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Noites Josefinas de Mirtilo

Luís Rafael Soyé



Noites Josefinas de Mirtilo (1790)
Luís Rafael Soyé (1760-1831)


Fonte digital
Noites Jozephinas de Mirtilo, sobre a infausta morte do serenissimo senhor D. José, principe do Brazil. Dedicadas ao consternado povo Luzitano.
Regia Officina Typographia, 1790
Lisboa
Biblioteca Nacional Digital
http://bnd.bn.pt/
http://purl.pt/13857/
Capa:
Alegoria à morte de D. José, Príncipe do Brasil. Gravura a buril de José Lúcio da Costa, a partir de obra de João Thomás da Fonseca
Fonte digital
Pedra Formosa
pedraformosa.blogspot.com

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Edição dedicada a Luís António Verney

© 2008 Luís Rafael Soyé
USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL


ÍNDICE

Noite I
Noite II
Noite III
Noite IV
Noite V
Noite VI
Noite VII
Noite VIII
Noite IX
Noite X
Noite XI
Noite XII


Nota Editorial

A Quem Ler — “São os Prólogos um antecipado remédio aos achaques dos livros, porque andam sempre de companhia os erros, e as desculpas” (Jacinto Freire d'Andrade, vida de D. João de Castro - Ap. Luís Rafael Soyé, Cartas Pastoris de Myrtillo Escritas à sua Lira na Ausência da Pastora Anarda - Dedicadas ao Ilmo. e Exmo. Senhor Henrique José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras Marquês do Pombal, do Conselho de Sua Majestade, Gentil-Homem de sua Real Câmara, &c. &c. &c.)

Pois que aceitem os erros e as desculpas juntas, não em Prólogo, mas destas notas editorais.

Esta edição, que se pretende a segunda do Noites Josefinas de Mirtilo, de Luís Rafael Soyé, merece alguns e todos os reparos. A começar pelos senões de puristas que acoimarão de heresia o abrasileirar do linguajar poético luso setecentista de Soyé. Por então, julgo, andávamos a falar, dos dous lados do oceano com o mesmo acento. Tempos passados, em que apenas o grande mar nos separava. Hoje, separam-nos, para ficar em um só exemplo, que se notará na edição, até um h do úmido mar, de facto.

Mas para que melindres, se portugueses somos todos, por obra e graça de nossos Maiores? Não foi em Portugal que se publicou primeiro Cecília Meireles, premiada por aqui por uma Academia de Letras, editada lá para o reconhecimento dos dois lados do grande Mar?

Não seria Rafael Soyé tão brasileiro quanto lusitano, quando todos lusitanos éramos? E não ficou por aqui, abrilhantando a criança que se emancipava, com suas luzes e artes, quando Brasileiros nos queríamos? E não nos tornamos Brasileiros pelas mãos de um Lusitano?

Mas... talvez a preocupação seja só minha, e nem passe pela mente de nem um dos meus Maiores cobrar-me a petulância.

Nesta edição, para preservar um certo quê setecentista, conservou-se alguns arcaísmos facilmente identificáveis (froxa, p. ex.). Introduzi alguns apóstrofos para apoio à leitura, sem sacrificar a métrica (c'rova, p.ex.). Em outros casos, acentos foram omitidos, principalmente em nomes de deuses, de figuras da História Antiga, para facilitar eventuais buscas na internet.

Finalmente — mais desculpas — não tendo um original impresso em que me apoiar, mas apenas uma reprodução digitalizada em que algumas palavras não reconhecidas pelo OCR foram claramente substituídas por imagem, é mais do que provável que algo tenha passado desapercebido. Para remediar o mal, ou para melhor ilustrar as desculpas, estou incluindo, em volume separado, a fonte digital utilizada, com o título Noites Josephinas de Mirtilo (1790). Assim, o eventual leitor poderá aquilatar o trabalho executado e suprir eventuais falhas cometidas.

Para não me estender em desculpas, fico por aqui. Boa leitura!

Teotonio Simões
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O Autor e a Obra

Luís Rafael Soyé (1760-1831), nasceu em Madri, mas foi levado por seus pais a Lisboa ainda muito jovem. Após a morte de seus progenitores, tornou-se protegido de João de Saldanha Oliveira e Sousa, depois primeiro Conde de Rio-maior, que cuidou para que recebesse educação em pintura, gravura, bem como em humanidades. O frontispício alegórico deste volume, na quarta folha preliminar foi desenhado por ele. Soyé tornou-se Franciscano e estudou em Coimbra. Depois, obteve um breve de secularização e em 1802 foi enviado à França paa comprar livros para a recém formada Biblioteca Pública em Lisboa. Durante sua permanência em França, escreveu diversos poemas laudatórios a Napoleão, o que tornou impossível seu retorno a Portugal após a restauração de Bourbon. Passou o resto de seus dias no Rio de Janeiro, onde foi indicado secretário da Academia de Belas Artes.

Sobre os fatos relativos à sua indicação para o cargo há diversas menções disponíveis na Internet, a maioria baseada nos depoimentos de Taunay, que expressa, na realidade, o descontentamento dos membros da Missão Francesa não apenas quanto à indicação de Soyé para a Secretaria, como de outro patrício, Henrique José da Silva, para Diretor da Academia de Belas Artes. Os fatos são narrados com precisão de detalhes por Lilia Moritz Schwarcz, em seu O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João (1816-1821) (Cia. das Letras, 2008).

As Noites Josefinas de Mirtilo ou, por extenso, em seu título original: Noites Josefinas de Mirtilo Sobre a Infausta Morte do Sereníssimo Senhor D. José Príncipe do Brasil Dedicadas ao Consternado Povo Lusitano, tem a seguinte nota de um dos diversos sites de livros antigos que colocam esta obra à venda:

“Lisbon, Regia Officina Typographica, 1790. 148 [i.e. 248] pp., (1 l. advertisement, 1 blank l.), 17engraved plates, plus an engraved vignette at the beginning of each of the 12 @noites. 8º, contemporary stained calf, spine gilt, some wear, head of spine chipped. Occasional very light foxing and soiling, mostly in upper margin. Bookplate of Charles Scott Murray, of Hambleden. FIRST & ONLY EDITION of this elegiac poem on the death of D. José, the first work of this genre to be published in Portugal. Although Innocêncio notes that the style is "mui longe de poder julgar-se perfeito," the work is extremely interesting for its engravings, executed by eight of the most notable Portuguese artists of the late eighteenth century. Among them are Gregorio Francisco de Queiroz (see Soares II, 439-90), who did the vignettes for @noites IV, VII, VIII, IX and XI, and José Lucio da Costa (Soares I, 187), who did the vignettes for @noites I and V.”

Para quem quiser e se dispuser a investir US$600, cá vai o endereço: www.ilab.org/db/book1714_23972.html — Claro que se trata da “PRIMEIRA & ÚNICA EDIÇÃO” em cola e papel. Na Biblioteca Nacional de Portugal há uma “reimpressão” em pdf e, cá, uma segunda edição, com ortografia atualizada, pelo português que se escreve por estas bandas, em terras de que D. José um dia foi o Príncipe, em que Soyé expirou. Seria pretenção considerá-la uma segunda edição?

O inestimável NUPILL, lastreado em outras fontes, elenca as seguintes obras de Soyé: A Atalanta (Teatro, 1794); Anúncio (Outros, 1821); Beneficência de Jove (Teatro, 1792); Cartas Pastoris (Poesia, XVIII d.c.); Discurso (Outros, 1826); Ditirambos (Poesia, 1787); Epicédio (Poesia, 1788); Hipólito (Teatro, 1796); Manual dos deputados (Outros, 1822); Napoleão (Poesia, 1808); Noites Josefinas (Poesia, 1790); O tempo do destino (Não identificado, 1791); Ode cantada (Poesia, 1792); Oitavas (Poesia, 1815); Os lavradores (Teatro, 1792); Sonho (Poesia, 1786); Versos de Myrtillo (Poesia, 1791). Ademais, no final deste volume estão elencadas outras, inclusive uma tradução “em verso endecassílabo solto da Phedra... do delicado Racine”. Estavam “prontas para o prelo”. Podem não ter sido impressas e, talvez, perdidas para sempre.

Obras de Soyé estão disponíveis na Biblioteca Digital de Portugal e, também, no Google Books.

Para os bibliófilos: na Babel Livros, por R$500,00, pode-se adquirir o Discurso para ser lido na Augusta Presença de Sua Majestade Senhor D. Pedro I Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil a 5 de Novembro de 1826 na Abertura da Academia, e Escola das Belas Artes, por Luis Rafael Soyé, Secretário da dita Academia - Rio de Janeiro - Na Tipografia Imperial e Nacional - 1826. Até ontem, 18 de julho de 2008, estava à venda pela Internet: Babel Livros: R. do Rosário, 36 - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Tel: (21) 2253-6260 - R. Pará, 324 - Praça da Bandeira - Rio de Janeiro - RJ - Telefax: (21) 2568-7044 - livros@babellivros.com.br - www.babellivros.com.br/permespe.htm [“15p. Enc. Com poucos picos de inseto nas margens do exemplar. Com duas gravuras de Soyé no final do exemplar. CEHB, 7279; AVC (Suplemento), 169.”]

Doce e vã esperança minha: talvez alguém compre, faça uma cópia digital e libere o conteúdo na Internet... antes que insetos levem os picos do exemplar para além das margens...






N O I T E  I.

I

Suspende, Atropos fera. ai!. ai! não cortes
Vida tão preciosa... Mas... que vejo?
Desgraçados de nós!.. a Parca bruta
Os anéis da tesoura uniu sem pejo.

2

Ai!. ai!. estremeceu.. o último arranco
O leito fez tremer;.. a morte dura,
Bafejou-lhe o semblante... ah já nos olhos
Apagou mortal sopro a luz mais pura!

3

Completou-se por fim o sacrifício...
A vítima expirou... a final pena
Executada está... rompeu-se o laço...
Voou do corpo ao Céu a alma serena.

4

Triste coração meu... em pranto, em queixas
Derrama o teu pesar... os teus gemidos
Prendam os rios... e os ligeiros ventos;
Os penedos lamentem condoídos.

5

Troncos, já que abrandar-vos conseguiram
Mil vezes dos amantes os queixumes,
Chorai o maior dano, que podiam
Talhar da Parca os encruzados gumes.

6

Chorai montes, e vales: chorai prados...
Faunos dos nossos bosques, e Napeias...
Chore todo o vivente, que respira
Do Minho, e Guadiana entre as areias.

7

Desventura cruel, feroz desgraça,
Porque ofuscas de Lízia a feliz sorte?
Porque do Erébo na caverna escura
Afrouxaste o grilhão à crua morte?

8

A descarnada mão a Parca fera
Sobre o peito lhe estende...Ah Lusitanos!
Com ela do calor lhe extingue o resto...
Lamentai... lamentai da morte os danos.

9

Dia o mais infeliz de quantos dias
À costa ocidental o Sol tem dado:
Já que trouxeste tão fatal sucesso,
Foge, foge de nós arrebatado.

10

Entre afumada névoa apareceste
Sobre o nosso Horizonte macilento;
Da tua comissão horrorizado
Nas grutas s’escondeu gemendo o vento.

11

Encubrindo co’as mãos o rosto esquivo,
Desce de Tétis ao Cerúleo seio;
Já que cheios nos deixas de amargura,
Vai teu leito buscar de mágoas cheio.

12

Vai-te, e por nossos ais quase obrigada
Venha a Noite mais cedo aos nossos montes:
Negra filha do Caos... mãe do descanso,
Vem de Lízia enlutar os horizontes.

13

Tudo forra da cor, de que tingidos
Temos os corações amargurados...
Vem de negro vestir os nossos vales,
Outeiros, praias, mar, bosques, e prados.

14

Tágides lindas... desgrenhai as tranças.
Dos ternos seios desterrai amores....
Neles agasalhai de hoje em diante
Só tristes ânsias, só pungentes dores.

15

Nadando ao cimo das ferventes águas,
Ouvi a minha rouca voz confusa...
Chorai mais, que no plácido Erimano
Entre as Irmãs chorou triste Faetuza.

16

E vós, ó Lusos, que apesar dos ventos
Que solta, e prende Adamastor ufano,
Sem de Juno temer impunes dolos,
Nem as vinganças d’Eolo desumano.

17

Mais destemidos, que de Tiro os povos
Em curvas pranchas por incerto rumo
Fostes de Calecut ferrar a areia,
Que primeiro fondou pesado prumo.

18

Vós, que altivos pisando as meias Luas,
Rompendo armadas, bárbaras falanges...
Levastes os grilhões, em que ficaram
Presos os pés do embravecido Ganges.

19

Lusitanos!... ouvi... ouvi tremendo...
Ah Mercúrio! dos Deuses mensageiro,
Tu que animas da fama as cem trombetas,
Conta o fatal sucesso derradeiro.

20

Lusitanos... ai!... ai!... o alento falta...
Lusitanos,.. o pranto me sufoca...
Lusitanos,.. soltar a voz não posso...
Lusitanos,.. a dor seca-me a boca.

21

Lusitanos,.. mas já o amargo pranto,
Tendo entre os roxos lábios franca entrada,
A língua umedeceu-me, que já seca
Estava ao paladar quase pegada.

22

Com língua pois banhada em pranto triste...
Coroado co’ a rama do Cipreste...
Com face macilenta, errantes olhos,
Envolto em sepulcral, escura veste.

23

Com voz, que cortam ais... queixas... soluços
Ao dissonante som da negra Lira...
Myrtilo te anuncia o maior golpe,
Que podia vibrar dos Céus a ira.

24

O vosso... ah crua Parca enfurecida!
Já que para o ferir tiveste alento,
Ajuda-me a espalhar o doce nome,
Que objeto foi do teu rigor cruento.

25

Vosso Príncipe amado... o virtuoso...
José Augusto... Mas perdeis as cores?..
Vossos cabelos já o susto eriça?..
Ah!. fim!. morreu!. soltai tristes clamores.

26

Já vistes n’outro tempo a medo o Tejo
Erguer sobre o seu leito cristalino
A cabeça c’roada d’espadana,
Para observar de Afonso o mau destino.

27

Lembrai-vos do pavor arrebatado,
Com que deixando o Pai, as claras águas
Para Afonso estendeu, com são desejo
De poupar-lhe co’a vida as vossas mágoas.

28

Mas apesar dos vossos vãos gemidos,
Quando o Rio chegou já furioso,
O indômito animal c’os pés ferrados
Terminara o seu fado desditoso.

29

D’um pobre pescador na vil palhoça
O vistes expirar acompanhado
Da carinhosa mãe, da esposa terna,
E do Rio, que a dor tinha espraiado.

30

Não é, Povo distinto, a vez primeira,
Que te rouba nos Príncipes a Morte
As tuas esperanças, quantas vezes
O teu seio rasgou seu fatal corte?

31

Do terno Dom Miguel no peito brando
O punhal não cravou atraiçoada?
Sem reparar, que do Leão ao trono
Lhe dava a descendência aberta entrada?

32

Do terceiro João o nono filho
Desprezando ameaços do futuro,
A enfurecida Parca sanguinosa
Não levou dos Irmãos ao fim escuro?

33

Lá de Alcacer Seguer, quando o terreno
Com o sangue dos nossos foi regado,
Amargurada por teu Rei a fama
Os pêsames não deu ao mar salgado?

34

Do amável Theodósio a gravidade,
O terno coração, saber prudente
Suspenderam-lhe o braço por ventura?
Não fez espadanar seu sangue quente?

35

Mas tu, Povo fiel, já me respondes...
Nosso Augusto José já prometia
Mais bens que Micerino, que Adriano
Derramaram no Povo, que os servia.

36

Ah Noite! que mais triste hoje enegreces
O carregado ar, que respiramos,
Das nossas justas mágoas em obséquio,
Em atenção à dor, que suportamos.

37

Reprime um pouco mais co’as fitas negras
O vôo dos pardos mochos penugentos,
Que o teu carro conduzem denegrido
Sobre as espáduas dos cansados ventos.

38

Gira mais devagar nosso terreno...
E já que nos fugiu toda a alegria,
Dos aflitos mortais amiga Noite
Nunca chegar a nós deixes o dia.

39

Pára... e escuta como ao som horrendo,
Com que raivoso o mar solto rebenta,
Nos cortados penedos escabrosos,
Que se cobrem de escuma macilenta.

40

Escuta as froxas vozes dolorosas,
Com que triste Myrtilo suspirando,
Da amortecida Lusitânia busca
A vida despertar na seio brando.

41

Inspiraste a Young, a Hervey ditaste,
A Bertola ensinaste a dar gemidos
Pelo sábio Clemente: a mim não deixes,
José também merece os ais sentidos...

42

Mãe fecunda de Heróis, ó Lusitânia,
A quem hoje o destino mais perverso
Que o louco Epimeteu, com mortal golpe
Sacrificar buscou ao fado adverso.

43

Ditosa Pátria, a cujo ilustre nome
Ainda ergue o Baxá o seu turbante,
A cujos estandartes respeitoso
Encolhe um pouco os ombros Atlante.

44

Sentada nesta tua longa praia,
Que estás vendo deserta, solta, solta
As rédeas ao teu pranto, chora, chora,
Em quanto em noite aqui te vês envolta.

45

Porém, a fim que a dor te não sufoque
Myrtilo, que em teu seio tens criado
Entreter-te defesa... Ouve-me atenta...
Por ora enxuga o pranto derramado.

46

Mas.. ai!. que inda de Febo o giro certo
Não perturbou a nossa desventura!
Ravailaques, e Probos sem abalo
Vê nas trevas entrar da sepultura.

47

Ao dia mais fatal já vem seguindo
Outro dia mais claro, e transparente,
A mãe de Ménon já por entre as nuvens
Solta o cabelo mais que o Sol luzente.

48

A Noite já ligeira vai fugindo...
Fujamos nós também... em cavas grutas
Vamos umedecer com triste pranto
Faces, que nunca devem ser enxutas.

49

Vamos, aflita Lízia, e em diante,
Quando virmos que o Sol já mergulhado
Deixa entregue ao silêncio, à escuridade
O nosso ameno Tejo amargurado.

50

Quando às curvas fatexas amarrados
Deixarem os batéis os Pescadores,
E levarem o peixe inda faltando
Para nutrir d’Amor ternos penhores.

51

Quando Glauco, e Palemo com as Ninfas
Descendo às fundas lapas cavernosas,
Cederem ao vapor das dormideiras
Sobre as moles escumas salitrosas.

52

Quando todo o vivente adormecido
Adquirir novas forças para a vida,
A paz, que habita entre os já mortos homens
Será c’os nossos ais interrompida.

53

Tristes ais enlutados soltaremos,
Que espalharão fiéis os nossos males:
Soarão nossos fervidos gemidos
Nos altos montes, nos profundos vales.

54

Filha do coração nossa tristeza
Rodeada de pávidos suspiros
Por entre as sombras, que de si bafeja
Da Noite seguirá errantes giros.

55

Cedendo ao triste som dos nossos gritos
A pesada, voraz Melancolia
Solto o negro cabelo, solto o manto
Fazer-nos-á gemendo companhia.

56

Tantos serão os ais, tantas as queixas,
Que daremos ao ar entristecido,
Tantas as quentes lágrimas saudosas
Com que o chão ficará umedecido.

57

Tantos serão os íntimos suspiros,
Que dos Céus subirão aos altos cumes,
Que os Divinos talvez compadecidos
Ouvirão nossos lúgubres queixumes.

58

Os Deuses não são duros, nem tiranos,
Não são bárbaros, crus, não são perjuros;
São benignos, fiéis, são piedosos,
Virtudes nutrem só nos seios puros.

59

Cedem à compaixão mui facilmente,
Acham doce prazer, doce alegria
Em resgatar a pobre humanidade
Da escravidão, da dor, e d’agonia.

60

Mudos nem sempre vêm o inocente
Sofrer o peso da injustiça infame,
A ambição dos Perseus nem sempre deixam
Que dos Demétrios as ruínas trame.

61

É verdade que viram sossegados
Nas praias de Corinto um caso infausto;
O enteado de Fedra incestuosa
Viram à Fúrias vis feito holocausto.

62

A fatal onda viram montuosa,
Que rebentando sobre a solta areia,
Lançou do prenhe seio entre alva escuma
Monstro de catadura horrenda, e feia.

63

Viram dele assustados os cavalos
Lançando fogo, e sangue pelas ventas,
Os duros freios com furor mordendo
Ceder do crime a imprecações cruentas.

64

Os pés nas rédeas flutuantes presos,
Todo o corpo gentil ao chão caido,
Viram de rastos ir, enquanto o carro
O eixo não largou em dois partido.

65

O seu manto Real cortado viram
Pelas rápidas rodas, que soavam,
E cobertas as silvas dos cabelos,
Que os agudos espinhos lhe arrancavam.

66

O carro viram sobre agudas penhas,
Dos brutos c’o furor despedaçado,
Hipólito infeliz viram quietos
Da vingança ao rigor sacrificado.

67

Capacete, e broquel viram quebrados,
As limpas armas com a queda rotas,
Do seu vertido sangue sobre os seixos
Viram sumar as encarnadas gotas.

68

Viram da Morte o nevoeiro escuro
Nos olhos apagar-lhe a luz da vida,
Viram nas asas d’um mortal suspiro
Sua alma pura aos altos Céus erguida.

69

Hipólito gentil, modesto, e nobre.
Viram da vil paixão vítima feito,
E a inocência em Trezeno assim tratada
Deixaria de ter nos Céus efeito?

70

Os Deuses justos sem perder instantes
Determinam c’roando o inocente,
E de Fedra punindo o brutal erro
Dar mais u’a lição à humana gente.

71

Talvez que ouvindo as tristes mágoas duras,
Que publicando vão nossos gemidos,,
Assim como em Trezeno se mostraram
Também por nós se mostrem condoidos.

72

De Teseu, assim como o filho augusto
Da Parca despedaça o grilhão forte:
Talvez o nosso Príncipe adorável
Possa quebrar também laços da Morte.

73

Talvez aos Povos, que por ele gritam
Concedido outra vez José se veja;
C’o Hipólito porém julgo, o diviso:
Entre os Astros no Céu... ah... sim... chameja.

74

Arbitra opinião... tu que absoluta
Os homens levas sempre onde desejas,
Focas, e Cromwels tu que entronizas,
Menzikofs, e Colberts tu que apedrejas.

75

Em obséquio à verdade, e mais virtudes,
Do futuro bom Rei José segundo,
Quanto nele perdemos, vai ligeira
Com pranto publicar por todo o mundo.

Este espesso vapor, que em nossos peitos
A penetrante dor túrbida infesta,
Secará pelos vales, pelos prados
Papoila, Mal-me-quer, Lírio, Giesta.

77

Da Murta a branca flor, a Madre-silva,
Alvos Jasmins, cândidas Boninas,
Tintas por ele ficarão mais negras,
Que os Efacos nas águas cristalinas.

78

Entre os já descarnados esqueletos
Na presença do túmulo severo,
Que encerra dentro em si o varam justo
Por quem entristecer as penhas quero.

79

Ao soar melancólico, e sentido A
Das cordas, que a tristeza desafina,
Chorando espalharei quanto a Virtude
Dos homens a favor sábia me ensina.

80

Por Myrtilo jamais será cantado
O bruto frenesi, que a guerra inspira;
Ferozes Kouli-Kans de louro eterno
De Myrtilo c’roar não há de a Lira.

81

Do Príncipe José a saudade
Meu plectro move sobre as negras cordas;
Da sábia Natureza serei Vate
Rábida Inveja, inda que os pulsos mordas.

82

Hoje em meu coração extinta fica
A lembrança dos danos já sofridos:
Das feias sem-razões; tenções perversas;
Dos males por desvelos recebidos.

83

Os homens foram tais em todo o tempo,
Por eles nunca o bem foi premiado:
Servi-los quero em fim para vingar-me,
Podê-los emendar não me foi dado.

84

A ambição de ser útil aos humanos:
De virtudes louvar o alto desejo:
E em fim por dar à gratidão tributo,
Ao som da Lira erguer a voz forcejo.

85

E como o extinto Humano, que choramos,
Além da distinção, que ao Trono o erguia:
Das Artes, e Ciências no teatro
Só para o nosso bem se distinguia:

86

Das belas Artes, das Ciências claras
O importante favor invocaremos,
A fim de dignamente aos Povos darmos
Versos com que seu Nome eternizemos.

87

Vamos, que já raiando vai o dia:
Adeus, Lízia fiel, a quem venero,
Na escura habitação dos mortos homens
Ao pôr do Sol para chorar te espero.



NOITE II.

1

Por entre o nevoeiro escuro, e denso,
Que exala este lugar sem fazer pausa,
Frustrando a oposição espessa, e negra,
Que do Sol criador aos raios causa.

2

De Hesperion já se vê o filho amado
Descer às verdes ondas sonolento:
Já cansado suster não pode os brutos,
Que vão sorver do mar o fresco alento.

3

Pelo escuro Oriente vagarosa,
Já vem a triste Noite sacudindo
As errantes madexas desgrenhadas,
Entre as quais mil estrelas vêm luzindo.

4

Com ela vem no tenebroso carro
O tímido Silêncio pensativo...
Na mão esquerda traz firmada a frente,
Onde as asas desdobra um gênio esquivo.

5

Assustado quanto é.. quanto é medroso;
Tudo lhe faz pavor... treme com tudo;
Estremece ao sentir do vento os sopros...
Dos ecos o intimida o som agudo.

6

Em fim, oh Lusitânia, a saudade
Conduziu-me da morte ao triste asilo:
Entre os mirrados, mudos esqueletos
Teu Príncipe buscar veio Myrtilo.

7

É possível que um Príncipe formado,
Capaz de leis ditar ao mundo todo,
Houvesse de nascer também sujeito
À lei fatal do organizado lodo!

8

Querida Lusitânia, aqui fiquemos;
Deixar não posso este lugar escuro;
Que idéias não me inspira quanto vejo;
Este dos homens é Liceu seguro.

9

Empreguemos aqui o tempo todo,
Que for gastando a Noite sonolenta,
Em cercar nosso lúgubre horizonte
Após a triste Lua macilenta.

10

Um sagrado temor desconhecido
Prende meus curtos passos vacilantes:
Receio... e não sei que... eu só diviso
Amontoados ossos alvejantes.

11

Tu foste, Lízia, quem me conduziste
Para em tudo cumprir o meu desejo,
Da Morte ao domicílio... alvas relíquias
Dos extintos mortais somente vejo.

12

Que frio regelando vai meus nervos!..
O meu sangue nas veias se congela...
Que espessa névoa nos meus olhos pousa!
Faminta a Morte devorar-me anela...

13

Estes mortais sintomas sempre habitam
Esta das Parcas lúgubre morada...
Onde dormem em paz... onde descansam
Aqueles, cuja vida foi cortada.

14

Por nossa desventura aqui reside
O Príncipe, que foi dos Lusitanos...
Chorai frios Espectros; convencei-nos
De que inda mortos sabeis ser humanos.

15

Qual assanhada serpe venenosa,
No aflito coração que mal palpita,
O cruento pesar todo enroscado,
Seu venenoso humor quente vomita.

16

Suporto sim da mágoa a raiva toda
Ao ver na flor da idade sepultado
Nosso Príncipe amável... Deuses justos,
Que gosto achais no pranto derramado?

17

Mas, Deuses, perdoai, que no meu seio
O danoso pesar, e a mágoa é tanta,
Que me faz delirar... toda minha alma
Com o peso das ânsias se quebranta....

18

Aqui habita o plácido sossego;
Aqui os mudos ossos alastrados
Ensinam aos mortais a arte precisa,
De fugirem no mundo aos vãos cuidados.

19

Depois de se despirem da matéria,
De que andaram na vida revestidos:
Depois que por fiéis serem à terra,
Hoje sobre ela pousam já despidos.

20

Em paz durando vão: e como entre eles
As posses são iguais, da bruta inveja,
Não achando matéria, em que se ceve,
O devorante ardor nunca chameja.

21

Essa nua caveira, que faminta,
A voraz podridão já descarnara,
Sofre em cima de si uns poucos de ossos,
Que inadvertido acaso lhe lançara.

22

E não se queixa... nem sequer se move,
Para mostrar que o grave peso sente:
Se antes da opressão calada estava,
Ao depois não murmura descontente.

23

E talvez dentro dela já morasse
Alguma alma distinta, e enobrecida;
E que os ossos, que muda está sofrendo,
Sejam de algum Tartufo Regicida.

24

Pode ser; mas pacífica nos mostra,
Que neste sítio escuro não dominam
Felizmente as risíveis diferenças,
Com que os homens no mundo se arruinam.

25

A Coroa; a Tiara; o Elmo; a Toga
Tudo do Cemitério à porta fica;
Aqui de todos é igual a sorte,
Igual a Parca nunca especifica.

26

Todos sem distinção no mundo entraram,
Natureza a nenhum deu vestidura:
O Demônio do Sul, e seus escravos
Foram-se achar iguais na sepultura.

27

Mas de donde procede, que no instante
De espirar os malvados Torquemadas,
Deixam com os humanos, que ofenderam,
Eternas pazes sem querer firmadas?

28

Donde vem que os Cartuxos, mais os Kirkes,
Ficam depois de mortos emendados?
E que de Ordonhos crus, ambiciosos
A Morte faz espectros moderados?

29

Esses já frios ossos por ventura
Não são os mesmos assassinos braços,
De que o inumano Nunhes se servia.
Para estalar da Natureza os laços?

30

Pois de donde provêm, que em quanto vivos,
Sempre em sangue banhados praticavam
Horrorosas cruezas, mil absurdos,
Que a vingança dos Deuses provocavam?

31

Se a idêntica matéria separada
Do espírito a seus crimes põe limite,
Logo das almas vem somente os erros,
Que viva a gente humana se permite.

32

Convençamo-nos pois de que a matéria
É para o bem, e o mal indiferente:
Os braços são uns mudos instrumentos,
De que as almas abusam fatalmente.

33

Emendai pois, humanos, a substância,
Que as vossas decisões livre dirige:
Corrigi vossas almas; que a matéria,
Tomando-lhes o exemplo, se corrige.

34

Do nascer, e morrer nos dois extremos,
Não basta Céus a progressão constante,
Para que o homem já desabusado,
Se amolde à vida entre eles semelhante?

35

Se ao nascer, e morrer somos os mesmos,
Por que, por que na vida o não seremos?
Já que em fortuna ser iguais repugna,
Ao menos nas tenções nos igualemos.

36

Aquele, que embalou em berço de oiro
O Deus, que às cegas repartiu riqueza,
Não pise ao que nasceu em pobres palhas,
Alargue de seu círculo a estreiteza.

37

Nem o pobre infeliz, a quem sem culpa,
Um Cínico por Pai a sorte dura,
Mesquinha concedera por inveja,
Despreze ao que nasceu com mais ventura.

38

Os olhos não fecheis, oh loucos homens
À luz, que a sã verdade em vós derrama,
Lembrai-vos que é traidor à humanidade
Todo aquele, que os outros bem não ama.

39

Imitai, homens, este Augusto humano
A cuja campa venho dar gemidos:
Morreu José... mas entre nós ficaram
Seus exemplos assás bem conhecidos.

40

Em fim, justa uma vez do mar a filha,
Repartiu com José como devia...
Nasceu José já destinado ao Trono...
Ninguém mostrou melhor que o merecia.

41

E quem viu desse Príncipe perfeito,
Em toda a aproveitada, curta vida,
U’a ação... quem lhe ouviu soltar um termo,
Que sua alma nos mostre corrompida?

42

Fala sem susto torpe, vil calúnia...
Aguça a língua rábida Impostura...
Falso Interesse solta a voz, se podes,
Lívida Inveja teu veneno apura.

43

Quem o Príncipe viu um só momento,
C’o resplandor do Trono alucinado?
Qual foi o pobre humano desvalido,
Que se visse por ele desprezado?

44

Quem a seus pés chegou banhado em pranto,
Que o não visse também enternecer-se?
De ser útil aos homens no exercício
Vacilante a José, quem viu deter-se?

45

Em quanto de ocupar o régio sólio
O tempo não chegava... quantas vezes
Não descia ao seu povo, a quem alegre
Consolava do fado entre os reveses?

46

D’Atis, e Endimião às lindas graças,
De Platão ajuntava a gravidade,
De ter nascido para Pai dos Povos,
Ninguém deu mais sinais na tenra idade.

47

Emulava dos Deuses a virtude:
Mais que Tito no bem se exercitava:
E quando contra o mal não tinha forças,
Os dois braços cruzando suspirava.

48

Sempre foi da virtude amigo certo,
Onde quer que a avistasse a protegia,
E como afeito a ela, ou na indigência,
Ou revestida de oiro a conhecia.

49

Só dele se temia o vício horrendo;
Quando o via passar tapava o rosto:
Bárbaros Arrisões, falsários Guizas,
Nunca nele esperaram ter encosto.

50

Este é Carlos feroz o trilho certo
De aos vindouros deixar saudoso nome;
Pai da Pátria não foi chamado nunca,
Quem nutriu só com sangue bruta fome.

51

Alexandre, Selim, César, Antônio,
Aníbal, Tamerlão, Sesóstris, Ciro,
Bajaceto, Sultão, Xerxes, Dionísio,
Mitridates, Basílio, Acmet, Buziro;

52

Em quanto infelizmente respiraram,
Seu raivoso furor os fez temidos;
Mas no ditoso fim d’u’a tal vida,
Gritos mil de prazer foram ouvidos.

53

Do Livro, onde com sangue a Humanidade
Chorando põe em rol seus assassinos,
Meu Príncipe imitando risca o nome,
Como ele escreve-o a par dos Antoninos.:

54

José amava os homens, porque justo,
Conhecia o valor de cada humano;
Por não lhes dar valor desconhecido,
Buscou Filipe ser o seu tirano.

55

Se à glória felizmente acaso aspiras,
Não deixes pela falsa a verdadeira:
A falsa das paixões foi sempre aluna,
A outra é das virtudes companheira.

56

Se ateimas em seguir esse caminho,
Em que a ambição fatal teus passos guia,
Morrerás infeliz, e os teus vassalos
Cantando espalharão doce alegria.

57

Fazendo desgraçados a fortuna
Não terás, que José entre nós teve:
Amou seu Povo, prometia amá-lo;
Dos Lusos ao morrer mil ais obteve.

58

Quando o seu corpo em fim desanimado
Foi trazido com pranto à sepultura,
Tal foi do grato povo a dor veemente,
Que até à Providência chamou dura.

59

Os Reis na terra são dos altos Deuses
Delegados Ministros, são Juízes,
Que à imitação dos Deuses soberanos,
Os seus povos fazer devem felizes.

60

Oh dos inclitos Césares herdeiros!
Vossos povos d’humanos são compostos,
Choram quando se vêm tiranizados,
Quando em prêmio de amor colhem desgostos.

61

Disto mesmo vos dá um novo exemplo
A Morte, que sanguínea anda pousando,
Dos Tronos sobre as Cúpulas doiradas,
Das Régias mãos os Cetros arrancando.

62

Morreu Carlos Terceiro das Espanhas
O mais benigno Rei, o mais humano,
E o povo ao seu favor agradecido,
Chora a perda fatal d’um Pai sob’rano.

63

Manes, que n’outro tempo destes vida
Aos brancos ossos, que espalhados vejo;
Respeitai o cadáver precioso
Do Varão, por quem triste os passos rejo.

64

E a fim de inteiramente persuadir-vos
Da razão com que triste entre vós gemo:
Da justiça, com que eu aos Deuses grito,
È entregue ao cru pesar vacilo, e tremo.

65

Do Príncipe, que morto em vão choramos,
A feliz produção foi tão ilustre
Neste Coro Celeste, que os decretos
Firma sem susto de que alguém lhos frustre.

66

Entre os Deuses eternos, sábios, justos
Era tão preciosa, e importante
Do alto José a geração preclara,
Que a dotavam, quando inda era distante.

67

O Onipotente Pai das Divindades,
Jove supremo, que dispõe de tudo:
Este que do alto, pedregoso Orfino
A testa quebra com o raio agudo.

68

Decidindo-se a dar à Humanidade
Um tão perfeito Rei, tão excelente;
Que depois de o criar dele encantado
O assentou junto a si no Céu luzente.

69

Quando antes de ilustrar com suas luzes
D’um tão célebre humano o nascimento
Astreia visitar o Sol devia
Sedenta e uma vez, mais cento, e cento.

70

O olímpico Tonante meditava
Na escolha da nação nobre, e potente,
A quem c’uma tal dádiva fizesse
Sobre as outras erguer c’roada a frente.

71

Em atenção ao filho delirante,
Que armado de Leão co’a força brava
Zeloso o defendera da corte
Dos monstros, que abatê-lo procurava.

72

Umas vezes de Baco em justo prêmio
Queria do Indostão ao vasto Império,
Para honrar-de Genghis-Kan o alto sólio,
Em José conceder um Rei mais sério.

73

Da filha de Agenor doces lembranças
Outras vezes o inclinam aos Sidônios;
Que foram contra os mares mais forçosos
Que contra a Pérsia altiva os Macedônios.

74

Cheio deitas idéas; todo entregue
À escolha que a atençâo lhe possuía,
De Acrísio passeava os frescos vales
Que Danae carinhosa enobrecia.

75

De oculta comissão com a resposta
De Maia se apresenta o filho alado:
Jove quanto em si volve lhe repete:
Hermes no Caduceu o ouve firmado.

76

Logo que expôs quanto no seio tinha
Encantado da nova criatura,
Que para ser modelo dos Regentes
Júpiter conceder aos homens jura.

77

Dos Talares fechando as áureas penas,
E puxando o galero da cabeça;
Obtida de explicar-se a liberdade
Mercúrio voador assim começa:

78

Onipotente Deus, tremendo Jove,
Que nos futuros lês com vista aguda:
Tu ante cujos olhos fulminantes
O mesmo claro Sol de face muda.

79

Já que irado dos Reis contra os excessos
Cincoenta, e mais dous lustros gastar queres,
Em dispor um varão tão sublimado,
Que exercite na terra os teus poderes.

80

De entre todos os Povos, que espalhados
As quatro partes cobrem desse globo:
Inda apesar do impávido Leônidas,
E do outro, que nutriu fêmea de Lobo.

81

Apesar dos Egípcios, Persas, Gregos,
Cartagineses, Citas, e Romanos:
Apesar de Esclavônios, Partos, Celtas...
Vândalos, Godos, Búlgaros, e Alanos.

82

Apesar destas gentes portentosas
Por quem gritado tem a Fama tanto:
Esse preclaro humano, que preparas,
Deve entre os Lusos ser ao mundo espanto.

83

E a fim que, oh Deus, conheças quanto é justa
A dádiva, que dou às Lusas gentes;
Quanto delas são dignas para veres,
Baila que os fastos seus tenhas presentes.

84

Nesses passados séculos escuros
Tão antigos, que já a História apenas
Os sucessos achar pode, que escondem
Nas encrespadas cãs, alvas melenas:

85

Em todo o tempo vês os Lusitanos
Distinguir-se entre os povos que os rodeiam;
Ornados de valor, e mais virtudes,
Com que os homens Divinos se nomeiam.

86

Desde que Gerião deles na frente
Com sangue salpicou do Guadiana
A florida grinalda entretecida
Com juncos, roxos lírios, e espadana:

87

Desde que eles de Osiris sustiveram
O invectivo furor, a sanha bruta;
Até que Ulisses levantou Lisboa
Sobre a grenha do Tejo mal enxuta.

88

No espaço destas setecentas voltas,
Que do Sol ao redor formou a terra,
Que estrondosas ações não praticaram
Tanto a favor da paz, como da guerra!

89

E desde que Diomedes do Minho
Cravou na areia branda a proa Grega;
Até que atraiçoando a cara pátria
Sertório aos Lusos sem pavor se entrega.

90

Neste espaço tão longo, tão extenso,
Que o mesmo velho Tempo algumas vezes
Se quis expreguiçar de fatigado,
Quão gloriosos não vês os Portugueses!

91

Desde que Afrânio em fim sem algum fruto
Prende entre os muros d’Ofina os Lusitanos,
Até este dia quão virentes palmas
Não tiraram dos punhos dos Romanos!

92

Do Conde Henrique destemido, e bravo
Pai dos Lusos por ele remoçados,
Quem pode ouvir os feitos gloriosos,
Sem deixar meus desejos aprovados?

93

Quem o primeiro Afonso, o Rei primeiro
Pintar de Ourique pode na campina,
Que digna a gente Lusa não declare
Do produto a que Jove se destina?

94

Quem o filho veria, Sancho forte
Nos campos de Axarrafe embravecido;
Ou ante Silves com mingoada gente
O grão Miramolim deixar punido?

95

Quem do segundo Afonso na regência
O zelo admirará sempre incansável;
E ’inda do quarto Rei a alta franqueza,
Que estragou Martim Gil abominável?

96

D’outro por quem Bnteiros, e Viegas,
O destino fizeram inconstante;
Com mãos traidoras arrastando ao trono
Quem nascera somente para Infante?

97

Esse a quem Inocêncio entrega o Cetro;
E Urbano restitui o alvedrio:
Quem do terceiro Afonso tem lembrança,
Que lhe não dê do mundo o senhorio?

98

O sexto Rei de Lízia, Deus supremo,
Para humanos reger apto criaste;
Na ciência de reinar foi tão perito,
Que parece em teus braços o educaste.

99

O honrado Dom Diniz deu às ciências
Em seus Reinos magnífico aposento:
À Coimbra as atraiu onde ficaram
Sendo dos Lusos lúcido ornamento.

100

Ao Lara premiar soube brioso;
Como justo punir os de Leiria:
Cuidadoso animar a Agricultura:
E à sã Legislação dar mais valia.

101

Galiza, e Badajoz do quarto Afonso
Dizei o que sabeis: jura Salado,
Que por de Hispalo ver salvos os povos
Afonso te deixou ensanguentado.

102

Entre os Ministros seus, Pedro severo
Sustentando a balança da Justiça,
Era um vivo modelo de Carondas,
Quando em Túrio subjuga a vil preguiça.

103

Trisulco Deus! aos teus do Rei Fernando
Os erros foram muito parecidos,
Mil vezes por Amor te descuidaste;
Fernando por Amor teve descuidos.

104

Sé contigo porém partiu dos erros,
Que por seus enobrece a Natureza;
Também arremedou Jove Divino
Teu gênio benfeitor, tua grandeza.

105

De Barcelos o Conde, e João Assonío
Chamado o de Mexíca exprimentaram,
Se de Fernando as dádivas acaso
As dádivas de Jove arremedaram.

106

E quanto valem mais do que os tesouros
As leis com que Fernando previdente
Entre as leivas, nas Artes... no Comércio
Buscou favorecer a sua gente.

107

João das Regras, e o possante Nuno
Dão no Mestre de Aviz aos Lusitanos
Um Rei, que o trono firma, doura, ilustra
À custa de Espanhóis, e Mauritanos.

108

Duarte em Ceuta manejando a espada
Mostra tanto valor, e força tanta,
Que Arraquio o Atleta o não vencera,
Inda quando o Alfeu de o ver se espanta.

109

A fim de se fazer inda mais digno
Do lugar que então ledo possuía,
Como Agrícola às ciências se entregava,
E como Otávio delas escrevia.

110

As ameias de Alcacer, e de Arzila
Sejam do quinto Afonso pregoeiras:
Rotos de Muley Xeque os estandartes
Revestiu-as dos Lusos co’ as bandeiras.

111

Ao segundo João invariável,
Que à ativa Decisão serviu constante
Sobre as ondas do Lethes sonolentas
A Fama levantou altar brilhante.

112

Do sábio Manoel não digo nada:
Vás quanto vai por ele acontecendo;
Os estandartes seus do Oriente as ondas
Já meigas andam com prazer lambendo.

113

Dos Reis dos Lusos vês riscado em breve
O valor, a constância, e mais virtudes;
E quem melhor que tu Júpiter sabe
Não terem sido Reis de povos rudes?

114

Esses passados Séculos vaidosos,
Que as aras do Heroísmo tanto alçaram;
Que aos resolutos Iscolas sobre elas
De resplandor eterno coroaram.

115

Que Herói, entre os Heróis pode louvar-se,
Que as palmas escureça gloriosas,
Com que a Memória premiou dos Lusos
Nunca ouvidas ações; ações pasmosas.

116

Apimano; Apuleio; Viriato;
Egas Monis; Mendes Gonçalo Amaya;
Sueiro; Pedro Paes; Fuas, que o Mouro
Na terra, e mar se o vê, frio desmaia.

117

Os dous Martins, o Lopes, e o de Freitas;
Fernão Rodrigues; e o feroz Dom Payo;
Mem Tougues, João Pires Vasconcelos;
Pedro Rodrigues de Mouriscos raio:

118

Martim Vasques da Cunha; Egas Coelho;
Dom Pedro de Menezes; e o grão Nuno;
Vasque-Anes insofrido, a quem primeiro
De Ceuta no areal c’ro’ou Netuno:

119

Vês Fernando, e João ambos Menezes;
Vasco Coutinho; Pedro de Mendanha:
Vês Diogo de Almeida valeroso
Entregue de Mavorte à crua sanha.

120

Inda ia por diante; porém Jove,
Que o tinha té então ouvido mudo;
Tomando-lhe a palavra, principia
Tais coisas a dizer em tom sisudo.

121

Basta: não digas mais dos Lusitanos,
Todos os feitos seus tenho presentes,
Quero com um bom Rei em fim pagar-lhes
O esforço, que os eleva entre as mais gentes.

122

O Príncipe, que ocupa o meu cuidado,
Será Príncipe em fim do Luso Povo:
Assim deixo a Virtude premiada,
E de Lízia o esplendor assim renovo.

123

Desde que o claro Sol com o seu fogo
Anima os muitos globos que o rodeiam:
Vaidosos de seus povos c’os triunfos
O Tejo, e o Douro sobre o mar ondeiam.

124

Vênus, que gosta de louvar os dignos
Como provou assás com os Romanos,
Chorando o meu poder tem muitas vezes
Implorado à favor dos Lusitanos.

125

E eu sempre os protegi em todo o tempo
Como filhos d’um clima deleitoso,
Que nos seios que nutre influi tanto,
Que tem sido de Heróis Pai glorioso.

126

Quem deu aos Lusos o ilustrado Henrique,
Que cheio de fiéis conhecimentos,
Desde Sagres mandou exploradores
Afoitos arrostar mares, e ventos?

127

Por quem, senão por Jove defendidos
Tristão Vas; e João Gonçales Zarco;
Gil-Yanes; e o ousado Perestreloc
Tomaram do mar posse em curto barco?

128

Por quem Nuno Tristão; Antão Gonçales;
Dom Álvaro Fernandes; e Gonçalo
O de Cintra nas costas Africanas
Os cabos subjugaram sem abalo?

129

Quem? senão meu favor foi conduzindo
Diniz Fernandes; e Vicente Lagos;
João de Santarem, João de Aveiro
De nunca arado mar entre os estragos?

130

A quem senão a mim devem os louros,
Que o Dias mereceu, quando animoso
Antes, que o Gama triunfou no Cabo
Do monstro que abati por orgulhoso?

131

Pedro da Covilhã; e Afonso Paiva
Por mim levados para estranhas terras:
Um da quente Etiópia, outra do Indo
Viram as gentes, montes, vales, serras.

132

E de favores tais o fim qual era?
Entre os viventes distingui-los tanto,
Que fossem pelo Gama os que da Aurora
Vissem primeiro o berço de Amaranto.

133

Sim, Hermes; para em fim te convenceres
De quão propício esta Nação protejo,
Nas areias que o Sol ao nascer doura
Pousam com meu favor quilhas do Tejo.

134

E agora para mais inda exaltá-los
Por Colombo lhes fiz of’recimento
D’uma terra famosa, rica, e fértil,
Que do Oeste entre os mares tem assento.

135

A destruidora Entriga fermentava
Do intrépido João então o estado:
Razão por que Colombo desgostoso
O seu plano fiel viu desprezado.

136

Na Corte ambiciosa de Fernando
Sua proposição foi mais aceita;
E a instância de João Peres a entrega
Ficou por Isabel à Espanha feita.

137

Três navios boiaram logo armados
No estreito porto da pequena Palos:
Colombo, e os dois Pínsons saem neles,
De Anfitrite açaimar verdes cavalos.

138

Descubriram em fim para desgraça
Da pobre, perseguida Humanidade
A espaçosa Atlântida, prevista
Pelo sábio Platão na antiga idade.

139

Terra já por Manilio anunciada,
E por Diodoro Siculo suposta:
Por Cethesias; Nearco; e Marco Paulo
Nesses mares Atlânticos exposta.

140

Porém desde que alegres deram fundo
Da fresca Guanahani na baía,
Até, este momento as gentes novas
Invocam meu poder de noite, e dia.

141

Já de Vega-Real correr nos Campos
Viram seu sangue estas coitadas gentes:
Viram dos ternos Pais tremer as carnes
Despedaçadas por caninos dentes.

142

Tantas foram por fim as tristes queixas,
Que subiram chorosas ao meu trono,
Que a parte austral do descoberto mundo
Protestei conceder a melhor dono.

143

O Rei, que premedito para prova
De que o creei capaz de dar exemplos,
À emulação, à Honra, e à Justiça
Há de, e à sã razão dedicar Templos.

144

Destas virtudes ante os bustos claros
Os povos s’irão pondo ao bem dispostos:
E nelas por costume discorrendo
Desterrarão de si vícios opostos.

145

Vai Mercúrio voando sem tardança,
Vai do Oriente procurar o vento;
E a fim que atenda à comissão, que levas,
Dize te manda o Rei do firmamento.

146

Que os ventos que domina ajunte logo;
E quando o Euro entre os mais todos vires,
Firmado nas compridas, soltas asas,
Tais coisas mando, que do seio tires.

147

Por mandado de Jove eterno, e justo,
A quem tens fiel sempre obedecido,
A nova empresa que por mim te envia,
Vai logo executar dos teus seguido,

148

Na foz antiga do espraiado Tejo,
Erguendo o ferro está com leste gente,
Pedro Álvares Cabral para de novo
Vir sulcar estes mares do Oriente.

149

Logo que solta a cevadeira toda
Vires que se enche de teus sopros frios,
Ajudado por esses, que te servem
Dos Lusos proteger vai os Navios.

150

Dos lemes a pesar, sem fazer caso
Da resistência, que farão briosos,
Por de Jove ignorantes não saberem
Os desígnios a eles proveitosos.

151

Da terra nova, que a Austral Zona enfaxa
Mostrai-lhe a costa, que primeiro aclara
O Sol, quando se eleva sobre as ondas,
Que para os Lusos Júpiter guardara:

152

Depois do Malabar ter-lhes entregue
O importante, e honroso senhorio;
Da América viçosa a melhor parte
Manda Jove lhes deis neste desvio.

153

Esta porção de terra prolongada,
A quem rodeia lúcido hemisfério
Reservo para erguer sobre ela o trono,
Em que se há de sentar o quinto Império.

154

O Brasil terra amena, e abundante
Seja dos Lusos Príncipes espero
Patrimônio; e José será chamado
Príncipe do Brasil, assim o quero.

155

Mercúrio, ao sábio Deus fazendo vênia,
Foi dar execução logo ao preceito,
E em prova de que a deu... José... ah morre
Príncipe do Brasil jurado, e feito.

156

Lusitânia, o vapor da noite escura
Parece-me se vai já dissipando:
Sobre a laje que o Príncipe nos rouba
Vamos passar o dia em vão chorando.



NOITE III.

I

Desterrar desta praia os vãos prazeres
Ide meus tristes ais, ide voando
Aos troncos, ventos, plantas, aos rochedos
Ide a nossa desgraça publicando.

2

Inspirai nossa dor nas ondas quanto
Pede o cruel pesar, que nos consome;
E nos cavados seios dos penhascos
Do Príncipe fazei soar o nome.

3

E vós, miudas lágrimas, que a pares
Nos meus olhos estais sempre nascendo,
Molhai também os olhos, que ainda enxutos
A ignorância tiver do caso horrendo.

4

Mas ah! bem vinda sejas, Lusitânia,
Desde que aqui cheguei, meus tristes olhos
Do coração cedendo aos movimentos,
Borrifaram com pranto esses escolhos.

5

A extensão, e o valor da nossa perda,
Que tenho n’alma vivamente escrita,
Em pranto me converte o mesmo sangue,
Faz-me espalhar com ais nossa desdita.

6

A enganosa esperança nos pintava
Nos anais do Universo os mais ditosos;
As promessas porém traçou no fumo,
Que dissiparam furacões ruidosos.

7

A vista deste rio, cujas ondas
Já nos soberbos colos sustiveram
Quilhas, em que do mundo as quatro partes
Seus preciosos dons ofereceram:

8

Do nosso Tejo a vista deleitosa
De novo a alma cansada me atormenta,
Vejo a futura glória dissipada
Qual névoa que desfez rude tormenta.

9

Amada Lusitânia, não podia
Na caixa de Pandora achar o fado
Desgraça mais capaz de encher de mágoas
O teu povo fiel hoje enlutado.

10

Como deve abarcar o seu objeto,
Do sucesso fatal o sentimento,
Em quanto a muda Noite os mochos guia,
E nas cortadas rochas dorme o vento.

11

Agora, que nas lapas do Oceano
Dorme a mádida Corte de Netuno;
Tanto que as limpas águas não perturbam
Os Tritões servos do infiel Portuno.

12

Quero contar-te uma visão estranha,
Com que Morfeu em sonhos me entreteve;
Depois que te deixei n’uma caverna,
Brando sono em meus olhos se deteve.

13

Logo que o grosso humor entorpecendo
Os meus já froxos, fatigados nervos;
Quando os chorosos olhos já não viam
Sênecas justos, PoliÕes protervos.

14

Deixando o pobre corpo entregue ao sono,
Pelos Deuses minha alma foi levada
A um prado, onde a riqueza d’Amaltéia
Com grata profusão vi derramada.

15

Logo por entre ramos, cujos pomos
Com seu cheiro diverso, e várias cores,
A favor de Vertuno disputavam
O prêmio da beleza dado às flores.

16

Rodeado de Zéfiros que alegres
Brincavam entre as folhas sonorosas,
E de Aves mil, que vagas revoando
Soltavam ternas vozes amorosas.

17

Pelo trilho da plácida alegria
Cheguei a um fresco sítio desviado;
Onde uma Deusa vi a mais galante,
Que Zeuxis pintaria delicado.

18

Tinha ciência nas faces esculpida:
Nos olhos reflexão misteriosa:
Em todo o corpo um ar grave, e sereno,
Nas ações liberdade graciosa.

19

Da sua singeleza em testemunho
Seu bem formado corpo vi despido;
Livre da prevenção, com que a malícia
Capciosa nos tem já corrompido.

20

Faziam corte à Deusa afável, terna
Os quatro envelhecidos Elementos:
Fingiam quatro humanos respeitáveis,
Que da morte viveram sempre isentos.

21

Inflamado o semblante o Fogo tinha,
Seus abrasados olhos faiscavam;
E as suas quentes mios por passatempo
Vermelhas brasas, vivas manejavam.

22

Do Ar as faces eram macilentas;
E do seu desafogo sempre amante
Soprava em liberdade, a alva madexa
Movia-se c’os sopros ondeante.

23

Sobre a miuda relva debruçado
Da Água todo o corpo gotejava,
E no claro ribeiro, que nascia,
O musgoso cabelo flutuava.

24

De todos quatro a Terra era a mais grata
Estava revestida de mil cores;
E o seio criador lhe guarneciam
Mimosas frutas, matizadas flores.

25

Cad’um tinha a seu lado companheiro,
Com quem vinha a falar de quando em quando;
Examinei-os bem, e pelos gestos
Neles as estações fui encontrando.

26

De espigas secas o Verão c’roado
Estava junto ao tórrido elemento,
Que avivando-lhe mais a cor do rosto,
Lhe queimava a grinalda só co’ alento.

27

O Outono estava ao pé do Ar delgado,
Cujos frescos bafejos o animavam,
E as flores sacudiam, mais os pomos
Dos ramos, que viçosos o c’roavam.

28

Ao líquido cristal da Água serena
Fazia corte o regelado Inverno,
Tinha de branca neve prenhe a barba,
E o rugoso semblante cor do averno.

29

A terra acompanhava a Primavera
Com faces mais do que as cerejas rubras:
Mais linda do que tu Lais caprichosa,
Quando de afetação teu rosto cubras.

30

Vi também as mimosas Artes belas
Tão cheias de prazer como costumam;
À roda de Anfitrite as Ninfas lindas
Sobre as águas brincar tanto que escumam.

31

A Deusa tinha em si por arte nova
Junta uma tal doçura à gravidade,
Que quando o seu respeito me afastava,
De fugir-lhe não tinha liberdade.

32

Sem eu saber porque, dentro em meu peito
Sentia o coração enternecido
Para a Deusa fugir, como querendo
Mostrar-se a algum favor agradecido.

33

Estava toda absorta modelando
D’um Cupidinho a estátua mais perfeita
Fídias na execução postos os olhos
Os rasgos de sua arte atento espreita.

34

A Escultura d’um lado respeitosa
Os cinzéis delicados lhe of’recia:
D’outro lado a Pintura na palheta
As animadas cores revolvia.

35

Depois de modelada, tão sublime
Ficou nas perfeições a estátua bela,
Que beijando da Deusa as mãos divinas,
De Scopas quis a arte agradecê-la.

36

Fez uma curta pausa... e observando
Seu trabalho por todos aprovado:
Retocando de novo os olhos lindos,
E o cabelo gentil todo anelado:

37

A carinhosa Irmã da Poesia.
Pediu os sucos das mais brancas flores,
Dos jasmins, das mosquetas, d’alvas rosas
Que já mais colhem juvenis Amores.

38

Depois de todo o corpo contornado
Ter coberto da neve com a alvura,
Pediu novos pincéis, palheta nova,
E dentro de si mesma a ciência apura.

39

Dos morangos, maçãs, e dos medronhos
Com as cores pintou-lhe as faces belas;
E vendo lhe luziam pouco os olhos
Para lhes dar tirou luz às estrelas.

40

Das rosas que vermelhas fez o sangue,
Que o filho de Ciniras derramara,
Com o sumo pintou boca mais doce,
Que a boca onde Ericina suspirara.

41

Quando viu que acabada sua estátua
Ao esposo de Cídipe excedia,
Na rara gentileza, que era tanta,
Que à mesma Anaxarete abrandaria.

42

Olhando para o Céu... gritou... oh Jove,
Que sábio reges meus fiéis intentos:
Meu poder exauri: formei-lhe o corpo:
Tu uma alma lhe dá rica em talentos.

43

Qual de Pigmalião a estátua morta
Esta fermosa estátua se ficava:
Quando, eis que de repente um trovão soa...
Julguei do Olimpo o seio se rasgava.

44

Com efeito dos Céus uma faísca
Rápida o longo vácuo traspassando,
No seio se introduz da estátua bela,
Que de vida sinais foi logo dando.

45

Nisto os olhos ergui cheio de pasmo:
Quando eis vejo uma nuvem, que descendo
Vinha também à terra sobre as asas
De ventos, que fiéis a vem sustendo.

46

Tanto que o chão tocou, rasgou-se a nuvem,
E do seio dourado lhe saíram,
Não os ferozes, ardilosos Gregos,
Que o desgraçado fim de Tróia urdiram.

47

Palas, Mercúrio, Marte, Apolo, Vênus
Se presentam da estátua à meiga Autora;
A rara produção cada um admira,
Cada um em contemplá-la se demora.

48

Tudo suspenso estava... quando Apolo
Chegando-se da estátua ao lindo rosto,
Na boca lhe bafeja graciosa,
Respirando prazer, suave gosto.

49

Vênus lhe encheu de graças o semblante,
E obrigada c’o a tenra gentileza,
Nos encarnados lábios amorosa
Alguns beijos soltou em fogo acesa.

50

Sobre a língua Mercúrio lhe respira:
Palas o alento lhe soltou na frente:
Marte porém no peito lhe derrama
Constância, intrepidez, valor prudente.

51

O Deus Silênio, cuja vista nunca
Ler pode os caracteres do futuro,
Admirando da Deusa disfarçada
O confiante saber, o ar maduro.

52

Gritou-lhe... Quem és tu, sábia Matrona,
Que pudeste obrigar a Jove eterno
A soltar do seu seio uma faísca?
A mostrar-se contigo afável, terno?

53

Quem és tu, cujo grito pode tanto,
Que obriga a cinco Deuses soberanos
A deixarem dos Céus a alta morada
Para virem honrar pobres humanos?

54

Logo a Deusa sem muito soçobrar-se,
Respirando brandura, e gravidade,
Respondeu com voz doce, e sossegada
Nos seus olhos brilhando a sã verdade.

55

Eu sou loquaz Mercúrio aquela mesma,
A quem deve o seu ser tudo o que existe;
Por quem tudo existiu antigamente,
Em quem todo o futuro são consiste.

56

Eu sou aquela, cujo seio imenso
Calígulas produz, e Caracalas;
Aristipos fiéis; Marcos Aurélios;
Sócrates retos; bárbaros Abdalas.

57

Damiens porém de mim não teve queixa,
Não fui mais liberal com Belisário;
Com o mesmo cuidado existir faço
O Efêmero, o Pulgão, o Dromedário.

58

Eu sou benignas, Celestiais Deidades,
A antiga, providente Natureza...
Logo os quatro Elementos respeitosos
Encurvaram seus colos com presteza.

59

Apesar do inconstante, vil capricho,
E do rigor cruel do Fanatismo,
Apesar das paixões sanguinolentas,
Que vomita sem pausa o negro abismo:

60

Sempre no globo conservei domínio,
Sempre fui dos mortais conservadora,
Tanto, que inda nos campos dou remédios,
Que o homem por inerte alegre ignora.

61

A humana geração de mim depende;
Cantar sem mim não pode Anacreonte:
Eu movi de Arquimedes o compasso:
E os passos dirigi de Xenofonte.

62

Uma nação protejo cuidadosa,
É dessas, que o Sol vê quando se deita,
Fecunda mãe de criadora gente,
Da gente só para prodígios feita.

63

Mercúrio acrescentou: Julgo nos falas
Da nobre Lusitânia, por quem Marte
Tantas vezes desceu do Olimpo à terra
Com quem Apolo seu saber reparte.

64

Tornou-lhe o Deus guerreiro: Não, Mercúrio,
Auxílio nunca dei aos Portugueses:
Os Albuquerques, Castros, os Sampaios
Honraram por si mesmos seus Pavezes.

65

Pois eu, gritou Apolo, não me atrevo
A roubar-te o louvor, ó Natureza;
Os Lobos, os Camões, Garção, Bernardes
A ti deveram tão gentil destreza.

66

Continuou do mundo a Produtora
Da Lusitânia os Povos são-me aceitos;
Não por louca paixão das mães tão própria,
Mas por seus raros, celebrados feitos.

67

Logo que Adamastor vi suspirando
Chegar-se triste a mim co’as mãos alçadas
Gritando: Terna mãe, as minhas ondas
São por soberbas quilhas retalhadas.

68

Um novo Deucalião lançou no mundo
Gentes, do que as antigas menos cautas;
Muito mais atrevidas que os Fenícios,
Mais destras sobre o mar, que os Argonautas.

69

Por defender-me em vão hoje sopraram
Os soltos Aquilões embravecidos:
Em vão para se opor os meus rochedos
Sobre o raivoso mar mostram-se erguidos.

70

Mil precipícios lhe presento às proas,
Todos porém desprezam valerosos:
Por entre as penhas, apesar dos ventos,
Surgem pelo golfão vitoriosos.

71

Confesso, que fiquei um pouco absorta
Co’a estranha narração d’um tal sucesso
E pela intrepidez extraordinária,
Louvei dos Lusos o sublime excesso.

72

Fiquei-lhes desde então afeiçoada:
Jurei-lhes em diante protegê-los,
Ou das Zonas nos tórridos desertos,
Ou do Setentrião por entre os gelos.

73

Tu, ó Vênus gentil, que hoje me escutas,
Desceste a agradecer o meu protesto;
E em final grato por teus fortes povos,
De rosas me of’receste cheio um cesto.

74

Desde então protegi os Lusos sempre;
E se acaso os deixei sofrer às vezes,
Foi por firmá-los mais na experiência,
Que só ensinam bem fatais revezes.

75

Vendo agora, que os fados me auguravam;
Também auxiliar os meus intentos;
Juntando de José, e de Carvalho
Dos Lusos a favor claros talentos.

76

A fim que tal ventura lhes durasse,
Júpiter dar-lhes quis um Rei perfeito:
Aí o tendes por vós enriquecido
D’Acys a cara tem, de Henrique o peito.

77

No Príncipe feliz os olhos logo.
Com suspensa atenção mudos fitaram:
E entretido co’as Artes, e Ciências,
Não sem geral prazer todos o acharam.

78

De Maria fera chamado filho:
(A sábia Natureza inda prossegue)
D’Aristomenos sãos co’ as vivas luzes,
Fará com que a ignorância nunca o cegue.

79

Ela a glória terá de dar à Lízia
D’entre todos os Reis o mais completo:
No repartir dos prêmios Alexandre;
No castigar mais que Licurgo reto.

80

Eu, e Vênus Com Jove de mãos dadas
Jurámos exaltar os Lusitanos,
Sobre a glória de Mênfis, de Cartago,
Sobre as façanhas dos fiéis Romanos.

81

Assim continuava... quando um Fauno
Da caverna Senhor, onde eu dormia,
O seu caprino pé firmando grita,
Myrtilo, vai-te, que acabou o dia.

82

Logo que abri meus olhos, triste pranto
Burbulhou neles mais que nunca ardente:
Os Céus mais nos convencem com meu sonho
Da razão com que chora a nossa gente.

83

Um Príncipe, a quem deram os Divinos,
Quanto dar lhe podiam: revestido
De luzentes virtudes, de talentos:
Para o nosso prazer só produzido.

84

Foi Pátria inconsolável o tesouro,
Que a pesar de Políbio, e Tourneforte
A moléstia cruel roubou-nos fera
Em cumprimento da malvada sorte.

85

O dia vai nascendo chorar vamos:
Vamos derramar ais, tristes suspiros:
Adeus té à manhã... aqui de novo
Ouvir-nos-ão gemer estes retiros.



NOITE IV.

I

Nesse azulado Céu escurecido
Como as estrelas trêmulas cintilam:
Como por entre as ramas denegridas
Tristes os ventos com pavor sibilam.

2

Neste sítio de paz, que um fútil medo
Aos mortais horroroso representa;
Minha cansada voz ergo de novo,
Queixosa Lusitânia, escuta atenta.

3

Tanto que hoje fugindo à luz do dia,
Dos sepulcros busquei a escuridade;
Quando abraçado com a muda campa,
Lhe dava amargo pranto a Saudade.

4

Um Gênio dos que os Deuses destinaram
Para ser tua guarda, e tua guia,
Pousou na fria terra tão cansado,
Que nem quase suster-se conseguia.

5

Depois de descansar alguns momentos,
Gritou com triste voz, froxa, e doente...
Em fim achei-te, Príncipe querido,
Morta esperança da Ulisséia gente.

6

Achei-te; e antes de contar o muito
Que para te encontrar corrido tenho,
Chorar quero, e gemer em liberdade
De minha comissão em desempenho.

7

E voltando-se a mim, disse... Myrtilo...
Que choras sem cansar dos Céus a ira,
Escuta-me, e verás horrorizado,
Quem cego busca o mal, o bem que tira.

8

No funesto momento, em que seus olhos
Mortos já não puderam ver o dia:
Quando nas praças repartido em bandos
O povo lamentava o que perdia.

9

Quando ricos, e pobres, sábios, rudes,
Lamentavam da Parca o rigor bruto:
No momento, em que a dor se espalhou tanto,
Que nos rostos se via da alma o luto.

10

Eu, infeliz de mim! que encarregado
Da sua preciosa vida estava;
Eu que banhado em lágrimas absorto,
Seu rosto amortecido contemplava.

11

Tornei a mim do pasmo em que me via,
Obrigado de Lízia c’os gemidos;
Chegou a mim banhada em pranto amargo,
E os dourados cabelos esparzidos.

12

E gritando me disse entre soluços...
Oh Gênio vigilante, a quem as Parcas
O mais perfeito Príncipe roubaram,
Já que com o teu vôo o mundo abarcas.

13

Vai a alma buscar esclarecida
Deste corpo, que vês desfigurado:
Vai buscá-la entre os Deuses, e choroso
Lhe conta o que entre nós tens observado.

14

Vai, e as mágoas lhe pinta em que deixaste
Este meu coração que aflito viste;
Que envolta em negros lutos eu ficava;
Que minha alma também deixaste triste.

15

Conta-lhe a confusão, em que ficaram
Os seus afeiçoados, dóceis povos:
E que instante não há, em que não rasguem
Nosso horizonte mil gemidos novos.

16

Que as condensadas nuvens não podendo
Com o peso dos ais, que soltos voam,
Carregadas descendo novamente
A nossa terra, e mar com ais povoam.

17

Que entre mortais suspiros dolorosos,
Que co’as lânguidas ânsias saem rotos,
Te mandei procurá-lo; que benigno
De sua amante Lízia aceite os votos.

18

Eu, que inda não podia por confuso
A estrada distinguir, que aos Céus subia
Do caminho fatal, que ao negro verno
As desgraçadas almas conduzia.

19

Peneirando empinei-me o mais que pude
Sobre o foco mais alto do horizonte;
Tão erguido me vi, que debruçado
A meus pés julguei ver d’Atlas o monte.

20

Logo a vista estendi toda em redondo,
E d’almas descobrindo um grande bando,
O trilho que seguiam fui seguindo,
Mares, e novas terras visitando.

21

Volvendo os ombros para a foz do Tejo
O Promontório Sacro atrás deixámos,
Depois por cima dos azuis Titanes,
As colunas de Alcides procurámos.

22

Livres de mastaréus, de remo, e velas
Passámos todo o vasto mar interno;
Onde vimos nadar guerreiras quilhas,
Soltos os panos ao infiel galerno.

23

Sobranceiros às ondas do Tirreno
Aviltámos por fim o longo Épiro,
Onde todas as almas descansaram
Do trabalho, que dá tão longo giro.

24

Pouco tempo correu, e um triste Gênio
De sanhudo semblante carregado,
Levou-nos por um árido deserto
De penhascos, e silvas alastrado.

25

Passámos revoando um largo espaço...
Quando eis que nos suspende, e absortos vimos
Coisa, que estremecer nos fez a todos,
Tanto, que compaixão ao Céu pedimos.

26

À borda nos achámos d’um abismo
Tão hórrido, tão vasto, e tão profundo,
Que por mais que alongámos nossa vista,
Não pudemos fitar o escuro fundo.

27

Que tal seria o nosso susto ao vermos
Que o desabrido Guia descer manda
Ao negro precipício cavernoso...
Cada qual olha para a oposta banda.

28

Mas o grosso vapor, que o fundo vale
Exalava de si, era tão denso,
Tão escuro, e pesado, que impedia
Vermos do largo vácuo o vão extenso.

29

Obrigados em fim nas asas firmes,
Fomos cortando a névoa denegrida:
Sulfúreo cheiro o ar espesso infesta;
A luz já se nos mostra amortecida.

30

Por entre o cego fumo já tão quente,
Que inda nem respirar se pôde apenas;
De espaço a espaço soltam guincho agudo
Tétricas aves de enlutadas penas.

31

Em fim cercados de pavor chegámos
Ao vasto fundo do medonho vale;
Em todo o nosso globo achar não posso
Nada que a quanto vi de longe iguale.

32

No mais profundo sítio preguiçoso
Descia entre penhascos retalhados
Um rio de tão feia catadura,
Que ficámos de medo traspassados.

33

Das retorcidas margens as areias
Eram escuras mais que o escuro lodo;
Mais do que os corvos, era a veia negra,
Que murmurava por estranho modo.

34

Pelas sombrias praias horrorosas
Árvores observámos desfolhadas,
Em cujos pardos ramos alternando
Guinchavam negras aves magoadas.

35

Sobre as despidas pontas dos rochedos,
Que escureciam mais a praia oposta,
Algumas almas vi, que blasfemavam
Da inalterável lei aos homens posta.

36

Entre elas descobri algumas dessas,
Cuja lembrança o mundo inda abomina:
Vi o sórdido, e vil Sardanapalo,
Vi a bárbara, e torpe Messalina.

37

Vi outras muitas mais, que não declaro
Por serem entre nós mais conhecidas;
E logo disse em mim.. Ah certamente!
As horas, que empreguei, foram perdidas.

38

Enganei-me no trilho; agora vejo
A razão com que todo o mundo grita:
Quem dos malvados vai após o bando,
Enganado também se precipita.

39

As almas, cuja esteira vim seguindo,
São almas criminosas certamente,
Que deixando os vis corpos nos suplícios,
Vêm no Averno chorar eternamente.

40

São almas desgraçadas, que abusando
Dos bens que os Deuses justos o’freceram,
Antes penar aqui, do que no Olimpo
Eternos bens gozar cegas quiseram.

41

Logo não pode ser esta a morada
Que eu vinha procurar com tanto custo;
Gemer não pode no profundo Averno
O espírito d’um Príncipe tão justo.

42

Pelo que eu vejo agora, o turvo rio
É o sulfúreo, lúgubre Aqueronte:
Nisto os olhos voltei, e vi na praia
Varar a barca rígido Caronte.

43

Aos toleres deixando os remos presos,
Manejava robusto a longa vara,
Que cravando já d’um, já d’outro lado,
A barca para nós encaminhara.

44

Seu rugoso semblante o mostra velho:
Tem hedionda, negra, e hirsuta a grenha;
Espessa a barba, e o gretado corpo
Na solidez, e cor parece penha.

45

Um pouco em nós fitando os turvos olhos
Com império gritou: Então que esperam?
Eu não posso perder aqui mais tempo...
Todas no mesmo instante esmoreceram.

46

Então o duro Gênio, que trazido
Tinha das almas infiéis o bando,
Por conta uma por uma ao vil barqueiro
As foi inda que tristes entregando.

47

Vendo que já partia... alto gritei-lhe..
Terás no teu batel passado acaso
O Príncipe dos Lusos? Respondeu-me:
Na minha Barca só tiranos passo.

48

Tornando então a mim arrependi-me,
De tal lhe perguntar; mas do receio
Não nasceu a pergunta... em fim ditou-ma
A dor amarga, que me enchia o seio.

49

Firmando a longa vara sobre a praia,
E encostando-lhe em cima o corpo duro,
Da negra areia arranca a férrea quilha,
Com o peso a água fez rouco murmuro.

50

E sentindo que a névoa carregada
Do vento revolvia um bafo ardente;
Ambicioso de largar as presas,
Porque já nesta praia vê mais gente.

51

Bem no meio da barca um grosso mastro
Com rara prontidão forçoso esteia,
Logo uma grande veia suja, e rota
Entregue ao mole vento solta ondeia.

52

Sentando-se na popa a escota firma,
A vela se embolsou sem mais demora:
Já bóia a negra escuma... já das almas
Qual geme, e grita... qual soluça, e chora,

53

Tocam por fim na oposta, fatal margem;
Sem tardar logo o velho a praia ferra:
Eu que os tinha co’a vista ido seguindo,
Suspirei, quando os vi saltar em terra.

54

Saltaram do que viam assustadas,
Derramando sem fruto inútil pranto;
E apressado Caronte, uma por uma
Ao Ministro as largou de Radamanto.

55

Eram oito entre todas, delas quatro
Tinham-se neste mundo dado à usura:
Uma à murmuração; com sangue as outras
Assinaram a sua desventura.

56

Cheio de humana dor as fui seguindo
Com os olhos, que o pranto umedecia,
E vi que a uma caverna escura, horrenda
O inexorável Bronte as conduzia.

57

Dous colossais penedos escabrosos
Os agudos cabeços ajuntando,
Formavam da caverna a porta horrível,
Que está negro vapor sempre exalando.

58

Chegam... e param... porque o medo as prende,
Quando a morada triste vem da Noite;
Mas o duro Ministro rigoroso
Sobre todas desdobra um longo açoite.

59

Sepultou-as por fim, e já meus olhos
Vê-las não podem mais por entre o fumo...
Seus gemidos ouvi passado um pouco,
E cheio de pavor voltei o rumo.

60

Com medo de perder de novo a estrada,
Vim buscar com trabalho a sepultura:
Aqui derramarei lágrimas tristes
No regaço da Esposa terna, e pura.

61

Aqui, Myrtilo, decorando os versos,
Que a tua Musa ao Príncipe oferece,
Na certeza feliz de que no Elíseo
Seu espírito claro resplandece.

62

Passarei té chegar o último instante,
Em que eu aqui de dor também expire:
Certo de que depois de minha morte
Não faltará quem triste em vão suspire.

63

Confesso, que fiquei horrorizado
C’uma tal narração; e exagerando
As sábias precauções,com que os Divinos
Os homens para o bem foram levando.

64

Não contentes de haver formado o mundo
De sorte, que sem dele sair fora
Dos Eróstratos vis se pune o crime,
E Plácido por fim c’o as Leis descora.

65

Vendo que os corpos cá pagando ficam
A parte que tiveram nos delitos;
E que sendo dos erros os autores,
Das penas fogem os subtis esp’ritos.

66

Reservaram a si dar-lhes castigos,
Que às suas infrações prescritos eram,
Entre os homens as Leis cedem às vezes,
Entre os Deuses porém nunca se alteram.

67

As paixões entre os homens podem tanto,
Que apesar da razão, que noite, e dia
A fim de os refrear lhes representa
A eterna mágoa, com que o mal se expia.

68

Apesar do rigor com que ameaçam,
Com que eternas, e humanas Leis fulminam,
Fechando os olhos sem receio os homens
Abandonando o bem, ao mal se inclinam.

69

Respeitavel José... Príncipe excelso...
Exemplar dos varões assinalados,
Em teu seio a Virtude agasalhaste,
Separarão-te os Deuses dos culpados.

70

Vendo o Gênio por fim determinado
A ficar entre nós também chorando,
Pedi-lhe não julgasse satisfeito,
Formosa Lízia, teu afável mando.

71

Mostrei-lhe que outra vez abrindo as asas
O Príncipe infeliz buscar devia:
Que a não o achar da Confusão no reino,
Fosse aos campos buscá-lo da Alegria.

72

Tornou-me, que ser vítima receia
Do engano em que o puseram seus pesares:
Respondi, que seguisse as almas ledas,
Que entre os risos cortando achasse os ares.

73

Que destas sem temor os v’os seguisse,
Certo de em fim chegar ao campo ameno,
Onde de imortal luz sendo c’roado
Triunfante se vê o homem terreno.

74

Fundado em que do impávido Pacheco,
Quando entrou por Lisboa triunfante:
Comparado a Gilfort indo ao suplício,
Ver-se-ia diferença no semblante.

75

Convencido voou,... e por costume
Entre os mortos fiquei em vão chorando;
Co’a lembrança d’um bem que nos roubaram
Minha voraz tristeza alimentando.

76

A escura Noite para opor-se ao dia
Envolveu-se em espessos nevoeiros;
Despindo-a vão, porém do Sol os raios
A névoa se desfaz toda em chuveiros.

77

Mas ah!... da Noite o fumo dissipou-se;
E em quanto o Sol brilhando vai de manso,
Encostado na campa fria, e dura,
Vou à dor procurar algum descanso.



N O I T E  V.

1

Passei o dia todo, ó Lusitânia,
Abraçado co’ a pedra, que é tão dura,
Que não pude obrigá-la a que cedesse
De meus negros gemidos à amargura.

2

Da Augusta Márcia em atenção ao pranto
Pedi-lhe se voltasse um pouco ao menos,
Para vermos chorando, quem jurava
Dar-nos com seu favor dias serenos.

3

Ela banhada em lágrimas gritava,
Imitando a Isabel... ó dura lagem,
Meu Esposo adorado ou ver me deixa,
Ou dá às minhas lágrimas passagem.

4

De minha justa dor compadecida,
Deixa a ele chegar meu pranto ardente,
Talvez que alguma lágrima aquecendo
O seu peito de novo o avivente.

5

Ergue-te um pouco só, para que eu caiba,
Com ele quero suportar teu peso;
Quero animar seu seio amortecido
Com a chama, em que o meu tenho inda aceso.

6

Mas apenas me vires abraçada
Com ele estreitamente, sem demora
Ocupa o teu lugar, fecha de novo,
Quero morrer com quem minha alma adora.

7

Quero que para os séculos futuros,
Quando nos encontrarem abraçados,
Conheçam os vindouros a pureza
Do fogo, em que vivemos abrasados.

8

Supremos Deuses, vós a cujo mando
Param os rios: adormece o vento:
O colo pedregoso os montes dobram;
E do Olimpo estremece o fundamento.

9

A esta impenetrável, crua lagem
Obrigai a ceder aos meus gemidos...
Já que Himeneo nos fez respirar juntos,
Deixai-nos no sepulcro estar unidos.

10

Ele amava-me tanto, que gemia
Sempre que não podia estar comigo:
Doce Esposo... comigo em vida estavas...
Depois de morto eu quero estar contigo.

11

Assim aos Céus bradava em altos gritos,
Por abrandar da pedra a vil dureza;
Mas ela cada vez mais obstinada,
Sem a escutar sobre o cadáver pesa.

12

Que respeito me inspira, ó Lusitânia,
Da Natureza a solidez confiante...
Seus eternos Decretos não revoga,
Nem se mostra ao passá-los vacilante.

13

Homem nas decisões arrebatado,
Esta curta lição de novo aprende:
Antes de proceder sério examina;
Quem cego corre, ao precipício tende.

14

Quase sem reparar, ó Pátria amada,
Faz-me a dor do Epiteto a fala tome,
De Censor me arrebata c’o a mania;
Mas juro de Catão não quero o nome.

15

O Amor próprio, esta oculta, ativa mola,
Que sobre as almas tem maior domínio,
Que o fogo elementar tem na matéria,
Inda que o não dissesse Stal, ou Plínio.

16

Este Agente sagaz, que entre os humanos
Mais formas, que Vertuno larga, e toma:
Que em Diógenes ora anda de rastos,
Ora em Carlos ao mundo põe diploma.

17

Este estímulo, a quem Lucílio deve
Seus versos, e os seus quadros Ticiano;
Por quem Jumeli atrás deixou Terpandros:
Por quem Nero foi monstro, herói Trajano.

18

Embrulhado no manto da bondade,
Quando os homens tirar busca do abismo,
Da fútil glória no mais alto cume,
Firma o seu trono crédulo Egoísmo.

19

De Sócrates, Sólon, e Zoroastre,
Ao próprio amor devemos os conselhos:
Todos da distinção à c’roa aspiram,
Moços robustos, encurvados velhos.

20

Tu porém, Musa minha, que ferido
Vês o meu coração de aguda mágoa;
Tu que vês no meu rosto a dor pintada,
Entre os meus lábios ais, nos olhos ágoa.

21

A que fim adejando sem sossego,
Procuras distrair meu pensamento?
Deixa os homens seguir seus vários rumos,
Deixa a cada um morrer no seu intento.

22

Juvenal, e Boileau, Regnier, e Perfio,
Que aproveitaram com seus belos ditos?
Nero, e Paris viveram como d’antes,
Zombou Cotin dos maldizentes gritos.

23

Deste alto tribunal, ó Musa, desce:
Esse acre frenesi larga por ora:
Reconcentra-te mais: na sepultura
Do Príncipe querido chora, chora.

24

Chora o Príncipe... chora a grande falta
D’um Mancebo nascido para Augusto;
A quem juravam já dever favores
Os mesmos povos do terreno adusto.

25

Livre da prevenção escandalosa,
Tão fatal à cortada Humanidade,
Largando Charlevoix amava os homens,
Que o clima revestiu de escuridade.

26

Vendo-se humano, os homens respeitava:
Entre eles diferenças não fazia:
Amava o Patagão agigantado,
E o pequeno Lapônio protegia.

27

Todos para José eram os mesmos;
E do primeiro Par mui bem lembrado,
Da Groelândia, e Sandwich c’os frios povos
Se julgava igualmente aparentado.

28

Logo se geralmente os homens todos,
Por José tinham sido amados tanto:
Todos devem por ele dar gemidos,
Soltar amargos ais, derramar pranto.

29

Sim, minha terna Lízia, que suspensa
Estás por me escutar toda esta noite:
Desafio a chorar os homens todos,
E não pasmes que a tanto me eu afoite.

30

Como justo varão a sua morte
Deve pelos humanos ser chorada:
Como Príncipe dado aos nossos povos
Por eles com mais queixas tributada.

31

Mas vós, ó restos, já desanimados
Dos míseros mortais, que vos nutriram:
Vós que fostes os mudos instrumentos,
De que as mortas vontades se serviram.

32

Hoje estais, frios ossos, descansando
Das difíceis fadigas trabalhosas,
Que vos davam os fúteis, vãos desejos
Filhos de loucas almas caprichosas:

33

Hoje estais descansando, enquanto aflito,
Inútil pranto sobre vós derramo:
Estais emudecidos, quando eu triste
Por um amável Príncipe em vão chamo.

34

Sim, entre vós repousa também morto
O futuro Senhor do Trono Luso,
Da Lei posta aos viventes nele a Parca
Fez ao nosso pesar bárbaro abuso.

35

Quantos homens ocupam hoje as terras,
Que o balançoso mar, azul rodeia,
Certamente por ele saudosos
Soltam do acerbo pranto a quente veia.

36

Amar é próprio ao homem, quando certo
Está de que por outro vive amado,
O homem natural nunca resiste,
Ama quando se vê recompensado.

37

Por isso Egito, e França moderai-vos,
O epíteto que dais, foi merecido;
Mas vossos Reis amados nunca foram
Como entre nós José amado há sido.

38

Ptolomeu, e Luiz foram amados
Dos povos, que prudentes governaram;
Porém por nosso Príncipe excelente
Os mais estranhos povos suspiraram.

39

Todos os dias em escuro bando
Para justificar nossos gemidos,
A esta habitação triste da Morte,
Que ocupam secos ossos desunidos.

40

Chegam em busca do sepulcro avaro,
Que nos rouba apesar do justo pranto
Teu Esposo fiel, sensível, terno,
Que adorando-te a ti, nos amou tanto.

41

Chegam em busca do letal sepulcro
Suspiros, queixas, e ais desentoados,
Que em prova de pesar também lhe enviam
Os povos dos sertões mais apartados.

42

Juntos pousando vão na campa fria,
E com triste rumor, e sons agudos,
Sobre ela batem as escuras asas
Até que enfim cansados ficam mudos.

43

Das asas co’ o bater na estreita pedra
Largando vão as lágrimas queixosas,
Com que ao nascer as tinham ensopado
Povos distantes, gentes carinhosas.

44

O nosso morto Príncipe gozava
De fazer-se adorar o privilégio;
Da Parte Nova os povos mais ferozes
Gemiam por beijar-lhe o Cetro régio.

45

Não seguia o sistema ruinoso
Com que os Mahomets alçaram seus Impérios
Dos Calígulas tinha horror aos crimes,
As conquistas chorava dos Rogérios.

46

Ao rouco estrondo, com que ardendo o bronze
Por entre o espesso fumo enovelado,
Solta as rápidas balas faiscantes,
Ou duro ferro em lascas retalhado.

47

Ao som dos arcabuzes, das bombardas,
Das ardentes panelas, ou petardos;
Ao vôo incerto das agudas lanças,
Farpadas setas, ou buidos dardos.

48

Aos fatais instrumentos sanguinosos
Do sanguinoso, bárbaro Mavorte,
Não queria dever a sua glória,
Que é fatal sempre, quando a c’roa a Morte.

49

Do iludido Sebasto co’ a imprudência
Traçar não pertendia novos mapas:
Pacífico, bom Rei de paz queria
Té dos mares encher as fundas lapas.

50

A moleza porém, nem froxa inércia,
O pânico temor, vil susto, ou medo,
O apego à fértil Paz não lhe inspiravam,
Ria-se da fraqueza de Sagredo.

51

Os preceitos fatais, porém precisos
D’esta arte dos humanos destruidora,
Na memória fiel tinha tão claros,
Como se a guerra seu prazer só fora.

52

Imitando de York ao grande Duque,
E da França ao Herói sábio Turena,
Sobre a arte pelos Dauns também traçada
Judicioso moveu sua hábil pena.

53

Sabia: mas seu fim era o mais justo,
Certo de que a defesa é necessária,
A quem forças não tem, com que subjugue
Uma força maior, que lhe é contrária.

54

Sabia a fim de defender seus povos;
A fim de os conservar na paz ditosa
D’Eugênios, de Malbroughs já cintilava
Nele a ciência, e constância vigorosa.

55

Deseja mostrar que um Rei podia
Verificar a antiga idade de oiro,
Que aos Ítalos Saturno prodigara,
Quando do filho suportou o desdoiro.

56

A vista da feliz grata abundância,
Com que de Brandeburg o Chefe ativo,
E outros Príncipes mais enriqueceram
Seu já pingue terreno, antes esquivo.

57

Dos nossos sexto, e nono Reis antigos
Ao exemplo cedendo protegia
As súplicas dos próvidos Colonos,
Mostrando quanto o seu valor bem via.

58

Julgo mais, que Anco Marcio convencido
De que no seio só da Agricultura
As Ciências, Artes, Armas, o Comércio
Achavam nutrição confiante, e pura.

59

Mil ternos risos no engraçado rosto
As asinhas batiam prazenteiros,
Quando via rasgar o curvo arado,
Úmidos vales, ásperos oiteiros.

60

Vendo Tiro, Cartago, Esparta, Atenas;
E hoje Holanda, Inglaterra, Espanha, e França,
Nutrir co’os bens, que o pródigo Comércio
Sobre os seus povos às mãos cheias lança.

61

Do Minho, Douro, Tejo, e Guadiana
Por canais desejava misturadas
As claras, frescas, nstidas correntes,
Que os verdes mares buscam desprezadas.

62

Por esses novos rios das Províncias
Os gêneros depressa se trocaram,
E os povos, que a distância faz estranhos,
Felices pactos entre si firmaram.

63

Dentro em seu coração conter não pode
O risonho prazer, doce alegria,
Que o assaltou ao ver que a Mãe Augusta
Largos caminhos ao seu povo abria.

64

Este exemplo feliz da Soberana
De todo o persuadiu, de que as estradas
A comunicação facilitando,
As Províncias tem sempre de mãos dadas.

65

Vendo, que a situação do seu terreno,
Seu curto comprimento, e estreiteza,
Já aos Lusos antigos obrigara
A darem-se dos mares à aspereza:

66

Vendo que, Lusitânia, ao mar devias
As palmas, que arrancaste aos Africanos:
De Cabral a importante descoberta:
E n’Ásia os estandartes Mauritanos.

67

Vendo que às bravas ondas estrondosas,
Apesar da cruel ferocidade,
Devíamos não só a glória antiga,
Mas também a presente utilidade.

68

Vendo que neste estado indispensáveis
Eram essas boiantes Fortalezas,
Que os Nacionais Direitos defendendo,
Conservam sempre as alianças presas.

69

De Netuno as espáduas quando via
Co’ alguma nova quilha retalhadas,
Da carinhosa Mãe as mãos benignas
Com seus beijos desejava mais coradas.

70

De tudo quanto concorrer podia,
Para um bom Rei formar se tinha ornado:
Tudo o que o Povo enriquecer pudesse,
Tinha sido por ele desejado.

71

Quanto o não mostram seus desejos certo
Nesse Evangelho, que a razão descobre:
Servido em pratos de oiro Americano,
Não pode ser o Rei de gente pobre.

72

Lutuosos gemidos, tristes queixas,
Que voais entre os mortos esqueletos,
Pousai: não perturbeis a paz escura
Com ruidosos vôos inquietos.

73

Chegai do nosso Príncipe ao Sepulcro,
E vereis encerrado em vão estreito
O famoso Varão, que os altos Deuses
Para ilustrar o mundo tinham feito.

74

Aquele, que aos prazeres verdadeiros
Dava seu coração, sua alma pura;
Sempre que via sobre algum humano
Benfeitora voar, qualquer Ventura.

75

Vinde ver da sublime Natureza,
E da nossa Sob’rana os sãos intentos
Convertidos em pó... fim lamentável
Da beleza, das ciências, dos talentos.

76

Dos Cedros, e dos fúnebres Ciprestes
Por entre os verde-negros, crespos ramos,
Vejo a Noite fugir... ah mágoa minha!
Do novo dia à luz também fujamos.



N O I T E VI.

I

Zéfiros, que voais por entre os ramos
Dos altos, desiguais, verdes Pinheiros:
Torpes, longevos Faunos fugitivos:
Ninfas dos bosques, Ninfas dos ribeiros.

2

De roxas saudades coroados
Ao ar queixosos ais vinde espalhando...
Vinde aos mesmos silvados espinhosos
Nossas pungentes mágoas inspirando.

3

Vinde comigo, vinde às praias frescas
Do nosso ameno Tejo entristecido:
Vinde ajuntar ao meu o vosso pranto,
E misturar co’ os meus vosso gemido.

4

Cubri os rostos co’ os sutís cabelos,
A fim, que o riso nunca neles pouse:
Com pena de traidora ser chamada
Dar sinal de prazer nenhuma ouse.

5

Faunos, ventos, e Ninfas todos juntos
Deveis também chorar nossa desgraça:
A paz desfrutaríeis deleitosa,
Que vos roubou também a sorte escassa.

6

Viçosas Primaveras vinte, e sete
Chegam seu rosto a ver de Primavera;
E em sãs aplicações gastava o tempo,
Que outros Príncipes deram à Quimera.

7

Fugi de nós, ó prazenteiros gostos,
Doces satisfações, meigos carinhos:
Batendo as pandas asas cor da noite,
Vinde a nós sustos lúgubres, daninhos.

8

Já benignos seus olhos derramavam
Doce consolação em grossa enchente...
Ante eles o pesar abrindo as garras
Soltava o coração da aflita gente.

9

Broncos penedos, que já n’outro tempo
D’Ino a forte infeliz chorastes tanto,
Por entre o fresco musgo, que vos cobre,
Ah! deixai gotejar amargo pranto.

10

A sua bem formada, rubra boca
Feita Oráculo vivo derramava
Sentenças, com quem a cândida Verdade
Por sua língua aos homens se explicava.

11

Ligeiras nuvens, que escutais paradas
Os dolorosos ais, que ao ar soltamos...
Dos hórridos trovões ao som tremendo
Espalhai o pesar, que suportamos.

12

José... José... por nós Príncipe amado,
Onde estás?... Onde estás?... dize-nos onde...
Nós te iremos buscar... mas chorai olhos,
José descansa... onde ninguém responde.

13

Com a força da dor estalai penhas;
Abri os seios do meu pranto às gotas;
Suspire sobre vós todo o vivente
Por um Príncipe tal ao ver-vos rotas.

14

A vingativa Altéia às chamas lança
O tição por punir a Meleagro;
Mas sem crime a cruel Morte sufoca
Um Príncipe, a quem lágrimas consagro.

15

Mas Rômulo também antes de tempo
Por seus crimes não foi aos Céus subido:
Tirando-lhe um bom Rei, o Céu mil vezes
Os erros do mau povo tem punido.

16

Quebrai-vos de chorar cansados olhos...
E as lágrimas que absorbe o campo enxuto,
Convertam-se em violas denegridas,
E outras flores da cor do triste luto.

17

Oh mágica Medéia, que inspirada
Pela triforme Hécate subjugando
Os fogosos Dragões, que co’ as farpadas
Asas foram por ti nuvens rasgando.

18

Tu, que em volante carro ao ar subindo
Viste das Tempestades a morada;
Os gemidos escuta desditosos,
Da desditosa gente magoada.

19

As saudáveis plantas, que arrancaste
Ao som de imprecações misteriosas,
Nos Montes d’Ossa, Pélion, Othris, Pindo,
E do Enípeo na praia deleitosa:

20

Traze do Luso aos deleitosos campos,
E com os seus ativos, quentes sucos,
Em lugar de perder sem fruto o tempo
Em remoçar de novo Efsões* caducos.

21

Vem-nos ressuscitar o mais perfeito
Príncipe, que formaram mãos Divinas;
Mas coitados de nós... ervas não podem
Os raios inverter, que, ó Céu, fulminas.

22

Já vejo as altas Faias, verdes Chopos,
Em que as tristes Helíadas chorosas
Se viram convertidas: doirado âmbar
Formam do pranto as gotas amargosas.

23

Tal foi a compaixão, que aos altos Deuses
Mereceram os ais, que ao ar soltaram:
D’outra maior são dignas certamente
Lágrimas, que entre nós se derramaram.

24

As Irmãs de Faetonte lamentavam
A morte d’um Irmão desvanecido,
Que para remover do mundo a ruína,
Foi pelo mesmo Júpiter ferido.

25

Se alcançou piedade a sua mágoa,
Quanta a nossa também obter não deve?
Quanta causa maior de chorar temos,
Que nas margens do Pó Lampezia teve.

26

Nós choramos à morte inesperada...
Ah Lízia, estimo bem a tua vinda;
Mostram bem teus cabelos desgrenhados,
Que a tua alma o pesar devora ainda.

27

A estas Ninfas, Zéfiros, e Faunos,
Que após mim conduziram meus gemidos,
Convidava a chorar os nossos males,
Males por nossos erros merecidos.

28

E como algumas Náiades formosas
Formam o meu entristecido coro:
Por elas terem sido as que enterraram
Faetonte infeliz com triste choro.

29

Convencendo-as do excesso incomparável
Da tua perda sobre a de Climene,
Desejei comovê-las de maneira,
Que não fique nenhuma, que não pene.

30

Pintava-lhes as raras qualidades
Com que te mereceu maior ternura,
Do que Julia Proscila formentara
Por um filho, que à glória erguer procura.

31

Que escura névoa hoje enegrece a praia
Do nosso triste rio adormentado...
Ficou de ouvir as nossas tristes queixas
Sobre a molhada areia debruçado.

32

Que sepulcral silêncio dominando
Este lugar está triste, e medonho!...
Mas ai!... que sinto?... suo... tremo... eu morro
Acordado estarei?... ou isto é sonho?

33

Isto é de minha dor um novo efeito:
Chorai olhos... chorai em liberdade...
Meu triste coração ah desafoga!
Solta gemidos... solta à saudade.

34

Melancólica irmã do claro Febo,
Que encostada em teu carro prateado
Pensativa caminhas, dirigindo
Teus alvos potros pelo ar delgado.

35

Desbruçando-te vens por ver se acaso
Por entre as crespas nuvens que prateias
Vês teu Endimião... também gememos
Por José nestes campos, que alumeias.

36

Não te canses porém... em vão a vista
Estendes pelo mar, vales, e prados:
Do teu Endimião Jove supremo
Os belos dias quis ver terminados.

37

Jove por terminar tua alegria
Do eterno sono o fez cair nos braços
Arimano a José para chorarmos
Duro abismou nos sepulcrais espaços.

38

A fraudulenta Inveja destruidora
De tudo quanto é bom, já não podendo
Por mais tempo observar as esperanças,
Que de Lízia no colo iam crescendo.

39

Custando-lhe a sofrer, que as alegrias
Herdeiras de esperanças tão fecundas;
Enchessem de prazer não só os prados,
Mas té dos montes as cavernas fundas.

40

Furiosa de ver nos seios fortes,
Dos fortes, generosos Lusitanos
Co’ a posse d’um tal Príncipe animados
Ledos pular os corações ufanos.

41

Os Povos de Mavorte protegidos
Vendo no mar, e terras mais distantes
Derramarem contentes meigos risos
Inimigos das mágoas penetrantes.

42

Não podendo sem dor ver tanta gente
Sorver do gosto a viração suave:
Para mostrar melhor, que produzido
Bem não existe, que ela não deprave.

43

No seio de uma serpe enraivecida,
Chupando o ardente fel, que à raiva incita;
Ligeira deixa a gruta pestilente,
E os feios monstros, com que sempre habita.

44

Por inóspitos campos solitários:
Por despidos desertos escabrosos,
Onde ventos não há, que irados soprem,
Nem Zéfiros, que soprem carinhosos.

45

Por terrenos incultos, alastrados
De cadáveres tanto diferentes,
Quanto o são as espécies variadas
Dos que para morrer nascem viventes.

46

Por sítios, onde a mesma água encharcada
Existe morta, guarnecida à roda
De amarelados musgos também mortos,
Que infestam podres a atmosfera toda.

47

Pelo reino da Morte pavoroso,
Onde tudo em letal abatimento
Descansa: onde já tudo inanimado
Durava sem vigor, sem movimento.

48

Da Parca busca a habitação medonha
A que chega por fim, e nela entrando
Seu venenoso sangue se congela;
Os ossos o pavor lhe vai calando.

49

O dragão escamoso, que enroscado
Lhe cinge quatro vezes a cintura,
E as víboras famintas, que assanhadas
Lhe mordiam nos peitos a alma impura.

50

Apenas chegam à presença horrível

Da hórrida, tartárea Libetína,
Morrendo largam a malvada presa,
Que expirando também ao chão se inclina,

51

De sua mortal vista por um pouco
A Parca suspendendo o ativo efeito:
Para lhe ouvir a voz à Fúria manda
Sustenha a vida, que inda tem no peito.

52

A Morte sanguinosa descansava
Sobre um montão de esbranquiçados ossos,
Que por terem formado homens insígnes
Inda mais ilustravam seus destroços.

53

A Tísica voraz, comprida, e magra:
A súbita, feroz Apoplexia:
As Febres assassinas, cuja ardência
Nos rostos abrasados, bem se via.

54

A empachada Soberba; a torpe, bruta,
Desvelada Avareza; o ensanguentado,
Bárbaro Despotismo; a Hipocrisia;
E o Fanatismo vil atraiçoado.

55

Velhas Preocupações; tristes Moléstias:
Simuladas Traições sanguinolentas;
As malditas Paixões, que os vícios nutrem
Rodeavam a Parca sonolentas.

56

Mas a todos acorda o som agudo,
Que ao nascer faz um ai da bruta Inveja,
Fita os olhos na Parca silenciosa,
Olhos em que o furor livre chameja.

57

Co’ alento, que lhe resta forcejando
Tais palavras soltou a Fúria enorme..
Funérea Libetina inexorável
Por quem quanto existiu já morto dorme.

58

Tu, cujo descarnado, erguido braço
Dos viventes jamais algum respeita:
Tu, que matas os Reis tão sossegada
Como as flores, que o prado ameno engeita.

59

Tu, Ministro fiel, sempre incansável
Da sábia, produtora Natureza:
Tu, cujo coração empedernido
Os clamores das vítimas despreza.

60

Atende às ânsias, com que vim pisando
Teus sepulcrais domínios desabridos:
Já que eu também te sirvo cuidadosa,
Dá por um pouco à minha voz ouvidos.

61

Tu tens-me encomendado, que dos homens
Quanto possível for perturbe as ditas;
Em servir-te leal gasto o alento,
Que de novo tu grata em mim excitas.

62

Eu sempre vigilante entre os humanos
Revoltosas discórdias vou nutrindo:
Falsas cavilações: intrigas feras,
Que os laços da amizade andam partindo.

63

Do velho Pai cansado o frio peito
Faço que o filho rasgue furioso:
E a cruel Laodicéia a sua prole
Sepultou no teu seio tenebroso.

64

D’Adriano queimei tanto as entranhas,
Que do Danúbio a ponte suntuosa,
Desmantela, arruina unicamente
Por desfalcar do Autor a fama idosa.

65

Apesar das virtudes que o ornavam
Sabes dele alcancei, que em triste choro;
Mostrando seu tenaz resentimento,
Dele vítima fosse Apolodoro.

66

Pacheco, Lopo Vaz, Bing, Albuquerque,
E o forte Belisário cuidadosa
Sacrificar-te pude; e inda me lembra
Que ufana os aceitaste mui gostosa.

67

Sabes que por te ser mais agradável,
Ilustrando inda mais os teus serviços;
Perverti corações ao bem propensos,
Os seios corrompi té dos Magriços.

68

Bem vês que para entrar por toda aparte,
Quais em Miranda entraram os Hispanos:
Mil formas largo, e tomo, com que abuso
Da crédula fraqueza dos humanos.

69

Por ti de emulação, de ardente zelo
Da amizade, e carinho as formas visto:
Entre os froxos de fraca o nome adquiro,
Manha com que ao depois segura invisto.

70

De todos estes trajes revestida
Sabes quanto por ti tenho suado:
Quão soberbos troféus posto por terra;
Quão inúteis muralhas levantado.

71

Quantos milhões de vítimas sem culpa
Aos magotes lancei nos teus altares;
Com seu sangue inundando a estéril terra,
Com seus últimos ais turvando os ares.

72

Sabes, que em toda a parte, em todo o tempo
Às Artes, e Ciências fiz mil danos;
Formando dos seus mais fiéis alunos,
Seus mais danosos, pérfidos Tiranos.

73

Em prêmio pois de quanto obrado tenho
Para dar cumprimento a teus preceitos,
Quero me ajudes, tétrica Deidade,
A ferir d’um só golpe muitos peitos.

74

Em fim não posso suportar, que vivo
O Príncipe dos Lusos mais respire:
Eu darei por bem pagos meus trabalhos,
Quando o sábio José morrendo expire.

75

Como da Fúria o rogo por objeto
Entre as ruínas tinha a mais distinta:
A devorar de Lízia o Rei futuro
Das Febres todas manda a mais faminta.

76

Por teu Endimião em vão suspiras...
Nós também por José em vão gememos...
Mas já que em só chorar alívio achamos...
Triste Diana, sem cansar choremos.

77

Choremos noite, e dia pelos montes...
Com lágrimas reguemos nossos prados...
Choremos o maior de quantos maies
Sobre este globo devem ser chorados.

78

Perdemos um bom Príncipe, Justiça,
Indústria, Ciências, e Artes, que os Estados
Sabeis enobrecer, dizei se acaso
Pode vir maior mal aos povoados.

79

Um bom Príncipe, fim de cujo braço
Vem os Povos seu bem estar pendente
É a perda maior, que fazer pode
A já distribuída, culta gente.

80

Quando um Príncipe bom ocupa o trono
Em atenção a ele as Divindades,
Tudo prosperam: liberais repartem
Com sua alma das santas qualidades.

81

E quanto os povos vivem convencidos
Dos altos bens, que d’um bom Rei se esperam,
João Augusto, nos teus Lusos viste
Quanto com o teu mal esmoreceram.

82

Quanto é nosso pesar mais generoso,
Invicta Lusitânia, do que o pranto
Que Roma derramou por seu Marcelo;
Que por Thoas verteu também Lepanto.

83

Seus queixumes... seus tristes ais queixosos
Foram paga dos bens já recebidos,
Gemeram por seus Chefes Benfeitores
A seu valor, e zelo agradecidos.

84

Ao Augusto José... ao Rei futuro
Lízia devia só zelo confiante...
Um tão sólido amor, tão bem formado,
Que o invocava já seu Atlante,

85

Só mortas esperanças lamentamos...
Mas elas, justos Céus, valiam tanto;
Que desde que há mortais entre os dois pólos,
Nenhum mais digno foi de amargo pranto.

86

Ai... já não posso mais... ânsias, soluços...
Sufocam-me a voz débil na garganta...
Adeus, chorosa Lízia.. adeus, ó Ninfas,
Ah... ide-vos que o Sol já se levanta.



NOITE VII.

1

Como vem hoje a Noite carregada,
De tão espessa névoa revestida,
Que nem de Sírio penetrá-la pode
A cintilante luz esclarecida.

2

Nictiméne brutal, que por seu crime
Convertido se viu em ave negra,
Geme no Cedro, em quanto Filomela,
Cantando da vingança vil se alegra:

3

Mísera condição da humana gente...
Testemunho fatal da variedade...
Prova constante do chorado abuso,
Que o homem faz da grata liberdade.

4

De pranto em gotas mil vertendo as mágoas
Heráclito lamenta noite, e dia;
Em tanto o Abderitano às gargalhadas
Zombava sem cessar de quanto via.

5

Dos homens a acanhada inteligência,
Em nada mais se vê, que na incerteza,
Com que cegos discorrem muitas vezes
Do mesmo objeto sobre a Natureza.

6

Uns a Juliano dão fumantes piras;
Vestem-lhe a frente c’o enroscado loiro;
Ornam-lhe a belicosa, forte destra
Co’ cravejado, nobre Cetro d’oiro.

7

Outros dele formando outras idéias,
O despem do imperial, pomposo manto;
Uns chamam-lhe infiel, perverso, duro,
Outros chamam-lhe justo, humano, santo.

8

A geração de Pirra viciosa
Em tudo busca desiguais extremos:
Ou a Jove arrancar intenta os raios,
Ou ao velho Caronte os duros remos.

9

As pedras do Tessálio organizadas,
Discordando entre si dois bandos seguem,
Uns d’Éfeso suspiram com o triste,
Os outros com o Trácio a rir prosseguem.

10

Do mundo o destruidor, bárbaro abuso
Das Ciências e Artes belas o Tirano,
Sobre a mísera, pobre Humanidade;
Domínio o mais cruel, pratica ufano.

11

Os homens são os mesmos, que antes eram:
Sempre por não parar nos termos dados
Do Abuso vil, fatal no abismo escuro
Vão às tontas cair precipitados.

12

Todos ao cego Abuso são propensos;
Todos sem o cuidar no mundo abusam;
E depois ao pagar tributo ao erro,
Com os acasos tímidos se escusam.

13

Té Newton dedicou a este Numen
Seu Parafraseado Apocalípse:
Pelo mesmo furor arrebatado
Tosca da Lua, e Sol mede o Eclípse.

14

Das mais sagradas, importantes luzes
Os homens desleais abusam cegos;
Da sã Religião o Abuso em Cusco,
Fez com sangue sumar Leivas, e regos.

15

Perrault sem se lembrar quanto aos humanos
É mais precisa a arte soberana
Que a desejada vida prolongando
As vítimas arranca à Morte insana.

16

De Galeno, e Hipócrates a Ciência,
Sem ver quanto foi sempre mais preciosa,
Que de empinar soberbos obeliscos,
Essa Arte sempre altiva, e caprichosa.

17

Perrault atraiçoando a Humanidade,
Em obséquio ao feroz, cruento Abuso,
Abandona de Celso as descobertas,
Por traduzir Vitrúvio vão, difuso.

18

Oh vós de Musa dignos sucessores!
Vós, Ministros da sábia Natureza!
Vós, sobre cujos ombros a existência
Da humana Geração busca firmeza.

19

Certos do curto vão, que hoje medeia,
Entre os limites da esfalcada vida,
E da extensão imensa da Ciência
Por Esculápio aos homens of’recida.

20

Vendo que de cem anos os instantes
Não podem sobejar a quem se entrega,
Dos Thésalos, Menécratos, Dracónios,
À Ciência, que a moleza faz mais cega.

21

Da importância por fim do vosso cargo,
Supondo-vos um pouco hoje advertidos:
Obrigado das queixas inocentes,
Dos órfãos que deixastes desvalidos.

22

Da parte da ofendida Natureza,
E da esterilizada Humanidade,
Vos rogo não façais malvado abuso,
Da Ciência que estender consegue a idade.

23

De Petrarca deixai os doces cantos;
Nem o pincel d’Apeles vos distraia;
Prender-vos não consiga Pergoleso,
Nem a vossa atenção Lisipo atraia.

24

De quantas ciências entretêm dos homens
A curta reflexão sempre alienada,
Nenhuma deve ser mais seriamente
Pelos hábeis humanos estudada.

25

De nenhuma o errar é mais sensível,
Do amante Gabriel arranca aos braços
A enternecida Esposa, e sem tardança
Nele mesmo da vida solta os laços.

26

Bem sei que o Criador firmou limites
À nossa duração; mas é coerente:
Ele não, mas dos Cráteros a inércia
Mata na mocidade a mais da gente.

27

Não queirais por descuido responsáveis
Ficar das desventuras lastimosas,
Em que Pilades ficam sem amigos,
Em que ficam Acrôncios sem Esposas.

28

Com Lemério, Discórides, e Albino
Adornai vossos lúcidos talentos:
Gastai em conservá-los toda a vida,
Da qual sobejos não vereis momentos.

29

Ditosa Arte feliz, Arte Divina,
Que a vida prolongando os Heróis forma;
As Ciências enriquece, apura as Artes,
E os sustos em prazeres mil transforma.

30

Ah não vos admireis de que zeloso
Um pouco além passasse da baliza,
Revoltou-se em meu seio a viva mágoa
Com a vista d’aquela pedra lisa.

31

Debaixo dela está!.. ah chorai olhos..
Meu triste peito geme.. geme.. geme..
Estão mortos os pulsos destinados
Para de Lízia manejar o Leme.

32

Está o Augusto Príncipe formado..
Ah Deuses soberanos! confortai-me..
Está José.. fim.. José.. José descansa,
Negras filhas do abismo a voz soltai-me.

33

Está.. mortos Espectros.. da Virtude,
Hoje escudado com a voz suprema,
Mando-vos, que o silêncio interrompendo,
Cad’um por ele surdamente gema.

34

Se os Deuses a José capaz fizeram,
De produzir fenômenos preclaros,
A favor dos humanos venturosos,
Que ainda por fiéis se mostram raros.

35

Que muito d’um tal Príncipe em memória
Um Fenômeno outorgue á Natureza,
Pelo morto José.. mortos humanos,
Soltai a voz há tantos anos presa.

36

Aqueles de entre vós, que entre os viventes
Ficaram sendo Pais reproduzidos:
Lamentem mais, que os outros os proveitos,
Que lamentam seus filhos por perdidos.

37

Oh cultores das Ciências, e Artes belas!
Vosso exemplar chorai.. chorai saudosos
A morte d’um mancebo infatigável,
N’ambição de fazer-vos mais ditosos.

38

À importante, e sublime arte sob’rana
De nutrir dos humanos a ventura,
Foi José pelos Céus já dedicado,
Tanto nele a aptidão brilhava pura.

39

Porém nunca abusou.. prevendo às claras,
Que a ignorância dos Reis é a tirana;
Que neles à ambição vítimas dando,
Do povo humilde as esperanças dana.

40

Vendo que aos Reis mais que aos humanos todos
Precisa será sempre a imensidade;
E que ela concedida nunca fora
Às pobres mãos da pobre Humanidade.

41

Sabendo mais, que os Deuses providentes,
Para suprirem esta grande falta,
As Ciências desde os Céus nos enviaram,
Com que dos homens o valor se exalta.

42

Vendo que de reger os outros homens,
É das Artes a mais dificultosa;
E que só das Ciências a luz clara
A faz nas mãos d’um Rei ser proveitosa.

43

De noite, e dia sempre diligente
Em saber consumia seus alentos:
De ser útil a fome o obrigava
A enriquecer sem tréguas seus talentos.

44

Ah! dos homens cad’um dentro em sua arte,
Tome do nosso Príncipe o exemplo;
José nunca abusou, sempre constante,
Só na Arte dada aos Reis vos-lo contemplo.

45

E assim como José dos mais Augustos
Na turba já se via assinalado:
Cad’um de vós também em justo prêmio
Em sua arte virá a ser c’roado.

46

Meu ilustre Mecenas!.. que choroso
Junto a esta lagem fria estás ouvindo
Os versos sepulcrais, que entre soluços
Do meu cansado peito vão saindo:

47

Chorar, e rir da gente humana extremos
São já desde que dura conhecidos;
Porém se Young, e Hervey nada fizeram,
Que espero eu façam meus mortais gemidos.

48

Ah sensível Humano, nada espero!
Os meus queixosos ais não darão fruto!
Reconhecido a ser tu me ensinaste,
Meu rosto a Gratidão não quer enxuto.

49

A calúnia ofuscar não pode nunca
As Virtudes que n’alma recebeste;
Nos teus já rubros olhos não se veda
Pranto de Efestião, pranto de Oreste.

50

Do alto Carvalho herdaste claro Henrique
A constante afeição aos Lusitanos:
O apego às Ciências, às fecundas Artes
O respeito, e amor aos Soberanos.

51

Por isso em atenção ao sacro Trono,
Que com pranto de mãe a pia Augusta
Sem cessar umedece saudosa,
D’um Filho, que lhe rouba a Sorte injusta.

52

Em atenção ao Trono entristecido,
E à perda, que ninguém melhor conhece,
Lamentas em José morta a esperança,
A que o povo fiel mil ais of’rece.

53

Eu, que desde os primeiros, tenros anos
Sou aluno feliz dos teus exemplos;
Eu, que aprendi de ti a amar os homens,
E a obedecer à voz, que sai dos Templos.

54

Eu, que gozo a fortuna incomparável
De me chamares teu, eu que respiro
Ao teu lado tão junto, que se choras,
Choro; e se gemes, eu também suspiro.

55

Aproveito os instantes preciosos,
Em que possa servir à Humanidade;
Convencido por ti, de que os talentos
São credores da humana utilidade.

56

Sei que o tempo, em que geme triste a gente
É de todos o mais proporcionado,
Para ditar-lhe máximas sinceras,
Que possam melhorar seu triste estado.

57

Tuas lágrimas tristes co’as de Lízia,
Meu triste coração tanto enlutaram,
Que a minha Musa há muito adormentada,
Com seus ais dolorosos despertaram.

58

De tua companhia inseparável,
Os teus seguros passos vim seguindo,
Na companha de Lízia consternada
Aqui ficamos nosso mal carpindo.

59

Mas qual foi nosso pasmo, quando vimos
Da Augusta Márcia, da gentil Esposa,_
Posto ao lado João... o Rei futuro,
Do seu Irmão chorando a morte irosa.

60

Luiz Treze desde o Trono derribado
Se viu na sepultura, e com mil vivas
Ao sólio dirigiu seu filho os passos,
Soltando poucas lágrimas esquivas.

61

A experiência convence a cada instante
Que entre os humanos d’uns as desventuras,
São mães fecundas das doiradas sortes,
Com que outros sobem d’Ancion às alturas.

62

E vendo que eles ao julgar-se erguidos
Se esquecem da desgraça que os levanta,
Generoso João... teu sentimento
É tão raro entre os homens, que me espanta.

63

Sim, Rei futuro, pelos Céus deixado
Por coluna do Reino Lusitano,
No cume erguido do partido monte
Te inaugura Mirtylo sobre humano.

64

Da corrompida, humana, triste prole
É próprio se esquecer do mal alheio;
Tu porém invertendo, opões-te ao vício;
A desgraça do Irmão fere o teu seio.

65

Ah! permitam os Céus, os Céus concedam
Que vejamos em nós verificados
Os bens, que pelo teu sublime pranto
Por teu Povo fiel são esperados.

66

Cheio pois, bom Henrique, da amargura
Que inspira dentro d’alma uma desgraça,
Que não cinge somente os lusos Povos,
Que a humana prole geralmente abraça.

67

A minha terna Musa ao ver chorosa
Pronta a inspirar-me sepulcrais conceitos,
Com que chorar fizesse enxutos olhos,
Com que ais tirasse dos mais duros peitos.

68

Em obséquio leal à Pátria Lusa,
A quem devo agasalho, e favor tanto;
Entre os já descarnados esqueletos
A enfraquecida voz aos Céus levanto.

69

Levanto minha voz.. oh Humanidade...
Em atenção também ao teu desgosto:
Em José, com quem já te recreavas
Tinhas, benigna Mãe teus olhos posto.

70

Tu cheia de prazer à Natureza..
Davas os parabéns internecida,
Por não veres há muito os loucos homens
No ensanguentado chão perder a vida.

71

Hoje porém eu creio estar-te vendo
Outra vez desgrenhada com teu pranto
As feridas molhar dos miseráveis,
Que mata a Guerra, quando a voz levanto.

72

Colhendo que da paz o bem provinha
Dos corações dos Reis humanizados,
Do Príncipe aplaudindo as qualidades,
Querias dar exemplo aos entronados.

73

Vendo que dos bons Reis unicamente
Da humana Geração a paz depende,
Em José dar modelo desejavas...
Mas a morte voraz a nada atende.

74

A nada atende a Parca inalterável..
Dos preceitos fiéis da Natureza
Fiel Executora o braço erguendo
Mata sem distinção Plebe, e Nobreza.

75

Tu de novo soluças, Lusitânia,
Do novo mal ferida co’a lembrança;
E eu triste de mim também contigo,
Contra a Parca feroz grito vingança.

76

Mas a luz transparente, que bafeja
Sobre o nosso horizonte o claro dia,
Dissipando já vai da Noite as sombras,
Co’a madrugada vem doce alegria.

77

Meu triste coração prende por ora
Os dolorosos ais; os teus gemidos:
À noite os soltarás em liberdade
Entre estes frios ossos carcomidos.



NOITE VIII.

1

Foge, Sono, de mim... busca os ditosos:
Que seus Príncipes gozam inda vivos
Foge... foge de nós, a quem as Fúrias
Da desgraça cruel querem cativos.

2

Voando vem a Noite lutuosa,
Medonha, triste, feia, e carrancuda;
Todo o nosso horizonte enegrecendo,
Em negra cor todas as cores muda.

3

Pela fria estação já protegida,
Muito mais cedo vem aos nossos prados,
Onde a desenfreiar começa o Inverno
Os Austros, que do mar vêm ensopados.

4

De espaço a espaço das pesadas nuvens
Rasgar-se vejo os abrasados seios;
E aclararem de forte a névoa escura,
Que até se vêem de luz os vales cheios.

5

Para mostrar-nos, que do Averno é filha
Do Averno traz a Noite hoje os horrores?
Estrondosos trovões retumbam roucos,
Soam nas grutas ecos rugidores.

6

Que quadro tão pomposo à Natureza
Delineando está nos fuscos ares:
Como bramam os ventos furiosos,
Como as vagas aos céus lançam os Mares.

7

Não te assustes, humilde, pobre humano,
Quando ouvires o hórrido estampido
Do trovão estalar; esse teu susto
N’algum crime te mostra compreendido.

8

Aproveita o teu tempo em saber quanto
Nos deixa investigar a Natureza:
Folheia bem seu volumoso livro,
E entrarás dos mistérios na inteireza.

9

De Franklin observa as experiências,
E verás, que o estrondo, que te assusta,
É um desses fenômenos precisos,
Suposta da Matéria a força adusta.

10

Mussembroek estuda, Wals procura...
E a Garrafa de Leyden observando
A vista da geral força do Electro
Teu pueril temor será mais brando.

11

Não dos trovões ruidosos, mas do crime
Vendo o semblante acautelado treme:
Estuda, e cede às Leis tua vontade:
Quem tem Virtude, e Ciência, nada teme.

12

Esse teu fútil medo nos convence
De que inda quando tremes és soberbo:
Como tu nas vinganças és ferino,
Nas vinganças teu Deus julgas acerbo.

13

Mas olha para ti, e vê se acaso
O teu cego amor próprio te enobrece
A ponto de julgares com verdade,
Que o Céu só por punir-te se embravece.

14

Homem degenerado.. Ente indomável,
Da tua vaidade olha o extremo..
Tal é o precípicio em que te lança,
Que vendo-te cair, também eu tremo.

15

Frenético emulando a autoridade
Que vês teu Criador goza sem susto;
Intentas seus fazer os teus excessos;
Por te justificar chamas-lhe injusto.

16

Invejas tanto do seu ser a glória,
Que esquecendo o respeito, que lhe deves,
Sacrílego querendo envilecê-lo
Tuas paixões lhe dás, quando o descreves.

17

Se tão franco ao criar-te houvera sido,
Como com ele és tu sempre, que o pintas
Na espécie respiraras dos insetos,
Que as forças ao nascer sentem extintas.

18

Ah desprezível homem, cego, e louco!
Pelo teu frenesi arrebatado..
Julgas que ao teu Autor tanto intimidas,
Que de hórridos trovões te busca armado.

19

Que conceito farias da formiga,
A quem ouvisses proferir ufana;
Só por me aniquilarem três Impérios,
Hoje seguem da guerra a fúria infana?

20

Punhas-te logo a rir do louco inseto:
E eu me riria então de ti somente,
Vendo o mal que medias as distâncias
Do inseto a ti, de ti ao sumo Ente.

21

Se da tua locura ver quiseres
Quão distantes estão os dois extremos,
Examina-te bem.. dá de barato..
Ergue os olhos aos Céus, e contemplemos.

22

O Onipotente Ser, a quem ingrato,
Sacrílego disputas a grandeza,
É o Ente eterno, de quem só depende
Para as suas funções a Natureza.

23

A sua mão direita pode tanto,
Que formando esses globos cintilantes,
Deu-lhes c’um leve aceno movimentos
Com que sempre girar hão-de constantes.

24

Argos do que ele tinha menos vista,
O futuro, e passado vê presentes;
Em fim é Deus Onipotente, Imenso,
A quem devem seu ser todos os Entes.

25

Mede agora, coitado, as tuas forças,
A tua compreensão olha bem, olha:
A formar não te atreves um mosquito;
A essência ignoras da mais simples folha.

26

No ver te excede o mais cansado Lince;
No ouvir o Javali; no tato a Aranha;
O Bugio no gosto; e que no olfato
Te vence, mostra o Cão pela montanha.

27

O encorpado Elefante é mais forçoso,
Que um cento dos antigos atletas;
E na indústria escurecem mil Filônios
As Abelhas, que voam inquietas.

28

Do passado colher podes apenas
O pouco, que permite a curta vida;
E como Leibnitz viu, e Fontenelle
Té isso rouba a idade encanecida.

29

A política ver não pode nada
Do futuro, por mais que a vista esfregue:
Lord Chatan se acertou, foi um acaso,
Como os mais com que cega nos alegue.

30

De Raméses Miámo o Obelisco
Não concorra a nutrir tua vaidade,
De vinte mil escravos foi trabalho
Produto de uma bárbara vontade.

31

As Egípcias Pirâmides se justo
Quiseres refletir, nada concorrem
A fomentar a tua vã soberba,
Também de durar cansam, também morrem.

32

De Nino os monstruosos Baluartes:
A torre de Babel, que aos Céus subia;
De Semíramis vã os largos muros;
O Colosso, que o Sol ao nascer via.

33

O Depósito imenso, em que do Nilo,
Meris soube encerrar as águas claras:
O confuso, e extenso labirinto,
Que em Arsinoe c’roava empresas raras.

34

São monumentos, que nos põe aos olhos
Não dos homens Divina prepotência:
Os restos, que durar deixa ainda o Tempo,
Mostram dos pobres homens a demência.

35

O bem maior, que dá a Natureza
É um bom coração; organizado
Com dócil propensão para a Virtude,
Do Vício contra os golpes sempre armado.

36

Este em Caio corrompe, e adultera
A alteração molesta dos humores;
Nele mostra que pode a enfermidade
Voltar em maus os corações melhores.

37

Quanto do coração, e da alma o preço
É instantâneo, e frágil, nos convence
Hoje o Terceiro Jorge, o Rei amado
De sisuda Nação que os mares vence.

38

Deus tem por duração a eternidade,
E a tua, inda apesar de ser tão curta,
Vê-se sujeita a cinco mil moléstias,
E quantas vezes um inseto a encurta.

39

Basta uma gota d’água; a mais pequena
Porção deste alimento teu conforto,
Apesar da Epiglota introduzido
Na Trache-Artéria para ver-te morto.

40

Se os acasos contares infinitos,
Porque podes do Erebo ver a filha:
Tão frágil acharás da vida o fio,
Que terás teu viver por maravilha.

41

Homem! tu não és nada, que mereças
A mínima atenção, da extensa terra
Um ponto ocupas; para aniquilar-te
Teu Autor não precisa armar-se em guerra.

42

Quero em fim aclarar tua cegueira
Co’as luzes, que derrama a sã Verdade:
D’uma vez morra... morra sufocada
Dentro em teu coração tua vaidade.

43

Lembrado de que ao mundo jamais torna
Aquele, que uma vez dele saíra;
E que não dos já mortos, mas dos vivos
A fereza cruel pavor inspira.

44

Destemido encaminha os largos passos
Por este tribunal incontrastável:
Tudo o que nele vês são monumentos,
Que te mostram quanto és pouco durável.

45

Vem, e logo prendendo os teus sentidos
Com sisuda atenção, séria, e madura;
Deixando as sepulturas, que nos cercam,
Fita os teus olhos nesta sepultura.

46

Aqui suporta o peso rigoroso
Desta lavrada pedra endurecida,
Encerrada em espaço estreito, e curto,
Sem por lado nenhum achar saída.

47

A Terra, que há mui pouco organizada
Formava um gentil corpo, tão perfeito,
Que dos mais duros corações obtinha
Não só provas d’amor, mas de respeito.

48

A vivida matéria, que animava
O melhor coração, mais bem formado
De quantos tem as mãos da Natureza
Té o instante, em que eu choro aos homens dado.

49

O já exangue, pálido cadáver,
A quem a melhor alma dava alento:
De viveza, e ciência alma tão rica,
Que era já dos espíritos portento.

50

Uma alma de potências tão sublimes,
Que em memória aos Cinéias excedia;
Aos Germânicos sãos no entendimento;
Mais que Luiz doze, ao bem se dirigia.

51

José.. um novo Príncipe criado
Para fazer feliz o Reino Luso:
Cuja vida tão cedo foi cortada,
Que à Parca de cruel chorando acuso.

52

Do vaidoso Necao fofo imperante
A monstruosa, agigantada empresa,
Mostra, que quanto mais do mundo à origem,
Mais vigor inspirava a Natureza.

53

O Novo Herói, que canto, conhecendo
Que nascera n’um tempo, em que cansada
A terra de sofrer do arado os cortes
Produzia já muito violentada.

54

Vendo dos diferentes alimentos,
Que a substância por muito enfraquecida,
Debilitando o Físico nos homens,
Lhes tira a força, lhes encurta a vida.

55

Neste tempo, em que o suco nutritivo
Por froxo diminui toda a energia:
Invocava da indústria o pingue auxílio,
E a influência da sã economia.

56

E vendo que um Rei só por si não pode
A fortuna fazer dos seus Estados:
Que precisa tirar todo o proveito,
De quantos ao seu grito vê prostados.

57

Da ativa Emulação, da Honra, e Brio
Se propunha avivar a extinta chama;
A fim de desfazer os vãos espeques,
Com que edifícios vãos sustenta a Fama.

58

Desejava animar os seus vassalos
A quererem por si valer no mundo,
E não à sombra dos troféus, e escudos,
Cujos donos sorveu, o Erebo fundo.

59

Seu cuidado, e estudo nos convence,
Que ninguém mais do que ele conhecia
Valer mais Rafael com os seus quadros,
Que o inerte sucessor da Fidalguia.

60

Sabia, que a ambição funesta, e louca
De não ceder aos anos a vitória:
De deixar entre os homens sucessivos
Eterna, sempre sólida memória.

61

Que o desejo irrisório, de constante
Ficar depois de morto ainda vivendo,
Fabricou o Guindaste, a mola ativa,
Que as Pirâmides foi aos Céus erguendo.

62

Cavilosas idéias, de que os tempos
Os fins pouco sinceros perverteram:
Das Pirâmides duram as relíquias,
Os nomes dos Autores pereceram.

63

José menos altivo, e mais prudente
Não queria passar além do ponto,
Que marcar-lhe devia o fim da vida:
Do Céu às decisões ninguém mais pronto.

64

À vista da constância inalterável,
Com que via a Matéria obediente,
Seguir da Natureza as Leis eternas,
Cedia às Leis também do Onipotente.

65

Ambicionava só gastar o alento
Em nutrir dos seus Povos a ventura,
Para da Humanidade no aúreo Templo
Deixar erguida duração segura.

66

Pois se um Príncipe tal obter não pode
Nem por sua figura, nem talentos:
Nem pelos rogos de seus tristes povos:
Da vida dilatados os momentos:

67

Se o Augusto José obter não pode
O Decreto dos Deuses revogado?
Se inda apesar da mesma Humanidade
José neste sepulcro está fechado:

68

Em que fundas, mortal desvanecido,
Essa aérea grandeza, que levantas?
Desenvolve tua alma... abre estes cofres,
Vejamos esses bens, com que te encantas.

69

Por mais que acautelado, e caviloso
Todos os teus defeitos escureças:
Inda que em cima de globosos fumos
As tuas perfeições nos enobreças.

70

Se fitares os olhos nos semblantes
Dos ínclitos, invictos Portugueses,
Que aos Deuses por seu Príncipe oferecem
Quanto pode formar seus interesses:

71

Ao ver nos mesmos olhos dos meninos
Lágrimas inocentes borbulhando:
Ao ver os ternos Pais com ais queixosos
O seu pesar nos filhos inspirando:

72

Ao ver toda a Nação ao Céu pedindo
Seu Príncipe outra vez lhe restitua:
Ao veres que não há quem suspirando
A fereza da Morte não argua:

73

Ao ver o mesmo Tejo andar varrendo
Com as barbas musgosas, e ensopadas;
Na força do pesar as longas praias
Praias co’as nossas lágrimas banhadas.

74

As úteis Artes, respeitáveis Ciências
Desgrenhadas ao ver sair aos prados,
E coroadas de espinhosas silvas,
Tornarem outra vez aos povoados:

75

Podes com tais sinais bem convencer-te
De não teres uma alma tão subida,
Que possa ao menos igualar os dotes
Da que deixar-nos quis por melhor vida.

76

Porque a maiores coisas o chamava
Mais liberal com ele, que contigo
Tinha sido a prudente Natureza,
Entregando-lhe bens, que inda não digo.

77

Tu de noite, e de dia ao ser Supremo
Perguntas a razão do que executa,
Quando às eternas Leis obediente
Mudo o golpe sofreu da Parca bruta.

78

Se o Augusto José com seus talentos
À soberba dar páreas nunca pode:
Homem desvanecido, o vôo suspende,
Essa névoa fatal de ti sacode.

79

Se ao Augusto José tantas virtudes
Não puderam livrar da injusta morte,
Tu que vales do que ele muito menos,
Não esperes, mortal, mais feliz sorte.

80

Enrola as velas desse curto barco,
Em que sulcas o mar das incertezas;
Este porto demanda, lança ferro,
Aqui darás valor ao que desprezas.

81

Aqui aprenderás a ser humilde:
Da Morte o rosto fúnebre, sanhudo
É o açaimo, que só consegue às vezes,
Que Campanella os Céus adore mudo.

82

Estuda nas funéreas, negras folhas
Deste livro, que triste te apresento,
A obedecer às Leis, que do Céu descem:
A amar os homens sem nenhum isento.

83

Aprende a ser feliz quanto o permitem
As sãs disposições da Natureza:
Té chegar sem trovões a hora, em que o sangue
Te congele também mortal frieza.

84

Já cantam sem pesar as tenras aves;
Já se vão sutis névoas desfazendo;
Já se vestem de luz vales, e montes;
Já vai o claro Sol resplandescendo.

85

Já vejo, Marcia Augusta, com o dia
As lágrimas brilharem no teu rosto:
Quanto, Marcia fiel, tua constância
Não concorre a nutrir o meu desgosto.

86

Santa Religião! as brancas asas
Desprega sobre nós... ah! tu somente
Podes como dos Céus filha Divina
As mágoas moderar da triste gente.

87

Vamos, ó Lusitânia, já é dia,
Solta o teu lutuoso, escuro manto:
Vamos seguindo as sombras, que se escondem,
Suspendamos por ora o nosso pranto.



NOITE IX.

1

Que peso o coração me está quebrando..
Morto José.. ah! quantos ais me custas
Ah Deuses! quantas mágoas dão aos homens
As vossas decisões, inda que justas!

2

Mas agora que os olhos por acaso
Ergui aos Céus, que estão esclarecidos..
Ah meu Príncipe!. sim... por tua glória
Vou aos homens servir inda iludidos.

3

Quanto abateu a guerra d’onte’ os ventos!
Quanto as nuvens ficaram fatigadas,
Bem se vê no sossego, com que limpas
As estrelas cintilam prateadas.

4

Agora sim, que estão livres de nuvens
Aos homens dando uma lição bem clara,
D’harmonia, de paz, de obediência,
Ergue, humano, teus olhos, e repara.

5

Vês estes desiguais, luzentes globos
Que o azul, etéreo campo marchetando
Da Noite entre as espessas, negras sombras
Em desiguais alturas vão brilhando.

6

Neles tens um fiel, vivo modelo,
Que a todos nós d’útil exemplo serve:
Eles mostrando estão o fácil modo,
Por que a ordem no mundo se conserve.

7

Esses erguidos corpos luminosos,
De que sempre nos vemos rodeados,
Em desiguais porções distribuídos
Arremedam dos homens os estados.

8

Uns chamam-se entre nós estrelas fixas,
De que os Reis vivas cópias ser deviam;
Têm própria luz, que liberais derramam,
E jamais dos seus tronos se desviam.

9

Cad’um destes, que Sóis chamar devemos,
Tem em torno de si número certo
D’outros astros escuros, que iluminam
A uns de longe, a outros de mais perto.

10

D’estrelas, e Planetas povoado
Se vê o imenso vácuo imensurável:
De Vassalos, e Reis compõem-se os Povos
Que povoam nosso astro variável.

11

As luzentes estrelas desde o centro
Dos seus extensos, sólidos sistemas,
Influindo nos astros, que as rodeiam,
As distâncias aclaram mais extremas.

12

Os Planetas em prêmio da clareza,
E atração que recebem sem mudança,
Cad’um reconhecido o mais que pode
Ao seio benfeitor grato se lança.

13

Destas duas recíprocas tendências
Tão igual, e constante é a harmonia,
Que produz o sossego, a paz ditosa,
Que entre os astros domina noite, e dia.

14

Agora vós, humanos, conhecendo
Que não há bem, que ao bem da Paz exceda,
Dos Astros aprendei sobre este globo
A nutrir entre vós a paz mais leda.

15

A humana gente, que povoa o mundo
Dividida respira em seus estados,
Em cujos centros, como em seus sistemas,
Os escolhidos Reis são adorados.

16

Eles como as estrelas radiantes
Sobre os povos humildes, que os rodeiam
Devem com igual mão derramar sempre
A luz, com que os exemplos alumeiam.

17

Os Sóis atraem benignos, carinhosos
Seus astros, e sobre eles difundindo
Fértil, vital calor, nova existência
Vão sempre nos seus seios produzindo.

18

Assim os Reis também entre os seus povos
A Indústria fomentando, e a Cultura:
Deviam influir, facilitando
Os meios do prazer, e da ventura.

19

Com alguns dos Planetas as estrelas
Repartiram da sua autoridade;
Dos Satélites deram-lhe a regência,
Que exercitam com plácida igualdade.

20

Do mesmo modo os Reis dos apartados
Povos, a quem por si dar luz não podem;
A regência entregar devem àqueles,
Que c’o as cegas paixões menos se engodem.

21

As estrelas porém com seus Planetas
A influência conservam mais estreita;
Elas lhes dão a luz, a atividade,
Que distribui cad’um, tal qual a aceita.

22

Isto mostra aos bons Reis, que persuadidos
De que os regentes são os seus retratos
Com tenção de influir sobre eles sempre,
Devem sempre escolher os mais cordatos.

23

Nos imensos espaços, em que giram
Sem nunca descansar globos luzentes,
Nunca rodou da vil discórdia o pomo;
Nunca a intriga espalhou negras sementes.

24

E quereis a razão da paz ditosa,
Que entre os Astros constante sempre habita?
À vil, torpe ambição não dão ouvidos,
Só em se conservar cad’um medita.

25

Entre as vívidas, lúcidas estrelas
Nunca disputas houve em harmonia:
Cada qual com a luz no seu sistema
Derrama com prazer doce alegria.

26

Com seus sete Planetas progressivos,
E com seus dez Satélites contente,
E satisfeita brilha a nossa estrela
De vassalos não quer número ingente.

27

Por ser de Sírio o mundo mais extenso
Nunca Procion se viu menos brilhante:
Aldebaran sem mágoas de Canopo
Vê a Corte maior, mais cintilante.

28

Assim, ó Reis, do nosso fértil globo
Sufocando a ambição vossos Estados,
Podiam ser de paz favorecidos,
De risonhos prazeres habitados.

29

E vós, humanos, que os celestes Deuses
Nos domínios dos Reis nascer fizeram,
Imitai dos Planetas a candura,
Com que a paz entre si guardar souberam.

30

Herschel sua órbita não deixa,
Porque Vênus mais perto ao Sol circule,
Nem Marte se embravece por Mercúrio:
Não verão que Saturno àlgum emule.

31

Cada qual gira manso, e sossegado
Naquele trilho, em que o firmou a sorte;
Felizmente assim vão durando sempre
Livres de que o seu fio a guerra corte.

32

E se destas estrelas destinadas
Para aclarar os astros apagados,
Alguma se extinguisse, seus Planetas
Ficariam de toda a luz privados.

33

Apagai pois, ó Lusos generosos,
Nos semblantes as luzes da alegria:
Deixai, que as vossas faces escureçam
As sombras da letal melancolia.

34

A atraiçoada Morte rigorosa
Apagar conseguiu o Astro luzente,
Que os Deuses tinham próvidos criado
Para ilustrar o nosso Continente.

35

De todos os mortais, que hoje respiram,
Certamente nenhum tinha mais lido
Neste importante livro, cujas folhas
Tenho por bem dos homens revolvido.

36

José Augusto: Príncipe dos Lusos,
Como para reinar se viu no mundo,
De merecer o trono a feliz arte
Aprendeu com cuidado o mais profundo.

37

E achou tão importante, e proveitosa
A lição, com que os Céus ao mundo ensinam,
Que à sua compreensão não escapavam
Estes globos, que os Orbes iluminam.

38

Como os Deuses o tinham produzido
Para espalhar no mundo luzes belas,
Só a fim de aclarar os obsecados
A brilhar se ensaiava co’as estrelas.

39

Viu pela reflexão, com que dos Astros
Calculava os confiantes movimentos,
Que d’atração, e repulsão provinha
O equilíbrio em que giram luculentos.

40

Destas duas opostas, vivas forças
O admirável efeito conhecendo:
E outra tanta igualdade dos seus povos
No cálculo moral apetecendo.

41

Das suas sempre lúcidas idéias
Nutridas da lição c’o firme esteio,
Com a combinação clara, e sublime,
Que entre os mais dotes do alto Céu lhe veio.

42

Compreendeu, que o Amor a par do Ódio
Só do reino moral eram agentes;
Que ambos pela razão avassalados,
Eram capazes de reger as gentes.

43

Refletiu, que o Amor entre os humanos
Faz quanto na matéria a Afinidade,
Que une, aquenta, produz, e corrobora,
E às moléculas marca identidade:

44

Que o Amor leva o homem sempre a tudo
Quanto a sua existência guarda viva:
E que o Ódio o afasta da vereda,
Que à sua duração fosse nociva.

45

Com estas convicções fortalecido
De seu povo em si vendo os olhos fitos,
Vendo-se produzido para exemplo
De alçar virtudes, de prostrar delitos:

46

Desde os seus tenros anos cuidadoso
Mostrou ceder também às duas molas,
Que no reino moral influem tanto,
Que de temp’rá-las já traçava escolas.

47

Entre as suas ações sisudas sempre
O seu amor ao bem resplandecia:
E do seu ódio ao mal qualquer que fosse,
Também o feio rosto descobria.

48

Os seus puros costumes bem mostravam,
Que se estes dous princípios nos humanos
A energia tivessem necessária
Para fomentar bens, e evitar danos.

49

Dos Burlamaques, mais dos Pufendórfios
Guardara as reflexões menos volume,
E da sã Natureza os sãos direitos
Os homens zelariam por costume.

50

Infelizes de nós, já que bens tantos
Da Morte nos roubou a crueldade:
Do exemplo, que nos deu em quanto vivo
Procuremos tirar utilidade.

51

Sobre os montes, e vales inda a Noite
Em liberdade vagarosa gira:
Cansados olhos meus, chorai sem susto..
E tu, meu peito.. sem pavor suspira.

52

Perdemos-te, José... Príncipe excelso...
Vaga sem susto pérfida Lisonja
Tu que absorves dos povos a substância,
Como o úmido licor absorve a esponja.

53

Torna a ti dos ataques convulsivos
Que as entranhas cruéis te devoravam,
Ao veres que os teus sórdidos Ministros
Indecisos ante ele se ficavam.

54

Mais que José ninguém em tal idade
O humano coração conheceu nunca:
Nem o Sueco afetado, que do Narva
As campinas com Russos mortos junca.

55

Que os homens todos à Ambição tributam,
O nosso afável Príncipe sabia:
E que uns no templo a buscam da memória,
Outros do Potosi na cava fria.

56

Conhecia que a um Rei indispensável
O tino é sempre quando faz escolha:
Para os Otávios distinguir dos Joyces,
Quando com atenção para eles olha.

57

Depois de findo este importante estudo,
E os homens conhecer pelos semblantes:
Depois de neste livro, quase imenso
Ter feito as reflexões mais importantes.

58

O Castigo, e o Prêmio o convenceram
Do alto poder, que nos humanos tinham:
Que os Hélvios esperanças arrastavam,
E os Durings só com penas se continham.

59

Achou que de pagar nobres excessos
Não contenta a mesma arte os homens todos:
Que diferindo sempre nas idéias,
De premiá-los há diversos modos.

60

Ó Longa Espada, só de Afonso Henrique
Se dá por pago com os sãos louvores:
E Heliodoro dos Cofres chapeados
Aspira só aos lúcidos favores.

61

Da Zenóbia do Norte, da Heroina,
Que dos antigos Citas valerosos,
Os robustos, ativos descendentes
Hoje busca fazer povos ditosos:

62

Dos felizes efeitos, que produzem
Nas gentes, que Rourik tiranizara;
E que Pedro por fim depois de sábio
De sua alma ilustrou com a luz clara.

63

Da Varonil Mulher.. de Catarina..
Às mãos, e ao rosto conheceu deviam;
Armas, Artes, Ciências, e Comércio,
Os altares, que em Rússia se lhe erguiam.

64

Já também nosso Príncipe avisado
Com estas reflexões, bem convencido
Dos meios todos, que domina o trono,
Prudente desejou tirar partido.

65

À maneira do Sol, que com seus raios
Nos entes produzidos vida aumenta,
Que os pássaros canoros despertando
Da Noite as negras aves afugenta.

66

Do rosto os atrativos judicioso,
E cordato de forte moderava,
Que os culpados co’os olhos repreendia,
E os justos com sorrisos premiava.

67

Assim o nosso Príncipe já tinha
Nas feições de seu rosto tal concerto,
Tão justa economia entre os agrados,
E o ar de gravidade real, aberto.

68

Que dirigido já de ler nos homens
Pela facilidade extraordinária:
Senhor das propensões, que a cad’um deles
Dita a organização, que os rege vária.

69

Do semblante c’um leve movimento
Nos tímidos valor introduzia,
Os já desesperados animava,
E as esperanças de cad’um nutria.

70

Dos agrados d’um Rei sabia tanto,
Quanta foi, e será a força sempre:
Conhecia também não haver peito,
Que com favores um bom Rei não temp’re.

71

Com seus ternos afagos carinhosos,
Do seu bom coração anunciadores,
Fez-se tanto adorar entre os seus povos,
Que ao seu sepulcro vem soltar clamores.

72

Enviados por ele eram capazes
De obrarem mais por mar do que Nearco:
De se exporem a mais que Públio Décio,
De praticarem mais do que eu abarco.

73

Além do fácil, importante modo
De animar os sensíveis com afagos,
Frase com que os bons Reis podem mil vezes
Felizmente evitar cruéis estragos.

74

Sabendo ser maior em toda a parte
O número dos ânimos rasteiros,
Que aspiram mais à Prata, do que às glórias:
Mais ao Oiro, que aos bronzes verdadeiros.

75

Inda que a condição destes mais ba’xa,
Era por ele assás bem conhecida:
A possível, maior utilidade
Ambicionava deles extraída.

76

Sempre de cada qual sábio estudando
O modo de pensar já contemplava;
Em dos gênios tirar utilidades,
Assim a reger homens se ensaiava.

77

Esta séríe de idéias atendíveis
Com seus finos anéis encadeadas,
O foram conduzindo ao vasto Império,
Onde o Oiro dita aos homens leis doiradas.

78

É subterrâneo, e fundo o Templo escuro,
Em que de torpes, vis ambiciosos
Se compõe a coorte desprezível
Dos Ministros do Oiro sequiosos.

79

Com medo de perder seu trono antigo
Já mais da terra larga o vasto seio:
Do nascimento seu no frio leito
Rege o mundo fingindo estar alheio.

80

De todos quantos Reis no mundo imperam
Emissários recebe de contino:
Em muitas mil porções distribuído
Vai dominá-los com rigor ferino.

81

As porções, que de si aos Reis envia
Os seus agentes são mais cavilosos,
Que Tifaferno, Araspe, Ariameno
Nas suas comissões astuciosos.

82

Dos Reis apenas à presença chegam,
Com o peso se mostram debruçados;
Mas em breves instantes muda a sorte,
Passam nos tronos logo a ser c’roados.

83

Com o seu resplandor tanto os Reis cegam,
Que o filho Prúsias vil lhes sacrifica,
Antipatros a Mãe, o Pai Fraates,
Filopator a Esposa, e irmã dedica.

84

E para os convencer da afeição terna,
Que ao tirano do mundo guardam cegos,
Os alunos de Marte põe no campo,
Lisandro lhe resgata os mesmos Gregos.

85

Em sacrifício ao Oiro arrebatados:
Dos Deuses despojar vão os altares
Nabucodonosor, Cambises, Pháylio;
Co’ roubo se enchem de terror os mares.

86

Atentado não há... vil, feio crime,
Que por meio dos Dóricos doirados,
Em honra do metal que o mundo rege
Se não tenham já visto entronizados.

87

Ao virtuoso, puro Filopemen
Com oiro corromper buscou Esparta:
E Dario consegue que Udiaste,
Com o sangue do amigo a ambição farta.

88

Jugurta destemido com o oiro
Os chefes perverteu da altiva Roma,
E pérfidos depois compram a Boco
O seu genro infeliz com menor soma.

89

Do oiro à insaciável sede quantas
Cidades foram já sacrificadas,
Átila só por oiro o Tibre assusta;
Sila as gregas muralhas vê prostradas.

90

Do ardente seio de encarnadas chamas
Por entre erguido fumo espesso, escuro
Em faíscas desfeita a antiga Sardes
Às nuvens sobe sem valer-lhe o muro.

91

Com sangue humano o Oiro as ondas cora
À vista da assustada Salamina,
Tanto, que a espuma, que guarnece as vagas,
Já sai vermelha, quando o mar se inclina.

92

Xerxes por oiro vai dos Jônios mares
Rasgar os ombros com dez centas quilhas
E faz com três milhóes de armados Persas
De Acheloo fugir as lindas filhas.

93

Não é somente não dos Imperantes
De quem recebe o Oiro sacrifícios:
Os Pródicos também sabem às vezes
Seus direitos munir, ser-lhe propícios.

94

Timagoro venal na ilustre Atenas,
De que a virtude só pura consiste,
No são desinteresse teve exemplos;
Mas de Artaxerxe ao oiro não resiste.

95

De Sófocles os filhos vis, ingratos
O Pai sacrificar buscam ao Oiro:
Cerauno o Benfeitor; Scauro à Pátria;
Taurion o amigo com brutal desdoiro.

96

A opinião fatal, que os homens liga,
É quem lhe guarda só o preço inteiro,
Tanto, que o ferro já Lacedemônia
Lhe antepôs, sendo muito mais rasteiro.

97

Mas apesar das raras qualidades,
Com que o mesmo Estrabão o Oiro exalta:
Apesar da voraz, acre ferrugem,
Nunca poder no Oiro induzir falta.

98

À eterna duração, inda que altivo,
Sempre intacta descobre a áurea frente:
Do ácido nitroso na água forte
O efeito inda que em si jamais consente.

99

Ainda que dos gêneros preciosos,
Que formou desvelada a Natureza,
Seja o loiro metal o mais perfeito,
O buscado com mais crua avareza.

100

Tanto que o miserável Pítio avaro
Por amor do seu oiro não dormia:
E Perugino sem seu oiro ao lado
Jamais de um sítio ao outro se movia.

101

Inda que já de Pidna à áurea caverna
Pagar-lhe foram anual tributo
As pérolas, que o Sol ao nascer cria;
E do Búcino antigo o rubro fruto.

102

Com os cinco metais seus inferiores,
Inda que a Prata o faça seu Sob’rano;
A adoração servil da pedra limpa,
Que Rússia guarda, inda que aceite ufano.

103

Posto que do áureo Sol vendo-se filho
Seu áureo Cetro sobre o mundo estenda:
Inda que aos Reis da terra, ao Rei d’Olimpo.
Vassalos defraudar cego pretenda:

104

Assim, como dos Lízias, dos Libânios,
Dos Múmios, Cipiões, dos Aristidos
Adorações jamais lhe conseguiram
Seus Ministros por vis aborrecidos:

105

Assim como vencer não pode nunca
Do ácido marino a força ativa,
Assim do meu gentil Príncipe amado
A grande alma encontrou avessa, esquiva.

106

A Hidra, o Javali, o Leão fero
Não venceu mais robusto Alcides forte,
Que o Príncipe José venceu do Oiro
A intrigante, sagaz, bruta cohorte.

107

Persuadido que dos quatro Impérios
Ouvida a história, unicamente o Oiro
Fora como do luxo Pai corrupto
Quem os Cetros quebrou, murchara o loiro.

108

À vista do horroroso quadro, aonde
Os excessos do Oiro vê cora pranto
Mais vivos do que a sorte de Efigênia
Com o brando pincel expôs Timanto.

109

Vendo do mundo todo, em todo o clima
Da Natureza Mãe rotos os laços;
Vendo do pejo, e honra, da decência
As miudas cadeias em pedaços.

110

A fim de libertar seu povo amado
De tão péssima, e dura tirania,
Reduzir conseguiu o invicto monstro
Ao poder, que a Razão nele infundia.

111

Já como ao virtuoso sábio Gélias
A influência do Oiro avassalava:
Só para resgatar das mãos do Fado
Aqueles, que a desgraça subjugava.

112

Com o exemplo de Augusto, conhecendo
Que sem homens não há ditoso estado,
Na educação feliz de homens perfeitos
O oiro, que era seu, tinha empregado.

113

Em atenção às Artes, e às Ciências,
Se acaso algum mancebo descobria
Capaz de ser Eumênio, Téspis, Xanto,
Timócraro, ou Silánio, o protegia.

114

Co’ Oiro a emulação nutria entre eles
Como fecunda Mãe, a quem as Artes
De Píndaro deviam as estrofes,
De Farrázio os troféus, luz de Descartes.

115

Em ferrolhar o Oiro entre os limites
Da utilidade pública estudava,
Para tê-lo por fim domado, e manso,
Quando chegasse a ser o que esperava.

116

Do Oiro tinha tanto calculado
O domínio geral, que se propunha
Com ele a praticar ditosos planos,
Que com altas idéias já compunha.

117

De Hipéridas no vil procedimento
Viu os danos da sórdida avareza,
E assentou em que um Rei jamais é digno
Se em prêmios repartir não tem grandeza.

118

Em paga de tão sólida constância
Conheceu ser depósito o tesoiro,
Onde como no mar a água se ajunta
Dos estados se vai juntar o Oiro.

119

E que assim como a sábia Natureza
As águas de tal sorte economiza,
Que depois de regar vales, e montes,
Os mares outra vez grata indeniza:

120

Assim um sábio Rei se quer fecundos,
E ditosos fazer seus pátrios Lares,
Tão franco deve abrir os seus tesoiros,
Como francos seu seio abrem os mares.

121

Fazendo circular assim seu sangue
Do Estado os membros Benfeitor anima,
E depois de já bem fortalecidos,
Grato cad’um tão bem o reanima.

122

Desta circulação do Oiro lavrado
Quanto é precisa a sã economia,
Da prodigalidade nos efeitos
Com madura atenção prudente via.

123

Via que dos Erários a substância
Devia só nutrir utilidades,
E não projetos vãos, aéreos planos,
Dedicados a vãs identidades.

124

Por fim tinha José prudente, e sábio
Sujeitado à razão do Oiro o uso:
Tinha podido subjugar o monstro,
Que tantos males fez com seu abuso.

125

À glória caminhava, quando a Morte
O punhal lhe cravou... ah tristes gentes!
Vossos rostos feri.. mandai aos Deuses,
Por ver se os abrandais, vozes doentes.

126

Morreu o Benfeitor.. tão excessivo,
Que pode mais vencer, sendo mancebo,
Do que Minos vencera, quando velho
Foi as sombras reger do fundo Erebo.

127

Ah Lízia! triste Lízia... já não vive..
Vamo-nos abraçar co’a pedra fria..
Vamos chorar sobre ela, em quanto os prados
Encher de nova luz o novo dia.



NOITE X.

1

Vamos, coração meu.. vamos gemendo
Ver convertido em mar o nosso Tejo:
Eton, e Flégon já desfalecidos
Sobre as ondas pousar seu carro vejo.

2

O Sol já terminou mais este dia,
A quem segue de perto Noite escura:
Esta reprodução de luz, e trevas,
Mostra de tudo o fim, a pouca dura.

3

D’Austral Zona gelada os moradores,
Que de Argos vêm os olhos cintilantes,
Preparam-se a gozar um longo dia
Coroado de lúcidos instantes.

4

Não vos cegueis porém do Austro, ó viventes
Não vos cegueis do tempo co’a mudança.
Olhai, que há-de roubar-vos Velocino
As luzes, que vos deu hoje a Balança.

5

Também risonha a sorte aos nossos campo;
Tinha um Príncipe dado, em cujo rosto
Brincando mil nutridas esperanças
No seio do prazer nos tinham posto.

6

Mas a Morte feroz.. a Morte avara
Matando-o sufocou nossa alegria..
Pôs-se o Sol, que alegrava os nossos campos:
Fugiu de nós o mais sereno dia.

7

Hoje choramos mais amargamente,
Que do Setentrião as frias gentes:
Assim é que os enluta a escura Noite;
Mas esperam gozar dias luzentes.

8

Nós porém... de José... já renascidas...
Não veremos já mais as esperanças...
Chorai.. Lusos fiéis.. soltai gemidos
Castas donzelas... arrancai as tranças.

9

Em todas essas terras, que encruzados
Abrangem ao redor os dois Coluros;
Príncipe mais chorado inda não viram,
Passados anos, nem verão futuros.

10

Mas.. ai.. Pátria adorada.. ah Lusitânia,
Suponho há pouco tempo aqui chegaste;
Transportou-me o pesar, como provaram
As vozes, que admirada inda escutaste.

11

Sim.. o pesar em mim produz efeitos,
Que nunca produziu paixão alguma:
Ora me eleva aos desiguais Cometas,
Ora me abate d’Aqueronte à escuma.

12

Que autômato infeliz não é o homem
De mil contradições raro composto:
Dando os seus interesses por quimeras,
Parece que a si mesmo nasce oposto.

13

Vário por natureza, por capricho,
Por fro’xa educação, por vil costume:
Nunca está satisfeito; sempre geme,
Envolto de mil sustos no negrume.

14

Se se vê de Sultão alçado à glória,
Qual Carlos deixa o trono aborrecido..
Se desfruta ignorado a liberdade,
Qual Xisto busca ver-se aos Céus erguido.

15

Se passeia do Ménalo nos bosques,
Pelos jardins suspira de Corcyro..
Se de Páphos se vê entre as roseiras,
Lembram-lhe os cardos, da deserta Scyro.

16

Da fértil Cerazónta inadvertido
Deixa as rubras cerejas saborosas;
Pelas bolotas, que no Épiro engordam
Da Arcádia as feras, ríspidas, cerdosas.

17

Fecundo Pai de estéreis, vãos desejos,
Que de Saturno co’a brutal fereza
Ele mesmo devora, raras vezes
Se encosta, do seu bem sobre a certeza.

18

Trás d’uma glória vã arrebatado,
Cego se lança aos enublados ares:
Pisa sem precisão ardentes Líbias,
Por capricho se lança aos bravos mares.

19

Feliz conservação, doce sossego
São os bens de que o homem mais precisa;
Porém de Jano, e d’Esculápio os Templos
São os que louco menos vezes pisa.

20

De si mesmo inimigo às paixões cegas
Larga seu corpo, e alma inteiramente:
Sua ruína desde logo forjam,
Iludido porém nela consente.

21

Quanta razão não temos de gritarmos
Dos humanos mortais contra a loucura?
Quão caro nos saiu o fútil caso,
Que o homem faz da Ciência a mais madura!

22

Mil vezes vendo a sábia Natureza
O desgarrado homem esquecido,
Do que mais o interessa, de si mesmo
Para as fúteis quimeras distraído:

23

Vendo, que quando só devia atento,
Consultá-la fiel contra os seus males;
Aproveitando os bens, que lhe oferece
Nos verdes prados, nos sombrios vales:

24

Vendo, que em conseqüência do descuido
Morre antes de chegar seu termo dado,
Dele compadecida lhe presenta
Hipócrates, que excitem seu cuidado.

25

Mas ele que em errar tem só firmeza,
Aproveita o favor subindo aos montes:
Sobre ele Tycho Brahe perde o seu tempo
Em os passos contar dos quatro Ethontes.

26

Errou Ptolemeo; mas logo veio
Da Prússia, quem mais sábio o erro emenda:
Copérnico rasgou em fim de todo
Da ignorância fatal mais esta venda.

27

Em fim sabemos, que nos leva a Terra
Em torno do abrasado Sol brilhante:
Elíptico fez Kepler nosso rumo,
Newton dele nos deu prova bastante.

28

Já vemos sem receio o vagaroso
Astro, que a cauda ante o seu Sol desdobra:
E o ígneo Meteoro, que da Noite
Corre entre as sombras qual acesa cobra.

29

Os ângulos reflexos, e incidentes
Da Luz têm sido tanto combinados,
Que o Telescópio achou mais um Planeta
Nos espaços talvez nunca sonhados.

30

Acrescentando a pequenhes estranha
O Microscópio já fez conhecidos,
Os Mites té agora imperceptíveis
Por falta de Drobéles instruídos.

31

Em leves tafetás já represado
O gás às nuvens levantando a gente,
Verifica de Dédalo os desejos,
E a astúcia de Simão deixa patente.

32

Alegre triunfou o homem soberbo..
Já trilha os ventos; sobre os soltos ares
Já firma o seu docel: achando estreitos
Sua louca ambição os longos mares.

33

Novas combinações, e as infinitas
Mil modificações, qu’a ágil Matéria
Sem nunca descansar ata, e desata,
Mais vária, que entre as flores foi Glicéria.

34

Para eterno esplendor da Itália toda
Maféi o sábio descubriu às gentes,
Um fenômeno elétrico ignorado,
Os inflamados raios ascendentes.

35

O Abade Chappe, laureado Membro
Dessa Congregação de homens preclaros:
Dessa ilustre Academia Parisiense,
Fecunda Mãe de Heróis nas Ciências raros.

36

O Abade Chappe, que nos deu Casino
Por mais recomendar os condutores;
Elétrica também nos mostra a terra,
Lançando às nuvens raios destruidores.

37

Repartidos se vêm já nos três Reinos
Os trajes, que a Matéria larga, e toma:
Num existe quanto é informe, e rude,
Nos dois quanto vegeta, e idéias soma.

38

Da retalhada terra nas entranhas
Pode a ambição abrir tão funda mina,
Que do afetado luxo os vis altares
Já matiza também a alva Platina.

39

O áureo filho do Sol, o áureo topázio,
A azul safira, a esmeralda verde,
Que produz vagarosa a Natureza
A Química em formar já não se perde.

40

O célebre Adanfon expondo às claras
Dos vegetais a geração pasmosa:
Declarando unisexas as Palmeiras,
Hermafrodita a Tulipa, e a Rosa.

41

Já nos descobre mais este segredo
Dos muitos, que em seu seio inda encobria
De fingidos absurdos entre as sombras
A engenhosa, sagaz Mitologia.

42

Já sabemos, que Dafne no momento,
Em que os despidos pés sentiu desfeitos
Em torcidas raízes, e os dois braços
Viçosos ramos de loureiro feitos:

43

Que de Piramo, e Tisbe o quente sangue,
Quando da sua cor deu às Amoras:
Jacinto, e Loto, Dríope, e Narciso
As forças conservaram produtoras.

44

Júsio das Plantas indagando o reino:
Bargman suando na fornalha acesa:
E Mónro co’escalpelo enriqueceram
A arte de guardar a vida ilesa.

45

As belas Artes, Artes carinhosas,
Que são das Ciências juvenil ornato,
Também do nosso século doirado
Embelecem o lúcido retrato.

46

Garção, e Kleist, Metastasio, e Pope
Com tantos frutos, e viçosas flores
Das nove Irmãs ornaram as grinaldas,
Que já se esquecem de anciãos Cantores.

47

Aiden, e Nicolai, Rameau, e Soiza
A arte de abrandar os troncos duros
Tanto exaltaram, que também abrandam
Feras, e penhas bronzeados muros.

48

Da criadora, sábia Natureza
As gentis produções tão variadas
Em cores, jeitos, formas, caracteres,
Com que todas se mostram decoradas.

49

Da inimitável Natureza n’Arte,
Que os rasgos com pincéis ao vivo imita,
Distinguiram-se Smit, Arlaud, Vieira,
E outros, que a História com vaidade cita.

50

Esse fecundo Pai das incertezas
O Acaso Padroeiro dos humanos,
Inda, que às cegas sobre os entes lança
Muitas vezes cruel, súbitos danos:

51

Por mãos de Finiguerra na Toscana
Aos homens deu a liberal Gravura,
Arte, com que os buris em cobre liso
Os rasgos multiplicam da Pintura.

52

Nesta Arte delicada, e portentosa
Tem eternos louvores merecido,
Bovarlé, e Edelinck, Audran, Carmona
Silva, e Frois nossa C’roa hão guarnecido.

53

Nesta de Policleto arte divina,
Que de mármore, e bronze alçando vultos,
Obteve para Lízipo, e Machado
Seus alunos fiéis eternos cultos.

54

Nesta arte que o cinzel ou move astuta
Tanto, que anima a pedra, se fabrica;
Ou lança em receptáculos cavados
Metal fundido, que ao depois se explica.

55

De Luiz Quatorze Girandón co’a estátua,
E do sábio José, José Primeiro
O Colosso tirando d’um só jato,
Nosso Costa aturdiu o mundo inteiro.

56

De São Sulpício os alicerces fundos:
São Paulo em Londres templo majestoso:
De Mafra o edifício, e de Lisboa
O aqueduto magnífico, e pomposo.

57

Esta espaçosa praça deleitável,
A quem deu liberal Comércio o nome:
A quem paga tributo o Indo, o Ganges,
Temendo, que outra vez o Luso os dome.

58

Toda esta Cidade, que das cinzas
Qual outra Fénix renasceu mais linda,
Erguida por um Rei, por um Ministro,
Que a ter mais tempo a enobrecera ainda.

59

Os outros suntuosos edifícios,
Que este século deu às Catarinas,
Aos Carlos, Jorges, Fredericos, Luízes,
E aos senhores das cinco Lusas Quinas.

60

Essa arte, que até os Céus torres levanta,
Quando à soberba caprichosa serve:
Neste século obteve monumentos,
Que Saturno voraz jura conserve.

61

Os novos Reis porém já mais prudentes
Em lugar de Pirâmides erguidas,
De Obeliscos inúteis, curvos arcos,
De circos, de muralhas desmedidas.

62

Em lugar de nutrir de seus vassalos
Co’ importante suor fofa vaidade,
Abrem fundos canais, estradas novas,
E alicerces, que dão à utilidade.

63

Da Natureza o proceder constante
Nos seus princípios sempre invariáveis:
E a coerência, com que ela da matéria
Os elementos volve inalteráveis.

64

Por efeito da sólida certeza,
Com que nas suas leis sempre consente:
Em louvor da imutável consistência,
Com que nunca a si mesma se desmente.

65

A Águia de Alexandre, do grão Numa
A Ninfa, de Sertório a Corça amada;
E do falso Mafoma a Pomba terna
Talvez fosse entre nós hoje apupada.

66

Os pobres, perseguidos moradores
Dessa a mais infeliz das novas Ilhas;
Da rica São Domingos, que medrosa
A verde frente inda ergue entre as Antilhas

67

Os povos por Colombo intimidados
Com o rosto da Lua escurecido,
Da sua desculpável ignorância
Tirar não deixariam já partido.

68

Inda que hoje eclipsado o Sol fugisse
Romanzóf, e o Vizir não tremeriam:
Como Alyates Lídio, e Ciaxáres,
Que armados vendo tal esmoreciam.

69

Beccaria, Brissot, e de São Pedro
O Abade dos humanos Protetores;
A campo destemidos já saíram,
Dos homens arrostar os destruidores.

70

Os Chefes da Nação, a cujas proas
Se não querem opor com medo as vagas;
Que amontoas cruel Sul, quando irado
De Jove o trono co’a verde onda alagas.

71

Os Britanos Catões compadecidos
A favor dos humanos mais escuros:
Já buscam sem temor despedaçar-lhes:
Da vil escravidão os ferros duros.

72

O habitador dos montes abrasados,
Que a ígnea Zona com seu fogo tosta:
Tanto que fatigado o turvo Zairo
Do quente Congo no areal se encosta.

73

O inculto Orang-Outano té agora
Pela altiva Soberba despedido,
Da classe dos humanos reclamado
Já por Lineu se vê ao bem perdido.

74

As Górgonas medonhas, os Centauros:
Horrorosos Pitões também fingidos:
E os mais espectros, com que os seus direitos
A Ignorância alcançou ver protegidos.

75

De Bodino as idéias monstruosas,
Que o Reino da Impostura alçaram tanto,
Nem aos que ainda entre as faxas balbuciam
Ministrar podem já convulso espanto.

76

De Laudun as manhosas visionárias
Nem Leonor Gangé com os seus sonhos;
A pública atenção conseguiriam,
Não soam já nos templos ais medonhos.

77

Concino o infeliz, nem Grandiéro
Não se veriam já sacrificados
De absurdos feminis aos desvarios
Tão fatais nestes séculos passados.

78

Theofrastos, Catões, os Epitetos
Hoje têm na Moral atrás deixado,
Os Filósofos sãos nossos coevos,
Que têm à Humanidade trono alçado.

79

O tempo gastador tem finalmente
Despedaçado os vis, os ferros duros,
Com que a torpe Ignorância aferrolhava
O triste humano em seus covis escuros.

80

O bárbaro, cruel, pérfido Engano
Larga o cetro de ferro violento:
Das Preocupações acompanhado
Vai no Averno ocupar negro aposento.

81

Da Santa Paz seguindo o áureo trilho
Da Ciência a nós chegou a luz preclara:
Dissipou da Ignorância a sombra espessa
Como as névoas do Sol a face clara.

82

O pobre Humano, que gemia atado
De fatais ilusões ao duro cepo,
Já quase solto lança fogo ao tronco,
Cujas vergontas por seu bem decepo.

83

Enfim chegando vai o feliz tempo
De respirar a Ilustre Humanidade:
Os Deuses queiram cure bem as chagas,
Que da opressão lhe abriu a crueldade.

84

Os homens felizmente já cordatos
O mal, só porque é mal, de si alheiam:
Desabusados já a Deus só temem,
E os Reis, que em nome dele as Leis esteiam.

85

Da Moral nos recônditos arcanos
Os homens da razão favorecidos,
Mil preocupações têm debelado,
E abusos, que as Esfinges mais temidos.

86

Buffon, e d’Upsal o avisado Mestre
A Química, e Botânica ilustrando
Da Natureza acharam nos tesoiros
Riquezas, com que os Halers vão brilhando.

87

A Fama grita parabéns aos Deuses,
Os homens já supõem iluminados;
Cegos co’a falsa luz, té os Lapônios
A ignorância lamentam dos passados.

88

No vasto, erguido Templo de Saturno
Onde em fundos sepulcros cavernosos,
Os séculos, que passam vão ficando,
Da Morte entre os horrores pavorosos.

89

Onde os mortos instantes, mortas horas,
Onde os mortos cadáveres dos anos,
Em subterrâneos âmbitos escuros
Participam da sorte dos humanos.

90

Diz a Fama... que as Artes, e as Ciências
Um túmulo soberbo tem formado,
Para eterna fazer a glória ilustre,
Que tem o nosso século c’roado.

91

Embora o Mausoléu aos Céus se eleve:
Peônio os seus rivais embora dome;
Tanto, que lá no Templo da Memória
Da leal Artemisa risque o nome.

92

Bem sei o condecoram mais os bustos
Dos dois Josés, do grande Frederico:
De Carvalho, de Pitt, Kaunitz, Vergennes
E muitos outros, com que o julgo rico.

93

Confesso que há de ser para o futuro
Dos séculos o mais enobrecido;
Às Artes belas, as profundas Ciências
Pôs degraus, com que ao sumo as tem subido.

94

Entre os seus setecentos mil volumes,
Que Bruchion não guardava concedamos
Tão sãos conhecimentos, como aqueles,
A cuja luz enfim já respiramos.

95

Porém o nosso Príncipe adorável..
Neste tempo feliz, e iluminado..
Na flor da sua idade.. ah Céus.. expira
D’Osmans, e Boheráves rodeado.

96

Amiga Lusitânia.. a Noite negra
Foge do rosto da gentil Aurora:
Os seus membros no carro espreguiçando
Desce à Caverna, onde Eurídice chora.

97

Vai o dia aclarando os nossos campos;
Mas nossos corações já nada aclara,
Tanto, que a ter mais bocas mais gemera;
E a ter mais olhos, muito mais chorara.



NOITE XI.

1

Hoje mais cedo vim do que devia
À longa praia, que inda está com gente:
Onde me esconderei?... mas todo o mundo
É deserto, ao que vive descontente.

2

Que agradável painel para os ditosos,
Que de mágoas tiverem a alma isenta..
Com que doçura encrespa o vento as águas
Com que doçura o mar brando rebenta.

3

Como as boiantes Naus presas aos ferros
Estão sobre a corrente descansando..
Como cheias de Zéfiros as velas,
Os barcos devagar se vem chegando.

4

O doirado reflexo do Ocidente,
Que vista of’rece aos olhos bem enxutos:
Meu triste coração, não te distraias;
Não envolvas prazer em negros lutos.

5

Febo ao Escorpião já deu seus raios,
E os merecidos ais medrosos voam..
Ah quanto cresce, ó Céus, minha amargura
Ao ver que o mundo as prevenções povoam.

6

Depois dos elementos homogêneos,
E heterogêneos pôr em movimento:
Depois de dar ação às limpas águas,
Luz ao espesso ar, asas ao vento:

7

Depois do elementar calor interno
Dar aos montes de ramos verde grenha:
Depois de ornar com flores as campinas,
E os vales revestir de espessa brenha:

8

Depois de povoar a Atmosfera
De matizadas, voadoras aves,
Que harmoniosas vozes espalhando,
Faziam ressoar ecos suaves:

9

Quando já despontava as frescas ervas
A seu sabor entregue o manso gado:
Quando as doiradas nuvens salpicava
O Golfinho soprando o mar salgado:

10

Quando os flóridos ramos se dobravam
Com o peso dos pomos saborosos;
E os rudes animais livres corriam
Pelos prados, e vales deleitosos:

11

Deu a tudo o criado a Natureza
Um Rei, que no seu Orbe dominasse:
Viu-se o homem no trono colocado
Dos Entes superior a qualquer classe.

12

Logo desde o princípio as criaturas
Às superiores Leis obedientes,
Pagaram-lhe rendidas vassalagem,
Como ao Ente maior entre os mais Entes.

13

O soberbo Leão humilde, e manso
Ledo açoitando com a cauda as ancas;
E o mosqueado Tigre carinhosos,
Vieram-lhe lamber logo as mãos brancas.

14

O seu triunfo as Aves com doçura
Nos ares, e nos bosques festejaram;
E por dar-lhe prazer em torno dele,
Os Zéfiros alegres sussurraram.

15

Qual povo agricultor, que a vez primeira
Em tropel se apresenta ao Rei, que o rege,
Do qual um só não há que impaciente,
Ser entre os mais fitado não deseje:

16

Assim cada uma das viçosas flores
Desejava pelo homem ser colhida:
Das frutas cada qual ambicionava
Entre todas as mais ver-se escolhida.

17

Eis aqui como o homem desde logo
Prostrado a seus pés viu todo o Universo;
A formar seu prazer concorreu tudo,
Nada achou repugnante, nada adverso.

18

Porém este feliz, ditoso estado
Em breve terminou sua loucura,
Abusando da doce liberdade,
Sua sorte ampliar cego procura.

19

Destes vis, desleais, fúteis desejos,
No coração humano concebidos,
Nasceram as paixões, nasceu o Capricho,
E outros monstros fatais aborrecidos.

20

Da pérfida Ambição logo esta prole
Fermentou dos humanos a desgraça;
Elegeram por Chefe o vil Capricho,
Que fero a perdição dos homens traça.

21

Enlaçando princípios, fez sistema,
Cujo cruel objeto só consiste;
Em converter um Ente venturoso,
De entre todos os Entes no mais triste.

22

No espírito, que livre já domina,
Do bem real apaga toda a idéia:
E à vista dos seus já impuros olhos,
O livro das Quimeras só folheia.

23

E para o indispor co’a Natureza,
Grita-lhe, que com ele foi mesquinha;
Que aos outros Entes dera armas, e forças,
Que unicamente ao homem dar convinha.

24

Que o fizera pisar a dura terra,
Deixando às aves remontar-se aos ares;
Que entre estreitas balizas o encerrara,
Sonegando-lhe avara os longos mares,

25

Caiu infelizmente o homem cego
Nestas de vil Capricho, vis ciladas,
E cheio de si mesmo furioso,
Rompeu da Natureza as Leis sagradas.

26

Traidor, qual foi depois; na Ásia Artabano,
Levantar-se intentou co’o Império alheio:
Quis nadar.. quis voar.. quis endeusar-se,
E acabou por morrer de mágoas cheio.

27

Nasceu livre, e depois correndo o tempo,
Ele mesmo prendeu seus pés em ferros:
Nasceu puro, inocente, nasceu justo;
Mas perverteu-se enfim cedendo aos erros.

28

Coarctou sua doce liberdade
A ponto de encobrir tudo o que sente;
No principio a Verdade lhe inspirava,
Hoje é louco chamado, se não mente.

29

Enfim por cume da cruel desgraça,
Que ele por suas mãos próprias forjara,
Se vítima não quer ser da franqueza,
Do peito sentimentos não declara.

30

Seu círculo é possível, que pudesse
O homem reduzir a tão estreito,
Que não possa explicar d’alma as idéias,
Sem da Verdade vítima ser feito?

31

Ente o mais infeliz por tua culpa,
De quantos fez viver a Natureza;
Deixa-te confundir, pensando um pouco
Do teu presente estado na estreiteza.

32

Clara Verdade! a quem os Deuses justos
Inspirar-me talvez hoje mandaram...
Ah! dita-me a favor dos cegos homens
Versos, que n’outro tempo os ilustraram.

33

D’um Príncipe fiel, que de Confúcio
Já tinha a retidão na mocidade:
A lembrança me encheu de altas idéias
Ah! díta-me verdades, sã Verdade.

34

A dor é de Ariadna o certo fio,
Que me guia no escuro labirinto,
Tanto da sã Moral, como no estreito
Atalho da razão, que hoje vos pinto.

35

O destino cruel roubou-nos fero
Um Príncipe entre os mais tão excelente,
Que a lembrança das suas qualidades
De Febo excita em mim a chama ardente.

36

A pura Gratidão faz que interprete
Do Príncipe melhor os sentimentos,
De sua alma fiel as sãs idéias,
Do terno coração os movimentos.

37

Sendo pois minha Guia um sábio Augusto,
Que de aos homens ser útil, foi morrendo
Entre os fiéis desejos, nada admira,
Que eu lhes queira ser útil escrevendo.

38

Desde que os homens açaimar quiseram
Suas bocas, e às mãos lançar algemas;
E das rãs ao exemplo, Reis pediram
Do Céu às Divindades mais supremas:

39

Desde que eles se viram obrigados
A pedirem aos Céus Pompílios justos,
Que defendendo as Leis à sua sombra
Os deixassem dormir livres de sustos:

40

Desde que para o bem das Sociedades
Entre os homens há Reis, cujo cuidado
Ciência, zelo, e valor a seu proveito
Se veja unicamente destinado:

41

Desde que o Mundo Príncipes obteve,
Nenhum com tantos rogos foi pedido:
Dos Antíocos, Ciros, nem Seleucos
Nenhum foi por seu povo tão seguido.

42

De quantos no áureo Templo da Memória
Vêem cercados de luz seus limpos bustos
Em prêmio do cuidado, que empregaram
Pelo nome alcançar de bons Augustos.

43

Dos bens, que pode dar a Natureza,
Mais ornado nenhum ao mundo veio;
Trouxe do grande Avô as qualidades,
Benigna a Mãe lhas deu dentro em seu seio.

44

O Primeiro José, o forte Alcides,
Que Lízia te livrou de crus abusos,
De vis superstições, brutos costumes,
De vãs inclinações, bárbaros usos:

45

O amigo dos Solões, dos Filostratos;
O Protetor das Ciências, e Artes belas:
Que em terra fez temer teus estandartes;
E respeitar no mar as tuas velas.

46

Por um seu Fénelon sábio, e sisudo
O coração poliu do lindo Neto:
Das puras mãos deste avisado Mestre
Sai José instruído, sério, e reto.

47

A cuidadosa Mãe, que vigilante
Nele um completo Rei formar deseja,
Mais a um novo Aristóteles o entrega,
Que da sua instrução os passos reja.

48

Estes dois sábios Mestres cuidadosos
Tanto por nosso bem se desvelaram,
Que em quatro Lustros inda não inteiros
Dois Príncipes perfeitos nos formaram.

49

Um o vivo João, que o Céu nos guarde
Outro o morto José... que em vão choramos
Por quem... tristes de nós... em vão gememos
Por quem... em vão as tranças arrancamos.

50

Trinta vezes o Sol não tinha entrado
Do redondo Zodíaco nas casas,
Desde que por José nascer aos Lusos
Viu ternos Vivas sacudir as asas.

51

Já tinha de Sabino as justas luzes,
A arte de Pergeo rival do engano:
D’Artemon as idéias engenhosas,
E o tesoiro imortal de Pediano.

52

Entre os alunos do fatal Mavorte,
Mas necessário por fatal desgraça:
Era sábio Turena, Cimon justo,
E até já de Proxenes tinha a graça.

53

Eis uma cópia breve do vivente,
Que no tempo mais critico o destino
Nos roubou apesar dos tristes gritos,
Com que aos Céus nos queixamos de contino.

54

Ah! triste condição da pobre gente,
Variedade fatal nas criaturas!
O Príncipe ao nascer trouxe alegrias,
O Príncipe ao morrer deixa amarguras.

55

Os gostos, e aflições encadeados
Enchem dos pobres homens sempre a vida;
D’uns n’outros vai saltando involuntário,
Té o instante chegar seu homicida.

56

Nos braços tenros d’uma terna esposa,
C’roão a Carlos mil gentis Amores,
Na praça de Whitehall seu régio sangue
Sem pejo vertem rábidos traidores...

57

Da humilde Kunersdorf nos arrabaldes
Frederico.. Vitória.. às tropas grita..
Eis chega Laudon, que lhe arranca a palma,
E o põe na confusão do triste Arsita.

58

Hieron troca pelo arado o cetro,
Pelo alto sólio deixa o campo Numa:
Viu-se Ícaro em escuma convertido,
E Ericina nasceu da mole escuma.

59

Este certo cair do sumo ao nada,
O possível voar do nada ao sumo:
A passagem da dor às alegrias,
O ver o gosto convertido em fumo.

60

A alternada mudança necessária,
Se quisermos supor do homem o estado,
Faz com que o variar, tendo por uso,
Volúvel nunca firma o seu cuidado.

61

Distraido mortal, tu que insensato
Tua constituição cego examinas:
Tu que em chão plano a medo os passos moves,
Tu, que outras sem pensar te determinas.

62

Tu, que sábio te julgas, e infalível
Sobre os outros viventes esparzidos,
Olha que sem sentidos não és nada,
E que eles já te excedem nos sentidos.

63

O alto estado te expus, em que estiveste
Pintei-te o precipício em que caiste;
Quero pois conduzir-te enternecido
Com os chorosos ais, que espalhas triste.

64

Da tua situação tira partido,
Faze nela por ser o mais ditoso,
Que as várias circunstâncias permitirem,
Forceja por viver menos queixoso.

65

Quando a louca Fortuna entre sorrisos
Derramar sobre ti os seus tesoiros:
Se as pedras do Oriente em ti luzirem,
Quando te coroarem crespos loiros.

66

Não te deixes cegar pelos reflexos
Das luzes, que ao redor de ti brilharem:
Nem iludir também pelos louvores,
Com que os falsos Filocres te incensarem.

67

Olha que a Sorte vária é mais constante
Em Césares prostrar nos Capitólios:
Do que pobres Ventídios ignorados
Aos cômodos erguer dos altos sólios.

68

Quando erguido te vires, treme, treme,
A quase certa queda já prevendo:
Olha, que o homem louco fez-se estranho
A tudo o que não é viver gemendo.

69

Do que mais te convém persuadido,
Busca a santa Virtude carinhosa;
Nos seus braços te deita sem receio,
Nela a mãe acharás mais extremosa.

70

Ela moderará tua inconstância,
Nutrirá tua paz, o teu sossego;
Contra as cegas paixões há de escudar-te,
Há de vingar-te do Capricho cego.

71

Ela te ensinará a ser benigno
Com aqueles, que vires abatidos;
Sisudo, serviçal, e verdadeiro;
Com os outros, que aos Céus vires erguidos.

72

Ela mesma a teus olhos dará pranto
Na falta dos Varões assinalados:
Lágrimas te fará verter sem susto,
Por quantos merecerem ser chorados.

73

Ela te animará a dar gemidos
Dos Atalos, e Joães às tristes mortes;
Só dos Neros, e Phalaris nas vidas
Se não devem sentir da Fúria os cortes.

74

Homens, chorai enfim para mostrardes
Que não estais de todo pervertidos:
Que inda nos corações guardais apego
Aos bens da alta Virtude esclarecidos.

75

Quanto é vário o Destino! quão volúvel
Dos homens distribui as várias sortes!
A uns castiga com eternos loiros,
Premeia a outros com infaustas mortes.

76

Do segundo José, que a Fama eleva
A vida conservou, vida importante,
Para ver a seus pés hoje lançado
D’Osman Baxá o marcial turbante.

77

O alento lhe guardou, para que alegre
Nas triunfantes mãos de Laudon sério
Viste reverdecer de novo a palma,
Com que Eugênio ilustrou Águias do Império.

78

Prevendo a glória, com que heroicamente
De premiar exemplo aos Reis daria
C’roando a frente impávida, que em breve
O plano de vencer formar devia.

79

Permitiu que José, José Segundo
Fosse vendo c’roados os seus planos:
Porém do nosso Herói cortando a vida
Que altos bens não roubou aos Lusitanos.

80

Chorai... chorai... aflitos, noite, e dia
A falta d’um mancebo virtuoso:
Lamentai de José a ausência dura.
Ah! faze-o reviver.. oh Céu piedoso.

81

Ah Lízia!.. vem comigo, e abraçada..
Verás co’a fria campa endurecida
Por seguir da Virtude os documentos,
A Consorte do Príncipe querida.

82

Verás cobrir com as madeixas soltas,
E humedecer com pranto a lagem dura,
A Esposa mais fiel, que Amores viram
Desde que de Himineo arde a luz pura.

83

Maria Benedita, tão ornada
De raras perfeições, de qualidades,
Que do amor de José a acharam digna
Do Olimpo as justas, celestiais Deidades.

84

Maria Benedita, oh Lusitanos..
A vossa amiga, cândida Princesa..
Aquela, que em seus braços apertava
O Objeto digno de-im mortal tristeza.

85

Maria Benedita inconsolável,
Em quem lugar não tem pueris mudanças,
Sobre o negro sepulcro está chorando
Suas, e as nossas mortas esperanças.

86

Tristes soluços... lúgubres gemidos...
Da enlutada Maria em torno voam:
E por entre o vapor, que a Morte exala,
Os ais batendo as negras asas soam.

87

Com a Esposa adorável chorar vamos...
Vamos unir aos seus nossos queixumes...
Vamos, que já do Sol a face clara
Vai da Noite apagando os claros lumes.



NOITE XII.

1

Saudosos do Sol, que fatigado
No regaço de Tétis escumoso
Reclinar-se já vai: os brandos ventos
Revoam pelo vale, e prado ervoso.

2

Do Sol vendo-se ausente o velho Tejo,
Se encosta adormecido sobre a Urna,
E da grenha ensopada a água, que escorre
Entre os juncos se estende taciturna.

3

Com a falta da luz, do Sol distantes
As vernizadas frutas, mais as flores
Cobrindo-se de lânguida tristeza,
Perdem as engraçadas, várias cores.

4

As reses inocentes, que animadas
Com o calor do Sol contentes pastam,
Da Noite intimidadas com a vista
Das longas várzeas já tristes se afastam...

5

Os ribeiros, azuis, os frescos rios,
Que c’os raios do Sol trêmulos brilham,
Já cobertos de sombras tenebrosas
As miudas areias mansos trilham.

6

As aves, que entre os ramos prazenteiras
Na presença do Sol umas cantavam;
Outras as brandas penas sobrepostas
Com os bicos sonoros concertavam:

7

Ausentes dele, e dos seus vivos raios
No mais espesso, e fundo do arvoredo:
Saudosas se escondem, sem da Noite
Perturbarem o fúnebre segredo.

8

Porém agora, que do Sol na ausência
Magoados os Entes produzidos;
Com o peso das pálidas saudades
Espalhados estão adormecidos.

9

Nós, que perdemos muito mais do que eles,
Pois perdemos também as esperanças,
Comecemos de novo, Lízia amada,
A lamentar da Morte as esquivanças.

10

Choremos por José... fim, lamentemos
A morte de quem tanto nos amava;
A morte d’um mancebo generoso,
Que em fazer-nos ditosos só pensava.

11

Ah! quero consolar-te, aflita Lízia,
Se tanto conseguir acaso pode
Um triste coração, que magoado
As rubras asas já mortal sacode.

12

De minha dor entregue ao vário impulso,
Querida Lusitânia, me esquecia
Referir-te as notícias, que o teu Gênio
Trouxe dos campos, onde mora o dia.

13

Hoje estava gemendo, quando o vejo
Arrebatado vir abrindo os ares
Em busca do sepulcro lutuoso
Com rosto limpo de fatais pesares.

14

Logo que me avistou, com voz alegre
Gritou.. Ah meu Mirtylo amargurado!
Alvíssaras... o Príncipe, que choras
Respira nos Elíseos coroado.

15

Eu já sentia o coração tão cheio
De mágoas, ânsias, aflições, e dores,
Que o prazer forcejou por entrar nele
Impedido c’os férvidos clamores.

16

Mas contudo, a certeza indubitável
Do seu eterno estado venturoso,
Algum tanto prendeu o meu tormento,
Consegui meu pesar menos iroso.

17

Depois de descansar alguns instantes,
(Continuou o Gênio brandamente)
Venho pasmado ao ver por bagatelas
Os grandes bens, que perde a humana gente.

18

Logo que por teus rogos obrigado
Outra vez revolvi os ares soltos
Em procura do Príncipe, que os Lusos
Choram da Morte no vapor envoltos.

19

Encontrei por acaso um Gênio amigo,
Que chorando também triste voava:
Perguntei-lhe tremendo o seu desgosto,
Inda mais c’o a pergunta soluçava.

20

Instei com ele, encaminhando sempre
Meu vôo a par do seu, e com ternura
Me disse: Eu vou aos campos deleitosos,
Onde o doce prazer constante dura.

21

Vou ver se encontro uma alma esclarecida
Ao lado de José Príncipe Luso:
De ouvir ais, e gemidos, brados, gritos
Venho soltando o vôo quase confuso.

22

Do Príncipe, que morto chora Lízia
A carinhosa Irmã já não respira:
Abraçado com ela o meigo Esposo
Sobre a face mortal em vão suspira.

23

Em vão os Van Swietens são chamados
Com Armania não foram mais ditosos,
Que o foram com José.. Príncipe digno
De eternos monumentos gloriosos.

24

Acrescentei então, também ligeiro
Impaciente já venho buscando
O sítio, onde os ditosos são aceitos
O meu Príncipe amável procurando.

25

Para consolação da amargurada
Rainha Lusitana, vou em busca
Dos campos do prazer contar ao filho
Quanto o nosso horizonte a dor ofusca,

26

Em torno de Maria soberana
Três lustros há, que a Morte irada voa:
Matou-lhe o grande Pai... Pai dos seus povos
O Primeiro José, que ergueu Lisboa.

27

Roubou-lhe a ilustre Mãe, e de entre os braços
O Príncipe João sendo menino:
E duas filhas mais, a quem da infância
A inocência não deu melhor destino.

28

Sufocou-lhe do Esposo o vivo alento;
E depois mais que nunca embravecida,
A fim de enobrecer mais seus furores,
Ao Príncipe José tirou a vida.

29

Vida a mais preciosa sobre todas,
Quantas cortar o seu furor podia;
Vida, que da alma Ceres c’o as espigas
Já as frentes dos Lusos guarnecia.

30

Vida, que hoje aos Ulíseos, nobres Povos,
Mais lágrimas amargas tem custado,
Do que por Nicarágua virtuoso
A América infeliz tem derramado.

31

E inda não saciada de ruínas
Com o gume, em que tépido fumava
Do Príncipe gentil o puro sangue,
Matou a Armania, quando o Irmão chorava.

32

Arrancando porém a ilustre palma
Às mãos da alta Rainha dos Romanos,
Excedendo-a invencível na constância
De suportar mortais, tétricos danos.

33

Qual sólido penedo incontrastável,
Contra quem furioso em vão se lança
O embravecido mar; assim Maria
Do Céu nas decisões sábias descança.

34

Vendo tinha acabado o meu discurso
De novo o Gênio a suspirar entrava;
E puxando do seu cansado peito
Novos gemidos, com que o ar toldava.

35

Exclamou.. Inda mal, que semelhantes
São tanto as nossas comissões violentas,
Tu por Armania, e eu pelo Irmão caro
Voamos entre nuvens macilentas.

36

Isto dito observei que, muito ao alto
Remontava seu vôo meu triste Guia;
A causa examinei, e vi-me erguido
Sobre o vale, em que o Cérbero latia.

37

Tremendo a voz ergui.. vamos errados..
Esse vale, a que estamos sobranceiros,
É o vale horroroso, onde em vão gemem
Tântalo com seus filhos carniceiros.

38

Por isso.. me tornou, ergui ao cimo
O meu rápido vôo: aos bens celestes
Não se pode chegar, sem se calcarem
Feros Atreos, pérfidos Thyestes.

39

Julgo disposição alta dos Deuses
Dos justos começar logo a ventura,
Por saberem o mal, de que os livrara
A sujeição às Leis, que Astreia apura.

40

Não tardou muito tempo que não visse
O vale para trás ir-se ficando;
E em lugar dos escuros nevoeiros,
Doiradas nuvens clara luz soltando.

41

Livres já de perigo pouco a pouco
Sobre a terra feliz fomos descendo:
E alguns Favônios de pintadas plumas
Vieram para nós o ar fendendo.

42

Uma corda de montes, que formava
Em círculo dobrada uma área imensa,
Continha dentro em si o Elíseo campo,
Onde a afeição ao bem se recompensa.

43

O monte circular n’um sítio roto
Dava risonha entrada ao reino eterno;
Onde as flores gentis da Primavera
Já mais desfolha desabrido Inverno.

44

Por mais que em torno os olhos espalhava,
Descubrir não podia senão flores,
Com que a felpuda relva matizada
Avivava em seu verde outras mil cores.

45

Os mesmos iguais montes, que abraçados
Servindo estavam de muralha erguida,
Guarneciam Sicômoros, e Murtas,
A roxa Olaia, a Alfena encanecida.

46

Dois corpulentos Loiros enlaçando
No cimo os seus viçosos, verdes ramos,
Em sinal de triunfo enobreciam
A majestosa entrada, a que chegamos.

47

Por ambos irmos totalmente alheios
Do humilde, do terreno traje humano:
Entrámos cheios de prazer inteiro
Pelo reino feliz do desengano.

48

Dispensa-me, Myrtilo, que te conte
O que observei no instante em que fui dentro
Não tenho termos, expressões não acho,
Com que te eu pinte da Ventura o centro.

49

Livres da monótona simetria,
Vi por entre os corados Medronheiros,
Cheias de fruta, e flor diversas ramas,
Salpicavam Giesta os Azereiros.

50

A terra, que ao pisar-se era suave,
Forravam ervas mil todas cheirosas,
O Tomilho, Serpão, a Mangerona,
Entre as quais rebentavam frescas Rosas.

51

Os Junquilhos, as alvas Campainhas,
Açucenas, Rainúnculos, e os Lírios,
As ervas matizavam: sobre os troncos
Os Jasmins se enlaçavam c’os Martírios.

52

O cheiroso, o esquivo Alegra-Campo,
E a branda Madre-Silva de mãos dadas
Com os mais altos ramos se misturam
Das Pereiras c’os frutos carregadas.

53

Por entre as folhas, em que mais luzia
O verniz, quanto estavam mais viçosas,
Soltavam sem cansar vozes suaves,
Diversas, lindas aves sonorosas.

54

Progne, sem se lembrar de antigos males,
Respondia à mimosa Filomela;
Cujos cantos ali são tão alegres,
Que fazem qualquer flor nascer mais bela.

55

Vi lagos mais formosos, que os de Híria,
Cujas serenas águas cristalinas
Eram mais claras do que as do Choaspe,
Correndo sobre margens de Boninas.

56

As sossegadas águas revolvia,
Enroscando o seu colo majestoso
O branco Cisne, sem já ter lembrança
Da imprudência de Fílio rigoroso.

57

Dos lagos ao redor havia assentos,
Não desses, que a arte faz c’o ferro duro;
Eram soltos pedaços de Oiro em bruto,
Que mostrava em luzir quanto era puro.

58

A riqueza das penhas aumentavam
Os vermelhos Rubis, os Diamantes,
Que de mistura c’o metal doirado
Lascados cintilavam faiscantes.

59

Vi outras coisas mais, cuja beleza
Explicar-se não pode sem engano:
Este o sítio por onde livremente
Passeia enfim sem susto o erguido humano.

60

Este o Reino da cândida igualdade,
Onde ao homem fiel faz venturoso
A certeza em que vive, de que nunca
Pode já contra o bem ser criminoso.

61

Só às paixões atribuir-se deve
Dos homens neste mundo o prejuízo;
Mas como lá paixões não têm entrada,
Dos justos a morada é Paraíso.

62

Achei entre umas altas Laranjeiras
O grande Dom Dinis com ledo rosto,
C’o amável Sydnei de braços dados,
Tratando objeto, que lhes dava gosto.

63

Vi n’outro lado o nobre Cazimiro
À sombra d’uns mui flóridos arbustos
Conversando c’o Aristo, a quem severo
Inda chamam por cá os varões justos.

64

Vi Trajano embebido com o nosso
Ilustre Gil-hianes virtuoso,
Que atendeu de Pacheco mais aos feitos,
Que o Rei, a quem servira valeroso.

65

Também nosso imortal João o Segundo
Com o incorrupto Tello consultando,
De espaço a espaço erguia as mãos ao alto,
Como algum caso triste lamentando.

66

Vi Buzurge Mehir, Fernando, Alfredo,
Luiz Doze, e com seu Nuno João Primeiro;
De todas classes vi os homens justos,
Que o coração guardaram sempre inteiro.

67

Vi com satisfação, cheios de glória,
Inteiramente enfim recompensados,
Todos quantos servindo à Humanidade
Foram por fazer bem assinalados.

68

E como lá da glória a maior parte
Consiste do bem feito na lembrança;
Aquele, que mais útil foi no mundo,
Nos Elíseos também mais glória alcança.

69

Volvia impaciente a um, e outro lado
Os olhos para achar quem procurava,
Quando ao longe aplicando os meus sentidos
Do Príncipe julguei a voz soava.

70

Tanto corri, que enfim achei a dita
De o ver entre alegrias encostado
Ao tronco d’uma verde, alta Palmeira,
De outros Príncipes justos rodeado.

71

Explicar-te porém, ó meu Myrtilo,
Não posso a majestade graciosa,
Que espalhava entre quantos o cercavam
Do Príncipe a presença generosa.

72

Um decisivo ar tinha entre todos;
Todos co’a atenção, com que o ouviam,
Mostravam que das luzes, e talentos
A superioridade conheciam.

73

Inda nos poucos anos, que o formaram
De Jove arremedava a autoridade,
Quando dos outros Deuses no conselho
Expõe em grave tom sua vontade.

74

Por acaso João Príncipe egrégio,
Filho do Rei Católico Fernando,
A cabeça voltou, e logo a vista
Por algum tempo sobre mim firmando:

75

Soltou em alta voz.. aquele Gênio
Julgo, que de entre nós algum procura..
Logo o Príncipe meu, seu rosto volta,
E disse ao descubrir-me com ternura:

76

Chega-te para nós, Gênio agradável,
De minha terna Lízia mensageiro;
A seu Príncipe chega destemido,
Abraça o Neto de José Primeiro.

77

Graças vos dou, ó Deuses, por quererdes
Que eu recebesse de meus Lusos novas:
Quanto Gênio feliz com tua vista
Minha grata afeição hoje renovas.

78

Em recompensa da paixão constante,
Que obtiveram de mim meus Lusitanos,
Choraram mais João, que em tua morte
Pelos campos de Hespéria os teus Hispanos.

79

Cada lágrima solta, que largaram,
Tinha sido por mim bem merecida:
Não houve inda Nação, que venturosa
Por seu Príncipe fosse mais querida.

80

O meu descanso, e paz, a vida mesma
Sempre menos amei, que a gente minha:
Só de ver os meus povos ilustrados,
Dentro em meu coração desejos tinha.

81

Sim, meus Lusos fiéis, vosso futuro,
E agradecido Rei já conhecia,
Da regência de gentes tão ilustres,
Quanto era preciosa a alta valia.

82

E tanto o conheci, que não me acusa
Aqui mesmo a razão ter desprezado,
Para vir a ser útil aos meus povos,
Por custoso que fosse algum cuidado,

83

Por eles folheava noite, e dia
O Código da sábia Natureza:
Nele aprendi primeiro a conhecer-me,
Para nos homens ler com mais certeza.

84

D’Euclides, com os sólidos preceitos,
Costumei-me ao amor da sã verdade,
Tanto, que dos Cretenses dera o cetro,
Só por lhes não sofrer a falsidade.

85

De Plínio, e de Lineo com as fadigas
Da Matéria aprendi a força ativa,
A fim de promover entre os meus povos
A cultura em ação constante, e viva.

86

De Newton, e Lebnitz as descobertas
Nas luzidias asas me elevaram
Dos astros observar os movimentos,
E as Leis, que sempre firmes observaram.

87

D’Heródoto, Tucídides, Plutarco,
De Lívio, e Jaques Thou a História lendo,
Criei apego aos bens da alta Virtude,
E insaciável ódio ao vício horrendo.

88

Só esta imparcial, severa Mestra
Convencer-me alcançou da seriedade
Do cargo, a que o Destino me guiava
Desde a minha primeira, tenra idade.

89

Ela me persuadiu, de que os Estados
São inteiras famílias numerosas,
De que os Reis são os Chefes obrigados
A fazê-las durar sempre ditosas.

90

Que assim como um bom pai somente cuida
Em buscar de seus filhos a fortuna;
Em libertá-los de cruéis pesares;
Em tecer laços firmes, com que os una:

91

Assim um justo Rei deve somente
Na educação cuidar dos seus vassalos,
Propondo-se com penas reprimi-los,
E com úteis afagos animá-los.

92

A História me ensinou, que dos Procustos
O livre proceder às gentes mostra
A dívida a que fica responsável,
Quem os crimes punindo, o mal não prostra.

93

Aprendi, que os Augustos imperantes
Vivem a toda a hora tão sujeitos
A tirarem dos povos, que governam
Do seu público em bem novos proveitos;

94

Que qualquer dos vassalos, que o seu tempo
Consome da inação no mole seio,
E cad’um dos mendigos, que obrigado
Pede o pão, que lucrou suor alheio.

95

São outros tantos documentos vivos,
Que depõe contra o Pai do estado todo,
O qual deve partir seus bens de sorte,
Que de lucrá-los ofereça o modo.

96

Um Reino secundário, diminuto
Nunca aos Céus levantar pode a cabeça;
Quando de dar ação geral aos povos,
Cravando o ferro em si cego se esqueça.

97

As antigas Repúblicas duraram,
Porque a todos, o Todo protegia:
E porque ao Todo todos reunidos
Serviam ao depois com alegria.

98

Os ociosos sempre dos Estados
Fermentando vão mudos a desgraça,
Pouco a pouco a substância lhes consomem,
Qual ferrugem voraz, ávida traça.

99

A vil ociosidade é um dos monstros,
Que deve pelos Reis ser debelado:
As fabris Artes belas dêm-lhe auxílio,
E para as conservar o pingue arado,

100

De séculos em séculos correndo
O vão imenso, que descreve a História,
Separando as ações, que anima o erro,
Daquelas, que o seu vôo erguem à glória,

101

Conclui d’uma vez, que a Independência,
E a Força são as que erguem os Estados:
Que d’uma, fértil mãe, foi sempre a Indústria,
Nutrem a outra Martes reforçados.

102

De Mênfis, Babilônia, Esparta, Atenas
Vi a perturbação lançar as artes;
E falando em geral, vi a Ignorância
Ser dos homens tirana em todas partes.

103

De Luiz Sétimo, e Nono as vãs empresas
Sempre desaprovei como danosas:
Dos Marios, e Alaricos conhecendo
As palmas por sanguíneas, vergonhosas.

104

A antiga, fabulosa idade d’Oiro,
Se era possível, procurei atento;
E vendo que das mãos dos Reis pendia,
Já dar-lhe me propunha cumprimento.

105

Disposto estava, meus queridos Lusos,
A mesma vida a prodigar contente,
Por cumprir o desejo, em que eu ardia
De ver-me Rei d’uma ditosa gente.

106

Vendo, que de Anaxágoras à ciência
Péricles seu saber todo devera:
E do sábio Platão, luzes tão claras
O aplicado Aristóteles houvera:

107

Vendo em Plutarco os sazonados frutos,
Que produziram as lições de Aumônio;
Meus Mestres respeitei, quanto Graciano
Amou, e respeitou seu Mestre Ausônio.

108

Tanto era de fazer feliz meu povo
Sincero, e verdadeiro o meu desejo,
Que ver nunca podia um desgraçado,
Sem mostrar no meu rosto um triste pejo.

109

Porém os Deuses, cuja sã vontade,
Sem obstáculo algum dispõe de tudo,
Já decretado tinha, que da Morte
Cedesse antes de tempo ao ferro agudo.

110

Mas, ó ciência Divina, que devemos
Todos reconhecer obedientes:
Para encher meu lugar, os Deuses retos
O meu Irmão criaram providentes.

111

Deram-lhe um coração tão bem disposto,
E ao que já me animava tão conforme
Que certo das funestas conseqüências,
Também aborrecia o crime enorme.

112

Ao meu lado constante a toda a hora
Também comigo o tempo aproveitava;
Com um puro desejo de ajudar-me,
As artes de ser útil decorava.

113

Em prêmio de estudar a Natureza
Tão bem chegou a ver, que ela somente
Desfruta o privilégio de entre os homens
Produzir generosa, nobre gente.

114

Sabia, que os humanos respeitáveis
São aqueles, que a sábia Natureza
Enriquece com lúcidos talentos,
E não os que a paixão às cegas preza.

115

Conheceu, que dos homens o mais nobre
É aquele, que aos outros é mais útil;
Já sabia antepor merecimentos,
Da Descendência vã à árvore inútil.

116

Por isso de entre os homens desprezava
Só os que via indignos de alta glória,
Esses, que a Natureza produzira,
Como qualquer metal produz a escória.

117

Quantas vezes as suas qualidades
Erguer aos limpos Céus me não fizeram
As mãos agradecendo-lhes rendido,
Porque benignos tanto o enriqueceram.

118

Ele era meu fiel, meu terno Acates,
Com quem eu repartia os sentimentos:
Sempre minhas chamei suas idéias,
E sempre seus chamou os meus intentos.

119

Nem os filhos de Atreo, nem Tito, e Lúcio
Da fraternal, recíproca amizade
Tanto apertar puderam nunca o laço,
Que de duas fizesse uma vontade.

120

E em prova de que nós o conseguimos,
Nutríamos desejos tão acordes,
Que animar parecia uma só alma
Nossos dois corações sempre concordes.

121

Em prêmio do cuidado com que a nossa
Augusta Mãe, e Régia Soberana,
D’ambos a educação auxiliando,
Vigilante imitou Acia Romana.

122

De Cléobis, e Bíton c’o a ternura
No desejo vivíamos unidos
De ajudá-la a suster do cetro o peso,
Vivendo ao seu querer sempre rendidos.

123

Obedecer da Mãe à sã vontade:
Os povos desejar aproveitados,
Eram somente os nossos interesses,
Eram os nossos sempre iguais cuidados.

124

Prendeu um pouco a voz.. mas tornou logo
Vai-te, Gênio leal, vai sem tardança
Contar como observaste os bens eternos,
Que o homem bem-feitor no Elíseo alcança.

125

À minha terna Mãe corre primeiro;
E beijando-lhe a mão reconhecido,
Tu por mim lhe agradece a alta ventura,
A que por seu amor me vejo erguido.

126

Dos seus conselhos sãos, dos seus exemplos
Alegre desfrutar vim o proveito;
Sou nos campos Elíseos venturoso
Do seu zelo, e carinho este o efeito.

127

Busca a minha querida, doce Esposa,
E jura-lhe, que em prêmio da amargura,
Que o terno coração lhe vai gastando,
Do seu fiel Amor na ausência dura:

128

A confiante afeição, viva, suave,
Que ela mesma nutrir soube em meu seio,
Ao ameno, feliz, eterno campo
Dentro em meu coração intacta veio.

129

Que se ela de Cleonide, e Pantheia
Por mim geme no mundo co’a firmeza,
Eu excedo a Nicócles... que não choro,
Porque neste lugar não há tristeza.

130

A meu prudente Irmão, que aos Deuses Santos
Quanto podia ser, tem sido grata
A sua exemplar dor, mais o carinho,
Com que a minha fiel Esposa trata.

131

Que em prova de que as suas qualidades
Dignas do excelso trono eu conhecia,
Condescendente mais, que Patezítho,
A c’roa lhe larguei com alegria.

132

Depois busca o sepulcro, onde o meu corpo
Entre lavrados mármores descança;
E dize à aflita Lízia, que confiante
Inútil pranto de seus olhos lança:

133

Que do muito, que a amei, lhe peço em paga
Suas queixas suspenda, mais não chore;
Que afague a meu Irmão, pois lho merece,
Que sirva a minha Mãe, e os Céus adore.

134

Os braços me estendeu por despedida,
Beijei-lhe a mão benigna, e saudoso
Tornei por onde tinha antes passado
De deixar um tal sítio pesaroso.

135

Co’a vista examinava os bens celestes,
De que já sem querer m’ia afastando;
Quando sobre a felpuda, amena relva
Vi quatro Varões sérios passeando.

136

Fiz neles reflexão, e facilmente
O Pai reconheci dos Lusitanos
José Primeiro, com o Quarto Henrique,
Carvalho, e mais Sully com seus Sob’ranos.

137

Dos nossos mais alguns Príncipes dignos
Juntos não muito longe conversavam,
E contentes também, vendo-se justos,
As eternas delícias desfrutavam.

138

Não quis interrompê-los, vagaroso
Da lúcida morada vim saindo:
De deixar tanto bem no peito sempre
Um triste desprazer em vão sentindo.

139

Enfim... aqui me tens, brando Myrtilo,
Completei felizmente o teu desejo;
Chorar me deixa agora em liberdade
Sobre o corpo, já que a alma aqui não vejo.

140

Quem tiver coração sincero, e puro,
Pode supor o meu qual ficaria
No fim de narração tão extremosa,
Que as mesmas penhas suspirar faria.

141

Esta prova de novo indubitável,
Do carinhoso amor, que nos conserva:
Da estranha vigilância, do cuidado,
Com que do mesmo Elíseo nos observa.

142

No meu seio crescer fez tanto as mágoas,
De que minha saudade é mãe fecunda,
Que de novo os gemidos me sufocam,
De novo o pranto minha face inunda.

143

O meu pesar levou-me a um tal extremo,
Que explicar já não posso quanto sinto:
Faltam-me as expressões... o alento falta,
Só com ais minha dor.. ai.. triste pinto.

144

Príncipe virtuoso, amável, sábio,
Do teu Myrtilo aceita os ais sentidos:
E os enlutados versos, que chorosos
Soltou meu coração entre gemidos.

145

De Amarilis gentil, quando os amores
Cantei, fiz jura aos Céus, jurei à gente
Ao som de ebúrnea Lira, em cordas d’oiro
Algum dia cantar de ti somente.

146

Porém o avesso Fado inexorável,
O destino fatal, pérfido, esquivo,
Arrancando-te a vida preciosa,
Tirou-me o gosto de cantar-te vivo.

147

Apenas expiraste em Lira triste
De Ébano, do que a Noite mais escuro:
Ao som de dissonantes, férreas cordas,
Que o meu pranto ao soar largavam puro.

148

Convidando a gemer os Céus luzentes
Os troncos, penhas, mar, o surdo vento,
Com versos, que o pesar pode inspirar-me,
Chorando-te cumpri meu juramento.

149

Engraçadas, mimosas, Ninfas ternas,
Cujos versos iguais o Tejo escuta,
Rodeado de Zéfiros suaves
Dentro da sua fresca, úmida gruta.

150

E vós, sonoros Vates Lusitanos,
Que dos Gregos herdastes a doçura:
Por cujos versos o Danúbio, o Tibre
Suas frentes guarnecem de verdura.

151

Com loiros coroai os Pátrios Lares,
Livres de sustos, afinai as Liras;
E do travesso Amor ora deixando
Os duvidosos bens, as certas iras.

152

Do Príncipe José cantai vós quanto
Não puderam colher meus versos rudes:
Veja o mundo, que só foi dado às Musas
O dom de eternizar altas virtudes.

153

Prudente, e sábio, magoado Henrique,
Que à minha grata Lira dás alento,
Venceu a minha dor, já mais não posso,
Calado imitarei teu sentimento.

154

Entristecida Lízia!.. ó invictos povos!
Cai-me a lira das mãos, entre ânsias fico...
Aceitai estes versos lutuosos,
Que sobre a fria laje vos dedico.



Poesias já impressas de Luiz Rafael Soyé, que se vendem nas lojas de Francisco Tavares Nogueira, debaixo da arcada; na de Bertrand ao pé da Igreja dos Mártires; e na de Reycend ao Calhariz

Sonho Erótico Poema Pastoril. 8.ª rima. 6 Cantos, I. vol. 8.º com estampas finas, e vinhetas, preço 600. encadernado.

Cartas Pastoris de Myrtilo escritas à sua Lira na ausência da Pastora Anarda, quadras octossílabas. I.º tom. em 8.º preço 480.

Dythirambos, Poesias Báquicas, I. vol. em 8.º 480.

Noites Jozephinas à infausta morte do Sereníssimo Senhor D. José Príncipe do Brasil; 12. Noites, quartetos endecassílabos, I. volume com estampas finas. 8.º preço 1200. em papel.

Poesias do mesmo Autor prontas para o prelo.

O 2.º Tomo das Cartas Pastoris.

Os Idílios, Canções, e Elegias, I. vol. em 8.º

O primeiro Tomo do seu Teatro, que se compõe d’uma Comédia Original, O Pai honrado, em que o público vendo nela o vício corrigido, e coroada a virtude, se convencerá mais evidentemente do sincero desejo que seu Autor tem, e terá sempre de buscar o útil por todos os modos que se lhe possibilitam.

Tradução em verso endecassílabo solto da Phedra, chefe de obra das tragédias do delicado Racine.

Dous Dramas.

Tradução literal em verso dos Salmos de David. I. vol. 8.º

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Foi taxado este livro em papel a mil e duzentos reis. Mesa 23. de Julho de 1790.

Com três Rubricas.


 

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©2008 Luís Rafael Soyé

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Julho 2008