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DEVERES DO HOMEM

Giuseppe Mazzini

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Deveres do Homem
Giuseppe Mazzini
1805-1872

Tradução
Antonio Piccarolo e Leonor de Aguiar

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Pensadores Italianos
Clássicos Jackson
Volume XXVI
W. M. Jackson Inc.
Rio de Janeiro, 1950

Digitalização,
revisão para o português do Brasil e
Versão para eBook
eBooksBrasil.org

© 2004 — Giuseppe Mazzini


Índice

O Autor
DEVERES DO HOMEM
Introdução: Aos Trabalhadores Italianos
I - Deveres do Homem
II - Deus
III - A Lei
IV - Deveres para com a Humanidade
V - Deveres para com a Pátria
VI - Deveres para com a Família
VII - Deveres para Consigo Mesmo
VIII - Liberdade
IX - Educação
X - Associação — Progresso
XI - Questão Econômica
Conclusão


DEVERES DO HOMEM

[imagem]

Giseppe Mazzini


MAZZINI

 

Giuseppe Mazzini (nascido em Gênova em 1805 e falecido em Pisa em 1872) foi o apóstolo da unidade e da independência italiana, que deveriam ser conseguidas, uma e outra, por obra do povo e na forma democrática da república. Animador incansável, dedicou a sua vida, desperdiçada a maior parte em doloroso exílio, numa férvida pregação de idéias, através do exemplo pessoal, de cartas e da atividade revolucionária de associações nacionais e internacionais tais como a “Jovem Itália” (1831), a “Jovem Europa” (1834), a “Liga Internacional dos Povos” (1847) e na “Associação Nacional Italiana” (1848).

A concepção de Mazzini, alimentada por um sentido profundamente religioso (daqui a conhecida fórmula “Deus e Povo”) e aberta à questão social e aos novos problemas da emancipação dos operários, supera de um lado os princípios individualísticos incluídos na Revolução Francesa, afirmando a possibilidade do homem expandir a própria personalidade somente na vida coletiva; e supera de outro lado o utilitarismo do século XVIII, contrapondo a este uma visão inteiramente espiritual e moral da vida.

No pensamento mazziniano a nação, “livre e una”, não é senão o natural e necessário degrau pelo qual o homem pode alcançar, partindo do conceito de pátria, o superior da unidade substancial, mesmo subsistindo os organismos nacionais, da família humana inteira. Ele, portanto, indicou aos jovens não simplesmente a libertação da Itália e da Europa, mas de todos os povos, como condição primordial da verdadeira libertação do homem.

O pequeno volume Doveri dell’uomo — escrito em Londres no ano de 1860 e dedicado aos operários italianos num momento em que a pregação e ação mazziniana estavam perdendo a sua imediata ressonância com relação à unidade e independência italiana, que se realizava pela obra diplomática de Cavour — oferece ao leitor, entre os numerosos escritos do desterrado, a síntese mais lúcida e completa do pensamento de Giuseppe Mazzini e dos ideais que o animavam: pensamento e ideais — podemos acrescentar — sobre os quais não seria supérfluo que os homens de hoje tornassem a meditar.


 

INTRODUÇÃO

AOS TRABALHADORES ITALIANOS

 

A vós, filhos e filhas do povo, dedico este livrinho, no qual enuncio os princípios em nome e por virtude dos quais cumprireis, se quiserdes, a vossa missão na Itália: missão de progresso republicano para todos e de emancipação para vós.

Amei-vos desde os meus primeiros anos. Os instintos republicanos de minha mãe ensinaram-me a procurar no meu semelhante o homem, não o rico ou o poderoso; e a insciente e simples virtude paterna habituou-me a admirar, mais do que a afetada e presunçosa semi-ciência, a virtude de sacrifício, tácita e inadvertida, que tantas vezes aparece em vós. Mais tarde, deduzi da nossa história como a verdadeira vida da Itália é a vida do povo, e como o trabalho lento dos séculos tendeu sempre a preparar, em meio ao surto das diversas raças e às mutações superficiais e passageiras das usurpações e das conquistas, a grande Unidade democrática Nacional. E então, trinta anos atrás, entreguei-me a vós.

Vi que a Pátria Una, dos iguais e dos livres, não sairia de uma aristocracia que jamais teve entre nós uma vida coletiva e iniciadora, nem da Monarquia que se insinuou, no século XVI, sobre as pegadas do estrangeiro e sem missão própria, — entre nós, sem pensamento de Unidade ou de emancipação, — mas somente do povo da Itália, — e assim o disse. Vi que era preciso subtrair-vos ao jugo do salário e, a pouco e pouco, com a livre associação, fazer o Trabalho senhor do solo e dos capitais da Itália — e, antes que o socialismo das seitas francesas viesse turvar a questão, eu o disse. Vi que a Itália, qual nossas almas a apresentam, só existiria quando uma Lei Moral, reconhecida e superior a todos os que se colocam como intermediários entre Deus e o povo, tivesse derrubado a base de toda autoridade tirânica, o Papado, — e assim o disse. Jamais, por loucas acusações e calúnias e derrisões que me foram lançadas, eu vos traí e à vossa causa, nem desertei a bandeira do futuro. Restam-me poucos anos de vida, mas o estreito pacto que esses poucos comigo firmaram não será violado por coisa alguma que suceda até o meu último dia, e talvez lhe sobreviva.


 

I

DEVERES DO HOMEM

 

Quero falar-vos dos vossos deveres. Quero falar-vos, ditado pelo coração, das coisas mais santas que conhecemos: Deus, Humanidade, Pátria, Família. Ouvi-me com amor, que vos falarei com amor. Minha palavra é palavra de convicção, amadurecida por longos anos de sofrimentos, observações, estudos. Os deveres que vos indicar, eu procuro e procurarei, enquanto viver, cumpri-los quanto as minhas forças o permitam. Posso errar, mas nunca de coração. Posso enganar-me, jamais enganar-vos. Ouvi-me, pois, fraternalmente; julgai livremente, entre vós mesmos, se parece que vos digo a verdade; abandonai-me, se parecer que vos prego o erro; mas, segui-me e procedei de acordo com os meus ensinamentos, se virdes em mim um apóstolo da verdade. O erro é uma desventura deplorável, mas conhecer a verdade e não submeter-lhe as ações é delito condenado pelo céu e pela terra.

Por que falo eu dos vossos deveres, antes de falar dos vossos direitos? Numa sociedade onde todos, voluntária ou involuntariamente, vos oprimem, onde o exercício de todos os direitos que pertencem ao homem vos é constantemente roubado, onde todas as infelicidades são para vós e o que se chama felicidade é para os homens das outras classes, por que vos falo eu de sacrifício e não de conquista, de virtude, de melhoramento moral, de educação, e não de bem-estar material? É uma questão que devo esclarecer antes de prosseguir, porque justamente nisso reside a diferença entre a nossa escola e muitas outras que hoje se apregoam na Europa; e, além disso, é essa uma pergunta que facilmente ocorre ao espírito do trabalhador que sofre.

Somos pobres, escravos, infelizes; falai-nos de melhorias materiais, de liberdade e de felicidade. Dizei-nos se estamos condenados a sofrer sempre ou se também devemos gozar. Pregai o Dever aos nossos patrões, às classes que estão por cima de nós e que, tratando-nos como máquinas, monopolizam os bens pertencentes a todos. Falai-nos de direitos; falai-nos dos modos de reivindicá-los; falai-nos da nossa força. Deixai-nos ter existência reconhecida, e então podeis falar-nos de deveres e sacrifícios. Assim dizem muitos dentre os nossos trabalhadores, seguindo doutrinas e associações correspondentes ao seu desejo, mas só esquecendo uma coisa; que a linguagem por eles invocada existe há cinqüenta anos, sem ter conseguido um mínimo de melhoria material na condição dos operários.

Desde cinqüenta anos, tudo quanto se fez pelo progresso e pelo bem contra os governos absolutos ou contra a aristocracia do sangue, foi feito em nome dos Direitos do homem, em nome da liberdade como meio e do bem-estar como finalidade da vida. Todos os atos da Revolução Francesa e das outras que a seguiram e imitaram foram conseqüência da Declaração dos Direitos do Homem. Todos os trabalhos dos filósofos que a prepararam fundaram-se numa teoria de liberdade, no ensinamento dos próprios direitos a cada indivíduo. Todas as escolas revolucionárias pregaram ao homem que ele nasceu para a felicidade, que tem o direito de procurá-la por todos os meios, que ninguém tem o direito de impedi-lo nessa procura e que ele tem o de derrubar os obstáculos encontrados no caminho. E os obstáculos foram derrubados: a liberdade foi conquistada, durou vários anos em muitos países e dura ainda em alguns. Melhorou a condição do povo? Milhões de pessoas que vivem diariamente do trabalho dos seus braços, terão conquistado um mínimo do bem-estar esperado, prometido?

Não, a condição do povo não melhorou; antes piorou e piora em quase todos os países, e especialmente aqui, onde escrevo, o preço das coisas necessárias à vida vem progressivamente aumentando, o salário do operário em muitos ramos de atividade vem progressivamente diminuindo, e a população multiplicando-se. Em quase todos os países, a sorte dos homens de trabalho tornou-se mais incerta, mais precária; as crises que condenam milhares de operários à inércia temporária tornaram-se mais freqüentes.

E, não obstante, nestes últimos cinqüenta anos as fontes de riqueza social e a massa dos bens materiais têm crescido. A produção reduplicou. O comércio, através de crises contínuas, inevitáveis na ausência absoluta de organização, conquistou mais força de atividade e uma esfera mais extensa para suas operações. As comunicações adquiriram, quase por toda parte, segurança e rapidez, diminuindo, assim, com o preço do transporte, o preço dos gêneros. Por que, pois, não melhorou a condição do povo? Por que o consumo dos produtos, em vez de repartir-se igualmente entre todos os membros das sociedades européias, concentrou-se nas mãos de poucos homens pertencentes a uma nova aristocracia? Por que o novo impulso comunicado à indústria e ao comércio criou, não o bem-estar da maioria, mas o luxo de alguns?

A resposta é clara para quem queira penetrar um pouco o fundo das coisas. Os homens são criaturas de educação e só agem de acordo com o princípio de educação que lhes é dado. Os homens que promoveram as revoluções anteriores fundaram-se na idéia dos direitos pertinentes ao indivíduo; as revoluções conquistaram a liberdade: liberdade individual, liberdade de ensino, liberdade de crença, liberdade de comércio, liberdade em tudo e para todos. Mas, de que serviam os direitos reconhecidos para quem não tinha meios de exercê-los? De que servia a liberdade de ensino para quem não tinha tempo nem meios de aproveitá-la? De que servia a liberdade de comércio para quem nada possuía para pôr em comércio, nem capitais, nem crédito? A sociedade compunha-se, em todos os países onde tais princípios foram proclamados, de pequeno número de indivíduos possuidores da terra, do crédito, dos capitais, e de vastas multidões de homens que só tinham os próprios braços, forçados a dá-los como instrumentos de trabalho aos primeiros e sob qualquer condição, para viver; forçados a despender em serviços materiais e monótonos o dia inteiro. Para estes últimos, constrangidos a lutar com a fome, que era a liberdade, senão uma ilusão, uma amarga ironia? Para que o não fosse, seria necessário que os homens das classes abastadas consentissem em reduzir o tempo de trabalho, aumentar a retribuição, proporcionar educação uniforme e gratuita às multidões, tornar os instrumentos de trabalho acessíveis a todos, constituir um crédito para o trabalhador dotado de faculdades e de boas intenções. Mas, por que o fariam? Não era o bem-estar a finalidade suprema da vida? Não eram os bens materiais as coisas desejáveis de preferência a todas as outras? Por que diminuir-lhes o gozo em proveito de outrem? Cada homem tratou de cuidar dos próprios direitos e do melhoramento da própria condição, sem procurar prover a outrem; e, quando os direitos próprios esbarraram com os dos outros, veio a guerra: guerra, não de sangue, mas de ouro e de insídias; guerra menos viril do que a outra, mas igualmente ruinosa: guerra encarniçada, na qual os fortes em meios esmagam inexoravelmente os fracos ou inexpertos. Nessa guerra contínua, os homens educaram-se exclusivamente no egoísmo e na avidez dos bens materiais.

Certo, existem direitos; mas onde os direitos de um indivíduo contrastam com os de outro, como esperar conciliá-los, harmonizá-los, sem recorrer a algo de superior a todos os direitos? E onde os direitos de um indivíduo, de muitos indivíduos, contrastam com os direitos do país, a que tribunal recorrer? Se o direito ao bem-estar, ao maior bem-estar possível, é inerente a todos os que vivem, quem dirimirá a pendência entre operário e o chefe de fábrica? E vós, depois de terdes ensinado ao indivíduo, durante cinqüenta anos, que a sociedade é constituída para assegurar-lhe o exercício los seus direitos, quereis pedir-lhe que os sacrifique todos à sociedade, que se submeta, se preciso, a fadigas contínuas, à prisão, ao exílio, para melhorá-la? Depois de lhe terdes pregado por todas as formas que a finalidade da vida é o bem-estar, quereis de uma hora para outra ordenar-lhe que perca o bem-estar e a própria vida para libertar o país do estrangeiro ou para proporcionar condições melhores a uma classe que não é a dele?

Trabalhadores italianos, esta não é uma opinião surgida em nossa mente, sem o apoio de fatos; é a história, a história dos nossos tempos, a história cujas páginas gotejam sangue, e sangue do povo. Interrogai todos os homens que transformaram a revolução de 1830 numa substituição de pessoas e que, à guisa de exemplo, dos cadáveres dos vossos companheiros da França, mortos nas três jornadas de combate, fizeram uma escada para o próprio poder; todas as suas doutrinas, antes de 1830, baseavam-se na velha idéia dos direitos, não na crença dos deveres do homem. Vós os chamais, hoje, de traidores e apóstatas, quando apenas foram conseqüentes com a própria doutrina. Combatiam com sinceridade o governo de Carlos X, porque esse governo era diretamente inimigo da classe de onde eles provinham, violando-lhes e tendendo a suprimir-lhes os direitos. Combatiam em nome do bem-estar que não possuíam tanto quanto lhes parecia merecerem. Uns eram perseguidos na liberdade do pensamento; outros, engenhos poderosos, viam-se esquecidos, afastados dos empregos ocupados por homens de capacidade inferior. Então, também os males do povo os irritavam. Então, escreviam ousadamente e de boa fé sobre os direitos pertinentes a cada homem. Depois, quando os seus direitos políticos e intelectuais foram assegurados, quando o caminho para os empregos lhes foi aberto, quando conquistaram o bem-estar que procuravam, esqueceram que os milhões, inferiores a eles em educação e aspirações, buscavam o exercício de outros direitos e a conquista de outro bem-estar, ficaram de ânimo tranqüilo e só cuidaram de si mesmos. Por que os chamais de traidores? Por que, ao contrário, não chamais traidora a sua doutrina?

E entre os povos inteiramente escravos, onde a luta oferece muitos outros perigos, onde cada passo dado para o bem é assinalado pelo sangue de um mártir, onde o trabalho contra a injustiça dominante é necessariamente secreto e privado do conforto da publicidade e do louvor, que obrigação, que estímulo à constância pode manter no caminho do bem os homens que reduzem a santa guerra social que sustentamos a um combate pelos próprios direitos?

E quem pode, mesmo numa sociedade constituída sobre bases mais justas do que as atuais, convencer um homem baseado unicamente na teoria dos direitos, de que ele deve manter-se na via comum e ocupar-se com o progresso do pensamento social? Suponde que ele se rebele; suponde que se sinta forte e vos diga: Rompo o pacto social; minhas tendências, minhas faculdades chamam-me a outra parte; tenho o direito sagrado, inviolável, de desenvolvê-las, e declaro a guerra contra todos. Que resposta podereis dar-lhe, sendo partidários de sua doutrina? Que direito tendes de puni-lo porque sois maioria, de impor-lhe obediência a leis que se não conciliam com os seus desejos, com as suas aspirações individuais? Que direito tendes de puni-lo quando ele as viola? Os direitos são iguais para todos os indivíduos: a conveniência social não pode criar um diferente! A sociedade tem mais força, não mais direitos do que o indivíduo. Como, pois, provareis ao indivíduo que ele deve confundir a própria vontade com a vontade dos seus irmãos na Pátria e na Humanidade? Com o carrasco, com as prisões? As sociedades até agora existentes têm feito assim. Mas, isso é a guerra, e nós queremos a paz: é repressão tirânica e nós queremos educação.

Com a teoria da felicidade, do bem-estar apresentado como primeiro objeto da vida, formaremos homens egoístas, adoradores da matéria, que levarão as velhas paixões à ordem nova e a corromperão poucos meses depois. Trata-se, pois, de achar um princípio educador, superior a essa teoria, que oriente os homens para o melhor, que lhes ensine a constância no sacrifício, que os vincule aos seus irmãos sem fazê-los dependentes da idéia de um só ou da força de todos. E esse princípio é o DEVER. É preciso convencer os homens de que eles, filhos de um só Deus, devem ser, na terra, os executores de uma lei única: que cada um deles deve viver não para si, mas para os outros; de que a finalidade da vida não é serem mais ou menos felizes, mas tornarem-se, a si mesmos e aos outros, melhores; de que combater a injustiça e o erro em benefício dos seus irmãos, e onde quer que seja, é não somente um direito, mas um dever: dever que não esquecerá sem culpa, dever eterno.

Trabalhadores italianos, irmãos! Ouvi-me bem. Quando digo que o conhecimento dos direitos não basta aos homens para operar melhoria importante e durável, não peço que renuncieis a esses direitos; digo somente que não passam de uma conseqüência de deveres cumpridos e que é preciso começar por estes para alcançar aqueles. E quando digo que, propondo como objetivo da vida a felicidade, o bem-estar, corremos o risco de criar egoístas, não pretendo que não vos ocupeis com isso; digo que os interesses materiais, procurados exclusivamente, propostos não como meio, mas como fim, conduzem sempre àquele tristíssimo resultado. Tendes, pois, necessidade de que se modifiquem as vossas condições materiais para que possais desenvolver-vos moralmente; tendes necessidade de trabalhar menos para poderdes consagrar algumas horas do vosso dia ao progresso da alma; tendes necessidade de uma retribuição de trabalho que vos ponha em condições de acumular economias, de tranqüilizar o ânimo quanto ao futuro, de purificar-vos, sobretudo, de todo sentimento de reação, de todo impulso de vingança, de todo pensamento de injustiça para com quem foi injusto convosco. Deveis, pois, procurar e alcançar essa mudança: procurá-la como meio, não como fim; procurá-la por senso do dever, não unicamente do direito; procurá-la para fazer-vos melhores, não unicamente para fazer-vos materialmente felizes. Quando não, que diferença haveria entre vós e os vossos tiranos? Eles o são precisamente porque só têm em vista o bem-estar, a volúpia, o poder.

Fazer-vos melhores: essa deve ser a finalidade da vossa vida. Fazer-vos estavelmente menos infelizes, só o podeis melhorando. Os tiranos surgiriam aos milhares dentre vós, se combatêsseis em nome de interesses materiais, ou de certa organização. Pouco importa mudar as organizações, se conservais, assim como os outros, as paixões e o egoísmo de hoje.


 

II

DEUS

 

A origem dos vossos DEVERES está em Deus. A definição dos vossos DEVERES está na sua Lei. O descobrimento progressivo e a aplicação da Lei divina pertencem à Humanidade.

Deus existe. Não devemos nem queremos prová-lo: tentá-lo parecer-nos-ia blasfêmia, como negá-lo loucura. Deus vive em nossa consciência, na consciência da Humanidade, no Universo que nos circunda. Nossa consciência invoca-o nos momentos mais solenes de dor e de alegria. A Humanidade tem podido transformá-lo, ofendê-lo, jamais suprimir-lhe o santo nome. O Universo manifesta-o com a ordem, a harmonia, a inteligência dos seus movimentos e leis. Não existem ateus entre vós: se existissem seriam dignos não de maldição, mas de piedade. Aquele que pode negar a Deus diante de uma noite estrelada, diante da sepultura dos seus entes mais caros, diante do martírio, é grandemente infeliz ou grandemente culpado. O primeiro ateu foi, sem nenhuma dúvida, o homem que ocultara um delito aos outros homens e procurava, negando Deus, livrar-se da única testemunha a quem não podia ocultá-lo e sufocar o remorso que o atormentava: talvez um tirano que tivesse roubado com a liberdade metade da alma aos seus irmãos e tentasse substituir a fé no Dever e no Direito imortais pela adoração da Força Bruta. Há padres que prostituem o nome de Deus aos cálculos da venalidade, ou ao terror dos poderosos; há tiranos que o imposturam, invocando-o como protetor de suas tiranias; mas porque a luz do sol nos chega muita vez ofuscada e prejudicada por obscuros vapores, negaremos o sol ou o poder vivificador dos seus raios sobre o Universo? Porque da liberdade os perversos podem às vezes fazer surgir a anarquia amaldiçoaremos a liberdade? A fé em Deus brilha com luz imortal através de todas as imposturas e corrupções que os homens reúnem em torno do seu nome. As imposturas e corrupções passam, como passam as tiranias: Deus permanece, como permanece o POVO, imagem de Deus na terra. Assim como o Povo, através da escravidão, sofrimentos e misérias, conquista gradativamente consciência, força, emancipação, assim também o santo nome de Deus surge das ruínas dos cultos corruptos para esplender circundado por um culto mais puro, mais fervoroso e mais racional.

Por conseguinte, não vos falo de Deus para demonstrar-lhe a existência, ou para dizer-vos que deveis adorá-lo: vós o adorais, mesmo sem o chamardes, toda vez que sentis vossa vida e a vida dos seres que vos cercam. Falo-vos de Deus para dizer-vos como deveis adorá-lo, para advertir-vos de um erro que domina as mentes de muitos homens das classes que vos dirigem ou, a exemplo deles, de muitos dentre vós: erro tão grave e ruinoso quanto o é o ateísmo.

Esse erro é a separação, mais ou menos declarada, de Deus da sua obra, da Terra sobre a qual deveis passar um período da vossa vida.

“Venha à terra o reino de Deus, assim como no céu”. Seja esta, meus irmãos, melhor entendida e aplicada do que no passado, a vossa palavra de fé, a vossa prece. — Repeti-a e trabalhai para que se verifique. Deixai que outros tentem persuadir-vos da resignação passiva, da indiferença pelas coisas terrenas, da submissão a todo poder temporal embora injusto, replicando-vos, mal entendida, esta outra palavra: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Podem dizer-vos coisa que não seja de Deus? Nada é de César, a não ser na medida em que é conforme à Lei Divina. César, ou seja, o poder temporal, o governo civil, é apenas o mandatário, o executor, na medida em que suas forças e os tempos o permitem, do desígnio de Deus: onde trair o mandato, o vosso, não diremos direito, mas dever, é mudá-lo. Para que estais na terra, senão para esforçar-vos por desenvolver com os vossos meios e na vossa esfera o conceito de Deus? Para que professar que acreditais na unidade do gênero humano, conseqüência inevitável da Unidade de Deus, se não trabalhais para realizá-la combatendo as divisões arbitrárias, as inimizades que ainda separam as diversas tribos que constituem a Humanidade? Para que acreditar na liberdade humana, base da responsabilidade dos homens, se não nos empenhamos em destruir todos os obstáculos que impedem a primeira e viciam a segunda? Para que falar da Fraternidade, embora permitindo que os nossos irmãos sejam diariamente conculcados, aviltados, desprezados? A terra é nossa oficina: não devemos maldizê-la, mas santificá-la. As forças materiais que vemos ao nosso redor são os nossos instrumentos de trabalho: não devemos repudiá-los, mas dirigi-los para o bem.

Sem Deus, porém, não o conseguireis. Falei-vos de deveres; ensinei-vos que não basta o conhecimento dos vossos direitos para encaminhar-vos sempre para o bem; não basta que vos entregueis ao melhoramento progressivo, contínuo, da vossa condição. Sem Deus, onde está o Dever? Sem Deus, qualquer que seja o sistema civil que desejeis adotar, só tereis como base a Força, cega, brutal, tirânica. Não há meio termo. Ou o desenvolvimento das coisas humanas depende de uma lei providencial que todos nós temos o dever de descobrir e aplicar, ou é obra do acaso, das circunstâncias do momento, do homem que melhor souber valer-se delas. Ou devemos obedecer a Deus, ou servir aos homens, a um ou a vários, pouco importa. Se não reina uma Mente suprema sobre todas as mentes humanas, quem pode salvar-nos do arbítrio dos nossos semelhantes, quando se acham mais poderosos do que nós? Se não existe uma lei santa e inviolável, não criada pelos homens, que norma teremos para julgar se um ato é justo ou injusto? Em nome de quem, em nome de quê protestaremos contra a opressão e a desigualdade? Sem Deus, o único dominador é o Fato: o Fato, diante do qual os materialistas sempre se inclinam, chama-se Revolução ou Bonaparte; o Fato, no qual ainda hoje, na Itália e alhures, os materialistas se escudam para justificar a inércia, mesmo onde concordam teoricamente com os nossos princípios. Ora, pregar-lhes-emos o sacrifício, o martírio em nome das nossas opiniões individuais? Mudaremos, em virtude somente dos nossos interesses, o princípio abstrato em ação? Desenganai-vos. Enquanto falarmos como indivíduos, em nome do que o nosso intelecto individual nos sugere, teremos o que vemos hoje: adesão a palavras, e não obras. O grito que soou em todas as grandes revoluções, o grito Deus o quer das Cruzadas, só pode converter os inertes em ativos, dar ânimo aos timoratos, entusiasmo de sacrifício aos calculistas, fé a quem repele com a dúvida todo conceito humano. Provai aos homens que a obra de emancipação e de desenvolvimento progressivo para a qual os concitais está no desígnio de Deus: ninguém se rebelará. Provai-lhes que a obra terrestre a realizar-se está essencialmente ligada à sua vida imortal: todos os cálculos do momento desaparecerão ante a importância do futuro. Sem Deus, podeis impor, não persuadir; podeis ser igualmente tiranos, não Educadores e Apóstolos.

Pregai em nome de Deus. Os letrados sorrirão: perguntai-lhes, porém, que fizeram por sua pátria. Os sacerdotes vos excomungarão: dizei aos sacerdotes que conheceis Deus melhor do que todos eles, e que entre Deus e sua Lei não tendes necessidade de intermediários. O povo entender-vos-á e repetirá convosco: “Cremos em Deus Padre, Inteligência e Amor, Criador e Educador da Humanidade”. E com essas palavras, vencereis, vós e o Povo.


 

III

A LEI

 

Tendes vida: tendes, pois, uma lei de vida. Não há vida sem lei. Tudo o que existe, existe de certo modo, segundo certas condições, sob certa lei. Uma lei de agregação governa os minerais; uma lei de desenvolvimento governa as plantas; uma lei de movimento governa os astros; uma lei vos governa e à vossa vida: lei tanto mais nobre e elevada quanto mais superiores sois a todas as coisas criadas sobre a terra. Desenvolver-vos, agir, viver segundo vossa lei — eis o primeiro, ou antes, o único Dever vosso.

Na consciência da vossa lei de vida, da Lei de Deus, reside, pois, o fundamento da Moral, a regra das vossas ações e dos vossos deveres, a medida da vossa responsabilidade: nela reside, por conseguinte, vossa defesa contra as leis injustas que o arbítrio de um homem ou de vários homens possa tentar impor-vos. Não podeis, sem conhecê-la, usar nome ou direitos de homens. Todos os direitos se originam de uma lei, e, toda vez que não puderdes invocá-la, sereis tiranos ou escravos e nada mais: tiranos, se fordes fortes; escravos de uma força alheia, se fordes fracos. Para serdes homens, deveis conhecer a lei que distingue a natureza humana da dos animais, das plantas, dos minerais, e submeter-lhe vossos atos.

Como conhecê-la?

É a pergunta que em todos os tempos a humanidade tem dirigido a quantos pronunciaram a palavra dever. E as respostas, até hoje, têm sido diversas.

Uns responderam mostrando um Código, um livro, dizendo: Aqui está toda a lei moral. Outros disseram: Interrogue cada homem o próprio coração, no qual se acha a definição do bem e do mal. Outros ainda, rejeitando o julgamento do indivíduo, invocaram o consenso universal e declararam que verdadeira é a crença com a qual toda humanidade concorda.

Erraram todos. E a história do gênero humano declarou impotentes, com fatos irrecusáveis, todas essas respostas.

Cada uma dessas normas é insuficiente para obter o conhecimento da LEI DE DEUS, da Verdade. E, não obstante, a consciência do indivíduo é santa: o consenso comum da humanidade é santo, e quem quer que renuncie a interrogar este ou aquela, priva-se de um meio essencial para conhecer a verdade. O erro geral tem sido, até aqui, querer alcançá-la com um só desses meios exclusivamente: erro decisivo e funestíssimo em conseqüências, porque não se pode estabelecer a consciência do indivíduo, única norma da verdade, sem cair na anarquia; não se pode invocar como inapelável o consenso geral num momento dado, sem sufocar a liberdade humana e cair na tirania.

Os homens, servindo ao mesmo erro, ordenaram a sociedade política, uns sobre o respeito exclusivo aos direitos do indivíduo, esquecendo por completo a missão educadora da sociedade, outros unicamente sobre os direitos sociais, sacrificando a liberdade e a ação do indivíduo.

Assim, uns considerando que os pretensos direitos do indivíduo ordenaram, ou melhor, desordenaram o sistema econômico, dão-lhe por base única a teoria da livre-concorrência ilimitada, ao passo que outros, só tendo em vista a unidade social, pretenderiam confiar ao governo o monopólio de todas as forças produtoras do Estado: dois conceitos, o primeiro dos quais nos deu todos os males da anarquia, e o segundo que nos daria a imobilidade e todos os males da tirania.

Deus vos deu o consenso dos vossos irmãos e a vossa consciência, como duas asas para elevar-vos quanto possível até ele. Por que vos obstinais em cortar uma delas? Por que isolar-vos, absorver-vos no mundo? Por que querer sufocar a voz do gênero humano? Ambas são sagradas; Deus fala em ambas. Onde quer que se encontrem, onde quer que o grito da vossa consciência seja ratificado pelo consenso da humanidade, aí estará Deus, aí estareis certos de possuir a verdade; um é a verificação do outro.

Se os vossos deveres só fossem negativos, se consistissem unicamente em não fazer o mal, em não prejudicar os vossos irmãos, talvez, no estado de desenvolvimento em que hoje ainda se encontram os menos educados, o grito da vossa consciência bastasse para dirigir-vos. Nascestes para o bem, e toda vez que agis diretamente contra a Lei, toda vez que cometeis o que os homens chamam de delito, surge algo em vós que vos acusa, como uma voz de reprovação que poderíeis dissimular aos outros, mas não a vós mesmos. Mas, os vossos deveres mais importantes são positivos. Não basta não fazer: é preciso fazer. Não basta limitar-se a não agir contra a Lei: é preciso agir de acordo com a Lei. Não basta não prejudicar: é preciso beneficiar os vossos irmãos. Infelizmente, até agora, a moral tem sido apresentada à maioria dos homens sob forma que é mais negativa do que afirmativa. Os intérpretes da Lei disseram: “Não furtarás, não matarás”. Poucos, porém, ou nenhum, ensinaram as obrigações que cabem ao homem, e como este deva servir os seus semelhantes e o desígnio de Deus na criação. Ora, esse é o primeiro objeto da Moral; nenhum indivíduo, consultando unicamente a própria consciência, poderá alcançá-lo.

A consciência do indivíduo fala em razão da sua educação, das suas tendências, dos seus hábitos, das suas paixões. A consciência do iroquês selvagem fala uma linguagem diversa da do europeu incivilizado do século XIX. A consciência do homem livre sugere deveres que a consciência do escravo nem sequer suspeita. Interrogai o pobre jornaleiro napolitano ou lombardo, para quem um mau sacerdote foi o único apóstolo de moral, para quem, embora sabendo ler, o catecismo austríaco foi a única leitura permitida: ele vos dirá que os seus deveres são o trabalho assíduo, a qualquer preço, para sustentar a família; a submissão ilimitada, sem exame, às leis, sejam elas quais forem; e não prejudicar a outrem. A quem lhe falasse de deveres que o ligam à pátria e à humanidade, a quem lhe dissesse: “Prejudicais os vossos irmãos consentindo em trabalhar por preço inferior à obra, pecais contra Deus e contra vossa alma obedecendo a leis injustas”, responderia, como quem não entende, franzindo o sobrolho. Interrogai o operário italiano, a quem circunstâncias melhores ou o contato com homens de mais esclarecida inteligência ensinaram maior número de verdades; ele vos dirá que sua pátria é escrava, que seus irmãos são injustamente condenados a viver na miséria material e moral, e que ele sente o dever de protestar, enquanto puder, contra essa injustiça. Por que tanta variedade entre as sugestões da consciência em dois indivíduos da mesma época e do mesmo país? Por que, entre dez indivíduos pertencentes em substância à mesma crença, a essa que impõe o desenvolvimento e o progresso da raça humana, achamos dez convicções diversas nos modos de aplicar a crença aos atos, isto é, aos deveres. Evidentemente, o grito da consciência do indivíduo não basta em qualquer estado de coisas e sem nenhuma outra norma, para revelar-lhe a lei. A consciência basta somente para ensinar-vos que existe uma lei, e não quais sejam vossos deveres. Por isso, o martírio, se bem que o egoísmo predominasse, jamais se apartou da humanidade: mas quantos mártires não sacrificaram a existência por supostos deveres, em benefício de erros hoje patentes a todos!

Há, pois, necessidade de um guia para vossa consciência, de um lume que lhe rasgue a treva circundante, de uma norma que verifique e dirija os instintos. E essa norma é a Inteligência e a Humanidade.

A Humanidade, disse um pensador do século passado, é um homem que aprende sempre. Os indivíduos morrem; mas as verdades que pensaram, os bens que fizeram, não se perdem com eles: recolhe-os a Humanidade, e os homens que lhes passam sobre a sepultura fazem deles seu patrimônio. Cada um de nós nasce, hoje, numa atmosfera de idéias e crenças elaborada por toda a Humanidade anterior; cada um de nós leva, embora sem o saber, um elemento mais ou menos importante à vida da Humanidade sucessiva. A educação da Humanidade progride do mesmo modo por que se elevam, no Oriente, aquelas pirâmides às quais cada viandante acrescenta uma pedra. Viandantes de um dia, nós passamos, chamados a fazer alhures nossa educação individual; a educação da Humanidade mostra-se claramente a cada um de nós, revela-se lentamente, progressivamente, continuamente na Humanidade. A Humanidade é o Verbo vivo de Deus. O espírito de Deus fecunda-a e nela se manifesta sempre mais puro, sempre mais ativo em cada época, um dia por meio de um indivíduo, outro dia por meio de um povo. De labor em labor, de crença em crença, a Humanidade conquista uma noção cada vez mais clara da própria vida, da própria missão, de Deus e de sua lei.

Assim, para conhecer a lei de Deus, tendes necessidade de interrogar não só a vossa consciência, mas a consciência, o consenso da Humanidade; para conhecer os vossos deveres, tendes necessidade de interrogar as necessidades atuais da Humanidade. A moral é progressiva, como a educação do gênero humano e a vossa. A moral do Cristianismo não era a dos tempos pagãos; a moral do nosso século não é a de dezoito séculos atrás. Hoje, os vossos patrões, com a segregação de outras classes, com a proibição de toda associação, com a dupla censura imposta à imprensa, procuram esconder-vos, com as necessidades da Humanidade, os vossos deveres. E, não obstante, mesmo antes da época em que a Nação vos ensinar gratuitamente, pelas escolas de educação geral, a história da Humanidade no passado e as suas necessidades presentes, podereis, se quiserdes, aprender, em parte ao menos, a primeira, e adivinhar as segundas. As necessidades atuais da Humanidade emergem em expressões mais ou menos violentas, mais ou menos imperfeitas, dos fatos que ocorrem todos os dias nos países em que não há lei absoluta do silêncio. Quem vos proíbe, irmãos das terras escravas, o conhecimento delas? Convencei-vos de que sem instrução não podeis conhecer os vossos deveres; convencei-vos de que onde a sociedade vos proíbe todo ensinamento, a responsabilidade de toda culpa não é vossa, mas dela: a vossa começa no dia em que um caminho qualquer para o ensino vos é aberto e o desprezais; no dia em que vos são mostrados meios para transformar uma sociedade que vos condena, e não pensais em usá-los. Não sois culpados porque ignorais; sois culpados porque vos resignais a ignorar; porque, enquanto vossa consciência vos adverte de que Deus não vos deu faculdades sem impor-vos o seu desenvolvimento, deixais dormir em vossa alma todas as faculdades do pensamento; porque, muito embora saibais que Deus não vos poderia ter dado o amor à verdade sem dar-vos os meios de consegui-la, vós, desesperando, renunciais a fazer-lhe a pesquisa, e aceitais, sem exame, como verdade, a afirmação do potentado e do sacerdote vendido ao potentado.

Deus, Pai e Educador da Humanidade, revela no espaço e no tempo a sua lei à Humanidade. Interrogai a tradição da Humanidade, o consenso dos vossos irmãos, não no círculo estreito de um século ou de uma seita, mas em todos os séculos e na maioria dos homens passados e presentes. Toda vez que a esse consenso corresponder a voz da vossa consciência, podeis estar certos da verdade, certos de ter uma linha da lei de Deus.

Creiamos na Humanidade, única intérprete da lei de Deus sobre a terra; e, do consenso da humanidade em harmonia com a nossa consciência, deduzamos tudo quanto eu vos for dizendo acerca dos vossos deveres.


 

IV

DEVERES PARA COM A HUMANIDADE

 

Os vossos primeiros deveres, primeiros não no tempo, mas em importância, — e porque sem entendê-los só imperfeitamente podereis cumprir os outros, — são os deveres para com a Humanidade. Tendes deveres de cidadãos, de filhos, de esposos e de pais, deveres sagrados, invioláveis, dos quais vos falarei pormenorizadamente mais adiante; mas, o que torna sagrados e invioláveis esses deveres é a missão, o Dever, que a vossa natureza de homens vos impõe. Sois pais para educar homens no culto e no desenvolvimento da Lei de Deus, sois cidadãos, tendes uma Pátria, para poderdes mais facilmente, numa esfera limitada, com o concurso de gente já ligada a vós pelo idioma, pelas tendências, pelos costumes, agir em benefício dos homens que existem e existirem, o que mal poderíeis fazer dispersos, isolados e fracos, no imenso número dos vossos semelhantes. Os que vos ensinam moral, limitando a noção dos vossos deveres à família ou à pátria, ensinam-vos, mais ou menos restrito, o egoísmo, e vos conduzem ao mal para os outros e para vós mesmos. Pátria e Família são como dois círculos inscritos dentro de um círculo maior; como dois degraus de uma escada sem os quais não poderíeis subir mais alto, mas sobre os quais não vos é permitido parar.

Sois homens: isto é, criaturas racionais, sociáveis e capazes, por meio unicamente da associação, de um progresso a que ninguém pode fixar limites; e é quanto sabemos, hoje, da Lei de vida dada à Humanidade. Esses caracteres constituem a natureza humana, que vos distingue dos outros seres que vos circundam e que é atribuída a cada um de vós como uma semente que deve frutificar. Toda a vossa vida deve tender ao exercício e ao desenvolvimento ordenado dessas faculdades fundamentais da vossa natureza.

Tereis descido entre os animais e violado a Lei de Deus, toda vez que suprimirdes ou deixardes suprimir uma das faculdades que constituem a natureza humana em vós ou em outrem. O que Deus quer é, não já que sua Lei se cumpra em vós como indivíduos, — se Deus quisesse isso, ter-vos-ia criado sós — mas que se cumpra na terra inteira, entre todos os seres que criou à sua imagem. O que Ele quer é que a idéia de aperfeiçoamento e de amor por ele posta no mundo se revele e resplandeça cada vez mais adorada e representada. Vossa existência terrestre, limitadíssima como é em tempo e faculdades, só pode representá-la imperfeitíssima e em lampejos. Só a Humanidade, contínua por gerações e por inteligência, que se nutre da inteligência de todos os seus membros, pode desenvolver aos poucos essa idéia divina, e aplicá-la e glorificá-la. A vida, pois, vos foi dada por Deus para que a empregueis em benefício da Humanidade, para que orienteis vossas faculdades individuais para o desenvolvimento das faculdades dos vossos irmãos, para que acrescenteis com vossa obra um elemento qualquer à obra coletiva de melhoramento e descoberta da Verdade que as gerações promovem, lenta mas continuamente. Deveis educar-vos e educar, aperfeiçoar-vos e aperfeiçoar.

Um povo, o grego, o polaco, o circassiano, surge com uma bandeira de pátria e de independência, combate, vence ou morre por ela. Que é que faz palpitar o vosso coração ante a narrativa das batalhas? Que é que o consola na alegria das vitórias e o contrista na derrota? Um homem, vosso compatriota ou estrangeiro, levanta-se, no silêncio comum, num recanto da terra, emite algumas idéias, que julga verdadeiras, mantém-nas quando perseguido e entre os cepos, e morre, sem renegá-las, no cadafalso. Por que o honrais com o nome de santo e de mártir? Por que respeitais e fazeis respeitar por vossos filhos a sua memória! Porque esses homens de dois mil anos atrás, essas populações que hoje combatem longe de vós, esse mártir por cujas idéias não morrestes, foram, são vossos irmãos: irmãos não somente por comunhão de origem e de natureza, mas por comunhão de trabalho e de ideal. Esses gregos antigos passaram; sua obra, porém, não passou, e sem ela não teríeis hoje o grau de desenvolvimento intelectual e moral que alcançastes. Essas populações consagraram, com o próprio sangue, uma idéia de liberdade nacional pela qual combateis. Esse mártir ensinou, morrendo, que o homem deve sacrificar tudo e, se for preciso, a própria vida ao que ele julga ser a Verdade. Pouco importa que ele e tantos outros, que selam a fé com o próprio sangue, interrompam na terra o próprio desenvolvimento individual; Deus provê além por eles. O que importa é o desenvolvimento da Humanidade. O que importa é que a geração vindoura surja, esclarecida por vossas pugnas e por vossos sacrifícios, mais alta e mais poderosa do que vós na inteligência da Lei, na adoração da verdade. O que importa é que, fortificada pelos exemplos, a natureza humana melhore e verifique cada vez mais o desígnio de Deus sobre a terra. E, onde quer que a natureza humana melhore, onde quer que se conquiste uma verdade, onde quer que se dê um passo no caminho da educação, do progresso, da moral, esse passo, essa conquista frutificará, mais cedo ou mais tarde, em toda a Humanidade.

Que distância entre essa crença que fermenta nas nossas almas, e será base da moral da época que está por surgir, e a que davam por base à sua moral as gerações que hoje chamamos de antigas! E como é estreito o liame que passa entre a idéia que fazemos do Principado Divino e a que fazemos dos nossos deveres! Os primeiros homens ouviram Deus, mas sem entendê-lo, sem procurar sequer entendê-lo na sua Lei. Cristo pôs diante de sua crença estas duas verdades inseparáveis: Há somente um Deus, e todos os homens são filhos de Deus; e a promulgação dessas duas verdades mudou a face do mundo e ampliou o círculo moral até aos confins das terras habitadas. Aos deveres para com a família e a pátria, acrescentaram-se os deveres para com a Humanidade. Então, o homem aprendeu que, onde quer que se achasse um seu semelhante, aí estaria um irmão por ele, um irmão dotado de alma imortal como a dele, chamada a reunir-se ao Criador; e que lhe devia amor, participação da fé e auxílio de conselho e de obra onde houvesse necessidade. Então, pressentimento de outras verdades contidas em germe no Cristianismo, ouviram-se na boca dos Apóstolos palavras sublimes, ininteligíveis na antigüidade, deturpadas ou traídas mesmo pelos sucessores: “Assim como num corpo existem muitos membros, e cada membro com uma função diversa, assim também, embora muitos, nós somos um corpo só, e membros uns dos outros. E haverá um só redil e um só pastor”. E hoje, após dezoito séculos de estudos, de experiências e de fadigas, trata-se de dar desenvolvimento a esses germes: trata-se de aplicar essa verdade, não somente a cada indivíduo, mas a todo o conjunto de faculdades e forças humanas, presentes como futuras, que se chama a Humanidade; trata-se de promulgar, não só que a Humanidade é um corpo único, mas que o primeiro artigo dessa Lei é o Progresso, progresso na terra onde devemos realizar, tanto quanto pudermos, o desígnio de Deus e educar-nos para melhores destinos. Trata-se de ensinar aos homens que, se a Humanidade é um corpo único, todos nós, como membros desse corpo, devemos trabalhar pelo seu desenvolvimento e tornar-lhe a vida mais harmônica, ativa e poderosa. Trata-se de convencer-nos de que só podemos elevar-nos a Deus pelas almas dos nossos irmãos, e de que devemos melhorá-las e purificá-las em quanto no-lo peçam. Trata-se, desde que só a Humanidade inteira pode cumprir essa parte do desígnio de Deus que ele quer que se realize na terra, de substituir o exercício da caridade para com os indivíduos por um trabalho de associação tendente a melhorar o conjunto, e de preparar para tal objetivo a família e a pátria. Outros deveres mais vastos nos serão revelados quando adquirirmos uma idéia menos imperfeita e mais clara da nossa Lei de vida. Assim, Deus Pai, por meio de uma lenta mas contínua educação religiosa, guia para melhor a Humanidade, e nesse melhor a nossa individualidade melhora igualmente.

Por conseguinte, irmãos, por dever e utilidade vossa, jamais devereis esquecer que os vossos primeiros deveres, sem cumprimento dos quais não podeis esperar cumprir os que a pátria e a família impõem, são os deveres para com a Humanidade. Vossa palavra e vossa obra são para todos, assim como para todos é Deus, no seu amor e na sua Lei. Em qualquer terra que vos acheis, onde quer que um homem combata pelo direito, pelo justo, pelo verdadeiro, aí tereis um irmão; onde quer que um homem sofra atormentado pelo erro, pela injustiça, pela tirania, aí tereis um irmão. Livres e escravos, sede todos irmãos. Uma é a vossa origem, uma a lei, um o fim para todos vós. Seja uma a crença, uma a ação, uma a bandeira sob a qual militeis. Não digais: “A linguagem que falamos é diversa”; as lágrimas, a ação, o martírio, foram uma linguagem comum para todos os homens, que todos vós entendeis. Não digais: “A Humanidade é vasta demais e nós somos muitos fracos”; Deus não mede as forças, mas as intenções. Amai a Humanidade. A cada obra vossa no círculo da Pátria ou da Família perguntai a vós mesmos: Se o que eu faço fosse feito por todos, beneficiaria ou prejudicaria a Humanidade? Se a consciência vos responder: “Prejudicaria”, desisti, mesmo quando vos parecer que da vossa ação possa resultar uma vantagem para a Pátria ou para a Família. Sede apóstolos desta fé, apóstolos da fraternização das Nações e da unidade, hoje admitida em princípio, mas negada de fato, do gênero humano. Sede-o, onde puderdes e como puderdes. Nem Deus nem os homens podem exigir mais de vós. Eu, porém, vos digo que, se assim procederdes, — se assim procederdes, quando não o possais para com outrem, para com vós mesmos, — beneficiareis a Humanidade. Deus mede os graus de educação a que eleva o gênero humano pelo número e pela pureza dos crentes; Quando fordes puros e numerosos, Deus, que vos conta, abrir-vos-á o caminho para a ação.


 

V

DEVERES PARA COM A PÁTRIA

 

Os vossos primeiros Deveres, primeiros ao menos em importância, são, como vos disse, para com a Humanidade. Sois homens, antes de serdes cidadãos ou pais.

Mas, que pode cada um de vós, com suas forças isoladas, fazer pelo melhoramento moral, pelo progresso da Humanidade? Podeis exprimir, de vez em quando, esterilmente, a vossa crença; podeis realizar, uma vez ou outra, para com um irmão não pertencente às vossas terras, uma obra de caridade; e nada mais. Ora, a caridade não é a palavra da fé futura. A palavra da fé futura é a associação, a cooperação fraternal para um objetivo comum, tão superior à caridade quanto a obra de muitos dentre vós, que se unem para erguer concordes um edifício para habitardes juntos, é superior à que realizaríeis erguendo cada qual um casebre separado e limitando-vos a trocar uns com os outros o auxílio de pedras, tijolos e cal. Mas, essa obra comum, vós, divididos por idiomas, tendências, costumes, faculdades, não podeis tentá-la. O indivíduo é demasiado fraco e a Humanidade demasiado vasta. Meu Deus, — suplica, ao zarpar, o marinheiro da Bretanha — protegei-me: meu barco é tão pequeno e vosso Oceano tão grande! E essa prece resumirá a condição de cada um de vós, se não se achar um meio de multiplicar indefinidamente as vossas forças, a vossa capacidade de ação. Esse meio, achou-o Deus para vós, quando vos deu uma Pátria, quando, como um sábio diretor de trabalhos, distribuiu os diversos papéis de acordo com a capacidade, repartiu a Humanidade em grupos, em núcleos distintos, sobre a face do nosso globo, e lançou o germe das nações. Os maus governos contrariaram o desígnio de Deus, que podeis ver claramente, pelo menos no que respeita à Europa, nos cursos dos grandes rios, nas curvas das altas montanhas e nas outras condições geográficas: contrariaram-no com a conquista, a avidez, a inveja do justo poder alheio; contrariaram-no tanto que, hoje, fora da Inglaterra e da França, talvez não haja nação cujos limites correspondam a esse desígnio. É que não conheceram e não conhecem Pátria fora da própria família, dinastia, egoísmo de casta. Mas o desígnio divino se realizará inevitavelmente. As divisões naturais, as tendências inatas e espontâneas dos povos substituirão as divisões arbitrárias sancionadas pelos maus governos. O mapa da Europa será refeito. A Pátria do Povo surgirá, defendida pelo voto das livres, sobre as ruínas da Pátria dos reis, das castas privilegiadas. Entre essas pátrias haverá harmonia, fraternidade. E então, o trabalho da Humanidade pelo melhoramento comum, pelo descobrimento e aplicação da própria lei de vida, repartido de acordo com as capacidades locais e associado, poderá realizar-se por via do desenvolvimento progressivo e pacífico: então cada um de vós, forte dos afetos e dos meios de muitos milhões de homens que falam a mesma língua, dotados de tendências uniformes, educados pela mesma tradição histórica, poderá esperar beneficiar com a própria obra toda a Humanidade.

Sem Pátria, não tereis nome, nem senha, nem voto, nem direitos, nem batismo de irmãos entre os povos. Sereis os bastardos da Humanidade. Soldados sem bandeira, israelitas das Nações, não obtereis fé nem proteção: não tereis fiadores. Não vos iludais em realizar, antes de conquistardes uma Pátria, a vossa emancipação de uma injusta condição social: onde não há Pátria, não há pacto comum para o qual possais apelar, reina somente o egoísmo dos interesses, e quem tem predomínio o conserve, pois não há tutela comum à própria tutela. Não vos seduza a idéia de melhorar, sem resolver primeiro a questão nacional, as vossas condições materiais: não podeis triunfar. Vossas associações industriais, as sociedades de mútuo socorro são boas como obra educadora: como fatos econômicos, permanecerão estéreis enquanto não tiverdes uma Itália. O problema econômico exige, principalmente, aumento de capital e de produção; e, enquanto o vosso país estiver desmembrado em frações, enquanto, separados por linhas aduaneiras e dificuldades artificiais de toda sorte, só tiverdes mercados restritos diante de vós, não podereis esperar esse aumento. Hoje — não vos iludais — não sois a classe operária da Itália: sois frações dessa classe, impotentes, desiguais no grande objetivo que vos propondes. Vossa emancipação só poderá iniciar-se praticamente quando um Governo Nacional, compreendendo os sinais dos tempos, tiver inscrito, em Roma, na Declaração de Princípios que será norma do desenvolvimento da vida italiana, estas palavras: O trabalho é sagrado e é a fonte da riqueza da Itália.

Não vos desencaminheis, pois, empós de esperanças de progresso material, que nas vossas condições de hoje não passam de ilusões. Somente a Pátria, a vasta e rica Pátria Italiana, que se estende dos Alpes à última terra da Sicília, pode realizar essas esperanças. Só podeis obter o que é vosso direito, obedecendo ao que vos ordena o Dever. Mereceis e tereis. Meus irmãos! Amai a Pátria. A Pátria é a nossa casa: a casa que Deus nos deu, pondo-nos dentro de uma numerosa família que nos ama e que nós amamos, com a qual podemos entender-nos melhor e mais rapidamente do que com outros, e que, pela concentração sobre um dado território e pela natureza homogênea dos elementos que possui, é chamada a um gênero especial de ação. A Pátria é a nossa oficina: os produtos da nossa atividade devem dela transbordar em benefício de toda a terra; mas, os instrumentos de trabalho que melhor e mais eficazmente podemos manejar se encontram nela, e não podemos renunciar a eles sem trair a intenção de Deus e sem diminuir as nossas forças. Trabalhando pela Pátria, segundo os verdadeiros princípios, trabalharemos pela Humanidade: a Pátria é o ponto de apoio da alavanca que devemos dirigir em proveito comum. Perdendo esse ponto de apoio, correremos o risco de tornar-nos inúteis à Pátria e à Humanidade. Antes de associar-nos com as Nações que compõem a Humanidade, precisamos existir como Nação. Só há associação entre os iguais; e vós não tendes existência coletiva reconhecida.

A Pátria é uma comunhão de livres e de iguais irmanados em concórdia de trabalho para um fim único. Deveis fazê-la e mantê-la como tal. A Pátria não é um agregado, é uma associação. Não há, pois, verdadeira Pátria sem um Direito uniforme. Não há Pátria onde a uniformidade desse Direito é violada pela existência de castas, privilégios, desigualdades. Onde a atividade de uma porção das forças e faculdades individuais é cancelada ou adormecida, onde não há princípio comum aceito, reconhecido, desenvolvido por todos, não há Nação, nem povo, mas multidão, aglomeração fortuita de homens que as circunstâncias reuniram, que circunstâncias diversas separarão. Em nome do vosso amor à Pátria, combatereis sem tréguas a existência de todo privilégio, de toda desigualdade sobre o solo que vos deu vida. Um só privilégio é legítimo: o privilégio do Gênio, quando o Gênio aparece irmanado com a Virtude; mas, é um privilégio concedido por Deus e não pelos homens — e, ao reconhecê-lo, seguindo-lhe as inspirações, vós o reconheceis livremente, exercendo vossa razão, vossa preferência. Qualquer privilégio que pretenda vossa submissão em virtude da força, da herança de um direito que não seja direito comum, é usurpação, é tirania que deveis combater e extinguir. A Pátria deve ser o vosso Templo. Deus no vértice, um povo de iguais na base; não tenhais outra fórmula, outra Lei moral, se não quiserdes desonrar a Pátria e a vós mesmos. As Leis secundárias que devem continuamente regular vossa vida devem ser a aplicação progressiva dessa Lei Suprema.

E, para que o sejam, é necessário que todos contribuam para fazê-las. As leis feitas por uma única fração de cidadãos só podem, por natureza das coisas e dos homens, refletir o pensamento, as aspirações e os desejos dessa fração: representam, não a Pátria, mas um terço, um quarto, uma classe, uma zona da pátria. A lei deve exprimir a aspiração geral, promover a utilidade de todos, responder ao palpitar do coração nacional. A Nação inteira deve ser, pois, direta ou indiretamente, legisladora. Cedendo a alguns homens essa missão, substituís pelo egoísmo de uma classe a Pátria que é a união de todas.

A Pátria não é um território; o território é apenas a base. A Pátria é a idéia que surge sobre aquele; é o pensamento de amor, o senso de comunhão que reúne num só todos os filhos desse território. Enquanto um só dentre os vossos irmãos não estiver representado pelo próprio voto no desenvolvimento da vida nacional; enquanto um só vegetar ineducado entre os educados; enquanto um só, desejoso de trabalho, definhar sem trabalho na miséria, — não tereis a Pátria como devereis tê-la, a Pátria de todos, a Pátria para todos. O voto, a educação, o trabalho, são as três colunas fundamentais da Nação; não descanseis enquanto não estiverem, por obra vossa, solidamente levantadas.

A política da Pátria basear-se-á, por obra vossa, na adoração aos princípios, e não na idolatria do Interesse e da Oportunidade. A Europa tem países nos quais a Liberdade é sagrada no interior, mas sistematicamente violada no exterior. Povos que dizem: Uma coisa é a Verdade, outra a Utilidade; uma coisa é a teoria, outra coisa é a prática. Esses países expiarão sua culpa, e por muito tempo, inevitavelmente, no isolamento, na opressão e na anarquia. Vós, porém, sabeis qual é a missão da nossa Pátria e seguireis outro caminho. Para vós, a Itália terá, assim como um só Deus nos céus, uma só verdade, uma só fé, uma só norma de vida política sobre a terra. No edifício que o povo da Itália erguerá mais sublime do que o Campidoglio e o Vaticano, plantareis a bandeira da Liberdade e da Associação, para que refulja aos olhos de todas as Nações, pois jamais a ocultaríeis por terror dos déspotas ou pela ambição dos interesses de um dia. Tereis audácia e fé. Confessareis bem alto o pensamento que fermenta no coração da Itália, perante o mundo e perante aqueles que se dizem senhores do mundo. Jamais renegareis as Nações irmãs. A vida da Pátria desenvolver-se-á, por vós, bela e forte, livre de temores servis e céticas hesitações, conservando como base o povo, como norma as conseqüências dos seus princípios, logicamente deduzidas e energicamente aplicadas, como força a força de todos, como resultado o melhoramento de todos, como fim o cumprimento da missão que Deus lhe confiou. E, como estareis prontos a morrer pela Humanidade, a vida da Pátria será imortal.


 

VI

DEVERES PARA COM A FAMÍLIA

 

A família é a Pátria do coração. Há um anjo na Família que, com uma misteriosa influência de graças, doçura e amor, torna o cumprimento dos deveres menos árido, e os sofrimentos menos amargos. As únicas alegrias puras e isentas de tristeza que ao homem é dado gozar na terra são, mercê desse Anjo, as alegrias da Família. Quem, por fatalidade de circunstâncias, não pôde viver sob as asas desse Anjo, a vida serena da família, tem uma sombra de melancolia estendida sobre a alma, um vazio que nada enche no coração: e eu, que escrevo para vós estas páginas, o sei. Bendizei a Deus, que criou esse Anjo, ó vós que tendes as alegrias e as consolações da Família.

O Anjo da Família é a Mulher. Mãe, esposa, irmã, a Mulher é a carícia da vida, a suavidade do afeto difundida sobre suas fadigas, um reflexo sobre o indivíduo da Providência amorável que vela sobre a Humanidade. Nela se encerram tesouros de consoladora doçura, que bastam para aliviar qualquer sofrimento. E ela é, além disso, para cada um de nós, a iniciadora do futuro. O primeiro beijo materno ensina à criança o amor. O primeiro beijo sagrado da amiga ensina ao homem a esperança, a fé na vida; e o amor e a fé criam o desejo do melhor, o poder de alcançá-lo gradativamente, o futuro em suma, cujo símbolo vivo é a criança, liame entre nós e as gerações futuras. Por ela, a Família, com o seu Mistério divino de reprodução, acena à eternidade.

A Família é conceito de Deus, não vosso. Como a Pátria, muito mais do que a Pátria, a Família é um elemento de vida.

Eu disse que muito mais do que a Pátria. A Pátria, sagrada hoje em dia, talvez ainda desapareça quando todo homem refletir, na própria consciência, a lei moral da Humanidade; a Família durará enquanto durar o homem. Ela é o berço da Humanidade. Como todo elemento da vida humana, ela deve ser aberta ao Progresso, melhorar de época em época suas tendências, suas aspirações; ninguém, porém, poderá destruí-la.

Fazer a família cada vez mais santa e cada vez mais ligada à Pátria, eis a vossa missão. O que a Pátria é para a Humanidade, a Família deve ser para a Pátria. Assim como vos disse que o papel da Pátria é educar os homens, assim, também, o papel da Família é educar os cidadãos: Família e Pátria são os dois pontos extremos de uma linha única. E onde não é assim, a Família torna-se Egoísmo, tanto mais repulsivo e brutal quanto mais prostitui, desviando-a do verdadeiro alvo, a coisa mais santa, os afetos.

Amai, respeitai a mulher. Não busqueis nela somente um conforto, mas uma força, uma inspiração, um redobramento das vossas faculdades intelectuais e morais. Eliminai da vossa mente toda idéia de superioridade: não tendes nenhuma. Um velho preconceito criou, através de uma educação desigual e uma perene opressão das leis, essa aparente inferioridade intelectual com a qual hoje se argumenta para manter a opressão. Mas, a história das opressões não vos ensina que quem oprime se apoia sempre num fato criado por ele próprio? As castas feudais proibiram a vós, filhos do povo, até quase os nossos dias, a educação, e em seguida, com a falta de educação, argumentaram e argumentam ainda hoje, para excluir-vos do santuário da cidade, do recinto onde se fazem as leis, do direito de voto que inicia a vossa missão social. Perante Deus Uno e Pai, não há homem nem mulher, mas o ser humano, o ser no qual, sob o aspecto de homem ou de mulher, se encontram todos os caracteres que distinguem a humanidade da ordem dos animais: tendência social, capacidade de educação, faculdade de progresso. Onde quer que se revelem esses caracteres, existe uma natureza humana e, portanto, igualdade de direitos e deveres. Como dois ramos que partem distintos de um mesmo tronco, o homem e a mulher partem, diferentes, de uma base comum, que é a humanidade. Não existe desigualdade entre ambos, e sim, como muitas vezes sucede entre dois homens, diversidade de tendências, de vocações especiais. Duas notas de um acorde musical serão desiguais ou de natureza diversa? A mulher e o homem são as duas notas sem as quais o acorde humano se torna impossível. Terão deveres e direitos gerais diversos dois povos chamados, por suas tendências especiais ou pelas condições em que vivem, um a difundir o pensamento da associação humana por meio de colônias, outro a pregá-lo com a produção de obras-primas de arte ou de literatura universalmente admiradas? Ambos esses povos são apóstolos, conscientemente ou não, do mesmo conceito divino, iguais e irmãos nele. O homem e a mulher têm, como esses dois povos, funções distintas na Humanidade; mas, essas funções são igualmente sagradas, necessárias ao desenvolvimento comum.

Amai os filhos que a providência vos manda; mas, amai-os com verdadeiro, profundo e severo amor; não com o amor desfibrado, irrazoável, cego, que é egoísmo para vós e ruína para eles. Em nome do que há de mais sagrado, não esqueçais nunca que tendes ao vosso cuidado as gerações futuras, que tendes para com essas almas que vos foram confiadas, para com a Humanidade, para com Deus, a mais tremenda responsabilidade que o ser humano pode conhecer: deveis iniciá-las, não nas alegrias ou nas ambições da vida, mas na vida mesma, nos seus deveres, na Lei Moral que a governa. Falai-lhes da Pátria, do que ela foi, do que deve ser. Quando, à noite, entre o sorriso da mãe e a ingênua tagarelice das crianças sentadas sobre os vossos joelhos, esquecerdes as fadigas do dia, narrai-lhes os grandes feitos dos homens do povo das nossas antigas repúblicas; ensinai-lhes os nomes dos bons que amaram a Itália e o seu povo e, por uma vida de amargura, de calúnias e de perseguições, tentaram melhorar-lhe os destinos. Instilai-lhes nos jovens corações, não o ódio contra os opressores, mas a energia de propósitos contra a opressão. Aprendam eles dos vossos lábios e do tranqüilo assenso materno, quanto é belo seguir o caminho da Virtude, e grandioso criar Apóstolos da Verdade, e santo o sacrificar-se, quando preciso, pelos próprios irmãos. Infundi-lhes nas mentes tenras, juntamente com os germes da rebelião contra toda autoridade usurpada e sustentada pela força, a reverência pela única e verdadeira Autoridade: a autoridade da Virtude coroada pelo Gênio. Fazei que cresçam igualmente inimigos da tirania e da amargura, na religião da consciência inspirada, não imposta pela tradição. A Nação deve ajudar-vos nessa obra. E vós tendes, em nome dos vossos filhos, o direito de exigi-lo. Sem Educação Nacional, não existe verdadeira Nação.

Amai vossos pais. Jamais a Família que procede de vós vos faça esquecer a família da qual procedeis. Muitas vezes, infelizmente, os novos vínculos afrouxam os antigos, quando deveriam ser um novo elo na cadeia de amor que deve ligar três gerações da Família. Circundai de afetos ternos e respeitosos, até o último dia, as cabeças encanecidas da mãe, do pai. Enchei-lhes de flores o caminho do túmulo. Difundi, com a continuidade do amor, sobre suas almas cansadas, um perfume de fé e imortalidade. E o afeto pelos pais, que conservais inviolado, vos seja penhor do afeto que vos reservarão os que nascerem de vós.


 

VII

DEVERES PARA CONSIGO MESMO

 

Preliminares

 

Eu vos disse: Tendes vida: tendes, pois, uma lei de vida... Desenvolver-vos, agir, viver segundo vossa lei — eis o primeiro, ou antes, o único Dever vosso.

Dificilmente podeis hoje interrogar sobre o dever a grande voz que a Humanidade vos transmite através da História: faltam-vos, até agora, bons livros séria e popularmente escritos, e falta-vos tempo; mas, os homens que, por engenho e consciência, melhor representam, para mais de meio século, os estudos históricos e a ciência da Humanidade, obtiveram dessa voz alguns caracteres da nossa Lei de Vida; obtiveram que a natureza humana é essencialmente educável, essencialmente social; obtiveram que assim como não existe nem pode existir mais do que um Deus, assim também não existe nem pode existir mais do que uma lei para o homem individual e para a Humanidade coletiva; obtiveram que o caracter fundamental, universal dessa Lei é o Progresso. Dessas verdades, decorrem todos os vossos deveres para com vós mesmos, e decorrem também os vossos direitos, os quais se resumem em um: o direito de não serdes absolutamente impedidos e o de serdes, dentro de certos limites, ajudados no cumprimento dos vossos deveres.

Sois e vos sentis livres, Todos os sofismas de uma lamentável filosofia que pretendesse substituir a consciência humana por uma doutrina de não sei que fatalismo, não bastam para anular dois testemunhos invencíveis em favor da liberdade: o remorso e o martírio. De Sócrates a Jesus, de Jesus aos homens que morrem a cada passo pela Pátria, os mártires de uma Fé protestam contra essa servil doutrina, gritando-vos: “Amávamos a vida; amávamos seres que no-la tornavam cara e que nos suplicavam que desistíssemos; todos os impulsos do nosso coração diziam: Vive! a cada um de nós, mas, para salvação das gerações futuras, preferimos morrer”.

Sois educáveis. Existe em cada um de vós uma soma de faculdades, de capacidades intelectuais, de tendências morais, às quais somente a educação pode dar movimento e vida, e que, sem ela, permaneceriam estéreis, inertes, só se revelando em lampejos sem desenvolvimento regular.

A educação é o pão da alma. Assim como a vida física, orgânica, não pode crescer e desenvolver-se sem alimentos, assim também a vida moral, intelectual, tem necessidade, para ampliar-se e manifestar-se, das influências externas e de assimilar parte ao menos das idéias, dos afetos, das tendências alheias. A vida do indivíduo eleva-se, como a planta, variedade dotada de existência própria e de caracteres especiais, sobre o terreno comum, nutre-se dos elementos da vida comum. O indivíduo é um rebento da Humanidade e alimenta e renova as próprias forças nas suas.

E, para que essa obra educadora se realizasse mais rapidamente, para que a vossa vida individual se ligasse mais certa e intimamente com a vida coletiva de todos, Deus vos fez seres essencialmente sociáveis. Todo ser inferior a vós pode viver por si, sem outra comunhão além da que tem com a natureza e com os elementos do mundo físico; vós não o podeis. Tendes a cada passo necessidade dos vossos irmãos; e não podeis satisfazer as mais simples necessidades da vida sem recorrer ao seu trabalho. Superiores a qualquer outro ser, mercê da associação com os vossos semelhantes, sois, quando isolados, inferiores em força a muitos animais, fracos e incapazes de desenvolvimento e de plena vida. As mais nobres aspirações do vosso coração, como o amor à Pátria, e também as menos virtuosas, como o desejo de glória e do louvor alheio, revelam vossa tendência para identificar vossa vida com a vida dos milhões que vivem ao vosso redor. Sois, pois, chamados à associação. Ela centuplica as vossas forças: torna vossas as idéias alheias, vosso o alheio progresso; e eleva, melhora e santifica a vossa natureza com os afetos e com o sentimento crescente da unidade da família humana.

Sois, finalmente, seres progressivos.

A palavra Progresso, ignorada entre os antigos, será doravante uma palavra sagrada para a Humanidade. Encerra toda uma transformação social, política, religiosa.

A antigüidade, os homens das velhas religiões orientais e do paganismo, acreditavam no Destino, no Acaso, num Poder oculto, ininteligível, senhor arbitrário das coisas humanas, criador e destruidor alternativamente, sem que o homem pudesse compreender-lhe, promover-lhe ou acelerar-lhe as necessidades. Consideravam o homem impotente para fundar algo de durável, permanente, sobre a terra. A conseqüência de tais doutrinas era uma tendência para aceitar os fatos predominantes sem cuidar ou esperar mudá-los. Onde as circunstâncias tinham implantado uma forma republicana, os homens daquela época eram republicanos; onde dominava o despotismo, eram escravos alheios ao progresso e submissos. Mas depois que por toda parte, sob a forma republicana como sob a tirania, encontraram dividida a família humana, ou em quatro castas, como no Oriente, ou em duas, de cidadãos livres e de escravos, como na Grécia, aceitaram a divisão das castas ou a crença em duas naturezas diversas de homens; e aceitaram-na as mais poderosas inteligências do mundo grego: Platão e Aristóteles. A emancipação da vossa classe era, para esses homens, impossível.

Os homens que fundaram, sobre a palavra de Jesus, uma Religião superior a todas as crenças do velho Oriente e do Paganismo, entreviram, não conquistaram, a santa idéia contida nesta palavra: Progresso. Compreenderam a unidade da raça humana, compreenderam a unidade da lei, compreenderam o dever de aperfeiçoamento do homem: não compreenderam o poder dado por Deus ao homem para cumpri-lo, nem a via pela qual se cumpre. Limitaram-se, contudo, a deduzir as normas da vida da contemplação do indivíduo: a Humanidade, como corpo coletivo, continuou ignorada.

Todo o edifício das crenças que sucederam ao Paganismo repousa, de qualquer modo, sobre as bases acima indicadas. É claro que nem sobre estas podia fundar-se a vossa emancipação aqui na terra.

Cerca de mil e trezentos anos depois das palavras de Jesus, um homem, italiano, o maior dentre os italianos que eu conheci, escreveu as verdades seguintes: “Deus é uno; o Universo é um pensamento de Deus; o Universo é, pois, também uno. Todas as coisas vêm de Deus. Todas participam, mais ou menos, da natureza divina, conforme o fim para o qual são criadas. O homem é nobilíssimo entre todas as coisas: Deus verteu nele mais de sua natureza do que sobre as outras. Toda coisa que vem de Deus tende ao aperfeiçoamento do qual é capaz. A capacidade de aperfeiçoamento no homem é indefinida. A Humanidade é una. Deus não fez nada inútil; e, assim como existe uma Humanidade, assim também deve existir um objetivo único para todos os homens, um trabalho que deve ser realizado por obra de todos. O gênero humano deve, pois, trabalhar unido, de modo que todas as forças intelectuais nele difundidas, obtenham o mais alto desenvolvimento possível na esfera do pensamento e da ação. Existe, pois, uma Religião universal da natureza humana.”

O homem que escreveu essas idéias chamava-se Dante. Toda cidade da Itália, quando a Itália for livre e una, deveria erguer-lhe uma estátua, porque essas idéias contêm em germe a Religião do Futuro. Ele escreveu-as em livros latinos e italianos.

O germe lançado por Dante frutificou. Recebido e fecundado constantemente por inteligências poderosas, desenvolveu-se em planta no fim do século passado. A idéia do Progresso, como Lei da Vida, aceita, desenvolvida, verificada na História, confirmada pela ciência, tornou-se bandeira do futuro. Hoje, não há engenho severo que a não ponha como base dos seus trabalhos.

Hoje, sabemos que a lei da Vida é o Progresso; progresso para o indivíduo, progresso para a Humanidade. A Humanidade cumpre essa Lei na terra; o indivíduo, na terra e fora dela. Um só Deus; uma só Lei. Essa Lei se cumpre lentamente, inevitavelmente, na Humanidade, desde o seu primeiro nascimento. A verdade jamais se manifestou toda ou de golpe. Uma revelação contínua manifesta, de época em época, um fragmento da Verdade, uma palavra da Lei. Cada uma dessas palavras modifica profundamente, no caminho do Melhor, a vida humana, e constitui uma crença, uma Fé. O desenvolvimento da Idéia religiosa é, pois, indefinidamente progressivo; e, como colunas de um templo, as crenças sucessivas, desenvolvendo e purificando cada vez mais essa Idéia, constituirão um dia o Panteon.

São essas algumas das verdades contidas na palavra Progresso, da qual sairá a Religião do Futuro. Somente nela pode realizar-se a vossa emancipação.


 

VIII

LIBERDADE

 

Viveis. A vida que existe em vós não é obra do Acaso; a palavra Acaso não tem sentido algum e não foi descoberta senão para exprimir a ignorância dos homens sobre certas coisas. A vida que existe em vós vem de Deus e revela no seu desenvolvimento progressivo um desígnio inteligente. Vossa vida tem, pois, necessariamente, um fim, um objetivo.

O fim último, para o qual fomos criados, nos é até agora desconhecido, e não pode ser de outra forma; nem por isso devemos negá-lo. Conhece a criança o fim para o qual deverá tender na Família, na Pátria, na Humanidade? Não: mas, o fim existe, e nós começamos a conhecê-lo por ela. A Humanidade é a criança de Deus: Ele conhece o fim para o qual ela deve desenvolver-se. A Humanidade mal começa, hoje, a entender que a lei é Progresso; mal começa a entender incertamente alguma coisa do Universo que tem ao redor; e a maior parte dos indivíduos que a compõem é ainda inútil, por barbaria, servidão ou falta absoluta de educação, para o estudo dessa Lei, para o exame do Universo que é preciso entender antes de entender a nós mesmos.

Aquilo de que nos importa convencer-nos é de que, qualquer que seja o fim para o qual tendamos, só poderemos descobri-lo e alcançá-lo com o desenvolvimento progressivo e com o exercício das nossas faculdades intelectuais. As nossas faculdades são os instrumentos de trabalho que Deus nos deu. É, pois, necessário que o seu desenvolvimento seja promovido e auxiliado; o seu exercício protegido e livre. Sem liberdade, não podeis cumprir nenhum dos vossos deveres. Tendes, pois, direito à Liberdade e dever de conquistá-la de toda forma, contra qualquer poder que a negue.

Sem liberdade, não existe Moral, porque não existindo livre escolha entre o bem e o mal, entre a devoção ao progresso comum e o espírito de egoísmo, não existe responsabilidade. Sem liberdade, não existe sociedade verdadeira, porque entre livres e escravos não pode existir associação, mas somente domínio de uns sobre os outros. A liberdade é sagrada como o indivíduo, cuja vida ela representa. Onde não há liberdade, a vida é reduzida a uma pura função orgânica. Deixando que sua liberdade seja violada, o homem trai a própria natureza e se rebela contra os decretos de Deus.

Não há liberdade onde uma casta, uma família, um homem assume o domínio sobre os outros, em virtude de um pretenso direito divino, em virtude de um privilégio derivado do nascimento, ou em virtude de riqueza.

Há, porém, coisas que constituem a vossa individualidade e são essenciais à vida humana. E sobre estas nem mesmo o povo tem senhoria. Nenhuma maioria, nenhuma força coletiva pode roubar-vos o que vos faz ser homens. Nenhuma maioria pode decretar a tirania e extinguir ou alienar a própria liberdade.

Deveis ter liberdade em tudo o que é indispensável para alimentar, moral e materialmente, a vida.

Liberdade pessoal; liberdade de locomoção; liberdade de crença religiosa; liberdade de opiniões em todas as coisas; liberdade de exprimir, pela imprensa ou de qualquer outro modo pacífico, o vosso pensamento; liberdade de associação para podê-lo fecundar com o contato do pensamento alheio; liberdade de tráfico para os seus produtos, — são coisas que ninguém pode tirar-vos, salvo raras exceções que agora não importa citar, sem grave injustiça, sem que surja em vós o dever de protestar. Ninguém tem o direito, em nome da sociedade, de encarcerar-vos ou submeter-vos a restrições pessoais ou a vigilância, sem dizer-vos por que, sem dizer-vos com a menor demora possível, sem conduzir-vos o quanto antes perante o poder judiciário do país. Ninguém tem o direito de dificultar, com restrições de passaportes ou outras, a vossa transferência de um lugar para o outro da terra que é a vossa Pátria. Ninguém tem o direito de perseguição, de intolerância, de legislação exclusiva sobre as vossas opiniões religiosas: ninguém, a não ser a grande voz pacífica da Humanidade, tem o direito de interpor-se entre Deus e a vossa consciência. Deus vos deu o Pensamento: ninguém tem o direito de vinculá-lo ou suprimir-lhe a expressão, que é a comunhão da vossa alma com a alma dos vossos irmãos e a única via de progresso que possuímos. A imprensa deve ser ilimitadamente livre: os direitos da inteligência são invioláveis, e toda censura preventiva é tirania. A sociedade pode, como todas as outras culpas, punir somente as culpas de imprensa, a pregação do delito, o ensino declaradamente imoral: a punição em virtude de um julgamento solene é conseqüência da responsabilidade humana, ao passo que toda intervenção anterior é negação da liberdade. A associação pacífica é santa como o pensamento: Deus pôs em vós essa tendência, como preparação perene para o progresso e penhor da Unidade que a família humana deve um dia alcançar: nenhum poder tem o direito de impedi-lo ou de limitá-lo. Cada um de vós tem o dever de usar da vida que Deus lhe deu, de conservá-la, de desenvolvê-la; a cada um de vós cabe um débito de trabalho, único meio de sustentá-la materialmente; o trabalho é sagrado: ninguém tem o direito de vedá-lo, de estorvá-lo ou de torná-lo impossível através de regulamentos arbitrários; ninguém tem o direito de restringir o tráfico livre dos seus produtos; a terra que é vossa Pátria é o vosso mercado, e ninguém pode limitá-lo.


 

IX

EDUCAÇÃO

 

Deus vos fez educáveis. Tendes, pois, o dever de educar-vos tanto quanto dependa de vós e o direito de que a sociedade à qual pertenceis não vos impeça em vossa obra educadora, vos ajude nela e vos supra, quando os meios de educação vos faltarem.

A vossa liberdade, os vossos direitos, a vossa emancipação de condições sociais injustas, a missão que cada um de vós deve cumprir aqui na terra, dependem do grau de educação que vos é dado alcançar. Sem educação não podeis escolher acertadamente entre o bem e o mal; não podeis adquirir consciência dos vossos direitos; não podeis obter a participação na vida política, sem a qual não conseguireis emancipar-vos: não podeis definir a vós mesmos a vossa missão. A educação é o pão das vossas almas. Sem ela, as vossas faculdades dormem enregeladas, infecundas, como o poder de vida incubado no germe dorme esterilizado, quando este é lançado em terreno não lavrado, sem benefício de irrigação e os cuidados de um cultivador assíduo.

Hoje, ou não tendes educação ou a recebeis de homens e poderes que nada representam fora de si mesmos e não servindo a um princípio regulador, estão condenados essencialmente a mutilá-la ou falseá-la. Os menos maus dentre os vossos educadores julgam ter satisfeito ao seu débito, quando abriram desigualmente, no território que dominam, certo número de escolas onde os vossos filhos possam receber um grau qualquer de ensino elementar. Esse ensino consiste principalmente em ler, escrever e contar.

Tal ensino chama-se instrução; e difere tanto da educação quanto os nossos órgãos diferem da nossa vida. Os órgãos não são a vida; não passam de simples instrumentos dela e meios de manifestá-la; não a dominam, não a dirigem: podem corresponder à vida mais santa e à mais corrupta. Assim, a instrução ministra meios para praticar o que a educação ensina: não pode, porém, substituir a educação.

A distinção entre os homens que vos oferecem mais ou menos instrução e os que vos pregam educação é mais séria do que pensais e merece que eu lhe consagre algumas palavras.

Duas doutrinas, duas escolas, dividem o campo dos que combatem pela liberdade contra o despotismo. A primeira declara que a soberania reside no indivíduo; a segunda sustenta que ela vive unicamente na sociedade, e toma por norma o consenso manifestado pela maioria. A primeira julga ter cumprido sua missão quando proclamou os direitos considerados inerentes à natureza humana e tutelou a liberdade; a segunda encara quase exclusivamente a associação e deduz do pacto que a constitui os deveres de cada indivíduo. A primeira não vê nada além do que chamais instrução porque a instrução tende de fato para dar facilidade de desenvolvimento, sem norma geral, às faculdades individuais; a segunda considera a necessidade de uma educação, que é para ela a manifestação do programa social.

A Educação ensina qual é o bem social.

A Instrução assegura ao indivíduo a livre escolha dos meios para obter um progresso sucessivo no conceito do Bem.

Antes de mais nada, é mister que os vossos filhos aprendam o conjunto de princípios e de crenças que deve dirigir a vida dos seus irmãos na época em que são chamados a viver e na terra que lhes foi atribuída: o programa moral, social e político de sua Nação; o espírito da legislação pela qual suas obras devem ser julgadas; o grau de progresso alcançado pela Humanidade; e o grau de progresso que deve ser alcançado. É mister que eles sintam, desde os primeiros anos juvenis, que estão ligados, num espírito de igualdade e de amor para com uma intenção comum, a milhões de irmãos que Deus lhes deu.

A Educação que tal ensino deve dar aos vossos filhos, só pode vir da Nação.

Sem Educação Nacional, não existe moralmente Nação. A consciência nacional não pode sair senão daquela.

Sem Educação Nacional comum a todos os cidadãos, a igualdade de deveres e de direitos é uma fórmula vazia de sentido: o conhecimento dos deveres, a possibilidade do exercício dos direitos, são deixados ao acaso da fortuna ou ao arbítrio de quem escolhe o educador.

Os homens que se declaram avessos à unidade da educação invocam a liberdade. Liberdade de quem? Dos pais ou dos filhos? A liberdade dos filhos é violada, no seu sistema, pelo despotismo paterno; a liberdade das jovens gerações, sacrificada às velhas; a liberdade de progresso torna-se ilusão. As crenças individuais, falsas talvez e refratárias ao progresso, são transmitidas, isoladas e autorizadas, de pai a filho, na idade em que o exame é impossível; mais tarde, nas condições da maioria dentre vós, a fatalidade de um trabalho material de todas as horas, impedirá que a alma jovem, na qual estiverem impressas essas crenças, as confronte com outras e as modifique. Em nome dessa liberdade mentirosa, o sistema anárquico do qual vos falo tende a fundar e perpetuar o pior dos despotismos, a casta moral.

O que esse sistema protege tem o nome de arbítrio, e não de liberdade. Liberdade verdadeira não existe sem igualdade; e a igualdade não pode existir entre os que não partem de uma base, de um princípio comum, de uma consciência uniforme do Dever.

A Nação deve a cada cidadão a transmissão do seu programa. Todo cidadão deve receber nas escolas o ensino moral — um curso de nacionalidade que compreenda um quadro sumário dos progressos da Humanidade, a História Pátria e a exposição popular dos princípios que regem a legislação do país — e a instrução elementar em torno da qual não há divergência. Todo cidadão deve aprender nelas a igualdade e o amor.

Transmitido esse programa, a liberdade recupera os seus direitos. Não somente o ensino da família, mas qualquer outro é sagrado. Todo homem tem o direito ilimitado de comunicar a outros as próprias idéias; todo homem tem o direito de escutá-las. A sociedade deve proteger, encorajar a livre expressão do Pensamento, sob todas as formas; e abrir todo caminho para que o programa social possa desenvolver-se e modificar-se no bem.


 

X

ASSOCIAÇÃO — PROGRESSO

 

Deus vos fez sociáveis e progressistas. Tendes, pois, o dever de associar-vos e de progredir tanto quanto comporte a esfera de atividade na qual as circunstâncias vos colocarem, e tendes o direito de que a sociedade à qual pertenceis não vos impeça na vossa obra de associação e de progresso, vos auxilie nela e vos supra quando os meios de associação e de progresso vos faltarem.

A liberdade vos dá a faculdade de escolher entre o bem e o mal, isto é, entre o dever e o egoísmo. A educação deve ensinar-vos a escolha. A associação deve dar-vos as forças com as quais podereis realizar a escolha. O progresso é o fim a que deveis visar escolhendo, e é, ao mesmo tempo, quando visivelmente realizado, a prova de que não vos enganastes na escolha. Onde uma só dessas condições é traída ou esquecida, não existe homem nem cidadão, ou existe imperfeito ou prejudicado no seu desenvolvimento.

Deveis, pois, pugnar por todas e notadamente pelo direito da Associação, sem o qual a Liberdade e a Educação resultam inúteis.

O direito de Associação é sagrado como a Religião, que é a Associação das almas. Sois todos filhos de Deus: sois, pois, irmãos; e quem pode, sem delito, limitar a associação, a comunhão entre irmãos?

A palavra comunhão, que eu proferi meditadamente, vos foi dita pelo Cristianismo, que os homens declararam, no passado, religião imutável, quando não passa de um degrau na escada das manifestações religiosas da Humanidade. E é uma santa palavra. Ela disse que os homens eram uma única família de iguais em Deus; e reuniu o senhor e o servo num só pensamento de salvação, de esperança e de amor pelo Céu.

Foi um imenso progresso sobre as épocas anteriores, nas quais povo e filósofos julgavam as almas dos cidadãos e dos escravos de natureza diversa. E bastou ao Cristianismo essa missão. A comunhão foi o símbolo da igualdade e da fraternidade das almas; e coube à Humanidade ampliar e desenvolver a verdade oculta nesse símbolo.

A Igreja não o pôde e não o fez. Tímida e incerta a princípio, aliada aos senhores e ao poder temporal em seguida, e embebida, em benefício próprio, de uma tendência para a aristocracia, que não existia no espírito fundador, obstruiu de tal maneira o caminho que diminuiu, retrocedendo, o valor da Comunhão, limitando-a para os leigos à simples comunhão do pão e proporcionando aos sacerdotes a comunhão sob as duas espécies.

Seja, pois, a Associação um dever e um direito para vós.

Uns, para limitar-lhe o direito entre os cidadãos, vos dirão que a comunhão é o Estado, a Nação; que nele estais e deveis ser todos membros dele; e que, portanto, toda associação parcial entre vós é, ou contra o Estado, ou supérflua.

Mas o Estado, a Nação, não representam senão a associação dos cidadãos nessas coisas, nessas tendências comuns a todos os homens que dele fazem parte. Existem tendências e fins que não abrangem todos os cidadãos, mas somente certo número deles. E, como as tendências e o fim comum a todos geram a Nação, as tendências e o fim comum a vários cidadãos devem gerar a associação especial.

A associação deve ser progressiva no fim para o qual tende, não contrária às verdades conquistadas para sempre pelo consenso universal da Humanidade e da Nação. Uma associação que se implantasse para facilitar o furto da propriedade alheia, uma associação que tornasse obrigatória para os seus membros a poligamia, uma associação que declarasse ser preciso dissolver a Nação ou pregasse o estabelecimento do despotismo, seria ilegal. A Nação tem o direito de dizer aos seus membros: “Não podemos tolerar que se difundam entre nós doutrinas violadoras do que constitui a natureza humana, a Moral, a Pátria. Saí e estabelecei entre vós, para além das nossas fronteiras, a associação que as vossas tendências vos sugiram”.

A associação deve ser pacífica. Não pode ter outra arma senão o apostolado da palavra; deve propor-se persuadir, não constranger.

A associação deve ser pública. As associações secretas, arma de guerra legítima onde não há Pátria, nem Liberdade, são ilegais e podem ser dissolvidas pela Nação, quando a Liberdade é direito reconhecido, quando a Pátria protege o desenvolvimento e a individualidade do pensamento. Se a associação deve abrir caminho ao Progresso, deve ser submetida ao exame e ao juízo de todos.

E, finalmente, a associação deve respeitar nos outros os direitos que surjam das condições essenciais da natureza humana. Uma associação que violasse, como as corporações da Idade Média, a liberdade do trabalho, ou tendesse diretamente para restringir a liberdade de consciência, poderia ser repelida, por obra do governo, pela Nação.

Fora desses limites a liberdade de associação entre cidadãos é sagrada, inviolável, como o progresso que nela vive. Todo Governo que tentasse restringi-la trairia a missão social: o povo deveria primeiro adverti-lo, depois, esgotados os meios pacíficos, derrocá-lo.


 

XI

QUESTÃO ECONÔMICA

 

§ 1

 

Muitos, muitíssimos dentre vós, são pobres. Para os três quartos, pelo menos, dos homens que pertencem à classe operária, agrícola ou industrial, a vida é uma luta quotidiana para conquistar os meios indispensáveis à existência. Trabalham com os braços dez, doze, às vezes catorze horas por dia, e desse assíduo, monótono, penoso trabalho, retiram apenas o necessário à vida física. Ensinar-lhes o dever de progredir, falar-lhes de vida intelectual e moral, de direitos políticos, de educação, é, na ordem social atual, uma verdadeira ironia. Não têm tempo nem meios para progredir. Extenuados, exaustos, quase hebetados por uma vida consumida num círculo de poucas operações mecânicas, aprendem assim um rancor mudo, impotente e muitas vezes injusto contra a classe dos homens que os empregam; buscam o esquecimento das dores presentes e da incerteza do dia seguinte nos estímulos das bebidas fortes e dormem em lugares aos quais se adapta melhor o nome de covil do que o de quarto, para despertar para o mesmo exercício das forças físicas.

É tristíssima essa condição e é necessário mudá-la.

Sois homens e, como tais, tendes faculdades, não somente físicas, mas intelectuais e morais, que é vosso dever desenvolver; deveis ser cidadãos e, como tais, deveis exercer, para o bem de todos, direitos que exigem certo grau de educação, certa soma de tempo.

É claro que deveis trabalhar menos e ganhar mais do que atualmente.

Filhos todos de Deus e irmãos n’Ele e entre nós, somos chamados a formar uma só grande família. Nessa família podem existir desigualdades geradas das diversas aptidões, das diversas capacidades, das diversas disposições para o trabalho; mas um princípio deve dirigi-la: Cada qual está disposto a dar, pelo bem de todos, o que pode de trabalho; deve obter, para isso, uma compensação tal que o torne capaz de desenvolver, mais ou menos, a própria vida sob todos os aspectos que a definem.

É esse o ideal do qual devemos todos estudar o modo de aproximarmo-nos cada vez mais de século em século. Toda transformação, toda revolução, que dele não se aproxime um passo, que não faça corresponder ao progresso político um progresso social, que não promova de um grau o melhoramento material das classes mais pobres, viola o desígnio de Deus, reduz-se a uma guerra de facções contra facções em busca de uma dominação ilegítima: é uma mentira e um mal.

Mas até que ponto podemos alcançar, hoje, esse objetivo? E como, por que meios podemos alcançá-lo?

Alguns dentre os vossos mais tímidos amigos procuraram o remédio na moralidade do operário. Fundando caixas econômicas ou outras instituições semelhantes disseram aos operários: Trazei aqui o vosso dinheiro; economizai; abstende-vos de todo excesso de bebida ou de outro: emancipai-vos da miséria com as privações. E são ótimos conselhos, porque visam à moralidade do operário, sem a qual todas as reformas resultam inúteis. Mas, nem resolvem a questão da miséria, acerca da qual vos falo, nem se preocupam com o dever social. Pouquíssimos dentre vós podem economizar esse dinheiro.

Outros, não inimigos, mas pouco ciosos do povo e do grito de dor que surge das vísceras dos homens de trabalho, receosos de toda inovação poderosa, e ligados a uma escola chamada dos economistas, que combateu com mérito e com vantagem todas as batalhas da liberdade de indústria, mas sem atender à necessidade de progresso e de associação, inseparáveis igualmente da natureza humana, sustentaram e sustentam, como os filantropos dos quais vos falei há pouco, que cada um pode, mesmo no atual estado de coisas, edificar com a própria atividade a própria independência; que toda mudança na constituição do trabalho resultaria supérflua ou prejudicial; e que a fórmula “cada um por si, liberdade para todos” é suficiente para criar aos poucos um equilíbrio aproximativo de comodidade e conforto entre as classes que constituem a Sociedade. Liberdade de tráfico interno, liberdade de comércio entre as nações, baixa progressiva dos impostos, especialmente sobre as matérias-primas, encorajamento dado geralmente às grandes empresas industriais, à multiplicação das vias de comunicação, às máquinas que tornam mais ativa a produção: é quanto, segundo os economistas, pode fazer-se pela Sociedade; toda intervenção além desses limites é por eles considerada como fonte de mal.

Esses remédios só visam, na realidade, a aumentar, possivelmente e por certo tempo, a produção da riqueza, e não a tornar-lhe mais equitativa a distribuição. Enquanto os filantropos contemplam unicamente o homem e se esforçam por torná-lo mais moral, sem preocupar-se, para dar-lhe campo para melhorar, com aumentar a riqueza comum, os economistas visam simplesmente fecundar as fontes da produção, sem ocupar-se com o homem. Sob o regime exclusivo de liberdade que pregam e que mais ou menos regulou o mundo econômico nos últimos tempos, os documentos mais inegáveis nos mostram aumento de atividade produtiva e de capitais, não de prosperidade universalmente espalhada: a miséria das classes operárias é a mesma de antes. A liberdade de concorrer, para quem nada possui, para quem, não podendo economizar sobre salário, não tem com que iniciar a concorrência, é mentira como é mentira a liberdade política para quem, não possuindo educação, instrução, meios e tempo, não pode exercitar-lhe os direitos.

Hoje, o capital — e essa é a chaga da sociedade econômica atual — é o déspota do trabalho. Das três classes que constituem economicamente a Sociedade, — capitalistas, isto é, detentores dos meios ou instrumentos do trabalho, terras, feitorias, numerário, matérias-primas — empreiteiros, chefes de serviço, comerciantes, que representam ou deveriam representar a inteligência — e operários, que representam o trabalho manual, — só a primeira é dona do campo, dona de promover, retardar, acelerar, dirigir para certos fins o trabalho. E a sua parte nas utilidades do trabalho, no valor da produção, é comparativamente determinada: a locação dos instrumentos de trabalho não varia senão entre limites conhecidos e restritos; e o tempo, até certo limite pelo menos, é seu, não à mercê da absoluta necessidade. A parte dos segundos é incerta, dependente de sua inteligência, da sua atividade, mas sobretudo das circunstâncias, do desenvolvimento maior ou menor da concorrência e do refluir ou retirar-se, em conseqüência de eventualidades não calculáveis, dos capitais. A parte dos últimos, dos operários, é o salário, determinado anteriormente ao trabalho e sem consideração pelas utilidades maiores ou menores que sairão da empresa; e os limites entre os quais o salário gira, são determinados pela relação que existe entre o trabalho oferecido e o trabalho procurado, em outros termos, entre a população dos operários e o capital. Ora, como a primeira tende para o aumento, e um aumento que supera, em geral, embora de pouco, o aumento do segundo, o salário tende, onde outras causas não se interpõem, a baixar.

Tal condição de coisas tem, repito, o germe em si de uma chaga que é preciso curar. Os remédios propostos pelos economistas são ineficazes para isso.

E, não obstante, há progresso na condição de classe à qual pertenceis; progresso histórico, contínuo, que tem superado muitas outras dificuldades. Fostes escravos, fostes servos, sois hoje assalariados. Vós vos emancipastes da escravidão, da servidão; por que não vos emancipareis do jugo do salário para tornar-vos produtores livres, senhores da totalidade do valor da produção que sai de vós?

 

§ 2

 

O senso de dever social para com os homens do trabalho, ao qual me referi há pouco, foi, mercê sobretudo da pregação republicana, crescendo nos ânimos e assegurando o futuro popular das revoluções, quando surgiram, nos últimos trinta anos, particularmente na França, algumas escolas de homens geralmente bons e amigos do povo, mas levados por demasiado amor de sistema e por vaidade individual, que, sob o nome de socialismo, propuseram doutrinas exclusivas, exageradas, avessas muitas vezes à riqueza já conquistada por outras classes e economicamente impossíveis, e, assustando a multidão dos pequenos burgueses e suscitando desconfiança entre ordem e ordem de cidadãos, fizeram retroceder a questão e dividiram em dois o campo republicano. Na França, o primeiro efeito dessa desconfiança e desse terror foi o mais fácil triunfo do golpe de Estado.

Não posso examinar agora, convosco, um a um, esses diversos sistemas, que foram chamados saintsimonismo, fourierismo, comunismo, ou com outro nome, fundados quase todos sobre idéias boas em si e aceitas por quantos, pertencendo à Fé do Progresso, prejudicavam-nas ou destruíam-nas com os meios de aplicação que propunham, falsos ou tirânicos.

Se, examinando um dia atentamente esses sistemas, recordardes as idéias fundamentais que até agora vos indiquei e os caracteres inseparáveis da natureza humana, verificareis que todos eles violam a Lei do Progresso, o modo pelo qual este se realiza na humanidade, e uma ou outra das faculdades que constituem o Homem.

O Progresso se realiza, por lei que nenhuma potência pode romper, gradativamente, com o desenvolvimento, com a modificação perpétua dos elementos que manifestam a atividade da vida.

Entre esses elementos da vida humana, além da Religião, da Liberdade, da Associação e outros indicados no curso deste trabalho, está a Propriedade. O princípio, a origem da propriedade, está na natureza humana e representa a necessidade da vida material do indivíduo, que ele tem o dever de manter. Assim como, por meio da religião, da ciência, da liberdade, o indivíduo é chamado a transformar, a melhorar, a dominar o mundo moral e intelectual, assim também é chamado a transformar, a melhorar, a dominar, por meio do trabalho material, o mundo físico. E a propriedade é o sinal, a representação do cumprimento dessa missão, da quantidade de trabalho com a qual o indivíduo transformou, desenvolveu, aumentou as forças produtivas da natureza.

A propriedade é, pois, eterna no seu princípio, e vós a achais existente e protegida através de toda a existência da Humanidade. Mas os meios com os quais a propriedade se governa são mutáveis, destinados a sofrer, como todas as outras manifestações da vida humana, a lei do Progresso. Os que, achando a propriedade constituída de um modo, declaram esse modo inviolável e combatem os que pretendem transformá-lo, negam assim o Progresso: basta abrir dois volumes de história, correspondentes a duas épocas diversas, para achar uma mudança na constituição da propriedade. E aqueles que, em certa época, acham-na mal constituída, declaram que é preciso aboli-la, destruí-la na sociedade, negam um elemento da natureza humana, e, se pudessem um dia triunfar, retardariam o Progresso, mutilando a Vida: a propriedade reapareceria inevitavelmente pouco tempo depois, e provavelmente sob a forma que tinha ao tempo da sua abolição.

A propriedade é hoje mal constituída, porque a origem da repartição atual está geralmente na conquista, na violência com a qual, em tempos distantes de nós, certos povos e certas classes invasoras se apossaram das terras e dos frutos de um trabalho não realizado por eles. A propriedade é mal constituída, porque as bases da repartição dos frutos de um trabalho realizado pelo proprietário e pelo operário não estão fundadas sobre uma justa igualdade proporcionada ao trabalho mesmo. A propriedade é mal constituída, porque, conferindo a quem a tem direitos políticos e legislativos que faltam ao operário, tende a ser monopólio de poucos e inacessível à maioria. A propriedade é mal constituída, porque o sistema dos impostos é mal constituído e tende a manter um privilégio de riqueza no proprietário, gravando as classes pobres e tirando-lhe toda possibilidade de economia. Mas se em lugar de corrigir vícios e modificar lentamente a constituição da propriedade, quiserdes aboli-la, suprimireis uma fonte de riqueza, de emulação, de atividade, e vos assemelhareis ao selvagem que, para colher o fruto, cortava a árvore.

Não é necessário abolir a propriedade porque hoje é de poucos; é preciso abrir o caminho para que a maioria possa adquiri-la.

É preciso encaminhar a sociedade para bases equitativas de remuneração entre o proprietário ou capitalista e o operário.

É preciso modificar o sistema dos impostos, de maneira que não atinjam a soma necessária à vida e deixem ao homem do povo a faculdade de economias susceptíveis de produzir, aos poucos, a propriedade.

E para que isso suceda, é preciso suprimir os privilégios políticos concedidos à propriedade e fazer que todos contribuam para a obra legislativa.

Ora, todas essas coisas são possíveis e justas. Educando-vos, organizando-vos para reclamá-las com insistência, depois para querê-las, podereis obtê-las; ao passo que, procurando a abolição da propriedade, procurareis uma impossibilidade, fareis uma injustiça a quem a conquistou com o próprio trabalho, e diminuireis a produção em lugar de aumentá-la.

 

§ 3

 

A abolição da propriedade individual, todavia, é o remédio proposto por muitos dentre os sistemas de socialistas dos quais vos falo e particularmente pelo comunismo. Outros vão além; e, achando o conceito religioso, o conceito governativo, o conceito de pátria falseados pelos erros religiosos, pelos homens do privilégio e pelo egoísmo das doutrinas, reclamam a abolição de toda religião, de todo governo, de toda nacionalidade. É proceder como crianças ou como bárbaros. Por que em nome das moléstias geradas por um ar malsão, não tentariam a supressão de todo gás respirável?

A idéia de quem desejasse, em nome da liberdade, fundar a anarquia e destruir a sociedade, para só deixar o indivíduo com os seus direitos, não tem necessidade, convosco, de confutações da minha parte. Mas o desígnio dos que, limitando-se à questão econômica, reclamam a abolição da propriedade individual e a organização do comunismo, chega ao extremo oposto, nega o indivíduo, nega a liberdade; fecha o caminho ao progresso e petrifica, por assim dizer, a sociedade.

A fórmula geral do comunismo é a seguinte: a propriedade de tudo o que produz, terras, capitais, móveis, instrumentos de trabalho, deve ser concentrada no Estado; o Estado deve atribuir sua parte de trabalho a cada um; o Estado deve atribuir a cada um uma retribuição, segundo uns, com absoluta igualdade, segundo outros, conforme às suas necessidades.

Essa, se fosse possível, seria uma vida de castores, não de homens.

A liberdade, a dignidade, a consciência do indivíduo, desaparecem numa organização de máquinas produtivas. A vida física pode ficar satisfeita: a vida moral, a vida intelectual, são destruídas, e com elas a emulação, a livre escolha do trabalho, a livre associação, os estímulos para produzir, as alegrias da propriedade, todas as causas que induzem a progredir. A família humana é, nesse sistema, um rebanho ao qual basta ser conduzido para uma pastagem suficiente.

A igualdade é conquistada, dizem. Qual?

A igualdade na distribuição do trabalho? É impossível. Os trabalhos são de natureza diversa, não calculáveis sobre a duração ou sobre a soma de trabalho realizado numa hora, mas sobre a dificuldade, sobre o menor ou maior desagrado do trabalho, sobre o dispêndio de vitalidade que leva consigo, sobre a utilidade por ele conferida à sociedade. Como calcular a igualdade de uma hora de trabalho passada de certa maneira, ou no purificar a água insalubre de um charco, com uma hora passada numa tecelagem? A impossibilidade de semelhante cálculo é tal que sugeriu a certos fundadores de sistemas a idéia de fazer que cada um deva realizar por seu turno certa soma de trabalho em cada ramo de atividade útil: remédio absurdo, que tornaria impossível a boa qualidade dos produtos, sem chegar a suprimir a desigualdade entre o fraco e o robusto, entre o capaz e o lento de inteligência, entre o homem de temperamento literário e o homem de temperamento nervoso. O trabalho fácil e agradável para um é pesado e difícil para outro.

A igualdade na repartição dos produtos? É impossível. Ou a igualdade seria absoluta e constituiria imensa injustiça, não distinguindo entre as necessidades diversas, resultado do organismo, nem entre as forças e a capacidade recebidas, sem mérito algum, da natureza: ou a igualdade seria relativa e calculada sobre as necessidades diversas, e, não considerando a produção individual, violaria os direitos de propriedade, que quem trabalha deve ter pelos frutos do seu trabalho.

Depois, quem seria árbitro para decidir acerca das necessidades de cada indivíduo? O Estado?

Operários, meus irmãos, estareis dispostos a aceitar uma hierarquia de chefes senhores da propriedade comum, senhores do espírito por meio de uma educação exclusiva, senhores dos corpos por meio da determinação da obra, da capacidade, das necessidades? Não será essa a renovação da antiga escravidão? Não seriam esses chefes, levados pela teoria de interesse que representariam, e seduzidos pelo imenso poder concentrado nas suas mãos, fundadores da ditadura hereditária das antigas castas?

 

§ 4

 

O remédio para as vossas condições não pode encontrar-se em organizações gerais, arbitrárias, arquitetadas por esta ou aquela inteligência, em contradição com as bases universais adotadas na vida civil e implantadas subitamente por meio de decretos. Não estamos na terra para criar a Humanidade, mas para continuá-la: podemos e devemos modificar-lhe, ordenar-lhe melhor os elementos constitutivos; não podemos suprimi-los.

O remédio para as vossas condições é a união do capital e do trabalho nas mesmas mãos.

Quando a sociedade não conhecer distinção fora de produtores e consumidores, ou melhor, quando cada homem for produtor e consumidor, — quando os frutos do trabalho, em vez de repartir-se entre essa série de intermediários que, começando pelo capitalista e descendo até ao vendedor a retalho, aumenta muitas vezes de cinqüenta por cento o preço do produto, ficarem inteiros para o trabalho, — as causas permanentes de miséria desaparecerão para vós. O vosso futuro está na vossa emancipação das exigências de um capital que é árbitro, hoje, de uma produção à qual permanece estranho.

O vosso futuro é material e moral. Olhai ao redor. Onde quer que encontreis o capital e o trabalho reunidos nas mesmas mãos — onde quer que os frutos do trabalho estejam repartidos unicamente entre os que trabalham, em razão do seu aumento, em razão dos seus benefícios à obra coletiva, — achareis diminuição de miséria e, ao mesmo tempo, aumento de moralidade.

O trabalho associado, a repartição entre os trabalhadores dos frutos do trabalho, ou seja do resultado da venda dos produtos, em proporção do trabalho realizado e do valor desse trabalho: esse é o futuro social. Nisso reside o segredo da vossa emancipação. Fostes escravos um tempo; depois servos; depois assalariados: sereis dentro de não muito tempo, se o quiserdes, livres produtores e irmãos na associação.

Associação livre, voluntária, organizada sobre certas bases por vós mesmos, entre homens que se conhecem e se amam e se estimam uns aos outros, não forçada, não imposta pela autoridade governamental, não organizada sem consideração pelas afeições e vínculos individuais, entre homens considerados não como seres livres e espontâneos, mas como cifras e máquinas produtivas.

Associação administrada com fraternidade republicana por vossos delegados, e da qual podereis, querendo, retirar-vos: não sujeita ao despotismo do Estado e de uma jerarquia arbitrariamente constituída e ignara das vossas necessidades e dos vossos hábitos.

Associação de núcleos formados conforme às vossas tendências, não como desejariam os autores de sistemas que vos citei, de todos os homens que pertencem a um dado ramo de atividade industrial ou agrícola.

A concentração de todos os indivíduos que se dedicam, no Estado, ou mesmo numa única cidade, a uma arte em uma única sociedade produtora, restauraria o antigo e tirânico monopólio das Corporações, tornaria os produtores árbitros dos preços em prejuízo dos consumidores; daria forma legal à opressão das maiorias; excluiria o operário descontente de toda possibilidade de trabalho; e suprimiria toda necessidade de progresso, extinguindo toda rivalidade de trabalho, todo estímulo às invenções.

A Associação timidamente tentada e em circunstâncias desfavoráveis na França nos últimos vinte anos, depois na Inglaterra e na Bélgica, e coroada de sucesso onde quer que foi tentada com vontade firme e espírito de sacrifício, contém o segredo de toda uma transformação social, que deveria, em virtude das vossas tradições e da iniciativa de progresso social que sempre tivestes, realizar-se na Itália. E essa transformação, emancipando-vos da escravidão do salário, animaria ao mesmo tempo a produção, em benefício de todas as classes, e melhoraria o estado econômico do país. Hoje, o capitalista tende, geralmente, a ganhar quanto mais puder para retirar-se da arena do trabalho: sob a ordem da associação, não tendereis senão a assegurar a continuidade do trabalho, isto é, da população. Hoje, o chefe, diretor dos trabalhos, feito tal não por uma especial aptidão, mas por achar-se provido de capitais, é muitas vezes imprevidente, precipitado, incapaz: uma associação, dirigida por delegados, fiscalizada por todos os seus membros, não correria esses riscos. Hoje o trabalho é muitas vezes dirigido para a produção de objetos supérfluos, não necessários: mercê da desigualdade caprichosa e injusta das retribuições, os que trabalham abundam em um ramo de atividade e fazem falta em outro; o operário, limitado a um pagamento determinado, não tem motivo para consagrar à obra todo o zelo de que é capaz, toda a atividade com a qual poderia multiplicar ou melhorar os produtos. E a associação daria evidentemente remédio a essas e a outras causas de perturbação ou de inferioridade na produção.

Liberdade de retirar-se, sem prejudicar a associação; igualdade dos sócios na eleição de administradores temporários, ou melhor, sujeitos a substituição; admissão, posteriormente à fundação, sem exigência de capital de entrada, e constituição de um adiantamento, em benefício do fundo comum, sobre os lucros dos primeiros tempos; individualidade, perpetuidade do capital coletivo; retribuição para todos igual às necessidades da vida; repartição dos lucros conforme à quantidade e à qualidade do trabalho de cada um, eis as bases gerais que vós, se quiserdes fazer obra de sacrifício e de futuro para o elemento ao qual pertenceis, deveis dar às vossas associações. Cada uma dessas bases, particularmente a que diz respeito à perpetuidade do capital coletivo, vínculo e penhor de emancipação entre vós e a geração futura, mereceria um capítulo. Mas um trabalho especial sobre as associações operárias não entra na economia do presente escrito.

Mas o capital? O capital com o qual poderá iniciar-se a associação? De onde retirá-lo?

É uma questão séria, e não poderei tratá-la como desejaria. Indicar-vos-ei, porém, sumariamente, o vosso dever e o dos outros.

A primeira fonte desse capital está em vós, nas vossas economias, no vosso espírito de sacrifício. Conheço as condições da maioria de vós; mas, não falta a alguns a possibilidade, em virtude de trabalho não interrompido ou melhor retribuído, de reunir, economizando, entre dezoito ou vinte, a pequena soma que vos bastaria para iniciar o trabalho por vossa conta. E deveria sustentar-vos nessa economia a consciência de cumprir um solene dever e de merecer a emancipação invocada. Eu poderia citar-vos associações industriais, agora poderosas de meios, que se iniciaram, aqui na Inglaterra, com a inversão de um soldo por dia por certo número de operários. Poderia repetir-vos numerosas histórias de sacrifícios heroicamente suportados, na França e alhures, por núcleos de operários hoje possuidores de capitais consideráveis. Podeis contribuir com as vossas economias e dar ao pequeno fundo primitivo um auxílio em dinheiro ou um pouco de material ou algum instrumento de trabalho. Podeis, mercê de uma conduta que inspire estima, obter pequenos empréstimos de parentes ou companheiros, os quais se tornariam simplesmente acionistas na associação e não receberiam o resultado do seu empréstimo senão sobre os lucros da empresa. Para muitas das vossas indústrias nas quais o preço das matérias-primas é baixo, o capital requerido para iniciar o trabalho independente é pouca coisa. Vós o tereis se quiserdes. E será melhor para vós que a formação desse pequeno capital seja toda vossa, fruto do suor do vosso rosto ou do crédito que, procedendo bem, tiverdes adquirido. Assim como as Nações servem melhor a liberdade que conquistaram com o seu sangue, assim também, as vossas associações retirarão melhor e mais prudente resultado do capital recolhido na vigília e na economia do que do proveniente de outra fonte. É a lei das coisas. As associações operárias que, em Paris, em 1848, tiveram, em sua fundação, subvenções governamentais, prosperaram muito menos do que as que realizaram o capital inicial com o sacrifício.

Mas o fato de que eu, amando-vos de verdade, e não adulando servilmente as fraquezas que existam ou possam existir em vós, vos aconselhe o sacrifício, não diminui o dever em outrem. Os homens que as circunstâncias dotaram de riquezas deveriam entendê-lo: deveriam entender que a vossa emancipação é parte de um desígnio da Providência e que se cumprirá inevitavelmente, com eles ou contra eles. Muitos desses homens, e particularmente os homens de fé republicana, entendem isso desde agora; e, entre eles, se lhes derdes provas de vontade e de inteligência honesta, encontrareis auxílio para a empresa. Poderão — e o farão mal verifiquem que a tendência para a associação é, não o capricho de uma hora, mas a fé da maioria de vós — facilitar-vos as vias de crédito, ou com antecipações, ou fundando Bancos que dêem crédito ao trabalho futuro, à força coletiva dos operários, ou admitindo-vos em participações nos benefícios das suas empresas, estádio intermediário entre o presente e o futuro, do qual obtereis, provavelmente, o pequeno capital necessário à associação independente. Na Bélgica, mais do que em qualquer outra parte, já existem, sob o nome de Bancos de Antecipação ou Bancos do Povo, instituições semelhantes. Na Escócia, numerosos Bancos dão crédito a todo homem de notória probidade que empenhe a honra e apresente como fiador outro indivíduo de honestidade igualmente impoluta. E a admissão dos operários na participação nos lucros é norma adotada, com êxito extraordinário, por numerosos chefes de serviço.


 

CONCLUSÃO

 

§ 1

 

Mas, o Estado, o Governo — instituição legítima somente quando fundada sobre uma missão de educação e de progresso hoje ainda negligenciada — tem um dever solene para convosco, que poderá facilmente cumprir se for um dia Governo Nacional de verdade, Governo de Povo livre e Uno. Vasta série de auxílios poderá descer, então, do Governo para o Povo, que resolveria o problema social sem espoliações, sem violências, sem apropriação de riqueza adquirida anteriormente pelos cidadãos, sem suscitar esse antagonismo entre classe e classe que é injusto, imoral, fatal para a Nação, e que retarda atualmente de modo visível o progresso francês.

E poderosos auxílios seriam:

A influência moral exercida em favor das associações com a aprovação manifestada publicamente pelos agentes governamentais, com a freqüente discussão sobre o seu princípio fundamental na Assembléia, com a legislação dada a todas as Associações voluntárias constituídas sobre as bases indicadas mais acima;

Melhoramentos nas vias de comunicação e abolição do que possa dificultar o transporte dos produtos;

Instituição de armazéns ou lugares de depósito públicos, nos quais, verificado o valor aproximativo das mercadorias consignadas, se daria às Associações um documento ou bônus semelhante a um bilhete bancário, admitido na circulação e no desconto a fim de tornar a associação capaz de poder continuar nos seus trabalhos e de não ser dissolvida pela necessidade de uma venda imediata e a qualquer preço;

Concessão dos trabalhos de que precisam ao Estado, dada igualdade de pactos, às Associações;

Simplificação das formas judiciárias, hoje ruinosas e muitas vezes inacessíveis ao pobre;

Facilidades legislativas dadas à mobilização da propriedade fundiária;

Mudança radical do sistema dos tributos públicos; substituição de um único tributo sobre a renda atual, complexo, dispendioso sistema de tributos diretos e indiretos; e sanção dada ao princípio de que a vida é sagrada — de que, sem vida, não sendo possível trabalho, nem progresso, nem cumprimento de deveres, o tributo não pode começar senão onde a renda supere a cifra de dinheiro necessário à vida.

Mas há mais. O confisco ou apropriação dos domínios eclesiásticos — ato que não é, agora, ocasião de discutir, mas que é inevitável toda vez que a Nação assuma uma missão de educação e de progresso coletivo — porá nas mãos do Estado uma soma de riquezas mais vasta do que se pensa. Suponde, agora, que a essa riqueza se acrescente: o valor representado pelas terras dissolúveis e fertilíssimas, ainda incultas; o valor representado pelos lucros das estradas de ferro e outras empresas públicas cuja administração deverá concentrar-se no Estado; o valor representado pelas propriedades territoriais pertencentes aos municípios; o valor representado pelas sucessões colaterais, que, para além do quarto grau, deveriam recair no Estado; e outros que é inútil enumerar. Suponde que de todo esse imenso acúmulo de riqueza se constitua um Fundo Nacional consagrado ao progresso intelectual e econômico de todo o país. Por que uma parte considerável desse fundo não se transformaria, com as precauções requeridas para impedir-lhes o desperdício, num fundo de crédito para distribuir-se, com um interesse de um e meio ou de dois por cento, às associações voluntárias operárias, constituídas sobre as normas indicadas mais acima, e que proporcionariam segurança de moralidade e de capacidade? Esse capital deveria ser sagrado para o trabalho do futuro e não de uma só geração. Mas a vasta escala das operações asseguraria compensação às perdas, periodicamente inevitáveis.

A distribuição desse crédito deveria fazer-se não pelo Governo, nem por um Banco Nacional Central, mas sob a vigilância do Poder Nacional, por Bancos locais administrados por Conselhos Municipais coletivos.

Sem subtrair à riqueza atual das várias classes, sem atribuir a uma só o resultado dos tributos que, reclamados de todos os cidadãos, deve ser dado em benefício de todos, o conjunto dos atos aqui sugeridos, difundindo o crédito por toda parte, aumentando e melhorando a produção, levando o interesse do dinheiro a diminuir gradativamente, confiando o progresso e a continuidade do trabalho ao zelo e à utilidade de todos os produtores, substituiria uma cifra de riqueza concentrada em poucas mãos, e imperfeitamente dirigida, pela nação-rica, administradora da própria produção e do próprio consumo.

 

§ 2

 

E é esse, operário italiano, o vosso futuro. Podeis apressá-lo. Conquistai a Pátria. Conquistai-lhe um Governo popular que lhe represente a vida coletiva, a missão, o conceito. Organizai-vos, entre vós, numa vasta e universal Lei do Povo, de maneira que a vossa voz seja a voz de milhões, e não de alguns indivíduos. Tende a Verdade e a Justiça por vós, a Nação vos ouvirá.

Mas cuidado, e acreditai na palavra de um homem que estuda há trinta anos o andamento das coisas na Europa e que viu falirem em bom porto, por imoralidade dos homens, as mais santas e úteis empresas: só vencereis melhorando; só conquistareis o exercício do vosso direito merecendo-o, com o sacrifício, com a atividade, com o amor. Procurando em nome de um dever cumprido ou por cumprir, obtereis; procurando em nome do egoísmo, em nome de não sei que direito ao bem-estar que os homens do materialismo vos ensinam, só obtereis triunfos de uma hora, seguidos de desilusões tremendas. Os que vos falam em nome do bem-estar, da felicidade material, vos trairão. Também eles procuram o seu bem-estar; fraternizarão convosco como um elemento de força, enquanto tiverem obstáculos que superar para conquistá-lo; logo que, graças a vós, o tiverem, vos abandonarão para gozar tranqüilamente da sua conquista. É a história do último meio século, e o nome desse meio século é materialismo.

História de dor e de sangue. Eu vi homens que negavam Deus, religião, virtude de dever e de sacrifício, e falavam em nome do direito à felicidade, ao gozo, lutarem audazes, com as palavras de povo e liberdade nos lábios, e introduzir-se entre nós, homens da nova fé, que, imprudentes, os acolhemos em nossas fileiras. Quando se lhes abriu, com uma vitória ou com uma transação cobarde, o caminho do gozo, desertaram e tornaram-se nossos inimigos acerbos no dia seguinte. Alguns anos de perigos, de perseguições constantes, foram suficientes para cansá-los. Por que, sem consciência de uma Lei do dever, sem fé numa missão imposta ao homem por um Poder supremo acima de todos, teriam eles persistido no sacrifício até ao fim da vida? E vi, com mais profunda dor, os filhos do povo educados por esses homens, por esses filósofos, no materialismo, trair sua missão, trair o futuro, trair a Pátria e a si mesmo, atrás da estulta e imoral esperança de que achariam talvez o bem-estar material nos caprichos e nos interesses da tirania. Vi os operários da França permanecerem espectadores indiferentes do 2 de Dezembro, porque todas as questões se tinham reduzido, para eles, numa questão de prosperidade material, e porque se iludiam em acreditar que as promessas espalhadas com arte entre eles, por quem tinha extinguido a liberdade da pátria, talvez tivessem podido tornar-se realidade. Hoje, lamentam a perdida liberdade, sem ter conquistado o bem-estar. Não: sem Deus, sem consciência de lei, sem moralidade, sem poder de sacrifício, perdidos atrás de homens que não têm nem fé, nem culto da verdade nem vida de apóstolos nem coisa alguma fora da vaidade dos seus sistemas, — eu o afirmo com profunda convicção, — não triunfareis. Tereis provocado não a verdadeira, a grande Revolução, que vós e eu invocamos. Essa Revolução, se não é uma ilusão de egoístas estimulados pela vingança, é uma obra religiosa.

Melhorar a vós mesmos e a outrem: é esse o primeiro intento e a suprema esperança de toda a reforma, de toda transformação social. Não se muda o destino do homem rebocando, embelezando a casa onde ele habita; onde não respira uma alma de homem, mas um corpo de escravo, todas as reformas são inúteis; a casa embelezada, mobilada com luxo, é como um sepulcro caiado, e não outra coisa. Jamais induzireis a sociedade à qual pertenceis a substituir pelo sistema de associação o do salário, sem provar-lhe que a associação será, entre vós, instrumento de produção melhorada e de prosperidade coleetiva. E só o provareis mostrando-vos capazes de fundar e manter a associação com honestidade, com amor recíproco, com faculdade de sacrifício, com dedicação ao trabalho. Para progredir, deveis mostrar-vos capazes de progredir.

Três coisas são sagradas: a Tradição, o Progresso, a Associação: “Eu creio — escrevi estas coisas anos atrás — na imensa voz de Deus que os séculos me enviam através da tradição universal da Humanidade; e ela me diz que a Família, a Nação, a Humanidade são as três esferas dentro das quais o indivíduo humano deve trabalhar pelo fim comum, pelo aperfeiçoamento moral de si mesmo e de outrem, ou melhor, de si mesmo através dos outros e pelos outros; ela me diz que a propriedade se destina a manifestar a atividade material do indivíduo, a parte que ele tem na transformação do mundo físico, como o direito de voto deve manifestar a parte que ele tem na administração do mundo político; ela me diz que justamente do uso mais ou menos bom desses direitos, nessas esferas de atividade, depende, perante Deus e os homens, o mérito ou demérito dos indivíduos; ela me diz que todas essas coisas, elementos da natureza humana, se transformaram, se modificaram continuamente, aproximando-se do ideal do qual temos na alma o pressentimento, mas jamais poderão ser destruídas; e que os sonhos de comunismo, de abolição, de confusão do indivíduo no conjunto social, nunca passaram de acidentes passageiros na vida do gênero humano, visíveis em toda grande crise intelectual e moral, mas incapazes de realidade, a não ser sobre uma escala mínima, como os conventos cristãos. Creio no eterno progresso da vida, na criatura de Deus, no progresso do Pensamento e da Ação, não somente no homem do passado, mas no homem do futuro; creio que importa não tanto determinar a forma do progresso futuro quanto abrir, com uma educação verdadeiramente religiosa, as vias de todo progresso aos homens e torná-los capazes de realizá-lo; e creio que não se faz o homem melhor, mais amorável, mais nobre, mais divino — o que é o nosso fim sobre a terra — cumulando-o de gozos físicos, propondo-lhe como objetivo da vida essa ironia que tem o nome de Felicidade. Creio na Associação como no único meio que possuímos para realizar o Progresso, não somente porque ela multiplica a ação das forças produtoras, mas porque aproxima todas as diversas manifestações da alma humana e faz que a vida do indivíduo tenha comunhão com a vida coletiva; e sei que a associação só pode ser fecunda existindo entre indivíduos livres, entre nações livres, capazes de consciência da sua missão. Creio que o homem deve comer e viver e não ter todas as horas da existência absorvidas por um trabalho material, para ter campo onde desenvolva as faculdades superiores que nele existem; mas presto ouvidos com terror às vozes que dizem aos homens: “Nutrir-vos é o vosso único objetivo; gozar é o vosso direito”, porque sei que essa palavra não pode criar senão egoístas, e foi na França e alhures, e começa a ser infelizmente na Itália, a condenação de toda idéia nobre, de todo martírio, de todo penhor de futura grandeza,

“O que atualmente tira vida à Humanidade é a falta de uma fé comum, de um pensamento, adotado por todos, que reúna Terra e Céu, Universo e Deus. Privado dessa fé, o homem prostrou-se diante da matéria morta e consagrou-se à adoração do ídolo Interesse. E os primeiros sacerdotes desse culto fatal foram os reis, os príncipes e os maus governos da atualidade. Eles inventaram a horrível fórmula: Cada um por si. Sabiam que com ela criariam o egoísmo; e sabiam que entre o egoísta e o escravo não há mais do que um passo.”

Operários italianos, meus irmãos, evitai esse passo. Em evitá-lo está o vosso futuro.

Cabe-vos uma solene missão: provar que somos todos filhos de Deus e irmãos n’Ele. Só a cumprireis melhorando-vos e cumprindo o Dever.

Indiquei-vos, como melhor pude, qual o vosso Dever. E o principal, o mais essencial de todos, é aquele que tendes para com a Pátria. Constituí-la é uma dívida vossa; e é também a vossa necessidade. Os encorajamentos, os meios dos quais vos falei, só podem partir da Pátria una e livre. O melhoramento das vossas condições sociais só pode descer da vossa participação na vida política da Nação. Sem voto, jamais tereis representantes verdadeiros das vossas aspirações e das vossas necessidades. Sem um Governo popular, que em Roma escreva e desenvolva o Pacto Italiano, fundado sobre os consensos orientados para o progresso de todos os cidadãos do Estado, não há para vós esperança de melhoria. No dia em que, seguindo o exemplo dos socialistas franceses, separardes a questão social da política e disserdes: Podemos emancipar-nos, qualquer que seja a forma de Instituições que reja a Pátria — tereis assinado, vós mesmos, a perpetuidade da vossa servidão.

Indicar-vos-ei, ao despedir-me de vós, um outro Dever, não menos solene do que o que nos leva a fundar a Pátria livre e una.

Vossa emancipação só pode fundar-se sobre o triunfo de um princípio: a unidade da Família Humana. Hoje, metade da família humana, a metade na qual buscamos inspirações e confortos, a metade que cuida da primeira educação dos nossos filhos, é por singular contradição declarada civilmente, politicamente, socialmente desigual, excluída dessa Unidade. A vós, que procurais, em nome de uma verdade religiosa, a vossa emancipação, cabe protestar de todas as maneiras, em todas as ocasiões, contra essa negação da Unidade.

A emancipação da mulher deveria ser continuamente emparelhada por vós com a emancipação do operário e dar ao vosso trabalho a consagração de uma verdade universal.

 

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