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A Vitória dos Intelectuais

Janer Cristaldo

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A Vitória dos Intelectuais
Janer Cristaldo

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eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Documento do Autor
janercr@terra.com.br

©2003 — Janer Cristaldo


 

 

Índice

Sobre o autor
Serão os gaúchos neoluditas?
Euroforia e subdesenvolvimento
Morre um soldado de Franco
PT colhe plantio
O grande ausente
Terror com site e hino
O papa e a Rosa
Sufiyatu, Fadime, Shahida
Santa e bela Catarina: Anita, Guga e madre Paulina
A profissão gay
Sobre Roseana, Zé Dirceu e Paiakan
Véu faz vítimas
“Eu sou o que sou”
Terror explode ventres
Cristo em meio ao tiroteio
Nós também temos pedófilos
Chirac vira anjo
Le Pen reelege Chirac
Animais midiáticos
Idade Média, volver!
Lula mente
PT muda
As Farc e o silêncio obsequioso
Jornalista bom é jornalista morto
Poliglota na ilha
Mudar é preciso
O bolche e os astros
Aconteceu em Túnis
Corrupção via literatura
O livro estatal
Paulo entre pares
Seminaristas no bordel
O neo-aparatchik
Os novos camelôs
Sigheh, o caminho
Aos vitoriosos de 64
11/9 e 9/11
Nove de Novembro
Bom dia, terceiro-mundismo!
A vitória dos intelectuais
Imprensa engana eleitor
Quem tem medo de Saddam Hussein?
De minha vergonha
Roupa nova para o antigo
Habemus sanctum
Da inutilidade das grades
Jornalismo sem rabo preso
Coxas abalam Islã
Morte ao prazer
Amizade segundo filósofos
O melhor da vida
Bojaxhiu, pepino para bolandistas


 

A Vitória
dos
Intelectuais

[imagem]

Janer Cristaldo

janercr@terra.com.br


 

Sobre o autor

 

Janer Cristaldo nasceu em 1947, em Santana do Livramento (RS). Formou-se em Direito e Filosofia e doutorou-se em Letras Francesas e Comparadas pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III). Morou na Suécia, França e Espanha. Lecionou Literatura Comparada e Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e trabalhou como redator de Internacional na Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo. Atualmente, reside em São Paulo e assina crônica semanal no jornal eletrônico Baguete (www.baguete.com.br). A Vitória dos Intelectuais é uma compilação das crônicas publicadas neste jornal em 2002.

E-mail: janercr@terra.com.br

Outras obras publicadas pela ebooksbrasil:

Ponche Verde, romance
Laputa, romance
Mensageiros das Fúrias, ensaio
Engenheiros de Almas, ensaio
Qorpo Santo de Corpo Inteiro, ensaio
Ianoblefe, ensaio
A Indústria Textil, ensaios
Crônicas da Guerra Fria, crônicas
EleCrônicas, crônicas
Flechas Contra o Tempo, crônicas
Ressentidos do Mundo Todo, Uni-vos, crônicas


 

Serão os Gaúchos Neoluditas?

4/1/2002

 

Volto a uma história antiga. Na última Jornada de Literatura, em Passo Fundo, uma mesa reuniu jornalistas e escritores gaúchos para discutir o livro eletrônico. Quase ninguém sabia o que estava sendo discutido. Nem os debatedores, nem a quase totalidade da platéia, de 4.000 pessoas aproximadamente, havia sequer visto uma engenhoca dessas. É o que me dizem os jornais. Esta constatação foi feita neste ano da graça de 2001, no qual até crianças já começam a editar seus livros eletrônicos em computador.

Que os escritores e leitores jamais tenham visto a engenhoca de perto, até se entende. Os aparelhos são relativamente caros e não estão à venda na lojinha da esquina. O que não se entende é que a desconheçam, já que não passa semana sem que jornais ou revistas os noticiem. Por outro lado, se o aparelho leitor ainda não deu totalmente as caras no Brasil, o e-book não é o mesmo que aparelho leitor de e-books. O livro eletrônico é uma realidade amplamente difundida. Alguns podem ser lidos diretamente na telinha, sem que se precise baixar qualquer programa (formatos doc, ebookpro). Outros exigem um soft leitor (eRocket, Acrobat, MS-Reader), que pode ser baixado gratuitamente das bibliotecas virtuais. E estas são muitas.

Surgiram quase simultaneamente com a Internet. Aí estão o projeto Gutenberg, montado a partir de 1971, que já reúne dez mil textos gratuitos em inglês, e pretende chegar a cem mil. A ABU — La Bibliothèque Universelle, que foi criada em 1993, hoje já reúne 283 textos em francês, de cem autores, de Epiteto a Marx e Engels, passando por Flaubert e Voltaire. Mais recentemente, você tem na França a Phoenix-Library, onde pode inclusive encontrar publicações deste que vos escreve.

As editoras virtuais estão pipocando na rede, e parece que a notícia ainda não chegou aos escritores gaúchos. No Brasil, desde 1999, a ebooksbrasil publicou cerca de mil obras, e a nenhum escritor brasileiro é permissível ignorar este trabalho de monge copista de Teotônio Simões. A menos que, é claro, os escritores prefiram submeter-se à antiga tirania do papel.

Nada contra. Mas depois que você começa a utilizar os recursos de busca dos e-books, ao ler o livro-papel você fica com coceiras no dedo, tentando encontrar o botãozinho de search. Tente procurar uma palavra numa bíblia em papel e em outra eletrônica. É possível que você vicie com a segunda. No caso da engenhoca, você pode ainda carregar em seu bolso duas boas dezenas de livros. Ou mais, conforme o aparelho. Isso sem falar no preço. Dispensando papel e transporte, o e-book — mesmo que você pague direitos autorais — terá de custar significativamente menos que o livro-papel.

O escasso êxito comercial do e-book, até o momento, não significa que a produção letrada ficará de fora da revolução digital. Recentemente, e com atraso, a Universidade de São Paulo passou a publicar teses defendidas na instituição em sua home page. O que talvez seja desconfortável para muito doutor, que preferiria ver sua “obra” enterrada per omnia secula secolorum em um cemitério de teses. Nos Estados Unidos, endereços que fornecem gratuitamente o texto integral de obras sobre as quais não se precisa pagar direitos autorais também são bastante acessados. De agosto de 2000 para cá, mais de três milhões de downloads do gênero foram feitos do site etext.lib.virginia.edu. Serviços semelhantes são mantidos por endereços brasileiros, como a Biblioteca Nacional e Senado Federal.

A menos que os escritores gaúchos queiram continuar posando como mártires — o mundo não me entende, eu nasci para ser inédito — hoje não mais é permissível ignorar a edição eletrônica. Seja de jornais, seja de livros. Esta forma de edição elimina uma série de insumos e atravessadores. Não é mais necessário o papel, que custa caro. Muito menos custos de gráfica, que tampouco são baratos. No caso do livro, elimina-se não só o editor e o gráfico, como também o livreiro e o distribuidor. Você pode ter resistências a ler na telinha ou numa maquineta. Mas a redução de preços desta nova forma de leitura — que aliás tende a ser gratuita — certamente irá tentá-lo a tirar umas férias do universo do papel.

Diminuídos os custos de produção, elimina-se este poderoso fator censório, a busca desesperada do grande público. Em um grande jornal, ou no rádio ou televisão, você não vai encontrar idéias que se oponham com eficácia ao espírito da época. Esses órgãos dependem da aceitação do assinante, o leitor médio, e do anunciante. Dependem de faturamento. Não podem renunciar a esta condição de suas próprias existências, apenas para agradar os escassos leitores que pensam um pouco à frente. Não por acaso, o pensamento independente tende, hoje, a se refugiar em publicações eletrônicas. Se um Gutenberg — e mais tarde, Aldus Manutius — reptaram o poder da época tornando o conhecimento mais acessível a um número maior de pessoas, a revolução atual das publicações eletrônicas liberta de vez o pensamento da censura econômica das editoras de papel.

Meu fascínio pela informática não decorre das facilidades de comunicações da Web ou correio eletrônico, muito menos da velocidade de processamento de dados. Minha adesão incondicional aos novos tempos ocorreu com o Word. Comecei a fazer jornalismo em Dom Pedrito, nos dias do chumbo. Mais precisamente, nos dias anteriores à linotipia. As letras eram gravadas em pedaços de chumbo, que serviam para imprimir o papel. Cada tipo e cada corpo exigia uma unidade de chumbo. A composição era manual. O redator, que geralmente era também repórter, editor e dono jornal, pegava as letras uma a uma e ia compondo o texto. As maiúsculas ficavam na caixa de cima, as minúsculas na de baixo. Daí a expressão até hoje usado, mesmo por jornalistas da era eletrônica. Jornalista que se preze jamais falará em maiúsculas ou minúsculas, mas em caixa alta e caixa baixa. Apesar de a profissão ter sido regulamentada, ainda restam na memória coletiva arcanos do velho ofício.

Meu fascínio ocorreu com o Word, dizia. Quando me deparei com aquele processador, minha primeira reação foi: “Nossa! Tenho toneladas de chumbo nesta maquineta”. Acabou a censura, senhores. Só escritores masoquistas, com vocação para eternos incompreendidos, podem se permitir ignorar o e-book.


 

Euroforia e Subdesenvolvimento

11/1/2002

Salud y pesetas,
— diziam os espanhóis —
fuerza en la bragueta,
un par de buenas tetas,
y lo demás son puñetas!

 

Diziam. Do dia 1° para cá, a peseta passou à história da literatura. Ou da numismática. Salud y euros pode ser melhor, mas não rima. Sem falar que euro não tem plural. Os italianos também estão preocupados com o problema. Com o fim da lira, os vates perdem rimas fáceis como delira, inspira, sospira. Toda palavra que designa uma moeda entra forçosamente na literatura e, do início de janeiro para cá, os livros de doze países passam a ter, do dia para a noite, um ar de mais antigos. Para sorte dos poetas, a poesia contemporânea dispensa rimas. Pois não será fácil encontrar rimas para euro, em qualquer das línguas dos doze países onde a nova moeda vai cursar.

Toda palavra que designa uma moeda entra forçosamente na literatura, dizia. Em termos, é bom precisar. Neste nosso sofrido continente, só entra quando tem tempo de entrar. Há moedas que não sobrevivem a um ano, não têm sequer tempo de grudar na memória coletiva. Qual brasileiro de 50 anos consegue lembrar todas as moedas que já viu na vida? Só se for especialista no ramo. Recapitulando: de 67 para cá tivemos o cruzeiro, o cruzeiro novo, o cruzeiro de novo (não confundir com o anterior cruzeiro novo), o cruzado, o cruzado novo (durou 14 meses), e de novo o cruzeiro (que substituiu o cruzado novo), o cruzeiro real (durou 10 meses) e hoje o real, que Deus o proteja. Decididamente, não há tempo para rimas.

Enquanto na América Latina as moedas morrem de morte matada, em meio a convulsões políticas e sociais, na Europa as moedas morreram morte serena. Foi uma eutanásia conscientemente desejada. Os britânicos, por exemplo, que não quiseram entrar neste afável pacto, estão se arrancando os cabelos e se perguntando quando abandonarão a libra para aderir ao euro.

Na Finlândia, único país nórdico a aderir à nova moeda, os finlandeses fizeram fila junto aos bancos, na meia-noite deste réveillon, sob 15 graus abaixo de zero, para trocar seus markkaa por euro. Na Alemanha, onde a transição foi imediata, sem prazo para circulação simultânea da moeda antiga e da nova, os ex-alemães orientais tiveram uma experiência de Terceiro Mundo. Em 91, haviam trocado o deutschmarx pelo deutschmark, e agora, dez anos depois, trocam este pelo euro.

Os escudos portugueses vão repousar junto aos ceitis, as pesetas junto aos maravedis, sem que ninguém lamente esta passagem para o passado. Até o Vaticano vai tirar sua casquinha com a nova moeda. O euro substitui a lira como moeda oficial daquele simulacro de Estado e o papa não perderá a ocasião de eternizar-se em vida, apondo sua efígie na nova moeda. Na Via della Conciliazione, que dá acesso ao Vaticano, no 1° de janeiro já se viam sinais dos novos tempos. Quanto vale um anjo em euro? — perguntava-se uma vendedora de quinquilharias sagradas, puxando do bolso seu euroconvertitore.

Segundo um chargista italiano, os magos (da economia?) trouxeram neste ano euro, incenso e mirra. No encontro de Maastricht, em 91, o euro soava como distante quimera. Hoje, apesar dos eurocéticos, há uma euroforia em todo o continente. Bancos e correios estiveram constantemente lotados nos últimos dias do ano passado, com filas de cidadãos ansiosos por pôr as mãos em um pequeno kit da nova divisa. Nem mesmo os gregos, cuja dracma tinha nada menos que 2.600 anos, choraram o enterro da velha moeda. Hoje, até mesmo os textos de Platão e Aristóteles se tornaram ligeiramente mais envelhecidos.

Jornalistas mais excitados acham que o século XXI começou em 11 de setembro passado. Ora, terrorismo é rotina na história e perpassa todos os tempos. Doze países renunciarem espontaneamente à própria moeda e adotarem uma outra, comum a todos, isto não acontece em qualquer século. Aliás, jamais aconteceu. Verdade que os fatos sangrentos marcam mais que os sem sangue, pelo menos para aqueles para quem a violência é o fórceps da história. Mas o fantasma que rondava a Europa, como anunciava aquele alemão irado, hoje tenta encontrar abrigo no Terceiro Mundo.

Estadistas já começam a reunir-se para a confecção de uma futura constituição européia e não está muito longe uma federação dos países do velho continente. Não por acaso, esta união começa a efetivar-se uma década após o desmoronamento da União Soviética. As esquerdas européias, com sólido poder em países como Itália, França e Alemanha, se ainda recebessem subsídios de Moscou, jamais admitiriam uma Europa unida.

A economia capitalista — ou neoliberal, como agora se convencionou chamar — vai bem, obrigado. Ou alguém pretende que a Europa seja socialista? Houve época em que, para enganar a clientela tupiniquim, os jornalistas de esquerda identificavam as sociais-democracias européias com o socialismo soviético. “A Europa caminha para o socialismo, é para lá que o mundo desenvolvido vai”, era o que pretendiam dizer. Mas antes que o jogo de palavras fizesse fortuna, a URSS afundou.

Não há mais espaço para enganar. Pelo menos na Europa. Não encontrando mais clima para pregar ideologias obsoletas em seus países, os dirigentes da Association pour une Taxation des Transactions financières pour l’Aide aux Citoyens (Attac) transferem para o Terceiro Mundo suas tribunas. Anuncia-se para fevereiro a realização de mais um Fórum Social Mundial de Porto Alegre, patrocinado pelos agitprops franceses ligados ao Le Monde Diplomatique. Não confundir com o Le Monde, que é de boa família. Segundo noticiou este último em dezembro passado, o mais antigo ditador do planeta estaria propenso a vir ao encontro. Para desespero até mesmo dos mentores franceses do Fórum, que nestes dias de euroforia não querem nem ouvir falar de Fidel Castro. “Se ele vem, vai ser delicado para nós”, disse um dos membros da Attac.

Mas neste “continente puñetero” — como escrevia Alejo Carpentier em O Recurso ao Método — salvadores da pátria que sonham com socialismo é o que não falta. Não é pois de duvidar que, para alegria do PT gaúcho, o velho ditador venha soltar o verbo em Porto Alegre. Se o marxismo já foi para a lata de lixo da História, ainda sobrevive uma geração de viúvas que adoraria posar ao lado do tirano.

Enquanto nossas moedas morrem estupradas, tísicas, aviltadas, as moedas européias cedem, sem constrangimento algum, seu espaço à nova divisa. O euro nasce robusto e com futuro pela frente. A fossa se aprofunda. Enquanto os europeus vivem a euforia de tempos novos, a mentalidade subdesenvolvida das esquerdas brasileiras olha para trás e cultua um passado miserável.


 

Morre um Soldado de Franco

18/1/2002

 

Morreu ontem Camilo José Cela, o mais importante novelista espanhol contemporâneo, prêmio Nobel de Literatura em 1989. Escritor dos mais prolíficos, com cerca de cem títulos publicados, carregou a vida toda o peso da primeira obra, A Família de Pascual Duarte, que tive a honra de traduzir ao português. Novela publicada na Espanha em 1942, só saiu no Brasil, para nossa vergonha, em 1986, nada menos que 44 anos depois. Costumo dizer que o Brasil está sempre uma década atrás do que acontece na Europa. Neste caso, estamos nada menos que quatro décadas em atraso.

Em 1987, voltando de uma viagem à Espanha, com alguns dólares ainda no bolso, decido comprar as Obras Completas do mais importante autor espanhol contemporâneo. Passo na Casa del Libro, em Madri, e mando descer Don Camilo das prateleiras. Para meu pânico, eram — na época — dezessete volumes, cerca de 800 páginas cada um. E o que faltava integrar à coleção daria mais três ou quatro tomos da mesma idade. E o homem continuava “vivito y coleando”. E escrevendo.

Desde este primeiro livro, Don Camilo já suspeitava ser o mais importante escritor espanhol de sua época. Em 1953, para escândalo de seus leitores, afirmava: Me considero el más importante novelista español desde el 98. Y me espanta el considerar lo fácil que me resultó. Pido perdón por no haberlo podido evitar.

Nos anos 80, propus um curso sobre a novelística de Cela na Universidade Federal de Santa Catarina. Cela não é um escritor significativo, ele lutou na Falange, alegaram meus colegas de colegiado. Ou seja, meio século após a partição da Espanha em dois, vivíamos em plena Guerra Civil... em Florianópolis. De fato, em 1937, Cela engajou-se no exército rebelde, onde foi cabo de artilharia do Regimento Ligeiro n° 16. Foi ferido na perna direita e recebeu um tiro de metralhadora no peito. Em 1940, pertencia ao time dos vencedores. Por décadas, Cela permaneceu no índex das esquerdas e foi visto como leproso no universo das Letras.

Jorge Luis Borges pode ser condecorado por Pinochet, pode voltar do Chile afirmando que lá não viu tortura alguma e isto lhe é perdoado, não terá passado de uma boutade do grande escritor argentino. Pablo Neruda morre stalinista convicto, mas coroado pelo Nobel e em odor de santidade. Jorge Amado desenvolveu boa parte de sua vida um zdanovismo primário (com perdão pela redundância), recebeu comovido o prêmio Stalin de literatura, escreveu hagiografias em torno ao Paizinho dos Povos, mas é preferível omitir tais fatos em sua biografia. Marinetti, arauto da guerra e porta-voz do fascismo, é louvado como o inspirador e patrono das vanguardas brasileiras de início do século passado e seus manifestos, que seriam assinados embaixo por um Goebbels ou Hitler, continuam ainda hoje sendo objeto de culto por não poucos professores de literatura. Heidegger foi conivente com o nazismo. “Mas que tem a ver o pensador com sua obra”? — objetam certas almas caridosas.

O que não pode — ou não podia — era lutar ao lado dos nacionalistas na Guerra Civil Espanhola. Mas mesmo velhos stalinistas se rendem às honrarias do mundo. Em 1995, já premiado pela Real Academia Sueca, Cela recebeu o título de Dr. Honoris Causa da PUC gaúcha. Na mesa que o homenageou, foi secundado por ilustres esquerdistas gaúchos, que depois do Nobel preferiam esquecer que o homenageado ali ao lado fora soldado de Francisco Franco Bahamonde.

Sua trajetória na literatura é paradoxal: começa aos 26 anos com uma obra-prima, La Familia de Pascual Duarte (1942), o romance espanhol mais traduzido no mundo depois de Dom Quixote. Até hoje considerada sua obra maior — traduzida para mais de 20 idiomas, entre estes o latim — o autor narra as peripécias de um camponês estremenho de temperamento violento, que após uma série de crimes brutais, acaba por matar a navalhadas a própria mãe. Interrogado certa vez por uma professora se o livro seria autobiográfico, Cela deu vaza a seu senso de humor: “Claro. E se a senhora visse com que ganas apunhalei minha mãe!”

Na obra de Cela há uma forte presença da prostituição e não seria de todo exagerado afirmar que Mazurca para dois mortos (que também traduzi ao português) é uma crônica galega da Guerra Civil, vista através da ótica de um bordel. Outra obra importante sua, A Colmeia, é uma crônica do período pós-guerra civil em Madri. No filme de mesmo título — onde Don Camilo faz uma ponta — há uma cena antológica. Para ter acesso a um apartamento de encontros, todo freqüentador deve dizer uma senha: Napoleón fué derrotado en Waterloo. Mas a senha é de conhecimento público e quando um cliente se engana, uma vizinha responde: el piso de las putas es el de arriba. As prostitutas desempenham um papel fundamental na novelística celiana, fazendo-se presentes desde sua primeira obra: a irmã de Pascual Duarte é levada à prostituição por El Estirao. O leitor atento notará o carinho com que Cela as trata. Em meio a canalhas, delatores, padres lúbricos, vagabundos e assassinos, as profissionais são os raros personagens — patéticos personagens — a manter intacta uma reserva de humanidade.

Um outro título importante — e maldito — é San Camilo, 36, (1969), onde o escritor aborda, através de colagens de jornais e monólogos interiores, a eclosão da Guerra Civil Espanhola. O problema é que Cela dedica esta obra a los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la esperanza, de la decencia. Y no a los aventureros foráneos, fascistas y marxistas, que se hartaron de matar españoles como conejos y a quienes nadie habia dado vela en nuestro propio entierro. Ou seja, antes da primeira linha, o autor nos adverte não nutrir nenhuma simpatia pelos estrangeiros que levaram a Espanha a uma carnificina. Num século que cultuou como heróis Neruda, Hemingway, Malraux, Sartre e tantos outros stalinistas, estas poucas linhas soam como heresia imperdoável. Dificilmente será traduzido no Brasil. Esquecer que Cela foi soldado de Franco, até passa. Mas a Guerra Civil espanhola é a pedra de toque das esquerdas, e a intelligentsia tupiniquim jamais aceitaria tal insulto.


 

PT colhe Plantio

25/1/2002

 

“Isso já passou dos limites”, disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, comentando o assassinato do prefeito Celso Daniel. Elástica noção de limites, a do presidente. Ocorreram 307 seqüestros em São Paulo, só no ano passado. Quer dizer que quase um seqüestro por dia ainda não constitui limite? O brutal assassinato de uma senhora, liberada por seus captores e logo após fuzilada pelas costas em frente à própria casa, estaria ainda longe do limite? O narcotráfico, que administra as favelas e determina dias feriados ou de luto, fechamento de escolas ou comércio, não seria um limite?

Ao que tudo indica, não. Pois, em sua magnanimidade, o príncipe dos sociólogos tem uma generosa noção de limite. Os seqüestros e assassinatos cometidos pelos terroristas que queriam transformar o Brasil em uma imensa Cuba, não só foram anistiados como seus autores foram regiamente recompensados com cargos e polpudas aposentadorias. Sem ir mais longe, podemos começar por seu ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira.

Membro do Partido Comunista Brasileiro, optou pela luta armada ingressando na Aliança Libertadora Nacional (ALN), o grupo terrorista de Carlos Marighella, de quem era motorista. Marighella, se alguém não mais lembra, é o autor do Manual do Guerrilheiro Urbano, traduzido em várias línguas na Europa e livro de cabeceira das Brigadas Vermelhas italianas e do Baader-Meinhoff alemão. (Em Estocolmo, em plena social-democracia nórdica, encontrei uma tradução do manual em sueco). Foi morto em 1969, em uma emboscada pela polícia e hoje é cultuado como santo pelas esquerdas.

Em agosto de 1968, Aloysio Nunes — de codinome Mateus — participou do assalto ao trem pagador da Santos-Jundiaí. Em outubro, ao carro pagador da Massey-Ferguson. Ainda no mesmo ano, viajou com passaporte falso para Paris, onde passou a coordenar as ligações de Cuba com os comunistas brasileiros. Lá, filiou-se ao Partido Comunista Francês e negociou com o presidente Boumedienne, da Argélia, para que comunistas brasileiros recebessem treinamento militar naquele país. Com a Lei da Anistia, de 1979, regressou ao Brasil, onde foi eleito pelas esquerdas deputado estadual, vice-governador e deputado federal. Amigo dileto de Fidel Castro, após uma visita a Cuba no ano passado, o ditador foi ao seu embarque e o acompanhou até o avião para as despedidas, em homenagem a seu passado revolucionário.

O agitprop internacional, assaltante e guerrilheiro, assecla de Marighella e íntimo de ditadores, com o cinismo peculiar das esquerdas quando chegam ao poder, declarou recentemente à jornalista Ana Paula Padrão:

“Em outros momentos — eu me lembro — no tempo do regime militar, os serviços de repressão puderam desmantelar o PCB, o PC do B, a ALN, a VPR, o MR-8. Será que não podem dar conta desses criminosos que hoje fazem seqüestros relâmpagos e esse tipo de ação?”

Poder, podem, Mateus. O problema é que quando estes grupos são desbaratados, os criminosos viram ministros.

Não menos interessante é ouvir Fernando Henrique condenar seqüestros. Logo Fernando Henrique, que humilhou a nação ante uma sórdida campanha na imprensa internacional financiada por uma rica família do Canadá e avalizou a libertação de seus filhinhos seqüestradores, condenados pela Justiça a quase três décadas de prisão.

Lula, o tetracandidato, foi correndo solidarizar-se com o entourage da vítima e participou de uma marcha pela paz. José Genoíno fala em Rota nas ruas e prisão perpétua. A multidão de petistas que acompanhou o enterro do prefeito pede pena de morte. Um programa de segurança do PT assume um projeto novayorquino e neoliberal, a tolerância zero. Quem empunhava estas bandeiras há questão de dois anos? Paulo Maluf, qualificado como fascista por empunhá-las. Acontece que as eleições estão aí e é preciso entrar em sintonia com o que eleitor pede.

Por ocasião do seqüestro de Abilio Diniz, outro era o discurso do tetracandidato. Apressou-se em intermediar as negociações entre seqüestradores e polícia, de modo a garantir a integridade física, não do empresário, mas ... dos seqüestradores. Fernando Henrique Cardoso, mais seu ministro da Justiça na época, José Gregori, mais a Igreja, o PT e entidades ligadas aos famigerados Direitos Humanos empenharam-se com afinco na libertação dos canadenses. Quando o governo de um país, o líder da oposição e mais a Igreja lutam pela libertação de seqüestradores, qual mensagem recebe o grande público? Só uma: seqüestro pode render lucros e permanecer impune.

Talvez o leitor contemporâneo já nem lembre, mas foram as esquerdas que introduziram no Brasil esta modalidade. Em nome de utopias assassinas, começaram a seqüestrar aviões e diplomatas. Dialogavam não com pessoas, mas com Estados. Curvem-se as nações ante o Brasil: seqüestro de aviões tem patente tupiniquim, é achado genuinamente nosso. No curto período em que estiveram na prisão, os seqüestradores exerceram uma função didática, ensinando suas técnicas aos presidiários de direito comum. E agora se queixam do progresso dos alunos.

A tolerância das esquerdas com o seqüestro sempre foi óbvia, pelo menos até a semana passada. Alguém ouviu algum dia o PT condenar as FARC colombianas, que fazem do seqüestro sua estratégia privilegiada de obtenção de fundos? Eu nunca ouvi. O que vi, isto sim, foi o governo petista gaúcho receber com tapete vermelho um bandoleiro das FARC. Que, não contente em ser recebido quase com dignidade de chefe de Estado, andou fazendo palestras em escolas Brasil afora, em comunidades administradas pelas esquerdas.

Os seqüestros do passado não constituem crimes para estes senhores. Neste insólito país, onde os derrotados escrevem a história presente, são tidos como atos heróicos e patrióticos. Até mesmo crimes horrendos tinham nobres conotações. As vestais que hoje se chocam com a execução brutal de Celso Daniel, não manifestaram horror algum ante outra execução também brutal, a daquele infeliz soldado que Lamarca executou, prisioneiro e indefeso. Ninguém, nas esquerdas, pediria prisão perpétua ou pena de morte para o assassino de um companheiro de armas. Pelo contrário, Lamarca hoje está instalado na galeria dos Vultos da Pátria, gozando do mesmo status de um Tiradentes. Ninguém, nas esquerdas, foi prestar solidariedade à família do soldado morto. Mas há projetos de impor aos currículos escolares a vida e obra deste santo homem, capitão Carlos Lamarca.

O pensamento de esquerda criou um caldo cultural onde criminoso não é mais criminoso, mas vítima. Onde invasor de terras é herói e o proprietário que as defende é bandoleiro. Onde Luis Carlos Prestes é beato e Che Guevara vira santo.

São chegados os dias de colheita.


 

O Grande Ausente

1/2/2002

 

Desde meus dias de universitário, considerei Porto Alegre uma capital provinciana. Não pelo comportamento de seus cidadãos comuns. Mas por seus produtores culturais. Na universidade, me vi cercado de professores que se dobravam servilmente às últimas modas intelectuais requentadas na França ou Alemanha. Durante meus quatro anos de Filosofia, cochilei no fundo da classe, mal ouvindo mestres e doutores aculturados empunhando o pensamento de Sartre ou Heidegger. Na época, quem visse em Sartre um stalinista, ou em Heidegger um nazista, demonstraria insanidade mental. Nada como o tempo para destruir pedestais. Hoje, sabemos quem foram estes senhores.

Nossos doutos professores, todos poliglotas e com anos de Europa na bagagem, papagueavam teorias assassinas germinadas às margens do Sena ou do Main. Se falavam da dialética em Platão, esta menção tinha um alvo preciso, era para retomá-la como a culminância do pensamento científico em Marx. Gerações foram doutrinadas com marxismo e as guerrilhas desvairadas daqueles anos não tiveram origem no operariado inculto, mas na universidade. Não só a do Rio Grande do Sul, é verdade. A mais reputada universidade brasileira, a USP, foi — e ainda é — o foco irradiador das doutrinas totalitárias exportadas pela Europa, para consumo do Terceiro Mundo. A barbárie não germinou entre brutos. Mas no seio da elite intelectual gaúcha e brasileira.

Seria de esperar-se que, com o desmoronamento da União Soviética e o fracasso do marxismo, Porto Alegre se arejasse. Não é o que vemos. Alcaide e autoridades locais estão recebendo com orgulho os fósseis ambulantes de uma doutrina morta. Já recebi inclusive mails de porto-alegrenses que se ufanam de ver seu torrão em destaque na imprensa internacional.

É atitude semelhante a dos intelectuais que julgam ter o 11 de setembro sido salutar para a divulgação do Islã. Sim, o Islã esteve nas primeiras páginas por algumas semanas. Mas como sinônimo de ódio, ressentimento, terrorismo. O que não me parece ser boa propaganda para uma religião. Da mesma que o Fórum só serve para jogar Porto Alegre no rol dos parques jurássicos.

O Fórum Social Mundial se instala sob a sombra de bin Laden. Quando afundou a União Soviética, as carpideiras do PT gaúcho foram correndo buscar afago nos braços de Castoriadis e Habermas, que vieram a Porto Alegre enxugar as lágrimas das viúvas inconsoladas. Intelectuais já em desprestígio na Europa, sentiram-se guindados ao Olimpo, falando para hipnotizadas platéias nos salões da Reitoria da UFRGS. Um verdadeiro bain de foule para quem já estava sendo jogado à famosa lata de lixo da História. Como a defesa do socialismo hoje tornou-se inviável, só sobrou a bandeira infantil do antiamericanismo.

Desta vez as esquerdas gaúchas foram pedir socorro ao lingüista Noam Chomsky, professor do MIT, especialista em fazer fortuna criticando o sistema que o nutre e sustenta. Hostilizado nas ruas e na imprensa americana, em acelerada queda no mercado de modismos intelectuais dos Estados Unidos após o atentado ao World Trade Center, Chomsky certamente adorará falar para uma platéia de universitários provincianos, sempre prestimosa em prestigiar intelectuais já sem prestígio.

Em uma tentativa de agradar seus últimos currais, o lingüista já começou declarando na televisão seu espanto em ver, em uma capital do sul do Brasil, o poder há doze anos nas mãos do “maior movimento internacional de trabalhadores”. O professor do MIT crê firmemente que o Partido dos Trabalhadores, já que assim se chama, é constituído por trabalhadores. O arguto lingüista parece não ter percebido as nuanças que a linguagem adquire neste país incrível. Pressuroso em agradar aqueles universitários que no ano passado festejaram o atentado do 11 de setembro, já antecipou seu discurso na Folha de São Paulo: terroristas são a Europa e os Estados Unidos. Será aplaudido com delírio. Bin Laden era um justiceiro e não sabíamos.

Não poderia faltar ao jamboree das esquerdas — como definiu o encontro o Estado de São Paulo — o promotor espanhol Baltasar Garzón, aquele bravo senhor que, sem jamais ter denunciado em seu país os líderes remanescentes do franquismo, resolveu estender sua jurisdição às ex-colônias e pediu a prisão, na Inglaterra, do general chileno Pinochet. Acostumado a legislar urbi et orbi, já chegou a Porto Alegre com uma postura imperial, vetando a presença de representantes da ETA no jamboree. Para desconforto do alcaide petista, que teve de desconvidar organizações terroristas que já aprontavam as malas para o encontro.

Não poderia faltar ao encontro o goliardo Leonardo Boff, um dos mentores da sedizente Teologia da Libertação, pentimento católico do marxismo. Como também está de volta Danielle Mitterrand, viúva do torturador da guerra da Argélia e fã incondicional de Castro e Che Guevara. Tudo fecha.

Está entre os convidados do Fórum uma vigarista internacional, Rigoberta Menchú Tum, que conseguiu enganar os noruegueses e o resto do planeta com um embuste intitulado Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la Conciencia. A biografia, que deu o prêmio Nobel da Paz à guatemalteca, foi escrita por Elizabeth Burgos, mulher de Régis Débray, aquele ex-ministro do presidente torturador que até hoje não conseguiu convencer ninguém de que não delatou Che Guevara aos militares bolivianos. Tudo em família. Segundo o antropólogo americano David Stoll, Menchú descreve com freqüência “experiências pelas quais nunca passou”. Afirma nunca ter freqüentado escola, nem saber ler, escrever ou falar espanhol até a época em que ditou sua autobiografia. Mas sua incultura era postiça: recebeu o equivalente à instrução ginasial em internatos particulares mantidos por freiras católicas. A luta de Menchú e outros indígenas pela terra, contra latifundiários de origem européia, era em verdade uma antiga rixa familiar de seu pai contra parentes próximos. O irmão mais jovem que dizia ter visto morrer de fome nunca existiu. Um outro, que dizia ter visto morrer queimado, não morreu queimado nem ela viu sua morte.

Não poderia faltar um aceno aos jovens, que acamparão aos milhares às margens do Guaíba. A revolução, nós a faremos com os jovens: são estúpidos e entusiastas — já escrevia Roberto Arlt, no início do século passado.

Disto, os porto-alegrenses parecem orgulhar-se. Já vivi em dez cidades no planetinha e hoje, para mim, é um pouco difícil dizer qual é minha cidade. De qualquer forma, foi em Porto Alegre que fiz minhas universidades, lá deixei amigos e amores. Gaudério, nutro grande carinho pela capital gaúcha. Assim, é com tristeza que vejo uma cidade que adoro orgulhar-se de hospedar o obscurantismo.

Enfim, a elegância de uma festa também se mede pelos que não foram convidados. Como pano de fundo dos debates estará, brilhando por sua ausência, o terrorista saudita.


 

Terror com Site e Hino

8/2/2002

 

Como la sombra de la memoria viva
vuelve al combate frontal Manuel Rodriguez;
alto y duro como un rayo interminable
en contra del mismo tirano inmemorial,
vuelve encendiendo la guerra necesaria
trae en sus manos el fuego que castiga,
viene y va con sus milicias invisibles
para señalar que un hombre nuevo crecerá.
La patria está tan mal, Manuel la pondrá en pie,
doblegando la noche sin gloria
elevando el hombre hasta su historia,
ayudando al pueblo en la victoria
con la urgencia de su dignidad.

 

E assim por diante. Esta ode ao homem novo e à dignidade nacional é o hino da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, braço armado do Partido Comunista Chileno. Você pode ler o resto da letra e até mesmo escutá-lo clicando aqui. Se a tal de Frente não lhe diz nada, talvez a sigla diga: FPMR, a organização à qual pertence Maurício Hernández Norambuena, mais conhecido como comandante Ramiro, líder do seqüestro em São Paulo do publicitário Washington Olivetto.

Norambuena, para quem não sabe, é um destes heróis contemporâneos, ao estilo de David Spencer e Christine Lamont, aqueles dois bravos canadenses que foram encarcerados no Brasil e condenados a quase 30 anos de prisão, quando lutavam pela libertação dos povos, seqüestrando o empresário Abílio Diniz. Graças à ação decisiva da Igreja Católica, do PT e do próprio governo federal, a dupla de heróis foi libertada, após dez anos de cárcere — com seus companheiros chilenos, argentinos e brasileiros — e devolvida à generosa pátria do norte, que os eximiu de qualquer punição três meses depois. Foram decisivas para suas libertações os empenhos do cardeal Evaristo Arns, este campeão da liberdade, e do então secretário de Direitos Humanos, José Gregori. Tudo isto com o aval do presidente da República e do Congresso Nacional.

Também combatente da liberdade, Norambuena foi um dos autores do atentado de 1986 contra Augusto Pinochet, quando um comando da FPMR lançou um foguete contra o carro do ditador, que bateu no veículo, sem explodir. Foi tesoureiro da FPMR e participou das execuções de agentes de segurança, além do atentado ao chefe da Força Aérea chilena.

Preso em 1993, o herói chileno foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato do senador Jaime Guzmán e pelo seqüestro de Cristián Edwards, executivo do jornal El Mercúrio. Em 1996, fugiu de forma espetacular e agora ressurge entre nós, seqüestrando um publicitário e sempre elevando o homem até sua história e ajudando o povo na vitória com a urgência de sua dignidade.

Gente fina é outra coisa. A bandidagem tupiniquim, vivendo em uma era pré-Web, ainda nem pensou em hino. O site da FPMR, munido de artilharia de grosso calibre intelectual, publica los análisis que estimemos más relevantes y esclarecedores sobre el tema que vayan siendo publicados por cualquier medio por parte de pensadores, analistas o políticos. Entre condenações ao imperialismo ianque e louvações incondicionais à ditadura cubana, não poderiam faltar as penas de Eduardo Galeano, escritor uruguaio que enganou gerações com Las Venas Abiertas de America Latina; Noam Chomsky, aquele senhor que julga ser o PT um partido de trabalhadores e considera que os verdadeiros terroristas são os Estados Unidos e a Europa; Antonio Negri, terrorista das Brigadas Vermelhas italianas e articulista contratado da Folha de São Paulo. Nada mais lógico que os executores da violência chamem, para apoiá-los, os teóricos da violência. Estes senhores assumem, prazerosamente, a tarefa. É de supor-se que os organizadores do Fórum Social Mundial não desconheciam as sutis relações do lingüista americano com o site do terror.

Chomsky arrola como terrorismo as guerras passadas dos Estados Unidos e Europa. Como alguns países europeus tiveram um dia colônias na África, a Europa como um todo é uma federação terrorista. (Pessoalmente, sempre desconfiei que a prosperidade dos países nórdicos era devida às suas antigas colônias na África). Nenhuma menção, é claro, à tirania mais recente, a soviética, exercida sobre os países integrados manu militari à ex-URSS. Ora, se formos voltar atrás na história, o Pentateuco é um manual de terrorismo movido a ódio cru. Dentro da ótica do lingüista, temos de concluir que todo vencedor de uma guerra é ipso facto genocida. Para Negri, o capitalismo globalizado está enfermo da violência e da miséria que gera. O socialismo, bem entendido, jamais gerou miséria e goza de boa saúde, vide os esplêndidos índices de bem-estar social da Rússia e Cuba, hoje.

O seqüestro, como observou o Estado de São Paulo, seguiu estritamente as regras estabelecidas na apostila O Seqüestro como Arma, de Carlos Marighella, criador do grupo terrorista Aliança Libertadora Nacional (ALN). O refém deve ser mantido em um imóvel que não desperte suspeitas, isolado em uma cela já existente ou construída especialmente, por exemplo, no centro de um dos cômodos para permitir o controle absoluto. As normas do dia-a-dia devem ser em quantidade tal que o seqüestrado, empenhado em atendê-las e evitar punição, tenha pouco tempo para estudar os seqüestradores ou colher dados que permitam uma futura identificação.

Tais regras evidentemente devem dar uma pista concreta a nosso muito digno ministro da Justiça, sr. Aloysio Nunes Ferreira, que afinal foi chofer de Marighella e membro da ALN nos anos 60. As determinações sobre como Washington Olivetto deveria comportar-se no cárcere chegam a coincidir, palavra a palavra, com as determinações feitas a Abílio Diniz. A relação entre um seqüestro e outro é óbvia. E os nobres propósitos de David Spencer e Norambuena serão os mesmos, a redenção dos oprimidos. Você não vai confundir, é claro, o valoroso combatente anti-Pinochet com um mero bandoleiro de morro. César Quiróz, fundador e atual comandante da Frente Patriótica Manuel Rodrigues, livre como um passarinho em Santiago do Chile, já prepara o caminho da libertação do herói, em entrevista publicada ontem no Estadão:

— Creio que as motivações de Norambuena são políticas. Em nenhum caso eu acredito que seja uma ação criminosa. Acredito que sua motivação foi para ajudar a erguer o movimento revolucionário no Chile e a Frente Patriótica.

É de supor-se que a CNBB, o PT, o Congresso Nacional e o ministro da Justiça — de codinome Mateus — não deixarão nas mãos da repressão os heróicos combatentes. Aqui-del-rei, cardeal Arns, senador Suplicy! Primeiro os teus, camarada Mateus! Eia! Sus! companheiros Lula, José Dirceu, Marta, Genoíno, Tarso Genro, Olívio Dutra e frei Betto. Um combatente da liberdade está prestes a apodrecer nos porões do neoliberalismo. Elevemos o homem até sua história, ajudemos o povo na vitória. Liberdade para o comandante Ramiro e seus bravos combatentes!


 

O Papa e a Rosa

15/2/2002

 

La Rabia e l’Orgoglio, o soberbo panfleto de Oriana Fallaci, escrito por ocasião do atentado ao World Trade Center, foi transformado em livro e está vendendo como pão quente na Itália. Lançado em meados de dezembro passado, chegou a vender 50 mil cópias por dia, proeza sequer igualada pelos Harry Potters da vida.

A escritora florentina, hoje residente em Nova York, foi talvez a única voz européia a não render-se à armadilha do multiculturalismo, que hoje grassa nos países ocidentais. Atéia por definição, ama sua Florença natal e todos seus símbolos religiosos oriundos do cristianismo, hoje ameaçados de transformar-se em privadas pelos imigrantes ilegais acampados em suas imediações. Seu livro é protesto irado contra esta “ambígua União Européia, que masoquisticamente hospeda dez milhões de muçulmanos, que adora fornicar com os países árabes, embolsar seus petrodólares. Esta estúpida Europa que fala de identidade-cultural com o Oriente Médio”. Seu repto aos fotutti figli di Allah — como designa os muçulmanos — só por milagre será traduzido no Brasil, onde as grandes editoras há muito renderam-se ao politicamente correto. Enfim, se você lê italiano, sempre pode encomendá-lo pela Internet. (Se lê espanhol, escreva-me e receberá o texto básico que deu origem ao livro).

Sempre que se fala em Islã na Europa, ilustres humanistas não faltam para defender a tolerância e a convivência com a cultura do “outro”. A recíproca não é verdadeira. Se a Arábia Saudita financia a criação de mesquitas e madrassas em todo o Ocidente, não vamos encontrar nenhum templo cristão em seu território. Em seu desabafo, a jornalista lembra algo que os estadistas ocidentais preferem esquecer: quando os palestinos cometiam massacres em aviões e aeroportos, era a Casa Real Saudita quem financiava Arafat, hoje tão mimado pelos chefes de Estado europeus.

O problema não é bin Laden, como Fallaci deixa claro em seu livro. Encerrado em sua prisão mental, o paranóico saudita imaginou poder aniquilar o Ocidente jogando aviões contra prédios. Sua sangrenta molecagem só fortaleceu os Estados Unidos como também desserviu o mundo árabe e, principalmente, o universo imigrante. Mais grave que bin Laden são os quintas-colunas que minam o Ocidente desde dentro.

Se Jeová civilizou-se, Alá continua intolerante. Intolerante e arrogante, mesmo fora de sua geografia. No final do ano passado, em Milão, Rosa Petrone, uma enfermeira italiana convertida ao Islã, decidiu não retomar sua função no hospital de Niguarda enquanto não forem removidos os crucifixos do local de trabalho. A União Muçulmana da Itália tomou posição a favor da enfermeira, alegando que “a presença do crucifixo católico em locais públicos é violação e desafio à neutralidade e laicidade do Estado”. Ainda no ano passado, em outra cidade italiana, uma professora pedia a retirada do crucifixo das salas de aula, para não ferir suscetibilidades de filhos de imigrantes.

As crianças, no entanto, ainda preservam uma opinião independente. No Natal passado, em uma pesquisa feita entre 2500 crianças e adolescentes italianos, entre 7 e 16 anos, uma expressiva cota de 38 por cento manifestou o desejo de não conviver com estrangeiros na escola. Caro Babbo Natale, allontana gli immigranti — este era o desejo expresso pela meninada. Caro Papai Noel, afasta os imigrantes. Ainda não contaminadas pelo politicamente correto, as crianças expressaram o que muito italiano pensa mas já não ousa dizer.

Teóricos complacentes podem alegar que o Islã prega a paz. Esquecem que Maomé foi um guerreiro. Se a Igreja romana já se conformou com o ecumenismo, o mesmo não ocorreu com os fanáticos de Meca. Se em suas suratas o Alcorão faz acenos à paz, o que vemos no mundo islâmico é belicismo e intolerância. A Bíblia também está permeada de gestos de amor. Mas o que vimos na trajetória da Igreja foi sangue, tortura, intolerância, ódio à vida e ódio à humanidade. Se o leitor quiser uma idéia da beligerância do atual Islã, pode começar estudando a história da Igreja na Idade Média.

A cruz que o diga. Um instrumento de tortura e morte passa a ser o logotipo de uma religião que prega o amor. O duplipensar de Orwell, como vemos, é bem anterior ao comunismo. Não tenho simpatia alguma pelo crucifixo e, como a Rosa, me irrita vê-los em tribunais, escolas ou hospitais de um Estado que se pretende laico. Da mesma forma, foge a qualquer lógica ver constituições republicanas invocando deus em seus preâmbulos. O que espanta na decisão da recém-convertida é pretender limpar o Estado italiano de símbolos religiosos, logo em nome do Islã, fértil em Estados teocráticos. Pretenderá a enfermeira eliminar a cruz da Cruz Vermelha? É bom lembrar que a instituição homológa no mundo árabe se chama Crescente Vermelho, e provavelmente seria decapitado quem fizesse greve para eliminar o crescente.

Respublica Christiana, assim chamou-se a Europa em seus primórdios. Impossível conceber uma Europa sem cruzes e campanários. Mesmo sendo ateu, muito perambulei por basílicas e catedrais na Europa, sem que isso significasse qualquer busca de fé, mas apenas desejo de contemplação artística. Sem nada ter a ver com Alá, sempre tirei os sapatos para entrar em mesquitas. Impossível imaginar um Oriente sem crescentes e minaretes. Jamais me ocorreria exigir o banimento da cruz da geografia que freqüento. Ou a proibição do crescente no mundo árabe.

A Europa já conjurou no passado a ameaça islâmica, mandando os árabes de volta ao Oriente. Cinco séculos depois, a invasão recomeça. Sem lanças nem alfanges, mas com cartilhas de multiculturalismo e direitos humanos em punho. Debilitada pela ação de quintas-colunas, a Itália parece vacilar entre a cruz e o crescente.

Mas o papa romano não perde ocasião de cometer suas aiatolices. Em janeiro passado, João Paulo pediu a juízes e advogados que não aceitassem processos de divórcio já que, segundo a Igreja, o casamento é indissolúvel e a lei divina, superior à lei dos homens. Imiscuindo-se em questões de Estado, o papa considera que a sociedade toda deve submeter-se à fé católica. Em sua senectude, conclama os funcionários da justiça à desobediência civil. O aiatolá Khomeiny não teria feito melhor. Diante desta brutalidade dogmática, oriunda da boca de um geronte em estado terminal, Rosa Petrone não deixa de ter razão.


 

Sufiyatu, Fadime, Shahida

22/2/2002

 

O presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, expressou nesta terça-feira passada, em Roma, esperança de que Sufiyatu Huseini, condenada a morte em outubro por apedrejamento por ter cometido adultério, “obtenha justiça após sua apelação”. Sufiyatu é uma das tantas mulheres muçulmanas submetidas ao brutal regime islâmico da chamada sharia plena. Sufiya, como é mais conhecida, tem 35 anos e dois filhos, sendo que o último é uma menina de dez meses, Adama. O adultério cometido por Sufiya é peculiar. Divorciada no ano passado, pelo fato de o marido não poder sustentá-la — o que é permitido pela lei islâmica na Nigéria — foi estuprada quatro vezes por Yakubu Abubakar, de 60 anos e engravidou. Segundo a interpretação mais comum da lei islâmica, o adultério só fica comprovado se alguém o confessa ou se o ato foi visto por quatro testemunhas masculinas. Em uma primeira audiência, Abubakar admitiu o relacionamento sexual. Na segunda, negou. Como não havia os quatro machos de praxe exigidos como testemunhas, foi absolvido.

Mas Sufiya estava grávida. Mesmo sem estuprador, mesmo divorciada, cometeu adultério. Segundo uma rigorosa interpretação do Corão, adotada pelos Estados do norte da Nigéria, basta a gravidez como prova do crime. O desejo manifesto de Abubakar de casar com Sufiya não foi suficiente para absolvê-la. O juiz de um tribunal islâmico de Sokoto, onde foi julgada, determinou que a sentença seja executada tão logo Adama seja desmamada. O fato transpirou para o Ocidente e vários países europeus pediram às autoridades nigerianas clemência para a ré. Sufiya recorreu da sentença e uma audiência está marcada para meados de março.

É muito fácil atribuir ao Islã a execução de adúlteras. Em verdade, a Santa Bíblia também a ordena. O fato é que o Ocidente há muito abandonou tais práticas. Se ainda hoje são encontradiças em cidades e aldeias católicas do sul da Europa e mesmo na América Latina, são capituladas como crime. No Brasil, até os anos 70, a alegação de defesa de honra absolvia muito marido assassino. Estes tempos são passados e hoje um corpo de jurados não aceitaria mais tal argumento como atenuante.

Nenhuma voz ergueu-se no mundo árabe para defender uma mulher que, se praticou adultério, é porque foi estuprada. Mas lei é lei e apesar da intervenção européia, não é evidente que a moça escape à lapidação. Que bárbaros matem suas mulheres em sua geografia, pode ser injusto segundo nossos conceitos de justiça. Mas é inteligível, afinal os executores estão cumprindo seus bárbaros preceitos. Na Nigéria não é crime matar uma adúltera, mas obrigação legal. O conflito surge com mais ênfase quando muçulmanos matam mulheres em geografias onde é crime matar quem quer que seja.

Se Sufiya espera a morte em março em Sokoto, Fadime Sahindal, 26 anos, não precisou esperar tanto. Foi executada em janeiro passado em Upsala, Suécia. Não pelo marido, que não tinha. Nem pelo Estado, que lá não mata. Mas pelo próprio pai, com três tiros na cabeça. Na presença da mãe e de suas três irmãs, “para proteger a honra da família”. Menina turca de origem curda, cometera o crime inominável de enamorar-se de Patrik Lindisjö, cidadão sueco. Detalhe: Patrik já havia morrido em 1998, em um estranho acidente.

Em 20 de novembro passado, Fadime denunciara ao Parlamento sueco as perseguições e maus tratos por parte de seu pai e seu irmão: “Meu pai deduziu que eu tinha uma relação sexual com Patrik. Para minha família era importante conservar a virgindade e poder dar testemunho dela nos lençóis da noite de núpcias. O sentido de minha vida era casar-me com um homem curdo. Subitamente, aos olhos de minha família, me transformei de boa menina curda em mulher de má vida. Decidi pela ruptura com minha família. Me mudei de minha casa e da cidade, mas meu irmão me perseguiu e me ameaçou”.

Fadime denunciou o assédio à polícia e finalmente optou por contar sua história para a televisão. Os suecos se comoveram e protestaram contra a passividade policial ante os problemas sofridos pelas mulheres da comunidade curda refugiada na Suécia. Em 98, seu pai e irmão foram julgados e condenados a penas leves. Foi quando Patrik foi encontrado morto em seu carro, que havia se chocado contra um pilar de cimento.

Ontem ainda, o vespertino sueco Aftonbladet afirmava que devia existir um cúmplice do pai de Fadime. “Uma pessoa normal jamais mataria a própria filha”, diz o jornal. Isto de um ponto de vista sueco. Ou civilizado, como quisermos. De um ponto de vista muçulmano, mata e julga estar cumprindo um dever.

Em Manchester, Inglaterra, foi condenado à prisão perpétua o paquistanês Faqir Mohammed, 69 anos, muçulmano que matou a facadas Shahida, sua própria filha, depois de descobrir que o namorado estava no quarto dela. Mohammed voltava de uma mesquita e sua outra filha, Majida, tentou avisar a irmã pelo celular que o pai estava chegando. Em vão. O pai desconfiou de alguma coisa e usou uma chave extra para abrir o quarto da filha. Lá dentro ele encontrou o estudante Bilal Amin, totalmente vestido, sobre a cama de Shahida. O rapaz fugiu por uma janela. O pai deu 19 facadas na filha, na cabeça e na barriga.

Sufiyatu, Fadime, Shahida. E milhares de outras cujo nome não chega a jornal nenhum. Se o Estado não mata, o pai assume a tarefa. A honra precisa ser salva. Mas que honra é essa que só pode ser lavada com sangue?

A idéia de respeitar, já não digo os costumes, mas pelo menos a lei, do país que o acolhe, não passa pela cabeça de um muçulmano. Oriundo de uma sociedade teocrática, ele não consegue fazer a distinção entre universo laico e crença religiosa. Tem um mandamento divino na cabeça e julga que aquilo tem força de lei. Daí o conflito.

Fadime teve sorte, morreu rápido. Shahida sofreu as dores de uma lâmina penetrando seu corpo jovem. Para Sufiyatu, o Estado reserva uma morte lenta. Mais moças oriundas do universo muçulmano serão assassinadas na Europa. Com a crescente invasão de imigrantes no continente, em breve chegará a vez das européias.


 

Santa e Bela Catarina: Anita, Guga e madre Paulina

1/3/2002

 

Ufanem-se os afonsos celsos da vida. Já temos santa. Aleluia, irmãos. Dia 19 de maio próximo será canonizada a primeira santa brasileira, madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus, religiosa italiana que viveu em Nova Trento, Santa Catarina. Agora só falta o Nobel.

Pior que o ufanismo nacional, só mesmo os bairrismos estaduais. Já devo ter contado que encontrei, nos currículos da UFSC, uma curiosa ementa: História da Filosofia Catarinense. Sem jamais imaginar que existisse uma filosofia catarinense, descobri que já existia uma história da filosofia catarinense. Não seria de espantar que, com o futuro decreto vaticano, tenhamos até uma hagiologia barriga-verde. Os catarinenses já criaram do nada uma heroína, que só é heroína por ter largado o marido e seguido os olhos azuis de Garibaldi. Agora têm santa.

João Paulo II, na chefia de uma próspera indústria, já beatificou e canonizou mais pessoas que todos os papas anteriores desde a fundação, em 1594, da Congregação das Causas dos Santos. Seus predecessores, todos juntos, nomearam 808 beatos e 296 santos. Ele sozinho, em 24 anos de papado, produziu mais de 1.300 beatificações e 470 canonizações. Não poderia faltar pelo menos um para a grande nação católica tropical.

Regozijem-se os agentes de turismo, restauradores e hoteleiros. Se uma cidade nada tem de interessante para oferecer a visitantes, urge criar um santo. É tiro e queda. A localidade de Vígolo, no município de Nova Trento, Santa Catarina, onde a religiosa viveu dos 9 aos 37 anos, tem recebido 120 mil romeiros por ano. Terça-feira passada, com o anúncio da futura canonização, quase mil peregrinos passaram pelo local. O dobro do normal, segundo a irmã Lígia, uma das nove freiras da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Imagine o leitor o número de estômagos a alimentar e corpos a hospedar, quando madre Paulina tiver tomado posse, oficialmente, de seu cargo de embaixatriz junto ao Senhor. Santo is money. Lourdes, Fátima e Medgorje que o digam.

Esta política de linha de montagem praticada por João Paulo tem seus riscos. Se nos tempos antigos constituía um problema reunir dados em torno de uma pessoa, hoje ocorre o inverso: o problema é o excesso de dados. Numa época em que cientistas conseguem bisbilhotar até mesmo a vida íntima de uma múmia imemorial encontrada nos Alpes, os santos que se cuidem. Ainda há pouco, João Paulo beatificou Giovanni Maria Astai, mais conhecido como Pio IX. Ocorre que o novel beato, em sua passagem terrena, além de mandar revolucionários romanos para a guilhotina, chamou os judeus de cães e os confinou em um gueto em Roma. A beatificação de Astai, primeiro passo para a canonização, denota grave amnésia do papa que, recentemente, pedia perdão aos judeus pela perseguição a eles promovida pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Religion is a queer thing, guia assinado por um time de acadêmicos comandado por Elizabeth Stuart, teóloga e editora do Journal of Theology and Sexuality, é mais um desses títulos que jamais serão editados no Brasil. O país pode ser laico, mas nenhum editor ousaria desafiar a representação tupiniquim do Vaticano. Neste livro, Santo Agostinho, Santa Tereza, Santo Anselmo e outros dezenove santos, embora não sejam diretamente chamados de homossexuais, são descritos no livro como queer. Segundo os autores, “os santos podem ser vistos como queer por causa de seus fortes sentimentos por pessoas do mesmo sexo”.

Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona e autor de As Confissões, caiu em tentação e tornou-se pai antes de fazer dezoito anos. Seu filho, significativamente, chamou-se Adeodato. Prudente, formulou ao Altíssimo esta prece malandra: “fazei-me casto, Senhor. Mas não já”. Em Religion is a queer thing, Agostinho é citado por ter tido um intenso relacionamento com um homem que foi desonrado pela “indecência da concupiscência”. Ainda de acordo com o guia, Santo Anselmo di Aosta (1033-1109), teólogo e filósofo italiano, também disputado pela França e Inglaterra, teve profundos relacionamentos afetivos com homens e foi um dos primeiros a se referir a Jesus como mãe. A mística carmelita espanhola Tereza de Ávila (1515-82) é retratada como uma mulher forte e divertida. Na juventude, segundo o guia, teria tido uma paixão lésbica.

O que, no fundo, confere um toque de humanidade a estes servos de um deus assexuado. Homossexualismo é intrínseco a comunidades onde os sexos são separados e não é por acaso que os padres católicos estão sendo processados no mundo todo por abusos sexuais de menores. Em novembro passado, em sua primeira mensagem enviada por e-mail, João Paulo pedia desculpas às vítimas de abusos sexuais por membros do clero.

Não é o caso de madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus. O problema continua sendo o excesso de dados que a época atual produz. Pio XII, o papa conivente com o Holocausto, já estava na linha de montagem do Vaticano, quando foi publicado O Papa de Hitler, de John Cornwell. João Paulo, cauteloso, preferiu beatificar o que chamou os judeus de cães. É sabido o empenho do sumo pontífice na canonização de Agnes Bojaxhiu, mais conhecida como madre Teresa de Calcutá. Ora, sabe-se que madre Teresa costumava depositar flores na tumba de seu conterrâneo, Enver Hoxha, um dos mais sanguinários ditadores comunistas do século passado. No Haiti, durante a tirania de Baby Doc, recebeu de suas mãos a “Légion d’honneur” haitiana. Junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, pediu clemência para Charles Keating, vigarista condenado a dez anos de prisão por lesar os contribuintes americanos em 252 milhões de dólares. Deste senhor, Madre Teresa recebeu a simpática quantia de 1,25 milhão de dólares e a oferta de um jato privado para suas viagens. Não vai ser fácil.

Para que um venerável se torne beato, exige-se a comprovação de um milagre. Para santo, dois. Ora, se milagre existe, a ciência é vã. Como médicos venais para atestar charlatanices é o que não falta, os santos têm brotado nas últimas décadas como cogumelos após a chuva. Para embevecimento dos pobres de espírito e suma alegria dos agentes de turismo e mercadores de pequenas comunidades que só têm santidade para exportar.

Santa e bela Catarina: Anita, Guga e madre Paulina.O sagrado quadril do herói já elevou o Estado à primeira página dos jornais. A Igreja adora exibir membros de seus campeões. Para quando a santa canela da madre?


 

A Profissão Gay

8/3/2002

 

Em Toda Nudez Será Castigada, Nelson Rodrigues consegue um desses milagres raros na dramaturgia, o de construir um personagem poderoso que jamais aparece em cena. É o ladrão boliviano. Não tem rosto, não tem voz, mas tem presença, e das mais importantes. Um dos personagens da peça é um adolescente, criado por três tias neuróticas, daquelas neuróticas como só o Nelson sabia criar. O ladrão boliviano paira como uma ameaça abstrata à ordem e aos bons costumes, durante todo o texto. Abstrata, mas ameaça. Lá pelas tantas, a tragédia explode. O rapaz, que fora preso por uma infração qualquer, fora posto na mesma cela do ladrão. Pior ainda: fugira com o ladrão boliviano.

— Se fosse filho meu, eu matava — berra escandalizada uma das tias.

Numa das apresentações da peça em Porto Alegre, um gaiato gritou na platéia:

— Seria o fim do teatro nacional.

Explosão de riso entre o público, ante o inspirado cavaco do espectador. Mesmo os atores, profissionais tarimbados, deixaram o profissionalismo de lado e tiveram de rir. Enfim, estamos no universo das artes, onde mesmo os comportamentos menos ortodoxos são permissíveis e saudados com gargalhadas.

Comentei, na crônica passada, a ocorrência de homossexualismo na Igreja Católica e mesmo entre santos, devidamente canonizados pela Santa Sé. O problema parece ser bem mais grave do que parece. Segunda-feira última, o Vaticano declarou que homossexuais não devem ser ordenados padres. A recomendação, a primeira a ser feita pela Igreja após vários estudos apontarem o grande número de padres gays, foi transmitida pelo porta-voz do papa João Paulo II, Joaquín Navarro-Valls. Não faltou o gaiato para alertar:

— Seria o fim da Igreja Católica.

Foi mais ou menos o que disse, em outras palavras, Richard Sipe, ex-padre e psiquiatra. Ex-padre é o que dizem os jornais, pois ex-padre, do ponto de vista canônico, não existe. Um leigo, quando é ordenado sacerdote, ouve as palavras rituais: sacerdos in aeternum. Ou seja, sacerdote para a eternidade. Pode abjurar suas crenças, cometer apostasias ou heresias, casar ou largar a batina. Mas continua sendo sacerdote, segundo a Ordem de Melquisedec. Suas mãos não perdem o poder de transformar o pão e o vinho em carne e sangue. Enfim, deixando de lado estas firulas teológicas, padre Sipe adverte:

— Se forem retirados da Igreja todos os homossexuais, o número de padres diminuirá tanto que o efeito sobre a Igreja será como o da bomba atômica.

Segundo Sipe, que estuda a vida dos padres há 25 anos e já escreveu três livros sobre o assunto, isso significaria o afastamento de pelo menos um terço dos bispos do mundo. “Além disso, muitos santos e papas eram homossexuais”.

Para o reverendo Donald B. Cozzens, de Ohio, “quem conhece muito bem os padres raramente discorda que o sacerdócio é ou está se tornando uma profissão gay”. Segundo o reverendo, o número de homossexuais é tão grande nos seminários que esses lugares estão se tornando desconfortáveis para heterossexuais.

Nada que não fosse previsível. Os hormônios fervem e nos seminários não há mulheres. (Como também nos quartéis, mas isto são outros quinhentos). A Igreja está pagando hoje um grave erro cometido séculos atrás, ao esboçar a figura de um Cristo assexuado. Há alguns anos, na Folha de São Paulo, levantei a hipótese de Cristo ter sido homossexual. O que não seria improvável, a partir dos escassos dados que temos de sua vida. Escândalo entre os leitores católicos.

Um padre, que dizia dirigir uma instituição orientada para ex-gays, telefonou-me para externar sua indignação. Dizia ter recuperado muitos homossexuais e considerava que meu artigo sabotava seu trabalho. Externei de volta minha estupefação. Ex-padres, apesar da contradição canônica que a expressão implica, eu conhecia. Ex-gays, nunca vi.

Admitamos então que Cristo fosse heterossexual e se relacionasse com as mulheres de seu entourage. Escândalo também. Para os doutores da Igreja Cristo não teve mulheres. Só restam então duas hipóteses, nada dignificantes para o deus encarnado: ou era um masturbador contumaz, ou era doente. Ao extirpar a sexualidade do Cristo, os padres o mutilam como homem. O Deus católico assume a carnalidade humana, exceto no que ela tem de mais carnal, o sexo. Não se deve expulsar a natureza pela porta, já diziam os antigos. Ela volta pela janela. No caso do clero, está voltando a galope.

Nietzsche percebera muito bem esta natureza perversa da Igreja. Em sua “Lei contra o Cristianismo”, decreta:

Artigo Primeiro — É vício qualquer tipo de antinatureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não temos razões, temos a casa da correção.

E no Artigo Quarto: a pregação da castidade é uma pública excitação para o antinatural. Desprezar a vida sexual, enxovalhá-la com a noção de “impuro”, eis o verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida.

Pregar liberdade sexual nos dias que passam virou lugar comum, pelo menos no Ocidente. A Igreja terá de aceitar que seus ministros têm sexo ou terá de continuar fingindo que não vê o óbvio, o sacerdócio virando ofício para gays. Do ponto de vista canônico, o Vaticano tem razão. Ao ser ordenado, entre outros votos, o padre faz o de castidade perpétua. Este voto, segundo o cânon 1088 do Código de Direito Canônico, priva inclusive da possibilidade de casar, constituindo impedimento dirimente do matrimônio. Por estas razões, o voto perpétuo de qualquer religioso deve ser inscrito no livro de batismos.

Que o cumpra então, enquanto tiver fé. Há alguns anos, um amigo narrou-me uma tragédia das boas, daquelas sem volta. Um sacerdote já entrado nos 60 anos, que a havia perdido, debruçou-se sobre suas mãos e começou a chorar:

— Eles roubaram minha vida.

Roubaram mesmo. Mas se roubaram, é porque deixou-se roubar. “Te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno”, diz Mateus. Orígenes, teólogo e autor de Contra Celso, levou as Escrituras ao pé da letra e cortou o seu.

Ora, nem a Igreja crê em inferno hoje. Ou pelo menos desistiu de brandi-lo como ameaça. Em vez de cortar o membro, melhor cortar a fé. É mais saudável. E menos indolor. Se uma crença entristece a carne, é simples: basta jogá-la na lata de lixo. Uma vida roubada jamais será devolvida.


 

Sobre Roseana, Zé Dirceu e Paiakan

15/3/2002

 

Ufanem-se os brasileiros. Já temos moeda forte. Pelo menos é a primeira conclusão que se pode tirar do 1,3 milhão de reais encontrados na empresa da governadora Roseana Sarney, empilhados em flamantes 26.800 notas de 50. No governo Sarney pai, o cruzado estava tão desmoralizado que as falcatruas eram todas em dólar. Dez entre dez corruptos preferiam as verdinhas. Nos dias de Collor, P.C. Farias jamais se abaixaria para catar cruzeiros da sarjeta. Hoje, já se aceita moeda nacional. Doleiro virou coisa obsoleta. Nem tudo está perdido. O milhão do Maranhão é um voto de robusta confiança no Plano Real e na política econômica de Fernando Henrique Cardoso.

A Sarney virou arara. Nem o presidente da República, nem o ministro da Justiça a haviam avisado previamente do mandado de busca e apreensão. Cacoete de coronela, acostumada a comprar juízes bons e baratos. A mesma psicologia do bicheiro carioca Castor de Andrade. Quando foi estourada sua fortaleza, reclamou: “Que espécie de polícia é essa que não me avisa de uma devassa em meu escritório?” Governadores e bicheiros em muito se parecem.

Não menos indignados ficaram as altas autoridades do Planalto com a indignação da governadora. O diretor-geral da Polícia Federal, Agílio Monteiro Filho, foi curto e grosso: “Cumprimos ordem judicial. Ordem judicial não se discute. Toda ordem emanada da Justiça Federal tem que ser cumprida pela Polícia Federal”. No mesmo tom se pronunciou Marco Aurélio Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal: “A Polícia Federal cumpriu um mandado, e ordem judicial é para ser cumprida”.

O milhão do Maranhão fez cair no esquecimento um bem sucedido golpe no bolso do contribuinte. Perfeitamente legal e com o jamegão de ministros. A Comissão de Anistia, criada com o intuito específico de recompensar regiamente os marxistas que um dia quiseram transformar o país em uma grande Cuba, aprovou a concessão de indenização de R$ 59,4 mil para o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. Esta é a versão da Comissão. Membro do grupo terrorista ALN (Aliança Libertadora Nacional), José Dirceu recebeu treinamento em Cuba. Preso por sua participação na luta armada, foi trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, seqüestrado por outro grupo terrorista, o MR-8. O atual presidente do PT, além de escapar da prisão a qual fora legalmente condenado — mediante outro crime, um seqüestro — recebe ainda uma gorda compensação pelos anos em que degustou o amargo caviar do exílio.

Para esta decisão, não cabe mais qualquer tipo de recurso. O dinheiro será pago em uma única prestação. Após a assinatura da portaria pelo ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira — não por acaso, também ex-terrorista da ALN, codinome Matheus — o processo segue para o Ministério do Planejamento, responsável pelo pagamento. Tudo em família. Ou melhor, tudo em quadrilha. Primeiro os meus, diria Matheus. Durante a ditadura, as “expropriações” exigiam metralhadoras. Agora, basta uma caneta. Antes, implicavam risco de prisão e de vida. Hoje, são concedidas como honra devida a heróis.

A expectativa do presidente da comissão é de que pelo menos 40 mil pessoas apresentem requerimentos. O valor das indenizações pode ser de até R$ 100 mil, isso sem falar numa pensão especial mensal de até R$ 10,8 mil — maior salário que pode ser pago com recursos da União. Suponhamos que os membros da Comissão de Anistia sejam uma mãe para com os outros 40 mil coitadinhos, como o foram com o terrorista foragido José Dirceu. Para efeitos de cálculo, arredondemos esta simpática indenização para 60 mil reais. Suponhamos que seja esta a indenização média a ser recebida pelos 40 mil que um dia tentaram transformar o país numa ditadura socialista. Se ainda conheço aritmética, isto dá ... 2,4 bilhões de reais. Sem falar na pensão especial mensal de até R$ 10,8 mil. E ainda há ingênuos que pensam que o crime não compensa. Para uma imprensa cúmplice, melhor enfocar os magros caraminguás achados no cofrinho da Roseana. Para não assustar o contribuinte.

“Ordem judicial não se discute. Toda ordem emanada da Justiça Federal tem que ser cumprida pela Polícia Federal”, diz o diretor da Polícia Federal. Exceto, bem entendido, quando o alvo da sentença é “o homem que pode salvar a humanidade”. como foi definido pela imprensa americana o cacique Paulo Paiakan. Por ter estuprado, junto com sua mulher Irekran, a estudante Sílvia Letícia, foi condenado a seis anos de prisão. O estupro ocorreu em 1992, mas até hoje o criminoso vive livre como um passarinho em sua reserva. O juiz José Torquato Araújo de Alencar expediu carta precatória de prisão do criminoso, que chegou na sexta-feira, dia 8 de maio, Dia Internacional da Mulher, à Vara Federal de Marabá. (Entre milhares de manifestações feministas no Dia da Mulher, não houve uma sequer que pedisse punição ao índio, em desagravo à menina violentada). A Vara ordenou seu cumprimento pela Polícia Federal e já preparou uma penitenciária, em Marabá mesmo, para receber o hóspede ilustre. Paiakan avisou que não se entrega. Jader Barbalho estende gentilmente as mãos quando lhe apresentam um par de algemas. O homem que pode salvar a humanidade, não. Refugiado na aldeia Aukre, o cacique estuprador conta com a proteção de seiscentos guerreiros (sic!) caiapós. Segundo os líderes indígenas, sua prisão representaria uma desmoralização para a tribo e colocaria toda a comunidade indígena sujeita “às leis da cidade”.

Temos então as “leis da cidade”. Quais seriam as outras? As da selva, onde estupro é bom, digno e justo? O cacique Akioboro, foi taxativo: “Eu já disse, vou repetir e você pode escrever aí que o Paiakan não será preso por ninguém da polícia. E quem tentar entrar armado, seja na aldeia Aukre ou em qualquer outra aldeia nossa, terá de enfrentar nosso povo numa guerra. Vai morrer muita polícia e índio.”

Paiakan tem ainda quatro anos de pena a cumprir, em prisão fechada. Sobre esta decisão não cabem recursos, pois a sentença já transitou em julgado. “Ordem judicial é para ser cumprida”, rosna o presidente do Supremo Tribunal Federal. Será? Ou a mais alta autoridade da magistratura nacional será desmoralizada por um bugre? Quem viver, verá.


 

Véu Faz Vítimas

22/3/2002

 

A realidade é avessa à ortodoxia. Os fatos são teimosos e, não raro, tratam de desmoralizá-la.

Aconteceu na Arábia Saudita, em 79, em uma copa de futebol. O fato foi relatado no jornal Al Medina, de Riad. Abdul Rahman El Otaibi, rico comerciante, assistia o jogo entre a equipe Ittihad, de Djeddah, e a equipe Ahli, de Riad. Abdul torcia por Ittihad, sua mulher preferia encorajar os Ahli. Para desgraça da senhora El Otaibi, seu time marcou um gol. Ela vibra e Abdul pronuncia a fórmula ritual:

— Em nome de Alá, eu te repudio.

O jogo continua. Os Ahli fazem um segundo gol, a senhora Otaibi não se controla e aplaude seu time. Abdul repete a fórmula:

— Em nome de Alá, eu te repudio.

Para suprema desgraça da senhora Otaibi, em uma dessas jogadas que nem mesmo um ficcionista ousaria criar, quis o destino que os Ahli marcassem um terceiro gol. Ela vibra. Abdul pronuncia pela terceira vez a fórmula fatídica:

— Em nome de Alá, eu te repudio.

Ora, no Islã basta que o marido repudie a mulher três vezes para que o divórcio se consume. A partir do terceiro gol, a senhora Otaibi estava no olho da rua. O caso acabou na corte corânica de Meca. Para sua sorte, em algum lugar disse Maomé: “o divórcio não será válido se for pronunciado sob o império de cólera extrema”.

Em severo editorial, o Al Medina anatematizava não o Corão, evidentemente, mas o futebol: “até quando nossa obsessão pelo futebol continuará a destruir o caráter sagrado de nossa família?”

A Arábia Saudita, mais que um país, é um imenso poço de petróleo de propriedade de uma família, a dos Saud. Daí, Saudita. Algo assim como se o Brasil tivesse como nome Sarneylândia (Alá nos proteja!). Os Estados Unidos podem estar fazendo guerra no Afeganistão, mas os valentes que jogaram dois Boeings no World Trade Center procedem do país da família do poço de petróleo. Bin Laden é saudita, são sauditas os quadros da Al Qaeda, são sauditas as madrassas que em todo Ocidente pregam o ódio ao Ocidente.

Faço um rápido desvio para a Nigéria, depois volto ao poço de petróleo dos Saud. Comentei, em crônica passada, a condenação ao lapidação de Safiya Husaini. Crime? Ter cometido adultério, embora já fosse divorciada. A sentença deveria ser executada dia 8 de março. Safiya teve a ventura de comover a opinião pública européia e mais de meio milhão de assinaturas (535.772 até as 13h30m de ontem) foram apostas, só na Espanha, a uma carta da Anistia Internacional, pedindo ao presidente Olusegun Obasanjo a suspensão da sentença. Ontem ainda, El País noticiava que o governo de Lagos havia declarado inconstitucional a sharia, a lei islâmica em que se fundamenta a sentença.

Problemas à vista: esta declaração pode elevar a tensão no norte do país, onde a população islâmica é majoritária e prefere a barbárie. Estão previstos conflitos em 12 dos 19 Estados onde está implantada a sharia. Segundo o atual ministro da Justiça, Kanu Agabi, esta lei viola os compromissos constitucionais nigerianos a respeito dos direitos humanos e da não-discriminação em função de religião ou sexo. Ora, em junho do ano passado, mais de um milhão de muçulmanos participaram de uma manifestação, na cidade setentrional de Kano, exigindo a implementação da sharia. Um milhão de pessoas exigindo a preservação do direito de matar mulheres a pedradas. O que deve proporcionar-lhes, certamente, um imenso prazer. Árdua é a luta contra a estupidez.

Falar nisso, volto à Arábia dos Saud, aquele país de valentes que jogam fanáticos pilotando aviões contra prédios que abrigam civis. Mais uma vez, a realidade manifestou seu asco à ortodoxia. Lá existe, é bom lembrar, uma exótica polícia, a da Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício. No Ocidente, o Estado é mais cauto. A polícia busca a prevenção de crimes, que são definidos com precisão pela lei. Já uma polícia promovendo a virtude, isto é excrescência de Estados teocráticos, onde preceitos religiosos têm força de lei.

Um incêndio irrompeu em uma escola em Meca. Meca é aquela cidade onde milhões de muçulmanos dão sete voltas, a cada ano, em torno a um fragmento de meteorito com 25 cm de comprimento. Na hora da fuga ao incêndio, quinze meninas foram forçadas a voltar para a escola pelos virtuosos policiais promotores da Virtude e Prevenção do Vício. É o que nos conta o jornal Al Iqtisadiya. Motivo: era pecado vê-las sem o véu e a abaya (uma espécie de túnica). Morreram calcinadas.

A exigência do véu no mundo muçulmano decorre de um diálogo, no Corão, entre Maomé e seu cunhado Omar. Diz Omar: “Ó, profeta. Diz a tuas mulheres, diz a tuas filhas e às esposas dos crentes que coloquem um véu sobre seu vestido e assim cubram o rosto da forma mais conveniente, de modo que não possam ser reconhecidas e confundidas com as escravas ou mulheres de maus costumes”.

A fala do cunhado virou dogma. Ocorre que o véu é apenas a ponta do iceberg. Sob o véu, jazem a poligamia, a ablação do clitóris, a escravidão, a venda matrimonial, o abandono ou repúdio (vide o caso El Otaibi), a falta de instrução feminina e a interdição de acesso a empregos qualificados. Para Rafah, jornalista de Abu Dabhi, capital dos Emirados Árabes Unidos, “a emancipação da mulher árabe racharia a hierarquia islâmica”.

A exigência do véu está provocando graves conflitos nos países meridionais da Europa. Na Itália, grupos muçulmanos exigem o direito de uma mulher árabe usar o véu inclusive na carteira de identidade. Na Espanha, recentemente, tomou a primeira página dos jornais o caso de uma menina, cujo pai a proibiu de ir à escola porque não pode usar véu durante a aula. Não bastasse isso, descobriu-se que na Andaluzia e Catalunha centenas de meninas, em sua maioria marroquinas, são vendidas em matrimônios forçados, durante suas “viagens de férias”. Os árabes migram ao Ocidente para matar a fome e querem impor à civilização que os acolhe seus bárbaros costumes.

O episódio em Meca superou todos os confrontos entre a realidade e a ortodoxia. Baitas machos, estes senhores do país dos Saud! Não lhes falta coragem para enfrentar o Grande Satã. Ante o horror a ver um rosto nu, os valentes policiais encolhem o rabo entre as pernas e fazem recuar quinze crianças para uma morte pavorosa nas chamas.


 

“Eu Sou o Que Sou”

29/3/2002

 

“Eu sou o que sou”, dizia Lula, ainda há pouco, em entrevista ao Pasquim:. Provavelmente ele não saiba quem foi o último personagem a fazer afirmação tão enfática. Em Êxodo, Moisés quer saber de Jeová o que dirá aos filhos de Israel quando lhe perguntarem qual é o seu nome. Responde Deus a Moisés: “EU SOU O QUE SOU”. Disse mais: “Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”.

Tendo convivido com comunistas boa parte de minha vida, passei a conhecê-los e a seus reflexos. Não são muito complexos. Diria aliás que são de uma singeleza extrema. O militante, a cada manhã, se olha no espelho, vê sua deficiência maior e sai a jogá-la no rosto de quem não gosta. Os petistas, herdeiros históricos do marxismo, conservam os mesmos reflexos condicionados. Ditatoriais, acusam de ditatoriais quem quer que lhes faça oposição. Condenam a falta de liberdade de imprensa e propõem um conselho de controle da imprensa. Sedentos pela posse do poder, acusam de donos do poder os que lá chegaram antes. Exceto os déspotas que participam da mesma ideologia, é claro.

Outro dia, um destes exemplares xingava o clã dos Sarney. “Eles detém o poder há trinta anos”. Não resisti ao azo e me introduzi na conversa: “Bom, eu conheço um outro que detém o poder há 43 anos”. O petista reagiu como um tigre ferido: “Não podes comparar o Maranhão dos Sarney com a revolução cubana”. Não é fácil, hoje, para os militantes de um partido cujo líder é unha e carne com el Supremo Comandante, xingar a dinastia dos Sarney.

Um simples mandado de busca e apreensão foi o suficiente para demolir a candidatura vazia de Roseana Sarney. Quando a candidata começou a aproximar-se de Lula nas pesquisas, choveram as acusações por parte dos petistas: candidata saída do nada, mito criado pela mídia, Collor de saias, etc. O PT olhou atentamente para seu candidato e atribuiu todas suas deficiências à adversária. Pois Lula surge do nada. De torneiro mecânico vira líder de greves no ABC. As esquerdas universitárias, imbuídas do velho sonho marxista do operariado no poder, guindam-no do dia para noite a candidato à presidência. Do carro de som para o Planalto. Sem passar nem mesmo pela experiência de administrar uma prefeitura. Lula é um líder chocho, feito a martelo, pela USP e pela Igreja Católica. Tão ou mais vazio que Roseana.

Da primeira candidatura para cá, fora uma passagem pelo Legislativo como deputado — passagem da qual não se conhece nenhum momento de brilho — Lula nada acrescentou a seu currículo. Vive de uma aposentadoria obscena, que jamais se preocupou em estender a seus colegas de greve. Durante largos anos, viveu graças aos favores de um empresário. Não temos notícia alguma de que tenha aproveitado seu ócio para estudar. Do alto de seu ego colossal, diariamente alimentado por uma mídia cúmplice, o EU SOU petista, com a modéstia típica da divindade, afirma: “Nenhum candidato é melhor do que EU”, “ME considero o candidato mais preparado de todos”. Sequer domina o vernáculo e pretende assumir a suprema curul do país. Faltou ao candidato entender uma etiqueta básica da democracia. Não cabe a ele, mas ao eleitor, fazer tal afirmação.

Não se pede a Lula um curso universitário. Diploma universitário há muito não rima com inteligência ou lucidez. A universidade brasileira foi o agente difusor da peste marxista no país. É na universidade e na Igreja Católica — e não no operariado — que estão os intelectuais que inflam a vaidade incomensurável deste senhor, que repete chavões marxistas sem mesmo saber o que seja marxismo. O que se pediria, de quem postula a presidência da República, é uma cultura mínima em matéria de história, passada e contemporânea, de economia e teoria política. E experiência administrativa. Isto o candidato não tem. Até hoje as esquerdas são pródigas em contar piadas sobre a falta de cultura de Costa e Silva. Mas Costa e Silva fez Escola Militar, cujo acesso não é para qualquer apedeuta. As esquerdas ignoram solenemente a incultura de seu campeão, cuja incapacidade de ir além da primeira página de um livro foi atestada por fonte insuspeita: Luís Carlos Prestes, o assassino de Elza Fernandes e herói de Lula e Tarso Genro.

Nada como a realidade para desmascarar mitos. Comentando a invasão da fazenda de Fernando Henrique, disse José Serra: “São bolchevistas de segunda classe”. Por bolchevistas de primeira classe, o velho bolche José Serra entende os bolcheviques russos que invadiram o Palácio de Inverno, fazendo a Rússia e o mundo soviético regredir mais de um século em 70 anos. “Agredir a instituição presidencial é agredir o maior símbolo das instituições democráticas”, disse Raul Jungmann, outro bolche de primeira classe. “É uma ação política, violenta, que não pode ser permitida”, disse o ex-assaltante de trens e ex-terrorista e hoje ministro da Justiça Aloysio Nunes Ferreira, codinome Mateus. “Estão contribuindo para o aumento da violência no país”, disse outro velho bolche, hoje líder do governo no Senado, o senador Arthur da Távola. “Não contem com o partido para nenhuma aventura política ou medida fora da lei”, avisou o bolche José Dirceu, companheiro de armas do terrorista Aloysio Nunes.

Mas a pérola coube ao EU SOU do PT. O partido esperou um cadáver providencial, que cairia como uma benção neste período eleitoral. Não ocorrendo mortes, EU SOU se manifestou: “Sou contra a invasão casa do presidente, como sou contra a invasão da casa de qualquer cidadão brasileiro”. Que tal comunicar esta posição ao camarada Olívio Dutra, que acaba de afastar o comandante de uma ação que visava coibir a invasão da barragem de Barra Grande, no Rio Grande do Sul?

Lula e seu partido sempre foram coniventes com invasões de terras, terrenos e prédios públicos. A invasão de propriedades alheias elegeu deputados e vereadores petistas. Pretenderá Lula que, do dia para a noite, alguém possa dissociar o PT do MST? Se pretende, está subestimando a memória do eleitor.

Este personagem inculto jamais administrou a folha de pagamento de uma prefeitura do interior. Vive há mais de vinte anos de futricas e mordomias. E considera-se nada menos que o mais preparado dos candidatos a gerir a complexa economia de um país problemático de quase 200 milhões de habitantes. Para vergonha de nossa universidade, conta com o apoio da elite acadêmica da nação. Para quem cultiva ainda o bom senso, a hipótese de que seja eleito é uma vergonha.

Mas vergonha mesmo é que por três vezes tenha sido segundo colocado em eleições presidenciais. Desta mancha indelével, o Brasil jamais se redimirá.


 

Terror Explode Ventres

5/4/2002

 

O leitor deve estar lembrado da chamada guerra no Afeganistão, suponho. Foi ontem, em verdade ainda não terminou. Mas curta é a memória das gentes e rápida a circulação dos jornais. A guerra, agora, é no Oriente Médio. Se o leitor ainda lembra da penúltima, deve também lembrar daqueles rostos sorridentes, dentes lindos, que inundaram as páginas dos jornais, após o desembarque dos soldados americanos no Afeganistão. Pelo que se podia deduzir das fotos, dentista morreria de fome naquelas plagas. As melhores dentaduras do país, escolhidas a dedo pelos fotógrafos, assumiram as primeiras páginas dos jornais. A mensagem era clara: o Ocidente, amparado em seu poder bélico, devolvia o sorriso às pobres mulheres muçulmanas. Os malvados taleban, que furtavam às mulheres o sorriso, tiveram suas organizações desmanteladas.

As lágrimas derramadas pela destruição do World Trade Center já secaram, o Afeganistão saiu das primeiras páginas e as dentaduras esplêndidas também. Os taleban saíram de cena e seus líderes buscam refúgio em países cúmplices muçulmanos. O leitor viu as últimas fotos do Afeganistão? Mulheres de burka nas ruas, ou caminhando por entre tumbas no deserto. Os opressores sumiram. Mas a burka voltou. Para ficar.

Shadi Tubasi, 22 anos, 14 mortos. Abdel Baset Odeh, 25 anos, 22 mortos. Rafat Abu Dyak, 20 anos, seis mortos. Mohammed Daraghmeh, 18 anos, nove mortos. Esta é a lista dos nomes, idades e feitos dos últimos palestinos suicidas, que se envolvem em bombas e se explodem em meio a judeus em Israel. A idade é significativa. O mais velho tem 25 anos. Para a revolução, usaremos os jovens: são estúpidos e entusiastas, dizia o escritor argentino Roberto Arlt.

Uma estupidez incomensurável, por si só, não explica estes gestos. É preciso um entusiasmo também incomensurável. Estes pobres diabos palestinos que se convertem em bombas humanas são programados desde o berço para o martírio. Crêem que, se morrerem matando, merecerão o paraíso e serão recebidos por setenta virgens. Um deles, ao saber que tinha sido escolhido para morrer, chorou de felicidade. Suas famílias recebem gordas recompensas de dirigentes e organizações árabes, pelas mortes dos filhos mártires. Há Estados financiando o terror. Ontem ainda, Saddam Hussein aumentou de U$ 10 mil para U$ 25 mil a doação enviada em dinheiro aos parentes dos homens-bomba. Isto sem falar no prestígio decorrente do massacre.

Terroristas, dirá o leitor. Terroristas? Não é bem assim. Há quem discorde. A Organização da Conferência Islâmica (OCI), que encerrou nesta quarta-feira sua reunião ministerial em Kuala Lumpur, Malásia, emitiu uma dura condenação a Israel e ao terrorismo em geral. Mas na hora de definir o que é um ato terrorista, rejeitou uma proposta de condenação ao Hamas e à Jihad Islâmica, cujos membros se explodem em atentados contra civis israelenses. Não bastasse esta rejeição, na segunda-feira os ministros assinaram um texto que elogia a “abençoada intifada” dos palestinos.

A matança mútua tem-se intensificado nas últimas semanas em Israel. (Qualquer dia, ainda bate em números as carnificinas de fim-de-semana em São Paulo). Como sempre acontece nas crises no Oriente Médio, a guerra está se transferindo para a Europa. Sinagogas já foram incendiadas na França e Alemanha. Se o Ocidente dá de ombros quando negros massacram negros na África negra, massacre em Israel é diferente. É coisa de brancos e provoca neste mesmo Ocidente profundas apreensões. Ocidentais se perguntam quando esta agonia terá fim.

Não há respostas à vista. Mas algo se pode afirmar. O mapa da Palestina é um absurdo monstrengo geopolítico. Enquanto Israel não recuar de seus encraves em território palestino, não se pode pensar em paz. Se homens-bomba são louvados como heróis, se suas famílias são regiamente recompensadas pela dor provocada a outras famílias, se candidatos ao suicídio choram de felicidade, se a intifada é abençoada, se estadistas se recusam a chamar terrorista de terrorista, o massacre jamais terá fim.

Wafra Idrees, 28 anos, um morto. Dareen Abu Aisheh, 21 anos, três soldados feridos. Ayat Akhras, 18 anos, dois mortos. De novo, os jovens entusiastas e estúpidos. Desta vez são mulheres. A mais velha nem chegou à metade da vida. O terror palestino conseguiu inovar: surge, neste ano da graça de 2002, uma nova palavra na mídia, mulher-bomba. Não poderia faltar nesta mesma mídia uma feminista tardia e de poucas luzes, suficientemente irresponsável para louvar a nova conquista de seu sexo.

A sale besogne coube a Marilene Felinto, da Folha de São Paulo. Eterna defensora das piores bandeiras que o engenho humano concebe, a colunista considera que é pelo suicídio que as muçulmanas se igualam aos homens. “As mulheres-bombas muçulmanas são a glorificação do suicídio pelo estoicismo, pelo auto-sacrifício — elas agem no intuito de que a justa defesa do bem público prevaleça sobre o direito do agressor ao corpo e à vida”.

Ora, no mundo muçulmano, nem pelo suicídio a mulher se iguala ao homem. A jornalista demonstra desconhecer a história de ontem. Para o sacrifício, até mulher serve. Aconteceu na guerra da Argélia: na hora de carregar bombas para matar franceses, a mulher teve um papel a desempenhar. Finda a guerra, voltou para a cozinha fazer cuscuz. Hoje, se não usar véu, corre o risco de ter o rosto desfigurado para sempre com ácido. Como as afegãs. Enquanto serviam como execração dos taleban, exibiam seus belos dentes. Derrotados os taleban, voltam a esconder o rosto na burka.

Fanatismo e ignorância andam sempre de mãos dadas. A insipiência da jornalista é tamanha, a ponto de falar em “quilos de dinamite que carregam por baixo das sete saias do xador (sic!)”. Ora, o chador é usado pelas iranianas. Consiste em uma capa preta que esconde todo o corpo e deixa o rosto descoberto. Foi proibido temporariamente pelo xá Reza Palhevi e nada tem a ver com palestinas.

Gerar mortes, ao longo da história, sempre foi ofício masculino. Gerar vida, por natureza e definição, é atributo feminino. Os terroristas palestinos, em sua insânia, passaram a usar ventres como bombas. Até aí, nada de espantar. Terror não tem ética nem limites. O que causa espécie, em um jornal que se pretende defensor dos direitos humanos, é ouvir uma jornalista glorificando o terror. Logo agora que o terror passou a explodir mulheres.


 

Cristo em Meio ao Tiroteio

12/4/2002

 

Nestes dias em que jornalistas de verbo fácil vestem as palestinas com o chador das iranianas, pouco espanta que os jornais tenham feito Cristo nascer em Belém. Em toda grande imprensa brasileira, lemos que 200 ou mais atiradores palestinos estão refugiados na Basílica da Natividade, em Belém, “onde segundo a tradição cristã, Cristo teria nascido”. E não só na imprensa tupiniquim. Se você pegar o Aftonbladet sueco, o Corriere della Sera italiano, o Monde ou o Libération franceses, o El País espanhol, enfim, qualquer jornal do norte ao sul da Europa, lerá que a igreja da Natividade assim se chama porque lá nasceu o Cristo. Uma estrela de prata com 14 pontas foi assentada no chão da basílica pelos franciscanos em 1717, com a inscrição: “Aqui nasceu Jesus Cristo, da Virgem Maria”. Já não basta fazer o nazareno nascer pela partenogênese, como certos pulgões da lavoura. Pretende-se agora que tenha nascido em Belém.

É uma inverdade muito conveniente nos dias que correm. Aqueles santos mártires palestinos, que não hesitam em explodir-se a si mesmos em defesa de seus nobres ideais — desde que levem outros juntos —, refugiam-se da sanha do Exército de Israel no mesmo local onde nasceu o Deus-menino, perseguido pelos esbirros de Herodes. Ao buscar refúgio no local onde nasceu a criança perseguida, os palestinos introduzem na dança macabra uma terceira parte, a Igreja de Roma, que até agora nada tinha a ver com o baile. O Vaticano já solicitou inclusive que Israel “respeite os acordos para proteger os lugares santos”, anunciou o porta-voz do papa, Joaquín Navarro Valls.

Que a Igreja considere santo um lugar onde plantou um templo, entende-se. Para reforçar a lenda, criou até mesmo uma Praça da Manjedoura. O que não se entende é que a grande imprensa afirme que Cristo nasceu em Belém. Não é concebível que jornalistas de todo o Ocidente jamais tenham ouvido falar dos Evangelhos, onde Cristo é chamado o tempo todo de nazareno. Só nos resta atribuir a mudança de local a um evidente propósito de manipular emoções.

Evangelhos quer dizer boas novas, boas notícias. Os evangelistas são os primeiros jornalistas da era cristã. Se é ofício dos profetas fazer profecias, o do jornalista é relatar fatos. E o fato inconteste, aceito pelos historiadores, é que Jesus nasceu na obscura Nazaré, pequena e desconhecida cidade da Galiléia. Nos Evangelhos, é chamado o tempo todo de nazareno. Em sua cruz, Pilatos manda inscrever: “Jesus nazareno, rei dos judeus”. Verdade que Mateus escreve: “Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes...” No fundo, quis adaptar o nascimento a antigas profecias.

Segundo Renan, Nazaré não é citada nem no Antigo Testamento, nem por Josefo, nem no Talmude. Além do mais, dissera Miquéias: “Mas tu, Belém Efrata, posto que pequena para estar entre os milhares de Judá, de ti é que me sairá aquele que há de reinar em Israel”. Como seus colegas hodiernos, Mateus trazia no sangue esta tendência do jornalismo contemporâneo, de adaptar os fatos à visão que se tem do mundo. A realidade que se lixe. Enquanto Nazaré da Galiléia era um vilarejo anônimo, Belém da Judéia portava o prestígio de antigas profecias. Que nascesse em Belém, portanto. Mas por mais pontas que tenha a estrela de prata dos franciscanos, nazarenos nascem em Nazaré.

Se a Igreja romana instalou por conta própria a manjedoura em Belém, uma imprensa laica não tem razão alguma para assmuir as falsificações vaticanas. Outra é a razão de aderir a este embuste: é conveniente que Cristo tenha nascido lá, para que se transforme em vítima perseguida o terrorista palestino.

Se há horas em que convém atribuir a Cristo o que dele não é, surge também aquela em que convém retirar de Cristo o que a ele pertence. Após os ataques do 11 de setembro, disse George W. Bush no Congresso americano: “Todas as nações, em todas as regiões, agora têm uma decisão a tomar: ou estão conosco ou estão com os terroristas”. Traduzindo: ou estão conosco ou estão contra nós. Bush foi imediatamente taxado de arrogante, nazista, fascista e outras tantas daquelas gentilezas em que os jornalistas são pródigos quando querem satanizar alguém. Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de Jimmy Carter, vai mais longe: “Isto é leninismo”. Segundo Brzezinski, Vladimir Lênin teria usado uma frase semelhante nos seus escritos: “Quem não está conosco está contra nós”.

Ocorre que aquela frase não é fascista nem leninista. É cristianíssima. Está naquelas reportagens que embasam a cristandade, os Evangelhos. “Quem não é comigo, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha”, diz Cristo em Mateus. A mesma frase é repetida em Lucas. Cristo está no meio do tiroteio. Quando convém esquecer uma frase sua, esquece-se a frase ou se a atribui a Lênin. O que não se pode é atribuir a Bush sentimentos cristãos, por mais fanatismo que tais sentimentos impliquem. Quando é conveniente que nasça em Belém, a imprensa fá-lo nascer em Belém. Se os guerrilheiros palestinos estivessem refugiados em uma igreja em Nazaré, Cristo teria nascido lá, disto não tenhamos dúvidas.

Last but not least, o senador Eduardo Suplicy, sempre tão cauto em suas afirmações, também caiu na armadilha do verbo fácil, no programa inaugural da campanha petista. Garantiu que será “um anjo que dará todo seu sopro” a Lula. Ora, anjos não sopram. Nunca sopraram. Quem sopra é o vento. Ou Jeová. O Deus judeu quando sopra, seja pela boca, seja pelas ventas, gera efeitos tremendos: amontoam-se as águas, as correntes param e os abismos coalham-se no coração do mar. Seu sopro é seu ruah, palavra que em hebraico significa tanto vento como hálito ou espírito. Pneuma, em grego. Ou seja, o Espírito Santo. Que contaminou os apóstolos no dia de Pentecostes, que “começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes dava o poder de se exprimirem”. Pneumáticos (pneumatikoi) eram os apóstolos que colaboravam com Paulo. O pneumático senador, se quiser dar seu ruah a Lula, não pode se pretender anjo, mas divindade. Sem falar que o Vaticano, talvez para prevenir esta tendência petista de criar entidades metafísicas, decretou nesta semana que só três anjos podem ter nome: Miguel, Gabriel e Rafael.

Anjo Eduardo não existe.


 

Nós Também Temos Pedófilos

19/4/2002

 

Além de criar crimes e desastres inexistentes, para consumo do grande público, a grande imprensa tem estimulado a criminalidade no Brasil.

O leitor deve estar lembrado das ameaças de atentados com antraz, logo após o 11 de Setembro. As ameaças eram endereçadas aos Estados Unidos. Mas é claro que a grande e importante nação dos trópicos não poderia permanecer imune à sanha terrorista dos taleban. Mês seguinte, o antraz já era nosso. E outubro foi encontrado um pó branco em um avião da Lufthansa chegado ao Rio. Dia seguinte, uma carta com a bactéria teria sido enviada à correspondente do New York Times no Rio. O então ministro da Saúde, José Serra, sedento de mídia, anunciou um plano para intensificar a vigilância nos correios e aeroportos e uma ação conjunta da Vigilância Sanitária, Receita Federal, Polícia Federal, da Infraero, do Departamento de Aviação Civil e de empresas envolvidas na segurança de aeroportos e aeronaves.

Guerra ao Terror — Nem o Brasil escapa da ameaça das armas químicas e biológicas — mancheteava um jornal do Rio. Pena que não era antraz. Nem no avião, nem na carta.

O leitor deve também lembrar de Lorena Bobbit, que cortou o pênis de seu marido, John Bobbit, em junho de 93, com uma faca de cozinha. Foi absolvida em janeiro de 94 sob a alegação de “insanidade temporária”. No mesmo ano, já tínhamos nossas cortadoras de pênis nativas. Em julho, no Paraná, uma agricultora cortou um testículo de seu companheiro. Como nos EUA nada se perde, tudo se transforma, já em janeiro de 95, John Bobbit lançava seu vídeo pornô Bobby Uncut (Bobby Sem Cortes) na América Latina.

Mais pênis decepados Brasil afora. Em junho, uma dona-de-casa cortava o pênis do marido em Bauru. Em outubro, um evangélico cortou o próprio em Guarulhos, “para não pecar”. Em novembro, em Campo Limpo, um montador de móveis levou 40 pontos no pênis que sua mulher tentara arrancar a unhadas. Em novembro de 96, em Cariacica, uma estudante decepou o do namorado. Em janeiro de 97, em Salvador, uma estudante grávida de oito meses tentou decepar o pênis do seu marido, enquanto este dormia. Vinte pontos. Ainda em janeiro, em Marília (SP), uma mulher cortou 70% do diâmetro do pênis do marido, depois de uma discussão. Em fevereiro, em Pouso Alegre (MG) um pedreiro teve o órgão cortado por um pintor de paredes, companheiro de sua ex-mulher. E por aí vai. O instrumento preferencial é sempre aquele mais à mão das donas-de-casa, a faca de cozinha. Aleluia: nós também temos cortadoras de pênis.

No início dos 90, pedofilia virou crime da moda na Europa e Estados Unidos. Não podíamos ficar atrás. A grande imprensa tratou logo de encontrar um pedófilo dos bons. Em 94, os jornais conseguiram um, o bancário Paulo Sérgio do Espírito Santo. Segundo a Folha de São Paulo, teria feito sexo anal com 80 garotos e mantido “relações amigáveis” com outros 150. Teria ainda um diário com 600 nomes anotados. Segundo o Globo, do Rio, o “tarado” confessara relações com 150 e teria um diário com 560 nomes. Para O Estado de São Paulo, seriam 570 nomes de garotos, todos eles aliciados pelo rapaz. Na Folha da Tarde os nomes eram 580. No Jornal do Brasil, 605. Segundo a Polícia Civil, tentara seduzir 638 garotos nos últimos nove anos, e admitido algum tipo de relação sexual com 230 meninos. Bancário é preso após abusar de 230 meninos — mancheteou a Folha de São Paulo.

De repente, súbito silêncio. Espírito Santo se volatiliza. Revisitei os arquivos da Folha de 1995 a 2001. Silêncio absoluto. Não houve então julgamento do Gilles de Rais nativo? A quantos anos de prisão foi condenado o autor de tantos crimes hediondos, em números jamais vistos no país? Nada consta nos jornais nos últimos sete anos após a “ocorrência” dos crimes. É como se Espírito Santo jamais tivesse existido. Em busca de um pedófilo, a imprensa criou uma lenda em torno a um pobre coitado. Constatado o erro, não mais se fala no assunto.

Mas precisávamos de pedófilos, para equipararmo-nos ao Primeiro Mundo. Ainda em março de 94, surge um providencial foco de pedofilia em plena São Paulo. Duas mães acusam a Escola de Educação Infantil Base, localizada no bairro da Aclimação, de usar seus filhos em filmes e fotos pornográficos. Uma menina e um menino, ambos de quatro anos, teriam sido violentados.

Festa nos jornais, rádio e televisão. Descobriu-se uma casa grande com cama redonda, para onde um perueiro levaria as crianças para orgias. Perueiros bolinavam as criancinhas durante o trajeto. Melhor ainda: havia um local grande com vários quartos com várias camas redondas. Segundo o Instituto Médico Legal, um dos alunos havia sido violentado. As crianças eram despidas pelas “tias” e obrigadas a ver o corpo dos coleguinhas. As “tias” as beijavam na boca. Uma jovem oriental foi descrita por um menino como sendo a mulher que beijava seu corpo nu durante as orgias. As crianças foram filmadas e fotografadas em orgias com adultos nas camas redondas. Os pais do aluno suspeito de ser vítima de abuso sexual são também suspeitos de participar das orgias. Os meninos aprenderam que namorar homem é melhor do que ficar com mulher e brincavam de namoro. As diretoras obrigavam as crianças a assistirem sessões de sexo entre adultos. As crianças tentavam fugir das “tias”, que as obrigavam a beijar as mulheres e homens na casa grande.

Dia 31 de março a escola Base foi apedrejada por moradores e pais de alunos. Dia 1° de abril foi depredada durante a madrugada por moradores da Aclimação. Dia 3, foi saqueada. Os pais suspeitos de participação nas orgias foram presos. Os diretores da escola tiveram de refugiar-se no interior do Estado para não serem linchados. Descobriu-se então que nada ocorrera. Não havia nada. Nem abuso sexual, nem fotos, nem filmagens. Nem casa grande nem quartos com camas redondas. O laudo do IML não comprovava nada.

As criancinhas haviam mentido. Sete pessoas — duas diretoras da escola, uma professora, dois perueiros e os pais de um aluno — tiveram suas reputações e profissões destroçadas. Mas nós também tínhamos pedófilos.

Novo surto de pedofilia inundou a imprensa internacional nos últimos meses, desta vez envolvendo os padres e bispos católicos. Em menos de 30 dias, só em São Paulo sete pessoas já foram acusadas de pedofilia: um padre em Sorocaba, um radialista em Serra Negra, o pediatra Eugenio Chipkevitch, em São Paulo, um cobrador em Teodoro Sampaio e três menores, com idade entre 11 e 14 anos, em Mogi Guaçu. Mais um aposentado em Nova Olímpia, Mato Grosso, outro radialista em Cruz, Ceará, e outro padre em Ouro Preto, Minas Gerais.

Dezembro não está longe. Papai Noel que se cuide.


 

Chirac Vira Anjo

26/4/2002

 

Guinada à direita — este é mais ou menos o resumo das manchetes sobre o primeiro turno das eleições presidenciais na França, realizado domingo último. Por que guinada à direita, se o candidato preferencial dos franceses continua sendo Jacques Chirac, o atual presidente, homem notoriamente de direita? (Uso as palavras direita e esquerda na acepção usual dos jornais).

Nos anos 70, Chirac era tido como extrema direita. Eleito prefeito de Paris, virou direita. Ficava muito mal para a capital da França dos direitos humanos ter como prefeito um político de extrema direita. Chirac candidatou-se então à presidência da República. Venceu, virou conservador. Pois ficaria muito mal para a França dos direitos humanos ter como presidente um político de direita. Ficaria ainda pior para a imprensa, que conseguira vender à opinião pública a idéia de que social-democracia era socialismo. Ao se saudar Mitterrand como socialista, passava-se a mensagem que a França era socialista e que a História, por sua vez, rumava ao socialismo. Isto é, ao antigo socialismo soviético, já em acelerado desgaste na Europa, mas em ascensão na América Latina.

Na segunda-feira passada, com as notícias da ascensão de Le Pen, Chirac se torna o candidato das esquerdas no segundo turno. Se na segunda-feira Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em Paris, definia Chirac como “direita clássica”, já na terça-feira era centro, em editorial do mesmo jornal. Um outro correspondente, Reali Júnior, falava em “presidente conservador”. Márcio Moreira Alves, no Globo, fala em “direita civilizada”. Já não fica bem chamá-lo de direitista. Donc, Chirac é de centro. As novas nuanças que o presidente adquire com as mutações do arco-íris ideológico chegaram até mesmo a convencer sua filha, que ano passado jurava de pés juntos que o pai era de esquerda.

Quem viu as fotos dos jornais de segunda-feira, deve ter lembrado as do 11 de Setembro. Franceses perplexos, boquiabertos, olhando para algo terrorífico à frente. Não era a torre Eiffel desmoronando, nada disso. Mas o placar das eleições. Sismo, terremoto, hecatombe, disseram os jornais. “Estupefação” — escreve Gilles Lapouge — “A paisagem política de ponta cabeça. Os institutos de pesquisa ridicularizados. Todos os jornalistas franceses e estrangeiros (inclusive eu) pasmos”. Ora, o correspondente em questão é bem mais entrado em anos do que eu. Estupefação semelhante não lhe devia ser estranha. No dia 10 de maio de 1981, franceses estupefatos, lá pelas cinco horas da tarde, viam desenhar-se na tela de suas TVs a testa, não de Giscard d’Estaing, mas de François Mitterrand.

Neste 21 de abril, as esquerdas se reuniram na emblemática Place de la Bastille, escandindo slogans como “Non au nazisme”, “Le nazisme ne passera pas”. Acusa-se Le Pen de nazista por ser contrário à permanência de trabalhadores imigrantes ilegais na França. Os jornais subtraem a palavra “ilegais” e Le Pen passa a ser, tout court, contra os imigrantes. Como durante décadas a imprensa vendeu a idéia de que restringir o fluxo de migrantes igual racismo, está montado o silogismo: Le Pen é racista. Seus dias como pára-quedista na guerra da Argélia são agora recordados. Lapouge vai mais longe: “foi um dos que, na Argélia, torturaram”. Sem entrarmos nos méritos ou deméritos de Le Pen: causa perplexidade ver serem debitados em sua conta valores do ativo de um outro senhor, muito querido pelas esquerdas.

No 10 de maio de 81, em vez de protestar na Bastille, as esquerdas festejaram na Bastille a vitória de Mitterrand, um dos poucos franceses a merecer a suprema distinção nazista conferida aos colaboradores de Vichy, a Francisque. Defensor de uma Argélia francesa, reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: “Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política”. Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: “A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra”. Mas racista é Le Pen.

Para o prefeito de Paris, o socialista Bertrand Delanoë, “Le Pen é racismo, é anti-semitismo, é Vichy”. Ora, Le Pen jamais foi condecorado por Vichy com a Francisque conferida aos colaboracionistas. Mitterrand foi. Le Pen é acusado de torturar na Argélia. Mas sobre ele não se tem notícia de envolvimento em episódio algum de tortura. Mitterrand, como ministro do Interior, teve plena consciência das torturas praticadas na Argélia — e hoje confessadas — pelos generais Massu e Aussaresses. E com elas foi conivente. Declara Aussaresses: “Quanto à utilização da tortura, ela não só era tolerada, mas recomendada. François Mitterrand mantinha um emissário junto ao general Massu, o juiz Jean Bérard, que nos dava cobertura e tinha total conhecimento do que se passava à noite, transmitindo as informações para o gabinete do ministro, em Paris.”

Mas Mitterrand se professava socialista. Todo seu passado nazista se anula, toda sua conivência com a tortura é esquecida, diante de sua nova profissão de fé.

Desde longa data, Chirac vem sendo acusado de graves casos de corrupção. Em seus 18 anos à frente da Prefeitura de Paris, teria recebido propinas para favorecer licitações de empresas que construíam moradias populares na periferia da capital. Com recursos do erário, financiou viagens particulares suas e de seus familiares. Alegando sua condição de presidente, escapou de todas as investigações judiciais. Até domingo passado, a rede TV Canal Plus produzia o quadro do “Super Menteur” (Super Mentiroso), marionete inspirada em Chirac. Após os resultados das eleições, o quadro foi suspenso. O Canard Enchaîné, jornal satírico que jamais poupou Chirac, na edição da última quarta-feira recomenda votar em Chirac. Chirac vira anjo protetor das tradições republicanas.

Chirac ganhará as eleições do segundo turno, com o apoio das esquerdas que o denunciavam como corrupto contumaz. As esquerdas ganharam a guerra semântica, costumo afirmar. Estas eleições na França deixam claro uma tendência esboçada desde a affaire Jörg Haider na Áustria e a vitória de Berlusconi na Itália. Democracia não é mais aquele regime em que os cidadãos, mediante eleições livres, escolhem como representantes quem lhes dá na veneta. Democracia, hoje, só pode eleger políticos de esquerda.

Se os eleitos não são de esquerda, temos uma ameaça à democracia. Hoje, na Europa, quem não for de esquerda é racista, fascista ou nazista.


 

Le Pen Reelege Chirac

3/5/2002

 

Não há manifestações a favor de alguém, dizia Fernando Pessoa, em um pequeno ensaio intitulado A Ilusão Política das Grandes Manifestações Populares. “Todas elas são contra os que estão contra esse alguém. (...) Quanto maior a manifestação, mais fraco está o visado; maior se sente a força que se lhe opõe”. Com sua lucidez implacável, o poeta português interpretou, no início do século passado, as manifestações de quarta-feira última em Paris. Se as esquerdas estão conclamando os eleitores a fechar com seu novo líder, Jacques Chirac, as manifestações do Primeiro de Maio não são a favor de Chirac. Mas contra Le Pen. Se a manifestação reuniu 400 mil participantes em Paris e mais de 800 mil no interior da França, dela se pode inferir a força de Le Pen. O Front National conseguiu reunir apenas vinte mil gatos pingados nas ruas de Paris. Mas não se pode esquecer que teve cinco milhões de votos no primeiro turno das presidenciais.

Toda a manifestação é um corro-a-salvar-te, dizia Pessoa, de quem não pensa contribuir para a salvação senão com palmas e vivas. E mais um kit anti-nazismo, acrescentaríamos hoje. Uma manifestação política, na França, é uma questão de look. O Libération deu a fórmula da “panóplia do aprendiz militante”. Preparar-se para uma manifestação contra a extrema-direita exige um pouco mais de esforços do que ir comprar uma garrafa de leite, diz o jornal. Regras de base: jamais esquecer seu celular, evitar calças novas e munir-se de uma mochila. Um pulôver à mão para o caso de ventos fortes. Se a Marselhesa, ao conclamar os franceses à luta, falava em aux armes, citoyens, os tempos agora são outros: aux panoplies, citoyens. E não esqueça do pulôver na luta contra o nazismo. Pode fazer frio na Place de la République.

Isso sem falar nos demais acessórios inerentes a uma manif: bandeirolas, panfletos e adesivos que, segundo o Libé, devem ser colados na tee-shirt, não longe do coração. (Como é sabido, os franceses têm o coração à esquerda). Para os mais corajosos, o adesivo na testa produz melhor efeito. Este é o grande esforço nacional da Quinta República para conter o avanço do nazismo, já que Le Pen virou sinônimo de nazismo.

Após a Segunda Guerra, para suprir a falta de braços consumidos pelo conflito, os Estados europeus conclamaram trabalhadores do mundo todo para cooperar em sua construção. Acorreram árabes e turcos, latinos e eslavos, chineses e coreanos, enfim, todo um vasto contingente do Terceiro Mundo, condenados em seus continentes ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, a um salário de fome. Se a Europa hoje é rica, sua riqueza se deve em boa parte à mão de obra imigrante. Na época, os imigrantes chegavam à nova geografia pedindo trabalho.

Os tempos mudaram. Os imigrantes viraram legião e passam a exercer pressão demográfica. Hoje, em vez de pedir trabalho, chegam exigindo direitos. O primeiro a ser invocado, é o de permanecer no novo país em situação ilegal. Sem contrato de trabalho, nem visto de permanência ou residência. O conflito não ocorre exatamente com o imigrante, mas com o imigrante árabe, isto é, muçulmano. Fossem apenas as mesquitas que invadem a Europa, isto pouco preocuparia os europeus. Ocorre que os árabes, oriundos de regimes teocráticos, pretendem impor a uma sociedade laica preceitos religiosos.

Na França, Le Pen interpreta a ojeriza do francês médio aos muçulmanos. Expressa o que muito francês sente mas não tem coragem de expressar. Consta de seu programa um maior controle dos fluxos migratórios e a devolução, a seus respectivos países, dos imigrantes ilegais. As esquerdas, durante décadas de propaganda maciça, venderam a idéia de que qualquer restrição a imigrantes é racismo. De racismo a nazismo, o passo a transpor é muito pequeno. Le Pen é pintado como um novo Hitler. Mas, pelo que se viu no 21 de abril, nem todos os franceses se deixam influenciar pela propaganda. Daí a votação surpreendente, pelo menos para observadores superficiais. É muito fácil atribuir a Le Pen a pecha de nazista. Já não é tão fácil atribuí-la a seus eleitores. Jamais passará pela cabeça do mais crédulo dos mortais que a França atual abrigue cinco milhões de nazistas.

Domingo, o segundo turno. Jamais um resultado eleitoral foi tão previsível. As esquerdas, derrotadas no primeiro, descarregarão seus votos em Chirac, que só permanece a salvo das acusações de corrupção graças à sua condição de presidente. Os deuses decidiram honrá-lo com um presente: seu principal adversário é seu melhor cabo eleitoral. Os mais delicados pretendem votar com luvas. Ou tapando o nariz. Como o voto é secreto, quem se aproximar de uma urna com luvas ou com pregador de roupas no nariz, arrisca tê-lo anulado. As luvas ou o nariz tapado ficarão no campo da retórica, este produto de exportação por excelência da intelectualidade gálica.

Na segunda-feira, dois homens acordarão felizes. Chirac, por ter conquistado com folga uma reeleição, graças a seu grande eleitor, Le Pen. Com a reeleição, mais cinco anos de impunidade. Le Pen também se espreguiçará banhado em felicidade. Se eleito, a voz das urnas não seria respeitada pelas esquerdas. Os problemas que hoje Berlusconi enfrenta na Itália seriam café pequeno diante do que o futuro lhe reservaria numa França conflagrada. Melhor continuar na privilegiada posição de grande opositor. Se houve um grande derrotado nestas eleições, foram as esquerdas que, exceto em 1969, jamais haviam sido alijadas de um segundo turno na França.

Como pano de fundo desta derrota, o Nove de Novembro de 89. Neste nosso amnésico Brasil, talvez ninguém mais lembre do que ocorreu no Nove de Novembro. Foi o dia glorioso entre os dias da queda do Muro do Berlim. Derrubado o muro, o regime comunista desmoronou junto. Moscou, que hoje anda de chapéu em punho pedindo ajuda ao G-7, não tem mais condições de financiar partidos ou campanhas eleitorais, nem na Europa nem no Terceiro Mundo. Prova disso é o ex-todo-poderoso Partido Comunista Francês, que conseguiu apenas 3,5% dos votos no primeiro turno. Verbas, agora, só com os parcos euros recolhidos com a tradicional venda do muguet, uma florzinha branca, no 1° de Maio.

Mês que vem, nas eleições legislativas, os derrotados irão à forra. Elegerão um congresso de esquerda para contrabalançar a vitória de Chirac. A França manterá sua posição de eterna ambigüidade. É pelo socialismo no Terceiro Mundo, jamais chez elle. Nada de novo sob o sol. Tudo continuará como dantes.


 

Animais Midiáticos

11/5/2002

 

O homem é um animal político — dizia Aristóteles. Isso no tempo da ágora e do areópago. Aristóteles também desenvolveu uma lógica, cujas premissas determinam até hoje qualquer discurso que se pretenda racional. Mas vivemos dias televisivos, de apelo ao irracional, em que a boa lógica não vale um vintém. O homem contemporâneo tornou-se um animal midiático, que aceita sem titubear nem pensar qualquer despautério que emane do vídeo ou que esteja impresso. O que a imprensa afirma ou reproduz, o animal midiático engole e digere.

Ainda há pouco, para justificar sua incultura, Lula declarava que Machado de Assis não tinha curso superior. Não houve uma santa alma, em toda a mídia nacional, que comentasse este despropósito. É como se os jornalistas do país todo desconhecessem a história nossa. Coube ao escritor e professor Deonísio da Silva lembrar que na época de Machado não havia cursos superiores no Brasil. Mas o artigo do Deonísio permanece perdido numa página do Jornal do Brasil. Enquanto isso, milhares de militantes repetem: Machado não tinha curso superior. Portanto, Lula para presidente.

Ainda tentando justificar a incultura do candidato do PT, uma amiga me alegava que inclusive um membro da Academia de Letras, como Sarney, havia sido eleito presidente da República, sem que isso representasse qualquer solução para o país. Tento atalhá-la, ela protesta: me deixa falar. Ora, não posso deixá-la falar. Não posso aceitar uma discussão a partir de pressupostos falsos. Para começar, Sarney não foi eleito presidente, mas vice. Sua fortuna dependeu da morte do titular do cargo. Continuando, não era acadêmico quando se tornou presidente. Mas se tornou acadêmico por ser presidente. Com seu poder de barganha, comprou uma vaga na academia com a mesma nonchalance que comprou uma senatoria no Amapá. Concluindo, pertencer hoje a Academia Brasileira de Letras nada tem a ver com cultura ou talento. Depende de poder, bajulação e ideologia. Mas muita gente continuará repetindo, como um mantra, que o país em nada melhorou com a eleição do acadêmico Sarney. É como se a história fosse um lago raso, sem a profundidade do passado, sem antes nem depois. Tudo é um imenso hoje. Como já disse um professor de história moderninho, toda cronologia é reacionária.

Ou a pedofilia. Em crônica passada, afirmei que basta um crime entrar em moda no Primeiro Mundo, dia seguinte vira epidemia no Brasil. Rádio, televisão e jornais falam em pedofilia, padres pedófilos e o animal midiático toma ares de santa indignação contra o crime de pedofilia. Mas que crime? Não existe crime sem lei que o defina, e não existe lei no Brasil que defina o crime de pedofilia. Temos abuso sexual, estupro, sedução de menor. Mas pedofilia, não. Em sua insciência, o animal midiático não faz distinção entre ética e direito. Se considera algum gesto imoral, conclui que esse gesto deve ser criminoso. Incesto é imoral? Então é crime. Fica desbussolado se alguém lhe diz que, no Brasil, incesto não constitui crime. Qualquer pai ou mãe pode ter relações sexuais com o filho ou filha e, desde que o filho não seja menor ou não seja forçado, a Justiça nada tem a ver com isso e só pode desejar bom proveito às partes. Recentemente, no Nordeste, um pai foi preso por ter relações com a filha. O coitado, em sua ignorância da lei, talvez tenha até assumido a idéia de que estava cometendo um crime.

Que o homem comum ignore tais distinções, entende-se. Surpreendente é ver um Karol Wojtyla contaminado pela incultura ambiente. Mês passado, Sua Santidade afirmava que se a prática do homossexualismo “é justamente considerada como um crime na sociedade civil, não deve haver lugar para ela na Igreja”. Ora, homossexualismo há muito deixou de ser crime no Ocidente. Se formos seguir a boa lógica vaticana, homossexualismo não sendo crime na sociedade civil, então há lugar para esta prática na Igreja. O Papa ainda reafirma: a pederastia é um crime e um pecado. Que a defina como pecado, é seu sumo direito. O cristianismo introduziu no Ocidente a idéia de pecado e o define como bem entende. O copy right é do Vaticano. Mas quem define o que é crime não é o animal midiático que impera em Roma. E sim o legislador. Em verdade, um homem culto e versado em teologia como Wojtyla não padece propriamente de incultura. É seu vezo teocrático, esse ancestral vício da Igreja Católica de manter o Estado sob seu jugo, que se manifesta em suas palavras.

Sinal dos tempos, os animais midiáticos estão proliferando mais que coelhos no cio. Uma nuvem de incultura está descendo sobre as cidades e contaminando as conversações cotidianas. Já tive de ouvir considerações sobre a história do Brasil... a partir da novela Quintos dos Infernos. Há quem discorra com propriedade sobre o Islã só porque assiste ao tal de Clone. Pior ainda, há quem pretenda entender de clonagem porque viu a tal novela. Há ainda os que citam o Fantástico como fonte de seus conhecimentos. Não falta quem pretenda discutir a história recente do Brasil, a partir de um filme sobre Lamarca. Os jornais, em suas chamadas, noticiam os eventos fictícios de uma novela ao lado dos fatos do mundo real. É como se a leitura tivesse sido jogada a um museu de curiosidades históricas e a única fonte de informação contemporânea fosse a telinha.

Os animais midiáticos tendem a se tornar legião. Conversar se torna cada vez mais penoso.


 

Idade Média, volver!

17/5/2002

 

Ano passado, o presidente Daniel Arap Moi, do Quênia, pediu à população do país que se abstivesse de manter relações sexuais durante dois anos para conter o alastramento da Aids. O apelo foi feito depois de o governo anunciar a importação de 300 milhões de camisinhas para prevenir a doença. “Como presidente, tenho vergonha de gastar milhões de xelins para importar essas coisas”, disse Arap Moi. Na mesma época, mais de 2.000 mulheres “medicamente declaradas virgens” foram convidadas para um banquete celebrado em Makoni, Zimbábue, para enfatizar o valor da abstinência sexual como a arma mais importante na luta contra a Aids no país. A cerimônia se tornará um evento anual, para chamar a atenção dos jovens para a necessidade da abstinência sexual como o “único meio de erradicar o mal mortal”.

Coisas da África, não é verdade?

Um jantar estava se aproximando da sobremesa em Riad, Arábia Saudita, quando um esquadrão de policiais barbudos irrompeu na sala. Era a muttawa, a polícia religiosa saudita, que flagrava uma abominável ofensa a Deus. Pois lá estavam sentadas dez pessoas, entre árabes e ocidentais, homens e mulheres, elas ao lado de seus maridos ou de outros homens. Os policiais queriam saber quem era o anfitrião da festa decadente. Um deles disse que mataria sua mulher se a visse sentada perto de outro homem. Após extensas leituras e deliberações, foi decidido que a festa poderia continuar, mas com as mulheres sentadas em um lado da mesa e os homens do outro. Nesta mesma Arábia Saudita, uma mulher já foi presa por estar jantando em público com seu noivo. Só casados podem jantar juntos em público.

Coisas do Islã, não é verdade?

Nem tanto. A atitude criminosa de Arap Moi, que diz envergonhar-se de importar camisinhas, é a mesma de Sua Santidade João Paulo II, que até hoje não aceita o uso de preservativos, condenando assim a uma morte infame boa parte de seu rebanho. A propósito, na África os padres católicos adotaram uma curiosa prevenção contra a Aids. Para evitar o contágio, estupram freiras, que por ofício são supostamente virgens. Pode não ser ético nem legal, mas sem dúvida é eficaz. Quanto à divisão entre homens e mulheres, ela ainda vige nos centros de formação católica, empurrando seus alunos ao homossexualismo. Por enquanto, temos notícias de práticas homossexuais entre padres e seminaristas. Humanas sendo, freiras e noviças não se furtarão aos mesmos prazeres. Apenas são mais discretas.

Que a Igreja de Roma assuma tais práticas, entende-se. Tem suas origens no mesmo caldo cultural misógino que até hoje rege o Islã. Menos inteligível é ver um George Bush preconizando a abstinência como fórmula de combate à Aids. Pior ainda, pretende encorajar a criação de escolas só para meninos ou só para meninas. Se nos últimos trinta anos era comum que o governo recusasse o financiamento desse tipo de escola, que também estava sujeito a processos por discriminação, hoje o governo oferece uma ajuda de US$ 3 milhões para escolas ou salas de aula com separação de sexos. A mudança proposta pelo governo deve resultar na fundação de muitas destas escolas no país. Os EUA, pioneiros em matéria de libertação sexual e igualdade entre os sexos, tendem a voltar às trevas do passado ocidental. Ou, se quisermos, a mergulhar no presente obscurantismo árabe. Ora, fatos passados e recentes nos mostram sobejamente que a separação de sexos favorece o homossexualismo. A comunidade gay, penhorada, agradece.

Brasileiros, temos maus dias pela frente. Com esta mania nossa de importar as piores idéias do Primeiro Mundo — e pior, com décadas de atraso — o país vem patinhando desde o berço. Nestes dias, o Congresso acaba de adotar projeto do ex-presidente Sarney que cria, no serviço público federal, o sistema de cotas para negros. Quando os americanos já concluíram que o sistema de cotas é uma discriminação às avessas e pretendem abandoná-lo, o Brasil a adota. Para prejuízo futuro da população negra: se hoje um jovem negro pode se sentir muito feliz passando por cima de um branco no acesso à formação superior, amanhã experimentará sentimento inverso ao constatar a falta de clientela. Afinal, quem vai confiar em um profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos?

De alguns anos para cá, nossos comunicadores e legisladores vêm sendo pautados pelos Estados Unidos. De tanto conviver com os inimigos taleban, o presidente americano está adquirindo seus costumes. Vemos a separação de sexos como uma excrescência do Islã, quando ocorre no mundo árabe. Proposta por um ocidental, branco e de boa cepa anglosaxônica, se torna subitamente palatável. Brasileiros, tremei: se Bush decide instituir escolas separadas por sexo, não faltarão pedagogos neste país de macacos para defender este recuo no ensino. Mesquitas, nós já temos. Só faltam as madrassas.

Mas o pior está para vir. O Programa Nacional de Direitos Humanos prevê a futura proibição de manifestações que difamem religiões e que incitem ódio contra valores espirituais. Qualquer crítica a religiões ou os ditos valores espirituais, pelo que se depreende do Programa, passará a constituir crime. Alá-u-akbar! Idade Média, volver! Bom dia, Inquisição!


 

Lula Mente

24/5/2002

 

Para o PT, os Estados Unidos constituem o novo império romano. O atentado do 11 de Setembro foi saudado com a mesma alegria com que João de Patmos celebrava o fim de Roma no Apocalipse. Durante toda a sua existência, o partido invectivou os Estados Unidos e viu no FMI a origem de todos os males da humanidade. Mas estamos em ano eleitoral e o PT constata que nem todo eleitor pensa assim. Segunda-feira passada, em Blumenau, Luiz Inácio Lula da Silva fez uma defesa da renegociação do acordo com o FMI e do respeito aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Estranho propósito para o partido que se empenhava, há dois anos apenas, em um esdrúxulo plebiscito para avalizar o calote. Mais estranho ainda para quem chamava de crime, em setembro de 98, a tentativa de acordo com o Fundo, pois seria “apertar mais um nó da corda no pescoço dos brasileiros”. Seria um suicídio se o Brasil recorresse àquele organismo para obter financiamento externo, afirmou Lula. Segundo o candidato, Coréia do Sul, Indonésia, Tailândia e Rússia, que recorreram ao fundo internacional, quebraram. “O FMI não existe para ajudar o país ou ajudar o povo. Existe para ajudar os credores. O papel dele é impor ajustes fiscais, não importe de onde saia o dinheiro”. Ao comentar a possível ida do Brasil ao FMI, Lula reiterou que o Fundo é uma instituição “falida, do ponto de vista financeiro, moral e ético”.

Mudou o FMI ou mudou o candidato? Que o FMI tenha mudado, não temos notícia. Que o candidato mudou, isto ele afirma todos os dias. Devemos então concluir que, uma vez eleito, Lula irá apertar mais um nó na corda no pescoço dos brasileiros? É o que se deduz de suas recentes declarações. Pelo que delas depreendemos, uma vez presidente, iria renovar o acordo com a instituição falida, do ponto de vista financeiro, moral e ético, que levou a Coréia do Sul, Tailândia e Rússia à quebra.

Ainda em 98, o Dr. Guido Mantega, assessor de Lula para assuntos de economia, escrevia: “Ao completar 50 anos de vida, o Fundo Monetário Internacional dá nítidos sinais de senilidade e de incompetência para enfrentar os desafios colocados pela turbulência financeira internacional. Idealizado por John Maynard Keynes em Bretton Woods, para tirar os países de apuros financeiros, o FMI foi desvirtuado e passou de herói a bandido em muitos países emergentes. Atualmente, mesmo os círculos conservadores não poupam críticas ao Fundo. Jim Saxton, do Wall Street Journal, afirmou que o FMI é uma burocracia poderosa, arrogante e muitas vezes contraproducente. O programa fracassado na Rússia e o tumulto que ele causou nos mercados financeiros internacionais dão uma idéia dos efeitos desestabilizantes do FMI sobre a economia internacional”.

Vamos então renovar acordos com o bandido poderoso, arrogante e muitas vezes contraproducente? “Por tudo isso — continuava o Dr. Mantega — não é recomendável que o Brasil se submeta, mais uma vez, aos caprichos do Fundo.” Na época, a versão preliminar do programa de governo de Lula fazia a defesa do princípio de renegociação para o pagamento da dívida externa, mas abrigava também a possibilidade de decretação da moratória. “O governo se reservará o direito de adotar medidas unilaterais que incluem a suspensão dos pagamentos da dívida externa”, dizia o documento.
Na mesma campanha de 98, Lula dizia que se não fosse o MST haveria guerra civil no Brasil: “É o MST que dá dignidade à parcela que estava se transformando em pária da sociedade. Estou muito orgulhoso de receber o apoio dos sem-terra”, declarou sobre a adesão do MST à sua candidatura. Em um encontro do movimento em Vitória, foi encenado um tribunal popular no melhor estilo cubano, condenando à morte traidores como o presidente Fernando Henrique, Antônio Carlos Magalhães e Bill Clinton. A peça terminava com a tomada do Planalto pelo MST e a instauração de um regime socialista, sem menção alguma a eleições. Lula assistiu com gosto à inocente encenação.

Em busca da visibilidade do MST, Lula já comandou um grupo de petistas, em 1997, em uma colheita simbólica de milho na fazenda São Domingos, no Pontal do Paranapanema, para onde o PT levou 50 ônibus com militantes. Para José Dirceu, presidente do partido, “o PT sempre esteve ao lado do MST, participando de todas as suas manifestações.” Em setembro de 95, em Brasília, Lula defendia alto e bom som a invasão de terras. “O fato de os trabalhadores ocuparem terras tem, muitas vezes, gerado violência. Mas tem gerado também a obrigatoriedade de o governo fazer os assentamentos. A ocupação é uma necessidade de sobrevivência dos trabalhadores. Os trabalhadores estão mais do que certos ao ocupar terras que são improdutivas e que são do Estado”, declarou.

Vendo que os ventos já não mais sopram rumo ao socialismo, Lula fala em respeitar acordos internacionais e do MST só quer distância. Ressabiado com as derrotas anteriores, elegeu definitivamente a mentira como estratégia. O PT, ao maquiar o candidato, subestima a inteligência e a memória do eleitor. No que depender dessa massa informe que vê qualquer programa televisivo como fonte de informação, pode até ter sucesso. A mentira sempre rendeu dividendos. Lênin e Stalin que o digam.


 

PT Muda

31/5/2002

 

“A imprensa mudou, os partidos mudaram e eu mudei”, diz Lula. Ora, mudar tem época. O homem que era adulto no pós-guerra, tinha sobrado conhecimento dos crimes do comunismo. Os gulags datam de 1918. As purgas e assassinatos, de 1936. Se permanecia marxista até o final dos 30, no fundo apoiava os expurgos, massacres, assassinatos e gulags. Em 1949, este homem teve mais uma chance de abandonar o barco, a affaire Kravchenko.

Victor Andreïevitch Kravchenko, alto funcionário soviético que havia trocado a URSS pelos Estados Unidos, relatou esta opção em Eu escolhi a liberdade, livro em que denunciava a miséria generalizada e os gulags do regime stalinista. O livro foi traduzido ao francês em 1947 e teve um sucesso fulminante. A revista Les Lettres Françaises publicou três artigos difamando Kravchenko, apresentando-o como um pequeno funcionário russo recrutado pelos serviços secretos americanos. Kravchenko processou a revista, no que foi considerado, na época, o julgamento do século. No banco dos réus estava nada menos que a Revolução Comunista. Em seu testemunho, Kravchenko trouxe ao tribunal Margaret Buber-Neumann, esposa do dirigente comunistas alemão Heinz Neumann, como também o ex-guerrilheiro antifranquista El Campesino, ambos aprisionados por Stalin em campos de concentração. Kravchenko, que perdeu toda sua fortuna produzindo provas no processo, teve ganho de causa. Recebeu da revista francesa, como indenização por danos e perdas ... um franco simbólico.

A partir daquela data ninguém mais podia negar o universo concentracionário soviético. 1949 é a data limite para um homem que se pretenda honesto abandonar o marxismo. Em 56, Kruschov denuncia os campos em seu famoso discurso no 20° Congresso dos PCUS. No mesmo ano, foi invadida a Hungria. O muro de Berlim data de 61. No entanto, até os anos 90, ilustres intelectuais, no Brasil e no planetinha, gabavam-se de pertencer ao partido e a ideologia que matou cem milhões de pessoa ao longo do século passado.

O PT nasce em 1980, sob a égide do socialismo. Em sua árvore genealógica estão o PCB, PC do B e as diversas siglas guerrilheiras que surgiram a partir dos 60, todas financiadas por Moscou, Pequim ou Havana. Em sua gestação estão a CNBB e a ala guerrilheira da Igreja Católica. Ora, em 1980, a nenhum homem medianamente informado era permissível ignorar as feições do marxismo. Mesmo assim, o PT nasce comprometido com o totalitarismo. Até hoje mantém em seus quadros egressos da guerrilha que sonhou transformar o Brasil em uma ditadura socialista. Nasceu senil e nenhum esforço fez para rejuvenescer. Prova disto são as homenagens prestadas por Lula e demais petistas a João Amazonas, morto nesta semana. Amazonas, que iniciou sua carreira de aparatchik sob as ordens de Moscou, optou mais tarde pelo linha de Pequim, para terminar defendendo o tosco e ridículo regime albanês. No Brasil, foi um dos organizadores da guerrilha do Araguaia, aventura irresponsável que levou à morte um punhado de ingênuos.

Este senhor, que a justo título merece o mesmo repúdio que dedicamos a um líder nazista, teve exéquias de herói e seu cadáver foi coberto com a bandeira da tirania que empestou o século. Líderes petistas, comovidos, lhe prestaram preito. “João Amazonas tem um simbolismo muito grande para quem lutou neste país por democracia”, disse Lula, referindo-se ao homem que toda sua vida foi fiel à filosofia que abafou qualquer pingo de democracia, onde quer que se instalasse. (Fernando Henrique e José Serra, rebentos da mesma vergôntea, não perderam a ocasião de render homenagens. Cadáver de comunista ainda rende votos). Neste sentido, o PT não mudou. Continua cultuando os celerados que estão em suas origens. Até hoje, o partido nada disse contra a mais antiga ditadura do planeta. Pelo contrário, Lula costuma refestelar-se junto a Castro.

“É óbvio que Lula mudou, que o PT mudou”, me escreve um irado leitor, a respeito da crônica passada. Lendo os jornais da semana, tenho de rever meus conceitos. De fato, em algo Lula e o PT mudaram. Se não no essencial, pelo menos na superfície. “Lula defende Quércia”, diz a Folha de São Paulo. O PT, que denunciou as falcatruas do ex-governador paulista, agora por ele toma-se de amores. “Acho que todas as denúncias, contra qualquer pessoa, têm que ser apuradas. Ou a pessoa ganha uma condenação ou um atestado de idoneidade. Sempre parto do pressuposto de que todas as pessoas são inocentes até que se prove o contrário”, disse Lula em São Carlos.

Quércia foi denunciado por envolvimento nos escândalos do Banespa (desvio de U$ 55 milhões), na compra sem licitação de equipamentos israelenses (U$ 310 milhões) e outras irregularidades como a venda da Vasp, a construção do Memorial da América Latina e superfaturamento em obras do governo. Partindo do pressuposto aventado por Lula, até mesmo alianças com Collor, Maluf, ACM, Jader Barbalho ou Pitta seriam bem-vindas, pois nenhum destes senhores até agora ganhou uma condenação. Não se sabe ainda o que as autoridades esperam para conferir-lhes um atestado de idoneidade.

“Lula nunca dirigiu um carrinho de pipocas”, costumava dizer Quércia. “Mas eu também nunca roubei pipoca”, respondia Lula. Hoje, para Lula, Quércia é um “homem de bem”. Se antes defendia ditaduras, o PT defende hoje aqueles que denunciou como corruptos. De fato, o partido mudou.


 

As Farc e o Silêncio Obsequioso

7/6/2002

 

Tentando chegar a uma definição aceita universalmente sobre o que seja terror, a ONU até hoje não chegou a nenhuma. Ao tentar uma definição, esbarra numa parede, os países muçulmanos. Se estes países não concordam sobre o que seja terrorismo, chegaram a um consenso sobre o que não é terrorismo: qualquer coisa que se inclua na luta palestina. Trocando em miúdos: um palestino que se enrola em bombas e se explode em meio a civis, velhos, mulheres e crianças, não pode ser definido como terrorista. Porque os árabes não querem.

Se o Ocidente tem conceitos precisos sobre o que seja terror, a Suécia fez uma bela presepada à União Européia no mês passado. Os quinze países da UE pretendiam incluir as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), guerrilha marxista colombiana, na lista de organizações terroristas. Os suecos alegaram que não devem fazer parte da lista organizações que estejam em processo de negociação ou diálogo com seus governos. Ou seja, você pode explodir carros-bomba, matar, seqüestrar, mas não será considerado terrorista enquanto se dispuser a dialogar com as vítimas. Porque os suecos não querem.

A decisão dos suecos foi amplamente divulgada na imprensa internacional e brasileira. Fere a delicada psique das esquerdas associar marxismo a terrorismo. Se nossos jornais se apressaram a divulgar o veto nórdico, há um silêncio obsequioso quando se trata de trazer ao leitor documentos que associem as Farc ao terror. Numa época em que até mesmo órgãos como O Globo e o Estadão abrem colunas para velhos bolcheviques, pouco se pode esperar dos demais jornais, que se pretendem de esquerda ou que pelo menos com as esquerdas simpatizam. Torna-se então inteligível — mas nem por isso justificável — o silêncio em torno a temas que possam prejudicar o PT.

Embora o partido atualmente as negue, são notórias suas relações com a guerrilha que há décadas vem destruindo a Colômbia. Seus representantes são recebidos com tapete vermelho pelo governo petista gaúcho e fazem palestras em universidades e escolas de prefeituras geridas pelo PT. Se alguém ousa afirmar que as Farc vivem do narcotráfico, não falta um militante indignado para dizer que tais denúncias não passam de estratégia do Estados Unidos para invadir, primeiro a Colômbia, e depois o continente.

O leitor já deve ter notado a escassa presença, nas páginas dos jornais, do narcotraficante Luiz Fernando da Costa, mais conhecido por Fernandinho Beira-Mar. E não é por falta de notícias. Preso em Brasília desde abril do ano passado, Fernandinho aceitou reunir-se com agentes da DEA (Drug Enforcement Administration) e falou de suas relações com a guerrilha colombiana. A gravação desta confissão, pela sua importância, tornou-se a peça-chave que permitiu aos Estados Unidos pedir a extradição de três guerrilheiros das Farc e três narcotraficantes brasileiros, entre eles Fernandinho. Foi publicada, há questão de um mês, na revista colombiana Cambio, dirigida por Gabriel Garcia Márquez. Você pode lê-la, na íntegra, aqui. Na imprensa brasileira, nem um pio sobre este documento.

Em correspondência com meus interlocutores, costumo afirmar que as gentes já não lembram de fatos ocorridos há dez anos. Urge uma errata: não lembram de fatos ocorridos há dois meses. Se o PT hoje nega qualquer relação com as Farc, há poucas semanas elas eram publicamente defendidas pelos militantes. Não bastassem as boas relações do governo gaúcho com a narcoguerrilha colombiana, em março passado, líderes petistas de Ribeirão Preto, ligados ao prefeito Antônio Palocci Filho, coordenador do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, anunciaram um comitê pró-Farc no município. Entre as funções do Comitê de Solidariedade ao Povo Colombiano e aos Movimentos de Libertação Nacional estariam colher assinaturas pró-guerrilha e defender as posições do grupo no Brasil. “Precisamos difundir e abrir comitês das Farc no mundo inteiro sobre os problemas que ocorrem naquele país”, disse Beto Cangussú, vereador petista. Para selar a união, houve uma reunião em Ribeirão Preto entre o ex-vereador Leopoldo Paulino, o proponente do comitê, e Olivério Medina, porta-voz informal da narcoguerrilha no Brasil, que chegou a ser preso em 2000 em Foz do Iguaçu, a pedido do governo colombiano, acusado de atividades terroristas.

Fernandinho Beira-Mar pagava dois milhões de pesos aos camponeses pela coca, por 600 quilos por semana, e às Farc mais um milhão por cada quilo, para cristalizá-la. Vendia o quilo de cocaína por U$ 3.500 no Brasil. A operação exigia um vôo que custava U$ 15.000, mais U$ 15.000 pelo aluguel da pista de aterrissagem. Mais U$ 25.000 para o piloto e U$ 5.000 para o co-piloto. Fernandinho, que também fornecia munição à guerrilha marxista, chegou a entregar-lhes 150 mil caixas de balas, com 20 balas cada uma. Segundo o narcotraficante brasileiro, as Farc “não têm ideologia, Estão ali pela grana, se tornaram capitalistas e só querem a grana, a grana, a grana....”

O ex-vereador Leopoldo Paulino pensa diferente. Não “é a eleição que vai resolver, é a revolução. Hoje no Brasil não há condição de fazer uma revolução armada, mas na Colômbia não é assim. Eles têm um exército organizado”. Este exército redentor são as Farc, é claro.

ONU, árabes ou suecos podem permitir-se uma posição dúbia. Ser benevolente com o terror distante é fácil. Mais difícil é aceitá-lo quando se vive sob sua mira. O PT, herdeiro das mais sinistras ditaduras do século, sente-se naturalmente atraído pela narcoguerrilha marxista. Tenta então desvencilhar-se do aliado inconveniente. Ocorre que o terror está em seu DNA. E produz reflexos condicionados.

Todo leitor adulto deve lembrar-se do belíssimo filme de Kubrick, Dr. Strangelove. No papel-título, temos um cientista alemão paraplégico refugiado nos Estados Unidos, cujo braço direito conserva ainda reflexos dos dias do Reich. Esporadicamente, o braço se ergue em saudação nazista, e Strangelove precisa segurá-lo com a mão esquerda. É o que ocorre com os petistas. Podem reivindicar os melhores propósitos, fazer juras de bom comportamento, mas volta e meia o braço totalitário não resiste e saúda o terror. Como aconteceu na semana passada, quando o PT, au grand complet, prestou homenagens de herói ao terrorista João Amazonas.

Não é conveniente, em ano eleitoral, falar de Fernandinho. Felizmente, vivemos dias de Internet, onde sempre há uma brecha para conjurar o silêncio obsequioso da grande imprensa.


 

Jornalista bom é jornalista morto

15/6/2002

 

Pensava escrever sobre as coisas boas da vida. Fica para semana que vem. As sórdidas se impõem.

Com o final da novela O Clone, a Rede Globo começou outra, a novela Tim Lopes, a saga comovente do jornalista sacrificado em função do ofício. Enquanto vivo, Tim Lopes não merecia maiores créditos da emissora. Morreu, virou novela. Âncoras com ar contrito sinalizam ao telespectador que a notícia agora é grave. A impressão que o âncora passa é que, se não sinalizasse a notícia com um gesto teatral de gravidade, a besta do telespectador poderia pensar que se tratava da trama da novela anterior. Para o grande público, a comoção é obrigatória.

E não só para o grande público. Tanto o presidente da República como o ministro da Justiça concordaram em participar do novo reality show, para glória dos roteiristas da Globo. Fernando Henrique disse que as coisas haviam passado do limite, o mesmo que dissera por ocasião do assassinato do prefeito Celso Daniel, como se as coisas só passassem do limite quando morrem personagens expostos à mídia. Miguel Reale Júnior só nesta semana deu-se conta de que existe um Estado paralelo, comandado pelo narcotráfico, nas periferias do Rio de Janeiro e São Paulo. Ora, este Estado existe há mais de década. Há muito o tráfico controla a entrada das favelas e decreta feriados a seu bel prazer. Foi preciso que assassinassem um jornalista, para que o ministro da Justiça chegasse à brilhante conclusão. Segundo Reale Júnior, os traficantes do Rio praticaram “uma verdadeira ação de Estado” ao prender, julgar e executar o jornalista. Curiosamente, seu antecessor no cargo, gratificou com régias aposentadorias os criminosos que, nos anos 70, praticavam estas mesmas ações de Estado, prendendo, julgando e executando inimigos políticos. Lamarca, que prendeu, julgou e executou — a coronhadas — um colega de armas, hoje é tido como herói pelas esquerdas e sua viúva recebe pensão do Estado. Aos assassinos políticos, honra, glória e pensão. Aos comuns, ojeriza, opróbrio e prisão.

Com todas as objeções que tenhamos à mídia — e estas objeções não são poucas –, a imprensa tem sido o mais resistente baluarte da sociedade contra o crime. Com a polícia é fácil fazer acerto. Prova disto são os contínuos expurgos, dentro do próprio corpo policial, de funcionários ligados ao narcotráfico. Com o Judiciário, também dá para conversar. Prova disto são os Lalaus da vida, e muitos deles estão em liberdade. Com o Estado, é barbada. De norte a sul do país, sem exceção de Estado nenhum, as autoridades convivem muito bem com o jogo do bicho e a droga. Basta você chegar numa esquina qualquer e já sabe onde fazer sua aposta ou comprar seu pó predileto. Só o Estado é que não sabe.

Pela própria dinâmica do jornalismo, com a imprensa os acordos são mais complicados. Notícia é mercadoria. Se este jornal não a vende, o concorrente vende. Daí a saudável disputa pela notícia. Que leva muitas vezes, é verdade, a erros que destroem vidas e reputações. O tráfico brasileiro parece ter finalmente descoberto quem é seu verdadeiro inimigo. Não é a polícia. Esta se compra. Não é o Judiciário. Este também se suborna. Nem o Estado. Com este se faz acordo. Com jornalista, não dá. A denúncia faz parte de seu ofício. Não fossem os jornais, Collor de Mello estaria disputando a reeleição, ACM e Jader Barbalho continuaram pontificando no Congresso, Lalau viveria dias tranqüilos em Miami. E a polícia não seria constrangida à desagradável tarefa de subir o morro para fechar bocas de fumo a céu aberto. O jornalista é, antes de tudo, um estraga-prazeres.

Ao incumbir um repórter de fazer disfarçadamente a cobertura dos crimes do tráfico, a Globo não ignora dois fatos. Primeiro, para preservar as fontes, este repórter se torna ipso facto cúmplice de criminosos. Segundo, está enviando um profissional para uma missão com risco de vida. Mas jornalista morto é ótimo. Ainda mais se for em pleno exercício da profissão. Vira herói da noite para o dia. Enquanto estiver vivo, que se vire como puder para manter-se vivo. Jornalista bom é jornalista morto. Dá Ibope. Que morra primeiro, e depois terá direito a todo apoio, honra e glória... póstumas. Até o âncora do Jornal Nacional fará aquele ar contrito para sinalizar ao telespectador que ele deve, preferentemente, chorar.

Nesta quarta-feira, a Band noticiou pela primeira vez o assassinato do auditor fiscal Hélio Pimentel Jr., em Caieiras. Ocorre que o fiscal foi morto em meados de maio passado, pela máfia chinesa que age em São Paulo. Foi decapitado e teve as mãos decepadas. Antes disso, seus dedos foram cortados, um a um, em três pedaços cada. Um alto funcionário da Receita Federal é executado em circunstâncias atrozes. No espaço de um mês, nem um único jornal do país noticiou este crime. É como se pairasse sobre o mesmo pesado segredo de Estado.

O presidente da República, que tanto se escandaliza com a morte do repórter, não terá tido notícias da morte de seu funcionário? O ministro da Justiça, que denuncia um Estado dentro do Estado, não terá sido informado do assassinato de um funcionário do Estado que administra? Que houve com a imprensa em geral, sempre tão ágil em denunciar crimes e que durante um mês fez silêncio?

Mistério profundo. Semana que vem, tentarei falar das coisas boas da vida.


 

Poliglota na Ilha

23/6/2002

 

Fujo hoje aos jornais e noticiário. Falemos das coisas boas da vida.

Moramos na mesma cidade, mas em épocas diferentes. Conheci-o na Rua da Praia, Porto Alegre, anos 70, quando a Rua da Praia ainda era uma grande ágora onde os porto-alegrenses iam paquerar e discutir os rumos do mundo. Ele teria uns quinze anos na minha frente. Senti-me honrado com a apresentação. Eu já ouvira falar de seu pai. Falava várias línguas, pelo que sabia.

— Meu pai? Fala o português e olhe lá!

Mas quem era então o lendário poliglota de Dom Pedrito? Era ele. Na ocasião, falava já umas trinta línguas. Eu voltava de um ano em Estocolmo, ataquei imediatamente com sueco. Ele, que jamais havia morado lá, falava a língua com perfeição. Mais ainda, dominava aquela musicalidade inerente ao sueco, que jamais consegui modular. Descobri logo que éramos fascinados pelos mesmos temas, viagens e línguas. Já não lembro se é lenda ou biografia, mas me consta que o russo ele aprendeu pelo melhor método, freqüentando um casal de russos. Quando foi para Moscou estudar russo, aproveitou para estudar o árabe e o chinês.

Encontrei-o várias vezes no decorrer das décadas. Por essas estranhas razões que nos fazem sempre voltar a um ponto fixo da cidade, em datas fixas, geralmente o encontrava nas sexta-feiras santas, em frente ao café Haiti. Ele vinha de alguma latitude do planeta, rumo a Dom Pedrito, para abastecimento espiritual. No segundo encontro, se a memória não me falha, já falava quarenta línguas. Empunhava uma gramática de ioruba.

— Comprei em Paris, não imaginava que um dia precisaria dela.

Precisava? Como? Para que alguém precisa de uma gramática de ioruba?

— É que está visitando o Estado uma delegação da Nigéria. E fui contratado como intérprete.

Aleguei que o inglês era língua oficial na Nigéria.

— Sei. Mas eu gosto de falar a língua local.

Na época, estudava também o sorbiano, dialeto eslavo falado na Alemanha por 50 mil pessoas. Em um outro encontro, eu voltava da Macedônia, ainda nos dias da antiga Iugoslávia. Para meu espanto, ele também voltava de lá. Mais ainda: estivéramos em Skopje na mesma época. Dois pedritenses, na mesma data, naqueles confins do mundo, ignorando a presença um do outro. Eu fora visitar uma macedônia furiosa que conhecera em Paris. Mas e ele?

— Ah! fui estudar macedônio. Lá, aproveitei para praticar meu dinamarquês com alguém que vinha da Dinamarca. Encontrei ainda uma ucraniana, gravei com ela alguns textos, para revisar mais tarde meu georgiano.

E passou a falar-me de consoantes insólitas, cujas pronúncias o fascinavam e para mim mais pareciam tosse de cachorro tuberculoso.

A última vez, encontrei-o como sempre em outra sexta-feira santa, de novo frente ao Haiti. Ele voltava de La Paz, onde era adido cultural e lecionava Lingüística Contrastiva na universidade local. Durante o ensino, lembrou de suas gravações de georgiano feitas em Skopje. Encontrou uma extraordinária semelhança fonética entre o georgiano e um dos idiomas indígenas, o aimara. Passou o texto gravado a seus alunos e estes encontraram um alto percentual de coincidência de fonemas. Para ele, isto comprovaria a tese de que o homem do continente latino-americano viria da Ásia, via estreito de Bering.

— Estou pensando em desenvolver uma tese, comprovando isto do ponto de vista lingüístico. Onde achas que eu poderia encontrar uma banca para defendê-la?

Não lhe dei muitas esperanças. Como reunir cinco doutores que dominassem aimara e georgiano ao mesmo tempo? Sua tese estava além de qualquer banca. Enfim, seu estudo sobre as afinidades fonológicas entre o aimara e as línguas caucásicas está hoje publicado pela Universidade de Sucre.

Depois daquela sexta-feira, nos perdemos nas ruelas do planetinha. Soube que andou lecionando italiano em Perugia, mais tarde passou a morar em Montevidéu, onde trabalhava junto à embaixada brasileira.Atualmente vive em Florianópolis, para honra e prestígio da ilha. Já estudou sistematicamente mais de cem línguas, das quais domina sessenta. Traduziu para o português poesias e contos de meia centena de línguas. E promete para breve próximo a edição de Babel de Poemas, antologia multilingüe, na qual traduz ao português poemas de 60 idiomas. Em recente correspondência, me conta que ainda desenvolve seu projeto, que já dura quarenta anos, o de estudar sistemática e cientificamente duas línguas novas por ano.

Notícia ruim chega com a velocidade do raio. Notícia boa, em ritmo de lesma. Soube nestes dias, com atraso de um ano, que Carlos Amaral Freire foi considerado, pela Universidade de Cambridge, como um dos dois mil eruditos do século XXI. A notícia é duas vezes alegre. Primeiro, ver reconhecido em uma das mais prestigiosas universidades da Inglaterra o talento deste gaúcho que o Brasil ignora. Segundo, saber que nestes dias de cultura de massa, há pelo menos mais 1999 espécimes insólitos obcecados com as coisas do espírito.

Enfim, nada de espantar. Segundo estes senhores, o mais difícil no aprendizado de línguas são as primeiras quinze. Se o leitor duvidar, é só experimentar.


 

Mudar é Preciso

28/6/2002

 

Mudar é verbo muito conjugado ultimamente. As pessoas não podem mudar? — pergunta-se a militância petista. Poder, podem. Mas mudar em ano eleitoral não é mudança em que se possa crer.

Há mudanças e mudanças. Tenho recebido não poucos e-mails de marujos abandonando o barco, isto é, de petistas abandonando o PT. Provêm de jovens ainda não comprometidos com a estrutura partidária e sem salários ou mordomias a defender. As razões são uma só, as alianças espúrias do partido com líderes que há pouco tempo os petistas qualificavam como corruptos, ladrões, nefandos e outras gentilezas: Quércia, Maluf, ACM, Edir Macedo. Um destes leitores me pergunta o que penso sobre mudar de visão de mundo. Por ter mudado a sua, ele é visto como traidor pelo partido e não se sente bem na própria pele. Para o PT, o candidato pode mudar para agradar o eleitorado. É sinal de abertura de espírito. Já o militante, este não pode mudar por sentir-se traído pelo candidato que mudou. É traição.

Tenho medo do homem incapaz de mudar de idéias, dizia Albert Camus. Referia-se a idéias filosóficas, não a oportunismo em véspera de eleições. Em seus verdes anos, o escritor argelino chegou a militar no Partido Comunista. Segundo seus biógrafos, seria uma tentativa de carreira no melhor estilo Julien Sorel. Se o herói stendhaliano tentava superar sua condição social através da ascensão eclesiástica, Camus veria no Partido a possibilidade de escapar à condição de filho de faxineira. Mas já em meados dos anos 30, ciente dos expurgos stalinistas, não quis compactuar com o crime e mudou de rumos. Nesta mesma época, não poucos escritores abandonaram o marxismo, não sem intenso sofrimento interior. Carreiristas e prostitutas se mantiveram fiéis ao Partido.

Urge mudar de rumos, pelo menos uma vez na vida. Mal nascemos, nos enfiam a machado uma fé na cabeça. Na infância ou adolescência, não temos cultura suficiente para dela nos libertarmos. Com as primeiras leituras surge a dúvida, sempre fértil e criadora. É chegado o momento de jogarmos fora a fé imposta, como cachorro que sacode para secar-se. Mas isto não basta. Urge ainda libertar-se da craca que vinha grudada à fé. Este é o trabalho mais lento e penoso, que nem a todos ocorre. No dia-a-dia, não é raro encontrarmos supostos ateus que acreditam piamente nas instituições cristãs incrustadas no Direito e na sociedade, batizam os filhos, casam no religioso, crêem no amor e insistem na fidelidade.

Nasci em ambiente católico e não escapei da fôrma. Felizmente, li a Bíblia lá pelos quinze ou dezesseis anos. Foi o suficiente para perder minha fé. Primeiro, uma sensação pavorosa de vazio, de que não apenas o mundo, mas também eu mesmo perdia todo e qualquer sentido. Mas a vida continua. Pouco a pouco, fui tomado por uma extraordinária sensação de liberdade. Viver tornou-se um festival de surpresas. Para o crente, o universo não oferece surpresa alguma, tudo está escrito nos planos divinos. Para o ateu, cada dia é festa nova.

Renegado o cristianismo que me fora imposto, não tive mais necessidade de reformular meus rumos. Não que tenha encontrado a verdade, nada disso. Ocorre que não aderi mais a nenhuma filosofia. Quando o católico do século passado perdia a fé, os marxistas o esperavam de braços abertos para curar suas feridas. Descrente de Deus mas ainda sedento de absoluto, o ex-católico passava a acreditar na História. Não por acaso, o marxismo vai vingar em um dos países mais católicos do planeta, a Rússia. O PC mais forte da Europa estava em Roma, sede do Vaticano. PCs fortes tiveram também as catolicíssimas França e Espanha. Em país protestante, marxismo não tem vez.

Não tendo aderido ao marxismo, não tive de com eles acertar contas. Depois da queda do Muro, não passa dia sem que um velho marxista compareça à imprensa elaborando sutis acrobacias mentais para renegar uma fé no fundo tosca. Antes de estudar filosofia, estudei história da filosofia. E vi teorias novas destruindo as antigas e sendo destruídas pelas futuras. Os filósofos complicam demais a vida dos mortais. Criam conceitos que pouco ou nada explicam e só servem para reservar-lhes uma página nas enciclopédias. Ora, a vida não tem mistérios, pelo menos para quem não crê em transcendências. Nascemos, crescemos e morremos. Em meio a esse ciclo, bebemos e comemos, choramos e rimos, trabalhamos e procriamos. Bebemos vinho e não conceitos, nos relacionamos com seres humanos e não com enteléquias. Mistérios só existem para os que temem a morte e recorrem a mitos reconfortantes para enfrentar a intempérie metafísica.

Panaïti Istrati, escritor romeno que já em 1929 denunciava os horrores do comunismo, costumava saudar uma nova raça, a dos homens que não crêem em nada. Panaïti, bem entendido, não descria de valores como a amizade, o trabalho, a paz e a justiça. Por não crer em nada, entendia não aderir a sistemas fechados de pensamento. O brado de Panaïti — que no fundo é o mesmo de Nietzsche — até hoje não parece ter encontrado eco. Pois os seres humanos continuam necessitando de fé como criança de chupeta. Basta que se lhes acene com chocolates após a morte, e seguem como cordeiros o primeiro guru que se candidata a pastor.

Mudar é preciso, caríssimo. Mas se não quiser ter de trocar de fé como quem troca de computador, é simples: não adira mais a fés ou filosofias. Não fazem falta nenhuma.


 

O Bolche e os Astros

7/7/2002

 

Em O Jardim das Aflições, Olavo de Carvalho afirma ser difícil “um sujeito acreditar na influência dos astros e na luta de classes como motores da história”. Ocorre que estamos no Brasil, onde o inimaginável não só não é difícil, como perfeitamente viável. Depois que um testemunho do Além, psicografado por Chico Xavier, já serviu de prova em um tribunal, tudo é possível. Um projeto que regulamenta a profissão de astrólogo foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e agora aguarda votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, líder do governo no Senado, a proposta define quem poderá exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o “cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público”.

O Brasil tem vocação para único. Único pentacampeão de futebol, é também o único país no mundo que exige curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Possivelmente é também o único em que um bolchevique histórico propõe a regulamentação de uma crendice. Ou melhor, de uma vigarice, pois de outra forma não se pode chamar a exploração de superstições. Se aprovado no plenário do Congresso, teremos reconhecido a um grupo seleto de vigaristas o direito exclusivo de enganar simplórios. Há uma febre nacional corporativista. Ano passado, na Bahia, até as vendedoras de acarajé tentaram regulamentar a profissão. Como crentes evangelistas passaram a vender nas ruas o bolinho de feijão, persuadiram uma vereadora a apresentar projeto de lei que proíbe o preparo ou venda de acarajé por qualquer estabelecimento comercial, incluindo shoppings, restaurantes e bares. Só mãe-de-santo pode vender acarajé. Agora, pelo projeto do senador, só astrólogos legalmente habilitados poderão exercer a astrologia. Quanto à astronomia, ciência há séculos consolidada, seu exercício ainda não foi regulamentado.

Em meus dias de foca em Porto Alegre, na falta de redator, redigi por várias semanas a coluna de astrologia do finado Diário de Notícias. Ninguém reclamou, nem os astros nem seus regidos. O único protesto, que quase me custou o emprego, foi do editor do jornal, quando foi verificar porque eu ria tanto enquanto redigia. Se passa o projeto do senador, este avatar do qual nenhum foca escapava naqueles dias, seria hoje considerado exercício ilegal da profissão.

Nada de espantar neste país em que o governo do Estado de Santa Catarina pagava a fundação Cacique Cobra Coral, “entidade esotérica-científica”, para fazer a previsão do tempo. O cacique Cobra Coral é um indígena americano que, em outras encarnações, teria sido Galileu Galilei e Abraham Lincoln. Seu espírito se manifesta através da médium Adelaide Scritori, que já fez chover na Sérvia a pedido do presidente Sadam Hussein, para deter o avanço das tropas da OTAN. Cobra Coral pode empurrar uma frente fria de um lugar para outro, derrubar um centro de pressão atmosférica evitando um tufão e até fazer sumir uma geada. A Fundação, cujo lema é “luz que ilumina os fracos e confunde os poderosos”, informa em seu site que tem como clientes governos estaduais, ministérios, multinacionais, e políticos, como o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, o ex-presidente José Sarney e o senador Gerson Camata. O diretor da empresa Tunikito Corporation, controlada pela fundação, esteve ano passado com o senador Eduardo Suplicy, para mostrar-lhe cópia da carta enviada ao então ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, onde previa o blecaute no Centro-Sul do país na primeira quinzena de março. Enfim, dada a crença de ex-presidentes, governadores, ministros e senadores pátrios no sobrenatural, não causa espécie que o velho bolchevique impenitente tenha proposto a seus pares no Senado a regulamentação do ofício de intérprete da vontade dos astros.

Aprovado o texto, teremos muito em breve uma Faculdade de Astrologia, com mestrados e doutorados na área. Astrólogos devidamente diplomados seriam contratados pelos organismos públicos para atuar na seleção de pessoal, previsão de catástrofes, flutuações do câmbio e campanhas eleitorais. Paralelamente à Ouvidoria Geral da República, teríamos uma Vidência Geral da República ou algo parecido, “para satisfazer às indagações do público”, como quer o senador.

Quanto à imprensa, caluda! Nenhum jornal, por mais sério que se pretenda, dispensa sua coluna diária de astrologia. Há milhões de leitores, no mundo todo, que só põem as mãos num jornal para ver o que dizem os astros. Empresário algum, por mais avesso que seja a crendices, pensaria em não atender as angústias desta massa informe de crédulos. Se a própria imprensa, que se pretende crítica, endossa a vigarice, não é de espantar que seus colunistas de astrologia se sintam valorizados com a nova lei. De qualquer forma, em uma cultura dominada por sacerdotes que exploram o cadáver de um judeu, que além de ser deus seria filho de mãe virgem, engodo a mais engodo a menos não faz a menor diferença.

Mas não discriminemos os demais vendedores de vento. Urge regulamentar ainda ofícios fundamentais ao bem-estar psíquico da nação. Não se pode deixar ao desabrigo da legislação trabalhista profissionais como pais e mães-de-santo, médiuns, cartomantes, quiromantes, jogadores de búzios, leitores de borra de café.

E – last but not least — os psicanalistas, que também são filhos de Deus e dependem da credulidade pública.


 

Aconteceu em Túnis

13/7/2002

 

Túnis, anos 70. Eu fazia a cobertura do festival de cinema de Cartago. Entre um filme e outro, jantei com um carioca, funcionário da Embrafilme, e uma cineasta portuguesa. O carioca estava preocupado apenas em passar bem. A lusa tinha preocupações outras. Queria achar uma praia, em pleno país árabe, onde pudesse tomar sol de marianinhas ao léu. Traduzindo: fazer topless. Ao final da janta, pedimos um café turco. O carioca, por brincadeira, resolveu ler a borra do café da lusa. A rapariga emborcou sua xícara e nosso vidente improvisado começou a interpretar os desenhos da borra. Foi avançando, sem mais compromissos, aquelas previsões óbvias: você tem um belo futuro pela frente, perspectivas de novas viagens, doenças em família. Em suma, tudo aquilo que qualquer pessoa minimamente bem situada terá, queira ou não queira. Até aí, brincávamos.

O garçom nos observava e não resistiu: “Monsieur lê borra de café?”. O carioca assumiu: “leio”. O garçom pediu então que lesse seu futuro. Tudo bem, respondeu o súbito vidente, mas você terá de tomar um café turco. E o garçom, que confessou detestar café turco, esvaziou uma xícara e a emborcou. O carioca assumiu ares de guru e começou a leitura. Começou pelo óbvio, aquelas coisas rotineiras que a qualquer um de nós acontecem. Lá pelas tantas, anunciou: você tem um encontro muito importante à sua frente. O garçom puxava pela memória, não encontrava encontro algum. Nesta altura, o proprietário do restaurante já entrara na roda e interveio: “tem sim , claro que tem, você tem aquele audiência com o ministros dos Cereais, sobre sua padaria”. O guru carioca tripudiou: “a borra não mente. Olhe o ministro firme, nos olhos, quando encontrá-lo”.

E continuou: você tem alguém com graves problemas de saúde na família. O garçom puxou pela memória, não encontrava ninguém doente em suas cercanias. Monsieur desculpasse, mas não havia ninguém com problemas de saúde. Nosso vidente continuou sua farsa e antes que terminasse, o patron entrou de novo na conversa: tem alguém doente sim, seu irmão não funciona bem da cabeça. O leitor de borras do fundo de xícaras exultou: “claro, está tudo aqui na borra”. E recomendou a terapia: quatro vezes por mês, atar o irmão num poste e dar um banho de sal grosso.

Passaram-se as décadas e até ainda hoje imagino aquele pobre diabo sendo atado a um poste todas as semanas, sem saber porquê e submetido a uma ablução salgada. Tudo por uma piada de mesa de bar, elaborada por ocidentais desocupados. Neste mar de crédulos em que navegamos, clientela é o que não falta para aderir ao primeiro vigarista que se arvore em leitor do futuro ou apóstolo de uma nova crença. Você faz uma piada e arrisca criar um rebanho de seguidores.

Nunca foi tão fácil criar uma religião. Sem ir mais longe, temos aí o bispo Edir Macedo, um dos mais recentes aliados do impoluto Partido dos Trabalhadores. Começou sua cruzada em 1977, empunhando sua versão particular da Bíblia. Nem transcorreram três décadas e tem milhões de fiéis no planetinha e templos de Paris a Nova York. O cristianismo precisou de quatro séculos para impor-se a um continente. Em três décadas, o bispo Macedo já se espalhou por três.

Comentei a regulamentação da profissão de astrólogo na semana passada. Recebi não poucos e-mails indignados com minha descrença em relação à influência dos astros e aos bons ofícios de seus intérpretes. Se descrer de Deus já não causa espécie neste século XXI, descrer da astrologia parece constituir heresia. Recebi protestos de pessoas que se dizem historiadores e astrólogos, cientistas políticos e astrólogos. Numa época em que jornais supostamente sérios mantém colunas diárias do ancestral engodo, não é de espantar-se que astrologia comece a assumir um status acadêmico.

Me apraz auscultar, nos bares que freqüento, a diversidade humana. O que tenho visto ultimamente é de assustar. Que me encontre com crentes deste ou daquele deus, gente que crê nos deuses astronautas ou na neurolingüística, na psicanálise ou em feng shui, isto faz parte da vida de bar. Para minha perplexidade, tenho encontrado ultimamente pessoas que acreditam no que vêem na televisão. Não falo de noticiários, onde alguma dose de realidade sempre há. Mas de documentários, onde o cineasta, para melhor explicar uma teoria, produz imagens de fantasmas, corpos se incendiando, copos se movendo numa mesa. Pois não é que há centenas, senão milhares, de espectadores, que acreditam na existência real da imagem produzida? Há pouco, um destes interlocutores me jurava de mãos juntas que a combustão espontânea era algo real. Ele havia visto uma mulher entrando em combustão na TV. E mais: vira na TV a cabo. Descobri então que a TV a cabo, talvez por seu sotaque estrangeiro, goza de mais credibilidade que a TV aberta.

São pessoas incultas, dirá o leitor. Pode ser. Mas a universidade, onde por definição está a elite pensante das nações, durante décadas acreditou em Freud e Marx. Marxismo e freudismo, no Ocidente, só enganam pessoas cultas. As elites, para serem enganadas, exigem uma cobertura sofisticada para o embuste, uma espécie de chantili científico para o bolo. Para os pobres de espírito, serve deus mesmo. Ou astros. Ou borra de café.

Assim, quando vejo ilustres doutores empunhando a Bíblia, Marx ou Freud, sempre me ocorre a imagem do simplório garçom de Túnis. Em sua credulidade, era um legítimo representante desta incrível raça, a humana, sempre disposta a crer no que não entende.


 

Corrupção via Literatura

22/07/2002

 

Continua fazendo estragos no país o furor corporativista que assola certos ofícios. Em crônicas anteriores, comentei a regulamentação da profissão de astrólogo, cujo projeto de lei já passou no Senado. Enquanto a vigarice não toma forma de lei, um certo mestre De Rose — que não tem mestrado em coisa alguma — se propõe a regulamentar a profissão de instrutor de ioga. Os místicos se organizam e querem o monopólio do mercado das angústias humanas. Não bastassem estes senhores querer cercar de exigências os profissionais destas guildas metafísicas, um jornalista do Estadão quer agora carteirinha para escritor. Demonstrando desconhecimento da confecção de leis, o cronista Mário Prata pede ao presidente da república o reconhecimento de seu ofício: “O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor”. A capacidade de síntese do cronista é extraordinária: nunca se disse tanta bobagem em frase tão curta.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pede ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Cita a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tem que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. “Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão”.

E quem perde? — seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. Este é o sonho do cronista. Mário Prata viu um Potosi a céu aberto no bolso do contribuinte. Quando um político tasca a mão no dinheiro público, a imprensa horroriza-se e fala em ética. Mas se um membro da guilda sugere ao presidente da República que confisque dinheiro do contribuinte para seu bem-estar, chama-se a isto defesa da literatura nacional.

Diga-se de passagem, esta corrupção é florescente no Brasil. De fato, o Estado não compra 40 mil exemplares de cada editora. Mas através das leituras impostas em currículos e vestibulares, obriga a compra forçada dos Machados, Clarices Lispectors e Lygias Fagundes Telles da vida. Autores que, não fosse esta imposição da máfia editorial, há muito estariam gozando do merecido repouso eterno. Há quem defenda a privatização da Petrobras. Ninguém fala em privatização do livro. Pois o livro, no Brasil, é estatal.

Existe ou não existe a profissão de escritor no Brasil? Primeiro ter-se-ia de perguntar se escritor é profissão. Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 — Le Bazar des Lettres — Roger Gouze contestava com energia o caráter profissional do ofício. “O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção”. Se a literatura é uma arte — argumenta o autor — o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. “Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma”. Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? “Como todo mundo” — responde Gouze. Claro que o autor francês fala de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena. Ou o que um político paga. Fernando de Morais, por exemplo, está imerso na biografia desse caráter sem jaça, Antônio Carlos Magalhães.

No canta quien tiene ganas, sino quien sabe cantar — já dizia Martín Fierro. Escreve quem quer escrever, quem sente ter algo dizer e não consegue ficar calado. Regulamentar a profissão de escritor seria o primeiro passo para regulamentar também a de poeta. Ou a profissão escultor ou pintor. Não mais é poeta quem cria poemas, nem escultor quem esculpe, nem pintor quem pinta. Mas quem está registrado, em algum cartório, como tal. Você pode imaginar um ator que não consegue provocar um mísero aplauso em um teatro, mas é ator? Esse ator sem platéia já existe neste país incrível, pois a profissão foi regulamentada.

A pretensão não é nova, só o arguto cronista do Estadão parece desconhecê-la. O projeto que regulamenta a profissão de escritor está em tramitação na Câmara Federal há pelo menos dois anos. O absurdo foi proposta do deputado Antônio Carlos Pannunzio, por sugestão de membros da Academia Sãoroquense de Letras, de São Roque, interior de São Paulo. O projeto estabelece as normas para o exercício da profissão, nos mesmos moldes da de jornalista. Só não exige curso superior. Aprovada a lei, escritor não será mais quem escreve, e sim quem possui certificado de habilitação profissional. Ao melhor estilo do finado mundo socialista, este certificado seria fornecido exclusivamente pelo sindicato ou por associações profissionais da categoria.

Um jornalista pede ao governo para extorquir do contribuinte o dinheiro de seu sustento. Mário quer prata. Volto a Fierro:

Si la vergüenza se pierde
jamás se vuelve a encontrar.


 

O Livro Estatal

29/07/2002

 

Ao comentar a ridícula proposta de regulamentação da profissão de escritor, uma outra discussão surgiu, as leituras obrigatórias para vestibulandos, impostas pela indústria do livro e autoridades do ensino. As listas de leituras para vestibular empurram aos jovens, goela abaixo, medíocres autores nacionais que há muito estariam mortos e sepultados se dependessem de um mercado livre. Não só autores que já morreram, mas também os vivos, nos dois sentidos da palavra. É a velha corrupção cartorial tupiniquim, sob a máscara de educação humanística. Esta corrupção jornal algum denuncia. Os jovens, que têm fama de rebeldes, contra ela não se rebelam.

Lise Sedrez, estudante gaúcha fazendo doutorado na universidade de Stanford, Califórnia, me pergunta quais seriam as minhas dez obras escolhidas — entre autores nacionais, bem entendido — que um jovem brasileiro deveria ter lido ao fim do seu segundo grau, de forma a entender a literatura brasileira.

Eu começaria pelo Quixote. Continuaria com as Viagens de Gulliver. Mais Crime e Castigo. Depois, “A Montanha Mágica”. Mais contemporaneamente, 1984. Para não ficar só em ficções, eu ajuntaria Assim Falava Zaratustra. E aí gera um problema, pois não me desagradaria juntar mais alguns de Nietzsche, que poderiam ser o Anticristo ou O Crepúsculo dos Ídolos. Mas deixemos estes de lado. Em matéria de História: A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, que nos mostra o mundo pagão, antes de ser contaminado pela peste cristã. E, para ter uma idéia de Ocidente, Um Estudo de História, do Toynbee.

Para manter firme a crença das gerações futuras no gênero humano, eu indicaria Fernão de Magalhães, do Stephan Zweig, e Schliemann, História de um Buscador de Ouro, do Emil Ludwig. E aqui já se foram os dez. Mas não me desagradaria ainda acrescentar O Julgamento de Sócrates, de I. F. Stone e alguns dos Diálogos de Platão, para contemplar o nascimento do pensamento ocidental. Esqueci de pôr um pouco de poesia em minha listinha. Então lá vai: José Hernández e Fernando Pessoa. Lidos estes autores, o estudante brasileiro estaria apto a fazer um juízo de valor da literatura brasileira. Só comparando se pode valorar. Depois deste confronto, se sobrar espaço para os Machados e Clarices da vida, deguste-os.

Ora, direis, de nacionais estes autores nada têm. Pois têm, digo eu. No momento em que uma literatura é traduzida ao brasileiro, ela passa a fazer parte do imaginário nacional. Quixotesco ou platônico são palavras que pertencem ao vernáculo, enquanto diadorinesco ou brascubano ainda não encontraram lugar em nossa língua. Machadiano existe, é verdade, mas é conceito exclusivamente literário. Muito antes de saber quem é Bentinho, temos uma idéia bastante precisa do que seja o Quixote. Muito antes de existir Machado, Cervantes já fazia parte de nosso acervo. E muito antes de Cervantes, Platão. Estes autores faziam parte da literatura brasileira, antes mesmo que literatura brasileira existisse. O Brasil não nasce na floresta. Nasce na Europa. Mas pergunta Lise: “Quantos dos títulos que citaste podem ser lidos (e entendidos) pela massa dos adolescentes? Sem que eles cometam suicídio no segundo livro?”

Minha interlocutora subestima os adolescentes. Exagerei no Toynbee, confesso. Ocorre que, ao citá-lo, eu não tinha em mente os dez volumes do ensaio original. Mas uma excelente síntese em 600 páginas, da Martins Fontes. Em papel A3, é verdade, mas o tamanho de um livro não deveria assustar um jovem. O ensaísta é claro, como deve ser todo bom escritor, nada dessas interpretações marxianas que exigem um glossário para serem entendidas. O mesmo diga-se de Fustel de Coulanges, que adoro ler no original. Tem uma frase enxuta e elegante, nada do francês confuso e quase gongórico dos autores contemporâneos. Por outro lado, é mais fácil para um adolescente seguir a lógica límpida de Sócrates em Teeteto do que encontrar norte no mar enevoado de um Guimarães Rosa. Se uma pessoa já na adolescência sabe distinguir doxa e episteme, jamais será, quando adulta, presa fácil das falácias de padres, políticos, psicanalistas e demais vendedores de vento. Não era para os jovens que Sócrates falava? Seriam os jovens de Atenas mais atilados que os contemporâneos? Que mais não seja, O Julgamento de Sócrates nada tem de hermético e nos mostra uma tragédia muito mais grandiosa que a daquele judeu inculto e conformista crucificado pelos judeus.

Lendo Swift, um adolescente tem uma visão mais lúcida da sociedade hodierna do que visitando os sociólogos e historiadores ideologizados dos dias atuais. As Viagens de Gulliver, obra tida erradamente como literatura infantil, é a mais fagedênica denúncia da estupidez humana e não pode faltar ao conhecimento de qualquer pessoa medianamente culta. Se os adolescentes de hoje tivessem lido 1984, saberiam que Big Brother não é exatamente uma câmera que vigia o dia-a-dia de pobres de espírito. O personagem de Orwell é muito mais. É a Stasi, é a KGB, é o Estado totalitário, é o mais perfeito retrato das tiranias comunistas do século passado, mas isto os senhores formadores de opinião preferem calar, pois remete a uma história recente, dolorosa e ainda não remida.

Há livros que você lê na adolescência. Inútil lê-los mais tarde. Nietzsche, por exemplo, deve ser lido antes dos vinte anos, quando o jovem ainda não perdeu seu potencial de sonho. Ler Nietzsche aos 50 é tão trágico como conhecer Paris aos 50: “meu Deus, como é que fui perder isso em minha juventude?”

Se alguém quer comprar um carro, prefere o importado. Quando queremos um bom vinho, buscamos vinho importado. Por que razões literatura tem que ser nacional? Por que eu, brasileiro, tenho de ler literatura brasileira? E seu eu fosse ugandês, teria de ler literatura ugandesa? Em que tábuas sagradas está escrito isso? Nem só a Petrobras deve ser privatizada. A Livrobrás também. Abaixo o livro estatal!


 

Paulo entre Pares

05/08/2002

 

Que leva um homem a criar universos outros que não este? No dia 14 de dezembro de 1957, no anfiteatro da Universidade de Upsalla, Albert Camus ensaiava uma resposta a esta pergunta. Em uma época na qual criar é criar perigosamente – dizia o jovem Nobel — toda publicação é um ato e este ato o expõe às paixões de um século que nada perdoa. O criador será então uma ameaça aos donos do poder, aos quais nem sempre apraz que os homens marchem rumo a um mundo melhor. “Que há de espantoso no fato de que artistas e intelectuais tenham sido as primeiras vítimas das tiranias modernas, sejam elas de esquerda ou direita? Os tiranos sabem que na obra de arte há uma força de emancipação que só é misteriosa para aqueles que não a cultuam. Cada grande obra torna mais admirável e mais rica a face humana, eis aí todo seu segredo”. Quase ao final de seu discurso, Camus considerava que o tempo dos artistas irresponsáveis havia acabado.

Não faz nem meio século. Era uma época em que a literatura tinha funções quase sagradas e o escritor era um cidadão que reptava o poder. Em O Escritor e seus Fantasmas, que tive a honra de traduzir ao brasileiro, Ernesto Sábato considera como grande literatura a que se propõe investigar a condição humana. Segundo Donne, ninguém dorme na carroça que o leva da prisão ao patíbulo e, no entanto, todos dormimos desde a matriz até a sepultura, ou pelo menos não estamos totalmente acordados. “Uma das grandes funções da literatura: despertar o homem que viaja rumo ao patíbulo”, afirma Sábato.

Cada escritor, uma sentença. Outros dirão que a função da literatura é agradar o maior número possível de leitores, que bom escritor é o que vende bem e tem sucesso de público. Estamos longe daquela concepção da literatura como um instrumento civilizatório e de elevação espiritual. Brasileiros, há muito perdemos este sentido do ofício. Os autores nacionais, em sua maioria, têm empunhado a pena a serviço de ideologias ou escrito para o público cativo das universidades. Têm em vista, não aquelas motivações espirituais que levam os grandes escritores a escrever, mas o gosto da época. Dançam conforme a crítica. Tanto que o Brasil jamais gerou criadores da estirpe de um Dostoievski ou poetas da raça de um Pessoa. O escritor brasileiro está mais próximo de uma cortesã, que se sente profissionalmente obrigada a agradar ao cliente.

Longe de ser uma inquietação espiritual, literatura no Brasil virou profissão, instrumento de ascensão social, meio de vida. Conseguiria alguém imaginar um Dostoievski ou Fernando Pessoa tentando criar um sindicato de escritores ou reivindicando uma carteirinha de escritor? Impossível! Neste país, as palavras pouco a pouco perdem o sentido. O leitor já deve ter notado que jogador de futebol hoje é herói. Professor de filosofia virou filósofo e versejador é chamado de poeta. Se na Bíblia o pecado entra na história através de Adão, na história da incipiente literatura brasileira nosso Adão se chama Machado. Ao criar a Academia Brasileira de Letras, institucionalizou a literatura. Ao institucionalizar a literatura, deu direitos de cidadania à mediocridade inerente à arte oficial.

Escritores desconhecidos, que sequer conseguem falar a seus contemporâneos, se presumem imortais. Sem falar nos que nem com literatura têm algo a ver, como ocorreu com Getúlio Vargas, Aurélio de Lira Tavares (Adelita), Ivo Pitanguy, Roberto Marinho. Já um poeta do porte de Mário Quintana, foi por duas vezes recusado no clubinho dos medíocres. Diga-se de passagem, sua candidatura foi um erro. Picado por alguma mosca azul qualquer, Quintana pensou que poderia ser aceito pelos sedizentes imortais da Academia. Foi preterido por José Sarney, cujo nome provoca mal-estar entre escritores, e por um ex-ministro da ditadura militar, Eduardo Portela, de obra praticamente desconhecida. Quintana enganou-se feio e foi humilhado em praça pública. Ninguém entra na Academia sem os rapapés de praxe aos pataratas que a habitam.

Paulo Coelho, enquanto produtor profícuo de opúsculos de auto-ajuda, é um homem de sucesso. Segue a trilha já batida por Carlos Castañeda, que ontem era moda e hoje já nem é lembrado. Está traduzido em dezenas de línguas, vende milhões de exemplares e ganha milhões de dólares. É um feito espantoso para um brasileiro, já que este mercado era reserva de americanos e — à la limite — de europeus. Em algum lugar, em algum momento, os senhores do mercado decidiram: vamos experimentar agora um produto do Terceiro Mundo. O experimento foi um sucesso: um “escritor” que sequer domina o instrumento da escritura, que nada de vital tem a dizer e serve a seu público um coquetel xaroposo de misticismo barato e orientalismo de ouvir dizer, tornou-se best-seller internacional. Não bastasse isso, pertence agora ao ror dos “imortais” da academia.

Numa instituição que — salvo raríssimas exceções — é marcada pela mediocridade, e pouco ou nada mais tem a ver com literatura, Paulo está finalmente onde desde há muito devia estar: entre seus pares. Só nos resta agora rezarmos para que seus livros não virem leitura obrigatória para vestibulandos e universitários.


 

Seminaristas no Bordel

12/08/2002

 

Este jornal mudou de perfil há algumas semanas. Com a mudança, deixaram de ser linkadas as crônicas já publicadas. Para minha grata surpresa, recebi dezenas de emails reclamando: onde estão as crônicas anteriores? Bom, agora estão lá ao pé da coluna, no lugar de sempre. É reconfortante constatar que os leitores querem ler as demais crônicas. Nos velhos tempo do jornal-papel, a crônica ficava perdida em arquivos ou bibliotecas. Hoje, está ao alcance de um click. Assim sendo, não fica em jejum o leitor que quiser curtir um pouco mais o que pensa o cronista.

Pode também desancá-lo hoje, por crônicas passadas. É o que faz um leitor, que se apresenta como médico e psiquiatra. Condena meu reacionarismo, ao comentar artigo que escrevi sobre o famigerado Fórum Social de Porto Alegre. A crônica foi escrita ano passado, o que muito honra. Nada alegra mais quem escreve ver alguém reportar-se a artigos passados. Para o leitor, “o saldo do Fórum é positivo, não sei se para o o mundo, mas para Porto Alegre certamente (...) Apenas para exemplificar o que digo, no domingo fui levar minha filha ao Mac Donald’s...”

Pausa para considerações. Médico que leva filha a Mac Donald’s, a meu ver, deveria ser expulso de sua ordem. Poucas coisas são mais funestas à saúde que os sanduíches dos Macs. Pior ainda, psiquiatra. É de supor-se que um psiquiatra seja um pedagogo. Ora, habituar filhos em tais antros nada tem de educativo. É fazer crer à criança que é normal esta perversão da gastronomia que se chama fast food. Mas continua o médico e psiquiatra:

“...e — enquanto deglutia aquele pasteurizado clone de hamburguer característico daquele local — ouvi uma conversa ‘estranha’ que vinha da mesa ao lado, onde estavam seis jovens na faixa dos 18-20 anos. Discutiam questões sociais e políticas, mostravam preocupação com a realidade social, econômica e e política do Brasil e do mundo, demonstravam conhecimento de causa baseada em leituras e estudos, muito diferente do papo alienado que se houve (sic!) normalmente no Mac Donald’s”.

Aqui, o defensor dos fóruns sociais mundiais se trai. Além de grafar “houve” por “ouve”, afirma que “houvia” papos alienados normalmente nos Macs. Isto é, era assíduo freqüentador dos ditos. Se já é grave um médico levar a filha a freqüentar tais ambientes, imagine-se o próprio a freqüentá-los. Você consultaria tal médico? Eu não. Freqüentadores de Macs demonstrando “conhecimento de causa baseada em leituras e estudos”? Perdão, leitores: não consigo conceber freqüentadores de Macs com leituras e estudos. Quem tem leitura e estudos tem refinamento. Não freqüenta fast food. Mas o defensor dos fóruns sociais continua:

“Estranhei aquilo e pensei com meus botões: ‘Ué? Jovens pensantes no Mac Donald’s? Será que estou alucinando ou entrei no lugar errado?’. Só depois de alguns minutos me dei conta que aquilo era expressão e resultado do Fórum Social Mundial. Só por isso já terá valido à pena a realização do Fórum. Se nossa juventude tiver reaprendido a pensar por conta própria e não-alienada, o Fórum Social Mundial já terá justificado a sua existência, e Porto Alegre é uma cidade privilegiada por hospedá-lo”.

Este singular médico e psiquiatra quer nos fazer crer que freqüentadores de Macs são jovens que reaprenderam a pensar por conta própria e não-alienada. Jovens pensantes, até pode ser. Afinal, quem sabe somar o preço de um sanduíche ao de uma coca, não deixa de ser um ser pensante. O Neanderthal também era. Daí a jovens que reaprenderam “a pensar por conta própria e não-alienada”, vai uma grande distância.

Vejo os Mac Donald’s como um atentado a todas as normas de boa civilização. (E lanchonetes, também, bem entendido. Mas contra estas ninguém fala, já que não têm grife ianque). Uma única vez na vida entrei em um deles. Estava chovendo, eu me abrigara sob a marquise, a água da calçada começou a subir. Para não encharcar os pés, entrei. Não fosse a chuva, jamais entraria. Entendo que alguém, com pressa, apele a um sanduíche rápido dos ditos. Já tive de trabalhar, com um sanduíche numa mão, a outra digitando. Isto acontece em jornalismo. O que não se admite, entre civilizados, é freqüentar Macs. Sei, os americanos adoram. Eu não sou americano e tenho meus conceitos de civilização. Certa vez, a uma colega de magistério que viajava à Espanha, recomendei os mais aconchegantes restaurantes de Madri. Na volta, perguntei o que achara deles. Não soube dizer-me, só comera em Mac Donald’s. Cortei sumariamente relações. Quem vai a Madri e busca Mac Donald’s pertence a uma raça com a qual nada tenho a ver.

Um defensor do Fórum Social Mundial ver expressões do dito Fórum em jovens que discutem num Mac é, a meu ver, algo como o diretor de um seminário louvar seus pupilos que discutem a castidade num bordel. Mas nesta Porto Alegre em que, no melhor estilo cubano ou albanês, nas ruas só existe propaganda dos candidatos do PT, tudo pode acontecer. Até mesmo contestar as razões do lobo na toca do próprio lobo.


 

O Neo-aparatchik

19/08/2002

 

Existe uma raça de apedeutas que se sentem muito eruditos quando usam proparoxítonas ou quadrissílabos. No debate organizado pela Folha de São Paulo, na segunda feira-passada, ele se superou. Lá pelas tantas, arrotou erudição: “Entretanto, há coisas a serem feitas concomitantemente”. Embriagado pelo próprio verbo, feliz pelo heptassílabo, perguntou ao interlocutor: “Gostou do concomitantemente?”

Se queria dar atestado de homem culto, logo adiante resvalou na própria insipiência. Indagado sobre quais setores deveriam perder diante de sua proposta de reforma tributária, tascou: “estou numa fase muito positivista”. Há lacunas que nenhum treinamento de marqueteiro supre. Mais debate menos debate, elas saltam à luz do dia. Queria dizer otimista. Jamais lhe passaria pelo bestunto que positivista se refere a positivismo, que com otimismo nada tem a ver.

De quem desconhece o vernáculo, seria pedir demais que conhecesse a filosofia de Comte. Ainda mais de quem deu uma surpreendente demonstração de humildade: “Não faço parte da turma do eu me amo, achando que sou o melhor do mundo. Eu não sou assim. Não sou melhor do que ninguém. Eu, no máximo, quero ser igual”.

Para quem o ouvia, até parecia não ser o mesmo homem, que no início deste ano, dizia: “Nenhum candidato é melhor do que eu. Me considero o candidato mais preparado de todos”. Nenhum entre os argutos jornalistas que o entrevistavam lembrou de perguntar-lhe a que se devia tão profunda mudança em sua própria auto-estima, no decorrer de tão poucos meses.

Em julho passado, afirmava que a convocação dos postulantes ao Planalto para discutir compromissos econômicos deveria ser feita pelo presidente da República. “Se alguém tiver que falar conosco, deve ser o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso, e não uma diretora do FMI”, declarou. O presidente da República decide então convocar os postulantes ao Planalto para discutir compromissos econômicos. Melhor não o fizesse. “O governo deveria convocar toda a sociedade, e não apenas os candidatos, para discutir a crise”, diz o candidato, exatamente três semanas depois de afirmar que o governo deveria convocar os candidatos. Nenhum arguto jornalista lhe cobra a súbita mudança de opinião no espaço de 20 dias. Acha que não será com “palavratório” que o País sairá da turbulência. Essa é fácil: queria dizer palavrório.

Em fevereiro deste ano, ele dizia ao Pasquim: “Qualquer um pode ser falsificado; eu não posso. Não posso e não quero. Tenho orgulho da minha origem, da minha história. Se eu tiver que ser presidente, vai ser assim. Se eu tiver que vender uma imagem que não é a minha, então não serei eu o candidato. Se quiserem alguém diferente, alguém que fale assim ou se vista assim, então não sou eu o candidato”. Um mês depois, desconfiando que os eleitores já não caíam no conto do operário, passou a usar ternos Armani de dois mil dólares e caneta Mont Blanc. Para tornar o sorriso mais palatável, tratou de alinhar o canino esquerdo. Para não dar às esquerdas jurássicas a impressão de ter abandonado os antigos ideais revolucionários, continua fumando charutos cubanos, iconografia oblige. Mas aceita prontamente o apoio de uma deslumbrada carioca que, em seu novo-riquismo atroz, forra o carro com tapetes persas e organiza festas milionárias de aniversário para seu cãozinho.

Mês passado, dizia que Fernando Henrique Cardoso e sua equipe econômica “nunca pegaram em cabo de enxada. Nunca sujaram a mão de graxa nem sabem o valor que tem o trabalho e o desenvolvimento de uma Nação”. Como se pegar no cabo da enxada habilitasse alguém ao exercício da suprema magistratura do país. No genial Dr. Strangelove, há um cientista nazista que não consegue controlar os reflexos condicionados do braço, que volta e meia se ergue em saudação ao Fürher. Como o personagem de Kubrick, ele ficou marcado na paleta: volta e meia o assalta o fracassado sonho comunista do operário no poder. Os comentaristas políticos, sempre tão críticos no que a economia se refere, permanecem silentes ante tal despropósito. Seu ministro da Marinha, provavelmente terá de saber nadar.

Para justificar sua incultura, disse que Machado de Assis não tinha curso superior. Como se Machado tivesse tido, algum dia, a pretensão de ser presidente da República. Sem falar que, em sua época, havia apenas duas faculdades de Direito no Brasil todo. E a grande imprensa engoliu silente o despautério.

“A cidade é exportadora de veados”, disse ele a respeito de Pelotas, Rio Grande do Sul. Não bastasse o grosseiro insulto aos gaúchos e aos homossexuais do país todo, requereu à Justiça Eleitoral a concessão de medida liminar para determinar aos demandados que abstenham (sic!) de tornar a veicular em sua propaganda, a imagem e as manifestações do requerente, isto é, suas próprias palavras sobre a exportação de veados, como também liminarmente sustar de imediato, na emissora geradora do programa eleitoral de televisão, a veiculação das mesmas.

Diz o que pensa e passa logo a exigir da Justiça que impeça a imprensa de publicar o que disse. Deve ser o que chama de “controle social da imprensa”, uma das bandeiras de seu partido. O defensor incondicional da liberdade da imprensa exigiu ainda notificar outros órgãos de comunicação no Rio Grande do Sul para que também se abstenham de fazer qualquer notícia, comentário ou referência a (resic!) referida imagem. Se toma tais atitudes como candidato, podemos já ter uma idéia do que faria como presidente.

Este senhor, que nunca dirigiu um carrinho de pipocas, como costumava dizer Orestes Quércia, respondia prontamente: “Mas eu também nunca roubei pipoca”. Hoje, para ele o ladrão de pipocas é um “homem de bem”. De defensor de ditaduras, como a de seu dileto amigo, Fidel Castro, hoje passou a paladino daqueles que denunciou como corruptos.

O suposto operário não consegue abrir a boca hoje sem negar o que disse ontem. Vive numa cobertura e amealhou um patrimônio — declarado — de 420 mil reais, montante com o qual nenhum trabalhador brasileiro consegue sonhar após uma vida inteira de trabalho. Diz, com a candura dos anjos, ser sustentado pelo partido no qual milita. Como se fosse normal, em um regime democrático, um partido sustentar eternos pretendentes ao poder. Ao justificar suas rendas, em verdade está confirmando exercer uma antiga função bolchevique, a de aparatchik.

Para vergonha de todo trabalhador, está na liderança das pesquisas eleitorais para a Presidência da República. Para vergonha de nossa universidade, conta com o apoio da elite acadêmica da nação. Para vergonha de todo ser pensante, por três vezes foi o segundo colocado na corrida presidencial.

O mal não está por fazer. Já foi feito. Desta mancha indelével — costumo afirmar — o Brasil jamais se redimirá.


 

Os Novos Camelôs

26/08/2002

 

Se a propaganda é a mola do sistema capitalista, no que de mim depender o capitalismo morre à míngua. Sou completamente avesso à publicidade. Se alguém quiser que eu não compre algo, basta anunciá-lo com insistência. Em minha biblioteca não há livro algum que freqüente a lista dos mais vendidos. Entre meus Cds não existe nenhum cujo autor esteja em listas de sucessos. Não vejo filmes cuja produção custa centenas de milhões de dólares e cuja exibição rende outros tantos milhões. O último filme que vi com sumo prazer foi East Side Story, de Dana Ranga, favor não confundir com West Side Story. Além de mim, só havia dois outros espectadores na platéia e aposto que raros leitores ouviram falar deste filme.

Com o tempo e a prática, adquiri uma visão seletiva: leio um jornal sem ler qualquer anúncio. Falando disto a uma amiga, quase gerei mal-entendido. “Publicidade pra mim é preto. Não vejo”. Assustada, ela olhou em torno. Conforme os ouvintes, eu poderia receber algum processo por racismo. Mas eu não me referia aos senhores afrodescendentes, como hoje quer a mídia que se diga. Eu pensava em certos cavacos do ofício. No final da noite, os redatores de um jornal descem às oficinas e dão uma olhadela na prova final das páginas, antes da impressão. Dessas páginas não constam os anúncios, que são substituídos por um espaço em negro. Era a este preto que eu me referia.

Não tenho a mínima idéia do que seja um Gol ou Passat. Sei que existem, sei que são carros, afinal seguidamente ouço falar dos ditos. Certamente já andei neles, mas não imagino quais sejam as diferenças entre um e outro. Em matéria de carros, consigo identificar apenas dois, a Kombi e o Fusca. Dada esta minha ignorância lapidar, identifico os carros de meus amigos pela cor. Jamais entrei em estádio de futebol ou salões de carnaval. Se vejo uma multidão rumando a algum lugar, tomo instintivamente a direção contrária. Se multidões adoram algo, boa coisa esse algo não há de ser. No caso do futebol, até hoje não entendo porque as pessoas lotam estádios. Se você gosta do esporte, pode assistir um jogo em todos seus detalhes, com uma visão mais privilegiada que a do próprio juiz, no conforto de sua casa. No estádio, muitas vezes nem o juiz sabe se uma bola entrou ou não entrou nas traves. A câmera sabe. Diga-se o mesmo desses megashows — e agora, das megamissas — nas quais você fica a um quilômetro do ator, seja ele o papa ou um cantor de rock. Decididamente, não entendo as multidões.

Ou talvez entenda. O homem contemporâneo, temeroso da desaprovação social e desprovido de qualquer individualidade, sente-se forte fundindo-se ao grande número. Se milhões gostam de algo, sente-se marginalizado se não comunga com a multidão. Os Hitlers e Stalins da vida sabem disso. E o Karol Woytilla também. E não perdem ocasião alguma de reunir, aos milhões, seus adoradores. Nosso mundinho está repleto de instituições ou eventos que não fazem falta alguma ao homem que pensa, como futebol, religião, shows de rock e mesmo o carnaval. A mídia tupiniquim endeusa o carnaval. Mas o que se tem visto, nos últimos anos, é mais gente fugindo da festa do que a ela acorrendo. As multidões que fogem das cidades nos dias de carnaval superam de longe os gatos pingados que o curtem. Como são estes — e não os que fogem — que inundam a telinha, a impressão é que o país todo está pulando em uníssono. Ora, a realidade nada tem a ver com isso.

A sociedade é pródiga em instituições que fogem a meu entendimento. Mas se há algo que não consigo entender mesmo, é a propaganda política. Com a proximidade das eleições, as ruas se tornam imundas com os rostos e sorrisos dos candidatos a salvadores da pátria. Pergunta ao leitor: existirá alguém que vá votar em alguém só porque viu suas fuças pregadas num poste? Nestes dias televisivos, onde até quem mora debaixo de viaduto tem televisor, os senhores candidatos bem que podiam poupar as ruas dos panfletos e carros de som. É preciso ter uma idéia muito vil do eleitor para imaginar que um candidato será votado só porque seu nome é berrado nas ruas.

As últimas eleições no país vêm sendo marcadas pela figura espúria do marqueteiro, este profissional que sonda as preferências das multidões e a elas adapta a imagem de seus clientes. O homem que vai dirigir uma nação de 200 milhões de habitantes passa a ser vendido aos eleitores como sabonete ou lâmina de barbear. Ao bronco dá-se uma mão de finura, ao velho bolchevique uma capa de liberal, ao corrupto uma aura de santidade, ao analfabeto uma aparência de homem vivido. Estes profissionais contam, antes de mais nada, com a curta memória das gentes. O que foi dito ontem é desdito hoje e amanhã pode ter uma terceira versão. O candidato é empurrado ao eleitor com a mesma desfaçatez que se lhe empurra um best seller ou um novo modelo de carro. Gente que nunca sambou passa a sambar grotescamente em gafieiras, clientes preferenciais do Massimo e do Fasano se dispõem a comer pastéis em feiras, políticos de ternos impecáveis enlameiam os sapatos saltando pocinhas em favelas.

A mentira virou norma no jogo eleitoral. Não nos resta nem a hipotética esperança de que “o povo não se deixa enganar”. Como cada candidato têm seu marqueteiro, o eleito terá sido eleito apoiado em falsas imagens. Não, não vou colocar as eleições no ror das coisas inúteis, como missa ou jogo de futebol. Mas em eleições que se pretendam limpas, a ação destes sofisticados camelôs contemporâneos deveria ser proibida. Os tribunais eleitorais, sempre tão preocupados em saber se fulano ofendeu beltrano, melhor fariam se tivessem como entendimento que a marquetagem ofende a democracia, a liberdade e a inteligência ... do eleitor inteligente, bem entendido.


 

Sigheh, o Caminh

02/09/2002

 

Iama, de Aleksandr Ivanovitch Kuprin, é uma das mais pungentes ficções que li em torno à vida das prostitutas. O autor nasceu em 1870, já abafado pela sombra de Dostoievski, e sua obra é hoje pouco conhecida. Em Iama, que em russo significa fossa, Kuprin descreve um bairro de prostituição de uma grande cidade meridional russa, no qual se podem encontrar à noite todos os espécimes humanos imagináveis. Através do repórter Platonov, assim vê a chamada “vida fácil”:

— O que me atrai e interessa nesse gênero de vida é sua verdade terrível e nua. A faltas de véus convencionais. Nela, não há mentira, nem hipocrisia, nem beatice, nem pactos de qualquer espécie com a opinião pública, com a autoridade dos antepassados ou com nossa própria consciência. Nada de ilusões, nem de artifícios! Aqui me tendes! Sou a mulher pública, o receptáculo comum, a cloaca para onde rola o excesso de lubricidade da urbe. Venha a mim quem quiser e nunca encontrará recusa, pois nisto consiste o meu serviço.

Kuprin falava — e com muito carinho — do lumpen do ofício. Sua narração gira em torno de um bairro pobre, nos estertores do século XIX. De lá para cá, a profissão mudou muito e inclusive atingiu um certo status nas sociedades ocidentais. Onde, conforme seu êxito na carreira, uma mulher pode se dar até mesmo ao luxo de selecionar clientes. Na Suécia dos anos 70, sem ir mais longe, a prostituta era quase equiparada a uma assistente social. Não mais cloaca, mas agente sanitária. Hoje, apenas três décadas depois, a profissão voltou a ser estigmatizada. Se hoje a prostituição é livre na Suécia, o cliente que busca uma profissional pode ser enviado à prisão. Até a França, cuja história e cultura são pródigas em exemplos da antiga profissão, já está pensando em punir os clientes com dois anos de prisão e € 30 mil de multa, para tornar o exercício do ofício “o mais difícil possível”. Já nos demais países da Europa as moças começam a organizar-se em sindicatos e associações de classe, tornando seu comércio uma profissão como qualquer outra. Uma sombra empana o mercado, o tráfico e a escravização de mulheres. Mas aqui o crime é outro, e não a venda do próprio corpo.

Uma onda de puritanismo parece estar envolvendo o Ocidente. Se a Europa tem sido mais pragmática na abordagem do problema, hoje, na maior parte dos Estados americanos, a tendência é criminalizar a prática. A prostituição vem sendo, através dos séculos, o nó górdio que civilização alguma conseguiu desatar. A proibição pura e simples resvala logo num impasse: não é fácil determinar quando uma mulher está vendendo seu corpo.

Já na África, a grande preocupação parece ser a castidade. Na cristã Suazilândia, celebrou-se na semana passada o rito conhecido como umchwasho. Cerca de vinte mil virgens do reino dançaram durante a cerimônia onde o rei escolhe a próxima noiva. Em um grande gramado, as meninas, algumas delas com sete anos, dançaram e cantaram diante do rei suazi Mswati III, de 33 anos, e sua mãe, a rainha Ntombi, no tradicional baile tribal. Mswati, há quase três décadas no poder, já tem dez esposas, mas pode se casar quantas vezes quiser. Não li, na imprensa européia, nenhum protesto de feministas contra este bárbaro costume, em que um macho todo-poderoso faz desfilar ante si um rebanho de súditas para escolher aquela que vai compartilhar seu leito. Deve ser o famoso respeito às diferenças culturais. Na África do Sul, a virgindade também é muito prestigiada. Como existe entre as tribos a crença de que a Aids só pode ser curada se for passada a uma virgem, as crianças são o alvo preferencial dos estupradores aidéticos. Ser virgem é fator de alto risco.

Se o Ocidente ainda debate a questão do sexo pago, coube ao islâmico Irã desatar o nó, apelando também à castidade. Segundo o jornal conservador Afarinesh, duas agências do governo encontraram a fórmula para resolver o problema. Seriam criadas as chamadas “casas de castidade”, onde o cidadão poderia exercitar sua luxúria em ambiente seguro e saudável. De acordo com o artigo, o plano envolvia o uso de forças de segurança, líderes religiosos e do judiciário para administrar as casas. Algo como o bordel concebido por Vargas Llosa em Pantaleão e as Visitadoras.

O governo iraniano nega a proposta, mas a intensidade do debate demonstrou as dimensões do problema em Teerã. De acordo com os números oficiais, cerca de 300 mil profissionais trabalham nas ruas da capital, que tem 12 milhões de habitantes. Para o aiatolá Muhammad Moussavi Bojnourdi, as casas de castidade se justificam “pela urgência da situação em nossa sociedade. Se quisermos ser realistas e limparmos a cidade dessas mulheres, precisamos usar o caminho que o islã nos oferece”.

Este caminho é o sigheh, o matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro. Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato. Esta prática foi aprovada após a “revolução” liderada pelo aiatolá Khomeiny, que derrubou o regime ocidentalizante do xá Reza Palhevi, como forma de canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa.

Tivessem os russos do século XIX a imaginação fértil dos muçulmanos, a história da literatura nos pouparia das angústias de Kuprin. Alá é grande.


 

Aos Vitoriosos de 64

09/09/2002

 

Os militares brasileiros costumam gabar-se de ter vencido o confronto que culminou com a chamada Revolução de 64. Graças à ação das Forças Armadas, foram derrotados os comunistas e compagnons de route que tentavam transformar o país em uma Cuba meridional. Três décadas depois, cabe a pergunta: foram?

Nunca foi tão pobre e minguado um 7 de Setembro no Brasil. Na capital federal, por escassez de combustível, apenas quatro blindados fizeram parte do desfile. O grupamento da Força Aérea Brasileira deixou os aviões estacionados e seus pilotos desfilaram a pé. Tampouco houve o tradicional sobrevôo de caças. Já no 25 de agosto, dia do soldado, faltou grana até para o coquetel de praxe e o desfile militar foi cancelado.

Faltasse verba apenas para comemorações, não seria tão grave. Mas as Forças Armadas avisaram o Tribunal Superior Eleitoral que nestas eleições não será fácil atender os pedidos de envio de tropas aos Estados diante da liberação antecipada de 44 mil recrutas no final de julho passado. Esta dispensa foi causada por cortes no Orçamento determinados pelo governo federal. Há algum tempo, os quartéis vinham liberando os recrutas para comerem em casa, já que o rancho andava escasso.

Enquanto o Exército nacional não tem verba sequer para alimentar seus soldados, o presidente Fernando Henrique Cardoso assina uma medida provisória que amplia a definição e os direitos dos anistiados políticos. Servidores públicos civis que foram punidos por adesão a greve serão reintegrados a seus cargos. Políticos, civis e militares que já haviam sido readmitidos poderão pedir indenização financeira à União — hipótese que era vedada na regulamentação da anistia do ano passado. As esquerdas e simpatizantes, que vivem protestando contra o arbítrio das medidas provisórias, contra esta certamente não terão objeções.

Em fevereiro deste ano, a Comissão de Anistia já havia aprovado concessão de indenização de R$ 59,4 mil para o presidente do PT, deputado José Dirceu, por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. “O Estado brasileiro cassou minha nacionalidade e me baniu do País”, afirmou o petista que, entre outras façanhas, trabalhou para os serviços de inteligência cubanos. A verdade é bastante diferente: José Dirceu era preso político e saiu do país em 1969 com mais 14 pessoas em troca da liberdade do embaixador norte-americano Charles Elbrick, seqüestrado por um grupo ligado ao MR-8. Saiu porque quis e mediante outra ação criminosa. Na época, 2.600 esquerdistas foram beneficiados e sete mil outros pedidos esperavam decisão da comissão. Pela nova regra, passaram a ter direito ao benefício civis e militares atingidos por medidas de exceção desde o início da década de 30 até a promulgação da atual Constituição, em 1988. Ou seja, os pilotos da Força Aérea, marinheiros e fuzileiros navais que em 1964 atentaram contra a nação, serão agora regiamente recompensados por sua desobediência à hierarquia militar. O valor das indenizações pode ser de até R$ 100 mil e a pensão especial mensal de até R$ 10,8 mil — maior salário que pode ser pago com recursos da União. A expectativa do presidente da comissão, no início deste ano, era de que pelo menos 40 mil pessoas apresentassem requerimentos. Mesmo os punidos que não conseguirem provar vínculo com atividade laboral, serão contemplados com 30 salários mínimos para cada ano da punição.

E as vítimas do terror? Cerca de 120 militares foram mortos por militantes de esquerda durante o regime militar. Em janeiro de 2001, o presidente da República em exercício, Marco Maciel, enviou ao Congresso Nacional quatro projetos de lei concedendo pensão especial a vítimas de violência política durante o governo militar. O único vivo a ser beneficiado com uma pensão de R$ 500,00 foi o ex-piloto Orlando Lovecchio Filho, que, em março de 1968 perdeu uma perna, na explosão de uma bomba colocada no Consulado americano, em São Paulo. Lovecchio, que na época tinha 22 anos, estava prestes a tirar o brevê de piloto comercial. Não teve só a perna amputada, mas também sua carreira. Sérgio Ferro, o terrorista que colocou a bomba, vive hoje em Paris, a capital preferida de nove entre dez defensores do proletariado.

Segundo o então secretário de Estado dos Direitos Humanos, José Gregori, a medida não contemplaria os 120 militares mortos, já que eram partes envolvidas em conflito. Além de Lovecchio, abrangeu os herdeiros de mais duas pessoas mortas pelo terror. De carona, entraram no projeto os herdeiros de frei Tito de Alencar Lima, que se suicidou na França em 1974. O suicídio foi debitado a perturbações mentais em decorrência das agressões sofridas em dependências policiais.

Leio no site da Secretaria de Assuntos Legislativos do Congresso, que até junho passado o projeto de indenização a Lovecchio ainda não havia sido aprovado. Quanto à primeira leva de anistiados, estes há muito estão gozando as benesses do regime que pretendiam derrubar. Se terroristas são recompensados, nada mais justo que suas vítimas também o sejam, este é o primeiro raciocínio que nos ocorre. Mas se pensarmos um pouco adiante, logo se revela a ironia da situação. O terror mata e o Estado paga. Traduzindo melhor: o terror mata e você, contribuinte, paga. Pois o Estado nunca paga coisa alguma. Quem paga somos nós.

Foram derrotados os comunistas? O que vemos são seus líderes em prosa e verso cantados, na literatura e no ensino nacionais, ostentando aura de heróis, dando nomes a salas, ruas e rodovias e gozando de gordas aposentadorias. Os militares, que se pretendem vencedores, foram jogados à famosa lata de lixo da História e relegados ao papel de vilões.

Enquanto seu Exército não tem verba sequer para pagar o rancho de recrutas e sua Força Aérea desfila a pé, aos vitoriosos de 64 Fernando Henrique Cardoso confere honras, glória e gordas aposentadorias


 

11/9 e 9/11

16/09/2002

 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
Fernando Pessoa

 

O dia que mudou a história da humanidade... Esta tem sido a tônica empregada por jornais e televisão para definir o 11 de setembro do ano passado. Naquela manhã, uma amiga me comunicou o fato por telefone, excitada, sem acreditar muito no que dizia. Liguei a televisão. Enquanto eu assistia ao que parecia ser, pelo menos nos primeiros segundos, mais um filme-catástrofe de Hollywood, recebo outro telefonema, também excitado, de um amigo. “O mundo nunca mais será o mesmo”, afirmava. Este foi o bordão da imprensa nas semanas e mesmo nos meses seguintes ao atentado. E continua sendo até hoje.

Passado um ano, cabe a pergunta: mudou o mundo? Me perdoem os adeptos da teoria da mudança: fora algumas medidas mais estritas de segurança nos aeroportos, o planetinha em nada mudou. A vigilância sobre os cidadãos aumentou nos Estados Unidos e Europa, mas isso sempre ocorre em períodos de crise. O atentado teve uma origem obviamente saudita. Mas a Arábia Saudita, mais que um país, é um poço de petróleo a céu aberto. Melhor bombardear o Afeganistão. De repente, o Ocidente, graças a seus bravos jornalistas, descobriu a ignomínia da burka. Pronto acorreram os bravos soldados americanos, para libertar as pobres mulheres oprimidas pelos taleban. E os jornais nos trouxeram dentaduras lindas, escolhidas a dedo pelos fotógrafos, em contraponto às fotos de soldados armados até os dentes. O Ocidente, com seus aviões e fuzis-metralhadora, devolvia às sofridas afegãs o sorriso roubado pelos malvados muçulmanos.

Durou pouco. O tempo de tirar algumas fotos, diria eu. Mal deram as costas os soldados — e, junto com eles, os jornalistas — as afegãs voltaram a encerrar os rostos naquela espécie de jaula de pano. Os taleban foram derrotados? Pode ser. Mas não será por isso que os machos muçulmanos irão renunciar a seus pequenos prazeres, entre eles o de manter a mulher numa condição abaixo do rabo do camelo.

Mas pelo menos algo de positivo trouxe o atentado às torres do WTC. Os eternos defensores do terror, que se escondiam em eufemismos, tiveram de tomar partido de uma vez por todas. Não poucos intelectuais no Ocidente — entre eles os Chomskys e Sontags da vida — apressaram-se a justificar a ação muçulmana. Os culpados das três mil mortes seriam não os fanáticos da Al Qaeda, mas os Estados Unidos e sua arrogância. Alguns meses depois, para deixar claro que o terror não é árabe, a imprensa internacional insistiu em mostrar um terrorista francês, que seria o 20° cúmplice dos autores do atentado. Se o leitor for além das manchetes, verá que o terrorista francês se chama Zacarias Moussaoui. Um nome evidentemente árabe. No texto, os jornais explicam que se trata de um marroquino com nacionalidade francesa. Mas até aí as manchetes já fizeram seu estrago.

Não bastasse o terrorista francês, a imprensa conseguiu encontrar um terrorista ... sueco. Como se os pacatos nórdicos estivessem preocupados em jogar bombas em quem quer que seja. Típico deste comportamento dos jornalistas interessados em minimizar a origem árabe do terror é a manchete da Folha de São Paulo:

Sueco é preso ao tentar embarcar com arma

Continua a notícia: “Um sueco que levava um revólver em sua sacola de mão foi preso ontem no aeroporto de Västerås, em Estocolmo, antes de embarcar em um vôo com destino ao Reino Unido. A polícia suspeita que o homem, de 29 anos e origem tunisiana ...” Ah bom! Se você se dignar a ler o resto, verá que o suspeito de terrorismo era na verdade um tunisiano com passaporte sueco.

Terremotos matam muito mais gente que os fanáticos da Al Qaeda. Mas aí o culpado não pode ser nominado. Para quem crê, é Deus. Ocorre que é sumamente incorreto imputar tais responsabilidades a este senhor. Certa vez, após um terremoto, encontrei nas ruas de Nápolis, um anônimo filósofo de tascas. Chamava-se Franco. Dizia que agora qualquer terremotozinho ocorria no sul da Itália e as comadres já se punham a acusar Deus, quando na época pagã, se havia um deus a quem culpar pelos estragos havia vinte a quem agradecer pelas vidas poupadas. Que um terremoto era algo providencial, a Itália toda ganhava, o Vaticano fazia seu proseletismo com esmolas, os comunistas faturavam eleitoralmente acusando a imprevidência da social-democracia e a Máfia embolsava os donativos enviados pelos generosos governos europeus. Sem falar que resolvia muitos problemas de patrimônio, jovens recebiam heranças consideráveis, livravam-se comodamente dos velhos sem ter de assisti-los quando inúteis. E após um terremoto, dizia Franco, podemos chorar uma semana ou um mês, encharcar um lenço ou um lençol, mas ninguém vai chorar a vida toda, que os mortos enterrem seus mortos e a vida continua, melhor rir e continuar vivendo, salute!

O mundo continua o mesmo e o planeta continua girando sem maiores solavancos. Da mesma forma qe os terremotos na Itália, o ataque ao World Trade Center trouxe muitos ganhos, tanto para políticos — Bush que o diga! — como para a economia. Se algo importante ocorreu nas duas últimas décadas, foi no dia 9 de novembro de 1989. O 11 de setembro é acidente. Trágico, é verdade, mas acidente. Mas do 9 de novembro ninguém quer lembrar. O leitor pode fazer um teste. Pergunte a seus coetâneos o que ocorreu naquela data. Nove entre dez não saberão responder. Naquele dia, o mundo de fato mudou. Três mil cadáveres não mudam coisa nenhuma.


 

Nove de Novembro

23/09/2002

 

Na crônica passada, sugeri ao leitor perguntar a seus coetâneos o que havia ocorrido em 09 de novembro de 1989. Sem nenhum cadáver, naquele dia, o mundo mudou. Avancei que nove entre dez interlocutores não saberiam responder. Pelo número de e-mails que recebi querendo saber o que havia acontecido na data, creio que superestimei a memória das gentes. Recebi mensagens inclusive de leitores assíduos desta coluna, que suponho conhecedores da história presente. Ora, de 1989 para cá, são apenas 13 anos. Mas não me surpreendi. Já encontrei pessoas entre 40 e 50 anos que jamais ouviram de Pol Pot,. Sobre Kravchenko ou Zdanov, já nem ouso perguntar.

O Nove de Novembro foi colocado pela imprensa européia como a segunda revolução do século. Da primeira, em outubro de 1917, obviamente ninguém esquece. Em novembro de 1989, cai o Muro de Berlim. Naquele dia emblemático, se consumava a derrocada de uma tirania que, em apenas sete décadas, produziu 100 milhões de cadáveres no mundo todo. O acontecimento foi tão insólito que jamais constou das previsões de ficcionistas ou kremlinólogos. Nova York já fora arrasada dezenas de vezes pelos cinema americano, o planetinha também. Mas o Muro permanecia intocado, como uma realidade eterna e inexorável, na imaginação de estudiosos, escritores e cineastas.

Dois anos depois, a União Soviética desmoronava. Logo após, a Iugoslávia se partia em cacos. Era o fim de um império que parecia inexpugnável e acabou caindo... de podre, não mais que de podre. Quem viveu aqueles dias gozou do raro privilégio de assistir à morte de uma grande religião. Em janeiro de 90, não resisti à tentação. Fiz minhas malas, muni-me de um martelo, e fui quebrar uns cacos daquela infâmia, antes que o derrubassem de todo.

Morreu o comunismo? Não exatamente. Nietzsche já nos alertava sobre o quanto fede o cadáver de um deus morto. Mas o fantasma que rondava a Europa, conforme a ameaça do apocalíptico profeta alemão, já não mais ronda a Europa. Os países da finada União Soviética, apesar das lamúrias das carpideiras desconsoladas, estão vacinados contra a peste. Sobram Cuba, Coréia do Norte e China. Nesta última, a nomenklatura parece estar sendo bem sucedida na tentativa de entregar os anéis para não perder os dedos. A verdade é que não há economia que funcione sem liberdade de expressão e de associação. Em pleno século XXI, a Internet continua praticamente proibida na China. Recentemente, mecanismos de busca como o Google e o Altavista foram barrados. A propalada liberação do regime é cantiga para viúva dormir. Assim, quando falo em derrocada do comunismo, isto quer apenas dizer que a doutrina não se sustenta mais como bandeira. Não por acaso, tanto na Europa como no Brasil, os antigos PCs trataram logo de mudar de nome. Quanto aos militantes, mudaram de vocabulário. Entre nós, para melhor enganar os eleitores, o PT retirou de seu programa a palavra socialismo. Retirada tardia, mas significativa. Com este gesto os petistas demonstram ter entendido que o eleitorado não quer nada com socialismo.

Em Estocolmo — e já lá vão trinta anos — uma amiga sueca me falava de seus conflitos familiares. Ela era guia turística e batera pernas pelo mundo todo, para desgosto dos pais, que preferiam vê-la em profissão mais rentável. Ela discordava. Se possuísse bens, os russos poderiam confiscá-los caso invadissem a Suécia. “Minha memória é meu patrimônio. As minhas viagens, estas ninguém me tira”. Na época, aquela apreensão ante a ameaça comunista me parecia absurda. Que soubesse, nem a Rússia nem a URSS tinham projetos de invadir a Suécia. Mais tarde, encontrei entre franceses o mesmo medo escondido nalgum escaninho da alma. Eles, europeus, viviam ao lado do horror, tinham notícias do horror e, portanto, temiam o horror. Nós, que sempre vivemos longe do colosso russo, jamais tivemos tais preocupações. Um europeu jamais esquecerá o Nove de Novembro. Entre nós, não foi possível evitar a cobertura dos fatos. As redações dos jornais brasileiros noticiaram a Queda do Muro rangendo os dentes. Mas logo trataram de esquecê-la. Para ter uma idéia desta providencial amnésia, procure no Google “9 november 1989”. Encontrará 6.220 referências. Ponha a data em português. Você encontrará apenas ... três.

Se o comunismo virou verbete de enciclopédia no continente que o gerou, o mesmo não se pode dizer deste “continente puñetero”, como dizia Alejo Carpentier. Ainda na semana passada, um fóssil Oscar Niemeyer louvava o último ditador do continente: “Nós precisamos usar aqui o exemplo do Fidel. Um país que era completamente desmoralizado, colônia americana. Um grupo se reuniu, foi para montanha, depois veio a revolução. Você vai lá e ele está no meio do povo. É um sujeito muito bom, é um líder da América Latina”. E enquanto os cubanos sobrevivem como podem à fome e escassez produzida pelo sujeito muito bom, dá-se ainda ao luxo de louvar Stalin. Interrogado se continuava esperançoso com o comunismo, afirmou: “Sim. O que se passou na União Soviética foi um acidente de percurso. Outro dia veio um soviético falar comigo. Perguntei a ele o que ele pensava de Stalin. Ele disse que estava de acordo com tudo o que ele fez. De modo que a idéia não acabou. Está no ar”.

Um acidente de percurso, então. Só na ex-URSS, vinte milhões de mortos. A Folha de São Paulo concedeu duas páginas ao celerado. Não bastasse isto, titulou com gosto:

Niemeyer é o desenho da generosidade

É conveniente para os saudosos do horror do século passado que ninguém lembre o Nove de Novembro. A imprensa, comprometida, agradece.


 

Bom dia, terceiro-mundismo!

30/09/2002

 

Confortavelmente instalado nos índices de pesquisa, que o apontam como candidato preferencial à Presidência do país, o novel estadista já demonstra seus dotes diplomáticos: chamou a Argentina de republiqueta. Para quem vê na paupérrima Cuba a culminância dos sonhos da humanidade, a afirmação não surpreende. É o ressentimento surdo do homem inculto, que vê na desgraça presente do país vizinho a oportunidade de pisar-lhe em cima. Não bastasse insultar a cultura que nos deu Hernández, Sarmiento, Arlt, Borges e Sábato, o rato que ruge assestou sua retórica contra os Estados Unidos. De Bush, disse que “de cada dez palavras que ele fala, nove são para criar uma guerra”. Frase boba de efeito, é verdade, mas que repercute na imprensa internacional e sempre acaba chegando aos ouvidos da autoridade que, quer queiramos ou não, é parceiro privilegiado do Brasil na economia internacional.

Que um jornalista diga tal impropério, se entende. Jornalistas, por um lado, adoram frases de efeito. Por outro, não terão de um dia sentar com presidentes para negociar a dívida externa. Mas um potencial dirigente de uma nação não pode dar-se ao luxo de proferir leviandades de jornalista. A menos que Lula pretenda ter como parceiros comerciais Cuba, Rússia, Índia, Angola et caterva, unidos no bloco do pires na mão. Afinando com a linha diplomática do estadista, seu vice aventou uma solução singela para a guerra no Oriente Médio: que Israel mude de território. Imagine outro que não um petista afirmando tal despautério. Seria logo qualificado como racista, nazista, genocida e mimos similares. Se as pesquisas se confirmam, o próximo governo terá em suas relações internacionais “enes problemas”, como diria o candidato do PT. Como diria e de fato disse, em sua entrevista coletiva na sede do Estadão.

A partir dos 70, as esquerdas procuraram desmoralizar o governo militar, insistindo na tecla do analfabetismo dos presidentes. Costa e Silva ficou no imaginário popular como quem teria afirmado que o ângulo reto ferve a 90 graus. Durante décadas, as esquerdas negaram qualquer verniz de cultura a quem quer que fosse fardado. Ora, não é exatamente um analfabeto quem sai de uma escola militar. Hoje, no melhor estilo da novilíngua orwelliana, as esquerdas conseguiram vender a idéia de que ignorância é sabedoria. Que instrução é descartável. Lula chegou a merecer o apodo de Menas Miséria, por sua extraordinária nonchalance ao flexionar advérbios. Há lacunas irrecuperáveis na educação, que nenhuma militância supre. O projeto de estadista que chama a culta Argentina de republiqueta, nos traz agora esta pérola, digna daquelas listas de respostas absurdas de vestibular: “enes problemas”. Imagine o leitor se um militar, nas últimas décadas, falasse em “menas miséria” ou “enes problemas”. Seria crucificado pela mídia. Tentando justificar a incultura do candidato, o PT brande Carlos Magno, rei dos francos e analfabeto. O exemplo é emblemático. O partido parece pretender recuar não para o século XIX, mas para o VIII.

Melhor ainda: imagine o leitor se o candidato do governo louvasse Hitler. Por muito menos que isso, estudantes da Escola Militar de Porto Alegre, que viram em Hitler um dos grandes estrategistas do século, foram sumariamente taxados como nazistas. Mas o rato que ruge pode. Em julho de 1979, quando era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista e articulava a criação do PT, Lula deu uma entrevista à revista Playboy, onde elogiou a “disposição, força e dedicação” do líder nazista e afirmou: “O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer”. Não só tentou como conseguiu: algo em torno de 30 milhões de mortes. Não contente de louvar o genocida alemão, revelou outra de suas simpatias, o aiatolá Khomeini: “Eu não conheço muita coisa sobre o Irã, mas a força que o Khomeini mostrou, a determinação de acabar com aquele regime do xá foi um negócio sério”. Foi realmente um negócio muito sério: um milhão de cadáveres.

Como sapo hipnotizado por serpente, o eleitorado brasileiro está perto de eleger o mais inculto, falso e incongruente de todos os candidatos. Nenhum é flor e todos mentem. Mas o PT mente mais. Recebe dirigentes das FARC com tapete vermelho, propõe abrir escritórios da guerrilha no país e, ao mesmo tempo, nega qualquer relação com o terror. Seus governadores estão atolados até o pescoço em negociatas com empresas de lixo, transporte e jogo do bicho, e o candidato fala em combater a corrupção. Fala em democracia e louva Castro e sua ditadura. O partido prega ética e governa com a bandidagem. Qualquer outro candidato que não o do PT, se dissesse a metade do que Lula diz, estaria desqualificado para o pleito.

O século passado viveu sob o signo de uma estrela, a estrela vermelha do Kremlin, reproduzida aos milhares em todo o mundo soviético. O partido herdeiro do obscurantismo marxista, para bem marcar suas origens, elegeu a estrela russa como seu logotipo. Depois do desmoronamento do comunismo, foi necessário um duro trabalho de engenharia, em todos os países ex-socialistas, para remover dos prédios públicos o símbolo da tirania. Neste nosso país incrível, à contra-mão da História, a estrela renasce dos escombros.

Delfim Netto afirmava que o PT já deveria ter assumido o poder, para que o país fosse logo vacinado. Ocorre que a vacina, se vier, virá tarde. Só vai ativar um vírus morto. Quando a fatia civilizada do planetinha rejeita a doença, o Brasil a assume.

Bom dia, terceiro-mundismo. Bom dia, Chávez e Chomski. Bom dia, Farc e Fidel.

Afunda, Brasil.


 

A Vitória dos Intelectuais

07/10/2002

 

Quem me conhece ou lê o que tenho escrito ao longo dos últimos trinta anos, sabe que não morro de amores pelo Brasil e tenho certo apreço pela Europa. Este meu apreço, bem entendido, não é incondicional. Da Europa provêm também as pragas que nos fazem patinar no subdesenvolvimento, entre elas o marxismo e o cristianismo.

“Se quisermos expulsar de nossa civilização européia a religião” — escrevia Freud em 1927, em O Futuro de uma Ilusão — “não se poderá chegar a isso senão com a ajuda de um novo sistema, e este sistema, desde sua origem, adotará todas as características psicológicas da religião: santidade, rigidez, intolerância e a mesma proibição de pensar, como autodefesa”. Que mais não fosse, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados talvez pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário “Os Buscadores de Deus”, que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento “Os Construtores de Deus”. Seus adeptos tinham inclusive uma prece própria: “Proletariado nosso que estás na terra, bendito seja teu nome, seja feita tua vontade, venha a nós o teu poder”. Gorki, que julgava a mentira necessária contra as “verdades nefastas”, diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o “socialismo deve se transformar em culto”. Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: “nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo”. Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. Temos um Cristo redivivo.

Antes de morrer, Gorki afirma: “Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão”. Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só falta o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino. Chamava-se Josef Vissarianovitch Djugatchlevi, que ficou mais conhecido como Stalin, palavra russa que significa “o de aço”.

O socialismo, antes de ser um projeto de proletários, foi uma utopia de intelectuais. Foi e continua sendo. A doutrina, surgida entre os utopistas do século XIX, foi assumida pela universidade e pela imprensa do Ocidente. Enquanto os países do Leste europeu a abandonaram com alívio nos estertores do século passado, ela se mantém viva em alguns núcleos universitários da Europa e Estados Unidos. E, na América Latina, o mundo acadêmico, de um modo geral, segue o pensamento de José Carlos Mariátegui. Em Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana, o marxista peruano via a universidade como uma máquina de demolição da sociedade burguesa, uma instituição destinada a formar ativistas e militantes.

Não dá para entender, dizem algumas almas ingênuas, que sendo a falta de diploma universitário uma das principais vulnerabilidades de Lula, no segmento universitário ele tenha 53% das intenções de voto. Ingênuas ou talvez nem tanto. Ao fazer esta afirmação, estas cândidas alminhas parecem ignorar que a universidade, como um todo, é de esquerda. A universidade brasileira é — e sempre foi — o grande difusor do marxismo no Brasil. A doutrina foi encampada inicialmente pela USP e a partir deste cerne contaminou o mundo universitário. O PT é hoje o fruto mais representativo do pensamento uspiano e não é à toa que boa parte de seus gurus são oriundos da universidade paulista. Marxismo pode ter mobilizado os operários do início do século passado, mas o operariado de nossos dias tem outro perfil e com marxismo não quer nada. O sonho de um operário no poder virou hoje vício universitário. Não só dá perfeitamente para entender que a universidade construa e eleja Lula, como também é lógico. Isolados nestas ilhas artificiais que são os campi, longe do mundo dos comuns mortais, os universitários até hoje se masturbam com utopias românticas do século XIX.

A imprensa européia, particularmente a francesa, já está saudando o “operário transformado em presidente”. Também é inteligível. A intelligentsia européia do século passado foi um dos sustentáculos da utopia obsoleta e sempre apoiou um presidente operário ... desde que longe da Europa. Desde há muito a América Latina foi escolhida pela Europa como uma espécie de laboratório para experimentos sociais. Os experimentos fracassaram no Chile, Cuba e Nicarágua. O Brasil é a próxima cobaia.

Lula não é o candidato dos operários, mas da intelectualidade tupiniquim, da mesma forma que o PT nunca foi um partido operário, mas universitário. Num rompante de megalomania, o candidato identificou-se a Carlos Magno, Gandhi, Lincoln, Mandela e Machado de Assis, sem que em sua biografia haja um único momento que permita tal comparação. Para dar o toque místico de sua campanha, não hesitou em comparar-se a Cristo. Temos então um novo deus, como queria Gorki? Trajando Armani, para insinuar modernidade? Em pleno século XXI, o Brasil opta por uma utopia ... do século XIX. Utopia rejeitada pela Europa e jogada à América Latina como os restos de um pesadelo.

Quando as eleições são livres, cada país tem o governo que merece.


 

Imprensa Engana Eleitor

14/10/2002

 

Publiquei O Paraíso Sexual Democrata em 1973. Era meu primeiro livro e em quinze dias teve uma edição esgotada. Atribui o fato à novidade do relato: pela primeira vez era publicado, no Brasil, um livro de autor brasileiro sobre a Suécia. O ensaio teve quatro edições e uma tradução ao espanhol, na Argentina. Para autor novato, era uma surpresa e tanto. Eu não era marxista, não militava em partido nenhum, nem de esquerda nem de direita, nem tinha o público cativo dos autores de listas de vestibular. Só bem mais tarde, fui intuir as razões da boa vendagem do livro.

Foi quando uma editora marxista de São Paulo publicou minha primeira antologia de crônicas, A Força dos Mitos. Desta vez, era mistério dos bons. Já na época, eram profundas minhas divergências com os comunistas. Na faculdade, me acusavam de ser agente do Dops. Já no Dops, eu tinha de explicar que não era comunista. Meu editor desfez o mistério: um de seus assessores editoriais, ex-membro da Academia de Ciências da URSS, considerara o Paraíso “um livro revolucionário”. Ora, jamais estivera em minhas pretensões escrever um livro revolucionário, nem me passava pela cabeça um dia ser recomendado por um cientista russo. O que estava em jogo, era uma antiga rusga histórica entre a Segunda e a Terceira.

Abomino ser didático, mas curta é a memória das gentes. Por Segunda, entenda-se a Segunda Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1889, na França, em continuidade à Primeira Internacional, fundada por Marx, em 1864, em Londres. O plenário da Segunda divide-se em duas correntes, a dos representantes ingleses e franceses, defensores do marxismo revolucionário, e a dos socialistas alemães, que aceitavam a via gradual para o socialismo, pela ação parlamentar. Neste momento nasce o Partido Social Democrata alemão, embrião das futuras sociais-democracias nórdicas. Por Terceira, entenda-se a Terceira Internacional, também conhecida como Komintern, fundada em 1919, por Lenin, em Moscou. Seu objetivo era apoiar a Revolução Russa e promover a revolução socialista nos outros países por intermédio de partidos comunistas centralizados e fiéis a Moscou. A ação do Komintern no Brasil e na América Latina foi denunciada por Osvaldo Peralva, militante do PCB, no livro O Retrato, publicado em 1962, pela Editora Globo, de Porto Alegre. Mas quem lembra hoje de Peralva ou de sua denúncia? Pesquisando nos arquivos de Moscou, William Waack confirma documentalmente as denúncias de Peralva, em Os Camaradas, publicado em 1993 pela Companhia das Letras. Procure este livro nas livrarias. Claro está que não vai achá-lo.

Rachas e antagonismos anularam a Segunda. A Terceira foi dissolvida em 1943, como gesto de amizade em relação aos aliados da II Guerra. Mas a querela percorreu o século passado inteiro, os partidários da Terceira vendo os sociais democratas como inimigos figadais. Estes foram designados pejorativamente como reformistas. Isto é, contentavam-se com reformas, em vez da revolução. Como as sociais democracias se revelaram uma resposta eficiente aos problemas sociais do século, eram mais odiadas pelos comunistas que o próprio capitalismo.

Volto a meu livro. Como eu havia feito uma áspera crítica ao regime sueco, fui adotado pelas esquerdas. “É contra a social-democracia? Então é dos nossos” — devem ter pensado tanto o cientista russo quanto o editor paulista. Ocorre que eu não era dos deles. Antes mesmo de cursar Filosofia, eu já lia História da Filosofia, e o marxismo me parecia um pensamento por demais tosco, uma falta de respeito ao intelecto.

Com as denúncias da ditadura soviética e o crescente desprestígio da doutrina marxista, os comunistas ocidentais adotaram uma estratégia que se revelou eficaz: identificaram o socialismo soviético com o socialismo das sociais democracias. Para um público desavisado, que não viajava e pouco era dado a leituras históricas, a Europa parecia rumar ao socialismo. Como se houvesse alguma semelhança entre as democracias nórdicas e as “democracias populares” do Leste europeu. A campanha de desinformação foi devastadora. Hoje, no Brasil, é comum ouvir-se: a França optou pelo socialismo sem que houvesse ruptura alguma com o sistema anterior. Donde se conclui: vote no PT que não vai doer.

Paris, 10 de maio de 1981, eleições na França. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga gaúcha. Tão logo entrei em casa liguei a televisão. Às cinco da tarde foi anunciado o vitorioso. O rosto foi sendo formado aos poucos na telinha, em fatias, de cima para baixo. Já na quarta ou quinta fatia, deu para perceber que aquela careca ilustre, que regeria os destinos da França pelos próximos sete anos, não era a de Giscard d’Estaing. E sim a de Mitterrand. Minha hóspede gaúcha, com a cabeça feita por nossos jornais, entrou em pânico. Queria fazer as malas e voltar ao Brasil no primeiro vôo, antes que fechassem as fronteiras. Ela traduzira a mensagem pelo lado avesso. Via em Mitterrand a encarnação do socialismo soviético.

A imprensa brasileira, safadamente, mostrava o socialismo como algo benéfico à saúde das nações. Com este jogo de palavras, as esquerdas em verdade queriam vender o socialismo da Terceira. No Brasil, líderes que organizaram e financiaram a guerrilha marxista, do dia para a noite passaram a defender a social-democracia, como se nada tivesse acontecido. Para todos os efeitos, continuavam socialistas. A desinformação foi martelada por décadas neste território fértil em credulidade, onde em se plantando tudo dá.

Assim, ninguém se surpreenda com estas eleições, onde os arautos de uma doutrina morta estão prestes a assumir o comando da nação. A imprensa foi cúmplice das esquerdas, que agora colhem os frutos da paciente semeadura. Desfazer este trabalho será tarefa de gerações.


 

Quem Tem Medo de Saddam Hussein?

21/10/2002

 

Aos velhos stalinistas transfigurados da noite para o dia em sociais democratas, costumo comparar àquele personagem de Kubrick, o cientista nuclear alemão refugiado nos Estados Unidos. Paraplégico, prisioneiro de uma cadeira de rodas, volta e meia seu braço direito começa a erguer-se, involuntariamente, para saudar o Führer. Com o braço esquerdo, Dr. Strangelove faz força para conter os reflexos do direito. Por mais que nossos velhos comunistas adotem uma pele democrática, volta e meia o bracinho impenitente se ergue em saudação ao Paizinho dos Povos.

Se alguém duvida, leia o que está ocorrendo com a atriz Regina Duarte. “Estou com medo” — disse ela na segunda-feira passada, no programa eleitoral de José Serra — “de que o País perca a estabilidade tão duramente conquistada”. Foi o que bastou para líderes petistas a acusassem de terrorismo eleitoral. “Sua tentativa de dividir seu medo com a Nação chega a ser patética”, disse um deles. Com a costumeira elegância que o caracteriza, o novel estadista Lula chamou-a de velha.

É o velho patrulhamento ideológico dos anos 70 de volta. Para quem não lembra, naqueles dias artista nenhum, intelectual nenhum, podia pronunciar-se contra as esquerdas. Sua morte civil era sumariamente decretada, sem direito a apelação. Mais recentemente, uma atriz que ousou participar da campanha de Maluf foi satanizada pelo PT. Para um nome do mundo das artes, participar de palanques do PT é salutar, digno e justo. Participar de palanques do adversário é terrorismo.

Muita tinta correu sobre a censura dos militares. Quase nada foi dito sobre a censura das esquerdas. Entre ambas, havia uma diferença considerável. A censura do poder militar era uma espécie de aval a um livro, canção ou peça de teatro. Autor censurado, autor consagrado. Autores mais ágeis entenderam rapidamente a mensagem e salpicavam suas obras medíocres com palavrões cabeludos, esperando merecer a consagração da censura. A década estava grávida de talentos abafados que, curiosamente, uma vez terminada a censura, não conseguiram manifestar o gênio que prometiam.

Quando à outra censura, esta funcionava mesmo. Autor colocado no Índex das esquerdas desaparecia da universidade, da imprensa e mesmo da indústria editorial. Isso quando até esta indústria haviam chegado. Há centenas de livros vitais publicados no século passado, em inglês, francês, espanhol, italiano ou alemão, que jamais chegaram ao leitor brasileiro. Os editores tinham ciência de que, se os editassem, não teriam mais espaço nos jornais. Daí esta deplorável falta de informação nossa sobre os fatos do século. Quase ninguém sabe hoje quem foram, por exemplo, Zdanov, Lyssenko, Kravchenko, nomes fundamentais para que se entenda o obscurantismo marxista. Comentei, em crônica passada, que hoje ninguém mais lembra da Revolução do Nove de Novembro. De 1989, é bom salientar. Recebi pilhas de mails perguntando que havia ocorrido de insólito nessa data.

O PT tem recebido muitas críticas ao longo desta campanha. À primeira vista, parece estranho que a manifestação de uma atriz provoque tanto medo entre as hostes petistas. Mas só à primeira vista. O partido dito dos trabalhadores já percebeu que seu eleitorado é uma espécie de maria-vai-com-as-outras, propenso a crer no que qualquer ícone televisivo afirma. Os eleitores que hoje deixariam de votar no PT em virtude do pronunciamento da atriz são os mesmos que votariam no PT, se ela afirmasse ter medo da continuidade, do candidato do governo. Claro que neste caso ela não seria execrada como terrorista, mas tida como intérprete das mais legitimas angústias da população.

Bom filho, o PT herdou de seus ancestrais ideológicos a certeza de possuir a Verdade. Se você já conviveu com marxistas, certamente ainda lembra como eles o olhavam caso você discordasse de sua fé nos rumos da História. Era um olhar de superioridade intelectual mesclado a uma profunda lástima: você, analfabeto político, ainda não recebera a iluminação das Verdades Eternas. Se há alguma característica comum e constante em toda a militância do PT é esta: a convicção profunda de que são detentores da Verdade e quem deles discorda vive nas trevas. O PT não aceita críticas. Uma vitória por larga maioria de votos não basta. Quer unanimidade. Tem a mesma filosofia de Cristo e George Bush: quem não está comigo está contra mim. A qualquer crítica, lá vem a ladainha: por que tanto ódio? Por que esse preconceito? Aonde você quer chegar fazendo terrorismo eleitoral?

“Tenho medo do homem incapaz de mudar de idéias” — dizia Albert Camus. Mais do que o medo à perda da estabilidade “tão duramente conquistada”, este é o medo que mais deveria preocupar o mundo da mídia. Se discordar dos donos da verdade provoca tais reações inquisitoriais, quando estes senhores ainda nem chegaram ao poder, imagine o que o nos espera quando eles lá chegarem. Antes mesmo de tomar posse do Planalto, o braço totalitário petista já se ergue em saudação à intolerância.

Mas nem tudo é notícia ruim neste nosso mundinho contemporâneo. No Iraque, por exemplo, o bem amado presidente Saddam Hussein, no poder desde 1979, venceu o referendo para sua reeleição por mais sete anos: 11.445.638 de votos a 0. Placar para petista algum botar defeito. Comparecimento de 100% dos eleitores e nenhum voto contra Saddam. No referendo anterior, em 1995, Saddam obtivera 99,96% dos votos. A verdade sempre vence.

Osama nas alturas! Os 0,04 terroristas de 1995 finalmente a descobriram. Saddam é o sonho petista.


 

De Minha Vergonha

28/10/2002

 

Minha estima pelo Brasil, já escassa, sofreu ontem mais uma queda. Não morro de amores pelo Brasil, afirmei em crônica passada. Foi o que bastou para que patriotas saltassem de todos os quadrantes, em desagravo à heresia. Entre os brasileiros, particularmente entre os que vivem no exterior, há uma certa raça que considera que brasileiro tem de gostar do Brasil. Como se este preceito estivesse escrito nalguma tábua eterna e sagrada das leis. Talvez não saibam, mas estão repetindo a filosofia dos militares pós-64: “ame-o ou deixe-o”. É uma lógica no mínimo curiosa. A partir dela, temos de concluir que se você nasceu no Congo ou no Zimbábue, tem de amar o Congo ou o Zimbábue acima de todas as nações.

Brasilien über alles — parece ser este o brado dos defensores incondicionais da pátria nossa. Esta patriotada típica de Terceiro Mundo, vamos encontrá-la também nos botecos da vida. Sedentários que jamais ousaram ir ao menos a Montevidéu ou Buenos Aires, se arrogam o direito de colocar o Brasil como o mais esplêndido dos países. Pelo jeito, ouviram Bilac na escola e o parnasiano lhes basta como visão de mundo. “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste! Criança, jamais verás país como este!”.

Não se pode conhecer uma catedral permanecendo dentro dela, dizia Chesterton. De minha parte, fui conhecer o Brasil após morar no estrangeiro. Só conhecemos comparando. Já estive em países árabes e em países socialistas, onde me senti feliz por ter nascido no Brasil. Perambulando pela Romênia, Bulgária, ex-Alemanha Oriental, Argélia, Egito ou Tunísia, de repente me senti tomado pela insólita alegria de empunhar o passaporte verdinho. Entre os que me fazem feliz por ter nascido aqui, está inclusive a ex-todo-poderosa Rússia. A atual, bem entendido, pois creio que não me desagradaria flanar pela de Dostoievski. São Petersburgo, por exemplo. Tem o Ermitage, é verdade, tem seus palácios e igrejas soberbas, tem seus canais. Mas tudo isto é herança dos tempos do tzarismo. A cidade foi concebida para a grandiosidade. Ao flanar por suas ruas, você sente que, em algum momento da história, algo interrompeu esta caminhada. Fale com seu guia. Em geral, são professores universitários ou universitários que fazem um bico para arredondar as contas no fim do mês. E quando você, brasileiro, fica sabendo que um professor universitário russo ganha vinte dólares por mês, uma inusitada felicidade o invade e intimamente você exclama: maravilha, o meu país. A vida — costuma-se dizer na Europa — é como uma viagem aos países do Leste: breve e cheia de aborrecimentos.

Mas estive também em outros países, onde ser brasileiro é uma cruz pesada de carregar. Se você teve a oportunidade de viver algum tempo em Estocolmo, Berlim, Paris — ou mesmo na caótica Roma — ao voltar será acometido para sempre de uma incômoda sensação de inferioridade. Sem ir mais longe, em qualquer destas cidades você pode tranqüilamente flanar por ruas e vielas a qualquer hora do dia ou da noite, sem estar exposto a risco algum, seja de roubo, seja de vida. Este singelo prazer, o de passear pelas cidades que habitamos, nós, brasileiros, há muito o perdemos. Estamos cada vez mais encerrados atrás de grades e para nós já parece milagre existirem países onde cidadãos possam viver sem ser atrás de grades. Consta que se uma rã for posta em uma panela com água e se você aquecer aos poucos a água, a rã frita sem perceber que está sendo fritada. Habitantes das grandes cidades, há muito estamos fritos e resignados com a fritura.

O homem viajante é um ser que sempre volta dividido. Viu a luz que emana da boca da caverna, segundo o mito platônico, e já não consegue suportar as trevas interiores do buraco em que vive. Se viajar pelo mundo desenvolvido é um dos grandes prazeres do espírito, a viagem a países atrasados não deixa de ser pedagógica. Quem teve a chance de visitar o Leste europeu antes de 1990, pode constatar como o socialismo empobreceu aquela parcela do continente, que um dia foi próspera e rica. Com a derrocada do marxismo, aqueles países lentamente começaram a erguer-se da miséria em que viviam. Os monumentos a Marx, Lênin e Stalin foram derrubados e a estrela vermelha foi arrancada com entusiasmo dos prédios.

No início dos 90, os países do bloco soviético abandonaram o socialismo e hoje tentam recuperar o século perdido. Uma década depois, os brasileiros elegem os arautos do obscurantismo. Até mesmo os franceses, que sempre tiveram o coração à esquerda, nas últimas eleições relegaram as esquerdas ao ostracismo. O Brasil, sempre ignorando as conquistas do Primeiro Mundo e sempre imitando seus piores achados, entrou de vez na contra-mão do futuro. Por duas vezes, no século passado, em 35 e 64, conseguiu impedir o assalto comunista ao poder. Na entrada deste novo século, devolve esse mesmo poder aos derrotados da História. Alijados do poder no mundo desenvolvido, os marxistas renascem das cinzas no hemisfério sul. Enquanto na Europa e Leste europeu a estrela vermelha foi jogada na famosa lata de lixo da História, no Brasil a estrela sobe. As múmias de Marx, Lênin, Castro e Che Guevara voltarão à ordem do dia. Criança, jamais verás país como este!

Se antes não via maiores razões para orgulhar-me de meu país, hoje nutro vergonha. Não será fácil, nos próximos anos, explicar a um interlocutor estrangeiro: meu governo é socialista e meu presidente não domina sequer o vernáculo. Será como se, em pleno século XXI, eu tivesse voltado ao XIX. Mas o povo assim decidiu. Nestes nossos dias, a palavra povo substituiu a palavra deus. Seja feita sua vontade.


 

Roupa nova para o antigo

04/11/2002

 

O universo de língua inglesa em pouco ou nada me atrai. Sempre me senti à vontade no mundo hispânico ou francófono e nunca me senti muito em casa em universo anglófono. Raras vezes botei meus pés nestas plagas e devo confessar que não me restaram maiores ganas de voltar. Não tanto pela língua, mas talvez pelo palato.

Quem andou pela Inglaterra nos anos 70, sabe que desastre era tentar comer algo por lá. Tanto que não faltavam piadas sobre a cozinha inglesa. O remédio era refugiar-se em restaurantes chineses ou italianos. Os jornais hoje contam que a gastronomia evoluiu na ilha, mas em nada me atrai a idéia de voltar para conferir. Já nos Estados Unidos, o que me choca é a forma brutal com que é tratado o cliente. Mal você senta e pede uma cerveja, o garçom pergunta: “é só isso?”. E já vai passando a conta. Ora, nunca sei se é só isso. Preciso antes perscrutar o ambiente, avaliar o serviço, examinar os habitués. Só depois posso saber se era só aquilo. Se tudo me agrada, posso pedir mais, ficar uma hora ou duas lendo ou conversando. Se nada me agrada, era só aquilo mesmo.

Naquelas plagas, o garçom parece considerar você um reles bebum, que vai ao bar apenas para beber. Estamos longe da cultura do Velho Continente, onde os cafés são salas de convívio intelectual, onde se vai ler, estudar, conversar, namorar... e até mesmo beber. Em Nova York, senti uma imensa saudade de meus garçons de Madri. Lá, após uma ou mais horas de leitura e trago, quando eu pedia a conta o mozo manifestava surpresa: “Ya?” Como não sou indelicado — e para não magoar o garçom — sempre pedia mais uma última.

Há quem veja nos bares e cafés a fonte de cirroses e delirium tremens. Pode ser, são legião os que não sabem beber. Mas é inegável que neles foi produzida boa parte da poesia e literatura ocidentais. Que mais não seja, vide Pessoa. Morreu cirrótico, é verdade. Mas, sem sua cirrose, provavelmente não teríamos sua poesia. Aqueles poemas, que nos minam a alma, ninguém os escreve sóbrio. Muitas teses já foram escritas sobre Pessoa. Ninguém ainda analisou o elevado teor etílico de sua poesia. Poetar exige vagar. Nada mais perverso e nocivo – tanto ao estômago como à alma — como esta horrenda instituição ianque, o Fast Food. Pior que o Fast Food, só o Fast Drink. O grau supremo desta perversão existe em Tóquio, onde você paga por minuto o que come. O ser humano é capaz de tudo.

Apesar da farta oferta cultural que Nova York oferece, em meus dias por lá não via a hora de voltar à lentidão do mundo latino. Isso sem falar nos copos de plástico. Quase virei sóbrio. Pelas janelas dos restaurantes, examinava os raros que tinham copos de verdade e marcava-os no mapa, para voltar quando necessitasse de algo potável. Os americanos podem mandar suas sondas espaciais aos confins do universo próximo, mas em matéria de savoir vivre ainda chafurdam na barbárie.

Em reação aos bárbaros costumes dos homens do Norte, surgiu na Itália, em 1989, o movimento Slow Food, criado pelo jornalista e gastrônomo Carlo Petrini. O ponto de partida do movimento foi a inauguração, no mesmo ano, de um Mc’Donalds na Piazza di Spagna, em Roma. É de supor-se que de gastronomia Carlo entenda. Como jornalista, não parece se dar bem com as palavras. Para começar, italiano sendo, batiza seu movimento no linguajar dos bárbaros. Por que não Lento Mangiare? Já denotaria então, na própria denominação, a origem italiana desta reação civilizada. Em suma, o movimento foi bem recebido até nos Estados Unidos e o New York Times considerou-o como uma das melhores idéias do ano em 2001. O Slow Food já tem suas representações no Brasil, com grupos ativos em Porto Alegre, Rio e Belo Horizonte e em formação em São Paulo e Salvador.

Ora, nada há de novo no Slow Food, prática que sempre existiu. Há séculos vem sendo cultuado nessas casas soberbas, que nos esperam sempre de portas abertas, nas ruas e vielas de qualquer capital do Ocidente. E não só nas capitais. Verdade que, nas pequenas cidades brasileiras, cafés e restauração são geralmente um desastre. Mas em qualquer aldeia européia que se preze, lá está aquele oásis acolhedor, que nos refrigera como leque no verão e nos aquece como um útero no inverno. Não é preciso organizar o orgânico. Não há propriamente um contra-ataque aos restaurantes Fast Food, como reivindicam os adeptos do Slow Food. O Fast Food, isto sim, foi um ataque aos hábitos de bem comer.

Os McDonalds da vida têm sido os grandes vilões do Fast Food. Ora, isto é anti-americanismo barato. Muito antes dos Mcs, as cidades brasileiras foram invadidas por baias que transformam o comensal em cavalo pastando em bornal. Contaminado pelas modas da mídia, alguns brasileiros se erguem de lança em riste contra os Mcs. Jamais protestariam, no entanto, contra o horror de suas lanchonetes desconfortáveis e infectas. O paulistano, por exemplo, instituiu o estúpido hábito de beber em padarias. Um correspondente brasileiro na Rússia, desses que confundem o círculo de dois metros de diâmetro em torno ao nariz com o universo, escrevia certa vez que em Moscou as padarias não são centros de lazer, “como no Brasil”. Claro que era paulistano.

Defender a tal de Slow Food é mais ou menos fazer o papel de M. Jourdain, que fazia prosa sem o saber. Nós, adeptos dos antigos restaurantes, desde há muito praticamos a restauração lenta, sem necessidade alguma de nominá-la em língua de bárbaros. Se você, leitor, for um dia convidado a participar da coisa, não caia nessa estratégia de marqueteiros. Vai acabar pagando mais caro pela griffe, por algo que já sem griffe não é exatamente barato. Isso sem falar nessa deplorável falta de dignidade, a de batizar o que seria uma iniciativa italiana na língua do invasor.


 

Habemus Sanctum

11/11/2002

 

Claro que Luís Fernando Verissimo não poderia comparar Fernando Henrique Cardoso a um Kerenski, o dirigente russo que antecedeu o regime comunista na finada União Soviética. Seria satanizar Lula, a menina de seus olhos. Malandramente, prefere criar um outro paralelo. Fernando Henrique seria um Suárez, “que garantiu o pacto que garantiu a transição pacífica do regime franquista para a democracia, ou da direita para a esquerda viável”. Admirável espírito de síntese, o do cronista. Em uma só frase, condena o homem que salvou a Espanha do marxismo e joga Fernando Henrique na direita. A menina dos olhos do cronista, que ontem defendia Cuba, Castro e o socialismo, vira um afável social democrata que conduzirá o país finalmente à democracia. Como se em democracia não vivêssemos.

Não sei se o leitor notou, mas democracia está virando exclusividade das esquerdas. A imprensa internacional — e a tupiniquim em uníssono — tem saudado a vitória das esquerdas no Brasil como uma consolidação da democracia, a atestação de um pleito democrático. Isto é, se as esquerdas não vencessem as eleições, o resultado das urnas não seria democrático. Pelo jeito, teremos de nos acostumar a este insólito conceito nos anos que estão por vir. A imprensa francesa, por sua vez, esbalda-se cantando loas à vitória das esquerdas. Afinal, ocorreu num paiseco da América Latina. Para administrar a França,os franceses preferiram neste ano a tranqüilidade de uma liderança de direita. Jacques Chirac, que como candidato à prefeitura de Paris era considerado extrema-direita, foi reconduzido à Presidência da República com 82% dos votos. Melhor escore neste início de século, só Saddam Hussein.

Costumo afirmar que os franceses adoram a idéia de um presidente operário, desde que longe da França. Recente pesquisa feita com internautas, e divulgada pelo jornal 20 Minutes, distribuído no metrô de Paris, responde a uma pergunta: “Um ex-operário poderia ser eleito presidente na França?” De 802 respostas, 40% diziam não. 32%, não absolutamente. Apenas 14% responderam sim. Georges Marchais, o único candidato operário à Presidência na França, mal conseguiu alcançar 16%. Diga-se de passagem, um dos triunfos políticos de Giscard d’Estaing era seu extraordinário domínio da língua francesa. Não me parece exagero afirmar que candidato que não domina o bom uso do passé simple jamais se elegerá na França.

A propósito, a dança dos conceitos tem feito piruetas vertiginosas nestes dias que passam. Logo após o segundo turno, a Folha de São Paulo saudava o Dr. Lula como o primeiro presidente de esquerda do Brasil. Volto ao Fernando Henrique. Seria um intelectual de direita? Se não era, a partir do 27 de outubro passado passou a sê-lo. Os novos ocupantes do poder, em seu ímpeto de neófitos, estão assumindo as mesmas atitudes dos comunistas de 1917, que queriam inclusive anular o calendário antigo e inaugurar um novo. Mais algumas semanas e o leitor poderá constatar nos jornais uma expressão nova, a Era Lula.

Se antes das eleições Lula era visto com reticências por alguns nomes do jornalismo, bastou sagrar-se presidente para virar homem admirável. Da noite para o dia, seu nome foi proposto para membro da Academia Brasileira de Letras. Já há sociólogo afirmando, antes mesmo de o homem tomar posse, que sua eleição só é comparável à abolição da escravatura e à independência do Brasil. Nada de espantar, afinal Lula já foi saudado como estadista antes mesmo de ser chefe de Estado. A revista Época, para apresentá-lo como “a cara do povo”, fotografou um mendigo de barba grisalha sentado na calçada e deu tratos de photoshop na foto do novo presidente, para evidenciar a identidade entre ambos. Só esqueceram de pôr um terno Armani no mendigo.

Não bastasse ser estadista, virou santo. Os jornais nos trazem sua foto num altar doméstico, junto a outros protetores celestiais do Zé Povinho. Idiossincrasia deste “continente puñetero”, como dizia Alejo Carpentier. Poucas pessoas sabem aqui no Brasil, mas na Bolívia Che Guevara é cultuado como San Ernesto de la Higuera. Na Argentina, ao lado da mãe do Cristo e da Mulher Maravilha, Evita Peron virou Nuestra Señora de los Descamisados. Mas o Zé Povinho nosso é revolucionário. Se na América Latina o personagem precisa morrer para ser canonizado pelas massas, aqui no Brasil a canonização é conferida ainda em vida. Quatro filmes já estão na linha de produção sobre o novo santo. Não só santo, mas também doutor. Três universidades já se apressaram a conferir-lhe um Honoris Causa. Que macacas de auditório aplaudam qualquer coisa que faz sucesso, entende-se. Mais difícil de entender é ver a universidade dobrar-se a estes critérios do populacho. O cordão dos puxa-sacos, como dizia aquela antiga marchinha, cada vez aumenta mais.

Segundo cronistas, no século IX uma mulher teria assumido a curul pontifícia, como sucessora do papa Leão IV, com o nome de João VIII. Originária da Alemanha, vestiu-se de homem e assumiu o nome de João da Inglaterra. Ficou na história como a papisa Joana. Em uma procissão da basílica de São Pedro até Latrão, acometido das dores do parto, o papa caiu do cavalo e fraturou o crânio, tendo morte imediata. A partir daí, as eleições papais exigiram a verificação do sexo do candidato. Antes da sagração, o eleito era instalado numa cadeira furada, o estercorário. O camerlengo passava então a mão pelo buraco, para examinar os documentos. Em caso positivo, proferia as palavras rituais: habemus papam.

Para a Igreja isto não passa de lenda, logo esta Igreja que considera como fato a virgindade de Maria e sua assunção aos céus. Lenda ou fato, vale a imagem. Nestes dias de místico encantamento, os candidatos a áulicos do novo regime migram em revoada rumo a Brasília, para repetir o gesto do camerlengo. E sussurram, extasiados: habemus sanctum.


 

Da Inutilidade das Grades

18/11/2002

 

Pelo jeito, há um conluio qualquer entre a televisão e a realidade. Quando as novelas da Rede Globo estão dando baixo Ibope, a realidade se encarrega de oferecer roteiro mais palatável à sede de sensacionalismo do grande público. Os jornalistas se encarregam dos recheios. Falo do caso Richthofen. Que a imprensa, inicialmente, tentou batizar como o assassinato do sobrinho do Barão Vermelho. Ocorre que o crime acabou desmascarando até a vítima, que se apresentava como sobrinho neto do lendário aviador alemão Manfred von Richthofen. Como a imprensa alemã apressou-se a dizer que tal parentesco não existia, o caso virou o do “monstro de Campo Belo”. Da história, todos sabemos. Uma moça mimada, com a cumplicidade do namorado e do irmão deste, mata brutalmente seus pais.

A imprensa, para melhor manchetear, chegou a promovê-la a bela: “jovem, rica, bela e cruel”, proclama a Istoé na capa. Jovem, sem dúvida alguma: tinha 21 anos. Rica? Só com algum esforço de imaginação. O patrimônio dos pais, pelo que se sabe, era de um milhão de reais, o que está longe de constituir fortuna. Média classe média, no máximo. Cruel, não se pode discordar. Bela? A menina tem um rosto vulgar, anódino, sem maiores traços que lhe confiram o qualificativo de bela. Mas imagine o leitor a manchete: “jovem, rica, feia e cruel”. Não dá, não é verdade? O feia, ali no meio, decepciona o distinto público. Poderia até mesmo insinuar algum despeito, alguma razão para seu gesto parricida. Pior mesmo, só “jovem, pobre, feia e cruel”. Decididamente, não teria apelo. A boa manchete, a que dá Ibope, é “jovem, rica, bela e cruel”. É de personagens assim que o grande público gosta. Que seja bela, então.

Nestes dias, não há outro assunto nas rodas paulistanas. O pequeno homem das ruas, aquele mesmo que nos dias de copa e campeonatos vira técnico de futebol, erige-se agora em psicólogo, criminalista, especialista em costumes. A explicação mais recorrente, repetida à exaustão nas mesas de bares, é: são as drogas. Não convence. Os campi universitários se transformaram em áreas livres para consumo de drogas, sob o olhar complacente dos reitores, e nem por isso os universitários saem a matar seus pais. É o mesmo que atribuir a criminalidade ao álcool. Os bares e restaurantes estão repletos de clientes bebendo dia e noite — eu, entre outros — e jamais nos ocorreu matar qualquer ser vivente. Matar exige um índole especial, que independe de droga ou álcool. Droga ou álcool podem fornecer a coragem necessária para o ato covarde, mas a decisão de matar é anterior a qualquer estimulante.

Outra pergunta se impõe. Quanto vale, segundo os critérios contemporâneos, uma vida humana? Há um século e meio, Rodion Ramonovitch Raskolnikov se fez esta pergunta. Concluiu que certas vidas não valiam nada, ante a perspectiva de dias mais confortáveis para si e seus próximos. Raskolnikov se arrogava o direito ao crime e não via mal algum em matar piolhos. Sem álcool nem drogas, mas por convicção pura. Mas Crime e Castigo é ficção e Dostoievski era católico. Como bom crente, leva seu personagem ao arrependimento e à confissão. Ora, a realidade não é nada católica. Em seus domínios, os assassinos só confessam quando flagrados e só manifestam arrependimento quando presos. Não fossem descobertos, viveriam dias felizes desfrutando os lucros do crime. Raskolnikov não chega ao parricídio, bem entendido. Mas os piolhos, no caso de Suzane Richthofen, coincidiam com os pais. Morte aos piolhos.

Há uma revolta generalizada em relação ao fato. Mas a revolta não é só revolta. É também medo. São Paulo, mais que qualquer outra capital brasileira, tem suas casas e prédios cercados de grades. Não só grades, mas também cercas eletrificadas acima das grades. E câmeras de televisão. Não só casas e prédios de bairros ricos, mas até mesmo as moradias de bairros pobres já estão apelando a estas proteções. Durante a reconstituição do crime, uma pequena multidão se reuniu frente à casa das vítimas, aos gritos de “assassina” e “pena de morte”.

Filhos matando pais e pais matando filhos constituem rotina na crônica policial. O problema é quando assassino e vítimas pertencem à classe média, esta classe que, ao cercar suas moradias de grades, julga ter esconjurado a violência. Suzane Richthofen mexe nas inquietações mais profundas dos que se protegem com grades, câmeras e cercas eletrificadas. Urge esconjurar o mal que dorme em casa. Morte à Suzane, essa menina inconveniente que traz à tona nossos piores medos.

Pois temer o bandido já faz parte de nosso cotidiano. Pior mesmo é ter de temer a criança que se está criando. E concluir que as grades restam inúteis quando a violência já vive em seu lar.


 

Jornalismo Sem Rabo Preso

25/11/2002

 

“O que ocorre é que eu simplesmente cansei de dar tiro n’água” — diz Esther Jagosehit, executiva, em entrevista à Veja. — “Cheguei a um ponto em que não tenho mais idade nem paciência para ficar contando a história da minha vida ou tentando mostrar quanto sou legal para um zé-ninguém que eu tenha conhecido em um bar. Pela internet, consigo peneirar exatamente as pessoas que procuro, que pensam como eu, que querem o mesmo que eu.”

Se há alguns anos o padroeiro das moças em busca era Santo Antônio, a era informática parece ter agora entronizado Santa Tecla, a padroeira dos internautas, pelo menos para os catalães. Se Santo Antônio não oferecia muita escolha à sua clientela, Santa Tecla oferece uma vasta variedade de possíveis pares. Se antes os namoros eram determinados pela freqüência a determinados bares, aos mesmos cursos ou ao próprio ambiente de trabalho, a Internet liberta os internautas deste confinamento. E qualquer pé torto pode sair a buscar um chinelo velho planeta afora. A limitação é o idioma. Mas atenção: Santa Tecla não é muito expedita quando se trata de casamentos. Segundo pesquisa feita entre 5 mil usuários de sites de relacionamento no Brasil, apenas 2 % deles casaram com alguém conhecido on-line. Só um casamento durou mais de um ano. Ocorre uma desinteligência entre os buscadores. As mulheres querem namoro. Os homens, sexo. E a maioria dos varões on-line, ou é casada ou tem uma relação estável.

Sem andar procurando ninguém, tenho encontrado interlocutores interessantes mundo afora, graças a esta extraordinária capacidade da rede de possibilitar a peneira de que falava Esther. Digamos que alguém viva em uma pequena comunidade, goste de latim — ou de sânscrito ou de volapuque — e deseje encontrar parceiros com idênticos gostos. É só apelar a esta santa milagrosa e em segundos estará conversando com esta gente em qualquer lugar do mundo. A Internet é versátil. Se você é, digamos, violinista, diabético e adora Paris e quer encontrar outros violinistas diabéticos que adoram Paris, faça uma pesquisa rápida nos news groups da Usenet. Não encontrou o grupo dos violonistas diabéticos que adoram Paris? É fácil: proponha a criação desse grupo e eles surgirão de todos os cantos do mundo.

Estamos ante uma revolução em matéria de comunicações pessoa a pessoa. Revolução sem sangue nem volta. Destapada a garrafa, impossível mandar o gênio de volta pra dentro dela. Mas o melhor da rede, a meu ver, não é tornar amores viáveis. E sim a contestação da imprensa. Até há pouco, o leitor não tinha voz. Os jornais costumam destinar um pequeno espaço ao leitor, é verdade. Espaço muito curto para abrigar todas as cartas que chegam todos os dias a uma redação. Além do mais, quando o leitor é muito contundente em sua crítica a alguma vedete da mídia, a carta não sai. Hoje, qualquer cidadão pode botar a boca no mundo. Pode publicar um artigo, livro ou até mesmo um jornal. Se quiser, com um mínimo de habilidade, monta uma editora. Não espanta pois que em países muçulmanos e nas últimas ditaduras comunistas, como China, Coréia do Norte e Cuba, a Internet seja praticamente proibida.

Um novo jornalismo está surgindo. Feito por gente de talento, cujo pensamento não se adapta à mentalidade politicamente correta que invadiu as redações do mundo todo. Este jornalismo ainda não se consolidou. É iniciativa de pessoas isoladas, sem igrejas nem partidos. Conseqüentemente, sem o público cativo que torna um jornal em papel economicamente viável. Não tendo necessidade de conquistar este grande público, o jornalista está livre para expressar-se, sem a preocupação de agradar ou desagradar esta ou aquela fatia de leitores. Colunistas que se sentiam fora do alcance de críticas, protegidos pelo próprio jornal, já não gozam mais deste escudo protetor.

A Folha de São Paulo, por exemplo, gaba-se de ter o rabo preso apenas com o leitor. Isto é, tacitamente admite a censura da maioria. Esta filosofia tornou o leitor da Folha atrevido a ponto de pedir a demissão de redatores ou colaboradores cujos artigos não lhe agradam. Entre muitos casos, foi emblemático o de Bruno Tolentino. Em 1994, o poeta criticou uma tradução de um poema de Hart Crane, feita por Augusto de Campos. Recebeu como resposta um abaixo-assinado de uma centena de escritores, poetas e estrelas do showbusiness, exigindo não só sua cabeça, mas também a do editor que o havia publicado. No abaixo-assinado, em momento algum se discutia o mérito da tradução ou o mérito da crítica à tradução. Os abaixo-assinantes apenas demonstravam sua indignação ante a crítica de Tolentino ao PhDeus uspiano Augusto de Campos. Entre esta centena de neocensores estão nomes que sempre se manifestaram pela liberdade de expressão e pensamento, como João Alexandre Barbosa, Roberto Romano, Júlio Bressane, João Cabral de Melo Neto, Miriam Chnaiderman, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Lúcia Santaella, Marilena Chauí, Gal Costa.

A confecção de um jornal na WEB dispensa custos de papel, impressão ou distribuição. Não existindo a ditadura do grande público, o jornalista eletrônico está livre para escrever o que pensa. Assim, se você quiser fugir à manipulação da notícia pela grande imprensa, ou pelo menos ouvir vozes destoantes da mesmice nacional, aqui vão alguns endereços no Brasil.

www.olavodecarvalho.org
www.oindividuo.com
www.offmídia.com
www.midiasemmascara.org
www.puggina.org
guidalli.blogspot.com
www.oexpressionista.com.br
www.angelfire.com/sc3/ricardobergamini

Lembrando ainda que o Baguete retomou o fórum de debates, onde você pode contestar os colunistas. E também acrescentar mais algumas URLs críticas, tanto no Brasil como no exterior.


 

Coxas abalam Islã

02/12/2002

 

Jamais tive qualquer apreço pelos concursos de misses. Mais me parecem um desfile de vacas premiadas em exposições pecuárias. É o culto estúpido da forma, mensurada centímetro a centímetro, como se a forma fosse o que mais importa em um ser humano. São legendárias as manifestações de espírito das moças. Em conversas com uma destas senhoritas, miss de uma cidade interiorana, tive oportunidade de comprovar o folclore. Fiz a pergunta que em geral os jornalistas lhes fazem, quais são seus três autores prediletos. Para não destoar, a moça pôs em primeiro lugar Saint Exupéry. Era na época do Pequeno Príncipe, livro que hoje talvez poucos lembrem. Ler Exupéry dava a idéia de uma alma delicada. Em segundo, gaúcha sendo, ela cravou Erico Verissimo. Miss gaúcha que não citasse o Erico era capaz de perder o cetro. Já no terceiro, suponho que para dar um toque de sinceridade a seu depoimento, ousou um toque personalíssimo: Cassandra Rios.

É possível que hoje ninguém mais lembre de Cassandra. Seus romances eram best sellers absolutos. Claro que jamais constavam da lista dos mais vendidos, afinal havia um certo pudor da imprensa em citá-los. Tratavam invariavelmente de amores lésbicos e eram facilmente identificáveis. Bastava abrir qualquer página. Se havia uma profusão de ahn, ahn, ahn, entremeados de reticências, era um Cassandra Rios legítimo. Ao me manifestar suas preferências literárias, a moça talvez nem soubesse disso, mas estava exibindo extraordinária coragem intelectual.

Mas tudo é relativo nesta vida. Se antes misses e concursos de misses me pareciam futilidades perfeitamente dispensáveis, a Nigéria me faz repensar minhas antigas posturas. Nigéria é aquele país que tem sobressaído nas manchetes internacionais nos últimos anos, pela introdução da sharia, código de leis muçulmano, que prevê a amputação das mãos de ladrões e o lapidamento das adúlteras. Em outubro do ano passado, Sufiyatu Huseini, 35 anos e dois filhos, foi condenada a morte por apedrejamento por ter cometido adultério. O adultério cometido por Sufiya, como era mais conhecida, foi peculiar. Divorciada, pelo fato de o marido não poder sustentá-la — o que é permitido pela lei islâmica na Nigéria — foi estuprada quatro vezes por Yakubu Abubakar, de 60 anos e engravidou. Morte à Sufiya. Graças à pressão da imprensa e organismos internacionais, Sufiya escapou de morrer a pedradas.

A sanha de sangue dos muçulmanos não foi saciada. Desta vez, o país ganhou a primeira dos jornais graças a um concurso de misses, que acabou provocando mais de duzentas mortes. Segundo a imprensa, a gota d’água teria sido o artigo de uma jornalista, Isioma Daniel, publicado no diário This Day. Para a jornalista, Maomé não faria objeções à realização do Miss Mundo na Nigéria e, na verdade, o profeta poderia até resolver se casar com uma das candidatas que participam do concurso.

Heresia. A sede do jornal, na cidade de Kaduna, foi queimada. Segundo os guardiães da fé, o profeta foi ofendido. Não bastassem o incêndio do jornal e o massacre de duas centenas de nigerianos, autoridades do Estado de Zamfara divulgaram um fatwa, conclamando os muçulmanos a matar a jornalista. Fatwa é um decreto religioso, aquele mesmo que condenou Salman Rushdie à morte, também por ofensas ao profeta.

Quando fanáticos querem matar, saem matando sem mais pretextos. No fundo, o que está em jogo é a ancestral ginecofobia do Islã. Costumo afirmar que toda tentativa de diálogo entre Ocidente e Islã irá sempre esbarrar numa barreira intransponível, o respeito à mulher. Se no Ocidente, hoje, a mulher goza de todos os direitos de seu parceiro, nas culturas islâmicas está abaixo do rabo do camelo. Seria por demais acintoso, para os fiéis devotos de Alá, ver ocidentais exibindo com orgulho sua beleza. Antes de se tornarem vítimas do fanatismo dos nigerianos, as moças fugiram para Londres. Onde foram vítimas de um outro fanatismo, o das feministas ocidentais, que pediram a anulação do concurso. O que me leva a mudar minha visão de tais eventos. Se muçulmanos e feministas são contra, algo de bom neles deve existir.

Claro que não foi a inócua frase da jornalista o que desfechou os massacres, mas as coxas expostas das ocidentais. Os bravos fiéis de Alá, que sentem muito machos explodindo edifícios e destroçando corpos em sua luta contra o grande Satã, fogem com o rabo entre as pernas ao divisar um corpo de mulher. Nunca tive maiores simpatias pelos concursos de misses, dizia. Mas se peitos, coxas e glúteos servem para esconjurar as trevas do Islã, que vivam os peitos, coxas e glúteos. Ocidentais, podemos nos dar ao luxo de condenar como fúteis os concursos de misses. No mundo islâmico, constituem um avanço e são reprimidos com massacres.


 

Morte ao Prazer

09/12/2002

 

Há lobbies no planeta todo empenhados em tornar a vida, que já não é tarefa fácil, em algo cada vez menos prazeroso. Estes grupos de pressão, que sempre alegam razões de saúde individual ou coletiva para condenar o prazer, invariavelmente têm atrás de si um substrato religioso, o mais das vezes cristão. Estes senhores, cultores da morte e da cruz, do sangue e ascetismo, não concebem ver alguém vivendo plenamente, aqui na terra, a vidinha que lhe foi dada. Você goza com plenitude sua sexualidade? De algum canto obscuro e triste do universo fatalmente irá saltar um moralista que encontrará algo errado ou anti-social em sua conduta. Você gosta de beber e bebe bem? Você deve ser doente. Se estes senhores se contentassem em ficar remoendo sua infelicidade ao ver o próximo feliz, tudo bem: que se consumam remoendo-se ad aeternum. Ocorre que, inconformes com a alegria alheia, chamam o Estado para coibi-la.

O solteiro virou espécime em extinção. Aquela pessoa a qual a condição de celibatário fazia bem está hoje mais enquadrada que o homem casado. A famigerada Constituição de 1988 criou a figura de união estável. Se você namora uma moça por algum tempo, não se surpreenda se ela um belo dia lhe exigir pensão. Se você não quer empenhar seus ganhos sustentando uma mulher que, afinal de contas, você não escolheu como esposa, atenção: não se detenha muito em uma moça só, mesmo que dela goste. Namoro virou proibitivo. Adultos com algum relacionamento já estão assinando um “contrato de namoro”, para tentar evitar a caracterização da relação como união estável. Com a perspectiva de união civil entre pessoas do mesmo sexo, homossexuais que se cuidem. Este tipo de relação, que antes primava pela liberdade e independência entre parceiros, também já foi enquadrada. Muito em breve teremos moças exigindo pensão de moças, rapazes exigindo sustento de seus parceiros. Se é que já não estão.

A propósito, a justiça lhe dá uma colher de chá. Aproveite-a enquanto os moralistas não a percebem. Segundo entendimento quase unânime dos tribunais, manter relacionamento com duas ou mais mulheres livra o homem do pagamento de pensão alimentícia e da divisão de seus bens. Como o Judiciário não reconhece a existência de união estável quando um dos companheiros tem relacionamento fixo com mais de uma pessoa, você está salvo. Mas aquela vidinha mansa e tão do agrado de boêmios e poetas, de cultivar uma amada sem os laços e embaraços do matrimônio, está sepultada e para sempre. “Não podem existir duas uniões estáveis ao mesmo tempo porque a entidade familiar, em nosso país, tem base monogâmica”, dizem os juristas. Que bom que tem base monogâmica. Assim podemos ter duas ou mais mulheres sem maiores conseqüências.

Você gosta de ninfetas? Se esta preferência fez a glória de escritores e artistas, desde Lewis Carrol a Nabokov, os tempos mudaram. Após a queda do Muro, novos crimes e insultos passaram a invadir a primeira página dos jornais. Neste país onde dezenas de milhares de meninas estão grávidas aos dez anos, conforme pesquisa do último censo, não ouse relacionar-se com uma menina de doze ou quatorze anos. Mesmo que nossa legislação não contemple a figura da pedofilia, você será estigmatizado pela imprensa e pela sociedade com a pecha de pedófilo. Mas e as milhões de meninas que engravidam entre dez e quinze anos, estas não foram vítimas do crime de pedofilia? Nada disso. Como em geral se relacionam com parceiros da mesma idade, não houve pedofilia. Vige em alguns círculos acadêmicos o exótico conceito de que, não existindo mais de cinco anos de diferença de idade entre os parceiros, não ocorre crime. Ou seja: para você, homem maduro, são proibidos os encantos das Lolitas. Estas constituem reserva de mercado dos adolescentes. Você já ouviu falar de um adolescente acusado de pedofilia? Nunca. Criminoso é apenas o adulto. O conceito acadêmico parece ter sido contrabandeado para o mundo jurídico. Estranhas formas está tomando o Direito: o caráter criminoso de um ato já não reside no ato praticado, mas na idade de quem o pratica.

Em meio a isso, a onda de moralismo avança na Europa, ameaçando uma instituição milenar, a utopia sempre sonhada por libertários e libertinos, a prostituição. Sempre sonhada e sempre ao alcance da mão, desde há séculos. Quando nos anos 60 se intensificam os movimentos de liberação sexual, há milênios elas já esperavam seus clientes. Enquanto Hite, Master & Johnson, Simone de Beauvoir, Reich e tantos outros empunhavam o verbo tentando liberar o prazer sexual dos grilhões do cristianismo, elas desde o início dos tempos o ofereciam a quem quer que as procurasse. Mediante uma módica prestação monetária, é verdade. Mas utopia de graça é pedir demais aos deuses. Que mais não seja, elas também precisavam comer, vestir e viver.

No início do mês passado, aqui em Paris, homossexuais, transexuais e prostitutas participaram de uma manifestação contra um novo projeto de lei do governo francês, que estipula punição de até seis meses de cadeia e multa de 3.750 euro pela prática de abordagem nas ruas e proxenetismo, além de prever a expulsão de prostitutas estrangeiras. O projeto é uma onda concêntrica da maré de moralismo que vem do Norte. Começou nos Estados Unidos, continuou na Suécia e agora ameaça a França, de libertinas tradições. As medidas antiprostituição defendidas pelo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, visariam a atacar as redes mafiosas que exploram na França o trabalho sexual de mulheres estrangeiras, sobretudo do Leste Europeu e da África. Nobres propósitos. Mas como fica o trabalho da profissional free lancer, que não depende de redes mafiosas ou proxenetas? Associações de minorias e de direitos humanos já estão nas ruas protestando.“Essa lei é perigosa. Ela é liberticida e coloca em risco a saúde pública. A França, país das luzes e das idéias, não pode aprová-la de modo nenhum”, declarou um transexual brasileiro. A prostituição, que há muito deixou de ser crime no Ocidente, volta a ser criminalizada.

Enquanto isso, a pátria nossa já estuda o reconhecimento do trabalho das profissionais do sexo. Mais uma vez a Europa se curva ante o Brasil.


 

Amizade Segundo Filósofos

16/12/2002

 

Que vivemos em uma época de desvalorização da palavra, isto não é novidade. Sem ir mais longe, pego a palavra filósofo. Houve época em que filósofos eram Platão, Kant, Hume, Descartes. De uns tempos para cá, qualquer licenciado em filosofia virou filósofo. Intuo que a moda tenha começado na França. Nos 70, meus professores, ao ver meu currículo, logo exclamavam: Ah, vous êtes philosophe!

Philosophe coisa alguma. Eu apenas fizera um curso de filosofia, o que só me serviu para da filosofia tomar uma boa distância. Enfim, pelo menos da filosofia contemporânea. Quando um de meus professores afirmou que “hoje, o objeto da filosofia é tentar encontrar o objeto da filosofia”, achei que estava brincando. Não estava. Como eu também não estava ali para brincadeiras, voltei a ler os antigos.

Outra palavrinha terrivelmente desvalorizada, ao lado de filósofo, é amigo. Uma das coisas que abominei em Santa Catarina, em meus dias de Florianópolis, foi aquela mania generalizada de os ilhéus chamarem todo mundo de amigo. “Oi, amigo!” — esta é uma das expressões mais recorrentes dos nativos. Uma pessoa que você jamais viu na vida de repente o aborda e lhe confere o título. À primeira vista, pode parecer simpático. Mas amizade é outra coisa. É palavra tão grave como filosofia. Costumo afirmar que meus amigos, eu os conto nos dedos, e ainda me sobram dedos.

L’Amicizia secondo i filosofi, de Massimo Baldini (Città Nuova, 1998) é uma antologia de textos filosóficos sobre a amizade, com um ensaio de Baldini à guisa de prefácio. Trata da amizade em seu sentido mais nobre, e não da amizade irresponsável proposta por alguém que jamais vimos. Os filósofos, no caso, são aqueles que a história consagrou como tais, e não professores que os papagueiam e se julgam pensadores. A reflexão é oportuna, nestes dias em que a amizade muitas vezes passa a depender de uma visão de mundo uniforme. Quem hoje tem 50 anos, sabe disso. Terá perdido amigos por escaramuças no Camboja ou Vietnã, por determinações de Moscou, Pequim ou Cuba, em suma, por eventos distantes que nada têm a ver com uma relação entre duas pessoas. O teórico desta perversão foi Sartre que, por questões de ideologia, rompeu laços com Camus. “A amizade, ela também, tende a ser totalitária” — disse um dia o agitador da Rive Gauche ao futuro prêmio Nobel — “urge o acordo em tudo ou a ruptura, e os sem-partido eles próprios se comportam como militantes de partidos imaginários”. É a versão xiita da amizade: ou você aceita minha ideologia, ou não podemos ser amigos.

Assim, com satisfação vejo que Aristóteles, na longínqua Atenas, distante no tempo e no espaço, desde há mais de dois mil anos concorda comigo. No livro oitavo da Ética a Nicômaco, afirma não ser possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, como não é possível estar enamorado ao mesmo tempo de muitos. “Aqueles que têm muitos amigos e que tratam todos familiarmente, não parecem ser amigos de ninguém”.

Cícero, ciente das responsabilidades da amizade, recomenda atenção para que não comecemos a gostar de alguém que algum dia poderemos odiar. Amizade não é coisa para jovens, mas deve ser decidida quando o caráter está formado e a idade já é madura. Seneca, como bom estóico, acha que o sábio deve bastar-se a si mesmo. O que não impede que ele aceite com prazer um amigo que lhe seja vizinho. Para o pensador de Cordova, o sábio é impelido à amizade não “pelo interesse, mas por impulso natural”. Amizade que se funda no interesse é um “vilissimo affare”. A distância não tem o poder de prejudicar a amizade. É possível manter relações com amigos ausentes, por quanto tempo se quiser. Em verdade, a proximidade torna a amizade complicada. A amizade é sempre útil, enquanto o amor é muitas vezes absolutamente nocivo.

Abelardo acentua o caráter seletivo da amizade. “Ninguém será pobre se possuir tal tesouro, tão mais precioso quanto mais raro. Os irmãos são muitos, mas entre eles é raro um amigo; aqueles a natureza cria, mas estes só o afeto te concede”. Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, define: “é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. No que vão duas restrições. Os amigos devem ser sensíveis, porque um monge, um solitário podem não ser maus e no entanto viver sem conhecer a amizade. E virtuosos, porque os maus têm apenas cúmplices. Em suma, só os homens virtuosos têm amigos.

Uma distinção mais lúcida vamos encontrar em Kierkegaard, para quem o cristianismo aboliu a amizade. Segundo o pensador dinamarquês, o amor humano e o valor da amizade pertencem ao paganismo. Pois o cristianismo celebra o amor ao próximo, o que é distinto. Para esta religião, só o amor a Deus e ao próximo são verdadeiros. O cristão deve aprender a desconfiar do amor profano e da amizade, pois a predileção da paixão é no fundo um ato de egoísmo. Entre o amigo e o próximo há diferenças incomensuráveis. A morte não pode extirpar o próximo. Se a morte leva um, a vida subitamente fornece um outro. A morte pode tomar de você um amigo, porque ao amar o amigo no fundo você a ele se une. Mas ao amar o próximo você se une com Deus, por isso a morte não pode tomar-lhe um próximo.

Para Nietzsche, a mulher é incapaz de amizade, conhece apenas o amor. Mas seus contemporâneos homens não percorreriam mais os sendeiros da amizade. Por dois motivos. Primeiro, porque o amor entre os sexos prevaleceu sobre a amizade. Segundo, porque o cristianismo substituiu o amigo pelo próximo. Para seu profeta, Zaratustra, “vosso amor ao próximo é vosso amor por vós mesmos. Fugis rumo ao próximo fugindo de vós mesmos. Não vos ensino o próximo, mas o amigo. Não aconselho o amor ao próximo. Aconselho o amor ao remoto”.

Dito isto, nestas tardes hibernais, os plátanos se curvam com cores de outono sobre o Tevere.


 

O Melhor da Vida

23/12/2002

 

Aconteceu há tempos. Um amigo que voltava da Itália, ciente de minhas predileções por Mozart, trouxe-me um Marzemino. Para quem não sabe, é o vinho que Leporello abre para Don Giovanni, no banquete oferecido à estátua do Comendador. Eccellente marzimino, louva o burlador de Sevilha. Ora, justo nesses dias, eu havia tropeçado com um desses médicos que acreditamem Deus e têm preocupações mais éticas do que científicas. Já devo ter falado do homenzinho. Que vai fazer um homem em um bar? — queria saber. Sua pergunta era como de vestibular, só admitia uma opção correta. Queria ouvir uma só resposta: beber. Ocorre que estou já longe da idade dos testes de múltipla escolha. “Em um bar, Doutor, vai-se para fazer muitas coisas. Até mesmo beber”. Resumindo a ópera: justo naqueles dias em que recebo o honroso mimo de um Marzemino, ele me prescreve um regime de álcool zero. Eu fora em busca de ciência, o homem me oferecia ética. Dispensado dizer que troquei de médico. Não iria renunciar ao elegante regalo em função das prescrições de um moralista.

A palavra zero teve seu prestígio aumentado nos últimos anos. Terá começado com aquele prefeito de Nova York que preconizava tolerância zero. Depois do 11 setembro tivemos o Ground Zero. Slogan puxa slogan. Como os marqueteiros tupiniquins adoram imitar a marquetagem ianque, vivemos hoje, pelo menos no Brasil, em ritmo de fome zero. Nestas ocasiões viro místico e imploro ao céus: não permitais, ó Senhor, que vossos servos no Congresso tenham ciência dessa idéia nefasta de álcool zero. Dada a onda de moralismo que infesta a Europa, onde até a prostituição começa a ser proibida, tampouco me surpreenderia que de alguma seita saltasse algum Savonarola a bradar: mulher zero.

Verdade que, tão certo como a morte é certa, mais dia menos dia nos chegará aquele entre os dias em que o desejo de mulher será zero e o álcool tenderá à mesma cifra. Mas até lá muito vinho e muitos abraços hão de rolar sob as pontes. Em minhas rêveries, imagino um hipotético médico tentando me consolar.

— Vinho, nem pensar. Mas você não gostava de ópera? Viaje. A Itália é rica em óperas e a medicina não tem objeção alguma à música lírica.

Não deixa de ser uma bela idéia para nossos vieux jours. Mas... Para começar, lá está Don Giovanni nos convidando para o bem bom:

Vivan le femmine,
Viva il buon vino!
Sostegno e gloria
d’umanità!

Perdoe o leitor se não traduzo. Mas óperas — particularmente as italianas — perdem a graça se traduzidas. Que mais não seja, denota injustificável preguiça intelectual para um brasileiro não conhecer o italiano, esta língua tão musical e que nos é tão próxima. Não bastasse o gosto pelo vinho, Leporello canta as conquistas do patrão, na famosa listina. Uma perplexa Dona Elvira se escabela ao ouvir o catálogo “delle belle che amò il padron mio”:

In Italia seicento e quaranta,
In Allemagna duecento trentuna;
Cento in Francia, in Turchia novantuna,
Ma in Ispagna, ma in Ispagna,
son gia mille e tre!

Mille e tre! Seria solene ironia recomendar óperas a um velho bon vivant. Verdade que Don Giovanni leva um subtítulo, l’empio punito, o ímpio punido. Para satisfazer uma Viena católica (de novo, o horror ao prazer), Mozart joga seu personagem aos infernos. Mas o que nos fascina desde então e até hoje, não é o libertino punido, mas o libertino em plena glória. A frase final da ópera é de um moralismo emético. Não importa. Até lá, a sedução exerceu seus efeitos.

Ou a Traviatta. Lá está o povo incitando ao vinho e ao amor. Violetta, apesar de tísica, não se entrega ao infortúnio. Desconheço hino mais intenso à vida que esta ária de Verdi:

Tutto e’ follia nel mondo
Cio’ che non e’ piacer.
Godiam, fugace e rapido
E’ il gaudio dell’amore;
E’ un fior che nasce e muore,
Ne’ piu’ si puo’ goder.

Há razões que a medicina desconhece. Seria um médico tão cruel a ponto de negar um prazeroso cálice a uma pobre tuberculosa sedenta de vida? Verdi leva a medicina a um impasse. Ou se permite o vinho. Ou se proíbe a ópera. Ouçamos Alfredo.

Libiam ne’ lieti calici
Che la bellezza infiora,
E la fuggevol ora
S’inebri a volutta’.
Libiam ne’ dolci fremiti
Che suscita l’amore,
Poiche’ quell’occhio al core
Onnipotente va.
Libiamo, amor fra i calici
Piu’ caldi baci avra’.
Todos erguem seus copos á enfermiça Violetta:
Godiam la tazza e il cantico
La notte abbella e il riso;
In questo paradiso
Ne scopra il nuovo di’.

E por aí vai. Em L’Italiana en Algeri, lá está Rossini louvando ... as mulheres. No caso, as italianas.

Le femmine d’Italia
Son disinvolte e scaltre.
E sanno più dell’altre
L’arte di farsi amar.

Sem falar no Rigolleto:

La donna è mobile
qual piuma al vento,
muta d’accento e di pensiero.

Fico na Itália, já nem falo em Carmen, que tornava mais ágil até mesmo o sizudo Nietzsche. Nestes anos em que uma onda aziaga de moralismo e abstinência ameaça o melhor da vida, nada melhor que voltar às boas fontes. Falar de ópera pode parecer obsoleto nestes dias de rock, rap, funk e cacofonias outras. Mas os antigos entendiam do bem bom.

A vida continua inexorável rumo à morte. E o Tevere rumo ao Tirreno. A Moira Torta não escolhe hora para bater na porta. Como Violetta, libiamo. Salute!


 

Bojaxhiu, pepino para bolandistas

30/12/2002

 

Sua Santidade é um privilegiado da mídia. Se ela não perdoa o mínimo deslize de um Bush, por exemplo, os despautérios do papa são louvados nas primeiras páginas da imprensa internacional. Em sua mensagem natalina, João Paulo afirmou que o consumo excessivo ameaça o verdadeiro espírito de Natal. Que a publicidade relativa à data mostra hoje a cena do nascimento do Cristo numa simples manjedoura com muito luxo, minando a essência da celebração. O homem que vive num palácio descomunal, em meio a uma pompa com a qual nenhum estadista ousa sonhar, vem nos falar em simplicidade. O homem que se veste de ouro e sedas tem a desfaçatez de condenar o luxo. O homem que, em suas alocuções, se mostra preocupado com a miséria dos povos, condena o consumo. Ora, o consumo pode ser fútil, estúpido, supérfluo. Mas gera empregos. Trabalho é o melhor antídoto contra a miséria. E os jornais reproduzem suas bobagens, sem comentário algum, como se o vice-deus estivesse deitando sabedoria pela boca.

A vida é uma lição contínua de tolerância. Para mim, o deus judaico-cristão é um dos achados mais infelizes da humanidade. E o padre Marcelo, uma excrescência da mídia. Mas que posso fazer, quando minha tia se ajoelha ante um pôster em tamanho natural do padre televisivo e reza ao deus infame pela minha saúde? Xingá-la? Nem pensar. O pior que pode acontecer, como acontece, é que ela credite a seu deus pessoal todos meus esforços para superar obstáculos. É o que fazem em geral as mães. Enquanto nos viramos como doidos para salvar-nos, o supremo Fulano fica de braços cruzados. Não move uma palha e recebe todos os louvores. Ante essas crenças milenares, somos impotentes. Melhor calar as próprias convicções e deixar que as pessoas rezem. E fingir que cremos no poder de suas preces. Cada um na sua e boa sorte a todos. O que não me impede, bem entendido, de manifestar o que penso sobre tais crendices. Pois assim as considero.

Que o monoteísmo não era exatamente popular, disto desde cedo a Igreja desconfiou. Para não reduzir a uma só instância as queixas e preces dos fiéis, criou esta figura exótica, o santo, doublé de curandeiro e agente aduaneiro nas fronteiras do céu e terra. Como precisava soterrar os cultos pagãos, a cada deus cultuado pelos antigos, a Igreja sobrepôs um santo. Hoje se sabe que Cristo não nasceu no 25 de dezembro. Mas a cada ano o Papa e seus acólitos repetem a farsa milenar, afinal era preciso cobrir os ritos pagãos do solstício de inverno.

“Temos repartido entre nossos santos os trabalhos que tinham os deuses dos gentios” — escrevia Alfonso de Valdez no século XVI, em Diálogo de las cosas ocurridas en Roma — “Em lugar do deus Marte, sucederam-se São Tiago e São Jorge; em lugar de Netuno, São Telmo; em lugar de Baco, São Martin; em lugar de Vênus, Madalena. As funções de Esculápio repartiram-se entre muitos: São Cosme e São Damião se incumbem das enfermidades comuns; São Roque e São Sebastião, da pestilência...”

Difícil foi escamotear a figura da Grande Mãe, constante nas crenças antigas. Em Nuestra Señora de Lucifer, Juan Atienza mostra que a Igreja ocultou durante mais de mil anos a figura da Virgem Maria, por temer futuras identificações heréticas por parte do povo. Se hoje já não sobram mais deuses para serem soterrados pela figura dos santos, a Igreja continua insistindo em produzir seus heróis obsoletos. João Paulo II acelerou a linha de montagem. Em seu pontificado, canonizou mais santos do que todos os seus antecessores somados em quatro séculos. Nada menos que 465 eleitos do Senhor. Pop star de apurado faro midiático, o papa quer agora a todo pano santificar uma outra estrela da mídia, a albanesa Agnes Bojaxhiu, dita madre Teresa de Calcutá. O primeiro passo para a santificação já foi dado, o reconhecimento de um milagre. Com um milagre, Agnes já faz jus à beatificação. Com dois, à santidade. E o segundo não tardará a surgir, disto não tenhamos dúvidas. Médicos tão sedentos de mídia como o papa é o que não falta neste mundo.

Em sua sede de criar santos, João Paulo está criando graves problemas para os bolandistas. Por bolandistas entende-se o restrito círculo de jesuítas estruturado por Juan Boland que, desde o século XVII, escreve a história dos santos. Se nos séculos passados a grande dificuldade era encontrar dados sobre a vida de uma pessoa já falecida há anos, o problema hoje é o excesso de dados. Ainda mais sobre quem morreu há apenas cinco anos.

A santificação da albanesa vai bafejar postumamente seu conterrâneo, Enver Hoxha, um dos mais sanguinários ditadores comunistas do século passado, em cuja tumba Agnes costumava depositar flores. Vai bafejar também o tirano Baby Doc, de cujas mãos a candidata à santa recebeu a “Légion d’honneur” haitiana. Junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, a madre pediu clemência para Charles Keating, vigarista condenado a dez anos de prisão por lesar os contribuintes americanos em 252 milhões de dólares. Deste senhor, Madre Teresa recebeu a simpática quantia de 1,25 milhão de dólares e a oferta de um jato privado para suas viagens.

Não será fácil para os bolandistas endossar a biografia de uma santa, íntima de ditadores e escroques internacionais. Para sorte destes estudiosos, a grande imprensa também presta culto aos ídolos por ela criados e adere com alegre cumplicidade à farsa encenada por Agnes Bojaxhiu.


 

©2003 — Janer Cristaldo
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Fevereiro 2003

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