltado à margem do nihilismo. Dotado de uma lucidez implacável, a única expressão adequada a Fernando é a violência. (...) Mais importante, no entanto, são as características que identificam Fernando com a causa da revolta. Em sua juventude, participou de atividades anarquistas e comunistas e inclusive se tornou o líder de uma quadrilha. No que diz respeito a Deus, ele não nega sua existência, mas julga impossível, em verdade ridículo, acreditar em um poder bondoso que governa o universo”.

Mas também Martín (Sábato adolescente?), antes de se encerrar em um hotel onde espera Deus, o coloca em xeque a partir de seus atos. Qual fora a culpa de Bonito, seu cachorro, para merecer a morte sob as rodas de um caminhão? Que crime ele expiava com aquele castigo? Martín lembra-se então de um poeta callejero, que em um verso interroga o universo: “donde estaba Diós cuando te fuíste?” Ele também se pergunta onde estava Deus quando sua mãe, grávida dele, pulava corda para matá-lo ainda no ventre. Onde estava Ele quando Alejandra dormia com “aquela imundície”, Bordenave? As ingênuas interrogações de um Martín adolescente tomam, em Fernando Vidal Olmos, a forma de um humor negro e desesperado.

O revoltado que nega Deus – diz Camus – quer logo substituí-lo. Para Nietzsche, o revoltado não se torna Deus senão renunciando à toda revolta, mesmo àquela que produz os deuses para corrigir este mundo. “Se existe um Deus, como suportar não o ser?” O que nos confirma esta formidável ruptura do homem produzida pelo cristianismo. Pois não era estranho à Antigüidade que um homem pudesse ser ou tornar-se Deus – ou Demônio – após sua morte. Como esta idéia não mais vige em nossos dias, o criador literário tenta ser, a seu modo, um demiurgo.

 

Entre Deus e o suicídio

Deus vivo, a interrogação pelo sentido da existência não tinha lugar na consciência do homem. Esta preocupação emerge na História a partir de rumores, provindos de boas fontes, de que Deus está enfermo, senão morto. Se Deus dava sentido à existência humana, onde foi se esconder tal sentido, agora que Deus não mais existe?

A primeira tentação do homem que perdeu a fé é acabar com esta comichão que o angustia, com este dom que ele não pediu a ninguém e que, à revelia, lhe foi dado: a vida. A questão do suicídio e da morte, em suma, a interrogação pela vida, constituiu o cerne das reflexões de muitos pensadores modernos, de Dostoievski a Nietzsche ou Kafka. Intérprete de seu tempo, Camus abre O Mito de Sísifo com a questão fundamental:

“Não há senão um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”.

O suicídio constituirá a preocupação constante de Sábato e Camus, seja como tema de reflexão, seja como tentação que os acompanha em suas viagens. Para Camus, este gesto é íntimo e escondido, ele “se prepara no silêncio do coração ao mesmo título que uma grande obra. O próprio homem o ignora”. O universo, de repente, “é privado de ilusões e de luzes, o homem se sente um estrangeiro”. O suicídio surge como uma resposta ao absurda, cabe a cada indivíduo optar pelo sim ou pelo não. De suas reflexões em torno ao absurdo, o ensaísta extrai três conseqüências: sua liberdade, sua revolta, sua paixão. “Tão-somente pelo jogo da consciência, transformo em regra de vida o que era convite à morte – e recuso o suicídio”.

Mas o jogo da consciência, por si só, ainda não salva o pied-noir, futuro prêmio Nobel. Seis anos após a aparição de O Mito de Sísifo, navegando rumo ao Brasil, a velha tentação ressurge:

“Por duas vezes, idéia de suicídio. Na segunda vez, sempre olhando o mar, uma terrível queimadura me vem às têmporas. Acho que entendo agora como é que alguém se mata. Reconversão – as mandíbulas cerradas. Subo à ponte superior, na escuridão, e termino minha jornada após ter tomado decisões de trabalho, diante do mar, da lua e das estrelas. As águas estão levemente iluminadas na superfície, mas sente-se sua obscuridade profunda. O mar é assim, e é por isso que o amo! Apelo à vida e convite à morte”.

A terrível queimadura será mais física que metafísica. Cinco semanas depois, no avião que o conduzirá de São Paulo a Porto Alegre, Camus se ressente dos primeiros sinais de uma recidiva de tuberculose. “Pela primeira vez, pequena crise de sufocamento. Mas ninguém percebeu nada”. Mas, doente ou não, um dia chega o momento em que o homem não tem mais o direito de se suicidar. Criador vigoroso e consciente de suas forças, Camus dirá mais tarde que o único problema moral verdadeiramente sério é o assassinato.

Evocando a passagem de Camus pelo Rio de Janeiro, Manuel Bandeira testemunha este estado de espírito. Após um jantar de despedida em um restaurante português da Rua do Ouvidor, o poeta aborda o romancista: “o senhor deve estar exausto de tanta conferência”, diz Bandeira. “Estou doente” – diz Camus – Eu resisti à guerra, resisti à Resistência, não resisti à América do Sul!”

Impressões de Bandeira, ele também corroído pelo bacilo de Koch, a propósito do homem Camus:

“Por aí fomos num papo sem nenhuma formalidade, falamos de nossa doença (...) falamos de muitas outras coisas e ele acabou me dando o seu telefone privado em Paris para que eu o procurasse quando fosse à França. Durante todo o que o ouvi, senti-me à vontade e encantado. Surpreso. Não havia naquele homem nenhum vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem, dando a outro homem um pouco de sua substância espiritual, simplesmente humana. Senti vontade de ser seu amigo. Quando, um ano depois, estive em Paris, quis procurá-lo. Ele estava ausente. Agora, o desastre... Deixo nestas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua glória mundial”.

Sábato foi um outro candidato ao suicídio, pelo menos em seus verdes anos. Falando do período de sua vida em Paris, dividido entre a física e os surrealistas, ele declara a Maria Angélica Correa: “Você sabe que sempre fui um candidato ao suicídio, mas nunca estive tão perto dele como naquela época”.

Expulso de sua cátedra em Buenos Aires, por ter tomado posição contra Perón, retornando a Paris em 1947 pela terceira vez, Sábato trabalha dois meses na Unesco. Cercado de uma burocracia sufocante, sente-se tentado pelo suicídio. Após ter abandonado suas funções, desce por trem até a Itália para apanhar um barco para a Argentina. Durante este percurso rumo ao sul da Europa, escreve as primeiras linhas de O Túnel. Nos ímpetos suicidários de Juan Pablo Castel já encontramos as preocupações que lhe corroíam o espírito. Em um banco da estação ferroviária de Zurich, com uma pequena máquina de escrever sobre os joelhos, escreve a abertura de seu primeiro romance: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel...” Este personagem, suicida potencial, ao sentir-se só no mundo, experimenta um sentimento de superioridade em relação à humanidade e vê os homens como seres sujos, feios, incapazes, ávidos, grotescos e mesquinhos. Paralelamente a esta sensação de isolamento e distância, Castel é tentado pelo nada: “nestes instantes me invade uma fúria de aniquilação, me deixo acariciar pela tentação do suicídio, me emborracho, pego prostitutas”.

Autor que distribuí em seus personagens suas angústias, Sábato nos dará em Martín uma outra motivação para o suicídio. Nos acordes finais de Sobre Heróis e Tumbas, o confuso adolescente faz uma aposta perigosa: se o universo tem razão de ser, que Deus se faça presente, que mostre seu rosto no quarto sujo onde Martín vivia.

“Por que não? Por que havia de negar-se a este desafio? Se existia, Ele era o forte, o poderoso. E os fortes e poderosos podem se permitir o luxo de alguma condescendência. Por que não? A quem faria bem, não se apresentando? Que tipo de orgulho poderia assim satisfazer? Até a madrugada, disse a si mesmo com uma espécie de prazer rancoroso: o prazo definido e fixo o fazia sentir-se de repente dotado de um terrível poder e aumentava sua ressentida satisfação, como se dissesse: agora vamos ver. Se não se apresentasse, se mataria. Mas se Deus aparecesse, sob qual forma surgiria? E que seria? Uma presença infinita e aterradora, uma figura, um grande silêncio, uma voz, uma espécie de suave e tranqüilizadora carícia? E se aparecesse e ele fosse incapaz de notá-lo? Então se mataria inútil e equivocadamente”.

Deus não aparece. Em seu lugar, chegará Hortensia Paz, mulher do povo, que vive humildemente sua vida, tem 25 anos “e já sinto pena porque um dia terei de morrer”. Hortensia recupera Martín de sua embriaguez e o afasta do abismo no qual se dispunha a saltar. Em companhia de Bucich, caminhoneiro, Martín desce rumo ao sul em busca de ar puro. Não é por acaso que Sábato concluí seu romance na Patagônia. Este episódio é, em verdade, a síntese de um projeto anterior abandonado por Sábato.

Para o candidato a suicida, chega o dia em que não tem mais direito a suicidar-se. Responsável hoje por centenas de candidatos a escritores, ele vê esta opção como um gesto egoísta. Em suas charlas com Borges, afirma:

— Creio que o suicídio é um ato de egoísmo, que aquele que se mata não pensa ou não sente a dor que sempre, de uma maneira ou de outra, pode produzir em outros. Ou, se pensa, é pior: é como uma vingança.

Borges lembra o caso de Yukio Mishima, escritor japonês que fez haraquiri diante de seus adeptos. Ele aprova este gesto, pois o homem morreu como o último dos samurais. Sábato não concorda:

— Me parece demasiado espetacular para ser elogiável. É também um ato de arrogância. Saiba, Borges, que não falo por julgar-me melhor. Pelo contrário, pensei no suicídio muitas vezes em minha vida.

Apesar desta inclinação que o acompanha há muitos anos, Sábato sequer ousa “suicidar” um único de seus personagens. Passeando com um deles pelas ruas de Buenos Aires, chega a um terreno baldio e deserto. Estamos, é claro, no campo da ficção. No caso, em Abadon. Um trem, com sua velocidade, destrói a melancolia do lugar. “Um belo lugar para alguém suicidar-se”, diz Sábato-personagem a Sílvia. Ante sua surpresa, ele ajunta:

“Não te preocupes, bobinha – acrescentou com um sorriso triste – um jovem de romance, um desses que buscam o absoluto e só encontram lixo.

“Ela murmura algo.

“— Quê?

“Que a idéia de suicídio o perseguia, disse a moça. Pensava em Castel, em Martín.

“Sim, era verdade.

“Mas por fim não se suicidou – acrescentou.

“— Por quê?

“—Não sei. O romancista não conhece os porquês de seus personagens. Tive a intenção de levar Martín até o suicídio. E no entanto...”

O autor, que não conseguiu eliminar Castel ou Martín pelo suicídio, busca em Abadón o cenário ideal para “suicidar” Nacho, este adolescente que, amante de sua irmã, não consegue suportar a idéia de vê-la prostituir-se. Da mesma forma, ele não aceita que Agustina escute os Beatles, pois John Lennon posa com Ioko Ono, “essa bucetuda, esse feto infecto”, na capa de um disco. Mesmo em relação a Sábato, o personagem Nacho nutre ódio, pois viu uma foto do escritor em uma revista sensacionalista argentina. Na parede de seu quarto, ele coloca o amante de Agustina entre Sábato e Camus, o que surpreende sua irmã:

“— Notei que puseste a foto do senhor Pérez Nassif entre as de Sábato e Camus. Eu pensava que tua idéia era a de pôr somente as fotos desses cretinos que falam do absoluto. Se tratava, se me lembro de um desses pactos, dos grandes porcos. Não de simples vermes”.

Apesar do ódio de Nacho em relação a seu criador, Sábato não consegue “suicidá-lo”. O romancista o conduz até o lugar escolhido para seu suicídio, mas Milord, um cão, farejando qualquer coisa, o persegue. Nacho o afugenta e deita-se pela segunda vez sobre os trilhos.

“Acreditou ouvir um rumor que pensou poderia ser de um rato. Ao abrir os olhos, notou que era de novo Milord. Seus olhos cheios de pena lhe pareceram uma nova chantagem e voltou a enfurecer-se e a espancá-lo, gritando insultos e ameaças. Até que foi se acalmando, cansado, derrotado pelo cachorro, justamente quando já ouvia o ruído do trem. Começou então a descer lentamente ao terrapleno e a caminhar até a casa, seguido de perto por Milord”.

Os personagens sabatianos, seja Maria Iribarne ou Fernando Vidal Olmos, seja Marcelo Carranza ou Che Guevara, encontraram a morte pelas mãos de outros, jamais pelas próprias. Castel, o mais desesperado de todos, vamos reencontrá-lo livre e vivo em Abadon, certamente após ter cumprido sua pena.

“Era um homem moreno e esquálido, diante de um copo, pensativo, remoto. Podia ver parte de seu rosto, um rosto anguloso, como talhado em madeira, algumas amargas comissuras nos lábios. Esse homem, pensou Bruno, está absoluta e definitivamente só. (...) Bruno, acostumado a esquadrinhar homens em solidão, contemplativo e abúlico como era, pensou: ou é um criminoso ou é um artista”.

Bruno se enganava de conjunção. Era um criminoso e um artista: Juan Pablo Castel que, em 1947, havia matado Maria Iribarne. “O absoluto, pensou então Bruno bassán, com aprazível e melancólica inveja”. Mas entre Deus e o suicídio, para um homem sensível, existirá talvez uma saída, o mergulho na História e no “relativo”. Nascidos com este século, Camus e Sábato não escaparão às tentações da nova religião que lhes é contemporânea.

 

A tentação marxista

Estamos nos anos 30. A revolução de 17 constitui um marco de definição obrigatória para todo intelectual. O craque de 29, a ascensão do nazismo, a nova sociedade soviética da qual ainda não se conhecia os gulags, todos estes fatores levam os homens de idéia a defender – ou pelo menos a simpatizar com – o socialismo pregado por Marx. No continente europeu, uma intensa agitação intelectual conduz os escritores, artistas e pensadores à ação política. “Que homem generoso” – pergunta-se Sábato em Apologias y Rechazos–, que jovem idealista não se inclinaria a julgar como uma grande esperança aquele acontecimento histórico?”

Aragon, Eluard, Maulraux, Romain Rolland, Sartre, Simone de Beauvoir, Garaudy, Bernard Shaw, H. G. Wells, Brecht, Feuchtwanger, Heinrich Mann, Kazantzakis, Neruda, Amado, Carpentier, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, enfim, seria fastidioso enumerar todos os escritores da primeira metade deste século ligados aos ideais de 1917. Ligação por vezes cega e incondicional, amor que fecha os olhos às deformações do amado, como em Aragon ou Neruda. Paixão por vezes atormentada, semeada de dúvidas e rupturas, como em Gide ou Sartre. Mas preocupação sempre constante para duas gerações de artistas. E dificilmente seria diferente: como poderiam, estes homens comprometidos com o homem, ignorar o que se anunciava como o prenúncio de um mundo novo? Trinta anos mais tarde, Sábato refletirá sobre esta tendência, em O Escritor e seus Fantasmas.

“O escritor de ficções profundas é no fundo um anti-social, um rebelde, e por isso amiúde é companheiro de viagem dos movimentos revolucionários. Mas quando as revoluções triunfam, não é estranho que volte a ser um rebelde”.

Nossos dois autores viveram estas angústias e não escaparão a este noivado quase obrigatório com o marxismo. Em Genio y figura de Ernesto Sábato, Maria Angélica Correa nos relata seu itinerário, que vai do anarquismo ao marxismo. Cercado de amigos comunistas na universidade, que lhe demonstravam os pontos fracos do anarquismo, o jovem Sábato se convence das virtudes do movimento comunista. Adere ao Partido e nele milita durante cinco anos. Tinha então dezenove, era originário da classe média, de uma família “clássica, hierárquica, como a que ainda concebo”, de herança cultural católica. Seu pai era um anticlerical que batizava os filhos. Sua mãe praticava uma religião da qual só conhecia os aspectos elementares. A família vivia em situação econômica relativamente boa, afastada de toda ideologia política, principalmente das de esquerda. Para Correa, o ingresso de Sábato no Partido é uma ruptura violenta com seu ambiente, principalmente porque sua adesão não foi apenas teórica nem meramente formal: entrou de cheio no comunismo, o viveu. “Não pertenci à gauche-caviar, costuma dizer Sábato.

Neste depoimento, o autor fala de seu ativismo político, sua participação nas greves, em geral conduzida pelos comunistas. Para se consagrar ao trabalho de penetração nas zonas de Berisso e Avellaneda, se afasta da vida universitária e toma contato com o proletariado das grandes cidades. Faz campanhas no Uruguai e na Argentina, vivendo em perigo permanente.

— Quando eu era estudante – declara em Homens e Engrenagens – minha inclinação para o marxismo não se deveu à repousada leitura do Capital, mas à apaixonada intuição de que a verdade estava nesse movimento. Mais tarde, já comunista, li todas as obras de Marx, Engels e Lênin, confirmando – naturalmente – minha intuição original, já que em todos os movimentos religiosos é preciso ver para crer, e talvez não tenha ocorrido um único caso de afastamento motivado por causas exclusivamente intelectuais. As causas são mais complexas e, em todo caso, de índole espiritual e dificilmente redutíveis a puras razões. A prova a posteriori de que o marxismo não se apoia em simples razões é sua sobrevivência e até mesmo seu crescimento, apesar dos enormes equívocos que se acumulam em sua trajetória. Sua força, sempre renascente, provém deste obscuro e poderoso sentimento de justiça que existe nas massas e nos melhores indivíduos de uma sociedade, qualquer que seja sua extração social.

Herbert R. Lottman, em sua monumental biografia de Camus, narra seu processo de engajamento e adesão ao Partido. Estamos em 1934. A época é confusa. Na França, a crise econômica vai de vento em popa. A Argélia cai em um novo período de turbulência política, “a direita pendendo para o fascismo e a esquerda para o comunismo. cada uma atraída pelo seu modelo, a Alemanha de Hitler ou a União Soviética de Stalin”. O prestígio do marxismo entre os jovens é imenso. Lottman reproduz, por exemplo, este testemunho de Jean Daniel, hoje diretor do Nouvel Observateur:

“O sumário de Commune nos inflava de entusiasmo antes mesmo de ter lido seus artigos. Cada nome estava ornado de um prestígio que garantia, para nós, ‘a linha’. Além disso, como desejar situação mais clara? Podia se duvidar que o nazismo, o fascismo e seus cúmplices franceses encarnavam o Mal? Quanto ao Bem, bastava olhar para Moscou”.

Camus entra no Partido por intermédio de Emile Padula, então secretário-geral adjunto do movimento Paix et Liberté (Amsterdã-Pleyel). Ao contrário de Sábato, ele não interrompe seu trabalho universitário. Dirige a célula de seu bairro operário, Belcourt. Fala-se da criação de uma revista, La Nouvelle Journée, traço de união entre europeus e muçulmanos, que seria dirigida por Camus. Quanto à inscrição no Partido, o jovem militante espera a opinião de seu mestre, Jean Grenier.

Grenier tomava então posições que exigiam uma certa coragem. Em uma época na qual homens como Gide ou Malraux, heróis de toda uma geração, proclamavam sua fascinação pelo comunismo, Grenier tomava distância em relação à prisão intelectual do PC. Considerava que não era conveniente precipitar-se no Partido sem ser empurrado com todas as forças do espírito e do coração. O criador que, consciente de sua própria miséria e da solidariedade humana, se lança no Partido era, para Grenier, como a menina que de repente decide casar-se para escapar ao jugo da família. Ele, inclusive, antecipa o fim da lua-de-mel de Gide com o marxismo.

Grenier, no entanto, aconselha seu discípulo a aceitar o risco. Ele considera que a vida não é concebível sem riscos, que as vantagens e os perigos de uma carreira no PC não podiam modificar em nada as convicções de Camus. Este, por sua vez, assim responde às ponderações de Grenier:

— Você tem razão quando me aconselha a inscrever-me no PC. Eu o farei ao voltar das Baleares. Eu lhe confesso que tudo me conduz a eles e que eu estava decidido a esta experiência. Os obstáculos que oponho ao comunismo, me parece ser melhor vivê-los.

Para Lottman, havia um cinismo bem intencionado de Grenier neste conselho:

“Ele julgava que o Partido podia propiciar uma carreira válida a um novo Julien Sorel. Explicando isto a sei discípulo preferido, escrevendo-lhe mais tarde, Grenier teria imaginado todas as implicações do que sugeria? O jovem herói de Stendhal não havia optado cinicamente pela Igreja como trampolim para suas ambições? Grenier certamente não queria subentender que desejava incitar Camus a agir hipocritamente. Mas se esperava ver Camus agir sinceramente, não seria ele, Grenier, o cínico?”

De qualquer forma, fica claro que Camus não buscava no Partido uma carreira, fosse política, fosse literária. Como máquina publicitária, o Partido é um instrumento de sonho para um jovem escritor desconhecido, e milhares de autores não seriam tão difundidos no mundo sem tais empurrões extra-literários. Mas Camus vê o Partido como um instrumento de trabalho, uma máquina já montada da qual é possível servir-se para transformar o mundo. Ele, inclusive, estaria disposto a fazer algumas concessões para poder utilizá-la. Curiosamente, neste momento, Camus reprova aos comunistas a falta do que constituirá, mais tarde, em O Homem Revoltado, uma de suas acusações-chaves à nova filosofia: “O que por muito tempo me deteve, o que detém tantos espíritos, penso” – escreve ele a Grenier – “é o sentimento religioso que falta ao marxismo”. Nesta evolução espiritual de Camus, vê-se a paradoxal impulsão de um homem que não quer professar uma doutrina porque a ela falta religiosidade, e que dela se afastará pelo fato de constituir uma nova religião. Paradoxo apenas aparente, se considerarmos, como Sábato, que “as religiões são por natureza sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas”.

Mas Camus tende a crer que o marxismo é uma preparação, uma ascese que se dirige a atividades mais espirituais. Neste movimento de adesão, propõe-se a jamais pôr entre a vida e o homem um volume de O Capital. Ora, estamos em uma época na qual o sovietismo incondicional do PC francês põe, entre as aspirações da Argélia à independência e os ideais comunistas, o dogma da vontade stalinista. A adesão de Camus ao PC não sobreviverá à viagem a Moscou, em 1935, do ministro francês de Relações Exteriores, Pierre Laval.

 

Sem Deus nem Marx

Secretário-geral da Juventude Comunista argentina, Sábato começa a nutrir certas dúvidas em 1933. Mas só perde sua fé em 1935, quando viaja como delegado do Partido ao Congresso de Bruxelas, de onde deveria rumar para Moscou. Ao final do congresso, abandona seus companheiros e se refugia em Paris, onde chega sem um centavo e mesmo sem falar o francês. Falando deste período, Sábato declara a Günther Lorenz:

— Minhas idéias estavam totalmente em revolta, nada me parecia claro nem convincente. Ao lado do problema filosófico do materialismo dialético, apresentavam-se a mim os problemas políticos de um regime totalitário como o russo. Tudo isto convenceu-me a abandonar o movimento comunista.

Em vez de ir para a Rússia, foge para Paris, sem permissão do Partido. Neste momento, inicia-se um período difícil para o jovem militante. Sem dinheiro, sem amigos a quem apelar, atravessa uma crise decisiva em sua vida. Sua preocupação fundamental: a aplicação prática do marxismo. A doutrina, tal como era praticada na época, parecia-lhe cada vez mais insatisfatória. Os processos de Moscou haviam começado. A ditadura de Stalin já se manifestava em todo seu poder. Ao contrário de homens como Pablo Neruda ou Jorge Amado, Sábato sente-se repugnado e sai do Partido. O movimento comunista manifestava-se cada vez mais absolutista e, diz Sábato, “jamais suportei as ditaduras nem o absolutismo”.

Sua crise interior não se limita à perda de uma fé. Nesta época, o estudante de Física já começava a colocar em xeque o universo da ciência, universo lógico ao qual pedia socorro em seus momentos de angústia. Comentando o conhecido episódio do livrinho de cálculo infinitesimal roubada da livraria Gibert Jeune, no Quartier Latin, Sábato diz poucas vezes em sua vida ter sentido tal “paz interior, um reconforto tão maravilhoso como quando submergi nos primeiros teoremas”. Em uma época dominada pelo dogmatismo ideológico, o escritor será alvo das mais contraditórias acusações.

Em La Cultura en la Encrucijada Nacional, evoca as múltiplas vezes que teve de suportar ataques que não só lhe acusavam de ser inimigo de Marx, como também um pequeno burguês a serviço do imperialismo, em virtude de suas declarações sobre o determinismo econômico. Tendo estudado Marx com paixão desde o momento de sua adesão ao movimento comunista, em 1931, seu aprendizado não provinha da simples leitura de textos, mas através da própria “ação revolucionária”, a única pela qual o próprio Marx concebia a assimilação de sua doutrina. Com os processos de Moscou, saiu do Partido.

“Enojado com a escravidão moral, intelectual e física que o stalinismo impunha, consciente do divórcio que provocava entre a realidade de nosso país e o regime soviético e, enfim, tendo tomado consciência de que muito pouco restava da teoria marxista na escolástica que se injetava na Rússia, inclusive com tortura e morte, acabei por deixar o movimento pelo qual havia abandonado família, estudos e segurança. Nos quase quarenta anos então transcorridos, jamais reneguei os ideais de justiça social e de liberação nacional, como creio ter provado através de minhas atitudes públicas”.

Pode-se pensar, em um primeiro momento, que a ruptura com o marxismo é devida aos crimes do stalinismo, o que seria correto, mas apenas em um primeiro momento. Segundo Maria Angelica Correa, o retorno à ciência é “uma defesa contra o caos, contra seu próprio caos”. Sábato se agarra à ciência como a uma tábua de salvação. Mas o fundamento de sua crise não é a ciência, nem mesmo o marxismo. No fundo, é uma desconfiança ante os postulados da Razão, esta categoria que sustenta a ciência e – aparentemente – o próprio marxismo. A crise será superada ao final de um período que vai durar dez anos, quando ele fará sua opção definitiva pela literatura.

Nesta mesma época, em Argel, Camus também se afasta do Partido. Como nuestro vecino, ele não havia lido inicialmente Marx, nem Engels, nem Stalin. Sua opção obedece a um impulso mais emocional do que racional, como se vê nesta confissão a Grenier:

— Parece-me que, mais que as idéias, é a vida que geralmente conduz ao marxismo. Diga-me o que você pensa. Você compreende minhas dúvidas e minhas esperanças. Tenho um forte desejo de ver diminuir a soma de sofrimento e de amargura que envenena os homens!

Camus havia aderido ao Partido, tendo como função organizar a propaganda nos meios muçulmanos. Nesta época, escreve Lottman, uma das condições para admissão na Terceira Internacional era que todos os partidos comunistas promovessem a libertação das colônias e exigissem o retorno dos “imperialistas” a seus países de origem. Mas a Argélia tinha problemas muito particulares. À independência, os muçulmanos cultos preferiam sua integração à comunidade francesa.

“Resultava então que os comunistas da Argélia eram considerados como perigosos foras-da-lei pelas autoridades coloniais francesas. Para seu azar, haviam fracassado na tentativa de ganhar os muçulmanos para sua causa. Eles eram mais árabes que os árabes”.

O PC francês envia a Argel Jean Chaintron, com a missão de constituir um PC argeliano à parte, com o máximo possível de muçulmanos. O objetivo era criar um movimento de massas de luta contra o fascismo. No entanto, para os argelianos, o fascismo era um problema estritamente europeu. O problema imediato deles era a conquista da independência. Por outro lado, os franceses da Argélia não sentiam entusiasmo algum pelo anticolonialismo pregado pregado pela Terceira Internacional, que arriscava jogar os nacionalistas muçulmanos contra os colonizadores franceses, sem distinção de classe.

Estamos no período da ascensão de Hitler. Stalin decide que, para fazer face à ameaça nazista, é preciso uma França forte, sem fissuras internas. No mês de maio de 1935, Pierre Laval, então ministro de Relações Exteriores, vai a Moscou e encontra Stalin. No comunicado oficial difundido ao final do encontro, recomenda-se que o Partido cesse toda ação antimilitarista que possa enfraquecer a França. Em outras palavras, o PC argeliano devia cessar sua ação pró-muçulmana. Mais precisamente: devia desacelerar sua luta contra o colonialismo, tendo a luta antifascista se tornado prioritária.

Camus vê então militantes árabes perseguidos e presos com o assentimento do partido ao qual havia decidido pertencer. Vê o PC argeliano bruscamente tomar-se de amores pelo exército francês. Fim da lua-de-mel. Ele manifesta sua dissidência contra a linha do Partido e é imediatamente excluído de seus quadros.

Sobre a data desta ruptura há algumas controvérsias. Para Lottman, o final de noivado teve lugar em 1937, no momento de sua exclusão. Roger Quilliot o faz recuar para 1935. Isto faz com que tal união tenha sido mais curta que o casamento com Simone Hié, sua primeira mulher. Em uma carta de 8 de junho de 1955, Camus confirma a Quilliot que havia deixado o Partido em 1935, por ocasião da viagem de Laval a Moscou.

Para Quilliot, há evidência de uma crise interior. A leitura de Carnets a comprova. No entanto, amigos de Camus asseguram que ele guardou sua carta até 1937. Isto explicaria sua presença à frente da Maison de la Culture, controlada pelo Partido. Para eles, a ruptura – e a exclusão de Camus – teria sido conseqüência dos incidentes entre o PC e o Partido do Povo, de Messali Hadj, que tinha os comunistas como instigadores da repressão que sobre eles se abatia. Nos Carnets, em março de 1936, Camus registra suas dúvidas:

“Grenier a propósito do comunismo: ‘Toda a questão se resume a isto: por um ideal de justiça é preciso subscrever asneiras?’ Podemos responder sim: é belo. Não: é honesto. Todas as proporções guardadas: o problema do cristianismo. O crente se embaraça com as contradições dos Evangelhos e dos excessos da Igreja? Crer é admitir a Arca de Noé, é defender a Inquisição ou o tribunal que condenou Galileu? Mas, por outro lado, como conciliar comunismo e desgosto? Se tento as formas extremas, na medida em que elas atingem o absurdo e o inútil, eu nego o comunismo. E esta inquietação religiosa...”

A data precisa é secundária, pois em 35 Camus já rompera interiormente com o Partido, e esta é a decisão que nos interessa. Nesta “année charnière”, dois homens que não se conheciam, dois escritores que viviam as mesmas convulsões históricas, um pied-noir em Argel, o outro um latino perdido na Europa, ambos tomavam decisões idênticas, constrangidos pela honestidade moral e intelectual que os irmana.

Alguns anos mais tarde, ambos expressarão em seus ensaios as críticas ao sistema que abandonaram. Em um continente onde se dizer comunista implicava risco de morte, as considerações de Sábato provocaram resmungos, mas não o intenso debate suscitado por O Homem Revoltado. O mito de uma Paris-centro-cultural-do-mundo faz com que toda palavra impressa na França tenha uma repercussão maior que quaisquer outras impressas em Buenos Aires. Ademais, por viver em um clima onde era quase herético não ser marxista, Camus pagará o tributo de sua independência intelectual. Por ocasião de sua polêmica com D’Astier de la Vigerie, recebe um livro sobre o marxismo, com a observação de que ele não havia aprendido a doutrina em Marx. Ao que responde: “É verdade: eu o aprendi na miséria”.

Na mesma época, prefaciando um livro de Louis Guilloux, ele escreve: “Somos alguns a não suportar que se fale da miséria a não ser com conhecimento de causa”. Diz Jean Daniel:

“Este é talvez um dos propósitos que jamais lhe perdoariam. Em uma só frase ele dava as costas à quase-totalidade dos intelectuais de esquerda. Quem era aquele miserável, orgulhoso de sua miséria, filho de uma faxineira, criança de bairro pobre, que pretendia fazer sermão aos pensadores da condição operária?”

Vinte anos após sua morte, a imprensa francesa lhe presta homenagem. No Matin, por exemplo, pode-se ler testemunhos de homens que conheceram este pied- noir, rico em revolta e humanismo. Para Angelo Rinaldi, a direita se comportou de forma ignóbil com Camus. Um artigo de um certo Nimier fala da “fraqueza de seus pulmões”. A esquerda não foi mais elegante e demonstrou sectarismo e total incompreensão de suas tomadas de posição em relação à Argélia.

“A bem dizer, a esquerda oficial não gosta dos filhos de pobre. Dir-se-ia que, para ser de ‘boa esquerda’, é preciso ser preferentemente parisiense e nascido na burguesia média. Filho de um professor do secundário parece ser o extremo limite do admissível. E sabemos que a mãe de Camus lavava salas de aula...”

Já Ionesco, que por sua condição de romeno e exilado jamais se deixou engambelar pela nova religião, é bem mais pródigo na apreciação de Camus. Considera-o um mestre, por seu espírito de justeza e por não se deixar levar pelas ditas ondas da História. Ionesco o opõe a Sartre, que sempre “tomou todos os últimos trens e seguiu as modas mais nefastas e criminosas”. Camus representa não a inconsciência da História, como foi acusado, mas sua própria consciência:

“Evidentemente, Camus não tinha o vocabulário filosófico que outros tinham, o que impressionava os leitores e jovens inconseqüentes. Mas se não tinha o vocabulário filosófico, tinha a firmeza filosófica e não fazia parte da intelligentsia ininteligente. Ele era a inteligência, a lucidez, a boa fé”.

O próprio Sartre já o acusara com duras palavras. Após sua morte, como que arrependido, vê Camus representando neste século, “e contra a História” – insiste – o herdeiro cultural da longa linhagem de moralistas que constituiriam o que há de mais original nas letras francesas:

“Seu humanismo cabeçudo, estreito e puro, austero e sensual, conduzia um combate duvidoso contra os acontecimentos maciços daquele tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de sua recusa, ele reafirmava, no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral”.

Voltemos aos jovens Sábato e Camus. Em 1935, sem Deus nem Partido, ambos investem suas energias em uma última aposta, a literatura. Vejamos suas objeções ao pensamento marxista.


 

 

HOMENS QUE NÃO ADEREM A NADA

 

 

A nova Igreja

Deus morto, escreve Camus, é preciso transforma e organizar o mundo com as forças do homem. A partir deste dado, começa suas reflexões sobre a revolta histórica. Urge fazer uma distinção entre a revolução e o movimento de revolta. Spartacus não é um revolucionário, ele não quer mudar os princípios da sociedade romana. Ele se bate para que o escravo tenha direitos iguais aos do senhor, recusa a servidão e quer a igualdade com seu amo. Esta vontade de igualdade o conduzirá ao desejo de tomar o lugar do amo.

A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: “Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução”.

Analisando a revolução russa, Camus vê no comunismo a ambição de edificar, após a morte de Deus, uma cidade do homem enfim divinizado. Este paralelismo entre a Parusia perseguida pelo cristianismo e uma Parusia terrena no final da História será uma constante em toda a análise camusiana. Nas origens do marxismo, o autor vê um messianismo de origem cristã e burguesa. Segundo Jaspers, “é um pensamento cristão considerar a história dos homens como estritamente única”.

A História, considerada como um movimento que se desenvolve de uma origem rumo a um fim, segundo o cristianismo, será retomada por Marx, via Hegel. Camus aborda o tema em O Homem Revoltado. Várias passagens deste ensaio demonstram este paralelismo.

“Para os cristãos, como para os marxistas, é preciso dominar a natureza. Os gregos são de opinião que o melhor é obedecê-la”.

“O ateísmo marxista é absoluto. No entanto, ele restabelece o ser supremo ao nível do homem. A crítica da religião chega a esta doutrina na qual o homem é para o homem o ser supremo. Sob este ângulo, o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais”.

“...o socialismo autoritário, que vai dessacralizar o cristianismo e incorporá-lo a uma Igreja conquistadora”.

“O messianismo científico de Marx...”

O proletariado, “por suas dores e lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.

“Nesta Jerusalém rugiente de máquinas maravilhosas, quem ainda se lembra do grito do degolado?”

“O movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX. viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa continua só, viva contra seu próprio sistema, longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia ainda está longe. A fé está intacta, mas se curva a uma enorme massa de problemas e descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo frente a Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

“Dito de outra forma, estamos no purgatório e nos prometem que não haverá inferno”.

Para Camus, o que está em jogo é o mito da divinização do homem, da dominação e unificação do universo pelos poderes da razão humana. A Rússia acreditava ser o instrumento deste messianismo sem Deus. Em Carnets, será incisivo:

“Origens da loucura moderna. Foi o cristianismo que desviou o homem do mundo. Ele o reduziu a si mesmo e à sua história. O comunismo é uma continuidade lógica do cristianismo. É uma história de cristãos”.

Aqui, temos uma ironia só inteligível em francês. Ao criar a expressão histoire de chrétiens, Camus insinua uma histoire de cretins.

Para Sábato, nenhum movimento histórico se apoiou sofre a fome. O grande erro de Marx seria ter dado uma excessiva importância aos fatores materiais. Se estes fatores foram importantes no século XIX, dominado pelas lutas entre o capital o trabalho, “os mais tremendos sacudimentos da História se deveram a impulsos religiosos ou fanáticos, basta se pensar em Cristo ou Maomé, em Napoleão ou Hitler. E, o que é mortal para o marxismo, em Stalin”.

Como toda religião, o marxismo estabelece seus dogmas. Os Livros Sagrados não podem ser contestados. A sociedade racionalista-totalitária será então dedutiva. Extrairá seus conhecimentos através de silogismos que partem das Premissas Sagradas. Um outro escritor do início de século, que viveu este confuso noivado bem antes que Camus e Sábato, será ainda mais incisivo nesta aproximação. Em Voyages–Russie, Nikos Kazantzakis lembra como se fez a luz em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplória. Como em todas as religiões, tentavam difundir aquelas respostas tornando-as compreensíveis para a multidão. Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: “somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião”.

No prefácio a uma reedição de Nós e o Universo, Sábato confessa não imaginar que pela esquerda também se podia perpetuar os crimes cometidos sob a tirania stalinista. Não tinha ainda suficiente experiência histórica para admitir que de nada vale lutar pela justiça social se ao mesmo tempo não se luta pela liberdade do ser humano e pela sua dignidade. Sábato não vê diferenças entre a Rússia que, com o poder de seus tanques, invadiu a Checoslováquia, e os Estados Unidos, a maior potência do mundo, que quis esmagar os vietnamitas.

O escritor argentino considera que não se viaja em busca de paisagens longínguas, mas em busca de si mesmo. Ele pertence, como Camus, à raça dos homens que não aderem a nada, definida por Panaïti Istrati, companheiro de viagem –literalmente – de Nikos Kazantzakis pela União Soviética. Após sua brutal decepção com o novo dogma, Istrati anuncia este homem novo, liberto das religiões e dos partidos:

“Vejo nascer na rua um homem novo, um indigente. Um indigente que não crê em mais nada, mas que tem uma fé total nas forças da vida. Eu lhe digo: após ter tido fé em todas as democracias, em todas as ditaduras, em todas as ciências, e após ter sido por todas decepcionado, minha última esperança de justiça social fixou-se nas artes e nos artistas. Viva o homem que não adere a nada”.

Esta independência intelectual custará muito caro a todos aqueles que ousaram sustentá-la. O caso mais significativo é precisamente o de Istrati. Vers l’autre flamme, o primeiro livro a denunciar a nova inquisição, publicado em 1929, será excluído da edição francesa de suas obras completas, e somente reeditado em 1980. No que diz respeito a Camus, conhecemos as acusações que lhe foram feitas. Seus autores não merecem senão o esquecimento.

Quanto a Sábato, é curioso observar que uma certa crítica, ao referir-se à literatura latino-americana, cita “Llosa, Márquez, Cortázar, Borges, etc.” Esta fórmula, tantas vezes repetida, deixa-nos um dilema: ou Sábato pertence a um continente ainda não descoberto, ou então escreve sob o pseudônimo de Etc.

— Que posso fazer – disse-me Sábato – este é meu destino. Há tempos me resignei a este destino de solidão, ao qual me condenei por minha independência política e por minha resistência a apoiar movimentos de moda, tanto no plano político como no literário. Se reler a “Carta a um distante jovem”, entenderá”.

Mas é fácil, como dizia Swift, reconhecer o gênio: todos os imbecis da época tomam partido contra ele. Antes de continuar, melhor lançar uma olhadela sobre a gigantesca arapuca dos anos 30, a divinização da dialética, armadilha na qual caíram não poucos intelectuais.

 

A affaire Lyssenko

Fora desta divinização do homem pelo marxismo, em O Homem Revoltado Camus reprovará em Marx o fato de não ter acompanhado a marcha da História. Com o mesmo “romantismo cego” de Hegel, que considera a História terminada em 1807, ou dos saint-simonianos, segundo os quais os movimentos revolucionários de 1830 e 1848 não terão continuidade, ou mesmo o de Comte, que imagina uma humanidade livre de seus erros e apta a aceitar o positivismo, Marx prevê uma sociedade sem classes e o fim da História. A diferença é que ele não fixa data.

Os acontecimentos não ocorreram como Marx havia profetizado. Capital e proletariado não se comportaram da forma prevista. A Inglaterra industrial do século XIX não seguiu as tendências observadas por Marx. As crises econômicas se espaçaram com o desenvolvimento da planificação. A criação de sociedades por ações favoreceu a repartição do capital, em lugar da concentração crescente prevista por Marx. Assim, segundo a crítica camusiana, a História o negará, de forma imediata, em dois pontos:

— a condição miserável dos operários ingleses do têxtil, na época de Marx, longe de generalizar-se e agravar-se, foi ao contrário reabsorvida.

— a classe proletária não aumentou indefinidamente. Ao contrário, a classe média aumentou de forma considerável e criou uma nova camada social, a dos técnicos.

Um outro objetivo perseguido pelo marxismo, a sociedade onde, segundo Lênin, o engenheiro seria ao mesmo tempo mão-de-obra, se chocou com os fatos. A técnica e a ciência exigem uma especialização cada vez maior, sua complexidade impede que um só homem domine todos seus princípios e suas aplicações. Camus cita como exemplo o fato de que um físico, já naquela época, não era capaz de ter uma visão completa da ciência biológica de seu tempo. Mesmo em seu campo de estudos, a física, este homem não podia pretender dominar todos os setores. Da mesma forma, no campo da técnica, no momento em que a produtividade teve um desenvolvimento excepcional, a divisão do trabalho, contrariamente ao que pensava Marx, tornou-se inevitável. A automatização cada vez maior transformou então cada operário em uma máquina que faz um trabalho particular sem conhecer o conjunto da obra realizada. “A vontade marxista de suprimir a degradante oposição do trabalho intelectual ao trabalho manual chocou-se contra as necessidades da produção, que aliás Marx exaltava”.

Marx acreditou que a supressão da propriedade privada implicaria a supressão da concentração do capital. A divisão do trabalho seria ligada à idéia de propriedade privada. A História demonstrou o contrário, diz Camus: “O regime ideal baseado na propriedade coletiva pretendia se definir como justiça mais eletricidade. Acabou sendo a eletricidade, menos a justiça”.

Marx se enganará em outro ponto, segundo a crítica camusiana. O proletariado não será totalmente determinado por sua condição econômica, mas mostrará que tem uma pátria. Os proletários de todo o mundo não serão assim tão unidos como propõe a famosa fórmula. De certa maneira, Camus foi testemunha desta divisão, quando a viagem de Laval a Moscou determinou uma desaceleração da ação pró-muçulmana do PC argeliano. “Como é que um socialismo” –pergunta-se Camus – “que se dizia científico, pode assim se chocar com os fatos? A resposta é simples: ele não era científico”.

Camus vê na recusa prévia dos mitos e no desmascaramento dos interesses mais crus o único aspecto verdadeiramente científico do marxismo. “Mas, neste sentido, Marx não é mais científico que La Rochefoucauld”.

A ciência avançou após Marx. O determinismo e o mecanicismo do século XIX foram substituídos por um probabilismo provisório. Mesmo a teoria de Darwin, uma das bases do marxismo, conforme afirma o próprio Marx, foi superada em parte pelas novas descobertas biológicas. Somente a negação destas descobertas poderia assegurar a infalibilidade do marxismo. Ele só será científico se negar a ciência contemporânea. Segundo Roger Caillois, o stalinismo faz objeções à teoria dos quanta, mas utiliza a ciência atômica que dela decorre.

É ainda durante a “année charnière” de 1935 que aparece no campo das ciências biológicas, na União Soviética, a agrônomo T. D. Lyssenko. Em uma tentativa de domesticar os gens e submetê-los às sagradas leis da dialética, ele proclama que a aparição de caracteres novos transmitidos pelo organismo à sua descendência depende do meio. Isto é, que os caracteres específicos adquiridos podem ser deliberadamente transmitidos. sua ascensão é imediata e ele se torna presidente da Academia de Ciências Agronômicas. A ciência se divide então entre ciência burguesa e proletária. Nos meses de julho e agosto de 1948, em sessão pública da Academia, Lyssenko exibe híbridos como prova de sua tese. Experiências grosseiramente truncadas deram couves transformadas em rutabagas, palmeiras em pinheiros. Os “mencheviques idealistas” que não aprovavam os resultados seriam excluídos da Academia, transferidos e mesmo deportados. A menos que reconhecessem publicamente seus erros.

O caso teve grande repercussão nos meios intelectuais do Ocidente. David Caute, em Le Communisme et les intellectuels français – 1914-1966, cita as moções de apoio a Lyssenko da parte de homens de letras francesas. “O povo soviético em peso – escrevia Jean Triomphe– aplaudiu Lyssenko por ele recusar-se a abdicar ante a natureza, porque ele crê na ciência, porque ele tem confiança no homem”. Para Pierre Daix, Lyssenko havia liberado a genética do império da política reacionária. Citando Aragon, ele escreve que o tratamento dispensado a Lyssenko fora o mesmo infligido a Galileu, quando o primeiro havia revolucionado as teorias comunistas aceitas na União Soviética. “Mas ele não fez referência alguma – diz Caute – aos Galileus que haviam se oposto a Lyssenko, nem à sorte que lhes foi reservada”.

Os gens, infelizmente, não estavam totalmente de acordo com Lyssenko. Sábato e Camus tomam posições quase idênticas a respeito da affaire. O ex-cientista argentino, já em 1949, toma a defesa dos Galileus que se opuseram ao dogmatismo do agrônomo russo.

“Com a Igreja marxista ocorre o mesmo e, assim como os peripatéticos de Pisa se negavam a olhar os satélites de Júpiter pela luneta de Galileu, porque Aristóteles não mencionava tais objetos, os escolásticos de Moscou se negam a crer nos experimentos ‘burgueses’, porque contradizem sua filosofia oficial”.

Sábato nos conta o caso do professor Antón R. Zhebrak, geneticista de reputação internacional. Por ter se declarado de acordo com a teoria Morgan-Mendel, foi denunciada na Pravda por ter dito a uma revista americana que muitos geneticistas russos apoiavam esta teoria. Imediatamente após a denúncia, o professor Zhebrak faz chegar ao jornal sua autocrítica. Sábato estabelece a semelhança entre as palavras de Zhebrak e de Galileu. O cientista soviético diz: Eu, como membro do Partido, considero que não me é permitido abrigar opiniões que foram reconhecidas como errôneas pelo Comitê Central”.

Galileu, face ao tribunal da Inquisição:

“Eu, Galileo Galilei, filho do defunto Vicente Galileu, de Florença, etc., juro que sempre cri e, com a ajuda de Deus, crerei no futuro, em todos os artigos que a Sagrada Igreja Católica e Apostólica de Roma sustenta, ensina e predica”.

Para Sábato, o marxismo em sua forma soviética “é o exemplo mais dramático de que as forças irracionais não podem ser eliminadas senão em aparência, e que os deuses que foram expulsos pela porta voltam a entrar pela janela”. Camus, que não se dobrou ao dogmatismo ideológico então em moda, define-se face à affaire:

“Marx escrevia a Engels que a teoria de Darwin constituía a própria base de sua teoria. Para que o marxismo permanecesse infalível, seria então necessário negar as descobertas biológicas após Darwin. Como ocorre que estas descobertas, após as mutações bruscas constatadas por De Vriès, constituíram em introduzir – contra o determinismo – a noção de azar em biologia, foi preciso encarregar Lyssenko de disciplinar os cromossomos e de demonstrar novamente o mais elementar determinismo”.

A liberação dos gens do império da política reacionária cobriu de ridículo o stalinismo e não poucos intelectuais do Ocidente. Segundo Caute, “clamando em coro que uma nova teoria que eles não conheciam bem era correta, a) porque ela seria útil se fosse correta, e b) porque Stalin havia dito que ela era correta, os intelectuais não apenas prestaram um desserviço a si mesmos, mas contribuíram para fazer de seu partido um objeto de profunda desconfiança e mesmo de desprezo”.

 

O indivíduo e a história

Valerá a pena, para o indivíduo, dar sua vida pelo futuro da sociedade sem classes? Esta questão, de ordem existencial, o marxismo não a respondeu. Para Camus, o sacrifício do indivíduo seria concebível se a luta de uma ou duas gerações fosse suficiente para se chegar à sociedade sem classes. O futuro tem então um rosto para o militante, é o rosto de seu neto. Mas é preciso não pouca fé para lutar durante gerações por um futuro que tarda a chegar, “é preciso então as certezas da fé para aceitar morrer e matar”.

Na teologia marxista, o fim da história coincide com o fim da economia política, isto é, o fim de toda dor. “Nós estamos no Éden”. Mas Marx, da mesma forma que os grandes profetas, não dá um prazo para este acontecimento. O marxismo se contenta em dizer que os prazos são longos e é preciso contar com o fim que tudo justifica.

A morte ou o suicídio, isto é, sempre a morte, será uma preocupação em toda a obra camusiana. Ao voltar de uma viagem aos Estados Unidos, ele escreve em seu diário que “o único problema moral verdadeiramente grave é o assassinato”. Esta frase, com duas variantes, é a nova formulação da abertura de O Mito de Sísifo. Pois Camus, nesta épcca de sua vida, não mais estabelece grandes diferenças entre um e outro. Nos Carnets, insistirá sobre a pureza do terrorista Kalayev, para o qual morte igual a suicídio, pois uma vida é paga com uma outra. “O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida roubada não vale uma vida dada). Hoje, o assassinato por procuração. Ninguém paga”.

Suas críticas a uma filosofia que justifica a morte do indivíduo em função de um hipotético ideal futuro são severas. Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de “Ni victimes ni bourreaux”, reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.

“Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica”.

O que choca Camus é o fato de que homens viram “mentir, aviltar, matar, deportar, torturar” se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. “Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo”.

Camus não aceita os constrangimentos de sua época, ou ao menos os constrangimentos de certas correntes intelectuais: não se pode falar do expurgo de artistas na Rússia porque isto favoreceria a “reação”. Impossível condenar o apoio dos anglo-saxões a Franco, porque isto seria favorecer o comunismo. Homens concretos, em carne e osso (e por estes homenzinhos, sem H maiúscula, Sábato também se bate sem trégua) são massacrados, triturados em nome de solenes ideais. Este massacre não deve ser denunciado, para não impedir a marcha da Idéia. “Vivemos no mundo da abstração, no mundo dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e do messianismo sem nuanças”.

Para escapar a este terror, Camus propõe uma pausa para reflexão, sem esquecer que o terror não é propício à reflexão. Chama os homens sem partido, ou mesmo os homens de partido e que nele se sentem mal, todos aqueles que duvidam da realização do socialismo na Rússia e do liberalismo na América, chama mesmo aqueles que têm crenças mas que se recusam a impô-las pelo assassinato, individual ou coletivo. Revolta-se contra a justificação do assassinato em nome de abstrações, por mais atraentes que sejam. E lança seus contemporâneos duas questões fundamentais:

“Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer ser assassinado ou violentado? Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer assassinar ou violentar? Todos aqueles que responderem negativamente a estas duas questões estão automaticamente embarcados em uma série de conseqüências que devem modificar sua maneira de expor o problema”.

O que ele pede é um mundo, não onde não se assassine – “não somos loucos a tal ponto!” – mas onde ao menos o assassinato não seja legitimado. Choca-se com o fato de que todos aqueles que lutam por ideais históricos são homens cheios de boa vontade e que o resultado de sua ação seja o assassinato, a deportação e a guerra. A recusa de legitimar o assassinato deve conduzir-nos a uma reconsideração da noção de utopia.

“A utopia é o que está em contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria totalmente utópico querer que ninguém mate ninguém. É a utopia absoluta. Mas é uma utopia de grau bem mais viável pedir que o assassinato não mais seja legitimado”.

Sua proposição básica é que, se nos é impossível tudo salvar, que ao menos seja salvo o corpo de cada indivíduo. Que homem algum seja vítima, que nenhum homem sejas carrasco. Ora, enunciadas em uma época na qual Stalin fascinava os intelectuais do Ocidente, estas reflexões vão provocar reações pouco corteses. Em Combat, o artigo passa despercebido. Publicado novamente em Caliban (novembro 1947), a crítica camusiana ao stalinismo provocará não poucos resmungos. A primeira reação vem do barão Emmanuel d’Astier de la Vigerie, homem de direita antes da guerra, que se dobrara aos novos ventos da História. Em um artigo publicado na mesma revista, em abril de 1948, d’Astier não aceita uma terceira opção. Rejeitar a revolução comunista significaria servir a causa do capitalismo. Ergo, Camus é um moralista, um santo leigo, um cúmplice do capitalismo.

Este artigo dá a Camus ocasião de precisar sua crítica ao marxismo. As duas respostas a d’Astier (Caliban, junho 48 e La Gauche, outubro 48) oferecem já os elementos fundamentais da parte mais polêmica de O Homem Revoltado, publicado em 1951. Camus insiste na recusa de toda legitimação da violência, quer venha de uma razão de Estado absoluta, quer de uma filosofia totalitária. Não prega a não-violência, não é ingênuo a tal ponto. Julga que a violência deve ser delimitada. “É preciso acantoná-la em certos setores quando ela é inevitável, amortecer seus efeitos terríficos, impedindo-a de ir até o ápice de seu furor”. Recusa a violência confortável que provém de intelectuais cujas palavras vão mais longe que os atos. Despreza os chamamentos ao assassinato. Só cessará de desprezá-los quando estes intelectuais ousarem apanhar o fuzil. “Não se pode estar ao lado dos campos de concentração. Compreendi então que eu detestava menos a violência do que as instituições da violência”.

Nesta época, surge o problema dos comunistas gregos condenados à morte. Camus – que intervirá por suas libertações – pensa que o problema não pode se resumir a uma questão estatística. Recusa a idéia de que, para que os comunistas gregos sejam poupados, seja necessário matar um certo número de não-comunistas, e que só os comunistas mereçam ser salvos. “Eles, com efeito, o merecem, mas ao mesmo título que os demais homens”.

Camus acusa os marxistas de não admitir que os “dados objetivos” da época de Marx mudaram. O marxismo foi concebido no tempo da máquina a vapor e do otimismo científico. Vivesse Marx no século do átomo e da relatividade, se tivesse testemunhado o desenvolvimento científico produzido após sua morte, com o crescimento dos meios de destruição, talvez reconhecesse que os famosos dados haviam mudado.

No final do debate com d’Astier, Camus sugere uma proposição embaraçosa: uma tomada de posição conjunta contra todos os totalitarismos, sejam de esquerda ou direita. Camus assinaria prazerosamente – e ele o fez – uma carta aberta à imprensa americana para protestar contra a cumplicidade direta ou indireta dos Estados Unidos nas execuções gregas. A esta juntará um protesto contra o apoio a Franco na Espanha. Com uma só condição: que d’Astier se disponha a publica, na imprensa francesa (já que a Rússia não a publicaria) uma carta aberta onde ele tome posição contra o sistema concentracionário soviético e contra a utilização da mão-de-obra dos deportados.

Sem resposta.

Sob o impacto de suas destas discussões, tentado pelo suicídio e em frágil estado de saúde, Camus faz sua viagem à América Latina. Chegando a Porto Alegre, a 9 de agosto de 1949, profere uma conferência no Instituto de Belas Artes, sob o título acusador de “A Europa e o crime”. Considerava que os homens dispersos nos diversos continentes voltavam-se para a Europa e interrogavam-se sobre seu futuro, convencidos de que a escravidão ou o desespero desta Europa provocaria a desaparição de valores indispensáveis a todo homem digno deste nome. O conferencista partilhava desta inquietude, mas se recusava a qualquer profecia. Pretendia apenas pesquisar a doença presente da Europa e determinar, caso lhe fosse possível, os remédios a aplicar. Segundo o escritor, o velho continente vivia então em desgraça, pois muito havia matado nos últimos anos, e de uma nova forma: Caim assassinava Abel em nome da lógica e pedia depois a Legião de Honra. Em vários países, os carrascos haviam-se instalado nas poltronas ministeriais e substituído o machado pelo tinteiro.

A Europa sofria do crime e da abstração. Para Camus, isto constituía a mesma e única enfermidade. Defendeu então uma revolta humana contra a Europa da eficácia, revolta sem a qual o mundo seria dominado por povos imaturos, que ririam sentados sobre suas máquinas, uma revolta como recusa à dominação e como tentativa de diminuir o sofrimento dos homens. Na ocasião, contou uma anedota – no sentido francês da palavra – em torno a um adolescente francês. Sob ameaça de morte de um policial alemão, o rapaz repetia que nenhuma idéia merecia que se morresse por ela. Isto significava, ao mesmo tempo, que em verdade havia idéias pelas quais podia-se consentir dar a vida. Estas idéias eram superiores à existência de um indivíduo porque necessárias ao homem: a liberdade, a justiça, a luta contra a cobiça, a mentira e a violência. Concluiu a palestra dizendo que se, por infelicidade, o escritor fracassasse em sua generosa missão, mais valia enganar-se sem assassinar ninguém do que ter razão em meio ao silêncio e às tumbas.

Nestes anos, Camus é um dos raros intelectuais a ousar denunciar os campos que mais tarde serão conhecidos como gulags. Desde 1941 o Ocidente deles já ouvira falar, seja a partir de testemunhos de fugitivos, seja a partir de detalhes da própria imprensa soviética, mas mantinha silêncio sobre o assunto. David Rousset será aquele pelo qual o escândalo surge, ao publicar no Figaro Littéraire um artigo no qual exorta os antigos deportados políticos a apoiar a proposição de uma investigação nos campos soviéticos. Entre outras cortesias, em Lettres Françaises, Pierre Daix o trata o trata de “mentiroso desavergonhado”. (Ainda em 1950, em Nouvelle Critique, Daix insistia: “os renegados estão sempre sós, mentirosos e desesperados”. Em 1974, será sua vez de tornar-se só mentiroso e desesperado). O debate conduzirá Sartre, até então hesitante, a romper o silêncio em janeiro de 1950 e declarar-se convencido da existência dos campos. Estimando a cifra dos detidos em dez ou quinze milhões, pergunta-se que socialismo é esse no qual um cidadão entre vinte é prisioneiro dos gulags.

Rousset abre um processo contra Daix e Lettres Françaises. O curioso, escreve Caute, é o fato de que vários intelectuais comunistas que haviam sofrido os horrores dos campos nazistas, permaneceram insensíveis às provas trazidas por Rousset e tomaram o partido de Daix. Em suma, Camus havia mergulhado no velho problema do fim e dos meios, ponto sobre o qual não fará concessão alguma. Com o fim da sociedade de classes, segundo o marxismo, o Estado deixa de ser necessário. A ditadura do proletariado deve impor-se para atingir duas finalidades, a) oprimir ou suprimir o que resta da classe burguesa, e b) realizar a socialização dos meios de produção. Atingidos estes dois objetivos, a ditadura começaria a esvanecer-se. Três décadas após a revolução, Camus não via nada disto no Estado Soviético.

Sábato, no momento da publicação de O Homem Revoltado, havia também abordado o caráter eclesiástico do marxismo, em Homens e Engrenagens. Seu livro não fará tão grande estardalhaço, primeiro porque Paris é Paris e Buenos Aires é América Latina. Em seguida porque, em um continente onde professar uma doutrina podia significar prisão, tortura e morte, não fazia bem à saúde tomar publicamente a defesa do marxismo.

Ao lado de Camus, como também ao lado de todos os pensadores – e não são poucos – que em todas as latitudes guardaram a cabeça fria em meio à tempestade ideológica que varreu esta primeira metade do século – Sábato se colocará insistentemente sob esta mesma bandeira, a defesa do homem concreto, deste homenzinho com h minúsculo, que sofre a História em vez de fazê-la. Para o escritor argentino, deveria realizar-se na ordem social o que a nova filosofia havia obtido no domínio do pensamento: a síntese dialética do homem e do mundo. Nem o individualismo nem o coletivismo são soluções verdadeiramente humanas, pois a primeira não vê a sociedade e a segunda não vê o homem concreto. Todas as duas são abstrações perigosas para o “homem de carne e osso”. As duas conduzem, não a autênticas comunidades mas a maquinarias sociais onde o homem é coisificado e convertido em peças ou engrenagens de produção. O superestado que fatalmente decorre da centralização industrial e técnica é a base dessa alienação, que atinge da mesma forma Rússia e Estados Unidos. A defesa desse pequeno homem foi várias vezes pelo escritor refugiado em Santos Lugares. Por exemplo, neste diálogo com Borges:

“Decapitam meia França em nome da Razão. Cada vez que os teóricos invocam o homem com H maiúsculo é preciso tremer: ou guilhotinam milhares de homens com minúscula ou os torturam nos campos de concentração”.

A repetição, obsessiva, por vezes literal, dos pontos-chave de seu pensamento não surpreende quem conhece sua obra. Vejamos, por exemplo, Apologias y Rechazos, ainda não traduzido no Brasil.

“Devemos tremer cada vez que alguém se apaixona pelo homem com H maiúscula, por essa abstração que se chama Humanidade: é capaz então de guilhotinar ou torturar multidões inteiras. Basta pensar em Robespierre ou Stalin. No fundo, são seres que não amam ninguém, são mortais inimigos do homem concreto (o único que existe) na medida, precisamente, em que amam uma abstração”.

Da mesma forma que coincidem em suas objeções ao marxismo, Camus e Sábato tecem reflexões quase idênticas ao analisar a contribuição de Marx à História. Para o Nobel francês, seu esforço mais fecundo “foi o de desvelar a realidade que se esconde atrás dos valores formais exibidos pela burguesia de seu tempo. Sua teoria da mistificação é ainda válida por ser válida universalmente, é verdade, e se aplica às mistificações revolucionárias”.

Em Homens e Engrenagens, publicado no mesmo ano que O Homem Revoltado, Sábato considera que a parte mais válida da doutrina marxista é sua interpretação da sociedade. Até então, tendia-se a estudar uma ideologia, filosofia ou escola artística fora de seu contexto histórico, “sem relação com os problemas sociais de seu tempo e, sobretudo, com um absoluto desdém pelos fatores mais baixos; pareceria uma mostra de mau gosto estabelecer algum vínculo entre a pintura renacentista e o surgimento da burguesia. De uma vez por todas, Marx assinalou a importância do meio social nos problemas do espírito e esta metodologia foi de valor incalculável para as investigações posteriores: não se concebe, por exemplo, uma obra como a Sociologia do Saber, de Max Scheler, sem o antecedente marxista.

Além desta contribuição, Camus vê em Marx o homem que centrou sua reflexão sobre o trabalho, sua aviltação injusta e sua dignidade profunda. “Ele se opôs à redução do trabalho a uma mercadoria e do trabalhador a um objeto. Lembrou aos privilegiados que seus privilégios não eram divinos, nem a propriedade um direito eterno”. Sábato, por sua vez, vê em Marx o homem que mais transformou o mundo contemporâneo. No entanto, “mais de uma vez me perguntei se não há algo nessa doutrina que mais cedo ou mais tarde conduz a outra alienação do mediante a outro gênero de escravidão”.

Mas, como afirma com verve o escritor argentino, viver sem crer em algo é como executar o ato sexual sem amor. Para Sábato, o homem necessita de uma ordem, de uma estrutura sólida na qual deitar raízes. Deus morto, Marx agonizante, a ordem científica afastada das necessidades mais espirituais do ser humano, “em vastos movimentos, os homens então se precipitaram rumo a novas religiões, laicas ou políticas, isso quando não se reintegraram ao âmbito das antigas e autênticas religiões. Em tais condições surgir a nova literatura. Primeiro, como uma ansiosa investigação do caos, como um exame da condição do homem em meio à desordem. Logo, e através dessa indagação, como uma tentativa mais ou menos obscura de também oferecer-nos essa ordem da qual necessitamos, um rumo em meio à tempestade”.

Uma vez tomada a decisão de agir sobre o mundo, ambos autores tomam consciência de que o marxismo – e, conseqüentemente, o Partido – não é o melhor utensílio. Os conflitos de interesse em torno ao continente europeu aceleram as contradições de uma ideologia que se pretende proletária e internacionalista, o que explica em parte a efêmera simpatia de Camus pelo comunismo. Mais distanciado da do olho do furacão, Sábato militará alguns anos no PC argentino. Dele se afastará por ocasião de sua viagem à Europa. Uma marcha à ré se impõe, é preciso fazer tabula rasa das crenças de juventude, tentar uma saída a partir de zero. Talvez haja uma resposta, mas primeiro urge bem equacionar o problema.

 

O escritor ante o impasse

Estas primeiras interrogações de Sábato e Camus já estão em seus primeiros romances. É o não de juventude, uma negação radical que não oferece, nem aos leitores nem aos personagens, a esperança de uma saída. É a negação de alguém que não sabe ainda o que quer. Por outro lado, sabe muito bem o que não quer. Alguns paralelismos aproximam O Estrangeiro e O Túnel. Primeiro, ambos são monólogos de homens que cometeram um crime, mas não se sentem de forma alguma criminosos. Em segundo lugar, seus personagens partilham a mesma atração pela leitura das páginas policiais. Em terceiro, ao final das duas obras chega-se a um beco sem saída.

Sábato, desde as primeiras linhas de seu relato, sequer permite ao leitor ter surpresas: “Basta dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não são necessárias maiores explicações sobre minha pessoa”.

O Túnel é, da primeira à última página, a explicação de Castel sobre as razões que o levaram a matar Maria. Pintor que vive mergulhado em seu próprio universo interior, certo dia expõe um quadro intitulado “Maternidade”. Quadro em nada diferente dos demais que já pintara, tendo merecido os elogios habituais da crítica: “era sólido, estava bem estruturado. Tinha, enfim, os atributos que esses charlatães encontravam sempre em meus quadros”. Mas este tinha um detalhe invisível aos olhos da crítica. No alto, à esquerda, através de uma janela, via-se uma praia distante e solitária, mais uma mulher que olhava o mar. Ninguém se ocupara deste detalhe, exceto uma jovem que, sem dar importância alguma à mulher em primeiro plano, fixava seu olhar na janelinha. Era Maria. Nesse momento assinava sua própria sentença de morte. Castel a observa e sente medo. “Medo de quê? Talvez algo assim como medo de jogar todo o dinheiro de que se dispõe na vida em um só número”.

Curiosamente, em Jonas, ou l’artiste au travail, publicado em 1953, Camus recorre a uma situação semelhante, a de um homem que se fixa em um pequeno detalhe de um quadro, também assinado por um criador solitário: “Na outra peça, Rateau olhava a tela, inteiramente branca, ao centro da qual Jonas havia escrito, em caracteres muito pequenos, uma palavra que se podia decifrar, mas não se sabia se era solitário ou solidário”.

Inevitavelmente, Castel reencontrará Maria e se tornará seu amante. Maria é casada com um cego, Allende, e aqui já temos o germe deste formidável pesadelo, o “Informe sobre Cegos”: “Devo confessar que os cegos não me agradam. Sinto diante deles uma impressão semelhante à que me produzem certos animais, frios, úmidos e silenciosos, como as víboras”.

Mas Castel tem seus próprios momentos de desespero: quando se embriaga, deixa-se tentar pelo suicídio e busca prostitutas: “Sinto certa satisfação em provar minha própria baixeza e verificar que não sou melhor que os sujos monstros que me rodeiam”. Certa noite, após ter bebido muito, Castel desce ao porto e traz a seu ateliê uma profissional, “a mulher que me pareceu a mais depravada”. Ela ri de um de seus quadros e isto determina a morte de Maria, pois Castel vê no rosto da prostituta a mesma expressão que um dia observara em sua amante: “Puta! – gritei enlouquecido, afastando-me com asco–. Claro que é uma puta”.

Castel constrói então seu silogismo: “Maria e a prostituta tiveram uma expressão semelhante; a prostituta simulava prazer; Maria, pois simulava prazer; logo, Maria é uma prostituta”.

“— Puta, puta, puta! – gritei, saltando da banheira”.

Ele já advertira Maria: se uma vez suspeitasse que ela o traía, matá-la-ia como a um cão. Uma abordagem superficial deste romance sufocante poderia fazer o leitor pensar em uma vulgar história de ciúmes. O problema, no entanto, não é este. Castel sabe que Maria tem relações com seu marido e ainda é amante de um certo Hunter. Isto não perturba. O que o torna desesperado é ter surpreendido um traço comum no rosto da prostituta e no da única mulher que havia entendido “Maternidade”.

“Aquela besta imunda que rira de meus quadros e a frágil criatura que me alentara a pintá-los tinham a mesma expressão em algum momento de suas vidas! Meu Deus, se não era para desconsolar-se da natureza humana, ao pensar que entre certos instantes de Brahms e uma cloaca há ocultas e tenebrosas passagens subterrâneas!”

Enfia, chorando, o punhal no peito de sua amante. “Tenho de te matar, Maria. Me deixaste só”. Uma fúria súbita o torna ainda mais forte após o primeiro golpe: “e cravei a faca muitas meses em seu peito e seu ventre”. Maria morre, Allende se suicida e Castel vai para a cadeia, onde pelo menos pode pintar. Os médicos riem de seus quadros, da mesma forma que o júri rira da história da pequena janela. O túnel se fecha inexoravelmente no último acorde deste primeiro solo composto por Sábato: “Só existiu um ser que entendia minha pintura. Enquanto isto, estes quadros devem dar-lhe razão em seu estúpido ponto de vista. E os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos”.

Como O Estrangeiro, O Túnel está escrito na primeira pessoa. Refletindo mais tarde sobre esta novela, Sábato confessa tê-la escrito impelido por sentimentos confusos e impulsos inconscientes, sem chegar a controlar o destino que havia projetado inicialmente para seus personagens. Sua idéia inicial – a de escrever um conto em torno a um pintor que enlouquece por não poder se comunicar com ninguém, nem mesmo com a mulher que parecia ter compreendido sua pintura – se afasta pouco a pouco desta preocupação metafísica para “descer” aos problemas de sexo, ciúmes e crime. Tal desvio não agradava ao autor, que via sair de suas mãos algo totalmente diferente de seu projeto original. Em O Escritor e seus Fantasmas, declara:

“Mais tarde compreendi a raiz do fenômeno. É que os seres de carne e osso jamais podem representar as angústias metafísicas no estado de idéias puras: fazem-no sempre encarnando essas idéias, obscurecendo-as com sentimentos e paixões. Os seres carnais são essencialmente misteriosos e se movem por impulsos imprevisíveis, mesmo para o escritor que serve de intermediário entre esse estranho mundo irreal mas verdadeiro da ficção e o leitor que segue seus dramas. As idéias metafísicas se convertem assim em problemas psicológicos, a solidão metafísica se transforma no isolamento de um homem concreto em uma cidade concreta, o desespero se metafísico se transforma em ciúmes e o conto que parecia destinado a ilustrar um problema metafísico se converte em um romance de paixão e crime”.

O autor diz escolhido a primeira pessoa como método narrativo após várias experiências, pois esta era a única técnica que lhe permitia dar a sensação de uma realidade exterior vista quotidianamente a partir de uma subjetividade total. Esta é, pois, a história de Castel, homem lógico que mata em obediência a esta lógica obsessiva, presente em todos os personagens de Sábato. Se a história de Meursault é a mesma, isto é, a de um homem que mata e narra seu crime, suas motivações serão distintas, já que seu gesto é absolutamente gratuito, o gesto de um homem que mata simplesmente porque é livre para fazê-lo ou não. O ato de Meursault, só vamos aprendê-lo nas últimas linhas da primeira parte do romance:

“Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Me pareceu que o céu se abriu em toda sua extensão para deixar chover fogo. Todo meu ser se tornou tenso, crispei minha mão no revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi ali, no ruído ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que havia destruído o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde eu havia sido feliz”.

Em momento algum Meursault pensa na hipótese de ter matado um homem. Deplora apenas ter destruído o equilíbrio e o silêncio de uma praia. Estamos diante de homens que podem matar a qualquer momento, por razões fortuitas – o sol, um gesto que se assemelha a outro–, fortuitas ao menos para aqueles que não participam de seus universos mentais. Nem Meursault nem Castel se sentem culpados. Seus valores nada têm a ver com a ética em vigor.

Náufragos do mundo axiológico, mantém no entanto uma postura íntegra: não aceitam a mentira. Castel apunhalou Maria porque ela simulava o prazer. Meursault, quando o advogado lhe sugere invocar como atenuante o fato de naqueles dias sofrer de um pesar profundo (sua mãe havia morrido), responde: “Não, porque não é verdade”.

Um segundo traço comum – e dos mais significativos – aproxima estes primeiros romances destes autores. Seus personagens partilham a mesma atração pela leitura das páginas policiais. Meursault encontra sob seu leito, no cárcere, um antigo jornal onde lê um episódio ocorrido na Tchecoeslováquia. Um homem sai de seu país para fazer fortuna e volta rico, 25 anos depois, para seu vilarejo. Sua mãe e sua irmã gerem um hotel. Para fazer-lhes uma surpresa, ele deixa sua mulher e seu filho em outro estabelecimento. Mãe e irmã não o reconhecem e o homem, por brincadeira, aluga um quarto e lhes mostra seu dinheiro. Durante a noite, as duas mulheres o matam e jogam seu corpo em um rio. No dia seguinte, quando a mulher da vítima revela sua identidade, a mãe se enforca e a irmã se joga em um poço. Meursault reflete:

“Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro, era natural. De qualquer forma, eu achava que o viajante em parte a merecera e que jamais se deve brincar”.

Este episódio, que na realidade ocorreu na Iugoslávia, e que mais tarde servirá como intriga em O Mal-entendido, Camus o pinça de um despacho da Associated Press:

“Um homem, voltando para casa após a ausência de vinte anos, foi assassinado e roubado por sua mãe e sua irmã que não o tinham reconhecido”, diz o despacho. L’Echo d’Alger traz mais detalhes: “Auxiliada por sua filha, uma hoteleira mata um viajante para roubá-lo, que não era outro senão seu filho. Dando-se conta do erro, mãe se enforca e a filha se joga em um poço”.

Ouçamos Juan Pablo Castel, nas primeiras linhas de seu relato:

“Quantas vezes permaneci esmagado durante horas, em um canto obscuro do ateliê, após ler uma notícia nas páginas policiais! Mas a verdade é que nem sempre o mais vergonhoso da raça humana aparece ali; até certo ponto, os criminosos são gente mais limpa, mais inofensiva; esta afirmação não a faço por eu mesmo ter matado um ser humano: é uma honesta e profunda convicção”.

Castel promete contar mais tarde – embora não o faça no romance – a história de um ex-pianista que, ao queixar-se de fome em um campo de concentração, recebeu um rasto para comer. Vivo, bem entendido. Voltamos a encontrar esta atração pelas páginas policiais em Sobre Heróis e Tumbas. Fernando Vidal Olmos pretende nelas ver a verdade última da espécie humana:

“Aproveitava para ler duas coisas que sempre me fascinaram: os anúncios e a seção policial. A única coisa que leio desde os vinte anos, a única que nos ilustra sobre a natureza humana e sobre os grandes problemas metafísicos. Lê-se na seta edição: SUBITAMENTE ENLOQUECIDO, MATA MULHER E QUATRO FILHOS COM UM MACHADO. Nada sabemos sobre este homem, exceto que se chama Domingo Salerno, que era trabalhador e honesto, que tinha uma tendinha em Villa Lugano e que adorava sua mulher e seus filhos. De repente, mata-os a machadadas. Profundo mistério!”

Não é pois por acaso que Sobre Heróis e Tumbas começa com uma nota policial, um fragmento de uma crônica policial supostamente publicada em La Razón, de Buenos Aires:

“Segundo as primeiras investigações, o antigo Mirador que servia de dormitório a Alejandra foi chaveado por dentro pela própria Alejandra. Logo depois (embora, evidentemente, não seja possível precisar-se o lapso transcorrido), matou seu pai com quatro balaços de uma pistola 32. Por fim, espalhou gasolina e nela pôs fogo”.

Mais tarde, em Abadon, o Exterminador, Nacho reúne recortes de páginas policiais. Temos, por exemplo, o americano de Los Angeles que segura sua mulher e filhos por 25 mil dólares, organiza uma viagem de férias e põe uma bomba-relógio em uma de suas malas.

O terceiro ponto em comum entre O Estrangeiro e o Túnel reside na constatação, tanto do personagem como do leitor, de que não existe luz ao final dos “túneis” pelos quais se enfurnam Meursault e Castel. Para o personagem camusiano, “...me restava desejar que houvesse muitos espectadores no dia de minha execução e que eles me acolhessem com gritos de ódio”. Quanto a Castel, “os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos”.

Conscientes deste impasse, Camus e Sábato se apressarão em trazer aos leitores um humanismo possível em suas próximas obras. Por ocasião de uma entrevista dadas pouco após a aparição de O Estrangeiro, seu autor é categórico na condenação do gesto de Meursault. Ele admite todas as posições, “todas, salvo a do assassino”. Sábato, que só consegue escrever “sobre as grandes encruzilhadas nas quais nosso ser parece fazer um balanço geral”, preocupa-se com a idéia de que a morte o surpreenda antes de continuar sua obra:

“Quando escrevi O Túnel era ainda excessivamente jovem e penso que só expressa minha visão negativa da existência, meu lado negro e desesperançado. Enquanto não terminei esta quarta e última parte de Heróis e enquanto o romance não foi publicado, vivi ansioso por pensar que, se morresse, me julgariam unicamente por aquela visão totalmente negativa e não iriam saber, de forma cabal, quem havia sido eu. Afinal de contas, é por isso que escrevemos um romance: para explicar ao mundo quem somos e o que esperamos da existência”.

Sábato publica O Túnel com a idade de 37 anos, Camus lança O Estrangeiro aos 28. Estamos diante do primeiro romance de dois autores que emergem de uma profunda crise espiritual. Para Camus, o único problema verdadeiramente sério é ainda o suicídio, obsessão do jovem Sábato e de muitos de seus personagens. Castel e Meursault, mais que assassinos, são suicidas, pois destróem suas vidas. Um, porque o sol era quente demais. Outro, porque não via no mundo uma ordem exigida por seu intelecto. Ambos autores vivem esses momentos dos quais nos fala Alberto Morávia em Le Roi est nu, quando o intelectual não consegue optar entre os pensamentos propostos por sua época:

“... na situação do personagem dos Indiferentes, Michel, ou daquele de O Estrangeiro, de Camus ou de A Náusea. É o intelectual que olha, que gostaria de participar, mas não consegue, que não tem razões para fazê-lo”.

Esta aproximação entre O Túnel, A Náusea e O Estrangeiro é retomada por Lília Boscán de Lombardi, em Aproximaciones Críticas a la Narrativa de Ernesto Sábato:

“Pretendendo escapar desta sociedade alienada e desumanizada, Juan Pablo, Roquentin, Meursault propiciam o isolamento e comportam uma atitude altiva e desdenhosa desprezando todo o estabelecido, assumindo uma permanente atitude crítica de homem em revolta assumindo seu radical subjetivismo, seu marcado individualismo. Neste sentido, o herói existencialista é um herói problemático, apropriando-nos da terminologia de Lukács, em oposição radical à sua sociedade, ao mundo convencional e totalmente degradado ao qual pertence. Tratando de salvar sua individualidade e alguns valores que considera autênticos e aos quais permanece ligado, de uma forma demoníaca, no sentido de que esses valores e os da obra não se manifestam em parte alguma de maneira explícita, mas estão presentes de modo implícito. Juan Pablo Castel é pois o herói problemático que busca sempre valores absolutos sem conhecê-los e vivê-los integralmente e sem poder, por isso mesmo, deles aproximar-se. A busca de autenticidade é um empreendimento trágico, pois ao final está a morte. Nisto reside a falta de sentido na qual se baseia a filosofia existencialista e o absurdo de toda busca e de toda a luta”.

Tais personagens vivem uma situação extrema, de solidão irremediável e de impossibilidade total de comunicação com seus semelhantes. Sábato confessa, em O Escritor e seus Fantasmas, ter vivido em certos momentos de sua vida uma semelhante falta de comunicação, mas jamais em tal intensidade.

“A diferença entre um romancista e um louco é que o romancista pode ir até a loucura e voltar. Os loucos não voltam, nem são capazes de escrever um romance sobre loucos”.

Esta tendência ao crime em Castel, voltamos a reencontrá-la em Sobre Heróis e Tumbas, quando Alejandra, nua na praia e deitada ao lado de Marcos Molina, diz-lhe que, se ele a toca, ela o mata a punhaladas. Aparentemente, uma fútil ameaça de adolescente. Se levarmos em conta que Alejandra acabará por matar seu pai e amante e imolar-se pelo fogo, tal ameaça adquire outras dimensões. A timidez salvou Marcos Molina. Mais tarde, Alejandra o procura e tenta feri-lo à faca, pois não admitia ser beijada.

O Túnel e O Estrangeiro representam o momento que Pierre Nguyen-Van-Huy, em La Métaphysique du bonheur chez Albert Camus, chama de revolta negativa, cujo único resultado é o Nada. Em seus primeiros romances, os dois autores vomitaram sua revolta contra um mundo cujos valores estão em crise. O túnel se fecha sobre ambos. Ao leitor resta a sensação de ter percorrido um beco sem saída.


 

 

ALÉM DO NIHILISMO

 

 

Da fissão à ficção

Acontecimento insólito na bibliografia de um ficcionista, encontramos entre os trabalhos de Sábato um estudo intitulado On Alfven’s hipothesis of a cosmic cyclotron, publicado em junho de 1939, na Physical Review. Este ensaio data dos anos em que o jovem doutor em Física, bolsista da Associação Argentina para o Progresso das Ciências, inclinava-se mais sobre a fissão do átomo que sobre a ficção literária. Estamos em 1938, quando Sábato é enviado a Paris pelo Dr. Houssay, físico argentino, para estudar no laboratório Joliot-Curie os problemas da radiação atômica. Sábato, que conhecera Paris três anos antes, quando havia perdido sua fé no marxismo, instala-se agora na Rue du Sommerard, no Quartier Latin, onde aliás Fernando Vidal Olmos se refugiará durante sua fuga da Seita dos Cegos. Na época, Sábato freqüenta de dia o laboratório e à noite os poetas e pintores surrealistas, entre outros Oscar Domínguez, Lam, Matta, Victor Brauner, Esteban Francés, Péret, Marcelle Ferry, Tristan Tzara e André Breton. Um episódio envolvendo o canarino Domínguez, “um personagem fálico”, e o romeno Victor Brauner, impressiona Sábato de tal forma que constituirá mais tarde uma das grandes interrogações de Vidal Olmos a propósito do acaso e da necessidade. O fato, retomado em Sobre Heróis e Tumbas, merece algumas reflexões.

Victor Brauner era um pintor judeu, de nacionalidade romena, que chegara a Paris em 1927, juntando-se ao grupo de Breton. Em seus quadros, os olhos eram geralmente substituídos por sexos femininos ou aspas de touros. Às vezes, os personagens eram inteira ou parcialmente desprovidos de olhos. Em um auto-retrato de 1931, Brauner, que desde há muito pintava olhos vazados, pinta agora um quadro premonitório: seu olho está perfurado por uma flecha de onde pende uma letra, a letra D. Ainda em 1931, o pintor se deixa fotografar face ao 83, Boulevard de Montparnasse, onde Domínguez tinha seu ateliê. Brauner volta à Romênia e não retorna a Paris senão em 1938, para que se realizasse o que há muito já havia pintado.

Havia muita gente na festa do ateliê de Domínguez. A noite era dominada pelo tédio. Nos últimos dias, Brauner vivia em um semi-sono angustiado e sentia um medo inexplicável. Os amigos começavam a ir embora. Domínguez, excitado, começa uma discussão com E. (Sábato muitas vezes designa por iniciais seus personagens). Brauner nada entendia da discussão, pois ambos falavam em espanhol. De repente, empalidecendo e tremendo de cólera, um se joga sobre o outro com uma violência inusitada. Brauner se precipita para conter E. Dois outros participantes da festa, S. e U., avançam contra Domínguez, enquanto os demais saem. Domínguez consegue libertar-se. Brauner recebe um golpe na cabeça e cai no chão. Ele vê que os rostos exprimem uma dor e angústia intensas, mas nada entende do que está acontecendo até o momento em que, em um espelho, vê a imagem ensangüentada de seu olho esquerdo, que agora é uma imensa chaga. “Neste instante pensei em meu auto-retrato e naquela confusão de minha mente a chaga me despertou para a realidade”.

Este episódio, um dos momentos-chave de “Informe sobre Cegos”, conduz Fernando Vidal Olmos a uma conclusão: o acaso não existe. Nesta mesma época, um outro episódio, envolvendo desta vez André Breton, suscitará no jovem físico suas primeiras desconfianças em relação ao mundo intelectual parisiense. Tendo Domínguez como co-autor, ele elabora uma tese sobre o “litocronismo”, uma teoria absurda sobre a petrificação do tempo, brincadeira típica do grave humor sabatiano. Breton a leva a sério e comenta a “teoria”, em 1939, na revista Minotaure.

Mas o jovem argentino havia sido enviado a Paris para estudar a radiação atômica, não para passar noites em claro em Montparnasse em meio a episódios surrealistas com os quais a ciência nada tem a ver. Seus dias como cientista estão contados, como nos declara em O Escritor e seus Fantasmas.

“Quando comecei minhas tarefas com Irène-Joliot, compreendi de repente que tudo aquilo não era senão uma complicadíssima evasão. No fundo, uma saída covarde para meus autênticos problemas interiores. Comecei a vincular-me com os surrealistas. Desta forma creio que se iniciou a etapa final e mais autêntica de minha existência. Descobri então que minha passagem pela ciência havia terminado para sempre. Muitos julgaram esta atitude como uma traição, do mesmo modo que os comunistas, alguns anos antes, face a meu afastamento do partido. Do ponto de vista deles, certamente era uma traição. Mas acredito que devemos suportar qualquer tipo de acusação por lealdade insubornável a nós mesmos, aos ditames mais profundos de nossa consciência”.

Acusado de pequeno burguês ao serviço do imperialismo pelos seus ex-camaradas de partido, por ocasião de sua primeira fuga a Paris, esta nova decisão será também condenada. Em Abadon, o Exterminador, comentando ironicamente a tese de Lévy-Bruhl sobre a passagem da mentalidade primitiva à mentalidade científica, escreve:

“Sabes o que aconteceu com o pobre coitado? Envelheceu tentando demonstrá-la. Mas era honesto e acabou confessando sua derrota, reconhecendo que a famosa mentalidade ‘primitiva’ não é um estado inferior do homem. E que no homem de hoje subsistem as duas mentalidades. Que horror, não? Observa que essa mentalidade ‘positiva’ (o adjetivo me diverte, mas não posso evitá-lo) injetou no Ocidente a idéia de que a cultura científica é superior à cultura dos polinésios, digamos. Outra coisa que talvez te interesse: que o espírito do homem, por sua maior propensão ao pensamento abstrato, é superior ao espírito da mulher. Que te parece? E a ciência superior à arte, é claro. Quando abandonei a física, o professor Houssay deixou de cumprimentar-me, sabias?”

Sábato preocupa-se com o relatório a ser enviado ao professor que o recomendou ao instituto francês: “A Associação para o Progresso das Ciências! Pobre doutor Houssay, se soubesse quais eram minhas preocupações fundamentais e meus pensamentos secretos naquele tempo!

Sábato queima suas naus para não mais voltar à ciência, na mesma cidade onde um dia chegara o militante em desespero. A guerra se aproximava. Sábato via na nova deusa – cuja finalidade era a libertação do homem de seus males físicos e metafísicos – “o instrumento da matança mecanizada”. O que mais o choca é o cretinismo cientificista que conduziu os físicos japoneses a congratular seus colegas americanos pela eficácia da bomba de Hiroshima. O físico Sábato, quando afastava seu olhar dos logaritmos e sinusóides, “encontrava o rosto dos homens”. Em Homens e Engrenagens, confessa:

“Ali, em 1938, soube que minha fugaz passagem pela ciência havia terminado. Embora o doutor Jekill ainda medisse a radiatividade do actínio durante o dia, Hyde vagava noturno e solitário pelas ruas de Paris, ou começava a escrever as páginas de um romance catártico ou se revolcava na pura irracionalidade, promovendo escândalos com os pintores surrealistas. Como compreendi então o valor moral do surrealismo, sua força destrutiva contra os mitos de uma civilização finda, seu fogo purificador, mesmo apesar de todos os farsantes que se aproveitavam de seu nome!”

Esta passagem da fissão à ficção, ocorrência rara na literatura contemporânea, tem sido continuamente cobrada ao autor. Alexandros Evremidis, em Veja, quer saber o que levou o físico, após seus estudos em Paris e Massachussets, a trocar a ciência pela criação literária. Sábato responde que começou a escrever, como todo mundo, durante os primeiros anos de sua adolescência, quando se sentia em meio a um grande caos e experimentava a necessidade de expressar seus tormentos e neles encontrar algum sentido. Neste momento, as matemáticas dão-lhe a sensação de uma ordem, de uma verdade transparente. Desde então, com a passagem dos anos, compreendeu que tal verdade não era senão uma parte da verdade total, e que Sócrates tinha – e ao mesmo tempo não tinha – razão quando tomava as matemáticas como modelo na investigação da verdade e a razão como seu instrumento supremo. Segundo o escritor, a ciência seguidamente está na raiz da desgraça humana, por buscar uma verdade parcial, por ser fria e lógica, enquanto a vida é absolutamente surrealista. Dando-se conta desta duplicidade, Sábato sofre uma crise espiritual que quase o conduz à loucura. Homens e Engrenagens é o produto deste conflito, onde tenta mostrar como a sociedade industrial é um fator de alienação para o homem, transformando-o em peça de uma imensa e monstruosa engrenagem.

Desde sua juventude, e mesmo durante o período em que estudava física, Sábato escrevia poemas e relatos que jamais vieram à luz. O momento crucial, no qual faz sua opção, ocorre no laboratório Curie. Em uma de nossas charlas, afirmou:

— Eu estava ali quando se produziu a fissão do átomo e senti que era um acontecimento-chave na história da humanidade, o ponto em que este mundo dominado pela tecnologia e pela tecnolatria começava a rolar no abismo. Eu freqüentava o grupo surrealista de André Breton, como uma boa dona de casa que de noite se prostitui. O velho antagonismo que se travava em meu espírito, entre a “luz”e as “trevas” entrou em crise definitiva. Isto não quer dizer que me pronunciasse pelas trevas. Mas entendi que a proscrição que o pensamento iluminista – e a ciência, sua filha dileta – havia feito das potências inconscientes em favor da razão pura, era com o tempo fatal para o homem, a causa básica da alienação e o começo do apocalipse atômico. Embora de início –como é natural – eu me precipitasse ao extremo oposto, rumo às trevas, com os anos fui compreendendo que a verdade estava em uma síntese entre dois opostos injustamente separados pelos iluministas.

Sua opção é definitiva e o ex-físico está perfeitamente consciente dos riscos de sua passagem a um mundo onde não há leis nem certezas. Em prefácio a Nós e o Universo, livro que marca seu adeus à ciência, escreve:

“De todos os modos, reivindico o mérito de abandonar esta clara cidade das torres – onde reinam a segurança e a ordem – em busca de um continente cheio de perigos, onde domina a conjetura. Montaigne olha com ironia os homens capazes de morrer por conjeturas. Não vejo nada que mereça a ironia: nisto reside a grandeza destes pobres seres”.

Nasceu um escritor. Em arte, diz Camus, a revolta se consuma e se perpetua na verdadeira criação, não na crítica ou no comentário. O físico que, em Nós e o Universo, começava a manifestar sua desconfiança em relação à razão, logo publicará O Túnel. A ciência perde um pesquisador e a Argentina ganha seu intérprete mais profundo.

Em Heróis, pela voz de Natalício Barragán, o louco, Sábato nos pinta os primeiros traços do apocalipse moderno, conseqüência de um mundo no qual Deus está morto e não foi substituído por outros valores. Esta purificação pelo fogo, da qual fala Barragán, antecipa de certa forma a expiação do incesto de Alejandra.

“Nos tiraram o Cristo e o que é que nos deram em troca? Autos, aviões, geladeiras elétricas. Mas tu, Chichin, és mais feliz agora que tens uma geladeira elétrica do que quando vinha o rengo Acuña com as barras de gelo? Suponhamos, estou supondo, que amanhã tu, Loiácono, possas ir à Lua – frase que foi celebrada com risotas – mas, seus idiotas, digo que é uma suposição, e daí? Vais por isso ser mais feliz que agora? Sim, podem rir. Mas o Cristo me apareceu uma noite e me disse: Louco, o mundo tem de ser purgado com sangue e fogo, algo muito grande tem de vir, o fogo cairá sobre todos os homens e não vai ficar pedra sobre pedra. Isto me disse o Cristo”.

Em Abadon, o Exterminador, o autor volta à sua obsessão em torno ao apocalipse. Já nas primeiras páginas, Barragán tem uma visão que o faz desmaiar. Nos acordes finais do romance, o autor retoma o personagem e o episódio. Barragán vê um dragão vermelho, com sete cabeças, soltando fogo pelas narinas: “Porque os tempos são próximos. Este Dragão anuncia sangue e não ficará pedra sobre pedra. Em seguida, o Dragão será acorrentado”.

Deixemos o Louco com suas profecias de balcão – ou de bíblia, como quisermos – e voltemos a Sábato-personagem, conversando com Molinelli, em Paris, no La Coupole. Para Molinelli, a fissão do urânio anuncia o fim do Segundo Milênio. Urano e Plutão são os mensageiros dos Novos Tempos. “Atuariam como vulcões em erupção, assinalariam o limite entre as duas eras, a grande encruzilhada”. Mais tarde, o físico Sábato olha, no laboratório, o tubo que encerra o apocalipse. Seus olhos fixam o tubo de chumbo. Apesar de seu aspecto neutro, furiosos cataclismas em miniatura se produziam em seu interior, invisíveis e microcósmicas miniaturas do apocalipse que enigmáticas profecias haviam anunciado ao longo dos séculos.

Logo adiante Sábato evoca um diálogo com Molinelli, trinta anos depois, no mesmo café parisiense. Agora, quando a História cumpriu parte daquelas funestas predições, vêem-lhe à memória os dias vividos em Paris. No 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos haviam antecipado o horror final em Hiroshima. Dia 6 de agosto: o dia da Luz, da Transfiguração do Cristo no monte Tabor. Em 1938, Molinelli já falava de Urano e Plutão, estes mensageiros dos tempos novos, que agiriam como vulcões em erupção. “Veja que esses anúncios foram feitos em 1938, quando ignorávamos que os átomos seriam as chispas da catástrofe”.

Diante das forças que efervesciam nos tubos de ensaios, Sábato recua. Na obra que testemunha seu adeus à “cidade das claras torres”, começa sua carreira nas letras inaugurando um gênero literário que ainda muito pano para mangas aos bibliotecários, pelo menos até o dia em que for universalmente admitido que um latino-americano não pensa da mesma forma que um europeu.

Em Ernesto Sábato, el Hombre y su Obra, Angela Dellepiane percebeu muito bem este problema, reconhecendo que a maior parte dos artigos seria classificada como arte e literatura. Alguns outros, política. O resto poderia ser arrolado sob o denominador comum de miscelânea. Um número significativo destes artigos se situaria na categoria sátira. Embora o conteúdo pudesse entrar em não importa qual das categorias mencionadas, sua intenção é evidentemente satírica. Um conceito não é discutido ou apresentado. Ele é destruído pela força de um humor amargo e cético.

Escritor cuja obra exprime uma busca constante de sua identidade cultural, seu adeus à ciência foge a classificações, como aliás seus outros ensaios e novelas. O autor vê Nós e o Universo como uma espécie de balanço de suas experiências espirituais. Hoje, ele considera este livro com terna ironia, ao ver quanto ainda restava em sua consciência do universo que pretendia repudiar. Falando sobre o mesmo em O Escritor e seus Fantasmas, afirma:

“Como as energias que se movem sob a consciência são mais visionárias, enquanto escrevia estes ensaios, em boa parte equivocados, a autêntica revolta começava com um romance intitulado La Fuente Muda. Esta ficção permaneceu inconcluída e só publiquei alguns capítulos mais tarde. Seus gérmens iriam desenvolver-se em O Túnel e finalmente em Sobre Heróis e Tumbas. No entanto, o embate de minhas obsessões interiores contra a consciência prosseguiu também em Homens e Engrenagens. Neste ensaio, tentei explicar a mim mesmo pela primeira vez o drama do homem que se confronta com o universo abstrato e o porquê da arte como revolta e expressão”.

Não há romance sem revolta, escreve Camus em seu diário. Revoltado ante um universo que escapa a seu controle, o físico argentino escolheu ser demiurgo, isto é, ficcionista. Segundo suas próprias palavras, é exagerado em tudo. No fundo, um extremista. Viveu oscilando de um extremo a outro, enganando-se desmesuradamente. Apaixonado pela arte, aposta nas matemáticas. Quando chega ao fundo, as abandona com certo rancor. O mesmo ocorre com o marxismo e o surrealismo. “Bem... abandonar ... É uma forma de dizer, entendes – diz o escritor-personagem em Abadon, o Exterminador–. Se amamos intensamente, sempre sobram em nós os rastros da paixão”.

O fruto desta opção é O Túnel. Um criador reivindica o direito à palavra e o adquire, não sem sofrimento. Mas O Túnel não tem saída. A resposta do ex-físico só se fará escutar treze anos mais tarde. Antes de lá chegar, vejamos o caminho percorrido por Camus.

 

Da tuberculose à literatura

Outro será o itinerário do menino de Mondovi. Não é fácil imaginar o que poderia ter sido um homem se não houvesse sido o que foi. Em dado momento de sua vida, Camus foi obrigado a mudar de rumos em função de um bacilo, o de Koch. Segundo Quilliot, por razões de saúde, em 1937 Camus é proibido de apresentar-se ao magistério de filosofia. O magistério mataria o criador? A afirmativa não é lá tão evidente. Mas Camus vive em Argel, onde não existem, para um escritor, as mesmas condições que em Paris. Se um artista pode nascer em qualquer lugar, ele não pode viver em qualquer lugar. Sua enfermidade o obriga a escolher outro meio de sobrevivência, o jornalismo. A falência de seu jornal, que não aceita ceder à censura metropolitana, o fará mudar de cidade. Em Paris, o universo cultural é mais propício a seu desenvolvimento intelectual. O professor talvez não fosse constrangido a fugir da Argélia, mas o jornalista não pode ficar lá. Se hoje a França conta com mais um Nobel entre seus criadores, não seria totalmente fora de propósito estabelecer a relação entre este prêmio e a ação de um humilde bacilo. Nietzsche não atribuía sua saúde à doença? Camus, a propósito, nutria profunda admiração pelo criador de Zaratustra, a ponto de ter fixado seu retrato em seu escritório em Paris.

Entre a proibição de ensinar e o jornalismo decorrem alguns meses, período durante o qual Camus, como todos os mortais, necessitava comer. Recebe então um convite de Jean Coulomb, diretor do Instituto de Meteorologia argeliano, para um emprego “que nada tem de literário e sequer é interessante”. Sem ter escolha, Camus aceita um modesto salário para um trabalho de assistência técnica. Ao mesmo tempo, cria com amigos o Teatro do Trabalho, ligado ao Front Populaire e condicionado a um engajamento político total.

Em 1938, no mesmo ano em que Sábato vê sua vida transformada pelo abandono da ciência, Camus mergulha no jornalismo, introduzido por Pascal Pia, redator-chefe do Alger Républicain. Seu salário, como ocorre geralmente com pessoas cujo talento ultrapassa o nível do jornalismo, não é brilhante. Mas ele trabalha com uma ferramenta que o fascina, a palavra. Nessa época, redige as primeiras frases de A Morte Feliz, Calígula e “O Absurdo”, ensaio que se transformará mais tarde em O Mito de Sísifo. Sua obsessão pelo trabalho é tal, conta-nos Herbert Lottman em sua monumental biografia do pied-noir argeliano, que os dois gatos que lhe fazem companhia se chamam Cali e Gula. Seu trabalho mais pessoal neste período será “Miséria da Kabilia”, região superpovoada cujas terras mais férteis haviam sido confiscadas pela França.

Em 1939, ocorre o pacto Stalin-von Ribbentrop. O PC francês, obediente à política soviética, não quer a guerra. Camus, apesar de sua doença, tenta engajar-se. Em Carnets, anota a psicologia dominante da época: “pessoas se fazem operar com urgência por um médico famoso em Argel, com medo de serem mobilizadas”. O bacilo que corrói seus pulmões se mostra decisivo, já que desta guerra nada nos garante sua volta. O Alger Républicain está sob censura. Lottman nos conta os subterfúgios empregados por Camus e Pia para enganar os censores da metrópole, publicando excertos de clássicos como Pascal, Corneille, Diderot e Hugo, sem citá-los.

Nesta época nasce o Soir Républicain, do qual Camus é redator-chefe, jornal que desaparece depois de um mês, por falta de papel. Pia e Camus complicam as coisas para os censores. “Suprimamos os escombrídeos”, escrevem certo dia, atribuindo a frase a Ravachol, anarquista guilhotinado no século XIX. O censor pede um dicionário, os redatores dizem não o ter. Dia seguinte, o Soir aparece com mais um espaço em branco. Escombrídeos designa uma espécie de peixe da qual faz parte o atum. Mais tarde, o censor proibirá uma das Provinciales, de Pascal. E inclusive um texto de Giraudoux, superior hierárquico do oficial encarregado da censura.

Estamos nos primeiros dias de 1940. Em função da falta de papel, o Soir fecha suas portas. Para sair-se com elegância, o dueto Pia/Camus publica um número sem submeter os artigos à censura. Estratégia bem sucedida: no dia seguinte, uma ordem do prefeito de Argel proíbe definitivamente o jornal, o que provocará uma viva reação dos leitores. Lottman nos transmite algumas:

“M. Camus fez tudo para dar o golpe de misericórdia em uma obra que só sobrevivia graças ao sacrifício de alguns cidadãos devotados, para com os quais ele tinha o dever de ser um colaborador fiel e que, além disso, assegurava sua situação pessoal. É verdade que M. Camus fala agora de sua intenção de fixar-se em Paris, e o futuro do Soir Républicain não mais o interessa”.

Isto era um antigo projeto de Camus, como se pode ver, sempre segundo Lottman, em sua carta a Gabriel Audísio, datada de novembro de 1937:

“Atualmente sem situação definida, tenho grande necessidade de viver em Paris. Você crê que, com 24 anos, com uma licença em Letras, um diploma de Estudos Superiores de Filosofia, um ano de jornalismo prático (redação e diagramação) e dois anos como ator e diretor, eu possa encontrar um emprego em Paris que me permita viver e trabalhar? Para mim é muito importante viver aí o mais rápido possível”.

Ele chegará a Paris por convite de Pierre Lazareff, redator-chefe do Paris-Soir, recomendado por Pascal Pia. O novo jornal não é precisamente um jornal de opinião, o que obriga Camus a uma dolorosa conversão profissional. Em Carnets, em março de 1940, encontramos eco de seu estado de espírito:

“De onde se conclui que saber ficar só em Paris por um ano, em um quarto pobre, ensina mais ao homem que cem salões literários e 40 anos de experiência de vida parisiense. É algo duro, terrível, por vezes torturante, e sempre prózimo da loucura. Com esta vizinhança, a qualidade de um homem deve adquirir têmpera e se afirmar, ou perecer. Mas se perece, é porque não era suficientemente forte para viver”.

Com a evacuação da capital, o Paris-Soir se transfere para Clermont-Ferrand e, mais tarde, para Lyon. Durante este deslocamento, as preocupações de Camus não são precisamente jornalísticas. Ao chegar à Place de Jaude – lembra seu biógrafo por excelência – o radiador fumegava, faltava gasolina, óleo e água. Camus salta do carro e abre o porta-malas para saber se não tinha esquecido em Paris os originais de O Estrangeiro.

Paris-Soir sairá até 1943. Considerado então como órgão da colaboração, não mais é autorizado a reaparecer. Para Camus, o próximo jornal será Combat, cuja clandestinidade lhe permite dizer o que pensa. Mas não por muito tempo. Na conferência de imprensa após a recepção do Nobel, alguém lhe pergunta sobre sua saída do Combat. Ele responde que, após três anos de funcionamento, o jornal tinha necessidade de capital, e o capital não surge sem servidão. Camus retira-se então do jornalismo.

 

Sábato e os censores

Para uma certa crítica que não se dispõe a examinar uma obra antes de saber se o autor professa esta ou aquela ideologia, Sábato é alvo de uma gigantesca conspiração do silêncio. Apesar de suas condenações incisivas dos regimes totalitários, sejam de esquerda ou de direita, ainda hoje não falta quem lhe cobre explicações a respeito de três fatos absolutamente extraliterários.

— Convidado ao Chile, por ocasião da eleição de Allende, recusa o convite.

— Convidado três vezes para participar de um júri literário da Casa de las Américas, por três vezes dele se nega a participar.

— Convidado para um jantar com o general Videla, do qual participaram Borges e outros intelectuais, ele aceita o convite.

Como se o fato de jantar ou de não jantar com Allende, Castro ou Videla mudasse uma vírgula em Sobre Heróis e Tumbas, definido por Tamara Holzapfel como o romance do século, jornalistas lhe pedem explicações a propósito destas atitudes. Isto irrita profundamente o autor, que detesta repetir o que já escreveu e afirmou inúmeras vezes. Entrevistado por vários jornalistas, em encontro do qual resultou o livro Claves Políticas, o escritor insiste na publicação integral da seguinte declaração, datada de 10 de novembro de 1970, feita para a revista Atenea, da Universidad de Concepcion, e também publicada na imprensa chilena:

“O triunfo de Allende alegra não só os despossuídos como também aos que não o sendo anelamos o advento de uma comunidade justa. E a alegria é ainda maior por ser este triunfo o resultado da vontade livre e soberana de um grande povo. Creio que por si só a possibilidade de realizar uma profunda transformação em um regime que assegure as legítimas liberdades do homem já constituí um acontecimento histórico de gigantesca transcendência para o continente e mesmo para o mundo. Sua magnitude nos impõe o dever de denunciar a ignóbil propaganda e os fatos delituosos que, como conseqüência ilegítimas liberdades, buscam frustrar a grande tentativa. Tenho o orgulho de pertencer à imensa maioria de argentinos que, como na época de nossa independência política, sofremos como nossas as desgraças do povo chileno e nos orgulhamos de seus triunfos como se fossem nossos”.

Vista de nossos dias, após a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento do comunismo, esta declaração tem um merencório sabor de Guerra Fria. Quanto aos três convites para participar de um júri em Ciudad de Havana, ao contrário dos intelectuais que vendem suas almas por gloríolas e viagens, Sábato considera que jamais fez parte de um júri. Isto não surpreende os leitores de seus ensaios, onde seu desprezo por júris e críticos é constante. Já em O Túnel, Juan Pablo Castel fala de “uma praga que jamais pude entender. Fosse eu um grande cirurgião e um senhor, que jamais manejou um bisturi, nem é médico nem entalou a pata de um gato, viesse explicar-me os erros de minha operação, o que se pensaria?” Enfim, de qualquer forma o escritor poderia ter feito esta viagem, sem ter necessidade de participar do júri. Mas já em 78 tem suas razões para não dar o aval de seu nome ao regime instalado em Cuba, como o fizeram outros escritores latinos e europeus. Em Claves Políticas, bombardeado pelos jornalistas, declara:

“Não fui porque me veria obrigado a criticar alguns aspectos da revolução, e penso que não só é pouco ético agir assim quando não se participa da dura luta que ali se realiza, senão que, ademais, minhas críticas seriam utilizadas por inimigos. Não sou partidário de um socialismo ditatorial, embora seja feito por homens da qualidade de Castro. A falta de oposição partidária pode conduzir, mais cedo ou mais tarde, a extremos terríveis. Como o prova a tristíssima experiência da Rússia. Um escritor como eu, que crê na necessidade de um diálogo opositor e de certos valores legítimos da liberdade, não pode apoiar incondicionalmente um regime baseado em governo unipartidário. Por isso preferi não ir”.

Sábato duvida de um regime onde não se permite a um homem a livre expressão nem a divergência de opiniões. Os milhares de cubanos que, com risco de vida, abandonam a ilha neste final de século, em frágeis jangadas sustentadas por pneus, confirmam suas intuições. Como a data é inerente ao livro, convém lembrar que Claves foi publicado em 1972.

Nenhum outro escritor latino-americano ousou registrar a saga de Che Guevara, como Sábato em Abadon. Sua concepção de escritura permite, por sua estruturação, a mescla de transposição de mitos e história presente em uma mesma obra. Sua reação, quando questionado a respeito de suas atitudes políticas, é em geral violenta. Que o digam os jornalistas que o interrogam sobre o assunto:

“Há anos venho me expondo por minhas idéias. Isto não é palavrório. Perdi minhas cátedras, abandonei minha família, fui secretário da Juventude Comunista (quase aos gritos) para que hoje venham revolucionários de café decretar, da Calle Corrientes e até mesmo de Paris, muito cômodos, o que eu e escritores como eu devemos fazer”.

Quanto ao famoso jantar com Videla, reprovado várias vezes por intelectuais de um país cujo bem-estar depende, em parte, dos Mirages vendidos à Argentina, Alexandros Evremidis, na entrevista para Veja, quer saber se, naquela ocasião, falou da perseguição a artistas, intelectuais e refugiados políticos. Responde o franco-atirador de Santos Lugares:

“Este é outro motivo de angústia. Senti-me na obrigação de expor meus receios em relação à caça às bruxas. Infelizmente essa já é uma velha história aqui na Argentina, que agora está se repetindo com as mesmas desastrosas conseqüências para a liberdade dos homens e para o próprio desenvolvimento da nação, pois acaba provocando o êxodo de cérebros. Forneci ao general os nomes de algumas pessoas que merecem o orgulho do país e foram expulsas de seus lugares de trabalho ou destituídas de seus cargos”.

Em um país onde a realidade adquiriu de repente tonalidades kafkeanas, e onde uma palavra mal interpretada ou mal transcrita pode significar prisão ou morte, é preciso sublinhar a coragem do escritor que, ao contrário de boa parte dos intelectuais argentinos, decidiu não optar pelo exílio, sem jamais se ter calado sobre os abusos do regime. A censura na Argentina assumiu cores tragicômicas, quando o governador da província da Córdoba propôs às autoridades educacionais a proibição da matemática, pois esta seria subversiva. Sábato, consultado por La Nación para dizer o que pensa sobre a palavra vetor, censurada por um burocrata qualquer de Córdoba, manifesta seu pasmo:

“Achei que era piada. Me disseram que essa palavra havia sido questionada por não sei qual funcionário de Córdoba. Respondi que, se fosse censurada esta palavra, seria necessário censurar toda a física, pois toda força é representada por um vetor. A menos que se faça uma física sem um conceito de força, caso em que teríamos de suprimir não só os tratores, como também os tanques e aviões de guerra. Disseram-me que também se questionava a matemática moderna. Neste caso, deveríamos voltar a um exército de lanças e sabres, já que toda técnica moderna se baseia na matemática superior. Começando pela energia atômica, que pressupõe a teoria de Einstein e o cálculo diferencial absoluto. Este censor cordovês deveria propor a destruição de Atucha, para começar seu apocalipse privado.”

Em um livro há muito esgotado, El Caso Sábato, publicado em 1956 por “um grupo de cidadãos”, vemos mais de perto a revolta do autor face à arbitrariedade do poder. Nove documentos nos conduzem ao centro do conflito entre Sábato e a censura estatal. Diretor do semanário Mundo Argentino, o escritor denuncia as torturas e a falta de liberdade de imprensa durante o governo Aramburu. Sofrendo pressões por parte do delegado militar junto à revista, Sábato renuncia ao cargo de diretor. Sua carta de despedida é publicada nos jornais de oposição. Com o incidente, 35 redatores da revista se demitem em solidariedade. Mais tarde, em uma rádio estatal, Sábato retoma suas denúncias de torturas cometidas pela polícia. É então expulso da ASCUA (Asociación Cultural Argentina para Defensa y Superación de Mayo), o organismo responsável pela emissão. O escritor enviará mais tarde uma carta aberta ao presidente Aramburu, incitando-o a não se afastar do povo e a escutá-lo através da imprensa livre. Esta amarga passagem pelo jornalismo deixará uma impressão não menos amarga desta profissão no romancista. Em sua charla com Borges, diz:

— Seria melhor publicar um jornal a cada ano, ou a cada século. Ou quando ocorre algo verdadeiramente importante: “O senhor Cristóvão Colombo acaba de descobrir a América”. Título em oito colunas.

Borges sorri, mas observa que não sabemos jamais por antecipação quais fatos serão transcendentes:

— A crucificação do Cristo foi importante depois, não quando ocorreu. Por isso jamais li um jornal, segundo o conselho de Emerson.

Em um país onde, nos anos 70, desapareceram cerca de 200 intelectuais, uma questão se impõe: Sábato não tem medo de ficar? A resposta foi dada a Guillermo Montero Vasquez, em entrevista para IstoÉ:

“Uma pequena anedota poderá ilustrar melhor. Há pouco tempo, acordei assustado com as sirenes da polícia debaixo de minha janela. Devia ser umas 5 da manhã. Quando cheguei à janela para observar, ainda sonolento, dei-me conta de que estava numa pequena cidade dos Estados Unidos, onde daria nesse mesmo dia uma conferência. Respirei fundo e voltei a dormir”.

Sábato não aceitava, na ocasião, particularmente no caso da análise da situação argentina, que os jornalistas gravassem suas declarações. Em uma reunião em sua casa, em Santos Lugares, com jovens de vários países, uma jornalista ligou o gravador. O escritor calou-se, só voltando a falar quando o aparelho foi desligado. De uma gaveta, apanhou um documento de umas 50 páginas, Nuestro Tiempo de Desprecio. O que tinha a dizer sobre a situação política de seu país estava ali e logo seria publicado. Não podia permitir-se os eventuais equívocos de uma entrevista gravada, onde as pausas e anacolutos poderiam dar um sentido diferente ao que pretendia dizer. “Minha defesa é minha independência intelectual”.

Por outro lado, Sábato crê que o verdadeiro escritor só escreve sobre a realidade que “sofreu e mamou, isto é, sobre a pátria”. Em O Escritor e seus Fantasmas, afirma:

“Viajar é sempre um pouco superficial. O escritor de nosso tempo deve afundar na realidade. Viajar deve ser afundar, paradoxalmente, no lugar e nos seres de seu próprio rincão. O resto é coisa de frívolos, de meros cronistas, de snobes. Viajar, sim; mas para ver com perspectiva seu próprio mundo, para nele afundar. Assim como o conhecimento de nós mesmos passa pelos demais, só podemos indagar e conhecer a fundo nossa pátria conhecendo as que não nos pertencem”.

A expatriação total, segundo o escritor, é mais perigosa para um argentino que para um americano, inglês ou espanhol, cidadãos com nacionalidade forte e bem definida. “Nossa pátria é demasiado recém-feita, é demasiado frágil e vacilante para que possamos nos dar o luxo de ir viver definitivamente em Paris ou Londres”. Aceitando conscientemente todos os riscos de viver em uma Argentina onde o pensamento se tornou quase crime, durante a ditadura militar, ele escolhe Santos Lugares como seu quartel-general.

 

O mensageiro das Fúrias

Camus considera ser possível distinguir a literatura de consentimento, que coincidiria com os séculos antigos e clássicos, e a literatura de dissidência, característica dos tempos modernos. Na primeira, o romance está praticamente ausente. Quando existe, não diz respeito à História, mas à imaginação. É na segunda, na literatura de dissidência, que o gênero tomará forma. “O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição”. Assim, se é a noção do deus pessoal, criador e responsável por todas as coisas, que dá sentido ao protesto humano, chegamos à conclusão de que a novela é filha de uma cópula entre o cristianismo e o Ocidente.

Analisando as relações entre romance e revolta, Camus ironiza a magra definição proposta por um dicionário para romance: “história fingida, escrita em prosa”. Não seria o romance mais que isso? Ele cita um crítico católico, Stanislas Fumet, homem que, em função de sua filiação espiritual, sabe muito bem o que significa o gesto criador: “a arte, seja qual for seu objetivo, faz sempre uma culpável concorrência a Deus”. Camus se interroga sobre a necessidade que leva a maioria das pessoas a sentir prazer e interesse em histórias fingidas. Se a crítica “revolucionária” condena o romance como evasão de uma imaginação ociosa, qual é a realidade da qual fogem o autor e o leitor através do romance. “De uma realidade julgada excessivamente esmagadora? As pessoas felizes também lêem romances e sabe-se que o sofrimento extremo tira o gosto da leitura”.

Para Camus, a contradição humana reside no fato de que o homem recusa o mundo tal como ele é, ao mesmo tempo em que não aceita dele escapar. O mundo novelesco passa então a ser correção do mundo cotidiano, segundo uma aspiração profunda de cada ser humano. Fabricando destinos sob medida, o romance faz concorrência à criação e triunfa, provisoriamente, sobre a morte.

“Uma análise detalhada dos romances mais célebres mostraria, em perspectivas cada vez diferentes, que a essência do romance está nesta correção perpétua, sempre dirigida no mesmo sentido, que o artista efetua sobre sua experiência. Longe de ser moral ou puramente formal, esta correção visa primeiro à unidade e traduz uma necessidade metafísica. O romance, neste nível, é primeiramente um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada. Quando o grito mais dilacerante encontra sua linguagem mais firme, a revolta satisfaz sua verdadeira exigência e tira desta fidelidade uma força de criação. Embora isto fira os preconceitos da época, o maior estilo em arte é a expressão da mais alta revolta”.

Seis anos após a publicação destas reflexões, no 14 de dezembro de 1957, no anfiteatro da Universidade de Upsalla, um Camus mais maduro, mas apaixonado como sempre, insiste sobre as motivações profundas que impelem um homem a criar universos outros que não este. O artista vive uma constante ambigüidade, pois é “incapaz de negar o real e, ao mesmo tempo, eternamente dedicado a contestá-lo no que ele tem de inacabado”.

Em uma época na qual criar é criar perigosamente – continua o jovem Nobel – toda publicação é um ato e este ato o expõe às paixões de um século que nada perdoa. O criador será então uma ameaça aos donos do poder, aos quais nem sempre apraz que os homens marchem rumo a um mundo melhor.

“Que há de espantoso no fato de que artistas e intelectuais tenham sido as primeiras vítimas das tiranias modernas, sejam elas de esquerda ou direita? Os tiranos sabem que na obra de arte há uma força de emancipação que só é misteriosa para aqueles que não a cultuam. Cada grande obra torna mais admirável e mais rica a face humana, eis aí todo seu segredo”.

Quase ao final de seu discurso, Camus considera que o tempo dos artistas irresponsáveis acabou. Sábato toma ao pé da letra esta gravidade quase sacerdotal do romancista. Em O Escritor e seus Fantasmas, onde define sua condição de criador, ele vê no romance funções quase paralelas às propostas por Camus. Analisando este fenômeno típico da civilização ocidental, pergunta-se por que outras culturas não deram lugar a este gênero literário. Propõe algumas respostas.

Primeiramente, ignorando os poderes irracionais e relegando-os a um mundo inferior, o racionalismo provoca sua reaparição no mundo da imaginação. Segundo fato, o cristianismo que, expulsando para as regiões inferiores os instintos básicos do homem, quebrando a harmonia do homem pagão com o cosmos, cria a consciência intranqüila. Como diz Pascal, o cristão é um enfermo. Terceiro fator, a tecnocracia. Transformando o homem em coisa e amontoando-o nas grandes cidades, ela acentua sua solidão e provoca uma necessidade de comunicação através da ficção.

Em quarto lugar, a falta de estabilidade social, produzindo um sistema fluído de classes (por oposição às sociedades de castas religiosas ou clãs, ou sociedades medievais, que são invariáveis), acentua o sentimento de fugacidade do ser humano, sua angústia e seu ressentimento. Vê-se aqui o gérmen da análise que Sábato fará mais tarde da cultura argentina, nascida de várias imigrações européias que chegaram à pampa, esta metáfora do nada.

Quinto, a mecanização da palavra que, substituindo o relato oral pelo livro lido solitariamente, permite maior aprofundamento e análise dos problemas. Esta introspeção tem suas raízes na mentalidade analítica e na solidão crescente da cultura científica.

Para Maria Angelica Correa, Sábato assume a “clericatura” do escritor. O artista assume o papel de mártir. É o homem que, por sua revolta, continua não contaminado pelo meio ambiente. Em uma entrevista ao jornal argentino Nación, Odile Supervielle pergunta se ele considera efetivamente a revolta como condição essencial para o criador de ficções:

— Evidentemente, se é grande, se não pratica essa fabricação de bestsellers de temporada, que hoje substitui em boa parte aquela missão sagrada que Jaspers menciona nos trágicos gregos, é um rebelde, um delegado das Fúrias, mesmo sem sabê-lo e, é claro, sem querê-lo.

Nos históricos diálogos com Borges, este lembra que Bernard Shaw, quando foi à Rússia, aconselhou os soviéticos a fecharem o Museu da Revolução. “Claro, não deviam influir com o mau exemplo”, diz Borges. O contista argentino lembra ainda que na Rússia foram feitos dois filmes sobre Ivan, o Terrível. Um, nos começos da revolução, o bom filme, contra o tzarismo. O outro, quando Stalin se tornou um novo tzar, a favor do tzarismo. Responde Sábato:

— É que o artista é, por excelência, um rebelde. Por isso nunca se dá bem com as revoluções.

Sábato vê a literatura como um ato sagrado. Perguntei-lhe certa vez se, nesta época publicitária, um livro poderia ainda preservar esta sacralidade.

— É difícil, com efeito, mas é possível. As religiões são por sua natureza mesma sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas. Assim, surge certo tipo de religioso, talvez o mais profundo, que é, que tem de ser, anticlerical. As igrejas materializam a religião e a pervertem. Os místicos têm de voltar às fontes. O mesmo acontece com a literatura.

Ainda em seu diálogo com Borges:

— Quando a razão quis desconhecer as Fúrias, quando os filósofos do pensamento iluminista jogaram-nas pela porta, a pontapés, elas voltaram, às gargalhadas, a entrar pela janela. Não só com a magia, mas também com o romance, que é um fenômeno moderno. As Fúrias são invencíveis e além disso se vingam. Observe que no país onde o racionalismo chegou a ser uma praga, surgiu o maior conjunto de endemoniados que se conhece, desde o marechal Gilles de Rais até Genet, passando pelo marquês de Sade.

Em O Escritor e seus Fantasmas, o autor considera como grande literatura a que se propõe investigar a condição humana. Mas “a investigação feroz. A ausência de ferocidade já me faz duvidar sobre o autêntico propósito desse investigador. Se um homem não equaciona este problema com indignação, se um escritor não está impelido por uma despiedada fúria contra Deus ou contra o Nada, dificilmente terá possibilidades – ou vontade – de atravessar o abismo”.

Nestes ensaios sobre a condição do escritor, Sábato apoia-se em Donne, quando este diz que ninguém dorme na carroça que o leva da prisão ao patíbulo e, no entanto, todos dormimos desde a matriz até a sepultura, ou pelo menos não estamos totalmente acordados. “Uma das grandes funções da literatura: despertar o homem que viaja rumo ao patíbulo”.

Tamara Holzapfel, em Metaphysical Revolt in Ernesto Sábato’s Sobre Héroes y Tumbas, analisa esta função transcendental da novela:

“Em Sobre Héroes y Tumbas Sábato pinta os dramáticos conflitos e contradições do homem moderno e seu mundo e mostra como é possível descobrir-se um valor para si mesmo através da revolta metafísica, que não é produto nem do intelecto nem da razão, mas de uma experiência intensamente vivida. Como Camus, ele enfatiza que a vida humana em si mesma é o maior valor, que a existência do homem só tem sentido pela ativa cumplicidade dos homens contra o demônio no mundo. Ao nihilismo, ele opõe uma firme esperança que aumenta apesar de todos os sofrimentos que assaltam a humanidade. Sobre Heróis e Tumbas é um romance metafísico. Transcende a angústia que é muitas vezes a conclusão do pensamento existencial. Sua mensagem é um chamado à revolta, um chamado a transformar a desumanidade do mundo em imagem de homem, a humanizar o que é desumano“.

A ficção é, pois, a busca de um outro caminho, quando o escritor põe no mundo personagens que parecem ser de carne e osso, “mas que pertencem ao universo dos fantasmas. Entes que realizam por nós, e de certa forma em nós, destinos que a própria vida nos vedou”. O romance é então uma forma de fugir à imanência, “forma quase tão precária como o sonho, mas pelo menos mais voluntariosa”. Para o pensador de Santos Lugares, nisto reside uma das raízes metafísicas da ficção. A outra seria “essa ânsia de eternidade que tem a criatura humana, outra ânsia incompatível com sua finitude. A busca do tempo perdido, o resgate de alguma infância ou alguma paixão, a petrificação de um êxtase”.

Estamos já longe do escritor com impulsos suicidas e dos personagens perdidos em túneis, como Castel, Alejandra ou Martín. Em Sobre Heróis e Tumbas, desde as primeiras páginas já respiramos um outro ar, bem distinto dos miasmas que emanam de O Túnel, nestas reflexões de um Sábato/Bruno amadurecido:

“Resulta ainda mais curioso e paradoxal que os pessimistas se recrutam entre os ex-esperançados, pois para ter uma visão negra do mundo é necessário primeiro ter acreditado nele e em suas possibilidades. É ainda mais curioso e paradoxal que os pessimistas, uma vez desiludidos, são constante e sistematicamente desesperados mas, de certo modo, parecem dispostos a renovar sua esperança a cada momento, embora a dissimulem sob uma negra envoltura de amargurados universais, em virtude de uma espécie de pudor metafísico. Como se o pessimismo, para manter-se forte e sempre vigoroso, necessitasse de vez em quando de um novo impulso produzido por uma nova e brutal desilusão”.

Com a mesma aisance com que amalgama romance e ensaio, fatos reais e fictícios, homens reais e personagens (por exemplo, o diálogo de Bruno, criação de Sábato, com o padre Rinaldini, um religioso argentino, ou mesmo a biografia romanceada de Che Guevara), o autor passa do diálogo ao monólogo interior ou ensaio. Este método não nos permite não nos permite analisar sua Weltanschauung sem recorrer a seus romances. Em Sobre Heróis e Tumbas, através de Bruno, Sábato expressa o drama e a função quase sacerdotal do escritor. Em um extenso testemunho, Bruno percebe que só se punha a escrever quando se sentia só, infeliz ou desajustado em relação ao mundo. Esta necessidade não acomete, por exemplo, aos animais, cujas vidas transcorrem sem angústias.

“O homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras, ao converter em machado a primeira pedra afilada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia. Com suas mãos erige essa construção tão poderosa e estranha que se chama cultura e assim começa seu extravio. Deixou de ser um simples animal mas não chegou a ser o deus que seu espírito lhe sugere. Este ser dual e desgraçado se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, perdeu o paraíso terrestre de sua inocência e não ganhou o paraíso celeste de sua redenção. As mãos, e depois aquele machado, aquele fogo, mais tarde a ciência e a técnica irão cavando o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. A cidade será finalmente a última etapa de sua louca carreira, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação. E então seres descontentes, um pouco cegos e enlouquecidos, tentam recuperar às apalpadelas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade distinta da que infelizmente os rodeia, uma realidade amiúde de aparência fantástica e demencial mas que, coisa curiosa, é mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e se convertem em intérpretes e mesmo em salvadores (dolorosos) do destino coletivo”.

Um Deus, diz Sábato, não escreve romances.


 

 

O ROMANCE COMO RESPOSTA

 

 

O parto de Heróis e Abadon

Para quem escreve um romance a cada treze anos, tais partos não se farão precisamente sem dor. O Túnel vem à luz quando o escritor já é maduro. Sobre Heróis e Tumbas confirma em sua elaboração o caráter híbrido do gênero, defendido pelo autor. Em declarações a Sergio Leonardo, do jornal; portenho Clarín, Sábato explica como seu livro tomou forma definitiva. O cerne está em um primeiro romance, que havia começado a escrever em 1938, La Fuente Muda, título extraído de um verso de Machado: “está la fuente muda y está marchito el huerto”. Um de seus fragmentos, a morte de um delator do movimento comunista, foi publicada em Sur, mas o projeto permaneceu abandonado durante anos.

Tentando renovar a forma, Sábato escreve em duas colunas, lado a lado. À esquerda, os sonhos do personagem. À direita, a sucessão dos fatos. Vários elementos deste romance serão utilizados em Sobre Heróis e Tumbas. Em sua primeira edição, no momento, no momento do encontro de Martín com Tito d’Arcangelo no café, esta disposição gráfica é mantida, para depois ser abandonada nas reedições. Ao mesmo tempo, o autor trabalha em outro texto, Memorias de un desconocido, relato delirante de um nihilista, que está na origem do “Informe sobre Cegos”. Em Abadon, o Exterminador, refletindo sobre sua experiência como romancista, Sábato-personagem relata em detalhes as fontes do informe.

Em outro romance abortado, El Desafio, um jovem solitário e desesperado encerra-se em um hotel e decide suicidar-se caso Deus não apareça antes da alba. Aí está Martín. Estes esboços foram revisados de tempos em tempos, sem que o autor ousasse publicá-los, suspeitando que alguma coisa mais profunda os unia. Viajando com Matilde pela província de Humahuaca, vem-lhe a idéia da retirada de Lavalle e do relato da grandeza e decadência de uma tradicional família argentina. Estas são as bases de Heróis.

No começo, Alejandra se chamará Laura, mas este nome não agrada ao autor. Ela alimenta uma paixão incestuosa por seu irmão, que recebe vários nomes antes de se chamar Fernando, e mais tarde se torna o pai de Alejandra. Sábato retira este personagem de seu antigo projeto, Memorias de un Desconocido, e o parte em dois: Fernando Vidal Olmos, o satânico investigador do Mal, e Bruno Bassán, o generoso e equilibrado personagem enamorado pela mãe de Alejandra.

— O propósito final era continuar com a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos. Um primeiro, algo assim como um adagio melancólico. Um segundo, agitatto. Um terceiro, estridente e dissonante, o Informe, para em seguida voltar, na quarta parte, à atmosfera inicial de melancólica amargura.

Nas declarações a Maria Angelica Correa, o autor fala de suas hesitações ante a composição final do romance. Acreditava que a obra era contraditória em vários sentidos, mas precisamente nisto residia a vantagem do romance sobre o ensaio. Este tinha necessidade de ser coerente, ao contrário do romance. Vários leitores viram uma contradição entre o “Informe” e o resto da obra e que a saga de Lavalle não seria talvez necessária. Mas o romance tem como nova função a exploração desse território fantástico, a consciência do homem, como preconiza Sábato. Vemos em Heróis a unificação de impulsos e tendências aparentemente contraditórias e sem ligação entre si, mas que guardam um elo subjacente e oculto, como bem suspeitava o autor. Desvelando-o, a organização deste caos aparente se torna menos dolorosa para o escritor.

Nos Diálogos com Borges, Sábato volta a estas obscuras intuições que o conduziram à estrutura final do romance. Como o incesto, o crime fazia também parte de seu projeto original. Ou a irmã mataria o irmão, ou a filha mataria o pai, e depois poria fogo no Mirador.

— Estas obsessões iniciais, que determinavam o começo e o fim da obra, devem ser respeitadas, pelo fato mesmo que são obsessões, isto é, visões profundas de uma realidade que ainda não conseguimos distinguir com nitidez. Como se vê, pelo menos em meu caso, o final puxa tudo até ele. Penso que nisto a ficção se parece à vida, já que na vida nos movemos rumo a certos fins obsessivos.

Esta fixação do autor em torno a um fratri ou parricídio terá talvez raízes em sua infância. Carlos Catania, em Sábato: entre la Idea y la Sangre, conta-nos que por ocasião do nascimento de seu irmão mais jovem, Sábato, ainda criança, quase enlouqueceu e tentou estrangulá-lo. Uma saída foi encontrada, com extrema habilidade, por um médico que pede a Sábato para ocupar-se de Arturo. Assumindo a função de protetor, ele começa a prodigar-lhe afeição. Quanto ao incesto, esta obsessão reaparecerá em Abadon, na relação entre Nacho e Agustina. Cabe lembrar que se Olmos se enamora de Georgina, a mãe de Alejandra, é porque Georgina lembra Ana Maria, sua própria mãe.

Sábato sustenta em seus ensaios que os personagens são emanações ou hipóstases do criador. Em O Escritor e seus Fantasmas, declara não estar representado somente por Bruno, mas também pelos quatro outros personagens principais de Heróis. Nos diálogos de Martín adolescente com Bruno adulto, Sábato exprime as dúvidas e ilusões que ele mesmo havia tido entre essas duas idades, reservando para Fernando “minha parte pior, meu lado noturno”. Maria Angelica Correa nos propõe a hipótese de um só personagem masculino no romance, Martín/Bruno/Fernando em diversos momentos de sua vida, e um só personagem feminino, Ana Maria/Georgina/Alejandra, três mulheres que fascinam, por sua semelhança, Fernando e Bruno. Analisando a obra de Flaubert, Sábato insiste sobre o fato de que os personagens centrais de um romance representam sempre, de certa forma, seu criador, e ao mesmo o traem.

“Madame Bovary sou eu, que dúvida! Mas também sou Rodolphe, em minha incapacidade para suportar por muito tempo o temperamento romântico de Emma. Também sou M. Homais. Meu romantismo extremo não acabou por me converter em algo assim como um ateu do amor?”

Em ensaio intitulado Realidad y Realismo en la Literatura de nuestro Tiempo, Sábato vê as raízes desta atitude literária contemporânea em Dostoievski:

“Nas Notas do Subterrâneo, o herói nos diz: ‘de que pode falar com máximo prazer um homem honrado? Resposta: de si mesmo. Vou falar, pois, de mim’. Em toda sua obra falará de si mesmo, seja se disfarçando em Stravoguin, em Ivan ou Dimitri Karamazov, em Raskolnikov e até em generala ou governadora”. Pergunto a Sàbato que espécie de monstro autocensurado seria o homem-Sábato.

— O monstro que resulta de todas essas emanações. E não é autocensurado, pois seus personagens o expressam ou o projetam em todos seus atributos, maus ou bons.

Uma leitura atenta dos três romances nos confirma que o espírito de todos os principais personagens é sempre o mesmo. Encontramos frases, expressões e reflexões quase idênticas – senão iguais – em Bruno, Martín, Fernando, Alejandra, Castel e mesmo Quique, o cronista social. Por outro lado, em seus diálogos, os personagens enunciam seguidamente teses formuladas nos ensaios do autor. O diálogo de Fernando Vidal Olmos com a feminista Inéz González Iturrat, por exemplo, sintetiza em boa parte as idéias de Sábato sobre as diferenças entre homem e mulher expressas em Heterodoxia. O diálogo de Martín e Bruno com o padre Rinaldini sobre Borges, Guiraldes e Arlt, sobre a adaptação do romance a um novo continente são, em verdade, idéias de Sábato. Bruno, por sua vez, repete continuamente o que seu criador escreve em seus ensaios.

No “Informe” já temos um achado de Sábato, cujas inevitáveis conseqüências se farão presentes em Abadon. Vidal Olmos, personagem, já havia lido O Túnel, obra de seu criador. O que o choca na crônica daquele crime é a hipótese em torno à pele fria, característica dos cegos.

“Meu primeiro impulso foi o de correr ao manicômio e ver o pintor para averiguar até que ponto havia chegado em suas investigações. Logo compreendi que minha idéia era tão perigosa como a de investigar um polvorim no escuro acendendo um fósforo. Sem dúvida alguma, o crime de Castel era o resultado inexorável de uma vingança da Seita”.

Temos um personagem de Sábato que lê um romance de Sábato. Para o leitor perspicaz, o passo seguinte é perfeitamente previsível, e o autor não recua face ao desafio. O autor se torna personagem. Na primeira versão de O Escritor e seus Fantasmas, Sábato já se interrogava sobre sua intervenção no romance. Os teóricos do subjetivismo – dizia em 1963 – indicam-nos que o autor não deve intervir com seus comentários. Mas Faulkner, por exemplo, “não só intervém a cada instante, como também o faz a partir de uma espécie de personagem muito difícil de ser distinguida do próprio autor, sendo impossível saber onde terminam as idéias do misterioso personagem e onde começam as do mero autor”.

Ele não se traveste em personagem-escritor, recurso empregado por Huxley, Gide ou Durrel, entre outros. Em Abadon, é o próprio Sábato que mergulha na ficção que ele mesmo escreve, batendo papo, passeando, bebendo com seus personagens, inclusive esbofeteando-os. As acusações de narcisismo eram previsíveis, mas não o fazem recuar. Quando aparece em sua ficção com nome e sobrenome – disse certa vez – o mais simples é supor-se que se trata de uma autobiografia. “Mas nem sempre o fácil é o verdadeiro. Em realidade, quase nunca o é”.

Nada o impedia de ter escrito um romance tradicional, tendo como personagem um escritor, para evitar os mal-entendidos. Mas quis um romance em segundo grau, uma “metanovela”, o que lhe permitiu não somente investigar o problema do homem contemporâneo, como também o problema do criador em meio a esta crise. De início, havia escrito uma centena de páginas utilizando os recursos empregados por Gide em Os Falsos Moedeiros e por Huxley em O Contraponto. Considerou que esta experimentação já havia sido feita. Além disso, seria um recurso fácil e hipócrita.

— Pensei que devia levar o processo até suas últimas conseqüências, sem temor ao ridículo. Precisava aparecer no romance como um personagem a mais. Não como simples testemunha ou narrador, mas carnal e entranhadamente, enfrentando os próprios personagens como um ser humano, com o mesmo estatuto psicológico e ontológico. Em suma, não o testemunha-narrador puramente mental, senão o indivíduo com sua total complexidade, com suas idéias, mas também com seus delírios e paixões, travando luta contra suas emanações, pondo em cena, sangrentamente, esta peleia que Deus e o Demônio travam em nosso próprio coração.

Sábato conversa com Borges. Tema: religião. Pretender que o catolicismo está fundado sobre o bom senso é um não-senso, afirma Sábato. Sua base é o absurdo. Portanto, ele é inatacável. Impossível pensar logicamente a propósito de religião. Borges lembra que esta atitude já havia sido censurada por Deus no livro de Jó. Sábato ri: “o primeiro que aparece em sua própria obra. O primeiro escritor a fazer uma obra aberta”.

Vejamos o que quer dizer Sábato com esta nova forma de romance.

 

O romance total

Estamos face ao que Sábato chama de romance total, expressão seguidamente atribuída, por erro, a Vargas Llosa. Sábato a emprega em O Escritor e seus Fantasmas, publicado em 1963. Cabe sublinhar que neste livro estão incluídos ensaios publicados há alguns anos na revista Sur. Além disso, sua tese sobre o romance tem raízes na análise feita em Homens e Engrenagens, em 1951. Interrogado sobre o assunto, disse-me Sábato:

— Já disse que esta civilização dividiu o homem e o substituiu, ou tendeu a substituí-lo, por uma espécie de fantasma, aquela enteléquia dos iluministas. A filosofia posterior, a existencial, viu este problema. Mas nenhuma filosofia é capaz de realizar a síntese do homem desagregado. No máximo, pode expô-la e recomendá-la. Mas por sua própria essência conceitual, não pode senão recomendar conceitualmente a revolta contra o conceito puro, de forma que até mesmo o existencialismo resulta uma forma de paradoxal racionalismo. A autêntica revolta e a verdadeira síntese não podem provir senão daquela atividade do espírito que jamais separou o inseparável: o romance, que, por sua própria hibridez, a meio caminho entre a idéia e as paixões, destina-se a integrá-las.

Nenhum outro gênero, senão o romance, poderia abrigar a multiplicidade de temas encontrada em Heróis. A saber: a busca de uma identidade nacional, o peronismo, o artista e os problemas da criação, a solidão das grandes cidades, as dúvidas existencialistas de um adolescente, a luta homem/homem, o futebol argentino, o marxismo, a questão de Deus, Borges, a oposição cultural entre Europa e América Latina, o problema do mal no mundo, e daí por diante. Em Abadon, o Exterminador, ao mesmo tempo que Sábato-personagem vomita suas angústias como escritor, Sábato-escritor toma como personagem um outro Ernesto, o Che Guevara, e retraça sua gesta pelo sonho do homem novo que, como se vê agora, não passava de mais um acesso de febre da utopia stalinista.

Para Sábato, todo grande romance, como toda grande tragédia, pressupõe uma Weltanschauung. Ele cita Camus, para o qual criadores como Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux e Kafka são romancistas-filósofos pois, “ao contrário do pensador puro, que nos oferece em seus tratados um esqueleto meramente conceitual da realidade, o poeta nos dá uma imagem total, imagem que difere tanto desse corpo conceitual como um ser vivente de seu cérebro”.

Chegamos então, segundo nosso vizinho, ao crepúsculo dos pensadores em estado puro. Emigrada a um novo continente, o romance é chamado a substituir as funções da filosofia. O que mais escandaliza Sábato é a recusa desta nova concepção de romance, justamente o que representa seu maior valor. “Tous les écarts lui appartienent”, dizia Valéry com desprezo. Após Gide ter jogado ao lixo os manuscritos de Proust, um certo Henri Ghéon escrevia que Proust havia-se encarniçado em fazer justamente o contrário do que seria uma obra de arte, ou seja, um inventário de sensações, o balanço de seus sentimentos em um quadro sucessivo, jamais de conjunto, da mobilidade de paisagens e de almas. “Isto é, este presunçoso critica precisamente o que é a essência do gênio proustiano”, urra Sábato.

Em O Escritor e seus fantasmas, o autor tenta sintetizar os atributos centrais de “nuestra novelística”:

1) Uma descida ao ego. Enquanto os escritores do último século do último século se lançavam à descrição objetiva do mundo exterior, o romancista de hoje volta-se para o mistério de sua própria existência e para a visão da totalidade sujeito-objeto, a partir de sua consciência.

2) O tempo interior. O tempo das antigas ficções era era o tempo dos relógios e calendários. Mergulhando em seu ego, o escritor deve abandoná-lo, pois não está mais no espaço, mas no tempo anímico que corre por suas veias e não mais se mede em horas ou minutos, mas em esperas plenas de angústia, lapsos de felicidade ou de dor, êxtase.

3) O subconsciente. Descendo rumo ao ego, o romancista não se confronta unicamente com a subjetividade à qual nos havia acostumado o romantismo, mas também com as regiões profundas do subconsciente, o que nos dá uma tonalidade fantasmática, noturna, que lembra sonhos ou pesadelos, como em O Processo ou nos quadros de Van Gogh, Chirico ou Rouault. “Neste subsolo não rege a lei do dia e da razão, mas a lei das trevas”.

4) O ilogismo. No mundo noturno, nem o determinismo do mundo dos objetos nem sua lógica são válidos. Na exploração destes abismos, o escritor deve abandonar seus velhos instrumentos da razão e das ciências, tão caros ao espírito do século XIX.

5) O mundo a partir do ego. Não mais existe a antiga e abstrata divisão entre o sujeito e o objeto, nem a concepção do mundo e da paisagem como as concebiam os romancistas de antes. Tal universo era independente dos personagens. No romance atual – ou pelo menos em suas representações mais significativas – o cenário surge a partir do sujeito, com seus estados de alma, suas visões, seus sentimentos e idéias.

6) O Outro. Se, como dizia Kierkegaard, chegamos à universalidade interrogando nosso próprio ego, em virtude desta dialética existencial começamos a perceber a existência do Outro, na mesma medida em que o homem parece perder-se em seus próprios abismos. A ficção avança rumo à intersubjetividade, rumo à descrição da realidade total a partir de distintos egos.

7) A comunhão. Reduzindo o romance a um conjunto de seres que vivem a realidade a partir de suas próprias almas, o romancista se confronta com o problema da solidão e de sua comunicação com os demais.

8) O sentido sagrado do corpo. Como o ego não mais existe em estado puro, mas encarnado, a comunhão entre as almas é uma tentativa híbrida, em geral condenada ao fracasso entre os espíritos encarnados. Pela primeira vez na história das letras, o sexo adquire uma dimensão metafísica. O amor se consuma por intermédio da carne. Neste século, o espírito puro foi substituído pelo espírito encarnado.

9) O conhecimento. A literatura se torna um instrumento do conhecimento do homem, adquire uma nova dignidade à qual não estava habituada. Quando se acreditava que a realidade deveria ser apreendida tão-somente pela razão, a literatura parecia estar relegada a uma tarefa inferior, herdeira envergonhada da mitologia e da fábula. Era lazer, artifício ou, no melhor dos casos, criadora de beleza, jamais justificada ante as instâncias do conhecimento e da verdade. “O romance de hoje, por ser o romance do homem em crise, é o romance dos grandes temas pascalianos. Não só se lançou à exploração de territórios que aqueles romancistas sequer suspeitavam, como também adquiriu uma grande dignidade filosófica e cognoscitiva”.

Em abril de 1964, Sartre renega sua obra de ficção. Diz que um romance como A Náusea não tem sentido quando em algum lugar do mundo uma criança morre de fome. Os males metafísicos do homem deviam ser renegados a um plano secundário, como um luxo e uma traição. Estas declarações chocam Sábato. Preocupado com a miséria e injustiça social, recusa-se a aceitar uma afirmação que invalida a literatura e própria arte. No ensaio “Sartre contra Sartre”, considera que “nem a música de Bach, nem a pintura de Van Gogh, nem a poesia de Rilke, são úteis para salvar a vida de uma única criatura desamparada. A arte tem outras possibilidades e outras missões”.

Em Heterodoxia, sustenta que o pensamento e a literatura de Sartre decorrem de sua feiúra. Esta hipótese é confirmada pelo próprio Sartre em sua autobiografia, quando se escreve como um menino terrivelmente feio, um sapo. Sábato faz um paralelo entre Sócrates e Sartre: ambos são feios, ambos detestam mulheres, sentem repugnância por tudo que é mole e viscoso, pelo contingente e pelo sensorial. É o olhar do outro que vai determinar, segundo Sábato, o pensamento e mesmo a obra de ficção de Sartre. “Tenho vergonha, logo existo”, seria o aforismo que sintetiza sua obra.

“Sendo nosso corpo o que provoca e permite o olhar dos demais, o corpo toma em Sartre uma importância metafísica que não tivera em nenhum sistema anterior. Ocupa um lugar tão preponderante em sua obra de ficção, que sua narrativa mais profunda se intitula A Náusea. Todos seus personagens vivem obcecados pela carne”.

Isolando em Sartre este sentimento de inferioridade típico dos feios, Sábato se interroga:

“Introvertido e solitário, um ser que vê o semelhante como um inimigo, e com uma infância marcada pelo sentido cristão do dever em relação ao próximo, aterrorizado pelo mundo e ao mesmo tempo sentindo-se culpado por seu egocentrismo, como estranharmos que preconize a ação política e o coletivismo?”

O autor insiste em precisar que não busca uma explicação puramente psicológica de uma filosofia ou atitude política. “É por demais sabido que fazemos parte de um contexto social e que um pensamento, como o de Sartre, não poderia ter surgido entre os polinésios ou no período medieval”. Sábato pretende mostrar que se as condições históricas são propícias a uma doutrina, esta não se manifesta em não importa qual homem, mas no que é psicologicamente mais receptivo. Chama em seu socorro Mounier, que faz uma interpretação semelhante da psicologia de Sartre. É uma fragilidade originária, uma sensação de fraqueza ante um universo hostil, opaco e ameaçador, o que o conduz a estabelecer o valor do engajamento, “do mesmo modo que a falta de uma qualidade pode nos empurrar até uma profissão que a compensa: a tartamudez de Demóstenes. Sartre, ao repudiar sua literatura, ao mesmo, inclina-se a essa inautenticidade que denunciou toda sua vida e que é denunciada pelo protagonista de seu romance mais revelador”.

Com a admiração que manifesta em toda sua obra ao pensador francês, Sábato julga inimaginável que um homem como Sartre afirme por convicção teórica uma concepção tão precária e vê uma oculta antinomia entre sua visão filosófica e sua militância política.

“Como explicar, de outro modo, que uma mente como a sua não perceba que esta tese conduziria não só ao repúdio de um romance metafísico como também à extirpação da arte, da ciência pura e da filosofia em sua totalidade? De que modo pode salvar uma criança, não digo a música de Bach, mas a teoria de Einstein ou a fenomenologia de Husserl? A aplicação conseqüente do critério sartriano nos obrigaria a renunciar às mais altas atividades do espírito para apenas lutar pelos ideais políticos”.

Em Abadon, o Exterminador, com a linguagem mais solta do ficcionista, Sábato aborda o tema de maneira mais incisiva:

“É como se a medicina fosse desqualificada com a atitude de Guevara. Outra coisa: quando foi que um quarteto de Beethoven serviu para promover a Revolução Francesa? Teria de se negar a música por essa ineficácia? Não só a música, como a poesia, quase toda a literatura e quase toda arte. Entendo que Porto, que é um excelente rapaz, tenha decidido sacrificar sua opera omnia. É um sacrifício que devemos respeitar. Mas que depois desta incineração nos queira obrigar em praça pública as obras completas de Homero, Dante, Virgílio, Horácio, Cervantes, Shakespeare, Tolstoi, Musil, Proust, Joyce, Thomas Mann e Kafka, me parece exagerado”.

Mais adiante, em uma discussão com amigos, Sábato-personagem prossegue:

“O dilema não é literatura social ou individual. O dilema está entre o grave e o frívolo. Quando morrem crianças inocentes sob as bombas no Vietnã, quando são torturados os seres mais puros nas três quartas partes do mundo, quando a fome e a desesperação predominam na maior parte do mundo, entendo que se clame contra certo tipo de literatura. Mas contra qual? Existe o direito de se rechaçar o jogo frívolo, o mero engenho, a diversão verbal. Mas deve-se ter cuidado ao repudiar os grandes e solitários criadores que constituem o mais terrível testemunho do homem. Pois eles também lutam pela dignidade e salvação”.

Pertencendo a esta raça de possessos para os quais o mais importante é obedecer a seu demônio interior, sem preocupação alguma com regras ou formas de expressão, Sábato é uma espécie de Nietzsche, que perturbava os intelectuais de sua época, que não sabiam se lidavam com um poeta ou um filósofo. Obedecendo a seus instintos, ignorando as palavras de ordem dos teóricos, ele inaugura, na América Latina, uma nova forma de romance.

 

Um outro Ernesto

Recusando a luta contra Deus, escrevia Camus, o homem se engaja no tempo, na revolução, movimento que mata homens e princípios. Movimento este que terá, na pessoa de um outro Ernesto, também argentino, sua encarnação no continente latino-americano. Como Camus, Sábato não acredita na troca de funções, o escravo substituindo o senhor: “se temos de construir uma nova sociedade não há de ser sobre a base de uma mudança tão-somente econômica, mas de uma nova atitude frente ao homem”. Gato escaldado pelo stalinismo, sempre prudente face às Revoluções que logo se tornam “revoluções”, Sábato não hesita em saudar em Ernesto Guevara a esperança de uma América Latina independente. A calorosa correspondência entre estes dois Ernestos (anexos 2 e 3) revela uma admiração recíproca. Estamos imersos nos anos 60. (Vista de 1994, a carta do Che padece de um romantismo atroz, e por isso merece registro. Fidel, o Libertador, mostra sua face de tirano. Ante a Cuba atual, dos marielitos e balseros, Guevara revela estar navegando em um mundo onírico).

Vários críticos acusaram Sábato de ter compromissos com a ditadura militar argentina, pelo fato de ter-se recusado ao exílio. Cabe lembrar o discurso proferido na Universidade de Paris, alguns dias após a morte do Che. Sábato vê no guerrilheiro o homem que encontrou a morte combatendo não somente pela elevação do nível de vida dos povos miseráveis, mas também por um ideal mais valioso, pelo ideal de um Homem Novo:

“Assim acabou a vida do comandante Guevara. Indefeso, após sofrer horas intermináveis com muitas balas em seu corpo enfermo, sem médico, com a asma que agravava de modo insuportável sua dor. Houve um latino-americano suficientemente covarde para aproximar-se daquele corpo dorido, com a suficiente coragem para sacar o revólver diante de seus olhos, dirigi-lo ao coração e disparar esse balaço miseravelmente histórico. Jamais saberemos o que disse Ernesto Guevara nesses momentos, mas podemos imaginar que seu olhar foi muito triste. Não por sua esperada morte, mas pelo fato de ter-lhe sido dada de tal forma e por um boliviano. Não por um ranger dos Estados Unidos, mas por alguém que de certa forma era seu próprio irmão”.

A data é inerente à obra. O discurso foi proferido em novembro de 1967, em meio ao clima emocional criado pela morte de Guevara. Vista de hoje, quando milhares de pessoas arriscam a vida no mar em balsas improvisadas para fugir da ilha, Cuba talvez fornecesse a Sábato uma visão distinta da obra do Che. Seja como for, a admiração do escritor pelo guerrilheiro está em Abadon, o Exterminador. Através do relato de Nepomuceno, o “Palito”, Marcelo Carranza ouve a saga do Che. O personagem Palito seria um companheiro de armas do guerrilheiro. Sábato mescla história e ficção. Boa parte de seu relato está baseado no diário de campanha de Inti Peredo. Em carta de despedida a Fidel, diz Guevara:

“Outras terras do mundo reclamam o concurso de meus modestos esforços. Posso fazer o que te está negado por tua responsabilidade à frente de Cuba e chegou a hora de separarmo-nos. Deixo aqui o mais puro de minhas esperanças de construtor e o mais querido entre meus seres queridos. Libero Cuba de qualquer responsabilidade, salvo a que emana de seu exemplo. Se a hora definitiva me chegar sob outros céus, meu último pensamento será para ti, Fidel”.

Abadon traz ainda a transcrição de um outro trecho de carta, esta endereçada a seus pais, que evidencia o caráter romântico e quixotesco do empreendimento do guerrilheiro:

“Queridos velhos: sinto outra vez sob meus talões o costilhar do Rocinante, volto à estrada com minha adarga no braço. Há coisa de dez anos, escrevi-lhes outra carta de despedida. Segundo recordo, lamentava-me de não ser melhor soldado e melhor médico. O segundo já não interessa, médico não sou dos piores... Pode ser que esta seja a definitiva. Não a busco, mas está dentro do cálculo lógico. Se é assim, vai um último abraço. Sempre os quis muito, só que não soube expressar meu carinho. Sou extremamente rígido em minhas ações e creio que às vezes não me entenderam. Por outro lado, não era fácil entender-me. Creiam-me, pelo menos hoje”.

Che teve sorte. Morreu como herói. Seria interessante imaginar sua reação face ao encarceramento de opositores e à fuga, em 1980, de quase duzentos mil cubanos para os Estados Unidos. De qualquer forma, Sábato toma como personagem uma espécie de mito, a figura do guerrilheiro não coincidindo necessariamente com o homem Guevara.

A evocação de Palito mostra um homem que acredita mais no moral e na disciplina que no poder das armas. Um guerrilheiro deve manter a decisão de combater seus ideais até a morte. Esta disciplina não é a dos quartéis, mas a de “homens que sabem pelo que lutam e que sabem que isso é grande e justo”. À noite, segundo o relato de Palito, Che dava um curso de francês:

“Não é uma questão de dar tiros, dizia, só de dar tiros. Algum dia vocês terão de ser dirigentes, se triunfarmos nesta guerrilha. O dirigente, dizia, tem de ter não só coragem, tem que se desenvolver ideologicamente, tem de ser capaz de análises rápidas e de decisões justas, tem de ser capaz de fidelidade e disciplina. Mas, principalmente, dizia, tem de constituir o exemplo de homem que queremos em uma sociedade justa”.

Palito confessa não compreender muito bem o que Che queria dizer “homem novo”. Deduzia que deveria ser mais ou menos como o Che: “com espírito de sacrifício pelos outros, com coragem e ao mesmo com compaixão e...” O companheiro de armas de Guevara hesita. Mas acaba fazendo uma descrição quase evangélica do Che:

“Dizia que não se podia lutar por um mundo melhor sem isso, sem amor pelo homem e que isso era uma causa sagrada, não uma simples questão de palavras, que a cada dia, a cada hora, tinha-se de prová-lo. Muitas vezes o vimos tratar sem rancor soldados que pouco antes haviam atirado para matar, como curava suas feridas, mesmo gastando os medicamentos que para nós eram escassos”.

Um episódio narrado por Palito nos conduz ao Camus de Os Justos. Che havia ordenado uma emboscada e devia comandar o ataque. Mas o primeiro caminhão passa e nele havia dois soldados adormecidos ao lado de porcos. Che não ataca. É preciso ser uma espécie de santo leigo –acusação aliás feita a Camus – para nutrir esta ternura pelo inimigo que não pensaria duas vezes para apertar o gatilho.

“Naquela noite, ao redor do fogo, nos explicou que uma atitude como aquela talvez pudesse ser considerada como uma debilidade e que debilidades daquele tipo em certos momentos poderiam ser fatais para a guerrilha. Mas ali surgiu de novo o homem novo. Matar de tocaia dois soldados indefesos, adormecidos e inocentes, porque afinal de contas combatiam recebendo ordens, seria realmente uma debilidade. Seria possível criar o homem novo pelo qual lutávamos sobre a base de atrocidades como aquela? Seria possível se chegar a fins nobres por meios ignóbeis?”

Nesta romântica defesa da guerrilha, Sábato deixa entrever que seria legítimo matar os dois soldados caso estivessem acordados, mesmo sendo inocentes. Dos diários do Che e Inti Peredo, o autor passa às notícias da imprensa cotidiana. Eis-nos de novo reenviados às páginas policiais. Desta vez não mais se trata de uma crônica policial, mas da realidade política da América Latina.

“Calcula-se que o comandante Ernesto Che Guevara deve cair de um momento a outro, pois está rodeado há vários dias por um círculo de ferro. Aqui, a terra e as picaduras transformam a pele de qualquer ser humano em um manto de miséria. A vegetação inextricável, seca e coberta de espinilhos, torna impossível qualquer deslocamento, mesmo de dia, a não ser pelos arroios estreitamente vigiados. Não é possível entender como os guerrilheiros podem suportar este cerco de sede, fome e horror. ‘Este homem não sairá vivo’, diz um oficial”.

Fim inexorável. Prisioneiro e ferido, Che encoraja, na ficção de Sábato, o soldado que deve executá-lo:

“Não me atrevia a disparar. Nesse momento vi o Che muito grande, enorme. Seus olhos brilhavam intensamente. Senti que vinha por cima de mim e senti uma tontura. Esteja tranqüilo – me disse – . Aponte bem”.

Sábato tem profundo desprezo pelas esquerdas festivas. Em seu vocabulário, as gauches caviar. Admira quem não hesita em abandonar uma situação confortável para lutar. No mesmo livro, comentando a célebre afirmação de que a literatura é inútil enquanto há uma criança no mundo morrendo de fome, Sábato-personagem explica sua visão do Che:

“Não negou a medicina. Abandonou-a. Deixou que outros fizessem medicina. Além disso, declarou: o dever de um autêntico revolucionário é fazer a revolução. Um sapateiro é sapateiro enquanto faz sapatos, do contrário é um mistificador. Devemos admitir, no entanto, que a revolução não se faz só com fuzis. Faz-se também com livros, começando pelos que escreveram, como Marx ou Bakunin”.

As letras ou o fuzil. Nestes dois Ernestos, vemos pessoas que tudo jogaram – seus empregos, uma situação confortável e mesmo suas vidas – em uma aposta pelo homem.

 

Em torno a uma queda

Em 1937, Camus tenta seus primeiros passos no romance. La Mort heureuse, obra póstuma, é seu primeiro recurso a um utensílio que lhe permitirá expressar sua visão do homem e do mundo. Um jovem sensível busca meios para comunicar sua revolta. Camus dominará o gênero cinco anos mais tarde com O Estrangeiro, este livro tão próximo de O Túnel. Sua segunda incursão no gênero surgirá outros cinco anos depois, A Peste. O autor, retomando alguns temas de Calígula, deixa uma esperança: a ação coletiva dos homens pode fazer face ao Mal no mundo.

Em A Queda, romance que a rigor poderia ser considerado como um conto longo, o personagem se entrega a uma confissão. Diz o próprio Camus no resumo enviado ao editor:

“Refugiado em Amsterdã, cidade de canais e de luz fria, onde representa o ermitão e o profeta, um velho advogado espera ouvintes complacentes em um bar suspeito. Ele tem o coração moderno, isto é, não suporta ser julgado. Tenta então fazer seu próprio processo, para melhor julgar os demais. Estende aos outros o espelho no qual se olha. Onde começa a confissão, onde a acusação? Aquele que fala no livro faz seu próprio processo ou o de seu tempo?

O cerne do romance é uma queda. O personagem está em Amsterdã e se chama Jean Baptiste Clamence, caricatura do João Batista clamans in deserto dos Evangelhos. A escolha da cidade não é acidental:

“Estamos no coração das coisas. Você notou que os canais concêntricos de Amsterdã se parecem aos círculos do inferno? O inferno burguês, naturalmente, povoado de sonhos ruins. Quando chegamos do exterior, à medida que passamos estes círculos, a vida com seus crimes se torna mais espessa, mais obscura. Aqui estamos no último círculo. O círculo dos...”

Clamence não conclui a frase, sua confissão apenas começa. Camus diz ter escolhido a cidade como cenário por julgá-la feia, julgamento insólito para quem nasceu na Argélia e mesmo para quem vive em Paris. “O fato de lá estar por si só constituía um castigo: ambiência perfeita para um juiz-penitente”. Mas por qual crime Jean-Baptiste se penitencia?

Em verdade, não se trata propriamente de um crime, mas de uma omissão. As pontes de Amsterdã lembram a todo instante, a Clamence, uma outra ponte em Paris, o Pont Royal, e uma outra noite. Na madrugada, ao voltar para casa, ele vê uma forma inclinada sobre o parapeito da ponte, olhando o Sena. Ele dá alguns passos e a mulher se joga no rio. Clamence, escutando o ruído do corpo que cai, não pára. Nem mesmo se volta com o grito da mulher que morre. “Esqueci o que pensei então. Muito tarde, muito longe... ou qualquer coisa do gênero. Eu continuava a escutar, imóvel. Depois, devagar, sob a chuva, me afastei. Não avisei ninguém”.

Este relato, considerado como o mais pessoal de Camus, propiciou várias aproximações entre autor e personagem. Como Camus, Clamence era mulherengo. “É difícil confessá-lo, mas eu trocaria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bela figurante”. Mas também tinha princípios: “a mulher dos amigos era sagrada. Simplesmente eu cessava alguns dias antes, com toda sinceridade, de nutrir amizade pelos maridos”.

Muitos detalhes particulares da vida de Camus, tais como seu amor ao esporte e ao teatro, sua ligação com o mar e o sol, a indiferença aos bens materiais, estão presentes em Clamence. O ponto central do relato, o episódio da queda, parece ter sido vivido pelo autor. Em declarações a Herbert Lottman, Suzanne Agnely, uma de suas amadas lembra que uma noite, bêbado, Camus lhe confessara ter assistido um suicídio no Pont des Arts, e que não havia sentido remorso algum por não ter salvo a vítima.

Torturado por esta lembrança, Clamence conta sua história a um desconhecido, em um boteco no bairro dos marinheiros em Amsterdã. Ele deseja – sem muito entusiasmo – uma segunda chance:

“Pronuncie você mesmo as palavras que, ao longo dos anos, não cessaram de ressoar em minhas noites, e que direi por sua boca: ó jovem, joga-te mais uma vez nas águas para que eu tenha uma segunda vez a chance de nos salvarmos os dois!”

Assim Camus encerra sua obra como romancista. Antes de morrer, trabalhava em outro romance, Le Premier homme, quarenta anos da vida de um homem. Esta obra, da qual foram escritas 145 páginas, é certamente o texto mais autobiográfico produzido por Camus. No dia 4 de janeiro de 1960, um acidente de estrada – estúpido como todos os acidentes de estrada– rouba a vida a Camus e a nós sua obra mais ambiciosa.


 

 

AS NOVAS FORMAS DA REVOLTA
EM UMA NOVA GEOGRAFIA

 

 

Romance e sonho

As hipóteses de Sábato e seus personagens a respeito de Deus, como vimos no primeiro capítulo, lembram as suspeitas gnósticas sobre o suposto criador deste mundo. Um outro aspecto ligará Sábato a tradições pré-cristãs, a importância dada ao universo onírico. Muitos são os sonhos descritos pelos personagens de Sobre Heróis e Tumbas. Alejandra sonha continuamente com fogo e pássaros. Martín tem três sonhos, nos quais um mendigo lhe sussurra palavras ininteligíveis, põe um saco no chão, abre-o e mostra o conteúdo, que Martín tenta em vão decifrar. “Suas palavras eram tão desesperadamente indecifráveis como as de uma carta que sabemos ser decisiva para nosso destino, mas que o tempo e a umidade borraram e a tornaram ilegível”.

O “Informe sobre Cegos” é, da primeira à última frase, um gigantesco pesadelo. Don Pancho, o avô de Alejandra, vive sobre a estreita fímbria que separa o sonho da realidade. Mas o sonho mais terrífico de Heróis está no “Informe” e serve para esboçar o perfil psicológico de Fernando Vidal Olmos. Desde menino, Olmos era perseguido por um sonho que teimava em repetir-se. Via uma criança e essa criança era ele mesmo. Mas ele se via e se observava como se fosse um outro. A criança observada jogava em silêncio um jogo que Olmos não conseguia entender.

“Eu o observava com cuidado, tentando penetrar o sentido de seus gestos e olhares, das palavras que murmurava. De repente, olhando-me gravemente, me diazia: observo a sombra desta parede no chão. Se esta sombra se mover, sei lá o que poderá acontecer. Em suas palavras, havia uma sóbria mas horrenda expectativa. Eu também começava então a controlar a sombra com pavor. Não se tratava do trivial deslocamento que a sombra pudesse ter com o simples movimento: era outra coisa. Assim, eu também começava a observar com ansiedade, até notar que a sombra começava a mover-se, lenta mas perceptivelmente. Acordava suando e gritando. Que era aquilo? Que advertência? Que símbolo? Deitava-me cada noite com medo do sonho. Cada manhã, ao acordar, meu peito se enchia de alívio ao comprovar que, uma vez mais, havia escapado daquele perigo. Em outras noites, chegava o momento terrível. Via de novo a criança, a parede e a sombra. De novo a criança me olhava com gravidade, novamente pronunciava suas palavras singulares e, enfim, depois de me observar com ansiosa expectativa, começava a mover-se e deformar-se. Eu acordava suando e aos gritos”.

Este sonho atormenta Vidal Olmos durante anos. Como quase todos os sonhos, este tem uma significação oculta e anuncia qualquer coisa que acontecerá um dia. Em Abadon, o Exterminador, o autor continuará a interrogar os sonhos. Em um primeiro momento, temos os dois sonhos de M. Em um deles, encerrado em um frasco de vidro, buscando apoio com as mãos na parede, agitava-se um homúnculo de uns vinte centímetros de altura. Seus movimentos eram de ameaça. Deslocava-se de um lado a outro do frasco, raivosamente. Em seguida, imobilizou-se, olhando para cima, de onde M. o observava.

“De repente, gritou algo, que ela não pode ouvir, pois tudo se desenvolvia como em um filme mudo. Mas ficou aterrada com aquele terrível grito inaudível e por sua expressão. Uma expressão pavorosa, explicou”.

No segundo sonho, um certo Ricardo deve operar alguém, que estava estendido em uma cama e iluminado pelos projetores do quirófano. Ricardo lhe afasta o cobertor e vê que está envolto em bandagens de múmia. Faz um corte no tecido empoeirado, e depois na pele pergaminhada ao longo do peito, sem que saia uma só gota de sangue. Das entranhas surge um enorme verme preto do tamanho da cavidade aberta, de uns trinta centímetros de comprimento, que começa a se mover e a emitir pseudópodos. Em poucos segundos, o verme se metamorfoseia em um minúsculo diabo preto que salta sobre o rosto de M.

Sábato-personagem a olha, estupefato, pois conhece seus dotes de clarividência. O autor, sempre travestido em personagem, também tem seus pesadelos. Vê Alejandra, com seus longos cabelos negros agitados pelas chamas do Mirador, como uma tocha viva correndo até ele para pedir socorro. “Sentiu o fogo em seu próprio corpo, sentiu como crepitava sua carne e como se agitava sob sua pele o corpo de Alejandra. Uma dor aguda e a ansiedade o despertaram”.

Muitos são os sonhos mencionados em Abadon, o Exterminador. Em um dos mais significativos, M. vê um pátio em miniatura no qual se moviam, como em uma prisão liliputense, anões frenéticos e impotentes que gesticulavam e pareciam gritar, embora seus gritos fossem inaudíveis, como em um filme mudo. “Olhavam para cima, nervosíssimos, talvez enfurecidos, como exigindo ajuda. Ela me disse: são os personagens de tua novela. Se não os liberas, acabam me tornando louca”.

Sábato vê uma analogia entre o processo onírico e o processo da criação literária. Em Diálogo com a América Latina, em sua entrevista com Günther Lorenz, declara:

“A diferença, claro, está inicialmente nesse momento que podemos chamar de submersão no ser profundo, de introversão total, em que o artista submerge, voluntária ou involuntariamente, nas regiões mais obscuras de seu inconsciente. A situação do artista é muito semelhante à do homem que dorme e penetra nesse universo enigmático dos sonhos. Nele, vai se encontrar com os fantasmas que, indubitavelmente, surgem de nosso próprio espírito, por assim dizer, mas que às vezes são tão inexplicáveis para nós próprios, que nos aterrorizam. Em um segundo momento, o escritor ressurge para a realidade externa, e aí sim, nesse momento de “expressão”, isto é, de pressão para fora, irá revelar seus segredos, não mais com as únicas forças inconscientes e conscientes, mas com seus mitos, e também com suas idéias, seus preconceitos e educação”.

Nesta mesma entrevista, Sábato fala da observação de um livreiro argentino, que via o “Informe sobre cegos” um tanto deslocado em Sobre Heróis e Tumbas, como se tratasse de uma narração no interior de uma outra narração mais vasta, o que nos lembra imediatamente a lenda do Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazovi, de Dostoievski. O escritor pergunta ao livreiro se ele também não tem sonhos. Pede-lhe para dizer, entre seus pesadelos, era o mais freqüente. Seu interlocutor fala de um sonho no qual é perseguido sobre tetos de catedrais ou igrejas, tetos inclinados e resvaladiços. Sábato quer então saber qual a relação existente entre tetos inclinados e a venda de livros. O livreiro se confunde.

— Expliquei-lhe então, em poucas palavras, que pretendia dar em meu romance a realidade em sua totalidade. Observei que o personagem central do romance era Fernando, personagem que, como se diz, “brilha por sua ausência”. Em torno dele, gira como um vórtice, toda a narrativa. Suprimir essa parte do romance em consideração a uma coerência “lógica”, essa coerência que buscamos nas coisas que não têm nenhuma lógica, é como suprimir os sonhos dos homens em uma visão integral de suas vidas. É como se pretendêssemos dar a verdade sobre um homem, mediante a descrição de todos seus atos, desde que desperta até quando se deita e, em virtude de uma espécie de mania racionalista, suprimíssemos o que sonha desde o momento em que dorme até o amanhecer, quando desperta.

Nos Diálogos, com Borges, Orlando Barone quer saber de Sábato por que os sonhos são mais angustiantes do que felizes.

— Porque não têm saída. A meu ver, arte e sonho têm um princípio comum. Mas na arte há saída. No sonho, não. O artista submerge, em um primeiro momento, no mundo de sua inconsciência, que é o da noite e nisso se parece ao sonho. Mas logo volta à tona. É quando o homem se libera. No sonho, tudo fica submerso.

Borges vê em Sábato um especialista em sonhos. “Todos o somos”, responde Sábato. Borges diz conhecer pessoas tão infelizes a ponto de jamais ter sonhado. Sábato não acredita e fala de experiências feitas com um homem que é despertado cada vez que começa a sonhar. Deixam então que ele durma e acordam-no ao menor sinal de atividade onírica.

— Dizem que o homem foi levado à beira da loucura. Isto prova que o sonho serve para que não se enlouqueça na vida cotidiana. Penso que com a arte ocorre o mesmo. A arte é para a comunidade o que o sonho é para o indivíduo. Talvez sirva para salvar a comunidade da loucura. Essa seria a grande missão da arte.

Segundo Sábato, o artista vive à beira da loucura. O ponto de partida da arte é o inconsciente, a noite. Mas se o artista pode mergulhar na noite e dela voltar, domesticando seus monstros em sua obra, a mesma coisa não ocorre com o louco. Ele mergulha no inconsciente e dele não consegue voltar.

— O louco vai mas não volta. Talvez seja por isso que a sociedade reverencia os artistas, secreta e até mesmo publicamente. De outra forma, seria estranho e inexplicável. Os personagens de Shakespeare, isto é, Shakespeare, assassinam, atraiçoam, torturam, violentam, se suicidam, tornam-se loucos. Por muito menos que isso, a sociedade o colocaria no cárcere ou no manicômio. No entanto, lhe ergue monumentos. Estranho, não? A única explicação é que, embora de modo consciente, ele intui que esse criminoso louco nos preserva a todos do crime e da loucura. Os que não conseguem ser Shakespeare sonham durante a noite. Em Abadon, o Exterminador, Sábato-personagem diz a Wainsten:

“— As ficções têm muito dos sonhos, que podem ser cruéis, impiedosos, sádicos, mesmo nas pessoas normais, que durante o dia estão dispostas a prestar favores. Estes sonhos talvez sejam como descargas. O escritor sonha pela comunidade uma espécie de sonho coletivo. Uma comunidade que impedisse as ficções correria gravíssimos riscos”.

O criador de ficções é, segundo Sábato, o intérprete das mais inconcientes aspirações de uma coletividade, o homem que exprime tanto suas angústias como as de toda humanidade. Seus sonhos podem ser terríficos, como em Lautréamont ou Sade. “Mas são sagrados e servem porque são espantosos”.

Os romances sabatianos são tecidos com a sutil matéria dos sonhos. Sem fugir do mundo diurno da razão, impossível misturar-se em um só livro a saga do Che, as teorias literárias de Quique, a busca de identidade de um país, uma mulher com um olho no lugar do sexo, a metamorfose do autor em morcego. Em Abadon, o Exterminador, Sábato-personagem diz a Sílvia:

“Sempre alguém me pede que explique o Informe sobre Cegos. Querem que explique o quê? O que quis dizer está dito nesse Informe. O mesmo acontece com os sonhos. As pessoas querem a explicação dos pesadelos. Mas o sonho expressa uma realidade na única maneira pela qual essa realidade pode se expressar.”.

Qual a interpretação mais correta – pergunto a Sábato – entre as centenas de teses, artigos e monografias sobre o tema?

— Tudo o que “sei” sobre esse mundo dos cegos está no Informe. Se pudesse resumi-lo em poucas palavras, este relato seria demais. Penso, no entanto, que todas essas interpretações têm uma parte de verdade, pois a verdade dos seres humanos não é unívoca, mas equívoca e mesmo multívoca. A tendência racionalista desta cultura iluminista nos inclina sempre a buscar uma “explicação”, querendo com isso dizer uma explicação inteligível. Em minha opinião, os grandes e últimos segredos da condição humana, que incluem o vasto território da inconsciência, não são redutíveis a essas razões “claras e definidas” que pedia Descartes. Isto funciona para triângulos ou feldspatos, não para o homem. A ficção é superior à filosofia porque pode responder com toda a riqueza do espírito às perguntas fundamentais. Com razões, mas também com símbolos, mitos, delírios.

Seria então a verdade dos seres humanos alheia à razão pura?

— Sim, pelo menos à exclusiva razão pura. Toda grande literatura é poesia. A prosa, em troca, é a linguagem da ciência e do pensamento puro. A poesia é a linguagem da noite, alimenta-se de monstros e símbolos. No romance total que nosso tempo exige, produz-se a integração das duas razões em que se desenvolve a existência. O romance não só permite a descrição da alma atormentada do homem nesta crise, como também lança as bases para sua salvação, pois permite resgatar essa unidade perdida do dia e da noite, essa unidade destruída pela razão pura. Esta submersão nas trevas, em que o artista incursiona no arcaico território da raça primigênia é o que nos permite o resgate dos grandes fragmentos do homem, perdidos nesta carreira rumo à pura objetividade da tecnologia. É significativo que tenha sido nos países mais dominados por essa atitude que os artistas partiram em busca do paraíso perdido: a arte das crianças e dos selvagens. Revalorizar a expressão dos primitivos é revalorizar a expressão das trevas. Como genialmente expressou Nietzsche, todos nos parecemos ao selvagem nos sonhos e, de certa forma, refazemos a cada noite a humanidade que nos precedeu.

 

Tango e metafísica

Em uma nova geografia, a angústia metafísica tomará outras características, pouco compreensíveis para o observador europeu e mesmo para os latino-americanos influenciados pelo pensamento europeu. Para certos críticos superficiais, costuma dizer Sábato, uma literatura de acento metafísico na Argentina soa de forma tão estranha como a fabricação de ciclotrons na Lapônia. Espera-se de um argentino cavalgadas pela pampa, jamais interrogações sobre a vida e a morte. Sábato ironiza tal atitude em La Cultura en la Encrucijada Nacional: “Fora o pequeno detalhe de que nossa literatura mais importante sai de uma cidade monstruosa de oito milhões de habitantes, totalmente desprovidos de cavalos e pampas, há várias circunstâncias que explicam essa propensão metafísica”.

Sábato constata que as três grandes religiões ocidentais nasceram a partir de homens solitários confrontados com o deserto. Tanto os anglo-saxões do norte do continente americano como os espanhóis do sul, ambos não se encontraram confrontados com possantes civilizações indígenas como no Peru ou no México, mas com imensas pradarias habitadas por tribos nômades e primitivas. Quando os maiorais da nobreza espanhola se instalavam nas cortes de Lima ou do México, na Argentina chegavam os “amargados pobretões para tentar fortuna neste gigantesco território vazio, nesta paisagem desolada e abstrata”. A confrontação do gaúcho com a pampa, esta metáfora do nada, fará nascer um temperamento meditativo e, conseqüentemente, uma literatura metafísica, vide Facundo.

Outras motivações explicariam esta propensão argentina, diz Sábato. Em apenas meio século, Buenos Aires passou de duzentos mil a oito milhões de habitantes. Este crescimento, mais a migração de milhares de seres humanos angustiados, a nostalgia da pátria distante, o ressentimento dos autóctones em relação aos invasores, a sensação de insegurança em um mundo em mutação vertiginosa, mais a falta de sentido para a existência, todos estes fatores serão expressados pelo argentino de maneira metafísica. O escritor ironiza os críticos que exigem uma literatura “social”, denunciando esta particularidade como importada.

“Segundo esta singular doutrina, o mal metafísico só pode acometer um habitante de Paris ou Praga. Se se tem presente que esse mal é conseqüência da finitude do homem, temos de concluir que para estes teóricos as pessoas só morrem na Europa”.

Esta angústia ante a finitude não se manifestará apenas na literatura. Migrando rumo ao Sul, a metafísica tomará formas novas e insólitas. Sábato vê no tango uma expressão metafísica que passa despercebida mesmo aos autores das letras. Para os críticos, a metafísica só se encontraria “em vastos tratados de professores alemães quando, como dizia Nietzsche, está no meio da rua, nas atribulações do pequeno homem de carne e osso”.

Este pequeno homem, sempre presente na obra sabatiana, terá sua maneira peculiar de expressar suas angústias. Em Sobre Heróis e Tumbas, Humberto d’Arcangelo, personagem pouco cultivado mas pleno de humanismo, faz Martín escutar um tango. “Ouve só que letra” – diz d’Arcangelo.

Yo quiero morir contigo
sin confesión y sin Diós
crucificado en mi pena
como abrazado a un rencor.

Esta letra certamente tocou fundo Sábato, pois ele a cita seguidamente em sua obra. Outros tangos também o sensibilizarão, como aquele que canta a destruição da velha Buenos Aires pela fome imobiliária:

Borró el asfalto de una manotada
la vieja barriada que me vio nascer...

Ou a evocação de um café que não mais existe:

¿Tras de que sueño volaron?
¿En que estrellas andarán?
Las voces que ayer llegaron
y pasaron y callaron
¿donde están?
¿Por qué calles volverán?

Como ninguém na Europa, diz Sábato, o portenho sente que o Tempo passa. Que a frustração de seus sonhos e a morte final são seus inevitáveis epílogos. Então, acotovelado sobre uma mesinha de mármore, entre um trago e outro, o portenho se pergunta:

¿Te acordás, hermano,
que tiempos aquellos?

E, com amargura, conclui:

Se va la vida, se va y no vuelve.
Lo mejor es gozarla e largar
las penas a rodar.

Sábato não está exatamente de acordo com os teóricos que associam o tango ao sexo, que não vêem nesta forma argentina de expressar-se nada mais que uma dança lasciva. O fato de ter surgido em uma ambiência de prostituição nos faz pensar que constitui o seu reverso, escreve o ensaísta em Tango, canción de Buenos Aires:

“A criação artística é um ato invariavelmente antagônico, um ato de fuga e rebeldia. Cria-se o que não se tem, o que de certo modo é objeto de nossa ansiedade e esperança, o que magicamente permite nos evadirmos da dura realidade cotidiana. Nisto a arte se assemelha ao sonho. Só uma raça de homens apaixonados e carnais como os gregos poderia inventar a filosofia platônica, uma filosofia que recomenda desconfiar do corpo e de suas paixões”.

Enrique Santos Discépolo definia o tango como “um pensamento triste que se dança”. Sábato acrescenta que se um napolitano dança a tarantela, ele o faz para divertir-se. O portenho, se dança um tango, é para meditar sobre seu destino ou destilar negros pensamentos sobre a estrutura geral da existência. Esta sensação de dilaceração psíquica típica do argentino, expressa através do tango, encontrará sua forma definitiva com o bandônio, esta espécie de órgão portátil, inventado por um certo Band, para celebrar os cultos luteranos na Alemanha. “O tango iria alcançar aquilo a que estava destinado, o que São Tomás chamaria de o que era antes de ser, a quiditas do tango”. Nos diálogos com Borges – que prefere a milonga – Sábato chega mesmo a afirmar que só o bandônio poderia servir para cantar a solidão e a morte, pois “é um instrumento de ressonância metafísica”.

Mas há tango e tango. Quando Orlando Barone, o coordenador dos diálogos, fala no tango proposto por Piazzola, Sábato mantém um silêncio sintomático. Aliás, Humberto J. d’Arcángelo, filósofo de botequim, já manifestava em Sobre Heróis e Tumbas sua reprovação definitiva a Piazzola:

“— E quando algum desses palhaços quer fazer tango novo, pra que falar? O tango tem de ser tango ou nada. Isto terminou, guri, nota bem. É algo que te parte o coração, mas uma verdade grande como uma casa”.

D’Arcángelo, homem do povo, aceita o tango como expressão do homem do povo. Quando este grito metafísico deve se submeter às leis rígidas de uma estrutura musical clássica – portanto, européia – não temos mais tango. Talvez algo importante, mas não o tango. Esta forma de expressão do homem argentino será forçosamente argentina, ou não será coisa alguma.

 

Em busca da Argentina

Los mexicanos descienden de los mayas, los peruanos descienden de los incas y los argentinos descienden de los barcos, costuma dizer Carlos Fuentes. País mais europeizado da América Latina, a Argentina nem sempre é considerada como latino-americana pelos próprios latino-americanos. A busca de uma identidade nacional é uma preocupação constante em toda a obra sabatiana. Será justamente por este descender de los barcos que dará aos argentinos uma condição muito particular em seu continente.

“Sou latino-americano e por isso duplamente atormentado” – diz Sábato. As características particulares dos homens que povoaram esta parte setentrional do continente farão nascer uma literatura também particular. Por ocasião da entrega do prêmio Médicis, na França, declarou em Paris:

— Não houve, em nosso país, grandes civilizações pré-colombianas como no México, Peru e Guatemala. As cidades argentinas foram construídas sobre esta metáfora do nada que é a pampa. A imigração produziu megalópolis como Buenos Aires, quase totalmente européias – pelo menos no que diz respeito a certos elementos étnicos e lingüísticos – mas em terra nova, com outra história, outra geografia, outra atmosfera, essencialmente diferentes da Europa. O aspecto europeu de nossa cultura pode parecer superficial ao leitor. No entanto, as diferenças são de fundo e muito sutis. Falta uma cor local forte e isto confunde os críticos que pedem cenografias pitorescas para dar um certificado de nacionalidade. Costuma-se chamar de “realismo” esta maneira superficial de considerar a realidade.

A obra sabatiana, tanto os romances como os ensaios, constitui uma interpretação permanente da realidade argentina. Durante a leitura de Sobre Heróis e Tumbas, chegamos a nos perguntar se o personagem central não seria Buenos Aires, em vez de Fernando Vidal Olmos ou Alejandra. Neste livro, os personagens Bruno e Martín, ao discutir a identidade nacional, falam sobre Borges:

“— Dizem que é pouco argentino – comentou Martín.

“— Que poderia ser senão argentino? É um produto típico nacional. Até seu europeísmo é nacional. Um europeu não é europeísta. É europeu, simplesmente”.

Falando de Borges, um crítico americano disse certa vez que não existia uma literatura nacional na Argentina. Sábato retoma este tema em Heróis. Com a palavra, Bruno:

“— Em realidade diz-se muita bobagem sobre o que deve ser a literatura argentina. O importante é que seja profunda. O resto vem por acréscimo. Se não é profunda, inútil pôr gaúchos e compadritos em cena. O escritor mais representativo da Inglaterra isabelina foi Shakespeare. No entanto, muitas de suas obras nem mesmo se passam na Inglaterra”.

Mais adiante:

“Nós, por exemplo, somos argentinos até mesmo quando renegamos o país, como amiúde faz Borges, com verdadeira raiva, como Unamuno faz com a Espanha, como esses ateus violentos que põem bombas em uma igreja, uma maneira de crer em Deus. Os verdadeiros ateus são os indiferentes, os cínicos. O que poderíamos chamar de ateísmo da pátria são os cosmopolitas, esses indivíduos que vivem aqui como poderiam viver em Paris ou Londres. Vivem em um país como vivem em um hotel. Mas sejamos justos: Borges não é desses, penso que de alguma forma o país lhe dói, embora não tenha a sensibilidade ou generosidade para que o país lhe doa como poderia doer a um peão ou a um operário de frigorífico. Nisto denota sua falta de grandeza, essa incapacidade para entender e sentir a totalidade da pátria, mesmo em sua suja complexidade”.

Comentando a tese defendida por Miguel Angel Asturias, segundo a qual Borges ou Cortázar, ou mesmo o próprio Sábato não são escritores representativos do continente, Sábato se pergunta: será que existe uma literatura latino-americana? Se existe, quais são suas características?. Somos... o quê?

O crescimento desmesurado de Buenos Aires, que em menos de um século passou de duzentos mil a oito milhões de habitantes, dá ao escritor uma idéia deste fenômeno. Um país se formou, quase sem índios nem negros, com um forte proletariado urbano, uma classe média sólida e uma aristocracia que, como a oligarquia tzarista do último século, educava-se nas estações balneárias e universidades européias. Segundo Sábato, quando uma nação não quer aceitar senão seus fatos gloriosos e suas virtudes, encontramo-nos face a regimes ditatoriais que tentam tapar o sol com uma peneira.

Considera ainda que se ele dorme e sonha com dragões, dada a inexistência absoluta de dragões na Argentina, isto não quer dizer que seus sonhos não são patrióticos. Em resposta a um crítico americano que não via uma literatura nacional na Argentina, ele lhe pergunta se a inexistência de baleias metafísicas nos Estados Unidos poderia converter Melville em um apátrida.

Em Abadon, o Exterminador ele volta ao ataque: é a ausência de uma forte cor local que confunde esta espécie de críticos que reclamam um cenário pitoresco para atribuir ao romance o atestado de latino-americano. Para eles, um negro em uma plantação de bananas é qualquer coisa de real. “Mas um estudante de ginásio que medita sobre sua solidão em uma praça de Buenos Aires é uma anêmica enteléquia”. Mais adiante, com a obstinação de cão que não quer largar sua presa:

“Com este critério, quando a Revolução Francesa reboava em toda Europa, Beethoven deveria ter escrito marchinhas militares, ou pelo músicas como essa “1812”, de Tchaikovski. Não sei onde li que na França um homem como Lautréamont talvez pudesse ter feito isso. Mas se o fazemos aqui, somos imitadores da literatura européia. Se temos presente que este tipo de arte tem muito a ver com o sonho, resulta que só se pode sonhar na França. Aqui não devemos dormir. Se dormimos, temos de sonhar com aumentos de salário e greves de metalúrgicos. E já nem falo se nos ocupamos da morte. Não sei qual desses críticos me condenava por ocupar-me dessa temática européia. Claro, aqui nós não morremos. Aqui, somos imortais folclóricos. A morte é assunto suspeito, vinculado a Wall Street. Os enterros estão a serviço do imperialismo. Basta, pelo amor de Deus. Basta de tanta demagogia filosófica!”

Para certos críticos, a Argentina não pode ser um país latino-americano porque lá não existe um lumpenproletariat. Martín marca um encontro com Deus em um modesto quarto de hotel. Vidal Olmos foge de uma conspiração planetária orientada pelos cegos. Logo Sobre Heróis e Tumbas não pode pertencer à literatura latino-americana. No entanto, a fenomenologia e o estruturalismo eram conhecidos em Buenos Aires antes de serem difundidos em Paris. Max Brod não havia ainda introduzido Kafka na França, e o escritor tcheco já era nome familiar nos círculos literários de Buenos Aires. Em defesa desta especificidade bueno-airense, Sábato escreve um panfleto, Seamos nosotros mismos (anexo 3).

 

A cavalo sobre dois continentes

Não podemos conhecer uma catedral, dizia Chesterton, se dela não sairmos. Nossos dois autores tiveram um dia necessidade de mudar de horizontes, seja de forma temporária, como Sábato, ou definitiva, como Camus.

O menino de Mondovi certamente não é um africano. Pied-noir, criado na Argélia francesa, sua cultura é européia. Mas Camus não se considerava exatamente um europeu, preferindo definir-se como mediterrâneo. Sua atração espiritual pela Grécia e pelo paganismo, seu senso de medida oriundo dos antigos gregos, estão sempre presentes em sua obra. No final de O Homem Revoltado, no capítulo “O pensamento do Midi”, Camus via este espírito de Midi – do Sul, em termos de Europa – como uma defesa contra as filosofias totalitárias do século: “o absolutismo histórico, apesar de seus triunfos, jamais cessou de se chocar com a invencível exigência da natureza humana que o Mediterrâneo, onde a inteligência é irmã da dura luz, guarda o segredo”.

Em virtude desta psicologia, ele sempre manteve distância dos pensamentos mortíferos que fizeram milhões de cadáveres em nome de um suposto sentido da História. Esta atitude forneceu a Sartre a ocasião de tecer um de seus mais mordazes sarcasmos, a propósito de Cartas a um amigo alemão:

—Tudo se tornou claro quando encontrei esta frase que você endereça ao soldado nazista: “Há anos vocês tentam me fazer entrar na História”. Parbleu, disse a mim mesmo. Já que ele se julga fora, é normal que imponha condições antes de entrar. Como a menininha que tateia a água com o dedinho do pé, perguntando: “estará quente?”, você nela mergulha um dedo, que retira rapidamente, e pergunta: “será que ela tem sentido?”

Camus nasceu longe de Paris, e esta distância não é apenas física. Sua mãe era uma faxineira que, ao receber uma carta de seu filho prêmio Nobel, teve de pedir ao padeiro da esquina que a lesse. Infância pobre e doentia, más condições de habitação, mais o vírus que lhe corroía os pulmões, todos estes fatores faziam com ele olhasse Paris com um olhar distante. Não é difícil assinar este ou aquele manifesto, contra ou a favor de um regime político nas antípodas, quando se está na Rive Gauche, cachimbando em uma poltrona. Esta distância em relação às vítimas transformou centenas de intelectuais em cúmplices dos campos de concentração. Camus, antes de viver nos salões da metrópole, havia vivido a condição de vítima.

A cavalo sobre dois continentes, não opta por nenhum. Seu país de eleição era o Mediterrâneo. Em Paris, ele estabelece seu exílio. Apesar de seu passaporte, continua sendo um estrangeiro em Paris. Sua posição face a Argélia constitui ainda hoje tema de polêmicas. Claro que ele não queria a independência. Em sua última entrevista, comentando o discurso de De Gaulle, que reconhecia aos argelianos o direito à autodeterminação, é categórico: “se houver um referendo sobre a questão argeliana, farei campanha contra a independência na imprensa argeliana”. Assim como Sartre julgava possível a coexistência de judeus e árabes em um mesmo território, ele acreditava que os argelianos franceses e muçulmanos podiam viver juntos sem atritos. Camus sempre pretendeu oferecer a todos os homens condições dignas de vida. As crônicas de Miséria da Cabília provam fartamente a preocupação de Camus ante a condição de vida dos argelianos.

Sábato pertence também a esta raça de homens com duas almas, raça cada vez mais numerosa, cujas fileiras aumentam todos os dias com os golpes de Estado e revoluções. Em verdade, o escritor argentino jamais foi expulso de sua pátria e sua permanência na Europa não foi além de dois anos. Mas a América Latina é uma extensão da Europa, particularmente para um argentino:

“Um escritor argentino é tão descendente de Berceo e de Cervantes como um escritor de Madri e, a julgar-se pelos fatos atuais, com muito melhores resultados. O mesmo se pode dizer com respeito ao pensamento, já que definitivamente pertencemos ao mesmo âmbito cultural dos alemães, franceses e italianos, provimos todos do ancestral acervo greco-latino-judaico. Nossos antepassados intelectuais não são Caslfucurá e Caupolicán, mas Heráclito e o Eclesiastes, Platão e a Odisséia, Virgílio e A Divina Comédia, emboras, bem entendido, nossas criações tenham o acento de um território diferente e de uma realidade com seus próprios matizes”.

Exceção feita de O Túnel, vemos na ficção sabatiana um ir-e-vir constante entre Europa e América Latina. A cada capítulo, o autor atravessa o Atlântico de uma pernada. As angústias de Olmos, Alejandra ou Martín face ao Deus único, responsável pelo Bem e pelo Mal, tem suas raízes na Europa, pois o monoteísmo não é um achado latino-anericano. Se surgiu no deserto, é na Europa que se institui como poder.

Herdeiro da cultura européia, para o melhor e para o pior, Sábato vive em sua própria carne este movimento pendular do homem latino-americano – e o transmite a seus personagens. Fernando Vidal Olmos, descendente do inglês Elmtrees, diga-se de passagem, é encontradiço em Montparnasse ou em um café na Charcas, em Buenos Aires. A Seita dos Cegos está em toda a parte. Seus membros perseguem Olmos pelos subterrâneos de Buenos Aires e esta caçada humana não cessa nem mesmo quando Olmos se esconde em uma pensão da Rue du Sommerard. O pai de Tito d’Arcángelo olha para o nada em uma casa pobre em Buenos Aires, mas seu coração está em um vilarejo de montanha na Itália. Quique, nos salões portenhos, satiriza teorias literárias tipicamente parisienses. Quanto a Sábato-personagem, nós o vemos examinando um terreno baldio para “suicidar” um de seus personagens ou no laboratório Curie, em Paris, observando a fissão do átomo.

Se o romance tem como novas funções a exploração da consciência do homem, no século das comunicações ela não pode mais ser limitada pelas fronteiras. A consciência do homem contemporâneo não mais as aceita. Uma tomada de reféns em Teerã pode gerar uma crise internacional, e da noite para o dia a vida de qualquer cidadão no mundo pode ser afetada. O destino da Europa está intimamente ligado ao da América Latina e não é permissível a um homem de visão ignorar este amanhã. João Guimarães Rosa – que via em Sobre Heróis e Tumbas uma fonte de deleitação espiritual – bem percebeu esta equação. Em entrevista a Günter Lorenz, afirma:

“Olhe, o futuro da Europa e o de toda humanidade é como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. No entanto, os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O x e o y desta equação decidirão o amanhã, tanto é assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o x, mas provavelmente será o y, uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada”.

A época atual é de grandes trocas internacionais, na qual a rapidez dos deslocamentos perturba os dados da consciência. Surgem escritores cujo espírito não cabe em um só continente. Sem querermos ser utópicos, acreditamos que a compreensão entre os povos depende mais deste trabalho de sapa de algumas sensibilidades teimosas do que de solenes apelos à paz enunciados por chefes de Estado. É o momento em que o livro, hoje dia mais ou menos transformado em objeto industrial, retoma sua antiga dignidade, a de instrumento de transmissão de idéias.


 

 

CONCLUSÃO

 

Dois autores, distantes geograficamente um do outro, percorrem caminhos quase paralelos. Este tipo de trajetória, diga-se de passagem, não lhes é exclusiva, mas bastante comum aos escritores nascidos com o século. Deus não mais existe, o que não importa que espíritos sensíveis ainda portem luto. A “revolução” de 17 os convida a fazer uma aposta na História. Os processos de 35 fazem recuar aqueles que querem preservar sua honestidade. Existem ainda espíritos dogmáticos que, em nome de um “balanço globalmente positivo” {como dizia o líder comunista francês, Georges Marchais, a propósito da União Soviética) , pretendem justificar o injustificável. É o momento em que o espírito de revolta da juventude é abafado com sinecuras.

Entre os homens de letras deste século, raríssimos foram aqueles que, tendo feito opção pelo marxismo, tiveram a coragem de admitir que a nova religião não satisfazia seus sonhos de um mundo novo. Hoje, velhas almas arrependidas decidem negar, ao final de suas vidas, os dogmas de seus passados. Tarde demais! Pois de 1935 a 1980 há quase meio século de conivência com a iniqüidade.

Camus e Sábato, como também Panaïti Istrati (o primeiro!), Gide, Morávia e tantos outros, arrepiaram caminho em boa hora. No caso de nossos dois autores, vemos este impasse já em suas duas primeiras obras de imaginação. Uma vez suas obras entregues ao público, uma sutil alquimia se produz nestes dois criadores que não vêem luz ao final do túnel. Se Castel e Meursault encarnam as angústias de toda uma época, por que não tentar falar aos homens e agir sobre o mundo com o utensílio da literatura?

Não há mais necessidade de obedecer ao dogmatismo de igrejas ou partidos, de sopesar razões de Estado ou necessidades históricas. Em seu trabalho solitário, o escritor não deve ser fiel senão a si mesmo. De dois espíritos solitários que buscam às cegas qualquer coisa de inefável, surgem dois poderosos criadores que lançam, em todas as direções, tábuas de salvação.

Várias aproximações já foram feitas entre Sábato, Camus e Dostoievski. Que há uma influência do russo sobre os dois escritores, isto é indubitável. A propósito, Camus adaptou Os Possessos ao teatro e a ela se refere seguidamente em O Homem Revoltado. Mas Dostoievski, apesar dos pesares, acreditava em Deus. E nós não encontramos, em Sábato ou Camus, a ortodoxia, o moralismo, o chauvinismo e o anti-semitismo tão caros ao escritor russo.

Nas primeiras obras dos dois autores, nota-se uma característica muito dostoievskiana, a atração pela crônica policial. Quanto à característica eclesial do marxismo, Sábato, Camus ou mesmo Istrati ou Kazantzakis não são os primeiros a descobri-la. Em O Idiota, pela boca do príncipe Mychkine, Dostoievski atribui ao catolicismo romano a origem e paternidade do socialismo ateu. Ateu em relação ao deus dos céus e infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Esta teoria será retomada mais tarde na Lenda do Grande Inquisidor. Dostoievski partia do princípio que se Deus não existisse, tudo seria permissível. Camus e Sábato sabem, a partir de Nietzsche, que se Deus morreu, nem por isso tudo é permitido. Impossível viver e conviver sem o respeito a outrem.

Desconfiados ante as novas igrejas que nada mais querem senão a posse do poder, desarmados, os dois escritores buscam um utensílio para agir sobre o mundo sem submeter-se a ninguém. Um escritor, a rigor, precisa apenas de papel, de uma caneta ou máquina, mesa e quatro paredes. Milhões de seres humanos foram massacrados ou torturados em nome de uma filosofia ou religião. Jamais ouvimos falar de povos oprimidos por um romance. Alguns suicídios cá e lá. Mas, como dizia Casanova, quem não ama a vida não a merece.

Daí a permanência do gênero no tempo. Alfred de Vigny – retomado por Sábato– atribuía a fragilidade das obras de discussão ao fato de que elas se endereçam à lógica. Sendo a razão humana sempre flutuante, os autores desse tipo de obra caíram em espantosas contradições.

“Mas as obras de imaginação, que só falam ao coração pelo sentimento, têm uma vida eterna e não têm necessidade de uma síntese imutável para viver. Aristóteles, Abelardo, São Bernardo, Descartes, Leibniz, Kant e todos os filósofos se derrubam uns aos outros e uns sobre outros. Mas Homero, Virgílio, Horácio, Shakespeare, Molière, La Fontaine, Calderón, Lope de Vega, estes se sustentam mutuamente e vivem em uma eterna juventude, cheia de graças renascentes e de um frescor sempre renovado”.

Marx e Cristo serão um dia derrubados sabe-se lá por que doutrinas, mas de todo grande criador sempre restará um livro, um poema, como testemunho de sua época. Náufragos do século, como tantos outros, revoltados face à condição humana em geral e às condições históricas em particular, Sábato e Camus fazem sua escolha, a criação literária. O argentino tentou escrever peças e contos, mas só encontrou saída para suas intuições no romance e no ensaio. O mediterrâneo, jornalista, ensaísta e homem de teatro, também sentiu a necessidade de expressar-se através do romance, este gênero literário filho do cristianismo e do Ocidente. Dizia Camus em seu diário. não há romance sem revolta.


 

 

 

ANEXOS


 

 

1 – Charlas

 

Janer Cristaldo — Você, que há mais de meio século vem lutando contra as tiranias dos regimes comunistas, como se sente ao final do milênio?

Ernesto Sábato — Não só lutei contra as tiranias comunistas, mas contra toda forma de tirania. Não há ditaduras más e outras benéficas: Todas são igualmente abomináveis. O que me desagrada é quando são feitas em nome de grandes ideais, como foi o caso, precisamente, da stalinista. Pelo mesmo motivo, me repugnam as igrejas estabelecidas que, como no caso da religião cristã, com um Deus onisciente e infinitamente bondoso, torturaram horrendamente ou perseguiram até a morte seitas bondosas.

JC — Estudando sua obra, sempre o vi como um espírito religioso, particularmente pelo fato de ter militado, em sua adolescência, com os anarquistas e logo depois com os comunistas.

ES — Sim, é claro que a maior parte dos adolescentes que se aproximaram destes movimentos eram espíritos religiosos, ou pelo menos para-religiosos. Lutávamos contra a injustiça social, não suportávamos ver crianças morrendo de fome.

JC — Você acredita em Deus?

ES — Sim e não, conforme o momento e as circunstâncias. Pois, como acabo de dizer-lhe, é duro compatibilizar um Deus infinitamente bondoso com a venda por 100 ou 200 dólares de meninos e meninas para a prostituição. Essa notícia saiu aqui, falando de uma região do Brasil. Mas, como diz Santo Agostinho, em suas Confissões, Deus é inacessível à razão, e o que estamos utilizando aqui são meras razões. As grandes verdades – e aquela da qual estamos falando é a grande Verdade – só podem ser alcançadas mediante a intuição mística ou poética. Falo de poesia no sentido mais primigênio e profundo da palavra, não estou falando de versinhos. Só a poesia – que inclui não apenas poemas profundos, ficções memoráveis, pinturas e obras musicais eternas – é capaz de dar uma resposta. Por outro lado, e falo a propósito de sua pergunta, um espírito religioso não é necessariamente alguém que crê firmemente na existência de Deus, mas também – e bastante amiúde– alguém que vive angustiado com este problema. Incluo nestes os que blasfemam ou dizem atrocidades, que formam uma legião majoritária e que, de modo paradoxal, acreditam em Deus. Pois contra quem lançariam então estas blasfêmias? O ateu deve ser ateu e ponto final. Isso eu o disse em meu primeiro livro, faz meio século, Uno y el universo, que você traduziu no Brasil. Pois se se trata de um ateu enérgico, é preciso se pôr em dúvida seu ateísmo. Tampouco se pode acreditar que os anticlericais – ou boa parte deles – sejam ateus: são às vezes autênticos espíritos religiosos que sentem repugnância pela igreja estabelecida, pelo stablishment. Há um anticlerical bastante conhecido, chamado Jesus, que se rodeava de pescadores analfabetos e prostitutas, que pregava junto aos pobres, que contou aquela parábola sobre o camelo e o buraco de uma agulha, que detestava os fariseus e os escribas. Aquele ser também deve ter duvidado, como demonstra sua última e tremenda frase, quando foi crucificado. Tivesse vivido na Argentina, na última ditadura militar, que teria feito? É evidente, teria pregado para as villas-miseria, que no Brasil são as favelas. Que teria acontecido com ele? O mesmo que ocorreu com muitos de seus discípulos, que foram seqüestrados por comandos militares, logo violentados e torturados selvagemente, e finalmente assassinados. Teria sofrido, efetivamente, esta via crucis e, o que é mais horrendo, em nome dos valores “ocidentais e cristãos”, por torturadores que eram assistidos e absolvidos por sacerdotes católicos. E assim teria morrido em Buenos Aires, como morreu tantas vezes em circunstâncias semelhantes em todas as partes do mundo. Pois a maldade é universal e tem a duração da espécie humana. É a frase do Eclesiastes, quando diz que nada há de novo sob o sol. Refere-se, é claro, ao coração do homem, que é o mesmo desde sempre. Esse coração que é o território no qual lutam, pela alma do homem, Deus e o Demônio. Frases, palavras do heresiarca Fedor Dostoiesvski.

JC — O que pensa a igreja argentina a seu respeito?

ES — Alguns gostam de mim e me respeitam, a maioria me acusa de “canhoto”, de terrorista, de subversivo, de materialista dialético (os mais filosóficos), de bolche e epítetos semelhantes. Alguns destes são corretos. Outros, sofismas grosseiros.

JC — Quais seriam os justos?

ES — Sou, efetivamente, um subversivo. E um “canhoto”, porque propugno a justiça social, a liberação dos povos oprimidos e luto contra toda forma de racismo. Quanto ao epíteto de “materialista dialético”, você, que traduziu Hombres y Engranajes, meus outros ensaios e meus romances, sabe que é um enorme, grotesco e perverso sofisma. Ganhei, ao longo de meio século, uma bela fama: os reacionários me qualificam como comunista e os comunistas me qualificam como reacionário, porque fui inimigo do criminoso regime soviético e por não participar de seu ateísmo de bairro. Devo esclarecer, no entanto, algo que para mim é importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou sólida fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram prisão e torturas, os que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso – fato que enalteci em dois de meus livros – admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi acima de tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco que, como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após ter abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de nos erguermos ante um herói que morre por ideais. Não até sua altura, é claro, mas também quis e continuo querendo bem seres como Gerardo Pisarello e Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía saber que ele lia as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de fé, que acreditavam apesar de tudo. Houve muitos que morreram sob tortura por defender essas idéias nas quais acreditaram. Merecem admiração e respeito.

JC — A queda do muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, você os previu ou os considerava como fatos impossíveis?

ES — Foram sacrificadas em torno de 20 milhões de pessoas, e a burocracia corrupta e a indigência do povo faziam possível este final. Mas a história não é previsível, já que não obedece a leis racionais, como precisamente pensavam Marx e Engels. A história é sempre novidade, dizia o filósofo norte-americano William James, irmão de Henry, o romancista. Frase brilhante mas que não gozava da admiração destes pensadores que acreditavam nas “leis” da história, como se fossem leis científicas. Marx e Engels não qualificaram seu socialismo como “científico”? Era tão pouco científico que nenhuma das predições de Marx se cumpriram: a revolução social não só não explodiu no país mais desenvolvido do mundo, como ocorreu em um país atrasado. Nem os proletários de todo o mundo se uniram para lutar contra os burgueses do mundo inteiro, mas nas duas grandes guerras mundiais os operários, junto com os burgueses lutaram contra os operários e burgueses unidos do outro lado. Nem os países comunistas não lutariam jamais contra outros países comunistas (lembremos o Camboja), isso para não falar do ódio dos chineses contra a União Soviética. Nem o espírito religioso do povo eslavo desapareceu por obra do ensino anti-religioso.

JC — Pode-se encontrar partes resgatáveis em Marx e Engels?

ES — Sim, penso que Marx foi um dos que mais lutou com seus livros contra a escravidão no mundo capitalista, especialmente na Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente de valor. Para seus epígonos baratos e, no caso grotesco de Stalin, todas as atividades do espírito foram reduzidas às forças econômicas. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que não é a história que faz o homem, mas sim o homem real e vivo que faz a história. Mas a escolástica stalinista tergiversou e barateou suas ideais. Homens como Labriola, na Itália, foram sufocados pela escolástica oficial. Talvez como resultado da tradição hegeliana que na Itália se manteve por obra de Croce – filósofo idealista – pode surgir um espírito tão admirável como Gramsci, que durante seus seis anos de cárcere escreveu páginas que resplandecem em meio à baixeza filosófica do stalinismo. Lutou contra a obra de Plekanov, que tanto foi predicada em meus anos de estudante, quando defendia que a arte era um “reflexo” da sociedade e que as condições econômicas “explicavam” os sentimentos, as idéias e a arte. Bastaria lembrar que Marx recitava de memória Shakespeare e os líricos ingleses e alemães, muitos deles “reacionários”, e ria de L’Insurgé, aquele romance “engajado” de um militante da Comuna de Paris. E o que não teria dito da famosa arte “proletária” incubada pelo stalinismo! Também devemos reconhecer, frente ao homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase de Marx : “O homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é o mundo dos homens, do Estado, da sociedade”. Sua consciência é uma consciência social, enunciando assim um novo humanismo frente às enteléquias iluministas e racionalistas tipo Voltaire. Nisto, há muito parentesco com o que fariam os existencialistas de forma mais acabada. Mas ele compartilhava com os iluministas o mito da Ciência e da Luz contra as potências obscuras. Essas potências obscuras que constituíam o mais profundo e concreto da condição humana: a alma e suas paixões, o inconsciente e suas verdades, a própria fonte dessa arte que tanto admirava. Por alguma razão ele e Engels chamavam seu socialismo de “científico”, frente aos utópicos anarquistas, que são os que finalmente tiveram razão. Demoliu implacavelmente Proudhon, mas agora compreendemos que aquele socialismo não teria incorrido na massificação soviética, típica tanto do capitalismo de massa como do socialismo de massa, ambos herdeiros da ciência e da técnica, que conduziram a esta espantosa catástrofe de nosso tempo.

JC — Em suma, voltar ao anarquismo?

ES — Sem dúvida, senão seremos destruídos minuciosamente pelo desastre talvez irreversível da ciência e de sua filha dileta, a técnica, com suas megalópoles, com a destruição geral da natureza e do próprio homem, massificado, coisificado, que não tem outra saída senão a droga ou o nihilismo destrutivo. Mas isto nos leva muito longe e não pode ser desenvolvido em uma simples entrevista. Em Hombres y Engranajes, que escrevi em 1951, explico em profundidade esta crise colossal. Me encheram de insultos e fiquei dez anos sem publicar uma única linha, até 1961, quando me decidi a editar Sobre Héroes y Tumbas. Agora, tudo o que disse naquele livro está à vista, todo o desastre do famoso progresso.

JC — Quais seriam as conseqüências desta degringolada para os futuros projetos dos escritores?

ES — Depende de que espécie de escritor você fala. Para os profundos, será sempre a mesma coisa, os temas transcendentes que constituem a condição humana, que são sempre os mesmos. Para os escritores de ocasião, para os que se limitam ao anedotário político, não sei, suponho que continuarão escrevendo as mesmas superficialidades.

JC — Você parou de escrever ou vai nos brindar com alguma outra criação?

ES — Você sabe que em 1979 me detectaram uma grave doença nos olhos: não câncer, mas algo irremediável, com o derrame do humor vítreo, com o que as retinas ficam sem proteção, e as lesões decorrentes que naquela época eram muito grandes. O especialista, um grande amigo meu, me proibiu a leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando minha memória digital.

JC — Está cumprindo esse pedido médico?

ES — Não foi pedido, foi uma ordem terminante, amistosa mas terminante. Claro, como não iria cumpri-la? Para cúmulo, este meu horror sagrado à cegueira...

JC — Como se seus livros, seus romances, tivessem um caráter premonitório...

ES — Sim.

JC — Você agora começou a pintar, precisamente porque está mal de vista?

ES — Claro, vale a piada. Mas a realidade é que o tamanho de um quadro me permite o que não me permite a letra. Quando o oculista me disse, com um rosto muito grave, o que me acontecia e observou que talvez eu não tivesse ficado angustiado, me falou de sua perplexidade. É muito simples, respondi, toda minha vida tive a nostalgia de minha paixão, primeiro pela pintura, desde que era pequeno e depois adolescente. Foi a minha primeira e talvez mais forte paixão. Nesse mesmo instante me senti liberado, porque que cada vez que fazia alguma coisa de pintura, sentia uma espécie de culpa, porque muitos me diziam que devia continuar escrevendo. Na realidade, ao concluir Abaddón, el Exterminador, em 1974, senti que havia dito tudo o que tinha de dizer, a ponto de minha tumba aparecer no romance. Enfim, continuei escrevendo alguns pequenos ensaios. Mas as grandes verdades, pelo menos as que eu não consigo alcançar, já estavam ditas. Essas grandes verdades existenciais, as quais não só escrevemos conscientemente mas, e principalmente, com os ditados que vêm do mais profundo de nosso ser, do inconsciente. A propósito, quero acrescentar algo que considero fundamental: a pintura permite uma transmissão mais direta destas visões inconscientes. Por isso é mais catártica, mais liberadora.

JC — O mesmo não diriam um Proust ou Joyce. Explique melhor a coisa.

ES — O inconsciente se expressa sempre por imagens, como nos sonhos, que são como cinema mudo, com raras exceções. A pintura tem esta vantagem sobre a literatura, embora por outro lado tenha desvantagens. Tanto em um caso como no outro, o fundamental, as grandes verdades, vêm do inconsciente. De um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que seja falso. O processo da criação, tal como pelo menos eu pude verificar pessoalmente, é assim: em momentos excepcionais, nessa região penumbrosa que fica entre o sono e o pleno despertar, às vezes se consegue entrever algo, o que poderíamos e talvez deveríamos denominar de “objeto poético”, quase inexpressável, ambíguo, contraditório, mas tão verdadeiro que nos sacode, nos angustia ou nos fascina. O escritor tem de expressar esse objeto por intermédio da palavra, mas a palavra sempre é conceitual: “árvore” não é a imagem de uma árvore, já que serve tanto para uma palmeira como para um limoeiro. É uma convenção abstrata, e por isso em cada língua se diz de maneira diferente: árvore, baum, tree... Um dos grandes problemas que o escritor tem de resolver é o de expressar, mediante conceitos puros, algo que não é conceitual, mas visual, e além disso ambíguo, polivalente. Penso em todas as interpretações que se podem fazer e foram feitas dos sonhos de José, através dos séculos. Essa é a diferença entre poesia e prosa, não a que se pensa normalmente: a prosa, em sentido estrito, é um teorema, ou uma lei científica, ou um prospecto que acompanha um objeto doméstico eletrônico, em que se dá instruções precisas e unívocas sobre cada botão. A poesia, no sentido grande e clássico, é, ao contrário, ambígua e multívoca, seja um poema, uma tragédia ou um grande romance. Tem muitas leituras, como se diz agora no jargão, é suscetível de diferentes interpretações, que mudam inclusive em nós mesmos, como leitores, à medida que passam os anos. Esta linguagem poética, que na simples prosa emprega idéias abstratas, na pintura se dá diretamente através de uma imagem.

JC — Você tem feito exposições?

ES — Sim, mas só no estrangeiro. a primeira no centro Pompidou, há pouco uma em Madri e outra novamente em Paris.

JC — Como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde, essa nova condição?

ES — Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall não acabava de morrer nunca... Há, além disso, a vantagem de ser algo mais intuitivo e manual. Até o cheiro de terebintina me subjuga. Cada vez que entrava no ateliê de pintura de um amigo meu sentia esse cheiro e um sentimento de frustração. Alguma vez escrevi que lutamos contra o destino e o destino por fim tem razão. Eu costumava dizer a Matilde: morrerei com uma enorme nostalgia da pintura. A semicegueira me permitiu a pintura.

JC — Em que escola você se situa?

ES — Você, que leu e traduziu meus romances, que acha?

JC — Uma pintura trágica e expressionista?

ES — Acertou. Ultimamente derivou para uma obra totalmente sobrenaturalista. Há quadros tão terríveis que não poderia colocá-los em minha casa, como diria um marxista eterno, o Groucho.

JC — Como se sente hoje o pintor que está quase cego?

ES — Enfim, não exageremos. Mas quero te dizer que tive uma crise, via como se tivesse uma teia de aranha pela frente. Tive a paixão pela pintura desde que era pequeno. Isso tem a ver com algo muito curioso. Durante toda minha vida tive paixão pela pintura. Sempre estive vinculado com o pintor, tanto na Argentina como em Paris. Eu vivi em Paris muitas vezes, mas principalmente um ano inteiro antes da guerra, no laboratório Curie, com um bolsa que obtive com o Dr. Houssay, prêmio Nobel de medicina.

JC – Me consta que ele ficou muito frustrado com sua renúncia à ciência...

ES – Sim, logicamente, inclusive me retirou a saudação. Olha só o que é a mentalidade cientificista! Não fiz disto um problema fundamental. Estive em um momento crítico quando se produziu a fissão do átomo de urânio. Aí eu pensei que isto seria o princípio do apocalipse. Acontece que sempre fui apocalíptico por natureza.

JC – Não é por acaso que escreveu Abaddón...

ES — Neste romance pus em minha lápide: “ Ernesto Sábato quis ser enterrado nesta terra com uma só palavra em sua tumba: PAZ”. Aí narro de forma fantástica o que sofri, neste momento de minha vida. Eu vivia, como sabes... eu chegava tarde no laboratório, cansado, e vivia à noite com os surrealistas, no Dôme, naquela época era um dos cafés dos surrealistas, agora é um café burguês. Quando voltei lá, anos mais tarde, com muito temor de rever o café, quase morri de tristeza. Mas lá continuam as fotografias antigas. Ali eu me reunia com quase todos. Com Domínguez, que depois se suicidou... depois te conto algo sobre este suicídio. Certa vez me convidou para que nos suicidássemos juntos.

JC — Ah, sim? Bom... e quando ocorre o episódio com Victor Brauner, você cria um personagem nominado pela letra E. Houve uma briga entre Dominguez e outro pintor e Brauner acabou tendo o olho vazado por copo, jogado por alguém. O personagem E. tem algo a ver com Ernesto?

ES — Não, não. Não foi comigo. Pus E. porque era um amigo comum. Pus assim por delicadeza, sei lá por quê... Foi terrível. Na verdade, tudo ocorreu no ateliê de Domínguez. Ele foi um bom amigo. Era das Ilhas Canárias, muito louco, talvez não fosse um grande pintor, mas fez coisas boas. Era um surrealista autêntico, talvez o surrealista mais autêntico que conheci em minha vida. Ele viveu como um surrealista, não foi um farsante como Dali, por exemplo. Eu gostava muito dele. Era enorme, brutal, acromegálico. Era bom pintor... Depois trabalhou com Picasso, porque Picasso além de ser um gênio, sem dúvida alguma, era também uma espécie de executivo, tinha uma mentalidade muito comercial. Este homem, Picasso, jamais quis conhecê-lo. Pintor importante, mas jamais gostei dele como ser humano. Tínhamos amigos comuns, como Domínguez, que trabalhou com ele durante anos. É autor de muitas das falsificações de Picasso que existem no mundo. Nos Estados Unidos há muitos Picasso/Domínguez.

JC — Creio que também de Dali...

ES — Também fez falsificações de Dali. Era uma pessoa muito divertida, de humor negro, propenso ao suicídio, ao álcool, às drogas, mas um grande amigo e muito generoso.

JC — E este convite ao suicídio entre vocês dois ...

ES – Para concluir isto... nesta época, foi antes da guerra. Bem, a pobre Matilde foi o marco de minha existência. Eu daria dez vezes minha vida para tê-la. Está doente há oito anos e meio, como sabes. Tem arteriosclerose e está semi-paralizada, mas... é para mim uma dor muito profunda, dizer isto não tem nada de mais, todo mundo sabe, na Argentina se diz... que tenho outras mulheres. Creio que a monogamia é uma invenção do cristianismo, porque nem mesmo seus antepassados judeus eram monógamos. Pensava nada mais que em David e em Salomão.

JC — Isto faz parte da vida de um escritor.

ES — Sim, faz parte da vida em geral. Acontece que há uma espécie de hipocrisia, e eu detesto a hipocrisia. Tive algumas paixões muito fortes que duraram anos. Ela sofreu muito.

JC — Ela sempre teve conhecimento dessas paixões?

ES — Sim, de uma maneira ou de outra, claro. Algumas duraram dez anos. Houve grandes culturas polígamas e também poliândricas e que nada têm de escandalosas. Isto é uma hipocrisia típica de agora, desses países chamados cristãos.

JC — Alejandra estará calcada em alguma de suas amadas?

ES — Não, não. Em meus romances há dois ou três personagens que podíamos chamar de “après nature”, como diziam os pintores naturalistas, que pintavam uma banana como uma banana, uma maçã como uma maçã. Em meus personagens, a exceção é Dominguez, que aparece em Abaddón e em Héroes y Tumbas, mas é um Dominguez deformado completamente por acontecimentos que não eram dele, mas eram como um retrato dele. Digo isto com carinho... Os outros personagens são todos ilusórios. Há em Abaddón, nesse momento que considerei o começo do apocalipse, pela fissão do átomo de urânio, dois personagens, um que se chama Molinelli e o outro tem um nome judeu muito estranho, como Citronenbaum, que quer dizer algo como limoeiro. Eu me divertia muito inventando esse personagem, porque era um judeu pequeno, com uma roupa que provavelmente pertencia a algum antepassado enorme, ou que usava por falta de dinheiro. Era pequeno e magro, tinha algo parecido com Trotski, eu o imaginei assim. Mas com uns olhos tremendos e acompanhado pelo Molinelli, que era um grandote e gordo.

JC — Você não tem grande apreço pelo naturalismo...

ES — O naturalismo me aborrece. Às vezes há pessoas que me perguntam coisas tão grotescas como, por exemplo, se Alejandra vivia realmente no Mirador. Mas Alejandra jamais viveu. Paradoxalmente, o fato de criar, inventar um personagem, te dá uma liberdade absoluta. No entanto, todos os personagens, creio, se se faz uma literatura profunda, e não uma literatura naturalista – isto não digo eu, mas já disse Ibsen, já disse Flaubert – madame Bovary c’est moi–, é um exagero. Madame Bovary tinha de uma forma caricatural o próprio romantismo que Flaubert tinha escondido. Mas era uma pobre mulher de província. Ibsen diz: “todas as personagens saíram de meu coração”. O coração do homem é muito misterioso e jamais acabamos de conhecê-lo. Quando escreves, as coisas vão saindo. Estes dois personagens, Molinelli e Citronenbaum, as pessoas crêem que existiram. No entanto, jamais existiram. Mas, em outro sentido penso que, no fundo, toda obra literária, se é profunda, vem do mais profundo do coração, que é inescrutável. Além disso, é misterioso a ponto de assustar-te nos sonhos. E estes sonhos são teus. Escrevi coisas que Pascal chamava “raisons du coeur”, as razões do coração. Isto se escreve daqui para baixo (Sábato indica a têmpora}. Daqui para cima é o teorema de Pitágoras. Estas coisas são muito formosas, mas não servem para viver nem para morrer. A literatura, a arte, a poesia – a poesia em geral, no sentido grave e profundo que lhe dão os gregos– isto é, tudo que não é cerebral, tudo que tem a ver com as paixões, sentimentos, emoções, com o inconsciente, aí está a grande verdade. De um sonho pode se dizer qualquer coisa menos que seja uma mentira. Mas o sonho é uma verdade misteriosa que o próprio homem que o sonhou não sabe bem o que quis dizer. Isto inclusive o assusta.

JC — Enfim, o que é assustador em tua obra é o “Informe sobre Cegos”, um pesadelo. De onde saiu esta...

ES — Isto é apenas um pedaço, pois nos três romances há coisas que são pesadelos. Há vários sonhos: o pássaro de Castel, em El Tunel. Em Abaddón há muitas coisas que jamais aconteceram, aquelas coisas na cripta de uma igreja, aquela violação de uma mulher que, no lugar do sexo, tinha um olho. Tudo isto te ocorre como te ocorre em um sonho. Não sabes o que queres dizer. Eu nunca soube o que ia dizer. Escrevia o que ia saindo. Em minha obscura intuição, sabia que tinha de escrever algo. Mas os cegos de meus romances não são cegos no sentido naturalista da palavra. Certa vez um médico me perguntou, assim como alguém me pede a verdade verdadeira, ao autor: “essa história dos cegos é verdade?” Ele estava muito preocupado. Eu disse: olhe, tudo depende do que você entende como verdade. Quem vai imaginar que os cegos vivem nas cloacas? Isto talvez seja uma metáfora do inconsciente, coisas que vão saindo aos borbotões. Há além disso humor negro e coisas muito misteriosas. Esta é a única espécie de literatura que me interessa. Pois penso que aí estão as grandes verdades, sempre, como nos sonhos, e dos sonhos se pode dizer qualquer coisa, menos que sejam uma mentira.

JC — Antes que esqueçamos, como é esta história do suicídio com Dominguez? É uma coisa pouco conhecida em sua biografia.

ES — Ah, sim, ia me referir a isto por Matilde. Matilde estava comigo desde seus dezessete anos. Era de uma família judia, muito religiosa, havia em sua família talmudistas. Nessa época, eu estava metido no movimento comunista, mas metido de verdade, nunca fui comunista de salão. Fui secretário do Partido Comunista durante cinco anos, e me separei quando começaram os processos de Moscou e percebi ser uma abominação aquela ditadura espantosa que deixou vinte milhões de mortos e torturados. Dados pós-Gorbatchov. Nessa época, conheci Matilde. Fugiu de casa com dezessete anos. Naquela época, na Argentina, ter dezessete anos era ser menor de idade. Enganou a polícia durante um ano. Eu vivia clandestinamente. Dessa época até hoje, são sessenta e tantos anos, temos vivido juntos, e viveremos juntos até a morte. Eu daria dez vezes minha vida por Matilde. Ela foi quem me alentou, me estimulou. É uma mulher sensível, terrivelmente sensível, muito inteligente, muito imaginativa. Enfim, como todos os homens, tive paixões por outras mulheres. Algumas foram paixões pequenas e outras duraram anos. Matilde sofreu muito com isso. O que contei tem a ver com a pergunta que me fez. Horrível, porque nos instalamos em Paris em um quartinho na Rue de Sommerard, perto de Cluny. Tive uma aventura com uma mulher russa, dessas emigradas, uma coisa muito feia. Assim como fiz outras coisas muito bonitas, essa foi uma coisa ... totalmente sexual, digamos. Há que dizer a verdade, me horroriza estar mistificando. Deixei Matilde com o filho que tinha três meses e fui viver sob outro teto, para poder ter uma vida livre com essa mulher. Matilde decidiu voltar à Argentina. Eu a acompanhei ao embarque. Foi realmente muito triste tudo isto. É uma lembrança que não me traz nenhuma honra. Que se pode fazer? Eu creio que o homem tem uma natureza polígama.

Em Paris, quando chegou o inverno, foi um inverno muito frio, era antes da guerra, seria no mês de novembro, dezembro, eu estava muito só, trabalhando no laboratório Curie, e à noite me reunia com os surrealistas. Com Matta, Domínguez, Bréton. Este era um bom poeta, que fez um manifesto misturando o materialismo dialético com os sonhos. Nesta época, fomos uma tarde ao Marché aux Puces, que ficava na Porte de Clignancourt. Voltamos porque havia começado a chuviscar, era uma tarde muito triste. Domínguez era um homem de fundo trágico. Voltamos no metrô que ia até Porte d’Orléans, porque o ateliê de Dominguez estava em Montparnasse. Saímos do metrô e chuviscava, já era de noite. Ele me disse: “Ernesto, que te parece se esta noite nos suicidamos juntos?”

JC — Assim, só por dizer?

ES — Não, ele tinha a obsessão do suicídio. Eu também estive duas ou três vezes muito perto do suicídio.

JC — Isto se pode ver em seus livros.

ES — Sim, isto foi uma obsessão. Fui sempre um depressivo, passava das paixões mais violentas a depressões que duravam meses, eram muito profundas. Domínguez me disse aquilo, quando estávamos já no ateliê, e eu lhe disse: “Olhe, não, eu tenho outros projetos”. (Ri). A palavra projeto agora é curiosa, para um suicídio.

Resumo da ópera: o projeto de Domínguez não vingou, ou pelo menos não vingou em parte, já que ele decidiu partir sozinho. Sábato, hoje em sua oitava década de existência, está “vivito y coleando”, como dizem os espanhóis, e nos lega uma densa obra ficcional. Em correspondência passada, falávamos de morte, esta eterna obsessão de Sábato, que inclusive já escreveu seu epitáfio em Abaddón. Como bom discípulo, tive de discordar dele. Sábato já escapou à condição de mortal. Pode até ocorrer que morra, que seu corpo se putrefaça. Isto pouco importa. Permanecerá sempre vivo na memória de todo homem culto.


 

 

2 – Carta de Sábato ao Che

 

1º de fevereiro de 1960

Comandante Ernesto Guevara
La Habana – Cuba

 

Admirado Guevara:

 

Em sua viagem a Buenos Aires, o jornalista R. Walsh nos explicou minuciosamente e com entusiasmo a façanha que vocês levaram a cabo. Durante mais de cinco horas, em minha casa de Santos Lugares, onde eu havia reunido um grupo de amigos, dissipou uma quantidade de mal-entendidos que confundem a opinião pública deste país.

É precisamente este fato o que me induz a escrever-lhe esta carta para que você, como um dos chefes da revolução cubana e em sua condição de argentino possa ajudar a uma melhor compreensão do problema que mutuamente nos atinge e para que o movimento cubano alcance em nossa pátria a repercussão popular que deveria ter. Esquematicamente, o problema tem os seguintes aspectos que requerem uma análise (Para um exame mais circunstanciado, me permito remeter-lhe El otro Rostro del Peronismo, que publiquei em 1957):

1. A revolução cubana foi saudada como alvoroço pela totalidade da oligarquia argentina, que nela via a continuação ou o equivalente da revolução de 1955 contra o peronismo. O uso abstrato e equívoco de palavras como “liberdade” e “tirania” deu este resultado paradoxal. A mesma causa que levou tantos intelectuais argentinos a situar-se contra o autêntico povo argentino.

2. Como conseqüência inevitável do fato anterior, a imensa maioria do povo trabalhador tomou posição contra vocês. Pode-se ler nos bairros operários da grande Buenos Aires enormes cartazes que dizem: “Viva Perón, morra Fidel Castro”.

3. Com o desenvolvimento dos acontecimentos cubanos, sobretudo com a aplicação de medidas sociais e “comunistas”, as senhoras de nossa oligarquia e os pró-homens de nossa democracia temem cada vez mais ter-se equivocado e já se pode ouvir muitos deles dizer que Castro continua sendo, por antonomásia, um libertador do mesmo gênero que o almirante Rojas. Vinculado a este fenômeno de definição, é fundamental o que ocorre com um personagem como Jules Dubois, que já cantou em Cuba ou para Cuba a mesma hipócrita cantilena sobre a “liberdade de imprensa”.

Como foi possível chegar-se a uma situação tão equívoca e inclusive paradoxal? A análise nos levaria muito longe e não vale a pena ser feita aqui, sobretudo porque, embora sumariamente, já a fiz no folheto que lhe envio por este mesmo correio. Embora mantenha nesse ensaio algumas posições que superei ou retifiquei posteriormente, permanecem válidas em essência as reflexões que faço sobre o sentido de palavras-chave como liberdade, esquerda, democracia e revolução. A história é desgraçadamente impura e amiúde nos valemos de vocábulos que foram superados e até mesmo invertidos pelo processo histórico. Mas a força das palavras é tão grande (quase diria tão mágica) que prevalecem muitas vezes sobre os próprios e evidentes fatos. Quando, na época de nossa famosa Unión Democratica, tantos intelectuais de “esquerda” marchávamos ao lado de conservadores como Santamaria e senhoras da sociedade, deveríamos ter suspeitado de que algo estava funcionando mal.

Quando, nos momentos em que produzia a revolução de 1955, vi modestas empregadinhas chorando em silêncio, pensei (por fim) que as árvores nos haviam impedido de ver o bosque e que os afamados textos em que havíamos lido sobre revoluções quimicamente puras nos haviam impedido de ver com nossos próprios olhos uma revolução suja (como sempre são os movimentos históricos reais) que se desenvolvia tumultuosamente e ante nós mesmos.

Não creia, pois, Guevara, que estou lhe pedindo um exame ou reexame de nosso problema argentino: peço-lhe algo que muitos de nós estamos fazendo aqui com toda humildade. Você, como eu, foi um dos estudantes ou intelectuais de esquerda que rejeitaram a personalidade equívoca e demagógica de Perón. Com a diferença de que você logo se manteve longe de nossa realidade e nós, em troca, vivemos todo o processo, inclusive o revelador processo da “revolução libertadora” (neste país tudo começa com maiúsculas, passa logo a minúsculas e finalmente termina entre aspas). Quando os coronéis de extração nazista se encarregaram do governo em 1945, muitos de nós, antifascistas, repudiamos aquele golpe e, no que a mim diz respeito, devo dizer que fui expulso de minha cátedra e condenado à prisão por desacato. Este fato inicial talvez explique meu distanciamento sistemático de um processo que foi se tornando cada vez mais popular, até converter-se no processo social mais profundo que nossa pátria jamais experimentou.

Posso dizer em meu favor, no entanto, que nunca fui um antiperonista do mesmo gênero que poderia sê-lo. digamos, Victoria Ocampo. Recordo ter discutido com ela (a quem respeito como pessoa e como escritora) , em pleno regime peronista, em presença do arqueólogo inglês Lawrence, sobre a essência do peronismo, mantendo naquela áspera discussão as linhas fundamentais que agora lhe explico.

Deve-se a isso o fato de não ter tomado contra o peronismo a posição de nossa oligarquia e da imensa maioria de nossos escritores e intelectuais. Sempre defendi ser mister distinguir entre a personalidade do líder e o movimento que objetivamente ocorreu à sua volta. Os fatos posteriores (relaxamento do regime, corrupção, perseguições iníquas, torturas) que culminaram finalmente com a ignóbil fuga de Perón, que não foi capaz de assumir ante seu povo o posto de chefe autêntico e valoroso, confirmaram uma idéia que era essencialmente correta.

Seja como for, o certo é que muitos como eu estivemos contra o peronismo, isto é, contra o povo trabalhador, apesar de pertencermos, por nosso “esquerdismo”, a uma posição teoricamente populista.

Agora, esclarecido pelo tempo todo aquele complexo fenômeno, muitos escritores começamos um processo de reajuste que, esquematicamente, consiste no seguinte: o movimento peronista teve aspectos negativos e mesmo nefastos do ponto de vista da dignidade humana (servilismo, corrupção, perseguição, torturas). A personalidade do general Perón continua sendo para nós tortuosa e corruptora. Mas o povo chamado peronista é o povo trabalhador e como ele devemos levar até suas últimas conseqüências o processo que nos dará a definitiva liberação econômica e política, assim como há de lançar as bases para a unidade do continente latino-americano, tal como Bolívar e San Martín o imaginaram e tal como as grandes potências o impediram até hoje.

Em tal perspectiva, é fácil notar a enorme transcendência que teria um reexame do movimento cubano em relação ao movimento popular na Argentina. Quem seria capaz de parar um processo combinado de tal envergadura? Você, Guevara, por sua decisão, por sua valentia, pela clareza de idéias que todos elogiam, pode ser um dos fatores decisivos deste reencontro.

Receba, junto à expressão de minha admiração mais profunda, minha fraternal saudação.

Ernesto Sábato
Santos Lugares, Argentina


 

 

2 – Resposta de Che Guevara

 

La Habana, 12 de abril de 1960.
Ano da Reforma Agrária

 

Sr. Ernesto Sábato
Santos Lugares – Argentina

 

Estimado compatriota:

 

Faz já uns quinze anos, quando conheci um filho seu, que já deve estar próximo dos vinte, e sua mulher, naquele lugar creio que chamado de Cabalango, em Carlos Paz, e depois, quando li seu livro Uno y el Universo, que me fascinou, não pensava que seria você – possuidor do que para mim era o mais sagrado no mundo, o título de escritor – quem me pediria com o andar do tempo uma definição, uma tarefa de reencontro, como você diz, baseada em uma autoridade abonada por alguns fatos e muitos fenômenos subjetivos.

Fixava estes relatos preliminares apenas para recordar-lhe que pertenço, apesar de tudo, à terra onde nasci e que ainda sou capaz de sentir profundamente todas suas alegrias, todas suas esperanças e também suas decepções. Seria difícil explicar-lhe porque “isto” não é Revolução Libertadora: teria talvez de dizer-lhe que nela vi as aspas nas palavras que você denuncia nos dias em que se iniciava e eu identifiquei aquela palavra com o que havia acontecido em uma Guatemala que acabava de abandonar, vencido e quase decepcionado. Como eu, estávamos todos os que tivemos uma primeira participação nessa aventura estranha e os que fomos aprofundando nosso sentimento revolucionário no contato com as massas camponesas, em uma profunda interrelação, durante dois anos de lutas cruéis e trabalhos realmente grandes.

Não podíamos ser “libertadora” pois não fazíamos parte de um exército plutocrático mas sim um novo exército popular, levantado em armas para destruir o velho; e não podíamos ser “libertadora” porque nossa bandeira de combate não era uma vaca mas, em todo caso, um aramado de cerca latifundiária destroçado por um trator, como é hoje a insígnia de nosso INRA. Não podíamos ser “libertadora” porque nossas empregadinhas choraram de alegria no dia em que Batista se foi e entramos em La Habana. Hoje elas continuam dando testemunho de todas as manifestações e de todas as ingênuas conspirações da gente do Country Club, que é a mesma gente que você conheceu lá e que foram às vezes seus companheiros de ódio contra o peronismo.

Aqui, a forma de submissão da intelectualidade tomou um aspecto muito menos sutil do que na Argentina. Aqui, a intelectualidade era escrava mesmo, não disfarçada de indiferente, como lá, e muito menos disfarçada de inteligente. Era uma escravidão simples, posta ao serviço de uma causa de opróbrio, sem complicações; vociferavam, simplesmente. Mas tudo isto não é mais que literatura. Remetê-lo, como você fez comigo, a um livro sobre a ideologia cubana, é remetê-lo um ano a frente. Hoje posso apenas mostrar, talvez com um intento sério, mas sumamente prático, como são nossas coisas de empíricos inveterados, este livro sobre a Guerra de Guerrilhas. É quase como uma demonstração pueril de que sei colocar uma palavra atrás da outra. Não tem a pretensão de explicar as grandes coisas que lhe inquietam e talvez nem mesmo pudesse explicá-las esse segundo livro que penso publicar, se as circunstâncias nacionais e internacionais não me obrigarem novamente a empunhar um fuzil (tarefa que desdenho como governante mas que me entusiasma como homem amante de aventura). Antecipando-lhe aquilo que pode vir ou não (no livro), posso dizer-lhe, tentando sintetizar, que esta Revolução é genuína criação da improvisação.

Em Sierra Maestra, um dirigente comunista que nos visitara, admirado com tanta improvisação e de como se ajustavam todas as peças que faziam funcionar por sua conta uma organização central, dizia que era o caos mais perfeitamente organizado do universo. Esta Revolução é assim porque caminhou muito mais rápido que sua ideologia anterior. Ao fim e ao cabo, Fidel Castro era um aspirante a deputado por um partido burguês, tão burguês e tão respeitável como podia ser o Partido Radical na Argentina. Que seguia os rastros de um líder desaparecido, Eduardo Chibás, com características que poderíamos julgar parecidas às do próprio Yrigoyen. Nós, que o seguíamos, éramos um grupo de homens com pouca preparação política, apenas uma carga de boa vontade e uma ingênua honradez. Assim chegamos gritando: “Em 56, seremos heróis ou mártires”. Um pouco antes havíamos gritado, ou melhor, Fidel havia gritado: “Vergonha contra dinheiro”. Sintetizávamos em frases simples nossas atitudes também simples.

A guerra nos revolucionou. Não há experiência mais profunda para um revolucionário que o ato da guerra; não o fato isolado de matar, nem o de portar o fuzil ou estabelecer este ou aquele tipo de luta. É a totalidade do fato guerreiro, o saber que um homem armado vale como uma unidade combatente, vale tanto quanto qualquer homem armado e já pode não mais temer outros homens armados. Ir explicando, nós, os dirigentes, aos camponeses indefesos, como podiam apanhar um fuzil e demonstrar àqueles soldados que um camponês armado valia tanto quanto o melhor dentre eles. Ir também aprendendo como a força de um só não vale nada se não está rodeada da força de todos. Ir aprendendo, assim mesmo, como as diretrizes revolucionárias têm de responder a palpitantes anseios do povo. Ir aprendendo a conhecer o povo, seus anseios mais profundos, e convertê-los em bandeira de agitação política. Nós todos fizemos isso e compreendemos que a ânsia do camponês pela terra era o mais forte estímulo de luta que se podia encontrar em Cuba. Fidel entendeu muitas coisas mais; desenvolveu-se como o extraordinário condutor de homens que é hoje e como o gigantesco poder aglutinante de nosso povo.

Pois Fidel, sobre todas as coisas, é o aglutinante por excelência, o condutor indiscutido que suprime todas as divergências e destrói com sua desaprovação. Utilizado muitas vezes, desafiado outras, por dinheiro ou ambição, é sempre temido pelos seus adversários. Assim nasceu esta Revolução, assim foram sendo criadas suas diretrizes e assim foi-se teorizando sobre fatos, pouco a pouco, para criar uma ideologia que vinha atrás dos acontecimentos. Quando lançamos nossa Lei de Reforma Agrária em Sierra Maestra, há tempos haviam sido feitas repartições de terras no mesmo lugar. Após compreender na prática uma série de fatores, expusemos nossa primeira tímida lei, que não se aventurava no mais fundamental, a supressão dos latifundiários.

Não fomos demasiado maus para a imprensa continental por duas causas. Primeiro, porque Fidel Castro é um político extraordinário que nunca mostrou suas intenções além de certos limites e soube conquistar para si a admiração de certos repórteres de grandes empresas que simpatizavam com ele e utilizavam o caminho fácil na crônica de tipo sensacionalista. Segundo, simplesmente porque os norte-americanos, que são os grandes construtores de testes e padrões para medir tudo, eliminaram sua pontuação e o catalogaram.

Segundo seus documentos oficiais, onde dizia nacionalizaremos os serviços públicos, devia-se ler: evitaremos que isto aconteça se recebermos um razoável apoio. Onde dizia liquidaremos o latifúndio, devia-se ler utilizaremos o latifúndio como boa base para tirar dinheiro para nossa campanha política ou para nosso bolso, e assim sucessivamente. Jamais passou-lhes pela cabeça que o que Fidel Castro e nosso movimento disseram tão ingênua e drasticamente fosse a verdade do que pensávamos fazer. Constituímos assim o grande engodo deste meio século: dissemos a verdade parecendo tergiversá-la. Eisenhower diz que traímos nossos próprios princípios. É parte de sua verdade: traímos a imagem que eles fizeram de nós, como no conto do pastorzinho mentiroso, mas ao revés, e mesmo assim ele não acreditou em nós.

Assim estamos agora, falando uma linguagem que também é nova, porque seguimos caminhando muito mais rápido do que podemos pensar e estruturar nosso pensamento, estamos em um movimento contínuo e a teoria vai caminhando muito lentamente, tão lentamente que, após escrever este manual que lhe envio, nos pouquíssimos momentos de que disponho, achei que praticamente não serve para Cuba. Para nosso país, no entanto, pode servir: basta usá-lo com inteligência, sem precipitações nem artifícios.

Enquanto vão-se agudizando as situações externas e a tensão internacional aumenta, nossa Revolução, por necessidade de subsistência, deve se aguçar e, cada vez que a Revolução se aguça, aumenta a tensão e esta deve aguçar-se uma vez mais, em um círculo vicioso que parece ir se estreitando cada vez mais até romper-se; veremos então como sairemos do atoleiro. O que posso lhe assegurar é que este povo é forte, pois lutou e venceu e sabe o valor da vitória. Conhece o sabor das balas e bombas e também o sabor da opressão. Saberá lutar com uma inteireza exemplar. Ao mesmo tempo, asseguro-lhe que, naquele momento, embora eu agora faça uma tímida tentativa em tal sentido, teremos teorizado muito pouco e deveremos resolver os acontecimentos com a agilidade que a vida guerrilheira nos deu.

Sei que nesse dia sua arma de intelectual honrado disparará contra o inimigo, nosso inimigo. e que poderemos tê-lo presente e lutando conosco. Esta carta foi um pouco longa e não está isenta dessa parte de pose que gente simples como nós se impõe, ao tratar de demonstrar ante um pensador que somos também isso que não somos: pensadores. De qualquer forma, estou a sua disposição.

Ernesto Che Guevara


 

 

3 – Seamos nosotros mismos

 

Em função da visita de Nathalie Sarraute, mais uma vez manifestou-se esse colonialismo intelectual que constituiu outrora uma das nossas mais célebres calamidades nacionais, que ainda hoje torna a reaparecer em razão dessa espécie de turismo. As decisões dessa escritora sobre a realidade e o romance, seus estatutos sobre o destino da narrativa, suas ordens, mandamentos e disposições aos alunos aborígenes foram recebidos em meio a um adequado silêncio. Não só pelas senhoras que entre canastra e canastra ampliam – como quem diz – o círculo de suas inquietudes espirituais nas conferências da Aliança, como também por muitos membros da intelligentsia nativa.

Como conseqüência desta visita apostólica, tive de ouvir novamente vagas mas insistentes reprovações pelo ensaio que em 1963 publiquei em Sur sobre o nouveau roman. Reprovações que absolutamente não levavam em conta as idéias que nessa ocasião dirigi contra a moda – as pessoas que me incriminaram ou não as recordavam, ou não as haviam entendido ou nem sequer as haviam lido – mas sim o sacrilégio que minha atitude supunha.

Seria fecundo desenvolver uma sociologia e inclusive uma psicopatologia dos sentimentos e ressentimentos que dão origem a estes fenômenos de êxtase venerativo ante certas culturas prestigiosas e, particularmente, ante tudo que nos chega de Paris. Não podem ser explicados – como alguns sustentam – por simples inferioridade material, pois a França de nossos dias não é de modo algum uma potência econômica. Creio que intervêm sutis, complicados e múltiplos fatores. A França de Luís XV já não era a grande potência de Richelieu ou de Luís XIV, que fazia tremer a Europa. Sua cultura, no entanto, constituía um paradigma universal. Em todas as partes se construíam castelos versalhescos, o rococó incomodava em qualquer cidade da Itália ou Alemanha. Catarina II importava Diderot para que ilustrasse os brutos autóctones e, mesmo combatendo a França, Frederico II, da Prússia, rogava a Voltaire que se dignasse a visitá-lo. Chegou até o incômodo extremo de estudar em francês a metafísica de seu compatriota Christian Wolff, como esses granjeiros norte-americanos que não comem seus próprios espinafres antes que voltem enlatados de um frigorífico de Chicago. Não que fosse melhor estudar Wolff em francês – afinal este pobre homem havia pensado e escrito em alemão, e deve-se presumir que seu pensamento terá sido mais fielmente transcrito na língua originária – senão que a França era o país mais admirado, começando por suas cidades, que neste sentimento sempre precederam aos demais, talvez para estimulá-los e dar-lhes o exemplo. Castelos ou queijos, pensadores ou bebidas, filosofia ou lingerie, que podia se comparar com o francês? Quanto à língua, Voltaire definia seu gênio como “uma aptidão para dizer da maneira mais curta e harmoniosa o que outros idiomas dizem menos felizmente”. Como, sem ir muito longe, o revela a expressão qu’est-ce que c’est ça que, literalmente, se traduz por que é isso que isso é. Modestamente, em um idioma subdesenvolvido como o nosso, dizemos: que é isso?

Este exemplo deveria ser prejudicial para a afirmativa voltariana, mas de fato é incapaz de produzir-lhe o mais leve arranhão. Ao invés do que crêem os crédulos, não há que ver para crer mas sim crer para ver. As simples demonstrações didáticas jamais perturbam este gênero de catalepsia.

Que deveríamos dizer da Literatura? Não recordo em que conto de Puchkin uma velha condessa pede a seu sobrinho ou neto, em um russo salpicado de francês – o russo integral era reservado à criadagem – algo para passar o tempo. Como o rapaz lhe ofereceu um romance de um tal de Ivanov ou Gagarin ou Brejnev ou o que seja, a velha dama exclamou com surpresa: “mas então existem romances russos?” Idéia certamente tão prestigiada nas estepes eslavas, que um escritor da indústria nacional chamado Fedor Dostoievski quase enlouqueceu tentando escrever romances no estilo de George Sand, como o confessa em sua correspondência.

Que a mera potencialidade material não é a causa deste fenômeno – como imaginam os que têm da história uma estrita interpretação econômica – isto é provado pela manutenção e, em alguns casos, até o incremento deste magistério francês em nosso tempo, quando a França já passou a ser uma nação secundária. É algo misterioso, que me produz autêntica fascinação. Vejamos dois exemplos:

Durante cem anos, filósofos e escritores russos, alemães e escandinavos, enunciaram, discutiram e aprofundaram uma doutrina chamada existencialismo. Um sacrificado espanhol, Miguel de Unamuno, estudou em 1919 o dinamarquês, para ler Kierkegaard em sua língua original. Um re-sacrificado argentino – pois somos periferia de periferia, periferia na segunda potência – chamado Carlos Astrada, publicou em 1936 obras sobre fenomenologia e existencialismo. Não aconteceu nada.

Bastou que um francês descobrisse a doutrina, por volta da Segunda Guerra, para que o planeta inteiro – incluindo os mencionados alemães, daneses, russos, espanhóis e argentinos – enlouquecesse com a doutrina. Com o acréscimo de uma vasta metástase de melenas, vestidos, perfumes, canções e barbas, em virtude dessa outra peculiaridade francesa que inevitavelmente mistura a metafísica com Christian Dior e a ontologia com music-hall e cabeleireiros.

Há uns 27 anos, quando eu era estudante do Colégio Nacional, sabíamos o que era uma forma, uma Gestalt, uma estrutura, idéia que já estava em gérmen nos filósofos do romantismo alemão, no final do século XVIII. Perto daqui, no Instituto de Filologia, na Calle Florida, quando eu ia conversar com Amado Alonso e Henriquez Ureña, em 1944, não só se estudava a teoria do suíço Saussure como também suas obras eram traduzidas ao castelhano. Não aconteceu nada.

Dito isto, há que confessar agora o mais surpreendente: os franceses não são culpados, pois afinal não agem mal ao valorizar suas próprias burlas, difundindo-as desde Buenos Aires até Cingapura. Os verdadeiros culpados somos nós, os integrantes deste vasto arrabalde de Paris, sempre mais papistas que o papa. Paris, pelo contrário, sempre esteve aberta aos criadores chegados de qualquer parte do mundo, que mais não seja para apanhá-los e nacionalizá-los tão logo seja possível. Assim aconteceu com Picasso, com Henry Miller, com Samuel Beckett, com Marc Chagal, com inumeráveis judeus, romenos, italianos e libaneses. No que a nós diz respeito, bastaria ver o que ocorreu com um diretor de teatro como Lavelli, pintores como Segui e Macció, artistas como Le Parc e, sobretudo, com nossos melhores escritores.

Devemos então buscar a culpa em nós mesmos, em nossos sentimentos de inferioridade, em equivocadas idéias sobre nossa situação subalterna ou infantil? Nada mais falso. Os espanhóis começaram por difundir a crença que balbuciamos aqui um dialeto malsão da língua de Castilla, o que implica a singular convicção de uma língua invariável e perfeita, sentada em uma Cátedra Absoluta em Toledo ou em Talavera de la Reina.

Ocupei-me longamente desta peregrina teoria em vários livros para que necessite voltar a refutá-la. Permaneceu a tese de que o “meridiano da cultura da língua castelhana passa por Madri”, em virtude da qual nossos aterrorizados professores do ensino secundário nos injetavam a prosa de Pereda, Alarcón, a condessa de Pardo Bazán e até mesmo Ricardo León, em lugar de Sarmiento – maior que todos eles juntos – de Cambaceres, Quiroga, Lynch, Guiraldes ou Roberto Arlt, para não falar dos escritores contemporâneos. Era de mau gosto falar de um criador vivo, ou talvez se acreditasse que nenhum artista vivo pode ser importante, dando assim à morte um milagroso poder multiplicador, ao ponto de converter em imortais Pereda ou Alarcón pela simples razão de que morreram.

Tudo isto é um disparate. Um escritor argentino é tão descendente de Berceo ou Cervantes como um escritor de Madri e, a julgar pelos fatos atuais, com muito mais resultado. Não somos uma “nova literatura”, nem devemos considerar-nos como adolescentes das artes e das letras, pelo fato de pertencer a uma nação que politicamente libertou-se há século e meio. A revolução de Maio pode produzir uma insígnia, não uma literatura estritamente nova. Frente às literaturas seculares de França ou Itália, podemos e devemos reivindicar a secular e quase milenar criação da língua castelhana. Por que temos de sentir-nos crianças de peito ao lado de um Robbe-Grillet? O mesmo cabe dizer com respeito ao pensamento, já que pertencemos em definitivo ao mesmo âmbito cultural dos alemães, franceses e italianos. Descendemos todos do ancestral acervo greco-latino-judaico. Nossos antepassados intelectuais não são Calfucurá e Caupolicán, mas Heráclito e o Eclesiastes, Platão e a Odisséia, Virgílio e a Divina Comédia, embora, evidentemente, todas nossas criações tenham o acento de um território diferente e de uma realidade com seus próprios matizes.

Quanto ao nouveau roman, para finalizar com o que suscitou estas reflexões, posto que muitos epígonos nacionais persistem em sua idolatria, quando já na Europa ficou reduzido a seus justos e modestos limites – pois aqui as modas chegam tarde e se retiram muito tempo após terem morrido em Paris– vejo-me obrigado a dizer que as críticas filosóficas e estéticas que fiz em 1963, em pleno apogeu da moda, foram logo confirmadas pelos fatos e pelas refutações de outros ensaístas europeus.

Embora o noveau roman não tenha produzido nenhum grande escritor – como sempre sucede com os movimentos bizantinos– revelou narradores interessantes, entre eles e sobretudo Robbe-Grillet, o mais original do grupo. Naquele ensaio em Sur não neguei seus méritos literários nem os de Nathalie Sarraute, senão suas pretensões filosóficas, o absolutismo de seus ditames, o insolente terrorismo de seus ensaios, a confusão e as contradições da doutrina. Analisei, em particular, L’ére du soupçon, de Nathalie Sarraute. Mais conciliadora – não terá sido golpeada em vão–, agora elogia Proust, depois de ter dele rido nesse livrinho, fazendo ironias fáceis sobre sua pretensão de couper les cheveux en quatre (que outra coisa faz ela mesmo?), de suas análises psicológicas, de sua pretensão de descer aos “abismos da consciência”. Sustenta que logo – hélas! – chegaria o momento em que os colegiais percorreriam suas obras com um mestre, da mesma forma que percorremos ruínas prestigiosas.

Por um desses mecanismos que produzem os parricídios ou pelo menos o ódio contra os pais, nesse livrinho – recém traduzido ao castelhano – como essa luz que nos chega à Terra desde estrelas já extintas, descarrega seu ressentimento contra os dois geniais criadores dos quais ela descende: Marcel Proust e Virginia Woolf. Embora elogie prudentemente agora o primeiro, continua negando escritores das dimensões de um Camus, Malraux, Henry Miller, Pavese, Beckett, Thomas Mann ou Sartre, esse mesmo Sartre que, com a grandeza espiritual e a generosidade que o caracterizam, prologou seu primeiro livro.

Que uma pessoa com estas características manifeste, em feitos e palavras, não me ter perdoado aquele ensaio em Sur, não me espanta. Tampouco me espanta que mantenham sua sacra indignação os aborígenes e os pequenos imitadores – todo imitador é pequeno–, que me olharam então como um monstro reacionário, como um negador do Progresso e das Vanguarda Literária. O que me espanta é que ainda existam aqui pessoas que não entendam que com esse tipo de fetichismo não conseguiremos a independência definitiva, para construir o que constitui uma genuína cultura nacional: algo que reconhece seu ancestral europeu, mas não acata servilmente seus atuais descendentes de Paris.


 

 

4 – Cronologia

 

1911 – Nasce em Rojas, província de Buenos Aires.
1923 – Começa curso secundário na Universidad de la Plata.
1926 – Entra no movimento anarquista.
1929 – Ingressa na Juventude Comunista de La Plata e na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas.
1930 – Primeira ditadura militar na Argentina, repressão violenta ao movimento operário e estudantil. Entra na clandestinidade. Fuzilamento dos anarquistas Di Giovanni e Scarfó. Tortura e assassinatos de militantes do anarquismo e do comunismo. Ocupa cargos importantes no Comitê Central da Juventude Comunista.
1934 – Casa-se com Matilde Kuminsky-Richter. Vão aumentando suas discordâncias políticas e filosóficas com o marxismo, o que faz com que os dirigentes do partido o enviem às Escolas Leninistas de Moscou, mas antes deve participar do Congresso contra o Fascismo e a Guerra, em Bruxelas, presidido por Henri Barbusse. Encontra-se com dirigentes do mundo todo e confirma suas suspeitas, que culminam com o começo dos “processos” de Moscou. Decide fugir do congresso e vai para Paris, onde passa o inverno de 34-35 na clandestinidade e na miséria. Volta a La Plata, já decidido a trocar a ciência pela literatura, que vinha praticando desde a adolescência, como também a pintura. Ensina física quântica e relatividade no Curso de Doutorado em Ciências Físico-Matemáticas.
1938 – Doutorado em Ciências Físico-Matemáticas, Universidad de La Plata.
1939 – Recebe bolsa do professor B. Houssay, prêmio Nobel de Medicina, para trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. Vinculação com os surrealistas.
1943 – Abandona suas cátedras e a ciência para sempre. Vai viver com Matilde Kuminsky-Richter em um rancho nas montanhas de Córdova, onde fica um ano e escreve Uno y el Universo.
1945 – Publicação de Uno y el Universo, prêmio de Prosa da Cidade de Buenos Aires.
1947 – Toma partido contra Perón, perde sua cadeira na universidade e volta a Paris para assumir um cargo na Unesco, no qual permanece dois meses. Em uma estação de trens em Zurique, escreve a abertura de El Túnel.
1948 – Publicação de El Túnel.
1951Hombres y Engranajes.
1955 – É nomeado diretor do semanário Mundo Argentino, onde denuncia as torturas e a falta de liberdade de imprensa durante o governo Aramburu.
1956 – Sofrendo pressões do delegado militar que censura o Mundo Argentino, abandona a direção do mesmo e 35 redatores se demitem em solidariedade.
1958 – É nomeado diretor-geral de Relações Culturais pelo presidente Frondizi, função na qual permanece por quase um ano.
1961Sobre Héroes y Tumbas.
1962 – Viagem à Europa, conferências em Madri, Paris, Roma, etc.
1963El escritor y sus fantasmas. Conferências em Porto Rico e Estados Unidos.
1966 – Publicação do primeiro tomo de obras completas, Ficciones.
1967 – Morte de Che Guevara. Sábato faz o elogio do guerrilheiro na Universidade de Paris. O episódio fará parte de Abaddón, el Exterminador.
1968Tres aproximaciones a la literatura de nuestro tiempo.
1969Itinerários, antologia reunindo seus ensaios.
1973La cultura en la encrucijada Nacional. Prêmio do Instituto de Relações Exteriores, Stuttgart, Alemanha.
1974Abaddón, el Exterminador. Gran Premio de Honor, da Sociedade Argentina de Escritores. Chévalier de la Légion d’Honneur, França.
1975 – Premio de Consagración Nacional, Argentina.
1976 – Prix au Meilleur Livre Etranger, Paris, pela tradução francesa de Abaddón, el Exterminador.
1979Apologias y rechazos.
1983 – Gran Cruz, Espanha. Semana de Homenagens no Instituto de Cooperación Iberoamericana, Madri.
1984 – Assume a presidência da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas). Desta comissão resulta Nunca Más, relatório que investiga as violações aos direitos humanos na Argentina durante as ditaduras militares. Prêmio Gabriela Mistral, OEA, Washington. Prêmio Miguel de Cervantes, Madri.
1986 – Jurado na Bienal de Artes Plásticas, Veneza. Homenagens na Biblioteca do Congresso, EUA, nas universidades George Washington e John Hopkins, de Baltimore.
1987 – Commandeur de la Légion d’Honneur, França. Homenagem na Sorbonne, Paris. Prêmio R. H. Valle, México.
1988 – Semana de Homenagens na Universidade Nova York.
1989 – Prêmio Jerusalém, Israel. Semana de Homenagens no Centro Pompidou, Paris. Primeira exposição de pintura, no Petit Foyer do Centro Pompidou.
1992 – Segunda exposição, no Centro Cultural de la Villa de Madrid. Terceira em La Galerie, Paris.
1994 – Exposição no MASP, São Paulo.
1998 – Publica Antes del fín, memórias.


 

 

5 – Obra

 

Ficção

El Túnel

Sobre Heroes y Tumbas

Abaddón, el Exterminador

Ensaios

Uno y el universo

El escritor y sus fantasmas

Hombres y engranajes

Heterodoxia

Tres aproximaciones a la literatura de nuestro tiempo

La cultura en la encrucijada nacional

Páginas vivas

El caso Sábato – Torturas y libertad de prensa

Tango, discusión y clave

El otro rostro del peronismo

Diálogos Borges – Sábato

La robotización del hombre y otras páginas

Apologias y rechazos

Obras – Ensayos

Antes del fín

Discografia

Romance de la muerte de Juan Lavalle

Ernesto Sábato por el mismo


 

 

6 – Traduções

 

Ao alemão, esloveno, italiano, inglês, francês, português, brasileiro, norueguês, polonês, russo, sueco, dinamarquês, grego, servocroata, romeno, hebreu, árabe, albanês, tcheco, eslovaco, húngaro, japonês, búlgaro, finlandês, estônio, holandês, turco e coreano. No Brasil estão traduzidos El Túnel, Sobre Heroes y Tumbas, Abaddón, el Exterminador, Uno y el Universo, El Escritor y sus Fantasmas, Hombres y Engranajes, Heterodoxia e Tres Aproximaciones a la Literatura de nuestro Tiempo.


 

 

7 – Fortuna crítica

 

BALKENENDE, L. Aproximación a la novelística de Sábato (Poesia y   vaticínio). Buenos Aires, Plus Ultra, 1983

BARRERA LÓPEZ, T. La estructura de ‘Abaddón, el Exterminador’. Sevilha, Escuela de Estudios Hispanoamericanos, 1982

BEUCHAT, C. Psicoanálisis y Argentina en una novela de Ernesto Sábato.Santiago, Universidad Católica de Chile, 1966

CATANIA, Carlos. Sábato, entre la idea y la sangre. San José de Costa Rica, Editorial Costa Rica, 1973. Genio y figura de Ernesto Sábato. Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1987. Meus Fantasmas (entrevistas com Carlos Catania). Francisco AlvesEditora, 1988

CERSOSIMO, Emilse Beatriz. Sobre Heroes y Tumbas, de los caracteres a  la metafísica. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1972

CORREA, Maria Angelica. Ernesto Sábato, el hombre y su obra. Buenos  Aires, Eudeba, 1970. Literatura y profecía. Arlt, Sábato, Marechal, Güiraldes. Buenos Aires, Centro de Investigación y Acción Educativa, 1982

CRISTALDO, Janer. Approches d’un thème littéraire: la révolte chez Albert Camus et Ernesto Sábato. Tese de doutorado, Université de la Sorbonne Nouvelle, março de 1981. Tradução brasileira: Mensageiros  das Fúrias. Editora da UFSC, Florianópolis, 1983

DELLEPIANE, Angela. Ernesto Sábato, el hombre y su obra. Nova York, Las Americas Publishing Co., 1968. Sábato. Un análisis de su narrativa. Buenos Aires, Editorial Nova, 1970

GIACOMAN, Helmy F. et alii. Homenaje a Ernesto Sábato. Nova York, Anaya-Las Americas, 1973. Los personajes de Sábato. Buenos Aires, Emecé, 1972

INSTITUTO DE COOPERACIÓN IBEROAMERICANA. Madri, CuadernosHispanoamericanos, n. 391-393, 1983.

JIMENES-GRULLÓN, I. AntiSábato o Ernesto Sábato: un escritor  dominado por fantasmas. Maracaibo, Universidad del Zulia, 1968

LOMBARDI, Lilia Boscán de. Aproximaciones críticas a la narrativa de  Ernesto Sábato. Maracaíbo, Universidad de Zulia, 1978

MARTINEZ, Z. Nelly. Ernesto Sábato. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1974

MARTINEZ DA COSTA, Sílvia. El Informe sobre Ciegos de Ernesto Sábato. Miami, Ediciones Universal, 1972

MATURO, G. ‘El túnel’ de E.S. como acceso a la vida nueva. Buenos Aires, Cela, 1983

MORÓN, G. Dos novelistas hispanoamericanos: Arturo Uslar Pietri y Ernesto Sábato. Buenos Aires, Embajada de Venezuela, 1979

MURTAGH, Maria Isabel. Páginas vivas de Ernesto Sábato. Buenos Aires, Kapelusz, 1974

NEYRA, Joaquín. Ernesto Sábato. Buenos Aires, Ministerio de Cultura y Educación, 1973

OBERHELMAN, Harley D. Ernesto Sábato. Nova York, Twayne Publishers,  1970

PAGEAUX, Daniel-Henri. Ernesto Sabato, la littérature comme absolu. Paris, Editions Caribéennes, 1989

PAOLETTI, Mario. Sábato oral. Madri, Ediciones Cultura Hispanica, 1984

PREDMORE, James. R. Un estudio crítico de las novelas de ErnestoSábato. Madri, Ediciones José Porrúa Turanzas, 1981

PETERSEN, F. Ernesto Sábato: Essayist and Novelist. Tese de doutorado,  Washington, University of Washington, 1963

PETREA, M. Ernesto Sábato: la nada y la metafísica de la esperanza. Madri, Porrúa Turanzas, 1986

POLAKOVIC, E. La clave para la obra de Ernesto Sábato. Buenos Aires, Ed. Universidad del Salvador, 1981

QUIROGA DE CEBOLLERO, C. Entrando en el túnel de Ernesto Sábato. San Juan de Puerto Rico, Uprex, Universidad de Puerto Rico, 1971

REYES, S. M. Ernesto Sábato y su compromisso con el hombre. Santa Fe, Colmena, 1982

RICCI DELLA GRISA, G. N. Realismo mágico y conciencia mítica en América Latina. Buenos Aires, F. García Cambeiro, 1985

RODRÍGUEZ, A. M. La creación corregida. Estudio comparativo de la   obra de Ernesto Sábato y Alain Robbe-Grillet. Caracas, Universidad Católica Andrés Bello, 1976

UMAÑA PORTILLO, H. E. Sábato y el universo. Guatemala, Universidad de San Carlos de Guatemala, 1976

UZAL, F. H. Nación, sionismo y masonería: rectificaciones a Ernesto Sábato. Buenos Aires, Corregidor, 1980

VÁZQUEZ BIGI, A.M. Epica Dadora de Eternidad – Sábato en la crítica americana y europea. Buenos Aires, Sudamericana-Planeta, 1985

WAINERMAN, Luis. Sábato y el mistério de los ciegos. Buenos Aires, Losada, 1971


 

 

8 – O escritor visto pela crítica

 

Sobre El Túnel

Um romance impressionante. (Thomas Mann)

Admirável em sua sequidão e intensidade.(Albert Camus)

Tenho profunda admiração por sua análise psicológica. (Graham Greene)

Deslumbrante, perturbador, nada menos que a criação de um gênio. (Douglas Unger)

Obra-prima. (Soderhjelm, Estocolmo)

Castel é um dos grandes personagens do gênero romance. (Cuadernos Hispanoamericanos, Madri)

Horror psicológico que Poe, Maupassant e Bierce teriam admirado. (Washington Star)

À altura da Sonata de Kreutzer, de Tolstoi (Svenska Dagbladet, Estocolmo)

Buenos Aires deu ao mundo três grandes escritores: Borges, Cortázar e Sábato, o grande vidente. (Le Magazin Littéraire, Paris)

Um belo poema de loucura e morte. (Le Soir, Paris)

Alucinante. (Lire, Paris)

A melhor introdução ao universo literário de Sábato. (L’Express, Paris)

Esta tragédia se desenvolve com o mesmo sentido augusto e incompreensível das tragédias gregas. (Reunión, Buenos Aires)

Um Édipo diante da esfinge. (Le Monde, Paris)

Simbolismo que atinge as regiões mais profundas e universais. (Chronicle, San Francisco)

Este alucinante drama da vida interior de três seres comprometidos com a frenética busca de compreensão que empreende o protagonista Juan Pablo Castel nos traz o tema clássico da chamada “literatura existencial”. No entanto, o drama de El Túnel não compartilha nem a unilateralidade do negativismo sartriano, nem fica na pura fatualidade de questões inexploradas, como as que assistimos em L’Étranger, de Camus. (Anna-Teresa Tymieniecka)

A literatura de Sábato se erige em zonas muito próximas ao mundo mítico forjado por Faulkner. O que no entanto distingue a obra do escritor argentino é, de uma parte, a síntese fantástica feita entre a análise realista das relações humanas e a visão alucinada do destino, da cega fatalidade que as modela. Em sua concepção do amor, chega a uma significação dramática de uma solenidade que foi alcançada senão nos pensadores neoplatônicos. Há poucas páginas onde a solidão e o isolamento do criador se manifestem com tanta força lírica e com tão frias conclusões como nos escritos de Sábato. (F. Pacuriaru, em Forfiluri hispano-americane contemporane, Bucareste)

Sobre Héroes y Tumbas

Não conheço nenhuma obra que nos introduza melhor aos segredos da sensibilidade contemporânea da América Latina. em seus mitos, fobias e alucinações. Mas seu conteúdo é universal, atravessado pela poderosa metáfora do “Informe sobre cegos”. (Witold Gombrowicz)

Os escritores se dividiram sempre entre experts de sua arte, e por outro lado, os que escreveram porque não tiveram outra saída, os que só mediante a literatura puderam suportar o peso da existência, o sofrimento próprio e o sofrimento do mundo. Hölderlin, Rimbaud, Lautréamont, Dostoievski, Strindberg, Kafka, Malcolm Lowry e Jean Genet formam a breve lista dos mártires na qual se inscreve o nome de Sábato.

Atrevo-me a afirmar que em toda a literatura latino-americana não há outra obra que aglutine de tal maneira o nacional e o universal: inquietudes e temores, sentimentos, problemas do bem e do mal, o drama do amor, da esperança e da morte, comuns a todo gênero humano, mas em uma visão concreta do mundo em que estão situados. A Buenos Aires de Sábato é reconhecida fisicamente, como uma destas cidades dos gigantes do realismo: a Paris de Balzac, a Petersburgo de Dostoievski, a Dublin de Joyce. (Jerszy Kuhn, na revista Twórczosc, Polônia)

Um Apocalipse de nosso tempo. (Salvatore Quasimodo, na revista Tempo, Milão)

Conjunto épico-coral, drama da salvação, escalafriante e demoníaco. (Oreste Macri, da Universidade de Florença, em La Nazione)

Conseguiu com gênio o que Durrel fez apenas com talento. (Le Nouvel Observateur, Paris)

Uma demonologia. (Guido Piovene, La Stampa, Turim)

Nada mais alucinante desde Sob o Vulcão. (Le Monde, Paris)

Um delírio que teria feito Lautréamont empalidecer de inveja. (Maurice Nadeau, La Quinzaine Littéraire, Paris)

A Buenos Aires de Sábato é tão visceralmente real como a São Petersburgo de Dostoievski. (G. C. Vigorelli, Tempo, Roma)

Um poderoso e inesquecível sonhador. (Time, Nova York)

Depois da aparição de Borges, Sábato se impõe com esta novela apocalíptica. (Neue Zuricher Zeitung, Zurique)

Alucinante. Sábato e Borges são os dois grandes antagonistas da literatura argentina. (Corriere Mercantile, Genova)

Genial, uma das mais assombrosas manifestações de nosso tempo, um dos livros do século. (Die Welt, Berlim)

Por si só, o extraordinário “Informe sobre Cegos” justificaria o êxito. (L’Express, Paris)

Apenas sua substância o faria fascinante, se não estivesse realizado com tanto gênio. (Hessischer Rundfunk, Alemanha)

Fascinante, uma espeleologia entre a realidade e os grandes abismos da alma. (La Tribune de Genève, Genebra)

Uma paisagem dostoievskiana. (Saturday Review, Estados Unidos)

Grandioso. Um escritor diante do qual deveria tirar o chapéu a elite dos escritores europeus. (Berliner Morgenpost, Berlim)

Uma obra-prima da literatura universal. (Bucherschift, Alemanha)

Com esta assombrosa criação, Sábato se converte no escritor mais importante da Argentina. (Das Tageulatt)

A grandiosa metáfora do “Informe sobre Cegos” é a chave de um pesadelo de nosso tempo. (P. Cimatti, La Feria Letteraria, Roma)

Se há um romance que prova a grandeza da literatura latino-americana, este é Sobre Heroes y Tumbas. A seu lado há Cem Anos de Solidão e outros, mas em nenhum deles é tão presente a transcendência da obra de arte. (Folha de São Paulo, Brasil)

Enfeitiçante, barroco, monumental, um filme de Buñuel com script de Dostoievski. (Newsweek, Nova York)

A exigência de Kafka que um livro deve um machado para o mal gélido que dentro de nós se cumpre no romance de Sábato de modo estremecedor. (Manheimer Morgen, Alemanha)

Sobre Abaddón, el Exterminador

Sábato, poeta do Apocalipse, não é seu profeta, como João, mas seu testemunha ocular. Obra grandiosa e alucinante, uma introdução ao reino dos demônios que estão fora e dentro de nós. Se este romance é sua despedida da literatura, Sábato erigiu-se um monumento imponente. (Günther Lorenz, em Die Welt, Berlim)

Que o leitor se precipite neste túnel enlouquecedor. (Les Nouvelles Littéraires, Paris)

A Divina Comédia do “no mans-land”.(Le Monde, Paris)

Um enorme romance onírico, visionário, profético. (Le Figaro, Paris)

Grandioso e exasperante. (Magazine Littéraire, Paris)

O maior dos escritores vivos. (A. Borjaska, Nowe Ksiazki, Varsóvia)

Talvez o que mais fundo tenha evocado as potências do Mal. Alucinado, grave e fantástico. (La libre Belgique)

Um destes poucos e raros romances que exige um certo tempo para penetrarmos em sua magia, como acontece com outros grandes: Proust, Joyce, Kafka, Brosch. (Arthur Lindqvist, da Real Academia Sueca, Estocolmo)

Eclipsa seu ilustre compatriota Borges. (Nürember Zeitung, Alemanha)

Como se uma galáxia, em sua marcha pelos abismos, fosse deixando brilhar novas constelações. (ABC, Madri)

Romance monstruoso, terrível e profético.(Mensaje, Chile)

Um texto onde a epifania da narrativa é a epifania mais terrível. (Revista Iberoamericana)

No plano nacional, Sábato forma com Borges e Cortázar um supremo triângulo, no qual conserva fisionomia própria. Distancia-se da intemporalidade de Borges, devido a seu calor humano e a sua capacidade de assumir a qualidade de testemunho do homem concreto e das vagas da história de nosso tempo. Frente a Cortázar, transfere o centro da arte narrativa do acontecimento espantoso e fantástico para exploração estarrecida da psicologia abissal e, frente ao brilhante jogo intelectual do primeiro, a vivência grave, intensa e veemente do homem ameaçado pelo apocalipse, mas também, possivelmente, salvo por uma catarse que integra a pureza, o heroísmo, a meditação e a criação artística. No plano universal, poderíamos vinculá-lo a um conjunto de obras candentes e inquietantes, desde as tragédias de Sófocles às Confissões de Santo Agostinho, passando pelos pensadores pascalianos da miséria e grandeza do ser humano até aquela, plongée dans le gouffre, de Baudelaire e Rimbaud. Com Kafka tem em comum a propensão ao pesadelo e à metamorfose monstruosa, mas vai além, por levar este horror até a visão do Apocalipse, e porque em sua obra este horror está compensado pela esperança. (Paul Alexandru Georgescu, Universidade de Bucareste, em Homenagem a Sábato em seus 70 anos)


 

 

9 – O pintor visto pela crítica

 

A exposição do Beaubourg foi um grande choque, um acontecimento muito grave. Sua obra, suas temíveis raízes, sua insuportável gênese, em tudo reconheci o que tratamos de eludir. Jamais fui confrontada de tal maneira, com uma verdade tão perigosa que parece impensável. É como reinventar a pintura de alguém que se converte em outro médium, como van Gogh. Voltei ao Beaubourg para revê-la, tentando penetrar seu mistério, o segredo sempre necessário para respirar de verdade. (Viviane Forrestier)

Adolescente, devorei seus livros, que admiro profundamente. Em seguida, descobri sua pintura no Beaubourg, e foi, uma vez mais, o deslumbramento do relâmpago, um mundo crepuscular e furioso sobre o qual é perigoso inclinar-se e que, ao mesmo tempo, seria imperdoável não fazê-lo. Um dos grandes alucinados da pintura. (Nelly Kaplan)

Um labirinto subterrâneo que representa desde o mito do Minotauro à tormenta que agita todo espírito humano, habitado sempre por anjos e demônios. Quadros de espectros, de criaturas fosforescentes, como que iluminados pelos fogos de Santelmo, com olhos que olham como em um pesadelo. Imagens infernais do abismo da alma humana, cuja beleza nasce de seu próprio horror. Perseguido pelos fantasmas da loucura, Sábato coincide com os medos que atormentaram os grandes criadores desde séculos. Seu pânico à cegueira revela o mesmo tormento que conduziu Goya à sua pintura negra, ou à epilepsia que convulsionou as páginas de Dostoievski. Excepcional testemunha deste século que chega a seu fim, um testemunho de seus horrores e pesadelos. (José Manuel Fajardo, Cambio 16, Madri)

Entre os escritores hispano-americanos de nosso tempo, Sábato não é apenas, talvez, o maior inventor de formas, alguém que desenvolve um projeto de romance integral – como Joyce, Musil – mas também uma das vozes mais inquietantes e pessoais, descrevendo elementos da condição humana que haviam sido ignorados, iluminando zonas de indeterminação e angústia que ninguém antes havia tratado desta forma. E provavelmente restará por ambas as coisas: por uma fenomenologia da condição humana formalmente nova e pela descrição de territórios nunca transitados. No entanto, sua pintura não é literária: pinta a partir de sua visão do universo já expressada em outra forma, mas oferecendo pintura pura. Muitos escritores, como Goethe ou Victor Hugo, pintaram em seus momentos de lazer; Sábato pertence a outra raça, aquela dos Henri Michaux ou Kokoschka. Gozando dos dons que o tratamento da matéria produz, de forma artesanal, nos ensina a olhar – e em que outra coisa consiste a pintura? – mas ao olhar estamos contemplando a visão de um homem que provocou uma ruptura com a chamada “modernidade”, que nos obriga a entender a arte como uma espécie de prece, como se se pretendesse evocar os fantasmas e ao mesmo tempo conjurá-los. Não é outra a forma que tinham e têm os homens primitivos de criar arte. Ao fazer aparecer essa imagens do sonho e da vigília, essas vibrações puras de cor, estas chamas de luz que estão como que acossando o quadro, ocorre a ação principal da grande arte contemporânea, que consiste em romper nossos esquemas positivistas e sociológicos, para tornar-nos partícipes da consagração do real em sua enorme complexidade. O que só se pode visitar, recordar ou sentir nos limites da loucura: oceano de imagens que surgem e desaparecem. Nos quadros dos últimos anos, isto predomina em matéria plástica, em imagem pura, em cor e luz. Um poder expressivo tão acorde com esse mundo que ele vê e que nós, a maioria, recusamos ver, porque revelar o mundo do terror essencial, revelar o mistério da angústia de existir, enfocar o domínio da loucura e o desejo e não se tornar louco é quase um milagre. Ou talvez isto se entenda se se trata de um ato religioso, sagrado, a assunção de um olhar que chega a ver o que está proibido, que nada tem a ver com as religiões estabelecidas. O passo de gigante na pintura de Sábato sempre se reproduz porque não se deixa influir por escolas – embora de algumas receba o melhor – e ao mesmo tempo porque está assimilando formas que lhe são complementares. Através da série de máscaras, o gozoso pintor das bodegas, do candor exultante do existente, dá passagem a um outro poeta: o terrorífico descritor de nossos universos pessoais. (Miguel Rubio, Cuadernos Hispano-Americanos, Madri)

A pintura de Sábato é sobretudo inquietante. Tens um demônio. Pinta-o, lhe terá dito Goethe. É arte de exorcista. Os fantasmas de seus romances, de sua vida, habitam suas invenções plásticas. Mas, o mais importante: há vontade de pintura, riqueza de matéria torturada, plasticidade pura. A liberdade que lhe permite expressar estes ambientes terríveis e visionários, procede em boa parte da liberdade preconizada pela arte contemporânea, que valoriza mais a verdade profunda que a correção escolástica. Só assim se poderia, fazendo dormir a própria razão, criar monstros credíveis. Se licenças são permitidas – a arte contemporânea o permite – rabiscos expressivos, choques violentos de tons, dissonâncias schoenberguianas que não se permite em sua prosa. Pinta o que não se atreve a escrever, o que sabe que não se pode escrever, porque um mundo dantesco seria ainda mais dantesco antes de ser aprisionado em tercetos. Passa, horrorizado, entre castelos dissolvidos na noite sem estrelas, fogos de vulcões ou infernos, grades, cárceres ou castelos kafkianos, nuvens ou constelações letais, cubículos de alquimistas, seres da desolação e do espanto: tudo isso resgatado pela mão esquerda de um pintor. (José Hierro, El Sol, Madri)

Tinha diante de mim a prova de uma aventura espiritual que havia atravessado o inferno e que mostrava que, após a aceitação do inferno, era possível o gozo da inocência. Era um prodígio. Não me refiro à qualidade de suas pinturas, à harmonia brutal – original, desobediente – daquelas cores que o rigor catedrático decretou que são hostis entre si e que, naquelas telas de Sábato, demonstram que são aliança (Ésquilo: “uma verdadeira aliança: uma aliança de desgraças”) e que combatem juntas. Não me refiro ao suspiro misterioso que se pode escutar com os olhos naquelas massas de matérias cheias de luxúria expressiva e de uma sinistra beleza, como explosões de desventuras. Me refiro à luz. O prodígio está na luz. Eu a vi de imediato e soube que não era unicamente o resultado de uma combinação de cores em um espaço, mostrando a sabedoria de um artista plástico, mas que era também e sobretudo um estado de ânimo prodigioso, um estado que alguém havia conseguido conquistar após ter sido violentamente náufrago de um oceano de infortúnio e desconsolo. E soube que esse estado de ânimo tem um nome: a inocência. Esta luz militante, beligerante, recém-surgida não da aurora, mas do inferno. Recém-surgida não da matéria cósmica em estado de nascimento, mas do suspiro de compaixão que há no fundo da ansiedade, da angústia, do pudor e da orfandade. Esta luz que emerge da profundidade do tormento, que fala a mesma linguagem sigilosa com a qual nos falaria da redenção e que ao mesmo tempo aflige e deslumbra, como a inocência. (Felix Grande, El Sol, Madri)

O de seus pincéis, é um mundo furioso e crepuscular, uma alegoria de nosso mundo subterrâneo. Seus quadros são a dimensão de todo um símbolo. Desde a memória metafísica, nos oferece em suas pinturas o que nos obcecou em seus livros. A inquietante fantasmagoria visual de sua fábulas, que refletem uma humanidade perdida em suas próprias trevas. Nos oferece este tesouro com uma fé calada e triste, mas firme na hora da verdade. (Inocencio Arias, Madri)

Até os retratos têm um tremor convulso e abissal. É um alarido, um olhar sobre um mundo tenebroso e abismal, as sombras de uma impossível misericórdia. A violência das cores é a violência de uma ameaça. E as máscaras, neste patético expressionismo carnavalesco, revelam as profundezas do horror inominado. Não é uma pintura maldita: o malditismo é um conceito literário e, portanto, uma falsificação e um jogo. Aqui não é possível o jogo, mas só a desolação desamparada. É uma descida aos infernos, sem guia, em solidão. Entre alquimistas e fantasmas, o olhar de Sábato nem sequer é impertinente: é um grito de voz cortada. Não há cor ou traço que persiga uma remota sombra de harmonia ou de piedade. O vermelho é vermelho em ignição; o azul, violentamente sombrio; os pretos, um enigma inquietante; as máscaras, uma ameaça. Mesmo suas bodegas participam desta impiedade sonâmbula”. (JavierMillán, El Mundo, Madri)

Nesta exposição, além de seu valor intrínseco, demonstra-se que os autênticos criadores, embora troquem de meio de expressão, são sempre fiéis a um mundo particular. No caso de Sábato, um mundo que produz inquietude e ao mesmo tempo fascinação. (Ovídio, ABC, Madri)

A esfinge da mitologia devorava quem era incapaz de adivinhar seus enigmas. A pintura de Ernesto Sábato é muito mais feroz, mas prodigiosamente generosa em mistérios. Mostra-nos seus pesadelos e nos arrasta até onde a escritura parece deter-se. Afunda-nos em borbulhantes auroras e crepúsculos, em penugentas margens de sombra, onde estranhas figuras de morte, frutas e flores nos apertam o pescoço com uma angústia profunda e dolorosa. Suas visões sobrenaturais não buscam manifestar-se em uma expressão de vanguarda. Não há senão imagens e estrépitos ante a catástrofe absoluta. (Jean-Pierre Tasset, Le Figaro, Paris)


 

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Maio – 2000
Setembro – 2012

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