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MATOPE

Abdul Cadre

www.ebooksbrasil.org


MATOPE
Abdul Cadre

1ª Edição Convencional
Lisboa – Portugal
1982

Versão para eBook
eBooksBrasil.com
2001 Julho

Fonte Digital
Documento do Autor

Copyright:
© 2001,2006 Abdul Cadre
abdul.cadre@netc.pt
Apartado 59
7084-909 Vendas Novas
PORTUGAL

Índice da Obra


 

 

Distinguido
pela
ACCADEMIA INTERNAZIONALE DI «PONTZEN»
DI LETTERE, SCIENZE ED ARTI
com o
«Lauro d’Oro»
no World Literature & Art Selection – 1985
(Nápoles, Itália)


Abdul Cadre

MATOPE

POESIA


OBRAS DO AUTOR

Individuais:

LIBERALISMO, INTERVENCIONISMO E O CASO PORTUGUÊS
(Ensaio – edições esgotadas: 1ª em 1979; 2ª em 1980 e 3ª em 1982)

MATOPE – (Poesia – 1982)
«Lauro d’Oro» World Literature & Art Selection – 1985 (Nápoles, Itália)

CONTOS, CRÓNICAS & ETC. (Ficção – 1985; 100 ex., fora de mercado)
Obra distinguida pelo júri do Prémio Literário Joaquim Almeida/1985, Montijo.

REVERSO – Poesia – (1985: 100 ex. fora de mercado)
Obra classificada em 3º lugar no Concurso Literário da C. M. de Arronches, em 1985

POESIA E SOCIEDADE – (Palestra – 1986, Edição NERP)

NA MORTE DE BENJAMIM MOLOISE E OUTRAS ELEGIAS – (Poesia, 1987) Edição de I.W.A. – International Writers Association – U.S.A.

SONG – (Poesia, 1988) Opúsculo bilingue, IWA, USA

MISSÃO TEMPLÁRIA – (Palestra, 1990),
Edição do NERP-Núcleo de Escritores e Recitadores Portugueses

TROVAR O PORTO DO GRAAL – (Idem, idem)

O PANFLETO DO NOJO – (Poesia, 1991)
Collection Poésie Palmipède, Paris, França, Edições Albatroz

SETE CARTAS CONTRA O SATANISMO – (Epístolas, 1994, Fora de Mercado)

O PODER DOS EQUÍVOCOS – (Palestra, 1996), Edição TAR

A RESPIRAÇÃO DE BRAMA – (Palestra, 1996) – Edição TAR

SETE RECADOS VITAIS – (Epístolas, 1996) – Edição TAR

SETE DESOCULTAMENTOS – (Epístolas, 1996) – Edição TAR

SETE ROSAS DE PAPEL – (Epístolas, 1996) – Edição TAR

SETE COMPREENSÕES – (Epístolas, 1996) – Edição TAR

SETE DESAFIOS E UMA CONFIDÊNCIA – (Epístolas, 1996) – Edição TAR

ACIMA DO DÓ CENTRAL (Poesia – 2000) – Edição TAR

Colectâneas:

1972 – COLECTÂNEA POEMAS VENCEDORES PRÉMIO LITERÁRIO CIDADE DE PORTO AMÉLIA, MOÇAMBIQUE

1983 – COLECTÂNEA DE TRABALHOS PREMIADOS NAS I & II QUINZENAS CULTURAIS BANCÁRIAS.

1984 – «A PAZ E A VIDA» (Prosa e poesia), JUNTA DE FREGUESIA DA AMORA

1985 – «O TRABALHO – ANTOLOGIA POÉTICA», edição do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas

1985 – FLORILÉGIO I, antologia poética editada pelo NERP

1986 – INTERNATIONAL POETRY YARBOOK, antologia poética, Colorado, USA

1986 – BRAZILIAN CONTEMPORARY LITERATURE, antologia de prosa e verso, Universidade do Colorado, USA

1986 – FLORILÉGIO II, antologia poética editada pelo NERP

1986 – CADERNOS DE POESIA DIZ ILUSÃO, nº 2, edição NERP

1987 – FLORILÉGIO III, antologia poética editada pelo NERP

1988 – FLORILÉGIO IV, idem

1989 – POETAS DO BARREIRO, antologia editada pela Câmara Municipal do Barreiro

1989 – INTERNATIONAL POETRY YARBOOK, antologia poética, Moorhead – MN. USA

1990 – INTERNATIONAL POETRY YARBOOK, idem

1991 – FLORILÉGIO V, antologia poética editada pelo NERP

1992 – LA POÉSIE DES PALMIPÈDES, nº 3, antologia poética, Edições Albatroz, Paris, França.

1992 – INTERNATIONAL POETRY, antologia poética da International Writers and Artists Association, Bluffton – OH, USA.

1996 – FLORILÉGIO VI, antologia poética editada pelo NERP

1996 – JOGOS FLORAIS DE ALMEIRIM, (antologia de trab. vencedores), editada pela Associação de Defesa do Património Histórico e Cultural do Concelho de Almeirim

1998 – 100 ANOS-Federico García Lorca – Homenagem dos Poetas Portugueses (Universitária Editora)


 

PÓRTICO

Aqui não era Maio nem Abril
na nossa pátria governamental,
no soturno silêncio do redil,
quando o medo reinava em Portugal.

 


AUTO-RETRATO

Sou aquele que nunca permanece,
de todos os lugares estou ausente
sou feito de mudança permanente
e a minha esperança nunca se esmorece.

Na luta pelo futuro que apetece
eu assalto os castelos do presente,
nas minhas veias corre lava ardente,
de raiva e sonho a alma se me aquece.

O medo no meu peito calo, venço
quando pago da vida o alto preço,
ao futuro me entrego, nele penso,

exijo, grito, luto, nunca peço!
É ao sonho e à raiva que eu pertenço,
mas nunca fico, nunca permaneço.


 

LIVRO I

 

GUINÉ

 


ELEGIA

Na nossa melhor idade
quantos projectos traçámos,
com nossa seiva verdade
quantos sonhos nós sonhámos!...

Mas dum grupo de carneiros
fizemos parte integrante,
levados mansos, ordeiros
para terra alheia, distante.

Embarcados como gado,
num dia quente de Agosto,
foi diferente o nosso fado
de soldados contragosto.

Eu vesti e tu vestiste
triste farda de guerreiro,
eu fiquei e tu partiste
num certo mês de Fevereiro.

Chegou para ti o descanso
eterno, de falsa paz,
no teu rosto imberbe e manso
quebrou-se o brilho vivaz.

Partiste assim sem sentido
para a terra do nunca mais.
do sonho foste banido
por sete balas fatais.


A , PRETA

A , preta
que falas à tropa
nesse tu’voz medrosa,
pedinte e morna:
     «Berranco comp’rrá mancarra.
     Dôs xolins
».

A , preta
filha da Guiné,
de olhar mortiço,
mas com o ritmo do dondon no corpo.

A , preta
inda bajuda,
corpo roliço,
mama firmada,
amanhã preta velha de seios murchos,
folhas secas
menos da idade
que do peso da vida e dos filhos.

A , preta
que a pilar arroz
embalas o teu filho no dorso
e há séculos na servidão.

A , preta.
mãe de tanta Maria Quinta
e de quanto Joãozinho Cá!

A , preta
com filhas a vender mancarra
e filhos a beber cana.

A , preta
a colher arroz na bolanha amiga,
na ambição do suor,
na esperança do pilão.

          A , preta
          que não lês estes versos
          e a quem peço perdão.


ALCÂNTARA-MAR

Lenços brancos a acenar,
angústias e arrepios,
no cais esperam navios
sedentos de céu e mar.

Vão enchendo os seus porões
as caravelas de Agosto
de soldados contragosto
que «marcham contra os canhões»..

E tantas boinas com fitas,
ai! quantas botas com cardas
e, prisioneiras das fardas,
as nossas almas aflitas!

Num oceano de medo
há uma raiva amordaçada,
nesta nação adiada,
com seus heróis de arremedo.

Quantos sonhos adiados
e quanto olhar inocente!
Não somos gado nem gente
na leva dos condenados.

Ó seiva de Portugal,
pelo bolor corrompida,
fazendo a guerra perdida
do Império Colonial!


CANTANDO E RINDO

Lá vamos cantando e rindo,
levados como carneiros,
por açougues repartindo
nossa sorte de guerreiros.

Pasmem todas as nações
mailos cinco continentes,
que marcham contra os canhões
os que à força são valentes.

E damos vivas à morte,
que amamos mais do que a vida
e achamos que é já ter sorte
não nos faltar a bebida..

Lá vamos, cantando e rindo,
levados, levados sim,
os corações desmentindo
orelhas que abanam sim.


QUANDO PARTI

                              à M.C.

Um enorme desejo de ficar,
simplesmente ficar e não partir.
E há rostos que se escondem para chorar,
para depois nos voltarem a sorrir.

Lá estão os lenços brancos a acenar
e no peito esta mágoa de sentir
que entre nós dois se põe imenso o mar
dá-me estas loucas ganas de fugir!

E não vieste ao cais dizer-me adeus...
Como lamento os beijos que não demos!
Ai, como anseio tanto os que daremos

quando vieres enfim aos braços meus...
Lábios nossos e não mais meus e teus!
Nossas penas com beijos lavaremos.


BISSAU

Duma herança maldita eu sofro e numa
caravela de mágoa e de castigo
(que eu nem as ondas vi do mar de Vigo),
meteram-me de nauta contra a bruma.

Conquanto a minha fé fora nenhuma,
armei-me contra o medo e contra o perigo;
sete dias cruzei o mar antigo
entre brumas, trovões e fúria, e espuma...

E as ondas do meu fado me levaram
ao forçado baptismo tropical
e os meus olhos de verde se espantaram.

Nada de Gama, nada de Cabral
as minhas botas cardadas acordaram
neste cais de Bissau, a capital.


PIJIGUITI

Ó cais do Pijiguiti,
onde os ventres das barcaças
recordam as ameaças
que vêm do Tombali;

onde o coiro negro sua,
o ódio cala na espera,
a esperança se desespera
e a alma se desvirtua;

onde calamos ordeiros
nossos sonhos adiados,
contando dias passados,
famintos dos derradeiros.

E o clarim anuncia
ao mangal e aos coqueiros
que nesta terra os guerreiros
marcham de noite e de dia.

Vagabundos das palhotas,
vamos esquecer no Pilão,
no álcool, na podridão
as cardas das nossas botas.

E neste cais que se agita
no trabalho, no suor,
os dentes rangem rancor
fermentado na desdita.


AQUI

Do Sofala os porões de carga bruta
— era Agosto — em Bissau foram mil pernas;
tinham o cheiro forte das casernas
e a inocência jovem dos recrutas.

Os jornais noticiam a conduta
heróica, como quer quem nos governa,
que o nosso sangue faz a pátria eterna
às ordens reverendas da batuta.

E aqui habita o meu sonho perplexo,
neste desterro cálido e plangente,
neste destino alheio e desconexo,

onde a noite anuncia a toda a gente
que sem penicilina não há sexo
e dormir só o álcool nos consente.


VIRGEM NEGRA

Virgem negra dos olhos de carvão,
que gingando e gingando me arrebatas,
tens negra a pele e branco o coração,
possuis todo o mistério das cubatas.

E quando o tantã soa no sertão,
naquela estranha música que as matas
envolve num sabor de perdição,
mais tu gingas e gingas, me arrebatas.

Esses teus olhos brilham como lume,
são brasas vivas, virgem do negrume,
e todo o ser eu sinto que me entregas

nesse ritmo selvagem que te quebra
e desengonça as ancas. Negas?
negas que és minha quando te requebras?.


GUINÉ

I

O tornado que passa, brinca e dança
leva o que pode em fúria que não poupa;
um dilúvio se abate sem tardança
e o indígena aperta e escorre a escassa roupa.

Depois do temporal vem a bonança
e é o calor agora que não poupa;
o tempo pára, o ar sufoca e cansa,
o suor corre, goteja e empapa a roupa.

Vai breve adormecer o sol radioso
e entre o silêncio e um hino cai na terra
de selvas e capins o manto umbroso

que o segredo dos mágicos encerra,
baila na noite um canto misterioso
e a porta do feitiço se descerra.


II

Ao longe são estradas esburacadas,
poeirentas, vermelhas, calcinadas,
os carros do exército passando
e os negros caminhando, caminhando.

São noivados da cana açucarada,
são bananeiras verdes, carregadas
de bons cachos que o sol vai aloirando
e este vertical, cão, nos abrasando.

São selvas e são matas perturbantes,
são pedaços de sonho e de mim,
são rios estreitinhos, são tantãs distantes,

são tabancas, bolanhas e capim,
é mistério, são noites fascinantes,
é morte, guerra, dor, é medo enfim.


GRITO ÀS PALMEIRAS

Inda agora cheguei e já me pedem
que grite e já me pedem que me vá,
que os jagudis estão sobre Bafatá
e as horas só o medo nos concedem.

Grito às palmeiras, grito que se arredem
e os ventos eu comando por Alá.
Na estrada de Mansoa a Mansabá
da morte os braços verdes já me fedem.

Almas de biafada negras vão
minha noite voando, que perdida
nesta epopeia bufa e fementida

vai exaurida a minha geração,
sem que se veja válida razão
de vir aqui tão longe dar a vida.


JAGUDIS EM QUINHAMEL

E sete te violaram
numa fome louca, louca;
setenta dedos rasgaram
tua carne e tua roupa.

E foram donos de tudo
que te puderam roubar
nesse teu corpo desnudo,
negro, bordado a luar.

E os jagudis dessa hora
tão carregada de cio
deitaram teu corpo fora,
depois de usado e já frio.


POST CARD

Querida madrinha de guerra,
gostei muito de saber
as novidades da terra
e nesta lhe vou dizer

o segredo que se encerra
em sermos, mesmo sem querer,
os soldados desta guerra
que nos mandaram fazer.

Do chicote, basta o estalo,
que o resto faz a rotina
e dos antolhos o calo

é a marca da vacina.
Fico bem, graças a Deus.
Dê cumprimentos aos seus.


TERRA ESPEZINHADA

Aqui, os pretos são uns terroristas
e nós gente cristã e civilizada
que os salvamos dos erros comunistas
a pontapé, a tiro e à lambada.

Mulheres, por cá, são fáceis de conquista,
porque ensinámos esta pretalhada
de nada lhe valer ser egoísta:
quando não vai a bem vai à porrada.

Berrou um dia o nosso alferes Barros:
«podeis encher de gajas bem os carros,
matam-se os turras se preciso for,

se não se opõem dá-se-lhes cigarros;
com estas putas todas ao dispor,
isto é que vai ser fazer amor!
»


CANÇÃO OU GRITO D’ALMA

Quero dormir,
ou quero gritar?

Oh fantasmas arrepiantes
de ter a vida cansada,
dai-me a paz dum grito agudo e longo,
deixai-me dormir,
ou deixai-me gritar!

Ó asas.
asas tontas de luz a acenar-me
em gestos longos como flocos de neve,
poisando nas minhas torturadas mãos!

Ó Inverno,
Inverno de gelo do meu coração
sem tic-tac nem corda,
num desalinho de raiva mansa!

Ó santa inconsciência
da infância perdida na noite do tempo,
ó cavalgadas infernais de bruxas e de fadas
com vassoiras e varinhas de condão!

Ó ternos dias dos meus amores primeiros!
Ó arco da velha, das sete cores,
quantos os meus pecados mortais!

Ó ignorância terna e doce
dos que me amam sem razão!
Ó orações esquecidas,
que não mais lembrarei!
Ó deuses dos céus, terríveis, cruéis, venais
com vossas cortes de anjos e de demónios!
Ó espírito e carne
na absurda antítese do Bem e do Mal,
tão absurda quanto aqui o sentido da vida,
aos vinte de Março do ano da maldição,
na Ilha de Caiar,
onde salivo medo e cuspo desespero!
Ó sol-poente, sol poente,
pôr-do-sol ou morte d’asa
e a minha alma assim a ajoelhar,
enquanto a ignomínia tece os dias!

Ó saudades imensas dos que amo
e a distância me rouba!
Ó profissionais do amor
ao serviço da lei da carne
na frustração do vómito!
Ó castas donzelas dos meus sonhos,
amores suaves que eu já tive,
meus vãos sonhos!

Ó delírios das minhas noites vagabundas,
ó belos corpos de mulheres,
de seios como pombas brancas,
delírio dos meus sentidos,
rasgando a solidão!

Ó paixões antigas, ardentes, insanas,
noites perdidas, orgias e taças de champanhe!
Ó lábios vermelhos, dentes de marfim,
bocas feitas para beijar,
longos beijos sugando a alma,
abraços de noite inteira!

Ó ruas mal cheirosas do meu bairro velhinho,
das brigas e bebedeiras, dos soutiens na janela,
dos paninhos a secar, dos lupanares,
dos sorrisos comerciais,
postiços das prostitutas, corpos alugados,
almas amarfanhadas,
almas iguais à minha!...

Ó sábados à noitinha nas ruas do Chiado,
névoa, bruma de tudo isto
tão presente e tão distante!

Ó raiva, ó desespero, ó tédio, ó angústia
dos dias que passam com o seu cortejo
de horrores!

Ó Guiné,
terra traiçoeira, terrível, fascinante!
Ó carne que aqui vou deixando
pelos caminhos poeirentos!
Ó tabancas e ó ruas de Bissau
onde abafa a minha angústia!
Ó mulatas ardentes,
dez gramas de esquecimento!

Ó fantasmas,
fantasmas da minha vida,
deixai-me dormir um longo sono
e gritarei amanhã!


CASSUMÁ SANHÁ

Cassumá Sanhá,
filho de Jalé Abdulá
não sabe quantas chuvas tem,
mas vai comprar bajuda.

Seu corpo é forte
e os braços são musculosos.
               Uma vida no Pijiguiti!...

«Sanhá tene dôs munhé»

As duas mulheres de Sanhá
colhem mancarra,
lavram arroz.

«Sanhá miste comp’rrá bajuda».,
Sanhá tene sês filhos já
que não morreu inda
»

Cassumá Sanhá,
filho de Jalé Abdulá
tene muitas chuvas,
mas vai comprar bajuda.
Junta patacão
e não tem cabeça grande
faz muito tempo.

Precisa de outra mulher
para colher mancarra,
para pilar arroz.

               Ó Cassumá Sanhá,
               filho de Jalé Abdulá...
               e conversa djira sábi!...


APENAS

A rádio não anuncia
esta nossa sorte perra,
o medo do dia a dia
e a maldição desta guerra.

No país tudo vai bem,
descansem noivas, parentes,
descansem os pais também,
cantem, riam de contentes!

Que apenas! nas bolanhas e nos trilhos
do medo, lama e sangue, que percorrem
exaustos, vossos noivos, vossos filhos,
vossos jovens parentes aqui morrem!...


Nossa tenaz companheira
das picadas, do capim,
a morte, espera rafeira.
Chora por nós, ó clarim!


TERRA RUIM

               A morte é quem marca a hora
               nas bolanhas, no capim.
               Quem diz que um homem não chora,
               ó Guiné, terra ruim?

 

Vem a morte de repente,
na ponta dum zangão de aço,
choram os olhos da gente,
ai! o teu olhar tão baço!

Nas bocas, dentes de raiva,
nos peitos, uma agonia...
Ai, que morreu o Saraiva,
soldado de artilharia!

Nunca mais da tua voz
se ouvirá o doce canto.
Pobre de ti! Ai de nós,
os condenados do pranto!


EPITÁFIO

Vinte e três anos, inda não tinha,
e a morte ceifou-o na Guiné.
Silenciosa costureirinha
chega a malária, pé ante pé.

               Foi a má sina
               que lhe calhou,
               foi a vacina
               que lhe faltou.

               Morreu imberbe,
               desceu à terra
               e já não serve
               cá nesta guerra.


MAIS UMA MEDALHA

Eis da morte os negros braços
e da Pátria Sacrossanta
um soldado em mil pedaços
embrulhado numa manta.

Foi a merda duma mina
e um gajo com pouca sorte,
foi o medo já rotina
e os braços prontos da morte.

Neste destino de guerra
em que o Império se desfaz,
foi-se a saudade da terra
no peito deste rapaz.

E enquanto cai a metralha,
venham discursos à toa,
venha mais uma medalha,
no dez de Junho, em Lisboa.


UM HOMEM CHORA

Na maldição consentida
deste tempo de mentiras,
a tua esperança é medida
de cada vez que respiras.

Mas quantos tombaram já
nas margens do Tombali?
Quantos caíram em Fá?
Quantos mortos em Farim?

Uma pedra está metida
onde foi teu coração
e amortalharam-te em vida
com uma arma na mão.

Meu soldado pago ao mês,
confiado na G3
e nos seus zangões de aço,
nesta guerra da Guiné,
na epopeia do bagaço,
da caserna e do chulé,
eu sou um homem que chora,
chora por nós nesta hora!...



 

LIVRO II

 

MOÇAMBIQUE

 


SONETO DO EMIGRANTE

Por ti, ó minha terra, vou chorar.
Abandonada ao vento e ao sol, bonita
madre, madrasta, pobre viúva aflita,
vertem meus olhos todo o sal do mar.

Vão-se os teus filhos. Quem irá voltar?
É de nós todos a cruel desdita.
Ó minha terra, na algidez contrita,
vejo os teus verdes campos a murchar.

Nem só de pão um homem vai viver,
porém, sem pão não viverá, garanto,
e a tradição nos não irá reter

nem ser para nós a protecção, o manto
que almas e bocas poderá manter.
É tempo já de esconjurar o pranto.


TRANSPORTADOR
MOÇAMBICANO

Contar é simples a história
dos que vencem a picada,
em luta de obscura glória,
do sol à noite calada.

Não há pane que detenha
o cruzador pertinaz
de quanto é mato e montanha
na sua missão de paz.

Tem sempre por companhia,
nesta ingrata profissão,
um pouco de nostalgia
e a malvada solidão.

Para além do que permita
sua simples força humana,
corre sempre, não hesita,
atravessando a savana.

Transporta no camião
os géneros alimentícios,
materiais de construção,
tabaco e outros vícios.

O suor lhe empapa o roupa,
faz mil rios nas suas rugas;
engole à pressa uma sopa,
que a sua vida é de fugas.

Pragueja. Por vezes canta.
Numa cantina de mato,
quando lhe seca a garganta,
dá-lhe o necessário trato.

Chega-lhe então uns copitos,
ali conta as novidades
e lá volta de olhos fitos
a caminho das cidades.


EMIGRANTE

Sabe-me a vida a pouco
e a boca a vento,

No cais há mil gaivotas loucas,
no ar um cheiro de partida.

Se me puxam, vou,
se me empurram, grito,
se me pedem, canto.

Eu sou o emigrante
do pão e do sonho
e tenho este sorriso triste,
de alma rota.

Quem não conhece o meu canto?
Quem não ouviu o meu grito?


NAMPULA

Quem se perturbaria se saltassem
chispas electro-mágicas dos dedos,
dos olhos, dos cabelos e abalassem
as casas confortáveis e os penedos?

E se as acácias rubras desvendassem
de repente os seus místicos segredos
de fogo e de verdura e os lançassem
como setas certeiras contra os medos?

Quem se perturbaria no momento
da verdade e do grito? Quem diria:
isto é um grito, não é um lamento?

Quem, com a verdade em punho, brandiria
o grito como quem comanda o vento,
ousando anunciar o novo dia?


A PROSTITUTA NEGRA

A prostitutas negra
(vulgo preta ordinária)
sorria.
Comercialmente sorria.

Nos olhos mansos,
promessas tristes
de sexo morno;
na alma vazia
o vazio-vazio.

Nas ancas, gingando,
requebros de mar,
nas carnes flácidas
o viço se esvai
e os seios já são
como massa de pão.

Pão!

É isso, é isso!

E do desencanto da vida
o negro desesperança
de dias caindo iguais...


NACALA

Ali, que Deus gigante e luminoso
salpicou de estrelas a baía?
Ali, onde buscava o meu repouso,
no mar bebendo o sonho e a fantasia!

Dos cantos ao luar, do sol radioso,
do bruhaha do cais, da maresia,
guardo no peito amargo e desditoso
esta minha sofrida nostalgia.

Vindas de lendas antigas e singelas,
nas nuvens, nos vapores, transmudadas
eu via rutilantes caravelas.

Que eu sabia de moiras encantadas
e sabia o segredo das estrelas
nas águas da baía semeadas.


ANTÓNIO ENES

A cumprir o meu contrato
mercenário, marinheiro
no Alto do Parapato,
meus olhos são de gajeiro.

que não vê terras de Espanha
nem praias de Portugal,
por mais alvíssaras que tenha
no Império Colonial.

Gajeiro cego me fico,
não por dentro, mas por fora
e apenas fico mais rico
do coração que me chora.

Queixo-me em versos à Lua,
meus olhos choram um rio,
porque o fogo se habitua
nos porões do meu navio.

Neste mar de hipocrisias
que o nosso império contém
vivo a corrente dos dias
como quem dias não tem.


ILHA DE MOÇAMBIQUE

Neste universo conformado e triste,
chegam zavalas ecos de timbila,
há uma catana antiga que resiste
e a raiva lembra a sorte da machila.

À maldição um xicuembo assiste,
suor e sal no coiro se destila
e o riquixó do sono aqui persiste,
marrabenta castrada que desfila.

Neste coral plantado à beira-mar
com algarvias ruas enxertadas,
aqui mesmo neste índico lugar

de capulanas tristes, humilhadas,
de danças e batuques ao luar,
na morna paz de acácias inventadas,

há uma catana antiga que resiste.


RIQUIXÓ

Na faina do riquixó, Abdul vai
ganhando o magro sustento. Sua vida,
feita de suor e pó, dolorida,
ao sol, calor, chuva e vento se esvai.

Cala a raiva amordaçada nos varais,
na condição asinina e consentida,
presa mansa, agrilhoada e ferida.
De pé! Grita à tua sina não mais!

Os ventos já se alevantam e gritam
que a hora é de mudança; vomitam
os que de medo não cantam. De pé!

Acordai ó gente mansa. Com fé
e luta todos suplantam a dor.
Há que limpar a esperança do bolor.


LAURENTINAMENTE

Eis-me aqui fanada burguesia
cuspindo na vossa hipocrisia
nos vossos gestos venais.
Em vós que gastais cabedais
que aos outros custam suor.
Cuidado que há dentes de rancor
caninos molares mortais
nas franjas das bacanais
festas ditas de truz
e nas esquinas sem luz
há vultos e há rumores
e escondem-se Adamastores.

Eis-me aqui burguesia fanada
dos chás canasta
dos chás das cinco five o’clock tea
que acabam em noitada.

Ó gente chata e melancólica
da minha terra bucólica
das flores do verde pino
da miséria a atirar pró fino
saltimbancos da moda
de roda em roda
a gastarem o traseiro
machos de ar paneleiro
fêmeas prostibulares
dos beijos nos calcanhares
e em sítios que não digo
Atenção!
sinal de p’rigo!
Cuidado com as conversas
têm orelhas os persas
que de bandeja vos servem
Cuidado que os ódios fervem!
Não sentem o estranho odor
que vem da malta de cor?

Vejo negros precipícios
por baixo dos vossos vícios
onde se mijam as osgas
e piam corujas pitosgas
em espinhas de arrepio
as ratas morrem de cio
e os corruptos
bípedes cornúpetos
em gritos agudo-histéricos
têm gozos esfinctéricos.


ÁLQUÍMICO SEGREDO
AQUI NESTE DEGREDO

               Nacala, 25 de Abril de 1974

 

TERRA
Possuída por longes e capins
a terra é farta e dá para toda a gente,
mas os fados que a habitam são ruins
e do pão a justiça está ausente.
Neste exílio não medram os jasmins
e a mata gera um eco descontente.
Da terra o preto perde aqui o cheiro,
fazendo a conta a cada cajueiro.

ÁGUA
Água não há que chegue para lavar
tanto suor e sal acumulado
na mentira que habita este lugar,
neste africano solo violado,
onde a esperança caminha devagar
e medo e tédio moram lado a alado.
Perturbe-se o Império Colonial
que os ventos anunciam temporal.

AR
Aqui o ar é livre e não tem cor
e é consumido sem pagar imposto,
não é escravo cativo do suor
canta nas árvores sempre bem disposto,
ninguém lhe impõe trabalho nem senhor
nem tem de prestar contas lá no posto.
Aqui, que mau exemplo dá o ar
se um dia alguém se lembra de o imitar.

FOGO
No secular império contingente
labaredas altivas se alevantam
num horizonte cálido e urgente.
Os mudos ganham voz, um hino cantam;
um temporal se abate de repente
sobre os corcéis do medo, que se espantam.
Cantem clarins de fogo nesta aurora
que um futuro de esperança marca a hora..


SIGNIFICADO DAS PALAVRAS E EXPRESSÕES EXÓTICAS CONTIDAS NA PRESENTE OBRA.

ALMA DE BIAFADA: grande ave negra da Guiné
BAJUDA. virgem, adolescente.
BIAFADA: uma das muitas etnias da Guiné.
BÔ: você, tu.
BOLANHA: lavra de arroz.
CABEÇA GRANDE (ter): estar bêbedo.
CHUVAS: anos.
CONVERSA DJIRA: namorar, fazer amor.
DONDON: tantã, tambor.
DÔS XILINS: cinquenta centavos.
JAGUDI: ave de rapina muito abundante na Guiné.
MACHILA: transporte em padiola, aos ombros dos indígenas (Moçambique).
MAMA FIRMADA: requisito de beleza feminina na Guiné; seios rijos, erectos, firmes.
MANCARRA: amendoim.
MISTE: deseja, quer.
MARRABENTA: dança típica e frenética do Sul de Moçambique.
PATACÃO: dinheiro.
PILÃO: utensílio em madeira escavada onde se descasca (pila) o arroz; também o nome de um enorme bairro de Bissau.
SÁBI: é bom, sabe bem.
TIMBILAS: marimbas.
XICUEMBO: feitiço.
ZAVALA. região de Moçambique, famosa pelos seus marimbeiros.


ÍNDICE

OBRAS DO AUTOR
PÓRTICO
AUTO-RETRATO

LIVRO I
GUINÉ

     ELEGIA
     A , PRETA
     ALCÂNTARA-MAR
     CANTANDO E RINDO
     QUANDO PARTI
     BISSAU
     PIJIGUITI
     AQUI
     VIRGEM NEGRA
     GUINÉ
     GRITO ÀS PALMEIRAS
     JAGUDIS EM QUINHAMEL
     POST CARD
     TERRA ESPEZINHADA
     CANÇÃO OU GRITO D’ALMA
     CASSUMÁ SANHÁ
     APENAS
     TERRA RUIM
     EPITÁFIO
     MAIS UMA MEDALHA
     UM HOMEM CHORA

LIVRO II
MOÇAMBIQUE

     SONETO DO EMIGRANTE
     TRANSPORTADOR MOÇAMBICANO
     EMIGRANTE
     NAMPULA
     A PROSTITUTA NEGRA
     NACALA
     ANTÓNIO ENES
     ILHA DE MOÇAMBIQUE
     RIQUIXÓ
     LAURENTINAMENTE
     ÁLQUÍMICO SEGREDO

SIGNIFICADO DAS PALAVRAS E EXPRESSÕES EXÓTICAS CONTIDAS NA PRESENTE OBRA


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