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KALOCAÍNA

Karin Boye

Taduzido do sueco por
Janer Cristaldo


Kalocaína - Karen Boye
Tradução de
Janer Cristaldo

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eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Documento do Tradutor


© 2012 Karin Boye
Tradução Janer Cristaldo


 

 

 

Kalocaína, uma provável fonte de 1984

Janer Cristaldo

 

"Cada homem vivo é torturado, hoje em dia, pelo destino dramático de sua época. E o criador mais que todos. Existem certos lábios e pontas de dedos sensíveis que sentem um formigamento ao aproximar da tempestade, como se fossem espetados por milhares de agulhas. Os lábios e pontas de dedos do criador são desse tipo. Quando o criador fala com tanta certeza da tempestade que pesa sobre nós, o que fala não é a sua imaginação mas os lábios e as pontas dos dedos, que já começaram a receber as faíscas da tempestade. Nossa época há muito que penetrou na constelação da angústia".
Nikos Kazantzakis, in Testamento para el Greco

 

Desde há muito - estamos pensando na Grécia antiga - os pensadores procuraram fixar literariamente uma organização ideal da sociedade, um modelo de Estado, ou pelo menos um projeto de transformação dessa sociedade. De um lado temos as utopias, desde a República, de Platão, até a Utopia, de Thomas Morus, ou a Cidade do Sol, de Campanella. Por outro lado, temos projetos de transformação social, cujos exemplos mais recentes encontramos em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt, e Casa de Campo, de José Donoso. Mas em meio a projetos de Estado e projetos de transformação do Estado, floresceu um gênero sombrio, que se convencionou chamar de distopias. É a utopia às avessas, o mundo real projetado não para um futuro desejável, e sim para um futuro abominável e - o que é pior - cada vez mais próximo e inevitável.

O precursor deste gênero terá sido certamente Thomas Hobbes, com Leviatã, passando por Swift, com As Viagens de Gulliver, a mais sarcástica catilinária até hoje já escrita contra o gênero humano e, fato curioso, universalmente adaptada para o consumo infantil. Após Swift, as distopias se multiplicam e, entre as muitas deste século, temos Nós (1924), de Eugène Zamiatine, Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, Kalocaína (1940), de Karin Boye, O Zero e o Infinito (1946), de Arthur Koestler, 1984 (1948), de George Orwell, sem falar no atualíssimo A Saga do Grande Computador (1966), de Olof Johanesson, pseudônimo literário de Hannes Alfvén, prêmio Nobel de Física em 1970, que inaugura a entrada do computador nesta literatura de antecipação, com todas as suas conseqüências para o futuro da sociedade humana.

Interessam-nos no momento os romances de Zamiatine, Boye e Orwell. Pois se usualmente se vê em Nós, de Zamiatine, as influências que farão Orwell escrever 1984, uma série de elementos comuns a 1984 e Kalocaína nos fazem pensar que, ou Orwell não ignorava a obra de Karin Boye, ou Boye não ignorava a ficção de Zamiatine.

Bernard Crick, na biografia George Orwell, a life, não faz referências à escritora sueca. Mas informes nos dizem estar esta biografia superada, pois por um erro de classificação só agora foram descobertas nos arquivos da BBC mais de 250 cartas, adaptações radiofônicas de autores como Ignazio Silone, H. G. Wells, Anatole France e outros, além de 62 scripts para rádio sobre a Segunda Guerra Mundial. Segundo as primeiras pesquisas, uma fábula de Silone parece ter inspirado a Revolução dos Bichos, enquanto outros escritos já prenunciam 1984. Bernard Crick declarou desconhecer todo este material (cerca de 250 mil palavras), e as pesquisas futuras nos levarão, certamente, ao veio nórdico da obra maior de Orwell.

Por outro lado, a biógrafa por excelência de Karin Boye, Margit Abenius, jamais cita Zamiatine em Drabbad av renhet, mas este título já nos sugere qualquer coisa, como veremos adiante. Enfim, se neste clássico latino-americano, o Martín Fierro, encontramos os vestígios de uma antiga saga nórdica, os Eddas, nada nos surpreenderia ver na obra de Orwell - homem atento a seu tempo - influências de uma contemporânea sua, que vivia o mesmo engajamento ideológico (Boye lutou pelo socialismo através do movimento Clarté, como também Orwell, na Espanha, nas brigadas do POUM) e sofria as mesmas preocupações, já que tanto Kalocaína como 1984 são denúncias veementes dos totalitarismos emergentes na época.

Que é 1984?

Estamos em uma sociedade que, em 1948, Orwell situará nestes dias que estamos vivendo. O mundo está dividido em três grandes superpotências — como hoje — em guerra permanente: a Eurásia, que situamos nas atuais Rússia e Europa; a Lestásia, coincidindo com a China e o Japão; e a Oceania, incluindo a Grã-Bretanha, as três Américas e Austrália. Há ainda um vago território em disputa, que inclui o Oriente Médio, a África e o Afeganistão.

A ação do romance transcorre em Londres, capital da Oceania. O personagem central é Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, cuja função é criar e divulgar inverdades. Winston relaciona-se com Júlia, "rebelde da cintura para baixo", o que, entre outras coisas, o levará à perdição, pois neste Estado não se admite relações mais sólidas entre um cidadão e outro do que as relações entre o cidadão e o Estado. Temos ainda Goldstein, de hipotética existência, membro de uma oposição subterrânea denominada Fraternidade.

Temos o Grande Irmão, de abstrata existência, tão abstrata que sequer talvez exista, ou pelo menos tenha deixado há muito de existir, mas que exige de todos amor e submissão. E temos outro elemento importante, o tecnocrata O'Brien, o mantenedor da Ordem, definida como eterna e imutável. Toda transformação, toda revolução, é impensável no universo orwelliano. A relação entre dominante e dominado será possível através da dor. Ouçamos O'Brien, enquanto tortura Winston:

" — O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens. Como é que um homem afirma seu poder sobre outro, Winston?

"Winston refletiu.

" — Fazendo-o sofrer.

" — Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza que ele obedece tua vontade e não a dele? O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando?"

Às antigas civilizações fundadas no amor ou na Justiça, O'Brien contrapõe um mundo de medo, traição e tormento, onde o progresso será no sentido de maior dor.

" — Já estamos liqüidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tiradas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência.(...) Mas sempre... não te esqueças, Winston... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação do pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa sempre numa bota pisando um rosto humano — para sempre".

Para manter ad aeternum este poder, os tecnocratas de Oceania utilizam instrumentos simples e eficazes, ao alcance de qualquer ditador contemporâneo:

— a vigilância permanente, através de um aparelho emissor-receptor de TV, o olho onipresente do Grande Irmão. Permanentemente ligada, transmite o tempo todo propaganda estatal, enquanto ao mesmo tempo vigia o espectador involuntário.

— a destruição do passado, mediante o recurso elementar de controlar o registro da História, rescrever documentos e jornais, eliminar qualquer possibilidade de memória.

— a criação de um novo vocabulário, a Novilíngua, ou melhor, a redução sistemática do acervo vocabular então existente. O discurso se reduz a slogans, o que permite dizer: guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. As palavras se transformam em siglas, não temos mais socialismo inglês, mas Ingsoc. A palavra é substituída por módulos. Em vez de mau, temos inbom. Uma pessoa que desapareceu não é uma pessoa que desapareceu, é uma impessoa. Nunca existiu.

— a aniquilação imediata, através de uma eficiente polícia política, de toda e qualquer oposição ao sistema.

Objetivo final desta filosofia: a eliminação total daquilo que se convencionou chamar um ser humano.

" — Se és homem, Winston, és o último homem. Tua raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sozinho? Estás fora da história, tu és não existente".

O último homem. 1984, inicialmente, tinha como título The Last Man in Europe. Como veremos adiante, também em Kalocaína temos uma vontade expressa de aniquilamento do assim chamado ser humano. E Winston, ao final do processo a que O'Brien o submete, acaba por crer finalmente que dois mais dois são cinco - ou quatro, ou seis, enfim, o que o Estado determinar - e trai sua própria amante. Submetido ao medo fundamental, a sala 101, acaba por pedir a O'Brien que ponha Linda em seu lugar, com o rosto colado à jaula do rato faminto. E passa a amar o Grande Irmão. A última expressão de individualidade é aniquilada no mundo irrespirável criado por Orwell.

Em Kalocaína, da escritora sueca Karin Boye, vivemos em uma sociedade indefinida no espaço e no tempo. Nós a intuímos no século XX - o avião e o metrô já existem e os personagens falam de uma Grande Guerra - mas Karin Boye não a situa geograficamente. Existe o Estado Mundial e as cidades não têm nome: temos assim as Cidades Químicas, as Cidades dos Calçados, as Cidades Têxteis, cada uma atendendo por um número. Além do Estado Mundial - o mundo teria sido dividido em dois depois da Grande Guerra - há "os outros seres do outro lado da fronteira", o Estado vizinho, com o qual o Estado Mundial vive em guerra permanente.

Nesta sociedade sem classes, cujos habitantes são cidadãos e soldados ao mesmo tempo, o Estado oferece a cada um, recruta ou general, apartamentos estandardizados (um quarto para solteiros, dois para famílias) e uma alimentação padrão distribuída pelas cozinhas centrais de cada prédio. Como vestes, o cidadão-soldado dispõe de três uniformes: um para o trabalho, outro para o serviço policial-militar e um terceiro para o tempo de lazer. Pobres não existem, nem ricos, conseqüentemente. Olhos e ouvidos eletrônicos da polícia vigiam o interior de cada apartamento, mesmo à noite, através de raios infravermelhos, em uma antecipação ao olho do Grande Irmão, na obra de Orwell.

Mais ainda: as domésticas são trocadas semanalmente e têm o dever de enviar à polícia, após a prestação de serviços a uma família, um relatório sobre a mesma. Solicitações para visitas devem ser encaminhadas aos porteiros de edifícios, que por sua vez as encaminham à polícia. Concedida a permissão, o porteiro controlará a identidade e o horário de entrada e saída do visitante. No metrô e nas ruas, cartazes advertem:

NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO!
QUEM ESTÁ A TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO!

Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4, descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação: a kalocaína. Com apenas uma dose, sem tortura alguma, todo indivíduo que tenha idéias associais confessa alegremente e sem reservas sua culpa. Leo Kall — que acredita no Estado Mundial e em seus princípios — tem consciência da importância de sua descoberta:

" — Daqui em diante, criminoso algum negará a verdade. Agora nem mesmo nossos mais profundos pensamentos são nossos, como pensávamos, sem razão. Sim, sem razão. Dos pensamentos e sentimentos nascem palavras e ações. Como poderiam ser os pensamentos e sentimentos coisas privadas? O cidadão-soldado não pertence inteiro ao Estado? A quem pertenceriam então suas idéias e sentimentos, senão ao Estado? Até então, eram as únicas coisas que não podiam ser controladas - mas agora este meio foi encontrado".

Quando alguém objeta ter sido devassado o último refúgio da vida privada, Leo responde alegremente:

" — Mas isso não tem importância alguma. A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais poderiam esconder-se. Vejo agora simplesmente a grande comunidade aproximar-se de sua culminância".

Leo Kall recebe autorização para experimentar sua droga em membros do Serviço de Cobaias. No transcurso dos interrogatórios, acaba descobrindo uma seita misteriosa, sem nome nem chefes. Uma mulher, submetida à kalocaína, fala vagamente em "nosso objetivo".

" — O objetivo de vocês? — perguntei. Mas quem são vocês?

" — Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

" — Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

" — Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós".

Mas nem Leo Kall nem o policial que o assistia nos interrogatórios conseguem extrair algo mais definido da cobaia. Não planejavam revolução alguma, não aspiravam a postos nem ao poder. "Queremos ser... queremos nos tornar... uma outra coisa..." é a resposta mais objetiva que obtém da mulher.

Ao desenrolar o fio da meada, mais confusos se tornam o cientista e o policial. As pessoas que formam a estranha seita não têm chefes, nem hierarquia. Reúnem-se na casa de um deles cumprindo um misterioso ritual. Não discutem coisa alguma e cumprimentam-se apertando as mãos. Um dos membros conta:

" — Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de outro, intencionalmente! Eles afirmaram tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não se precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. No início, eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu.

Já os iniciados celebravam um outro rito. Apanha-se uma faca e alguém a entrega ao outro, deita numa cama e finge que dorme. Uma mulher faz uma descrição fantástica:

" — Se alguém quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se sentar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer coisa.

" — E qual é o sentido disto?

" — Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E no entanto nada lhe acontece".

O cientista pensa estar tratando com uma seita de débeis mentais. Interrogando uma mulher sobre a organização, ouve uma resposta espantosa:

" — Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constróem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constróem utilizando a vocês mesmo como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro, como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado".

Após algumas reflexões, Leo Kall passa a considerar extremamente subversiva a seita. Sua defesa da filosofia do Estado Mundial ao chefe de polícia nos lembra o discurso de O'Brien:

" — A filosofia desses loucos é contrária ao Estado. Relações pessoais mais sólidas que a relação com o Estado - é a isso que eles querem conduzir! À primeira vista, seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento, se evidenciam como absolutamente repulsivos. São mostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto já considero perigoso ao Estado. Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado seria erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado".

Retomemos um trecho do discurso de O'Brien: "Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos".

Estamos diante da aniquilação sistemática daquilo que se convencionou chamar de humanidade. O'Brien, ao reduzir Winston pela tortura a um farrapo, o faz olhar-se no espelho e o define como o último homem. O que em nada difere dos propósitos do cidadão-soldado Leo Kall:

" — Ser Humano! Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rápido quanto possível!"

Como em 1984, há um desejo manifesto de aniquilação do ser humano. Muitos são os pontos de encontro entre as duas obras. Neste rápido estudo comparativo, salientaremos apenas os mais evidentes:

— a vigilância contínua dos cidadãos pelo Estado
— a ausência de arte
— a constância dos duplos
— uma fraternidade, clandestina e paralela ao Estado
— a existência de um mundo selvagem, não organizado, e por isso mesmo desejável
— a desconfiança entre os homens como fundamento do Estado

Na obra de Orwell, cada cidadão é vigiado permanentemente pelo olho televisivo do Grande Irmão. Em Kalocaína esta função é desempenhada pela empregada, por olhos e ouvidos eletrônicos e, finalmente, pela própria substância criada por Leo Kall. (Em Nós, as paredes dos edifícios são de vidro, pois afinal cada cidadão nada tem - ou não deve ter - a esconder do Estado). Há um desejo de transparência, por parte dos ideólogos destas sociedades, de uma pureza visceral do ser humano, e não será por acaso que Margit Abenius intitula sua biografia de Karin Boye de Drabbad av renhet.

Por outro lado, se o artista é aquele que — no dizer de Ernesto Sábato — sonha pela comunidade para que esta não enlouqueça, assalta-nos a pergunta: e como seria uma sociedade sem arte? A resposta nos é dada por Boye e Orwell: é o mundo asfixiante de suas obras. O livro que Leo Kall se propõe a escrever é por ele mesmo definido, já nas primeiras linhas, como um caminho em direção ao inútil. Na última página, sua obra traz o parecer da Censura, considerando-a subversiva e condenando-a às gavetas do Arquivo Secreto do Estado Mundial. Em 1984, as manifestações artísticas são controladas pelo Estado, que mantém um corpo de técnicos encarregados de criar uma subliteratura inócua para consumo dos proles. Outros técnicos, por sua vez, são encarregados de fazer desaparecer palavras e, com elas, os conceitos que expressavam.

Nos dois romances — como também em Nós — há a ocorrência de duplos. Winston e O'Brien se confundem um com o outro, mesmo divergindo de opiniões, da mesma forma que Leo Kall e Edo Rissen. Estes personagens, ao apresentarem ao interlocutor suas razões para crer ou descrer no Estado, em verdade parecem estar fazendo um esforço tremendo para acreditar nas verdades que professam.

Em ambos os romances — como também no de Zamiatine — suspeita-se da existência de uma sociedade paralela. Em 1984, temos a Fraternidade, que tem em Goldstein seu líder, assim como os "loucos" de Kalocaína têm como inspirador um certo Reor. Já ouvimos o depoimento de um dos membros dessa seita sem nome, quando submetido à droga descoberta por Leo Kall. Ouçamos agora O'Brien falando a Winston:

" — Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens idéia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista, a Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, exceto uma idéia, uma idéia indestrutível".

Em ambos os livros, os personagens vêem em sonhos um mundo primevo, intocado pelo homem, verde e selvagem. Em 1984 é a Terra Dourada, onde há regatos com espraiados verdes, peixes nadando nas lagoas, sob os chorões, abanando a cauda. Em Kalocaína há a Cidade Deserta, de hipotética existência, e crer nela é sacrilégio. Vejamos um dos sonhos de Leo Kall:

"Ouvi então sons misteriosos de vozes mais adiante. Lá estava aberta a porta semidestruída de um porão, revestida por trepadeiras verdes em ambos os lados. Não a havia observado antes e, em minha angústia, suava frio ao ver o verde viver sua vida tão próximo a mim. Sobre os degraus rachados e gastos de pedra alguém surgira até a luz e me acenava para entrar. Não lembro mais como cheguei até a porta, talvez tenha pulado animalescamente sobre as pedras perigosas. Seja como for, entrei em uma câmara sem teto, em ruínas, onde penetrava o sol, e grama e flores pairavam sobre minha cabeça. Jamais um aposento com teto e paredes em pedaços me parecera tão seguro refúgio. Do tapete de grama emanava um odor de sol e terra e cálida despreocupação, e as vozes cantavam ainda, embora distantes. A mulher que me acenara antes estava lá e nos abraçamos um ao outro. Eu estava salvo e queria dormir de cansaço e alívio. Tornara-se totalmente desnecessário que continuasse a percorrer a rua. Ela disse: 'tu ficas comigo'. 'Sim, deixa que eu fique!', respondi, sentindo-me livre de todas as preocupações, como uma criança. Quando me inclinei para ver o que me molhava os pés, notei que do chão brotava uma fonte clara, e isto inundou-me de uma indescritível gratidão. 'Não sabes que daqui emerge a vida?', disse a mulher. Ao mesmo tempo, eu sabia ser isto um sonho do qual despertaria, e busquei em pensamentos uma forma de guardá-lo — tão furiosamente que o coração começou a pulsar com violência e acordei".

Desejo de evasão, de fuga da cidade e do mundo estupidamente racional em que se vive. Todo pensamento utópico implica uma repulsa, uma não aceitação das regras sociais vigentes, e criações literárias como estas nos esclarecem, melhor do que filosofias e teorias comportamentais, a proliferação de seitas e comunidades nos dias atuais. Queremos ser - como dizia a cobaia de Leo Kall - uma outra coisa...

E, finalmente, a constatação de ambos os autores de que a desconfiança entre os seres humanos é a base do Estado. Este me parece ser um dos aspectos mais profundos destas duas obras-primas, a proposta mais subversiva e vivificadora de Boye e Orwell. Os poderosos sabem que só podem reinar dividindo, e todo homem sensível sabe que só pode escapar ao poder unindo-se a seus irmãos. As instituições que querem afastar um homem do outro estão aí, são as igrejas e os Estados fundamentados em religiões ou filosofias totalitárias, com suas proibições e dogmas. Felizmente também estão aí os que buscam aproximar os seres humanos, os escritores com suas dúvidas. Escreve Karin Boye:

"Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna norma e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos... Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido..."

Todos estes pontos comuns entre os dois romances nos levam a crer, como afirmei no início, uma possível leitura de Kalocaína por Orwell. Que poderia também simplesmente não ter ocorrido, pois os dedos sensíveis de Orwell e Boye estavam apenas captando as chispas de uma tempestade que se aproximava. Margit Abenius nos conta que num debate sobre Kalocaína, Boye disse a Harry Martinson: "Eu tenho medo". E quando sua mãe comentou que ela havia feito um bom livro, ou algo semelhante, Karin Boye respondeu com uma pergunta:

— Tu achas que fui eu quem o fez?

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Bibliografia:
Abenius, Margit. Drabbad av renhet. Estocolmo, Albert Bonniers Förlag, 1950
Boye, Karin. Kalocaína. Rio, Editora Americana, 1974. Tradução de Janer Cristaldo
Crick, Bernard. George Orwell, une vie. Paris, Balland, 1982. Tradução de Jean Clem
Orwell, George. 1984. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1970. Tradução de Wilson Velloso
Zamiatine, Eugène. Nous Autres. Paris, Gallimard, 1874


 

 

Karin Boye

 

 

Kalocaína

Traduzido do sueco por
Janer Cristaldo

1974


 

 

 

 

Este livro que me proponho a escrever parecerá sem sentido para muitos – se ao menos ouso pensar que “muitos” poderão lê-lo –, pois o iniciei espontaneamente, sem ordens de ninguém e, no entanto nem certamente eu mesmo sei qual é meu objetivo. Quero e preciso, isso é tudo. Pouco a pouco, inexoravelmente, acabamos nos perguntando pelo objetivo e método do que fazemos e dizemos, de modo que palavra alguma caia ao azar – mas o autor deste livro foi forçado a tomar o caminho oposto, em direção ao inútil. Pois apesar de meus anos aqui como prisioneiro e químico – serão mais de vinte, penso – terem sido suficientemente cheios de trabalho e pressa, algo me disse não ser isto suficiente e me conduziu e fez vislumbrar um outro trabalho dentro de mim, que eu pessoalmente não tinha possibilidade alguma de descobrir, embora estivesse profunda e dolorosamente interessado nele. Este trabalho estará concluído quando eu tiver escrito meu livro. Percebo também quão ilógicos se apresentam meus escritos aos pensadores racionais e práticos. Mesmo assim escrevo.

Talvez não tivesse ousado antes. Talvez tenha sido o aprisionamento que me tornou frívolo. Minhas condições de vida agora pouco se diferenciam de quando vivia como homem livre. A comida apresenta-se um pouco pior aqui – com isto a gente se acostuma. A maca é um pouco mais dura que minha cama, em casa, na Cidade Química n° 4 – com isto também a gente se acostuma. O pior foi a perda de minha mulher e meus filhos, principalmente porque nada soube nem sei de seus destinos; isto encheu meus primeiros anos de prisão de inquietude e angústia. Mas com o correr do tempo, comecei a sentir-se mais tranquilo que antes e inclusive a gostar mais e mais de minha existência. Aqui nada me inquietava. Não tinha subordinados nem chefes – exceto os vigias da prisão, que raramente me atrapalhavam e apenas se preocupavam em saber se eu tinha seguido as instruções. Não tinha protetores nem concorrentes. Os cientistas com quem às vezes me reunia para acompanhar novas experiências no campo da química, tratavam-me com polidez e objetividade, ainda que condescendentes em razão de minha nacionalidade estrangeira. Sabia que ninguém julgava ter razões para invejar-me. Em suma: de certa forma, podia sentir-me mais livre que em liberdade. Mas junto com a tranquilidade, crescia também em mim este estranho trabalho com o passado, e não posso aspirar a nenhuma calma antes de ter escrito as memórias de um período cheio de significado em minha vida. A possibilidade de escrever me foi dada em razão de meus trabalhos científicos, e o controle se exercia apenas no momento em que eu entregava um trabalho pronto. Posso assim pagar-me esta única alegria, embora talvez seja minha última chance.

Na época em que meu relato começa, eu me aproximava dos quarenta. Se, de resto, preciso apresentar-me, posso talvez falar sobre a imagem que faço da vida. Existem poucas coisas que me digam mais sobre um homem que sua concepção de vida; se a vê como um caminho, um campo de batalha, uma árvore que cresce ou um mar tempestuoso. De minha parte, vejo-a com os olhos ingênuos de um colegial, como uma escada por onde subimos de degrau em degrau, tão rápido quanto possível, com a respiração opressa e os adversários nos calcanhares. Em verdade, eu não tinha adversários. A maioria de meus colegas do laboratório havia dirigido todas as suas ambições ao serviço militar e viam o trabalho diário como uma desagradável interrupção daquele serviço. Pessoalmente, não queria confessar-lhes que estava mais interessado em minha química que no serviço militar, embora estivesse consciente de não ser mau soldado. Seja como for, eu subira em minha escada. Sobre quantos degraus deixara para trás, jamais havia cogitado; tampouco no que de esplendoroso poderia existir no topo. Talvez imaginasse nebulosamente a casa da vida como uma de nossas casas comuns da cidade, por onde se subia do interior da terra até chegar ao terraço, ao ar livre, ao vento e à luz do dia. O que corresponderia à luz ao vento em minha peregrinação pela vida, não faço idéia. Sabia apenas que cada avanço de degrau era indicado por curtos comunicados oficiais de escalões superiores sobre um exame realizado, uma prova superada, uma transferência para um campo de atividades mais significativo. Eu tinha uma longa série destes vitais pontos de partida e chegada atrás de mim, embora nem tantos para que um novo empalidecesse em significado. Por isso eu voltara com uma gota de febre no sangue no curto telefonema que me comunicara que poderia esperar meu chefe no dia seguinte e assim começar experiências com material humano. Amanhã aconteceria então a prova de fogo da minha até agora invenção.

Eu estava tão excitado que me foi difícil começar algo novo durante os dez minutos que ainda restavam de trabalho. Em vez disso, sabotei um bocado do serviço – acredito que pela primeira vez em minha vida – e comecei a instalar antecipadamente a aparelhagem, lenta e cuidadosamente, enquanto olhava sub-repticiamente para ambos os lados, através das paredes de vidro, para ver se alguém me vigiava. Tão logo a campainha anunciou o fim da jornada, avancei rapidamente pelos corredores, entre os primeiros da torrente. Tomei uma ducha rápida, troquei as roupas de trabalho pelo uniforme de lazer, corri ao elevador e parei alguns segundos em cima, na rua. Como havia recebido residência em meu distrito de trabalho, tinha licença de superfície e sempre a aproveitava para dar uma esticada ao ar livre.

Em frente à estação de metrô, ocorreu-me que poderia esperar Linda. Como era bastante cedo, ela certamente ainda não tivera tempo de chegar em casa, cerca de vinte minutos de metrô, da fábrica de alimentos onde trabalhava. Um trem acabara de chegar, e um rio de gente jorrou da terra, estreitou-se entre os portões de saída onde as licenças de superfície eram controladas, e filtrou-se pelas ruas próximas. Além das plataformas agora vazias, além das persianas cinza-montanha e verde-grama levantadas, que em dez minutos poderiam camuflar a cidade, tornando-a invisível, contemplei a multidão formigante de cidadãos-soldados em uniforme de lazer que retornavam para casa, e subitamente me apercebi de que talvez todos alimentassem o mesmo sonho que eu: sonhavam com o caminho mais para o alto.

A idéia fulminou-me. Sabia que antes, durante a época civil, os homens tinham de ser atraídos ao trabalho e fadiga com a esperança de residências mais espaçosas, comida melhor e roupas mais bonitas. Agora nada disso era necessário. O apartamento modelo – um quarto para os solteiros, dois para as famílias satisfazia a todos, desde os mais modestos aos mais merecedores. A comida das cozinhas centrais alimentava tão bem o general como o recruta. O uniforme geral – um para o trabalho, um para o lazer e outro para o serviço militar e policial – era igual para todos, para homem e mulher, superior e subalterno, exceto quanto às distinções de grau. Inclusive este não era mais pomposo para o primeiro do que para o segundo. O desejável em um mais alto grau estava apenas naquilo que simbolizava. Tão altamente espiritualizado, pensei feliz, é cada cidadão-soldado do Estado Mundial, que mal concebe o mais alto valor da vida com forma mais concreta que três divisas pretas no braço – três divisas pretas que são para ela uma garantia, tanto para sua auto-estima quanto para o respeito de outrem. Bem-estar material pode-se ter o suficiente e mais que o suficiente – exatamente por isto suspeito que os apartamentos de doze quartos dos antigos civis capitalistas eram pouco mais que um símbolo – mas o mais sutil de todos, que se persegue sob a forma da distinção de grau, não dá a ninguém mais comida. Ninguém alcança tanta consideração e auto-estima a ponto de não desejar alcançar mais. No mais espiritualizado, no mais etéreo e inacessível de tudo, repousa nossa ordem estabelecida, tranquila e fixa por todos os tempos.

Assim meditava eu na saída do metrô e via como em um sonho o vigia ir e voltar ao longo dos pontiagudos muros do distrito. Quatro trens haviam chegado, quatro vezes a multidão jorrou na luz do dia, quando finalmente Linda passou pelos controles. Apressei o passo e continuamos lado a lado. Naturalmente não podíamos falar devido aos exercícios aéreos das esquadrilhas, que dia e noite não permitiam que se mantivesse qualquer conversa fora de casa. Em todo caso, ela viu minha fisionomia alegre e cumprimentou-me com a cabeça, embora séria como sempre. Até que chegássemos ao prédio residencial e o elevador nos descesse até nosso apartamento, envolveu-nos um relativo silêncio – o ruído do metrô, que sacudia as paredes, já não era tão forte, de modo que se podia falar – mas mesmo assim evitamos qualquer conversa até entrar. Se alguém nos surpreendesse falando no elevador, seria perfeitamente natural a suspeita que discutíamos assuntos que não queríamos que as crianças ou a criada ouvissem. Tais casos haviam ocorrido, quando subversivos e outros criminosos queriam empregar o elevador como local de conspiração; era um lugar adequado, pois por motivos técnicos os olhos e ouvidos da polícia não podiam ser montados num elevador e, além disso, o porteiro geralmente tinha coisas mais importantes a fazer do que correr e escutar nas escadarias. Mesmo assim nos calamos cautelosamente até entrar na sala de estar familiar, onde a criada da semana já havia posto a mesa com a janta e esperava com as crianças, que havia apanhado na creche do prédio. Parecia ser meticulosa e gentil, e nossa amável saudação não dependia apenas de sabermos que ela, no fim de semana, tinha de deixar um relatório sobre a família – uma reforma que se supunha ter melhorado a atmosfera de muitos lares. Uma ambiência de alegria e bem-estar envolvia nossa mesa, principalmente quando Ossu, nosso filho mais velho estava conosco. Ele havia chegado do acampamento infantil, pois era sua noite de ficar em casa.

— Tenho boas novas – disse para Linda, por cima da sopa de batatas – Meu experimento chegou a um ponto tal que amanhã posso começar com material humano, sob a supervisão de um chefe de controle.

— Que achas que será? – perguntou Linda.

Ninguém notou nada, mas sobressaltei-me interiormente com suas palavras. Talvez fossem totalmente inocentes. Nada mais natural que uma esposa perguntar quem seria o chefe de controle do marido. Da boa ou má vontade do chefe de controle dependeria quão longo seria o tempo de provas. Já acontecera inclusive que chefes de controle ambiciosos haviam-se apossado de invenções dos controlados, e eram relativamente poucas as possibilidades de proteção contra isso. Não era, pois de estranhar que alguém da família perguntasse quem seria ele.

Mas percebi um subtom em sua voz. Meu chefe mais próximo, que provavelmente seria meu chefe de controle, era Edo Rissen. E Edo Rissen fora antes empregado na fábrica de alimentos onde Linda trabalhava. Eu sabia ter existido um certo contato entre ambos, e por diversos sinais percebi que ele deixara uma certa impressão em minha mulher.

Com sua pergunta, meu ciúme despertou e renovou-se. Quão íntima fora realmente a ligação entre ela e Rissen? Em uma grande fábrica pode muitas vezes acontecer que duas pessoas se encontrem fora das vistas dos demais, nos depósitos, por exemplo, onde pacotes e caixas impediam a visão através das paredes de vidro, e onde, talvez, para cúmulo de tudo, ninguém estivesse trabalhando no momento... Também Linda tivera sua vez como vigia noturna na fábrica. Rissen podia muito bem ter tido sua ronda na mesma ocasião. Tudo era possível, inclusive o pior: de que era a ele que ela continuava amando, e não a mim.

Naquela época eu pouco me perguntava sobre mim mesmo, sobre o que pensava e sentia ou sobre o que os outros pensavam e sentiam, de modo que isto pouca importância prática tinha para mim. Só agora durante minha solidão de prisioneiro, aquele momento se tornara um enigma, que me obrigava a adivinhar, decifrar e redecifrar. Agora, bem mais tarde, sei que quando buscava ardentemente “certeza” na pergunta sobre Linda e Rissen, eu não queria realmente chegar à certeza da existência de alguma ligação entre eles. Eu queria saber se ela se voltava para outros rumos. Queria chegar a uma certeza que desse fim ao meu casamento.

Teria rejeitado um tal pensamento com desprezo, naquela época. Linda desempenhava um importante papel em minha vida, teria dito então. E era verdade, especulação ou suspeita alguma pudera até então modificar isto. Em significado, ela poderia muito bem competir com minha carreira. Contra minha vontade, prendia-me de forma totalmente irracional.

Pode-se falar do “amor” como um romântico e envelhecido conceito, mas temo que, no entanto exista e desde seu início contenha em si um indescritível elemento doloroso. Um homem é atraído por uma mulher, uma mulher por um homem, e a cada passo que se aproximam, sacrificam algo de si próprios; uma série de derrotas, quando esperam vitórias. Desde meu primeiro casamento sem filhos e, portanto, sem razão de ser – eu experimentara este antegosto. Linda estimulou-o até o pesadelo. Durante os primeiros anos vivi realmente um pesadelo, embora não o associasse a ela: eu estava em meio a uma escuridão intensa iluminado por um holofote; na escuridão sentia o Olho dirigido a mim, e contorcia-me como um verme para escapar-lhe, e me envergonhava como um cão pelos andrajos que vestia. Mais tarde percebia ser isto uma boa imagem de minha situação ante Linda, diante da qual me sentia terrivelmente translúcido, embora tudo fizesse para esconder-me e proteger-me, enquanto ela permanecia o mesmo enigma, denso, quase sobre-humano, mas ternamente inquietante, pois seu enigmatismo lhe dava esta odiosa superioridade. Quando sua boca se comprimia até tornar-se uma linha estreita e vermelha – oh, não! Não era um sorriso, nem de desdém nem de alegria, melhor se diria uma tensão, como quando se distende um arco – e ao mesmo tempo os olhos permaneciam imóveis e grandemente abertos – perpassava-me então sempre o mesmo estremecimento de angústia, e ela sempre me submetia e me atraía impiedosamente, embora eu adivinhasse que jamais se abriria para mim. Creio ser adequado empregar a palavra amor, quando em meio à desesperança nos mantemos unidos um ao outro, como se apesar de tudo um milagre pudesse ocorrer – então a própria angústia adquire uma espécie de valor próprio e se torna uma prova de que ao menos se tem algo em comum: a espera por algo que não existe.

Em torno a nós, víamos os pais separarem-se tão logo suas ninhadas estivessem em idade de ir para os acampamentos infantis – separavam-se e casavam-se novamente para procriar novas ninhadas. Ossu, nosso filho mais velho, tinha já oito anos e ficara um ano inteiro no acampamento. Laila, a mais nova, tinha quatro – mais três anos em casa, portanto. E depois? Separar-nos-íamos e nos casaríamos novamente, na infantil ilusão de que a mesma espera poderia ser menos vã com um outro? Toda a minha razão dizia ser isto uma mentirosa ilusão. Uma única, pequena e ilógica esperança me murmurava: não, não – se fracassaste com Linda foi porque ela desejava Rissen! Ela pertence a Rissen, não a ti! Convence-te de que é em Rissen que ela pensa – assim tudo ficará esclarecido e terás ainda esperança em um novo amor, que tenha sentido.

A pergunta de Linda despertara em mim estas curiosas elucubrações.

— Provavelmente Rissen – respondi, e escutei ansiosamente o silêncio que se seguiu.

— Seria indiscrição perguntar qual é a experiência? – perguntou a criada.

Ela tinha direito de perguntar; de certa forma ela estava ali exatamente para informar o que acontecia em família. E eu não conseguia imaginar o que poderia ser destorcido e usado contra mim, nem mesmo como isso poderia ferir o Estado, no caso de os rumores sobre minha descoberta se espalharem prematuramente.

— É algo que espero possa beneficiar o Estado. Um meio que fará com que todo e qualquer homem confesse seus segredos, tudo aquilo que antes o forçou a calar-se, por vergonha ou medo. Você é desta cidade, cidadã-soldado?

Acontecia, vez por outra, encontrarem-se pessoas trazidas de outros lugares em época de falta de braços, e que por isso não tinham da cultura geral das Cidades Químicas senão algumas migalhas catadas na idade adulta.

— Não – disse ela enrubescendo. – Sou de fora.

Explicações mais detalhadas de onde se vinha eram estritamente proibidas, pois poderiam ser aproveitadas no serviço de espionagem. Naturalmente, ela enrubescera por isso.

— Então não penetrarei muito no aspecto químico da composição ou fabricação. Além do mais, isto talvez deva ser evitado, pois o assunto não deve cair em mãos privadas em circunstância alguma. Mas você certamente já ouviu falar em como se empregava antigamente o álcool como meio de embriaguez e em suas consequências.

— Sim – disse ela. – Sei que tornava os lares infelizes e destruía a saúde e nos casos mais graves produzia estremeções em todo o corpo e alucinações.

Reconheci as palavras elementares dos manuais escolares e sorri. Ela não tivera realmente tempo de adquirir a cultura geral das Cidades Químicas.

— Exato – disse eu. – Assim era nos casos mais graves. Mas antes de chegarem a este ponto acontecia muitas vezes que os bêbados deixavam escapar indiscrições, traíam segredos e cometiam ações temerárias, pois sua capacidade de vergonha e medo estava enfraquecida. Este é o efeito de minha droga, acho eu, pois ainda não a experimentei. Sua diferença é que não é bebida, mas injetada diretamente no sangue e, além disso, sua composição é totalmente outra. Os efeitos desagradáveis de que você fala não ocorre – pelo menos se não forem aplicadas doses excessivas. Uma leve dor de cabeça é tudo que as cobaias sentem logo após, e não acontece, como às vezes ocorria com os alcoólatras, que a pessoa esqueça o que disse. Certamente você percebe a importância de minha descoberta. Nem nossos mais íntimos pensamentos são mais nossos – como até agora pensávamos, erroneamente.

— Erroneamente?

— Sim, erroneamente. Dos pensamentos e sentimentos nascem as palavras e ações. Como poderiam então os pensamentos e sentimentos serem algo privado? O cidadão-soldado não pertence totalmente ao Estado? A que pertenceriam então seus pensamentos e sentimentos senão ao Estado? Até hoje só não foi possível controlá-los – mas agora o meio foi encontrado.

Ela lançou-me um rápido olhar, mas baixou-o logo. Sua fisionomia não se modificou, mas tive a impressão do que suas cores empalideceram.

— Você não tem a temer, cidadão-soldado – disse eu para reanimá-la. – A intenção não é curar todas as pequenas paixões e antipatias particulares. Se minha descoberta caísse em mãos privadas, então sim, pode-se imaginar o caos que se estabeleceria! Mas isto naturalmente não acontecerá. A droga servirá a nossa tranquilidade, à tranquilidade de todos, à tranquilidade do Estado.

— Não tenho medo, não tenho nada a temer – respondeu ela um pouco friamente, quis apenas ser gentil.

Mudamos de assunto. As crianças contaram o que havia ocorrido durante o dia em seu quarto. Haviam brincado na caixa de brinquedos – um bem esmaltado tonel de uns quatro metros quadrados e um de profundidade, onde se podia não apenas jogar bombas de brinquedo, incendiar florestas e telhados projetados de material inflamável como também organizar um combate naval em miniatura, bastando para isso encher a caixa com água e municiar os pequenos canhões da frota com o mesmo explosivo leve empregado nas bombas de brinquedo; existiam inclusive botes torpedeiros. Desta forma se proporcionava uma visão estratégica às crianças e, ao mesmo tempo, uma diversão de primeira ordem. Às vezes eu invejava meus filhos por terem nascido em meio a brinquedos tão sofisticados – na minha infância o explosivo leve não fora ainda descoberto – e não entendia muito bem por que mesmo assim eles desejavam ardentemente completar sete anos e ir para os acampamentos infantis, onde os exercícios eram bem mais semelhantes à instrução militar, e onde se vivia dia e noite.

Muitas vezes pareceu-me ser esta nova geração mais realisticamente ajustada que nós em nossa infância. Justamente naquele dia eu receberia uma nova prova disto. Como era uma noite em família, quando nem Linda nem eu tínhamos serviço policial e militar, e Ossu estava nos visitando – assim se completava nossa vida íntima familiar –, eu havia imaginado algo para divertir as crianças. No laboratório eu comprara uma pequena porção de sódio, que pensara deixar flutuar na água com sua chama violeta-pálida. Enchemos o tonel apagamos as luzes e nos reunimos todos em torno de minha pequena curiosidade química. Pessoalmente eu ficara maravilhado com o fenômeno quando, na infância, meu pai o mostrara para mim, mas para meus filhos constituiu-se um solene fiasco.

Ossu, que já fizera fogo por conta própria, atirou com pistola e lançou pequenos petardos semelhantes a granadas de mão – enfim, que ele não apreciasse a pequena chama pálida seria talvez muito natural. Mas que nem mesmo Laila, com quatro anos, não se interessasse por uma explosão se esta não custasse a vida de alguns inimigos deixou-me estupefato. A única que parecia fascinada era Maryl, a do meio. Ela estava quieta e sonhadora como sempre e seguia o crepitar da chama com olhos grandemente abertos, que lembravam os de sua mãe. E embora sua atenção me desse um certo consolo, inquietava-me ao mesmo tempo. Ocorreu-me clara e nitidamente serem Ossu e Laila as crianças dos novos tempos. Seu ajustamento era o certo e positivo, enquanto o meu era a manifestação de um romântico à antiga. E apesar da satisfação que ela me dera, desejei subitamente que Maryl fosse mais semelhante aos outros. Era de mau augúrio que ela assim permanecesse à margem do desenvolvimento sadio de sua geração.

O tempo passava e chegou a hora de Ossu retirar-se para o acampamento infantil. Se tinha vontade de ficar mais tempo, ou se tinha medo da longa viagem de metrô, nada demonstrou. Com apenas oito anos já era um disciplinado cidadão-soldado. Em mim, ao contrário, perpassou uma ardente onda de saudade daquele tempo em que os três engatinhavam em suas pequenas camas todas as noites. Um filho é sempre um filho, e sempre estará mais próximo de seu pai que as filhas. Mesmo assim eu não ousava pensar naquele dia, quando também Maryl e Laila sairiam de casa e só voltariam duas vezes por semana para visita. Em todo caso, cuidei-me para que ninguém notasse minha fraqueza. As crianças não se queixariam jamais de mau exemplo, a criada não teria de relatar uma atitude fraca do chefe da família, e Linda – Linda menos que todos! Jamais quis ser desprezado por alguém, principalmente por Linda, que jamais fora fraca.

As camas da sala de estar familiar foram puxadas da parede para as pequenas, e Linda preparou-as. A criada acabara de colocar os restos da janta e porcelanas no elevador das refeições e aprontava-se para sair, quando lhe ocorreu algo.

— A propósito – disse –, chegou uma carta para o senhor, meu chefe. Deixei-a em seu quarto.

Um pouco surpresos, Linda e eu examinamos a carta, um comunicado de serviço. Fosse eu o responsável geral pelas criadas, certamente a teria advertido por isso. Se ela realmente esquecia tudo, ou se propositalmente negligenciara isto, sua atitude era tão descuidada como não se informar do conteúdo de um comunicado de serviço – e ela tinha perfeitamente o direito a isso. Mas ao mesmo tempo perpassou-me um pressentimento de que a carta poderia ter um mau conteúdo que eu deveria agradecer seu desleixo.

A carta era do Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda. E para esclarecer-lhe o conteúdo, preciso voltar atrás no tempo.


 

 

 

 

Houvera uma festa há dois meses atrás. Num dos locais de reunião dos acampamentos juvenis, ornado com longas faixas com as cores do Estado, montavam-se peças rápidas, faziam-se palestras, marchava-se pelas salas com tambores e comia-se em conjunto. O motivo era que um grupo de moças do acampamento juvenil havia recebido ordens de transferir-se, não se sabia precisamente para onde. Corriam certos rumores sobre uma outra Cidade Química, outros falavam em Cidades de Calçados; em todo caso tratava-se de algum lugar onde pesava na balança tanto a questão de força de trabalho como a de proporção entre os sexos. De nossa cidade, e provavelmente de muitas outras, mulheres jovens eram reunidas e enviadas para tais lugares, para que as cifras predeterminadas pudessem ser mantidas. E agora comemorava-se a festa de despedida dos chamados.

Tais solenidades tinham sempre certa semelhança com as festas de partida de soldados. A diferença era, no entanto, grande: em festas como esta, todos sabiam, tanto os que viajavam como os que ficavam, que nenhum fio de cabelo dos jovens que deixavam sua cidade natal seria tocado. Pelo contrário, fazia-se tudo para que rapidamente sem resmungos todos se enraizassem e se sentissem perfeitamente bem em seus novos ambientes. A semelhança era apenas que ambas as partes sabiam com quase cem por cento de segurança que jamais se veriam outra vez. Nenhuma outra ligação era permitida entre as cidades senão a oficial, a cargo de servidores juramentados e estreitamente controlados, para evitar espionagem. E mesmo que eventualmente um ou outro dos jovens chamados acabasse finalmente no serviço de tráfego – possibilidade ínfima, pois os servidores do tráfego eram geralmente educados para sua missão desde os mais tenros anos em cidades especiais de escolas de tráfego –, era necessário, além disso, a particular coincidência de que tivessem seus serviços designados exatamente para algum dos caminhos que conduziam até suas cidades natais, e que seus descansos coincidissem com o momento em que lá estava; isto valia para os empregados do tráfego nacional – pessoal de serviços aéreos, que vivia sempre separado de suas famílias e sob vigilância constante. Em suma, exigia-se um milagre de coincidências concorrentes para que os pais pudessem rever os filhos quando estes eram transferidos para uma outra região. Abstraído isto – sim, abstraído isto, pois ninguém tinha direito de ruminar as mais sombrias perspectivas em dias como este – a festa era uma excitante ocasião de alegria, como convinha quando algo acontecia para o bem e proveito do Estado.

Estivesse eu integrado com os alegres participantes da festa, os acontecimentos jamais teriam se desenvolvido daquela maneira. A perspectiva de boa comida – nestas ocasiões é sempre abundante e bem preparada, e os participantes costumam jogar-se sobre ela como lobos vorazes –, tambores, palestras, o próprio acotovelamento festivo da multidão, os gritos coletivos, tudo transportava a sala a um grande êxtase comum, habitual e desejável. Eu não estava nem entre os pais, irmãos ou líderes juvenis. Era uma das quatro noites por semana que eu fazia serviço policial e militar, e eu estava lá simplesmente na qualidade de secretário de polícia. Isto não significava apenas que tinha de colocar-me sobre um dos quatro pequenos estrados dos cantos e seguir o protocolo das festividades, junto com mais três secretários nos cantos restantes, senão também que era minha obrigação manter a cabeça fria para observar os incidentes que ocorriam na sala. No caso de alguma disputa ou discussão em segredo, por exemplo, ou se algum dos participantes tentava escapar após chamada nominal, era de grande auxílio para o presidente e os porteiros – que muitas vezes podiam estar ocupados com algum detalhe prático – que quatro secretários de polícia vigiassem a sala o tempo todo de um lugar assim estratégico. Ali estava eu em meu próprio isolamento, deixando o olhar correr sobre a multidão, e embora não estivesse integrando e participando da alegria e comunhão geral, creio que meu sacrifício era bem compensado pela consciência de minha importância e dignidade. Além disso, é-se substituído mais tarde e pode-se ainda tomar parte da refeição, após o que ao menos se é livre para esquecer todas as preocupações.

As jovens que se despediam eram bem umas cinquenta, e podiam ser facilmente vistas na multidão, pois portavam coroas douradas oferecidas pela cidade nessa ocasião. Uma delas despertou minha curiosidade distraída, talvez por ser excepcionalmente linda, talvez mesmo por ter uma inquietude cheia de vida, como um fogo secreto, nos olhos e movimentos. Muitas vezes a surpreendi olhando em busca de algo na direção dos rapazes – isto no começo da festa, quando eram representadas as peças e os rapazes dos acampamentos masculinos e as moças dos femininos ainda estavam sentadas em grupos separados - , até que finalmente pareceu ter encontrado o que procurava e o fogo de seus movimentos tornou-se calmo, como se transformasse em uma única chama tranquila e clara. Creio também ter conseguido divisar a face que ela havia procurado e encontrado: tão dolorosamente séria estava em meio aos demais, alegres e cheios de esperanças, que quase me penalizei. Mal terminara a última peça e os jovens se misturaram, vi os dois cortarem a multidão como se forre água e com uma segurança quase cega encontraram-se no meio da sala, isoladamente quietos entre todos que cantavam e gritavam. Estavam em meio à turba como em uma ilha silenciosa e distante, sem saber em que lugar ou tempo se encontravam.

Despertei de minhas divagações com um resmungo. Eles haviam conseguido transportar-me até seu mundo associal, separado do único grande sacramento para todos: a comunidade. Eu estava talvez muito cansado, pois parecia ser repousante apenas sentar e olhar para eles. Compaixão era a única coisa que mereciam os dois, pensei. Que pode ser realmente mais útil para a formação do caráter de um cidadão-soldado do que desde cedo acostumar-se com grandes sacrifícios para grandes objetivos? Quantos não vagam por toda a vida e aspiram a um sacrifício suficientemente grandioso? Inveja era a única coisa que eu podia sentir em relação a eles, e inveja existia também no desagrado que penso ter observado entre os companheiros dos dois jovens – inveja, e também um certo desprezo por verem tanto tempo e força perdidos em função de um ser humano isolado. De minha parte, não podia desprezá-los. Eles representavam um eterno drama, belo em sua inexorabilidade.

Em todo caso, eu estava certamente cansado, pois meu interesse girava sempre em torno das poucas notas sérias que a alegre festa permitia. Poucos minutos depois perdi de vista os dois jovens que, aliás, já haviam sido separados por camaradas impacientes, e fixei minha atenção em uma mulher magra de meia-idade, provavelmente mãe de alguma das moças chamadas. Ela também parecia de alguma forma desligada da delirante coletividade. Não sei precisamente como captei isso, jamais poderia explicá-lo, pois ela participava o tempo todo, movimentava-se em ritmo com os marchantes, assentia com os que conversavam, gritava com os que gritavam. Mesmo assim pareceu-me perceber que isso era feito mecanicamente, que ela não era levada pelas ondas liberadoras da coletividade, e que de alguma forma permanecia fora, fora mesmo de sua própria voz e de seus próprios movimentos, isolada da mesma forma que os dois jovens. As pessoas a sua roda devem ter tido a mesma sensação, pois tentavam aproximar-se dela por todos os lados. De meu estado, vi que muitas vezes alguém a apanhava pelo braço e a puxava consigo, ou gesticulava e falava com ela, mas logo a abandonava decepcionado apesar de suas respostas e sorrisos serem impecáveis. Apenas um homenzinho feio e vivaz não se deixava intimidar tão facilmente. Quando ela lhe lançava seu sorriso cansado e depois retornava sua seriedade, ele permanecia em pé e despercebido a alguns passos dela, observando-a com nítida preocupação.

A cansada e isolada mulher de certa forma aproximou-se de mim, sem que eu soubesse por quê. Com razão percebi que merecia a inveja de dois jovens, e em um mais alto grau: seu heroísmo pronto ao sacrifício era maior que o deles, como também sua força e dignidade. O sentimento dos jovens murcharia de alguma forma e seria substituído por alguma nova chama, e mesmo que ambos tentassem conservá-lo, logo cessaria de magoar e se tornaria belo e fulgurante, um momento feliz na monotonia de todos os dias. O sofrimento da mãe se renovaria diariamente. Senti então uma falta insuportável, se bem que certamente conseguirei superá-la um dia – falo da falta de Ossu, meu filho mais velho. Embora ele nos visitasse duas vezes por semana, espero realmente poder retê-lo na Cidade Química n°4, mesmo depois de adulto. Sabia que esta era uma atitude excessivamente pessoal em relação aos pequenos cidadãos-soldados que se enviava ao Estado, e abertamente jamais o revelaria, mas isto me proporcionava em segredo uma certa luz em minha vida, talvez exatamente por ser algo tão secretamente guardado e dominado. Tal tormento e fortuna eram exatamente o mesmo que eu reconhecia em minha mulher, como também o mesmo controle discreto. Não podia deixar de imaginar-me em seu lugar: ela jamais poderia rever sua filha, tampouco saber algo dela, pois o correio eliminava cada vez mais rigorosamente as cartas pessoais, de modo que agora apenas comunicados realmente importantes, redigidos curta e objetivamente e providos das competentes verificações, eram enviados ao destinatário. E um pensamento um pouco pretensioso, e individual e romântico, ocorreu-me: os cidadãos-soldados buscavam uma espécie de substitutivo ao sacrificar sua existência sentimental ao Estado, que certamente consistiria no que de mais elevado e sublime alguém poderia aspirar: a glória. Quando a glória era compensação mais que suficiente para guerreiros mutilados, por que também não o seria para um cidadão-soldado que se sentia interiormente mutilado? Era um pensamento confuso e romântico, que mais tarde originou uma ação precipitada.

Ao chegar a hora de substituição, deixei meu lugar para um novo secretário de polícia, desci até a multidão e tentei fundir-me ao entusiasmo coletivo. Talvez eu estivesse por demais cansado e faminto para consegui-lo. As mesas de refeições haviam sido dispostas em círculo e todos juntavam seus mochos em torno das excelências culinárias. Se foi mero acaso, ou se ela procurou-me intencionalmente, não sei, mas alegremente sentou-se em frente a mim a mulher que eu observara. Não era impossível que ela me tivesse visto e lido simpatia em meu rosto. O que, pelo contrário, não constituía mero acaso, era que o homenzinho vivaz e feio, que anteriormente a vigiava, aproximou-se e jogou-se justo ao lado dela.

Comportando-se como um juiz, havia-se proposto desvelar exatamente o que a mulher decidira esconder. Tudo o que ele expressava era inocente em si mesmo, mas roçava a todo instante a ferida que adivinhava em sua vizinha de mesa. Falava lamentando a solidão e esperava as moças. Para evitar a perniciosa formação de grupos, dizia, os transferidos costumavam ser colocados fora do alcance uns dos outros. Depois existiam as dificuldades com o novo clima e os novos hábitos. Com respeito às Cidades de Calçados, como já se supunha – o objetivo da viagem era e precisava ser secreto, e os murmúrios poderiam ser tanto falso como verdadeiros – certamente alguns poucos viajariam para o sul, ficando à mesma distância da Cidade Química n°4 – mas a maioria iria muito longe, para o norte, e teriam um clima nórdico com longos, rigorosos e escuros invernos, que tornavam qualquer estrangeiro melancólico. E o pior de tudo era certamente o idioma. A língua oficial comum do imenso Estado Mundial lamentavelmente ainda não se tornara a língua falada por toda parte. Em muitos lugares falavam-se ainda dialetos que diferiam enormemente uns dos outros. Ele, por sua vez, ouvira alguém contar em confiança que exatamente em uma das Cidades de Calçados existia um idioma muito difícil, com raízes e declinações completamente diferentes das que se usava aqui. Mas não se deve jamais acreditar em boateiros; a pessoa em questão provavelmente jamais saíra da Cidade Química n° 4.

Em determinado momento, pareceu-me que o comportamento do homenzinho era provocado por algum desejo de vingança. Pelas respostas polidas e negligentes da mulher, entendi que apenas haviam acabado de se conhecerem, talvez mesmo naquela noite. E lentamente adivinhei como tudo se encaixava: o homem não tinha a mínima motivação pessoal para o que fazia, sua inflexibilidade era ditada pela mais pura preocupação com o bem do Estado. Não tinha objetivo algum em mente senão desmascarar a mulher, que perambulava e portava sentimentos associais e privados; queria apenas envergonhá-la, fazê-la irromper em lágrimas ou numa resposta colérica, de forma que ele mais tarde pudesse apontar para ela e dizer: “Vejam o que ainda tempos e precisamos suportar entre nós!” Deste ponto de vista a rudeza tornava-se não apenas compreensível, senão totalmente digna de respeito, e a luta entre ele e a mulher agredida tomava um novo, fundamental significado. Acompanhei-a com curiosidade, e quando finalmente minha simpatia voltou-se para ela, isto não dependia tanto de uma simpatia complacente senão de algo de que eu não precisava envergonhar-me diante de quem quer que fosse: a admiração pela superioridade quase viril que ela demonstrava ao repelis seus golpes. Nenhum movimento nervoso alterava seu sorriso polido, nenhum tremor perpassava o tom leve e glacial de sua voz quando ela recebia cada um de seus ataques incisivos com mais resignação que o outro. Os jovens aprendem facilmente; um clima nórdico é muitas vezes mais saudável que um setentrional; no Estado Mundial nenhum cidadão-soldado precisava sentir-se só; por que você deplora que alguém esqueça os seus? Nada é mais desejável que uma transferência.

Decepcionei-me totalmente quando a elegante esgrima foi interrompida por um homem volumoso, de cabelos vermelhos:

— Nada de preocupações sentimentais! Ouça, cidadão-soldado, seja você quem for, que pinta com cores tão negras as ingerências do Estado num dia como este! E o que é pior, diante de uma das mães! Este é um momento de alegrias, não de preocupações e soluços!

Justo quando a conversa ia recomeçar, nasceu em meu cérebro a infeliz decisão de desferir um ataque contra o homenzinho. Meu trabalho não estava exatamente acabado, eu era um dos oradores oficiais. Ocorreu então que minha palestra, minuciosamente preparada como fora, com gestos e tudo mais, teve uma fatal e improvisada conclusão:

— Seus atos heróicos, cidadãos-soldados, não se tornam menores por serem acompanhados de dor. Dor sente o guerreiro em suas feridas, dor sente sob os véus a viúva do guerreiro caído, embora a alegria de servir o Estado supere mil vezes a dor. A dor pode ser uma bênção para aqueles que precisam separar-se na vida profissional, na maioria dos casos para sempre. E se é merecida nossa homenagem quando mãe e filha, camarada e camarada se separam com alegria nos olhos e gritos de viva nos lábios, não menos merecida é nossa admiração se sob a alegria e os vivas resta uma tristeza, uma tristeza contida e negada – esta é certamente mais digna de nossa admiração, por ser um sacrifício maior feito ao Estado.

Rejubilante e aprovativa como estava a multidão, regurgitou em uma tempestade de aplausos e gritos. Mas notei que, aqui e ali, entre os aplausos, alguns mantinham, insubmissos, as mãos imóveis. Mil pessoas batem palmas, e duas ficam imóveis – e então estas duas são mais importantes que as mil: evidentemente os dois podem ser delatores, mas nenhuma das mil levantaria um dedo para defender o festejado, se ele fosse delatado – e ademais, como poderiam elas fazer isso? Compreende-se também facilmente não ser nada agradável permanecer ali pateticamente emocionado, sentindo o tempo todo os olhos do feio homenzinho como flechadas. Lancei um rápido olhar em sua direção. Naturalmente ele não aplaudia.

*  *  *

Eu segurava ainda na mão a notificação daquela noite. Quem me denunciara não precisava necessariamente ter sido o homenzinho. Em todo caso, denunciado eu já estava. No papel lia-se:

“Cidadão-soldado Leo Kall, Cidade Química n° 4. – Depois que o Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda examinou o conteúdo de sua palestra na festa de despedida dos operários convocados do Acampamento Juvenil, resolveu-se comunicar-lhe o seguinte:

Sendo um guerreiro totalmente devotado sempre mais efetivo que um relutante, precisa então um feliz cidadão-soldado – que nem para si mesmo nem para outros admite que sacrifica algo – reconhecer um si maior valor que em um inferior, que sofre o peso de seu assim chamado sacrifício, mesmo escondendo sua inferioridade; e consequentemente não tempos motivo algum para exaltar cidadãos-soldados que tentam esconder relutância, abatimento e sentimentalismo sob uma controlada máscara de alegria senão aqueles que, inteiramente alegres, nada têm a esconder, enquanto que o desmascaramento dos relutantes é uma atitude valiosa para o bem do Estado.

Esperamos o mais rapidamente possível sua autocrítica, ante o mesmo auditório que então o escutava, caso seja possível reencontrá-lo reunido; em caso contrário, na rádio local. Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda”.


 

 

 

 

Minha reação foi tão colérica que mais tarde envergonhei-me diante de Linda. Receber isto exatamente hoje, em plena alegria da vitória! Em meio às minhas maiores esperanças, ser atingido por tal golpe! Fora de mim como estava, disse várias coisas não refletidas que mesmo hoje, não obstante minha boa memória, encontro com dificuldade em lembrar: que eu era um homem arrasado, minha carreira estava destruída, meu futuro sem glória, minha maior descoberta se volatilizara com isto, que agora constaria de todos os registros secretos de todas as seções de polícia em todo Estado Mundial, e assim por diante. E quando Linda tentou consolar-me, acreditei no primeiro momento que ela apenas cogitava de melhor forma de abandonar o barco que naufragava, apesar de as crianças estarem ainda em idade de casa.

— Logo todos saberão que as palestras que costumo proferir são subversivas, disse eu amargamente. Deves exigir divórcio o quanto antes, sem se preocupar se as crianças são ainda pequenas. Para elas será melhor tornarem-se órfãos a conviverem com um subversivo como eu...

— Assim tu exageras – disse Linda calmamente. (Lembro ainda até as próprias palavras. Não foi a calma, nem o maternalismo de seu tom de voz que me convenceu de sua sinceridade, mas sim o pesado, quase apático cansaço.) – Assim tu exageras. Quantos eminentes cidadãos-soldados pensam que não tiveram anotações sobre si alguma vez, e mais tarde redimiram-se! Não lembras todas as autocríticas que ouvimos no rádio, às sextas-feiras, entre às 20 e 21 horas? Deves entender de uma vez por todas que não é a perfeição que faz de ti um bom cidadão-soldado, muito menos a perfeição em tais questões, onde a ética estatal ainda está por ser estabelecida! Antes de tudo é a capacidade de renunciar ao teu ponto de vista e dedicar-te ao correto.

Por fim acalmei-me e comecei a compreender que ela tinha razão. Em meu estado emocional prometi tanto a ela como a mim mesmo utilizar-me da hora radiofônica de autocríticas tão cedo quanto o possível. Comecei inclusive a fazer imediatamente uma minuta de minha futura alocução.

— Estás exagerando de novo – disse Linda, que se curvava sobre meus ombros para ler o que eu escrevia – Não deves ficar arrasado, mas tampouco deves agir como uma borracha que se pode distender a qualquer hora; então te tornas suspeito de golpear de volta, em um momento de descuido. Acredite-me, Leo, tais coisas devem ser escritas quando não se está tão revoltado como estás agora.

Ela tinha razão, e eu era-lhe agradecido por tê-la comigo. Era inteligente, inteligente e forte. Mas por que parecia tão cansada?

— Não estás doente, Linda? – perguntei preocupado.

— Por que eu estaria doente? Tivemos exame médico na última semana. Recomendaram-me um pouco de sol ao ar livre; fora isso não havia problema algum comigo.

Levantei-me e abracei-a.

— Tu não podes morrer e me abandonar. Preciso de ti. Deves ficar comigo.

Paralelo a meu medo de ficar só, corria um pequeno fio de esperança: sim, por que não – por que não poderia ela morrer – não seria esta a melhor solução para o problema? Mas eu não queria aceitar isso. E apertei-a fortemente contra mim, numa espécie de fúria impotente.

Deitamo-nos e apagamos a luz. Minha ração mensal de soníferos terminara já há muito tempo.

Mesmo se seu doce calor e perfume, que lembrava folhas de chá, não me tivessem envolvido em ondas sob as cobertas, eu a teria desejado aquela noite, numa proximidade mais próxima que aquela que o contato superficial pode dar. Os anos me haviam transformado. Em minha juventude, meus sentimentos eram uma espécie de suplemento, um companheiro exigente que precisava ser satisfeito para que, livre dele, eu pudesse ocupar-me de outras coisas, ou ainda, um orgulhoso instrumento de prazer, mas não precisamente uma parte daquilo que eu chamava de mim mesmo. Agora isto não mais ocorria. Perfume e doçura e prazer não eram mais as únicas coisas que eu desejava possuir. A meta de meus sentidos inflamados era algo de bem mais difícil acesso, era Linda, que em certos momentos rápidos brilhava atrás dos olhos imóveis e grandemente abertos, sob o arco vermelho e contraído da boca, que se deixara entrever em sua cansada inflexão de voz, em seus calmos e inteligentes conselhos. E enquanto meu sangue seguia seu caminho pelas veias, virei-me para o outro lado e abafei um suspiro. Disse a mim mesmo que era superstição e nada mais o que eu exigia da convivência entre um homem e uma mulher, algo tão supersticioso como quando os selvagens dos tempos pré-históricos comiam o coração de seus inimigos valentes para se tornarem partícipes de sua coragem. Não existia ato mágico algum que pudesse dar-me a chave de direitos de proprietário ao jardim das delícias que Linda me escondia.

Na parede, o olho e o ouvido da polícia permaneciam ativos, tanto na claridade como na escuridão. Ninguém poderia julgá-los senão necessários: que antro de espionagem e conspirações poderia tornar-se o quarto dos pais, ainda mais quando também era utilizado como sala de visitas! Mais tarde, ao tomar um contato mais íntimo com a vida familiar de diversos cidadãos-soldados, fui forçado a associar os olhos e ouvidos da polícia com a insatisfatória curva de naturalidade no Estado Mundial. Mas não julgava ser por esta razão que agora meu sangue se acalmava tão facilmente. Pelo menos, antes, jamais fora por isso. Nosso Estado Mundial não tinha absolutamente uma visão ascética da sexualidade, pelo contrário, era necessário e honroso engendrar novos cidadãos-soldados, e tudo se fazia para que homens e mulheres desde a maturidade tivessem a oportunidade para cumprir seu dever neste sentido. No início, eu nada abjetava que funcionários e posições mais elevadas constatassem vez por outra que eu era homem. Isto se tornou inclusive um estímulo. Sobre nossas noites anteriores se estendera um fulgor de imagens festivas, pelas quais fomos solenemente tomados e conscientizados da execução de um ritual aos olhos do próprio Estado. Mas uma modificação se introduzira ao correr dos anos. Enquanto anteriormente, mesmo em minhas mais íntimas ocupações, eu me preocupava em como era avaliado pelo Poder, que também se utilizava do olho na parede, agora este poder se transformava mais e mais num peso embaraçoso exatamente naqueles instantes em que mais selvagemente desejava Linda e ansiava pelo inatingido e inatingível milagre, que faria de mim senhor de seus mistérios íntimos. O olho, que me preocupava, exista ainda agora era a própria Linda. Comecei a pressentir que meu amor havia tomado um indevido caráter privado, e isto torturava minha consciência. A finalidade do casamento era os filhos! Nada tinha a ver com sonhos supersticiosos, com chaves e dominação! Talvez essa tendência perigosa em meu casamento fosse uma razão para divorciar-me. E indaguei-me se outros divórcios em torno a nós não teriam as mesmas razões...

Decidi-me então a dormir, mas não pude. A carta do Ministério de Propaganda começou a girar em torno de minha cabeça, e eu não sabia mais para que lado virar-me.

Um guerreiro totalmente devotado é mais efetivo que um relutante, isso é lógico, evidente. Mas que se vai fazer com os relutantes? Como obrigá-los à devoção total?

Uma lúgubre descoberta: eu estava aqui deitado sentindo angústias pelos relutantes, como se fosse um deles. Daqui por diante, não permitiria que isso continuasse. Não queria ser relutante, como cidadão-soldado eu era absolutamente devotado, sem um pingo de perfídia ou traição. Os inúteis deveriam ser aleijados, inclusivo ela, a mãe magra e autocontrolada da festa. Morte aos relutantes! Seria daqui por diante minha palavra de pensamento. – Respondi-lhe: se a situação não melhorar, me divorcio. Mas só depois de as crianças atingirem a idade de sair de casa.

Subitamente uma idéia inundou-me de discernimento e alívio: minha própria descoberta coincidia exatamente com as intenções da carta do Sétimo Departamento. Eu não havia falado pessoalmente com a criada nesse sentido? Eu seria acreditado e perdoado em função de minha descoberta, meu comportamento era leal, e isto pesaria bem mais que algumas palavras irrefletidas ditas em uma festa sem importância. Apesar de tudo eu era um bom cidadão-soldado e poderia tornar-me ainda melhor.

Antes de adormecer, sorri para mim mesmo ante uma tranquilizante e cômica fantasia, uma dessas imagens caprichosas que costuma emergir na consciência exatamente antes de adormecer-se: vi que o homenzinho feio e vivaz da festa também tinha um comunicado na mão e suava frio – o grandalhão de cabelos vermelhos o havia denunciado por suas tentativas de dificultar a alegria e denegrir as promoções do Estado. O que era realmente pior...


 

 

 

 

Não costumo perder tempo, nem durante a ginástica matutina, nem em qualquer outro momento, mas naquela manhã creio ter-me apressado um pouco mais na ducha e vesti rapidamente o uniforme de trabalho para poder estar logo em prontidão, quando a porta de meu laboratório se abriu e o chefe de controle entrou.

Naturalmente era Rissen. Exatamente como eu pensara. Se estava decepcionado, espero ao menos que isso não se notasse exteriormente. Existia uma pequena possibilidade de que fosse um outro, no entanto era Rissen. E quando parou em frente a mim, insignificante em sua postura, quase vacilante, tornou-se claro que eu não o detestava porque talvez existisse algo a descobrir entre ele e Linda, mas pelo contrário, abominava a idéia de uma relação entre ele e Linda justamente por tratar-se de Rissen. Qualquer um outro, mas não ele. Empecilhos outros, Rissen certamente não poria em minha carreira, era por demais ingênuo para fazê-lo. Mas de minha parte, preferia ter um chefe de controle menos ingênuo e mais capcioso, com que eu pudesse medir forças – e ao mesmo tempo receber mais deferência de sua parte. De Rissen não se podia esperar deferência, era diferente dos demais, excessivamente ridículo. Não era muito fácil de expressar o que faltava ao homem, mas se empregamos a palavra cadência, isto dá uma certa imagem da coisa. A atitude decidida, o modo claro e rígido de falar, o único natural e digno em um cidadão-soldado adulto, não se encontravam em Rissen. Podia tornar-se subitamente nervoso, balbuciar uma palavra sobre a outra; tinha movimentos involuntários e cômicos de mãos, e ao falar fazia longas e despropositadas pausas, absorto em pensamentos; lançava palavras descuidadas que apenas um iniciado atenderia. Podiam até mesmo ocorrer contrações animalescas involuntárias em sua face, em minha – um subordinado – presença, quando ouvia falar em algo que o interessava especialmente. Por um lado, eu sabia que ele, como cientista, tinha qualidades brilhantes; por outro, apesar de tratar-se de meu chefe, não podia ignorar que existia uma desarmonia entre seu valor como cientista e seu valor como cidadão-soldado.

— Muito bem – disse ele, fleugmaticamente, como se o horário de trabalho fosse sua propriedade privada. – Muito bem. Recebi um relatório muito minucioso sobre tudo isto aqui. Creio inclusive tê-lo entendido perfeitamente.

E começou a repetir meu relatório em seus pontos mais importantes.

— Meu chefe – atalhei impacientemente –, já tomei a liberdade de encomendar cinco pessoas do Serviço Voluntário de Cobaias. Elas esperam sentadas no corredor.

Olhou-me duramente com seus olhos pensativos. Tive a impressão de que mal enxergava. Ele era realmente estranho.

— Pois bem, chame um deles então – disse. Parecia estar pensando alto, e não expressando uma ordem.

Apertei a campainha da sala de espera. Entrou um homem com um braço na tipóia; parou após a porta, cumprimentou e identificou-se como n° 135, do Serviço Voluntário de Cobaias.

Um tanto irritado, perguntei se era realmente possível envia uma cobaia sadia. Durante meu trabalho como assistente num dos laboratórios de medicina, acontecera cair em mãos de meu chefe uma mulher com toda a atividade glandular desajustada por uma experiência anterior, e lembro muito bem de que isto modificou totalmente o resultado de suas pesquisas. Eu não queria expor-me a risco semelhante. Além disso, sabia que, segundo regulamento, devia-se insistir energicamente no direito de receber cobaias sadias: o costume de continuamente enviar as mesmas cobaias, com igual instrução, permitia a existência de uma espécie de favoritismo, de forma que mártires voluntários e inteligentes jamais tinham, durante longos períodos, ocasião de demonstrar coragem e obter pequenos ganhos extras. Um chamado como este era visivelmente mais honroso que a maioria dos casos do Serviço Voluntário, e a rigor devia ser considerado como sua própria recompensa. Em todo caso, os honorários eram sempre calculados por baixo, em consideração às muitas indenizações extras por ferimentos, o que fazia parte da profissão.

O homem aprumou-se e pediu desculpas de parte de sua seção. De fato, não dispunham de outro para enviar. Precisamente agora trabalhava-se febrilmente nos laboratórios bélicos e o Serviço Voluntário de Cobaias vivia em campos de batalha dia e noite, até o último homem. Pessoalmente, o 135 estava em excelente estado, exceto quanto a um ferimento de guerra com complicações na mão esquerda, e em sua defesa queria dizer que embora devesse estar curado há muito tempo – nem mesmo o químico que o tratou conseguiu explicar por que ainda não o estava de fato – ele se considerava praticamente sadio, e esperava que a pequena lesão provocada por gás não atrapalhasse a experiência.

De fato, não atrapalharia, e isto tranquilizou-me.

— Não é de suas mãos que precisamos, mas de seu sistema nervoso, disse-lhe. E posso lhe afirmar que a experiência não será dolorosa, não lhe causará lesões, nem mesmo passageiras.

135 aprumou-se novamente, como podia. Ao responder, sua voz lembrava uma fanfarra:

— Lamento que o Estado não exija sacrifícios ainda maiores de mim. Estou disposto a tudo.

— Naturalmente, disso não duvido, respondi seriamente.

Eu estava convencido de que ele sentia o que dissera sentir. Minha única objeção era ter acentuado excessivamente seu heroísmo. Também um cientista em seu laboratório pode ser corajoso, embora nem sempre possa demonstrá-lo, pensei. Ademais, a ocasião era oportuna: o que ele dissera sobre a atividade febril nos laboratórios bélicos era um novo sinal do começo de uma guerra. Um outro, que eu observara para mim mesmo, mas não queria discutir para não ser considerado pessimista e agitador, era de que a comida em geral piorara nos últimos meses.

Sentei o homem numa cadeira confortável, posta ali especialmente para minha experiência; arregacei sua manga, desinfetei-lhe o braço e introduzi a pequena seringa, repleta de seu líquido esverdeado. No instante em que n° 135 sentiu a picada, sua face contraiu-se de forma a quase tornar-se bela. Devo reconhecer que julguei estar vendo um herói à minha frente. Logo as cores de sua face empalideceram um pouco, o que certamente não tinha relação com o líquido esverdeado, que não poderia ter agido tão rapidamente.

— Como se sente – perguntei, encorajando-o, enquanto o conteúdo da seringa diminuía. Sempre conforme o regulamento, eu sabia perfeitamente ser recomendável interrogar a própria cobaia tanto quanto possível, isto lhe dava um sentimento de igualdade a matinha de certa forma acima das dores.

— Obrigado, como sempre! – respondeu n° 135, mas falando com visível lentidão, como para ocultar o tremor dos lábios.

Enquanto permanecia sentado e esperava pelos efeitos, estudamos sua ficha, que ele deixara na mesa. Ano de nascimento, sexo, tipo racial e físico, temperamento, tipo sanguíneo, particularidades genealógicas, doenças (em não pequeno número, naturalmente, todas contraídas em experiências). Escrevi o necessário em meu novo e cuidadosamente elaborado fichário. Surpreendi-me com o ano de nascimento que, no entanto, estava correto, e lembrei que já durante meus tempos de assistente ouvira falar, e havia constatado, que as pessoas do Serviço Voluntário de Cobaias pareciam em regra dez anos mais velhas do que realmente eram. Feito isso, voltei-me para n° 135, que começava a contorcer-se na cadeira.

— Então?

O homem riu infantilmente, perplexo.

— Estou muito bem assim. Nunca estive tão bem. Mas o que sinto é medo...

O momento chegara. Escutávamos atentos. Meu coração pulsava forte. E se o homem não dissesse absolutamente nada? Se ele não tivesse consigo nada a esconder? E se o que ele estava em vias de dizer não fosse nada especial? Como convencer então meu chefe de controle? E pessoalmente, como estaria eu seguro? Uma teoria, por mais bem fundada que seja, é e permanece teoria enquanto não é aprovada. Eu poderia ter-me enganado.

Aconteceu algo então para o que eu não estava preparado. O homem, grande e maciço, começou a soluçar, desamparado. Escorregou do assento, ficou suspenso nos braços da cadeira como um farrapo, e estremeceu lentamente, ritmadamente, em longos gemidos. Não consigo expressar quanto isso era penoso, não sabia como manter meu corpo nem meu rosto. O autocontrole de Rissen – com isto devo concordar – nada deixava a desejar. Se ele sentia tão mal quanto eu, escondia isto melhor.

A situação durou alguns minutos. Eu me envergonhava diante de meu chefe, como se fosse responsável por fazê-lo testemunhar tais cenas. No entanto, não podia de forma alguma saber antecipadamente o que as cobaias tinham a revelar. Nem eu, tampouco nosso laboratório, tinha uma atitude oficial ante eles: eram enviados para uma central onde permaneciam disponíveis para todos os institutos correspondentes.

Finalmente ele se acalmou. Os soluços diminuíram e ele ergueu-se, tomando uma posição um pouco mais digna. Impaciente para dar fim à dolorosa cena, dirigi-lhe a primeira pergunta que me ocorreu:

— Como se sente?

Ele dirigiu-nos o olhar. Via-se muito bem que estava consciente de nossa presença e nossas perguntas, embora talvez não se desse conta exatamente de quem éramos. Quando respondia, dirigia-se nitidamente a nós, mas não como se se dirigisse a seus chefes, mas como se falasse a ouvintes ocultos e anônimos:

— Sou um desgraçado, suspirou. Não sei por que fazer. Não sei como suportar.

— Suportar o quê? – perguntei.

— Isto tudo. Tenho muito medo. Sempre tenho medo. Não precisamente agora, mas em outras circunstâncias, quase sempre.

— Medo das experiências?

— Exato; das experiências. Precisamente agora, não sei de que tenho medo. Doa mais ou doa menos, fique-se mutilado ou em perfeito estado novamente, morra-se ou continue-se vivendo – que razões existem para ter medo? Mas eu sempre tenho medo; ridículo. Por que se sente tanto medo?

O torpor inicial desaparecera e fora substituído por uma nítida embriaguez e descontração.

— E depois – continuou, sacudindo ebriamente a cabeça –, todos sentem mais medo ainda do que dizem. Tu és covarde, diriam, e isto é pior que qualquer outra coisa. Tu és covarde. Eu não sou covarde. Não quero ser covarde. Ademais, que importância teria se eu realmente o fosse? Se perco o lugar... Certamente encontraria um outro. Eles sempre podem utilizar a gente em algum lugar. Mas eles não terão tempo de jogar-me fora! Sairei antes. Voluntariamente, do Serviço de Cobaias. Voluntariamente, como entrei.

Ensombreceu-se novamente, não por sua desgraça, mas por um surdo amargor.

— Eu os odeio – continuou inesperadamente, com os dentes cerrados. – Eu os odeio quando entram em seus laboratórios despreocupadamente, sem precisar temer ferimentos ou dores e consequências previstas e imprevistas. Depois, voltam para a esposa e os filhos. Vocês acham que alguém como eu pode ter uma família? Tentei casar-me uma vez, mas não deu, vocês entendem muito bem por que não deu. A gente se torna excessivamente ocupado de si neste trabalho. Nenhuma mulher consegue aguentar. Odeio todas as mulheres. Elas nos atraem, mas depois não conseguem suportar-nos. São falsas. Eu as odeio, exceto minhas colegas do Serviço de Cobaias, é claro. As mulheres do Serviço de Cobaias não são mais exatamente mulheres, não há por que odiá-las. Nós que estamos lá, não somos como os outros. Também somos chamados de cidadãos-soldados, mas como são as coisas de fato? Devemos morar na Casa, não somos mais que lixo...

— Meu chefe – disse eu –, o senhor quer que eu lhe aplique mais uma dose?

Esperava que ele dissesse não, pois o homem me era profundamente antipático. Mas Rissen anuiu, e eu nada podia fazer senão obedecer. Enquanto introduzia lentamente o líquido esverdeado no sangue de n° 135, disse-lhe asperamente:

— Você mesmo salientou muito bem que se chama voluntário o Serviço de Cobaias. De que se queixa? É desagradável ouvir um homem adulto reclamar de suas próprias atitudes. Um dia você se inscreveu, sem coação alguma, como todos os outros.

Temia que minhas palavras não se dirigissem propriamente ao anestesiado, que justamente por seu torpor se mantinha certamente inacessível a razoamentos, mas a Rissen antes de mais nada, para que ele soubesse onde eu me situava.

— Claro que fui voluntariamente – murmurou n° 135 surpreso de desconcertado. Claro que sim, mas não sabia que era assim como é. Eu supunha ter de sofrer, mas de uma outra forma, de um modo mais digno, e de morrer, mas de uma vez, e com entusiasmo. Não dia e noite, pouco a pouco. Eu acreditava ser lindo morrer. Mas não sabia que se morria agitando os braços. Estertorando. Certa vez, vi alguém morrer na Casa: ele agitava os braços e estertorava. Foi pavoroso. Mas não era apenas pavoroso. Aquilo não pode ser imitado. Depois disso, pensei o tempo todo em como seria bom comportar-se assim uma única vez. Precisa-se fazê-lo, não se pode impedi-lo. Se fosse voluntariamente, seria inadmissível. Mas não é voluntário. Ninguém pode impedir-nos. Agimos assim, e pronto. Ao morrer, podemos nos comportar de qualquer jeito, sem que alguém possa impedir-nos.

Eu retorcia nas mãos um tubo de vidro.

— O homem deve ser de alguma forma perverso – disse baixinho a Rissen. – Um cidadão-soldado sadio não reage assim.

Rissen não respondeu.

— Você não se envergonha de jogar a responsabilidade... – comecei a falar, um pouco irritado, para a cobaia. Percebi que Rissen lançou-me um olhar demorado, frio e divertido ao mesmo tempo, ao notar como enrubesci ante a idéia de que ele certamente vira que eu tentava fazer-me importante em sua presença. (Um pensamento injusto, aliás). Em todo caso, eu devia completar a frase e continuei num tom de voz significativamente mais suave: –... Para outros pelo fato de que você escolheu uma profissão que mais tarde descobriu não lhe servir?

N° 135 não reagiu ao tom de voz, mas à pergunta.

— Outros? – perguntou. – Eu mesmo? Mas eu não quero. Apesar de ser verdade, eu queria. Éramos dez os que se inscreveram em minha seção, mas do que em qualquer outra de todo o Acampamento Juvenil. A coisa irrompeu como um furacão no acampamento. Muitas vezes perguntei-me como se originou. Tudo desembocava no Serviço Voluntário de Cobaias. Nos primeiros anos eu ainda pensava: isto é nobre. Acabamos nos inscrevendo. E quando olhávamos um para o outro, mal conseguíamos vislumbrar um ser humano. As faces, entendem? Como fogo. Não carne e sangue. Santas, divinas. Nos primeiros anos pensei: vamos viver algo mais além do que qualquer comum mortal pode viver, e agora estamos pagando o devido, disso estamos sabendo, depois do que pudemos ver... Mas não aguentamos mais. Eu não aguento mais. Não tenho mais memória, ela me foge, cada vez para mais longe. Antes brilhava às vezes inesperadamente, mas cada vez que a busco (e preciso buscá-la para encontrar novamente o sentido de minha vida), noto que ela não mais me responde, fugiu para muito longe. Creio tê-la exaurido por forçá-la tanto. Às vezes deito-me sem dormir e cogito de como seria minha vida, se fosse a de um homem comum, se eu pudesse experimentar um outro grande momento uma vez mais, ou talvez se não o tivesse experimentado ainda, ou se toda esta grandiosidade pudesse espalhar-se pela vida, então tudo faria sentido, se, enfim, tudo pelo menor não tivesse passado tão inexoravelmente. Precisa-se de um agora, entendem, não apenas de um momento desaparecido que se reviverá pela vida fora. Impossível suportar tudo isto, embora uma vez tenhamos consentido... Nos envergonhamos. Envergonhamo-nos por temos traído o único momento na vida que teve algum valor. Trair. Por que se trai? Quero apenas ter uma vida comum para reencontrar-lhe o sentido. Eu me sobrecarreguei. Não aguento. Amanhã registro minha renúncia e acabo com isso.

O homem relaxou-se um pouco. E ainda uma vez quebrou o silêncio.

— Será possível encontrar-se um tal momento uma vez mais... Quando se morre? Pensei muito nisto. Eu morreria com prazer. Se não se tem mais nada na vida, ao menos a morte se pode ter. Quando se diz: eu não suporto mais, quer-se dizer: eu não suporto mais viver. Não se pensa: eu não suporto morrer, pois isto se suporta, morrer se suporta sempre, pois então podemos ser como queremos...

Calou-se e permaneceu quieto, recostado no espaldar da cadeira. Uma palidez esverdeada começou a espalhar-se em seu rosto. O corpo estremeceu quase imperceptivelmente num rápido soluço. As mãos escorregaram tateando ao longo dos braços da cadeira, e o homem todo parecia despertar, nervoso e com náuseas. Nada surpreendente, pois tomara uma dose dupla. Ofereci-lhe algumas gotas de calmante em um copo de água.

— Ele voltará logo a si – disse eu. – Está se sentindo um pouco mal, pois os efeitos estão cessando. Depois tudo passa. De certa forma terá de enfrentar agora seu mais desagradável trabalho: recolher-se a seu medo e sentimento de vergonha novamente. Julgo que vale a pena observá-lo.

Em verdade, Rissen não tirava os olhos de n° 135, com uma expressão como se fosse ele e não a cobaia quem se envergonhava. O homem a nossa frente, de fato, não nos ofereceria nenhuma visão encorajadora. As veias da têmpora inchavam e latejavam, e os músculos da comissura dos lábios se contraíam num horror reprimido, de espécie visivelmente pior do que a que ele escondia ao entrar na sala. Mantinha os olhos convulsivamente fechados, como se esperasse que, com o transcurso do tempo, a clara imagem guardada na memória se transformasse num sonho mau.

— Ele se lembrará de tudo que aconteceu? – perguntou-me Rissen em voz baixa.

— Temo que de tudo. Mas ainda não sei se devemos julgar isto uma vantagem ou um prejuízo.

Com visível aversão, finalmente, a cobaia decidiu-se a abrir os olhos, de modo a apenas poder seguir tateando pelo soalho. Curvado e inseguro, afastou-se alguns passos da cadeira sem ousar olhar nenhum de nós na face.

— Devo agradecer-lhe pelo serviço prestado - disse e sentei-me na mesa. (Agradecimento de praxe, ao qual o interpelado deveria responder: “Apenas cumpri minha obrigação”, mas nem mesmo um formalista, como eu naquele tempo, tinha a coragem de seguir à risca as convenções, no caso de cobaias após uma experiência). – Escreverei tudo isto em um atestado, e você poderá receber a indenização na caixa quando quiser. Vou colocá-lo na classificação 8: prejuízos moderados sem danos consequentes. Praticamente não se pode falar em dor ou mal-estar, de modo que devia colocá-lo na 3. Mas me parece que você, humm, como direi? Sente-se um pouco envergonhado.

Apanhou o papel descuidadamente e avançou cambaleante até a porta. Parou indeciso alguns segundos, voltou-se subitamente e gaguejou:

— Devo confessar que não entendo o que aconteceu comigo. Era como se estivesse inconsciente e dissesse coisas que de forma alguma penso. Duvido que alguém goste mais de seu serviço do que eu e jamais me ocorreria a idéia de abandoná-lo. Espero seriamente que tenha mais chances de demonstrar minha boa-vontade sofrendo as mais difíceis experiências pelo bem do Estado.

— É bom que você fique à nossa disposição até sentir sua mão curada – disse eu sem pensar muito no assunto. – Caso contrário seria difícil ser designado para outro trabalho. Fora isto, que mais você aprendeu? Pelo que sei, não se costuma desperdiçar instrução extraordinária com nenhum cidadão-soldado, e um homem em sua idade não deve ser jogado em nenhuma outra área, principalmente pelo fato de que não se pode pensar em espécie alguma de “invalidez” na profissão que você escolheu...

Até hoje não sei se falei com arrogância e superioridade. O fato é que deixei transparecer uma visível aversão em relação à minha primeira cobaia. Suponho ter razões suficientes para um tal atitude: a covardia e a irresponsabilidade que o homem escondia sob uma máscara de coragem e espírito de sacrifício, para agradar seus chefes. De fato, a orientação geral do Sétimo Departamento fez-me ferver o sangue. Tratava-se, no caso, de covardia dissimulada; pude constatar pessoalmente quão odiosa era, embora eu não notasse então quando se tratava de desespero dissimulado. O que, pelo contrário, eu não via claramente era uma outra razão para minha hostilidade, uma que só mais tarde descobri e entendi: inveja crescente. Sua curta e entusiástica caminhada do acampamento juvenil ao escritório de propaganda no dia em que se inscrevera no Serviço Voluntário de cobaias – sim, isto eu lhe invejava. Teria um momento assim abrandado minha sede inextinguível, que eu inutilmente tentar saciar com Linda? Embora não chegasse a completar tais pensamentos, sentia que o homem era um agraciado, mas ingrato, e isto me tornava implacável.

Rissen, por sua vez, comportou-se de forma a deixar-me estupefato. Dirigiu-se a n° 135, pôs-lhe a mão nas espáduas e disse, em um tom tão caloroso que dificilmente alguém empregaria com adultos, especialmente entre homens, senão quando uma mão muito carinhosa fala a seus filhos pequenos:

— Não tenha mais medo. Você sabe muito bem que nada pessoal sai daqui. É como se nunca tivesse sido dito.

O homem levantou os olhos timidamente, virou-se com rapidez e desapareceu porta a fora. Penso ter entendido seu embaraço. Fosse ele um bocado mais orgulhoso, pensei, certamente teria cuspido na face de um chefe que se comportava tão familiarmente em relação a um subordinado. E logo após pensei: como se pode reverenciar e obedecer a um chefe assim? Aquele que ninguém precisa temer tampouco pode exigir qualquer respeito naturalmente devido, pois deferência significa um reconhecimento de força, superioridade, poder – e força, superioridade e poder são sempre perigosos para a convivência.

Estávamos sós, Rissen e eu, e uma prolongada quietude caiu sobre a sala. Eu não gostava das pausas de Rissen. Não eram repouso nem trabalho, mas algo intermediário.

— Eu sei o que o senhor pensa, meu chefe – disse eu finalmente para interromper a pausa. – O senhor pensa que isto não prova nada. Eu poderia ter instruído o homem anteriormente. O que ele disse era de fato pessoalmente comprometedor, mas não passível de punição. Não é isto o que o senhor pensa?

— Não – disse Rissen, parecendo ter despertado. – Não, não penso isto. Ficou perfeitamente claro que o homem disse diversas coisas que pensava, mas que não queria dizer nem à custa de sua vida. Não há dúvidas que era verdadeiro, tanto o que confessou como a vergonha posterior.

Em meu próprio interesse deveria estar contente por sua credulidade. Mas estava irritado, pois julgava tudo ter sido fácil demais. Em nosso Estado Mundial, onde cada um de nós cidadãos-soldados, desde os tenros anos, era educado para um rígido autocontrole, não seria de todo impossível que n° 135 tivesse desempenhado uma grandiosa interpretação, embora acidentalmente não parecesse ser este o caso. Mas calei minha crítica e apenas respondi:

— Seria indisciplina se eu propusesse continuarmos?

O estranho homem pareceu não ter notado minha pergunta.

— É uma descoberta misteriosa – disse pensativo. – Como chegou até ela?

Complementei experiências precedentes. Uma droga com efeitos semelhantes foi descoberta há cerca de cinco anos, mas tinha efeitos tóxicos secundários, que as cobaias acabavam – quase sem exceção – nos hospícios, mesmo quando utilizadas uma única vez. O descobridor destruiu um bom número de pessoas com ela e recebeu advertências tão severas que tudo foi suspenso. Agora consegui neutralizar os efeitos secundários. Concordo, eu estava de fato muito excitado para ver como as coisas correriam na prática...

E rapidamente, quase sem continuação, acrescentei:

— Espero que minha descoberta receba o nome de Kalocaína, por ter sido eu a descobri-la.

— Claro, claro – disse Rissen com indiferença. – Você já pensou no grande significado que ainda terá sua descoberta?

— Perfeitamente. Quando a necessidade é premente, a solução surge logo. Como o senhor sabe, os falsos testemunhos começam a inundar os tribunais. Dificilmente se instrui um processo onde os depoimentos das diferentes testemunhas não se contradigam uns aos outros, e de uma forma que não pode absolutamente depender de erro ou negligência. Do que depende isto, ninguém conseguiu atinar, mas acontece.

— Será assim tão difícil? – perguntou Rissen enquanto tamborilava na mesa de uma forma que me irritava. – Será realmente tão difícil descobri-lo? Permita-me uma pergunta, você não precisa respondê-la, se não quiser, mas acha que o perjúrio é maléfico em toda e qualquer circunstância?

— Naturalmente que não – respondi um tanto agastado. – Não, se o bem do Estado o exige. Mas não se pode afirmar isto de um processo qualquer.

— Sim, mas reflita – disse Rissen maliciosamente, inclinando a cabeça. – Não é para o bem do Estado que um explorador é apanhado, embora talvez seja inocente justamente daquilo que é acusado? Não é para o bem do Estado que meu inútil, pernicioso e antipático inimigo é preso, mesmo que nada tenha feito de punível ante a lei? Ele exige consideração, evidentemente, mas que direito tem o particular à consideração?

Eu não sabia precisamente até onde ele queria chegar, e o tempo corria. Apertei rapidamente a campainha chamando a próxima cobaia, e enquanto lhe aplicava a injeção, respondi:

— Em todo caso está provado que isto é um abuso sem proveito algum para o Estado, pelo contrário. Minha descoberta faz deste problema um brinquedo. As testemunhas podem agora ser controladas, e mais ainda, isto é supérfluo, pois os criminosos confessam alegremente e sem reservas, após uma pequena dose. Conhecemos as inconveniências de terceiro grau, mas, veja bem, não critico o método empregado enquanto não tivermos outro à disposição; não podemos circular prazerosamente e sentirmo-nos solidários com criminosos quando sabemos não ter peso algum na consciência...

— Você acha então que tem uma consciência excepcionalmente sólida – disse Rissen secamente. – Ou estaria apenas brincando? Minha experiência é outra, a de que nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência exatamente limpa. Durante a juventude, alguns têm, mas depois... Ademais, você não tem talvez mais de quarenta?

— Não, não tenho – respondi tão calmo quanto podia, felizmente voltado para a nova cobaia, não precisando olhar Rissen de frente. Estava revoltado, em princípio não por suas insolências. O que me irritava sumamente eram suas afirmações genéricas. Ele pintara uma situação intolerável: todo cidadão em idade madura portara uma consciência suja crônica! Se bem que não expressasse diretamente isto, senti obscuramente suas afirmações como um ataque aos valores que eu supunha mais sagrados.

Ele certamente observou a reserva em meu tom de voz e entendeu que fora longe demais. Continuamos trabalhando sem mais palavras senão as absolutamente necessárias e objetivas.

Quando tento lembrar as experiências seguintes, vejo que elas não mais têm os mesmos contornos nítidos, as mesmas cores e vida que a primeira. Esta fora naturalmente a mais surpreendente, mas eu ainda não podia sentir-me totalmente seguro de que meu método se mostraria sempre eficaz, embora o tivesse sido na primeira vez. Suspeito que o que me incomodava era minha indignação contra Rissen. Por mais minuciosamente que trabalhasse, não utilizava mais que a metade de minha atenção, e isto talvez por que este trabalho não me deixava tão profundas raízes na memória como a primeira experiência o fizera. Por isso não me preocupo em descrever detalhes. É-me suficiente poder reproduzir a impressão fundamental.

Depois de examinarmos mais cinco cobaias antes do meio-dia, e mais duas outras, cada uma mais ensimesmada e miserável que a outra, eu me sentia completamente arrasado e invadido por um desespero crescente, mesclado de horror. Será apenas a ralé que busca o Serviço Voluntário de Cobaias? – perguntava-me. Mas eu sabia perfeitamente não ser assim. Sabia serem exigidas nobres qualidades de quem lá desejasse ingressar; exigia-se coragem, espírito de sacrifício, desprendimento, determinação, antes de alguém se dedicar a uma tal profissão. Tampouco podia ou queria imaginar que a profissão destruísse quem a escolhera. Mas a idéia que tive dos sentimentos privados das cobaias era desoladora.

N° 135 havia sido covarde e escondido sua covardia. Tivera ao menos um belo gesto, ao manter sagrado o grande momento de sua vida. Os demais eram tão covardes quanto ele, alguns em maior ou menor grau. Existiam os que se queixavam, não só de suas funções, ferimentos, doenças e medo, como de seus destinos auto-escolhidos, como ainda também de um amontoado de insignificâncias, as camas da Casa, a nutrição cada vez pior (eles também haviam observado isso!) negligências na assistência médica. Podia-se muito bem imaginar ter havido também um grande momento em suas vidas, mas que soçobrara irremediavelmente. Talvez não tivessem despendido tão grande força de vontade como n° 135 para mantê-lo à tona. Verdade seja dita: por pouco heróico que n° 135 parecesse sob o efeito da kalocaína – quando mais tarde eu o comparava aos outros, ele começava a impor-se a mim ao menos como um herói relativo. Mas, além disso, existia uma série de coisas que me causavam repugnância e temor nas outras cobaias que utilizamos no primeiro momento: bizarrices mais ou menos desenvolvidas, fantasias lúgubres, libertinagens cultivadas em silêncio. Havia alguns que não se beneficiavam da Casa, eram casados e tinham residência própria; expunham seus problemas conjugais de forma deplorável e ao mesmo tempo ridícula. Em sua, nada se podia esperar do Serviço Voluntário de Cobaias, nem dos cidadãos-soldados do Estado Mundial, nem mesmo da espécie biológica humana em geral.

E para cada um Rissen prometera solenemente que os valiosos segredos estavam em boa guarda. Não me era fácil engolir isto.

Após um caso especialmente grave – o último antes do meio-dia –, um ancião, que divagava sobre impulsões homicidas, embora obviamente nunca houvesse cometido algo, nem tivesse jamais ocasião de fazê-lo, não pude deixar de dar livro curso a meu penoso estado de espírito de dirigi-me a Rissen com um bastante justificado pedido de desculpas pelas cobaias...

— Você acha realmente que eles são ovos podres isolados? – perguntou Rissen em voz baixa.

— Certamente, todos são caricaturas de homicidas potenciais – respondi –, mas parecem ser mais miseráveis que o permissível.

Esperei uma aprovação. Isto teria me aliviado e distanciado de toda aquela situação embaraçosa. Quando observei que ele não participara de minha intensa aversão, tudo se tornou duplamente embaraçoso. Mesmo assim a conversa continuou enquanto nos dirigíamos à sala de refeições.

— O permissível, sim, o permissível – disse Rissen. Mudou de tom e assunto e continuou: – Esteja contente por não termos encontrado santos e heróis da espécie permissível; suspeito que eu me sentiria menos convencido então. Além do mais, tampouco encontramos um verdadeiro criminoso.

— Sim, mas veja este último, este último! Admito que ele nada fez de mau, e não creio que chegue a cometer nenhum dos crimes sobre os quais divaga, velho como é e estando sob os cuidados da Casa, onde a vigilância certamente não terá falhas. Mas imagine se fosse mais jovem e tivesse a possibilidade de colocar em prática suas intenções! Em tais casos minha kalocaína torna-se oportuníssima. Com ela pode-se prever e prevenir muitas atrocidades que agora eclodem subitamente, sem que possa vê-las aproximarem-se...

— Desde que se encontre as pessoas certas. Isto tampouco é fácil. Pois você certamente não está querendo dizer que todos deveriam ser examinados?

— Por que não? Por que não todos? Sei que se trata de um sonho distante, mas mesmo assim! Prevejo um tempo em que todos os preenchimentos de postos serão precedidos de um teste com a kalocaína, como agora são precedidos de provas psicotécnicas. Desta forma, não apenas a capacitação profissional de uma autoridade torna-se publicamente conhecida, mas também seu valor como cidadão-soldado. Sonho inclusive com um exame anual com a kalocaína de cada um dos cidadãos-soldados...

— Seus planos futuros não são dos menores – insinuou Rissen – Mas isso exige um dispositivo imenso.

— O senhor tem toda razão, meu chefe. Isto exigirá um dispositivo enorme. Seria necessário um novo órgão público com legiões de funcionários, os quais seriam removidos das atuais organizações militares e industriais. Antes de estabelecer esta nova ordem, precisamos obviamente atingir o aumento populacional pelo qual lutamos durante tantos anos, mas do qual ainda não vimos sinal algum. Talvez pudéssemos esperar por uma nova e grande guerra de conquista que nos tornasse mais ricos e produtivos.

Mas Rissen balançava a cabeça.

— De forma alguma. Basta chegar-se à conclusão de que seu plano é o mais necessário de todos, o único necessário, o único capaz de aliviar nossas superiores, sim, digamos nossas superiores apreensões, e você pode ficar certo de que este órgão público será criado. Uma vez criado, nosso nível de vida baixará, o ritmo de trabalho será aumentado e o grandioso sentimento de tranquilidade e segurança total substituirá o que perdemos.

Eu não estava muito certo se Rissen falava sério ou ironizava. Por um lado, eu deplorava a idéia de um baixo nível de vida futuro. (Somos ingratos, pensei, somos ávidos de prazeres e egoístas, mesmo quando se trata de algo superior às satisfações individuais). Por outro lado, sentia-me lisonjeado ao pensar que a kalocaína poderia um dia desempenhar tal papel. Mas antes que pudesse responder, Rissen acrescentou, em outro tom:

— Com toda certeza, será este o último refúgio de nossa vida privada a ser devassado.

— Mas isto não importa – disse eu alegremente. – A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais antes podiam esconder-se. Vejo agora claramente que a grande comunidade se aproxima de sua culminância.

— Comunidade – repetiu ele lentamente, como se duvidasse.

Eu nunca tinha tido tempo para responder. Estávamos em frente à porta do refeitório e precisávamos separar-nos para ocupar nossos lugares em diferentes mesas. Parar e concluir nossa conversa era impossível, em parte porque isso suscitaria interrogações, em parte porque estávamos no caminho da corrente de homens famintos por seus almoços. Mas enquanto me dirigia a meu lugar e sentava, pensei em seu tom dubitativo e me irritei.

Ele sabia certamente o que eu queria dizer, não era uma descoberta pessoal minha, a comunidade. Cada cidadão-soldado aprendia desde criança a diferença entre vida inferior e superior – a inferior, simples e indiferenciada, por exemplo, as plantas e os animais unicelulares, e a superior, complexa e extremamente diferenciada, por exemplo, o corpo humano, em seu perfeito e funcional desenvolvimento. Cada cidadão-soldado também aprendia ocorrer o mesmo com as formas de sociedade: de uma horda informe, o corpo social desenvolveu-se até a mais organizada e diferenciada de todas as formas: o nosso atual Estado Mundial. Do individualismo ao coletivismo; do isolamento à comunidade – este foi o caminho do colossal e sagrado organismo, no qual o indivíduo é apenas uma célula sem mais significado que o de servir a unidade do conjunto. Tudo isso sabiam os jovens desde os acampamentos juvenis, e Rissen também devia sabê-lo. Além disso, certamente ele havia compreendido o que não era difícil de compreender: que a kalocaína era um meio necessário para este desenvolvimento, pois ampliava a grande comunidade até o âmago de cada ser, até aquilo que antes cada um conservava para si mesmo. Rissen não entendeu algo assim tão lógico, ou não queria entender?

Olhei para sua mesa. Lá estava ele sentado em sua postura negligente, mexendo a sopa com um ar distraído. O homem todo inquietava-se de um modo obscuro. Não era apenas estranho, diferente dos outros, até o ridículo, era também estranho em um sentido onde eu vagamente previa perigo. Não sabia ainda em que consistia esse perigo, mas isso dirigia minha atenção involuntariamente para tudo o que ele dizia ou fazia.

Nossa experiência continuaria após o almoço, e agora se tratava de algo mais complexo. Eu planejara isso pensando em um chefe de controle mais cético que Rissen, pois em qualquer hipótese a meticulosidade era uma virtude. Minhas tentativas não ficariam ao nível do chefe de controle: se ele as aprovasse, seriam discutidas em muitas da capital. As cobaias que agora havíamos solicitado não precisavam ser sadias, isto fora especialmente salientado; bastava que estivessem em pleno uso de seus sentidos. Por outro lado, precisavam satisfazer uma outra condição, dificilmente exigida nas cobaias solicitadas: estas deveriam ser casadas.

Telefonamos ao chefe de polícia solicitando permissão para esta nova experiência. Embora tivéssemos à nossa disposição corpo e alma dos funcionários do Serviço Voluntário de Cobaias, sem mais justificativas que o bem do Estado, não dispúnhamos, no entanto, sem mais nem menos, de suas mulheres e maridos, como tampouco dos outros cidadãos-soldados. Para isto precisávamos ter assentimento especial do chefe de polícia. Ele recebeu a solicitação de malgrado no início, julgando-a desnecessária, pois existiam cobaias profissionais. Naturalmente não sabia bem do que se tratava, mas quando insistimos o suficiente para que ele, em sua pressa, se tornasse impaciente, e o convencemos de que nada pior que medo e um passageiro mal-estar aconteceriam com os escolhidos, deu finalmente sua permissão; ordenou-nos, no entanto, que passássemos lá à noite para melhores informações com calma e tranquilidade.

As dez cobaias escolhidas foram chamadas uma a uma. Em meu fichário tive de anotar não apenas seus números, como também nomes e endereços, o que não constava na ficha pessoal, e isto despertou uma certa surpresa e apreensão. Tive de tranquilizá-los e colocá-los a par do assunto.

O plano era este: ao chegar em casa, deviam mostrar, ante o marido ou esposa, sinais de inquietude e nervosismo, ou, se lhes fosse mais fácil, um certo otimismo róseo em relação ao futuro. Interrogados, deveriam finalmente revelar em confiança terem aceitado um trabalho de espionagem. Um desconhecido lhes segredara ao ouvido no metrô que poderiam ganhar muito dinheiro, bastando para isso apenas desenhar um mapa dos laboratórios em torno à central do Serviço Voluntário de Cobaias e dos subterrâneos do metrô, aproximadamente, como os imaginavam. Depois restava esperar, e não revelar por gesto algum que isto se tratava de uma experiência.

Na mesma noite fomos até a Casa de Polícia, devidamente munidos de credenciais assinadas pelo mais alto chefe de nossos laboratórios, como também de uma licença de visita à Casa de Polícia, enviada expressamente. Não me foi fácil trocar meu serviço policial-militar noturno por um posterior serviço dobrado. Estávamos, no entanto, contentes por ter conseguido entrar em contato com o chefe de polícia; precisávamos de sua ajuda para o que pretendíamos fazer. Convencê-lo foi um trabalho bastante difícil, não porque ele tivesse a cabeça dura para entender, pelo contrário, mas pelo fato de estar mal-humorado e desconfiado ante quem quer que fosse. Devo reconhecer que sua desconfiança deu-me melhor impressão que a credulidade de Rissen. Embora ela por vezes se abatesse sobre mim, tinha sua razão de ser, e quando finalmente ele concordou conosco, tive a sensação de ter aberto uma porta segura com a chave certa e devida, e não com uma gazua ou pontapé. O caso era este: precisávamos dispor das pessoas dos maridos e esposas depois que estes recebessem as confidências de seus cônjuges, nossas cobaias. Estes seriam denunciados nos termos da lei como cúmplices de uma conspiração e detidos conforme as regras habituais, e mais tarde, conduzidos até nós. Se ele quisesse colocar seus policiais a par disto ou se preferia saber sozinho do que se tratava, era um problema seu. O mais importante era que os maridos e mulheres das cobaias fossem mais tarde submetidos à kalocaína. Se assim o desejasse, ele poderia constatar pessoalmente que os detidos não sofreriam qualquer lesão conosco, pois a coisa pública não seria danificada desnecessariamente. Se quisesse vir em pessoa ou enviar algum representante, sentir-nos-íamos da mesma forma lisonjeados. Penso ter sido aquele “em pessoa” que o tornou mais concessivo. Apesar de seu mau-humor, estava curioso para ver como funcionava minha descoberta. Quando finalmente recebemos a confirmação escrita da promessa feita ao telefona, com a assinatura Vay Karrek, em grandes e angulosos, mas fortes caracteres, alertamos-lhe que alguns dos cônjuges que nada sabiam poderiam decidir-se a denunciar o criminoso simulado. Como tudo era apenas um jogo, isto não precisava necessariamente conduzir a qualquer prisão – deixamos com ele a lista com o nome das cobaias –, pelo contrário, ser-lhe-íamos gratos se nos enviasse o denunciado até a manhã do dia seguinte, se possível.

Cansados, mas satisfeitos com o resultado da visita, deixamos a Casa de Polícia.

Ao chegar em casa e entrar no quarto – Linda já estava deitada –, encontrei um comunicado em minha mesa de cabeceira. Tratava do serviço policial-militar: fora prolongado de quatro para cinco noites por semana. Até segunda ordem as autoridades julgavam ser obrigadas a reduzir as noites em família de duas para uma, enquanto a noite de festa e conferências mantinha-se a mesma. (Esta última era necessária não apenas para educação e recreação dos cidadãos-soldados, como também para a perpetuação do Estado. De outro modo, onde e quando os cidadãos-soldados que já haviam deixado os acampamentos juvenis poderiam encontrar-se e enamorar-se? Mesmo Linda e eu tínhamos de agradecer às noites de festa e conferências o nosso casamento). – Esta comunicação estava de acordo com os sinais que eu observara antes, e vi que na mesa de Linda havia outro papel igual

Todos os serviços possíveis acabavam reduzindo as noites em família isto eu sabia por experiência. Poderia inclusive transcorrer um longo tempo sem que eu tivesse uma noite para mim mesmo. Como ainda não era muito tarde e pessoalmente não me sentia tão cansado como após as noites de serviço, decidi-me a fazer rapidamente o que ainda precisava ser feito. Sentei-me e escrevi a autocrítica que pediria para ser transmitida pelo rádio.

“Eu, Leo Kall, funcionário da seção experimental do maior laboratório de venenos orgânicos e meios anestésicos da Cidade Química n° 4, tenho uma autocrítica a apresentar.

Durante a festa de despedida dos operários chamados, no acampamento juvenil, dia 19 de abril do corrente ano, cometi um grave erro. Acometido de uma falsa piedade, dessas que têm como causa lamentações individuais, e de um falso heroísmo, desses que se volta preferentemente para o trágico e obscuro em lugar de voltar-se par ao belo e luminoso da vida, fiz a seguinte palestra.

(A palestra estava incluída e deveria ser lida em tom ligeiramente irônico). Sobre esta palestra, o Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda expediu, a seguinte declaração: Quando um guerreiro totalmente devotado, etc. (A declaração precisava ser repetida pois era mais importante para os ouvintes, constituindo um precedente aviso para todos que se expunham ao perigo da mesma idéia e sentimentos). Após, eu apresentava minhas desculpas por meu lamentável erro e reconhecia profunda e inteiramente o justificado desagrado do Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda, e também sentia-me disposto a daqui por diante corrigir-me segundo tão convincente exposição do problema.”

Na manhã seguinte pedi para Linda reler o que escrevera, e ela ficou satisfeita. Não continha nenhum exagero, ninguém poderia descobrir alguma secreta ironia, ao mesmo tempo em que não podia falar de um falso orgulho. Bastava apenas passá-la a limpo, enviá-la, e depois esperar na fila a vez na hora de autocríticas da rádio.


 

 

 

 

A experiência tomou logo uma direção bastante ameaçadora. Já cedo pela manhã telefonamos à Casa de Polícia para saber se algo ocorrera, e mesmo assim estávamos atrasados. Dos dez casos, nove já haviam sido denunciados por seus cônjuges. Ainda não se sabia se o décimo estava ou não a caminho – em todo caso a ordem de prisão fora expedida, e podíamos contar com a pessoa em questão em nosso laboratório em duas ou três horas.

As perspectivas não eram exatamente brilhantes. Devo admitir ter ficado um pouco surpreso com a lealdade e rapidez de reações demonstradas pelos denunciantes – feliz constatação naturalmente, caso não se tratasse de uma experiência. A tentativa precisava ser repetida, isto era certo. Precisávamos apresentar pelo menos alguns casos seguros, antes que a descoberta pudesse ser utilizada pelo Estado.

Pedimos um outro grupo de dez cobaias casadas, e eu lhes repeti minha rápida palestra do dia anterior. Tudo transcorria da mesma forma, a única diferença é que todos se encontravam em pior estado ainda – dois, inclusive, caminhavam com bengalas e um outro tinha uma bandagem cobrindo a cabeça toda. Certo, cobaias casadas geralmente são raras, e precisamente nesta experiência as bengalas eram zero à esquerda – mas mesmo assim! Nos últimos tempos a falta de cobaias tornara-se cada vez mais evidente. Eram consumidas no transcurso dos anos, e algo precisava ser feito para que o trabalho pudesse continuar no mesmo ritmo anterior. Mal se afastaram da sala e explodi:

— Mas isto é um escândalo! Em breve não disporemos de cobaia alguma. Teremos de utilizar moribundos e doentes mentais! Não estaria já em tempo de as autoridades lançarem imediatamente uma nova campanha como a de que falou nosso primeiro número, para preencher os claros?

— Nada o impede de reclamar – disse Rissen e encolheu os ombros.

Sugeriu-me uma idéia. Naturalmente, e com razão, as autoridades não poderiam dar muita atenção à reclamação de um cidadão-soldado isolado. Por outro lado podia-se muito bem arranjar uma lista de nomes em todos os laboratórios da cidade onde se utilizassem cobaias e se observasse a falta destas. Decidi-me a empregar uma noite em que não estivesse excessivamente cansado, na pior das hipóteses uma noite livre, para formular o pedido, que depois poderia ser reproduzido e enviado às diferentes instituições. Um tal espírito de iniciativa não podia ser tão meritório, pensei.

As horas transcorridas até a chegada do prisioneiro se transformaram numa espécie de interrogatório, conduzido por Rissen, a respeito da kalocaína e seus similares mais próximos do ponto de vista químico e medicinal. Ele era competente em sua especialidade, isso não posso negar. Creio ter-me saído muito bem, e estava surpreso por ele ter-me julgado digno de um tal exame. Seria sua intenção declarar-me competente para um posto mais alto? Vendo as coisas objetivamente, eu estava certo disto, no entanto... Pareceu-me que ele teria sentido minha desconfiança como uma chicotada, e queria responder-me na mesma moeda. Mas no fundo eu não alimentava grandes esperanças em relação a sua amabilidade. O que ele esperava ou exigia de mim no futuro era imprevisível. No entanto, eu não me deixava embalar por falsas incertezas.

Próximo à hora marcada, um homem entrou e anunciou-se como Karrek, o próprio chefe de polícia. Seu interesse não era então dos menores. Evidentemente era uma honra para toda a instituição, mas especialmente para mim, que um homem tão poderoso se interessasse por minha experiência. Com um ar um tanto irônico – provavelmente pensava consigo estar manifestando com desenvoltura sua curiosidade –, jogou-se na cadeira que lhe passamos. Logo após foi trazido o prisioneiro, uma mulher bastante jovem, delicada e um pouco consumida. Sua pele era incomumente branca, ou talvez a brancura do rosto dependesse do espanto.

— Você enviou uma denúncia à polícia? – perguntei para certificar-me.

— Não – disse ela estupefata, e tornou-se um pouco transparente. (Mais pálida não poderia tornar-se).

— E você tampouco tem algo a confessar? – perguntou Rissen.

— Não! (Agora a voz era firme, sem tom algum de surpresa).

— Você é acusada de cumplicidade em conspiração contra o Estado. Pense bem: nenhuma pessoa próxima a você falou algo sobre manobras subversivas?

— Não! – respondeu com firmeza.

Suspirei aliviado. Ela deixara de denunciar a tempo seu marido, ou por atitude criminosa ou por simples demora, em todo caso agora não estava inclinada a confessar. Provavelmente tinha medo. Sua postura tensa e feições rijas deixavam entrever em circunstâncias normais uma brava e enérgica cidadã-soldado. Agora, davam-lhe um aspecto insubmisso e rebelde. Quase sorri, ao pensar que ilusão ela esconderia como um precioso segredo e como nós arrancaríamos dela – nós, que sabíamos o seu valor... Ainda mais, quando se pensava em tudo que ela suportara inutilmente: fora conduzida expressamente em vagões blindados pelos mais profundos subterrâneos do metrô, somente utilizados pelo Exército e Polícia, com mordaça e algemas, vigiada por dois policiais, como era praxe no transporte de subversivos. Mas meu sorriso não veria jamais a luz do dia. Embora a história não passasse de uma mentira e o interrogatório de uma comédia, sua participação era, no entanto, verdadeira e criminosa, dependesse tanto de má intenção como de negligência.

Quando foi sentada na cadeira, estava prestes a desmaiar. Certamente tomara meu inocente laboratório por uma câmara de torturas, onde tentaríamos obter dela o que não queria dizer. Enquanto Rissen a amparava em seu desmaio, injetei-lhe a droga e em silêncio, esperamos os três, o chefe de polícia, Rissen e eu.

Desta frágil e aterrorizada cobaia, que nem mesmo era profissional, senão amadora, se nos é permitido utilizar uma expressão tão consagrada, podia-se me bem esperar uma reação chorosa como a de n° 135, minha primeira cobaia. Mas ocorreu o contrário. Os traços rijos e tensos se distenderam lentamente, dando-lhe à face, aos poucos, a pureza interior de uma criança. As veias congestionadas da testa desapareceram. Sobre as faces magras, os pontos salientes deixaram escapar um sorriso quase feliz. Aprumou-se bruscamente na cadeira, abriu enormemente os olhos suspirou fundo. Permaneceu longos minutos em silêncio, que até comecei a temer que minha kalocaína se mostrasse ineficaz.

— Não, não há motivo algum para ter medo – disse ela finalmente, em tom hesitante e aliviado. – Ele deve conhecer isto também. Nada de dor, nada de morte. Coisa alguma. Ele sabe disso. Por que eu não diria nada então? Por que também eu não queria falar sobre isto? Claro, ele contou-me isto, falou-me sobre isto ontem à noite, e agora compreendo que ele já sabia muito bem o que eu só soube agora: que não existe nada a temer. Ele sabia isto, quando falou comigo. Jamais esquecerei isto. Que ele ousou. Eu jamais teria ousado. Que ele tenha ousado é um orgulho para minha vida, serei agradecida até o resto de meus dias, viverei de gratidão para poder retribuir-lhe.

— O que é que ele ousou? – interrompi, ansioso por chegar ao cerne da questão.

— Falar comigo. Sobre algum que eu não teria ousado...

— E sobre o que ele falou?

— Isso não importa. Não significa nada. Uma besteira qualquer. Alguém queria informações dele, esboço de mapas, e lhe daria dinheiro por isso. Ele ainda não o fez. Disse que pensa em fazê-lo, não entendo por quê. Eu jamais o faria. Ele falou comigo sobre isso; eu quero continuar falando com ele. Ele acabará me entendendo, ou eu entendendo a ele. Chegaremos a nos entender mutuamente e ter uma vida comum. Estou com ele. Com ele nada tenho a temer. Ele não teve medo de mim.

— Esboços de mapas? Mas você não sabe que toda tentativa de fazer mapas desta espécie é estritamente proibida e considerada conspiração contra o Estado?

— Claro, sei muito bem disso, estou dizendo é que não o entendo – disse ela impacientemente. – Mas nós vamos nos entender. Eu a ele ou ele a mim. Depois passaremos a agir em conjunto. O senhor talvez não entenda, mas antes eu tinha medo dele. E ele não teve medo de mim. Pois falou-me sobre isso. Ele não tem motivos para temer. Nunca os terá. Jamais. Compreendi que era isto que eu tinha...

— Então – interrompi rapidamente, como se nada soubesse –, então: ele combinou vender mapas a alguém. Que espécie de mapas?

— Dos laboratórios – respondeu com indiferença. – Mas eu compreendi que o que eu tinha...

— E você sabia que isto era conspiração? E que não denunciá-lo é cumplicidade na conspiração?

— Sim, sim. Mas não é isto o mais importante.

— Você sabe algo sobre o homem que queria os mapas?

— Eu lhe perguntei, mas ele pouco sabia. Sentou-se ao lado dele no metrô e disse que apareceria novamente, mas não quis dizer onde nem quando, disse apenas que pagaria quando recebesse os mapas. Até lá nós deveríamos chegar a uma conclusão comum...

— Isto é o suficiente – disse eu, meio voltado para Rissen, meio voltado para o chefe de polícia. – Conseguimos extrair dela todas as informações que seu marido deveria dar-lhe. O resto é insignificante.

— Realmente interessante – disse o chefe de polícia. – Extremamente interessante. Poderíamos de fato tornar as pessoas tão expansivas com um meio tão simples? Mas o senhor deve desculpar-me, sou cético por natureza. Naturalmente, deposito uma confiança total em sua honra e meticulosidade, absoluta. No entanto eu assistiria com prazer a algumas experiências mais. Não me interprete mal, cidadão soldado. É perfeitamente razoável que a polícia esteja interessada em sua descoberta.

Com grande alegria lhe dissemos ser bem-vindo quando quisesse, e que ao mesmo tempo poderia verificar a lista das novas cobaias. Tomara que o novo grupo não tenha sido exposto a tão grande massacre como o último! – pensei. Mal aflorou-me o pensamento, estremeci interiormente de terror: aqui estava eu esperando que um certo número de pessoas fossem cidadãos-soldados com tendências subversivas... As palavras de Rissen vieram à tona: nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa. E imediatamente fui tomado por uma forte aversão a Rissen, como se tivesse sido ele o responsável por este desejo contrário ao Estado. De certa forma talvez tivesse razão – não que meu desejo fosse sua obra –, mas sem suas palavras talvez jamais tivesse pensado nesta oposição.

A mulher moveu-se na cadeira com um gemido, e Rissen passou-lhe um frasco com cânfora.

A mulher despertou subitamente com um grito. Encurvou-se aterrorizada, pôs as mãos na cabeça e lamentou-se aos berros. Estava novamente em pleno uso de seus sentidos e se dera conta do que fizera.

A cena era terrível, dolorosa, embora me dessa certa satisfação. Há pouco, quando estava sentada com uma desenvoltura infantil, eu respirara mais fundo e mais calmo, contra minha vontade. Ela irradiava um certo repouso que me lembrara o sono – aliás, nem mesmo sei se costumo repousar assim quando durmo, e muito menos quando desperto. Ela acreditara estar segura com alguém, com seu marido – e ele já a havia traído, traíra-a desde o início – e agora também ela o traíra, embora contra a vontade. Tão irreal como seu crime havia sido sua calma de há pouco, como também era irreal seu terror agora. Pensei na Fada Morgana que os viajantes do deserto vêem sobre as camadas de sal: palmas, oásis, fontes – e em desespero se curvam, bebem nas poças salgadas e morrem. Ela agira assim, pensei, e está é a bebida que sorvemos nas fontes anti-sociais, sentimentais e individualistas. Uma ilusão, uma perigosa ilusão.

Ocorreu-me que ela deveria saber toda a verdade, não para salvá-la de um remorso interno, mas para mostrar-lhe o vazio da curta segurança que ostentara.

— Acalme-se. Você não tem razão alguma para se lamentar, ao menos por seu marido. Preste atenção no que vou dizer: Seu marido jamais encontrou aquele homem. Ele é totalmente inocente. Ele contou aquela história toda a nosso mando. Era uma experiência – com você!

Ela arregalou os olhos e parecia não entender.

— A história toda de espionagem é mentira – repeti, sem poder conter um sorriso, embora em verdade não me parecesse existirem razões para sorrir. – A confiança de seu marido, ontem, não era confiança. Ele agiu assim sob nossas ordens.

Por um segundo pareceu-me que ela iria desmaiar novamente, mas então tornou-se rija e aprumou-se. Permaneceu frágil e petrificada no meio da sala sem dar um passo para frente ou para trás. Eu nada mais tinha a dizer, mas não conseguia desviar meus olhos dela. Assim como estava, arrasada e imóvel como uma coisa morta, sem uma gota sequer de sua feliz segurança de há pouco, despertou-me viva piedade. Era uma fraqueza para se sentir vergonha, mas aquilo era forte demais para mim. Esqueci o chefe de polícia, esqueci Rissen, transbordava de um obscuro desejo de fazê-la entender que eu sentia o mesmo que ela sentia agora. Emergi deste doloroso segundo de torpor com a voz do chefe de polícia:

— Acho que a mulher deve permanecer presa. A conspiração era evidentemente simulada, mas a cumplicidade não poderia ser mais real. Por outro lado não podemos condená-la sem mais nem menos, isto precisa ser melhor ordenado legalmente.

— Impossível! – gritou Rissen desconcertado. – Isto é uma experiência, trata-se de um funcionário nosso, quero dizer, de sua mulher...

— Como poderia eu levar isto em consideração? – perguntou Karrek rindo.

Por uma vez ao menos fiquei totalmente do lado de Rissen.

— Uma prisão como esta acabará inevitavelmente sendo conhecida – disse eu –, mesmo que despeçamos seu marido e o coloquemos em outro lugar, o que não é fácil no caso de cobaias, debilitados de saúde como ficam, mesmo neste caso a história será divulgada, e um novo recrutamento para profissão, que já é mau, será então uma catástrofe. Por todas essas razões, peço-lhe que a deixe livre!

— Você exagera – respondeu Karrek. – A história, obviamente, não precisa espalhar-se. Por que seu marido não poderia ser colocado em outro lugar? Poderia ainda muito bem sofrer um acidente ao voltar para casa.

— Não creio que seja sua intenção tirar-nos uma de nossas poucas e preciosas cobaias – queixei-me. – A mulher não é mais perigosa: outra vez ela não aceitará a confiança de alguém tão facilmente. Ademais – acrescentei, num súbito ataque –, se o senhor prende nossa cobaia, isso significa que o senhor já considera a kalocaína como um método legal de interrogatório, e o senhor há de convir que ainda é muito cedo para isso, meu chefe...

O chefe de polícia uniu os olhos numa estreita linha e sorriu fria, mas gentilmente, e disse como quem fala a uma criança:

— Vê-se que o senhor tem o dom da palavra e da lógica. Em consideração ao laboratório, renuncio à prisão, não tenho prazer algum pessoal nela. Preciso ir agora (olhou para seu relógio), mas voltarei para observar novas experiências.

Ele se foi, e a mulher teve suas algemas abertas e foi solta. Suspirei aliviado, tanto, por ela como pelo laboratório. Ao ser conduzida, caminhava dura como sonâmbula e pela segunda vez um pensamento horrível percorreu-me o cérebro: e se eu estivesse enganado, se minha kalocaína demonstrasse ter os mesmos efeitos secundários danosos que suas precursoras, talvez nem sempre, mas em sistemas nervosos extremamente delicados? Mas me acalmei, e nenhum de meus maus pressentimentos ocorreu. Através de seu marido, soube mais tarde que ela parecia perfeitamente normal, embora um pouco mais reservada que antes. Se bem que reservada sempre fora, acrescentou ele.

Quando ficamos a sós novamente, disse Rissen:

— Ali você tinha o germe de outra espécie de comunidade.

— Comunidade? – perguntei surpreso. – Como?

— Nela, na mulher.

— Ah – disse ainda mais surpreso. – Mas esta espécie de comunidade, sim, o senhor tem razão, meu chefe, talvez se possa chamar a isso de germe de uma comunidade, mas não mais que isso! Este tipo de comunidade existia já na Idade da Pedra! Em nossos dias é apenas um rudimento, e um rudimento pernicioso. Não é assim?

— Hummm.

— Mas este caso é precisamente um exemplo dos mais didáticos de até onde se chega se as pessoas são excessivamente ligadas umas às outras! – tentei persuadi-lo. – Quebra-se então a mais importante das ligações, a ligação ao Estado!

— Hummm – disse ele novamente. E um instante depois: - Talvez não fosse tão idiota viver na Idade da Pedra.

— Uma questão de gosto, bem entendido. Se prefere a luta de todos contra todos ao Estado perfeitamente organizado, construído com o esforço coletivo, então talvez seja agradável viver na Idade da Pedra. Não é exatamente um pensamento agradável saber que existem homens de Neanderthal entre nós...

Eu havia pensado exatamente nele, mas tive um certo receio ao dizê-lo, e acrescentei:

— Naturalmente, refiro-me àquela mulher.

Pareceu-me que ele me voltava as costas para disfarçar um sorriso irônico. Pensei então no quanto deixamos escapar quando irritados, mesmo sem kalocaína alguma.


 

 

 

 

Quando cheguei em casa após o trabalho, o porteiro contou-me que alguém solicitara uma licença de superfície provisória no distrito para poder encontrar-me pessoalmente. Olhei atentamente o nome. Kadidja Kappori. Desconhecido. Pelo menos não lembrava tê-lo ouvido antes. O porteiro não havia entendido muito bem o assunto ao telefone, acreditava tratar-se de algo em torno de um divórcio. Mas estranho ainda. Por fim eu estava tão curioso que descuidei de todas as preocupações e escrevi no papel que estava disposto a recebê-la e quando poderia fazê-lo. Tomei o cuidado de fazer o porteiro subscrever, para que participasse do convite e controlasse o tempo de visita; depois bastaria enviar tudo ao controle distrital, que remeteria mais tarde a licença de visita ao interessado.

Eu e Linda comemos algo rápido e nos dirigimos ao serviço militar, cada um para seu lado. O serviço havia aumentado, não só quantitativa como qualitativamente. Durante os dias seguintes passei a considerar o período de trabalho como a parte menos exigente da jornada, enquanto minha mais pesada tarefa era o serviço noturno, muitas vezes preenchido pelas armas. Eu estava contente que minha descoberta estivesse concluída. Tivesse sido um pouco mais lento, talvez ela nunca se concretizasse, se minhas tardes continuassem sendo ocupadas como agora. Com horas tão fatigantes nas costas, teria tentado inutilmente reunir idéias com nitidez total. Felizmente, tratava-se agora da última aplicação prática, e as coisas se marchavam por si mesmas, especialmente porque a presença de Rissen me mantinha alerta. Via-se que ele também estava bastante cansado, mas como era nitidamente mais velho, não funcionava exatamente a todo vapor, e em todo caso, eu jamais cometia enganos diante dele.

Enquanto isso a experiência parecia ter caído em águas mortas, devida às muitas denúncias. Tivemos de recomeçá-la grupo por grupo e durante todo esse tempo continuar com a mesmo experiência do primeiro dia.

Quando as recomeçamos pela terceira vez, sem que um único marido ou mulher tardasse o suficiente com sua denúncia para que pudesse ser preso – e que o trabalho tinha-se para reunir cobaias casadas, na última vez tivemos de esperar três dias antes que fosse reunido um número suficiente –, minha noite livre caiu finalmente em meio à semana, e gozo algum poderia me tentar mais que a idéia de ir para cama algumas horas antes do que geralmente se entende por hora de deitar. As crianças já haviam dormido, a criada já fora embora, eu me espreguiçara uma última vez antes de começar a despir-me, quando soou a campainha.

Kadidja Kappori! – pensei imediatamente e maldisse minha afabilidade, que me fez subscrever aquela solicitação desnecessária de visita. E o pior era que, para cúmulo de tudo, eu estava só. Linda tivera de dedicar sua noite livre a uma reunião de um comitê que preparava uma festa em honra da chefe recém-aponsentada do conjunto das fábricas de produtos alimentícios da cidade como também do novo, que a substituiria no posto.

Quando abri a porta, deparei-me com uma mulher idosa, grande e maciça e com um rosto não muito inteligente.

— Cidadão-soldado Leo Kall? – perguntou. – Sou Kadidja Kappori, e o senhor teve a gentileza de conceder-me um encontro.

— Lamento muito, mas acontece que estou sozinho em casa, e por isso não posso atendê-la. Sinto-me desolado, talvez a senhora tenha feito uma longa viagem até, aqui, mas como a senhora sabe, têm ocorrido várias provocações, onde não tendo sido fácil para o acusado provar sua inocência, pois não havia testemunhas e a polícia não estava vigiando justamente naquele quarto...

— Mas não é esta a questão – disse ela suplicante. – Asseguro-lhe que venho com a melhor das intenções.

— Não desconfio pessoalmente da senhora, mas a senhora há de convir que qualquer um pode dizer isso. O mais seguro para mim é não recebê-la. Não a conheço, sabe-se lá o que a senhora dirá de mim mais tarde.

Eu falara bastante alto o tempo todo para acentuar minha inocência ante os vizinhos. Foi exatamente isto que lhe deu uma idéia.

— O senhor não podia talvez convidar algum dos vizinhos como testemunha? Embora eu deva confessar que de fato prefiro conversar a sós com o senhor.

Inegavelmente, era uma solução. Apertei a campainha da porta mais próxima. Ali morava um médico do pessoal dos refeitórios do Laboratório de Experiências: dele eu não conhecia mais que sua aparência e ouvia às vezes sua mulher discutir em voz excessivamente alta para as finas paredes internas do edifício. Quando apertei a campainha, atendeu-me com o cenho franzido, e eu declinei meu objetivo. Seu semblante descontraiu-se e começou a interessar-se, concordando finalmente. Também ele estava só em casa. Por um momento arrependi-me e me perguntei se tudo fora bem pensado. Em verdade, não existia motivo algum para crer que ele estivesse comprometido em alguma espécie de complô com Kadidja Kappori.

Introduzi ambos no quarto e arrumei rapidamente a cama já feita para dar mais lugar e fazê-lo parecer um pouco mais uma sala de estar.

— Evidentemente o senhor não sabe quem sou – começou ela. – O fato é que sou casada com Togo Bahara do Serviço Voluntário de Cobaias.

Perdi o fôlego, embora tentasse não manifestar desagrado. Então ela era uma dos leais cidadãos-soldados que arruinavam minha experiência. Certamente viera aqui para denunciar seu marido. Por que dirigia-se a mim em vez de fazê-lo diretamente à polícia, isto eu absolutamente não entendia. Teria ela pressentido existir dente de coelho no assunto? Ou talvez pensasse ser a forma menos brutal de denunciar o marido a seu chefe. Fosse como fosse, era impossível interrompê-la agora, pois já a havia recebido e o médico estava ali como testemunha.

— Aconteceu algo deplorável lá em casa – continuou, com os olhos abaixados. – Outro dia ao chegar em casa, meu marido contou-me algo abominável, o mais abominável de tudo, conspiração contra o Estado. Eu não conseguia acreditar em meus ouvidos. Estivemos juntos por mais de vinte anos, pusemos várias crianças no mundo, de modo que eu pensava conhecê-lo bem. Ele tinha seus períodos de irritação nervosa e depressão, é claro, mas isto não cavacos do ofício. Sou lavadeira na Lavanderia Central do distrito, e temos nossa residência lá. Mas isto não vem exatamente ao caso. Mas entenda-me, eu pensava que o conhecia. Não pelo fato de que nunca tenhamos conversado muito, pois quando se está casado há anos, sabe-se muito bem o que se tem a dizer, de forma que nem se precisa dizê-lo. Mas é como se um sentisse em si o que o outro quer e deseja, quando se vive assim juntos e se aceito isso por mais de vinte anos. Um não pensa exatamente pelo outro, mas por si próprio, mas seria muito estranho se subitamente as mãos virassem pés ou saíssem a caminhar por si mesmas... E aconteceu! Primeiro pensei: besteira! Togo não poderia ter agido assim. Mas mais tarde disse para mim mesma: ninguém pode estar totalmente seguro. Afinal, ouvimos diariamente pelo rádio e em palestras, está nos cartazes do metrô e das ruas: NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO! QUEM ESTÁ AO TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO! Eu não prestava atenção a isso antes, nunca pensei que se dirigisse a mim. Mas o que experimentei numa noite, mal consigo contar. Se meus cabelos já não fossem grisalhos, teriam se tornado naquela noite. Não conseguia imaginar que Togo, o meu Togo, fosse um subversivo. Mas qual é a aparência de um subversivo? Não aparentam ser pessoas comuns? É apenas lá dentro que eles são diferentes. Do contrário, não haveria mistério algum. E o fato de fingirem ser como os outros, isto apenas evidencia o quanto são pérfidos. Quando me deitei, Togo morrera para mim. Pela manhã, ao acordar-me ele não era mais um ser humano aos meus olhos. NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO! QUEM ESTÁ A TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO! Ele não era mais um ser humano, era pior que um animal selvagem. Por um momento pensei ser tudo um pesadelo – lá estava ele fazendo a barba, como sempre – e pensei que se pudesse trazê-lo ao bom caminho, tudo voltaria a ser como antes. Mas depois pensei que não se consegue isto com subversivos, pois eles jamais se tornam melhores, e apenas ouvi-los já é bastante perigoso. Ele está podre por dentro. Telefonei para polícia logo que cheguei ao trabalho, eu só podia agir assim ao descobrir o que ele era. Achei que o prenderiam imediatamente, e quando voltou para casa à noite, como sempre, esperei pela chegada da polícia a qualquer momento. Ele notou e me disse: Tu me denunciaste à polícia. Não devias ter feito isso. Era uma experiência e agora destruíste tudo. – Mas diga-me o senhor, como eu poderia acreditar nele? Como podia acreditar que ele era um ser humano novamente? Quando finalmente compreendi que era verdade – aí sim, tinha vontade de estrangulá-lo de tão contente, mas aí ele estava furioso. E queria divorciar-se

— Isto é extraordinário, foi tudo o que pude dizer.

Ela engolia os soluços, com vergonha de chorar.

— Quero que ele fique comigo – continuou. – Acho injusto que ele queira o divórcio, quando não fiz nada de mal.

De fato, ela tinha razão. Não podia ser punida por ter-se comportado como uma boa e leal cidadã-soldado. Ela devia ser recompensada. Precisava ficar com seu Togo.

— Ele acha que não pode confiar mais em mim – continuou entre soluços. – É claro que ele pode confiar em mim, agora que é um ser humano novamente. E também á claro que um subversivo não pode confiar em mim, Kadidja Kappori.

A imagem da face transfigurada da sofrida mulher ficou-me na memória associada a uma melancólica desesperança. Que exigência imatura e insensata querer ter para si um ser humano em que acreditar, simplesmente acreditar, independente do que ele é! Tive de admitir para mim mesmo existir nisso um fascínio adormecido. Talvez a criança de colo e o selvagem na Idade da Pedra não viviam apenas em alguns, pensei, senão em todos nós, mais em uns, menos em outros, e isto é a diferença fundamental. E assim como me senti obrigado a destruir o sonho da mulher pálida, achei também ser necessário destruir a mesma ilusão de Kadidja Kappori, embora para isso tivesse que sacrificar mais uma de minhas noites livres.

— Voltem os dois aqui num destes horários – disse e escrevi minhas horas livres em um papel. – Se ele não mudar de idéia, acabará me conhecendo melhor.

Despediu-se com muitos agradecimentos, e eu os conduzi a ela e ao médico, até a porta. O médico parecia ter tomado tudo como uma brincadeira, permanecera sentado e rira baixinho o tempo todo, o que era de fato importuno, e continuou rindo até desaparecer em sua casa. Eu não via a situação assim. Eu captara o significado essencial do fato de forma por demais clara para que pudesse nutrir algum interesse pelas ridículas pessoas implicadas no caso.

Não pude deixar de contar a história para Rissen durante o trabalho. Evidentemente, isto não fazia parte do trabalho, mas tinha, em todo caso, uma significação genérica. Mas também tenho fortes suspeitas de ter sido tomado por um certo desejo de mostrar-me interessante e independente, um homem que outros procuram em suas dificuldades, e que fácil e amavelmente os conduz ao caminho certo. De fato, evidenciou-se que assim como eu o criticara e desconfiara profundamente dele, ao mesmo tempo julgava importante seu juízo a meu respeito. Cada vez que percebi estar tentando me impor a ele, envergonhei-me e abafei esta fraqueza. Mas depois de algum tempo, lá voltava ela e eu fazia o que podia para extorquir alguma espécie de atenção deste homem estranho, pelo qual ninguém podia nutrir respeito. Quando sentia ter fracassado, tentava pelo menos irritá-lo e dizia para mim mesmo existir um plano consciente sob minhas alfinetadas: se eu o tinha devidamente irritado, pelo menos sabia onde o tinha.

Entre outras coisas, falamos das palavras de Kadidja Kappori: “Ele não era mais um ser humano”.

— Ser Humano! – disse eu. – Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rapidamente quanto possível.

Rissen apenas olhou-me com um ar enigmático.

— Kadidja Kappori, por exemplo – continuei. – Para agir corretamente, precisou primeiro se desembaraçar das inibições que jaziam sob a concepção supersticiosa de que seu marido era um “ser humano”, entre aspas, pois do ponto de vista estritamente “biológico”, ele jamais poderia transformar-se em outra coisa no transcurso dos tempos. Esta crise ela superou em uma noite, mas quantos conseguem isso? Tivesse demorado um pouco nas providências, estaria agora entre os subversivos, sem mesmo saber como, tudo devido a uma superstição... Penso ser necessário começar tudo desde o início e ensinar o povo a ver o “ser humano”, entre aspas, no cidadão-soldado.

— Não creio que sejam muitas as vítimas desta espécie de mística – disse Rissen lentamente, enquanto não tirava os olhos de um tubo graduado, que acabara de encher.

Isto não fora dito de forma especial e tampouco tinha algo de notável. Mas ele tinha uma forma de filtrar as palavras nos ouvidos da gente, como se existissem mais significados sob cada uma. Isto fazia com que eu sempre ficasse intrigado com o que havia dito, e suas palavras, voz e entonação voltavam e me inquietavam.

Mas a semana fora tão cheia de acontecimentos surpreendentes que nos esquecíamos de tudo em função deles. Tão importantes que inclusive compreendiam o início da marcha vitoriosa da kalocaína pelo Estado Mundial. Mas eu os suprimo para concluir a história do casal Bahara-Kappori.

Visitaram-me exatamente uma semana após a primeira visita de Kadidja Kappori. Linda estava novamente ocupada com o comitê de preparativos, mas como agora eu estava ciente de suas intenções e sabia que pelo menos podia colocar o homem em xeque, não me importei de convocar testemunhas. Ambos pareciam amargurados e deprimidos e era evidente que conciliação alguma tivera lugar.

— Muito bem – disse eu para estimulá-los (era melhor encarar a situação com bom humor) –, muito bem, parece que a indenização extra foi calculada por baixo desta vez, cidadão-soldado Bahara. Um divórcio pode de fato quase ser chamado de um dano permanente. A propósito, essa bengala foi consequência de seu trabalho ou – hummm – expressa sua situação matrimonial?

Ele não respondeu, continuava imóvel e amargo. A mulher cutucou-o

— Deves pelo menos responder a teu chefe, Toguinho! Imagine, estamos casados por mais de vinte anos e agora ele larga tudo e quer divorciar-se por isto! É injusto, ele chega em casa, engana a gente com uma experiência e depois fica furioso porque se age corretamente!

— Se querias pôr-me na prisão, ficarás livre de mim; mesmo eu estando solto – respondeu o homem acremente.

— Mas não é a mesma coisa – objetou ela. – Se tu fosses aquele que me fizeste acreditar se, pobre de mim se te conservasse em casa. Mas agora que não és aquele, agora que és quem eu conheci durante vinte anos, é claro que quero ficar contigo! Não fiz nada de mal para merecer que me abandones.

— Responda-me, cidadão-soldado Bahara – disse eu em tom menos brincalhão. – Você pensa realmente que sua esposa agiu erradamente ao denunciá-lo?

— Não sei se precisamente errado…

— Como você agiria se alguém lhe confessasse ser espião?... Você não precisa hesitar muito sobre o assunto, espero. Devo dizer-lhe o que deveria fazer? Ir direto à caixa postal mais próxima, ou apanhar o telefone mais à mão e denunciá-lo tão rápido quanto possível. Ou não? Você não faria isso?

— Sim, sim, claro; mas não é exatamente a mesma coisa.

— Alegro-me ao saber que você agiria assim, do contrário seria um criminoso. Foi exatamente o que sua mulher fez. O que você quer dizer quando afirma não ser exatamente a mesma coisa?

Não foi lhe fácil esclarecer. Acabou tentando explicações vacilantes:

— Que ela possa subitamente pensar em qualquer coisa sobre mim... Depois de vinte anos! Dia a dia! E, além disso, imagine se algum dia eu tivesse cometido alguma besteira e lhe pedisse um conselho...

— Então seria tarde para arrependimentos. E quanto ao fato de pensar qualquer coisa, você não sabe que é nosso dever suspeitarmos de todos? O Estado exige isto. Vinte anos é bastante tempo, é verdade, mas uma pessoa pode se enganar durante anos. Você não tem absolutamente motivo algum para queixar-se.

— Não... Mas se ela agora... Eu não poderia...

— Cuidado com a língua cidadão-soldado, você pode facilmente destruir o bom conceito que tenho de seu valor. Sua mulher denunciou um espião. Certo ou errado?

— Sim, claro, está certo.

— Pois bem, está certo. Ela denunciou um espião, mas esse espião não era você. E agora você quer divorciar-se dela porque ela agiu corretamente em relação a uma pessoa que não era você. Não é isso?

— Mas... Sinto... Insegurança, digamos... Quando olho para ela não sei o que pensa de mim.

— Se eu fosse você, trataria de não me divorciar de minha mulher pelo fato de que ela agiu corretamente. Independentemente do fato de que sua profissão não fascina as mulheres, e tampouco o seu estado, nenhuma mulher digna cogitará de você ao conhecer esta história; e de sua divulgação, esteja certo de que eu me encarregaria, pois então você carregará uma mancha, da qual todos falarão.

— Mesmo assim não gosto disto – murmurou o homem cada vez mais confuso. – Não quero que tudo fique assim.

— Você me surpreende – disse eu com a voz cada vez mais fria. – Devo crer que você é um tipo associal? Você sabe qual a imagem que teremos de você no laboratório. E não deve ser nada agradável carregar um tal estigma.

Isto o atingiu. Seu embaraço misturava-se agora ao medo. Sem amparo voltou os olhos, antes imóveis, de sua mulher para mim, de mim para ela. Após uma pausa rápida, voltei ao ataque:

— Mas estou seguro de que você não tinha más intenções. Você queria apenas certificar-se de que sua esposa levara suas suspeitas a sério. Como de fato levou, como você viu. Então não existe mais motivo algum para divórcio. Não tenho razão?

— Sim – concordou ele, mais tranquilo com minha afabilidade, embora não conseguisse seguir muito bem o raciocínio. – Naturalmente. Não existe motivo algum para o divórcio... Então.

A mulher percebeu logo que o perigo fora desviado e tudo voltava a ser como antes, e suspirou aliviada. Sua gratidão foi minha única compensação pelas duas noites sacrificadas. A frieza mal-humorada de Togo Bahara realmente me irritara, mas isso desapareceria com o passar do tempo. Para dar-lhes uma mão gritei-lhes:

— Você pode voltar outra vez e me informar se seu marido realmente pensava o que disse, ou se afinal se trata de um tipo associal!

Bahara sabia que eu era seu chefe. O matrimônio de Kadidja Kappori estava salvo.


 

 

 

 

Justamente aquela semana foi excepcionalmente favorável à experiência. Não menos que três dos dez homens do grupo não constavam entre os denunciados, e felizmente a polícia efetuara prontamente as prisões; tínhamos, portanto, três pessoas alheias ao assunto à nossa disposição. O chefe de polícia compareceu pessoalmente ao interrogatório. Sentou-se, longo e magro na cadeira, espichou as pernas à sua frente, junto as mãos sobre o tronco estreito e esperou com um ardor misterioso nos olhos. O chefe de polícia era uma pessoa notável, dessas que parecem ter nascido para ir longe. Sua postura podia ser relaxada, e mesmo mais relaxada que a de Rissen, mas mesmo assim jamais deixava de parecer militar. Enquanto Rissen se deixava levar pelos próprios impulsos e parecia mais puxar que conduzir, o repouso imóvel de Karrek era o gesto antes do salto, e em seu rosto duro e fechado, no brilho sob os olhos semicerrados, podia-se ver o bote de uma fera que não deixaria escapar sua caça. Eu não só sentia respeito por sua força, como também colocava minhas esperanças em seu poder. E logo constataria estar certo.

Os três prisioneiros foram trazidos um a um e interrogados. Dois eram de uma espécie com a qual nada tínhamos no momento a fazer, eram criminosos comuns, que simplesmente haviam sido atraídos pelas somas que o espião prometera. Um deles, uma mulher, nos divertiu com suas confidências íntimas sobre a natureza e hábitos do marido. Uma mulher viva e inteligente, mas nada aceitável como cidadã-soldado, com o mais compacto e acirrado egoísmo.

O terceiro, porém, deu-nos algo em que pensar.

Por que não denunciara sua mulher ficou totalmente obscuro, mesmo para ele mesmo. Por um lado não mostrou nenhuma gratidão extasiada pela confiança de sua esposa como a mulher pálida que interrogávamos antes; por outro lado não tinha interesse algum pelas somas prometidas. Embora não negasse diretamente a possibilidade de que a mulher fosse espiã, demonstrava visivelmente não estar certo de que tudo realmente ocorrera como a mulher contara. Tudo o que se podia dizer era que uma certa apatia o impedira – uma apatia que talvez pudesse vencer alguns dias depois, mas isto era impossível de se saber. Tivesse Karrek se decidido a tomar a lei ao pé da letra, esta apatia o teria qualificado como perigoso ao Estado. Enquanto um homem assim apático se decidia a agir, a subversão já poderia ter completado sua obra. E como se isso não bastasse, sua hesitação testemunhava uma ligação extremamente frágil ao Estado. Não foi, pois, surpresa para mim, quando ele deixou escapar.

— Em verdade, tudo isto é muito menos importante que nosso objetivo.

Agucei os ouvidos e vi que o chefe de polícia fazia o mesmo.

— O objetivo de vocês? Perguntei. Mas quem são vocês?

Ele sacudiu a cabeça com um sorriso ingênuo e rápido.

— Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

— Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

— Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós.

Como já mostrava sinais de despertar, olhei interrogativamente, primeiro para Rissen, depois para o chefe de polícia.

— Por tudo o que existe no mundo, continue – murmurou Karrek entre dentes. Rissen também dez um gesto afirmativo. Dei, então, ao homem mais uma injeção.

— E agora, o nome dos que você conhece.

Alegre e inocentemente, sem a mínima hesitação, deu cinco nomes. Era tudo, declarou. Não conhecia outros. Karrek fez sinal para que Rissen os anotasse.

— E qual é a revolução que vocês planejam?

Apesar da dose, não deu resposta alguma. Contorceu-se ante a pergunta e fez um visível esforço, mas nada saiu dele. Por um momento pensei novamente que talvez sob certas circunstâncias a kalocaína pudesse ser ineficaz, e comecei a suar frio. Mas talvez a pergunta tivesse sido mal formulada – embora a mim me parecesse suficientemente clara – de forma que a cobaia nem mesmo desperta pudesse respondê-la.

— Vocês querem algo, não é verdade? – perguntei cuidadosamente.

— Claro, claro que queremos algo...

— O que então?

Silêncio novamente. Depois, com hesitação e esforço:

— Queremos se... Queremos tornar-nos... Uma outra coisa...

— Sim? E vocês querem se tornar o quê?

Silêncio. Um suspiro profundo.

— Querem ocupar determinados postos?

— Não, não. Isso não.

— Querem ser outra coisa que não cidadãos-soldados do Estado Mundial?

— N-n-não... Quero dizer... Não, isso não...

Eu estava estupefato. Karrek cruzou as pernas com um movimento silencioso, espichou as mãos ainda cruzadas, piscou com o olho e disse em voz baixa, perscrutante.

— Onde você encontrou os outros?

— Na casa de um deles, que eu não conheço.

— Onde? E quando?

— Distrito RQ... Quarta-feira, há duas semanas...

— Quantos estavam lá?

— Quinze... Vinte.

— Então não será difícil de descobrir onde era – disse Karrek para mim e Rissen. – O porteiro deve saber disso.

E continuou o interrogatório.

— Vocês têm licença, naturalmente. Sob nome falso?

— Sob nome falso não. A minha pelo menos era verdadeira.

— Então é bem mais fácil. Adiante. Do que trataram?

Mas aí, mesmo Karrek fracassou. As respostas do interrogado se tornaram confusas e inseguras.

Deixamos em paz o perturbado homem, ainda mais que a segunda dose já começava a perder seus efeitos. Acordou com forte mal-estar. Não parecia ter sofrido muito moralmente, estava nervoso, mas não desesperado; surpreso, mais que confuso.

Quando desapareceu pela porta, o chefe de polícia pulou da cadeira com todo seu comprimento elástico, respirou fundo e disse:

— Temos trabalho aqui. O homem não sabia de nada, isto é certo. Os companheiros devem saber mais. Podemos catá-los, nome a nome, até os mais secretos círculos. Quem sabe, chegaremos a uma imensa conspiração, quem sabe?

Fechou os olhos, e um ar de satisfação descontraiu os traços nodosos. Adivinhei seu pensamento: Isto levará minha fama a todos os recantos do Estado Mundial. Talvez eu pensasse errado. O chefe de polícia e eu tínhamos naturezas diferentes.

— Quanto ao resto – continuou lentamente, olhando perscrutadoramente pra um e outro. – Quanto ao resto, terei que viajar por curto tempo. É possível que vocês sejam logo chamados para um outro lugar. Estejam de malas prontas. O chamado poderá ocorrer em casa ou no trabalho. Por uma questão de segurança, tenham uma mala pronta no laboratório, assim não precisarão atrasar-se para apanhá-la, uma pequena mala com o mais necessário, para ficar fora alguns dias. E tenha os aparelhos em ordem, para levá-los consigo e mostrar como sua kalocaína funciona.

— E o serviço militar? – perguntou Rissen.

— No caso de algum problema, é evidente que arranjo tudo. Se não o consigo, então nada é feito. Não prometo nada. Que farão vocês nos próximos dias?

— Continuaremos com experiências e mais experiências.

— Então não há empecilhos para que sigam este fio. Falo no que descobrimos com o último interrogado. Em vez de empregar cobaias do Serviço Voluntário, desenrolem polegada a polegada o novelo de nomes que lhes deu, registrem tudo o que emergir e esperem pelas providências. Que acham disto?

Rissen hesitou.

— Não há nada sobre tais casos no regulamento do laboratório.

O chefe de polícia riu desdenhosamente.

— Não sejam burocratas – disse. – Se lhe chegar uma ordem do chefe do Laboratório Central – é Muili, não? – imagino que você não se prenderá tão rigidamente ao regulamento. Falarei diretamente com Muili. Depois é só deixar todos os nomes na Casa da Polícia. Disto talvez dependa o bem ou mal do Estado – e você fala em regulamento!

Ele se foi e ficamos olhando um para o outro. Penso que minha fisionomia era vitoriosa e ao mesmo tempo de admiração. Nas mãos de um homem como Karrek, eu podia tranquilamente confiar minha sorte. Ele era feito de vontade pura, para ele não existiam dificuldades.

Mas Rissen franziu a testa, resignado.

— Acabaremos nos tornando uma subseção da polícia. Adeus, ciência.

Isto me tocou. Gostava de meu trabalho científico e sentiria muito sua falta, se não pudesse executá-lo. Mas Rissen era pessimista por natureza, tentei persuadir-me. De minha parte, eu vi apenas a Escada diante de mim e a primeira e única pergunta era se ela conduzia ao alto. O resto cabia ao tempo mostrar.

Uma hora depois chegou a ordem do chefe do Laboratório Central, de que devíamos dedicar-nos a nosso trabalho segundo a linha indicada pelo chefe de polícia. Na Casa da Polícia estavam todos já instruídos, bastava que déssemos por telefone o nome dos que queríamos ter presos, e as pessoas em questão estariam em nossas mãos em vinte e quatro horas.

O primeiro a ser enviado era um jovem com um período relativamente curto de acampamento juvenil, e com uma curiosa mistura de insegurança e orgulha da hostilidade à vida social, à qual ainda não se sentia totalmente adaptado. Sob a influência da kalocaína, seu amor-próprio pôde expandir-se de uma forma que parecia cômica a nós adultos, e ele começou a relatar-nos vastos e vagos planos futuros. Ao mesmo tempo admitia sentir-se muitas vezes profundamente irritado com os seres à sua volta. Estes lhe queriam mal, disse. De fato, eu havia sugerido que deixássemos as cobaias falarem por si tanto quanto possível, pois o último fora interrogado bastante asperamente; mas este caso revelava uma psicologia juvenil um tanto exacerbada para que Karrek pudesse sentir-se satisfeito de modo que por fim passei ao ataque e perguntei-lhe se não conheci nosso último prisioneiro.

— Sim. Somos companheiros de trabalho.

— Você o encontrou alguma vez fora do trabalho?

— Sim, ele convidou-me para um encontro...

— No distrito RQ? Na quarta-feira, há quatorze dias atrás?

O rapaz sorriu ligeiramente e pareceu bastante interessado.

— Sim. Um encontro estranho. Mas eu gosto muito deles. De certa forma eu gosto deles...

— Você pode nos contar o que lembra?^

— Claro. Foi estranho. Entrei, e só vi gente que não conhecia. Nada havia de especial. Quando sacrificamos uma noite livre para a vida comunitária, quase sempre o fazemos para discutir algo referente ao trabalho ou coisa parecida, uma festa planejada ou uma declaração às autoridades, e é perfeitamente compreensível que não conheçamos todos os participantes. Mas não se tratava disso! Eles não discutiam coisa alguma. Eles se sentavam e falavam sobre tudo, ou simplesmente se calavam. Calavam-se de uma forma tal que me deixava o coração opresso. E, além disso, a forma como se cumprimentavam! Apertavam-se as mãos. Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de um outro, intencionalmente! Eles afirmavam tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. Mas no início eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu. Principalmente na presença de pessoas mais velhas, pois estas aprenderam a ver através da gente e, além disso, quando falam, falam superficialmente, permanecendo alertas sob a superfície. Já me aconteceu de conseguir falar superficialmente e manter-me alerta sob a superfície e após isto me senti alegre, como se houvesse escapado de um perigo. Mas lá eu não conseguia isto. Nenhum deles se deixaria enganar. Quando não falavam, falavam baixinho, e parecia que não pensavam em mais nada naquele instante. Penso ser melhor falar alto, assim se consegue captar a atenção dos outros, fala-se alto e se mantêm os pensamentos em outro lugar. Mas eles eram tão estranhos! Por fim, acabei achando aquilo agradável e pensei gostar deles. Tudo era de certa forma tranquilo.

Tudo isto pouco esclareci. O garoto era noviço no movimento, e ainda não fora introduzido em seus segredos. No entanto, perguntei, por via das dúvidas.

— Você viu algum chefe do grupo? Alguma distinção de graus?

— Não... Não que eu visse. Tampouco ouvi alguém falar sobre isso.

— E o que mais fizeram? Falaram sobre algo que fizeram ou pretendem fazer?

— Não que eu saiba. Se bem que tive de sair mais cedo, eu e mais alguns que também não tinham estado lá antes, creio. Depois não sei o que fizeram. Mas ao sairmos, alguém disse: quando nos encontrarmos lá fora, nos reconhecemos. Não consigo explicar isto, mas era algo realmente solene, e eu acho que os reconheceria; não precisamente os que encontrei lá, mas qualquer um deles. Existia algo especial neles, que não consigo descrever. Quando cheguei aqui, sabia perfeitamente que o senhor (indicou a mim) não pertencia ao grupo. Mas quanto a ele (dirigiu vagamente o olhar a Rissen), quanto ele não estou certo. Talvez pertença ao grupo, talvez não. Só sei que me senti mais calmo entre eles do que entre quaisquer outros. Lá eu não experimentava essa sensação tão palpável de que eles me quisessem mal.

Olhei friamente para Rissen. Parecia tão espantado que logo percebi ser inocente, se por inocente entendemos que jamais participou de tais encontros secretos que o jovem descrevera. Mas algo permanecia nebuloso. Também em Rissem existiam os mesmos veios associais, um certo parentesco com toupeiras cegas.

O garoto despertou com remorsos desproporcionais aos fatos relativamente inofensivos que contara. Pelo que entendi, sua angústia não se devia ao relato da reunião, senão às confidências de ordem pessoal que havíamos interrompido com bocejos.

— Acho que devo esclarecer algumas coisas, murmurou ele já de pé, um pouco trêmulo. Aquilo que eu disse, que era inseguro em relação aos outros, não é exatamente verdade. Apenas me pergunto o que pensam de mim. Não quis dizer que necessariamente me queiram mal E tudo que disse desejar ser ou fazer era pura fantasia, sem um pingo de verdade. Também fui um pouco exagerado ao dizer que me sentia melhor com aquela gente estranha do que com as pessoas comuns. Claro que me sinto melhor com gente comum, quando reflito um pouco...

— Também estamos convencidos disto – disse Rissen gentilmente. – No futuro você deve manter-se junto aos outros, os comuns. Suspeitamos fortemente que aquele grupo em que você caiu por acaso é perigoso ao Estado. É evidente que você não foi ainda contaminado, mas tome cuidado! Quando você menos espera, eles o envolvem em suas redes.

O garoto parecia aterrorizado ao sumir pela porta.

Não sei que terríveis planos esperávamos de fato descobrir da reunião que se seguiu após o garoto e dos demais serem enviados a suas casas. Algum dos prisioneiros, no entanto, deviam ter permanecido enquanto eles conspiravam. Interrogamos minuciosa e sistematicamente os quatro que ainda restavam, anotamos meticulosamente suas declarações, mas demorou algum tempo até que pudéssemos ter uma idéia aproximada da liga secreta. Muitas vezes olhamos um para o outro e sacudimos a cabeça. Estaríamos lidando com um grupo de débeis mentais? Eu jamais ouvira falar de algo assim fantástico.

Antes de mais nada, estávamos no ar quanto à própria organização, nomes dos chefes, ramificações. Ao poucos íamos descobrindo que não existiam chefes nem organização alguma. Acontece muitas vezes em conspirações secretas que os membros da graduação inferior não têm acesso aos segredos mais importantes; tudo o que sabem é o nome de dois ou três membros, tão sem importância quanto eles próprios. Concluímos que este é o tipo de membro que tínhamos em mãos. No entanto, certamente chegaríamos às mais altas esferas, onde se sabia mais, através dos prisioneiros. Bastava apenas continuar.

Que acontece, depois que os noviços deixam a casa? – perguntamo-nos antes de mais nada. Uma mulher fez-nos uma descrição fantástica.

— Apanha-se uma faca. Um de nós a entrega a um outro, deita-se numa cama e se finge que dorme.

— Muito bem. E depois?

— Depois? Nada mais. Se alguém mais quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se também sentar e apoiar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer outra coisa.

Quase sufoquei-me com uma gargalhada. A cena era impagável. Alguém senta-se, sério, com uma grande faca de mesa na mão (obviamente se tratava de uma faca de mesa, era a mais fácil de obter, bastava apenas esquecer de deixá-la junto ao prato do almoço), em meio as outras pessoas também sérias. Um espicha-se na cama com as mãos sobre a barriga, cerra fortemente os olhos, quem sabe tenta inclusive roncar. Um após o outro apanham uma almofada e a colocam por perto e encenam seu papel na peça. Alguém sentado escorrega de sua posição contra a beirada da cama, apóia a nuca na pata, boceja... Fora isso, silêncio e morte.

— Nem mesmo Rissen pôde impedir um sorriso.

— E qual é o sentido disto? – perguntou.

— Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E, no entanto, nada lhe acontece.

(E, no entanto, nada lhe acontece! Com um monte de gente em torno. Pessoas que roncam acordadas e podem a qualquer momento olhar de revés. Não lhe acontece nada quando um de seus hóspedes – registrado legalmente pelo porteiro – fecha a mão em torno de uma faca que não corta nem água e escuta quão confiantemente ele ronca...)

— E para que serve tudo isso?

— Queremos invocar um novo espírito – respondeu a mulher, muito séria.

Rissen apoiava o queixo, pensativo. Em conferências sobre história eu ouvira falar, e com certeza também Rissen, que os selvagens da antiguidade costumavam invocar certas divindades e executar certas práticas, ditas mágicas, para chamar seres imaginários, ditos espíritos. Persistiria isso ainda em nossos dias?

Da mesma mulher extraímos certas alusões a um louco total que desempenhava um certo papel dentro de seus círculos. Em verdade, não se precisava muito para servir de herói para essa gente.

O senhor conhece Reor? – perguntou ela – Não, ele não vive mais, ele vivia há mais ou menos quinze anos, segundo alguns, em alguma das Cidades Hidráulicas, segundo outros em alguma das Cidades Têxteis. Imagine não ter ouvido falar em Reor. Eu quis fazer uma conferência sobre Reor certa vez. Embora tudo seja verdade, só os iniciados podem compreender. Se se quer falar de Reor, é preciso dirigir-se aos iniciados. Ele andava por aqui e por ali, pois naquele tempo não existia o problema de licenças, alguns o acolhiam por medo, pois pensavam que pertencesse à polícia; outros o expulsavam, pois pensavam que fosse um criminoso. Mas os que o receberam – claro, nem todos observaram como ele era – julgaram-no apenas estranho; já outros descobriram que podiam sentir-se calmos e tranquilos com ele, como um bebê nos braços da mãe. Alguns o esqueceram, mas outros jamais o esquecerão e contam dele tudo o que lembram. Mas só os iniciados entendem isto. Ele jamais trancava sua porta. Jamais se importava com testemunhas ou provas do que fazia ou dizia. Nem mesmo se protegia contra ladrões e assassinos, e por isso acabou sendo assassinado por um ladrão que pensou que Reor tivesse um pedaço de pão em sua mochila. Mas ele não o tinha mais, já o havia comido com alguns outros que encontrara pelo caminho... Mas este pensou que ele o carregava. E espancou-o até a morte.

— E com tudo isso vocês o julgam um grande homem? – perguntei.

— Ele era um grande homem. Reor era um grande homem. Era um dos nossos. Existem ainda alguns que o conheceram.

Rissen olhou expressivamente para mim e sacudiu a cabeça.

— A lógica mais engraçada que já vi em minha vida – disse eu. – Sejamos como ele, que foi assassinado por um ladrão! Não entendo nada.

— Você falou em iniciação – disse Rissen à mulher, sem importar-se comigo. – Como alguém se inicia?

— Não sei. Nos iniciamos, simplesmente. Acontece. Os outros notam isto, os que também são iniciados.

— Então qualquer um pode chegar a dizer que é iniciado? Deve existir algum procedimento, alguma cerimônia; segredos que não se divulgam...

— Não, nada disso. Nota-se, eu disse. Nos tornamos iniciados, compreende, ou não nos tornamos; alguns jamais o conseguem.

— Como se nota isso então?

— Bem... Nota-se por tudo... Aquilo da faca e do sono torna-se então sagrado e claro para nós... E muito mais...

Estávamos tão bem informados quanto antes.

Se a mulher era pessoalmente louca ou se dividia sua loucura com toda aquela gente, era impossível saber. Só podíamos estar certos dos ritos mágicos com a faca e a simulação do sono, isto foi confirmado pelos outros; em compensação não ficou claro se ocorriam sempre ou se eram ocasionais. Tampouco conseguimos encontrar rastros do mito de Reor em todos, embora subsistisse em alguns. O que existia realmente de comum naquele círculo, além de todos, sem exceção, se comportarem de maneira estranha?

Um outro, também uma mulher, tinha alguns nomes para dar-nos. Achamos então conveniente interrogá-la persistentemente quanto à organização. Sua resposta foi tão espantosa como a dos outros.

— Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constroem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constroem utilizando a vocês mesmos como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado.

Tudo isto me pareceu um jogo de palavras sem sentido e, no entanto, impressionou-me. Talvez fosse a própria intensidade de sua voz profunda que me fez vibrar. Não era impossível que Linda me tivesse vindo à lembrança, sua voz profunda e intensa, em especial certas vezes, quando parecia não estar tão cansada. Pensei então em como reagiria se agora, em lugar da mulher desconhecida, estivesse Linda entregando-me seu íntimo, com um tom de voz tão penetrante e chamativo. Ocultei por muito tempo na memória as palavras isoladas que repetia para mim mesmo, e julgava fazê-lo por achar que soavam bem em toda a sua falta de sentido. Muito, muito tempo depois, comecei a entrever um sentido nelas. Mas já então me haviam tocado, dando-me um primeiro vislumbre do que queria dizer com “nós”, com reconhecer-se lá fora e com um círculo de iniciados sem organização, sem sinais exteriores nem grandes ensinamentos ou doutrinas visíveis.

Quando ela foi liberada, dirigi-me a Rissen:

— Ocorreu-me algo. Talvez tenhamos interpretado mal essa história de “espírito”. Quem sabe isso não quer dizer uma forma interior, uma filosofia de vida. Ou o senhor acredita que está é uma interpretação por demais sutil para surgir de um tal círculo de loucos?

Quando ele olhou para mim, senti medo. Que me entendeu perfeitamente, isto pude ver, mas também algo mais. Vi que também ele se sentira influenciado pela natureza intensa e quente da mulher. Vi que ele era ainda mais receptivo do que eu. E também vi que seu próprio olhar, seu próprio silêncio me empurravam em uma direção, que todo o meu senso de dever, todo o meu sentimento de honra me proibiam de tomar. Ele estava preso nas malhas da rede daqueles loucos, e inclusive eu senti em certo momento a suave e poderosa atração.

Não havia o primeiro garoto dito que Rissen bem poderia pertencer ao grupo de loucos, à seita secreta? Não tivera eu o pressentimento de que em Rissen se escondia uma ameaça e um perigo? Desde agora eu sabia que nutríamos uma inimizade profunda.

Restava-nos ainda um dos prisioneiros, um homem já velho com feições inteligentes, e eu o temia – quem sabe não teria a mesma força sugestiva que a mulher de há pouco –, e ao mesmo tempo esperava grandes revelações dele. Ele, mais que ninguém, devia estar por dentro dos círculos mais secretos, e, com alguma sorte, encontraríamos nele provas definitivas de que toda aquela seita de loucos deveria se condenada e exterminada, para alívio e salvação de mim mesmo e de muitos outros. Mas quando ele já havia sido introduzido e mal o havíamos feito sentar, o telefone tocou e eu e Rissen fomos chamados por Muili, o chefe do Laboratório Central.


 

 

 

 

O gabinete de Muili não se encontrava no prédio de nosso laboratório, mas não se precisava subir até a superfície terrestre para chegar até lá: através de um subterrâneo três andares abaixo se chegava diretamente a seu prédio, onde funcionavam os escritórios do laboratório. Depois de mostrarmos a carteira de identidade e de um secretário certificar-se por telefone de que éramos esperados, fomos logo recebidos. Em vinte e cinco minutos estávamos frente a Muili, homem grisalho e muito magro, de feições doentias. Mal nos olhou. Sua voz era baixa, como se quase não pudesse falar e, no entanto, nela não existia entonação alguma que não fosse de ordem. O homem não estava habituado a ouvir ninguém enquanto não se tratasse de respostas a perguntas diretas.

— Cidadãos-soldados Edo Rissen e Leo Kall, os senhores foram chamados a uma outra localidade. Deixem de lado o trabalho de que se ocupam agora. Em uma hora um policial os estará esperando para conduzi-los ao local de partida. Tudo está arranjado quanto a suas dispensas temporárias do serviço policial-militar. Entendido?

— Sim, meu chefe – respondemos eu e Rissen ao mesmo tempo.

Voltamos em silêncio ao laboratório para nos preparamos, tomar banho e vestir o uniforme de lazer. Tínhamos prontas nossas sacolas de viagem e mais uma caixa com a kalocaína e aparelhos, como Karrek ordenara. Na hora fixada fomos apanhados por dois policiais taciturnos e conduzidos por metrô até a localidade determinada.

Minha admiração por Karrek aumentava sempre. Tudo marchava perfeitamente. Nem um dia havia ainda transcorrido após sua partida e ele já obtivera o que queria. O homem era uma potência, e não apenas na Cidade Química n° 4, ao que tudo indicava.

Ao sairmos do metrô, vimos que nosso objetivo era um hangar. Um delirante desejo de aventura percorreu-me os membros. Até onde iríamos? Até a capital? Eu, que jamais saíra da Cidade Química n° 4, fui tomado por uma selvagem excitação.

Com uma multidão de outros passageiros entramos no bem iluminado avião. Os policiais fecharam e lacraram a porta, e pelo ruído dos motores soubemos que estávamos ganhando altura. Apanhei em minha sacola o último número da Revista Química, Rissen fez o mesmo, mas observei que tanto ele como eu nos recostávamos e deixávamos o pensamento girar em torno de outras coisas que não os artigos e comunicações da revista. Eu pelo menos tentava dominar minha curiosidade tão logo esta me comichava. Naturalmente eu já vira em filmes campos dourados, verdes pradarias, ovelhas e vacas pastando, vistas aéreas inclusive, de forma que não tinha grandes razões para estar curioso e, no entanto, tinha de lutar contra um desejo ridículo e infantil de que o avião tivesse pelo menos uma pequena fresta através da qual se pudesse olhar em segredo – não que eu pretendesse fazer espionagem, mas por pura e infantil curiosidade. Mas ao mesmo tempo eu sabia ser isto uma perigosa tendência. Seguramente não teria ido tão longe no campo científico se uma certa curiosidade não me conduzisse aos segredos da matéria – por outro lado, era um impulso para o bem e para o mal e podia arrastar-me ao perigo e ao crime. Eu me perguntava se Rissen tinha de lutar contra as mesmas inclinações e desejos – se é que ele ainda lutava! Não era exatamente uma pessoa que luta, com toda aquela falta de disciplina. Eu o via sentado ali, sem bandeira ou escrúpulos, desejando que o avião fosse inteiramente de vidro... Uma imagem muito justa, pensei, pois assim era o homem. Pudesse eu utilizar a kalocaína para satisfação pessoal...

Cochilava quando senti um ligeiro toque em meu braço. O condutor servia-me a janta – e isto era significativo. Olhei meu relógio: já havíamos viajado cinco horas e faltava um outro tanto até o destino, pois não podíamos esperar até a chegada para jantar. Eu calculara certo: tínhamos ainda três horas. Se se soubesse não apenas o tempo, como também a velocidade do avião, podia-se facilmente calcular a distância entre a Cidade Química n° 4 e o lugar onde éramos conduzidos. Felizmente a velocidade do avião era mantida em sigilo absoluto, de forma que espião algum poderia chegar a conclusões geográficas. A única coisa que se podia perceber era que a velocidade era muito alta e a distância, portanto, enorme. Naturalmente nem podíamos imaginar a direção; o fato de sentir-se uma temperatura baixa, fria inclusive segundo os conceitos da Cidade Química n° 4, nada significava senão que estávamos muito alto.

Quando finalmente baixamos e o motor parou, as portas foram descerradas por uma pequena tropa policial, que logo se dividiu e tomou conta dos diversos passageiros. (Provavelmente todos estavam ali em importantes missões, esperados e anunciados, talvez até mesmo chamados como nós). Rissen e eu fomos conduzidos no metrô policial-militar, e nosso vagão, com uma incrível velocidade, projetou-se até uma estação denominada Palácio da Polícia. Descobrimos que estávamos na capital. Por uma porta subterrânea fomos conduzidos até uma ante-sala, onde fomos revistados e nossa bagagem revisada, e depois levados a uma espécie de cabine simples, porém bastante prática, onde devíamos dormir.


 

 

 

 

O desjejum da manhã seguinte foi-nos servido em um dos refeitórios. Não éramos os únicos hóspedes noturnos do Palácio da Polícia – na grande sala dezenas de cidadãos-soldados de ambos os sexos e das mais diversas idades – embora todos adultos – se acotovelavam em torno das mesas. Alguém acenou-nos de seu lugar. Era o próprio Karrek que se sentara com sua sopa de milho entre desconhecidos. Embora tivesse tomado lugar antes de nós, sentimo-nos contentes ao ver seu rosto conhecido, e ele tampouco parecia ter algo contra nossa companhia.

— Solicitei audiência para nós três ao Ministro da Polícia – disse ele – e tenho razões para crer que seremos recebidos logo. Apanhem as bugigangas tão rápido quanto possível.

Após o desjejum, corri para apanhar os aparelhos para administrar a kalocaína. Vi depois que minha pressa fora exagerada. Fomos os três conduzidos à sala de espera do Ministro, onde tivemos de esperar uma boa hora antes que se abrissem as portas do gabinete. Antes de nós já esperavam três pessoas, o que me fez supor que a demora seria longa.

Mas fomos os primeiros a serem recebidos. Um funcionário lépido e ágil abriu a porta, dirigiu-se a Karrek e sussurrou-lhe algo. Karrek apontou-nos e fomos conduzidos os três a uma nova sala de espera, onde fomos novamente revistados. As medidas de segurança eram muito mais rigorosas aqui que em nossa Cidade Química, naturalmente porque as vidas que aqui deviam ser protegidas eram mais raras e preciosas que as demais nas outras regiões do Estado Mundial. Já na sala de espera, em maior número que nesta ante-sala e no gabinete do ministro, estavam postados guardas com armas embaladas. Até que finalmente nos encontramos frente ao poderoso homem.

Uma larga figura girou na cadeira e levantou as espessas sobrancelhas em saudação. Era visível que a presença de Karrek o tornava satisfeito. Eu já conheci bem o Ministro Tuareg, do Álbum Fotográfico dos Cidadãos-Soldados, seus pequenos olhos pretos de urso, seu mento autoritário, seus lábios carnudos; e no entanto, sua presença produziu-me uma impressão bem mais forte do que a esperada. Talvez fosse a sensação de estar frente ao Poder concentrado que me fazia tremer. Tuareg era o cérebro dos milhões de olhos e ouvidos que vigiavam dia e noite as conversas e os atos mais íntimos dos cidadãos-soldados, era a vontade os milhões de braços que continuamente, ou em certos momentos do dia, protegiam a segurança interna do Estado – a vontade inclusive de meus braços, quando eu dedicava minhas noites ao serviço policial. Eu, no entanto, tremia, como se não fosse minha mais alta aspiração vê-lo face a face – como se eu fosse um dos criminosos que eu próprio perseguia. Mas eu nada fizera de errado! De onde provinha então esta maldita insegurança em meu espírito? A resposta estava sob meu nariz: tudo dependia de uma ilusão sugerida que podia ser expressa nestas palavras: “Nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa”. E quem dissera isto fora Rissen.

— Muito bem, temos aqui nossos novos aliados – disse o Ministro a Karrek. – Os senhores estão preparados para algumas experiências rápidas daqui a duas horas? No terceiro andar uma sala foi disposta para servir de laboratório, um pouco rudimentar talvez, mas acho que lá tem tudo que os senhores precisam. Se faltar algo, é só avisar o pessoal. E as cobaias já estão à disposição.

Dissemos estar prontos e entusiasmados. Terminada a audiência, fomos conduzidos por um outro caminho ao laboratório improvisado do qual o Ministro falara. As instalações eram perfeitamente satisfatórias, desde que não se pretendesse produzir kalocaína em grandes quantidades.

Karrek subiu conosco. Sentou-se em uma mesa numa posição tão relaxada que seria considerada por qualquer pessoa como desleixada e repulsiva

— Então cidadão-soldado – disse ele –, depois de verificarmos as possibilidades de trabalho do local, o que surgiu daquela reunião secreta lá na Cidade Química n° 4?

Rissen era meu chefe e tinha, pois, direito e obrigação de responder primeiro. O que ele fez, depois de um longo silêncio.

— De minha parte, não me parece que seja algo diretamente criminoso. Ligeiramente loucos me parecem todos, mas criminosos... Não.

— Pelo menos até agora – prosseguiu após nova pausa –, não encontramos em nenhum deles um ato contrário à lei, pelo menos nenhum que lhes tenha ocupado suficientemente os pensamentos para que o revelassem durante o efeito da kalocaína. Deixo de lado aquele homem que deixou de denunciar sua esposa por subversão, pois conforme sua vontade, meu chefe, havíamos concordado em não tomar a lei ao pé da letra, pois se trata de recrutamento de cobaias voluntárias. O que eles descrevem, me parece ser uma seita de loucos, mas não uma associação política. Talvez nem se possa dizer que constituem uma seita. Não tem organização alguma, não têm chefes, pelo menos que pudemos entender, não têm lista de membros, nem mesmo nomes, e mal infringem a lei contra associações fora do controle estatal.

— Você é excessivamente formalista, cidadão-soldado Rissen – disse Karrek ironicamente. – Você fala em “constar no regulamento” e “infringir a lei”, como se tinta impressa fosse um obstáculo instransponível. No fundo, você não pensa assim, não?

— Leis e regulamentos existem para nossa proteção... – objetou Rissen, amargo.

— Para proteção de quem? – reagiu Karrek. – Não para a do Estado, em todo caso. O Estado tem mais benefícios com cabeças arejadas, que em caso de necessidade cospem na tinta impressa...

Rissen calou-se a contragosto, mas revidou logo:

— Seja como for, eles parecem inofensivos ao Estado. Podemos tranquilamente soltar os que estão presos e deixá-los todos entregues a seus destinos. E ainda assim a polícia terá muito trabalho com assassinos, ladrões, perjuros...

Chegara minha vez. Precisava lançar meu primeiro ataque sério a Rissen.

— Chefe Karrek – comecei lenta e acentuadamente. – Permita-me fazer algumas objeções, embora, seja, um subordinado. Parece-me que esta associação misteriosa não é nada inocente.

— Estou interessado também em sua opinião – disse Karrek. – Você pensa tratar-se de uma associação comum?

— Dou aos parágrafos seu justo valor – disse eu. – O que quero dizer é que todos aqueles homens, tanto isolados como reunidos, constituem um perigo ao Estado. Antes de mais nada, pergunto: o senhor julga que nosso Estado Mundial necessita de atitude completamente nova, uma filosofia de vida totalmente distinta? Não me entenda mal, estou consciente de que aqui e ali o povo deveria ser estimulado a um senso de responsabilidade mais intenso e maiores esforços, mas uma nova filosofia de vida, diferente da que antes tínhamos? Não é isto em si mesmo uma ofensa ao Estado e a seus cidadãos-soldados? E era exatamente este o conteúdo manifestado pelos prisioneiros: Queremos invocar um novo espírito. Primeiro tomamos a expressão como uma manifestação supersticiosa, e isto já seria condenável, mas o fato em si era ainda pior.

— Você exagera um pouco a situação – disse Karrek. – Minha experiência ensinou-me que quanto mais abstrato algo é, menos perigosos são seus efeitos. Conceitos genéricos podem ser empregados conforme são manipulados, ora num sentido ora em sentido contrário.

— Mas uma filosofia de vida não é algo abstrato – objetei energicamente. – Eu diria que, pelo contrário, é a única coisa que seguramente não é abstrata. E a filosofia de vida desses loucos é contrária ao Estado. Isto se evidencia melhor com o mito do tal de Reor, diante do qual os demais não lhe chegam aos pés em matéria de loucura, e que por isso tornou-se o seu herói e por excelência. Indulgência com transgressores, imprudência com a própria segurança (pois somos um instrumento valioso e caro, isto não deve ser esquecido), relações pessoais mais sólidas que as relações normais com o Estado, é a isto que eles querem nos conduzir! À primeira vista seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento se evidenciam como absolutamente repulsivos. São amostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto, já considero perigoso ao Estado. Os mais crédulos acabam – mais cedo ou mais tarde como seu herói Reor – assassinados por ladrões. E não é este o fundamento do Estado? Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado teria sido erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado.

— Ora – disse Rissen com certa impetuosidade – você esquece que o Estado ainda precisa ser erigido, como centro econômico e cultural.

— Não, não esqueço. E não creia de modo algum que parto de alguma espécie de superstição civilista, de que o Estado existiria em razão de nós e não nós em razão do Estado, como de fato acontece. Quero dizer apenas que o cerne da relação das células privadas para com o Estado reside na fome de segurança. Se um dia notássemos – não estou afirmando que notamos, mas se – que nossa sopa de ervilhas se tornou mais rala, que nosso sabão não presta, que nossas residências estão em ruínas sem que alguém se preocupe com isso, iríamos protestar então? Não, pois sabemos que o bem-estar não é um valor em si mesmo, que nossas renúncias servem a um objetivo maior. E se descobrimos barreiras de arame farpado em nossos caminhos, não nos resignamos a estas limitações da liberdade de movimento sem protestar? Claro que sim. Sabemos que tudo isto acontece para a preservação do Estado, para evitar sabotagens. E se um dia chegássemos a achar que todas as ocupações do tempo de lazer devem ser sacrificadas ao indispensável treinamento militar, que os incontáveis luxos supérfluos que faziam parte da nossa educação devem agora ser deixados de lado em prol de uma imprescindível formação de cada um como trabalhador especializado nos setores absolutamente fundamentais da indústria, teríamos então razões para protestar? Não, não e não! Nós reconhecemos e aplaudimos o fato de que o Estado é tudo; o indivíduo, nada. Admitimos e aceitamos que a maior parte da assim chamada “cultura” – excluo aqui os conhecimentos técnicos – constitui um luxo para tempos em que nenhum perigo ameaça o Estado (tempos que talvez jamais voltem). Resta então a pura subsistência e a cada vez mais desenvolvida organização policial e militar. Este é o cerne da vida do Estado. O resto é secundário.

Rissen calou-se, sombrio e pensativo. Era-lhe muito difícil objetar algo à minha pouco original argumentação, mas eu tinha certeza – e nela me comprazia – de que sua alma civilista eriçava-se de fúria.

Karrek pulara da cadeira e ia e vinha pela sala. Dava-me a impressão de não escutar muito atentamente meus argumentos, e isto me magoava. Quando acabei, disse um pouco impaciente:

— Muito bem, ótimo. O fato é, no entanto, que até aqui, pelo que sei, jamais mantivemos lutas contra “espíritos”. Deixamos que assombrem o reino irreal ao qual pertencem. Quando as pessoas começam a cochichar ao pé do ouvido nas mesas dos refeitórios ou deixam de assistir às festas oficiais, isto pelo menos merece uma observação especial, mas “espíritos” – não, obrigado...

— Antes não tínhamos meios para este controle, objetei. A kalocaína nos dá a possibilidade de controlar tudo que se passa nos sentidos.

Mesmo ante este argumento, o que lhe entrava por uma orelha parecia sair pela outra.

— Qualquer um poderia ser condenado com isto – disse Karrek um tanto mal-humorado.

Parou subitamente, inquieto, abatido, ao que parece, pelo próprio peso de suas palavras.

— Qualquer um poderia ser condenado com isto – repetiu –, mas desta vez em voz suave, baixa, infinitamente lenta. Em todo caso, talvez você não esteja errado, pois lá no fundo... Lá... No fundo...

— Mas como o senhor próprio disse, meu chefe – gritou Rissen espantado –, qualquer um poderia...

Tampouco Rissen foi ouvido. Karrek continuou a caminhar com longas passadas e com sua estranha cabeça mongólica, os olhos saltados fechando-se aos poucos.

Eu queria ser-lhe útil, e lhe contei, embora um pouco envergonhado, a reprimenda que recebera do Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda. Isto finalmente despertou-lhe a atenção.

— Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda, é? – disse ele pensativo. – Interessante. Muito Interessante.

Passou-se um bom momento no qual só se ouvia o leve ranger de seus sapatos, além do rumor distante do metrô e murmúrio de vozes e outros ruídos das salas vizinhas. Finalmente apoiou-se na parede com as mãos, fechou os olhos e disse lentamente, como se pesasse cada palavra:

— Serei absolutamente sincero. Temos poder para institucionalizar uma lei sobre pensamentos criminosos, desde que tenhamos apoio suficiente do Sétimo Departamento.

Até então julgava não existir em mim lugar senão para a obediência, mas é possível que tivesse sido contagiado pelos sonhos de grandeza de Karrek, por planos e perspectivas dos quais nem estava consciente. Sustive a respiração quando ele continuou

— Enviarei um de vocês, de preferência o que fala melhor e mais convincentemente, até o Sétimo Departamento. Por certas razões, não posso ir pessoalmente... Como é, cidadão-soldado Leo Kall, você saberia apresentar bem o assunto? Ou melhor, pergunto ao seu chefe. Ele tem condições para isso?

Após um segundo de dúvida, Rissen respondeu quase involuntariamente:

— Tem, e no mais alto grau.

Pela primeira vez observei em Rissen um manifesto impulso de antipatia.

— Quero falar com você em particular, cidadão-soldado Leo Kall.

Fomos até minha cabine. Visivelmente irritado, Karrek cobriu o ouvido da polícia com uma almofada, e ao ver-me um tanto surpreso, riu:

— Eu sou, em todo caso, o chefe da polícia, e se isto, por azar, for descoberto, fico sabendo a posição de Tuareg...

Eu não podia deixar de admirá-lo por sua audácia, mas ficava intranquilo ao vê-lo orientar-se por caminhos individuais e não pelos coletivos.

— Então vejamos – disse ele. – Você deve encontrar uma forma de abordar o assunto com Lavris, no Sétimo Departamento. Eu sugeriria que você apanhasse aquela reprimenda e a associasse de alguma forma à sua descoberta. E depois, acidentalmente – não esqueça, acidentalmente, pois a legislação em si não é função do Sétimo Departamento – fale no significado que sua descoberta teria com as novas leis, introduzindo a mim e a você no caso... Devo lembrar-lhe que Lavris tem influência sobre o Ministro Tatjo, da Justiça...

— Mas não seria mais prático dirigir-se diretamente ao Ministro Tartjo?

— Totalmente ao contrário. Mesmo se você tivesse uma função definida, uma função sólida e importante em relação a este projeto de lei, transcorreriam semanas e semanas até que você chegasse a ele, e não podemos dispensá-lo por tanto tempo da Cidade Química n° 4. Se você apenas porta o projeto de lei, é bastante improvável que seja um dia recebido; quem é você, perguntariam, para sugerir leis? O particular obedece às leis, não as elabora. Mas se Lavris tem o assunto nas mãos... Mas é necessário despertar-lhe o interesse. Você acha que o conseguiria?

— O pior que me pode acontecer é fracassar. Não estou me expondo a perigo nenhum.

No fundo eu sabia que seria bem sucedido; empregaria toda a minha habilidade nesta incumbência. Certamente Karrek notou isso em mim, quando me testou com seu olhar insinuante.

— Vá então. A licença estará aqui amanhã, como também as recomendações. Agora você pode voltar a seu trabalho.


 

 

 

 

Tivemos de esperar Tuareg. Quando se está acostumado a ter obrigações fixas a cada minuto, dia e noite, um tal espaço do tempo vago torna-se uma tortura incrível, mas tudo, inclusive o pior, tem sua compensação, e por fim nos encontrarmos face ao Ministro da Polícia, com a chance de mostrar-lhe para que servia a kalocaína. Nunca acreditaria ser necessário controlar-me tão violentamente para não tremer as mãos quando foram arregaçadas as mangas de um delinquente barbudo sentado na cadeira à minha frente, mas os pequenos olhos de urso de Tuareg me alfinetavam a nuca tão agudamente que eu quase me sentia sob a agulha da seringa. Enfim, tudo transcorreu bem. Em meio a uma série de circunstâncias difíceis, que fizeram o Ministro inclusive esboçar um sorriso com sua boca carnuda, o que tornou mais descontraído o ambiente, o interrogado confessou sem esquecer detalhes, não só o crime pelo qual fora acusado e ao qual até então se carecia de provas concludentes, como também uma série de outras transgressões, que cometera sozinho ou com outros. Informou nomes e circunstâncias sem vacilar. As narinas de Tuareg se dilatavam de satisfação.

Continuamos com outros. Rissen e eu aplicávamos alternadamente a droga, o próprio secretário do Ministro fazia o protocolo, e para testar-nos enviavam um ou outro cidadão-soldado inocente entre os demais – isto é, inocente quanto a transgressões à lei; em um sentido mais amplo, a palavra dificilmente conviria a qual quer que fosse, para evidente satisfação do Ministro de Polícia. Quando acabamos de examinar seis pessoas, em tempo excepcionalmente curto, Tuareg ergueu-se e declarou estar totalmente convencido. A kalocaína substituiria logo todos os outros métodos de investigação em todo o Estado Mundial, esclareceu ele. Esperava que reservássemos alguns dias para instruir alguns experts da capital; queria, além disso, antecipar que nossa missão, ao voltarmos para casa, seria a de ensinar a aplicação e o fabrico de kalocaína em grande escala nas Cidades Químicas. Deixou-nos com evidente bom-humor, e logo recebemos uma vintena de pessoas para serem instruídas. As cobaias permaneciam em uma longa fila ante a porta e esperavam, todos criminosos mantidos em prisão preventiva.

Já no dia seguinte fui chamado por Karrek e recebi ordens de deixar provisoriamente todo o trabalho para Rissen. Pôs-me na mão um considerável pacote de papéis, que consistia de licenças, recomendações e identificações diversas.

Esqueci de contar que a solicitação de uma nova campanha de recrutamento de cobaias voluntárias, que eu desfechara e expusera ante as diversas instituições da Cidade Química, fora totalmente subscrita em poucos dias. Trouxe comigo todas as assinaturas para entregá-las pessoalmente ao Ministro de Propaganda. Por uma questão de segurança, pedido conselhos a Karrek sobre como proceder, e ele deu-me ótimas indicações. Minhas excelentes recomendações certamente seriam também suficientes para o Terceiro Departamento, ao qual competiria uma tal campanha. Tomei então o metrô e saltei ante a monumental porta subterrânea do Ministério da Propaganda.

Já pela manhã eu me sentira atacado por um certo mal-estar, e o médico pessoal do Ministro da Polícia me prescrevera uma série de remédios, de modo que eu me encontrava num estado um pouco anormal. Provavelmente era esta a razão de minha inexplicável agitação ao solicitar audiência com Lavris, chefe do Sétimo Departamento. Em verdade, vindo da parte de Karrek, eu tinha maiores chances do que se agisse pessoalmente, visto que ele parecia especialmente interessado na promulgação da nova lei, por razões para mim desconhecidas. Mas mesmo em meu estado de excitação, senti que não agia por conta de Karrek, tampouco por conta própria. Minha ação era apenas um passo em direção ao desenvolvimento colossal do Estado, talvez um dos últimos passos antes que a perfeição total fosse atingida. Eu, uma insignificante célula do grande organismo estatal, por cima de tudo intoxicado, embora ocasionalmente, por diversas poções e drogas, estava em vias de desfechar um trabalho de limpeza que livraria o corpo estatal de todos os venenos inoculados pelos criminosos ideológicos. Quando, finalmente – após infindáveis formalidades, revistas de corpo, espera –, ergui-me para ser recebido no gabinete de Lavris, foi como se estivesse me dirigindo para minha própria purificação, de onde voltaria totalmente calmo e livre deste resquício associal, que eu não queria reconhecer nem tomar consciência, que não era meu, mas que repousava traiçoeiramente em meus recantos mais obscuros e que eu podia resumir em uma palavra: Rissen.

Nada distinguia o gabinete de Lavris de milhares de outras salas de trabalho, a não ser os vigias armados, dispostos aqui como junto ao Ministro da Polícia, que indicavam ser aquele que aqui trabalhava um dos valiosos e caros instrumentos do Estado. A mulher alta, de pescoço esguio, atrás da escrivaninha, com a pele repuxada na boca e um eterno sorriso irônico nas faces, era Kalipso Lavris.

Mesmo se sua idade não fosse indefinida e sua postura rígida como estátua de um deus antigo, em meu estado febril eu a veria apenas como semi-humana. Nem mesmo uma grande espinha que explodira no lado esquerdo de seu nariz e antingira sua madureza total não a desmerecia ante meus olhos. Não era ela a mais alta instância ética do Estado Mundial, ou pelo menos a força diretiva da mais alta instância ética, o Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda? Não se podia ler em suas faces afeições pessoais como em Tuareg, sua imobilidade não continha impulsos ocultos como a de Karrek, ela parecia-me ser a própria cristalização da lógica, purificada de todos os azares da individualidade. Isto era uma alucinação febril, mas ao mesmo tempo uma imagem bastante exata de Lavris, acho.

Eu já sabia antecipadamente que a alusão a uma nova legislação não podia ser feita abertamente, pois oficialmente o Sétimo Departamento nada tinha a ver com o assunto. Os vigias, com suas armas embaladas, lembravam-me ainda mais isso, sem que, no entanto, me importunassem. Minha missão era por demais necessária para que o Estado ou eu fracassássemos.

Eu nem imaginava o quanto me enredara com a questão da reprimenda. Enquanto se buscava minha ficha policial, tive de esperar em uma pequena sala de recepção por mais de duas horas, suponho. Mas devemos aprender, pensei, devemos aprender a esperar. O tempo acabou passando. Devo, no entanto, admitir que a ficha foi prontamente expedida, considerando-se o espaço imenso que deve ocupar tal fichário de todos os cidadãos-soldados do Estado Mundial. Embora eu jamais o tivesse visto, podia muito bem imaginar ser necessário pelo menos uma hora apenas para atravessas as imensas salas até aquela onde estava a ficha – por outro lado, obviamente, tudo precisava estar minuciosamente sistematizado para que não se precisasse procurar muito ao chegar-se lá – e fazer o mesmo caminho de volta. Suponho-se ainda que o fichário dificilmente se encontraria no Ministério de Propaganda, mas sim no de Polícia, podia-se estar contente com duas horas de espera.

Quando fui novamente admitido. Lavris estudava minha ficha – ficha é modo de dizer, pois mais parecia um pequeno livro encadernado – junto à qual estava uma delgada pasta com papéis que provavelmente continham instruções e deliberações sobre a questão de minha reprimenda. Era perfeitamente compreensível que ela tivesse esquecido completamente o caso, sobrecarregado como devia estar o Sétimo Departamento com as mais importantes denúncias e problemas de todo o Estado.

— Temos aqui o seu caso – disse Lavris, com sua voz surda e ao mesmo tempo sonora. – Consta de sua ficha policial que o senhor já pediu para apresentar sua autocrítica no rádio, embora ainda não tenha tido a oportunidade. Que é que o senhor realmente quer?

— Levei às suas últimas consequências as palavras: o desmascaramento dos últimos – os relutantes – é uma valiosa atitude para o bem do Estado. Descobri inclusive uma droga que torna possível desmascará-los mais minuciosa e sistematicamente que antes.

E falei da kalocaína tão entusiasticamente quanto pude.

— Agora – concluí –, basta apenas esperar-se por uma legislação da mais devastadora espécie até então conhecida pela história: a legislação contra idéias e pensamentos subversivos. Talvez demore ainda... Mas virá, certamente.

Ela pareceu não reagir à minha sondagem. Decidi experimentar a mesma isca que usara com Karrek.

— Qualquer um pode ser incurso nesta lei – insinuei, acrescentando após uma longa pausa: - Naturalmente, qualquer um que não seja leal até os ossos.

Lavris permaneceu silenciosa e pensativa. A pele pareceu repuxar-se um pouco sobre as saliências da face. Subitamente espichou uma mão longa e bem cuidada, apanhou delicadamente um lápis entre o indicador e o polegar e girou-o lentamente até a junta dos dedos ficarem brancas. Sem demonstrar concessões, levantou os olhos e perguntou:

— Era isto que o trazia aqui, cidadão-soldado?

— Sim, este era meu objetivo – respondi. – Chamar a atenção do Sétimo Departamento para uma descoberta que possibilita demonstrar a condenável relutância interna de cada um, embora esta ainda não se tenha tornado um crime perante a lei. Se tomei inutilmente o tempo deste Departamento, estou pronto para pedir excusas.

— O Sétimo Departamento lhe agradece por suas boas intenções – respondeu ela com uma impermeabilidade glacial.

Despedi-me e saí, cheio de dúvidas e sempre com febre.

Ao entrar cambaleante no Terceiro Departamento com minha lista de nomes, o relógio assinalou o fim da jornada e quase fui derrubado pelos funcionários que saíam precipitadamente. Um velho de ar azedo ainda permanecia sentado, concluindo alguns cálculos, e não vi outra solução senão dirigir-me a ele. Franziu o nariz, manteve seu mau-humor ante as recomendações, examinou as listas e disse:

— Mil e duzentos nomes, não? Todos com altos méritos científicos? Pena o senhor ter chegado tarde. Sua solicitação já foi atendida antes mesmo que o senhor pudesse apresentá-la. Não menos que sete outras Cidades Químicas nos enviaram o mesmo pedido, algumas há oito meses atrás. A campanha que o senhor deseja está sendo preparada intensamente para ser lançada.

— Nada me alegra mais que isso, disse eu um tanto decepcionado por não ter tomado parte pessoalmente nesta atitude meritória.

— Portanto o senhor nada mais tem a fazer aqui – disse o homem, e curvou-se sobre sua coluna de cifras.

— Mas não seria possível arranjar-me uma forma de participar dessa campanha – gritei, assaltado por uma súbita coragem causada talvez pela febre. Se estou comprovadamente interessado no assunto, por que não poderia participar dos preparativos? Tenho uma pilha de recomendações... Olhe aqui... E aqui... E aqui...

Olhou de lado, ora para meus importantes documentos, ora para suas colunas em branco; olhou depois com um suspiro para o último de seus colegas que desaparecia pela porta. Expulsar-me não ousava. Finalmente encontrou uma saída que lhe pareceu ser a mais rápida possível.

— Vou dar-lhe uma apresentação – disse, e escreveu algumas linhas a máquina, apanhou rapidamente um grande carimbo, o do Terceiro Departamento, calcou-o sobre o escrito e passou-me o papel

— Palácio dos Estúdios Cinematográficos às 20 horas hoje à noite. O que fazem lá não sei, mas sempre estão fazendo algo. Isto é suficiente. Ninguém me conhece lá, mas conhecem o carimbo. O senhor está satisfeito agora? Espero que não tenha feito nenhuma besteira...


 

 

 

 

Eu tinha quase certeza de que ele cometera uma besteira. Só alguns dias mais tarde fui saber que legalmente eu jamais teria tido acesso ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Era evidente ser necessária toda uma preparação, talvez uma educação totalmente diversa, para evitar o choque que eu recebi. Consequentemente, era também evidente que as autoridades competentes teriam resolutamente me negado a entrada. A impressão foi certamente um pouco destorcida em função de meu estado febril; mas tais distorções costumam passar rapidamente, e a comoção que experimentei à noite no Palácio dos Estúdios Cinematográficos deixou-me marcas por várias semanas.

Minha decidida permanência no mundo dos princípios teve fugaz existência. A frieza impecável de Lavris abalara minha confiança, talvez mais que tudo a fé em mim mesmo. Quem era eu para propor planos para salvar o Estado? Um homem doente e cansado, por demais doente e cansado para buscar refúgio em princípios éticos de impecável funcionamento, de surda e sonora voz. Lavris teria tido uma voz profunda, maternal, como aquela mulher da seita de loucos, teria consolado como Linda, teria sido uma mulher simples, comum... Neste ponto fui arrancado de minha semi-sonolência cansada e pulei do metrô. A apresentação do funcionário com o carimbo do Terceiro Departamento servira como licença, e sem saber exatamente como, lá estava eu diante da porta subterrânea que conduzia ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Na capital, todos os edifícios de grande importância tinham portas subterrâneas e acabou acontecendo que em toda minha viagem jamais tive a sorte de subir ao ar livre.

Quando insisti em meu capricho e solicitei que me fosse permitido participar dos preparativos, pensei que assistiria à realização de um filme. Seria muito interessante, e para meu estado, repousante, sentar mais ou menos comodamente para assistir à criação do filme. Mas eu me enganara. A sala onde fui introduzido era uma sala comum de conferências, sem refletores nem bastidores. Uma centena de espectadores lotava as cadeiras, nada mais. Interrogaram-me minuciosamente sobre quem eu era, examinaram todos os meus papéis e por fim me colocaram numa das últimas filas.

Fez-se o discurso de saudação. Deduzi que a reunião trataria de examinar em linhas gerais uma série de roteiros, apanhar as linhas gerais mais importantes para um trabalho satisfatório e fazer uma primeira triagem. Uma série de instituições se fazia representar, entre outros diversos departamentos do Ministério de Propaganda, comissões diretivas das instituições artísticas e o Ministério da Saúde. O Serviço Voluntário de Cobaias não estava representado, o que ninguém entendia melhor do que eu. Inicialmente foi saudado com boas-vindas o conferencista da noite, um psicólogo especializado na matéria, ao que tudo indicava. Eu o engoli com os olhos quando subiu à tribuna. Nós mal conhecíamos psicólogos na Cidade Química, exceto alguns poucos conselheiros dos acampamentos infantis e juvenis e os psicotécnicos que realizavam as provas necessárias quando os jovens eram sorteados para as diferentes profissões. Djin Kakumita era pequeno e delgado, cabelos esbranquiçados e movimentos vivos e bem estudados de mãos. Quando tento reproduzir o preâmbulo de seu discurso, palavra por palavra, sei muito bem ser impossível fazê-lo, pois longos trechos ficaram perdidos na memória. No entanto, creio que o quadro é bastante claro para que possa dar uma idéia do conteúdo principal.

— Cidadãos-soldados – começou. – Frente a mim tenho um grosso volume, que tem sua origem em não menos de 372 roteiristas. É impensável discutir-se um a um dos 372 manuscritos, alguns escritores deverão perdoar-nos. (Risos entre os assistentes: naturalmente nenhum desses subescritores, que por assim dizer produziam matéria-prima, eram convidados para o trabalho qualificado posterior). Em vez disso farei rapidamente uma crítica em linhas gerais, que será ao mesmo tempo o fio condutor do trabalho.

— Antes de mais nada, permiti-me dividir estas histórias em dois grandes grupos principais: as com final feliz e as com final infeliz. Como o objetivo é atrair e incitar, poderia se crer que as de final feliz seriam as mais adequadas. Não é este, no entanto, o caso, como provarei agora. Para quem o final feliz é atrativo? Para os apáticos, que no fundo, em suma, temem os sofrimentos e a morte, e não é a estes que nos dirigimos. Investigações psicológicas têm-nos levado a concluir que as cobaias recrutadas entre estes são em pequeno e cada vez menor número. Quando tais pessoas chegam à feliz conclusão, esquecem alegremente o próprio conteúdo do filme. Voltam para casa e dormem tranquilas, convencidas de que o herói e a heroína se saíram bem. Não se dirigem ao serviço de propaganda para se inscreverem. Sacrifícios com final feliz servem para os intervalos entre as campanhas, não para os períodos de campanha. Servem para acalmar e tranquilizar familiares e demais cidadãos-soldados quando estes se perguntam por filhos, irmãos, colegas que desapareceram no Serviço Voluntário. Tais filmes devem ser produzidos esporadicamente e sua influência deverá ser positiva; não devem apenas ter um final feliz, senão também um sólido enredo recheado de humor sadio, cenas cômicas, preferentemente com situações comoventes, mas não heróicas. Uma série de manuscritos apresenta uma feliz mistura de uma mentalidade desejável durante os intervalos e da que deve ser divulgada nos períodos de campanha mesmo.

— Os filmes que mais pessoas atraíram foram os com o assim chamado final infeliz. Digo o assim chamado, pois é sempre arbitrária a conceituação do que seja a mais alta felicidade para o indivíduo, arbitrária e eventualmente fria, pois a rigor nada deve ser considerado a partir do ponto de vista individual. Em todo caso, estou me referindo aos filmes em que o herói sucumbe. Em quaisquer circunstâncias podemos contar com uma certa porcentagem de cidadãos-soldados para os quais isto é, no fundo, a maior felicidade, principalmente se ocorre em holocausto ao Estado. É principalmente desta porcentagem que são recrutadas as cobaias voluntárias, e tenho razões para crer, razões que voltarei a comentar mais tarde, que esta porcentagem é bastante grande e nossos dias. Trata-se, pois, de despertar e excitar as tendências já existentes em cada um, e orientá-las no rumo certo.

— Em regra os heróis expostos ao ridículo são bastante difíceis de contentar quanto à escolha de suas ruínas. Deve-se apresentar um que fascine. Antes de mais nada deve-se evitar rigorosamente todas essas doenças e formas de morte que têm em si algo de ridículo. Estados nos quais a cobaia torna-se um trapo, sem condições de manter a dignidade, nem poder dominar-se, sem condições de auxiliar-se a si mesmo nas necessidades biológicas mais elementares; não condenáveis em filmes deste tipo. Para filmes de períodos intermediários – perfeitos! E neste caso, com final feliz e reforço no lado cômico. Mas os sofrimentos que atraem heróis devem ser

a) dignos de serem vistos, e

b)adequados.

— A aspiração de sentir-se como instrumento exclusivo de um objetivo mais alto é um instinto com que se pode contar ilimitadamente nos tipos de herói com que até agora mantive contato. Ninguém pode seriamente acreditar que sua vida tenha um valor em si mesma. Se falamos do valor de uma vida, este valor evidentemente será algo que está fora do indivíduo. Qual dia, qual momento de nossa vida, ousamos interpretar como estas noções sobre a insignificância da vida individual em si mesma tem sua correspondência em uma cada vez mais profunda consciência das insondáveis exigências do Mais Alto Objetivo, isto é, do alvorecer da consciência do Estado nos cérebros dos cidadãos-soldados. Este sofrimento que o filme apresenta deve conter um benefício supra-individual demonstrável como objetivo – não deve ser uma pessoa que se salva com a morte do herói, pois então ele podia perfeitamente ter salvo a si mesmo! – nem mesmo uma pequena quantidade, senão milhares, milhões, de preferência todos os cidadaõs-soldados do Estado Mundial.

Um subcapítulo desta adequação é:

c) o glorioso da morte que se apresenta. Com isto não quero afirmar que o herói deva colher a glória de seus atos; isto baixa o nível dos filmes e pouco influencia as naturezas verdadeiramente heróicas. Pelo contrário, ele deve ser salvo de uma profunda desonra íntima. Contra o herói contrapomos notadamente o vilão, associal e com motivações egoístas, o homem que não resiste às tentações e se esquiva da dor e da morte. Mortalmente feio ou antipaticamente descuidado na aparência, flácido e indisciplinado, ele deve percorrer o enredo todo como um paralelo de advertência, no entanto jamais tão exageradamente apresentado a ponto de picar como uma agulha as consciências mais sensíveis: você, espectador, não será assim, por acaso? O temor de ser covarde, desonrado, interiormente feio, é geralmente uma intensa força de atração nos tipos heróicos que descrevi, os quais devemos ter em vista antes de tudo em nossa campanha.

— Muito poucos são os manuscritos em meu poder que preenchem todas as rígidas exigências que acabei de apresentar. A continuação de nosso trabalho será bastante instrutiva: o material será dividido entre vários estúdios, triado e criticado segundo as linhas de orientação de que falei, e o que puder ser utilizado será remodelado, melhorado, polido, até que reste um número relativamente pequeno de proposições, mas totalmente satisfatório. Este trabalho deverá estar pronto em quatorze dias, quando nos reuniremos novamente para examinar juntos o resultado. Devo agora agradecer a palavra, esperando uma viva discussão.

Desceu da tribuna. Eu me sentia terrivelmente mal, embora não soubesse dizer exatamente por quê. Estava seguro de que todos viam o psicólogo como alguém que inspirava confiança ao falar dos cidadãos-soldados como um técnico meticuloso fala de mecanismos sofisticados, que todos eram transportados por sua superioridade e de que ele, pessoalmente, julgava-se acima da máquina, manipulando os controles. Mas, dependesse ou não da febre, eu conservava sempre viva a imagem de minha primeira cobaia, n° 135, e de seu único grande momento, que eu invejava. Podia desprezar n° 135 tanto quanto quisesse, podia maltratá-lo em pensamentos ou na realidade, mas enquanto o invejasse, não podia jamais concebê-lo como o engenheiro a sua máquina.

A discussão começou. Alguém indicou a importância de se apresentarem heróis jovens em vários filmes para cativar a juventude. Não que fosse desejável contar-se com cobaias mais jovens. A estatística mostrava que uma cobaia suportava em média um determinado número de anos, independentemente da idade em que começara a ser utilizada, e podia-se inclusive afirmar ser indiscutivelmente mais vantajoso que o Estado primeiro o utilizasse durante alguns anos em outra profissão e depois (durante esse número estatístico de anos) no Serviço Voluntário, em vez de utilizá-lo apenas durante estes últimos anos. Mas uma razão pesava mais: os jovens eram mais facilmente influenciáveis. O casamento e o dia-a-dia tomado pelo trabalho influenciavam desfavoravelmente o número de inscrições. Evidentemente, existiam em todos os grupos e faixas etárias pessoas solitárias, que perambulavam famintas de algo, embora não soubessem precisamente de quê. Quando a assim chamada felicidade e a assim chamada vida as decepcionavam, estavam prontas para uma busca no sentido oposto, pois talvez então tivessem melhor sorte. Tais seres não deviam ser esquecidos. Mas a idade juvenil – antes de mais nada uma faixa etária cuidadosamente escolhida – era a idade da solidão e das decepções por excelência – ou talvez apenas a temerária idade da solidão e das decepções? – e consequentemente devia ser a idade mais visada pela campanha.

Um outro sublinhou as palavras do último orador e acrescentou que a idade jovem tinha mais vantagem em relação à madura: como tais volumes de inscrições afluíam dos acampamentos juvenis após cada campanha cuidadosamente preparada, tinha-se condições de fazer uma triagem. Não havia sentido algum em aceitar todo e qualquer inscrito. Muitos tinham tais dotes que o Estado tiraria o melhor proveito de seus cérebros que de seus tecidos e órgãos. Disto concluía-se que a idade mínima não deveria ser muito baixa. Antes dos quinze ou dezesseis anos era geralmente arriscado julgar-se suas possibilidades genéricas e especiais de utilização.

O orador seguinte apresentou objeções contra este último e afirmou que, já desde os oito anos, podia-se distinguir alguma capacidade especial que merecesse ser cultivada ou não, e que muito bem se podia baixar a idade mínima de inscrição para oito anos, e por que não, inclusive rodar alguns filmes especialmente elaborados para influenciar crianças nessa idade? Contra este objetou um outro que, por um lado, conheciam-se muitos exemplos de capacidades de grande proveito que não se manifestavam senão em idades posteriores; por outro lado, um tal apelo em relação à idade infantil não teria significação suficiente para justificar os custos de produções extras. Algo seria evidentemente economizado, uma vez que as crianças eventualmente inscritas não necessitariam de instrução especial, mas por outro lado, as tendências heróicas desta espécie não se manifestavam seriamente antes da puberdade.

Um outro afirmou a importância de não lançar filmes com intervalos por demais longos. Em verdade, não se necessitava exercer grande pressão para provocar estas inscrições. Um certo impacto era suficiente para produzir uma influência tão forte quanto violenta e significativamente menos perigosa a longo prazo. De preferência, forçar uma rápida decisão: agora ou nunca – tome-se a decisão em determinado tempo ou será tarde demais para decidir! A angústia que geralmente surge em definidas situações críticas da vida se intensifica diante da rápida opção e conduz à direção certa, se a propaganda foi bem dirigida.

Alguém agradeceu pelo último ponto de vista e acentuou que esta angústia que, por vezes, se intensifica em cada cidadão-soldado podia tornar-se uma riqueza incalculável para o Estado, desde que manipulada por psicólogos experientes. Ao ser usada, por assim dizer, como estímulo para uma decisão, não se constatou mal algum que a decisão fosse tomada um tanto precipitadamente. Esta decisão aumentava a sensação de alívio e alegria extasiante dos primeiros inscritos e conduzia novos a se inscreverem em maior quantidade ainda. Inscrições irrevogáveis ultrapassavam o objetivo que se pretendia; o orador julgava inclusive serem excessivos os dez anos obrigatórios. Alcançava-se o mesmo efeito com menores dificuldades, estabelecendo-se a validade da inscrição por cinco anos. Após este período, a cobaia quase não tinha mais juventude, força e possibilidades de seguir um novo rumo. Com uma propaganda bem elaborada podia-se evitar toda violência e consequentemente toda oposição.

Lembre-se de que eu estava doente. De outra forma não se explica que tenha me levantado e pedido a palavra. N° 135 não havia estranhamente cessado de assombrar meus pensamentos. Enquanto o tinha em mãos, fiz tudo para humilhá-lo, mas agora pareceu-me que devia defendê-lo.

— Quero fazer uma observação ao modo como os senhores tratam nossos cidadãos-soldados como mecanismos – disse eu lentamente, tateante. – Isto me parece ser uma falta de consideração... De respeito...

Faltou-me a voz, senti que a cabeça girava a ponto de não poder enunciar perfeitamente as palavras.

— De forma alguma! – gritou um dos oradores anteriores, ríspida e impacientemente. – Que insinuações são essas? Ninguém valoriza mais do que eu o tipo heróico. Como não iria saber o quão necessários são para o Estado – eu, que dediquei longos anos de minha vida a estudar exatamente esse tipo e suas condições! O senhor acha que talvez eu tenha feito isso por julgá-los inúteis? E o senhor ainda fala em falta de consideração!

— Bem, bem – respondi confuso –, consideração pelo resultado... Mas... Mas...

— Mas o quê? – perguntou meu oponente quando silenciei. – Para o que não tenho consideração?

— Nada – respondi abatido e sentei-me. – O senhor tem razão. Enganei-me e peço desculpas.

Constatei, suando frio, que havia me contido no momento exato. Que pretendia eu dizer? “Vocês não têm consideração para com o n° 135?” Belos pontos de vista! Tendências individualistas escondidas sob a superfície. Senti medo de mim mesmo.

Não, não de mim mesmo! Não era eu, este que eu repudiava e lutava contra. Não era eu. Era Rissen.

Durante um longo momento nada ouvi do que acontecia em torno de mim, tão nervoso estava pelo perigo que evitara. Quando finalmente consegui concentrar-me, Djin Kakumita estava na tribuna. Falava já há algum tempo, pelo que pude perceber.

— Este por assim dizer tipo heróico passivo torna-se cada vez mais solicitado pelo Estado nos dias que correm. São imprescindíveis não apenas no Serviço de Cobaias, mas também como recrutas, reprodutoras e fornecedoras de crianças para o Estado e em milhares de outros pontos. Especialmente aguda se torna esta necessidade nos tempos de guerra, quando cada cidadão-soldado deve integrar este grupo. Por outro lado, é claro para qualquer um, não ser desejável que ocupem posições de liderança, onde se exige olhar frio e objetivo, rápido espírito de iniciativa e energia sem escrúpulos. Podemos então situar assim o problema: como se pode, em caso de necessidade, aumentar a presença deste mais nobre de todos os tipos, desta alma solitária e desesperada de herói, decepcionada com a vida e inclinada para o sofrimento e a morte?...

Eu me sentia muito mal e decidi deixar a sala. Como era estranho ao meio e não pertencia a nenhum dos grupos de trabalho, isto a rigor não tinha importância alguma. Com passos lentos e silenciosos, tentando atrapalhar o menos possível, cheguei furtivamente até a porta, onde mostrei ao vigia meus papéis e expliquei, sussurrando, meu estado. Em meio às explicações fui interrompido por um homem alto e moreno, em uniforme policial-militar com patente bastante alta. Vinha de fora e queria entrar na sala nestas horas já tardias da noite. Mostrou um papel ao vigia, que não só lhe permitia a passagem como também o conduziu imediatamente até a sala, de forma que pudesse passar sem problemas para o corredor. Lá dentro ouviu-se uma voz baixa e firme, embora eu não pudesse ouvir o que dizia, e, ao calar-se um murmúrio cresceu no auditório.

O vigia voltou ao seu posto, e não pude deixar de perguntar do que se tratava.

— Ssssst – sussurrou, olhando em volta. – Já que o senhor participa da reunião, cidadão-soldado, posso contar-lhe. A produção de filmes publicitários para o Serviço Voluntário de Cobaias foi suspensa. Todas as forças são necessárias em outro ponto. O senhor compreende o que isto significa, e eu também compreendo, mas nenhum de nós tem o direito de compreendê-lo em voz alta...

Expressar-se assim já era compreender em voz alta, mas não me preocupei em censurá-lo, senão tratei de tomar logo o elevador, cansado como estava. Mas ele tinha razão. Eu entendera muito bem o que a interrupção significava. O Estado Mundial estava à sombra de uma nova guerra.


 

 

 

 

Meu desejo de aventura fora satisfeito. Minha vivência na capital fora múltipla e instrutiva o suficiente para que eu jamais a esquecesse: a prova de fogo da kalocaína diante de Tuareg, minha visita ao Sétimo Departamento e por fim a discussão psicológica dos filmes, para a qual eu não estava maduro. De fato, eu não estava realmente maduro para assisti-la. Persistia em mim e me devorava como um mau secreto. No entanto eu nada tinha a objetar contra afirmação alguma – as afirmações puramente psicológicas eu tinha de deixar para exame dos especialistas – e me envergonhava terrivelmente cada vez que pensava em meu ataque incompetente e idiota. Desde uma vez que percebia perfeitamente o equívoco, porque continuava então a torturar-me? Eu jamais ouvira ser conceituado tão clara e objetivamente o valor da contribuição dos cidadãos-soldados – e, no entanto, sentia-me como se o tormento de existir tivesse se tornado imenso e o sentido do conjunto infinitamente pequeno. Sabia ser esta uma visão falsa e malsã das coisas, e tentei convencer-me a mim mesmo com todos os argumentos possíveis. Mas para este vazio deserto que se alastrava em mim, não havia outro nome senão ausência de sentido.

Seria lindo, pensei aterrorizado, se algum policial brincalhão, ou mesmo Rissen, me tomasse a seringa das mãos e a cravasse em meu próprio braço. Não era difícil imaginar o que o Sétimo Departamento diria de meu estado de espírito. Bastava que Rissen tivesse autoridade para tanto, e provavelmente se dedicaria com prazer a desmascarar-me, e a buscar provas para sua afirmação: “nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa”. Não era isto o que ele desejava o tempo todo? Não fora ele quem me fizera chegar a este ponto, com suas insinuações pérfidas? O homem era um perigo para mim e para todos. O pior de tudo era imaginar até onde ele teria conduzido Linda à ruína, e se estavam aliados contra mim, os dois.

Tudo isto permanecia sob a superfície e fermentava. Exteriormente eu tinha muito a fazer para que pudesse dedicar meu tempo a elucubrações. Tuareg já havia dado ordens para que os procedimentos judiciais comuns fossem substituídos pelo exame com kalocaína, e gente de todo o Estado Mundial já fazia filas para participar de novos cursos que estávamos organizando. Fomos transferidos – até nova ordem, diziam – para o serviço policial e recebemos instalações na Casa de Polícia. Karrek enviou todos os prisioneiros diretamente a nossas salas de aula, para que fossem ao mesmo tempo interrogados a fundo e servissem como material de experiências; por isso sempre estavam presentes um alto policial ou militar como juiz, e o protocolo era redigido tanto pelos secretários de polícia como pelos secretários à disposição do curso.

Evidenciou-se logo que o trabalho crescia a ponto de sufocar-nos. Tínhamos de aceitar mais gente no curso do que seria conveniente, e mesmo assim muitos tinham ainda de esperar. Tampouco tínhamos tempo para examinar todos os prisioneiros que chegavam. Tivemos de apressar cada caso e inclusive de encurtar em meia hora a pausa para almoço.

O trabalho das cortes de justiça sempre foi – pelo que se pode lembrar – secreto; eu não dispunha por isso de elemento algum de comparação. Quase todos os interrogados fraquejavam, arrasados e destruídos – sem razão, podia-se quase pensar, após centenas de contradições de cidadãos-soldados mais ou menos estranhos – e, no entanto, suas revelações eram muitas vezes tão ridículas e insignificantes, do ponto de vista judicial, que se começou a duvidar se o sistema todo compensava seu custo. Surgiram ainda dificuldades com a kalocaína, que era fabricada em quantidades cada vez menores nos laboratórios.

Certa vez discutimos a questão durante o almoço. (Nós, isto é, Rissen, eu e todos os participantes do curso, tínhamos reservado uma longa mesa no grande refeitório, onde também comia o pessoal auxiliar da Casa de Polícia. Como sempre havíamos trabalhado a todo vapor pela manhã, o ar estava mais úmido e quente que o normal e, para cúmulo de tudo, dois dos ventiladores de nossa sala haviam feito greve. Alguém reclamou em voz alta das muitas denúncias ocasionadas por ninharias e mesmo por nada.

— As denúncias aumentaram ininterruptamente durante os últimos vinte anos – disse Rissen. – Sei isso do próprio chefe de polícia.

— Mas isto não significa necessariamente que a criminalidade tenha aumentado – disse eu. – Pode muito bem ser que a lealdade tenha aumentado, a sensibilidade para descobrir onde está a podridão...

— Isto significa que o terror aumentou – disse Rissen, com inusitada energia.

— Terror?

— Sim, o terror. Encaminhamo-nos para uma vigilância cada vez mais rígida, e isto não nos traz mais segurança como esperávamos, mas sim angústia. Quando uma fera se sente ameaçada e não vê senda por onde fugir, passa ao ataque. Quando o terror se espalha entre nós, nada há para fazer senão golpear primeiro. Isto é difícil, quando nem sabemos onde golpear... Melhor prevenir que remediar, não diz assim o velho ditado? Golpeie-se com suficiente profundidade e precisão, talvez seja possível salvar-se. Exista uma velha história de um espadachim tão preciso que conseguia manter seco sob a chuva: golpeava as gotas que caíam com sua espada, de forma que nenhuma o atingia. Devemos esgrimir mais ou menos assim, agora que chegamos ao grande Terror.

— O senhor fala como se todos tivessem algo a esconder – respondi, ao mesmo tempo em que ouvia quão falsas soavam minhas palavras, quão pouco convenciam.

Embora não quisesse acreditar nele, contra minha vontade vislumbrei algo que me aterrou. Se apesar de tudo ele tivesse razão, e se minha missão junto a Lavris surtisse efeito, se não apenas palavras e atos como também pensamentos e sentimentos fossem devassados e julgados – então, então... Como formigas rastejantes em um formigueiro, todos cidadãos-soldados se poriam em movimento, não como formigas para trabalhar em conjunto, mas sim para prevenir-se contra os demais. Eu os via formigar: colegas delatando colegas, maridos delatando esposas e esposas delatando maridos, subordinados delatando chefes e chefes delatando subordinados... Rissen não podia estar certo. Eu o odiava pelo seu poder de impor-me seus pensamentos. Mas tornei-me calmo ao pensar em quem seria o primeiro delatado, se a nova legislação se tornasse realidade.

Alguns dias mais tarde chegaram ordens de Karrek para que o curso fosse dividido. Os interrogatórios judiciais seguintes com as aulas paralelas seriam dirigidos por Rissen, com o auxílio dos mais avançados participantes do curso. Quanto a mim, passaria a dirigir um curso especial de química para que mais tarde pudesse iniciar a fabricação de kalocaína em grande escala.

Entendi logo tratar-se de um caso de necessidade. Além disso devia estar satisfeito em poder voltar a trabalhar em química. Mesmo assim a ordem deixou-me irritado e decepcionado.

Enfim, as coisas transcorreram deste modo:

Entre as pessoas por nós interrogadas tivemos tempo todo o mesmo homem velho da seita de loucos, do qual falei antes e que surgira antes de nossa viagem à capital. Por acidente, seu caso havia sido suspenso – ele adoecera e não melhorara senão agora – e constava da ordem do dia seguinte, exatamente quando eu começaria meu novo curso de química. Surpreendi-me e até quase me assustei, ao notar o quão decepcionado estava por não presenciar aquele interrogatório. Devo perguntar-me a mim mesmo se esperava algo ao estilo daquela mulher que me causara tão profunda impressão – se desejava expor-me novamente a semelhantes influências perigosas. Em verdade eu não necessitava prender-me a tão degradantes motivações. Meu interesse se referia certamente antes de mais nada à trama que Karrek ordenara que destrinchássemos – eu queria saber que espécie de cerne se ocultava sob todas aquelas loucuras. O aspecto inteligente do homem indicava que ele poderia estar mais profundamente iniciado nos íntimos segredos da reunião do que qualquer outro que havíamos encontrado antes. Eu desejava intensamente estar presente ao desmascaramento, principalmente por suspeitar que Rissen alimentava simpatias em relação à seita. Existe de fato um interesse negativo, disse a mim mesmo, que nada tem a ver com o positivo. E este era meu interesse para com os loucos, como também para com Rissen.

Embora fosse constrangido a obedecer ordens, não perderia de forma alguma o caso de vista, prometi a mim mesmo.

— Permita-me perguntar se aquele homem doente foi examinado hoje – perguntei, no dia seguinte, durante o almoço.

— Sim, foi interrogado hoje – respondeu Rissen com breviedade.

— E que surgiu à tona? Algo criminoso?

— Foi condenado a trabalhos forçados.

— Condenado por quê?

— Supõe-se que ele é subversivo.

Impossível extrair de meu chefe de controle algo sólido e tangível. Não vi nenhuma outra saída senão pedir para ver o protocolo.

— Quanto a isto não tenho instrução alguma que o permita ou proíba – disse Rissen. – Isso é com o chefe de polícia.

Karrek não pôs dificuldade alguma, quando lhe pedi permissão por telefone. Na primeira noite livre fui até a Casa da Polícia, onde Rissen me esperava para abrir o arquivo e entregar-me o documento. Era o protocolo do curso (o da polícia se encontrava em outro lugar, não sei onde), e bastante detalhado. Eu tinha de lê-lo no local, e inicialmente irritei-me com o fato de Rissen ter trabalhos a executar exatamente naquela noite. Compreendi que ele queria dar informações e esclarecimentos, e eu não os desejava.

Mal comecei minha leitura, mudei de idéia. Já que ele em todo caso se encontrava a mão, eu podia muito bem fazer-lhe algumas perguntas.

— Sobre isto eu gostaria de ter maiores detalhes – disse eu. “O interrogado começou a articular estranhas canções”. Que quer dizer isto? Por que estranhas?

Rissen sacudiu os ombros.

— Eles são assim, respondeu. Não se assemelham a nada que eu tenha ouvido falar antes. Palavras obscuras, apenas parábolas e imagens, acho eu, e melodias, e não consigo imaginar como algum soldado no mundo poderia marchar ao som delas... Mas me causaram uma tal impressão que dificilmente algo já me causou.

A voz vibrava tão claramente que suas modulações quase me atingiram também. Jamais deveria ter ido lá. Devia estar prevenido por aquela voz quente de mulher, que falara sobre o orgânico e depois sempre me acenava com o mais profundo de todos os repousos. Ela tornou-se novamente viva para mim, e invadiu-me como algo injusto, traiçoeiro e demoníaco, como um vírus que se propaga não apenas em primeira mão, mas também em segunda – do homem desconhecido, que eu não ouvira cantar, até mim, como um eco da voz de Rissen.

— O senhor poderia dar-me alguma noção dessas canções? – perguntei vacilante. – Poderia repeti-las?

Mas ele sacudiu a cabeça.

— Eram estranhas demais. Apenas me anestesiavam.

Continuei lendo, esforçando-me para escapar daquela influência, que eu odiava.

— O senhor concordará que isto é criminoso – disse eu. – Pelo que sei, todas as informações geográficas e boatos são puníveis. Veja isto: uma cidade inabitada, em ruínas, em um lugar inacessível! Uma cidade desconhecida à qual não se pode chegar! Pelo que vejo, ele não conseguiu dar a posição exata, mas difundiu estas indicações!

— Quem pode saber se existe, ou não, essa cidade deserta! – respondeu Rissen dubitativo. – Ele declarou que ela só era conhecida por alguns poucos eleitos, que alguns deles moravam entre as ruínas. Isto não deve passar de uma lenda!

— Seja como for, uma lenda criminosa, pois apesar de tudo é um boato geográfico. Se existe atualmente uma tal cidade deserta, e se ela, como ele diz, origina-se nos tempos anteriores à Grande Guerra e ao Estado Mundial, e se ela foi realmente destruída por bombas, gases e bactérias, como poderia alguém ousar permanecer lá, mesmo sendo um louco? Se lá existissem possibilidades de vida humana, há muito o Estado teria se apossado dela.

— Se você olha um pouco mais adiante no protocolo – disse Rissen –, poderá ver então que a cidade é cheia de perigos por toda parte; aqui e ali se diz serem as próprias pedras e areia contaminadas de exalações venenosas, colônias e bactérias mantêm-se vivas nos buracos e fissuras, em suma, cada passo é um risco. Mas como você também pode ver, ele declarou existirem fontes de boa água, terra fértil para o cultivo de plantas comestíveis, e que os habitantes conhecem os caminhos seguros e esconderijos e vivem em amizade e ajuda mútua.

— Estou vendo, estou vendo. Uma vida miserável e insegura, cheia de angústia. Mas a lenda é edificante. Assim deve ser a vida, uma constante angústia e perigo, quando se foge da grande comunidade, o Estado.

Calou-se. Continuei a leitura sem deixar de balançar a cabeça e suspirar desalentado.

— Uma lenda! Uma história sobre algo que não existe! Restos de uma cultura morta! Naquela cratera deserta infestada de gases eles conservaram os restos de uma cultura morta anterior à Grande Guerra! Tal cultura não existe!

Rissen voltou-se ligeiro para mim.

— Como podemos estar seguros disso?

Olhei-o surpreso.

— Mas isto nos foi ensinado quando éramos crianças. Não se pode imaginar algo que mereça o nome de cultura na época civil-individualista. Uma pessoa lutava contra a outra, grupos contra grupos. Forças valiosas, braços fortes, cérebros excelentes eram desperdiçados, jogados ao lixo por um adversário, roubados ao trabalho, perecendo sem utilização nem sentido... Chamo isto de selva, não de cultura.

— Eu também – assentiu Rissen seriamente. – Mas no entanto... Não é impossível imaginar-se um veio subterrâneo, quase seco, esquecido, que ressurge agora em plena selva.

— Cultura é vida social – respondi secamente.

Mas suas palavras punham minha fantasia em movimento. Lá estava eu curvado sobre o protocolo tentando convencer-me de que ali me sentava como juiz e crítico. Em verdade minha ávida fantasia buscava no mais longínquo, no mais ignoto, algo que pudesse libertar-me do presente, ou dar-me a chave para dominá-lo. Mas eu ainda não entendia isto.

Um ponto do protocolo causou-me um verdadeiro choque. O homem repetira uma tradição de que as raças do outro lado das fronteiras teriam uma vez feito parte de certos povos fronteiriços do Estado Mundial. A região teria sido dividida em duas durante a Grande Guerra, e o povo também.

Eu estava indignado.

— Esta é demais, esta sobre os povos fronteiriços – disse eu com voz que vibrava de justa fúria. – É imoral e ao mesmo tempo anticientífica.

— Anticientífica? – repetiu ele, distante.

— Sim, anticientífica! O senhor certamente não ignora, meu chefe, que nossos biólogos julgam estar definitivamente provado que nós, do Estado Mundial, e aqueles outros seres do outro lado das fronteiras temos origens completamente diversas, diferentes como o dia e a noite, sim, tão diferentes a ponto de que podemos nos perguntar se os “povos” além-fronteiras podem ser chamados de seres humanos.

— Não sou biólogo – respondeu evasivo. – Nunca ouvi falar disso.

— Sinto-me contente pela oportunidade de informar-lhe. As coisas são realmente assim. Nem preciso explicar por que esta tradição é imoral! O senhor pode imaginar as consequências de uma guerra de limites. É o caso de se perguntar se toda essa seita de loucos, com ensinamentos, costumes e filosofia de vida, não será um método do Estado vizinho na tentativa de minar nossa segurança, um detalhe entre os muitos do bem montado aparelho de espionagem de que eles parecem dispor.

Após um longo silêncio, Rissen disse finalmente:

— Ele foi condenado mais por uma questão de tradição.

— Espanta-me que não tenha sido condenado à morte.

— Ele era um profissional competente no ramo de fabricação de tintas, onde há falta de pessoal.

Não respondi. Senti que sua simpatia tendia para o criminoso. Mas não podia perder a oportunidade de um sarcasmo:

— Então, meu chefe, o senhor não está alegre agora que finalmente chegamos ao cerne da coisa e sabemos onde situar nossa simpática seita de loucos?

— Creio que é dever de um legal cidadão-soldado estar alegre – disse ele ironicamente, talvez sem a intenção de que a ironia fosse notada. – E posso agora fazer-lhe uma pergunta, cidadão-soldado Leo Kall: você está totalmente seguro de que lá no fundo não lhes inveja a cidade deserta e infestada de gases?

— Que não existe – respondi rindo. Estaria Rissen em seu perfeito juízo? Se isto era uma brincadeira, era de mau gosto e não tinha alvo.

Mesmo assim sua pergunta me atormentou por longo tempo, como muitas outras palavras suas me atormentavam, como a vibração expressiva de sua voz me atormentava, como o homem todo, risível, capcioso e civil, me atormentava.

Repeli com todas as minhas forças a idéia da Cidade Deserta, o que não era difícil, pois era inviável e repulsiva. Repulsiva e ao mesmo tempo fascinante. Repugnava-me acreditar em uma cidade, mesmo que estivesse em ruínas, infestada por gases e bactérias, mesmo que os indivíduos associais que lá buscavam seus miseráveis refúgios rastejassem por entre as pedras, tomados de angústia e terror, vitimados de quando em quando pela morte traiçoeira – mas ainda assim uma cidade que o poder do Estado não alcançava, uma região fora da comunidade. O fascinante da idéia – quem poderá dizer em que consistia? Superstições são em geral fascinantes, pensei com raiva. São como um estojo, onde conservamos como jóias nossas tentações enganosas: uma voz profunda de mulher, uma vibração numa voz masculina, um momento que jamais foi vivido, de abandono total, um sonho mau em uma confiança pessoal sem limites, uma esperança de sede saciada e repouso profundo.

Eu não tinha defesas contra minha curiosidade. Não ousava perguntar a Rissen sobre a sorte futura da seita de loucos, da qual me mantinha afastado. Temia que ele vislumbrasse um interesse em minhas perguntas maior do que o que realmente tinha. Eu apenas ousava fazer curtas observações irônicas durante o almoço. Rissen respondia breve e asperamente. Eu dizia, por exemplo:

— Aquela altamente inviável Cidade Deserta... Continua existindo na lua? Certamente não tem ainda existência terrestre?

E ele respondia

— Pelo menos até agora ninguém pôde localizá-la.

Ao levantar subitamente o olhar, encontrei seus olhos por um segundo. Ele os baixou imediatamente, mas tive tempo de ler neles uma pergunta contundente: “você está totalmente seguro de que lá no fundo não lhes inveja a cidade deserta infestada de gases?” Ele teria prazer em encontrar em mim tal tipo de inveja. Embora me tivesse forçado a iniciativa, era no entanto como se ele fosse o agressor e tentasse empurrar-me à submissão. Amaldiçoei minha curiosidade doentia.

Consegui uma informação mais, desta vez não de Rissen, mas de uma participante do curso, inclusive sem que eu perguntasse. Ela falou algo sobre uma coleção de escrituras, da qual os prisioneiros haviam falado – um volumoso maço de papéis com sinais que representariam sons, mas que em nada se pareciam a nossas letras. Lembravam mais corpos de pássaros atrás de grandes transversais, ao que parece. Ninguém conseguia decifrá-los, nem mesmo os furtivos habitantes da Cidade Deserta, embora conservassem coleções fabulosas de tempos há muito idos. Eu estava quase certo de que existia alguma música naqueles sinais – podia ser também que tudo fosse um blefe – provavelmente uma música primitiva e bárbara. Mesmo assim nutria uma esperança quase selvagem de vê-los um dia interpretados – um sonho idiota, que jamais se realizaria, nem para mim nem para nenhum outro. E mesmo que o conseguissem – num conjunto de marchas não pode existir sentido algum. Como se poderia encontrar nelas auxílio ou solução para algum problema?

Durante esse tempo minha vida era dura e vazia. Linda e eu nos havíamos distanciado tanto um do outro que nem valia a pena gritar. Felizmente andávamos tão ocupados que raramente nos encontrávamos.


 

 

 

 

Algum tempo depois fui chamado por Karrek em minha noite livre.

Eu transpirava ao sentar-me no metrô com minha licença de visita no bolso. Karrek tornara-se um dos pontos de apoio de minha existência. Nele nada havia da doença contagiosa que assustava e atraía em Rissen.

Karrek recebeu-me no quarto, enquanto sua esposa lia sob uma pequena lâmpada na sala de estar. (Não tinham filhos). No quarto a iluminação era também escassa – o que se tornava cada vez mais comum, por economia – e isto não me permitia perscrutar os traços do chefe de polícia, mas em seus movimentos notei algo de anormal que me inquietava, sem que soubesse o que era. Mal ficava um minuto calmo, estava-se, levantava-se novamente e media o soalho com passos por demais longos para o pequeno recinto. Quando era interrompido pela parede, batia com os dedos nela como se quisesse remover o obstáculo.

Quando começou a falar, notei a mesma vivacidade anormal na voz: era exaltada, exuberante quase, e ele pouco se preocupava em esconder seu estado de espírito.

— Então, que diz você agora? – começou. – Vencemos, eu e você. Lavris deve ter convencido Tatjo a promulgar aquela lei contra pensamentos hostis ao Estado. Estará em vigência inclusive a partir de amanhã. Depois, sim, depois é que começará tudo.

Por um momento senti-me paralisado ante a idéia de que isso havia realmente acontecido e de que o dia fatal estava tão próximo. Isto era para ele uma evidente alegria. Meus lábios, pelo contrário, tremiam tanto que necessitei de grande esforço para controlar-me, quando respondi:

— Isto foi realmente uma atitude das mais judiciosas, meu chefe. Às vezes gostaria que não tivesse acontecido. Não me interprete mal, falo por motivos puramente práticos. Pelo menos me parece já existir bem mais sujeira a eliminar do que o Estado teria condições de fazê-lo. Estamos trabalhando horas suplementares. Isto só poderá ser remediado tão logo tenhamos formado mais auxiliares. Mas o que acontecerá com as novas denúncias? Não podemos enviar dois terços da população ao trabalho forçado!

— Por que não? – disse Karrek alegre, batendo com os dedos na parede. – A diferença não é das maiores, e o orçamento salarial seria menor. Mas falando sério, chegaram queixas do chefe do Tesouro, e isto deve estar acontecendo em toda parte. Por óbvias razões financeiras, teremos de fazer uma triagem das denúncias. Ninguém mais será preso se o denunciante não deixar um minucioso relatório escrito das razões de suas suspeitas. Isto já seleciona. Em seguida nos dedicaremos apenas a cidadãos-soldados mais preeminentes. Devemos dirigir toda a nossa atenção à segurança do Estado, compreende? Cargos subalternos serão investigados a pente fino mais tarde, no futuro, e a vez do furto, roubo e crimes privados menores virá por último. Devemos triar, triar, triar, mas isso pouco importa, pois já dará trabalho suficiente.

Recomeçou seu vaivém e explodiu numa gargalhada, um relincho curto e estridente que lhe era característico.

— Não será fácil para ninguém escapar – disse.

Na posição em que estava, a luz da lâmpada refletia em seus olhos. Iluminado por baixo, um rosto parece às vezes aterrorizador, e eu me encontrava em um período superexcitável de minha vida. O fato é que gelou-me o sangue ver o fulgor de seus olhos de jaguar – estavam tão sinistramente próximos e ao mesmo tempo tão sinistramente distantes, fora de qualquer alcance, repousando em seu próprio frio. Mais para me acalmar, objetei lentamente:

— O senhor evidentemente não está querendo dizer que todos têm a consciência suja?

— Consciência suja? – repetiu e relinchou novamente. Que importa isso, se têm a consciência limpa ou suja. Podem estar calmos e tranquilos como água no poço – não será fácil para ninguém escapar!

— Escapar da denúncia, o senhor quer dizer?

— Da denúncia e da punição. Endenta-me, sente-se, por favor sente, cidadão-soldado, entenda-me (aproximou-se novamente e inclinou-se sobre mim, o que me fazia desejar sumir da cadeira), entenda-me: se tem os conselheiros adequados e o juiz adequado. Temos conselheiros de muitos lugares, especialistas em muitas questões, e não devemos proferir sentenças idiotas, como você pensa: não vale a pena reeducar um irrecuperável, tampouco vai-se privar o Estado da força de trabalho de um imbecil inofensivo com hábitos mentais superados, principalmente nestes dias de natalidade decrescente. Mas como eu dizia, o campo está livre para aquele que sabe o que quer. Tudo acabará se arranjando, se tivermos o juiz adequado.

Confesso não ter entendido perfeitamente o que ele queria dizer. Mas não desejava admitir isto a ele. Assenti gravemente e segui seus passos pelo soalho com o olhar um tanto espantado.

O silêncio do quarto tornou a situação embaraçosa. Supus que o chefe de polícia esperava que eu dissesse algo. Suas palavras sobre distintas punições trouxeram-me à memória algo que eu realmente desejava falar.

— Meu chefe, aconteceu algo um dia desses que me espantou. Há alguns dias atrás foi submetido à kalocaína um homem, um conspirador, que pertencia a uma perigosa seita de loucos. Ele espalhou não apenas boatos geográficos de natureza claramente nociva como também uma lenda abominável segundo a qual os seres do outro lado das fronteiras teriam uma origem comum a certas povoações fronteiriças de nosso Estado. Entoavam canções associais além disso. Foi condenado a trabalhos forçados. Eu me pergunto: isto foi adequado a seu caso especial; será encerrado naturalmente não o critico; foi algo racional, bem pensado? Como é fácil imaginar, durante seu período de trabalhos forçados um prisioneiro tem contato com uma porção de pessoas, tanto os guardas como os demais prisioneiros. Alguns estão na prisão por curto tempo, outros por maior, em todo caso, aos poucos muitos vão sendo libertados. Não deveríamos pensar no contágio a que estão expostos em contato com prisioneiros desta espécie? Ele talvez não fale muito no assunto, é verdade. Mas eu descobri algo, e por favor, meu chefe, não ria de mim, mas observei que de muitos emana uma impressão tão forte de suas filosofias de vida, a ponto de serem perigosos mesmo quando calados. Um olhar, um movimento dessa espécie de gente já é veneno e peste. Pergunto-me então: é justo que um tal indivíduo viva? Mesmo que possa ser aproveitado em um trabalho útil, e mesmo que nossa população esteja em decréscimo, não é de crer-se que ele prejudica o Estado com seu próprio hálito mais do que o serve com seu trabalho?

Karrek não riu. Ouvia atentamente e não demonstrava espanto algum. Quando acabei, o brilho de um sorriso malicioso espalhou-se em suas faces. Interrompeu seus passos e afundou na cadeira a minha frente. Ali estava sentado, com um salto armado em sua imobilidade tensa.

— Você não precisa fazer tantos circunlóquios, digno cidadão-soldado – disse baixinho e lentamente. – Ninguém melhor que eu para lamentar este sombrio fato que você aponta: que uma grande quantidade de cidadãos-soldados recebeu um valor totalmente imerecido apenas porque a curva de natalidade não sobe o suficiente para elevar nossa prestação no leito conjugal a um grau satisfatório. Mas que se vai fazer? Temos de admitir a necessidade coletiva e principal. Mas atrás do coletivo e principal está o caso particular. Quem é que você deseja ver condenado à morte?

Tive vontade de desaparecer soalho adentro. Deu cinismo me apavorava. Evidentemente não era de Rissen que eu falava, mas em geral. Que pensaria ele de mim?

— Você fez-me um grande favor ao convencer Lavris – continuou. – Serviço por serviço. Assim podemos saber com que pessoas contamos como amigos. Você tem um certo tipo de inteligência, seja qual for, totalmente diferente da minha (aqui ele relinchou novamente). Por isso podemos ser úteis um ao outro. Você pode responder tranquilamente: quem é que você deseja ver condenado à morte?

Eu não conseguia responder. Até aqui meus desejos tinham sido apenas desejos, irreais e suspensos no ar. Senti que precisava reconsiderá-los à luz do dia, antes de agir.

— Não, não – respondi –, minhas dúvidas são de natureza coletiva. Tenho experiência de tais portadores da peste.

Contive-me. Havia falado demais? Ele continuou sentado, imóvel por alguns segundos e eu me contorcia sob seus olhos verdes. Ele então se levantou e voltou a bater na parece com os dedos.

— Você não quer. Você tem medo de mim. Nada tenho contra isso. Mas ainda farei o que puder por você. Quando deixar sua denúncia, ou suas denúncias, não sei, bem justificadas, lembre-se, bem justificadas será, daqui por diante, a primeira das condições, e não sou eu que faço a triagem, ponha este sinal num canto (desenhou-o em um papel e mostrou-me) e então farei o que estiver ao meu alcance. Como eu dizia, nada é difícil se contamos com o juiz adequado, e isto pode ser providenciado. O juiz adequado e os conselheiros adequados. Não penso largá-lo de mão, e você ainda poderá receber muitos favores de mim, embora tenha medo.


 

 

 

 

Meu sono, que jamais havia sido o melhor dos sonos, ultimamente era péssimo. Minha quota mensal de soníferos sempre estava esgotada, já na metade do mês, e o que Linda não precisava da sua eu consumia até a última gota. Não queria procurar um médico. Eu temia receber o carimbo “constituição nervosa” em minha ficha secreta. Isto não seria nada interessante, pois por minha própria condição não podia portar tal anotação. Ninguém podia ser mais normal que eu, minha insônia era natural e explicável, eu me julgaria anormal e doentio se tivesse dormido bem durante tais circunstâncias...

Meus pesadelos foram suficientes para que eu não ansiasse precisamente por ser interrogado com minha própria kalocaína. Acontecia-me acordar suando frio e visões terríveis, onde eu era acusado e esperava minha dose e a vergonha imensa que se seguiria. Rissen, Karrek e inclusivo um ou outro participante do curso surgiram como elementos de terror em meus sonhos, mas principalmente Linda. Ela era sempre minha denunciante, ou meu juiz, ou aquele que se curvava sobre mim com a injeção de kalocaína. No início era com alívio que eu despertava e via a Linda real de carne e sangue a meu lado na cama, mas logo foi como se as visões noturnas começassem a invadir a realidade desperta, e o alívio tornou-se menor e menor, e a real, indubitável e desperta Linda encarnava cada vez mais o espírito supremo da maldade.

Um dia estive perto de contar minha tortura noturna – mas me contive no último minuto, ante a lembrança de seu olhar gélido no sonho. Logo após sentia-me contente por nada ter dito. A suspeita de que Linda estivesse em segredo ao lado de Rissen não me deixava mais calma alguma. Soubesse o que pensava dela, podia tornar-se minha inimiga no mesmo instante, e um inimigo implacável, forte como era ela. Talvez já fosse minha inimiga e apenas esperasse o momento exato de golpear. Não, seria minha ruína se lhe dissesse uma palavra sobre o assunto.

Quero contar um outro sonho, que em verdade não pode ser situado entre os pesadelos comuns. Um sonho sobre a Cidade Deserta.

Eu me encontrava no início de uma rua e sabia que precisava percorrê-la – por que, não sei, mas pressentia angustiado que minha boa ou má fortuna dependia de que prosseguisse. As casas de ambos os lados da rua eram montem de ruínas, alguns altos como pequenas colinas, outros soterrados e semi-cobertos com areia e ferragens. Trepadeiras haviam fixado raízes em lugares isolados e galgavam com esforço os restos de paredes, mas em meio a elas apareciam longos espaços frios e sem vida sob um sol cadente de meio-dia. Pareceu-me vislumbrar que aqui e ali, nos espaços mortos , as pedras transpiravam uma leve fumaça amarela. Em outros lugares a luz se quebrava na areia em vibrações azul-brumosas que me atemorizavam. Avancei um passo hesitante entre as emanações venenosas, quando uma brisa trouxe uma nuvenzinha destacada da fumaça amarelada a minha frente. A nuvenzinha espalhou-se em suaves turbilhões e tive de dar um passo atrás para que não me atingisse. Ao longe vi que as vibrações azul-brumosas começavam a se transformar em uma chama de pouco brilho e quase inundavam a rua. Angustiei-me com o pensamento de que alguma explosão atrás de mim me cortasse o caminho de retorno, impedindo-me assim de prosseguir ou voltar, mas sinal algum indicava algo semelhante. Dei mais um passo à frente. Nada aconteceu. Um outro. Ouvi então uma detonação seca às minhas costas, e ao virar a cabeça notei que a pedra em que há pouco tropeçara se transformava. Começou a amolecer internamente, tornou-se porosa e virou poeira em um segundo, enquanto parecia-me perceber um odor leve e desagradável. Eu não me decidia nem a continuar, nem a ficar parado, nem a voltar.

Ouvi então sons misteriosos de vozes mais adiante. Lá estava aberta a porta semidestruída de um porão, revestida por trepadeiras verdes em ambos os lados. Não a havia observado antes, e em minha angústia, suava frio ao ver o verde viver sua vida tão próxima a mim. Sobre os degraus rachados e gastos de pedra alguém surgira até a luz e me acenava para entrar. Não lembro mais como cheguei até a porta, talvez tenha pulado animalescamente sobre as pedras perigosas. Seja como for, entrei em uma câmara sem teto, em ruínas, onde penetrava o sol, e grama e flores pairavam sobre minha cabeça. Jamais um aposento com teto e paredes em pedaços me parecera tão seguro refúgio. Do tapete de grama emanava um odor de sol e terra e cálida despreocupação, e as vozes cantavam ainda, embora distantes. A mulher que me acenara antes estava lá e nos abraçamos um ao outro. Eu estava salvo e queria dormir de cansaço e alívio. Tornara-se totalmente desnecessário que continuasse a percorrer a rua. Ela disse “Tu ficas comigo”. – “Sim, deixa que eu fique!”, respondi, sentindo-me livre de todas as preocupações, como uma criança. Quando me inclinei para ver o que me molhava os pés, notei que do chão de terra brotava uma fonte clara, e isto me inundou de uma indescritível gratidão. “Não sabes que daqui emerge a vida?”, disse a mulher. Ao mesmo tempo, eu sabia ser isto um sonho do qual despertaria, e busquei em pensamentos uma forma de guardá-lo – tão furiosamente que o coração começou a pulsar com violência e acordei.

Este sonho lindo como era, talvez pudesse ser considerado ainda mais grave que um pesadelo, e eu não queria contá-lo nem para Linda nem para qualquer outro. Não porque Linda tivesse ciúmes da mulher de meu sonho – ela tinha certos traços daquela prisioneira com voz profunda, de quem já falei muitas vezes, mas tinha os olhos de Linda –, mas por ser isto uma resposta óbvia à pergunta de Rissen: “Você está seguro de que não lhes inveja a cidade deserta infestada de gases?” Tão profundamente me havia penetrado a sugestão de Rissen que inclusive minha vida onírica estava sob sua influência. De que me servia defender-me de mim mesmo quando devia defender-me de Rissen! Tal defesa não comoveria juiz algum no mundo.

Sonhei isto antes de ter sido chamado por Karrek, antes também da promulgação da nova lei, quando eu tinha outros problemas a resolver que não uma indefinida vingança futura.

Ao voltar do encontro com Karrek e saber que já amanhã poderia pôr em ação meus ímpetos de vingança, senti-me em um estado de espírito abominável e revoltado. O objetivo, que antes parecia tão distante, estava agora a meu alcance, mas todos os detalhes a serem observados pareciam subitamente intransponíveis. Se Linda realmente amava Rissen, não acabaria descobrindo de uma forma ou outra quem o denunciara? Como se comportaria, não sei, mas eu estava perfeitamente seguro de que teria êxito. Ela teria êxito, e se vingaria. Eu tremia ante sua vingança. Acontecesse o que acontecesse, eu não queria ser submetido a minha própria kalocaína.

Naquela noite não dormi quase nada.

Na manhã seguinte o jornal trazia um artigo com a rubrica: PENSAMENTOS PODEM SER CONDENADOS.

Era um apanhado da nova lei, com uma menção a minha kalocaína, que a tornara possível. Nada podia ser mais sensato que as novas decisões penais: daqui por diante, não se poderia mais seguir rígidos e fixos parágrafos que prescreviam a mesma pena tanto para o reincidente como para o principiante, desde que presos pela mesma ação. O próprio cidadão-soldado seria o centro do procedimento legal, não suas ações isoladas. Seu caráter seria examinado e registrado, não em função da antiga pergunta sem sentido “capaz ou incapaz”, mas para separar material utilizável de material inútil. A pena não mais consistiria em um certo número de anos mecanicamente divididos, mas seria meticulosamente elaborada por cálculos de psicólogos e economistas eminentes, que decidiriam sua conveniência. Um farrapo físico e espiritual que jamais beneficiaria o Estado não devia esperar continuar vivendo apenas porque não conseguira fazer nenhum dano. Por outro lado, tinha-se de considerar o decréscimo de população e, no pior dos casos, conservar material não muito desejável, que poderia ser utilizado como força de trabalho. A nova lei contra idéias subversivas entrava em vigor naquele mesmo dia, mas ao mesmo tempo salientava-se que todas as denúncias deveriam ser justificadas e, além disso, assinadas com o nome do denunciante. Não mais seriam anônimas, como antes, para impedir-se uma inundação de denúncias pouco importantes e a consequente despesa estatal desnecessária com kalocaína e funcionários da justiça. Em todo caso, a polícia reservava-se o direito de levar ou não em consideração as denúncias que julgava oportunas.

Karrek nada me havia dito sobre isso de assinar o nome. Seria então bem mais fácil para Linda, se quisesse furungar o nome do denunciante de Rissen.

O dia transcorreu sem incidentes no trabalho, mas não posso dizer: em paz e tranquilidade. Não troquei palavra alguma com Rissen durante o almoço. Mal ousava olhá-lo. Tinha uma impressão terrível de que ele conhecia meus pensamentos e intenções e a qualquer momento poderia golpear e abater-me. Ao mesmo tempo eu não ousava tomar a iniciativa, pois não confiava em Linda. O adiamento de cada hora era perigoso, mas eu tinha de correr esse risco.

Quando mais tarde cheguei em casa, foi como se se repetisse o suplício do almoço. A mesma dificuldade para encontrar os olhos de Linda como antes os de Rissen, a mesma sensação de que ela sabia de tudo, a mesma inimizade que carregava o ar entre nós. Os segundos se arrastavam e parecia que a criada jamais sairia nem as crianças dormiriam. Quando fiquei só com Linda, para evitar a escuta liguei o rádio a todo volume e nos sentamos de modo que o alto-falante ficasse entre nós e o ouvido da polícia.

Não lembro mais sobre o que falávamos, eu estava por demais tomado por minha intranquilidade para guardá-lo. Linda não indicava por sinal algum o que pensava do que falávamos nem de meu esforço por tentar colocá-la exatamente naquela cadeira – mas provavelmente imaginava o que estava por vir e escutava tão pouco quanto eu. Quando aproximei minha cadeira para bem perto dela, olhou para mim interrogativa.

— Linda! Preciso te perguntar algo.

— Sim – disse ela, sem demonstrar surpresa alguma.

Eu sempre soubera que seu domínio era total. Como também sabia que, se alguma vez nós dois tivéssemos de abrir o jogo e nos lançarmos numa luta de vida ou morte, ela seria o mais terrível dos adversários. Seria por isto que eu simplesmente não conseguia abandoná-la? Teria medo do que aconteceria depois? Em meu próprio amor existia o grande medo, eu sabia disto perfeitamente, e o sabia desde há muito. Mas nele também existia um sonho de segurança sem limites, um sonho de que meu amor obstinado um dia a forçaria a ser minha aliada. Como isto aconteceria, ou como eu saberia que acontecera, disto eu não tinha idéia – era um sonho tão indefinido e tão distante da realidade como o de uma vida futura. O que eu sabia era que, no momento seguinte, poderia dilapidar esta segurança sonhada. De aliados incertos podíamos em um minuto tornarmo-nos inimigos ferozes, inclusive sem que eu o soubesse, sem que um gesto em sua face ou tremor em sua voz a traísse. Mesmo assim eu tinha de continuar.

— Pergunto, isto, naturalmente, por motivos apenas formais – continuei, tentando sorrir. – Estou pessoalmente certo de tua resposta, jamais acreditaria em algo semelhante, e se isto fosse afinal verdade, par mim não teria importância alguma. Suponho que me conheces bem, e que te conheço da mesma forma.

Enxuguei minha testa com o lenço.

— Sim? – disse Linda, olhando interrogativamente para mim. Seus olhos imensos pareciam faróis, tão exposto me senti quando ela os assestou para mim.

— Bem, é apenas isto, disse eu (e sorri com certo amargor): tiveste alguma relação amorosa com Rissen?

— Não.

— Mas tu não o amas?

— Não, Leo, não o amo.

Mais longe não fomos. Tivesse ela dito sim, eu acreditaria imediatamente – suponho. Agora, que negara, não ousava crê-la por um segundo. De que me servira perguntar? Ela notava que eu mentira, ela percebera que sua resposta me preocupava obsessivamente. Amanhã ou depois de amanhã ela entenderia por que eu lhe perguntara, talvez ela até já o soubesse agora, talvez Rissen já a tivesse alertado do perigo que o ameaçava. Meu coração quase parou, quando me pareceu perceber um movimento, fraco, mal perceptível, uma espécie de inquietude da própria pele – mas mesmo assim um sinal. Eu acreditaria mais neste sinal que em todas as suas palavras.

— Tu não acreditas em mim? – perguntou séria.

— Claro que acredito em ti – respondi em tom exagerado. Como se ela também acreditasse em mim! Pudesse eu incutir-lhe em segurança, pelo menos o ruim não se tornaria pior. Mas senti que ela não se deixaria enganar.

Não pudemos ir além disto. Esta conversa exigira tanta superação de mim mesmo que me esgotara – e no entanto nada fora ganho. Nunca sentira este abismo hiante, tão real e tão intransponível. Meu domínio não foi suficiente para preencher o resto do tempo com piadas e futilidades, embora se tratasse de apenas uma hora, pois ambos tínhamos serviço noturno. Linda calou-se também, e entre nós permaneceu uma inquietude silenciosa, que corroia a própria medula dos ossos.

Por fim a hora passou.

Voltamos esgotados tarde da noite. Linda dormia, eu ouvia sua respiração regular, sem conseguir dormir. De quando em quando mergulhava numa semivigilha, da qual pulava sempre sobressaltado com um agudo pressentimento de perigo. Talvez fosse imaginação, o quarto estava tranquilo e Linda dormia tão profundamente quanto antes. Mas eu estava próximo ao desespero. Ninguém ainda pensou de fato no risco de dormir lado a lado com um outro, dois seres solitários na longa noite, sem outras testemunhas que o olho e ouvido da polícia – que ademais nenhuma segurança davam: primeiro porque não permaneciam sempre ativos, e segundo porque certamente podiam controlar e vigiar, mas não impedir o que acontecia. Dois seres sós, noite após noite, ano após ano, e talvez ambos se odeiem. Se ela desperta, o que não poderia fazer ao outro... Se Linda estivesse sob efeito da kalocaína...

A idéia assaltou-me como uma onda ergue destroço de barco. Não tinha mais escolha, precisava continuar o que iniciara, agira em autodefesa, para salvar minha vida. Precisava de alguma forma dar um jeito. Com algum pretexto qualquer eu poderia subtrair a pequena quantidade de kalocaína necessária. Linda seria forçada a entregar seus segredos, a qualquer preço.

Ela estaria então sob minha violência como eu jamais estivera sob a sua. Ela jamais ousaria ferir-me. Eu poderia prosseguir e denunciar Rissen.

Seria então livre.


 

 

 

 

Não dormi muito aquela noite, mas quando me dirigi ao trabalho, havia sacudido de mim a angústia e indecisão que me pesava nos dias anteriores. Estava pronto para agir; isto já era uma libertação.

Nada mais simples que arranjar a kalocaína suficiente para uma dose. Pequenas porções sempre se perdiam durante as aplicações, e o controle era mínimo, principalmente que agora a pressa atrapalhava a boa marcha dos trabalhos. E mais: quem pesava era Rissen. Se não lhe ocorresse o infeliz capricho de hoje ou amanhã lançar-se sobre mim com um controle de peso, nunca mais teria oportunidade de fazê-lo. Seus auxiliares e eventuais testemunhas certamente não pensariam, em meio à confusão geral, em tal detalhe. Ao amanhecer do dia seguinte, eu já teria certeza. Precisava confiar em minha boa sorte e na pressa de Rissen.

Cheguei em casa com uma seringa no bolso e um pequeno frasco cheio de um inocente líquido esverdeado. A libertação dos primeiros passos para a ação me dava forças novas, e inclusive conversei e brinquei com a criada e as crianças durante a janta. Apenas acenei para Linda, desta vez sem recuar diante de seus olhos. Eles eram como faróis, mas não tão devastadores como os que eu escondia no bolso.

Era dia de serviço noturno e fomos tarde para a cama.

Fiquei bastante tempo quieto esperando que ela dormisse. Quando finalmente estava seguro, levantei-me discretamente sob o brilho da pequena lâmpada noturna e cobri o olho da polícia. Contra o ouvido pus uma almofada, com o mesmo embaraço com que vira Karrek fazer o mesmo. Naturalmente isto era proibido, mas eu me encontrava nos limites do desespero, e acontecesse o que acontecesse, não queria que a polícia vigiasse minha ocupação.

Linda, deitada sob a iluminação difusa, estava bela como eu jamais a vira antes. Com seu braço dourado e nu havia puxado o cobertor até o queixo, como se tentasse esconder-se. Voltara a cabeça para o outro lado, de modo que seu perfil regular se desenhava claramente contra as sombras da almofada. A pele luzia como um veludo vivo contra suas pesadas sobrancelhas negras e cílios. O arco tenso e vermelho se relaxara no sono até tornar-se uma doce e cansada boca de menina. Jamais a vira tão jovem quando desperta, nem mesmo quando nos conhecemos, nem tão comovente. Eu, que geralmente a temia por ser tão forte, fui quase atacado de compaixão ante sua fraqueza infantil e desprotegia. Desta Linda, que dormia à minha frente, gostaria de me aproximar de outra forma, terna e delicadamente, como se fosse a primeira vez em que nos encontrássemos. Mas eu sabia que, se a acordasse, o arco vermelho se contrairia e os olhos se tornariam faróis novamente. Ela se ergueria totalmente desperta na cama, e com cenhos franzidos descobriria o tapete e a almofada na parede. E se eu ainda quisesse me aproximar, se lhe oferecesse amor para dissimular minha desconfiança, serviria isto para algo? Um segundo de ilusão de afinidade, uma embriaguez que não mais existiria amanhã – e eu nem mesmo saberia o que sentia por Rissen.

Comecei atando-lhe um lenço na boca, para que não gritasse em meio à luta. Naturalmente ela despertou e tentou libertar-se, mas como eu era bem mais forte, tinha todas as vantagens a meu favor. Não era difícil mantê-la imóvel enquanto a atava de pós e mãos para que não me escapasse. Eu necessitava ter as duas mãos livres.

Ela enrijeceu-se quando lhe apliquei a droga, e depois imobilizou-se. Percebera ser inútil qualquer resistência.

Oito minutos contei como tempo necessário para que o líquido atuasse. Quando passaram, desatei o lenço. Notei em suas faces que a droga a dominara. Ela voltou a ter o mesmo rosto de criança que tinha durante o sono.

— Eu sei o que estás fazendo, disse ela gravemente, e inclusive sua voz tinha nuanças da mesma infantilidade de seu rosto. Queres saber algo. O quê? Existem muitas coisas que deves saber. Tenho muito a dizer. Nem sei mesmo como começar. Eu queria fazer isso, não precisavas me forçar. Mas talvez eu jamais conseguisse a não ser desta forma. Assim foi durante todos nossos anos. Existe algo que quero dizer ou fazer, mas não sei o que é. Talvez uma porção de futilidades, gentilezas, agrados e carinhos, e quando estes eram impossível, impossível também era o maior e mais importante. Só sei uma coisa, isto eu sei: eu queria te matar. Se tivesse a certeza de jamais ser descoberta, eu teria te matado. Mas também pouco me importa ser descoberta, ainda faço isso. É melhor do que continuar assim. Te odeio por não teres me salvado disto, já teria te matado se não tivesse medo. Agora eu ouso. Não enquanto puder falar contigo. Nunca pude falar contigo. Tu tens medo, eu tenho medo, todos têm medo. Só, totalmente só, nem mesmo alegremente só como quando se é jovem. Isto é horrível. Nunca pude falar contigo sobre as crianças, não pude te dizer minha tristeza pela partida de Ossu, e o medo que tive no dia em que saiu Maryl e Laila. Eu pensava que tu me desprezarias. Podes me desprezar agora, não me importo mais. Muitas vezes desejo voltar a ser menina novamente, ser infeliz no amor em vez de amada. Não compreendes que é invejável ser-se menina e infeliz no amor, embora não se entenda isso então? Quando se é menina, imaginamos que existe algo mais, uma libertação que virá com o amor, uma espécie de refúgio naquele que amamos, uma espécie de calor e repouso, que não existe. Infeliz no amor, a gente vive e sofre intensamente o desespero do por que exatamente eu não tive a grande felicidade, exatamente contigo, e acreditamos que os outros talvez tenham tido, que ela existe, que existe para que a tenhamos, e tu deves saber que quando existe tanta alegria no mundo e quando toda sede tem um algo, nem mesmo ser infeliz é desesperador. Mas ser feliz no amor, nos leva ao vazio. Não existe mais objetivo, existe apenas solidão, e por que existiria algo mais, por que existiria um sentido para nós, indivíduos? Gostei muito de ti, Leo, e tu achas que não. Acho que agora, poderia te matar tranquilamente.

— E Rissen? – perguntei aflito, temendo que os preciosos minutos corressem sem que eu soubesse o que desejava saber. Que achas de Rissen?

— Rissen – repetiu pensativa. – Sim, Rissen... Rissen tinha algo especial. O quê? Ele não era tão distante como os outros. Não assustava ninguém, ele próprio não tinha medo.

— Tu o amavas? Ainda o amas?

— Rissen? Se eu o amava? Não, não, não. Se ao menos eu pudesse! Ele era diferente dos outros. Próximo. Calmo. Tranquilo. Diferente de ti, Leo, e diferente de mim. Fosse um de nós como ele... Ou os dois, os dois, Leo... Teria sido tu. Por isso quero te matar, para libertar-me, pois jamais será um outro que não tu, e tampouco serás tu.

Começou a agitar-se e piscar os olhos. Eu não ousara apanhar mais kalocaína que para uma dose, seria muito perigoso. E agora não sabia o que lhe perguntar.

— Como pode ser tudo assim? – sussurrou angustiada. – Como pode ser tudo assim, por que buscamos o que não existe? Estamos mortalmente doentes, quando somos completamente sãos, quando tudo é como...

A voz tornou-se um murmúrio, e pela cor esverdeada de suas faces vi que ela estava por despertar. Apoiei-a pela nuca e levei-lhe um como aos lábios. Ela continuava ainda amarrada – e nem mesmo notara isso durante a anestesia. Soltei-a embora com certo receio de seu comportamento, agora que estava livre. O tempo todo eu esperava por esse momento, com um misto de angústia e triunfo, quando ela seria acometida de remorso e vergonha pela abertura involuntária de seu coração. Notei que minha mão tremia, a ponto de não conseguir manter sua cabeça quieta. Larguei-a então no travesseiro e olhei-a fixa e ansiosamente em seus traços relaxados.

Mas a reação que eu esperava pareceu não ocorrer. Quando ela abriu novamente os olhos, estes eram mediativos, mas abertos e tranquilos como sempre, e encontraram os meus sem desviá-los. Sua boca me assustava. O arco vermelho não se distendia como de hábito, permanecia relaxado em repouso, dando ao rosto a mesma expressão infantil que durante o sono e a embriaguez. Eu não sabia que podia existir uma gravidade aterrorizante em uma tal falta de controle. Os lábios se moviam molemente como se ela repetisse palavras para si mesma. Eu nada tinha a lhe dizer, nem queria interrompê-la. Sentei-me e fiquei olhando seu rosto.

Por fim ela adormeceu, enquanto eu a vigiava. Dormiu, eu me despi e tentei também dormir, mas não pude. Um arrependimento e vergonha surda me inundavam. Sentia-me como se o interrogado desmascarado fosse eu, não ela. Tivera sempre claro para mim que, dissesse ela o que dissesse, continuaria depois sob minha violência, mas de uma forma diferente da anterior. Quando despertasse, já teria revelado segredos que não deviam ter sido confessados, com os quais nem poderia ameaçá-la se dirigisse um único passo hostil contra mim. Talvez ela tivesse feito isso, não sei. Sua ameaça de matar-me - eu ouvira isso muitas vezes durante meu trabalho e sabia que dificilmente eram executadas – talvez fosse perigosa para ela, por que não? Era possível que eu tivesse em mãos, era possível que tudo tivesse corrido conforme meus cálculos.

Exceto em um ponto: eu jamais poderia utilizar-me de qualquer trunfo. Tudo que ela dissera fora sobre mim mesmo. Eu estava doente, dilacerado até as entranhas, enquanto ela se mantivera como um espelho diante de mim. Eu não havia adivinhado que ela, com seus lábios tensos, com seu silêncio e com seus olhos penetrantes, era da mesma têmpera frágil, que eu. Como poderia eu ameaçá-la, como poderia forçá-la em tais circunstâncias?

Após um curto sono, acordei algumas horas adiantado. Linda dormia. Os acontecimentos da noite de assaltaram nítidos no exato momento em que acordei, mas me restava ainda um remorso cavo por algo não feito. Adivinhei sua causa no momento imediato: Rissen. Hoje.

Tive vontade de adiar tudo novamente, mas não existia razão alguma para minha inércia. O problema de ontem não era exatamente o mesmo de hoje? Rissen era precisamente o mesmo. Jamais fora por ser meu eventual rival que senti que precisava livrar-me dele. Minha repulsa era mais profunda. Mas parecia menos exigente hoje. Mas se não o fizesse agora, desprezaria a mim mesmo. E agora, por pura sorte, dispunha de tempo livre para formular minha denúncia antes que Linda acordasse, e uma coisa pelo menos os acontecimentos da noite haviam revelado: eu sabia que ela não estava do lado de Rissen, mas do meu.

Sob o fraco brilho da lâmpada, escrevi um esboço da denúncia. A motivação genérica era algo fácil, tantas vezes eu a formulara em meus pensamentos. Repeti solene e convincentemente tudo o que dissera a Karrek. Ainda dispunha de bastante tempo, e, sentado na cama, escrevi a própria denúncia, que mereceu ser feita com caneta tinteiro, o papel apoiado na Revista Química. Subscrevi sem hesitações meu nome e endereço, já que assim devia ser, e pus no envelope o endereço da polícia. Levei quase uma hora lendo e relendo o que havia escrito e ruminando novas indecisões e dúvidas. Só quando o despertador do vizinho tocou lembrei-me de que quase não dispunha de mais tempo, e pus o sinal secreto de Karrek em um canto, como já o fizera diversas vezes em fantasia; coloquei a denúncia no envelope e o escondi na revista.

Linda despertou com um toque de nosso relógio. Olhamos um para o outro como se a noite tivesse sido um sonho. Antes, eu imaginara uma manhã completamente diferente, na qual eu era vencedor e juiz e impunha as condições do vitorioso a uma Linda desmascarada e arrasada, que devia submeter-se à minha mercê. Mas não foi assim.

Apenas nos levantamos, vestimo-nos, comemos em silêncio, tomamos o elevador juntos e nos separamos diante da estação de metrô. Quando me voltei para ver se ela já se fora, vi que ela também se voltara – e acenava com a cabeça. Tive um sobressalto. Pretenderia ela talvez inspirar-me confiança para depois vingar-se? Por alguma razão qualquer, isto não me parecia viável. Assim que ela submergiu na escada do metrô, pus a carta na caixa.

Extraordinário, este pequeno sinal no canto do envelope. Eu conhecia Karrek o suficiente para saber que ele faria Rissen sumir da face da Terra. Na rua, em meio ao formigar de cidadãos-soldados que se apresentavam para a ginástica matutina e trabalho, parei subitamente um instante, tomado por uma terrível consciência de poder. Podia repetir minha manobra quantas vezes quisesse. Enquanto não colidisse com os próprios interesses de Karrek, ele prazerosamente sacrificaria para mim algumas dúzias de vida pelo serviço que eu lhe prestara. Eu tinha poder.

Já falei antes sobre a escada que vejo como símbolo da vida. Um símbolo bastante inocente, embora ridículo: a imagem da caminhada de classe a classe de um aluno obediente, a correta promoção de graus de um servidor. Com uma sensação de náusea, senti subitamente estar no topo da escada. Não que me faltasse fantasia para imaginar mais altos graus de poder que estar nas boas graças do chefe de polícia da Cidade Química n° 4. Para isto eu tinha fantasia, dispunha de material para construir, se quisesse atingir maiores alturas e panoramas: a carreira militar, ministérios da capital – Tuareg, Lavris. Mas esta diminuta porção de poder que via frente a mim já bastava como símbolo de todo o resto. E me enauseava.

Era perfeitamente correto, perfeitamente desejável que um animal nocivo como Rissen fosse exterminado. Mas não! Eu lutava com a dúvida de que se pudesse chegar por demais longe com tal guerra de extermínio. Por alguns dias, pareceu-me simples: matava-se Rissen e Rissen não mais existiria, nem mesmo o Rissen que existia dentro de mim, que fora inoculado pelo outro, o vivo. Morto Rissen, eu seria novamente um autêntico cidadão-soldado, uma célula feliz, sadia, do organismo estatal. Mas após isso aconteceu algo que me tornou inseguro: os acontecimentos da noite – meu fracasso com Linda.

Que fora um fracasso, eu não podia esconder para mim mesmo. Verdade que conseguira saber o que queria – que ela não era um obstáculo à minha decisão quanto a Rissen. Verdade que no fundo eu não tinha medo de sua vingança, pois ela, tudo bem pesado, estava tão indissolúvel e desesperadamente ligada a mim quanto eu a ela. Verdade que eu a tinha sob minha violência, que eu estava em posse de seus segredos que ela não queria ter revelado. Tudo verdade. Não fora pois um fracasso, se apenas pensasse no objetivo limitado e idiota que me propus. E no entanto, por outro e mais importante lado, fora um fracasso total, abominável.

Suas palavras sobre o invejável amor infeliz pareciam romantismos de adolescente, embora contivessem uma certa verdade, que muito bem se adequava à minha própria atitude em relação a Linda. Meu casamento era de uma certa forma um amor infeliz, evidentemente correspondido, mas mesmo assim infeliz. Em um rosto sério, em uma boca vermelha contraída, em dois olhos grandemente abertos, eu sonhara um mundo cheio de mistérios, que saciara minha sede, apaziguaria minha intranquilidade, dar-me-ia uma segurança definitiva, se eu apenas soubesse como atingi-lo. E agora – agora que com minha violência eu penetrara tão profundamente quanto era possível penetrar, arrancar o que ela não queria entregar-me – mesmo assim persistia minha sede, minha intranquilidade e insegurança eram maiores do que nunca. Se existia alguma correspondência para o mundo por mim sonhado, era inacessível a todos os meus esforços. E eu estava, como Linda, prestes a desejar-me de volta à minha perdida ilusão, quando ainda acreditava que o paraíso atrás do muro seria conquistado.

Que relação tinha isto com minha náusea ante o poder não me é fácil explicar, mas eu sentia que a relação existia. Eu sentia que matar Rissen era desferir um golpe no ar. Assim como eu atingira o que me propunha quanto a Linda, assim como havia descoberto o que queria saber e no entanto fracassado tão profundamente que sem exagero se poderia falar em desespero, poderia também alcançar o que me propunha quanto a Rissen – uma condenação, uma execução – sem no entanto ter avançado uma polegada em direção ao que buscava.

Pela primeira vez em minha vida senti o que era poder, senti-o em minha mão como uma arma – e estava desesperado.


 

 

 

 

Um sussurro perpassava a Casa de Polícia. Ninguém sabia nada, ninguém dizia nada definido, todos ouviam o boato como uma semi-respiração, ao se encontrarem nas escadas e corredores, sem testemunhas à vista: “O próprio Ministro de Polícia – Tuareg – ouviram falar – preso... Apenas um boato... Preso por subversão... Tsss...”

Que pensaria Karrek disto, perguntei-me, ele que estava tão próximo a Tuareg, e que pessoalmente estava tão ansioso por ver a nova lei promulgada? Estava sabendo disso? Não teria sido talvez ele...?

Como nada tinha a ver com os rumores, lancei-me ao trabalho.

Durante o almoço. Não mais evitei o olhar de Rissen. Se ele me perscrutava, seria em todo caso para prevenir o golpe. De resto, dominava-me um estranho sentimento de que ele não era verdadeiramente real. Aquele que se sentava na mesa e assoava nítida e sonoramente o nariz, era uma espécie de miragem – uma imagem relativamente inofensiva, refletida em um espelho –, de um princípio mau que eu não queria chamar à vida. Eu havia golpeado, e no momento seguinte o golpe atingiria... A imagem. E tentava convencer-me que era exatamente a mesma coisa.

A adormecida sensação de sonho só me abandonou na volta para casa. Meus pés se tornaram pesados, quando pensei que teria de rever Linda. Tinha uma noite livre à minha frente, e logo estaríamos a sós um com o outro, nós dois, face a face. Eu não sabia como suportaria isso.

Chegou o momento. Ela por certo o esperava. Hoje era ela quem ajeitava as cadeiras e mexia no rádio – mas nenhum de nós ouvia o programa, tampouco agora como antes.

Sentamo-nos por muito tempo silenciosos. Eu olhava furtivamente seu rosto – parecia agir em sua imobilidade. Ela continuou em silêncio. E se eu me tivesse enganado; se minhas apreensões pela manhã fossem verdadeiras?

— Tu denunciaste? – perguntei com voz grave.

Ela sacudiu a cabeça.

— Mas pretendes fazer isso?

— Não, Leo, não, não.

Voltou ao silêncio, e não existia pergunta que eu pudesse fazer. Eu não sabia como ficar. Por fim fechei os olhos e recostei-me na cadeira, resignado ante algo desconhecido, mas inevitável. Veio-me a lembrança um jovem que submetêramos à kalocaína – o que primeiro falou sobre as reuniões secretas da seita de loucos. Ele havia dito algo sobre o horror de calar-se, em como está indefeso e despido alguém em silêncio, e agora eu o entendia.

— Quero falar contigo – disse ela finalmente, com dificuldade – Tens de me ouvir. Queres?

— Sim, Linda, eu te magoei.

Um pequeno sorriso trêmulo em sua boca.

— Tu me abriste como se abre uma lata de conserva, pela força. Mas isto não basta. Entendo depois, que ou se morre de vergonha, ou se precisa continuar voluntariamente. Posso continuar? Queres um pouco mais de mim, Leo?

Eu não podia responder, nem mesmo explicar o que acontecia dentro de mim, pois parte alguma de meu corpo fazia outra coisa senão ouvir. Tenho por absolutamente certo que até então jamais havia ouvido em minha vida. O que eu antes chamava ouvir era algo diferente. Meus ouvidos então davam conta de sua função, meus pensamentos da sua, minha memória registrava tudo exemplarmente, e no entanto meu interesse estava em outro lugar; onde, não sei. Agora eu nada sabia senão o que ela contava, mergulhava nisso, eu era ela.

— Já sabes algo de mim, Leo. Sabes quanto sonhei em te matar. Hoje, que toda a vergonha e o medo estão distantes, pensei que poderia fazê-lo, mas agora vejo que não posso. Posso apenas ter sonhos desesperados. Mas acho que não é medo da punição, o que me impede. Talvez consiga explicar isto mais tarde. É sobre outra coisa que quero falar contigo. Quero falar das crianças – e do que descobri com elas. É longo. Nunca ousei dizer algo sobre isto. Vou começar pelo começo, com Ossu:

— Lembras quando eu estava grávida de Ossu? Lembras que todo o tempo foi evidente para nós que devia ser um menino? Não sei se tu apenas acompanhavas minha fantasia, mas pelo menos disseste que também acreditavas que seria um menino. Sabes, acho que eu ficaria terrivelmente ofendida se tivesse sido uma menina; eu sentiria isso como uma injustiça, eu que era uma grande cidadã-soldado tão leal, que até mesmo morreria alegremente se tivesse sido encontrado um meio que tornasse as mulheres desnecessárias. Sim, pois eu as concebo como um mal necessário, necessário ainda por muito tempo. Claro que sei que oficialmente somos consideradas valiosas ou quase tão valiosas quanto os homens, mas apenas em segunda mão, só porque podemos gerar novos homens, e novas mulheres, evidentemente, que por sua vez gerarão novos homens. E por mais que isto fira minha vaidade (sempre queremos ter um pequeno imenso valor) por mais que isto me ferisse, eu concordava em todo caso que não tinha lá muito valor. Mulheres não são tão úteis como os homens, disse para mim mesma, não têm a mesma força corporal, não levantam os mesmos pesos, não suportam tão bem uma chuva de bombas, seus nervos não têm a mesma eficiência num campo de batalha, são indubitavelmente piores guerreiros, piores cidadãos-soldados que os homens. São apenas um meio de produzir guerreiros. Que elas sejam oficialmente consideradas em tão alto grau, é apenas um artifício para que se sintam alegres e receptivas. Talvez chegue um tempo, acho, em que as mulheres sejam supérfluas, em que se possa utilizar seus ovários e jogar o resto no esgoto. Todo o Estado será então constituído então por homens, e não serão necessárias despesas com o sustento e educação das meninas. É um sentimento curiosamente vazio saber que se é apenas um depósito, necessário até segunda ordem, embora muito precioso. Pois bem, quando eu era honesta a ponto de admitir isto, não teria sido então uma decepção excessivamente grande, se pela primeira vez que eu procriasse, tivesse dado à luz algo que também era apenas um depósito? Mas não foi assim, Ossu felizmente era homem, quase cheguei a ver sentido em mim mesma. Tão leal eu era naquele tempo, Leo.

E continuou:

— Então eu o vi crescer e caminhar, e nesse mesmo período tive Maryl. Quando acabei de amamentá-la, passei a vê-la apenas pela manhã e à noite, antes de ir para meu trabalho e ao voltar para casa, mas isto não era tão estranho. Eu sabia com toda a minha convicção que Ossu pertencia ao Estado, que estava sendo educado todos os dias na creche para ser um futuro cidadão-soldado e que a mesma educação continuaria no acampamento infantil e mais tarde no juvenil. Abstração feita de sua herança genética que eu sabia ser importante, e em nosso caso tudo estava em ordem, tão longe quanto podíamos pesquisá-la e que de resto tampouco era “nossa” propriedade, pois provinha de outros cidadãos-soldados que nos precederam, era evidente para mim que seu futuro caráter dependeria de seus chefes na creche, nos acampamentos, dos exemplos e regras que norteavam sua educação. Mas não podia deixar de observar nele uma série de pequenos traços curiosos, que eu reconhecia serem teus e meus também. Observei seu modo de torcer o nariz e pensei: Curioso, eu fazia exatamente assim quando era pequena! Desta forma eu renascia em meu filho. Era um sentimento de orgulho: nele eu quase ressurgia como homem! Eu observei seu riso, que me lembrava muito o teu. Desta forma eu participava de tua infância. E seu modo de torcer a cabeça, tu sabes, e algo na conformação dos olhos... Não era nada difícil de entender, mas me dava um sentimento criminoso de direito de propriedade. “Vê-se que ele é nosso”, pensei, “filho”, acrescentei com a consciência, pois sabia que este sentimento não era de lealdade. De fato, não o era, mas existia. O pior é que se tornou cada vez mais intenso por ocasião de minha segunda gravidez. Acho que te lembras que o nascimento de Maryl foi difícil e tomou bastante tempo. Certamente é superstição, mas na ocasião eu já estava convencida, e não conseguia desembaraçar-me, deste pensamento, que isto dependia de que eu não desejava largá-la de mim. Quando nasceu Ossu, eu era ainda uma mãe totalmente voltada para o Estado. Quando nasceu Maryl, eu era uma egoísta, uma fêmea avara, que procriava para mim mesma e pensava ter direitos sobre o que gerava. A consciência me dizia que eu estava errada, que tais pensamentos não deviam ser pensados, mas nenhum sentimento de culpa ou vergonha conseguia eliminar esta avareza que despertara em mim. Se tenho tendências autoritárias, elas não são grandes, Leo, tens de concordar! Mas existem; surgiram depois do nascimento de Maryl. Nos rápidos momentos que Ossu estava em casa, eu decidia por ele, eu o dominava tanto quanto podia, apenas para sentir que ele ainda era meu. E ele obedecia, pois isto se aprende antes de mais nada nas creches, e eu sabia que tinha direito a isto por enquanto, pois fazia parte da vontade do Estado e da educação dos cidadãos-soldados. Mas isto era apenas um pretexto. Minha maneira de ser em relação a Ossu não era propriamente uma homenagem ao Estado. Era uma tentativa de exigir todo o meu direito de propriedade que poderia ser exigido durante o pouco tempo que ele estava em casa.

Não parecia efeito da kalocaína, mas era uma confissão sincera.

— Quando Maryl nasceu, até me surpreendi como estava tranquila de que fosse menina, e talvez não apenas tranquila: estava inclusive satisfeita. Ela não pertencia antes de mais nada ao Estado, como um menino pertenceria. Ela era mais minha, ela era mais eu, pois eu era mulher. Como descrever o que senti, depois de ter aceitado isto? Tu saber, Maryl é uma criança estranha. Ela não é tu, nem mesmo eu. É possível que algum antepassado tenha ressurgido em seu ser, não sei, isto se encontra muito longe no tempo. Ela era simplesmente Maryl. Parece tão simples, mas é misterioso. Ela já via as coisas e fatos de um outro modo quando ainda nem falava. E depois... Depois, tu sabes. Tu sabes, ela é ela. Notei que minha avara possessão se diluíra. Maryl não era minha. Ficava horas sentada ouvindo como cantava para si mesma, ou lia, ou fazia qualquer outra coisa, fantásticas histórias de sonho, que ela jamais aprendera na creche. Mas onde aprendera então? Histórias fantásticas não se transmitem geneticamente para emergir em gerações posteriores! Tinham sua própria melodia, e ela não as havia recebido de nós nem da creche. Entendes por que esta idéia deixou-me confusa e aterrorizada? Ela era Maryl. Não se parecia a ninguém. Não era um barro informe como eu ou tu, que o Estado podia modelar como bem entendesse. Não era minha propriedade, nem minha criação. Eu estava fascinada por minha filha de um modo novo, selvagem, estranho. Quando ela estava perto de mim, eu me tornava quieta e atenta. Entendi então que Ossu também tinha algo distinto em si, embora já chegasse ao ponto de compreender que era melhor escondê-lo. Arrependi-me de ter sido tão possessiva em relação a ele, e finalmente o deixei em paz. Aquele tempo era cheio de dúvidas, tensões e vida. Então descobri que uma outra criança estava a caminho. Nada mais natural, mas para mim foi algo aterrador. Que eu estivesse com medo não é a expressão exata.l Não temia que algo me acontecesse com o parto ou algo semelhante. Eu estava terrificada porque me pareceu ter compreendido o incompreensível pela primeira vez. Até então eu jamais soubera o que era gerar. Não mais me concebi como uma dispendiosa máquina de produção. E não mais era uma proprietária avarenta. Que era eu então? Não sei. Alguém que não tinha controle nem mesmo sobre o que aconteci, mas mesmo assim transportada quase ao êxtase porque isso acontecia em mim. Em mim vivia um ser, e já tinha traços, já tinha características particulares, e eu não podia modificá-lo... Eu era um galho que florescia sem anda saber de minha raiz ou caule, mas sentia a seiva brotando de profundezas desconhecidas...

Fez uma pausa e mudou para uma entonação mediativa

— Falei tanto, e mesmo assim não sei se me entendes. Quero dizer: se tu entendes que existe algo embaixo e atrás de nós. Que é criado em nós. Sei que não se deve dizer isso, pois é apenas o Estado que nos possui. Mas mesmo assim te digo isso. Não sendo assim, nada tem sentido.

Calou-se. Eu continuava mudo, embora tivesse vontade de gritar. Eis aqui tudo o que eu havia combatido, pensei como em um sonho. Tudo o que eu havia combatido, temido e sonhado.

Ela nada sabia dos loucos e de sua cidade deserta, e no entanto cairia sob a lei tão inevitavelmente quanto eles, pois sonhava com uma ligação que não ao Estado. E mais: eu também. Pois já não sentia esta outra ligação, anárquica e inelutável, entre mim e ela?

Eu tremia da cabeça aos pés. Queria dizer: sim, sim! Seria um alívio, como se um homem totalmente exaurido caísse no sono. Eu estava livre de uma ligação que me sufocava e salva para uma nova, evidente, simples, que enlevava mas não prendia.

Meus lábios lutavam com palavras que não existiam e não podiam ser ditas. Queria agir, fazer algo, quebrar tudo e construir novamente. Não existia mais mundo algum para mim, lugar algum onde habitar.

Fui até ela, ajoelhado no chão e deitei a cabeça em seus joelhos.

Não sei se alguma vez alguém já fez isto, ou se alguém o fará novamente um dia. Jamais ouvi falar nisto. Só sei que fui obrigado, e que isto continha tudo o que queria dizer e não podia.

Ela entendeu. Pôs a mão em minha cabeça. E assim ficamos por muito tempo.


 

 

 

 

Tarde da noite pulei da cama e disse:

— Preciso salvar Rissen. Eu denunciei Rissen.

Ela não fez perguntas. Corri até o porteiro, acordei-o e pedi o telefone emprestado. Quando soube que se tratava de uma ligação com o chefe de polícia, não fez objeção alguma.

Impossível falar com Karrek, ele dera ordens estritas para que ninguém o incomodasse durante a noite. Após muitos embaraços e correrias, um vigia sensato chegou finalmente ao telefone e acalmou-me dizendo que nada podia ser decidido durante a noite. Se, por outro lado eu quisesse encontrar o chefe de polícia pela manhã, uma hora antes do início do trabalho, ele o avisaria e eu poderia ir a seu encontro para saber se me receberia.

Voltei a Linda.

Continuou sem fazer perguntas. Não sei se por que ela entendera tudo ou se porque esperava que eu dissesse algo. Mas eu não podia falar, ainda não. Minha língua sempre fora um instrumento flexível e dócil, mas agora recusava-se a cumprir seu serviço. Assim como eu há pouco havia ouvido pela primeira vez em minha vida, eu sabia, que se agora quisesse falar, teria de ser de uma forma completamente nova, para a qual eu ainda não estava maduro. Meus ímpetos, que agora se fariam palavras, jamais haviam formado uma. Mas elas tampouco eram necessárias. Eu havia dito o que precisava – e Linda me entendera, quando deitei a cabeça em seus joelhos. Calamo-nos novamente, mas agora o silêncio era de outra espécie, diferente daquele que antes me torturava. Agora apenas esperávamos, e o mais difícil já havíamos superado.

Em meio à noite, sem que nenhum de nós pudesse dormir, Linda disse:

— Achas que existem muitos que sentiram isto? Talvez entre teus interrogados. Eu preciso encontrá-los.

Pensei com inveja na pequena mulher esguia, de quem eu banira as falsas esperanças. Que amarga desconfiança não carregaria agora! Pensei na seita de loucos que fingiam dormir entre pessoas armadas. Estariam agora todos na prisão com a nova lei.

Ela voltou a perguntar:

— Achas que existem muitos que experimentaram isto? Que começaram a entender o que é gerar? Outras mães? Ou pais? Ou amantes? Que não ousaram falar do que descobriram, mas que ousariam quando outro ousou. Eu preciso encontrá-los.

Pensei na mulher de voz profunda, que falara sobre o orgânico e o organizado. Ela havia escapado da prisão, mas de qualquer forma eu não sabia onde se encontrava.

E mais tarde, bem mais tarde, como de um mar de sono:

— Talvez possa nascer um novo mundo daqueles que são mães, sejam mulheres ou homens, tenham filhos ou não. Mas onde estão?

Sobressaltei-me, e totalmente desperto pensei em Rissen, que soubera, tateara e buscara o tempo todo o que existia em mim, e que eu enviara à morte. Com um soluço, apertei-me fortemente a Linda.


 

 

 

 

Uma hora antes do início do trabalho eu estava na Casa de Polícia. Karrek recebeu-me.

Percebi a deferência especial que o fizera levantar-se tão cedo para atender-me, sem mesmo saber o que eu desejava. Provavelmente esperava algo completamente diverso do que o que eu lhe trazia, talvez a descoberta de uma rede de espionagem ou algo parecido.

— Eu... Eu pus aquele sinal no... – comecei gaguejando.

— Não conheço sinal algum – disse ele lenta e friamente. Que quer dizer, cidadão-soldado Kall?

Entendi que ele se julgava vigiado. Também na Casa de Polícia existiam canais nas paredes, ouvidos e olhos a se considerar, e existiriam certamente certas circunstâncias em que o próprio chefe de polícia devia cuidar-se. Pensei nos boatos sussurrados sobre Tuareg.

— Foi um engano, disse eu (como se agora adiantasse algo!). Quero dizer... Quero dizer: eu fiz uma denúncia. E gostaria apenas de pedi-la de volta.

Com um ar complacente mandou buscar um maço de papéis, onde procurou minha denúncia. Com um brilho nos olhos, prolongou minha espera antes de falar-me:

— Impossível. Mesmo se o denunciado ainda não tivesse sido preso, e no caso já está, a polícia não poderia deixar de levar em consideração uma tão extraordinariamente bem fundamentada acusação. Sua solicitação não pode ser deferida.

Olhei-o intensamente, mas não havia expressão alguma em sua fisionomia carregada. Ou ele estava vigiado, e então não ousava demonstrar indulgência alguma para com meu pedido, principalmente após minha imprudência inicial. Ou, ainda, eu já havia caído em desgraça. E de que serviria a Karrek um aliado que fracassara?

De qualquer forma era impossível falar abertamente com Karrek naquelas circunstâncias.

— Neste caso – disse eu –, queria apenas pedir... Que... Que... Ele pelo menos não fosse condenado à morte.

— Não está em meu âmbito decidir isto – disse Karrek friamente. Sua pena depende totalmente do juiz. Posso, aliás informar que seu caso já foi distribuído a um certo juiz, mas não estou autorizado a dizer seu nome, pois seria uma ação evidentemente criminosa tentar influenciar um juiz em seu trabalho.

Senti minhas pernas vacilarem e tive de segurar-me na escrivaninha para não cair. Karrek nada notou ou fingiu nada notar. Na situação em que estava, pensei: se ele agora está vigiado e não ousa demonstrar sua antiga amizade, talvez me ajude mais tarde em segredo. Isto aqui é apenas um teatro. Antes eu sempre pudera depositar minhas esperanças nele.

Aprumei-me, vi o sorriso maldoso de Karrek e o ouvi dizer com uma polidez irônica:

— Talvez lhe interesse saber que será o senhor quem ministrará a kalocaína no caso Edo Rissen. O senhor é o mais indicado para isso, pois o ministrador ordinário se encontra pessoalmente submetido à kalocaína. Podia-se tratar de arranjar algum dos participantes do curso, mas pensou-se em oferecer-lhe esta honra.

Suspeitei no princípio momento que isto não era verdade, que Karrek pretendia forçar-me a ficar de seu lado, talvez para repreender-me com energia ou talvez simplesmente para torturar-me.

Seja como for, aconteceu como ele dissera. Após o almoço fui chamado ao interrogatório judicial do caso Edo Rissen, e tive de trabalhar da melhor forma possível ante meus alunos. Minha manhã fora tão caótica que quase estive a ponto de interrompê-la pretextando doença. Apesar de tudo, mantive-me em pé, pois precisava, queria estar presente ao interrogatório e julgamento de Rissen, não para influir no processo – não acreditava que isso fosse possível –, mas para ver e ouvir ainda uma vez o homem que eu tanto temera e julgara odiar tão profundamente.

Na sala de interrogatórios já estava reunida uma considerável quantidade de pessoas. Divisei o militar de alto posto que desempenhava as funções de juiz e os dois secretários que olhavam seus blocos em branco. Ao lado do juiz estavam pessoas em uniforme policial-militar – provavelmente conselheiros especialistas em diferentes matérias, psicólogos, eticistas, economistas e outros – em frente às quais sentavam-se em semicírculo os participantes de meu curso, como também do curso do próprio Rissen, em uniforme de trabalho. No início vi seus rostos como manchas cor da pele, indistintas de seus uniformes. Ocorreu-me a idéia de observar como reagiam. Fitei com esforço algumas faces, uma após outra, mas elas pareciam máscaras. Abandonei-as, e elas se tornaram indistintas como antes. No mesmo instante a porta foi aberta e Rissen foi introduzido algemado.

Olhou em torno da sala, sem fixar-se especialmente em ninguém, nem mesmo em mim. E por que se fixaria em mim? Ele não podia saber que eu o denunciara, nem tampouco que eu devorava, mergulhado no desespero, todos os seus movimentos e gestos. Uma sombra de esperança me perpassou: talvez não só eu – talvez algum outro dos que ali estavam – portasse sob a máscara o mesmo meu desespero? Talvez muitos?

Quando ele se ajeitou na cadeira – muito civil, como era seu costume –, parecia-me às vezes quase sumir em sua sólida corporalidade, talvez porque ele não impunha mais às pessoas do que o faz um objeto, uma árvore, um animal; fechou os olhos e sorriu levemente. Era um sorriso triste e sem esperanças, dirigido a ninguém, como se ele tivesse sido todo tempo consciente de sua solidão absoluta e se encerrado e até mesmo procurado repouso nela, assim como eu imaginava um viajante polar sonolento buscando repouso no frio, mesmo sabendo que dormiria para sempre. E enquanto a kalocaína agia, seu sorriso desesperado espalhou-se sereno em seu rosto cheio de rugas. E mesmo que demorasse horas para falar, não se poderia desviar o olhar dele. Onde estariam antes pousados meus olhos que não viam a dignidade singular deste civil, suave e simples homem, que eu sempre achara ridículo! Uma dignidade totalmente distinta da rígida dignidade militar, precisamente porque consistia em uma completa indiferença ante o que ele fazia. Quando abriu os olhos e começou a falar, tinha-se a impressão de que ele muito bem podia estar ali recostado em qualquer cadeira, olhando as luzes brancas no teto e falando sem uma gota de kalocaína em si, nos mesmos termos que agora, pois o medo e a vergonha, que nos emudeciam, nele haviam sido consumidos pela solidão e desesperança. Eu poderia ter-lhe pedido para falar, e ele talvez o fizesse voluntariamente, como Linda, como um presente. Ele teria dito tudo o que eu queria saber, teria falado dos loucos e de suas tradições secretas, da Cidade Deserta, sobre si mesmo, como fora impelido ao desconhecido à sua maneira, da mesma forma que Linda fora a seu modo – tudo; se eu não tivesse escolhido brincar de inimigo em meu medo selvagem, quando descobri que algo proibido em mim respondia sua melodia com o mesmo timbre e jamais se deixaria silenciar novamente. Ele falaria então muito mais do que agora que o obrigavam a falar, talvez sobre coisas mais importantes, e me tornaria consciente da realidade de mim mesmo, que agora eu jamais descobriria. Não sentia nenhuma compaixão pelo fato de que ele seria condenado e morto, mas estava terrivelmente amargurado por ter-me maculado ao denunciá-lo. E eu o escutava tão avaramente como havia escutado Linda, apenas mais angustiado.

Queria saber algo dele mesmo. Mas ele nada dizia de pessoal. Perguntas gerais ele respondia até os últimos detalhes.

— Perfeito – disse ele –, perfeito. Cá estou eu. Como devia acontecer. Uma questão de tempo. Para dizer a verdade. Vocês podem ouvir a verdade, vocês? Nem todos são suficientemente sinceros para ouvir a verdade, isto é o lamentável. Ela poderia ser uma ponte entre cada ser humano – enquanto voluntária, é claro – enquanto é oferecida como um presente e recebida como um presente. Não é estranho que tudo perca seu valor tão logo deixe de ser um presente, inclusive a verdade? Não, isto vocês evidentemente não entendem, pois senão se sentiriam despidos, se veriam como um esqueleto nu; e quem aguenta ver isso! Ninguém quer ver sua miserabilidade, enquanto não é forçado! Forçado não por homens. Forçado por um vazio absoluto e pelo frio, pelo frio glacial que ameaça a todos nós. Vocês falam em comunidade. Em comunhão. E falam um de cada lado de um abismo. Não existirá um ponto, um único ponto ao menos, no longo desenvolvimento das gerações, por onde se pudesse escolher um outro caminho? Precisará o caminho passar sobre o abismo? Nenhum ponto onde se pudesse impedir que o tanque do Poder rolasse em direção ao vazio? Passará sobre a morte algum caminho rumo a uma nova vida? Existirá algum lugar sagrado, onde o destino é outro? Perguntei-me durante anos onde estaria este lugar. Se chegarmos lá, teremos absorvido as fronteiras, ou as fronteiras terão nos absorvido? Surgirão caminhos entre os homens tão facilmente como surgem caminhos entre cidades e distritos? Que surjam logo então. Surgirão com todos os seus terrores? Ou isto tampouco adianta? Terá o tanque do Poder crescido tanto que não permite ser transformado de deus em utensílio? Poderá alguma vez um deus, mesmo sendo o mais morto de todos os deuses, renunciar voluntariamente a seu poder? Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna normal, e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos... Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos de loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido... Eles pelo menos sabem que havia algo que lhes faltava. Por mais que soubessem o que faziam, restava ainda algo ignoto. Mas isto não conduz a lugar nenhum! Aonde pode algo conduzir? Se eu fosse até uma estação de metrô onde as multidões se comprimem, ou até um grande encontro festivo com alto-falantes à minha frente, meus gritos não repercutiriam mais longe que alguns poucos tambores no imenso Estado Mundial, e reboariam como sons ocos. Sou uma engrenagem. Sou um ser do qual retiraram a vida... E no entanto: exatamente agora sei que isto não é verdade. É a kalocaína, é claro, que me torna absurdamente esperançoso... Tudo se torna fácil e claro e calmo. Seja como for, vivo, apesar de tudo que extraíram de mim, e exatamente agora sei, que o que sou leva a algum lugar. Vi o poder da morte espalhar-se sobre o mundo em círculos amplos e cada vez mais amplos; mas não terão os poderes da vida também seus círculos, embora eu não pudesse vislumbrá-los?... Sim, sim, eu sei, é a kalocaína que está agindo, mas será por isso que não é verdade o que digo?

A caminho da sala de interrogatórios, fantasias loucas me confundiam o cérebro – todos os ouvintes de uma vez, por alguma razão misteriosa, dirigiriam sua atenção para algum outro lugar e eu poderia segredar minha pergunta no ouvido de Rissen... Mas desde então eu sabia ser isto um sonho diurno, que não poderia realizar-se, e ocorreu naturalmente que nem um único dos ouvintes, menos ainda todos de uma vez, afastou de Rissen seu olhar atento. Curiosamente, mesmo se tivesse oportunidade, eu nada teria a perguntar. Pouco me importava mais a Cidade Deserta, pouco me importavam as tradições dos loucos! Nenhuma Cidade Deserta era tão inacessível e tão segura como aquela para qual eu me dirigia, que não estava a milhas de distância em rumo desconhecido, mas próxima, próxima. Linda ainda existia. Pelo menos ela, ainda existia.

Rissen suspirou e fechou os olhos, mas abriu-os novamente.

— Eles pressentem! – murmurou, e seu sorriso brilhou mais e tornou-se menos desesperado. – Eles têm medo, colocam-se numa atitude de defesa, porque pressentem. Minha mulher pressente, quando não quer ouvir e faz-me ficar quieto. Os participantes do curso pressentem, quando tomam o mais superior dos ares e me ridicularizam. Deve ter sido um deles que me denunciou, minha mulher ou um deles. Quem quer que tenha feito isso, pressentiu. Quando falo, eles ouvem a si mesmo. É a eles mesmos que temem, quando me movo e existo. Ah, se fosse possível encontrá-lo, o abismo verde, o indestrutível... E agora creio que existe. Certamente é a kalocaína, mas mesmo assim sinto-me alegre... Por... Poder acreditar nisto...

— Meu chefe – disse eu ao juiz, com uma voz que inutilmente tentava manter firme –, posso dar-lhe uma injeção mais? Ele está quase acordando.

Mas o juiz sacudiu a cabeça.

— Isto é o suficiente. O caso já está totalmente esclarecido. Então, conselheiros, estais de acordo comigo quanto a este caso?

Os conselheiros murmuravam aprovativamente e se retiraram com o juiz para deliberar. No momento em que se abriu a porta da sala ao lado ocorreu algo inesperado. Um jovem do curso de Rissen pulou de seu lugar no semicírculo, precipitou-se até o pódio onde eu tentava aliviar o mal-estar dos interrogados ao despertar, e apontou energicamente para os que saíam, fazendo-os parar.

— Fui eu que causei tudo isto! – gritou desesperado. – Fui eu que denunciei meu chefe Edo Rissen por caráter subversivo! Hoje pela manhã, a caminho do trabalho, pus minha denúncia na caixa do correio; quando cheguei, ele já estava preso! Mas todos aqui que o ouviram... Todos que o ouviram... Devem compreender...

Eu havia descido do pódio, me aproximado do jovem e posto a mão sobre sua boca.

— Calma – segredei-lhe –, você não vai ganhar nada com isto, acabará se prejudicando sem salvar ninguém. Outros também o denunciaram.

— Tais incidentes inoportunos de pessoas que perdem o equilíbrio não devem absolutamente ser permitidos durante o interrogatório. O cidadão-soldado ali no primeiro banco, poderia o senhor alcançar-me um copo de água? Precisamos entender e desculpar a confusão de um jovem leal que se vê obrigado a denunciar seu chefe. – Mas acalme-se, acalme-se, você não precisa levar isto tão a sério. Não precisa defender-se publicamente. Você está perfeitamente justificado.

Confuso, ele bebeu a água e me olhou espantado. Quando pareceu querer continuar falando, silenciei-o energicamente, com a promessa de falarmos após o final do interrogatório. Sentou-se no banco mais próximo e fechou os olhos.

Quando voltei ao pódio novamente, Rissen estava totalmente desperto. Estava calmo e olhava para um ponto indefinido à sua frente, sempre sorrindo para si mesmo em sua solidão, mas agora seu sorriso era amargo. Subitamente, ergueu-se da cadeira e deu alguns passos à frente. Eu não podia nem queria impedi-lo.

— Vocês me ouviram... – começou com uma voz que penetrava no menor recanto, sem no entanto gritar, falando baixo e suavemente. Até minha morte não deixarei de ouvir o timbre e a intensidade de sua voz. Dois policiais que permaneciam no fundo da sala correram até ele, puseram-lhe uma mordaça e o conduziram de volta à cadeira. A sala se manteve em um silêncio mortal, até que finalmente o juiz, com os conselheiros atrás de si, subiu compassadamente até o pódio e instalou-se em seu lugar para proferir a sentença. A sala toda se levantou. Também Rissen foi levantado pelos dois guardas.

— Um portador de bacilos pode ser desinfetado – disse o juiz em solene tom de comando. – Mas um indivíduo que por sua própria atitude, que através de seu próprio hálito, espalha descrédito de todas as nossas instituições, pessimismo em relação ao futuro, derrotismo ante a tentativa de conquista de nosso país pelo Estado vizinho, este indivíduo não pode ser desinfetado. Ele é pernicioso ao Estado em qualquer lugar ou trabalho em que se encontre e não pode ser posto fora de combate senão com a morte. Profiro esta sentença de acordo não apenas com a maioria mas também com os melhores conselhos que recebi dos especialistas constituídos para este caso. Edo Rissen é condenado à morte.

A sentença foi recebida por um silêncio solene. O jovem, meu companheiro de delação, permanecia rígido em seu lugar, branco como um lençol. Rissen, ainda amordaçado, foi retirado. Eu estava junto à porta, quando esta se fechou atrás dele. Sem saber como, eu o havia seguido passo a passo, tão longe quanto pude ir.

Quando olhei novamente em torno a mim, o jovem havia desaparecido. Como era um dos participantes do curso, seria possível encontrá-lo, ainda. Meus pensamentos remoíam mecanicamente algumas perguntas rotineiras: quem conduziria o curso de Rissen? – provavelmente algum dos alunos mais antigos –, quem dirigiria meu curso se eu me encarregasse do de Rissen? – Sim, existia muita gente para ser aproveitada, embora um único participante apto. Logo o curso estaria finalmente concluído, podia-se então começar um novo... Era como o ruído de um moinho moendo o vazio. Eu estava em outro lugar, onde tudo era calmo e sombrio.

Quando voltei a minha própria sala de aulas e me deparei com um semicírculo de ouvintes, tão confuso como o que eu deixara, tive de pretextara um mal-estar qualquer e voltei para casa. Eu não podia mais representar a comédia.

Entrei no quarto dos pais, fechei a porta atrás de mim, deitei-me na cama e caí numa espécie de semitorpor. A lâmpada brilhava, o ventilador zumbia; do lado de fora eu ouvia os passos e tarefas da criada. Ouvi a porta bater novamente quando ela saiu para apanhar as crianças. Depois ouvi as vozes e a algazarra de Maryl e Laila e as tentativas da criada de aquietá-las. Ouvi o ruído do elevador da comida e o tilintar dos talheres. Mas não ouvi a voz de Linda, a única coisa que eu esperava.

Uma batida na porta fez-me pular da cama. A criada perguntou pela porta entreaberta:

— O senhor já quer a comida, meu chefe?

Alisei o cabelo e sai. Mas Linda não estava lá. A hora normal da janta há muito já havia passado. Tentei inutilmente lembrar-me de algo que ela tivesse a fazer – ela costumava sempre chegar em casa e comer primeiro –, mas em atenção a Linda não convinha demonstrar qualquer dúvida ante a empregada.

— Ah, sim – disse vacilante –, pareceu-me que ela disse que estaria fora hoje... Como sou muito distraído, esqueci totalmente do que se tratava.

As crianças foram deitar-se e fiquei ainda esperando. A criada se foi, mas nenhuma Linda chegava. Em meu nervosismo levantei-me e chamei a Central de Acidentes, sem me preocupar com o que o porteiro pensasse. Durante o dia naturalmente ocorrera uma série de acidentes na Cidade Química n° 4, alguns acidentes de tráfego em linhas que eu não conhecia e diversos sistemas de ventilação enguiçados, com dois casos fatais e alguns casos ainda não definidos, mas todos em distritos distantes do que Linda trabalhava.

O pior era que eu não podia sentar e ficar esperando. Em meu regimento havia uma festa à noite, à qual eu não poderia deixar de ir sem razões de força maior. De meu trabalho eu não teria podido cuidar, mas sentar e deixar que discursos e conferências e rufar de tambores me atravessassem os ouvidos, isto eu poderia aguentar. Se soubesse apenas onde Linda estava?

Ela falara em procurar gente. Ela queria encontrar outros que haviam atingido aquela solidariedade total. Mas ela sabia por acaso onde eles existiam? Onde teria começado sua busca?

Ao chegar a hora, fui – mecanicamente – sem ao menos dar-me conta de que poderia me esquivar da festa.

Eu nunca mais veria Linda.


 

 

 

 

Era minha intenção escutar a conferência, mas não foi fácil. Precisava debater-me internamente para concentrar-me, e conseguira acompanhar aqui e ali algumas frases. Tanto quanto me lembro, o tema era o desenvolvimento da vida social desde o isolamento primitivo, onde os indivíduos – cada um constituindo um centro solitário – viviam em constante insegurança – insegurança ate as forças naturais e insegurança ante outros centros solitários semelhantes –, até o Estado acabado, que era o único sentido e justificava o indivíduo, oferecendo-lhe em troca uma segurança sem limites. Este era o fio condutor, mas maiores detalhes não consigo repetir, embora se referissem à vida. Mal eu me obrigava a atenção, pensamentos sobre Linda e Rissen e sobre o novo mundo que existia e avançava faziam-me esquecer de tudo a minha volta. Quando despertei de minhas elucubrações mal conseguia permanecer calmo. Não só meu íntimo, como também meus nervos e músculos exigiam que eu saísse. Se não agisse imediatamente, poderia explodir a qualquer momento por minhas próprias forças – assim me parecia.

Por fim aproximei-me da saída, em meio à conferência. O secretário de polícia mais próximo franziu desaprovativamente o cenho, e o porteiro impediu-me a passagem com um olhar interrogativo. Declinei meu nome e mostrei minha licença de superfície como prova de identidade.

— Desculpe-me, cidadão-soldado, mas estou me sentindo terrivelmente mal. Acho que melhoro se subo alguns minutos ao ar livre. Ando doente, tive de ficar hoje o dia todo de cama, nem pude ir ao trabalho...

Ele anotou meu nome, o horário de minha saída e liberou-me a porta.

Tomei o elevador, Repeti meu pedido ao ascensorista, que também o anotou e liberou-me.

Subi até o terraço.

No primeiro instante, não consegui perceber o que havia de diferente. Algo absolutamente estranho ocorria no terraço deserto. Fiquei aterrorizado sem saber por quê. Após alguns segundo descobri o que me apavorava. Não ouvia o ruído de aviões que preenchia o ar dia e noite. Tudo era silêncio.

No interior dos prédios residenciais, na profundidade dos locais de trabalho eu conhecera um relativo silêncio. Lá o ruído das linhas de metrô e dos aviões era absorvido por paredes e camadas de terra, e os ventiladores giravam com um sussurro suave e sonolento; um amortecimento de todos os sons, um alívio e repouso, como quando sentimos o sono envolver-nos com seu manto e nos tornamos sós, pequenos, encolhidos. Mas o silêncio do terraço não se assemelhava a este silêncio relativo. Era sem limites.

Nas marchas noturnas e ao voltar para casa de festas e conferências, vi muitas vezes as estrelas brilharem entre as silhuetas móveis dos aviões, mas que havia de mais nisto? Elas não brilhavam o suficiente para tornar supérflua a lanterna de bolso. Ouvi falar uma vez que elas eram sóis distantes, mas não consigo lembrar se a informação causou-me alguma impressão marcante. Subitamente, vi no silêncio infinito o firmamento estender-se de uma imensidão a outra e girar vertiginosamente pelos colossais espaços vazios entre estrela a estrela. Um Nada incomensurável fez-me perder o fôlego.

Então ouvi algo que já conheci e vira os efeitos, mas que até então não tinha ouvido: o vento. Uma brisa noturna suave, que passava entre as paredes e movimentava lentamente os oleandros. E embora talvez envolvesse apenas alguns poucos distritos com seu suave murmúrio, eu com toda a minha vontade não podia defender-me de uma poderosa fantasia, a de que a brisa era o alento dos espaços noturnos, que emanava da escuridão tão suave e naturalmente como o suspiro de uma criança que dorme. A noite respirava, a noite vivia, e tão longe quanto eu podia ver, as estrelas pulsavam como corações e enchiam o vácuo com ondas vibrantes de vida.

Quando voltei à consciência de mim mesmo, estava sentado no muro do terraço e tremia, não de frio, pois a noite era morna, quase quente, mas de uma forte comoção dos sentidos. O vento ainda soprava, embora mais suavemente, e vi que não nascia da escuridão dos espaços mais de camadas de ar próximas da Terra. As estrelas ainda cintilavam da mesma forma, e lembrei-me que suas pulsações de luz eram uma ilusão de óptica. Mas isto não significava nada. P que vi e ouvi poderia ter sido ilusão. Mas tomara a forma de um outro universo, um universo interior – onde eu costumava encontrar uma carapaça seca e enrugada, que eu chamava de mim mesmo. Achei que havia roçado o abismo vivo pelo qual Rissen clamava e Linda sentira e vira. “Não sabes que aqui emerge a vida?”, dissera a mulher em meu sonho. Eu acreditava nela, e estava certo de que tudo poderia acontecer.

Eu não podia voltar à festa e à conferência. Para mim agora era indiferente que alguém tivesse notado minha ausência. Toda a atividade formigante, que exatamente agora se manifestava em mil salas de festas e conferências nos subterrâneos da Cidade Química n° 4, pareceu-me longínqua e irreal. Eu não pertencia àquilo. Eu me decidira a criar um novo mundo.

Eu queria voltar para casa, para Linda. E se ela não tivesse chegado? Se eu não a encontrasse? Então eu continuaria, iria até o jovem que denunciara Rissen, iria até a mulher de Rissen. Não sabia onde morava o jovem, mas o endereço do apartamento de Rissen eu tinha, ficava no distrito dos laboratórios, onde eu possuía licença e poderia ir e vir quanto quisesse. Ele havia dito: “Minha mulher pressente – minha mulher pode ter-me denunciado”. Tivesse ela oferecido tão desesperada resistência como eu, então estava próxima a entender. Primeiro para casa, depois para ela. Não existiam mais dúvidas em mim. Eu me decidira a criar um novo mundo.

Não se via ninguém. Tão imperceptivelmente quanto possível, galguei o baixo muro que separava o terraço da rua. No silêncio, meus passos ecoavam de modo estranho, mas não me pareceu que despertariam a atenção de alguém, tampouco existia vivalma para impedi-los. Como não havia aviões no céu, a luz das estrelas era suficiente para que eu encontrasse meu caminho, e não me preocupei em acender a lanterna de bolso. Embora eu caminhasse completamente só sobre a terra, debaixo das estrelas, tinha um estranho pressentimento de não estar só. Assim como eu me dirigia ao desconhecido em busca do fundamento vivo e profundo do universo, também Linda talvez se dirigisse a algum lugar, a não sei quem. E não seria possível que exatamente agora um outro, nas mil cidades do Estado Mundial, também não estivesse a caminho, como nós, ou já tivesse talvez chegado? Não seria possível que milhões de seres estivessem a caminho, aberta ou ocultamente, voluntária ou involuntariamente – no imenso Estado Mundial, e por que não no Estado vizinho? Há alguns dias atrás um tal pensamento ter-me-ia feito recuar, mas como se pode fazer algo ante uma fronteira, mesmo ante mil léguas, quando sentimos que nossos impulsos nos conduzem ao coração do universo?

Ouvi a distância os passos em marcha rítmica do vigia do distrito, com suas rápidas pausas e um pequeno chiado cada vez que fazia meia volta. Era curioso ouvir tais ruídos ao ar livre. Que pensaria realmente o vigia em sua solidão na noite silenciosa? E eu – que pensava eu? Só agora me perguntava de onde vinha todo este silêncio.

Mas apenas por um momento. Eu não conseguia resolver o enigma, e isso me era indiferente. Apenas minha missão era importante.

O sussurro distante começou então a tornar-se mais intenso e crescer até um ruído de motores. As máquinas voadoras estavam ali novamente. Se fora o silêncio anterior que tornava o ruído tão aterrorizador, ou se ele nunca fora tão intenso antes, não sei. De qualquer forma era tão ensurdecedor que tive de proteger-me contra o muro até que meus tímpanos se adaptassem.

O firmamento inteiro tornou-se escuro, pesado e escuro, e a escuridão formigava de uma forma que me era estranha. No fundo de mim mesmo, mas senti do que vi, corpos sólidos preenchendo o espaço em torno de mim. Empunhei minha lanterna e assestei o facho a minha frente. Encontrei uma figura humana a meio metro de distância. Pára-quedistas! Logo após dez poderosas lanternas me vasculhavam o rosto e senti meus braços presos por mãos fortes.

Como eu nada mais podia supor senão que a Força Aérea tivesse treinamento noturno, gritei tão alto quanto pude, para sobrepor-me ao ruído:

— Estou doente, estou indo para o metrô. Larguem-me.

Ou eles não ouviram ou tinham outras ordens, pois não me soltaram. Depois de me examinarem e desarmarem – eu portava o uniforme policial-militar em razão da festa –, fui fortemente amarrado e transportado numa espécie de triciclo, que alguns homens montaram rapidamente com algumas peças leves, que pareciam ser especialmente concebidas para o transporte de prisioneiros. Fui ainda algemado com as mãos para trás, de forma não muito incômoda, mas sem possibilidade alguma de mover-me, quando um dos soldados gritou algo para seu companheiro da frente e partiu rapidamente.

Supus que involuntariamente eu havia sido feito prisioneiro nos exercícios simulados da Força Aérea e percebi que só restava resignar-me. De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde eu chegaria onde queria.

Por onde rodávamos, o farol do veículo iluminava rapidamente um pequeno trecho do caminho à frente. Há pouco não se via nem se ouvir ser humano algum. Agora formigava de gente por todas as ruas, todas as praças e terraços, todos intensamente ocupados com um trabalho definido. Eu não podia deixar de admirar a organização deste gigantesco treinamento noturno. E quanto mais longe avançávamos, mais o trabalho progredia. Vi barreiras de arame farpado serem montadas (conseguiriam retirá-las até amanhã cedo, quando o povo se dirigisse ao trabalho?), vi longas mangueiras estendidas, recipientes os mais diversos sendo carregados para todos os lados, guardas vigiando as estações de metrô e os prédios residenciais. De quando em quando via um triciclo carregando alguém prisioneiro como eu, e perguntei-me aonde nos levariam.

Os triciclos pareciam reunir-se numa praça em frente à qual fora montada uma grande tenda, num terraço. Os prisioneiros levados para lá – uns vinte antes de mim – tinham as mãos livres mas os pés amarrados e foram conduzidos à tenda. Mal entrei, deparei-me com um prisioneiro que oferecia resistência e reclamava o tempo todo que ele, sendo vigia distrital, não poderia estar exposto a tais manobras. Quem cuidaria de suas obrigações em sua ausência? Como poderia justificá-la no dia seguinte a seu chefe? O ruído dos motores era nitidamente mais fraco dentro da tenda – ela era provida de um poderoso sistema antiacústico – de modo que se podia ouvir perfeitamente o que ele dizia, e pensei comigo mesmo que os soldados que o cercavam podiam ao menos dar-lhe uma resposta; quando subitamente ouvi dois outros soldados trocarem algumas palavras em um idioma totalmente estranho, do qual nada entendi. Não éramos absolutamente vítimas de um exercício noturno. Éramos prisioneiros do inimigo.

Até hoje não sei como tudo se desenrolou. Pode-se imaginar que o inimigo, lenta e metodicamente, tenha substituído um a um os tripulantes da Força Aérea por espiões até ter sob seu comando todos os aviões. Pode-se ainda imaginar um rastilho de revolta e traição, motivado por razões desconhecidas. As possibilidades eram muitas, todas fantásticas, e a única coisa certa era que não ocorrera luta aérea alguma, e tampouco vi lutas em terra. O ataque fora muito bem planejado.

Os prisioneiros esperavam em filas num compartimento externo da tenda e eram conduzidos um a um ao interior. Lá estavam um militar de alto posto com alguns tradutores e secretários em torno a si. Interrogaram-me bruscamente em meu próprio idioma sobre meu nome, profissão e grau na vida militar e civil. Um dos presentes curvou-se e disse algo tão baixo que nada entendi, mas tive um sobressalto ao ver seu rosto. Não era um de meus alunos? Eu não estava totalmente certo. O chefe olhou-me com ar de interesse.

— Então o senhor é um cientista químico? E fez uma importante descoberta? Quer comprar sua vida com ela? Quer entregar-nos sua descoberta?

Por muito tempo depois me perguntei por que havia respondido sim. Medo não era. Tive medo quase toda minha vida, fui covarde – que contém meu livro senão o relato de minha covardia! –, mas naquele momento eu nada temia. Em mim só havia lugar para uma decepção sem limites por não poder jamais chegar até aqueles que esperavam. Tampouco me passava pela cabeça que minha vida valeria a pena ser salva em tais circunstâncias. Prisioneiro ou cadáver, parecia-me ser exatamente a mesma coisa. Em ambos os casos meu caminho até os outros estava interrompido. Quando percebi mais tarde que não fora minha descoberta que me salvara, que minha vida seria poupada de qualquer forma, que um grande número de prisioneiros era um valioso ganho para o Estado vizinho pois a natalidade lá, tão reduzida quanto aqui, sofria as mesmas perdas com a Grande Guerra, não senti arrependimento algum, nada se modificou em minha posição. Entreguei minha descoberta simplesmente porque desejava que ela continuasse a existir. Embora a Cidade Química n° 4 virasse ruínas, embora todo o Estado Mundial se transformasse em um deserto de cinza e pedras, eu queria pelo menos imaginar que em algum lugar, em outras terras e entre outros povos, uma nova Linda falaria, como a primeira, espontaneamente, que alguém tentaria forçá-la, e que um outro grupo de delatores aterrorizados ouviria um novo Rissen. Isto era naturalmente superstição, pois nada se repete, mas eu nada tinha a fazer. Esta era minha única e frágil possibilidade de continuar o que me fora impedido.

Como fui depois transportado para uma cidade estrangeira, para trabalhar sob vigilância em uma prisão-laboratório, já contei.

Contei também que os primeiros anos de minha prisão transcorreram cheios de angústia e dúvidas. Informações reais sobre o destino da Cidade Química jamais consegui obter, mas aos poucos imaginei o plano seguido pelo inimigo. Consistiria em inundar de gases as ruas e impedir a renovação de ar das partes subterrâneas da cidade, até que os habitantes em desespero subissem até as poucas saídas livres, um a um ou em pequenos grupos se entregassem ao poderio inimigo. Até que ponto foram suficientes os reservatórios de oxigênio subterrâneo, e se a coragem dos habitantes foi tal que preferiram a morte à rendição, não sei. Era de supor-se ainda que o cerco todo fracassara, e que esforços haviam chegado de outras regiões do Estado Mundial. Como já disse, jamais chegarei a saber algo. Mas de qualquer forma existia uma possibilidade de que Linda estivesse viva. Talvez até mesmo Rissen, caso não tivessem tido tempo de executá-lo. Sei que isto é uma fantasia inverossímil, e se quisesse interrogar minha razão, passaria o resto da minha vida em dúvidas. Se não o faço é porque meu instinto de conservação me força a buscar conforto na ilusão. O próprio Rissen dissera antes de ser condenado: “Sei que o que sou leva a algum lugar”. Não estou muito certo do que ele queria dizer. Mas me acontece muitas vezes, quando sento em minha maca com os olhos fechados, ver as estrelas cintilarem e ouvir o vento sussurrar como aquela noite, e eu não posso, não consigo extirpar de meu ser a ilusão de que eu ainda, apesar de tudo, estou prestes a criar um mundo novo.


 

 

 

 

Posfácio do censor

Em vista do conteúdo imoral do presente escrito decidiu o Departamento de Censura juntar o mesmo aos manuscritos subversivos do Arquivo Secreto do Estado Universal. Que ele simplesmente não tenha sido destruído dependeu do fato de que justamente este conteúdo imoral poderá ser utilizado por pesquisadores esclarecidos para o estudo da mentalidade dos seres que habitam o país contíguo ao nosso. O prisioneiro que concebeu o manuscrito e que continua trabalhando como químico sob vigilância – agora com mais rígido controle de como utiliza os papéis e canetas do Estado – é, em sua estranha e progressiva deslealdade, em sua covardia e superstição, um bom exemplo da decadência característica do país inferior que nos é vizinho, que não pode ser explicada senão através de um ainda não pesquisado envenenamento interior hereditário e incurável do qual nossa nação está felizmente livre e, se o referido envenenamento propagar-se além das fronteiras, deve ser necessariamente descoberto através do meio que o dito prisioneiro contribuiu a instituir. Recomendo portanto aos que têm em mãos o empréstimo deste manuscrito o mais alto cuidado, e aos que lerem uma crítica minuciosa como também a mais sólida esperança num futuro melhor e mais feliz do Estado Universal.

Hung Paipho
Censor


©2012 – Karin Boye – Tradução: Janer Cristaldo

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Julho 2012

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