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LAPUTA

Janer Cristaldo

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Laputa (1887)
Janer Cristaldo (1947—    )

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©2000-2006 Janer Cristaldo
cristal@altavista.net


 

L A P U T A

 

Janer Cristaldo


 

Podemos confrontar nossa
perspectiva de forasteiros
com a dos nativos e semear
assim um inquietante mal-estar
mental que com freqüência resulta
produtivo e benéfico para ambos.

Leszek Kolakowski


 

Cansado. Não da vida. Mas de cidades. Da agitação, ruído, competição. Da violência dos grandes centros. Das metrópoles onde a luta pelo dinheiro e fama transformava os seres humanos em máquinas de louvar e obedecer. Era uma fuga, não podia negar. Tivera um dia veleidades de literato, fora buscar luzes nos grandes centros e, se luzes encontrara, não suportara seu fulgor. A luta por um lugar sob os holofotes era tão cruenta e a paga, se paga houvesse, tendia a apresentar-se apenas na velhice, quando certamente já estaria corroído pelo desgosto de viver. Não, decididamente não. Suas carnes feneciam a olhos vistos, mais pela falta de sol, talvez, do que por falta de exercício. Ou mudava agora de vida, ou nunca mais.

Marília, mar, amor...

São curiosas as circunstâncias que nos levam a certos lugares — pensou com seus botões — a tal ponto que às vêzes parecemos andar sempre atrás de palavras, não de paragens. A opção pela ilha, talvez a devesse em parte à palestra de um professor argentino sobre a literatura local. O conferencista — de cujos dentes salientes uma ouvinte, segredando à sua vizinha, gostaria de fazer um colar — analisava “Singradura”, conto de um escritor ilhéu, e começara suas considerações com aquela aliteração que evocava paz, bucolismo, princípio dos tempos. Navegar sempre num mesmo rumo. Mesmo que rumo à morte? Sentada sobre um rochedo, olhando o mar, Marília esperava o amor. “Mar e tempo: pedra e nada; e também Marília, no curso de milênios, pela só integração nas poucas horas de afogada fará sua parte poderosa no seio das marés. Nela sobreviverá seu cheiro virgem e sua espera calada. Pois Marília é mar amantíssimo, de nascença, por decreto imperioso de loucura... Vocação precoce de princesa!”

Não menos evocativa era a réplica do candidato a amante: “Marília, por minha honra e bandeira, atracarei meu barco nesta Ponta da Galheta muito mais depressa do que é humano, e meus tesouros te cairão aos pés numa tarde nunca tão luminosa em teu país”. Não que esperasse encontrar na ilha rendeira tão romântica nem pescador tão camoniano, mas se escritores são os homens que sonham pela comunidade, lá certamente encontraria — esperava encontrar — aspirações outras que não aquela busca febril de dinheiro e status, enfermidade que roía a alma das cidades. Depois de Paris, nada lhe faria tão bem ao espírito do que uma ilha vagarosa, povoada de pescadores e rendeiras. Chegara até mesmo a criar uma frasezinha enquanto fazia suas malas para voltar ao Sul, que não ficaria mal em um romance: onde tem rede tem renda. Só que a frase parava ali, dela nada se concluía. Não ficaria mal em um cartaz promocional da ilha. Mas e daí?

Ponta da Galheta. A praia existia no mapa. Lá atracaria seu barco.

O sonho estava morto, pensou. O ônibus descia quase surfando a última das sete curvas. Não que as tivesse contado. Um passageiro informava ao vizinho, certamente forasteiro como ele, que os nativos chamavam aquela elevação de Morro das Sete Curvas, enquanto a gente de fora — ouvia a expressão pela primeira vez e sentiu-se incluído, à revelia, entre estes — preferia chamá-la de Morro do Ó. Ninguém conseguia conter a exclamação ao vencer o cume e deparar-se bruscamente com o festival de verde e azul oferecido pela lagoa, mar e montanha. Sim, o sonho estava morto. Aquele morro, fosse do Ó ou das Sete Curvas, parecia separá-lo física e definitivamente de seus projetos passados, morto e bem sepultado estava o escritor. Iria tratar de cultivar seu jardim. “O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.” Tinha acuidade, o Pessoa. Uma incapacidade atroz de concluir qualquer trabalho o fazia escorregar rumo ao fundo de um poço de álcool e desespero, sem muita esperança de volta à superfície. Tinha nas gavetas centenas de páginas escritas, dezenas de projetos de conto ou romance, mas em nenhum conseguia colocar um ponto final. Deveria existir, certamente existia, na área da psiquiatria, uma definição para aquela doença, e por certo não seria ele o único a portá-la. Melhor então desistir de escrever e parar de morrer. Viva a vida, ou o que resta dela, e foda-se a literatura. Quem não sabe ensina: seria professor. De literatura.

O ônibus margeava a Lagoa da Conceição, janelas sempre fechadas, o que o transportou a uma antiga angústia, tão antiga que talvez fosse a primeira, pelo menos a primeira posta no papel. Aquele conto, se é que era conto, por azar merecera um prêmio, o que o levara a pensar que sabia escrever. Qual futebolista acariciando as botinas aposentadas, evocou seus primeiros rabiscos.

* * *

Com as mulheres aprendi a ser homem. Supreendeu-me, de início, a descoberta. Mas, pensando bem, esta é a única aprendizagem possível. Não são as mulheres e seus caprichos os critérios últimos de nossas opções, angústias e atitudes éticas? Não é com a mulher que aprendemos a ser ternos e amantes, impiedosos e cruéis Quando o filósofo disse ser o homem a medida de todas as coisas, generalizava, é claro. Fosse mais específico, estaria mais perto da verdade.

Viajar (o ato físico, o locomover-se) torna-me mais lúcido, as idéias resvalam ágeis é únicas. Por mais que me inquira, não encontro razões precisas. Aventuro hipóteses: talvez por estar acompanhado e, em verdade, só. Ou quem sabe por sentir-me rasgando a noite (nunca viajo quando dia), afastando-me a cada minuto dos lugares que habito, numa espécie de desmama, de corte umbelical. E sei que qualquer dia não mais voltarei.

A cidade, amarelecida pelo sol que morre, vai se tornando cada vez menos densa, menos populosa, mais subúrbio. Os passageiros escondem-se em suas golas, afundam seus corpos tensos nas poltronas, como se isto os aquecesse nesta melancólica tarde de julho. O dia faz-se penumbra, a penumbra faz-se noite e na noite os homens calam. Amo este silêncio ruidoso do viajar.

O vento gelado nas faces, cabelos querendo fugir do couro que os prende, outra possibilidade para explicar meu estado de espírito. Sinto nitidamente os contornos de meu rosto, o vento desenha no espaço as linhas além das quais não existo. Sempre compro um lugar à janela. Por frio que esteja, conservo-a aberta.

— O senhor não se importaria de fechar a janela?

Pois não, cavalheiro, vosso pedido fazia-se esperar. Desde há muito ouço esta pergunta, quase já sei exatamente a temperatura suportável por vossas peles. Isto depende também de temperamento. Uma pessoa tímida, por exemplo, suporta mais frio que um passageiro de índole agressiva. O cavalheiro estará no rol dos últimos, pois não? Mas não vou cerrá-la de todo, preciso mais de brisa que você de calor. A janela fechada sufoca. O frio, no máximo, enregela. De modo que...

Luzes sonolentas surgem na noite. Multiplicam-se, diferenciam-se, passam e somem na distância. Uma cidade sem nome dorme tranqüila. Quadrúpedes semicalvos e barrigudos abrigam-se dessajeitadamente sob Alvos Lençóis, no Recesso do Lar, o Esteio, após cumprirem as obrigações de estado com a Rainha. Milhares de seres sonham pesadelos mais sinceros que suas ilusões de despertos. Jamais saberão da passagem deste proscrito, tampouco dos juízos que faço. Já vos vi em outros lugares, em circunstâncias por vezes irônicas. Ides às praias substituir vossa flácida e incolor epiderme, e código algum legisla sobre esta criminosa proximidade entre mar e mortos.

E mais me contraem o sorriso suas ambições antropocêntricas. Três bilhões de centros do universo. “Nossa meta é o homem.” Já ouvi isto de louvados e ilustres humanistas e também de vendedores de enciclopédias. Ama a teu próximo como a ti mesmo, e seja anátema não aceitar este slogan fóssil, síntese de vinte séculos de mórbida cultura.

Mas... Será vida o vagido destes vermes, cujo engatinhar um incomensurável universo ignora? Como, cavalheiro? Ah, sim, a janela. Mas como sois mesquinho, interrompendo minhas íntimas reflexões!

Um troglodita em plena urbe, assim me sinto. Parece-me existirem algumas diferenças psicológicas entre um ser cujo leito foi na infância a grama, e teve por lençóis o orvalho e luar gelados, e outros que nasceram no asfalto, em escuros e sufocantes cubículos. Para estes, a claustrofobia é doença. Cães uivando sem razões que eu saiba, ruídos surdos de dentes triturando a grama, que só ouço se colado ao chão, grilos bordando o silêncio, estrelas cuja visão destrói quaisquer ambições mais altas, eis meu universo mais primeiro, mais bem guardado, e agora, o mais distante. Existirá algum significado nestes milênios de cultura que tiraram um animal da barbárie e de seu ambiente de magia, para torná-lo um ser frágil, cultural e doente? Claustrofobia, cavalheiro, é saúde.

Outra cidade. De novo, seres tranqüilos, porque inconscientes. Mesmo despertos não têm angústias e lhes são absurdas e doentias as torturas que me impinjo. Sempre tranqüilos, é incrível, e eu os invejo. Mas não consigo sê-lo. Já saindo, nos subúrbios, uma luzinha vermelha pisca na porta de uma casa onde ainda existem sons. É possível que lá dentro um farrapo de mulher, exausta de sua absurda faina diária, sabiamente olhe o vácuo. Se o faz, é minha irmã. Não saberá, mesmo ouvindo os ruídos que me acompanham, que passei a poucos metros de sua morada e confraternizei com seu desespero silente.

Embaça-se o vidro do arfar das bestas. Também dormem, o próprio motorista talvez esteja dormindo. Discretamente, abro um bocado a janela. E respiro a terra, a noite e os pastos que ela cobre.

Não tenho tempo para amar-vos. Minha carne débil e branca (vossas cidades destruíram sua antiga cor e rijeza e sua docilidade a meus ímpetos) atesta a marcha sem volta de retorno ao húmus. Dêem-me a vida eterna e amar-vos-ei nas horas vagas. Talvez assim, até mesmo teça um poema otimista à espécie. Esta ternura irônica que ainda em mim resta não se origina de vossos compêndios ou ideais, mas dos lamentos frágeis que ouvi de vossas fêmeas insaciadas. No burilamento de minha rudeza e asperidade, a mulher ocupa um lugar cuja importância me intriga.

Aos quinze, eu as temia e amava: medo e fascínio do desconhecido. Aos vinte, amei-as: acabou-se o mistério. Entreguei-me, mostrei-me como era, fiz-me vulnerável. Ao perdê-las, sofri por tal ingenuidade. Hoje, elas só conhecem meus gestos exteriores. Apresento-lhes mil faces, deixo-as confusas, conservo meu ego perfeitamente camuflado, faço-as chorar e seu apego à dor me comove. Desta comoção brota minha simpatia por certos seres humanos. Que se extingue quando reflito, por exemplo, sobre a nebulosa de Andrômeda.

O próprio ato amoroso se me tornou algo dorido. Ao fazer amor, preciso sair de mim mesmo, estabeleço uma ponte até outrem. Esta concessão machuca-me quase fisicamente.

— A janela, por favor, meu filho está gripado.

Perdão, senhor, ignorava que esse apêndice vivo que sempre carregais em vossas viagens fora atacado por este inquietante vírus. Já fecho a janela, não serei descortês com meus companheiros de viagem. O único motivo que me impede a paternidade é ver-vos carregados com vossas crias, quais membros aleijados de vossos corpos, que não conseguis comandar.

Fecho a janela. No vidro, os contornos difusos de meus traços. Mergulho o rosto no calor ambiente. Nem assim adormeço. Os termos de vosso contrato não me satisfazem. Claro que renuncio às vantagens que me seriam outorgadas. Por algumas, lamento. No cômputo total, que falta de perspicácia tendes!

Luz já quase dilucular. Vontade de noite, desejos de não chegar.

* * *

Olhava-se naquele texto como no espelho, não no espelho que refletisse apenas a imagem presente, mas em um outro que mantivera fixos e nítidos os traços de um homem nele refletido há vinte anos. Se superpusesse as duas imagens, a passada e a presente, os traços coincidiriam quase que totalmente. Descontada aquela difusa arrogância de jovem que aos vinte pensa já ter exaurido a vida e suas possibilidades, aquele quarentão que fugia das grandes cidades em um ônibus caindo aos pedaços continuava assinando embaixo aqueles impropérios. Ao lê-los, alguém comentara: “em teu texto se nota uma alergia visceral à família”. Pois continuava visceralmente alérgico à santa instituição. Só que não mais chamava de quadrúpedes os que a ela aderiam. Os anos lhe haviam ensinado que nem todos os homens tinham estofo para lançar-se a aventuras incertas como a literatura — ele próprio não perdera a aposta? — e afinal de contas, quadrúpedes ou bípedes, todos tinham direito a um lugar ao sol. Quanto às mulheres, continuava a alimentar a mesma ambivalência dos anos passados, até agora não entendia muito bem o que queriam as moças. E continuava a abominar janelas fechadas.

Duas décadas. O que mudara parecia ter sido o universo, já marchava inexoravelmente aos cinco bilhões de consciências.

Pensou morar na Barra, seis quilômetros adiante da Lagoa da Conceição, nalguma cabana frente ao mar. Um incidente fortuito o fez mudar de planos. Quase ao final da Avenida das Rendeiras, curva lenta e preguiçosa que margeava a lagoa, à direita, abria-se um campo aberto, povoado por vacas e cavalos. Para um homem saudoso da infância — e quem não o é quando a velhice se aproxima?– aquela visão paradisíaca o convidava a ficar. Espécie de jardim particular, ali poderia afagar os animais, cavalgar, pelo menos enquanto a fúria imobiliária não o invadisse. Reforçando o convite, uma revoada de queroqueros aterrissou com gritos de guerra naquele simulacro de pampa. Não resistiu. Antes que o ônibus abandonasse a avenida, pediu para descer. O motorista estacionou junto a um remanso, três barcos se aproximavam trincando o espelho das águas. Desceu, espreguiçou-se, olhou em torno auscultando sua nova geografia. Se instalaria ali, naquele ponto preciso. À frente, a lagoa. À direita, a montanha. Logo adiante, o mar. Como supremo requinte, com o qual sequer sonhava, uma reprodução em miniatura dos pagos onde nascera: vacas, cavalos e — ó saudades! — um bando de queroqueros. Que mais podia almejar um gaúcho?

Foi quando atracou o primeiro dos três barcos no trapiche que avançava remanso adentro. Um estremeção lhe percorreu a espinha ao ler ser nome na proa: Fantástico Show da Vida.

Como se tudo estivesse ocorrendo da melhor maneira possível no melhor dos mundos, encontrou logo adiante uma casa ampla para alugar, já mobiliada, frente à lagoa e tendo aos fundos sua miniatura de pampa. A biblioteca e outras parcas posses chegaram na semana seguinte. Encantou-o a ingenuidade sem nome da proprietária, rendeira, mulher de pescador, tudo parecia fechar, quando ela perguntou: “o senhor escreveu todos estes livros?” Não, Dona Zeferina, não escrevi nenhum. Pela resposta, a Zefa jamais imaginaria que naquele não ter escrito sequer um livro residia todo seu drama e fracasso, as razões de seu exílio. Mas se aquela deliciosa manifestação de desconhecimento do mundo da cultura o encantara, outra observação o colocou em alerta.

— O senhor não tem televisão?

Não. Não tinha. Para que televisão em ilha tão linda?

Zeferina tenta disfarçar sua perplexidade:

— Nem rádio?

Muito menos. Não pretendia poluir o silêncio daquele oásis com ruídos e angústias urbanas. A rendeira esgaçou ainda mais a boca. Ao fechá-la, balbuciou que uma vez por semana sua filha viria limpar a casa.

— O professor vai gostar. Ela foi eleita Princesa da Lagoa no verão passado.

Oh, não, tudo era sonho! Mar, Marília, princesa...

Zefa desejou-lhe boa estada e saiu balançando os quartos, falando com seus botões e girando o indicador em torno ao ouvido. Morava na casa ao lado, com a filha e um pequinês, sempre à espera do marido, habitante mais do mar do que da terra. No pátio, improvisara um viveiro de pássaros, uma tela fina cercando um quadrilátero irregular formado pela parede de fundos da casa e dois eucaliptos próximos. Juliano não resistiu. Pediu para olhar o viveiro. Queria aproximar-se dos eucaliptos, arrancar-lhes algumas folhas, triturá-las nas mãos e respirar, palmas em concha, um cheiro verde de infância.

A mulher o introduziu pela cozinha, imersa em um particularíssimo matraquear, xingando “esses tais de ecologistas, se descobrem meu aviário entram aqui com polícia e fiscais, prendem minha bicharada e largam tudo na ilha do Campeche”.

Mal Juliano entrou no viveiro, uma inquietação percorreu a passarada, parecia pairar no ar um temor qualquer ante o visitante desconhecido. Esparramo de canários e curiós, sabiás e ticoticos voando baixinho e buscando galhos, chilridos assustadiços de pássaros que jamais vira ou ouvira. Foi quando um martelaço estridente feriu-lhe os tímpanos e teve de ranger os dentes para não chorar. Uma araponga. Há séculos não ouvia aquele som de bigorna, cujo eco se diluía em ondas nos campos de Ponche Verde. Arapongas e queroqueros. Junto com o gaúcho estaria também migrando a fauna do Rio Grande? Na imprensa insular lera qualquer coisa sobre a “invasão gaúcha”. O que lhe soava estranho, não deixava de sentir-se dentro de seu próprio país ao atravessar a ponte Hercílio Luz. Mas não conseguia imaginar o gaúcho trazendo flora e fauna na garupa. Aproximou-se de um dos cantos do viveiro e roubou algumas folhas do eucalipto. “É para um chá”, explicou.

Organizada sua biblioteca — já descobrira uma forma de transportá-la sem desorganizar livros — tratou de cumprir a visita há tanto tempo planejada. Iria até a Barra. Lá estaria, cansado e doente, o eterno copo em punho, Taba, o responsável por boa parte de suas errâncias. Não havia insistido em publicar no finado Diário de Notícias aquele conto — ou o que fosse — mais tarde premiado em um concurso? Os prêmios literários deveriam ser proibidos para menores de quarenta, pensava agora, assim muito jovem entusiasta não perderia tempo e energias em função de um falso estímulo

Dez anos depois do fatídico conto, ou crônica, como quisessem, quando já nem sabia por onde andaria Taba, passara em turismo pela Barra. Da praia avistou num dos botequins uma silhueta conhecida. Talvez nem fosse a silhueta o que reconheceu, mas aquele gesto distante de quem olha a vida como se estivesse olhando o mar ao longe. Postura eterna. Podia estar a meio metro de seu interlocutor. Mas olhava um ponto cego acima do ombro do companheiro de mesa, o rosto estático, olhos parados, boca sempre contando coisas, uma boca de lábios finos e róseos, aparentemente deslocados em uma cabeça solenemente encanecida. Quanto mais perto do botequim, menos dúvidas. Só podia ser o Taba, rosto e lábios serenos eram os mesmos, apenas os cabelos mais embranquecidos. Sentou-se à sua frente sem dizer palavra. Contente por dentro, mais pra cachorro que há muito não via o dono. Nos dias de jornalista, vira em Taba um dos raros secretários de jornal a escapar ao epíteto de filho-da-puta e por ele nutria uma afeição quase filial. Sem mover o rosto, Taba o saudou como se o tivesse visto no dia anterior:

— Meu querido Bagual!

Bagual! Nem mais lembrava do apelido que lhe fora colado à pele em seus dias de foca, por sua impetuosidade e santa ira em relação ao sistema, sua mania talvez já perdida na curvas do tempo, de reformar o mundo. Bagual! Abraçou-o comovido:

— Velho Taba de guerra!

Raro encontrar no mundo pessoas limpas. Gostaria de cultivá-las à medida que ocorriam em sua vida. Notícias sobre os anos em que não se haviam visto. Taba fora ejetado de Porto Alegre após a morte do Diário de Notícias. Abandonara o jornalismo e chafurdava em uma assessoria de imprensa.

— Sabes como é, Bagual, ou talvez não saibas ainda. Jornalista só adquire algum patrimônio se se deixa corromper. Se insiste em bancar o Quixote, morre fodido e mal pago. Fodido e mal pago já sou, agora só me falta morrer.

Ignorou aquela desesperança toda, há muito conhecia seu humor.

— Mas vais morrer na mais linda das ilhas.

Lábios finos e rosados. Espichou-os alguns milímetros, em prenúncio de ironia.

— É o que diz todo gaúcho quando chega aqui. Mal tira as botas, fica exposto a três males: bicho do pé, bicho geográfico e encatarinamento. Para os dois primeiros, em qualquer farmácia se compra uma pomada que elimina o bichinho. O problema é o encatarinamento. Aí a cura custa mais caro.

Iria negar a evidência, que a ilha era linda?

— Ainda vou gravar — dizia Taba olhando o mar — os depoimentos desses gaúchos de água doce que mal chegam aqui e já se encantam. Vai por mim, meu querido. Três meses e vais juntar alternativas a teu discurso. A ilha é linda, mas... Mais tarde, este mas vai se transformar em repulsa. Com o tempo, vais acabar falando sozinho, chiando pelas ruas: ”esses catarinas!” Leste Juvenal?

Não esperou para continuar:

— Acho que não. Em tua adolescência não havia mais latim no ginásio. Bueno, em Juvenal se vê o despeito dos romanos ante os gregos. Nesta ilha, me sinto grego entre romanos: superior e desprezado. Vai e volta. Quem aporta nestas praias é acometido de uma maldição, acaba se fixando por aqui. Mas ainda vou te ver com saudades das ruas quentes e poluídas de Porto Alegre. Certa vez perguntaram a um catarina o que escolheria, se tivesse de escolher entre a beleza e a estupidez. Sabes o que o ilhéu respondeu?

Como iria saber?

— “Ora, a beleza é passageira...”

Estaria exagerando. A opção não era específica dos ilhéus, tinha de convir. Tentou atalhá-lo:

— No mundo todo...

— É — cortou Taba — no mundo inteiro é igual, eu sei. Mas aqui é pior.

Por que vivia ali?

— Não saberia te responder. Ou talvez soubesse. Mas não entenderias. Um profissional competente, quando não é valorizado entre os seus, só tem duas saídas: ou decola, contra ventos e marés, ou se suicida. Decolar, não consegui. Me faltou empuxo. Para morrer, qualquer lugar é bom.

Irritante, aquele fatalismo. A verdade é que Taba fenescia. Mudou de assunto. Estava ali só de passeio, não pretendia estabelecer-se na ilha.

— Santa ilusão, meu querido. Vais ficar com este verde e este azul grudados nas retinas, as curvas dos morros e os traçados das gaivotas vão invadir teus sonhos. Gaúchos, somos ibéricos, em alguma de nossas células há a nostalgia de mar e deserto, de praia e areia. Um belo dia, daqui a cinco ou dez anos, cansado da cidade grande, vais te perguntar: e por que não a ilha? Eu também vim a passeio...

Um visionário, Taba. Ou talvez apenas um bom observador. Mais dez anos haviam passado — “horror, pensou, como passam rápido as décadas” — e lá estava ele, cumprindo os vaticínios do companheiro dos dias de jornalismo. Mas recusava-se a endossar seu pessimismo. Há muito desistira de encontrar o paraíso na terra. A ilha teria seus senões, mas seria suficientemente hábil para contorná-los.

Era domingo e tinha certeza de encontrar Taba no mesmo boteco e certamente na mesma mesa. Se bem o conhecia, era homem de trocar de mulher ou mesmo de mulheres. Mas uma vez adaptado à ambiência de um bar, era fiel como um cão. Vestiu bermudas, calçou guides, tirou das gavetas uma camisa velha e puída da qual temia ter de um dia separar-se e se dispôs a enfrentar os seis quilômetros que o separavam de Taba. Adeus vida sedentária! Quando repechava o primeiro morro, ouviu de uma casa ao lado a voz esganiçada da Zefa:

— Professor! A parada do ônibus é lá embaixo, no Recanto.

Não pretendia tomar ônibus. Ia até a Barra. A pé.

— O professor não tem carro?

Fez sinal que não. Zefa girou novamente o indicador em torno ao ouvido.

Domingo de inverno. Mas o inverno parecia ter sido abolido na ilha, por decreto dos deuses ou de alguma autoridade turística. Do alto daquela privilegiada espécie de istmo, divisava à esquerda os veleiros e pranchas de windsurf na lagoa. À direita, os surfistas da Praia Mole. Logo adiante a Galheta, a praia mítica onde o poeta situara sua Marília, sereia sentada olhando o mar à espera do amor. Os poetas, pensou, não se deveriam deixar tentar tanto pelas aliterações. Enquanto vencia o morro, surpreso pela facilidade com que o fazia, lembrava Asdrúbal. Ficção do Taba? De qualquer forma, Asdrúbal pertencia à sua biografia, talvez mítica, quem sabe até mesmo veríssima, sabe-se lá o que se passa na cabeça de um pingüim. Taba o recolhera exangue na praia, não havia na Barra quem não o conhecesse, ficção pura não seria.

Fiz como me aconselhou o Che“ — falava de Guevara, um de seus entrevistados — “hay que darles um purgativo”, caso contrário a fauna interna do turista polar era ativada pelo calor tropical, urgia purgá-los de toda possibilidade de infecção. Até ali a história era viável, mas permanecia no ar aquele elemento insólito, o guerrilheiro que se pretendia libertador das Américas aconselhando o jornalista sobre como tratar um pingüim. Mais difícil ainda era engolir a despedida de Asdrúbal. Após alguns meses de Barra, ouviu guinchos familiares certa manhã, além da arrebentação. Jogou-se ao mar e das ondas surgiram três outros conterrâneos, com os quais travou acalorada discussão.

Taba já dizia mentalmente adeus a Asdrúbal, quando este abandonou os seus e mergulhou de volta rumo à praia. Aproximou-se de Taba e, em seu melhor fraque, inclinou-se três vezes, emitindo comovidos guinchos. Voltou então ao mar, enturmou com os três colegas e jamais foi visto no mar da Barra. Se alguém insinuava estar fazendo concessões aos dados de uma ficção ao ouvir tais relatos, Taba indignava-se e, sabe-se lá, podia até mesmo acontecer que nem tudo fosse ficção. Era difícil distinguir, no jornalista desesperançado, qualquer linha divisória entre a realidade e sua recomposição dos dados da realidade. Assim sendo, Bagual não se preocupava muito com sua amarga visão da ilha, certamente acidez psíquica de homem descontente consigo mesmo. A ilha era linda, e ponto final!

Seriam onze horas quando chegou à praia. Seis quilômetros em uma hora era boa marca para quem há muito só fazia o trajeto entre a redação de um jornal e o bar mais próximo. Suas referências mais constantes, lembrava agora, eram sempre mesas de bar. Mania de quem abomina lar, o que mais uma vez o transportava ao conto dos vinte anos. Teve alguma dificuldade em situar o botequim do Taba. A Barra havia mudado e para pior, cabanas amontoavam-se lado a lado, transformando uma espécie de favela o que antes fora uma aldeia de pescadores, caixas de som ameaçando abafar o rumor do mar. Lembrou que o bar se chamava Três Irmãos e finalmente o encontrou, era agora restaurante com ares de fino. Deserto. Sentou-se na mesa de Taba, na janela frente ao mar. Se bem o conhecia, jamais teria molhado os pés naquelas águas, gostava de manter “uma distância respeitosa” entre ele e o mar. Uma caipira, por favor. Não precisou esperar muito. Mal havia mergulhado em si mesmo quando um braço amistoso afagou-lhe os ombros:

— Não disse, Bagual?

Como se tivessem conversado ontem, continuou o diálogo interrompido há uma década.

— E quem disse, o que te faz supor, que vim para ficar?

Sorriu vitorioso:

— Quem disse fui eu, há coisa de dez anos, nesta mesma mesa — e bateu com a palma da mão na toalha–. Já estava estranhando tua demora. Só há uma cura para encatarinamento, é viver na Santa e Bela Catarina.

Sempre o mesmo. Talvez mais gordo. Olhos mais tristes. Abraçou-o com uma vaga vontade de chorar. Mas era gaúcho, tinha por obrigação quase profissional não chorar.

Como se todos aqueles anos fossem uma pausa para ir ao banheiro, retomou sua tese. Que todas as colonizações tinham um sentido econômico, os homens não se mexiam a troco de nada. Os espanhóis haviam colonizado o México porque lá havia ouro. O Peru, em busca de prata. Haviam fundado Buenos Aires à beira de um rio pelo qual podiam chegar a Potosi. Não por acaso, el Rio de la Plata. Fernão de Magalhães tivera sua expedição financiada não para descobrir um estreito, mas para melhor prover os pálatos europeus de especiarias.

— Lembras daquela tua croniqueta ingênua de adolescente, onde colocavas a mulher como centro do universo e os homens agindo e lutando sempre em função do sexo?

Claro que lembrava. Como também do sorrisinho demolidor de Taba, ao mandar baixá-la para impressão.

— Aquele texto me deixou contente, era sinal de que não estavas passando fome. Achar que os homens se movem em função de sexo, é ótica de quem tem a barriga cheia. Voltando à ilha — e fez uma pausa para molhar a garganta — que tinha esta ilha para oferecer ao colonizador? Economicamente, nada. Fora alguns limões para combater o escorbuto, nada mesmo.

Onde pretendia chegar?

— A ilha não tem sentido. Não existe desde quando começou a existir.

No entanto, ali estavam, degustando os camarões da lagoa, sentados sobre seu chão sólido, palpável, e do outro lado da janela meninas em biquini jogavam vôlei sobre suas areias. Imperturbável ante a evidência, Taba prosseguia. Que a ilha fora povoada pela Coroa portuguesa para dar apôio logístico às tropas que defendiam a Colônia do Sacramento.

— Ao voltarem a Portugal, os lusos esqueceram aqui os pobres diabos açorianos que os abasteciam. Tudo é ficção, desde o começo a ilha é ficção. Que pode dar uma ilha colada ao continente, cheia de sol e de praias, sem riqueza natural alguma?

Pergunta meramente retórica. Quando entusiasmado Taba não admitia respostas.

— Sede de governo e paraíso de funcionários públicos. Trocando em miúdos: curral eleitoral, voto a cabresto, corrupção e covardia. Uma pulga chupando o dorso do continente.

Tinha fama de escrever não com tinta, mas com vitríolo. Não por acaso, jamais esquentara banco nos grandes jornais.

— Que produz um barnabé? Se amanhã, num desafio ao poder, os bravos ilhéus cruzarem os braços reivindicando algo, o que acontece? Nada. Absolutamente nada. No continente, quem trabalha vai ficar contente. Vão receber menos papéis cobrando impostos.

Taba exagerava. Que mais não fosse, na ilha não existiam apenas os parasitas de Estado, fauna típica das capitais. Havia o elemento nativo, o pescador, o agricultor, a rendeira.

— Esses — atalhou — deviam permanecer a semana toda no hospício. Seriam soltos aos fins-de-semana, para contemplação dos turistas em busca de cor local. Estás chegando, meu guri. Deves estar intoxicado de Rousseau, Thoreau e outros utópicos. Deves andar em busca do bon sauvage, quem sabe do paraíso perdido. Estás mortalmente encatarinado.

Soava-lhe familiar, muito gaúcho e ao mesmo tempo estranho, aquele “meu guri”, afinal já não era exatamente o que no Rio Grande se entendia por guri. Os anos haviam passado, para ambos, com a mesma lentidão ou pressa, Taba já entrara nos sessenta e continuava a chamá-lo de guri. Podia não endossar suas hipérboles, mas suas intuições eram fulminantes. Não iria negar que, no fundo mesmo, vivera sempre em busca de um mundo utópico. Havia perambulado por toda a Europa, não poucos livros e viajantes diziam situar-se lá o mundo ideal. Vivera algum tempo no mítico país da liberdade, igualdade, fraternidade, em vão tentara encontrá-las, pelo menos ao alcance da mão de qualquer um. Ou tinha-se souche, argent, ou nada feito. De fato, havia lido Rousseau, Thoreau também. Não que pretendesse viver da pesca ou do cultivo da terra, afinal tinha outras habilitações. Mas invejava quem assim conseguia viver, sem maiores angústias metafísicas.

— Enfim, bem-vindo sejas — suspirou Taba —. Espero que esta robinsonada não te custe caro.

Passou a tamborilar na mesa um sambinha:

Trabalha, colono, trabalha.
Lavra, planta e capina.
Pelo preço de tua mortalha
pagas a prancha do menino,
do menino da Joaquina.

Eu dou leite, dou pão, eu dou água,
tiro a comida da terra e do monte.
Com meu suor alimento minha mágoa,
minha mágoa e os vagabundos
do outro lado da ponte.

Cantas tua lagoa formosa,
de águas que não são de cheirar.
Minha vida não é feira de rosas
para que pelo azul de suas águas
possas navegar.

— Que tal, Bagual? Podia intitular-se, acho, Rancho de Amor ao Continente. Se eles soubessem do que é capaz um jornalista desocupado, criavam uma assessoria para me inventar trabalho. Ouve só o final:

Professor na UFESC
Lotado no BESC
Assessor da TELESC
Poeta na APESC
Cá na ilha, amigo
Você dá ou DESC!

Ria sozinho, não que gargalhasse. Ria com o fundo dos olhos, interrogando os de Juliano, que aos poucos intuía a nova nomenclatura. Numa espécie de breque, rematou:

Ceva gelada,
meu saco ao léu,
oh! sou tão feliz,
eu sou o ilhéu!

Primeira providência ao chegar em Florianópolis — Floripa para os íntimos, distante vinte quilômetros de seu refúgio em meio ao mar e ao verde — a procura de um bar. Não para beber, já que vinha em parte para curar-se. Concluíra, talvez em tempo, ser a luta vã contra o papel em branco o fator que o impelia ao álcool, horas e horas inúteis em meio ao silêncio da noite, arracando cabelos e jogando papéis ao cesto diante da máquina e de um copo. Foi quando começou a desconfiar que o perigo não estava no álcool e sim no jornalismo. naquela tentativa de transcender o jornalístico através de uma obra literária. Ao concluir que ovelha não era para mato, sentiu-se liberto do papel em branco e do trago. Bar, para Juliano, significava bem mais que bebedouro. Não exagerava se afirmasse que fizera sua carreira universitária em bares, era onde preferia trabalhar, mergulhar na leitura e eventualmente emergir do mergulho se um rosto amigo, conhecido ou desconhecido, o convidasse ao diálogo ou namoro. Bar, sinônimo aventura. Onde o bar?

Meio milhão de clientes potenciais na ilha. Mesmo assim não foi fácil. Pequisou na cidade e fora dela, nas ruelas do centro e nas avenidas junto ao mar, só via aglomerados de gente escutando rádio ou televisão, quando não ambos simultaneamente, e aí não entendia mais nada, chegara mesmo a ver um garçom estático, olhos cravados em um vídeo sem imagem alguma, apenas o som ligado. Tinha outra concepção de bar. Taba o havia alertado:

— Nesta ilha, as palavras vão pouco a pouco perdendo o sentido. Aqui, bar não é bar. Achas que existem bares, viste locais onde pessoas bebem e conversam. Aparentemente conversam. Na verdade, trocam besteiras sobre futebol e carros, conversar são outros quinhentos. É trocar idéias, e só pode praticar este comércio quem dispõe desta mercadoria. Confundes barnabés em fuga ao expediente com ambiência de bar. Buñuel já dizia — e Taba sorria beatificamente ao lembrar seus dias de Espanha — que bar é o lugar por excelência de recolhimento e meditação. Saudades, tche, do Oriente, Gijón, Café del Prado.

Se inventava de evocar seus bares madrilenhos, só restava esperá-lo de torna-viagem. Bar — dizia ao voltar — é a tribuna onde pessoas discutem opiniões divergentes, é o momento em que se exerce a livre expressão de pensamento. Kafka falava daquela casa ideal onde qualquer um pode entrar mesmo sem ser convidado, falar ou calar, confraternizar ou mesmo conversar com seus botões, sair quando lhe der na telha. Tais casas existem. Mas não aqui. Os botecos onde viste pessoas bebendo não passam de extensões das repartições públicas, lá qualquer bacharel se sente doutor e rábulas que jamais exerceram o Direito exibem rubis nos anulares, as nulidades. Lá, todo pensamento original é sacrilégio, meu guri. Ninguém discorda de ninguém, a ilha toda é um imenso curral eleitoral, dominado por dois ou três aprendizes de déspota. As oligarquias ilhoas fingem que se distribuem entre dois ou três partidos, mas todos caem de quatro ante um só, o do poder.

Exercício de sarcasmo da parte de Taba? O fato é que, nos primeiros meses, se quisesse sentasr para ler um jornal ou isolar-se, tinha de tampar os ouvidos com bolinhas de algodão. Lembrava Schopenhauer: a soma de barulho que uma pessoa pode suportar está na razão inversa de sua capacidade mental. Encontrara finalmente um boteco, o Kibelândia. Também repleto de barnabés. Ilha dos Barnabés, pensou, bom título para um romance, ao mesmo tempo que procurava eliminar da mente a antiga tentação. Não era exatamente silencioso, mas pelo menos ali só se ouvia o ruído de vozes e vozes não feriam a sensibilidade de um homem de bar. Ao dispensar as bolinhas de algodão, passou a ouvir restos de conversa, pedaços de frase, um se repetindo sempre como disco rachado: “desculpe discordar, mas...”, “desculpe não concordar, porém...”, “perdão por pensar de forma diferente, no entanto...” As fórmulas variavam, mas as desculpas sempre faziam-se presentes iniciando cada frase, caução e precaução de barnabé. Ele provinha de uma cultura onde discordar era quase um dever, não por acaso merecera o apelido de Bagual. Ao não aceitar uma idéia, um gaúcho enchia a boca: “discordo veementemente”. Ali, um medo qualquer pairava no ar, um medo difuso de ter idéias próprias, um pavor de ser diferente. Em andanças passadas, Juliano bordejara algumas capitais do Leste europeu, nelas encontrara o mesmo medo contaminando as conversas, pessoas falando baixinho, temerosas de que o vizinho ouvisse qualquer sussurro. Teria a ilha uma vocação socialista?

— A ilha — discordava — jamais será explicada pela razão, espero não precisar repetir isto. Te imagina sóbrio, chegando à meia-noite em um baile de carnaval. Aparentemente, nada está acontecendo, todos dançam bonitinho, puxando cordão e sambando. Quinze minutos depois, observando melhor, vais que a realidade é bem outra: há um dedo numa buceta, uma língua lambendo um cacete, um pau na bunda de alguém.

— E daí? — Juliano não entendia o paralelo.

— Daí que estou aqui não há quinze dias, mas há quinze anos. Conheço a história do pedaço. Nesta geografia, covardia é tradição.

— Vai te foder, Taba — discordava Juliano — que má vontade é essa? Em qualquer lugar do mundo barnabé tem espinhaço mole, é ser medroso por definição.

Taba ria mansamente. Atrás do sorriso em diagonal, Juliano adivinhava pesados argumentos.

— Em 1777, isto é, já faz dois séculos, quando a ilha era praça de guerra e não balneário de barnabés... sabes o que aconteceu aqui.

Não. Não sabia.

— Pois então escuta antes que eu morra e seja tarde.

Era todo ouvidos.

— In illo tempore, como diziam os padres, a ilha era bordada de fortificações, defendida por três mil homens, entre infantaria, artilharia e cavalaria. Bueno, aí o Carlos III, rei de Castela e hoje um excelente conhaque, resolveu fazer uma brejeirada a Dom José I, rei de Portugal, metendo as patas num pedaço do território brasileiro. Enviou rumo ao Sul uma esquadra, sob o comando de Dom Pedro Zeballos, que abordou a ilha pela ponta norte. Sabes o que aconteceu?

Não esperou resposta:

— Claro que não, meu guri. À simples aproximação da frota, desde os cavalos até os infantes deram no pé, o exército todo varou o Estreito, rumo a São José. Zeballos tomou a ilha sem disparar um tiro. Não apenas os bravos defensores, mas toda a população da ilha, só foram em Cubatão, a seis léguas daqui. Caso os espanhóis se dignassem a perseguí-los, podiam buscar refúgio em chão gaúcho. “Nasceram para covardes”, disse o Davi Canabarro sobre este povinho. Achas que estava fazendo piada? Logo, quando se falar em tradições da ilha, prima inter pares, cultive-se a covardia.

* * *

Nada mais pedagógico que o correr dos dias, descobria Juliano. Tinha passaporte brasileiro mas era visto como estrangeiro. Os nativos dividiam a humanidade em duas fatias distintas. Havia a “gente de fora”, gomo perfeitamente definido, que abrangia desde os catarinenses que viviam do outro lado da ponte — no Brasil, segundo Taba — até pessoas oriundas dos estados vizinhos ou mesmo de países distantes. Por uma questão de paralelismo, a outra fatia devia chamar-se gente de dentro ou, talvez, gente da ilha. Mas se um homem nasce numa ilha e dela jamais se afasta — descobria Juliano — jamais saberá o que é uma ilha. Sem falar que ninguém define a si próprio, e sim ao outro. Para os nativos, a outra metade da laranja era o que chamavam de “gente nossa”, coletivo vago e indefinido, pedigree que obedecia a uma única condição: ter nascido na ilha, nela viver e — por que não? — nela deixar seus ossos.

Zefa, mais sedenta de síntese, abreviava a coisa dizendo nós, simplesmente. Nada entenderia de gramática, Juliano duvidava que soubesse ler. Mas em sua boca, nós tinha uma acepção muito precisa, era um plural dos mais singulares, excludente e fixador de fronteiras, em torno às quais pareciam girar o mar, a terra e o universo todo. nós fomos ao baile, nós fomos à missa, nós fizemos uma farra do boi. (Mais tarde, só bem mais tarde, viria a saber o que era a tal de farra, de início julgara ser um outro nome para bumba-meu-boi, boi-de-mamão ou algo semelhante). Incêndio no morro? Coisa de gente de fora. Casa arrombada, areia retirada das dunas? Tudo coisa de gente de fora, isso nós não fazemos.

Taba invertia os termos da proposição, definia-os como eles: eles vão a seus bailes, eles vão a suas missas, eles comem peixe com pirão. Quando dizia nós, o pronome era muito mais excludente que o da Zefa. Referia-se a si próprio e a Juliano, estendendo-o talvez a uns poucos gaúchos ou paranaenses encatarinados. “Nós, seres pensantes”, não era expressão rara como introdução a suas catilinárias. Ou catarinárias, como ousaria insinuar Juliano, caso ignorasse o horror de Taba a trocadilhos.

Acontece que decidira viver na ilha. Apesar de não ter ultrapassado as fronteiras de seu país, sentia-se irremediavelmente incluído naquele “gente de fora”. Zefa tentava excluí-lo do coletivo infamante: “se bem que o professor é pessoa distinta”. Distinto dos demais, disto ele tinha consciência. Mas não era a esta sua anomalia personalíssima que Zefa se referia. Naquele distinto estava implícita a urbanidade com que ele a tratava, o aluguel sempre pago pontualmente, a paciência e curiosidade com que ouvia as queixas sobre as ligeiras incongruências de seu pequeno mundo, “imagine, professor, onde vamos parar, a televisão mostrando mulher pelada”. Zefa sabia muito bem que todo televisor tinha um botão que o ligava e desligava. Mas jamais ocorreria acioná-lo quando as mulheres peladas invadiam a telinha.

Contabilizava aquele ilhocentrismo como coisa de gente simples, sem maiores noções de história ou geografia. Imersos em um eterno presente, dificilmente se afastavam por mais de vinte quilômetros das praias onde haviam nascido. Insólito foi ouvir na universidade, em plena reunião de mestres e doutores, o mesmo brado ilhéu: “não podemos permitir que a universidade seja invadida por gente de fora”. Teve ímpetos de reagir: “Colega, uma universidade não se faz com gente de dentro, que mais não seja não me sinto estrangeiro no país em que nasci”. Mas nada disse, há muito desistira de questiúnculas.

Ou seu passaporte lhe conferia o sagrado direito de exercer seu ofício em qualquer ponto do território nacional, ou a ilha era outro país. Com o decorrer dos meses, mesmo sentindo-se brasileiro até o tutano, acabou convindo que a distinção ilhoa entre gente nossa e gente de fora não era totalmente desprovida de significação. “Flora é o que vegeta” — explicava Tab — “são eles. A fauna somos nós”.

Logo-logo entraria em contato com a fauna. A ilha era rota de fuga, e isto não o surpreendia, ele também não fugia? Exaustos e feridos pelas migrações, ora espontâneas, ora forçadas, os fugitivos que ali buscavam ninho eram pássaros muito especiais, raras vezes com rumos definidos e quase sempre sem rumo algum. Qual ser urbano não sonhara um dia com uma ilha? As utopias, de Platão a Huxley, haviam sido situadas em ilhas. Nada de espantar que uma ilha ensolarada, colada ao continente, atraísse hordas de utopistas não chegados a grandes navegações. Ou mesmo, delas frustrados.

O primeiro espécime exótico — até os ossos, literalmente — encontrou-o no Kibe, ponto de encontro inevitável de todo e qualquer migrante. Descia pela Praça Xivi rumo ao bar, na escola em frente uma professora puxava uma taboada. Quatro mais três? Seeete. Quatro mais quatro? Oiiito. Quatro mais seis? Nooove. Matemática moderna? Talvez não. Mais tarde descobriu que a Praça Xivi era na verdade Praça XV. Mas que obrigação tem um homem do final de milênio — argumentava o alcaide — de conhecer algarismos de uma língua morta? E baixou decreto determinando que números de placas fossem escritos em arábicos.

No Kibe ia entrando aquele perfil de garça, não podia ser, é alucinação, disse para si mesmo. Encontrara Olívia Palito nalgum bistrô do Quartier Latin, não que ela assim se chamasse, mas era a própria namorada do Popeye, mais caricatural que a própria caricatura, “a que nem o Pitanguy conserta”. Impossível existir uma outra no mundo. Tinha de conferir, certificar-se de que não estava tendo delírios ao meio-dia.

— Jacira? — perguntou incrédulo.

— Meu nome é Bodira.

Estaria brincando. No mundo só existiam duas Olívias Palito, uma pertencia ao mundo dos quadrinhos e a outra era ela, ora bolas! E se chamava Jacira. Uma terceira era inviável, uma impossibilidade estatística. Talvez existissem no mundo sósias às dezenas, mas daquela avis rara não podia existir outra cópia no universo, disto tinha certeza. Como Bodira? Não era Jacira?

— É meu novo nome.

Ah! O universo voltava a ser inteligível.

— Conheces este cara? —

A novel Bodira exibiu uma efígie pendurada no pescoço.

Conhecia. Era um dos tantos gurus indianos, que faziam fortuna às custas da ingenuidade ocidental, Rajneesh ou coisa que o valha.

— Pois foi dele que recebi meu novo nome.

Lembrava agora aquele louva-deus em pose mística em seu estúdio em Paris, voltando de Poona, as ossudas pernas de gafanhoto encolhidas, os pés juntos pelas plantas, mão cadavéricas em gesto de prece:

— Um... — dizia, do fundo de seu ser. Juliano, que andara folheando ao acaso filosofias do Oriente, corrigira timidamente:

— Om.

Olívia Palito desfizera o gesto de prece. Erguendo o indicador da direita, sustentado pelo punho fechado, repetira:

— Um.

Um? A palavra mística não era Om?

— Um... meu querido — e exibia o dedo magérrimo para reforçar a cifra —. Um mês... Faz um mês que não dou uma...

Ali estava, dez ou mais anos depois, aquela sacerdotisa dos ortópteros sentada à sua frente, cotovelos aduncos cravados em duas casas da toalha xadrez. O planeta era uma aldeia.

Dias depois, no mesmo bar, Vanva em toda sua glória. Ou Ivan Vaso Mesopotâmico. De fato, João. Pianista com pretensões de gênio, gaúcho mas não fanático, leitor de Dostoievski e cultor de Scriabin, não iria atender prosaicamente por João, nome mais adequado a carregadores de piano. Donc, Ivan. Vaso Mesopotâmico já era outra história. Inconformado com solene incompreensão dos porto-alegrenses, acabara se travestindo em arqueólogo. Ardendo em desejos de visitar um doce amigo em Nova York, sem um vintém no bolso, apostara tudo — “menos a reputação, que esta jamais tive” — em um vaso antigo, garimpado num bric-à-brac da Rua da Praia. Vaso em punho, foi ao Rio, onde o depositou em um cofre do Banco do Brasil, convocou duas ou três múmias de um instituto histórico ou geográfico qualquer, solicitando um parecer sobre a idade daquele objeto encontrado em escavações no Iraque, suspeitava que pertencesse ao período áureo da cultura mesopotâmica. Do que discordaram os especialistas, sugerindo que pertenceria à época bem mais recuada no tempo, quem sabe aos sumérios — “de sumárias eras”, acrescentava Vanva, quase chorando de rir — o que lhe valeu um bilhete de ida-e-volta a Nova York e mais diárias para submeter ao carbono 14 o vaso compra no bric. Daí o apelido, bem mais pertinente que Bodira. Aportara à ilha com projetos muito definidos:

— Em matéria de frutos do mar, prefiro surfistas. Vou pôr gerações no vício.

Trabalhava — não conseguia conjugar o verbo sem rir — como arqueólogo em uma das tantas ESCs da ilha. Preferia que o chamassem de Ivan Vaso de Todos os Homens. Vanva, para os íntimos. Que não eram poucos.

O que atribuía ao acaso, aqueles reencontros insólitos sempre no mesmo bar, foi aos poucos desvelando seu caráter de necessidade. O Kibe era algo como um desses promontórios ou recifes de alto mar, pausa e repouso inevitáveis de aves de arribação. Os espécimes iam chegando e tomando posse de suas mesas, para ninguém constituíria surpresa tropeçar ali com qualquer outra pessoa pela qual cruzara um dia qualquer em um ponto qualquer do globo. Robert le Rouge, não se fez esperar. Mal o viu escorado no balcão, Juliano atacou pelas costas:

— Sdrasvuitche, tovaritch! Já sabes desenhar uma caixa de fósforos?

Sentiu que lhe havia jogado um balde de gelo na nuca. O cabra da peste levou alguns segundos para reagir ao choque térmico, parecia recusar-se a acreditar no que ouvia.

Nordestino do Ceará, fora estudar arquitetura na Patrice Lumumba. Soube que no mundo já existiam sapatos em Porto Alegre, por onde passara para apanhar um barco em Buenos Aires, até então não via porque não enfrentar com sandálias de dedo o inverno russo. Juliano o encontrara em Paris, onde fizera escala rumo à Nova Jerusalém. Hospedara-o por uma noite, sem conseguir furtar-se à gozação:

— Sabes desenhar caixas de fósforo?

— Onde é que ôce qué chegá?

Não queria chegar a lugar nenhum. Se sabia desenhar caixas de fósforo, podia considerar-se doutor em arquitetura soviética. O cearense se fechou em copas, quis fazer as malas e procurar hotel. Juliano tranqüilizou-o, estavam em Paris, democracia burguesa, é verdade, mas terra de franco debate, não precisava temer um gulag na Sibéria por divergências ideológicas. Tinha bolsa por quantos anos?

— Cinco — respondeu mais confiado —. Um ano de russo e quatro de arquitetura.

— Então me manda um postal de Estocolmo — pediu.

Não entendia:

— Vou pra Moscou, já disse.

— Ótimo! Então manda um postal de Estocolmo.

O cearense não entendia mais nada, ia fazer uma bolsa em Moscou, cinco anos na Patrice...

— Meu anjo, não vais ficar nem cinco meses por lá. Depois do Sul Maravilha, do vinho e churrasco, achas que agüentas meio ano no paraíso socialista? Me manda um postal de Estocolmo, que é onde vão lavar pratos os bolsistas da Patrice.

Saíra furioso de Paris, xingando-o de reacionário e burguês. E ali estava, no Kibe, caneco em punho, matando as saudades de um chope gelado. Antes que conseguisse falar, Juliano insistiu:

— Sem falar que me deves um postal de Estocolmo.

Acuado, Robert le Rouge preferiu render-se:

— Não deu, cara. Nas primeiras férias, voltei voando pra terrinha.

Sem falar na Velha Europa, de idade e origens absolutamente indefiníveis, epiderme tinindo de tensa após o trabalho de não poucos bisturis, rosto límpido de adolescente, nádegas durinhas de muito footing, olhar de serpente hipnotizando passarinho. Por aquela boca — assegurava Taba — terão passado léguas e léguas de piça. Mais conhecida como Santa, que tampouco era seu nome, muito menos ironia. Segundo a lenda — e tudo era lendário em torno a ela — chamava-se, ou chamara-se, Catarina, e um belo dia decidiu acrescentar o Santa ao nome.

Ainda segundo Taba, fonte privilegiada de informações, o belo dia ocorrera lá pelo outono de 70, “mal Paulo VI proclamou doutora a analfabeta de Siena, ela começou a rolar na areia, justo aqui em frente aos Três Irmãos, se arrancava os cabelos e fazia votos de não mais pecar”. Mas a carne, como sempre, parecia ter levado a melhor. Para seu uso pessoal e entre amigos, Taba rebatizou a Santa. Em seu jargão, era agora Velha Europa: putíssima o ano todo e casta quando lhe convinha.

Juliano a desconhecia em seus dias de Santa — constava que coincidiam com a Paixão — mas não deixava de nutrir-lhe uma cálida simpatia, talvez até mesmo eivada de algum desejo. Que mais não fosse, era algo insólito em meio à pacatez ilhoa, vê-la rebolando furiosamente sobre uma mesa de bar — “guarda, babbo mio, guarda!” — e cantando, mesmo para espanto de Vanva, cujos olhos cansados já haviam visto não poucas coisas: “Ay que toma! Ay que toma! Ay que toma! Mi culito es de goma!”

Princesa incaica, imaginava Juliano, deve ter descoberto há alguns séculos a fonte da juventude e não conta para ninguém. Coroava sua lenda uma expulsão de Teerã, andava por lá fazendo dança de ventre pra persa nenhum botar defeito. Só que em hora pouco propícia. Exibia seus dotes para a galera justo no dia em que o aiatolá Khomeini reentrava solenemente em sua paróquia para expulsar o grande Satã ocidental: “Saí de calças na mão”, confirmava Velha Europa, e não falava por metáforas.

Tampouco faltaria um Cristo. Alto e louro, envolto em uma túnica branca, gestos largos e messiânicos, pregava sob a figueira da Praça Xivi, sempre assistido por duas sensuais samaritanas. Havia voltado à terra e escolhera a ilha para fundar a nova igreja, a que salvaria o mundo. Estes constituíam os espécimes mais coloridos e berrantes da fauna, já que a maioria daqueles seres preferia — e alguns precisavam, por razões de segurança — exercitar um certo mimetismo que os protegesse da curiosidade pública. Lembravam um pouco o arapuã, pássaro daquelas paragens, com ares de espécie em extinção. Visto pelo dorso, era de uma coloração cinza e muito sem graça, perfeitamente camuflável junto às pedras dos morros. Asas abertas e visto por baixo, era de um colorido psicodélico, charme que só ousava exibir longe do verão e dos turistas. Homossexuais em busca de um clima mais respirável, ex-guerrilheiros que haviam trocado o fuzil por um violão, mineiras fugindo de maridos ferozes, gaúchas dando um tempo ao tempo enquanto gestavam um feto embaraçoso, mais a grande massa daqueles habitantes de capitais que simplesmente fugiam da violência e poluição das metrópoles. Não poucos pontos comuns os irmanavam: tolerância, drogas, sexo livre e certo descaso em relação a dinheiro e posses. De um modo geral, todos haviam perambulado pelo planetinha. Impelidos por 64, ou mesmo pelo humano desejo de mudar de geografia, tinham como patrimônio afetivo comum as ruas de Paris ou Berlim, Roma ou Barcelona. A ilha não era apenas fuga, mas também repouso, pausa para meditação. Outro fator comum — observaria Juliano com o decorrer do tempo — era a perda da identidade passada e aquisição de um apelido, sempre ligado a uma circunstância pessoal qualquer. Qual novo nome o esperaria e quais circunstâncias o definiriam? Bagual evocava pampa e juventude, não combinava com ilha e climatério.

Taba parecia escapar ao novo batismo, era Taba simplesmente, tanto na SETESC onde ganhava amargamente seus tragos cantando as belezas naturais “desta bosta de ilha”, como nos bares da Barra ou da Lagoa. Ninguém mais lembrava, talvez exceto Juliano, que um dia se chamara Tabajara. Em matéria de mimetismo deixava léguas atrás o arapuã, era estimado onde quer que chegasse, embora sempre detestasse todo lugar onde entrava. Sua capacidade de camuflagem tinha raízes nos anos de reportagem, bom jornalista, dizia, é o que pergunta como quem não quer saber nada, o que dá ao interlocutor a certeza de que acreditou na resposta. Por outro lado, todo apelido tinha algo de derrisão, sempre procurava acentuar qualquer coisa pouco confessável do portador. O que talvez explicasse a imunidade de Taba: era universalmente generoso, estendia a mão a amigos e a pessoas que sabia inimigos, no fundo acreditava que o mais rancoroso dos desafetos — “não sei se me engano” — sempre seria sensível a um gesto de humanidade. Postura que não excluía uma cáustica visão da ilha:

— Robinson de alguma forma teve de batizar o ilhéu. Mas teve a chance de conviver com apenas um Sexta-feira. Aqui é Sexta-feira a semana toda e por todos os lados.

Pausa teórica para observar a reação do interlocutor. Na verdade, não pretendia passar-lhe a palavra.

— Não que os nativos não tenham atitudes liberais — continuava, os lábios já se prolongando em um riso interior, sinal inequívoco de que deles brotariam surpreendentes revelações —. Eles — e acentuava o pronome — superaram tabus que nem nós um dia sonhamos superar.

Esperava uma manifestação de interesse para não se sentir monologando.

— Que tabus, Taba?

— Tudo é incesto nesta terra, Bagual. Cada bolsão da ilha, um tipo de rosto. Observa os nativos cá da Barra. São relativamente altos, o que é raro nesta geografia. Rosto comprido, eqüino, dentuços, maxilar prognata. Na Lagoa, e olha que a Lagoa fica a uma légua daqui, lá vai predominar outro tipo, anóide e desmilingüido, testa curta, aprognata, nariz esborrachado. Descobri isto por acaso. Como tu, jamais tive carro. No ônibus, observava os que desciam na Lagoa para ficar por perto e sentar. Bastou uma semana para intuir que, se ficasse ao lado de um anóide de nariz esborrachado, já teria lugar na Avenida das Rendeiras. Depois do Retiro, só restavam os de cara de cavalo. Tudo incesto, tche!

Exagerava, o velho Taba. Fazia parte de seu temperamento e de seu próprio passado. Não havia criado e recriado a história do Asdrúbal? O fato é que Asdrúbal existira, todos o lembravam na Barra. Mas não podia deixar de admirar no jornalista de botinas penduradas sua capacidade de justapor uma pincelada surrealista à sensaboria da realidade cotidiana, sua facilidade de respingá-las com gotas de esperpento.

* * *

DO GLOSSÁRIO DE TABA

PARA ENTENDER A ILHA

Amigo — Qualquer um. “Oi, amigo, como vai?”. Saudação perfeitamente permissível a pessoa totalmente desconhecida.

Auma — Princípio de vida, segundo o Aurélio. Entidade a que se atribuem, por necessidade de um princípio de unificação, as características essenciais à vida e ao pensamento. Ou seja, alma. V. g.: sauva tua auma.

Aumadén Pinóti — A interpretação não exige maiores pesquisas lingüísticas. Trata-se de um Pinot noir Almadén, de Santana do Livramento.

Barriga verde — Ver Limo.

Bumbum — Ver Miss Bumbum.

Camarão à la grega à la ilha de Santa Catarina — Camarão “recheado” com queijo, acompanhado de arroz com cenoura e hipotéticas passas de uva. Porque à la grega, nem os gregos sabem. À la ilha nada tem a ver com à l’ail. É à la ilha porque é, e fim de papo.

Camarão à la ilha e óleo — Para bom entendedor, corruptela de à l’ail. Camarão com alho, frito em banha reciclada ad aeternum.

Camarão recheado — O que seria insóltio. Trata-se, em verdade, de uma massa de farinha que tem como recheio o que seria recheado. Fruto não do mar, mas da lógica ilhoa.

Campos universitário — A primeira vista, campos onde “os universitário” pastam. Mas não: ônibus que leva ao campus.

Catarinárias — Vários gaúchos reunidos na ilha conversando sobre ela. Ou mesmo longe dela, se nela já viveram.

Catarinicidade — Enteléquia do ilhéu. A palavra tem acepções diametralmente opostas, dependendo se for dito por gente de fora ou gente nossa.

Cátis Vain — Parece que é um vinho.

Caução — Traje de banho masculino, calção. Jamais deixar caução por garrafas em bar para não receber um calção de volta.

Chapéu — Ver Gaúcho.

Chatô Brian — Château Briand, à primeira vista. Talvez castelo, quem sabe vinho. Mas não. Trata-se em verdade de filé à Chateaubriand, só que em vez de grelhado e sangrando o bife — pois de bife se trata — vem torrando e fumegando. Em falta de pommes de terre soufflées vai batatinha frita na mesma banha do camarão à la ilha e óleo. Em falta de agrião vai uma alfacinha, que quem não sabe comer tampouco sabe reclamar.

Circo — ver Gaúcho.

Corrupção — Vício administrativo bravamente denunciado pelos intelectuais de Laputa, quando ocorre no Amazonas, Ceará ou Cochinchina.

Desencatarinamento — Fase imediatamente posterior ao encatarinamento. Ocorre em geral três a seis meses depois deste.

Encatarinamento — Estado de espírito provocado pelo fato de um dia ter-se visitado ou vivido poucos dias ou semanas na Ilha de Santa Catarina. Encantamento com a geografia, belezas naturais e pragmática cordialidade dos insulares. Enamoramento, encanto, encantarinamento. Daí

Encatarinar-se ou

Encantarinar-se — Encantar-se com a ilha, suas praias, morros e dunas, seu verde e seu azul, pescadores e rendeiras. Esquecer-se que ilhas são sempre ilhas, que pescadores e rendeiras apenas pescam e rendam, isso quando pelo menos pescam e rendam.

Filé à la guarani — Nada a ver com eventuais culinárias indígenas. Bife com guarnição. Do francês fillet garni, corrigido por algum restaurador (sic!) mais criativo para filé à la garni, transcrito mais tarde por algum garçom (resic!) com espírito de iniciativa e desejo de entender o mundo para filé à la guarani.

Filé à inglesa — Sem comentários.

Filé à la moda do chefe — Talvez à moda do chefe de polícia, pois Chef, que é bom, a ilha jamais conheceu.

Filé de peixe ao molho São Jaquês — Prato de dificílima intelecção, onde por São Jaquês deve-se entender, supomos, Saint Jacques e, por extensão, coquilles Saint Jacques, o Ostracus malacus do Cantábrico, portado pelos cristãos como prova da peregrinação à Santiago de Compostela. Não sendo a ilha banhada por águas cantábricas, e nela vieiras não passando de um sobrenome, supõe-se que o prato seja um prosaico filé de tainha frita ao molho de mariscos.

Garoupa à la belle manière — O mesmo criador do filé à la guarani, sempre desejoso de entender o universo, parece assim ter transcrito ou interpretado os pescados à la belle meunière.

Gaúcho — Sabe por que gaúcho usa chapéu? É porque gosta de dar na sombra. O menor circo do mundo? São as bombachas, só cabe um palhaço dentro.

Gente de fora — Todo aquele que atravessa a ponte sem ter nascido ou se corrompido em Laputa. Gentílico em geral atribuído a gaúchos e paranaenses.

Gente nossa — Todo aquele que não é gente de fora. Ver Manezinho da Ilha.

Limo — Sabe por que catarina é barriga verde? Porque gaúcho tem limo nas costas.

Manezinho da Ilha

Miss Bumbum — Espécime feminino muito encontrado em Laputa, cérebro de camarão, única virtude residindo nos glúteos. Com a setorização progressiva dos concursos de beleza feminina, os serviços de turismo talvez promovam, em verões vindouros, o concurso Miss Esfincter. Traga lupa.

Mulher de gaúcho — Ver palmeira.

Paeja valenciana — Paella, provavelmente. Ou melhor, a sombra da sombra na caverna da paella valenciana. Risoto de frango com tainha, vermelhão em vez de açafrão, que este sai caro e a diferença ninguém nota.

Palmeira — Mulher de gaúcho. Pode trepar que não tem galho.

Pato à européia — Prato que sempre ressuscita com tabelamentos de preços. De uma marreca com chucrute tabelada e de um frango com spaghetti também tabelado, surge o pato à européia, com massa e chucrute, mas pelo dobro do preço. Para perplexidade da Europa.

Peixe frito com pirão — Excelência da culinária ilhoa. Peixe frito com pirão.

Piava — Ver veado.

Porta Aberta — imaginoso coquetel ilhéu, vinho com coca-cola. Atenção: na ilha jamais peça coca, assim sem mais nem menos, ou a recebe numa bandeja. Quanto mais nobre o vinho, melhor o porta aberta.

Querido — Ver amigo. Qualquer um. “Querido, que bom te conhecer”.

Táubua — Tábua. Nos jornais, o revisor é a “táubua de sauvação”.

Truta à la suíssa — Truta à la Suíça (sic!). A idéia é a de um peixe escalando o Mont Blanc. Por Mont Blanc vai um molho branco mesmo e por truta vai tainha.

Veado — Você pensa que piava é veado? Piava não é veado, não. Piava dá em qualquer rio, veado só no Rio Grande.

Xis — Sanduíche. Do inglês, cheeseburger, logo chisburgue, chis e finalmente xis, com s tão chiado quanto o x. Variante: X.

Xis-queijo — Sanduíche com queijo. Variante: x-queijo.

* * *

Aproximava-se a Festa da Tainha e Juliano não entendia mais nada. Zefa, sempre sorridente e reboleando os quartos, lhe comunicava que o marido havia telefonado do barco, que havia matado tantas toneladas de peixe e já naquele matar residia sua primeira perplexidade. Admitia que pescar peixes soasse como pleonasmo. Mas matá-los lhe trazia à mente a imagem de um Pithecantropus erectus dando uma cacetada na tainha. Enfim, modos de falar... O que não entendia mesmo era que, quanto mais abundante a safra, mais subia o preço do pescado. Cardumes inundavam o litoral ilhéu, entravam pela Barra e invadiam a Lagoa, ofuscando seu olhar com o reflexo de milhares de dorsos prateados. Só faltavam pular fora dágua, atravessar coleteando a Avenida das Rendeiras e saltar nos fornos dos restaurantes. Teriam os edis ilhéus revogado a lei da oferta e da procura? Precisava consultar Taba.

No sábado depois da dúvida, juntou jornais e revistas da semana. Taba fenescia a olhos vistos, os pés e as pernas inchadas não lhe permitiam grandes andanças e os jornais não chegavam à Barra. Zefa já se habituara a sua mania de pedestre ancestral. Não mais girava o indicador em torno à orelha quando o via repechar o morro da lagoa. Não fosse um incidente, aparentemente anódino, o sábado teria sido perfeito.

Os vizinhos matavam um novilho no descampado atrás do pátio, o território dos queroqueros de sua infância, fora acordado pelo mugido surdo do animal em agonia durante a degola. Olhou pela janela, alguns pescadores mantinham preso por cordas o novilho que se esvaía em sangue. Debruçada na cerca, Princesa — pois assim passara a chamar Marília — olhava excitada o jato vermelho e quente — ele via, sentia, o calor de vida que fugia — que esguichava da garganta do animal, as patas já mal conseguindo sustentar o corpo. Ao sentir sua presença na janela, sem conseguir desviar o olhar do novilho que já começava a dobrar os joelhos, uma voz rouca perguntou, voz de fêmea no cio:

— O professor não gosta de sangue?

Degolar bois ou ovelhas havia sido sua rotina no campo. Mas não gostava. Não sentia prazer algum em degolar um animal. Algo desagradável o acompanhou em sua caminhada até a Barra.

Taba no Três Irmãos, eternamente olhando o mar. Talvez o vazio. Parecia já ter visto tudo o que tinha a ver e de nada lhe valeria desviar o olhar em outra direção. À guisa de saudação, jogou-lhe na mesa os jornais, para roubá-lo àquela contemplação muda.

— Buenas, Bagual. A ilha já começa a te confundir?

Começava. Mas como sabia?

— Basta dar tempo ao tempo, meu guri. Quem passa um fim-de-semana na ilha, pensa tê-la entendido. Se fica dois ou três meses, não entende mais nada.

Desatou ávido o pacote de jornais, os olhos engolindo as manchetes, numa espécie de aperitivo à uma leitura posterior. Gostava de citar Hegel: a leitura dos jornais é minha prece cotidiana. Seu lar era o planeta, que chamava de planetinha. O que mais o apaixonava em Buñuel era aquele seu desejo final em Mon dernier soupir, sair da tumba a cada dez anos, comprar os jornais da semana e voltar, lívido e esgueirando-se rente aos muros, ao abrigo da sepultura. Falava com ar cansado, esvaía-se — Juliano lembrou o novilho e então entendeu seu mal-estar matutino — a olhos vistos sua vontade de viver. Se acontece o pior — pensou Juliano, acometido por dentro de uma vontade de chorar — em vez de flores, levo pro Taba um buquê de jornais. Controlou-se e passou a expor o enigma das tainhas. Marx, se ressuscitasse na ilha, teria de rever suas teorias.

— A ilha não existe, já te disse. É pura ilusão dos sentidos. Claro que puseste isto na conta de um jogo de palavras. Vais acabar concluindo que não é.

Não entendia.

— Estás vendo aquelas postas de peixe frito com pirão, que os íncolas chamam de culinária? Bueno, são postas de tainha. Se achas que é peixe fresco, recém-saído do mar, é porque não conheces a ilha.

Talvez não. Mas conhecia muito bem seu interlocutor. Estavam em plena temporada da tainha, naquele sábado inaugurava-se a Festa da Tainha, frente ao bar os pescadores faziam arrastão e as redes chegavam às praias regurgitando de tainhas. A que sofismas apelaria para negar a evidência?

— Nisto teus sentidos não te enganam. De fato, tudo aquilo é tainha.

Sorveu com lentidão um largo gole de uísque, enrolou-o na língua com prazer de condenado que teve seu último desejo satisfeito, antes de mandá-lo rumo aos neurônios.

— Me proibiram beber. Não pode ser bom médico quem proíbe beber, bem que eu desconfiava da pajelança ilhoa. Por que negar um prazerzinho a quem está de partida? Eles acham que quem bebe é bêbado. Misturam ética com terapia, e eu detesto coquetéis.

Os peixes, já perto da areia, coleteavam com cada vez mais desespero ao sentir a água fugindo. Juliano, que o conhecia de não poucos bares, sabia que agora sua mente funcionaria como um televisor desvairado, fixando-se aleatoriamente nesta ou naquela manchete, lembranças passadas e, quem sabe, até mesmo no assunto em pauta.

— O Halley. Meu pai viu o Halley.

Deteve-se alguns segundos na notícia. Alguém havia registrado o nome Halley como sua propriedade comercial, quem quisesse usá-lo teria de pagar royalties.

— Conseguiram comercializar um cometa. Qualquer dia, acabam projetando comerciais no pôr-de-sol. Horário nobre. Mas o cometinha vai ter de apressar-se se quiser que meus olhos o vejam. Quanto àquelas tainhas, tu não vais sentir nem o cheiro. Estes cem metros, entre nós e a praia, elas jamais os transporão.

As postas de peixe nas mesas eram indubitavelmente de tainha, exalavam um odor de fritura que chegava a infiltrar-se nos poros. Pretenderia Taba desenvolver um novo conto do Asdrúbal?

— Me escuta, meu guri, e aprende enquanto estou vivo.

O refrão anunciava longas catarinárias. Que não se fizeram esperar e rolavam de sua boca como as contas de um rosário, parecia aborrecê-lo repetir ad nauseam o óbvio a mais um encatarinado. Que entre aquelas tainhas pingando frituras, que ele, Juliano, hesitava em comer, e aquelas outras, bonitas, saltitando na praia, não havia parentesco algum. Que as tainhas encharcadas de banha oferecidas aos turistas, eram tainhas da costa gaúcha, estocadas desde o ano anterior no Rio Grande do Sul. Que a tainha que se contorcia ali na praia, de fato era do litoral catarinense, mas dela ilhéus e turistas só veriam a cor. Que se quisesse comer uma delas, apanhasse o primeiro vôo para São Paulo, com sorte chegas antes delas, que é para lá que elas vão. Que a Festa da Tainha não era festa e tampouco tinha tainha, fora criação sua na Secretaria de Turismo, a SETESC.

— De uma ilha, os turistas esperam, no mínimo, peixes. Em julho, gaúchos e tainhas gaúchas, entediados do litoral gaúcho, se dão encontro aqui, nalguma mesa destas.

Segundo Taba, afirmar que onde tem rede em renda era aliteração barata de publicitário em crise de criatividade.

— Rede, vá lá, eles precisam fingir que pescam. Pescar tainha é cartão postal, o turista gosta de tirar fotos participando do arrastão, ou não poderia voltar para casa afirmando ter passado alguns dias numa aldeia idílica de pescadores. Pesca mesmo se faz em alto mar, e lá não tem tainha. Mas renda é pura ficção. Essas toalhas, colchas e chales dessas barracas é tudo confecção industrial, vem do nordeste, São Paulo e até das lojas Renner, lá de Porto Alegre.

Juliano interrompeu-o. A versão em torno às tainhas passava, que mais não fosse já começavam a encostar na Barra caminhões frigoríficos que engoliam metodicamente o produto dos arrastões. Mas ele morava na Avenida das Rendeiras, as velhotas batiam bilro o dia todo, a própria Zefa...

— Tudo encenação. Puro teatro. Claro que as mais velhas sabem rendar. Na temporada posam para os turistas. Ou achas que meia centena de Zefas abastece o milhão de turistas que invade a ilha a cada ano? O pior de tudo, Bagual...

Pediu outro uísque. Dois bons minutos passaram enquanto folheava o último jornal. Despertou com o garçom servindo mais uma dose.

— O pior de tudo, tche, é que atrás de toda peça há um dramaturgo. E o autor desta sou eu.

Voltou a mergulhar em seu mutismo contemplativo, maneira sua de sublinhar uma frase que queria sublinhar. Na praia, gaivotas e crianças disputavam os frutos menores do arrastão.

Porto Alegre, anos 60. Com a morte do Diário de Notícias, uma diáspora de jornalistas saíra em busca do pão em outras plagas, os mais jovens aventuravam Rio ou São Paulo. Ele, que começara lá, de metrópoles só queria distância. Na ilha, começava-se a falar em turismo.

— Dia seguinte, eu estava aqui. Esta gente não tinha jeito nem pra vender pastel. Quando bolei a Festa da Tainha, se arrancaram os pentelhos, que era muito melhor vender o peixe para São Paulo, que até pescador comia sardinha em lata, como fazer festa da tainha se tainha era cara demais para ser consumida na ilha? Longa é a jornada do ilhéu até o entendimento, Bagual. Levei um tempão para convencer os íncolas que eu não tinha vocação alguma para vendedor de peixes. Queria vender a ilha, afinal para isso me pagavam. A festa vingou. Hoje não sei se choro ou choro de tanto rir, vendo a gaúchada subir a serra pra comer tainha gaúcha a preço de caviar.

Um menino de muletas aproximou-se da mesa, capengando, segurava pela cauda uma tainha soberba. Feliz, entregou-a a Taba, com um sorriso de quem se sente privilegiado pela honra de entregá-la, “presente do pessoal da Barra”. Apesar de suas ácidas considerações — certamente reservadas a interlocutores gaúchos — o jornalista era estimado e respeitado em seu território de exílio. Pediu ao garçom de furúnculo supurando sob o olho esquerdo que a guardasse. Mal o aleijadinho deu as costas, riu divertido.

— Ganhaste uma tainha, meu guri, uma das raras que conseguiu atravessar este trecho de areia. Ganhaste, porque eu já nem posso ver tainha. Se não aceito, eles ficam magoados, acham que faço desfeita. Mas falava das festas. Ou dos eventos, como dizemos na SETESC. A Festa da Laranja foi outra criação nossa. O ilhéu pode ser tanso, mas na hora de ganhar dinheiro bota o bestunto a funcionar. Já viste algum laranjal nesta ilha, Bagual? Claro que não. Mas comigo eles descobriram ser possível celebrar o que não existe. A Festa da Laranja foi idéia deles, me apresentaram muito orgulhosos o projeto, o que é que o Dr. acha?

Pausa para um gole prolongado de uísque, como se bebesse vida. Jamais o vira embriagado, o copo era apenas muleta.

Achei ótimo. O continente produz laranjas? Que continue a produzi-las. Nós, da SETESC, vamos vendê-las como frutas da ilha. Daí à Festa do Vinho é um passo. Ou da Maçã. Ou do Queijo. Ou do que nós quisermos. Sei que sentes fracassado como ficcionista. Eu, que jamais tive a pretensão de escrever, me sinto melhor que um Nobel. Não te parece convincente minha primeira peça? Não estão aí os ilhéus representando que pescam, as ilhoas representando que rendam? Olha só que público, que sucesso de bilheteria! Charters de Montevidéu e Buenos Aires, caravanas de Porto Alegre e São Paulo. Que escritor não invejaria tal audiência? Sei, já estás imaginando: todo homem tem seu preço. Mas o jornalismo...

Pausa para olhar o mar. Ou talvez o nada.

— O jornalismo, são águas passadas. Hoje, vivo de ficções. Para muito escritor, isto é sonho. Mas qual grupo social não necessita de ficções? Não das grandes ficções, daquelas profundas, nas quais um escritor aposta sua vida, estas são muito incômodas. O homenzinho nosso de cada dia detesta o escritor profundo, ele só complica seu cotidiano. Mas de ficções mais singelas, com imprimatur da Igreja e do Estado. A Anita...

Vinha chumbo, e chumbo grosso.

— Mais do que os continentes, as ilhas precisam de mitos. Nós, gaúchos, acabamos produzindo a heroína ilhoa.

Nova boutade, no mínimo. Ou iria negar a catarinicidade de Anita?

— Sei... sei... Mas essa pobre coitada, eleita heroína por ter largado o corno do marido e seguido atrás dos lindos olhos azuis do Garibaldi... Em verdade, é produção gaúcha. Ela pode ter nascido não importa onde, mas o movimento que a criou foi um gesto de gaúchos. Não fosse a Revolução Farroupilha, nem vultos os aborígenes teriam para cultuar. Não me acusa de bairrismo. Borges, o tão celebrado Jorge Luís Borges das universidades, que nada tem a ver com o peixe, já escreveu: quem convive com um gaúcho adquire mania de líder. Se bem que não deixa de ser sugestivo, ter como heroína uma mulher que larga o marido. Melhor não falar disso nas escolas.

Os caminhões frigoríficos haviam engolido toda safra do arrastão. Na areia jaziam algumas arraias e peixes menores, alimentando a disputa entre pivetes e gaivotas. Juliano não aceitava — ou talvez começasse a temer um dia ter de aceitar — aquele desalento sem nome, vocação para a entropia, do amigo sempre sarcástico. Nos dias de Porto Alegre, Taba deixava pelo menos entrever uma nesga de esperança. Ele estava chegando, não iria falar do que não conhecia. Mas Taba teria de convir que Porto Alegre havia virado selva de concreto. Enquanto que aquele mar, aqueles morros, o bucolismo daquela paisagem...

— Pode ser... mas com a paisagem eu não consigo conversar.

Uma vida miúda fluía na praia, um arapuã desceu do morro e encarapitou-se em um poste cravado na areia.

— Nem Marx, com suas pretensas leis, explica esta ilha — retomou Taba —. É preciso voltar um pouco mais atrás. Claro que conheces Swift.

Que tinha a ver o deão com a ilha?

— Lembras da viagem à Laputa?

Uma gaivota engasgada com um peixe expulsou o arapuã do poste. À beira da praia desenvolvia-se toda uma outra luta, em nível talvez inferior, mas nem por isso menos luta. Lá vinham mais catarinárias. Para começar, o nível de ruído. Que na segunda manhã em Laputa, Gulliver quase enlouquecera, o povo da ilha tinha os ouvidos adaptados para ouvir a música das esferas e naquela manhã a corte executava sua parte.

— A diferença é que aqui só se ouve a música da corte, jamais a das esferas. Estes analfabetos todos pagos pelo governo, aqueles surfistas ali no mar, financiados pelo Estado para fazer paisagem, que abafam o ruído das ondas com decibéis, isto não é obra minha, desta sou inocente. Já viste povinho mais barulhento que este, Bagual?

Não. Não por acaso, passara a tapar os ouvidos com algodão. Para os ilhéus, descobrira, música igual a rock, decibéis sinônimo de status. Quanto mais watts comportava uma caixa de som, mais prestígio conferia ao animal portador. Taba resolvera o problema a seu modo. Com muita lábia e algumas citações com jeito de bíblicas — no príncipio não havia sons — conseguira vender o óbvio nos Três Irmãos: que civilização era silêncio. Apontou um casario na encosta do morro.

— Lá. Foi lá que descobri que as utopias são inviáveis.

Esboçou num guardanapo o perfil do morro e nele incrustou um retângulo perto do topo, apoiado sobre uma base estreita. Era a tira de terra que havia comprado ao chegar na ilha, a preço de banana, o território onde uma vez pretendeu habitar, embalado pelo ruído do mar.

— Meu sonho não durou meio ano, tche!

Desenhou outro retângulo vertical no morro, paralelo a seu terreno.

— Um pescador, um destes seres idílicos quando vistos de longe, comprou a faixa ao lado, ali onde estão aquelas quatro casas. Dividiu o terreno com os filhos, cada um comprou algumas toneladas de decibéis. Eu recebia rock pelo flanco, Teixeirinha por cima, futebol pelo sopé. Tinha escalavrado minhas mãos levantando cercas e paredes, me sentia um Thoreau construindo minha utopia, e a barbárie me ataca com ruídos. Vendi meu refúgio, já semiconstruído, pela metade do que paguei pela tira de mato virgem.

Considerava Swift o melhor analista político da ilha, o único teórico a propor um modelo para explicá-la.

— Na ilha flutuante — continuou, olhar fixo em seu ex-projeto de utopia — vivia a classe dirigente, às custas do trabalho dos homens do continente. Esta gente — e olhou em torno, identificando com o olhar o alvo de seu sarcasmo — esta gente não produz nem mesmo a água que bebe. Se o pessoal do continente ousasse um dia insubordinar-se, era só fechar a torneira e os íncolas morriam de sede. As pontes são canudos, pelas pontes a ilha chupa o sangue do continente.

Swift, para Juliano, eram leituras passadas. Se bem lembrava, em Laputa havia sanções.

— Claro que havia. Em caso de rebelião, o rei estacionava a ilha sobre a cidade amotinada e sobre os campos que a rodeavam. Os rebeldes ficavam sem sol nem chuva. Em casos mais graves, eram bombardeados com pedras. Aqui, a ilha previne qualquer motim abafando o continente com sua sombra corruptora. Bombardeia com cabides de emprego.

Juliano, maravilhado. O jornalismo roubara aos gaúchos um ficcionista dos bons. Justapunha uma frase à outra, uma leitura a um fato, e a realidade circundante tomava novas cores, como a arapuã ao abrir as asas. O que talvez explicasse sua sensação de fracasso, consumira seu talento tentando reelaborar os dados brutos do cotidiano. Se não explicava seu amargor, pelo menos elucidava aquele eterno copo em punho.

— As semelhanças estão longe de acabar. Qual era o sentimento predominante entre os laputianos?

Antes que Juliano aventasse qualquer hipótese, respondeu, dedo em riste dirigido a uma mosca bêbada que trocava pernas pelo xadrez da toalha:

— Medo. Medo de tudo. Medo de que a terra fosse engolida pelo sol. De que o sol deixasse de fornecer luz ao mundo. De que o próximo cometa — e o Halley é para o ano que vem — destruísse a terra. Todas as manhãs, os laputianos se perguntavam pela saúde do sol. Aqui, o medo é de barnabé, todas as manhãs se perguntam pela saúde do governo.

Fim do reboliço do arrastão. Corvos capengas aterrissavam na praia para limpá-la das sobras das gaivotas. A inclinação do sol amaciava o verde dos morros e fazia tender ao cinza o azul do mar. Não fosse o azedume de Taba, força alguma no mundo lhe eliminaria a sensação de estar tomando um trago numa das tascas do paraíso.

— Continuando: as mulheres de Laputa eram dotadas de grande vivacidade, detestavam os maridos e adoravam os estrangeiros. Em meio a esta gente de fora, sempre desprezada pela corte, as damas elegiam seus amantes. Se saíam de Laputa, por nada do mundo voltavam à ilha. O homem parece ter previsto a saga de Anita, nem morta voltou para cá. Mas devagar nas pedras, Bagual. Cuidado com elas, que nesta ilha Deus ainda não morreu.

Soava-lhe de forma estranha aquele alerta, estranha mas oportuna. Em seus poucos meses de Lagoa, já constatara um conflito latente. De um lado, havia os íncolas, como dizia Taba, claque irredutível de Deus, Pátria, Família, Fidelidade Conjugal e Virgindade das Filhas Núbeis. Em meio àquela comunidade, quais facas calando melancias, instalara-se a gente de fora, habitantes de uma outra galáxia, onde sexo, drogas e a ausência de qualquer dogma constituíam rotina. Marília esperava o amor olhando o mar, ou melhor, a novela das oito. Ao mesmo tempo espumava no entrecoxa ao ver os casais dando livre vazão a seus ímpetos, nas praias ou carros, sempreocupação alguma quanto ao que deles pensassem eventuais observadores. Certa madrugada, ao sair ao pátio para respirar a noite, viu um casalzinho se tratando sob um poste de luz. Sentiu a seu lado outra presença, virou-se e viu, meio à penumbra, Princesa seminua. Dela só via o torso, estremeções lhe percorriam os ombros enquanto titilava furiosamente o sexo e abraçava um bonequinho qualquer. Uma mescla de medo e desejo lhe percorreu a coluna, mais medo do que desejo. Entendia Taba.

— Mas o melhor mesmo é a Academia de Lagado. Swift anteviu a própria ALESC.

Os corvos davam por terminada sua faxina e começavam a tomar altura em espirais, ao sabor das correntes quentes. Taba, feliz por ter ao lado um interlocutor, retomou o massacre. Que os acadêmicos de Lagado eram intelectuais sustentados pelo trabalho escravo do continente para discutir bizantinices. Um deles, há oito anos, pesquisava como extrair raios de sol dos pepinos. Que outro pretendia reconverter o excremento humano nos alimentos originais. Que um terceiro queria transformar o gelo em pólvora, por calcinação. Havia os que amaciavam o mármore para fazer travesseiros e os que petrificavam os cascos dos cavalos, para salvá-los do atroamento.

— Isto não te lembra nada?

Não. Onde queria chegar?

— É que ainda não conheces os mecanismos de poder da ilha. O santo dos santos é a ALESC, a Academia de Letras do Estado de Santa Catarina — enunciava Taba, empostando a voz —. Os imortais estão buscando até hoje a tal de identidade cultural. Ora, em uma ilha que nada produz a não ser paisagem, extrair raios de sol de um pepino é projeto bem mais factível.

Praia já quase deserta, pescadores empurrando barcos rumo a barracos.

— Quarenta medíocres emperiquitados posando de escritores, tche! Mais da metade não tem um livro sequer publicado. Os que escrevem produzem uma espécie de realismo-socialista insular onde cantam o azul do mar e o verde dos morros. Como se literatura tivesse por função atrair turistas. Ora, isto é função minha, mas nem por isso me julgo escritor. Claro que não recebem um vintém pelo fato de serem acadêmicos, jamais cometeriam tal sacrilégio, ars gratia artis! Mas cada um têm em média três ou quatro cargos públicos. Onde, em qualquer lugar do mundo, viste quarenta pessoas ocupando mais de cem empregos? Nem nas Mil e Uma Noites. Ali Babá e os seus tinham de lutar pela vida.

Mar e morro começavam a confundir-se em um gris indistinto.

— Não há poeta medíocre — concluiu — que não seja candidato potencial a um cargo público.

Chamou o garçom carbunculoso e ordenou mais uma dose com um gesto de polegar.

— O Dr. Notório... Já ouviste falar do Doutor Notório Saber?

Conhecia vários. Era a fórmula mais cômoda encontrada pela universidade para aumentar salários de professores incapazes de uma pesquisa. Eram geralmente gordos e velhos. O garçom pendeu a pústula sobre a mesa e serviu dois uísques.

— É velho e esbelto, adora expor as louras barbas ao vento declamando poemas debaixo da figueira da Praça Xivi. Physique du rôle é o que não lhe falta. Fundou a ALESC, o Machado ilhéu, líder inconteste dos imortais de Laputa.

Sorveu o álcool com ganas, ar de quem quer morrer em pleno gozo.

— Minha modéstia me impede de declinar a graça de quem o batizou, é claro. Pois o homem revelou-se um personagem que escritor algum jamais conceberia — e já começava a rir antecipando o relato — um desses seres que só a realidade é capaz de criar. Fundou a tal de acadêmia há várias décadas e voltou para comemorar seus quarenta anos. Até aí nada demais — e recomeçava a rir, aos tropeços, ríctus doloroso de asmático — mas não é que o homem volta com próprio busto debaixo do braço. Quer fincá-lo não importa onde. Tentou na praça Xivi, a prefeitura barrou. Tentou “os campos universitário”, mas não esperava que “os universitário” chiassem. Tomou de assalto o salão nobre da Assembléia e os deputados acharam que, busto por busto, melhor o deles.

Ria, a carcaça sacudida por convulsões.

— Dr. Notório... Esse, nem eu, nem tu, nem Kafka ou Ionesco conceberiam. Só a ilha mesmo, esta ilha e nenhuma outra.

A tarde também morria.

Parecia nutrir-se de uma relação de amor e ódio ante a ilha. Juliano seria o último dos homens a reprová-lo. Não alimentara a mesma atitude em relação a Paris? Alguns anos já haviam transcorrido desde sua volta e ainda não descobrira se amava ou detestava aquela mulher. Pois Paris só podia ser mulher, homem algum cultiva tais ambivalências em relação a um outro homem. Mas Paris era passagem, sempre havido sido para todo estrangeiro em busca de si. Era também passado. O melhor lugar do mundo — considerava com seus botões — é aquele onde estou. Onde estava voluntariamente, bem entendido, que jamais estamos por prazer ou livre opção em uma cadeia ou hospital. Poderia ter tentado Porto Alegre, São Paulo ou Curitiba, o Brasil não era um Uruguai, onde fora de Montevidéu não havia salvação. Ou Madri ou Lisboa, onde se sentia em casa. Mas preferira a ilha e nela estava bem, sem entender o azedume de Taba.

Vivia longe de relógios. Despertava com uma orquestra insana oficiando um caótico concerto no viveiro da Zefa, canários e caturritas afinando violinos e serrotes, corruíras chiando assustadas com alguma ameaça, em meio às vozes confusas de sabiás, tucanos, pica-paus e bem-te-vis, a bicharada menor em cárcere privado, os maiores observando de fora os presidiários. Sem falar nas gargalhadas histéricas do joão-de-barro, de rancho instalado no poste de luz frente à casa, e a cantoria toda pontuada pela bigorna da araponga. No campo ao fundo da casa, quero-queros revoando com gritos de guerra em época de postura. Tudo era Éden. Ou talvez nem tanto. O pequinês da Zefa aparecera frente à casa. Apanhou-o pela pele do pescoço, ferimento nenhum que pudesse indicar atropelamento ou pauladas. Mas o pênis pendia informe, inchado demais para o pequeno porte do animal, inchado e mutilado. Entendeu então os gemidos de Princesa no silêncio da noite. Sua silhueta parecia morder e brincar com um ursinho de pelúcia.

* * *

— Los frutos de este árbol son tan variados como lo son los pecados. Algunas personas no ven que son frutos propios para animales: son los que viven en la inmundicia, haciendo com su carne y con su espíritu lo que hace el puerco, que se revuelca en el lodo de la carnalidad. Almas embrutecidas! Dónde habéis dejado la dignidad? Habéis sido hermanos de los ángeles y os hán convertido en sucias bestias!

Da sacada do Pólis, escorado em uma cerveja, Juliano contemplava a fauna miúda que desembocava na Praça Xivi. Era sábado. “Ay que toma, ay que toma, ay que toma, mi culito es de goma”. Para observar o mundo bastavam poucos metros de altura. Quem enunciara mesmo aquela evidência? Lembrava de um velhote em um filme polonês, Um dia, um gato. O balcão do restaurante estaria a uns quatro ou cinco metros do solo, lhe permitia visão de conjunto daquele universo de seres. Talvez se pretendessem livres, sem sequer perceber que faziam todos os dias, inexoravelmente, o mesmo percurso. À frente, a “antiga figueira onde vou ler meu jornal”, que rendia rimas atrozes com a “velha rendeira tradicional”, no estro dos candidatos locais ao Parnaso. “Parece que foi à sombra de sua ramada cúmplice que Garibaldi conheceu Anita”, ria Taba sozinho, e continuava criando: “foi ali que Saint-Exupéry concebeu O Pequeno Príncipe, o baobá aquele não era um baobá, mas a figueira. O Cavaleiro da Esperança, quando aterrissou no Campeche para salvar o Brasil do imperialismo ianque, deu três voltas em torno dela de mãozinhas com a Olga Benário e depois de velho perdeu o cabaço. Pode não ser verdade, mas quem vai dizer que não?”

A árvore não negava sua sombra a turistas e desocupados, loucos místicos e loucos mansos, prostitutas de calçada e prostitutas de Estado, filhos da classe média ilhoa a pretexto de atividades culturais atordoando os transeuntes com toneladas de decibéis. Sábado, as putas de Estado pareciam ter deixado a figueira livre, para gáudio da Velha Europa.

— No hay pecado tan abominable como éste. Esto lo comprendieron los filósofos no por la luz de la gracia, que no tenían, sino que la naturaleza les iluminó, es decir, les decía que este pecado vuelve ciego el entendimiento. Esta ilha tem pecado muito contra a carne, o pecado veio pela ponte velha, continua a chegar pela ponte nova e ainda falam em erguer uma terceira ponte, para que a ilha se afogue no pecado. Os dias são chegados, o mal chegará pelas pontes, pela velha e pela nova, e também pela terceira ponte, se terceira ponte houver antes do Dia do Juízo.

— Quem te viu e quem te vê.

Era Bom Cabelo, o garçom. Perplexo, escutava os anátemas de Catarina.

— E ainda se diz santa. O professor conhece essa mulher.

Em parte. Mas queria ouvir nova versão.

— Parece ser argentina.

O garçom girou a mão num gesto de enfado, o mesmo gesto de Zefa ao ouvi-lo dizer que não tinha rádio nem televisor.

— Talvez, professor. Mas antes de ser argentina, paraguaia ou boliviana, que de onde ela veio ninguém sabe, antes de tudo é louca. Não é louca de atar, de manicômio, professor. É louca de puta. Dá o ano todo e quando se aproxima a Semana Santa vem pra baixo da figueira pregar castidade. O professor quer apostar? Mal o Cristo ressuscita, ela sai a fazer striptease em mesa de bar.

Velha Europa, sem concorrência, inundava a praça com seu verbo.

— Este arbol tiene siete ramas, que se inclinan hacia la tierra. De ellas nacen flores y hojas. Son los siete pecados mortales, que se hallan repletos de otros diversos y muy numerosos pecados, unidos a la raíz y al tronco del amor propio y de la soberbia, la cual primeramente ha producido las ramas y las flores de los pensamientos. Después sale la hoja de las palabras y el fruto de las malas obras. Están inclinadas hacia la tierra, es decir, que las ramas de los pecados mortales no se dirigen más que a la tierra de la frivolidad e desordenada sustancia del mundo. Además, como no pueden alimentarse de la tierra, nunca se sacian, y de ahí su insatisfacción. Son insaciables e insoportables a si mismas. Siempre se han de hallar inquietas, inclinadas a desear, a querer las cosas que causan insatisfacción.

Bom Cabelo fremia. Indignado, quase gaguejava:

— Se o professor visse... Melhor nem falar. Mas já que comecei... Sabe, professor, ela esteve aqui, nesta mesa que o senhor gosta, trazia dois adolescentes a tiracolo. Empinou um copo de cerveja de um gole só, olhou para aquelas duas crianças, parecia cobra olhando pra ticotico, professor, e disse: “de mi boca no cae una gota”. E agora, professor, bota banca de virtuosa. Dá pra entender, professor?

Talvez desse. Mas não seria fácil explicar ao garçom. Velha Europa falava várias línguas, o que não implicava higidez mental. A figueira constituía uma tribuna tentadora. Debaixo dela brandiam a palavra não só os malucos de Jeová, mórmons, evangelistas quadrangulares, científicos em Cristo ou coisa que os valha. Para lá afluíam as esquerdas, militantes das diversas seitas do PC, enfim, se algum poeta em busca de rimas pobres cantava a velha figueira tradicional onde em tardes fagueiras ia ler seu jornal, que encontrasse outras imagens para louvá-la, que tudo era possível sob sua copa, menos ler. Santa falava dos ofícios da língua e da boca:

— El alma me habla con la lengua, que está en la boca del santo deseo. En la boca se da la paz y la quietud y mi lengua ha sido creada para darme honor, reconocer sus pecados y trabajar por amor de la virtud y por la salvación del prójimo.

Inquieto, o garçom queria falar. Juliano deu-lhe corda. Que falasse Bom Cabelo.

— Professor...

Viriam grandes revelações, o garçom tentava segurar uma gargalhada antecipada. Ainda escreveria um dia algo intitulado “Os homens de minha vida”. Eram os garçons. Onde quer que estivesse, elegia seu ponto de observação em função deles. Por ofício, deveriam ser discretos. Escolhia o bar menos pela cozinha do que pelo garçom. Sem um cúmplice, nada feito.

— Numa festa do Santíssimo, o professor desculpe, não consigo contar a história sem rir, ela recebeu um pão-por-deus, esses versinhos que as moças recebem nessas festas. Com perdão da má palavra, professor, era assim: “ó Velha Europa sotreta, um dia hás de levar chumbo, pra largar esse vício imundo de andar chupando buceta”.

Ali havia o dedo de Taba, considerou Juliano. Bom Cabelo se afogou em uma gargalhada que lhe avermelhava o rosto.

— Agora a mulher vem dizer que a paz está na boca, que tem língua para salvar o próximo. Desse jeito, professor, quem não quer ser salvo?

A descoberta da figueira por Catarina, ou como quer que se chamasse, segundo Taba fora acidental. Estaria passando pela praça, quando um crente qualquer bradou: “Senhor, vós que disseste...” Ciosa da língua, Velha Europa o teria corrigido: “Vós que dissestes. Vocês, homens da palavra, deveriam saber usá-la”. Como sempre deambulava pela praça, os apóstolos das boas novas falavam baixinho quando ela passava. “Homens de pouca fé, porque silenciais quando vos miro?” Dali a deitar verbo, fora um passo. Sem ter igreja, já tinha platéia.

— Malditas sejam as pontes e malditos sejam os pontífices. Pelas pontes chegam os gaúchos e o pecado, pelas pontes chegam os paulistas e a cocaína, os argentinos e o dólar. Pelas pontes vai chegar o castigo e a ilha só será salva no dia em que caírem as pontes, malditas sejam!

Vanva. Chegou e sentou, sem mais palavras. Perplexo. Pegou com força a mão de Juliano. Bom Cabelo tornou-se frio e impessoal, como se tivesse de servir o próprio mal.

— Mataram metade da vida, meu apóstata querido. Minto. Mais da metade.

Um sargento da polícia feminina postou-se junto à sacada, apito em punho. Olhos de um azul que chamavam a um mergulho sem volta. Vanva só tinha uma objeção, preferia um sargento legítimo. “Não fazem mais sargentos como antigamente”, costumava suspirar em seus dias de bom humor. Juliano sentiu a mão percorrer-lhe o braço para fixar-se junto ao cotovelo. O garçom desertou da sacada.

— Deviam erguer-nos um monumento — retomou Vanva, voz embargada, olhos vazios, rosto chupado —. Nós reinventamos a orgia, nós instalamos a utopia neste século triste. As saunas todas do Ocidente, de Paris a Nova York, de Sampa a Floripa, eram territórios de livre fantasia. No melhor da festa, surge a peste. Praga do Vaticano, só pode ser, disso não tenho a menor dúvida. Quando algo de ruim acontece no mundo, a culpa é do papa. Enquanto a ciência não conjura o mal — dizia, quebrando teatralmente o pulso — vamos viver o interregno da punheta. Eu, minha mão e Deus...

As nuvens do Cambirela, encimando a Baía Sul, prenunciavam chuva, pelo menos segundo a ótica de Bom Cabelo. O garçom adorava divulgar os feitos de Velha Europa, mas dava no pé mal via Vanva. Na praça, os flamboyants circundavam a figueira como um herpes de vermelho histérico. Indiferença absoluta de Vanva ante aquela manhã gloriosa, que qualquer deus se orgulharia de assinar embaixo.

— Sete são os dias da semana, sete são as colinas de Roma e sete são as curvas do morro da Lagoa — continuava Catarina sua cabala —. Pelas três pontes entrará o pecado montado em seu castigo, e pelas sete curvas do morro inundará a Lagoa e as praias da ilha. Por sete anos o mal vai incubar. Quando caírem as pontes e for chegado o dia, só vai ficar de pé quem não pecou.

Bom Cabelo, ríspido, interroga Vanva.

— Um cerveja, meu querido, antes que o mundo acabe. Mataram metade da vida, Juliano. Metade e mais um pouco.

Continuavam com os antebraços colados, para asco do garçom, indeciso entre a estima ao “professor” e a ojeriza ante o “anormal”. Juliano procurou-lhe os olhos. Para sua surpresa, descobriu-os verdes. Nada ficavam a dever aos da sargenta cheia de formas e apito, que mais pelas primeiras parava o trânsito frente ao Pólis. Um bom lugar para morrer... Começava a entender Taba. Vanva estava vivo, tanto que sofria. Ao mesmo tempo estava morto, nele não mais existia o pianista e os sonhos do pianista. Eventuais concertos em salas poeirentas, piano desafinado e público analfabeto, o faziam mergulhar no álcool e xingar a mãe, onde já se viu batizar um filho com meu nome e recomendá-lo às musas, melhor me abortasse ou comprasse uma sanfona, João da Gaita, ça va! Trajava um terno folgado de linho branco, camisa verde de amplas golas avançando pelos ombros, cabelos e leve moustache impecáveis, relógio de ouro cintilando ao pulso, todo um charme de sátiro consciente de que dali em diante tudo é descida. Vanva tinha então olhos verdes! Jamais se preocupara com a cor dos olhos de seus interlocutores. A sargenta era uma exceção, aquelas duas moedas imensas brilhavam ao longe.

— Sei que teu negócio é mulher, Juliano. Acho que sei, vida sexual sempre é uma surpresa. Mas mulher alguma vai te dar o que um homem te daria. Não ri, não pretendo te pôr no vício. Na mulher, o desejo não se deixa ver, é discreto. Um, dois, três machos de falo em riste, meu querido, o ângulo do cacete insinuando a intensidade da tesão, aquela alegria de criança que ainda não ouviu falar de pecado, nessa altura todo mundo vira criança curtindo o próprio corpo e dele extraindo prazer. Tudo isso eu vivi, aquelas cirandas que não se sabe onde acabam ou começam, orgasmos rápidos e angustiados, ou lentos ou mesmo orgasmo algum, apenas tensão, ah!, isso tu não conheces. Mulher, quando a gente propõe uma orgia, pensa logo em feijoada ou espeto corrido. A utopia estava aqui, ao alcance da mão, não precisamos mais nos refugiar no Fédon ou no Banquete, chega de alegar que Platão era, que Sócrates era, que Cervantes também, e parece que até mesmo Cristo era chegado ao bom esporte. Mecanismos de defesa de bicha erudita, as metafísicas, precisam de pioneiros ilustres e sólidos antecedentes para entregar-se ao que o corpo pede.

Vanva falava com verve, excitado, como se quisesse conjurar as pragas de Velha Europa. Enquanto aquele amor de sargento — precisaria mesmo de apito para parar o trânsito? — retinha os carros, uma tropa saltitante de harekrishnas invadia a praça Xivi, chocalhos e tambores abafando o apocalipse.

— O tempo entre meu desejo e a satisfação de meu desejo, Juliano, é a distância entre um olhar e o quarto mais próximo. Nem precisa ser quarto, pode ser um mictório interessante. Dispensamos palavras, torneios, identidade. Isto é, dispensávamos. A alegria da trepada anônima, a excitação do desconhecido, tudo é passado. Hoje, quem tem cu tem medo.

Aquele humor abrupto rematava com uma estocada rasteira as mais nobres considerações humanísticas. Vanva não ria, parecia estar mais perto de chorar.

— Os tempos são chegados — esbravejava Santa, tentando sobrepor a voz aos harekrisnas, o que exigia não pouco de seus escassos pulmões —. Mensageiro é o que não nos falta, o cometa é o primeiro. Mas o cometa não traz a morte. É só um alerta aos que quiserem abandonar o pecado e fugir da morte. Que os pecadores ergam os olhos aos céus desta ilha pecadora. Quando virem a estrela de sete caudas, seus dias serão chegados.

— Eles são ótimos! — sorriu Vanva, soltando o braço de Juliano —. Do jeito que vão as coisas, apostar no apolicapse é aposta ganha. O cometa é sempre pontual. Se a peste se faz esperar, há sempre guerras, medo nuclear. Só perde quem aposta na vida.

Pelo outro lado da praça, avançavam outros pregadores, cercados de mulheres de rosto sem expressão e cabelos pelos quadris. Que os anos e os dias estivessem contados, era uma questão de fé. Que os minutos de Velha Europa chegavam ao fim era uma evidência. Em meia hora, a figueira abrigaria mais profetas que as margens do Jordão nos dias de Cristo.

— Aquela rodinha ao lado da banca de jornais — retornou Vanva —. Olha só as poses de macho e os bigodes de piaçava. Mais da metade deles são meus parceiros de sauna. Talvez todos, no escuro o que menos interessa é o rosto. Outro dia, no café da esquina, olhei em torno e não havia um só no balcão que eu não tivesse transado. Todos muito viris, muitos senhores de si, contando proezas de motéis. Vai por mim, meu Juliano apóstata, quanto mais espesso o bigode mais adoram chupar um mate e eu os perdôo porque eles sabem o que fazem, afinal quem não gosta do bem bom? Pau duro não tem amigo.

Dissessem os gaúchos o que quisessem sobre a ilha, Juliano nela não se sentia mal. Fascinava-o aquela confluência de universos paralelos, diversos mas no fundo um só. Os seres humanos, por mais peculiares que se pretendessem, eram todos feitos do mesmo barro. Bom Cabelo o estimava e se divertia às custas de Catarina. Mas o braço de Vanva colado ao seu perturbava a Weltanschaaung do garçom. Os machíssimos senhores que enrubesceriam se Vanva os cumprimentasse na rua, certamente o teriam visto na sacada, que mais não fosse falava com o mesmo entusiasmo de Velha Europa brandindo o apocalipse. Se o haviam visto sentiam-se também vistos. Para todos os efeitos ninguém conhecia ninguém. As proposições dos místicos que pregavam a todos azimutes tampouco constituíam novidade, diferentes rebanhos de ingênuos seduzidos por alguns vivaldinos em busca de dinheiro e poder. Se algo de misterioso restava naquele campo de observação, estava ali à sua frente, poucos metros abaixo, o sargento cheio de charme que comandava os carros com um grácil gesto de ancas. Ou talvez não houvesse mistério algum. Terminado seu turno, provavelmente ela se aplastaria ante um vídeo, sonhando os sonhos cuidadosamente confeccionados pela rede Globo. Pela esquerda, anunciando o meio-dia, reboaram os sinos da catedral, os bronzes dominando o alarido ecumênico da praça. “Dois mil anos dá um puta prestígio” — pensou Juliano — “sacerdote algum de tal seita precisa fazer proselitismo debaixo de figueiras”.

— Tenho peninha é das maridas...

Vanva ainda não dera por concluído seu raciocínio.

— Elas se enfeitam, se julgam sensualíssimas, quando os machões só conseguem erguer o cacete evocando as tardes de sauna.

Vencida pelos sinos, tambores e pelo verbo de outros deuses, Velha Europa deu por encerrada sua pregação. Pelo apocalipse ninguém perdia por esperar.

— Ela vem para cá, Professor — alertou o garçom —. Tão certo como Deus existe, vai sentar na sua mesa.

Nem uma coisa nem outra eram evidentes para Juliano. Adivinhava em Bom Cabelo um secreto prazer em opor, a Vanva, a Velha Europa.

Ilhas. Geografia à parte, o que fazia uma ilha ser ilha? — se perguntava Juliano. Algo nas ilhas atraía aqueles seres. Velha Europa desfilava gloriosa por entre as mesas do Pólis, rumo à sacada. Abraçou Vanva com efusão, o garçom já não entendia mais nada, há pouco não prometia a mulher o fogo do inferno para os pecadores? Para Juliano, dirigiu um olhar quente e dúbia saudação.

— Recuerdate, hombre, que éres polvo y al polvo revertirás.

Sem sequer imaginar o que estava atrás do trocadilho do pássaro exótico, Bom Cabelo esforçava-se para ser gentil. Vanva pediu um copo.

— Porque el hombre — arrematou ao sentar-se — no es hecho de carne, sino de polvo.

Manipulava a seu grado a língua que lhe convinha, conseguia manifestar seu gosto pela foda enquanto o público externo a julgava brandindo o apocalipse. “Pra tansa não serve”, ponderou Juliano. Vanva, cosmopolita e safado, ria sozinho, olhar perdido em algum ponto das nuvens do Cambirela. Surpreendeu-se já quase ilhéu. Tanso: ao ouvir pela primeira vez a palavra, fez que a entendia, em verdade jamais a ouvira. Taba o advertira: nesta ilha, ou és tanso ou viras tenso, hipertanso ou hipertenso, não há meio termo. O garçom serviu divertido Velha Europa e postou-se no outro canto da sacada, orelha em riste.

Tinha qualquer coisa de francês, quiçás de eslavo, nas guturais, algo de quem aprendeu muitas línguas ou fragmentos de língua nos leitos da vida. Gabava-se de ter feito toda a Europa, da Itália ao Ártico de carona, “quem tem boca vai a Roma”. Vanva se deliciava com suas considerações sobre uma matéria que, em falta de melhor nome, definia como cunilinguística indoeuropéia comparada: “Mon Dieu, como se chupa en el Ocidente. C’est pas comme ça en Pologne. Allá las nenas lo llevan por delante y par derrière, pero la boca solo tienen para hostias”.

De uma experiência milenar de cama e mesa, Velha Europa extraía suas teorias. Que não podia ser de outra forma. Que o socialismo eliminara no Leste toda e qualquer coisa que se pudesse chamar de culinária, tudo que se ingeria pela boca tinha gosto de nada, uma coisa era uma boca ocidental e decadente, viciada dans les saveurs les plus exquises, e outra era um pálato que só sabia distinguir sal do açúcar, isso quando não faltava um ou outro. Vanva simpatizava com a tese, afinal justificava seus personalíssimos deleites, a culinária da ilha não ia além do peixe frito com pirão. A presença insólita dos serzinho erótico-apocalíptico parecia ter devolvido ao pianista arqueólogo seu espírito de porco costumeiro.

— Conta, Santa, tua fuga do Egito.

— De muchas cosas he huído, hombre, pero jamás de Egipto.

— De Teerã, querida, de Teerã, nunca sei quem é árabe ou persa naqueles desertos.

Solicitada, Velha Europa quase chegava a um orgasmo verbal. No que nada tinha de original. Os ilhéus, com ou sem megafone em punho, pareciam embriagar-se com as próprias palavras. Que mais não fosse, seus colegas de Letras não abusavam do direito de falar sem dizer nada? Que falasse Santa.

— Se me descuido, me capam, Vanvita.

A pregadora mais furiosa que João em Patmos se transfigurava, era agora experiente cortesã narrando loucuras passadas. Dançava em uma boate na Teerã do Xá quando os aiatolás entraram na cidade a ferro e fogo, metralha varrendo bares e vitrines, álcool não sobrou nem pra remédio, o guarda-roupa da trupe queimado pelos pasdarans. De calcinhas e passaporte, enrolada num chador, contente por estar viva, ela se refugiara no consulado brasileiro. Vanva, emerso do mundo dos mortos, queria detalhes:

— Verdade, Santa, que os celerados queriam te cortar o clitóris?

— Ameaçaram. Mas morro dando e não entrego.

Bom Cabelo dava as costas, fingia olhar a catedral. Santa voltava a ser Messalina.

— Morrer nunca foi tão fácil — atalhou Vanva, uma nuvem qualquer pairando em seus olhos, logo afastada pela algaravia da mulher.

— O professor consegue me imaginar de chador e fio dental? Pois assim nos jogaram no consulado, com recomendações de nunca mais voltar, que o Senhor os perdoe, eles não sabem o que perderam. Com aquele calor infernal fui me desembaraçando daquelas estopas, tadinho do funcionário que me atendia, todo vermelho e olhar baixo, mas que fazer? Alá não é meu Deus nem Khomeini meu profeta, não tive culpa alguma se aqueles bárbaros queimaram meu guarda-roupa. Leste o livro de Khomeini, Vanvita? O professor leu? Entre outras aiatolices, discute uma delicada questão teológica, se o crente deve fazer a higiene anal com uma ou três pedras. Mon Dieu, où étais-je ces jours-lá?

* * *

— Professor Paixão!

Abraçou-as com efusão. Se na ilha todo forasteiro sofria uma espécie de rebatismo, não podia queixar-se da nova identidade. Ali estavam elas, Marias, Patrícias, Virgínias, Carmens, Elizetes, Gorettes, Ivonetes, Luzinetes, por que estranhas razões aquele sufixo era tão produtivo na ilha? Pouco importava. O fato é que ali estavam elas, peitos e coxas ao alcance de suas mãos e generosamente ofertos, o professor gosta de pôr atrás? — sugeria Virgínia, curiosa, pois eu também tenho minhas fantasias, sempre imagino um pirata barbudo e com um pau enorme, eu amarrada a um tronco e o pirata me rasgando toda, quer, Paixão, quer? Eu sou como Afrodite, avançava Vera 2, seios em riste, de meus peitos jorra leite em abundância, vem professor Paixão, meu terneirinho mamão, que hoje ainda não dei de mamar a ninguém, o professor vem? Olha só minha tetinha gotejante, por enquanto é só uma gotinha, mas depois vai esguichar como um chafariz, é só lamber um pouquinho tua Verinha. Porque é tão bom contigo, se indaga Gorette, você é tão suave, me derreto por dentro quando te como, não tenho culpa de meu nome nem nada a ver com minha xará, ela morreu por não dar e pra você eu morro dando, fica hoje comigo, Paixão? Me ajuda, professor, a Capitu pôs ou não pôs os cornos no Bentinho, o vestibular taí e o Machado não esclarece se o personagem era ou não era chifrudo, se angustiava Tê 1, sossega Tezinha querida, que sobre cornos professor nenhum vai te interrogar, já lhes basta o peso dos próprios e se a Capitu não engalanou Bentinho foi de besta, que cornos não são privilégio de personagens de romances, os cornos são eternos e são como Deus, só existem para quem neles crê. Paixão, Pingo de Porra quer te ver, aconteceu algo e ela não conta pra ninguém, pequena e encolhida a baixinha chorava no escuro, jogou-se ao peito de Juliano como criança buscando pai, chorava em silêncio e falava aos pedaços, eu já não gosto, Paixão, de homem de unha grande, caí na besteira de ir pro quarto com ele, e seus ombros estremeciam junto aos ombros de Juliano, lágrimas rolando pescoço abaixo, não conta pra ninguém, paizinho, não conta, é tão... tão... sei lá, é tanta crueldade, ele foi tão vil, quem tem pena dele sou eu, alguma doença deve carregar na alma um homem que me enfia o dedo e me rasga de alto a baixo, parecia que me carneava por dentro, pode alguém viver carregando tanto ódio, diz Paixão, pode? e as lágrimas de Juliano começaram a molhar o pescoço convulso de Pingo de Porra, verdade que os padres é que gostavam de tratar assim as mulheres, paizinho? e Juliano preferiu o silêncio, contasse àquele bichinho machucado pela vida o que de fato os padres haviam feito ela talvez até absolvesse o animal que quisera marcar-lhe as entranhas.

Ali estavam elas, meninas de classe média tentando fugir ao emprego de banco ou de balcão. De qualquer forma teriam de prestar serviços extras ao chefe sem que por isso fossem melhor pagas, mães solteiras expulsas de casa e carregando um filho às costas, meninas do continente preparando um vestibular ou supletivo, ganhando a vida com o único capital que portavam, divorciadas que preferiam jogar-se na vida a ter de suportar um marido e mesmo mulheres casadas, na ausência ou mesmo com a conivência do marido abriam as pernas para arredondar o fim do mês. Na sauna, não conseguia esquecer as reuniões dos PHDeuses. Humanistas por ofício, se a cada um fosse dado um punhal antes da reunião, poucos sairiam vivos da sala. Entre elas, pelo menos havia paz, respeito mútuo, e se Pinguinho de Porra soluçava em um canto escuro da sala de repouso, a agressão era externa e as colegas sofriam com seu sofrimento. O contraste guerra e paz, universidade e bordel, era tão imediato e impositivo, sem notar aos poucos tornou-se hábito para Juliano buscar a paz tão logo terminava a guerra, mal assinava o livro de atas das dolorosas e inúteis reuniões de professores voava para a sauna no primeiro táxi à vista, a perspectiva de algumas horas sem luta já fazia sua tensão arterial voltar a níveis aceitáveis, antes mesmo de ter vencido a Beira-Mar Norte. No bordel estava em jogo boa parte dos dramas humanos, mas lá havia objetividade, não segundas intenções, lá o armistício era permanente. Nas pedagógicas reuniões do Departamento, ao discutir-se inócuos artigos de inócuos regulamentos, egos feridos se revolviam e brandiam discursos de ódio, expresso de absurda forma, os doutos humanistas jamais diriam você é um filho-da-puta, sai pra fora que te quebro a cara, tais gestos absolutamente não se coadunavam com um professor de Letras, melhor brandir arabescos colaterais, o artigo número tal da instrução normativa número caralho e você, caríssimo colega, foda-se em nome da lei, foda-se você e toda sua estirpe, não é nada pessoal, estamos apenas respeitando regras. Já vira não poucos professores sair chorando das malsinadas reuniões e chegava inclusive a questionar-se sobre a gravidade da unha rasgando o sexo da menininha que cessara de soluçar e agora parecia dormir em seu peito, se as feridas na carne mais dia menos dia cicatrizavam, o mesmo não se poderia dizer de egos arranhados e amarrotados. O senso de humanidade parecia ter desertado dos cursos de humanidades e viera pedir asilo junto às putas. Puta. Se na universidade um vai-pra-puta-que-te-pariu estava sempre aflorando aos lábios dos PHDeuses, ali a palavra era tabu, só permitida eventualmente por profissional recém-largando o marido, ainda não iniciada nos mistérios do ofício. Ou quando a profissional sentia não estar sendo tratada como puta. Vera 2, Jocasta ilhoa, não só lhe permitia tais intimidades, e muito o honrava ser aceito como amante e não mero cliente, insistia com seus peitos, eu sou a Mãe-Puta, vem mamar na tua putinha. Professor, quer saber Tezinha, quem é esse Lira Negra catarinense, deve ter sido poeta importante, tem até clube com o nome dele, coitado do Cruz e Souza, morrera negro e desconhecido para um século depois virar questão de vestibular, não, Tezinha querida, lira é outra coisa, nada a ver com o clube Lira, senta aqui que eu te tanjo.

E ali estava ele, entre perplexo e divertido, não conseguindo evitar de rir interiormente, na casa onde todos estavam em função de sexo sempre havia cá e lá meninas estudando em função de um vestibular ou concurso. Na universidade, falava no deserto, adivinhava em não poucos olhos fundos a doce lembrança de recentes fodas no Meiembipe. Que cadeira você prefere? — perguntara Dr. Notório, o chefe do Departamento. A do réu, ia dizer, mas se conteve, o fato é que se imaginava como eterno acusado e intimamente se comprazia em hipotéticas defesas. Para uso próprio, dividia a sociedade em três gomos. Primeiro, o que eram os homens de fato, baratas rastejando às tontas, sempre em direção à morte, e nisto ele não diferia nem de Pingo de Porra nem do animal que a ferira fundo: lá adiante, esperando todos, estava a tumba. Taba participava desta sua concepção e na vida só via um sentido, a confraternização no naufrágio. Navegamos todos rumo à morte, costumava afirmar, enquanto remamos sempre podemos voltar um bocado atrás, ancorar numa ilha, quem sabe retardar o instante do fim, abordar outros náufragos e confraternizar antes que a morte nos leve. Como âncora para ateus até que era sólida, a teoria não estimulava furar o barco para apressar o mergulho

Havia depois os homens que gostariam de ser e agir conforme a ética que apregoavam e os que gostariam de ser e agir conforme a ética que negavam. Trocando em miúdos: de um lado os sátiros que gostariam, por imposições culturais, manter a fidelidade e castidade que apregoavam e impunham, de outro os que cultivavam estoicamente tais virtudes, mas no fundo adorariam viver a devassidão dos sátiros sem maiores traumas, os dois tipos acabavam vivendo divididos em um mesmo ser e reservavam uma personalidade para cada circunstância, o padre tirava a batina para entrar no prostíbulo e o putanheiro assumia uma aureóla de marido fiel ao discursar em uma tribuna. Ambos espécimes constituíam o segundo gomo. No magro terceiro gomo, se assim podia ser chamado, já que raros eram os seus constituintes, braceavam aqueles que julgavam melhor viver sem mentir, nem a seus instintos nem aos demais.

Imaginava-se seguidamente na hipotética cadeira na qual sentava mentalmente, escolhia juízes e lhes sugeria graves acusações. Dr. Notório era seu magistrado predileto: comenta-se, professor, que além de freqüentar bordéis, o senhor tem relações íntimas com não poucas alunas. Formulava sua defesa: as relações entre professor e aluno constituem a culminância do processo pedagógico, acaba a distância entre um e outro, o medo do jovem frente ao mais velho, quebra-se finalmente a hierarquia, não vivemos em caserna e a função do professor-visitante, segundo me consta, é fecundar a universidade. Imaginava-se argumentando ora calmo, ora iracundo e por vezes a discussão meramente mental lhe provocava taquicardias. Mas Dr. Notório jamais iria assim interpelá-lo e sua visão pedagógica só encontrava tribuna nos bares. Na sauna Anita Garibaldi — não tinha culpa se a mania de homenagear heróis com nomes de rua provocava tais situações — acabava encontrando espécimes das três fatias em que dividira o universo masculino e no fundo eram todos iguais. Como diria Vanva, pau duro não tem amigo. O resto era teatro entre sacerdotes e crentes, professores e alunos, pais e filhos, marido e mulher. Nas aulas, citava insistentemente aquela sueca de olhos meigos e profundos, Karin Boye, uma das primeiras do século a desconfiar de utopias desvairadas: “Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna norma e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos. Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça?” Qual cadeira? A do réu — ia dizer mas não disse, afinal fora convidado para lecionar literatura.

E lá estavam eles, melhor diria elas, que raros eram os barbados, rostos que à primeira vista não poderia dizer se eram expressivos ou inexpressivos, já que permaneciam silentes e imóveis e não lhe era fácil, apesar do hábito, quase vício, de ler rostos, interpretar um rosto estático. Coxas generosamente abertas, oferta que não deixava de ser simpática, oferta vã enquanto pública, apenas degustada pelos defroqués, ex-seminaristas e ex-freiras que infestavam os cursos de Letras. Me escolheste por minhas coxas, Ju? Nada disso, Carmencita, coxas toda mulher tem, sensualidade está nos olhos e não nelas. La universidad es un acuario donde las nenas ván pescar. De quem teria ouvido a frase? Talvez de Taba, talvez da Velha Europa, que tal afirmação soava coerente na boca de ambos. Mais tarde, só mais tarde, descobriria que a suposta piada era no fundo a definição mais exata dos cursos de Letras do país todo, meninas casadoiras estacionadas no imenso parking universitário enquanto o marido não surge, barnabés em busca de um papelucho para promoção, vestibulandos reprovados em áreas técnicas, todos munidos de diferentes razões mas coesos em único e inflexível propósito, o de diplomar-se sem ler um só livro. Algo de humanidade deveria restar-lhes, oculta nalgum escaninho do cérebro.

Sabe, professor, há dias em que a gente acorda sem calcinha, o problema não é esse, o fato é que a gente nem sabe quem nos tirou as calcinhas, uma noitada de brilho e a gente acorda nua e esfolada numa valeta do Itacorubi, não sei o que aconteceu nem como, acho que tudo começou no motel, havia uma toalha do Meiembipe por perto e era para aqueles serezinhos encharcados de álcool e coca que devia apresentar o grande enigma da literatura nacional, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? O mulatinho carioca jamais devia ter aberto a boca, mesmo que tivesse escrito algo inteligente a universidade parecia ter o dom de esterilizar e castrar qualquer obra, aniquilar qualquer expressão de revolta, o que importa é a forma, vamos contar, meninas, as sílabas dos sonetos de Gregório de Matos, vamos estudar, minha gente, o emprego do pronome relativo em Eça de Queirós e Juliano não se supreenderia se acabassem extraindo a raiz quadrada de um poema de Pessoa. Mas o professor não gosta quando a gente mostra o fundinho das coxas? Ora, Ivonete, como gesto acho até simpático, mas se fosse lá em casa era melhor. Verdade, fessor? Mas os outros gostam, e lá estavam os pobres defroqués e filhotes de padre babando na gravata, perdendo o fio da conversa mal uma aluna mostrava as calcinhas. Chez Anita parecia haver mais pudor, não era bem vista pelas próprias colegas a profissional que buscasse clientes exibindo o sexo e quando exercia episodicamente o magistrado entre elas nenhuma lhe oferecia as coxas em troca de conceitos, lá a moeda era outra. Aí, professor, quando soube que meu marido havia enrabado a faxineira, me pus de quatro, abri bem as pernas e disse, se queres continuar nesta casa faz comigo o que fizeste com ela, mete tudo e já. Hoje vamos examinar, dizia Dr. Notório, “A Missa do Galo”, obra-prima do erotismo machadiano.

Tão jovens e tão senis! Falava sobre modernismo. Deus morreu, proclama Nietzsche. Os serezinhos assustadiços foram apanhando cadernos e bolsas, algumas persignavam-se, outras defendiam-se como quem sofre, Deus não pode morrer. Não era mais João quem clamava no deserto, mas Juliano. Criaturas tementes a Deus desde o berço haviam sido educadas na superstição milenar, eternamente repetida por professores que, se haviam largado a batina, recusavam-se a largar os dogmas que a tornavam pesada de portar, não que temessem o fogo eterno ao escutarem impassível a boa nova de Zaratustra, nada disso, é que se Deus havia morrido, com seu cadáver fora enterrado o pacote teológico que garantia o exercício da tirania do pai ante os filhos, do marido em relação à mulher, as soluções éticas mais fáceis, tipo filme de mocinho e bandido, o bem e o mal perfeitamente delimitados, o que evitava maiores angústias e questionamentos.

Nada de supreendente em um curso cujo corpo docente era constituído por papa-hóstias contumazes, dependentes de placebos metafísicos, sem a menor esperança de retorno à lucidez e à coragem. Em uma reunião dos PhDeuses, discutindo Auerbach, manifestara as considerações de Celso sobre Maria, Cristo como filho do soldado romano Pantera, já que algum pai teria de ter, e José, dizia a Bíbllia, não o era. Violenta reação dos colegas, era preciso respeitar a fé de cada um, como se em uma reunião de pesquisa não fosse a dúvida a melhor virtude. Fé, professora — surpreendeu-se dizendo — você a deixa atrás da porta antes de entrar nesta sala. Não se preocupe, ninguém vai roubá-la. Fés, tanto boas como más, não faltam no mercado. Na universidade, ou impera a dúvida ou voltamos a condenar Galileu à fogueira, tão logo termine a reunião a professora apanha de novo sua fé e volta com ela à tiracolo para casa. Taba tinha razão, na ilha Deus ainda vivia, só não imaginou que na universidade... Não seria de espantar que até o reitor fosse à missa.

Chez Anita, o corpo discente parecia ter uma visão mais realista da divindade. Se morreu, a mim não foi apresentado quando vivo, dizia Pingo de Porra. Se existe, algo terá contra nós, era a opinião mais corrente. Já Vera 2 tinha idéia bem mais pragmática da deidade, Deus está em mim e jorra de meus mamilos, Deus fez em mim maravilhas, deu-me um dom para que eu o desse aos homens, vem Paixão, vem, te embebe de mim e de Deus, vem beber-me e beber sua divina essência. Sedento de Deus, Juliano não resistia a seu chamado e dele se embebedava. Mas também ele participava da divina substância, Verinha me dá tua língua, há muito pouco de Deus em mim, mas o pouco que é meu é teu.

Lecionar satisfazia seu vago narcisismo. Os alunos eram um espelho sempre renovado, espelho cambiante onde contemplava sua juventude progressiva em oposição à senilidade precoce dos espelhos. Acreditavam em potocas proferidas há dois mil anos, quando estariam melhor servidos se recuassem mais dois ou três séculos, em Platão ou Sócrates pelo menos existia pensamento. A escola tinha por função moldar o aluno ao padrões de uma ética patriarcal e maniqueísta, se ao aluno restava alguma criatividade ao sair do secundário a universidade se encarregava de destruí-la. Se mesmo assim, ao apanhar seu canudo, o aluno descobria em si uma gota de pensamento próprio, para extirpá-la lá estavam os cursos de mestrado e doutorado, sem falar no freio do método. Você não vai empregar um método? Quem você pensa que é para pensar com a própria cabeça? Uma vez submetido ao método, servil como boi no jugo, o jovem mestre ou doutor estava pronto para o magistério. São senis — escabelava-se Juliano — que fazer para que voltem à juventude?

Sentia-se um palhaço. Toda grande literatura havia sido feita nos intervalos entre caserna e bordel, guerra e armistício, cárcere e miséria, dúvida e sofrimento, e ali estava ele, bunda pregada a uma cadeira, cercado por outras vinte bundas também pregadas, discorrendo sobre literatura. Ao entrar nos currículos universitários, uma obra já havia sido devidamente esterilizada pelo tempo e o que fora expressão de vida tornava-se coisa morta e tediosa. Ao institucionalizar a literatura, os escritores passavam a escrever não mais para os homens, mas para críticos, acadêmicos e alunos, corta este palavrão aqui ou não podemos vender teu livro junto às escolas, não fala mal do governo que o MEC não vai gostar, não critica o socialismo ou estás condenado à morte civil, para isso existe a metáfora, meu caro, das metáforas você pode usar e abusar, a responsabilidade fica por conta dos intérpretes. Por favor, nada de sexo ou política, que adolescentes não têm sexo e de política nada entendem e mais, nada de atacar as esquerdas, nunca se sabe o que o amanhã nos reserva. Paixão, lambe meu grelo, está enorme como gostas.

De Bagual a Paixão. Promoção ou caput diminutio? A vida dava muitas voltas. Como dizia a Zefa, é na carroça andando que as abóboras se ajeitam. De jornalista irado a plácido contemplador do mundo. Aceitava seu fracasso como escritor, mas não abria mão de um certo conceito de arte. Literatura era revolta e quando uma obra chegava ao circuito escolar, nela de revolta nada mais havia. Sonharia, se ainda ousasse sonhar, escrever algo que escolas e universidades rejeitassem como peste. Mas nem como sonho seu sonho era viável, os acadêmicos haviam-se munido de assépticos instrumentos, tão assépticos e de tão simples manipulação que permitiriam a uma criança extrair, brincando, a peçonha de uma cascavel. Pessoa morrera cirrótico, desesperado e desconhecido. Meio século havia sido suficiente para que universitários do mundo todo organizassem colóquios e fizessem turismo às custas de seu cadáver.

Ser ateu tinha suas vantagens, isso para não dizer fascínio, e no ateísmo residia seu eterno espanto ante a vida. As milhares de circunstâncias que o haviam trazido à ilha, sem falar nas outras tantas que o haviam levado a Paris, soavam-lhe como mistério absoluto. Jamais se pretendera professor e ali estava ensinando. Para o crente, a resposta era simples: Deus quis. Morresse o pai, se suicidasse a mãe, fossem os filhos atropelados por um trem, ganhasse na loteria ou fosse eleito presidente de uma nação, a resposta continuava a mesma. Não existindo o tal de Deus, a resposta tinha de ser intuída, adivinhada, pelo menos até onde se deixava adivinhar. Pingo de Porra dormia em seu peito. Quem ou quais circunstâncias o haviam conduzido a ela — ou ela a ele — e o que decorreria — ou não decorreria, daquela coincidência no mesmo ponto geográfico, mais precisamente no mesmo leito? Para o ateu, descobria agora, tudo era surpresa e descoberta, e a vida poderia ser insultada com todo e qualquer adjetivo, menos o de ser monótona. Para o homem de fé a vida era uma sucessão de eventos mais ou menos previsíveis, encadeamento de circunstâncias onde a única surpresa — e a pior entre elas — era a morte, afinal “estava escrito”. Para Juliano, tudo era surpresa e o amanhã uma incógnita, tinhas por vezes ganas de manifestar sua gratidão: graças a Deus, não creio nele.

* * *

O Doutor é jovem e vem do Sul, por certo ainda não conhece as peculiaridades da ilha. Nossa identidade tem suas raízes em Portugal, mais precisamente nas Açores e desta herança decorrem não poucas conseqüências, Maurício de Nassau que o diga. Ao tomar posse no cargo de governador do Brasil holandês, assinalava que a nação portuguesa tem muito em atenção correspondências e cortesias, embora vãs e de pouca importância. Os portugueses serão submissos se forem tratados com cortesia e benevolência. Por experiência, o conde sabia que os lusos fazem mais caso da cortesia e do bom tratamento do que de bens. “O povo, dizia, é um rebanho de carneiros e que se tosquiam, mas quando a tosquia vai até a carne, produz infalivelmente dor e, como esses carneiros raciocinam, por isso mesmo, se convertem muitas vezes em terríveis alimárias”. Assim sendo, meu caro Doutor, é preciso levar em conta esta idiossincrasia ilhoa, caso queira ascender no magistério. Esta universidade, professor, quase posso dizer que a ninei em meus joelhos, eu a acompanho desde os tempos heróicos quando, na falta de doutores, concedíamos o título às inteligências mais ilustres da comunidade. Como não podíamos dar-nos ao luxo de enviar docentes para outros centros, criamos, como tantas outras universidades, o Doutor Notório Saber. Não será um longo e sofrido curso, muito menos uma tese, esquecida no pó das bibliotecas, o que definirá a qualificação intelectual de um mestre. O DR adere à personalidade como a lepra à pele. Cá entre nós, professor, para que servem as teses? Das milhares defendidas neste Brasil ou no Exterior, quantas vieram à tona ou se revelaram úteis aos contemporâneos? Tomamos então o caminho mais curto e conferimos capacitação docente a nossos pares. Tese, professor, no fundo só serve para melhorar o salário e fazer turismo sem despender divisas. Afaste-se o professor da tentação de procurar na biblioteca central as teses de nossos doutores, elas não estão lá e além do mais seu gesto seria pouco simpático. Tese é algo íntimo, diz respeito apenas ao doutor e seus examinadores. Para preservá-las da curiosidade alheia, temos um Banco de Teses, mas lá tampouco o professor encontrará muita coisa. Vários incêndios, o que não é inusual neste tipo de acervos, temos aliás um precedente ilustre, o da Biblioteca de Alexandria, vários incêndios, dizia, foram dilapidando a produção intelectual de nossos doutores, particularmente da área humanística. Mas que se pode fazer ante a fatalidade?

O doutor é jovem mas já terá percebido as vantagens do ofício acadêmico. Contratado para quarenta horas semanais, o doutor trabalhará apenas dez ou doze, ficando as restantes dispersas entre os vagos afazeres de pesquisa e hipotético atendimento a alunos. Mais quatro meses de férias ao ano, greves à parte, bem entendido, conforme o ímpeto militante dos líderes mais aguerridos isto pode render mais três ou quatro meses de far niente, isto sem falar em viagens a colóquios e seminários. Como o professor terá percebido, nenhuma outra profissão no mundo contemporâneo lhe proporcionará tanto otium cum dignitate. Mas onde fica o ensino? — já estará se interrogando o professor. Ora, doutor, aqui volto novamente à nossa insularidade. Queiramos ou não, todos dependemos da boa vontade estatal, o que abre portas a um emprego não é a capacitação profissional, mas bons padrinhos políticos. Engana-se o professor se acha que algum de seus alunos está preocupado em aprender algo. Sugiro, meu jovem doutor, esquecer aquelas lendas em torno à universidade como fonte de aquisição de conhecimentos e pesquisa. Do que decorrem outras conseqüências: considera-se antipedagógico entre nossos pares reprovar um aluno. Algum mestre mais impetuoso, geralmente gente de fora, não ciente de nossas normas, às vezes tenta fugir a este código ético. O que só nos obriga a remanejar cursos, colocar o aluno injustiçado em mãos mais modernas e compreensivas e finalmente o mestre em questão acaba não esquentando cátedra. Se somos doutores de mentirinha, porque seriam os acadêmicos de verdade?

Para controlar heréticos, usamos dois instrumentos, o método e o colegiado, o primeiro aplica-se a hereges discentes, o segundo aos docentes. O método, doutor, seja estruturalista ou psicanalítico, seja Goldman ou Lacan, Kristeva ou Gramsci, esteja na moda ou em desuso, sempre serve de freio a jovens que se pretendem originais. Se permitirmos a um universitário pensar com a própria cabeça, estamos perdidos, vai-se por águas abaixo toda a civilização ocidental e cristã, sem falar que se reduz a zero o sentido de hierarquia. Donc, sem método, nada feito. Restringir cada enunciado ao imperioso ritmo ternário da dialética, três partes e não mais que três partes, a primeira, a segunda e a terceira. Pode-se até dividir estas três partes em outras três, um um um, um um dois, um três um, um três três, sempre o três como base, que soa estranho a qualquer júri, seja aqui seja em Paris, estender um raciocínio por cinco ítens, por exemplo. Tese escorada em teórico francês ou alemão, obedecendo sempre à santíssima trindade, é meia tese andada. O que não podemos admitir nas altas instâncias acadêmicas são livre-pensadores, se assim fosse a universidade perderia seu sentido e eu também.

Já o colegiado, como deve ter intuído o professor, é uma corporação de notáveis da mesma categoria, cujos membros têm a mesma dignidade, enfim, talvez não seja este o termo mais adequado, melhor falar de mesmos poderes, já que vivemos em plena democracia neste caso não há mais sentido em se falar em hierarquia. Este fácies democrático da universidade moderna permite um sutil jogo de intercâmbios que torna mais afável e cordial a vida universitária. Professores de fora por vezes caem no departamento cobrando a ponta de faca projetos e pesquisas passadas — como se a universidade moderna ainda se nutrisse de tais lendas — olvidando, estes professores, que amanhã terão de solicitar de seus pares permissão para apresentar em Reikjavik uma comunicação sobre os diversos sons do x nos cantões da ilha, ou desenvolver durante cinco anos uma tese em Paris sobre as possíveis abordagens da poesia de Cruz e Sousa. Este jogo sutil, apesar de provocar hipertensões irremediáveis em seres mais delicados, induz os membros do colegiado à prática desta virtude tão simpática e cristã, a tolerância mútua e o conseqüente perdão a qualquer desídia.

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SORRIA... NOVOS TEMPOS

Ele deu a vida pela Nova República, para você respirar os ares dos Novos Tempos, sem a poluição das duas últimas décadas de regime militar. Você merece ser feliz! Você tem várias opções de lazer, sem fuga, um lazer consciente dos Novos Tempos. Nós, do Rélax Center

ANITA GARIBALDI

somos uma opção de lazer dentre as mais de mil existentes e, participantes do momento de democracia plena que somos, gostaríamos de recebê-lo e vê-lo sorrir. Nesta semana, o primeiro drink é por nossa conta. Traga os amigos dos Novos Tempos.

 

“As mutações semânticas decorrentes da Nova República”. Como sugestão de tese para mestrando em crise criativa, ali estava um tema para Dr. Notório algum pôr defeito. Com a morte de Tancredo Neves, o Plano Cruzado e o preço da carne tabelado, restauradores e proxenetas tinham de dar asas à imaginação, criar novos pratos ou serviços para fazer frente à inflação. Nos restaurantes, nada mais simples. Um frango com spaghetti, que por ser com spaghetti se dizia à italiana, mais um frango com chucrute, que por ser com chucrute se dizia à alemã, formavam agora juntos um novo prato, que por ser com spaghetti e chucrute se dizia à européia, e no cérebro do autóctone a Europa era vista como uma vaga mistura de massa e repolho fermentado. Novo prato, novo preço. Já chez Anita a questão era mais delicada, a carne era vendida por hora, não por gramas. Se os serviços eram anunciados metaforicamente, o problema não se resolvia com a criação de novos servicos, que de novo nada havia no ofício. O fornecedor oficial de carnes tenras da ilha driblara o impasse com virtuosismo. A massagem continuava com preço antigo, apenas transposto à nova moeda, o que antes custava 150 mil cruzeiros era agora 150 cruzados. A novidade consistia em que massagem era agora massagem-massagem, sutileza ainda não intuída pelos restauradores que bem poderiam ter criado o filé-filé e filés outros. Já a massagem-carinho, tal inovação semântica passava a ser bem mais cara. Então hoje eu quero uma massagem-massagem, pediu Juliano, não é questão de preço, só quero relaxar. Ah! mas a massagista-massagista não tem aparecido nas últimas semanas. Pois então vamos de massagem-carinho, vem cá Verinha, hoje estou sedento de tua divina essência.

A pi-ça-do-pro-fes-sor-é-de-lei-tá-vel! — escandia Carmencita, esta é a única frase do Oswald de Andrade que consigo lembrar. Literatura tem disso, minha Carminha, os corpos discentes sempre preferem o que o corpo docente omite e cultura, disse alguém, é o que fica na memória depois de tudo o que se esquece. En-tão-só-pi-ça-é-cul-tu-ra-Ju-ju? Comment dirais-je? — se perguntava Juliano — não que seja propriamente cultura, mas sem dúvida é melhor que muita literatura.

Putas. Putae, puteus. Poço, cisterna. Os mais primitivos e obscuros desejos do ser humano deviam, a bem do Estado, ser represados pela Razão. Como junto à represa acumulavam-se sempre lama e detritos, para que a mesma não estourasse, um escoadouro era necessário. Desde sempre. Se as gorettes, ivonetes e luzinetes da vida hoje eram marginalizadas profissionais, escondidas sob o eufemismo de massagistas, já haviam sido hetairas, aulétrides e hieródulas e legado à posteridade nomes imortais: Lâmia, Aspásia, Frinéia, Thaís, Laís. Sólon fora o primeiro legislador a reconhecer suas nobres funções, merecendo de Filémon justa homenagem em sua oração fúnebre: Por isto te tornaste um benfeitor de teus cidadãos, reconheceste nessa instituição só o bem e a tranqüilidade do povo. Ela se tornava absolutamente necessária numa cidade em que a juventude turbulenta já não se podia conter, nem obedecer à mais imperiosa lei da natureza. Instalando mulheres em certas casas, preveniste desgraças e desordens de outra forma inaceitáveis. Dois milênios depois de uma Atenas sem carros nem megafones, exerciam inclusive uma terapia individual diminuindo a tensão de suas artérias. Pena que poucos jovens tinham acesso às novas terapeutas.

Massagistas. A magia da semântica. Nos passados dias em que julgava morrer se não escrevesse — como se escrevendo exorcisasse a Moira — havia elaborado uma espécie de regulamentação da profissão e desde então intuira que a primeira providência em prol da dignificação do ofício seria substituir o nome historicamente tão caluniado por termo mais prestigioso, com sabor de século XX. Se massagista sugeria rélax e sensualidade — pas mal comme trouvaille! — sua proposição era mais solene e metafísica: sexo-analistas. Ou melhor, sexanalistas, para afastar o neologismo de trocadilhos infames. Bebe, Paixão, bebe tudo, que meu bebê já mamou.

Os jornalistas só eram viáveis após Gutenberg, os sociólogos após Comte e já tinham suas profissões, pelo menos no Brasil, regulamentadas, que se esperava — pensava então — para nobilizar o bíblico ofício? Com retórica de panfletário, propusera a valorizar e estimular a delicada vocação. Que a profissional era a psicanalista por excelência de uma sociedade enferma, a terapeuta que lidava com homens perturbados e doentes ou lúcidos e angustiados. O ofício não podia ser exercido por pessoa sem maiores habilitações. Vinte anos depois de suas utopias juvenis, vinha-lhe à mente a absurda hipótese de um concurso acadêmico como pressuposto para o exercício da profissão. Seus títulos? Qual é o seu método? Que teorias ou teóricos tem por base? Doutorou-se em qual instituição? Seu diploma já foi revalidado? Não, três vezes não. Era um ingênuo há duas décadas e felizmente jogara aquelas páginas ao cesto. Nelas sugeria proporcionar às candidatas à nobre arte conhecimentos mínimos de psicologia, sociologia, técnicas sexuais, profilaxia venérea, administração de empresas. Acabar com a ambiência sórdida dos cabarés. Outra palavra do passado. Espírito moderno? Rélax, sauna. O que coincidia com sua proposta semântica. Era mais fácil a uma menina escrever ao pai no interior que trabalhava como massagista na capital do que tecer circunlóquios sobre a verdadeira natureza de seu ganha-pão. Sexanalista, tinha de convir, ainda que em causa própria, soava muito melhor, se é constitutivo do ser humano gostar do que não entende, tal ofício soaria aos pais como inesperado êxito profissional. Que a prestação de serviços — propunha — não se resumisse a um ato rápido e animalesco. Seria um atendimento antes de tudo psicológico, cada cliente teria sua ficha médica e nelas seriam registradas suas mais inconfessáveis preferências eróticas. Previa direitos trabalhistas, trinta horas semanais dado o desgaste inerente ao ofício, adicional periculosidade e para horas extras, férias remuneradas, indenização por acidente de trabalho, tipo doenças venéreas ou gravidez, associações de classe, sindicatos. Pára, Paixão, pára, tira fora, goza em meu rosto, é assim que eu gosto.

Em sua utopia de adolescente, chegara a propor cursos universitários de história dos costumes e teatralização do prazer, afinal para a maioria dos clientes tanto satisfazia o gozo real como o simulado. Santa ingenuidade. Todo jovem que sugere reformas sociais a elas deveria ser submetido. Seu projeto era, no fundo, a burocratização do desejo, horários rígidos, ponto assinado e arte nenhuma, a mulher bocejando em meio aos embates qual professor repetindo ad nauseam a mesma aula. Me molha, Paixão, me molha, que em mim também já vem vindo.

Na trégua post bellum não conseguia deixar de imaginar Dr. Notório no bordel. Abria sempre as reuniões de departamento com uma espécie de prece, perdoai-me, Senhor, se ao viver impedi alguém de viver. Juliano sentava então, e com muito prazer, na cadeira do réu, Dr. Notório, inquisidor emérito, o interrogando no tribunal imaginário: como explica o professor sua presença neste antro de luxúria?

“Suprimi as prostitutas e perturbareis a sociedade com a libertinagem”, a frase não era sua, mas de Agostinho. “Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca em um palácio. Suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto”. Tampouco era sua. Mas de Tomás de Aquino, o Boi Mudo. Em vez de repouso, começava a acometer-lhe uma taquicardia sem causa física alguma, era a hipocrisia universitária invadindo seu cérebro em meio à paz do bordel. Endossar a prostituição, ó Notório, não seria atitude nova da parte de tua igreja. Observa-se na história uma profunda relação quase simbiótica, entre templos e lupanares, de um lado a idéia de que o corpo diariamente vendido e conspurcado era apenas o invólucro terreno de uma alma imortal tornava feliz toda e qualquer cortesã, não era gratuito o fato de encontrar-se imagens de santos, pudicamente cobertas com um véu durante o ato, em quartos de bordéis, a ambivalência entre santa e prostituta permanecia através dos séculos. Impossível negar a função da prostituta na construção de tua igreja, meu caro Dr. Notório, tua basílica de São Pedro foi financiada pelos impostos que incidiam sobre os suados ganhos das meninas. Sem falar em Júlio II, abençoou Impéria em seu leito de morte e instalou em Roma um lupanar, para uso exclusivo dos cristãos, onde as profissionais deviam observar horário de orações e atos devotos. Tu, Notório, tu não me enganas. Este ofício foi reconhecido por São Luís, com imposto e tudo. Lembras do concílio de Constança? Um milhar e meio delas, ao lado do Espírito Santo, inspiraram e aliviaram os castos conciliários, sem falar nas outras tantas que acompanharam os cruzados à Terra Santa. Bebe, Verinha, me bebe todo, me bebe mais e depois me beija.

* * *

Assim vivia, entre alunas e profissionais, surpreso em encontrar interesse por literatura no bordel e tanta prostituição na universidade, não se espantaria se um dia fretasse na Anita Garibaldi alguma de suas pupilas. O que já poderia ter ocorrido, não era fácil guardar centenas de rostos por semestre, sem falar que às vezes o demônio incorporava nas meninas em meio ao vapor e Juliano sequer via os traços das formigas vorazes que o atacavam e reduziam seu corpo a uma consistência de mingau. Imaginasse Zefa as razões de seu ar cansado, não mais lhe perguntaria: “foi duro o dia, professor?”

Se fora! Mas duro entre os dias foi aquele em que Princesa foi a um baile, não no clube da Lagoa, mas no da Freguesia. O sábado ameaçava chuva, em vez de caminhar preferiu pôr a correspondência em dia. Em vão. Desde a manhã ao entardecer, Zefa insultava Princesa, entremeando uma algaravia furiosa com tapas e bofetões. Fosse um pesquisador em lingüística, teria ali uma mostragem fabulosa. Quando furiosas, ou fofocando, as ilhoas apocopavam as palavras, um quadrissílabo virava dissílabo, um tríssilabo virava monossílabo, estes iam pras cucuias e mesmo assim elas se entendiam. Conseguiu bispar alguma coisa, baile do outro lado da ponte, já te disse pra não ir, teu pai chega hoje do mar e em meio a isso passou a ouvir, em vez de tapas, o sibilar de um cinto ou talvez chicote, música de fundo pouco estimulante quando se quer escrever a uma amiga distante. Deixou de lado seu interesse lingüístico sociológico pela coisa e, com um Vivaldi, abafou a violência a estibordo. Protegido por audiofones, continuou sua charla silenciosa, só interrompida pelo vulto de Princesa, rosto vermelho e inchado de tapas e açoites, fugindo raivosa em sua bicicleta. Até ali, nada fugia à lógica. Je suis arrivé — continuou a escrever — à la conquête de mon île.

Domingo, acordou com a sensação de que algo girava errado no universo. Em meio à vigília, necessitou de alguns minutos para perceber o que faltava à harmonia das esferas. Um silêncio sinistro conspurcava o clarear do dia. Que fora feito do serrote verde das caturritas? Onde a parlapatagem estridente dos canários e curiós, dos mexericos dos bem-te-vis, saíras de sete cores, tiê-sangues e tiê-fogos? Por que não cumpriam sua obrigação imemorial de saudar o sol? Um prurido de terror percorreu-lhe a medula, era como se estando imóvel visse sua sombra mover-se. Vestiu-se assustado e espiou pelo muro que separava sua casa do pátio da Zefa. No viveiro, centenas de pássaros, patas quebradas, agonizavam em silêncio atroz. Em meio ao massacre, buscou a araponga. Abria e fechava o bico, pedindo morte.

O Zefo chegara de alto mar. Irritado com a fuga de Princesa, manifestara a seu modo seu desagrado. Em sinal de luto, naquele domingo nem mesmo o joão-de-barro, soberano em seu rancho, fez reboar sua gargalhada.

* * *

Santa Catarina tem identidade cultural própria e negar tal evidência é negar a própria ilha. Esta identidade repousa em sua geografia, amorosamente mapeada por nosso vate maior, o Zininho da Ilha, que espero ver um dia nesta casa que há quatro décadas fundei.

Um pedacinho de terra
perdido no mar
um pedacinho de terra
beleza sem par
jamais a natureza
reuniu tanta beleza
jamais algum poeta
teve tanto pra cantar

Fiel e consciente depositário do legado modernista, discípulo atento de Marinetti, Mallarmé, Mário e Oswald, em seu poema revolucionário o autor ousa infringir as leis procustianas da gramática e ignora, conscientemente, os arcaicos apelos à pontuação, no que reside seu caráter inovador. Equivocam-se os críticos dalém-ponte ao acusar o poeta, sumariamente, de analfabeto: é justamente por bem dominar o vernáculo que o autor o rejeita. Assim temos, sem maiores concessões ao poetar clássico, esta cabal, poética e definitiva acepção de ilha: um pedacinho de terra, onde o autor, fugindo a quaisquer preocupações lexicográficas, define a geografia de seu poema, para arrematá-la com estro: perdido no mar. Neste perder-se, não pretende o poeta que a ilha navegue à deriva qual nau sem leme. Insiste apenas em situar-nos em meio ao mar que nos nutre e contorna, que nos dá autonomia e sustento, graças ao trabalho do homem ilhéu.

Um pedacinho de terra, reitera, quase alitera, o poeta, insistindo nas diminutas dimensões de sua geografia — não por acaso usa duas vezes o diminutivo — por oposição ao continente, deixando claro que uma ilha não exige maiores dimensões para produzir uma forte cultura e uma grande poesia. Quebrando o nexo lógico do discurso, o vate insinua, ex-abrupto, a característica fundamental do pedacinho de terra perdida no mar: a beleza sem par. Jamais a natureza, insiste, reuniu tanta beleza, e aqui ressurge a beleza antes observada, atributo inerente à ilha que jamais algum poeta teve tanto (nova aliteração) pra cantar.

Cantar a geografia ilhoa é cantar sua lagoa, que não passaria despercebida ao olhar arguto do vate.

Tua lagoa formosa
ternura de rosa
poema ao luar
cristal onde a lua
vaidosa
sestrosa e dengosa
vem se espelhar

Canta o poeta a evidência, ignorando olimpicamente os resmungos dos eternos negativistas profissionais dalém-ponte que, cegos ao espelho das águas nelas pretendem ver lixo e poluição, como se poluição não fosse inerente ao progresso. Para o poeta, não há por que remexer o fundo lamacento das águas. Permanece então aflorando à sua superfície, daí ternura de rosa, que chamará, por razões de rima, uma lua vaidosa sestrosa e dengosa, compondo assim a sinfonia já antecipada em poema ao luar.

Cantadas a ilha e a lagoa, canta agora o poeta o marco humano da geografia que o inspira:

Ilha da moça faceira
ilha da velha rendeira
tradicional
ilha da velha figueira
onde em tardes fagueiras
vou ler meu jornal

Sai de cena, pois, a natureza e emerge no poema o singelo rosto ilhéu, a velha rendeira e — mais importante — tradicional — que não apenas servirá de suporte rímico a jornal, mas contestará, corajosamente, boatos provenientes do sul de que a tradicional, repito, atividade das rendeiras é nutrida por indústrias do nordeste. Finalmente, a ilha é a da velha figueira, onde um dia — por que não? — terão se beijado, sob sua ramada cúmplice, Garibaldi e Anita, onde — quem sabe? — não terá se espreguiçado Saint-Exúpery após suas travessias transatlânticas. É nas tardes fagueiras, tão inerentes à ilha, que o poeta, satisfeito de seu poetar, vai ler seu jornal. Oh! beato Santo Antônio, amigo de Nosso Senhor Jesus Cristo, fidelíssimo filho de São Francisco, em Lisboa nascestes e em Lisboa fostes batizado, em Roma coroado, vossa mãe guardastes, vosso pai livrastes, assim vos peço meu glorioso Santo Antônio, pelas ondas de mar em que passastes, pela coroa que da vossa cabeça abristes, pelo cordão com que vos cingistes, pelo breviário que consagrastes, pelas alpercatas que calçastes, pelos treze dias que no deserto andastes, em busca de vosso santo breviário que perdestes e que no fim deles achastes, eu vos peço, meu glorioso Santo Antônio, por aquela hora em que vos revestistes, pelo altar que subistes, pela missa que dissestes, pela hóstia que consagrastes, pelo cálice que pela primeira vez levantastes e o Senhor nele achastes, que ajudeis a encontrar nossa perdida identidade.

* * *

Mergulhar no sono, meu Juliano apóstata querido, mergulhar no sono e refugiar-se no sonho e fora do sonho não há salvação. A masturbação é sempre triste, prazer não partilhado é prazer pela metade, sem falar que, em minha idade, punheta seria patético. Pânico, Juliano, pânico será o sentimento dominante deste fim de milênio, medo nuclear virou migraine, enxaqueca de parisiense. A guerra nuclear independe de nossas cautelas e sim do estado de humor dos senhores da guerra, sem falar que a bomba tem qualquer coisa de democrática, nos resta pelo menos o consolo de não ficarmos sós, depois de uma boa guerrinha só as baratas usufruirão do planeta, a aventura humana será vista como uma tentativa comovente por alguma civilização extraterrestre que consiga decifrar nossas bibliotecas e bancos de dados. Se sobre apocalipse não temos controle algum, a peste é controlável, a peste pode sentar-se em minha mesa, conversar comigo, pode até abraçar-me e eu posso permanecer incólume, sob uma condição: não confraternizar com o outro, fugir à festa da carne, que no fundo não é da carne e sim do espírito, essa tal de carne, tão difamada e caluniada por padres e moralistas, em verdade é o instrumento pelo qual o espírito se manifesta e meu pânico é tal que já nem bebo, tenho medo de sucumbir ao charme de algum menino ao final da noite, feliz de ti, Juliano, que te satisfazes com as mulheres e mesmo assim sei que deves nutrir pelo menos parcela de meu pânico.

Me refugio então no sonho, meu querido, minha atividade onírica só tem se intensificado nos últimos meses e meus sonhos são quase sempre obsessivos, sempre contaminados pela peste. Mesmo sonhando sinto medo, não que me pretenda original, o fato é que estamos todos com medo, por mais angelical que seja um virtual parceiro pensamos duas vezes antes de levá-lo para a cama, mas acho que pelo menos meu medo consegui driblar, desde há muito estabeleci minhas defesas anti-pesadelos. Não te serão estranhas aquelas angústias de quem cai inexoravelmente de um galho seco ou resvala sem volta por um telhado sem começo nem fim. Destas miragens já estou salvo, quando me vejo na extremidade do galho braceando desesperadamente no vazio para não cair ou esfolando mãos e pés na tentativa vã de interromper a queda, sei que tudo é sonho, jamais poderia ter subido até aquele galho e todos os telhados têm fim e começo e afinal de contas, em minha vida profissional, devassa ou afetiva, não há razão alguma para trepar em galhos ou telhados e sendo tudo sonho me contorço violentamente na cama e acordo, exorcizando o pesadelo, era só o que faltava vivermos com medo durante a vigília e em pânico em meio ao sono. Hoje até tenho saudades das vertigens que me proporcionavam meus galhos e telhados, há muito só me perseguem nas noites meninos lindos e de membros enormes, tesões pétreas de adolescentes, piças pingando leite e mel e quero abocanhá-las e hesito, me bate o medo, sonho até com colegas e amigas, claro que em vez de clitóris elas têm falos, as joanas d’Arc, com essas eu vou, decido, com mulheres o risco é menor e uma alegria infantil me invade, como é que eu não descobrira mais cedo que elas era assim tão bem dotadas? Tenho participado de orgias que nenhum grego ou romano concebeu, já que tudo é sonho vamos lá, pelo menos até agora a tal de ciência e os tais de cientistas ainda não autorizaram o vírus a transmitir-se oniricamente, sem falar que em sonhos dispenso maiores performances para beijar-me e beber-me a mim mesmo e não raro tenho acordado com a lembrança — pena que só a lembrança — do sabor ácido-quente de esperma no pálato. Refugiar-me no sonho, Juliano, esta é a minha defesa e por isso já não bebo, tenho medo de numa noite de porre confundir com sonho a realidade, antes da peste a realidade era de fato um sonho, e por isso até de beber tenho medo. Sei que a peste vai passar, mas também sei que quando passar já terei passado. Tem ainda esse elastério estúpido de morte latente, cinco anos para uns, dez para outros e por favor não me diz que também não vives tenso, vistoriando diariamente a pele em busca dos sinais. A festa acabou, Juliano, suicida é quem ainda acha que não. Lembras daquele contaminado que quebrou o altar de uma igreja? Louco, escreveu um jornalista, louco repetiram as agências, louco publicaram os jornais. Para mim, de louco ele nada tinha, nele só vejo saúde e lucidez, se a peste é um castigo de Deus, como andam insinuando doutos senhores e até mesmo Sua Santidade, o melhor a fazer é não deixar pedra sobre pedra na baiúca onde Ele mora.

Meu fracasso, até já o havia aceito, encontrara até mesmo aquele equilíbrio mínimo que não faz do fracassado um mutilado psíquico. Não pretendo pôr a culpa nos deuses, nada disso, mas sabes que um pianista nesta terra, ou é sobrinho do ministro da Aeronáutica ou tem de fazer carreira na Europa, competindo com meninos prodígios que foram gestados ouvindo concertos. Tive essa chance. Mas tive de congelar sob a neve, em filas humilhantes, igualado a turcos e árabes candidatos a escravos, para implorar um visto de permanência no paraíso, sem falar naqueles dias em que qualquer orgulho ou vaidade pessoal se aproxima perigosamente de zero, sem falar naquelas circunstâncias que, se talvez não anulem o imigrante em busca de pão, são deletérias para quem busca espírito. O pior mesmo era ser apresentado nas salas como Herr Joao, Monsieur Joao, o apresentador tentando inutilmente nasalizar esta tão decantada excrescência da última flor, o “ão”. Ninguém vai me convencer que um João possa fazer carreira como pianista. John, Johan, Jean, Giovanni, Ivan, vá lá. João, jamais. Fui condenado já no batismo sob pretexto da absolvição do pecado original, logo eu que, por mais que me esforce, nada de original consigo ver nos pecados. Uma vez aceita a maldição de ser João — com tudo que disto decorre, brasilidade inclusive — medi minhas forças, comparei-as com minhas ambições e senti ter posto a barra muito alto. Sejamos então arqueólogo, pensei, se não decolo como artista, tanto faz ser açougueiro ou alfaiate. Arqueólogo de tesourinha, bem entendido, que isso de escavar coisas jamais me atraiu, as unhas devem ficar um lixo. Já havia, meu Juliano, me reconciliado com meu fracasso, comigo mesmo e com a ilha, fiz meu círculo onde me apresentava como sou sem que ninguém desse palpites sobre meus meninos ou questionasse minhas preferências, conheces a teoria dos universos paralelos? Bom, eu não conheço, mas deve ser algo próximo dos universos que vivi cá na ilha, não conheço fantasia que aqui não se realize. Se as mulheres fossem dotadas da imaginação masculina, disse alguém, sei lá quem, o universo seria consumido em um vórtice de volúpia. Aliteração à parte, o cara tinha razão, será por isso que os padres empossaram a mulher como encarnação da luxúria, hábil recurso de transferir ao outro sexo o ônus que mais cedo ou mais tarde lhes seria atribuído. Para chegar a meus universos, jamais precisei atravessar buracos negros, sempre me bastou abrir a porta de uma sauna. Esta merda de peste, Juliano, esse virusinho fodido, parece que arroxeado, está se revelando mais eficaz que os tribunais da Inquisição. Mas em meus sonhos microorganismo nenhum mete as patas, tenho me aperfeiçoado na arte de direcionar meus delírios noturnos e mais noite menos noite acabo organizando a orgia absoluta.

* * *

Eu pairava sobre a merda, cara! Respirava noite e dia a eterna merda da burguesia jogada diariamente às toneladas na Baía Norte, e dizer que meu pai paga em dólar o metro quadrado pra sentir o buquê daquele penico enorme. A burguesia faz vela e remo em meio à merda e fazem footing, cooper, passeiam aspirando merda, que outras aspirações não parecem ter e eu aspirava não só a merda da burguesia toda, mas também a merda de meu pai, minha mão, meus avós, minha própria merda. Odiei meu pai, odiei minha mãe e tive nojo de mim mesma. Foi quando conheci o Beto. Não fosse o Beto, cara, eu tava podre de coca, aidética, sei lá o quê, o Beto me ressuscitou, me ensinou a revolução, e Juliano não conseguia entender aquela súbita intimidade, não lhe desagradava ser tuteado pelas alunas, uma vez quebrada a hierarquia o diálogo corria mais solto, mas tinha de forçar-se para aceitar aquele “cara”, onde a Aninha toda encabulada que uma tarde lhe confessara os dias em que acordava sem calcinhas sem saber quem as havia tirado? Ana já não era Aninha, mas “compa” Anita.

A ilha, ó cara, tem uma vocação para a podridão e eu estava apodrecendo junto, o problema nem é a ilha, é o país todo, a merda é geral, A Beira-Mar Norte é só a ponta do iceberg, sei que ando um tanto escatológica, mas que fazer? Tá todo mundo dando no pé, só que rumo ao errado, foi Beto quem me mostrou isso. Lavar pratos na Europa ou nos States é fome de dólar, projeto de proletário que quer chegar a burguês. O buraco, meu caro mestre, é mais embaixo. Os soviéticos traíram a Idéia, imagina que correram o Beto da Lumumba só porque usava a boina do Che, coisa de pederasta, alegaram, os russos há muito viraram reaças, qualquer dia botam a perder todo o legado de Marx e Lênin, essa tal de perestroika nunca me cheirou bem. Beto aproveitou as primeiras férias. Foi lavar pratos em Estocolmo, lavou em Paris, Londres, nos Sheratons da vida, costumava dizer o Beto, sou íntimo de todos os serviçais.

Pequeno era o vasto mundo.

Balancei, mestre, balancei. Saí de minha cobertura com piscina, tinha até uma mucama chamada Maria para me servir scotch, fui enfrentar catres imundos, antes de deitar tinha de examinar a cama com lanterna e sempre acabava encontrando um escorpião. Era uma pipa, lembras? Pois perdi vinte quilos, olha só a linha, mestre! E isso participando de um projeto revolucionário, não de um regime dietético — e um fio de pentelho, pensou Juliano, puxa mais que vinte juntas de boi —. Professora na UFESC, assessora do BESC, podia ser o que quisesse, tenho paizinho no poder e concurso na ilha é piada, podia estar soltando a franga em Paris a pretexto de estudar Sartre, bebendo e fodendo em Lisboa, espichada nas Açores, pesquisando as origens do s álveo-palatalizado do linguajar ilhéu. Mas será isso vida, ó cara? Saí da merda e fui confraternizar com uma juventude que também fugia do escatol das social-democracias, lá encontrei suecos e alemães, franceses e gregos, tinha gente também do Leste, húngaros e búlgaros, polacos e alemães orientais, a brigada dos gregos era sempre campeã na colheita do café, o que era desleal, afinal nasceram colhendo olivas. Cafezais minados pelos contras, meu caro mestre, vez que outra voava um belga para o Atlântico, decolava um inglês rumo ao Pacífico. Sem falar nos bombardeios, tínhamos instruções de permanecer imóveis e continuar na colheita mesmo ouvindo os Black Birds quebrando a barreira do som, correr pelos cafezais seria mais arriscado. Mas os sandinistas não dormiam de touca. As fronteiras com os ticas tinham defesa anti-aérea e da pesada, um dia foi aquele ruído de jatos ao sul, minha vontade era de cavar um abrigo com as unhas, não que fosse só minha, todos se borravam de medo, quando nosso comandante assumiu a coisa, BRIGADA JOSÉ MARTI!, berrou com voz sem medo. PRESENTE! responderam os latinos, BRIGADA LA PASIONÁRIA! y los pájaros se acercabán, PRESENTE! lá estavam os espanhóis, BRIGADA ZUMBI DE PALMARES e a brasileirada foi uma voz só, PRESENTE!, eu me agarrava nos ramos do cafeeiro e quase mijei nas calças quando lá das bandas dos ticas surgiram dos pájaros en el cielo, mas não eram os Black Birds, eram dois Migs amigos, foi quando uma camponesa gorda, rosto indiático, dessas que parecem ter tido os pés sempre plantados na terra, sabe?, ergueu-se e começou a cantar e aquele canto a peito aberto contaminou todos, cantando saudamos los hermanos cubanos, adelante, marchemos compañeros, avancemos a la revolución.

De Aninha a Anita, mestre, naquele dia me senti promovida, Aninha rimava com filhinha e mal cheguei em Manágua os companheiros me chamavam de Anita, compa Anita, não que me tenha sentido como a xará, ela nem tinha ideologia a não ser os olhos azuis do Garibaldi. Minha identidade já na chegada era outra, havia saído da santa paz ilhoa e estava em meio à runga, como dizem os nicas, ah! cara, aquela nativa com voz de Mercedes Soza, os Black Birds que não eram pássaros nem pretos mas simpáticos Migs, aquele hino entoado nos mais diversos sotaques, primeiro o medo e depois as lágrimas, tudo aquilo, meu professor, ninguém vive se tiver a bunda presa à ilha. E nosso comandante, de FAL em punho. Que és FAL? / Preguntó una vez Juan Lindo / le contestó Gumercindo / con acento popular / compa Juan, ese animal tira todo / si le agarra bien el modo / con usted va a charchalear. Isso é que é poesia, meu professor, eu me sentia a anos-luz de distância das punhetas metafísicas das oficinas literárias e varais literários e encontro literários onde barnabés sedentários e varicosos se jogam elogios mútuos, quão instigante é o teu fazer literário, oh não! instigante é o teu, lá na runga o papo é outro, o poema brota do povo, já ouviste falar no general Parajón? Claro que não, aqui só se fala nestes piricuacos latino-americanos a serviço dos gringos. Ouve, mestre, ouve: saludo a Parajón / con gusto y gran placer / el corazón se me late / al ver la sangre correr.

Foi o Beto, mestre, quem me despertou pra poesia revolucionária, não fosse o Beto eu ainda estava contando as sílabas dos sonetões do Cruz e Sousa, discutindo o erotismo em Drummond, não è à-toa que sempre o achei com cara de medalhão, mal morreu já virou moeda desta republiqueta em que as moedas se esfarelam mal saem do prelo, achei ótimo o cruzeiro levar as fuças do Machado, vai sair logo de circulação, terão de criar heróis em série com uma inflação destas, qualquer dia sobra até pra minha xará, não vai ser mole o que vou ter de suportar de piada. Já pensou, um Departamento de Vultos da Pátria ou coisa parecida fabricando às pressas biografias e feitos e a Casa da Moeda incinerando os heróis no dia seguinte? Poesia, cara, tá na mira do fuzil, não que eu tenha empunhado um fuzil, fui lá para as brigadas da colheita. Mas o Beto, no Nuevo Diário, batucava suas reportagens com um AK-47 ao lado. El Nuevo Diário é e foi um celeiro de poetas, não esses poetinhas nossos que não medem o peso de suas palavras, em verdade elas não pesam nada, outro dia fui visitar o Beto, estava lá nada menos que o Cardenal, aquelas barbas lindas de profeta, o gesto aberto e amoroso, um gato, diriam as meninas da Joaquina. Mas lá a religiosidade é outra, nada dessas missinhas gregorianas tipo chá das cinco com hóstias, lá assisti missas, cara, onde o ostensório era um fuzil, e seus poemas não são estilo ó coração de Jesus que estais na cruz, trazei-me luz, lá o papo é mais sério, Cardenal contemplava um morro ao oeste onde cintilava um letreiro enorme, feito de pedras, F S L N, entonces desde el auto miré las letras grandes sobre el cerro / y dentro de mi habló Dios: / “Mirá lo que hice por vos / por tu pueblo, pues. / Mirá esas letras, y no duden de mi, tené fe / hombre de poca fe / pendejo”. Só então vi um deus viável, um deus vivo, o deus cá da ilha faz dois mil anos que promete voltar pra botar ordem na pocilga, lá deus escreve seus planos nos morros, lá não encontras essas rimas asquerosas de lagoas formosas dengosas sestrosas se espreguiçando ao luar, sem falar, cara, que lá quem usar boina não é chamado de maricón. Aiatolá do Caribe, diz a imprensa burguesa, só porque ele um dia apoiou Khomeini, acontece que o Islã é potencialmente revolucionário, taí o Kadhafi, cardeal por cardeal sou mais o Cardenal.

O mesmo não diria Velha Europa do aiatolá, pensou dizer Juliano. Mas não disse.

Manágua é linda, mestre, linda. Pelo menos para quem tem olhos para ver este tipo especial de beleza. Se vais lá buscar aquele luxo e aquela limpeza do Paseo de la Ahumada ou de Huérfanos, não vais encontrar essa assepsia à la Pinochet, não foi para curtir requintes burgueses que o Beto me ensinou a Nicarágua. As ruas de Manágua estão cheias de poeira, lixo, carcaças de carro, não sei qual é o sol mais insuportável, se o de janeiro ou o de julho, pra tomar um ônibus se espera uma hora e quando se consegue subir a gente viaja como sardinha em lata, os corpos fedem a suor e fritura, nada de novo, já tomei ônibus pra Barra da Lagoa na festa da tainha sempre recusei a BMW do papai. Lá falta água, mestre, até parece o verão em Floripa, falta luz e transporte. Não vou dizer que o povo seja muito civilizado, um dia pedi num restaurante uma tortilla que não conseguia engolir, guardei a metade para o primeiro menino faminto que encontrasse na rua, quando entrou um nica a cavalo na baiúca, podre de bêbado, encostou o cavalo no balcão e pediu uma Cerveza Victória. O professor leu Cortázar? Pode ser que seja morna e sem graça, mas com a herança de Sandino a cerveja sempre é refrescante na Nicarágua, acontece que a cerveja não era para o bebum, o cavalo bebeu o litro inteiro entornado pela boca. É, também tem disso lá, mas afinal se os russos com setenta anos de revolução não conseguiram forjar o homus sovieticus, não seriam os sandinistas que construiriam, em menos de uma década, um ser civilizado. Mas a cidade é linda. Em meio à poeira e aos quarenta e tantos graus, lá estão gravadas as palavras de ordem, Yankees, manos fuera de Nicarágua, No pasarán, Pátria libre o muerte, Ni con cien millones nos vencerán los cabrones, não me foi fácil passar uma semana sem tomar banho em meio àquele calor infernal, mas lá, cara, lá respirei liberdade, não havia pai me cobrando a hora de chegar em casa nem eu precisava fazer relatórios de minhas noites.

* * *

Só porque sou miudinha, Paixão, me chamam Pingo de Porra, mas tamanho não é documento, assim franzininha como sou faço três ou quatro machos pedirem água ao mesmo tempo, tratar três ou quatro até que não é difícil, eles se excitam uns aos outros e eu só tenho o trabalho de apojo, às vezes basta um leve toque de língua. Divertido mesmo foi um padre, Paixão, coitado do homem, acabei ficando com pena dele. Teria uns cinqüenta anos, entrou aqui na Anita com jeito de quem quer fazer sauna, foi naqueles dias do Plano Cruzado e pediu uma massagem-massagem. Como nunca vi massagista-massagista neste bordel, topei atender o cara, ele tremia e dizia que estava tenso, tenso coisa nenhuma, o tanso na vida toda jamais havia sentido uma mulher nua de perto, comecei massageando pelo tronco, fui descendo com as mãos em cruz, nem precisei chegar à pentelhama o pau do padre já estava teso, fui forçando lentamente a mão contra a base do pênis, ele me pedia desculpas, o safado, “olha aí o que você fez”. Disse que não ligasse, tinha pau de bom calibre, eu já estava até ficando excitada, só porque sou baixinha não fujo de pau grande. Lá no Sul há uma lenda, que quando Deus fez o homem, pra diferenciar o macho da fêmea fez as mulheres passarem de pernas abertas sobre o fio de um machado, claro que nas baixinhas o machado cortou fundo. Eu já começava a me entusiasmar com a idéia, quis primeiro sentir a coisa na boca, nem tive como, foi me debruçar sobre o homem e esguiçou aquela leitaria toda. O cara me confessou, Paixão, que tinha cinqüenta e não sei quantos anos e nunca havia transado uma mulher na vida, só conseguiu me comer depois de umas vinte visitas, sempre se remoendo de remorsos. Fiquei tão condoída que até fui assistir missa na paróquia dele, cada vez que ia comungar o homem derrubava os canecos, o sangue de Cristo rolava altar abaixo, dizia ele que era sangue, pra mim sempre foi vinho, mas vinho e leite ele não me dava, só recebia aquele pãozinho sem fermento. Levei um domingo o padre lá pra casa, a mãe tinha viajado, mal fiz um cafunezinho foi aquela molhaçada nas calças, passou a tarde toda no pátio, as pernas abertas, parecia um lagarto secando ao sol. Eu tinha de rir, Paixão, me escondia do coitado pra rir um pouco, só que depois me deu vontade de chorar, o padre me pôs na cama, encostou o rosto em minha xexeca e chorou que nem criança, as lágrimas me molhavam os pentelhos e ele gemia, “eles me roubaram a vida, roubaram minha vida inteira”. Pode, Paixão, pode?

Ele foi viciando, Paixão, vinha todas as semanas e só queria ir comigo, levei acho que quatro ou cinco meses pra conseguir que o cara me penetrasse antes de acabar, ele começou me beijando em cruz minha teta esquerda, falava numa língua de padre antigo, acho que rezava um breve contra a luxúria, Deus, qui justificas ímpium, et non vis mortem peccatoris, majestatem tuam suppliciter deprecamur: ut famulos tuos de tua misercordia confidentes, caelesti protegas benignus auxilio, et assidua protectione conserves; ub tibi jugiter famulentur, et nullis tentationibus a te separentur. Per Dominum, eu tinha mais vontade de rir do que quando me fazes cócegas, mas agüentei firme, algo me dizia que naquele dia o padre segurava a tropa, aí começou a me lamber a outra teta, sempre rezando, Hujus, quaesumus, Domine, virtute misterii, et a propris nos munda delictis, et famulos tuos ab omnibus absolve peccatis. Per Dominum, pelo pouco que entendi do latinório, depois de cada seio e cada oração ele repetia aquele perdóminum, acho que pedia perdão pelo prazer que sentia, e aí ele foi descendo, Paixão, eu quase não conseguia acreditar, mas o homem continuava descendo, me lambeu o umbigo, respirou fundo e enfiou a cara no mato, Purificent nos, quaesumus, Domine, sacramenta quae sumpsimus: et famulos tuos ab omni culpa liberos esse concede; ut, qui conscientiae reatu constringuntur, caelestis remedii plenitudine glorientur. Per Dominum, e sempre pedindo perdão veio por cima de mim, te confesso, Paixão, que perdi toda vontade de rir quando recebi aquela máquina enorme, eu me sentia que nem frango no espeto, ele também me sentia como frango no espeto, acho que é isso que excita os homens nas baixinhas, nem precisam ter pau grande para se sentirem bem dotados, e até que um dia professor, conseguiu gozar em mim, pediu depois que eu me acocorasse sobre o rosto dele, asperges me, minha Pinguinho de Porra.

Eles são todos muito machos, Paixão, o coitado do padre era exceção, sempre me tratou bem, verdade também que foi melhor tratado, não sei se alguma outra mulher aqui da casa teria a paciência que eu tive, mas ali na sala do bar eles só contam vitórias, onde quer que andem posam de galos, é por isso que estou assim branca em pleno verão. Eu adorava ir à Joaquina, Paixão, mas não suporto sentir que quando passo sempre tem alguém dizendo pra alguém, a gatinha aquela ali eu já faturei, posso ser puta mas tenho dignidade, aqui na cama redonda faço qualquer sacanagem, mas na rua ou na praia não estou em serviço, tenho o direito de passear ou tomar sol sem que me incomodem. O que me dá mais nojo é que eles não coragem nem mesmo de cumprimentar a gente, quanto mais de convidar pra uma cervejinha, na rua até parece que viro leprosa, a uns vinte metros de distância eles já vão procurando alguma coisa à direita, à esquerda ou nas nuvens, algo para olhar que não seja meu rosto e é por isso que te adoro, Paixão, fiquei sem entender nada o dia em que me viste na Felipe Schmidt, eu tinha certeza que ias virar o rosto. Mas não, paraste, me abraçaste e me beijaste na testa, me senti quase tua filha, acho que nunca ninguém me beijou com carinho, muito menos me ofereceu um café no Senadinho, eu disse que não, paizinho, que estava com pressa, não tinha pressa coisa nenhuma, é que me deu um branco e eu não sabia como aceitar, nós todas te adoramos, mesmo as que nunca foram contigo, não sei se já notaste, mas nenhuma mulher pega homem enquanto não escolheste a tua, ficar contigo dá prestígio, nesta tarde o mulherio todo deve estar me invejando.

O que entortou todo mundo aqui da casa, Paixão, foi aquela festa da Tê 1, nessas datas a gente larga o ofício e vira moça-família, traz filhos e namoradinhos, a Tê havia passado no vestibular, festa é festa e em dia de festa não se trabalha, a gente convida os clientes que nos tratam bem, deves ter recebido convites de todas, não só o meu, sei disso. Sei lá por quê, acho que vieste um pouco por mim, sei que para ti não sou um buraco, mas a dona da festa era a Tezinha, longe de mim pretender te fazer sala. Não sei quem, Paixão, talvez fosse até a Tê, teve a idéia de trazer um fotógrafo. Achei lindo, Paixão, lindo, na hora de cortar o bolo, mal o fotógrafo se ajeitou, não sobrou macho na sala, tinha gente pedindo banheiro e perguntando que horas são, duvido que alguém tivesse pensado em sauna naquela noite, quando fui lá tava todo mundo espremido que nem malandro em camburão e eu fiquei só olhando, na sauna não cabia aquela gente toda, eles estavam colados uns aos outros e se bem conheço meu povo, com medo e vergonha de ficar de pau duro e lá na sala, paizinho, sobrou só tu, eu não acreditava no que via, sei que sempre cumprimentas a gente na rua, mas não acreditava que topasses uma foto com o putedo todo, ninguém acreditava, a gente achava que tinhas ficado ali por uma questão de gentileza, sempre foste gentil, mas todas esperavam que na hora da foto cobrisses o rosto com um copo, com esses jornais que sempre trazes debaixo do braço, ninguém acreditava no que via quando cortaste o bolo, tua mão na mão da Tê, ela te pediu um beijo, aquilo foi desafio dela, acho, eu nunca te forçaria a um beijo, como também não acreditava que te deixasses fotografar com uma de nós, sei que vives em outro mundo e nesse mundo não somos aceitas, se bem que tem muita universitária arrendondando o fim do mês nas boates, e aí tu beijaste a Tê na boca, o fotógrafo registrando tudo. O que mais gostei, Paixão, foi aquela foto com a turma toda, parecias o Cristo na Santa Ceia, nós todas guardamos com carinho aquela foto, quem saiu nela se sente... sei lá... se sente mais gente e menos puta e podes ter certeza que ninguém vai usar aquela foto pra te sacanear, se usasse teria de mudar de cidade, não teria mais espaço aqui na ilha. Se a gente já não tem muito respeito por esses que trocam de calçada quando nos vêem na Filipe Schimdt, aquele monte de machos amontoados na sauna saiu de crista baixa, só não levaram vaia porque bem ou mal dependemos deles. Naquele dia aconteceu algo, tu fizeste acontecer algo, se fugisses da foto não teria acontecido nada, é normal que ninguém goste de ser fotografado com uma mulher da noite, eles todos têm mulher, filhos, um nome a zelar. Foste tu, Paixão, que entornaste o caldo, tu feriste a normalidade, as meninas estavam de queixo caído, até a Tê chorava, ela contou que chorou a noite toda abraçada contigo, aquela foto vou guardar pro resto da vida, aquela foto vou guardar pro resto da vida, paizinho, me deixa dormir enroscada em ti.

* * *

— Gosta de festa, Professor? — perguntou Zefa e ele sentiu-se entre a cruz e a espada, como explicar àquele ser de diminuto universo mental que festas o entediavam, isso quando não o entristeciam? “Sou sempre triste nas festas, alegre em mesa de bar”, escrevera nos dias de veleidades literárias. Como ponto de partida de um poema, até que não se saíra mal, acontece que o possível poema morrera ali mesmo, naqueles dois versos. Festa implicava desconhecidos, com poucas chances de serem simpáticos, já na adolescência começara a evitar festas, reuniões onde todo mundo fala e ninguém diz nada, desde há muito se habituara ao diálogo mano-a-mano, eventualmente com quatro ou cinco pessoas, mais do que isso era multidão. Ou aula. Estava se tornando misógino? Dissessem o que quisessem. Numa época que não poupa nada nem ninguém, dizia Goethe, vou pelo menos poupar a mim mesmo. Fechava com Goethe.

— Gosta de festa, Professor?

Tinha segundos para responder e a situação era crítica. Dissesse que sim, poderia condenar-se a alguma atroz celebração de aniversário, provavelmente de Princesa, com tortas açucaradas e xaropes ianques, como diria Taba. Sem falar em toneladas de decibéis de rock. Como expressar então sua misoginia sem ferir Zefa, que com tanta alegria o convidava? Havia algo no ar nas últimas semanas, Zefa reboleava os quartos mais febrilmente, uma agitação inusual tomara posse dos olhos de Princesa e mesmo entre as rendeiras da avenida podia-se intuir que algo festivo, talvez insólito, estava por ocorrer. Perdia-se em alternativas como resposta, quando Zefa, sem mais esperar, resolveu a questão:

— O professor está convidado. Começa na sexta-feira santa.

Estava perdido. Fodido e mal pago. O convite, não recusado em boa hora, acenava com duas implicações funestas: festa religiosa, certamente, e com começo na sexta-feira. Zefa ria com todos os dentes, estava feliz ante a perspectiva de apresentar seu hóspede à comunidade, por um lado certamente se apiedava de sua solidão, por outro lhe conferia prestígio exibir seu inquilino, o Professor. Já começava a planejar uma hipotética viagem a Porto Alegre, pediria asilo a Taba, enfim, Taba era inviável, da Lagoa à Barra havia seis quilômetros e todos eram primos naquela geografia, quem sabe viajava mesmo, ou, mesmo não viajando, se escondia em algum hotel ao norte da ilha. Antes mesmo que abrisse a boca para dizer que infelizmente etc. e tal, Dona Zeferina explicou:

— É Semana Santa, Professor. Tem farra do boi.

Bendita boca que se mantivera fechada. Bois lhe traziam um cheiro de infância, cheiro de aveia e verde, canções escondidas nalgum escaninho perdido da memória. Eu mandei fazer um laço / do couro do jacaré / pra laçar meu boi barroso / lá nas costas de Bagé. Para um gaúcho saudoso da pampa, que mais queria almejar? Na várzea ao lado havia cavalos e quero-queros, encontrara até mesmo um leiteiro que pela manhã lhe trazia apojo morno e Zefa agora o convidava para a mais típica festa ilhoa! Taba era um chato, um pessimista profissional. Pode contar comigo, Dona Zeferina!

Salvo. Já se imagina em aniversário em família, copo de plástico em punho, espumando de coca ou pepsi, mais quinze velinhas, parabéns pra você, sopros, enfim, a síntese de tudo que mais detestava na vida. Ouvira vagamente falar da festa, das danças e canções. Embora não dançasse nem cantasse, sempre se sentira bem em meio a gentes cantando, as festas populares sempre lhe traziam um sabor de terra, por mais estranhas e longínquas que lhe soassem as canções. Conheceria a Bernunça. Outro dia, passando sob a figueira da Praça Xivi, ficara perdidamente enamorado de uma voz que cantava: Olé, olé / olé, olá / arreda do caminho / que a Bernunça qué passá. Olhou a mulher que cantava, ao violão, para uma roda de crianças, e seu rosto também era lindo, vontade não lhe faltou de acocorar-se junto aos pivetes e ali permanecer contemplando aquele ser lindo por dentro e por fora. Bernunça. Taba alimentava etimologias para seu próprio gosto. Que Bernunça, no imaginário ilhéu, era a mulher de Satanás. Que tudo decorria da cerimônia do batismo, nos tempos do latim. Ab renuncia Satana? — perguntava o padre. Ab renuncia — respondia o padrinho. Daí Bernunça, a mulher de Satanás. Iria conferir.

A ilha começava a tomar sentido. Se as reuniões de departamento lhe haviam alterado a pressão arterial, o problema não era da ilha mas da universidade como um todo, onde quer que trabalhasse enfrentaria os mesmos insultos e dilacerações mútuas. Já nas primeiras reuniões notara uma certa atmosfera, que em algo se distinguia do ambiente de uma redação de jornal, só não conseguia precisar em quê. Logo decifrou o enigma. Numa redação, tudo era passageiro, o jornalista que hoje redigia a seu lado poderia amanhã não estar mais ali, havia uma dinâmica no ofício que mudava a cada semana os rostos que o rodeavam. No departamento, os rostos eram eternos, a estabilidade de função na universidade transformava seres teoricamente pensantes em barnabés preocupados com gratificações e aposentadoria, constituíam uma grande família, um colossal recipiente de ódios e cumplicidades. Morreriam todos abraçados, arranhando-se como gatos em pânico em um saco fechado jogado a um rio. Morreria ele também naquele naquele saco? Talvez sim, talvez não, mas como em algum lugar teria de morrer, a ilha não lhe desagradava como sepultura. Lembrou Taba e irritou-se, mal lembrava morte lembrava Taba, o pior é que não conseguia escapar à infame associação de idéias. Ódios acadêmicos eram cavacos do ofício, tinha a Anita Garibaldi para relaxar, nem tanto pela sauna mas pela paz nela reinante. Com o convite de Zefa, sentia que começava a integrar-se no universo ilhéu. Eu mandei fazer um laço — surpreendeu-se cantarolando — do couro da jacutinga, pra laçar meu boi barroso lá no passo da Restinga.

* * *

Que fazer, Bagual, quando tens talento mas não tens parente, quando estás no auge de tuas forças e te fecham todas as portas? Mal assinei uma croniquetas no Diário, não faltou quem perguntasse: mas ele é filho de quem? Como se fosse necessário ser filho de alguém para escrever bem. Eles não perdoam. Ou és filho de um nome de rua ou então algum universitário em crise de tese te descobrirá, daqui a um século, é claro, quando estarão mortos e bem enterrados os contemporâneos que interpelaste. Em falta de pai serve um partido, o ideal é o PC, tem sacristias em todos os cantos do mundo. Amado intuiu a coisa desde cedo, não fosse o Paizinho dos Povos o baiano seria mais um jovem talento que promete, desses que acabam morrendo na casca, verdade que pagou seu preço, mas o fato é que aí está, louvado em prosa e verso, cinema e televisão, imortal e com pretensões a Nobel. Mas há homens que são inteiros, pouco se adaptam a partidos e concessões e ai de ti se estiveres entre estes. O PC é uma mão na roda para um jovem sem maiores escrúpulos, é só seguir a boa linha e logo estás viajando a congressos pela paz, efemérides, mordomias mundo a fora, claro que a prisão, conforme as circunstâncias políticas, é sempre um risco, mas quem vai em cana é operário mesmo, que intelectual tem sempre seus respaldos, sem falar que alguns meses de cárcere, mesmo por apoiar a barbárie e o totalitarismo, sempre caem bem em um currículo.

A glória, eu a conheci, Bagual. Lembras da morte de Nereu Ramos? Pois fui o primeiro a chegar aos destroços do avião, pela primeira vez um jornal gaúcho furava a imprensa nacional, o Diário vendeu meio milhão de exemplares. Entrevistei Franco, Tito, Che Guevara, fiz a cobertura de copas do mundo e festivais de cinema, os Sheratons da vida não me são estranhos e apesar dos magros dólares que me restavam como salário — hotéis e mordomias sempre tinham patrocinadores — pude sentir-me, de fato, jornalista. Recebi quilos e quilos de cartas por ano, havia quem me considerasse algo assim como um semideus, o homem que hoje está em Cannes, amanhã em Berlim, semana seguinte repousando nalguma ilha do Egeu, certa vez fui fotografado com a Liv Ullman, outra vez xinguei a Jane Fonda numa coletiva e daí o leitor imóvel já deduz: ele transou com a Liv e deve ter-se desentendido com La Fonda e não seria eu quem negaria tais delírios. A fama é uma soma de equívocos, disse alguém. Fui um mito vivo, tche! Bueno, aí morreu o Diário e os colegas que me abraçavam e davam tapinhas nas costas passaram a procurasr-me com ímpetos mórbidos, “e agora, Taba, que vais fazer?” Emprego, que é bom, nada de oferecer, trabalhar é relacionar-se com o mundo e esta relação me foi vilmente cortada. É muito duro, Bagual, hás de convir, para um jornalista que já revirou mundo, visitar redações pedindo uma chance em seus sessenta anos, arriscando ter de ouvir como resposta uma vaga de redator. Durante muito tempo me propus jamais ser amargo, não sei se consigo manter meu propósito.

Eles não perdoam, Bagual. Mesmo sem um vintém no bolso, escrevi no amor para alguns jornais, questão de desabafo, há horas que a estupidez satura de tal forma a atmosfera que pagamento é o que menos te preocupa. Aqui o Taba não publica, sentenciavam secretários de jornais, alguns eu havia iniciado na putaria da imprensa, todos contestadores de 64, da ditadura que havia decretado a morte civil de centenas de intelectuais. Com o mesmo sangue frio dos militares decretaram minha morte, roubaram a tribuna de onde eu falava aos meus. Eu fiz um jornaleco de província vender vender meio milhão de exemplares, meu querido, eu vendo um jornal quando assino, não há editor que não saiba disso e por isso mesmo fui ostracisado, nesta ilha me entedio como uma ostra, bem deves imaginar o tédio de uma ostra, nestes dias em que se discute a identidade ilhoa e se busca para a cidade um novo nome, tenho minha modesta sugestão: Ilha de Nossa Senhora do Ostracismo, santa padroeira do spleen dos moluscos. Barnabé é molusco, não tem ossos nem fibras e ser molusco foi minha opção para não morrer de fome. Não estou bem comigo mesmo, meu querido Bagual, minha ironia e meu aparente bom-humor são estratégias defensivas, no fundo, no fundo mesmo, espero que Ela, dama caprichosa, não se faça esperar muito. Sem falar que minha carcaça obedece cada vez menos a meus comandos. Esta ilha, já te disse, não é má para morrer.

O dia em que apertei a mão de Franco, aquela mão flácida e sem nenhum calor... O caudilho estava mais pra lá do que pra cá, mas era ainda o Generalíssimo, caudillo de España por la gracia de Diós, a foto saiu na primeira página do Diário, dava a impressão que eu havia interpelado o homem, quando tudo não passara de protocolo mudo e sem palavras. Não era de bom tom, na época, louvar Franco, mas poder é poder e o fato de ser recebido por um homem de Estado valeu-me prestígio e mulheres. Franco morreu. Os intelectuais espanhóis que lhe haviam dado sustentação, ou que pelo menos jamais haviam ousado dizer algo contra, hoje enchem a boca ao falar “en la época del tirano”. Sempre fui apaixonado pela Espanha, com ou sem Franco, sabes disso. Meu enamoramento me rendeu uma beca, sob pretexto de tese degustei cochinillos em Segóvia, lechales em Toledo e até hoje não me sai dos neurônios o cheiro dos campos de feno de Pravia. Minha beca me impunha certas obrigações, entre elas a de freqüentar aulas em Madri. Um de meus professores, além de ser imortal, era presidente da academia dos imortais. Sabes quando o homem renegou Franco? Só um ano após sua morte, já seguro de que o Generalíssimo não ressuscitaria. Hoje, o imortal é de esquerda. Já o Taba é fascista. Só porque apertei, protocolarmente, a mão de um moribundo. Há algo de errado em tudo isto, acho, ou talvez o errado seja eu e mesmo depois de velho não me dei conta disto, ao que tudo indica primeiro precisas chegar a um ponto qualquer acima do bem e do mal e depois tudo te é permissível, podes receber condecorações de Pinochet, como Borges, ou tapinhas do Stalin nas costas, como Neruda ou Amado, após ter chegado a uma certa altura, a esse ponto a partir do qual tudo é perdoado, podes até esticar o braço saudando Heil Hitler! que teus biógrafos terão o cuidado de maquilar tua vida, retocar aquelas rugas históricas, tornar-te up-to-date, como se dizia antigamente nos jornais. Mas cuidado com todo e qualquer gesto antes de chegares a este ponto imponderável, só ao alcance, começo a concluir, de vigaristas de alto bordo.

Quando tinha emprego e tribuna, nos dias em que ao aterrissar em Porto Alegre produzia manchetes tipo Taba disse, Taba declara, segundo Taba e outras que tais, eu era o jornalista que entrevistara o Che e o marechal Tito. Mal morreu o Diário, no mato e sem cachorro, passei a ser “o que apertou a mão do Franco”. Sempre abominei a prostituição, não aquela de bordel, da qual muito me servi, nos servimos, Bagual, mas a intelectual, a venda da alma em troca de fortuna, e cá estou vendendo migalhas do que tenho em troca de pão. Suicídio? Já pensei na hipótese, mas o suicida sempre pensa em punir alguém e eu sequer tenho a quem punir, sem falar que sei que estou partindo e não tenho pressa, o que me mantém vivo é a curiosidade, divisar na praia os robinsons voluntários que buscam Laputa, que contestam minhas considerações sobre a ilha, sem saber que aqui chegaram fascinados pelas imagens que criei, nem tanto pelo pão nosso de cada dia, mais talvez por meu incorrigível espírito de porco.

Este meu azedume... Há um pouco de teatro em meu sarcasmo, já deves ter notado, acho que até gosto da ilha, se a xingo tanto é porque algo existe entre eu e ela, jamais nos preocupamos com a conduta de uma mulher que não nos interessa. Laputa me propicia exercícios de ironia, gênero que nem sempre consegui passar nos jornais. O que me dói é a pobreza humana desta gente. Toda comunidade que se preze deveria ter, acho, dois ou três homens a admirar, pelo menos dois ou três, ou mesmo um, um espécime daqueles que fascina os jovens e lhes serve de emulação, seja por sua coragem e retidão, seja por sua visão e criatividade. Em Laputa não há sequer um, a própria heroína criada para consumo escolar nada mais fez senão seguir os passos de un belo maschio italiano. Em meus dias de guri, sem sair da Rua da Praia, tive a ventura de charlar com um Manoelito de Ornellas, com um Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Mário Quintana, e este convívio me foi benéfico, acho que a todo adolescente que lê deveria ser garantido o direito de um dia freqüentar a casa dos autores que admira, é como se o adolescente, perplexo ante a intimidade que lhe oferece o criador, se sentisse um pouco partícipe de sua grandeza. Participar da grandeza de quem, aqui? Não falo por mim, o que deveria ter feito já fiz. Me ponho na pele de um universitário que começa a fascinar-se pelas letras e pelo mundo do espírito. Qual seu parâmetro mais ao alcance da mão? Um barnabé de cerviz gacha, quatro ou cinco prebendas e a devida subservência aos donos do poder.

Eles pressentem, claro que pressentem, este nosso olhar. Sentas sozinho em um bar, jornal em punho, este gesto já constitui agressão, pior ainda se abres um livro: agrides em dose dupla. Já tens bom tempo de ilha, terás observado que eles são gregários, jamais entram sós em um bar, nem mesmo em botequim de praia. Só existem enquanto grupos e estar só já te identifica como gente de fora. Se além de sentares sozinho aproveitas teu tempo para leitura, bueno, aí estás marcado na paleta, onde se viu ler em bar? Eles pressentem. Pressentem e reagem. Lembras como reagiam os yahoos à superioridade dos Houyhnhnms? Subiam nas árvores e jogavam as próprias fezes nos seres de cuja nobreza não conseguiam participar. Este gesto, mesmo para os padrões ilhéus, seria no mínimo pouco civilizado. A defesa do yahoo catarinensis é o amplificador de sons. Podes buscar a praia menos freqüentada, podes subornar o dono do botequim deserto para que desligue seu radinho. Ao abrir teu livro, não faltará o animal que encoste sua cápsula de rock ambulante, abra as portas da lataria e se delicie com teu tormento. Para opor-se ao silêncio civilizado, os bárbaros só conseguem empunhar seu escudo de decibéis. Em falta de palavras, empunham ruídos. Só te resta então fechar teu livro e amaldiçoar o dia em que te deixaste encatarinar.

* * *

Toda ilha tem, meu jovem doutor, como direi? suas insularidades, com perdão pela tautologia. Concentração de poder, verbi gratia. O professor deve julgar ridícula, disto tenho certeza, nossa Academia. Talvez até mesmo tenha razão. No entanto, nesta Casa que fundei, o que menos importa são as tais de Letras, não pretende o professor que uma ilhota produza, sem mais nem menos, quarenta escritores que mereçam a imortalidade. Esta Casa, professor, é a ante-sala do poder. Para dela participar, sempre é bom ser genro de alguém, você já deve ter intuído que ser genro é profissão de grande futuro na ilha. Genro de alguém no poder, bem entendido, que há sogros e sogros, neste jogo sutil uns poucos valem muito e outros muitos valem zero. Uma vez atingida esta condição, a de genro de um sogro forte, qualquer mortal está pertinho da imortalidade. Obra literária? Dispensável, professor. Afinal, Getúlio não pertenceu à Academia Brasileira de Letras, Adelita não usa fardão? Uma vez dentro da Casa que fundei, o genro pode postular outros cargos e comendas, desde um doutorado por Notório Saber junto à universidade, o que talvez lhe pareça fútil mas em verdade não é, título aqui, título ali, você acaba participando de conselhos estaduais de cultura, de conselhos editoriais desta ou daquela fundação, sem falar em outras funções no Município, Estado e União, salarinho aqui, jeton lá, sempre se pode chegar a um belo patrimônio, e isso sem fazer força. Sem falar no poder, professor, na manipulação do poder e no prazer deste manipular. Na ilha, meu jovem Doutor, só publica quem nos interessa que publique.

É judeu, o Doutor? Pelo nome não parece. Homossexual? Não leve a mal o professor tais perguntas, em verdade nada têm a ver com com suas origens ou preferências sexuais, minha intenção é apenas orientá-lo, isto é, orientar é palavra por demais forte, gostaria apenas de alertar, sim, alertar, este parece ser o verbo adequado, alertar o jovem doutor para certas sutilezas de uma carreira intelectual. Há círculos e círculos de difusão literária, professor, se você pertence a esta ou àquela tribo, sua obra, tenha ou não valor, será ou não divulgada. Se o professor é goi, por exemplo, não pretenda traduções mundo afora, a menos que supra outras condições. Gay, por exemplo, ser gay é uma delas, não estou insinuando nada, longe de mim tais conselhos, mas o fato é que, meu caro, ser homossexual, desde Platão a Wilde, sempre foi bom passaporte no mundo das Letras. Sendo o professor goi mas não gay, tem frente a si outras opcões, ser marxista ou católico. Por qualquer das vertentes, bestseller garantido, mais acenos de Nobel. As duas igrejas são fortes, meu jovem, e têm paróquias em qualquer canto do mundo. Não sendo o professor nem judeu, nem homossexual, nem marxista, nem católico, terá então de contar com suas próprias forças e certamente cerrará fileiras com aqueles têtus, que só reconhecemos depois de mortos. Há duas linhas mais de pesquisa, ser negro ou ser mulher, a coisa já virou gênero literário, há especialistas no país todo de literatura negra ou feminina mas, e isto salta aos olhos, o professor não se enquadra em nenhum destes gêneros.

Tampouco seja o jovem Doutor hostil a esta delicada chinoiserie que estamos tentando erguer, a literatura barriga-verde. Nossas letras, professor, incipientes, é verdade, não podem ser analisadas à luz fria da crítica, ou virariam pó. Busquemos então compreensão na filosofia oriental, no Tao, por que não? Chuang Tzu, cinco séculos antes de Cristo, parece ter-nos entendido.

Quando olhamos as coisas à luz do Tao,
nada é melhor, nada é pior.
Cada coisa, vista à sua própria luz,
manifesta-se a seu próprio modo.
Pode parecer melhor
do que é comparável a ela
em seus próprios termos.
Mas, em termos do todo,
nada torna-se melhor.

Portanto, nada há que não seja grande, e nisto reside, professor, a grandeza de nossa literatura, como queríamos demonstrar. Viver é a mais complexa das artes, Doutor, ou a mais simples, depende da sintonização de nossa mente com a universidade da vida.

Quanto à ascensão intelectual dentro deste pequeno microcosmo, por certo o jovem Doutor saberá como comportar-se, não por acaso doutorou-se na França. Louons-nous les uns les autres. Críticas azedas não levam ninguém a lugar nenhum, professor, vide o Agripino Grieco, por melhores que tenham sido suas intenções, hoje é curiosidade de museu. Tao, Tao, meu caro, leia o Tao, nada há que não seja grande. Escreva dez ensaios sobre vinte autores, ensaios laudatórios, é claro, dedique seus dez ensaios a dez outros e, em meio a eles, cite mais uma centena e terá então o professor uma idéia do poder multiplicador do verbo, quem quer que empunhe uma pena logo sente cócegas de glória. Ser historiador destas vaidades é glória garantida por um século pelo menos, não que esta glória póstuma nos gratifique, afinal vivemos aqui e agora, mas um livro assim, professor, que estimula ambições e não fere vaidade alguma, é passaporte tranqüilo para vida ociosa, mansão na praia, bolsas intermináveis na Europa, veraneios nas Açores em busca de nossas raízes, que mais não seja em terra lusas um monoglota se sente menos depaysé do que se estivesse em Paris ou Londres. Assim sendo, doutor, por favor não asseste suas baterias críticas contra esta incipiente literatura, leia o Tao, não é lá muito católico mas justifica qualquer coisa, sem falar que goza do prestígio de vir do Oriente. Só o Tao, meu jovem, e nenhuma outra teoria fornece fundamentos aos intérpretes de nossa insularidade. Quer o professor receber um dia as honrarias — e conseqüentes mordomias, é claro — que reservamos aos que nada constestam, àqueles aos quais jamais ocorre questionar esta delicada construção, a identidade ilhoa? Observe então os sinais de tráfego. Verdade que não estão afixados nas ruas nem nos corredores da universidade, mas o professor terá intuição suficiente para entendê-los.

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!
clama Salomão com infusa ciência.
Mortal sendo, em minha humanidade,
vaidoso sou: vaidade é minha essência.

Não estranheis pois, senhores imortais,
que vos confesse sem pudor ou continência
o mais mimosos dentre os vícios capitais,
esta fome e humana sede: permanência.

Quando, pura flama, fugir à imanência,
buscador infatigável de sua identidade,
quando, ao declinar incerto da existência,

souber que em minha ausência a vida continua,
lá do além almejo ver, em minha cidade,
meu nome ornando a esquina de uma rua.

* * *

As favelas, cara, vai ser de lá que vai descer a revolução, as favelas são cinturões de ódio e ressentimento dia-a-dia realimentados pela televisão, qualquer novela das sete, das oito ou do caralho vende padrões de vida e consumo fora do alcance do zé-povinho, mas o Zé fica babando diante do vídeo, talvez no dia seguinte desça do morro e compre o cigarro que fuma quem sabe o que quer, pode até comprar aquele tênis que dá um certo tchan, talvez até as cuecas aquelas que transformam qualquer pobre diabo em um deus grego, acontece que logo-logo ele se dá conta que mesmo fumando o cigarro de quem sabe o que quer, mesmo calçando o tênis que demonstra um padrão de vida, mesmo usando as cuecas que o tornam mais viril, mesmo assim ele continua sendo um pobre diabo e quando descobrir que o tal de cigarro, os tais de tênis e as tais de cuecas são conseqüências de uma condição social — e não causas, como a publicidade insinua — aí, mestre, aí quero ver o que vai acontecer.

No Brasil, cara, está tudo maduro para a revolução, não é como na Nicarágua, onde as comunidades viviam um estágio de desenvolvimento muito primitivo, tinham formas comunais de propriedade e nada entendiam de luta de classes, como pode ocorrer luta de classes se nem classes existiam? Até agora a imprensa burguesa cobra o extermínio dos índios misquitos. Mas como fazer revolução, mestre, onde não há classes nem luta de classes? Tivemos primeiro de criar classes entre os misquitos, estabelecer a luta entre elas, e só então tratar do processo revolucionário. Neste país está tudo em fervura, mais um pouco e a negrada toda do morro vai descer com baldes de ódio fervendo, nós estamos atentos à capacidade explosiva dos morros, a igreja também, e ainda há os presídios, cara, ou achas que é por acaso que há uma pastoral penitenciária, já imaginaste esta gente toda com um FAL em punho? Nosso cardeal já percebeu este potencial de ódio contido e se hoje algum rato toca no fio do cabelo do criminoso mais vil, no outro dia é denunciado na imprensa européia, a Igreja sempre teve seu lado revolucionário e se algo redime para mim esta bosta de terra é que nosso cardeal é catarinense. Viste aquela palestra do Callado? Que nenhum país decente chegou a ser o que é sem fosse necessário rolar sangue? Que o caminho da revolução passa pela Igreja e pelo PT? Vibrei com a coragem do Callado, nunca ninguém havia dito isto publicamente aqui na ilha, e mais, nos salões da universidade. O reitorzinho não sabia onde se enfiar, como anfitrião não iria contestar o visitante, sem falar que passaria por reacionário. Metade da batalha nós já ganhamos, mestre, ninguém mais tem coragem de contestar uma posição nossa. Se tiver, nós o ridicularizamos nas assembléias e na imprensa. O sangue rolou na Rússia, rolou na França, rolou nos States e agora vai rolar aqui ou este país nunca sairá da merda. A ilha pode ser um atraso, mas nela existe um tremendo potencial revolucionário, a farra do boi, mestre, exato, esta festa do povo, brutal, é verdade, mas sempre é bom que o povo goste do cheiro de sangue.

A farra, mestre, é paradoxal, dá votos a quem a financia e mais votos ainda aos que a condenam. Ecologistas do país todo estão descendo à ilha, cara, defender o boi sempre dá manchete nos jornais do centro, sem falar que eles não têm o ônus de proibir ou prevenir farra alguma e quanto mais a condenam, mais acirram o ódio latente do pescador, deste pobre coitado que viu seu território invadido pelo século XX e só sabe reagir pela violência. Jornalistas mal-informados andam acusando a Igreja, que padres e bispos jamais disseram uma palavra que fosse contra a farra, mas que poderiam dizer, professor, se bebem sangue todos os dias? Só padre de província mesmo, daqueles que ainda acreditam em Deus, para achar que a Igreja pode existir sem sangue, o sangue está em seus alicerces, começa com o de Cristo e continua História afora, vai perder o trem quem acha que a utopia pode ser construída sem sangue. Ninguém lembra mais que os etarras e os brigadistas vermelhos, que o pessoal da AP aqui em Pindorama, foram todos movimentos nascidos em círculos católicos, é claro que padre algum vai condenar a farra, seria o mesmo que abominar sangue, a seiva de que se alimentam, não é por acaso, mestre, que nosso cardeal fecha com Castro e Casaldáliga, os irmãos Boff com Ortega e o Cardenal com Khomeini. Sem um novo banho a humanidade não se renova, democracia é conversa pra boi dormir, o pepino é que a palavra é muito forte, tem enorme prestígio histórico, não vejo porque não usá-la, pelo menos enquanto não chegarmos ao poder. Moscou já era, cara, Cuba também, o líder agora está na Líbia e é para lá que eu vou, nem que tenha de usar véu.

O ódio, professor, pode ser direcionado, todo revolucionário sabe disso. Em vez do boi, um burguês. Sabãozinho, sabãozinho / de burguês gordinho / latifúndio e reação / vai virar sabão. Soa a anos 60, não é mesmo? Mas a palavra de ordem permanece atual. O professor leu sobre aquele assalto a um prédio da Beira-Mar Norte? Deve ter lido, é claro, vive carregando jornais. Pena que não foi no meu prédio, queria ver meu ilustre progenitor se borrando de medo do alto de seu prestígio e de sua fortuna. pena que não foi lá. Viu quem eram as coitadinhas das vítimas, mestre? Tudo deputado, senador, ex-deputado, secretários de Estado. Você viu, no outro dia, a reação do povo? Viu algum gesto de condenação aos assaltantes? Nenhum, cara, nem unzinho, nos olhos de todos pairava um sorriso, desde a faxineira ao comerciário, do bancário ao barnabé, no olhar de todos se lia só absolvição, esses têm cem anos de perdão. Imaginou o dia em que o povo descer dos morros, professor? Ser boi nesta ilha vai ser privilégio, o boi só sofre a dor física, o burguês vai começar sofrendo a dor moral de perder o pedestal de merda que o sustenta, não é por acaso que a Beira-Mar cheira à merda. Já imaginou, os ilustres deputados, os juízes bons e baratos, os barões da coca, todos despidos de seus dólares e barras de ouro, da piscina e da mansão na praia, do status e do séquito de puxa-sacos? Isto antes do paredón, é claro. Aposto que boi não sofre tanto na farra, boi não sabe o que é poder.

* * *

Ou então a farra do boi, Bagual. Viste esse alarido internacional, ecologistas da Europa e dos States xingando a ilha e os ilhéus? Brigitte Bardot mandando cartinhas ao ministro da Justiça? Bueno, cá entre nós, atrás dessa gritalhada toda está o Taba. Já viste uma farra do boi, Bagual? Deves estar imaginando um bumba-meu-boi, boi-de-mamão, algo do gênero. Eu também imaginava, em meus dias de encatarinamento. Mas durou pouco. Mal aportei aqui na Barra, a comunidade me convidou para a festa, o que me pareceu muito simpático. Tche, Bagual, nesta vidinha de jornal já vi presunto com as tripas de fora, pedaços de membros esparramados em volta da carcaça de um avião, já vi cabeça sem corpo e corpos sem cabeça, vi criança estuprada e carneada, literalmente carneada, rasgada com faca da vagina até o umbigo, vi tudo isso e não vomitei. O crime estava consumado, nos cadáveres ou pedaços de cadáver já não havia mais o sopro da vida, e mesmo apesar do mau cheiro consegui controlar minhas arcadas de vômito. Mais emético é ver o crime sendo executado, elaborado aos poucos. Um fuzilamento ou enforcamento rápido é algo tenso mas é rápido, uma vez acontecido deixa de acontecer. Já te imaginaste fazendo a cobertura de uma sessão de tortura? Talvez nem tenhas pensado no assunto, tortura por definição é coisa de porões, ocorre entre quatro paredes e se testemunha houver esta é a próxima a morrer sob os mesmos métodos. Pois esta gente, com o orgulho de quem convida o forasteiro para uma festa íntima, me convidaram para uma farra.

Olha para estes íncolas que nos cercam, Bagual. A Zefa que te hospeda, para não ir mais longe. Simplória mas simpática, não é verdade? No verão, bate bilro o dia todo, não perde missa aos domingos, acredita em Deus e na virgindade da filha e já deve ter-te brindado com generosas postas dessas horrendas tainhas fritas. Olha aquele paraplégico se arrastando em suas muletas, tenho feito o que posso por ele, consegui até um carguinho público, em verdade ele tem mais estabilidade que eu, ele me adora e isto não é fingimento. Olha esses pescadores, de rosto escalavrado pelo sol e pelo mar, tão mansos e fotogênicos nos postais, tão afetuosos quando te apertam a mão. Olha essas virgens adolescentes, proibidas de ir às praias pelos pais, que não suportam a idéia de uma tanga ou peitos nus, a menos que seja nas filhas da “gente de fora”. Tampouco suportam ver a filha na universidade, é a quebra de todo e qualquer resquício de autoridade, as meninas passam a bracear na praia de um mar mais ou menos culto, os pais se sentem reduzidos a um mundo agonizante. Olha fundo nos olhos dessa gente toda. Não vais encontrar resquício algum de ódio ou violência. Mas espera o Natal, meu querido. Ou a Semana Santa. Uma prosopopéia maligna parece tomar posse destes seres aparentemente tão singelos, deve ser algum ancestral vírus açoriano que permanece camuflado nos gens dessa gente e mostra as garras duas ou três vezes ao ano. Aí, a pacífica batedora de bilro, o afável pescador, o coitado do aleijadinho, a adolescente babaca, todos se travestem em algozes sedentos de sangue. Talvez me expresse mal, imagino que um carrasco deve detestar sangue, deve estar cansado de sangue. Eles, não. Sabes o que é uma farra do boi, Bagual? Vou te contar. Acredita se quiseres. Na Espanha, nem os antitaurinos me davam crédito, tive de montar um dossiê, com fotos de apôio e depoimentos. Os madrilenhos, acostumbrados a las tardes de sol y sangre, não conseguiam imaginar que numa ilhota tropical persistisse tanta crueldade e vileza.

Leste Sêneca, Juliano? Teu nome me intriga, ninguém é batizado Juliano impunemente, teu pai deveria ter algum diferendo com os padres. A tortura e o extermínio em massa constituíam a festa cotidiana, para recobrar a simples sensação de estar vivo, o manezinho da ilha lá de Roma afluía em manadas à arena. Sob pretexto de assistir ao justiçamento de criminosos, em verdade castigava a si mesmo. A pólis se torna Patolópolis, a cidade entra em declínio, doença vira sinônimo de saúde, criminalidade passa a ser algo normal. Nem Marco Aurélio, o lúcido, ousou manifestar, que mais não fosse por sua ausência aos massacres, seu desgosto à barbárie. Aqui a doença é mais grave, antes de se tornar Pólis a cidade mostrou-se Patolópolis, a tortura vira sinônimo de tradição cultural e ai de quem ousar manifestar-se contra os usos e costumes desta simpática comunidade de pescadores e rendeiras. Ou Parasitópolis, se quiseres, as duas pestes sempre andam juntas. Se Marco Aurélio, com todo seu refinamento, temia desgostar a plebe, que restaria a mim, gaúcho ilhado entre bárbaros, senão o silêncio? Eles pressentem. Organizam a farra sempre perto de tua casa, se possível frente à tua janela e conforme a cachaça consumida pisoteiam teu jardim e regam com sangue tuas flores. Bebem como esponjas, talvez para abafar algum último resquício de saúde, com o qual nossa presença os tenha contaminado. Pior de tudo, eles sequer têm culpa. Os oligarcas de Laputa não têm interesse algum em súditos cultos e civilizados. Quem puder fornecer cinco bois à sanha dos coitados, ano seguinte é vereador. Ou deputado. Se ambicionar algo mais, mesmo que abomine a farra que financia, que faça como Marco Aurélio. Nada é grátis em Parasitópolis nem nada é gratuito em Patolópolis. Ao torturar o animal, estes coitados ignoram que os bois são eles e a farra é o jugo. Bueno, Bagual, logo eu que criei esta ilha para argentino ver, em um movimento tardio de remorso, mal-estar que acomete publicitários em fim de vida, acho, tentei fazer algo por esta gente. Denunciar a loucura em um hospício, além de ser redundante, ninguém ouve. Aproveitei meus dias de Espanha, os antitaurinos estão na moda. É difícil imaginar a Espanha sem touradas, ser toureiro lá é como ser padre aqui, único meio de ascensão social de quem nasceu em berço pobre, os padres se largam a batina sempre têm um encosto nos cursos de Letras, mas que vai fazer um toureiro se pendura seu traje de luces? O dossiê horripilou os jovens europeus, chocou até mesmo a Brigitte, se ela vê um árabe agonizando numa rua é capaz de mudar de calçada para que seu sangue não macule suas sandálias e só agora, após mais de século de barbárie e tortura, a intelligentsia ilhoa percebeu, ou finge perceber, a podridão que a sustenta.

* * *

O jovem Doutor tem diante de si uma bela carreira, isso se observar, como direi, certos sinais de tráfego. Durante sua visita, você estará sendo observado por seus pares e casso não tenha ultrapassado nenhum sinal, ou pelo menos não tenha ultrapassado muitos sinais, poderemos abrir um concurso para o professor. Sim, especificamente para o professor, ou você já viu concurso aberto a desconhecidos? Pode ser que nas áreas técnicas, onde competência é fundamental, algum concurso seja efetivamente público. Mas o professor está em um curso de Letras. Em primeiro lugar, professor, por favor evite falar em coisas de religião. O professor vem do Sul, terá por certo formação positivista, isto para não dizer atéia. Certamente não ignora que nós, professores de Letras, temos nossas raízes em seminários e conventos. Há coisa de poucos anos, quando a ilha não havia sido invadida pela gente de fora, começavamos nossas aulas com o sinal da cruz e um pai-nosso. Com a invasão da gente de fora, não só para o corpo docente como também para o discente foi ficando cada vez mais constrangedor, professor, começar uma aula como nossos mestres de seminário. Melhor nem tocar em Deus, meu jovem Doutor. Outro tema delicado é a literatura local. Não tente analisá-la, repito, sem antes ter lido o Tao. Não há nada que não seja grande. Não tente sequer aplicar a nosso fazer literário esses métodos dalém-mar, que assim nossos autores viram pó.

Nossas letras, meu jovem Doutor, são frágeis flores que ao menor sopro fenecem. Você não tem obrigação alguma de apreciar nossos escritores, muito menos de lê-los. Basta que os elogie. Se quiser permanecer na universidade, é claro. O Professor é sensível, estou certo de que bem cedo encontrará metodologia adequada para a abordagem de nossa .literatura. Pessoalmente, uso uma que sempre dá certo, pelo menos até agora ninguém reclamou, em sua abrangência satisfaz a todos. Se não, vejamos:

A busca da identidade catarinense, eterna preocupação do poetar ilhéu, encontra em (cita-se aqui o nome do poeta) um novo intérprete. (Agora, o nome do livro) nos traz de volta (nome do poeta de novo), de poesia inteira, plenitude, entre nós, do equilíbrio da forma e conteúdo. É a voz alta da poesia em defesa de um céu mais amplo para o homem, onde se tem, por referências maiores, justiça e liberdade. Ainda que o poeta saiba das oscilações dos tempos e clima, ele se coloca com coragem, em defesa do homem:

(cita-se aqui um ou mais versos,
contendo de preferência as palavras
homem, pátria, humanidade,
o que é sempre difícil de se catar
na obra de qualquer um).

Com palavras candentes, o autor consegue construir seus poemas em cima de uma visão bem mais complexa das relações entre sua linguagem e a realidade. E, particularmente, de uma visão complexa e rica de seu instrumento específico de trabalho, a linguagem. Sua técnica fragmentária, minimalista quase, é conseqüência coerente dos temas escolhidos e da maneira de abordá-los. Não há, em (título do livro) aquela gratuidade de processos que desqualifica tantos poetas novos. Pelo contrário, o experimento poético é, em (nome do poeta) uma necessidade que nasce da própria temática abordada. Pode-se dizer que o corpo de seus poemas, despedaçado em sua unidade, justapondo coisas heterogêneas numa colagem fascinante, é imagem da própria realidade que o poeta tenta fixar.

(aqui, mais alguns versos do poeta,
colhidos,
preferentemente,
ao azar).

(Nome do poeta, outra vez) é um dos nossos poetas lúcidos, uma das vozes mais graves e mais altas de nossa poesia em todos os tempos. É um poeta de faca na bota. Que sabe responder aos desafios intelectuais com um testemunho que sempre procurou expressar a partir de uma proposta ao nível dos mais legítimos interesses de seu povo. E desde (citar cidade do poeta) até um lugar esquecido em nossa América, onde alguém morra em luta pela liberdade que nasce no coração do homem, ele canta. Seu canto cresce como um coro, porque ele pega pela palavra a realidade próxima de cada um.

E assim por diante, meu jovem. Veja como é fácil, para quem lida com as palavras, atingir o cerne de uma obra e arrebanhar simpatias sem ferir suscetibilidades. Observando o microcosmo que o envolve, o Professor há de encontrar sua própria metodologia. Continuar, por exemplo, assim:

Podemos então concluir que, se não estamos diante de uma poesia de direto engajamento social, certamente esta não é uma poesia alienada nem alienante. Trata-se, antes, de uma poesia voltada para o homem integral, nas suas múltiplas dimensões. Procuram estes poemas despertar o homem para seu caminho interior, íntimo e pessoal, para a atividade conscientizadora do homem adulto, maduro e ponderado, capaz de ver cada elemento em seu lugar, na sua função, no seu valor, dentro da harmonia do Tao. Neste sentido, essa poesia é tanto filosófica quanto existencial, é tão mística como humana, refere-se ao estritamente pessoal e ao amplamente universal.

Não há poeta, meu jovem Doutor, que resista, ou consiga escapar, a esta análise. Como chave de ouro:

Nos poemas de (mais uma vez o nome do poeta) a palavra poética corporifica um universo denso e rico, embasado em sólida cultura clássica, humanística e filosófica, bem como em sadia e serena experiência vivencial. Ler essa poesia é contagiar-se com sua emoção poética e enriquecer-se com suas lições de sabedoria de vida. Por isso, hoje, é impossível falar da poesia em Santa Catarina sem, de imediato, conferir destaque à criação lírico-filosófica de (aqui, citar o nome do poeta analisado pela penúltima vez). Omiti-lo é confissão de ignorância. Sabemos que toda criação artística se desenvolve na comunhão. Hoje (cita-se então o poeta pela última vez) tem sua posição poética solidificada. Nenhum estudo, nenhuma antologia, nenhuma exposição futura sobre literatura em Santa Catarina poderá deixar de conferir o devido destaque à obra madura deste poeta.

Esta fórmula, professor, vale para qualquer Estado e para qualquer colóquio. Só cuide de, quando encontrar a sua, não esquecer de trocar Santa Catarina pelo toponímico de onde estiver. Sucesso, meu jovem, que vou para uma tertúlia na ALESC.

Minha terra, ilha encantada, não abuse,
ínsula amada, o engenho de teu vate.
Mais que um poeta, deste ao mundo Cruz e
Sousa, negra lira cujo estro nos abate.

A alma que é justa, quando sobe aos céus,
lá encontra toda glória e recompensa.
Infeliz do escriba que vive entre ilhéus
merecendo de seus pares só descrença.

Me neste caso encontro e sem aleivosias
indago meus colegas em azo tão propício:
gostaríeis, imortais, que nestes dias

últimos do ano, de Natal e de solstício,
em louvor à ilha, meu oásis de alegrias,
legue meu busto a este nobre sodalício?

* * *

Duro mesmo, Paixão, foram aqueles dias de Plano Cruzado, acho que até o dono da casa andou acreditando na coisa, ou talvez tivesse medo da Sunab, da polícia, sei lá. Até encontrar aquele macete da massagem-massagem e da massagem-carinho foi duro agüentar a barra, tudo quanto era barnabé de baixa renda tomou a Anita de assalto, aquilo de cortar três zeros e congelar preços foi um desastre, espero que nunca mais se repita, a casa foi invadida por funcionários do BESC, TELESC, PRODESC, ACARESC, tinha até bedel da UFESC, te juro, o cara varria o corredor quando fui me inscrever no vestibular. Imagina se entro na universidade, Paixão, o cara vai me dedar pra todo mundo, eles chegavam aqui com ar de quem tem grana, pediam duas ou três mulheres como quem pede filé em açougue, assim por quilo. A gente está pro que der e vier, mas não foi fácil suportar aquela arrogância, eu me sentia vendida a preço de mulher da Mafra, não que eu tenha algo contra elas, vivem vida bem mais sofrida, acontece que dá vontade morrer ter de agüentar esses animais por pouco preço. Podes achar até que foi sabotagem ao Plano Cruzado, Paixão, aquela tabela nova, a da massagem-carinho, mas não deve ter sido por isso que o Plano veio abaixo, eu pelo menos não me sinto nem um pouquinho culpada por essa inflação toda, agora, que foi duro, foi duro, a gente mal tinha tempo de dar uma lavadinha na xexeca. Não que me desagrade meu trabalho, só não gosto de me sentir fodida e mal paga. Falar nisso, paizinho, que horror aquilo da Galheta, parece coisa de filme americano, lembra daquela atriz que foi carneada viva? É, eu também leio jornais, primeiro o horóscopo e depois as páginas de polícia, o resto não me diz nada mesmo, quer dizer, minto, no verão dou uma olhadela nas páginas de economia, os argentinos estão chegando e sempre é bom saber a cotação do dólar. Horror, que horror! Eu conheci o cara, ele de vez em quando pintava por aqui, acho que por solidão. Nunca pegou mulher, mesmo assim a gente gostava dele, sempre nos tratou com respeito e só fazia sauna, tava na cara que o negócio dele era homem. Tem muita gente que vem aqui, Paixão, não é por mulher não, é só ficarem sozinhos no vapor e se acertam por lá mesmo. Nós ficamos chupando no dedo mas eu não reclamo, ele sempre me tratou bem, tinha uma mão delicada, dedos enormes. Mas o que eu gostava mesmo nele eram os olhos, Paixão, uns olhos verdes que traziam paz, o médico da casa nos falou do risco de transar com esse tipo de gente, mas dele ninguém tinha medo, para começar ele não queria nada mesmo com mulher, uma pena, ele era lindo e carinhoso, depois de ti, paizinho, acho que era o cliente mais querido aqui da casa, nos pagava uísque à vontade e depois ia atrás de algum menino lá na sauna. Conheceste ele, Paixão? Acho que não, tu vens sempre à tarde, ele só chegava em fim de noite. Agora, isso. Já me convidaram pra Galheta mas eu nunca fui lá, se ganho minha vida pelada, pelo menos nos dias de folga posso pôr um biquininho legal, não posso? Horror, Paixão, que horror!

* * *

Tudo começa, tche, com uma inocente corrida, ao estilo das de Pamplona, o boi investe e as pessoas fogem. O que já não deixa de ser estúpido, acontece que a farra continua e já no primeiro dia vomitei. É duro para um gaúcho ver um animal sendo torturado, pior ainda quando é um boi. Vomitei mas engoli o vômito, se manifestasse meu asco tão efusivamente seria excluído da festa e mesmo da comunidade. Jornalista, fui brindado com o hediondo privilégio de assistir e mesmo participar, se quisesse, de um ritual tribal e íntimo, no fundo devia orgulhar-me por merecer a confiança dos nativos. Foi duro, mas fui até o fim, tive a impressão de que às vezes o boi me olhava nos olhos pedindo socorro. Lembras aquela cena de Apocalipse Now, aquela festa na selva? Depois de uma dança ritual um boi, vivo e em pé, é partido em três pedaços por um dançarino, a cada golpe de cimitarra ou coisa que o valha o animal era cortado de alto a baixo e desmoronava aos poucos. Café pequeno diante da farra, Bagual, generosidade dos asiáticos só comparável à invenção da guilhotina, lá o boi morre em segundos. Paguei para ver do que eram capazes aqueles seres que me rodeavam. Não foram os chifres quebrados do boi, te confesso, não foi o pênis cortado, os olhos furados por espetos em brasa, não foram os bois com rabos atados, fustigados até rebentarem as caudas, não foi o animal vilmente empalado com uma vassoura e muito menos o momento culminante da prova, os quatro cascos cortados e fogo no que resta de rabo para que o animal se erga sobre as extremidades expostas de osso, não foi nada disso, meu guri, o que mais me horrorizou. Horripilante era ver estes seres, tão gentis e prestativos, são capazes de carregar-me nas costas até a cidade numa noite de temporal se tenho uma crise qualquer decorrente de meus achaques, o horror era vê-los excitados com a tortura e o sofrimento, o sangue e a agonia. A Santa Igreja muito faturou em cima desta sede de sangue, a fogueira e a roda, se eram suplício para os condenados, constituíam festa e colírio aos olhos da platéia. Tua Zefa estava lá, Bagual, Princesa também, jamais vi as duas tão endemoniadas. Princesa parecia acometida de orgasmos em cataratas, a Zefa irradiava um gozo que duvido tenha algum dia tido na cama, lá estavam os “garçons” que me servem, o dono deste bar que elegi para morrer, quando chegar minha hora ele vai chorar em minha tumba e toda vez que lembrar de mim. Lá estava também meu aleijadinho, aquele que tentei transformar em gente, na falta de pernas que obedecessem a seu ódio desancava a muletaços o boi já de cascos cortados. O que me horripilou, Bagual, nem foi ver o boi vivendo seu calvário, o animal chorava, mudo de espanto. O que me fez medo foi ver de perto do que é capaz o ser humano. Pois eles são humanos, pelo menos assim parecem.

* * *

Oh Padre Eterno! No puedes ignorar que estos miserables pecadores son criaturas tuyas y que te pertenecen por el supremo título de la creación. Il Vecchio Ponte, babbo mio, foi a causa primeira de todo pecado e perdição, pela ponte velha a peste e o pecado invadiram a ilha e as pontes já são três, malditas sejam as pontes e malditos todos os pontífices. Oh, Hijo, ou Rey bendito! No puedes negar que sean tuyos estos desgraciados, puesto que por ti mismo los conquistastes por el título irrefutable de la rendención. Escúchame, oh Hijo benditísimo! escúchame y muéstrate propicio a mis plegarias. Presentándome al elterno Padre con la prenda de tu sangre y de tu pasión en mis manos, no podrá alejarme de sí sin antes atender mis ruegos. Pela ponte velha entraram os gaúchos. Com os gaúchos entraram o pecado e a Aids, e só pelo sangue o pecado pode ser perdoado. Oh, ojo eterno! Tú eres el que ilumina a todas las almas que vienen a este mundo, el que ilumina a todos tus santos, y estos se asemejan a los que no tienen en la frente más que un solo ojo. Tú, Señor, me haces enloquecer.

Sob a figueira, Cristo desvencilhou-se das duas discípulas, abriu longamente os braços, túnica inconsútil abanando ao vento:

— Por que levantas até o trono de minha adorável Trindade tais clamores?

— Il Vecchio Ponte, babbo mio. As pontes devem ser destruídas. A ilha está contaminada pelos gaúchos e pela peste, tua santa te implora, eu, Catarina, te peço, babbo mio, punição para os pecadores. Vuelvo la mirada a la isla, y veo perdidas las almas de inumerables pescadores, y al verlo se me dilata el corazón con la fuerza de este amargo pesar y no puedo menos de llorar su miseria como si yo misma me encontrase hundida en el fango de sus culpas, el corazón se me late, al ver la sangre correr. Tú, Señor, me haces enloquecer.

— Que mais pedes, Santa, tu que tanto pecaste, nestes dias em que de novo devo verter meu sangue?

— Mi culpa confieso, Trinidad eterna, de haberte miserablemente ofendido con tanta putaria mia. Miserable de mi, que no he guardado tus mandamientos. Oh malvada! Teu nome é todos os dias conspurcado nestas praias onde o pecado impera, teus pescadores vão pouco a pouco trocando la pêche par le peché. Deus é um punhal na mão de todo crente. Tú, Señor, me haces enloquecer.

— Além de meu sangue, que mais queres, minha Santa?

— Teu sangue virou símbolo, babbo mio, ninguém mais acredita que o vertes todos os dias, em todas as missas, teu sangue virou vinho e dele teus ministros se embriagam sete vezes por semana. Teu sangue ritual já não mata a sede de ninguém, muito menos o sangue dos bois, os bois morrem e os pecadores continuam pecando, os pescadores pescando, y tu corazón siempre ofendido. Tú, señor, me haces enloquecer.

* * *

— Não, Bagual, não me considero culpado pela morte do Vanva, o coitado perdia o sono com medo da Aids e foi morrer de jeito tão vil. Não fui eu quem o submeteu a todos os rituais da farra, não o acossei rumo ao mar. Certo, tenho minha parcela de culpa. Eu já havia criado a festa da tainha, a festa da laranja, a festa sei lá de quê, a SETESC me pedia mais promoções, mais eventos. Assumi o papel de demiurgo, reorganizando uma matéria pré-existente. Criei a praia do nudismo. Escolhi a Galheta, está escondida ali atrás deste morro da Barra, gostava de refugiar-me nela quando ainda não era esta carcaça ambulante, era uma das raras praias onde se podia ouvir o mar. Consegui quatro ou cinco dessas putinhas que pululam nas secretarias de Estado, juntei algumas bichas amigas, dessas de bundinhas feminis. Quando se fala em nudismo, de homem mesmo ninguém quer saber, botei a turma a jogar vôlei e comprei algumas capas dessas revistas que vendem capas e voilà, estava criada a Galheta, paraíso naturista. Queriam mais uma imagem da ilha para vender? Pois criei mais uma. Nudismo não tem sentido em país tropical, tampouco rima com esta gente tacanha. Nudismo é brochante, as pessoas ficam intimidadas e sequer ousam se olhar, sempre vais encontrar mais sensualidade na Joaquina do que em qualquer praia com todo mundo nu. Mas a SETESC pediu, eu criei. Não que algum turista viesse à ilha para praticar naturismo, nada disso. Mas não faltou quem acreditasse na ficção, a praia foi aos poucos sendo ocupada por essa gente mais liberada, que tanto pavor causa ao ilhéu. Estive lá outro dia, questão de ver o fruto de meu bestunto, havia gente lendo, coisa que nunca vi nestas praias, ninguém preocupado com a nudez alheia, todos “gente de fora”, é claro, curtindo talvez, mais que a nudez, esta sensação tão rara de estar entre civilizados, de estar longe da ilha. Os assassinos, Bagual, pelo que bispei aqui na Barra, tu os conheces, todos os dias te dão bom dia e te mostram os dentes, certamente gostam de ti e jamais te conceberiam como um bode luxuriento, que eu bem te conheço. Tampouco te imaginariam companheiro de trago do Vanva. Universos paralelos convivem na ilha e particularmente na Lagoa, que tanto atrai os gaúchos. A Lagoa é ilusão, meu querido. A Barra também, mas tanto faz, pouco tempo me resta. Somos azeite e água. Podemos sorrir para eles, eles em troca nos mostram as canjicas, bom dia, como vai?, bonito o dia hoje, não é?, será que vai chover?, e mais adiante não se pode ir. Estive certa vez em um festival de cinema em Tunis, Bagual, almocei com uma delegação árabe e estraguei a bóia. Todos comiam com a mão, fui enfiando a minha na panela, acontece que sou canhoto e naquelas bandas a mão esquerda é a de limpar o cu. Terminou o almoço. Mesmo assim, lá pelo menos eu podia discutir cinema. Aqui, posso até limpar a bunda com os dedos, mas não tenho com quem conversar. Em Madri, estava muito mais perto de Porto Alegre do que hoje em Laputa. Qualquer negrão de favela se sente melhor aqui, basta acertar na Loteca e descer o morro que tem interlocutor, graça que não nos é concedida. “Vencedores do medo e como familiares à morte”, assim nos definiu um dia Reinaldo Moura. Mas esse gaúcho não mais existe, se é que um dia existiu. Somos quero-queros perplexos, expulsos de nossa geografia, pousando até em telhados na falta do verde da pampa. Já viste quero-quero em telhado, meu guri? Pois aqui eu vi.

Em minhas viagens, Bagual, aprendi que todo homem tem uma cabeça proporcional ao tamanho do território ao qual pertence. Gaúchos, não temos idéia de fronteiras, para nós toda ilha é prisão, deve ser isto o que nos separa deles. Eles nos temem e reagem, violência é a reação da incompetência. Gaudérios, sempre olhamos o mundo com um olhar comparativo, comparar é julgar e quem suporta ser julgado? apesar de meu azedume, acho que no fundo o ser humano tende sempre a voar mais alto. Mais dia menos dia as coisas vão mudar em Laputa, serão os dias da Virada, quando cada coisa atender por um só nome, quando bar será sinônimo de bar, literatura será literatura e não puxa-saquismo de barnabés cheios de medo. Até lá, muita gente vai morrer. Vanva foi o primeiro. Quanto a mim, também estou partindo.

* * *

Ensina-se em jornalismo que toda notícia deve responder a quatro perguntas básicas: o quê? onde? como? por que? O resto é detalhe, comentário, marrom glacê. Mas há notícias e notícias, não é verdade, Taba querido? Há também a mais terrível das notícias, a mais dura e sintética, a composta apenas de duas palavras, aquela em que um sujeito e um predicado bastam e as outras três acadêmicas perguntas perdem seu significado. Notícia tão sintética e perfeita quanto patética e definitiva, transmitida sempre com voz embargada, esparramando-se com a velocidade do som e a perplexidade dos que ficam. A notícia, tche, me chegou rápida e trêmula como sempre chegam tais notícias. Uma frase, de sujeito que me evocava carinho, amizade, afeto quase paterno, mais um verbo absurdamente intransitivo: Tabajara morreu. Ponto final, silêncio de um lado e outro do fone,

Perplexidade ante o mais corriqueiro e mais espantoso dos fatos, e inutilmente me ponho a batucar o teclado numa tentativa de catarse, transferir para o papel esta notícia que me salga o rosto. A partir de hoje, falta alguém no Kibelândia. Quando nos vimos, Taba, pela última vez? Anteontem. Ela estava em teus olhos e pouco a pouco tomava posse de ti. Eu a via, tua a sentias, nós todos sabíamos e eu e tu, todos nós, pudicos, não ousávamos pronunciar seu nome. Eu fingia não vê-la, falava de vida e trabalho, dos exames de minhas alunas. Eu também estou prestando exames — me disseste, em momento de indiscrição — e não sei se vou ser aprovado: exames de sangue, urina, fezes. Estremeci por dentro e me pareceram pequenas as reclamações de minhas alunas.

Estóico, hierático, cãs serenamente envolvendo o olhar de quem sabe que vai partir, a esperavas. Eu também. mas não hoje. Não tão cedo. Nos presumimos eternos e a partir disto julgamos os demais. Ela virá, ela nunca falha a seus encontros. Certamente mais tarde, pensamos. Na pior das hipóteses, amanhã. Não hoje. Falta de cortesia fazer-se anunciar neste cálido domingo de junho, raios pintando de cores ainda sem nome os morros e águas desta ilha que tanto amaste e xingaste. Lembro teu perfil sereno lá na Barra da Lagoa em minha primeira visita à ilha, sereno e solitário, olhando os homens e o mundo através do prisma ótico de um uísque. Não és o Taba?, perguntei, te afagando os ombros. Eras ele. Voltei, acho que uns dez anos depois. Havia campereado mundo afora, meu espírito era um negativo onde se haviam superposto milhares de fotos, meus pontos de referência já os havia perdido, e revisitei a Barra. Lá estavas, sereno e imóvel, olhando o mar. Eu perambulava, mudava por dentro e por fora e não mais entendia a bússola, mas tinha um conforto: um dia volto à Barra, lá está o Taba segurando o leme, ele sempre sabe onde fica o Norte. Certa vez, não sei se te contei, vim aos Três Irmãos com uma amiga, lá estava o aleijadinho que subtraiu uma tainha ao arrastão, se arrastando pela areia sentiu-se honrado em te fazer um regalo. Não estavas lá e perguntei por ti. Os olhos do menino explodiram de alegria mal pronunciei teu nome e minha amiga quase deixou-me enciumado: “viste o sorriso nos olhos daquela criança? Teu amigo foi homem daqueles que não se fazem mais”.

Como Asdrúbal, não fui ver, não vou ver, não quero ver, tua sofrida carcaça. De ti quero guardar aquele rosto tranqüilo e de espera, de quem sabia que Ela estava por chegar e desta vez não protelaria o encontro. Qualquer dia destes te visito em tua tumba, te levo um buquê de jornais, Folha, Estadão, J.B., Zero Hora, El País, Le Monde, boto junto algum “lençol de tainha” local para que te divirtas com a estupidez ambiente. Mas a vida continua. Devolvo pra dentro este nó que me sufoca, lavo o rosto, limpo os óculos e rumo ao Kibe. Qual Asdrúbal, três vezes te ergo um brinde, três vezes três vezes, três vezes não sei quantas vezes, enfim, pouco importam as vezes, importante é apanhar o bastão e continuar remando, confraternizar antes do naufrágio, remar como Asdrúbal, sabe-se lá rumo a onde. Mas cá entre nós, velho Taba de guerra, podias ao menos ter morrido em um dia de chuva.

* * *

Engano teu, Bagual, nós que escrevemos não morremos assim tão cedo, pode ser que a carcaça vá para a tumba, as palavras continuam reboando, deixa eu te contar o resto enquanto minha aura ainda paira sobre a ilha.

O corpo dele, Bagual, veio dar em Moçambique, aqui à esquerda da Barra, Convite não faltou, queriam que eu reconhecesse o cadáver. No fundo, o convite era outro, vem cá olhar como punimos quem infringe o tabu. Uma farra do boi me foi suficiente, recusei-me a testemunhar a farra do gaúcho. Me contaram que o corpo já nem parecia de homem, trabalho dos peixes, disse a imprensa. Mas peixe não empala. Bem ou mal, meus coleguinhas tiveram acesso aos fatos. Uma família de pescadores havia ultrapassado a Galheta e não sabiam como voltar, a praia estava cheia de gente nua. Chamaram vizinhos e foram abrindo caminho a golpes de pás e gadanhos, quem fugiu rumo ao morro teve sorte, sobrou Vanva que preferiu o mar e só conseguiu voltar à terra aqui em Moçambique, dois dias depois. O pivô, meu querido, parece que foi, pelo que ouço, tua idílica Princesa. Não, nada disso, não que ela tenha dado um só golpe em Vanva. As coisas vêm de longe. Somos ou fomos jornalistas, sabes muito bem que atrás de uma manchete tipo MULHER FUZILA VIZINHO QUE ATROPELOU CACHORRO há um monte de histórias anteriores. Difícil reconstituir os fatos quando quem mata é a comunidade. O fato é que o Zefo, suponhamos que assim se chame o marido de tua Zefa, decidiu um dia pescar no costão da Galheta, logo lá onde ninguém vai pescar. A Zefa, que jamais ouvira o Zefo pescar por lá, decidiu ir junto para conferir, talvez o que o Zefo queria mesmo era ver mulher pelada, mais a secreta esperança da Zefa de ver um dia um homem nu, coisa que certamente ela jamais viu. Como escudo, levou Princesa, que nessa altura estaria espumando no entrecoxa para ver um macho nu de perto. Que eles estavam lá, disso eu sei, meu aleijadinho me contou. Depois, tudo é hipótese. Imagino o pescador sedento de mulher nua, mas se descesse pela praia mulher e filha veriam homens nus, o remédio foi chamar a primalhada e, ajunta a isso o ódio ilhéu à “gente de fora”, e lá se foi Vanva, estraçalhado, cumprir sua singradura.


 

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Maio — 2000

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