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IANOBLEFE
o jornalismo como ficção

Janer Cristaldo

www.ebooksbrasil.org


Ianoblefe
Janer Cristaldo

Capa
Não-ianomânis:
Índios Nhambiquara Mamaindê, rio Cabixi
Foto Major Thomaz Reis
Fonte: Índios do Brasil das Cabeceiras do Rio Xingu, dos Rios Araguáia e Oiapóque
Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1953
Nos 3 volumes, não estão relacionados os "antigos" ianomâmis

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© 2000-2006 Janer Cristaldo
cristal@altavista.net


 

IANOBLEFE
JANER CRISTALDO


 

SUMÁRIO

Introdução
19 mortos
40 mortos: Itamar demarca área caiapó
73 mortos: índio não mente
Desaparecem os corpos
Presos 3 garimpeiros
Criado Ministério da Amazônia
ONU pode enviar missão à Amazônia
89 mortos: massacre foi na Venezuela
Uma nação ianomâmi
Quatro dentes confirmam massacre
Ombudsman vê mistério na aldeia
Três pseudo-sobreviventes
Ministro da Justiça invadiu Venezuela
De 120 a 16 mortos
Genocídio de Itararé
Itamar investiga país estrangeiro
Que bom que foi na Venezuela
Cabaças e cinzas sagradas
PF indicia 23 garimpeiros
A vida imita a tese
Deus é grande; a Funai é maior
Ex-Brasil
Violência ianomâmi
Existem ianomâmis no Brasil?
Uma Teocracia na Amazônia


Ianoblefe
[imagem]
o jornalismo como ficção

Janer Cristaldo


 

"Com o império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil.

"Este nome de Brasil, que começava a ter grandeza, e para nós portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política. Daqui a pouco, o que foi o Império, estará fraccionado em Repúblicas independentes, de maior ou menor importância. Impelem a este resultado a divisão histórica das províncias, as rivalidades que entre elas existem, a diversidade do clima, do caracter e dos interesses, e a força das ambições locais. Já mais de uma vez as províncias têm feito enérgicas tentativas de separação: e o separatismo tornara-se, nestes derradeiros tempos, um dos mais poderosos factores da Política.

"O Brasil, além disso, não está forçado a conservar-se unido pelo receio de ataques ou represálias duma metrópole forte, de que acabasse de se emancipar, nem tem possibilidades algumas de aspirar, como os Estados Unidos, a uma supremacia política ou econômica de que a unidade seria a inevitável condição. Nenhuma das razões que impuseram a união aos Americanos do Norte, se dão no Brasil. Por outro lado, há absoluta impossibilidade que de que S. Paulo, a Baía, o Pará, queiram ficar sob a autoridade do general fulano ou do bacharel sicrano, Presidente, com uma corte presidencial no Rio de Janeiro. Para que isso se realizasse, mesmo por alguns meses, seria necessário que surgisse um homem (que não há) de popularidade universal, incontestada e irresistível em todo o Império, como a de um Washington. Os Deodoros da Fonseca vão-se reproduzir por todas as províncias. Já decerto em Mato Grosso há um Deodoro que afivela a espada. Ora, a condição de popularidade, para estes ambiciosos, será proclamar o exclusivismo dos interesses provinciais; e já disto mostra sintomas o presidente do Pará, querendo fechar a navegação do Amazonas.

"Os Estados, uma vez separados, não poderão manter paz entre si, sendo abundantes os motivos de conflitos — as delimitações de fronteiras, as questões hidrográficas e as alfândegas com que todos, naturalmente, se hão-de querer criar rendimentos. Cada Estado, abandonado a si, desenvolverá uma história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade da sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande Império!"

Eça de Queiroz, 1890

 

"Eu nunca duvidei da tenacidade e ferocidade desses índios. É claro que essa minha observação jamais — até quando eu for funcionário da Funai — poderá ser dita ou publicada. Isto só prejudicaria o trabalho de aculturação até agora realizado junto aos waimiris-atroaris. Sou criticado e até ameaçado pelas famílias dos trabalhadores que tombam diante das flechas malignas desses índios, algozes e violentos, mas sei que estou cumprindo o meu dever. Um dia eles hão de compreender o sacrifício. Já não penso na família, nos meus nove filhos. Só penso na paz que eu poderei dar um dia a esses índios, mesmo sabendo de seu caráter violento, da sua rebeldia, de sua vontade de matar o branco.

"O índio waimiri-atroari é um ser tão sensível — como todos os índios — que um menor olhar diferente do branco é suficiente para ferir a sua sensibilidade. Eu nunca quis saber porque os índios matam ou deixam de matar. Eles sempre deixam alguém para contar a história. Eu sei que, se eu perguntasse, eles se revoltariam, mas a Funai sempre quis que eu os interrogasse para saber as causas que os levaram a chacinar os trabalhadores. Eu não faço isso. Depois de qualquer chacina eu volto ao Alalau ou Abunari com a mais absoluta confiança nos índios.

"Medo dos índios eu não tenho, confio neles. Tenho-os como meus filhos, considero-os o prolongamento de minha casa. Ando armado de revólver na floresta, mas não atiro nos índios em caso de um ataque. Se me matarem um dia, paciência."

Gilberto Pinto, sertanista
(massacrado pelos waimiris-atroaris em 1974)

 

"Aproximadamente 40% dos adultos machos participaram do assassinato de outro ianomâmi. A maioria deles (60%) matou apenas uma pessoa, mas alguns homens foram muitas vezes guerreiros bem-sucedidos e participaram do assassinato de mais de 16 pessoas".

Napoleon Chagnon, antropólogo

 


 

 

Introdução

 

O ano de 1993 ficará na história do jornalismo como o do maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional, o "massacre" dos ianomâmis que, mesmo sem ter ocorrido — até hoje não se tem prova material alguma de qualquer chacina — provocou lesões irremediáveis na imagem do Brasil no exterior e terá reflexos no desmembramento territorial do país.

Esta pesquisa não é uma acusação a colegas de redação. É reflexão sobre uma velocidade de processamento de texto que faz o jornalista preocupar-se com vírgulas e acentos e deixar de lado o fundamental: houve ou não houve o fato? Onde está a prova, o corpo de delito?

A Justiça brasileira demorou um ano e alguns dias para oficializar a morte de Ulysses Guimarães, ocorrida em 12 de outubro de 1992. Há foto do deputado entrando no helicóptero que caiu no mar, foram encontrados os corpos do piloto e de sua mulher, há uma evidência absoluta da morte do parlamentar. Somente em 24 de setembro de 1993, sua morte foi reconhecida pelo juiz Paulo César de Almeida Sodré. Oficialmente, no entanto, Ulysses só foi considerado morto em 15 de outubro de 1993, quando o despacho do juiz foi publicado no Diário Oficial da União. Esta demora de um ano para o reconhecimento de uma morte evidente deveu-se ao fato de que o cadáver do deputado não havia sido encontrado. As autoridades brasileiras, em 24 horas, definiram como genocídio um suposto massacre sem cadáver algum, "ocorrido" na Venezuela.

Já foram encontrados os corpos do czar Nicolau II e da família imperial russa, assassinados pelos bolcheviques em 1918, e até hoje não temos um único indício de uma chacina ocorrida em agosto de 1993, com repercussões internacionais que ameaçam a soberania do Brasil sobre seu território. Tivemos 19 mortos, depois 40, depois 73, depois 89, depois 120, depois 16, quando de fato não houve — e até hoje não há — nenhum. Enfim, dispõe-se de uma ossada, de data de morte incerta, que não evidencia massacre nem dá indícios do assassino.

O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, contentou-se com esta ossada antiga para denunciar, de imediato, genocídio. A Polícia Federal, apesar das continuadas declarações de que não havia provas do crime, não hesitou em fazer um relatório, mais de dois meses depois da data da "chacina", denunciando 23 garimpeiros pelo assassinato de 16 índios, dos quais não se tem sequer um pedaço de osso, a não ser nas declarações de índios e funcionários da Funai. Há fotos de cabaças que conteriam as cinzas dos corpos cremados. Mas não podem ser examinadas, pois são "sagradas".

Sem prova alguma de nada, a Procuradoria da República denuncia por crime de genocídio 24 garimpeiros (inicialmente, seriam 23). É a primeira vez que o Ministério Público apresenta à Justiça brasileira este tipo de denúncia. Os 24 indiciados no genocídio podem ser condenados a 30 anos de prisão.

Parlamentares, bispos e cardeais, diplomatas, policiais, militares, jornalistas, todos foram envolvidos pela chacina e dela se tornaram cúmplices. Congresso Nacional, Forças Armadas, Conselho de Defesa Nacional, Igreja Católica, imprensa nacional e internacional, enviados especiais e correspondentes do exterior, governo brasileiro e governos estrangeiros, todos caíram no conto do massacre, contado inicialmente pelo índio Antônio e pelo senhor Cláudio Romero.

Havia um cheiro de chacina no ar, um desejo de tragédia na ponta dos dedos dos comunicadores. Com a queda do muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, qualquer bandeira nova, mesmo esfarrapada, vem bem. Eivada de uma filosofia terceiro-mundista, a intelligentsia brasileira apostou tudo no blefe.

O massacre dos 62 ashaninkas no Peru — ocorrido no mesmo mês em que se denunciava a suposta chacina dos ianomâmis — não rendeu manchete mais que um dia. Tampouco gerou protestos internacionais. Índio peruano não serve como bandeira. Por um lado, o Peru não tem uma Amazônia tão vasta e apetitosa como a brasileira. Por outro, o Sendero é movimento que também se opõe ao branco ocidental, logo compagnon de route. Decididamente, os 62 bugres peruanos não mereciam mais que algumas linhas da mídia.

A presente pesquisa se atém fundamentalmente a dois jornais, entre os mais importantes da imprensa do país e, conseqüentemente, latino-americana: o Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo. Em verdade, toda a imprensa nacional — e internacional — assumiu o massacre. Se com apenas uma análise rápida do noticiário destes dois jornais, a affaire se torna cansativa, a inclusão de outros tornaria o estudo enciclopédico e redundante. Veja e Istoé — na condição de semanários de porte do país — não deixam de entrar no baile, como também — em menções sucintas, alguns dos principais jornais da Europa e Estados Unidos.

As diferenças de grafia de substantivos, comuns ou próprios, seguem os critérios de redação do jornal em que as notícias foram publicadas.


 

 

19 mortos

 

Funai acusa massacre de ianomâmis
*Sobrevivente diz à Folha que garimpeiros são os responsáveis

Assim mancheteou a Folha de São Paulo no dia 19 de agosto de 1993. A notícia chegou no final de tarde do dia anterior na redação. Rápidos no gatilho, os jornalistas criaram uma editoria de crise e elaboraram um caderno de nada menos que seis gordas páginas. Uma manchete trágica, com uma linha fina incisiva, encimava a capa do caderno:

Funai acusa chacina de índios; crianças teriam sido degoladas
Ianomâmis afirmam que garimpeiros foram responsáveis por massacre; representante da categoria nega

Vamos aos fatos.

"Pelo menos 19 índios ianomâmis foram assassinados na reserva em Roraima, anunciou a Funai. A Folha entrevistou, via rádio, um dos sobreviventes, o índio Antônio, 25. Ele contou que dez crianças, cinco mulheres e dois homens foram mortos e tiveram braços, pernas e cabeças cortadas por garimpeiros. O ataque, segundo Antônio, ocorreu há quatro dias. Em Brasília, o presidente da Funai, Cláudio Romero, disse que os garimpeiros fizeram represália à operação que tenta expulsá-los da reserva. O representante dos garimpeiros, José Altino Machado, atribui as mortes aos próprios índios".

Leia o caderno "Ianomâmis"

Temos portanto um fato, a chacina. Um número, 19. Duas fontes: o índio Antônio, 25, e o presidente da Funai em Brasília. Data também não falta: o massacre ocorreu há quatro dias, ou seja, dia 15 de agosto. Há também detalhes. Os mortos são dez crianças, cinco mulheres e dois homens, que tiveram pernas, braços e cabeças cortadas. Vilões é o que não falta. Foram os garimpeiros os culpados pela chacina. Motivo do crime: represália à operação que tenta expulsar os garimpeiros da reserva. Foi também ouvido o famoso "outro lado", que negou a chacina. Ocorre que era fonte pouco confiável, afinal era o representante dos garimpeiros.

Foram respeitadas todas as boas regras do jornalismo. O abre de primeira página deixa no ar uma pequena imprecisão. O leitor não fica assegurado de que são exatamente 19 os índios chacinados. São "pelo menos 19". Ou seja, pode ser muito mais. Esta imprecisão é facilmente explicável do ponto de vista jornalístico. Primeiro, o redator tem sempre a esperança de que o número possa ser maior, e cadáver sempre faz manchete. Segundo, pelos padrões do jornal, a partir de dez, os numerais devem ser grafados com algarismos, e não se pode começar frase com algarismos. Logo, o "pelo menos" é recurso que se impõe ao redator e transmite ao consumidor de mídia a excitante perspectiva de que a chacina possa ter sido de uma centena.

Toda matéria é assinada na Folha. Mesmo que o artigo saia sem autor, há uma assinatura eletrônica de cada texto redigido. Dia seguinte, um relatório rigoroso aponta, em cada redator, erros em três áreas: português, digitação, padronização. Um a um. Qualquer vírgula ou acento errado é denunciado, como também inversões de letras ou falta de parágrafos. O redator-Folha vive sob tensão. Se tiver uma média de três ou quatro erros por dia, pode dançar no final da semana. É normal então que, perto da meia-noite do dia 18 de agosto, esclarecida a chacina e composto o caderno especial, vagasse pela editoria de crise uma dúvida atroz: a palavra ianomâmi leva ou não leva acento circunflexo? Decidido que levava, os redatores respiraram aliviados. E o caderno baixou para impressão. Missão cumprida.

O leitor atento de jornais já terá observado que, toda vez que há um massacre, acidente, terremoto ou incêndio de maiores proporções, a notícia sempre começa com o indefectível "pelo menos". Não é falta de imaginação do redator. São as exigências de forma do jornal. Quanto ao conteúdo, se houve ou não chacina, dada a dinâmica do ofício, isto sequer é questionado. O que importa é a manchete. Jornalismo é título. Sem falar que sobre a cabeça do redator paira a sombra do "principal concorrente". Que não deixou por menos, afinal o "outro concorrente" pode dar furo. Assim mancheteia o Estado de São Paulo:

Ianomâmis são chacinados em Roraima
Garimpeiros acusados da morte de 19 índios, entre os quais 10 crianças

No fundamental, os dados coincidem. São 19 os índios mortos e os assassinos são os garimpeiros. Depois começam as divergências: já são quatro, segundo o Estado, os índios que narram a chacina. Os repórteres precisam inclusive o local do massacre, já que em jornalismo não se deve apenas dizer quando e como, mas principalmente onde. "O massacre teria ocorrido na maloca de Haximu, no sábado ou domingo passados, em área próxima à fronteira do Brasil com a Venezuela, dentro da área ianomâmi". A "editoria de crise" viveu uma dúvida atroz: afinal, é Haximu ou Hoximu?

Na página 3,

Índio sobrevivente viu corpos decapitados
Folha entrevista ianomâmi que afirma ter encontrado dez crianças, cinco mulheres e dois homens mortos

De novo, 17. Mas a Funai fala em 19 vítimas. Segundo a Polícia Federal seriam 17. A fonte já não é o índio Antônio, mas a PF. Segundo o administrador da Funai em Roraima, Suami Persílio dos Santos, 50, foi "a mais brutal chacina da história dos conflitos entre garimpeiros e ianomâmis, que já duram mais de cinco anos".

Na mesma página, o correspondente da Folha nos Estados Unidos, rápido no gatilho, envia a repercussão:

EUA RESPONSABILIZAM GOVERNO PELAS MORTES

"A notícia do massacre dos ianomâmis em Roraima causou horror e indignação nas pessoas que tiveram acesso a ela em Washington. A cidade está vazia de autoridades neste final de verão e nas férias do presidente Clinton. Mas as pessoas com quem a Folha falou ontem foram unânimes em responsabilizar o governo federal brasileiro pela tragédia".

O biólogo Thomas Lovejoy, "assessor científico do secretário do Interior dos EUA, especialista em florestas tropicais e encarregado das relações internacionais do Instituto Smithsoniano" — quanto mais títulos, mais autoridade — disse: "O mais irritante é que esse é um incidente que se esperava que acontecesse. Apesar dos esforços para retirar os garimpeiros daquela área, acho que ninguém nunca acreditou que eles fossem sair sem uma ação permanente e sustentável". Lovejoy, com sua mentalidade científica e premonitória, diz esperar "que isso seja capaz de galvanizar consciências no Brasil".

O correspondente não conseguiu entrevistar o secretário do Interior dos EUA, Bruce Babbitt, "que em maio recebeu Davi Ianomami e outros quatro líderes indígenas brasileiros que vieram a Washington pedir apoio para a demarcação de suas reservas", pois Babbitt estava no Alasca. Mas soube, através de sua porta-voz, Mary Helen Thompson, que ele havia sido informado do incidente e estava "profundamente entristecido".

Rachel Joseph, diretora do National Congress of American Indians, entidade governamental que congrega os "nativos americanos", também entrevistada pelo repórter, foi taxativa: "É uma ação desumana, ultrajante, execrável. Vamos fazer tudo que estiver ao nosso alcance para que as autoridades dos EUA tomem ações para impedir que que esse tipo de incidente aconteça outra vez. Vamos recomendar ao governo brasileiro, nos termos mais fortes possíveis, para que encontre e puna os perpetradores desse massacre".

Barbara Bramble, diretora da National Wildlife Federation, "uma das mais importantes entidades ambientalistas do mundo", não deixa por menos. Entrevistada pelo correspondente, declara: "Muitos casos de mortes de índios têm acontecido no Brasil por doença ou acidente. Mas eu não tenho conhecimento de nada similar a esse incidente com seus requintes de sadismo. É inevitável que essas coisas ocorram se não houver uma forte ação do governo brasileiro para impedir a invasão de territórios indígenas por garimpeiros".

Bruce Rich, do Environmental Defense Fund, "organização que tem 250 mil filiados e patrocinou a vinda de Davi Ianomami a Washington em maio", afirmou ao repórter: "Este incidente se deve à falta de cumprimento das leis de demarcação das reservas indígenas". Rich, mal sabe do massacre, diz estar enviando cartas ao "ministro da Justiça Maurício Correia e ao embaixador Rubens Ricúpero pedindo investigação rigorosa deste crime e punição para os culpados e cumprimento da lei de demarcação das reservas".

As pessoas que tiveram acesso às notícias sobre o massacre dos ianomâmis são cinco. Temos então o horror unânime de cinco cidadãos, em um país de 250 milhões de habitantes. Logo, como diz a manchete, os EUA responsabilizam o governo pelas mortes.

No Brasil, a indignação não é menor. Cláudia Andujar, coordenadora da comissão pela criação do parque ianomâmi — fotógrafa romena de passaporte suíço, brasileira naturalizada e ianomâmi por adoção — é taxativa: "a chacina é resultado da omissão do governo. Por trás dos garimpeiros estão forças econômicas e políticas que não aceitam a demarcação da terra dos ianomâmis. Há um lobby contra a demarcação".

Syron Franco, artista plástico, vocifera: "Essa chacina no Brasil é um absurdo. São 493 anos de massacre dos índios com impunidade. O governo federal é omisso. Só falam, vão lá e não fazem nada. Depois que passa o episódio, ninguém mais lembra do caso".

O senador tucano Mário Covas, penitente, não só assume sua parcela de culpa no massacre, como também nos convida a carregar a cruz: "É um absurdo que isso continue ocorrendo. Pensei que esse tipo de conflito já havia acabado. O governo pode até não ter instrumentos para garantir a integridade desses povos. Mas todos nós somos responsáveis por este tipo de crime no Brasil".

Orlando Villas Bôas, profissão indigenista: "A morte desses índios já estava traçada. O índio está marginalizado pelo governo. Infelizmente não existe mais tutela do governo sobre os índios, eles estão jogados à própria sorte. Deve-se dar mais recursos para a Funai".

Dom Paulo Evaristo, cardeal Arns: "Lamento o fato tão horripilante e desumano de pessoas armadas destruírem a vida de pessoas inocentes. Lamento também que o nome do Brasil, que já está tão deteriorado no exterior, sofra mais uma vez com uma mancha de sangue e com uma desonra que os brasileiros não merecem".

Fábio Feldmann, deputado, não tem dúvidas: "Isto é um genocídio programado. É dar solução muito simples para a questão do ianomâmi: a eliminação física do índio. É necessário criar lei para punir quem entra na reserva e os que aliciam os garimpeiros para a exploração mineral".

Inocêncio de Oliveira, o água-tenente de Serra Talhada, perfurador impenitente de poços próprios com dinheiro público e presidente da Câmara dos Deputados, extravasa seu senso de justiça: "Devemos imediatamente identificar os culpados e puni-los. É lamentável que fatos dessa natureza aconteçam em nosso país".

O Itamaraty, preocupado com a irritação do presidente Itamar pelo fato de os diplomatas não terem anunciado no exterior o massacre da Candelária, reagiu rapidamente. Flávia de Leon, da sucursal da Folha em Brasília, nos informa: "A diplomacia brasileira despachou ontem mesmo, para todos os 120 postos do Brasil no exterior, as informações e medidas sobre o assassinato dos índios ianomâmi".

Até agora, o Itamaraty não viu cadáver algum, não sabe quando, nem onde, nem como ocorreu a chacina.

Ou seja, em apenas dois jornais brasileiros, no primeiro dia das notícias sobre o massacre, temos:

* Uma chacina: 19 mortos.

* Pernas, braços e cabeças cortadas.

* Um sobrevivente, o índio Antônio, para a Folha; quatro para o Estado.

* Entre os chacinados, segundo a Folha, há dez crianças, cinco mulheres e dois homens.

* Se 10 + 5 + 2 = 17, isto é o de menos, pois 19 mortos sempre é melhor manchete que 17.

* O Estado confirma: são dezenove os mortos: dez crianças, sete mulheres e dois mortos. Logo 10 + 7 + 2 = 19. Desta vez, fecha.

* Já temos os criminosos: são os garimpeiros.

* Personalidades nacionais e internacionais condenam o massacre.

* Um artista plástico, Syron Franco, tem o número exato de anos de massacre, 493. Se houve massacre, houve quem massacrasse. Embora o artista especialista em história de genocídios não cite os massacrantes, a data indica 1500 e um criminoso óbvio, o branco europeu. Quanto aos 62 funcionários da Funai mortos pelos índios, as dezenas de brancos assassinados pelos txucarramães, krain-a-kore, waimiris-atroaris, enfim, as tradições culturais indígenas devem ser respeitadas.

* Cardeal Evaristo Arns, que advoga a libertação de sequestradores (desde que canadenses), lamenta o "fato tão horripilante de pessoas armadas destruírem a vida de pessoas inocentes".

* No abre do caderno "Ianomâmis" temos na Folha boa aritmética: "A Funai (Fundação Nacional do Índio) anunciou ontem a morte de pelo menos 19 índios ianomâmis — dez crianças, sete mulheres e dois homens". Desta vez os números fecham.

* Se o leitor descer os olhos pela página do caderno, voltará à confusão anterior. Na "caixinha" que remete à página 3, o número é 17, segundo o sobrevivente Antônio. Se vamos ao texto da página 3, o equívoco parece elucidar-se. Segundo a linha fina são dez crianças, cinco mulheres e dois índios. Logo 17 e não 19, como líamos na capa do caderno especial "Ianomâmis".


 

 

40 mortos: Itamar demarca área caiapó

 

Toda esta indignação foi manifestada antes mesmo que se soubesse das verdadeiras dimensões do massacre. No dia seguinte, 20 de agosto, a Folha nos mostra que aquele "pelo menos 19" era precaução técnica de quem quer bem informar. O massacre, como se intuía, tinha maiores dimensões.

40 morrem no massacre ianomâmi

A Folha não proíbe numerais em algarismos em início de manchete, que mais não fosse o "pelo menos" roubaria centímetros preciosos do título. A linha fina, que estabelece um diálogo com o título, e que deve ser sempre grafada em itálico, esclarece:

Expedição da Funai encontra corpos mutilados e cremados na aldeia; 15 garimpeiros mataram os índios

A pesquisa avança. Os correspondentes em Homoxi e Boa Vista nos informam que "pode chegar a 40 o número de índios mortos na reserva inanomâmi em Roraima. A Folha "informa que 15 garimpeiros mataram os índios. A chacina ocorreu em represália ao suposto assassinato de três garimpeiros por ianomâmis". O assassinato dos garimpeiros é suposto. O dos ianomâmis, uma evidência.

Barbárie
Garimpeiros massacraram 40 ianomâmis

Surge agora um chapéu, barbárie. Em jargão de jornal, é a palavra que encima uma reportagem. Segundo o "Novo Manual de Redação" da Folha, é "palavra ou expressão curta colocada acima de um título. Usada para indicar o assunto de que trata o texto ou os textos que vêm abaixo dela". Chapéu tem força. Estamos tratando de um caso de barbárie. O texto, assinado "Da redação", justifica plenamente o chapéu:

"Pode chegar a 40 o número de índios ianomâmis mortos por 15 garimpeiros na maloca de Haximu, em Roraima. Funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da PF (Polícia Federal) encontraram ontem os corpos dos índios, muitos deles mutilados. Alguns foram decapitados a golpes de facão".

Estes apostos entre parênteses constituem um recurso jornalístico para bem informar o leitor, para que este saiba que Funai significa Fundação Nacional do Índio e PF quer dizer Polícia Federal. A redação nos informa ainda que o ministro da Justiça, Maurício Correia, e o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, foram para a área da chacina. O massacre tocou fundo na consciência nacional. No dia seguinte à denúncia do massacre,

Itamar manda demarcar área caiapó

"O presidente Itamar Franco anunciou ontem a decisão do governo em homologar a demarcação de uma área de 4.900 hectares no sul do Pará, habitada por 600 índios caiapós, em duas aldeias. O anúncio foi feito pouco mais de 24 horas após a divulgação da chacina dos ianomâmis em Roraima".

Na foto que acompanha o texto, "os caiapós comemoram demarcação da área Menkrangnoti". Diz o texto: "O chefe caiapó Raoni, que estava ontem em Brasília, comemorou a homologação da área Menkragnoti: "Gostei muito. Fiquei muito feliz, disse ele, no Palácio do Planalto, ao exibir cópia do decreto assinado por Itamar. Apesar do régio regalo, Raoni não está muito contente com o "governador do Brasil". O chefe indígena, segundo a notícia, disse que Itamar é o "culpado" porque "o homem branco é o povo dele". Seu "povo não mata branco".

Dois detalhes antes de continuar o relato da chacina. Raoni, apesar de todo rigor objetivo da Folha, não é caiapó, mas txucarramãe. Quanto à afirmação de que seu povo não mata branco, disto falaremos mais adiante.

Página seguinte, chapéu, título e linha fina tornam mais preciso o fato:

A chacina
Crianças e mulheres foram mutiladas a facão
Segundo a Funai, garimpeiros brasileiros foram responsáveis pelas mortes que ‘praticamente’ dizimaram a aldeia.

Além de um box, que ratifica e precisa o número de autores do massacre,

Chacina envolve
15 garimpeiros

temos uma arte. O Manual da Folha define o que é arte: "Tudo o que puder ser apresentado na forma de tabelas, mapas, quadros e gráficos não deve ser editado na forma de texto. A tendência do jornalismo é a utilização cada vez maior de artes, principalmente coloridas, que atraem mais o leitor que o texto. É fundamental que as artes sejam cuidadosamente produzidas e revisadas. Uma arte nunca deve ser um texto disfarçado de arte. Arte é linguagem visual. Seus textos são apenas complementos dessa informação, por isso devem ser antes de mais nada concisos".

A arte, em falta de foto do fato, se destina ao leitor que até mesmo dispensa a leitura, mas quer ver o que aconteceu. Em relação a este tipo de leitor, a Folha sempre é generosa. Temos então uma arte:

[imagem]

COMO OCORREU O MASSACRE

1. Garimpeiros atraem os homens para fora da maloca, supostamente para trocar presentes
2. A poucos metros da maloca, matam os homens a tiros
3. Garimpeiros entram na maloca e matam mulheres e crianças a golpes de facão. Algumas são decapitadas e têm braços e pernas decepadas
4. Garimpeiros incendeiam a aldeia

Uma arte infra situa o local da chacina.

[imagem]

onde ocorreram as mortes
(mapa situa posto da Funai, aldeias ianomâmis, aeroportos clandestinos, floresta, postos do Exército e Aeronáutica, missão religiosa e áreas de garimpo)

O leitor vê não só o massacre, como também o local do massacre. À direita, uma tripa — como dizemos em jornal — confirma o fato que o leitor viu:

Corrêa vai ao local do crime

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, e o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, tiveram uma passagem tumultuada por Boa Vista, ontem à tarde. os dois permaneceram por uma hora e meia na base aérea da cidade e se recusaram a dar entrevistas, porque não tinham novas informações sobre a chacina. Quando levantaram vôo, chegou a confirmação de que havia pelo menos 40 índios mortos".

O local da chacina também está perfeitamente definido:

"A maloca de Haximu, onde os ianomâmi foram chacinados, fica na serra do Parimã, na fronteira do Brasil com a Venezuela; é um local praticamente inexpugnável. Somente de helicóptero ou caminhando pela mata é possível chegar.

"As buscas ao local da chacina fracassaram no primeiro dia. Na manhã de ontem, outros sobreviventes da aldeia, os índios João Antonio e Txamnini, se ofereceram para identificar a maloca. Tiveram mais sorte.

"A equipe da Funai e da PF encontrou o local pela manhã. Depois de fazerem o reconhecimento, os agentes retornaram à base aérea de Surucucu. Foi neste local que Maurício Corrêa recebeu informações sobre o massacre".

Página seguinte:

OAB QUER INTERVENÇÃO FEDERAL EM RORAIMA

Não bastasse isto,

ARISTIDES JUNQUEIRA DENUNCIA GENOCÍDIO

Por um lado, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batochio, diz que vai propor um processo de intervenção federal em Roraima, por causa da chacina do ianomâmis, nesta altura inconteste: "Se o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, não tomar enérgicas providências, a OAB vai entrar com uma ação no CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) do Ministério da Justiça. "É lamentável o que ocorreu. Isto não pode ficar impune. A chacina dos ianomâmis tem a mesma dimensão do massacre da Candelária"

O procurador-geral da República, Aristides Junqueira, pronuncia a palavra que se quer ouvir: "Não tenho dúvida, pois se forem confirmadas as mortes haverá multiplicidade de homicídios, numa demonstração de se quis exterminar uma etnia. Isto é genocídio".

Ainda na mesma página:

Deputados acusam o governo

Nada menos que cinco deputados federais, "ouvidos pela Folha", responsabilizam o governo pelo "assassinato dos índios ianomâmis": Aécio de Borba (PPR — CE), Aroldo Goés (PDT — AP), Avenir Rosa (PDC — RR), Pauderney Avelino (PDC — AM) e Ricardo Murad (PFL-MA).

Na página 1-12, a opinião dos

MILITARES
Garimpeiro também é vítima, diz ministro
General Zenildo de Lucena critica extensão da reserva ianomâmi, mas é contra a aculturação acelerada

Para o ministro do Exército, a reserva ianomâmi é muita terra para pouco índio. O general toca no cerne da questão: "Concordo com essa tese de que é área demais para pouco índio. A relação índio-território está um pouco exagerada".

O general pode ter usado a palavra vítima durante a entrevista. Mas em momento algum, no texto publicado, ela é proferida. De qualquer forma, o ministro constata que "eles (garimpeiros) são cidadãos brasileiros e assim devem ser tratados. Devemos procurar soluções — e sei que talvez seja difícil — de colocá-los, orientá-los para determinadas áreas, organizá-los".

Sobre a ocorrência da chacina, o general parece não ter dúvidas. Pergunta-se, isto sim, sobre quem seriam seus autores: "Alguém precisava ter informações mais precisas. Se tivesse um órgão lá para manter informado o ministro da Justiça, que é quem decide sobre a Funai, ele poderia assessorar melhor o presidente, evitar essas campanhas, saber se os índios foram realmente mortos por garimpeiros ou se foi uma luta de índios".

A Folha colhe opiniões junto ao Clube Militar. O general da reserva Sebastião Ramos de Castro, considera que a reserva ianomâmi "é absolutamente exagerada e, daqui a pouco, cria-se uma nação indígena sob o protetorado da ONU dentro do território brasileiro".

Em sub,

Comandante diz que reserva é ameaça ao país

Américo Martins, o enviado especial a Boa Vista, entrevista o comandante interino das 1ª Brigada de Infantaria de Selva, coronel João Paulo Saboya Burnier. O repórter da Folha quer saber se a reserva indígena representa uma ameaça à integridade nacional.

"Tenho certeza absoluta. Há a possibilidade de criação de uma área indígena, em uma área do território nacional e outra de território venezuelano. Ora, uma nação não sobrevive dentro do território de outra nação. Isso ameaça nosssa integridade. As tribos ianomâmis deveriam, na nossa opinião, ser aculturadas, paulatinamente, com respeito às suas características. Elas deveriam ser orientadas a sair da miséria".

O repórter quer saber como a reserva ameaça a integridade nacional, já que o Exército pode policiar as fronteiras naquela área.

"Porque o perigo não é o de ocorrer um confronto entre indígenas e cidadãos brasileiros. Pessoas que se consideram representantes desses indígenas permitiriam que uma organização não governamental quisesse influir, por exemplo, numa eventual discussão entre uma nação indígena e o restante da nação brasileira. Há muita discussão no exterior neste sentido".

Américo Martins vai ao cerne da questão: "o sr. se refere à idéia de internacionalização da Amazônia?"

O coronel é claro:

"Eu estou dizendo: uma intervenção clara sobre a Amazônia. Todas as ONGs são representantes de algum Estado. A criação da ONG (Organização Não-Governamental) é para encobrir o governo que está por trás. Essa foi uma forma de se ultrapassar a soberania de um país sem ferir direitos internacionais. Quem tem acesso ao país para fazer, por exemplo, um levantamento dos recursos minerais não é este ou aquele Estado, e sim uma ONG. Se fosse feito um rigoroso controle dos estrangeiros, você iria verificar que entra aqui uma pessoa como se fosse médica e na verdade é uma geóloga".

A Folha quer saber se o coronel acredita na eventual criação de uma nação indígena:

"Creio, sim senhor", responde o coronel Saboya Burnier.

Mais adiante, pág. 1-13, temos a

REPERCUSSÃO
Embaixada em Londres é alvo de protesto

Entidade não governamental envia carta a Itamar Franco responsabilizando o governo pelo massacre

Da reportagem local, informa Carlos Seidl:

"A Survival International, entidade não-governamental para a defesa dos direitos dos povos indígenas, vai entregar hoje à Embaixada do Brasil em Londres uma carta endereçada ao presidente Itamar Franco responsabilizando o governo federal pelo massacre dos índios ianomâmis. O gesto faz parte de uma manifestação de protesto contra o massacre, prevista para as 13h (9h em Brasília), em frente da embaixada brasileira na capital britânica.

"Participam da manifestação, organizada pela Survival International, as seguintes entidades não-governamentais sediadas em Londres: Oxfam, Christian Aid, Cafod, CIIR (Instituto Católico de Relações Internacionais), Fundação Gaia e Brazil Network.

"Jonathan Mazower, diretor da Survival International para a América Latina, disse à Folha, falando pelo telefone da sede da entidade em Londres, que a Survival — movimento internacional criado em 1969 para a defesa dos povos tribais e que conta com 15 mil membros em todo o mundo — coloca a culpa do massacre no governo brasileiro porque "Brasília não mostra a vontade política necessária para proteger os seus cidadãos mais vulneráveis".

No pé da página, a Folha nos dá a íntegra de uma carta que ainda não foi recebida nem entregue, e muito menos enviada:

Leia íntegra da
carta da Survival

A Folha publica a íntegra da carta dirigida ao governo brasileiro, que representantes da Survival International e outras organizações não-governamentais vão entregar hoje à Embaixada do Brasil em Londres. O destinatário ainda não a recebeu, mas o público leitor de jornais já conhece seu conteúdo:

"Como representantes das agências que trabalham pelos direitos humanos e bem estar social no Brasil, queremos registrar nosso horror com relação às informações sobre o massacre de mais de 17 índios em Roraima, divulgadas no dia 17 de agosto, inclusive com a decapitação de dez crianças.

"Sabemos que o governo brasileiro demarcou o território ianomâmi como uma área indígena, mas este incidente mostra que não foram tomadas medidas efetivas para proteger a população indígena. Acontecendo tão cedo depois do massacre da Candelária, esta atrocidade deixa o governo brasileiro à mercê da acusação de não ser capaz de proteger os mais fracos de seus cidadãos.

"Pedimos que transmita nossa preocupação ao governo brasileiro e exortamos as autoridades a levarem a efeito a mais rigorosa investigação possível, para assegurar a punição dos responsáveis, e a tomarem medidas efetivas para garantir a segurança do povo ianomâmi".

A carta é assinada pelas organizações que, neste 20 de agosto, devem participar às 13h (9h em Brasília) de uma manifestação frente à embaixada do Brasil em Londres. A manifestação ainda não ocorreu, a carta ainda não foi entregue. A Folha informa seus leitores sobre o que vai acontecer hoje. Detalhe curioso da carta. Se as denúncias na imprensa brasileira surgiram nos jornais do dia 19 de agosto, as ONGs consideram que elas foram divulgadas no 17.

De Brasília, confirmando as apreensões do coronel Saboya Burnier, nos informa Kátia Cubel:

Câmara protela projeto sobre reserva

"A Câmara dos Deputados vem protelando a aprovação de um projeto que regulamenta a entrada na reserva ianomâmi e pune os que invadirem a área. A proposta, datada de junho de 91 e assinada por 58 parlamentares de diversos partidos, determina penas de prisão para os invasores e seus mandantes e estabelece critérios para o ingresso, o trânsito e a permanência na selva".

Uma arte nos dá os principais pontos do projeto:

* Transforma o decreto que delimitou a reserva ianomâmi em lei. A partir disso, só com a autorização do Congresso Nacional pode haver modificações na área

* Além de índios, apenas funcionários públicos, cientistas e representantes de entidades não-governamentais podem entrar na reserva, com a autorização da Funai

* A autorização para o ingresso nas áreas indígena será precedida por exames médicos que comprovem a ausência de doenças infecto-contagiosas.

No que tange às punições, temos:

* Detenção de seis meses a dois anos, mais multas, para quem entrar na reserva sem autorização

* Dois a cinco anos de cadeia, mais multa, para quem possuir ou guardar equipamentos e maquinária na área ianomâmi sem autorização do Congresso

* Dois a cinco anos de cadeia, mais multa, para quem realizar pesquisa ou lavra de recursos minerais sem autorização prévia do Congresso Nacional

* A pena aumenta em um terço para quem promover, organizar, dirigir ou incentivar atividades irregulares na área ianomâmi

O projeto, nos diz Kátia Cubel, "confirma a delimitação dos 9 milhões de hectares da reserva e proíbe o ingresso daqueles não pertencentes a grupamentos indígenas na área". O mentor do projeto é o deputado Fábio Feldmann (PSDB-SP) e conta com a adesão de mais 57 deputados. Ainda na mesma nota, Cubel nos passa um dado significativo. Segundo o deputado José Dirceu (PT-SP), "o Congresso precisa acordar com essa chacina e aprovar logo isso. Agora é a hora de o projeto ir à votação".

Ao alto e à esquerda da mesma página, temos a ratificação do massacre:

ONTEM NA TV
Deu na CNN

Apesar de estarmos apenas no segundo dia da revelação da tragédia, diz Nelson de Sá:

"Demorou um pouco, mas a CNN finalmente entrou no massacre. Chamando pelo nome, "massacre". Lembrando o detalhe de horror, das "crianças decapitadas". Mas também tomando o maior cuidado, só afirmando que as autoridades brasileiras acreditam que mineiros do ouro mataram 30 índios ianomâmis.

"Só afirmando que "é o que dizem autoridades de assuntos indígenas". Quer dizer, o mundo ainda não está sabendo que o massacre foi massacre. Por enquanto, o que corre é a versão apresentada ontem pelo programa World News, sem imagens, com tudo restrito à locução.

"Mas é só questão de tempo para a confirmação bater no mundo. Itamar Franco poderá então culpar os embaixadores. Ontem mesmo já ensaiava a nova bronca. "O presidente está preocupado com a repercussão internacional da chacina", dizia Boris Casoy. "As organizações internacionais protestam contra a chacina", dizia Sérgio Chapelin".

De Brasília, Flávia de Leon nos dá a fonte na qual se baseiam as "autoridades brasileiras":

Itamaraty se baseia na Folha

"O Ministério das Relações Exteriores usou ontem o caderno "Ianomâmis" da Folha para abastecer as principais embaixadas no exterior com informações sobre a chacina dos índios na região noroeste de Roraima. O Itamaraty mandou cópias do noticiário nacional para 14 representações diplomáticas na Europa (incluindo o Leste), Estados Unidos e México. O noticiário da Folha foi considerado o mais completo pelo Ministério das Relações Exteriores.

"Estes postos receberam atenção prioritária por terem que informar as ONGs (Organizações Não-Governamentais) consideradas mais ativas. O caderno "Ianomâmis" e algumas reportagens de outros jornais foram transformadas em um cliping de 14 páginas, transmitidas por fac-símile. Como o custo da transmissão é muito alto, os outros 106 postos brasileiros receberam as informações consideradas de rotina — o fato e as primeiras medidas do governo. Essa operação vai continuar nos próximos dias".

Logo abaixo,

ONGs
Exterior condena massacre

Informam os correspondentes que "em Genebra, onde ocorre a Conferência Anual das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, ontem à tarde todos buscaram informações sobre o ocorrido em Roraima. Representantes de ONGs (Organizações Não-Governamentais) procuraram membros da missão brasileira junto às Nações Unidas para tentar se informar. A partir do meio-dia, a televisão Euronews, com programação exclusivamente informativa, divulgou o massacre em todas as edições, com imagens e mapas do Brasil e da Amazônia para ilustrar a narração.

"Um representante do Conselho Internacional dos Tratados Indígenas disse que o massacre demonstra "que o conjunto da sociedade brasileira ainda não entendeu o valor da cultura do índio", antes de concluir que "a existência física e cultural dos índios é um valor universal".

Nesta sexta-feira, 20 de agosto, o sóbrio Estado de São Paulo confirma na capa:

Ianomâmis foram mortos em tocaia

São cerca de 40 as vítimas da chacina; Funai confirma que os índios foram atraídos com comida e assassinados por garimpeiros

Para confirmar visualmente o massacre, temos na primeira página uma foto — de arquivo — de duas sorridentes meninas ianomâmis:

Violência
Meninas ianomâmis na Casa do Índio de Boa Vista, Roraima: elas ainda não sabiam do massacre

No caderno Geral, maiores detalhes:

Mortos em massacre de índios podem chegar a 40
Indigenista que esteve no local da chacina diz que homens ianomâmis foram mortos a bala; mulheres e crianças a golpes de facão

Na sub, o procurador não tem dúvidas:

Junqueira classifica ação de ‘genocídio’

Aspas, em jornal, quer dizer muitas coisas. Entre elas, que a palavra salientada foi proferida pelo entrevistado. Neste caso, as aspas que cercam genocídio indicam que o procurador usou esta exata palavra. O detalhamento expresso na linha fina, dá maiores dimensões ao massacre: se os homens foram mortos a tiros, para mulher e criança bastou facão. A correspondente Elza Pires, de Brasília, nos transmite a indignação do procurador:

"Se alguém mata vários membros de uma mesma etnia, não há dúvidas de que trata de crime de genocídio e a penalidade deve ser múltipla para os culpados, a depender do número de mortos".

Na foto, diz o texto-legenda:

Morte na selva
Coordenador da Funai, Suami dos Santos, confirma assassinato de ianomâmis

Com uma mão erguida, como quem jura, Suami confirma a chacina. Isso que por enquanto temos apenas 40 trucidados. No dia seguinte, a cifra avança. Ao lado da declaração de Junqueira, o correspondente em Boa Vista nos informa que o ministro Maurício Corrêa fez uma reunião com militares e outras autoridades de Roraima. Quis saber detalhes do que estava ocorrendo, mas "não ouviu nenhum comunicado da confirmação do massacre porque as equipes que estavam na selva não haviam feito contato". A Funai, com toda sua capacitação logística, já está convicta de um genocídio. Nossos generais não conseguem chegar ao local do crime, porque é de difícil acesso.

O intertítulo a seguir não pode ser deixado de lado:

"Imposição — Maurício Corrêa disse aos participantes da reunião que o fato de ter ido para a Roraima imediatamente após a notícia da chacina — ainda sem confirmação — ocorreu por uma imposição do presidente Itamar Franco. O presidente da República exigiu que o ministro se deslocasse imediatamente para a área ianomâmi, para mostrar uma reação à comunidade internacional".

De Brasília, Tânia Monteiro, nos noticia que

Para ministro do
Exército, problema
é da Funai

"O ministro do Exército, general Zenildo Zoroastro Lucena, afirmou ontem que não cabe à corporação interferir na questão da morte dos índios ianomâmis, em Roraima, mas que irá auxiliar a Fundação Nacional do Índio (Funai) no que for preciso. Segundo o ministro, o Exército não conseguiu ainda chegar ao local do massacre, por causa das dificuldades de acesso. Mas disse que, assim que soube do incidente, determinou às unidades militares da área que ajudassem a localizar os corpos". Página seguinte:

VIOLÊNCIA

Itamar pede "operação limpeza" na região

Presidente determinou ao ministro da Justiça o afastamento definitivo dos garimpeiros da área ianomâmi e a apuração das responsabilidades

De Brasília, nos informam Vanda Célia e Marco Antônio Moreira:

"A chacina dos índios ianomâmis incomodou o presidente Itamar Franco e o Comando das Forças Armadas. O presidente determinou, ontem, ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa, que providencie, imediatamente, uma "operação-limpeza" na região da reserva indígena dos índios ianomâmis e que apure as responsabilidades pela morte".

Nota-se no texto a pressa do redator, que fala em "responsabilidades pela morte", como se os massacrados fossem um só. Continuam os repórteres:

"O ministro do Exército, general Zenildo Lucena, e o ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mário César Flores, também estão acompanhando a investigação do que houve na reserva, mas afirmam que as informações e explicações sobre o problema são da responsabilidade do ministro da Justiça, Maurício Corrêa".

O Exército não consegue chegar ao local do massacre, passa a bola para a Funai e ao Ministério da Justiça, mas Itamar se antecipa: quer o afastamento definitivo dos garimpeiros da área ianomâmi. No exterior, a imagem do país se deteriora. Continuam os repórteres de Brasília:

"No Itamaraty, um diplomata confirmou que repercutiu negativamente na Inglaterra, Alemanha, Itália e França a chacina dos índios. As embaixadas já foram acionadas pelo Itamaraty para responder oficialmente que o massacre está sendo apurado pelas autoridades brasileiras".

Um intertítulo cartesiano permite ao leitor respirar:

"Trinômio — Deplorar o acontecido, não esconder informações e anunciar todas as providências que estão sendo adotadas para apurar o caso. O Itamaraty apóia-se nesse trinômio para manter informadas as suas representações no Exterior sobre o massacre que causou a morte de pelo menos 40 índios em Roraima, próximo à fronteira com a Venezuela".

Itamar pede operação-limpeza. O Itamaraty se apóia em um trinômio. De Paris, Reali Júnior alerta sobre as graves conseqüências do massacre:

"O Palácio do Planalto deverá sofrer, nos próximos dias, um verdadeiro ‘bombardeio’ de cartas de protesto enviadas de toda a Europa exigindo medidas de proteção aos quase dez mil índios ianomâmis que vivem em reservas já demarcadas, mas cujo território, na fronteira com a Venezuela, tem sido frequentemente desrespeitado por garimpeiros.

"Esta mobilização foi anunciada ontem, em Paris, pela etnóloga Simone Dreyfus Gamellon, diretora de estudos do Centro de Altos Estudos de Ciências Sociais, após tomar conhecimento da chacina cometida por garimpeiros".

Em intertítulo, temos uma organização internacional pondo os pés no Brasil.

"Anistia — A pesquisadora francesa apresenta uma condição indispensável para que cessem os massacres contra os ianomâmis: ‘é preciso um poder central mais forte que o poder local e um poder civil mais forte que o poder militar’. Sem isto, a seu ver, não há solução. Várias organizações não-governamentais (ONGs), entre elas a Survival International, da qual Simone Gamellon é uma das dirigentes, a dinamarquesa Ingla e o Grupo de Trabalho Internacional sobre Populações Indígenas, já estão se mobilizando para denunciar a situação dos índios brasileiros.

A Anistia Internacional informou ontem que já enviou um representante para a reserva ianomâmi para levantar informações sobre o massacre. Logo que tiver mais dados, a Anistia pretende promover uma ‘ação urgente’, disse Luiza Soriano, porta-voz da entidade".

Mais adiante a etnóloga francesa diz que "o estado de direito no Brasil não parece ser suficiente para que as leis já existentes sejam corretamente aplicadas. O território dos índios foi demarcado depois de muita luta, mas isto não impede sua constante invasão. Uma outra dificuldade tem sido a própria presença militar numa região de fronteira com a Venezuela, nem sempre compatível com a vida dos ianomâmis, também atingidos por doenças, inclusive Aids. Hoje, após a demarcação da área ianomâmi, pode-se dizer que existe uma proteção jurídica, mas não concreta, pois ela se limita apenas ao papel".

Reali Júnior situa as declarações em um contexto europeu:

"Depois da chacina dos meninos de rua da Candelária esse novo drama vai contribuir para piorar a imagem externa do Brasil, chocando os europeus em pleno período de férias de verão".

Reali Júnior, que vive há duas décadas na França, parece não ter entendido que nada choca um europeu em férias no Egeu ou Mediterrâneo. O único choque que choca um francês no verão, são os novos preços na França na segunda-feira posterior ao primeiro fim-de-semana de setembro.

"O governo do presidente Itamar Franco terá que agir rápido, transmitindo para o Exterior informações precisas sobre as medidas que estão sendo adotadas para prender e punir os culpados e garantir a sobrevivência dos índios ianomâmis", escreve Reali Junior. Numa sub, temos:

Antropólogos defendem
demarcação de terras

"Para os antropólogos, a única forma de acabar com os conflitos de terra entre os índios e garimpeiros ou madeireiros, é a demarcação total das terras, autorizada pela Constituição de 1988 e ainda não concluída. Todos apontam também a necessidade de punição dos culpados pelo massacre. ‘Matar índios faz parte da política de governos do Brasil’, afirmou a professora da Faculdade de Ciências Sociais da Pontíficia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, Lúcia Helena Rangel.

"Os massacres acontecem há mais de 20 anos, mas a opinião pública só toma conhecimento em casos como esse, em que há requintes de crueldade", Notamos aqui uma pequena discordância das cifras do artista plástico. Syron Franco fala em 493 anos precisos. Segundo a acadêmica Lúcia Helena Rangel, são apenas 20. Entre as opiniões do artista e da cientista há um pequeno hiato de mais de quatro séculos e meio.

No dia seguinte à notícia do massacre, temos:

* 40 ianomâmis massacrados e sobreviventes da chacina.

* Requintes de crueldade.

* Funai e PF encontraram os corpos dos índios, muitos deles mutilados.

* Os criminosos continuam sendo os garimpeiros.

* Detalhe assustador: crianças teriam sido degoladas.

* Uma progressão do massacre: podem ser 40.

* Confirmam-se os corpos decapitados.

* Dez crianças e cinco — ou sete — mulheres mortas.

* A Folha antecipa o conteúdo de uma carta da Survival International, que será enviada ao presidente Itamar Franco. O presidente ainda não recebeu a carta, mas nós já a conhecemos.

* A manifestação vai ocorrer em Londres. Ainda não ocorreu, mas a manchete nos informa que a "Embaixada de Londres é alvo de protesto".

* A CNN confirma o massacre, mas sem imagens. Ocorre que, do massacre propriamente dito, ainda não se tem imagem alguma.

* O Itamaraty informa fartamente 14 de suas representações internacionais, tendo como fonte o caderno "Ianomâmis", da Folha.

* Os outros 106 postos receberam apenas um resumo do fato, porque o custo de transmissão de fax é muito alto.

* O Itamaraty privilegia 14 de suas representações por ter de informar as ONGs. Não há a preocupação de informar Estados, mas entidades privadas.

* Há no Congresso um projeto que proíbe a entrada, nos 9 milhóes de hectares da reserva, de qualquer brasileiro, desde que não seja funcionário público (leia-se Funai), cientistas (leia-se antropólogos) e representantes de entidades não-governamentais (leia-se lobby de governos estrangeiros).

* Em primeira página, o Estado, nos dá mais uma evidência da chacina: meninas ianomâmis sorriem em Boa Vista porque ainda não foram informadas do massacre em Haximu.

* O Exército diz que nada tem a ver com assunto, mas vai ajudar a Funai a localizar os corpos. Ou seja, o massacre existe. Mas os militares não conseguiram chegar ao local da chacina, dadas as dificuldades de acesso. Enquanto personalidades nos Estados Unidos se indignam com o massacre, nossos soldados ainda não conseguiram chegar lá.

* Primeiros garantes do massacre: o índio Antônio, o presidente da Funai, Carlos Romero, e o administrador da Funai em Roraima, Suami Persílio dos Santos.

* Nos Estados Unidos, o biólogo Thomas Lovejoy, a porta-voz do secretário do Interior, Mary Helen, mais Bruce Babbitt e Bruce Rich, revoltam-se contra o massacre.

* Na França, a etnóloga Simone Gamellon pede um poder central mais forte do que o poder local e um poder civil mais forte que o poder militar.

* Brasileiros confirmam: entre outros, Cláudia Andujar (naturalizada), Syron Franco, Mário Covas, Orlando Villas Bôas, o cardeal Arns, Fábio Feldmann, Inocêncio de Oliveira, sem falar no Itamaraty.

* O Itamaraty se apóia em um trinômio: vai deplorar o acontecido, só que até não temos acontecimento algum concreto. Pretende não esconder informações, só que não tem informação alguma. Vai anunciar as providências adotadas para apurar o caso, como se fosse função da diplomacia brasileira fazer investigações policiais. Vai anunciar, mas não anuncia.

* Logo, houve massacre. A barbárie brasileira, como diz a Folha, produziu um genocídio. No verbete objetividade, diz o Manual de Redação da Folha: "não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções. Isto não o exime, porém, da obrigação de ser o mais objetivo possível.. Para relatar um fato com fidelidade, reproduzir a forma, as circunstâncias e as repercussões, o jornalista precisa encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse".


 

 

73 mortos: índio não mente

 

Estamos no sábado, dia 21 de agosto. Na sexta-feira, o ministro Maurício Corrêa, junto com o procurador-geral Aristides Junqueira, chegou ao local do crime. Estadão, primeira página:

Corrêa constata fim de aldeia ianomâmi

Foto do ministro no local da chacina:

[imagem]

Pé-de-guerra
O ministro Maurício Corrêa, com Davi Yanomâmi, pintado em de guerra, olha maloca queimada na chacina: "Índio não mente"

 

A chamada:

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, considerou ontem, em Boa Vista, que a tribo ianomâmi hwaxin-u-thele "foi exterminada". As duas malocas habitadas pelo povo estão queimadas, há cartuchos de espingarda pelo chão, crânio, ossos, couro cabeludo espalhados pelo local e vasilhas perfuradas a tiros. Restos da matança dos cerca de 30 índios por garimpeiros. "Os índios não mentem", disse Corrêa, após ouvir relato de sobreviventes confirmando a chacina".

Página 14, com um chapéu à esquerda:

VIOLÊNCIA
Ministro vai a aldeia e confirma massacre de índios
Malocas estavam queimadas, havia crânio, ossos e couro cabeludo espalhados pelas redondezas e 16 vasilhames perfurados pelos tiros

Interessante observar o recurso usado pelo redator na linha fina. Temos malocas queimadas, assim no plural. Mas "havia crânio", no singular. Um homem, uma cabeça. Já nos "ossos", voltamos de novo ao plural. Sem falar em "16 vasilhames perfurados pelos tiros". Não são vasilhames perfurados por tiros, aí poderia parecer que eventuais tiros foram disparados na oca. São vasilhames perfurados pelos tiros. Quais tiros? Os do massacre, evidentemente.

No texto-legenda, temos a

[imagem]

Reconstituição da chacina
Junqueira (esq.), Corrêa e policial observam ossada de índio assassinado

 

Como se sabe que os ossos são de índio, e não de garimpeiro, isto o texto não explica. Como o presidente Itamar havia determinado a Maurício Corrêa que se deslocasse até a área ianomâmi para mostrar uma reação ao massacre à comunidade internacional, o ministro, acompanhado de um procurador, teria de no mínímo achar algo. João Domingos, o correspondente em Boa Vista, nos comunica, em texto que traz como selo um rosto de índio partido em dois:

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, considera que a comunidade ianomâmi Hwaxin-u-chele (povo do Rio Nhambu) foi exterminada. As duas malocas que este povo habitava encontram-se queimadas, há cartuchos de espingarda vazios pelo chão, crânio, ossos de pernas e coluna dorsal espalhados pela redondeza e 16 vasilhames perfurados a tiros. Corrêa esteve na região ontem".

Pausa para refletir. Já se precisou a comunidade massacrada, são os hwaxin-u-chele. Temos ossos, sempre no plural, mas apenas um crânio. A manchete nos faz inferir que os ossos são de índios, afinal o que houve foi um massacre de ianomâmis. Os ossos descarnados e aquele crânio calvo obviamente são de índios.

Quem pode testemunhar um massacre? Apenas os sobreviventes. Mas o correspondente do Estado não os entrevista, que mais não seja desconhece a língua dos hwaxin-u-chele. Seu relato é indireto:

"A partir dos depoimentos dos sobreviventes — Antônio e Japão — ouvidos pelo intérprete Francisco Bezerra de Lima, a Fundação Nacional do Índio (Funai) passou a calcular em cerca de 30 o número de mortos. Maurício Corrêa recebeu a informação de um legista que está na área do massacre que os dados iniciais apontam para a ocorrência do crime há 15 dias. Após ouvir o relato de Antônio e Japão — este último afirma que teve a mulher e o pai mortos — o ministro, que a todo instante procurava saber se o massacre realmente ocorreu, disse acreditar na existência de chacina. "Os índios não mentem". Corrêa quis saber de todos que convivem com os índios se eles realmente só falam a verdade".

Temos então um legista. Quem é este legista e para que instituição trabalha? Que anda fazendo um legista nos confins da Amazônia? Turismo ou trabalho? Nada disso nos é informado. O anônimo especialista não tem dúvidas. O massacre ocorreu, mas não foi tão recente, como imaginam os jornalistas. Em verdade, teria acontecido há 15 dias. O número de mortos diminuiu. Já não são "pelo menos" 40, mas "cerca"de 30. Fica apenas uma pergunta no ar: a partir de quais cadáveres, o tal de legista (por que razões prefere o anonimato, João Domingos não nos esclarece) chegou a tal conclusão?

O ministro Corrêa quis saber de todos que convivem com os índios se eles realmente só falam a verdade. Quem são todos os "que convivem com os índios", no caso? A foto só nos mostra o procurador Junqueira e um policial anônimo. É até possível que mais pessoas "que convivem com os índios" estejam lá no meio do mato, mas delas o correspondente não nos dá notícia. Diz um intertítulo:

"Atraiçoados — Pelas informações conseguidas até agora, parte dos índios deveria estar participando de uma pequena festa, enquanto a maioria voltava de uma caçada. Nesse momento, a cerca de 500 metros da maloca, foram atraiçoados. Duas mulheres sobreviventes, segundo o índio Antônio, foram até o local da festa, na maloca, para relatar a tragédia — o que abre a possibilidade de haver outros sobreviventes, que teriam fugido. Em seguida, voltaram para a proximidade dos corpos para o culto do choro — sagrado entre os ianomâmis — e foram mortas a golpes de facão, mesmo destino dado às crianças. O crânio encontrado no local é pequeno e deve ser de uma das vítimas menores".

Corpos há, tanto que as mulheres sobreviventes voltaram para a proximidade deles, para o culto do choro, sagrado entre os ianomâmis. Só que — fora a ossada do ministro da Justiça — os demais não foram encontrados. Mas "as equipes da Funai e da Polícia Federal vão continuar as buscas atrás dos corpos. Integrantes da Funai acham acham que estes corpos podem estar cremados — a tradição ianomâmi assim o determina — para que as cinzas transmitam a sabedoria aos descendentes. O que leva os técnicos da Funai a concluir pela cremação dos corpos é a existência de palhas de banana dentro das malocas incendiadas. Os índios guardam as cinzas dos corpos em recipientes feitos com a palha de banana". Mais adiante serão potes.

Uma arte mostra o

[imagem]

 

À direita, uma tripa nos diz:

Presidente
prefere evitar
comentários

De Brasília, nos conta a correspondente Tânia Monteiro:

"O presidente Itamar disse ontem que que só vai comentar a morte dos índios ianomâmis após ouvir o relato do ministro da Justiça, Maurício, que está visitando a área".

Parece existir uma grave falha de comunicação entre o presidente e seu ministro. Maurício Corrêa já confirmou o massacre aos jornais, sem nada ter dito a seu chefe imediato.

Na página seguinte, entrevista com o líder dos criminosos:

Há uma guerra na Amazônia, diz líder garimpeiro
Alegando estar "cansado de ser o vilão da história", José Altino Machado coloca o cargo à disposição e acusa o governo de omissão

Foto de Altino ao lado de avião. Texto legenda:

Vilão da história
Altino: "Quero ver representantes do governo entrar na mata para apartar brigas"

Na linha fina, temos que Altino diz estar cansado de ser o vilão da história. A frase, por ser uma declaração sua, está entre aspas. Na legenda da foto, Altino passa a ser o vilão da história, e desta vez sem aspas..

"Estado — "Não é incoerente abandonar o cargo no momento em que os ianomâmis estão sendo acusadas da chacina dos garimpeiros?"

O porta-voz dos acusados, dá o massacre por contado e se defende:

Altino — "Nossos interlocutores sempre foram delegados, policiais. O governo federal nunca considerou a situação dos garimpeiros, que ficam embrutecidos no meio da selva. Não fui capaz de reverter esta situação e não quero ser o mediador de uma situação criada por garimpeiros e com que eu não concordo. As pessoas sempre discutiram a quantidade de minérios, derrubadas das árvores e poluição dos rios, mas não se preocupam com o homem garimpeiro. Prefiro garantir o anonimato dos bons garimpeiros que não se envolveram com a chacina".

Sem ter visto um só cadáver, o líder dos garimpeiros está confirmando o massacre e nominando seus liderados como culpados. Com uma ressalva: os bons garimpeiros não se envolveram com a chacina.

Logo, responsáveis pela chacina são os maus garimpeiros. Abaixo:

Polícia venezuelana procura acusados de genocídio

De Boa Vista, nos informam os correspondentes Elza Pires e Diana Fernandes:

"O superintendente da Polícia Federal em Boa Vista, Sidney Lemos Vera, mandou abrir inquérito ontem para investigar o massacre contra os ianomâmis. E já tem um suspeito: o garimpeiro João Neto, apontado, por um telefonema anônimo, como o líder do grupo de garimpeiros que assassinou os índios. Policiais federais estão vasculhando os locais mais freqüentados pelos garimpeiros, como bares e prostíbulos na periferia da cidade, à sua procura".

O intertítulo já nos leva ao país vizinho:

"Venezuela — O governo da Venezuela determinou ontem que a Guarda Nacional detenha os garimpeiros brasileiros acusados de cometer o massacre, caso sejam localizados em território venezuelano, segundo informou a agência EFE. O chanceler interino da Venezuela, Fernando Gerbasi, afirmou que dispõe de informação não confirmada de que de acordo com as buscas que estão sendo realizadas pelo governo brasileiro é possível que os garimpeiros tenham cruzado a fronteira. João Neto, teria desaparecido, de acordo com a denúncia anônima, logo após o massacre — ocorrido no último dia 7, conforme esta versão — e possivelmente retornado a Boa Vista.

"Caso os garimpeiros apontados como responsáveis pela chacina dos índios ianomâmis estejam na Venezuela, como suspeita a Polícia Federal, o Ministério da Justiça deverá encaminhar ao governo venezuelano o pedido de extradição, com base em acordo assinado entre os dois países em 1940".

Mais abaixo:

Anunciada nova
ação de retirada
de garimpeiros

De Brasília, Diana Fernandes nos informa que "será deflagrada na próxima semana nova operação para retirada de garimpeiros de terras ianomâmis no Parque Nacional do Pico da Neblina". O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama), segundo a repórter, estima que mais de 80 garimpeiros estão operando com cerca de 50 balsas e dragas na calha do Rio Negro, na divisa do Parque. "Há suspeitas de que esse grupo esteja envolvido no massacre dos índios ianomâmis".

O ceticismo fica restrito ao pé esquerdo da página:

Governador de Roraima
não acredita em chacina

"Para o governador de Roraima, Ottomar Pinto (PTB), ainda não há evidências concretas de que houve uma chacina de índios ianomâmi no seu Estado, na região próxima à Venezuela".

No entanto, dois parágrafos adiante, diz o redator:

"O governador disse ainda que é possível que os corpos dos índios chacinados estejam espalhados pela região de Haximu, mas é preciso intensificar as buscas antes de fazer esta averiguação".

Há um desejo de massacre no ar. O mesmo redator que, no lead, afirma que o governador não acredita em massacre, dois parágrafos abaixo redige que, segundo o governador, é preciso intensificar as buscas para encontrar os corpos chacinados.

Como o assunto rende, temos mais uma página:

Para Possuelo, impunidade favorece ação contra índio
Ex-presidente da Funai diz que governo deve tomar atitude mais firme e que pensamento antiindigenista é forte na Amazônia

A firmeza maior que Possuelo exige é elementar:

"O governo do presidente Itamar Franco precisa mostrar uma firmeza maior, precisa mostrar com clareza o que vai prevalecer: é a decisão clara de cumprir a Constituição que determina a demarcação das terras indígenas".

À direita, alto de página, temos uma preocupação da correspondente do Estado em Brasília, Diana Fernandes, de informar o leitor com precisão:

Semelhança de
nomes de aldeias
provoca confusão

"O massacre dos índios ianomâmis na região de Xidéia criou também uma polêmica sobre a grafia dos nomes das aldeias da região. Os jornais e TVs usaram formas variadas como Haximu, Homoxi, Haximi-u, Haximu e Hoximu. A Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que o nome correto é Homoxi, mas sem muita convicção. "Estão usando também Haximu, mas acho que o certo é Homoxi", disse ontem um confuso funcionário em Brasília".

Para esclarecer a confusão, a jornalista consulta Alcida Rita Ramos, antropóloga, "estudiosa da vida e da cultura dos ianomâmis há 25 anos". Alcida garante "que a aldeia próxima de Xidéia chama-se de fato Homoxi, mas ela ainda não sabe se foi lá que os índios foram mortos".

Se a semelhança de nomes de aldeias provoca confusão inclusive em relação ao local da chacina, no exterior não há maiores dúvidas.

Embaixadas registram um dia movimentado

Segundo Reali Junior, o correspondente do Estado em Paris, "o recente destempero verbal do presidente Itamar Franco criticando a ação passiva de alguns de seus embaixadores no chamado circuito Elizabeth Arden, isto é, junto a governos instalados nas principais capitais da Europa e nos Estados Unidos, quando da chacina dos meninos de rua da Candelária, parece produzir resultados positivos. Um mês depois daquele drama, os embaixadores e diplomatas brasileiros estão tendo oportunidade para mostrar sua competência e agilidade diante do novo drama que envolve a imagem do Brasil, a matança dos índios ianomâmis na Amazônia".

Reali Junior, em intertítulo, nos fala de um

"Comunicado — Não só a representação brasileira em Paris, mas também as demais na Europa, receberam uma farta documentação do Itamaraty, facilitando um comunicado de duas páginas que foi transmitido aos principais órgãos da imprensa européia, mas também às organizações não-governamentais, preocupadas com as informações vindas do Brasil. Elas revelaram que o número de índios massacrados era muito superior ao inicialmente anunciado, atingindo 50 homens, mulheres e crianças.

"O embaixador Carlos Alberto Leite Barbosa decidiu enviar, além do comunicado, uma carta ao jornal francês Le Figaro, que publicou uma ampla reportagem na sua última página destacando o fato. A matéria trata do massacre, mas nada revela sobre as medidas já adotadas para prender os autores do massacre. Também o vespertino Le Monde divulgou a chacina dos ianomâmis em matéria de duas colunas, na sua última página.

"Ao contrário das vezes anteriores, a diplomacia brasileira está se mostrando muito mais ativa nesse novo e triste episódio. Não se trata, como na chacina dos meninos de rua, de tentar explicar o inexplicável, mas mostrar que o governo e a sociedade condenam tais atos e estão dispostos a lutar para que eles não mais se reproduzam no país".

O correspondente nos dá a repercussão na televisão francesa:

"Os jornais de televisão exibiram cenas dos ianomâmis em família, vivendo na floresta e nos rios, para ilustrar o noticiário sobre as circunstâncias desse novo massacre. Na verdade, um dos comentaristas chamava atenção para o fato de que tudo aquilo que depende da tutela do Estado brasileiro está sofrendo importante degradação.

"Na maior parte das vezes, o poder local se sobrepõe ao poder central. Os exemplos foram inúmeros em 1993. A chacina de 100 presidiários do Carandiru, pela Polícia Militar de São Paulo; a execução dos menores de rua da Candelária por policiais cariocas, a matança dos ianomâmis, sem falar da fuga de P.C. Farias, procurado pela Polícia Federal, sob a proteção da Polícia Militar de Alagoas".

Foto com crianças e mães ianomâmis. Em box, a inusitada declaração de Nelson Teixeira de Almeida:

Empresário diz que índio
não mata mulher e criança

"O empresário Nelson Teixeira Almeida não tem dúvidas de que garimpeiros são os responsáveis pelo massacre dos ianomâmis. "Índio não mata crianças e mulheres", disse".

Logo abaixo,

Entidades manifestam preocupação

Se o redator que leu a matéria de Reali Junior, titulou que as embaixadas em Paris tiveram um dia movimentado, o que leu a de Liana John, logo abaixo, a ignora:

"A notícia do massacre dos ianomâmis em Roraima ainda não explodiu no Exterior, mas já se prenuncia uma forte reação".

No pé de página, à direita, há uma nota sugestiva:

Encontro discute
importância da
ética no jornalismo

Na primeira da Folha, do mesmo dia 21,

PF pede prisão de garimpeiro
Líder ianomâmi acusa o governo de negligência; representante do garimpo defende "lei da necessidade"

"A Polícia Federal em Boa Vista pediu à Justiça a prisão preventiva do garimpeiro João Neto, suspeito de ter liderado a chacina na reserva ianomâmi. Efrém Ribeiro informa que o líder ianomâmi Davi Kopenawa acusa o governo de negligência".

Na foto, em meio a uma verde e exuberante aboboreira,

O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, e Davi Kopenawa visitam o local do massacre

Uma discreta sub, nos traz outra notícia:

Sendero mata
62 índios em
ataque no Peru

"Guerrilheiros do Sendero Luminoso mataram pelo menos 62 índios ashaninkas na cidade peruana de Satipo. Segundo o governo local, entre os 34 feridos há crianças que tiveram as orelhas cortadas".

A mesma notícia foi dada pelo Estado, no mesmo dia, nas páginas de Internacional, com um pouco mais de ênfase:

Terror do Sendero Luminoso
massacra 62 indígenas no Peru

Em página interna, a Folha, com o aval do procurador-geral da República, aumenta a aposta e fura o Estadão. Lucio Vaz nos informa:

Mortos chegam a 73, diz Aristides
Mais uma aldeia teria sido dizimada; diretor da PF em Boa Vista duvida que garimpeiros sejam encontrados

"O procurador-geral da República, Aristides Junqueira, disse ontem à noite que chega a 73 o número de índios ianomâmis mortos por garimpeiros. Além da Haximu, também a aldeia do Simão teria sido atingida. Segundo as primeiras informações, esta segunda aldeia teria sido dizimada.

"O diretor regional da Polícia Federal em Boa Vista, Sidney Lemos, disse ontem que será muito difícil capturar os garimpeiros acusados da suposta chacina contra os índios ianomâmis, porque a região é acidentada e inviabiliza buscas. Ele pediu ontem à Polícia a decretação da prisão preventiva do garimpeiro João Neto, acusado de ter liderado a chacina".

Dois acontecimentos curiosos. O repórter passa a falar em "suposta chacina". Mesmo sendo suposta a chacina, o diretor regional da Polícia Federal em Boa Vista, Sidney Lemos, quer que a PF decrete a prisão do garimpeiro João Neto, acusado de ser um líderes da chacina. Em sub, Efrém Ribeiro dramatiza:

Maloca parece ter sido bombardeada

"A maloca Haximu parece ter sido bombardeada. No local estão panelas e frigideiras com marcas de balas e cartuchos que não foram detonados. As balas são de espingardas de calibres 23 e 12. A vegetação estava destruída, com indícios de que muitas pessoas passaram pelo local. Os únicos vestígios de mortes são um esqueleto e um crânio. Não foi possível precisar desde quando estão no local".

O que para o ministro Maurício Corrêa constituia prova evidente da chacina, o esqueleto, já não o é necessariamente para o repórter. Mas chacina houve. Logo adiante: "Pelas marcas da vegetação danificada, teria havido uma tentativa de esconder o fato. Alguns utensílios de cerâmica quebrados foram arrumados em fileira junto com ossos soltos".

Em um curto período de duas frases, a segunda destrói a primeira. Os assassinos destroem a vegetação danificada para esconder o fato, mas são deixados ossos no local, sublinhados com uma fileira de utensílios de cerâmica. Ainda na mesma nota:

"O presidente da Funai, Cláudio Romero, disse que os mortos passam de 60. O diretor da Funai em Roraima, Wilk Célio, disse que há informações, cruzadas com sobreviventes do local, de que pelo menos 90 morreram. Romero diz que o número de mortes está sendo avaliado. Considera-se que houve dois massacres. Um no dia ou 11 de agosto, o maior, e o outro, quatro dias antes, quando teria ocorrido a morte de quatro índios".

No pé da notícia:

"O procurador-geral da República, Aristides Junqueira, disse que visitou a maloca ontem pela manhã e não tinha informações suficientes para pedir o indiciamento de responsáveis pelo massacre sob a acusação de genocídio. Segundo ele, o genocídio é um homicídio múltiplo, com pena baseada em homicídio qualificado, que prevê prisão de 12 a 30 anos. Conforme Aristides, no caso do genocídio o responsável pelo crime pode ter a pena multiplicada, tomando como referência o número de pessoas mortas".

No dia anterior, em entrevista ao Estado, o procurador denunciava o genocídio. Agora diz que não tem indícios do mesmo. Em outra sub, à direita:

Funai busca provas materiais

"A PF (Polícia Federal) e a Funai procuravam ontem provas materiais para configurar como genocídio o assassinato de índios ianomâmis na maloca de Haximu. O presidente da Funai, Cláudio Romero, 41, disse ontem à Agência Folha, que estavam sendo procurados potes de cerâmica onde os ianomâmis guardam as cinzas dos mortos, para que pudessem ser utilizadas como provas documentais para caracterizar genocídio.

Ora, neste mesmo 21 de agosto, temos no Estado que, segundo técnicos da Funai, os índios guardam as cinzas dos seus em recipientes de palha de banana. Mais adiante, teremos uma foto de índio mostrando as cinzas de seus mortos, que o leitor não vê por uma simples razão: estão envoltas em folhas de bananeira. E se as visse, delas não tiraria conclusão alguma. Não há diferenças, a olho nu, entre as cinzas de um índio ou de uma onça ou jacarandá.

Voltando à notícia da Folha: "O procurador Aurélio Rios, 31, diz que o crime de genocídio é "do tipo que exige a comprovação de sua materialidade. O assassinato dos seis ianomâmis no final de julho não resultou em abertura de inquérito porque os corpos não foram encontrados".

O líder Davi Kopenawa tem outra hipótese: os índios não incineraram os corpos. Pelo relato dos sobreviventes e vizinhos da maloca de Haximu, os corpos dos índios foram enterrados pelos garimpeiros: "Deixaram só um corpo para dizer que só tinha uma vítima".

O ministro da Justiça confirma que "houve massacre": "Ele afirmou que nas duas malocas que visitou há panelas metralhadas e cortadas por facão, mas disse não ter encontrado cadáveres decapitados".

Já temos o possível refúgio dos assassinos:

Venezuela pode
ser esconderijo

"O embaixador da Venezuela no Brasil, Sebastian Alegrett, admitiu ontem a possibilidade de os supostos garimpeiros responsáveis pela chacina dos ianomâmis terem fugido para o território venezuelano. "Provavelmente foi o que ocorreu", disse Alegret".

Duas páginas adiante, com um título significativo, Abnor Gondim nos comunica:

Conflito anunciado
Caiapós declaram guerra contra o Ibama
Líder indígena diz que não aceita restrições à venda de mogno; grupo já patrocinou dois massacres

"Os índios caiapós da aldeia Gorotire (a 750 km ao sul de Belém) vão abrir guerra contra os servidores do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) se eles entrarem na reserva para impedir a retirada de mogno. A informação é do líder indígena e chefe do Posto da Funai no Gorotire, Pedro Tabô Caiapó, 35. "Se entrar aqui não volta mais e vai ter guerra", disse.

"O ministro do Meio Ambiente, Coutinho Jorge, disse ontem, de Brasília, que o o Ibama não fará ações isoladas para proteger os recursos naturais. "As futuras ações nas reservas indígenas envolverão o Ibama, a Funai, o Ministério das Minas e Energia e, se necessário, a Polícia Federal", disse.

Tabô afirma que os guerreiros da aldeia não vão aceitar que o Ibama ou outro órgão repita lá a apreensão de 5.000 toras de mogno feita, no início do mês, nas áreas indígenas do Pukanu e Kubenkokre (sul do Pará). "Os índios de lá não sabem, mas nós sabemos muito bem que ninguém pode entrar na reserva sem autorização", disse.

O líder caiapó ameaça de morte o brasileiro que entrar na reserva, mesmo que seja para determinar o cumprimento da lei brasileira, impedindo a retirada de mogno. O ministro do Meio Ambiente diz que o Ibama não fará ações isoladas para proteger os recursos naturais. Sugere ações conjuntas, inclusive com a Funai, entidade da qual Tabô é chefe de um posto, e diz que lá ninguém entra para impedir a retirada de mogno.

"Os índios caiapós ficaram temidos como guerreiros ousados no sul do Pará e norte de Mato Grosso, desde agosto e setembro de 80, quando promoveram dois massacres, matando 30 pessoas em duas fazendas. Nenhum índio foi processado pelos crimes cometidos. As ações inibiram invasões em suas terras, que agora envolvem cerca de 11 milhões de hectares contíguos com cerca de 5.00 índios, em 15 aldeias.

"O massacre foi comandado pelo líder indígena Raoni. (Aqui há um lapso do redator: Raoni é txucarramãe). Foram mortos a bordunadas 11 trabalhadores da fazenda São Luís, no norte do Mato Grosso. Raoni chegou a ensaiar golpes de borduna no então presidente da Funai, Carlos Nobre da Veiga, ao ser indagado sobre o massacre".

Logo abaixo

Entidades internacionais fazem protestos

"A Embaixada do Brasil em Washington recebeu ontem cópia de carta enviada ao presidente Itamar Franco, na qual 52 entidades ecológicas e de defesa dos direitos humanos nos EUA acusam "militares e políticos" de "tentar acabar com o direito dos povos indígenas viverem em paz em suas terras".

"O documento diz que os signatários se sentem "ultrajados" com o massacre dos ianomâmis em Roraima e pede ao presidente Itamar que "use o poder de sua posição para ordenar imediatamente a investigação e a punição adequada de todas as pessoas envolvidas nesse ato", que ordene "a expulsão permanente dos milhares de garimpeiros que trabalham ilegalmente no território ianômami"e que "estabeleça sistema de vigilância permanente para impedir a recorrência de invasões".

Logo adiante:

"Ontem também em Londres, representantes da Survival International e mais outras seis organizações não-governamentais entregaram ontem à Embaixada do Brasil carta endereçada ao presidente Itamar exortando o governo brasileiro a remover imediatamente os garimpeiros das reservas ianomâmis e a impedir o uso do aeroporto de Boa Vista para o transporte de suprimentos para os acampamentos dos garimpeiros".

Esta carta, onde a Survival quer condenar à morte pela fome os garimpeiros que cavoucam um bem que pertence, não aos índios, mas à União, não precisava ser entregue na Embaixada Brasileira em Londres. Já havia sido divulgada, em gesto nada diplomático, no dia anterior pela Folha. Ao lado e à esquerda, algumas reações da imprensa internacional.

The New York Times
Nova York

"NYT"dá chamada
de capa à chacina
La Nación
Buenos Aires

Jornal argentino
conta 40 mortos
The Independent
Londres

"O pior ataque
em duas décadas"
The Guardian
Londres

Texto destaca a
situação indígena
Jornal de Notícias
Lisboa

Diário dá 30
índios mortos
Diário de Notícias
Lisboa

Área ianomâmi é igual a Portugal

Telegrama da agência italiana Ansa, catado ao acaso na redação da Folha:

Indias yanomamis embarazadas con vientre abiertos a cuchillo

Brasília, 21 (Ansa) — Al menos a tres indias yanomamis embarazadas les abriron los vientres con cuchillos matando los fetos, en la masacre de 73 índios en la reserva de ese pueblo indigena en el estado de Roraima. Asi lo afirmo hoy el Procurador General de la Republica, Aristides Junqueira, quien regreso esta madrugada del lugar de los hechos. La Fundación Nacional del Indio (Funai) dijo que los indios yanomamis fueron asesinados por garimperos (buscadores de oro), que invadieron la reserva ubicada em Roraima, en la frontera de Brasil con Venezuela. El procurador Junqueira relató, horrorizado, que al menos tres indias embarazadas fueron asesinadas con cuchillos y quedaron con sus barrigas abiertas con golpes cortantes, exponiendo al exterior a los fetos.

"En hipotesis alguna el numero de vítimas esta siendo superestimado. No tengo dudas de que ocurrió un genocidio. Lo que vi fue el escenario de una guerra", dijo Junqueira.

Mal transcorreram 48 horas da notícia.

* O ministro da Justiça vai à aldeia e confirma ao país, através da imprensa, o massacre de índios.

* Segundo o ministro, índio não mente.

* O presidente da República prefere evitar comentários, pelo menos antes de ouvir seu ministro, que já confirmou à imprensa nacional e internacional a tragédia, mas não a seu chefe imediato.

* O delegado nacional da União dos Garimpeiros da Amazônia Legal, José Altino Machado, sem índicio algum de qualquer cadáver, assume o massacre e o atribui — sem usar a expressão, é verdade — a maus garimpeiros.

* O superintendente da Polícia Federal em Boa Vista, Sidney Lemos Vera, a autoridade policial federal mais próxima do local do crime, sem cadáver algum como evidência, abre inquérito para investigar o massacre e tem inclusive um suspeito — a partir de um telefonema anônimo — o garimpeiro João Neto.

* O governo da Venezuela, segundo o Estado, determinou que sejam detidos os garimpeiros brasileiros acusados de cometer o massacre.

* O chanceler interino da Venezuela, Fernando Gerbasi, dispõe de informação — não confirmada — de que é possível que os criminosos, ou seja, os garimpeiros, já tenham cruzado a fronteira.

* Caso isto tenha ocorrido — conforme indicam um telefonema anônimo e uma informação não confirmada — o Ministério brasileiro da Justiça vai encaminhar ao governo venezuelano um pedido de extradição, conforme acordo assinado entre os dois países em 1940.

* O Sendero Luminoso massacra 62 índios no Peru e não vemos protestos das ONGs inundando os jornais nem acenos à ONU.

* A Ansa divulga, urbi et orbi, declarações do procurador-geral da República, Aristides Junqueira, afirmando que três índias grávidas tiveram os ventres abertos a facão e os fetos mortos.


 

 

Desaparecem os corpos

 

Funai pede intervenção em Roraima

É a manchete de capa do Estado, no dia 22 de agosto.

"O presidente da Funai, Cláudio Romero, vai pedir nesta segunda-feira ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa, intervenção federal no Estado de Roraima. Romero disse que foram mortos 73 ianomâmis e não 30 ou 40 como se pensava. Corrêa afirmou que a intervenção não estava em cogitação e que o Conselho de Defesa Nacional vai discutir a chacina amanhã. O governo quer volta de Roraima e Rondônia à condição de Territórios".

Na pág. 23

União deverá propor retomada de RR e RO

Foto de indefectível mãe ianomâmi com filho às costas. De Brasília, a correspondente Vanda Célia nos dá as primeiras repercussões de ordem política da chacina:

"O maior impacto do massacre dos ianomâmis deverá ser no Congresso, onde a União poderá iniciar a luta para retomar o controle direto direto da área geográfica que abrange hoje os Estados de Roraima e Rondônia. Com apoio das bancadas das Regiões Sul, Sudeste e Nordeste, o governo estuda uma maneira de reverter a situação para que esses dois Estados voltem a ser Territórios, ou seja, percam a autonomia de eleger os dois governadores, seis senadores, e 16 deputados federais a partir de 1994".

Mais ainda:

"O comando das Forças Armadas não confia nos políticos eleitos pela Região Norte do País, o que dificulta qualquer estratégia militar com apoio dos representantes civis para preservar a Reserva Ianomâmi e fazer a defesa das fronteiras brasileiras. A informação, carimbada como "secreta", foi transmitida, em confiança, aos parlamentares da Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, pelo general Sílvio Imbuzeiro. "As estruturas dos governos da Região Norte não são confiáveis", disse o general, segundo testemunho de três parlamentares que estavam na sessão secreta, na semana passada".

Em sub, de Boa Vista, Elza Pires e João Domingos, especialistas em mitologia ianomâmi, nos explicam melhor a cultura ianomâmi:

Índios são cerca de 10 mil

"O confronto entre ianomâmis e garimpeiros não ocorre apenas pela disputa do solo. De acordo com a tradição ianomâmi, toda vez que o minério é extraído do centro da terra libera-se a xawara — fumaça negra que rouba a força dos índios e que, depois de dizimá-los, irá também arrasar com outras raças.

"A força do mal liberada pela xawara contrapõe-se ao deus omami, o avô de todos os ianomâmis. Esta interpretação mitológica é ampla e vale para todo tipo de minério no subsolo — do ouro à cassiterita e urânio, localizados em grandes quantidades na reserva indígena. Davi Ianomâmi, líder da tribo, assegura que o urânio — de onde se produz a bomba atômica — é o minério mais cobiçado pelos garimpeiros atuais. E que o minério servirá para exterminar a raça humana".

O aculturado ianomâmi usa uma langue de bois, típica das esquerdas européias. Talvez devido a seu isolamento no fundo da selva, Davi — cujo nome não é exatamente autóctone — parece não ter ouvido falar que o Muro de Berlim caiu e a Guerra Fria não mais existe.

Os especialistas já começam a esboçar uma pista para esclarecer a inexistência de corpos: "O ritual mais importante dos ianomâmis é o da morte, que se divide em duas partes. Os corpos são cremados. As cinzas, guardadas em recipientes de folhas de bananeira, são misturadas ora com chá, ora com comida para que os descendentes possam adquirir a sabedoria dos mais velhos. Eles não aceitam que os corpos sejam retirados das terras que ocupam.

"A segunda parte do ritual da morte assemelha-se a atos cristãos. Toda a comunidade junta-se numa espécie de velório para chorar. Nesta parte, os amigos começam a lembrar, em voz alta, o lado bom do morto. Enquanto choram, passam cinzas sob os olhos, Devagar, cria-se uma crosta, que só pode ser tirada do rosto pelo próprio tempo".

Daqui para a frente, obviamente, teremos fotos de índios de rostos tisnados. Acima e à direita, Moisés Rabinovici explica melhor o massacre:

Médico calcula
que ocorreram
dois massacres

"Alguns sobreviventes do massacre em Homoxi foram assassinados enquanto tentavam escapar refugiando-se num tapiri, um acampamento de caça. O ataque final dos garimpeiros foi revelado ontem pelo médico Cláudio Esteves de Oliveira, com base em radiogramas enviados por um delegado da Polícia Federal que vasculha a região da chacina".

Com base nos radiogramas enviado pelo delegado da Polícia Federal — cujo nome o médico da Comissão pela Criação do Parque Ianomâmi não revela — continua Rabinovici:

"A Polícia Federal descobriu vários corpos em decomposição e muitos sinais de violência num tapiri em que se refugiaram os sobreviventes das malocas Haximu, em Homoxi", contou o médico em uma entrevista por telefone. Para ele, "está claro que ocorreram dois ataques" — o primeiro, contra a aldeia, e o final, aos fugitivos. O número total de mortos não foi ainda calculado. "Estou tentando saber quantos", acrescenta o médico, que há 2,5 anos trata dos ianomâmis. "Eles só sabem contar até dois, e tudo além disso passa a ser mais de dois. Outro problema é que nessas malocas não existia censo de população. Mas imagina-se que, em cada uma, vivessem 30 pessoas. E posso garantir: as duas foram totalmente dizimadas."

Na pág. 26 do Estado,

Conselho de Defesa Nacional discutirá chacina

Funai vai propor a
ministro da Justiça
intervenção federal
em Roraima

Foto em cinco colunas, de Luiz Prado — com data de 02 de março de 93 — de dois jovens ianomâmis abraçados. Legenda:

Índios ianomâmis: como não conhecem números, a única maneira de saber quantos morreram é tentar lembrar os nomes das vítimas e relatá-los ao sertanista Francisco Lima

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, informou ontem, em Brasília, que o presidente Itamar Franco vai convocar reunião do Conselho de Defesa Nacional (CDN) para segunda-feira, com o objetivo de discutir a chacina dos ianomâmis. Será a segunda reunião do do CDN em menos de duas semanas. O presidente da Funai, Cláudio Romero, disse que vai pedir intervenção federal no Estado".

Segundo o presidente da Funai, "teriam sido mortos 35 índios adultos (15 seriam do sexo masculino), 35 crianças e três fetos de índias grávidas teriam sido arrancados a golpes de faca".

Em sub, temos os assassinos:

Massacre foi vingança de garimpeiros, diz Corrêa

"O ministro Maurício Corrêa disse ontem que a chacina dos ianomâmis pode ter sido uma vingança de garimpeiros. "A versão que ouvimos no local de pessoas tidas como fontes confiáveis indicam que os índios estavam denunciando os garimpeiros à guarda venezuelana", contou o ministro. "Então, teria sido uma represália".

No pé da página, de Boa Vista, Elza Pires e João Domingos nos informam que

Índios armados e pintados para a guerra assustam ministro

"Quando o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, e o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, desceram de um helicóptero da Força Aérea Brasileira (FAB), na aldeia de Homoxi, na sexta-feira, tiveram uma surpresa. Esperava por eles um grupo de sete índios guerreiros, totalmente pintados de preto, armados de arco e flecha e bordunas".

"Acostumados com as manifestações de índios pintados para a guerra que ocorrem em Brasília, e que sempre têm sido pacíficas, Corrêa e Junqueira ficaram surpresos. Os guerreiros ianomâmis dirigiram-se até eles aos gritos. Não era nenhuma ameaça, como se constatou depois. Era parte do ritual daqueles que estão agora preparados para a guerra".

Líder do grupo, Davi Ianomâmi, explica
que encenação faz parte de um ritual e
que uma nova investida dos garimpeiros
terá reação imediata

"A aparente hostilidade dos guerreiros não contagiou a aldeia. Mulheres continuaram a amamentar calmamente suas crianças de colo. Os meninos maiores também não interromperam sua rotina. Continuaram com suas brincadeiras prediletas: desenhar helicópteros (na língua deles bru-bru) num quadro-negro posto na parede de um barraco destelhado, e ficar horas agachados rindo de tudo o que acontece ao redor, até do cacarejo das galinhas".

O ministro da Justiça, com a ajuda do intérprete Francisco Bezerra de Lima, interroga os dois sobreviventes da chacina, os índios Antônio e Japão. Eles afirmam, com toda convicção, que houve chacina. Mesmo assim, o ministro permanece desconfiado. Chega inclusive a perguntar a Bezerra, "que conhece a tribo há 25 anos", se os índios não mentem. "Nunca", responde Bezerra.

Um intertítulo nos dá uma informação interessante:

"Matemática — Foi ali que Maurício Corrêa descobriu que os índios ianomâmis não conhecem números. Eles contam só até dois. A partir daí, é tudo "muito". O jeito foi fazer a testemunha lembrar-se do nome dos mortos, enquanto Bezerra fazia as contas nos dedos. Antônio e Japão recordaram-se de 15 homens. Mas se complicaram quando foi a vez de relatar nomes das mulheres. Repetiram alguns, disseram que não sabiam de outros".

Algumas considerações:

* Segundo o médico Cláudio Esteves de Oliveira, não existe censo da população das malocas. Imagina-se que, em cada uma, existam 30 pessoas. Ou seja, um médico que trabalha há dois anos e meio com os ianômamis não consegue saber precisamente quantas pessoas existem em um universo que gira em torno a 30. Mas há um consenso geral, repetido tanto pela Veja como pela Time, de que a população indígena no Brasil, quando Cabral aqui chegou, oscilava entre cinco e seis milhões de almas. Há um outro consenso de que os ianomâmis são dez mil. O difícil é recensear 30.

* Temos agora sete índios guerreiros. Pelo jeito, mesmo em tempos de paz, índio só sabe fazer a guerra. O único ofício até hoje atribuído a um macho indígena é o de guerreiro. Como se guerra fosse profissão.

* Os sobreviventes, ouvidos pelo ministro da Justiça, com a ajuda de um intérprete, falam de 15 homens mortos, sem lembrar do número das mulheres. Ora, no dia 18, a Folha, tendo entrevistado o índio Antônio por rádio, havia constatado 19 mortos, entre eles dez crianças, cinco mulheres e dois homens.

Manchete da Folha, deste mesmo 22 de agosto, na primeira página:

Desaparecem
os corpos dos
ianomâmis,
diz a Funai

Os cadáveres começam a minguar. O correspondente Efrém Ribeiro baixa a bola:

"Equipes da Funai e da PF destacadas para procurar os ianomâmis massacrados constataram o desaparecimento de corpos localizados há três dias, segundo a Funai. Há suspeitas de que garimpeiros voltaram à aldeia para descaracterizar o crime. Ontem, a Funai colheu as primeiras provas materiais: os ossos queimados, arcadas e trouxas com cinzas, que se transformarão em urnas. O diretor da PF em Boa Vista, Sidney Lemos, voltou atrás e negou o pedido de prisão preventiva do garimpeiro João Neto. O presidente Itamar convocou o Conselho de Defesa Nacional".

Na coluna FRASES, da página 2, Davi Kopenawa, "líder dos ianomâmis", denuncia o genocídio urbi et orbi:

"Quero comunicar para
todos do mundo inteiro que
está continuando a matança
do meu povo".

Já temos inclusive um

PILATOS DA SELVA

É o governador Ottomar Pinto, de Roraima, citado pelo Jornal do Brasil:

"Se houve massacre,
o que é que o governo
de Roraima tem
a ver com isso?

A pergunta é pertinente. Só que, ao lavar as mãos, nosso Pilatos hodierno confirma a chacina. Na página de opinião, o senador e ex-ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, reitera o massacre.

A volta do genocídio

Um olho reforça o título:

O que ocorreu nos EUA,
na corrida para o ouro,
repetiu-se, sem as proezas
de Custer, em Roraima

Escreve o ex-ministro:

"A chacina de índios ianomâmi, incluindo mulheres e crianças, só pode ser definida como crime hediondo. Não apenas contra a última tribo primitiva da Terra, mas contra o Brasil. Depois que conseguimos retirar nosso país das manchetes da mídia internacional, denunciados como genocidas, esse homicídio coletivo, conjugado com a forma bárbara pela qual se deu, vai pôr-nos outra vez na mira das organizações internacionais, governamentais ou não. Vale contudo chegar às raízes do crime. Elas estão na inconformação de importantes grupos, até mesmo ligadas a Executivos estaduais, com a demarcação da terra indígena ianomâmi e na expulsão de milhares de ianomâmis dessa terra".

O texto, evidentemente, é de um ghostwrither, pois Passarinho jamais escreveria tais tolices. O suposto Passarinho — em estilo de jornal e que não é seu — fala dos "patriotas equivocados que pretendem ver um perigo na decisão do governo Collor, de revogar a solução adotada pelo governo Sarney, de criar 19 ‘ilhas’ , nas quais haveria o reconhecimento das terras indígenas, emolduradas por duas florestas naturais e pelo Parque Nacional do Parque da Neblina, onde seria permitida a garimpagem". Ou seja: já temos dezenove ilhas, e um pedaço de chão onde brasileiro pode garimpar.

Falando em primeira pessoa, inusual no estilo do Passarinho que conhecemos, diz o ex-ministro, falando sob a demarcação de forma contínua do território ianomâmi: "Coube-me, então, avaliar os pareceres. Mergulhei no estudo dos ianomâmis, seus costumes, suas tradições. Estudei o bem fundamentado arrazoado dos procuradores da República. Convenci-me de que circunscrever os índios em ‘ilhas’ violava o espaço de sua perambulação, de suas cerimônias fúnebres ou matrimoniais. Servindo-me do estudo gloto-cronológico, foi fácil verificar que os ianomâmis habitam aquelas terras imemorialmente".

Jarbas Passarinho, servindo-se de estudos gloto-cronológicos, conclui que os ianomâmis são imemoriais. Que são imemoriais, disto ninguém tem dúvidas, já que imemoriais somos todos nós, ou aqui não estaríamos. Continua Passarinho, ou o suposto Passsarinho, em seu suposto texto:

"Sensibilizado pelos temores de patriotas, que vêem na demarcação um perigo potencial para o desmembramento de nosso território, investiguei a proposta de evitar que a demarcação chegasse à fronteira com a Venezuela. O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) fez o mapeamento da região. Por ele, na escala de um por um milhão, vi que mais de 40% das malocas ianomâmis, em Roraima, e mais de 50% no Amazonas, estavam a menos de 20 km da fronteira. Ora, para fazer este ‘cinto de segurança nacional’, a que se reportavam os preocupados, eu teria de violar a Constituição, uma vez que o parágrafo 5.o do artigo 231 da Constituição, "veda a remoção de grupos indígenas de suas aldeias".

Para quem acompanha Jarbas Passarinho, fica óbvio que este texto é incompatível com sua inteligência. Em seus 73 anos, o ex-ministro deve ter no mínimo delegado a algum antropólogo de plantão a produção do artigo para a Folha de São Paulo. Só mesmo um leitor ingênuo poderia acreditar que Passarinho, já em fim de vida, possa estar cedendo ao vício de apoiar-se em estatísticas de confirmação impossível e servir-se de estudos gloto-cronológicos, ou seja, usar jargão de antropólogo.

Continua o senador:

"Um equívoco imperdoável é pensar que uma vez demarcadas as terras, elas serão dos índios. Basta ler o artigo 20 da Constituição, para ver que as terras indígenas são "bens da União". E como coincide estarem essas na faixa de fronteira, o parágrafo 2 do mesmo artigo diz que: "a faixa de fronteira é considerada fundamental para a defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei". Ignoro a existência da lei, o que não anula a soberania nacional na faixa designada como fundamental para a soberania do país".

Temos então um senador e ex-ministro da Justiça, que se preocupa com estudos gloto-cronológicos, sabe que os ianomâmis habitam aquelas terras imemorialmente, e ao mesmo tempo confessa ignorar a existência de uma lei que regule a ocupação e utilização daquelas terras. Um legislador, instalado no Congresso, parece não dispor de um subordinado que lhe procure, em poucos minutos, a dita lei.

Conclui o senador:

"Vejo, agora, diante deste massacre, que há quem se antecipe, como um suposto líder de garimpeiros, a considerar que a chacina ocorreu entre tribos diversas. Espero a conclusão das investigações, mas não posso sopitar a minha repulsa, quando leio a declaração desse guapo aventureiro".

O guapo aventureiro inominado é José Altino Vieira. Presidente do Sindicato de Garimpeiros é um "suposto líder de garimpeiros". O massacre, do qual não temos um mísero cadáver, não é suposto, é real. O senador espera a conclusão das investigações. Mesmo sem estarem concluídas, dá o massacre como favas contadas e não consegue "sopitar" sua repulsa ante a declaração do "suposto líder" que, bem ou mal, é o presidente de um sindicato.

Logo abaixo, na mesma página da Folha, Manuela Carneiro da Cunha, professora titular de antropologia da USP, assina artigo:

PARCERIA OU BARBÁRIE

"A contagem dos mortos ianomâmi nem terminou — em verdade, sequer começou — e já há quem tente lucrar com os cadáveres. Até para se contestarem demarcações e reiterar demanda de recursos está servindo o massacre".

Ou seja: de fato, ainda não se tem cadáver algum, exceto uma ossada antiga que só foi possível ser achada porque o ministro da Justiça, com seu olho arguto, foi ao local do massacre. Seus subalternos, ao que tudo indica, eram míopes atrozes. A antropóloga, ainda à espera da contagem final de mortos, já passa a acusar os que tentam em eles lucrar. Não temos sequer cadáveres, mas já temos quem os explora.

Carneiro da Cunha não admite associar a questão indígena ao separatismo:

"Absurdas são as preocupações de segurança e de fronteiras que os índios causam às Forças Armadas. A propósito desses cuidados, bastará repetir o que o senador Jarbas Passarinho escreveu em número recente da Revista do Clube Militar: "Qual o risco para a soberania nacional? Nenhum".

O senador e ex-ministro da Justiça, que na mesma página confessa ignorar a existência da lei que regula a ocupação e utilização daquelas terras, diz que os índios não constituem risco algum para a soberania nacional.

O último parágrafo do artigo é significativo:

"O Ano Internacional do Índio, que foi colocado sob o lema "Povo Indígena: uma nova parceria", está manchado pelo massacre dos ianomâmi. Há o risco de que seja também lembrado por uma ardilosa destruição dos direitos indígenas na Constituição".

Ou seja: a preocupação da antropóloga é a revisão constitucional. Na página seguinte, temos os destaques da última semana.

Garimpeiro foi acusado
de matar índios ianomâmis
Índio sobrevivente da chacina diz que garimpeiros fizeram emboscada

Temos uma foto — de arquivo — de índias ianomâmis carregando filhos às costas. As índias nada têm a ver com o massacre.

[imagem]

Índias caminham próximo ao posto da Funai em Homoxi, em Roraima

Temos uma arte,

[imagem]

e, entre outras, uma notícia:

Entidade pede
investigações

"Diversas entidades ecológicas americanas enviaram carta ao presidente Itamar Franco na qual acusam "militares e políticos" de "tentar acabar com o direito dos povos indígenas de viverem em paz em suas terras. A Anistia Internacional, com sede em Londres, pediu ao presidente apuração do massacre. Segundo a entidade, há anos ela vem pedindo às autoridades brasileiras providências".

Já não são os garimpeiros, mas militares e políticos os que querem acabar com o direito dos povos indígenas viverem em paz em "suas terras". Temos, portanto, que as terras dos indígenas já não pertencem ao Brasil: são suas, deles, povos indígenas. E a Anistia Internacional, mesmo sediada em uma ilha distante do Brasil, três dias depois da notícia da chacina, sobre ela não tem dúvidas. Conseqüências:

"O presidente Itamar Franco anunciou a decisão do governo de homologar uma área de 4.900 hectares no sul do Pará habitada pelos índios caiapós".

Ao lado, uma opinião divergente:

Governador fala
em ‘invenção’

Estas aspas na palavra invenção pretendem mostrar ao leitor que quem menciona a hipótese é o governador de Roraima, e não o jornal:

"Para o governador de Roraima, Ottomar Pinto, o massacre pode não passar de uma versão inventada por interessados em apressar a demarcação de terras indígenas. "Até agora não se encontraram corpos em profusão", afirmou. Pelo estado de decomposição dos corpos, as mortes teriam ocorrido por volta do dia sete.

"O ministro Maurício Corrêa (Justiça) visitou o local e disse ter visto panelas metralhadas e cortadas por facão. Para ele, o massacre pode ter sido uma vingança pelo fato de os índios terem fornecido informações sobre garimpagem".

O governador afirma que não foram encontrados corpos em profusão. Ou seja, há corpos mas não muitos que confirmem um massacre. Já temos o estado de decomposição dos corpos, que faz voltar atrás a data do massacre: as mortes teriam ocorrido por volta do dia sete. E não no 15 de agosto, como afirmou à Folha o índio Antônio. Por outro lado, temos um dado novo, a metralhadora. Há panelas metralhadas e cortadas por facão. Em suma: a única evidência, até agora, é que houve uma chacina de panelas.

Página seguinte, Efrém Ribeiro, o enviado especial a Boa Vista, nos explica o que anunciava a primeira página. O chapéu é:

Barbárie
Funai constata desaparecimento de corpos
Garimpeiros podem ter sumido com vítimas da chacina; Itamar convoca reunião do Conselho de Defesa Nacional

Temos um selo encimando o texto: MASSACRE IANOMÂMI, com o rosto zangado de um índio.

"O administrador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Roraima, Suami Percílio dos Santos, disse ontem, à Agência Folha, em Boa Vista, que as equipes do órgão e da PF (Polícia Federal) destacadas para procurar os ianomâmis mortos na maloca Haximu constataram que corpos localizados há três dias sumiram do local. O administrador afirmou que a equipe suspeita que garimpeiros voltaram ao local para enterrar corpos e assim descaracterizar o crime de genocídio"

"Segundo Santos, os dois cadáveres encontrados pela equipe de busca e a existência de balas, marcas de tiros e malocas queimadas em Haximu já caracterizam que houve crime contra os ianomâmis".

Começam a surgir elementos novos na affaire:

"As equipes da PF e Funai, auxiliadas pela Aeronáutica, percorreram as fronteiras do Brasil e Venezuela em busca de corpos, sepulturas ou cinzas de mortos". Se procurar corpos de avião, em plena floresta amazônica, "nas fronteiras do Brasil e Venezuela" — que como veremos adiante, as autoridades brasileiras não sabem por onde passam — já é risível, imagine-se procurar sepulturas ou cinzas. Mas agora já são dispensáveis os corpos. Se houver sepulturas — mas os índios não sepultam seus mortos — ou então, cinzas, já se pode falar em genocídio.

"O presidente Itamar Franco convocou para amanhã reunião do Conselho de Defesa Nacional para discutir inciativas contra chacinas como as de Roraima."

Já não temos uma chacina, mas chacinas, no plural.

"Itamar decidiu convocar a reunião na tarde de ontem, após ouvir o relato feito sobre o caso pelo ministro da Justica, Maurício Corrêa, que visitou a reserva na última sexta-feira".

Na reunião do conselho, diz o jornalista, o ministro descreverá o que viu na região: "Ainda não conhecemos a extensão do massacre, mas os indícios são muito graves", disse Corrêa, que nada viu além de uma ossada antiga.

Na sub,

Ainda não há provas do esclarecimento do massacre

O diretor regional da PF em Boa Vista, Sidney Lemos, diz que não há prova material da chacina dos ianomâmis. "A Funai fala em 30 ou 40 mortos, mas não temos um só corpo". Segundo o enviado especial Lucio Vaz, "depois de anunciar anteontem o pedido de prisão preventiva do garimpeiro João Neto, acusado de liderar a chacina, o delegado disse que o pedido não foi feito porque o garimpeiro não foi sequer identificado pela polícia".

Mais abaixo,

Maurício Corrêa quer a implantação da Sipam

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, recomendou ontem ao presidente Itamar Franco a implantação imediata do Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), com a instalação de 54 delegacias da Polícia Federal, novos postos da Funai, unidades do Exército na faixa de fronteira e 17 radares da Aeronáutica na Amazônia Legal. O Sipam envolve recursos da ordem de US$ 1,5 bilhão".

Ou seja, três dias depois da divulgação do massacre, temos o germe de um ministério. Dotação: um bilhão e meio de dólares. Os corpos ainda não apareceram, mas a chacina já começa a render.

Página seguinte, o chapéu é

A VERSÃO DA FUNAI
Cláudio Romero faz críticas ao Exército
Presidente da Funai quer que as Forças Armadas participem da retirada de garimpeiros da reserva ianomâmi

Segundo o presidente da Funai, é ignorância do Exército a versão de que o massacre na reserva ianomâmi foi resultado de uma luta de índios. "É um absurdo o Exército ter um destacamento dentro dos ianomâmis e não saber que ianomâmi não mata criança com facão".

Cláudio Romero não nos esclarece quais métodos os ianomâmis usam para matar crianças. Isto veremos mais adiante. Mas se há dúvida sobre quem matou as crianças, há uma evidência: crianças mortas com facão.


O enviado especial Efrém Ribeiro, que havia anunciado aos leitores a existência de dois cadáveres, ossos e trouxas com cinzas recolhidos pela Funai, quer saber de Cláudio Romero se "a falta de cadáveres e de provas materiais do massacre não podem impedir a punição de seus responsáveis?"

Romero é taxativo:

"Temos testemunhas. Temos que considerar a cultura dos ianomâmis, que cremam os mortos. Amontoam os corpos. Queimam a família toda".

Curiosa cultura: as famílias morrem em peso. Não é a família que queima um morto, mas alguém da família que queima a família inteira.

O enviado especial está munido de ferramentas antropológicas: "a literatura sobre os ianomâmis aponta que os índios guardam as cinzas dos mortos para ritual". Romero dispara:

"É isso mesmo. Vamos localizar os corpos e pegar os potes. Já sabemos onde a maloca está. Vamos pegar".

Como veremos adiante, nem o Exército, nem o Ministério da Justiça, nem a Funai sabem onde fica a maloca do massacre. Mas Romero sabe e vai pegar os potes.

O repórter quer saber se Romero acredita na punição dos responsáveis pelo massacre. O presidente da Funai é incisivo:

"O que houve agora foi um genocídio. Mataram criança, trucidaram, cortaram ao meio, esquartejaram. A promoção do crime é muito grande. Já pensou não se punir um troço desse?"

Em sub, os enviados especiais Lucio Vaz e Américo Martins nos informam que

Autoridades divergem sobre n. de mortos

As autoridades têm pequenas divergências quanto ao número de mortos. Para o procurador-geral da República, chegaram a 73. Para o presidente da Funai, poderiam passar de 60. Já o diretor da Funai em Roraima, Wilk Célio, diz existirem informações, cruzadas com sobreviventes do local, de que 90 indíos teriam morrido.

O enviado especial aproveita para informar sobre mais uma desgraça que se abate sobre os ianomâmis:

Aumentam casos de leishmaniose entre os índios

Embaixo, uma foto — de arquivo — mostra mulheres e crianças. Diz a legenda:

Índia rala mandioca dentro de maloca da aldeia Homoxi, na reserva ianomâmi

Se já tínhamos as meninas ianomâmis, temos agora a mulher ianomâmi. As fotos são de arquivo, tanto as meninas como as mulheres nada têm a ver com a chacinada ou com os chacinados.

O leitor diário de jornais mais atento deve estar lembrado que foi inundado de fotos de mulheres, mães e meninas nos últimos anos. Como também de meninos e anciões. Mas fundamentalmente mães. No fundo, o mito milenar da Madona, da Mater Dolorosa. De uns tempos para cá, na imprensa nacional e internacional, o leitor foi brindado com punhados e punhados de mães, meninas e anciões. Se começarmos da mãe iugoslava, da menina iugoslava, do ancião iugoslavo para cá, depois disso tivemos mães croatas, criança croata, ancião croata, mãe eslovena, menina eslovena, anciã eslovena, menino bósnio, mulher bósnia, ancião bósnio, mãe muçulmana, anciã muçulmana, menino muçulmano, ancião palestino, mãe palestina, criança palestina, isso sem falar em anciã russa, mulher russa, menino russo etc.

O recurso é um sinal de tráfego para o leitor. Quanto começam a surgir velhos, mulheres e crianças de uma nacionalidade ou etnia nas páginas de um jornal, isto significa que eles são as vítimas. Quanto ao agressor, publica-se fotos de soldados, ministros, generais, presidente, chanceler. Massacre de índios? Na falta de cadáveres, corre-se ao banco de dados e cata-se fotos de mães, crianças e anciões. Os jornais passam então a oferecer ao leitor mães ianomâmis e crianças ianomâmis. E também de guerreiros ianomâmis, afinal muitos deles foram assassinados.

A página seguinte da Folha deste 22 de agosto é dedicada aos vilões. O chapéu é, significativamente:

MINERAÇÃO

Governo diz que Roraima depende do garimpo

Secretário da Fazenda sustenta que retirada dos garimpeiros comprometeu a economia do Estado

O selo MASSACRE IANOMÂMI encima a matéria.

"A economia de Roraima depende em grande parte da extração mineral. Com a repressão à atuação dos garimpeiros na reserva ianomâmi, coordenada pela Polícia Federal e pela Funai, a atividade econômica do Estado caiu sensívelmente".

Aqui, evidentemente, não temos fotos de mãe de garimpeiro, mulher de garimpeiro ou filho de garimpeiro. Embora seja provável que garimpeiro tenha mulher, filhos e talvez até mesmo uma mãe, que dependem de seu trabalho, aqui estas fotos não interessam, pois o garimpeiro é o vilão. Aqui, temos declarações do secretário da Fazenda de Roraima, que diz ser "incontestável" que a criação da reserva ianomâmi prejudicou a economia da região.

Uma sub nos dá o nome de outros cúmplices do massacre:

Invasão é estimulada por políticos, diz bispo

"O bispo de Roraima, d. Aldo Mogiano, disse que os políticos do Estado incentivam os garimpeiros para invadir as reservas dos índios ianomâmi. Segundo ele, "todos sabem" que esse tipo de incentivo sempre aconteceu. O bispo diz que os políticos utilizam o argumento de que os garimpeiros podem ter livre acesso à área porque são brasileiros dentro do território nacional".

Aqui já temos um dado interessante. O bispo discorda dos políticos que afirmam que brasileiros possam ter acesso a uma área que, afinal de contas, fica dentro do território nacional. Da declaração do prelado, deduzimos que há áreas dentro do território brasileiro onde brasileiro não pode entrar. Além disso, d. Aldo Mogiano acha que os corpos dos ianomâmis ainda podem ser encontrados. Poderiam estar pendurados em árvores, dentro de redes, outro costume indígena segundo o bispo.

Logo abaixo:

Repercussão é
discreta, diz
o Itamaraty

A sucursal de Brasília nos informa que "a repercussão do assassinato dos ianomâmis é considerada discreta pelo Itamaraty. Segundo a assessoria do órgão, na imprensa norte-americana, um termomêtro para o Ministério de Relações Exteriores, apenas dois jornais — um de Nova York e outro de Miami — publicaram reportagens sobre a morte dos índios".

Mais adiante, o correspondente tem uma intuição premonitória:

"A caracterização de massacre que a imprensa nacional começou a dar ao assassinato dos ianomâmis pode aumentar a repercussão na imprensa internacional.(...) O Itamaraty foi informado que a missão brasileira junto às Nações Unidas tem recebido diversos telefonemas e pedidos de informação. A maior parte dos telefonemas é feita por pessoas físicas que protestam ou buscam se informar sobre o episódio. As informações mais detalhadas, com cópias de jornais brasileiros — principalmente a Folha — têm sido requisitados por ONGs (Organizações Não Governamentais) norte-americanas."

Ao lado, contestando a afirmação do Itamaraty, diz o correspondente da Folha nos Estados Unidos:

Maiores jornais
dos EUA dão
destaque

De Washington, nos informa CELS:

"Notícias sobre as chacinas dos indios ianomâmi em Roraima apareceram ontem em dois dos mais importantes jornais diários dos EUA: The New York Times e The Washington Post. O Post, em texto de Jeb Blount despachado do Rio, afirma que "relatos de massacres (de ianomâmis) remontam a 1987 mas ninguém jamais foi punido por eles. Blount entrevistou o deputado Fábio Feldmann, que lhe declarou: "Receio que a única maneira desses assassinatos acabarem é com a destruição total dos ianomâmis". Feldmann também denunciou ao Post militares e políticos nacionalistas por criarem um "clima de impunidade".

"No Times, que trata do caso do caso pelo segundo dia seguido, a chacina apareceu ontem na página 3, uma das mais nobres do jornal. O texto, assinado pelo correspondente James Brooke, tem o título "Ataque contra índios brasileiros é o pior desde 1910". As informações de Brooke ao escrever o texto eram de que o número de mortos no massacre havia sido de 30.

"A avaliação de que essa é a maior chacina de índios brasileiros em 83 anos foi feita a Brooke pelo antropólogo e senador Darcy Ribeiro".

No canto inferior à direita, diagramada como matéria paga, sob a rubrica Expressão de Opinião, há um quadro que o leitor normalmente não lê, pois tem ar de nota oficial. E aliás o é. Nela, o governo do Pará manifesta algumas preocupações.

Governo do Estado do Pará
Nota oficial

Na nota, o governo do Estado do Pará, diante da publicação de Decreto homologatório de demarcação de terras indígenas, e de Portarias do Ministério da Justiça que declaram de posse permanente várias áreas do território paraense, ampliadas de "655.000 hectares para mais de seis milhões de hectares" para 580 índios das tribos Menkragnoti e Baús — o que resulta em mais de 10 mil hectares por índio — alerta para as conseqüências quase sempre violentas dos conflitos que disto poderão advir, posto que nas referidas áreas já existem propriedades privadas e posseiros. A nota, assinada pelo governador Jader Fontenelle Barbalho, manifesta a decisão do governo de não se conformar com a supressão de grande parte das terras mais ricas do Estado do Pará.

* Sabe-se, em jornal, que o leitor tem um certo movimento de leitura. Normalmente, começa pelo alto da página, descendo pela direita e depois tendendo ao lado esquerdo e inferior. Nestas duas páginas da Folha do dia 22 de agosto — páginas 1-18 e 1-19 — o movimento é perfeito. Na 18, temos um Cláudio Romero fazendo críticas ao Exército. Na seguinte, após a acusação tácita ao massacre em abre de página, um bispo nos diz a invasão é estimulada por políticos. O leitor continua seu movimento pelo alto, direita e depois vira a esquerda e encontra finalmente a comprovação do que já estava suspeitando.

* Um dos jornais mais importantes dos Estados Unidos, e portanto, do mundo, afirma que os militares e políticos criaram um clima de impunidade. A notícia partiu do correspondente Jeb Blount, no Rio — que estava no Rio de Janeiro, a 429 km de São Paulo de Fábio Feldmann, que por sua vez estava a quase 5.000 km do local do massacre — foi aos Estados Unidos e voltou como um raio enviado do Olimpo sobre o governo brasileiro. Tanto o correspondente do Post como do Times estão no Rio, a cerca de 4.000 km da chacina.

* As duas equipes que procurando os ianomâmis mortos, localizados "há três dias" na maloca Haximu, constatam que desapareceram do local. Se os haviam localizado, porque não resgatar os corpos ou pelo menos fotografá-los? Porque voltar ao local do crime só três dias mais tarde?

* No dia 19 de agosto, tínhamos 19 mortos. No dia 20, temos 40 chacinados. No dia 22, temos dois corpos que foram encontrados. Mas nem a Funai nem a PF tiveram a precaução de vigiá-los ou fotografá-los.

* A informação do enviado Lucio Vaz é no mínimo esdrúxula. O diretor regional da PF diz que não pode falar em chacina porque não há um único morto. Mas expede, segundo o jornalista, uma ordem de prisão contra o líder da chacina, que sequer sabe quem é. Por enquanto, não temos crime, mas já há um criminoso e uma ordem de prisão preventiva contra ele.

* A confirmação de que a chacina é a maior dos últimos 83 anos foi feita ao correspondente do Times, James Brook, pelo senador e antropólogo Darcy Ribeiro, que também se encontra a milhares de quilômetros do "local do massacre" e que dele só ouviu falar por jornais.


 

 

Presos 3 garimpeiros

 

No dia 23 de agosto, o massacre começa a perder destaque. Na cabeça da página, temos cinco colunas para os feitos da Seleção Brasileira de Futebol. Os índigenas começam a ir para baixo. Mesmo assim, temos:

Presos suspeitos de matar índios ianomâmis

É o que nos diz o Estado, em primeira página. Foto em cores, comovente — de arquivo — de mãe ianomâmi com dois filhos pendurados na cerviz, um sobre os peitos e outro às costas.

[imagem]

Tristeza
Índios ianomâmis ainda choram a chacina de Haximu

 

Há um olho de primeira página:

Três garimpeiros, sem comida
e sem abrigo na selva, se entregam em
posto da Funai a 100 quilômetros
do local da chacina dos índios

A manchete confirma o massacre, afinal foram presos três suspeitos. O texto legenda é cabal. Há tristeza na tribo, os índios ianomâmis ainda choram a chacina de Haximu. Já o olho é cauteloso: três garimpeiros, sem comida e sem abrigo na selva, se entregam a 100 quilômetros do local do massacre.

"A Polícia Federal prendeu ontem três garimpeiros acusados de participar da chacina de 73 índios ianomâmis em Roraima. Francisco Borba, o menor J.R.B. e Nilson dos Santos estavam a cerca de 100 quilômetros do local do crime e, sem comida nem abrigo na selva, se entregaram no posto da Fundação Nacional do Índio (Funai), nas imediações da Serra da Estrutura. O sertanista Francisco Bezerra de Lima entrevistou dois sobreviventes ianomâmis e acha que a chacina ocorreu longe da maloca dos índios na aldeia de Haximu. Os Estados Unidos e o Canadá enviaram observadores diplomáticos a Roraima."

Os mortos são pelo menos 73, isto não mais se discute. Os criminosos são evidentemente os garimpeiros e agora a Polícia Federal prendeu três deles, "acusados de participar da chacina". Quem acusa, o redator não diz. Sem comida e sem abrigo na selva, os garimpeiros "se entregam" no posto da Funai. Ora, entregar-se é gesto de criminoso acuado. Fica no ar uma outra possibilidade: estando os três sem comida e sem abrigo, talvez estivessem pedindo socorro. Mas esta hipótese transformaria o vilão em vítima, e não serve à trama que a imprensa tece.

Na página 11:

PF prende suspeitos de participação na chacina

Uma foto em cinco colunas, com meninos índios ao fundo e um policial de metralhadora em punho, mostra em primeiro plano os três acusados. Uma tarja negra cobre os olhos do menor, como exige a lei e a deontologia jornalística.

[imagem]

Borba (de barba), seu filho J. R. e Santos: garimpeiros suspeitos de ter participado da chacina são presos perto do local das mortes

Quando um menor está envolvido em um ato criminoso, mesmo que preso em flagrante, exige a lei que uma tarja lhe seja posta nos olhos e seu nome seja publicado apenas com as iniciais, para não ser identificado. No entanto, a estreita tarja não consegue proteger os traços do menor J. R., magro, de nariz adunco e boca larga. Para melhor identificar o suspeito, o redator esclarece, sempre mantendo as iniciais: "Borba (de barba), seu filho J. R.". As cautelas legais para preservar a identidade do menor foram estritamente observadas: iniciais e tarja sobre os olhos. Para melhor informar o leitor, o redator avisa que é o filho do Borba de barba.

Seguindo o movimento preferencial de leitura, temos, ao alto e à direita, correspondência de Marco Uchôa, de Surucucu, Roraima:

"A Polícia Federal prendeu ontem três garimpeiros suspeitos de ter participado da chacina de 73 índios ianomâmis nas malocas de Haximu e Simão. Francisco Borba, de 57 anos, seu filho, J.R.B., de 17 anos, e Nilson dos Santos, de 27 anos, estavam na pista de garimpo Vando Acreano, perto do posto da Funai, nas imediações da Serra da Estrutura, a cerca de 100 quilômetros do local da chacina".

Quase tudo confere. Os mortos continuam sendo 73. Os criminosos, evidentemente, continuam sendo os garimpeiros e já temos três suspeitos presos. Mas surge um dado novo. O massacre não ocorreu apenas em Haximu, mas também na maloca do Simão. A identidade do menor, filho de Francisco Borba, é rigorosamente preservada. Seu nome é omitido. O redator fornece apenas as iniciais: J. R. B., de 17 anos.

"Na terça-feira policiais federais que participam da Operação Selva Livre sobrevoaram a região e destruíram a pista que dava acesso ao garimpo. Os garimpeiros ficaram sem comida e sem máquinas. Na quinta-feira, Francisco Borba decidiu se entregar no posto da Funai. "Estava faminto e não tinha condições de ficar na selva", afirmou."

Ou seja, conforme Uchôa: a Polícia Federal destrói uma pista na selva que serve como ponto logístico para abastecimento dos garimpeiros. Famintos, eles se "entregam" no posto da Funai. Há duas contradições insanáveis na reportagem. Faminto não se entrega, pede socorro. E Funai não é autoridade à qual um eventual criminoso possa entregar-se. Resta uma indagação. Os criminosos estão a cem quilômetros do local do massacre. O correspondente elucida a questão, entrevistando um assessor da presidência da Funai. Segundo José Araújo Filho, "num prazo de 12 dias, quando supostamente ocorreu a chacina, eles teriam condições de percorrer pelo menos duas vezes o trajeto da maloca destruída até onde foram encontrados".

Logo, têm todos os requisitos para serem os responsáveis pelo massacre. Um olho nos diz:

SE NÃO FOR
COMPROVADA
PARTICIPAÇÃO,
DETIDOS SERÃO
INDICIADOS POR
INVASÃO DA
RESERVA

Duas novas questões.

Primeira: temos que em reserva indígena brasileiro não pode entrar. Pode-se ir a Paris, Berlim, Moscou ou Nova York, mas não à maloca de Haximu. É de supor-se que em breve, para o brasileiro que quiser conhecer parte do país que habita, seja necessário passaporte.

Segunda: se não for comprovada a participação, os detidos serão indiciados por invasão da reserva. Pergunta: se não for comprovada a participação dos três famintos no massacre, apontados como genocidas em primeira página da imprensa, e merecendo fotos de cinco colunas, quem irá indenizá-los por danos morais?

EUA E CANADÁ ENVIAM OBSERVADORES

"O desencontro de informações sobre o massacre dos índios ianomâmis na fronteira com a Venezuela levou os governos americano e canadense a enviar dois observadores até o local da chacina. Diane Page, diplomata da embaixada dos Estados Unidos, e Alan Latulippe, responsável pela área de direitos humanos da embaixada do Canadá, seguem hoje pela manhã de Boa Vista para as aldeias de Haximu e Simão. "Viemos para acompanhar de perto os acontecimentos", disse o embaixador canadense."

Para melhor esclarecer o leitor, o Estado nos oferece uma arte:

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Como foi o massacre
Os índios saíram da maloca para visitar os garimpeiros. Estavam acompanhados por mulheres e filhos
Quando comiam alimentos oferecidos pelos garimpeiros foram chacinados. Duas índias fugiram e avisaram os índios Japão e Antônio, que estavam perto do local
Depois de contar o que viram, elas voltaram ao local da chacina e foram mortas. Quando os índios chegaram ao local do massacre foram recebidos a tiros e fugiram

Continuando este movimento do leitor, que gira em espiral do alto à direita para abaixo à esquerda, temos:

Entidades denunciam o País

De Genebra, diz o correspondente Rui Martins:

"Diversas entidades de defesa dos índios pretendem denunciar o Brasil, hoje, em Genebra, diante da Comissão de Direitos Humanos da ONU, pelo massacre dos ianomâmis. A embaixada brasileira junto à ONU, que já distribuiu um texto para a imprensa na sexta-feira, tem uma intervenção prevista a fim de expor a posição do governo. A Coordenadoria das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira discute, também hoje, em Genebra, as medidas de protesto a serem tomadas contra o massacre, que poderão ter uma dimensão européia".

As Organizações Não-Governamentais começam a agir em Genebra. Como ainda não existem corpos, temos ao pé da mesma página um título em seis colunas:

Para sertanista, garimpeiros enterraram os corpos

Para o correspondente em Boa Vista:

"Foi a partir de uma conversa com os sobreviventes Antônio e Japáo, na língua dos ianomâmis, no final da tarde de sexta-feira, que o sertanista Francisco Bezerra de Lima concluiu serem 73 os índios mortos nas malocas de Haximu e Simão, a maior chacina da história deste povo. O sertanista não tem dúvidas de que o crime aconteceu e que foi cometido por garimpeiros".

Dado interessante. Francisco Bezerra de Lima, com 56 anos, dedicou 25 de sua vida aos ianomâmis, logo é um especialista no contato com estes índios. Bezerra descarta a possibilidade de cremação de mortos, como havia sido divulgada pela Funai, porque os únicos que poderiam ter feito isto seriam os sobreviventes Japão e Antônio. Sozinhos, eles jamais conseguiriam cremar tantos corpos e realizar este ritual, que é o mais importante da tradição ianomâmi. Bezerra negou informação do assessor especial da Funai, de que os sobreviventes poderiam ser sete".

O indigenista dá aos repórteres Elza Pires e João Domingos o número de mortos. Durante a visita do ministro Maurício Corrêa, "notei que eles deram os nomes dos homens. Contamos 15".

Para detalhar o trabalho de apuração, Bezerra pede lápis e papel e explica que desta vez iria anotar.

"Começamos pelo primeiro nome que havia sido falado, Sansão. Aí perguntei se ele tinha mulher e se tinha filhos, quantos filhos e fui anotando. Mataram? Sim ou não? Qual o sexo dos meninos? Estava gestante a mulher? Assim fui pegando detalhes".

O repórter quer saber quem são os assassinos: "eram mesmo garimpeiros?"

Bezerra: "Disseram que eram garimpeiros".

Quantos? Bezerra não sabe: "Eles falaram muitos, mas para quem não as contas na língua fica difícil avaliar. Não dá para chegar ao número exato".

Temos então que: os índios falam em muitos, não têm noções de aritmética. Não sabem dizer quantos são os garimpeiros assassinos, estimados anteriormente em 15. Os ianomâmis não conseguem contar até 15. Mas conseguiram revelar o número de massacrados: 73.

Tentando resumir o depoimento de Bezerra: os índios foram fazer uma visita aos garimpeiros. Ao sair da maloca foram convidados para comer. Os índios estavam acompanhados dos filhos e das mulheres. "Eles sempre levam as mulheres para os garimpeiros quando querem favor".

Japão e Antônio, segundo o sertanista, ficaram em uma maloca ao lado de Haximu. "Duas mulheres que sobreviveram ao massacre correram até eles e, em seguida, voltaram para chorar os corpos. Japão e Antônio chegaram até o local da chacina e já encontraram as duas mulheres mortas — uma delas esposa de Antonio. Os garimpeiros chegaram na hora atirando, segundo eles. Antônio largou a mulher e fugiu com Japão".

O Estado quer saber se os dois sobreviventes tiveram tempo de ver os corpos. Diz Bezerra: "Eles voltaram até o local. Não tinha mais os corpos, inclusive as mulheres tinham desaparecido. Eles acham que os garimpeiros jogaram os corpos na água. Eu acho que eles abriram um buraco, porque na água os garimpeiros sabem que o corpo bóia".

Quando o correspondente pergunta se a história não poderia ser montada, diz Bezerra: "Uma pessoa primitiva não tem condições de montar a história. Eu não tenho dúvidas". O jornal quer saber se houve mesmo degolas e esquartejamentos, conforme as primeiras versões da Funai. Diz o sertanista: "Os índios não disseram nada disso. A única coisa dita é que tinha havido morte de facão".

Ora, segundo a Folha, crianças teriam sido degoladas. Tínhamos que um dos sobreviventes, o índio Antônio, 25, entrevistado via rádio, dez crianças, cinco mulheres e dois homens haviam sido mortos e tido braços, pernas e cabeças cortadas por garimpeiros. Entre cabeças cortadas e degola, a distância não é grande. O presidente das Funai havia dito à Folha: "Mataram crianças, trucidaram, cortaram ao meio, esquartejaram". Agora, a única evidência que temos, segundo Bezerra, é morte por facão.

Na contracapa do caderno, rosto de ianomâmi em seis colunas, página toda dedicada aos espécimes, com imagens da fotógrafa romena-suíça-brasileira-ianomâmi Claudia Andujar. Para ela, nem tudo está perdido, apesar do massacre de "pelo menos duas aldeias".

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A Folha do mesmo dia começa a mudar de assunto. A manchete principal é, como a do Estado, sobre futebol. À direita, e já com menor destaque, o enviado especial a Homoxi, Efrém Ribeiro, nos conta:

Ianomâmis
querem ser
indenizados
por chacina

"Trinta chefes ianomâmis decidiram ontem exigir indenização dos garimpeiros responsáveis pelo massacre. A Polícia Federal deteve em Surucucus (RR) três garimpeiros que trabalhavam na região da chacina, informa Lucio Vaz. O presidente Itamar Franco disse em Belo Horizonte que o Estado não pode ser responsabilizado pelo massacre. "Não houve negligência nem do governo nem do Exército", afirmou."

Ao afirmar que não houve negligência nem do governo nem do Exército no massacre, Itamar Franco o confirma. Na página dos editoriais, escreve Marcelo Leite:

Bei ke mi amo

Marcelo Leite vê no caso uma obscena "Operação Ianomâmi" em curso: "Nem encontraram ainda os corpos dos massacrados de Haximu e um exército de cínicos já se põe a grasnar: bem feito, quem mandou cobiçar tanta terra do resto dos brasileiros para fundar uma nação do tamanho de Portugal?"

O parágrafo é cheio de significados. Para o editor do caderno "Mundo", o massacre existe, só faltam os corpos. E já nomina um exército de cínicos. Não são sequer os eventuais leitores que suspeitam que a chacina não existiu. É aquele exército — certamente organizado, como todo exército — que considera normal a chacina, afinal quem mandou os índios querer tanta terra?

"Só podia dar nisso. O Brasil inteiro, não mais do Oiapoque ao Chuí, mas do Carandiru a Haximu, está errado. Está todo errado um país em que generais e coronéis se sentem à vontade para pontificar sobre as questão indígena. Seria demais pedir que se abstivessem de "lembrar", neste momento de luto, que "os garimpeiros também são vítimas?"

Ainda não há mortos e já temos um momento de luto. O editorialista não pretende "negar com este pedido de decoro que há muito de discutível numa política maximalista de proteção ao índio — a começar pelo flagrante irrealismo". Pede decoro ante o momento de luto. E fala numa política maximalista de proteção ao índio. A intuição é significativa. Vamos ao Aurélio:

"Maximalista (ss). Do fr. maximaliste, adaptação do russo bolchévik, ‘maioria’, termo que passou, posteriormente, a designar ‘partido do máximo de ação’, i. e., de ação revolucionária direta e imediata". Bolchevista". Temos então — a menos que o editorialista tenha pretendido dizer outra coisa — que há uma política bolchevique de proteção ao índio. No que talvez não labore em erro. Continuando:

"A julgar pela ferocidade do massacre e dos comentários sobre ele — cansei de ouvir de pessoas esclarecidas que "isso cheira a coisa de índio com índio "quebrou o pau na maloca" etc. —, os ianomâmis desaparecerão antes que isto aconteça. Ficará então tragicamente confirmada a premonitória antropologia dos próprios índios, que classificam os homens como "yanomami" (gente) e "nabe" (estrangeiro, inimigo, do qual só se pode esperar doença e morte).

"Basta contemplar essas imagens de índios esquálidos, consumidos pela malária, para perceber que os ianomâmis perderam sua "bei ke mi amo" — a alma, o centro de uma pessoa, a força vital que sustenta o corpo. Não têm mais "waitheri", pedra angular de seus valores, que designa o vigor físico, capacidade de suportar a dor e revidar ataques".

Fica no ar uma dúvida. Constituindo os ianomâmis uma cultura ágrafa, de onde surgem as palavras yanomami, bei ke mi amo ou waitheri? Y, K e W não são letras do vernáculo. No entanto, a denominação de não poucas tribos brasileiras está recheada delas. Enfim, nossos ianomâmis estão despossuídos de sua waithery e perderam sua bei ke mi amo. Mas "têm, ao menos, o consolo de cair frente a um inimigo extremamente mais poderoso — enquanto o resto do país sucumbe à ameaça imaginária de suas próprias vítimas".

Temos, então, que os ianomâmis sucumbem ante um inimigo poderoso. Este inimigo é tão óbvio que não precisa ser nominado. Todos os dias a imprensa o cita. São os buscadores de ouro, os civilizados, os etnocêntricos, em suma, o branco ocidental.

Logo abaixo, artigo de Josias de Souza:

O Estado contra os vermes

"No genocídio ianomâmi, o Brasil chegou à perfeição. Produziu o primeiro massacre sem corpos da história. Mostrou ao mundo que sabe fazer terror de última geração. Depois do Carandiru e da Candelária, supremo perfeccionismo, chegamos à tragédia asséptica.

"Como que tocados pela proposta de Itamar de melhorar a imagem do Brasil no exterior, os garimpeiros sonegaram ao The New York Times e ao The Washington Post a foto dos corpos. É como se recomendassem aos editores que olhassem para o próprio rabo, que recuperassem a memória do bravo general Custer

"Os assassinos arrancaram também da boca de um choroso Maurício Corrêa e de um sempre carrancudo Aristides Junqueira o gostinho da exploração política da tragédia. Os dois viajaram de tão longe, desceram no meio da selva, para saborear um único esqueleto, com caras de anteontem.

"Hoje Itamar Franco reúne o Conselho de Defesa Nacional para discutir o massacre fantasma. Numa de suas instâncias máximas, o Estado enfrentará dificuldades para medir as dimensões de sua falência.

"Mas o tamanho do massacre não chega a ser o maior problema. Pode-se atribuir ao massacre o tamanho do esqueleto solitário que decepcionou a dupla Corrêa e Junqueira. Se preferir, o Conselho pode expandir a escala, dos 17 mortos contados incialmente pela Funai aos 73 alardeados um dia depois por Junqueira".

Na coluna "Frases", cita-se uma do sertanista Cláudio Villas Boas:

TERRA DE ÍNDIO

"Quem tem autoridade para dizer que o índio não precisa de terras? O índio é da terra, nasceu da terra e até os 2 anos de idade está ainda enlameado de barro."


Na página seguinte:

Conselho de Defesa discute
hoje controle da Amazônia

Massacre dos ianomâmis aumenta preocupação das autoridades com a região

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, apresentará proposta hoje na reunião do Conselho de Defesa Nacional para que o governo acelere a implantação do Sipam (Sistema de Proteção à Amazônia), incluindo a instalação de 17 radares na região. O ministro disse à Folha que essa é a única forma de o governo controlar a Amazônia Legal e evitar novos incidentes, como o caso do massacre dos índios ianomâmis".

Para o ministro, o massacre continua sendo uma evidência.

"O Sipam, uma extensão do projeto Calha Norte, criado no governo Sarney, exige recursos superiores a US$ 1,5 bilhão. Apenas o Sivam (Sistema de Vigilância da Aeronáutica) custaria no mínimo US$ 800 milhões". O massacre dos 73 ianomâmis já promete pesar no bolso do contribuinte.

O Conselho, evidentemente, precisa de um depoimento sobre o massacre. Temos um intertítulo:

Aristides convidado

"O Conselho de Defesa Nacional, comandado pelo presidente Itamar Franco, tem a participação dos ministros do Exército (Zenildo Lucena), da Marinha (Ivan Serpa), da Aeronáutica (Lélio Viana Lobo), da Secretaria de Assuntos Estratégicos (Mário César Flores), do Planejamento (Alexis Stepanenko), das Relações Exteriores (Celso Amorim) e da Justiça. Os presidentes do Senado, Humberto Lucena (PMDB-PB), e da Câmara, Inocêncio de Oliveira (PFL-PE), integram o conselho. Maurício Corrêa disse que o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, também foi convidado para participar da reunião de hoje".

LEIA MAIS

Sobre o massacre dos ianomâmis à pág. 1-8

Já na pág. 1-6 do caderno, temos a

REAÇÃO IANOMÂMI
Índios vão pedir indenização a garimpeiros
PF detém três garimpeiros na base aérea de Surucucus; ianomâmis encontram primeiros restos mortais

Na foto de Alex Ladislau / Folha Imagem , temos a prova cabal do crime:

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Peritos montam esqueleto encontrado no local da chacina

 

Efrém Ribeiro, enviado especial a Homoxi, e Lucio Vaz, enviado especial a Surucucus, nos informam o que a chamada de capa já anunciava, a reunião de trinta chefes indígenas em Homoxi, a 400 km de Boa Vista, que querem uma indenização dos garimpeiros e proprietários de equipamentos de garimpo responsáveis pelo massacre dos índios. "O líder dos ianomâmis, Davi Kopenawa, diz que a indenização será reivindicada pela Funai, que tem tutela dos indígenas e sua representação legal".

"Perdemos parentes. Quero cobrar isso dos garimpeiros", diz outro chefe indígena, Eroão Ianomâmi".

Continuam informando os correspondentes:

"Durante a noite de anteontem, os índios realizaram pela primeira vez o ritual do choro dos mortos. O ritual só foi realizado anteontem porque na tarde de sábado eles viram vestígios do massacre: trouxas de palha de bananeira com cinzas dos mortos, fêmur, crânio, ossos de um braço e sangue em plantas do local. Eorão disse que até ontem os índios não tinham cinzas para chorar".

Efrém Ribeiro nos informara da existência de dois corpos. Agora só temos vestígios do massacre, trouxas de palha de bananeira com cinzas de mortos. Outra foto, com cara de arquivo, assinada por Normandy Litaiff, comprova o que os correspondentes informam:

[imagem]

Ianomâmi mostra ossos envoltos em folhas de bananeira

Na foto, um índio sem rosto, mostra ossos do massacre. Os ossos o leitor não vê, pois estão envoltos em folhas de bananeira. Mesmo se os visse, que conclusão se poderia extrair de uma foto de ossos?

Os correspondentes citam os três garimpeiros suspeitos do massacre.

"Os três disseram que se apresentavam porque estavam com fome e sem comida. O garimpo em que trabalhavam deixou de ser abastecido quando a Funai cortou os vôos para a região. Além de Borba, seu filho, José Roberto Borba, e Nilson dos Santos, também foram detidos".

Aqui, um fato novo. O menor J. R. B., 17 anos, passa a ter nome, chama-se José Roberto Borba. Curiosamente, neste momento crucial de testemunho, não se dá ao leitor o nome dos peritos, ambos maiores de idade e garantes da chacina. No texto ao lado, temos que "dois legistas, um da PF e outro da Funai" analisaram um esqueleto encontrado no local do massacre.

Os dois anônimos legistas "identificaram um buraco provocado por tiro e informaram que se trata de um índio já idoso. Outros exames da ossada serão feitos em Brasília". Se foram feitos, deles não tivemos notícias.

Os legistas sem nome nos falam não de uma ossada antiga, mas de um índio já idoso. Só nos omitem o que se quer saber: quando é mesmo que foi morto? Mais à direita e embaixo, seguindo sempre o movimento preferencial do leitor, temos:

Chacina foi fora da maloca

Apesar de terem constatado um massacre na aldeia de Haximu o ministro Maurício Corrêa, da Justiça, o diretor da Funai, Cáudio Romero e o líder ianomâmi Davi Kopenawa, temos agora que o massacre não foi na aldeia. Informa Lucio Vaz, de Boa Vista:

"O sertanista Francisco Bezerra de Lima, que apresentou a lista dos 73 ianomâmis mortos por garimpeiros, afirma que o massacre não ocorreu nas malocas de Haximu, mas sim no local onde estavam os garimpeiros. Por este motivo os corpos não teriam sido encontrados nas aldeias que foram queimadas".

Aqui surge mais um fato novo. Temos não mais uma, mas muitas aldeias queimadas. Há novos detalhes de como a chacina ocorreu:

"Segundo relato dos sobreviventes, os habitantes das malocas teriam se deslocado até o acampamento dos garimpeiros para fazer uma visita e pedir comida. Após serem servidos de arroz e açúcar, os homens teriam sido atingidos com tiros de espingardas e revólveres. As mulheres e crianças teriam sido golpeadas com facão".

Mais novidades. Na edição do dia 22 da Folha, o ministro Maurício Corrêa, além de ter encontrado uma ossada que constituía prova evidente do genocídio, havia constatado panelas metralhadas. Agora desaparece a idéia de metralhadora. Temos espingardas e revólveres, usados seletivamente para matar os machos, e facões para as fêmeas e crias. Algo assim como: na hora de matar um bravo, usa-se espingarda ou revólver. Com mulheres e crianças não se gasta chumbo. Fica evidenciada a covardia inerente ao branco garimpeiro.

Mais ainda: na edição do dia 22, o ministro da Justiça havia visitado o local do massacre, a maloca Haximu. Três corpos haviam sido nela localizados por equipes da PF e da Funai. A equipe suspeita que os garimpeiros voltaram ao local para enterrar corpos e assim descaracterizar o crime. Temos agora que, apesar de o ministro ter situado o local da chacina e caracterizado o genocídio, o local em verdade não era aquele, mas talvez outro. Ao que tudo indica, o ministro laborou em erro.

Temos finalmente a relação, mais ou menos nominal, dos massacrados.

"Sansão, mulher e mais sete filhos; José, mulher e mais um filho; Yaleda e mais um filho; Toi, mulher e dois filhos; Paulo, mulher, dois filhos, duas filhas e um feto; Koima, mais três filhos; Paulista; Xerado, mulher e uma filha; Roxi emulher; Xaco, mulher e cinco filhos; Yalima, mulher, um filho e uma filha; Elisio, uma mulher e quatro filhos; João, mulher e um feto; Makayama e mulher. Total: 19 homens, 16 mulheres, 18 filhos e 17 filhas e 3 fetos".

Logo, se feto for considerado pessoa, temos 73 mortos. Há um pequeno erro de padronização do redator, que certamente lhe foi creditado no dia seguinte pela equipe de correção de erros. Quando se fala em três, a Folha grafa a palavra, não o algarismo. Continuando aquele movimento em espiral que obedece ao olhar do leitor, temos, embaixo e à esquerda:

Diplomatas vão à
área do massacre

O enviado especial nos informa que "as embaixadas do Canadá e dos Estados Unidos enviaram dois diplomatas a Roraima para acompanhar as investigações da chacina dos ianomâmis. Os governos dos dois países querem informações mais detalhadas sobre o caso".

Ou seja: dois representantes estrangeiros, em vez de dirigir-se ao Itamaraty ou ao Ministério da Justiça, assumem o papel de detetives e vão investigar in loco uma matança ocorrida em país estrangeiro. Ao lado,

Entidades fazem
protesto em RR

"Dezessete entidades e partidos políticos promovem hoje, em Boa Vista, uma manifestação contra a chacina dos ianomâmis. No ato, serão cobradas das autoridades estaduais e federais a punição dos culpados e a retirada dos não-índios da reserva ianomâmi. As entidades divulgaram uma "Nota à População", na qual dizem que grupos econômicos "vivem do incentivo ao garimpo ilegal e tentam negar a chacina". Segundo a nota, "esses grupos econômicos", quando reconhecem o massacre, tentam atribuir à Funai, à Igreja e aos próprios índios a responsabilidade pelo massacre".

"A nota acusa José Altino Machado, ex-delegado nacional da Usagal (União dos Sindicatos e Associações dos Garimpeiros da Amazônia Legal), de promover a invasão das terras ianomâmis. Além dele, o ex-governador Romero Jucá é acusado de ter sido permissivo e negligente com os garimpeiros".

É o que nos diz o enviado especial. Os vilões continuam os mesmos, mas há novas vítimas. Os "grupos econômicos", denunciados pela nota das "dezessete entidades e partidos políticos", acusam a Funai e a Igreja. A nota, por sua vez, acusa José Altino e o ex-governador Romero Jucá.

Quais são as dezessete entidades e partidos políticos? Isto o enviado especial não nos esclarece. Mas a "nota" — até aqui única entidade acusadora — exige a punição dos culpados e a retirada dos não-índios da reserva ianomâmi. Temos então, uma reivindicação territorial — dos 17, que não sabemos quem sejam — de delimitação de uma área onde brasileiro não entra.

Em Genebra, entidades não-governamentais pretendem denunciar o Brasil junto à ONU.


 

 

Criado Ministério da Amazônia

 

Primeira do Estado, no dia 24 de agosto:

Governo cria ministério da Amazônia
Decisão tomada em reunião do Conselho
de Defesa Nacional para tratar da
chacina dos índios tenta evitar interferência
de entidades estrangeiras na região

"O presidente Itamar Franco decidiu ontem criar o Ministério Extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia Legal e instalar em Surucucu, Roraima, uma delegacia especial da Polícia Federal, com apoio das Forças Armadas, para investigar o massacre dos ianomâmis. As medidas foram tomadas na reunião do Conselho de Defesa Nacional, convocada pelo presidente para discutir a chacina dos índios. (...) A União poderá ser obrigada a indenizar o povo ianomâmi, se for comprovada omissão de órgãos governamentais no massacre que, de acordo com a Funai, resultou na morte de 70 índios".

Em "Notas e Informações", a página de editoriais do Estado, um pouco de cautela:

Os fatos aconselham prudência

"Uma pergunta paira no ar, preocupando os espíritos lúcidos: não terá havido precipitação na divulgação do massacre, da chacina, do genocídio dos ianomâmis? A gradação dos termos indica ou desorientação ou excessiva dose de certeza sobre um fato a respeito do qual não nem testemunhas juridicamente responsáveis, nem provas materiais do delito, exceto uma maloca queimada. A isso há de somar-se a variação do número dos que teriam morrido, ora 19, ora 73, com o detalhamento estatisticamente rigoroso de homens, mulheres, crianças e fetos — sem que um só cadáver tivesse sido encontrado. A ausência da evidência levou a que se lembrassem os costumes imemoriais dos ianomâmis de cremar os mortos e guardar as cinzas. Nem elas foram encontradas até agora. Apesar de tudo aconselhar prudência — tanto mais que o caso já ganha repercussão internacional e desde ontem já há um diplomata canadense e um diplomata norte-americano impedidos de chegar à aldeia — fez-se o alarde.

"É compreensível e natural que notícia desse teor, mesmo com as características apontadas, ganhe na imprensa o espaço que tem. Não é compreensível, porém, que o governo se tenha precipitado em aceitar todas as versões, desde os 19 até os 73, e o presidente da República haja convocado o Conselho de Defesa Nacional para aconselhá-lo sobre o problema. Na verdade, corremos o risco de um dia descobrir que as coisas ocorreram de modo diferente — mas então será tarde demais. Todos, governos e ONGs, aceitaram uma versão e serão obrigados a manter-se fiéis a ela para não descaraterizar a defesa de seus pontos de vista.

"Para os padrões da cultura ocidental, os indícios são frágeis. Não desconhecemos o fato de que a demissão do sr. Altino Machado da presidência da União dos Garimpeiros aponta para o fato de ter havido algo sério na reserva. O que não se sabe é o que de fato houve: se uma armadilha em que índios foram atraídos por comida e em seguida dizimados, eles e os de sua maloca; se um índio desgarrado, inimigo jurado dos que teriam morrido, que teria conduzido garimpeiros até onde pudessem exercer sua vingança na guerra que se teria declarado entre índios e garimpeiros há semanas sem que ninguém dela soubesse. Também não se sabe se os corpos foram enterrados, ou cremados, ou desventrados e jogados no rio".

Os fatos aconselham prudência, diz o Estado. É preciso saber se os corpos foram enterrados, cremados, desventrados ou jogados no rio. O que o cauto editorial não põe em dúvida é a existência de corpos. Que até agora não existem.

O jornal dá duas páginas ao relato do massacre. O título interno repete o da primeira página: "Itamar decide criar Ministério da Amazônia". A matéria é ilustrada com uma foto em quatro colunas, do presidente reunido com o Conselho de Defesa, e outra menor, uma mãe com a filha às costas. Há um texto-legenda:

"Reunião do Conselho de Defesa Nacional (acima) presidido por Itamar Franco, em Brasília, e índia ianomâmi com filho nas costas (esq.) em Homoxi, Roraima: criação de ministério extraordinário que será responsável pela coordenação de todas as ações na Amazônia Legal e terá apoio dos órgãos da administração federal; também foi criada uma delegacia especial para investigar a chacina".

Foram ouvidos, no início da reunião, o procurador-geral Aristides Junqueira e o ministro da Justiça, Maurício Corrêa. "Ninguém pode negar a completa destruição de duas habitações coletivas", atestou o procurador que ainda comentou que "por mais elucubrações" que se fizesse era "inegável o massacre". O procurador vai mais longe. faz sua a reivindicação de Davi Ianomâmi: quer a instauração de um inquérito civil público para impetrar uma ação contra a União para indenizar o povo ianomâmi. "Não parece que haja nenhum empecilho para que o Ministério Público abra inquérito contra a União neste sentido". O procurador se diz chocado as cenas que viu em Roraima: "Parecia um cenário de filme sobre a guerra do Vietnã".

Ao alto da página, uma alerta sobre a dança dos números:

Antropólogo
afirma que
Funai exagerou

O antropólogo francês Bruce Albert, especialista em cultura ianomâmi, visita Homoxi e acha que "houve muita imprudência com os números". Se morreram mesmo 70 índios na região, os corpos teriam sido jogados no rio. "Ele é profundo e é possível que os corpos estejam lá, se realmente aconteceu o massacre".

As malocas queimadas, que para o ministro da Justiça constituíam prova evidente de genocídio, já não dizem o mesmo ao antropólogo: "A vegetação está crescendo, inclusive subindo nas paxiúbas (tipo de palmeira típica da região) e isso significa que a abandono do local não é recente".

Quanto à incineração, Bruce Albert — que defendeu tese em Paris sobre a cultura ianomâmi — vê alguns problemas. "Os sobreviventes não iriam queimar os corpos de pessoas que não eram parentes". Quanto à queimada da maloca, poderia ocorrer por dois motivos: reavivar a terra, como fazem os agricultores, ou para erradicar uma epidemia. "Isso é muito comum e eles fazem essas mudanças com muita frequência. Não vejo a possibilidade de terem morrido mais de 70 índios na região". A Polícia Federal, no entanto, não alimenta maiores dúvidas. Está convicta, não só do massacre, como também dos números:

PF começa a ouvir
primeiras testemunhas
da chacina em Xidéa

"A Polícia Federal começou a ouvir ontem, em Xidéa, na Reserva Ianomâmi, as primeiras testemunhas do massacre. O procurador da República, em Boa Vista, Franklin Rodrigues da Costa, que acompanha os depoimentos, informou que os relatos dos índios ouvidos até agora coincidem tanto no número de mortes (73) quanto sobre os nomes das 19 famílias que teriam sido mortas".

Já o coordenador regional judiciário da Polícia Federal de Manaus, Lacerda Carlos Júnior, que está em Boa Vista acompanhando as investigações sobre o massacre, diz "que enquanto não forem localizados os corpos dos índios mortos não poderá admitir a hipótese de uma chacina que, segundo a versão da Funai e da Procuradoria-Geral da República, matou 73 pessoas".

No entanto, no dia 22 de agosto, Rabinovici, do Estado, nos falava de vários corpos em decomposição, encontrados pela Polícia Federal, e muitos sinais de violência em um tapiri, dos índios que se refugiaram na maloca de Homoxi, em Haximu.

Uma sub nos informa:

Acusado diz estar assustado e foge

O garimpeiro João Neto, acusado na semana passada de ser o organizador da chacina, fugiu de Roraima há dois dias, conta o repórter. Que também nos informa da libertação, pela Polícia Federal, dos três garimpeiros que haviam sido presos no posto da Funai, em Surucucu, como suspeitos da chacina. Ainda não há nenhum cadáver, mas três suspeitos foram soltos e um quarto está em fuga. Em Roraima, coloca-se em dúvida a veracidade do episódio:

Políticos de RR não crêem em chacina

"BOA VISTA — Uma aboboreira convenceu ontem o presidente da Assembléia Legislativa de Roraima, Airton Cascavel (PTB), que não houve massacre dos ianomâmis na maloca Haximu. Ontem à tarde Cascavel exibiu ao repórter Plínio Vicente vídeos gravados no local que mostram a maloca queimada coberta por uma enorme rama de aboboreira. "Para cobrir toda essa área foram precisos mais de 45 dias", disse o deputado. "Isso desmente, por si só, todas as informações divulgadas pela Funai".

Começam a surgir

Dúvidas sobre o caso

1. Onde estão os corpos dos 73 índios mortos?

2. Onde estão os garimpeiros?

3. Quantos garimpeiros mataram os índios?

4. Quem é e onde estaria João Neto, o principal suspeito?

5. Quando ocorreu o massacre?

6. Qual a origem das cinzas encontradas em cinco folhas de

bananeiras?

7. A ossada encontrada é mesmo de índio morto no massacre?

8. Por que a maloca teria sido incendiada?

9. O cabelo encontrado na maloca teria sido cortado no massacre?

10. Por que, afinal, ocorreu o massacre?

Página seguinte do Estado, temos a

REPERCUSSÃO
Retomada idéia de proteção supranacional

Franceses relançam
debate sobre a criação
de uma autoridade para
cuidar da Amazônia

Da França, nos informa o correspondente Reali Júnior:

"Paris — O massacre dos índios ianomâmis na Amazônia está contribuindo para relançar o debate junto aos meios políticos e universitários franceses sobre a necessidade de criação de uma autoridade supranacional para proteger a Amazônia, fato que provocou uma viva polêmica no Brasil há alguns anos. O tema volta novamente à atualidade diante da impossibilidade dos Estados da área, não só o Brasil, mas também Colômbia e Venezuela, de aplicarem as leis existentes para proteger essa região sensível do planeta.

"A idéia de criação de uma autoridade supranacional para proteção da floresta tropical parcialmente destruída pelas freqüentes queimadas, surgiu durante a Conferência sobre Meio Ambiente realizada em Haia, na Holanda, tese defendida pela França, pessoalmente pelo presidente François Mitterrand e seu primeiro-ministro, Michel Rocard. Ela foi imediatamente rechaçada pelo representante do então presidente José Sarney, o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, na época secretário-geral do Ministério do Exterior, em nome da soberania nacional.

"Esse tema não chegou a ser levantado durante a Rio-92, no ano passado, mas, ontem, alguns jornais franceses voltavam a fazer alusão a essa autoridade supranacional, o que corresponderia, na prática, a uma "soberania limitada", diante da falta de meios do Estado, para garantir as reservas dos ianomâmis, cuja extensão tem sido contestada".

Da Suíça, informa o correspondente Rui Martins:

"GENEBRA — Um atraso na agenda da subcomissão de direitos humanos da ONU, adiou, por um ou dois dias, a possibilidade da apresentação de denúncias contra o Brasil por organizações não-governamentais, em conseqüência do massacre de índios ianomâmis. Entretanto, uma participante do grupo de 26 peritos da comissão, a nigeriana Judith Sofi Attah, furou a rígida ordem do dia, toda ela dedicada ontem ao problema das minorias, e tomou a iniciativa de apresentar seu sentimento de repúdio e indignação, ao mesmo tempo que pediu ao ao jordaniano presidente da subcomissão o envio de uma carta de protesto ao presidente brasileiro Itamar Franco".

Ainda na mesma página,

Para ministro do Exército,
proposta é inaceitável

De Brasília, Tania Monteiro:

"Os ministros do Exército, general Zenildo Lucena, e do Estado-Maior das Forças Armadas, almirante Arnaldo Leite Pereira, rechaçaram ontem o relançamento do debate sobre a criação de uma autoridade supranacional para proteger a Amazônia. "Isso não existe", limitou-se a dizer Lucena. "É inaceitável, rebateu Leite Pereira, após acentuar que o Brasil não aceitará qualquer tipo de interferência externa.

"Sou totalmente contra se falar em autoridade supranacional ou em nação ianomâmi", comentou o chefe do Emfa. "Seria ferir a nossa soberania e isso nós não admitimos, da mesma forma que nenhum outro país admitiria". Já não mais se discute se houve ou não o massacre.

Itamar cria ministério da Amazônia
Novo órgão terá US$ 1,2 bilhão para vigilância da fronteira na região; PF não tem provas do massacre

Assim titula a Folha, edição de 24 de agosto:

"O presidente Itamar Franco anunciou a criação do Ministério Extraordinário para a Articulação de Ações na Amazônia Legal. A medida foi aprovada pelo Conselho de Defesa Nacional. A decisão ocorre após o massacre dos índios ianomâmis na reserva em Roraima. O ministério vai administrar US$ 1,2 bilhão, destinado ao Sistema de Proteção da Amazônia. A Polícia Federal em Boa Vista ainda não tem dados para provar a chacina. Apenas os ossos de um corpo foram encontrados, informa Lúcio Vaz, que visitou ontem a maloca Haximu. Dois diplomatas estrangeiros foram impedidos de entrar na reserva ianomâmi, a pedido do Itamaraty".

Em abre, o jornal praticamente repete a manchete da primeira página. "O presidente Itamar Franco propôs ontem, e o Conselho de Defesa Nacional aprovou, a criação do Ministério Extraordinário para a Articulação de Ações na Amazônia Legal". Em box, a linguista e antropóloga germano-norte-americana Gale Goodwin, 43, que estuda a língua ianomâmi há nove anos, e a antropóloga Alcida Ramos, que acompanha os ianomâmis há 25 anos, nos informam que

Ianomâmis usam quatro
línguas para se comunicar

Antropólogas comparam sistema com o turco e o alemão

Temos então que "os ianomâmis usam até dez sufixos depois do verbo e cada um deles significa variação na ação, indicando espaço, tempo, maneira de fazer a coisa, plural, se foi ou não foi testemunhado e de que forma foi conduzida. Um exemplo: a frase "os brancos mataram os habitantes da aldeia do rio Inhambu", traduzida, fica "nabe-be-ne haximo-u-theri the-be mia-bra-re-ma-he". Detalhadamente: Na-be-be (brancos) -ne (agentes) haximo (Inhambu) -u (rio)- theri (habitante) the-be (plural de habitante) mia (matar com flecha ou arma -bra (com força) -re-ma (ação completada e não testemunhada) -he (terceira pessoa do plural).

Em sub, da sucursal de Brasília, Eumano Silva avisa:

Para brigadeiro, massacre pode ser fraude

"O brigadeiro Ivam Moacyr da Frota disse ontem que o massacre dos ianomâmis pode não ter acontecido. Na opinião de Frota, é possível que "países poderosos" tenham dado dinheiro aos índios para que eles afirmem que houve um massacre. "Os índios são nômades, eles próprios queimam suas aldeias e seus mortos quando deixam um lugar", afirmou o brigadeiro".

Logo abaixo, Sônia Mossri nos fala de pragmatismo. O governo vai tentar tirar algum lucro da chacina:

Governo usará chacina para obter crédito

"O governo vai usar a chacina dos índios ianomâmis e a necessidade de melhorar o combate ao narcotráfico e às queimadas para tentar obter um financiamento do G-7 (Grupo dos Sete), formado pelos sete países mais ricos (Grã-Bretanha, Alemanha, Estados Unidos, Japão, França, Itália e Canadá) para a parte não militar do Sipam (Sistema de Proteção à Amazônia)".

Na página seguinte,

Itamaraty barra ida de diplomatas à reserva
Ministério manda Funai revogar permissão para representantes dos EUA e do Canadá visitarem local da chacina

"Dois diplomatas estrangeiros, um do Canadá e uma dos Estados Unidos, foram impedidos de entrar ontem na reserva dos ianomâmis. Eles tinham uma autorização para visitar a região, dada pelo presidente da Funai, Cláudio Romero".

No exterior, a repercussão aumenta. Narra o correspondente da Folha:

Entidades marcam manifestações nos EUA

"Manifestações de protesto contra o governo brasileiro devido ao massacre de índios ianomâmis em Roraima estão sendo convocadas para quinta-feira em Washington, em frente à Embaixada do Brasil, e para amanhã em frente ao consulado em San Francisco, Califórnia., costa oeste dos EUA.

"O ato de Washington ocorrerá quando o embaixador Rubens Ricúpero estiver recebendo representantes das principais organizações ambientalistas e de defesa dos direitos humanos dos EUA, que vão reivindicar do governo brasileiro medidas para garantir segurança aos ianomâmis.

"A passeata de San Francisco está sendo organizada pela entidade Rainforest Action Network, para quem "o crime confirma o receio dos defensores dos direitos dos índios de que a sobrevivência dos ianomâmis depende da expulsão permanente dos garimpeiros de suas terras".

O jornal mais influente dos EUA, The New York Times, tratou do assunto ontem pelo terceiro dia seguido. Seu correspondente James Brooke afirma que a indignação no Brasil cresceu quando se chegou ao número de 73 vítimas. Para Brooke, foi "o maior massacre de índios no Brasil neste século". Ele diz que os militares são "hostis" aos direitos dos índios, mas há pressão pública por punição aos responsáveis.

"O Times cita artigo de Jarbas Passarinho publicado pela Folha, "o jornal de maior vendagem no Brasil", no qual o "senador conservador" da Amazônia afirma: "o massacre dos ianomâmis só pode ser definido como um crime hediondo".

Ontem, a embaixada do Brasil continuou a receber telefonemas de norte-americanos que protestavam contra a chacina. A rede de TV por cabo CNN transmitiu diversas vezes as imagens do resgaste dos corpos dos ianomâmis mortos".

Protestos contra chacina continuam

Da redação, o jornal nos informa de uma carta da organização Americas Watch, sediada nos EUA, enviada ao presidente Itamar Franco, em que declara sentir-se "indignada com a matança". Em Bruxelas, a Aliança Européia com os Povos Indígenas faz um apelo à Comunidade Européia "para que pressione o Brasil a adotar medidas de proteção dos direitos dos ianomâmis". Em Paris, o presidente da organização Médicos do Mundo, sugere a entrada da ONU no caso. Para o médico, cuja organização tem uma missão entre os ianomâmis desde 1984, a defesa dos ianomâmis é de responsabilidade "de toda a humanidade, e não só do Brasil".

Enquanto a CNN, segundo o correspondente em Washington, mostra o resgate dos corpos, Lucio Vaz, enviado especial da Folha visita o local com três deputados estaduais de Roraima e alerta, na página seguinte, para outra hipótese:

EM HAXIMU
Local do massacre pode ter sido outro
Malocas trazem sinais da presença dos garimpeiros, mas não há provas de que Haximu foi palco da chacina

"Há indícios fortes de que a chacina dos ianomâmis não aconteceu nas malocas de Haximu, conforme diziam os primeiros relatos. Fica claro que elas foram atacadas e queimadas por garimpeiros. Não há vestígios humanos, nem mesmo restos de sangue, na aldeia".

Mais adiante, constata o repórter:

"Nas duas malocas, há panelas e cabaças no chão. Algumas das 15 panelas estão cortadas com facão, mas nenhuma delas tem furo de balas. Um pedaço de madeira traz marcas de tiro, que parecem ter sido disparados de uma espingarda calibre 12. A PF recolheu algumas panelas e cabaças atingidas com tiros".

Ora, o ministro da Justiça havia visto nada menos que "16 vasilhames perfurados pelos tiros", conforme nos notícia o Estado (21 de agosto). Na segunda frase de um parágrafo, o correspondente Lucio Vaz tem uma visão diferente da do ministro: há 16 panelas e cabaças, algumas delas cortadas com facão, mas nenhuma delas com furo de balas. Na quarta e última frase do parágrafo, o repórter nega a si próprio e fecha com o ministro: "a PF recolheu algumas panelas e cabaças atingidas com tiros".

Surge na reportagem um elemento novo, não percebido pelo ministro da Justiça:

"Impressiona a densa vegetação que há em torno das malocas. Plantações de abóboras avançam até a cerca de cada uma delas. As entradas estão quase obstruídas pelas plantações. A vegetação parece estar no local há mais de 15 dias. Já os restos do incêndio parecem ser mais recentes".

Duas fotos nos dão as evidências do massacre. Na primeira, temos uma

[imagem]

Panela encontrada em maloca abandonada de Haximu

E na segunda, temos uma

[imagem]

Vista aérea de Haximu, onde se vê a maloca incendiada

Mais abaixo, enquanto deputados de Roraima negam a chacina e falam em "armação",

Funai vai procurar corpos

"O coordenador da Operação Ianomâmi pela Funai (Fundação Nacional do Índio), Wilk Célio da Silva, disse que os agentes policiais federais e funcionários do órgão vão fazer mergulhos a partir de hoje em busca dos corpos das vítimas da chacina na maloca Haximu, (a 420 quilômetros de Boa Vista-RR).

"Os índios e a PF divergem sobre o destino dos ianomâmis. O delegado regional da PF, Sidney Lemos, disse que os índios estão escondendo os corpos para realizar o ritual indígena da festa dos mortos. O líder ianomâmi Davi Kopenawa afirma que os corpos foram jogados no rio pelos garimpeiros.

"O representante da entidade ambiental Amigos da Terra, Roberto Smeraldi, protestou ontem contra a decisão do Itamaraty de autorizar a expulsão dos embaixadores do Brasil (sic!) e do Canadá da reserva ianomâmi. Ele disse que o incidente pode prejudicar o acesso do Brasil aos recursos negociados pelos países do G-7".

Abaixo e à direita,

PF não tem prova da chacina

"A Polícia Federal, até agora, investiga uma chacina sem corpos. Os dados levantados na reserva ianomâmi são insuficientes para provar o massacre. Apenas os ossos de um único corpo foram encontrados na selva. Segundo os dados do perito da PF enviado ao local, José Taleires, a ossada é provavelmente de um índio adulto, morto há 30 ou mais dias com arma de fogo.

"O delegado Lacerda Carlos Jr., que foi enviado de Manaus a Boa Vista para auxiliar nas investigações, diz que não há vestígio de quem possa ter cometido o crime. A PF ainda não tem uma previsão de quando o inquérito sobre o suposto massacre será encerrado".

Detalhe significativo: ressurge a palavrinha tão cara aos jornalistas, quando se quer escrever sobre o que talvez não exista, o adjetivo suposto. Estamos há seis dias da primeira notícia do massacre.

* O presidente da Funai convida dois diplomatas estrangeiros para visitar o local da chacina.

* O embaixador Rubens Ricúpero, em Washington, informado pelo Itamaraty — que por sua vez tem como fonte a Folha — receberá representantes de entidades ambientalistas que protestam contra o massacre.

* Enquanto a CNN transmite repetidamente as imagens do resgaste dos corpos dos ianomâmis, segundo o correspondente em Washington, o enviado especial constata que não há vestígios humanos, nem mesmo restos de sangue, na aldeia.

* Há vestígios de um incêndio. O enviado especial não hesita um segundo em atribuí-lo aos garimpeiros.

* Um médico francês sugere a intervenção da ONU.

* Ameaça de sanções internacionais: se diplomatas estrangeiros não conseguirem entrar na reserva, o Brasil pode não ter acesso aos recursos do G-7.

* Os corpos insistem em não aparecer, mas o massacre continua a existir.


 

 

ONU pode enviar missão à Amazônia

 

IANOMÂMIS
O destino trágico de um povo

Antes de percorrermos a imprensa diária, cabe dar uma olhadela em dois semanários.

[imagem]

Este é o selo de capa da Veja, no dia 25 de agosto. No editorial, fotos remetendo às duas tragédias nacionais, o massacre ianomâmi e Sandra Bréa com Aids.

Um grito
do fundo
da selva

Os índios ianomâmis denunciam uma chacina promovida por garimpeiros que, segundo a Funai, deixou setenta mortos

Uma arte, com mapas precisos das aldeias de Xidea, Hachimu e Homoche, nos dá

[imagem]

 

E, principalmente, nomes e detalhes. Sempre segundo a Funai, "setenta índios foram barbaramente assassinados: dezenove homens, dezesseis mulheres, dezoito meninos e dezessete meninas".

O relato do chefe ianomâmi Antônio, de estilo seco e conciso, de fazer inveja a um redator-Folha, é dramático:

"Muitos garimpeiros cercaram a aldeia e começaram a matar os ianomâmis. Pá, pá, pá. Tocaram fogo nas malocas. As mulheres eram cortadas na barriga, no peito e no pescoço. Vi muitos corpos empilhados. Vi também minha mulher morta entre eles. Tentei tirar o corpo de minha mulher. Arrastei o corpo por um pedaço. Mas um garimpeiro voltou e atirou em mim. Eu corri para o mato e fugi".

O índio Roberto Carlos, com um estilo jornalístico sempre impecável, dá seqüência ao relato:

"Os garimpeiros saíram do rio e se aproximaram da maloca. Nós não atacamos. Eles eram conhecidos. Começaram a atirar, deram chutes nas mulheres. As crianças receberam golpes de facão. Escorria muito sangue. Fugi para a floresta com meu pai. As malocas foram derrubadas pelos garimpeiros. Eles tocaram fogo e mataram as mulheres com facadas".

Um outro ianomâmi, também chamado Antônio, dá um close da chacina:

"Depois de atirar, os garimpeiros cortaram as mulheres e seus filhos. Os cortes na barriga eram grandes e deixavam aparecer as tripas".

Segundo Tximanini, "eles mataram dois cegos e uma mulher bem velha". Segundo o índio Japão, que perdeu dois irmãos e o pai, "poucos se salvaram. Os garimpeiros entraram atirando pela aldeia. As crianças choravam e as mulheres gritavam".

Crianças choravam e mulheres gritavam. Sempre as crianças e mulheres. Curiosamente, Japão não nos conta como reagiram os guerreiros a este ataque. Foram mortos, segundo a reportagem, dezenove homens. No relato do massacre, nada se diz como os homens morreram. Fora dois cegos, só temos detalhes das mortes de mulheres e crianças.

Este relato, feito por cinco indígenas, corrobora o que foi dito por um outro, a uma certa irmã Aléssia que, por sua vez, transmitiu a notícia para uma entidade indígena. Veja não explicita qual seria esta entidade. Mas o fato está corroborado. Pior ainda: os indígenas subestimaram a dimensão da chacina. "Os ianomâmis conhecem poucos algarismos. Um, dois, três e muito. Quando querem dizer dez, batem palma uma vez. Vinte, batem palma duas vezes. Em seus depoimentos iniciais, os indígenas batiam palmas três vezes, o que levou à conclusão de que o número de mortos chegava a trinta. A tragédia foi bem maior, como se anunciou na sexta-feira".

O sertanista Francisco Bezerra, integrante da caravana do ministro da Justiça, Maurício Corrêa — para quem enviou carta Bruce Rich, do Environmental Fund — conversou demoradamente com dois sobreviventes, o chefe Antonio e Roberto Carlos. "Levantou nome por nome, família a família de cada um dos moradores da maloca de Haximu e de uma outra habitação vizinha, num lugar chamado Tapiris, onde os garimpeiros atacaram logo em seguida".

Ao que tudo indica, os funcionários da Polícia Federal não são chegados à leitura de jornais. Jornalistas e antropólogos explicaram à exaustão, nas semanas anteriores, que tapiris são acampamentos de caça. Pelo jeito, falta à PF uma assessoria jornalística. Mas o que importa é que o massacre foi comprovado. Na foto que encima a reportagem, o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, e o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, os dois na selva e em mangas de camisa, exibem ossos em uma aldeia queimada, prova evidente da chacina. O ministro precisou deslocar-se de Brasília ao fim do mundo para encontrar uma caveira. Não fosse o olhar arguto do ministro, os ossos teriam passados despercebidos a quem quer que investigasse o local. O homem precisou deslocar-se do Planalto, para achar os ossinhos, já que nenhum subalterno foi capaz de enxergar as evidências do massacre.

O sertanista, segundo a Veja, chegou ao número total de vítimas, 70. Com detalhes. "Pelo relato final de Bezerra, descobre-se o massacre de famílias inteiras, como a do ianomâmi Sansão, sua mulher e cinco filhos, sendo duas meninas e três meninos. Também foram mortas três mulheres grávidas. Um viúvo da aldeia, acabou trucidado ao lado de seus três filhos. O ianomâmi Deri, que era bígamo, costume aceito na tribo, morreu com as duas mulheres e uma filha.

Bezerra é incisivo e chama seus anos de profissão: "Desde 1960 que estou na Amazônia trabalhando como indigenista . Nunca vi uma violência como esta".

Veja ratifica a indignação de Bezerra: "Entre os requintes de crueldade de que o sertanista tomou conhecimento, há o relato de que um garimpeiro, depois de assassinar um ianomâmi, ainda cortou seus pés. Outro depoimento que recebeu informa que algumas vítimas tiveram os intestinos arrancados e pendurados em árvores".

Mais evidências da chacina: "Funcionários da Funai que fizeram um exame do local encontraram cartuchos de espingarda calibre 12 e 20 e também de revólver 38. A polícia

reconheceu marcas de chuteira no chão. É sinal de presença de garimpeiros brasileiros, que usam o calçado dos campos de futebol para evitar as surpresas do terreno".

O fotógrafo de Veja não deixa por menos, ao ver uma maloca em escombros: "Vi um cenário de bombardeio". Vamos a um breve trecho do relato do jornalista:

"Descemos numa picada ali perto e pegamos uma trilha de uns 20 metros para ter acesso à clareira dos índios. Um delegado que nos acompanhava nos advertia para que tivéssemos cuidado ao caminhar, para não apagar o rastro dos assassinos. Vi pegadas de chuteiras, que, segundo o delegado, é o calçado preferido dos garimpeiros. Logo, na entrada da aldeia, tive uma sensação ruim. Não foi a primeira vez que entrei numa maloca. Mas foi a primeira vez que entrei numa em ruínas. A maloca parecia ter sofrido um bombardeio aéreo. Havia buracos de bala por tudo. O teto da maloca, antes de sapé, estava destruído pelo fogo. (...) Ao entrar na maloca, pequenos objetos me chamaram a atenção no meio dos escombros. Eram cartuchos de espingarda que alguém disse serem de uma arma calibre 12 usada por caçadores. Também vi cápsulas de revólver deflagradas. Elas se confundiam com a terra amarelada e fofa da maloca. Tirei várias fotos pensando nos testemunhos dos sobreviventes, que falavam em mutilações, degolas e muito sangue".

Temos então um fotógrafo que fotografa cartuchos e cápsulas, mas ao mesmo tempo pensa, sem fotografar, em mutilações, degolas e sangue. Junto com o fotógrafo, está o famoso Davi Ianomâmi — este mesmo que foi recebido pelo secretário do Interior dos Estados Unidos, Bruce Babitt. Davi, diz o fotógrafo, "pegou uma das panelas perfuradas por balas e ficou olhando para ela, pensativo. Ficou assim por alguns segundos. Parecia que ia chorar, mas livrou-se da panela, baixou a cabeça e saiu da maloca sem dizer uma palavra".

O silêncio e a tristeza de Davi Ianomâmi são demonstrações do massacre de seu povo. O fotógrafo, com o testemunho de suas narinas, ao ir até um tapiri próximo, o confirma: "Ali, alguns índios que escaparam do massacre na maloca tentaram esconder-se de seus algozes sem sucesso. Havia um cheiro de morte. Cheiro de corpos em estado de putrefação. Pensei que era imaginação, já que não via corpo algum".

Ao que a reportagem indica, não era imaginação do fotógrafo. Um pesquisador de campo havia se deslocado de Brasília para elucidar os fatos. "De repente, o ministro Maurício Corrêa nos chama a atenção. Ele levanta um crânio enfiando um pedaço de pau na cavidade ocular".

Não fosse o ministro ter-se deslocado de Brasília para exibir à imprensa, de pau em punho, um mísero crânio, certamente o massacre teria passado despercebido, já que funcionário algum foi capaz de encontrar no meio do mato esta peça de convicção. Os olhos argutos do ministro vêem muito além do que os de seus subalternos, que teriam por função ver se havia algum cadáver no campos. Míopes burocratas, não viram nada. Foi preciso que o ministro abandonasse suas importantes funções e o ar condicionado de Brasília para ciscar numa oca e achar uma ossada.

O relato do ianomâmi Japão à Veja é dramático:

"As crianças corriam para um lado, mas aparecia um garimpeiro do mato e atirava. Corriam para o outro lado, e saía mais garimpeiro do mato. Morreu tudo". A inverossimilhança dos fatos está no próprio relato. A impressão que fica ao leitor é a de que, se as crianças ficassem paradas, sem correr, não haveria massacre. Afinal, quem quer massacrar não espera que ninguém corra para matar. A revista dá mais detalhes:

"Mulheres corriam desesperadas com crianças no colo, mas eram agarradas e golpeadas com facão. No meio da confusão, duas mulheres saíram em correria em direção a outra maloca, a do Simão, tão próximas que os ianomâmis das mesmas famílias haviam se dividido entre os festejos de uma aldeia e de outra. Ali também havia festa. O chefe Antônio lembra-se que estava comendo mingau de beiju, uma espécie de tapioca, quando as mulheres chegaram para avisar do massacre. Elas sem embrenharam no mato. Antonio foi atrás. No meio do caminho, ouviu barulho de tiros e depois encontrou as duas mulheres mortas. Foi até a maloca e já encontrou tudo queimado. Entre os destroços, uma pilha de cadáveres. Alguns já foram incendiados, diz o chefe Antonio: ‘Os garimpeiros queimaram três corpos. Parecia que estavam brincando. Eles queimavam como se faz com banana’".

A prodigalidade de detalhes não deixa dúvidas quanto à chacina. Temos mulheres grávidas com as barrigas abertas a facadas, dois cegos assassinados, pés cortados, intestinos pendurados nas árvores, cartuchos calibre 12 e 20, marcas de chuteiras no chão, cenário de bombardeio, crianças abatidas a tiros, inclusive o chefe Antônio lembra o preciso momento em que foi avisado do massacre: estava comendo mingau de beiju. O ministro do Interior, que abandonou suas altas funções no Planalto para farejar ossos em plena floresta, se sente na obrigação de tornar pública uma triste realidade: "Infelizmente, devo comunicar que houve uma chacina".

Apesar da penitência do ministro, Veja não o poupa. O que deveria ser uma reportagem adquire tons de editorial:

"Ficou devastada, também, a reputação de um ministro que, no governo Itamar Franco, tem a obrigação de garantir o respeito à lei e à ordem. (Só que o massacre, agora, passou a ser na Venezuela). "A Constituição garante que nesse lugar, eles têm direito a viver sem ser incomodados por ninguém. Pode-se gostar ou não desse decreto, mas o fato é que assim diz a lei e cabe às autoridades garantir que seja cumprida. Não foi isso que fez a Polícia Federal, cujo chefe máximo é Maurício Correia".

O repórter parece ter esquecido que o direito a viver sem ser incomodado por ninguém é direito também do branco ou negro ou pardo urbano, e que ministro algum garante este direito a quem vive na cidade. O repórter questiona também a legislação em vigor no país: não há crime sem cadáver, diz a lei. Sem crime, impossível processar e condenar os infratores. A reportagem, evidentemente elaborada a várias mãos, acaba desmentindo as afirmações anteriores do ministro do Interior, nas quais se baseia para confirmar o massacre: "Ou melhor, descobriu-se uma — apenas uma — ossada na aldeia. Mas seu estado de decomposição era tão avançado que não se podia afirmar, com certeza, quando se dera a morte".

Trocando em miúdos: Veja se baseia na afirmação taxativa do ministro para dizer que houve massacre, publica foto mostrando o ministro segurando ossos, a prova do massacre, e três páginas adiante afirma que a ossada não permite confirmar a data da morte. Mesmo assim, interroga: "E os outros 69 mortos?" O problema é kafkeano: a revista põe em dúvida a data da única ossada garimpada, e se interroga pelos hipóteticos 69 mortos cujos corpos jamais foram achados.

Aristides Junqueira, fazendo jus a seu ofício de procurador-geral da República, procura e acha, ou seria um procurador incompetente: "Vi um massacre". Só não viu os cadáveres, no que nada tem de original, pois até hoje ninguém os viu. "O guia que nos levou até lá contou 73 mortos. Ele nominou quinze amigos e familiares assassinados. Eram 35 adultos, 35 crianças e três fetos. Uma aldeia queimada, sinais de violência. Creio ter visto in loco uma tentativa de exterminar uma etnia".

As cifras avançam. Além dos 70 cadáveres vistos pelo sertanista Francisco Bezerra, temos mais três fetos. Logo, 73. Só há um problema. Se os índios contam por dezenas, batendo palma uma vez para dizer dez, duas para dizer vinte, como se chegou a 35 ou 73?

Veja é precisa em números. Citando a "maioria dos pesquisadores" — sem nominar nenhum — calcula "que havia 6 milhões de indígenas no país em 1500, contra apenas dois degredados de pele branca deixados pelas caravelas de Pedro Álvares Cabral no momento em que elas zarparam de volta pelo Atlântico. Hoje, estima-se que tenham sobrado 250.000 índios. Houve, é óbvio, um massacre de populações inteiras com a violência organizada pelos representantes do Estado colonial português e depois pela aristocracia nativa".

Isto está na Veja de 25 de agosto. A respeitável Time, de 06 de setembro, ousa timidamente discordar. Fala em cinco milhões de indígenas na chegada de Cabral, e coincide no número hoje existente, 250 mil. Genocídio, é claro. O que os argutos jornalistas de ambas as revistas não se perguntaram é como os dois degredados deixados por Cabral conseguiram recensear seis — ou cinco — milhões de índios no vasto interior do Brasil, quando hoje não se consegue saber se os ianomâmis são cinco ou dez mil, por uma simples razão: eles não admitem que funcionários federais entrem em suas reservas para contá-los.

Istoé não deixou por menos. Na edição deste mesmo dia, 25 de agosto, dá capa ao tema:

MASSACRE
DOS
YANOMAMIS

Depois da Candelária o mundo condena o Brasil por mais um extermínio

O título da reportagem já é uma palavra de ordem:

SELVAGERIA DE BRANCOS

Antes mesmo de entrar na reportagem, o leitor já tem os vilões definidos na linha fina:

"Os garimpeiros chegaram e bam, bam, bam."
(Relato de Roberto Carlos Yanomami,
14 anos, sobrevivente do massacre)

Questões de estilo. Na Folha de São Paulo, Roberto Carlos falava em "pá, pá, pá". Vá lá. Mas a Istoé vai mais longe, situa o massacre em uma sexta-feira, 13 de agosto. E dá detalhes geográficos:

"Havia festa na aldeia Hoximu na Serra Parimã, em Roraima, a menos de 20 quilômetros da fronteira com a Venezuela. (É bom guardar esta precisão geográfica. Logo adiante, em falta de cadáveres ou maiores evidências de massacre, chega-se à conclusão que a chacina ocorreu, não no Brasil, mas na Venezuela). Os índios participavam do shaura, um ritual onde os adultos tomam caxiri — umas aguardente feita de milho ou abacaxi. As crianças brincavam no terreiro aberto em volta da yano, a habitação coletiva dos yanomamis. Ao final da tarde, o massacre: dezenas de garimpeiros armados com espingardas calibres 12 e 20, revólveres 38 e afiados facões invadiram a aldeia atirando. Os adultos foram os primeiros a tombar, sem tempo de pegar seus arcos de acapu (madeira negra de grande resistência) e flechas. As crianças foram chacinadas com requintes de crueldade — degoladas e estripadas. ‘O facão fazia zing e zong, cortando no peito e nas costas’, contou o indiozinho Roberto Carlos".

A narração detalhada torna óbvio o massacre. Tudo ocorreu por ocasião de uma shaura, quando as vítimas tomavam caxiri. Os adultos sequer conseguiram se defender com seus arcos de acapu. Há inclusive uma lembrança auditiva do massacre: os garimpeiros chegaram e bam, bam, bam; o facão fazia zing e zong.

Ao lado do texto, temos o ministro Corrêa examinando ossadas do massacre.

Podem chegar a 73 mortos os índios
yanomamis chacinados por garimpeiros
em Roraima, inclusive mulheres
e crianças degoladas e estripadas

A aposta avança. São de fato 73 os mortos, o massacre ocorreu em território brasileiro, a 20 km da fronteira com a Venezuela. Antonio Yanomami, de 21 anos, confirma a matança: "Os garimpeiros atiraram primeiro nos adultos e depois saíram esfaqueando as crianças", disse Antonio, sem hesitar, no relato feito diretamente ao ministro da Justiça. O intérprete, é personagem já conhecido, o sertanista Francisco Bezerra de Lima.

"Antonio citou o nome de 15 adultos que foram mortos e perdeu a conta do número de crianças chacinadas", disse o sertanista, que "por mais de 20 anos serviu entre os yanomamis".

Aqui, já se evidencia uma imprecisão.Na Folha do dia 25, Bezerra vivia há 25 anos entre os ianomâmis. Na Veja do dia 25, vivia desde 1960, ou seja, há 33 anos.

Foto indefectível do ministro do Interior olhando ossos:

[imagem]

O ministro Corrêa (à esq.)
inspeciona partes de uma
ossada mais antiga: "Isto é
extremamente mais grave
que a chacina da Candelária"

Uma foto em três colunas encima o texto. Um olho, sob a foto, esclarece a chacina:

A estrutura carbonizada da
maloca maior, capaz de
abrigar 60 pessoas, denuncia
o crime. Os culpados, parece,
fugiram para a Venezuela

Neste olho já surge um verbo estranho ao jornalismo e bastante cauteloso: "parece" que os culpados fugiram para a Venezuela. Não há ainda nenhum cadáver recente, mas já se tem pistas sobre o paradeiro dos genocidas. Istoé mostra um ministro do Interior compungido, "cabisbaixo" que conta o que viu: dois yanos — um deles com capacidade para abrigar 60 índios — queimados, cartuchos disparados, marcas de balas em panelas e rastros de chuteiras, utilizadas por garimpeiros. "Não sei as causas. Resta agora saber a extensão das mortes", diz o ministro à la Sherlock.

O procurador — e quem procura, acha — voltou da aldeia Hoximu impressionado. "Nunca vi nada igual". E já vai culpando o Estado — ao qual serve e do qual recebe salário — por não ter cumprido decisões judiciais que determinavam, desde 1989, a retirada de todos os garimpeiros da reservas indígena yanomami. "A multiplicidade de homicídios de uma determinada etnia é, sem dúvida, genocídio". O procurador repete — pondera — o que dissera à Folha, na edição de 20 de agosto.

Preocupada com aquela pergunta fundamental do jornalismo, "o quê?", Istoé se pergunta: "Mas, se houve um massacre, onde estão os corpos?". E logo responde:

"Essa indagação, que martelou nas cabeças de Maurício Corrêa e Aristides Junqueira, foi respondida pelos sertanistas e antropólogos como o presidente da Funai, Cláudio Romero. "Os yanomamis cremam seus mortos e comem as cinzas misturadas em mingau de banana", ensinou. "Alguns índios informaram que os corpos foram carregados por parentes para a maloca do Simão, onde se realizou a cerimônia de cremação", (adiante, a versão é outra, oito tapiris) afirma o coordenador da Operação Selva Livre da Funai, sertanista Wilk Célio da Silva. O índio Japão, que conseguiu escapar do massacre, contou que perdeu o pai e dois irmãos na aldeia Hoximu e que a maioria dos mortos era criança".

Nesta altura dos acontecimentos, o procurador, a partir dos relatos de Bezerra de Lima, o intérprete dos depoentes da chacina, acredita que 73 índios foram massacrados pelos garimpeiros. O sertanista Wilk Célio começa a ser mais prudente, estima em "no mínimo 30 os índios assassinados". O trecho seguinte da reportagem de Istoé é uma pérola do jornalismo:

"Pintado de negro para a guerra (que guerra, com que armas e contra quem?). o tuxaua Davi Kopenawa, yanomami da aldeia Demini, Prêmio Global 500 da Organização das Nações Unidas em 1990, chegou á área indígena Homoxi em um avião da Funai, às 8h da sexta-feira 20, prometendo retaliações. ‘Vou reunir o povo yanomami para uma luta sem tréguas contra os garimpeiros’, anunciou. Com um facão à mão, Davi Kopenawa vociferou contra o Exército, os políticos e a Funai".

"A vida vale mais que o ouro", disse o tuxaua, com uma concisão digna de publicitário de talento. O que no fundo é uma ingenuidade, pois se vida valesse mais que ouro, por este ninguém se mataria. Kopenawa, conforme Istoé, já fez palestras no Parlamento Europeu, na ONU e no Congresso americano, e afirma que "os yanomamis estão sendo massacrados com a conivência dos políticos e das Forças Armadas". Diz que jogou no lixo a caneta Mont Blanc que recebeu de Fernando Collor após a assinatura que homologou a reserva de 9,4 milhões de hectares dos yanomamis, em Roraima e no Amazonas, três dias antes da instalação da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, a ECO 92.

Kopenawa acusa os brancos — que deram aos seus, de mão beijada, nada menos que um território igual a Portugal — de serem porcos, pois reviram a terra. "Ouro não é comida", diz o novel economista. E nega que o massacre tenha sido cometido entre aldeias yanomamis rurais: Yanomami não mata criança, não mata mulher. Isto é coisa de branco".

Aqui Kopenawa simula desconhecer a raça a qual pertence. Pois os ianomâmis não só matam mulheres, como também as espancam barbaramente, como feremos ao final desta pesquisa. Quanto a matar crianças, há muito vêm sendo denunciadas as práticas de infanticídio pelos ianomâmis. Mas não devemos ser etnocêntricos. As tradições culturais das civilizações primitivas devem ser preservadas.

O redator parece endossar com prazer, sem objeção alguma, esta afirmativa contundente do "líder" ianomâmi: ouro não é comida. Quando, na verdade, se ouro não é comestível, gera comida, comércio, trabalho, bem-estar, saúde, educação, conforto, alto padrão de vida.

Na imprensa diária, mais ágil em virtude da dinâmica que lhe é característica, temos novidades. Na primeira do Estado,

Ricúpero será o ministro da Amazônia

"O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Rubens Ricúpero, foi nomeado pelo presidente Itamar Franco para o cargo de ministro extraordinário para a Articulação de Ações na Amazônia. Ele vai ocupar um pequeno gabinete no Palácio do Planalto. A ONU não descarta a possibilidade de intervir de alguma forma na região onde se suspeita que tenha ocorrido o massacre dos ianomâmis. O governo federal vai destinar mais de US$ 1,2 bilhão de dólares para o plano de instalação de radares na Amazônia. O sistema será usado na fiscalização de fronteiras e no combate ao desmatamento e tráfico".

Se o novo ministério ocupará um pequeno gabinete em Brasília, pequena não será sua dotação: nada menos que 1,2 bilhão de dólares. Quando ao novo ministro, para o leitor atento de jornais, sua nomeação nada tem de insólito. Se voltarmos ao dia 19 de agosto, veremos que estava nomeado desde o início da affaire, quando Bruce Rich — do Environmental Defense Fund, que havia patrocinado a viagem de Davi Ianomâmi aos Estados Unidos — enviou cartas a Maurício Corrêa e Rubens Ricúpero pedindo a investigação do crime. Este mesmo Ricúpero, conforme nos dizem os jornais do dia 24 de agosto, deve receber em Washington a visita de líderes ambientalistas. Não é exagero afirmar que o novo ministro foi nomeado por entidades estrangeiras.

Em página interna, o Estado nos traz — ou melhor, não traz — dados sobre a

INVESTIGAÇÃO
Polícia diz que não achou corpos no rio
Delegado diz que, por
enquanto, não há
condições de afirmar
que houve um massacre

Joyce Russi e Marcos Uchoa nos relatam que o delegado Lacerda Carlos Júnior, responsável pela investigação do massacre dos índios ianomâmis, afirma que três policiais federais mergulharam no rio Haximu, profundo e com correnteza, sem encontrar nenhum corpo.

"Por enquanto, não temos condições de afirmar se houve mesmo um massacre nas malocas dos ianomâmis", diz o delegado. E acrescenta: "Se morreram mesmo 73 pessoas, o local deveria apresentar pelo menos manchas de sangue e nem isso conseguimos encontrar. Se essas provas não aparecerem, não temos condições de encaminhar as investigações da maneira que estamos fazendo".

O delegado examina os cartuchos de bala encontrados no local e verifica a existência de ferrugem: "Isso prova que eles estavam no local há mais de 30 dias". Da França, informa o correspondente Reali Jr.:

ONU pode enviar missão à Amazônia

"PARIS — As Nações Unidas não descartam a possibilidade de uma iniciativa concreta na Amazônia, através do envio de uma missão de observadores na região onde ocorreu o massacre dos índios ianomâmis, segundo revelou ontem uma fonte diplom[atica do Quai d’Orsay, em Paris. Não se trata de uma intervenção do tipo da ocorrida no Iraque para constatar o desmantelamento do arsenal atômico daquele país, ou da enviada ao território da Bósnia, da ex-Iugoslávia, ambas idealizadas para garantir a paz.

"No caso da Amazônia, o envio de observadores se situaria na área da defesa dos direitos humanos, uma das três missões principais da organização internacional. Essa missão poderia ser decidida pela própria Secretaria Geral, desde que solicitada por alguns dos países membros, mas também pelas organizações não governamentais, reconhecidas pela ONU. Como se sabe, o governo brasileiro proibiu o acesso de representantes das ONGs na região da chacina dos índios".

No pé da nota, com direito a foto, a guatemalteca Rigoberta Menchú, prêmio Nobel da Paz, pede à Comissão de Direitos Humanos da ONU "uma investigação, no local, da matança dos índios ianomâmis".

Mas nem tudo é unanimidade. Na página seguinte, temos a

REPERCUSSÃO
Políticos criticam criação de ministério

"A decisão do presidente Itamar Franco de criar o Ministério Extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia foi considerada ontem pelo governador do Pará, Jáder Barbalho (PMDB), tão atrasada quanto o relançamento do fusca. "Deste jeito, se houver um incidente no Nordeste. o presidente irá nomear um um ministro para a região", protestou. "Falta um ministro para a Candelária", disse, referindo-se ao massacre de oito meninos de rua no Rio".

Já o governador da Amazônia se declara satisfeito com o novo ministro:

"É um sinal de que o governo federal está despertando para o problema da Amazônia". A primeira missão do ministro extraordinário, acrescentou Mestrinho, será desmentir a morte dos 73 ianomâmis que estiveram ontem (anteontem) constataram que não houve massacre.", afirmou, para justificar que tudo não passa de uma farsa, movida pelos interesses internacionais. "O escândalo dos ianomâmis é uma tentativa de criar uma imagem negativa do Brasil".

À direita,

Villas Bôas apóia
decisão do presidente

Mesmo quando já se sabe que o civil Rubens Ricúpero foi nomeado para a chefia do novo ministério, como noticia o Estado em sua primeira página, nesta página 13 da mesma edição "o indigenista" Orlando Villas Bôas classifica como "formidável" a criação por parte do presidente Itamar Franco do Ministério Extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia Legal e considera importante a presença de um militar à frente da nova pasta:

"Não existe um corpo institucional tão bem treinado quanto o Exército para impor respeito na região. É preferível ter tropas na vizinhança a dividir o mesmo espaço com invasores promíscuos e inescrupulosos".

O mesmo já não pensa o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o geógrafo Aziz Ab’Saber: "Não sabemos o grau de entendimento cultural sobre a Amazônia Legal da pessoa que ocupará a pasta".

"Temendo os desdobramentos da criação do ministério e "indignado" com a chacina. Ab’Saber está redigindo uma carta ao presidente Itamar Franco. No texto, o presidente da SBPC alerta que, em termos gerais, a morte dos índios já era esperada. "Desde o começo do século, sabemos que o contato entre grupos étnicos extremamente diferentes é letal para o grupo mais fraco".

Mesmo quando já é manchete nacional o nome de Ricúpero para a chefia do novo ministério milionário, diz o ambientalista Rubem Almeida:

Greenpeace condena chacina

"RIO — O presidente do Greenpeace no Brasil, Rubem Almeida, disse ontem que a nomeação de um militar para o comando de ministério extraordinário da Amazônia, como quer o presidente Itamar Franco, "é o mesmo que deixar a raposa tomando conta do galinheiro". Segundo ele, a idéia de desenvolvimento e progresso defendida pelas Forças Armadas "é extremamente contrária aos interesses das comunidades indígenas". Rubens Almeida liderou ontem ontem uma manifestação no Centro do Rio em protesto contra a chacina dos ianomâmis".

Na mesma data, 25 de agosto, a Folha confirma na capa, se bem que com certa discrição:

Embaixador
nos EUA é
ministro da
Amazônia

"O Ministério Extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia Legal será ocupado pelo atual embaixador em Washington, Rubens Ricúpero. O diplomata foi um dos inspiradores do "Pacto Amazônico", acordo feito durante o governo Sarney entre Brasil e países vizinhos para uma série de ações integradas na região. As investigações sobre o massacre ianomâmi não avançaram ontem".

Em página interior, a Folha, em uma arte, começa a interrogar-se:

Perguntas não respondidas sobre o massacre

1. Qual é o número de vítimas? A Funai vem divulgando números contraditórios.

2. As informações sobre o massacre foram dadas pelos índios às autoridades. os ianomâmis não sabem contar. Quantos foram, realmente, os mortos?

3. Nenhum corpo foi encontrado, exceto um esqueleto, após uma semana de busca. A vegetação na área das malocas já está crescida. O massacre poderia ter ocorrido em outro lugar ou há mais tempo?

4. Não há sangue ou restos de carne em putrefaçãso no local da chacina. Onde estariam os corpos?

5. O rio Haximu é raso e suas águas são límpidas. Os corpos poderiam ter sido jogados nele?

6. Há dificuldade de comunicação entre os ianomâmis e as autoridades. Quando, de fato, o massacre ocorreu?

7. Há quanto tempo os índios Japão, Antônio e Roberto Carlos estavam sem contato com a missão?

8. Não foram encontrados garimpeiros próximos ao local. A que acampamento pertenceriam os assassinos?

9. Há a hipótese de o massacre ter ocorrido como represália ao assassinato de garimpeiros. Quem seriam esse garimpeiros e onde estariam seus corpos?

10. Faz parte da prática religiosa dos ianomâmis cremar corpos e embalar partes das cinzas em folhas de bananeiras. Os corpos poderiam ter sido cremados pelos próprios índios?

Perguntas oportunas. Página seguinte, alguém levanta um lado esquecido da questão indígena:

Promotora do PA quer denunciar caiapós

Segundo Abnor Gondim, a promotora Lúcia Bueno "pretende denunciar à Justiça os índios caiapós da aldeia Gorotire, acusados pelo massacre de 20 funcionários e seus parentes da fazenda Espadilha, vizinha à reserva caiapó (sul do Pará). O massacre ocorreu em setembro de 80, mas somente na semana passada o inquérito policial do caso chegou à Justiça de Redenção (750 km ao sul de Belém)".

Uma foto nos mostra três cadáveres inchados, reais, carnais, recentes, em uma estrada. Os antropólogos da Funai e do museu paraense Emílio Goeldi, justificam o massacre. Na época, "o episódio foi uma reação dos índios à invasão de suas terras pelos fazendeiros da região. Segundo uma cozinheira da Funai na aldeia, cerca de 30 índios estavam caçando perto da fazenda. Um deles foi pedir café na fazenda e foi humilhado por um funcionário. Ele chamou os outros índios para o massacre".

Box ao lado diz que

Caso Paiakan
será julgado

"O juiz José Maria do Rosário deverá sentenciar na próxima semana o líder indígena Paulinho Paiakan, acusado de estuprar, em maio de 92, a estudante Sílvia Ferreira".
Esta notícia é do dia 25 de agosto de 1993. Em 1995, no primeiro julgamento, Paiakan e a mulher, Irekan, foram absolvidos. Revisto o processo, o Tribunal de Justiça do Pará condenou o cacique a seis anos. Sua mulher foi condenada a quatro, com direito a permanecer na aldeia de A-Ukre. Paiakan recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça, em Brasília e foi mantida a condenação em seis anos. Mas Paiakan continua em sua aldeia. Teoricamente, está preso. De fato, livre como um passarinho.

Não bastasse esta regalia, o cineasta Murilo Salles quer contar a saga de Paulinho, como é conhecido o cacique estuprador. Seu projeto de filme, Assim é o Paraíso, só espera verbas do MinC, isto é, do contribuinte.O cineasta diz ter ficado Murilo Salles ficou fascinado pelo caso desde a primeira hora e acha que Paiakan, apesar de ser réu confesso, entrou de "gaiato" na história. A culpa recairá, obviamente, sobre a vítima, conforme velha técnica advocatícia.


 

 

89 mortos: massacre foi na Venezuela

 

Na Folha de 26 de agosto, as manchetes sobre a affaire começam a descer na primeira página. Em poucos centímetros nos diz Américo Martins, o enviado especial a Boa Vista:

Chacina de índios pode
ter sido na Venezuela

"O massacre dos ianomâmis pode ter ocorrido em território venezuelano. Segundo a Polícia Federal, a maloca Haximu é muito próxima à Venezuela. Os militares trabalham com a hipótese de que ela fique na linha de fronteira entre os dois países. A PFR investiga três ataques dos garimpeiros contra a reserva em Roraima. A informação de que o massacre foi feito em três etapas consta de dez depoimentos. A PF e Funai encontraram oito fogueiras com vestígios de ossos e quatro dentes com aspecto humano".

Em sub, em página interna, com assinatura de Emanuel Neri:

País desconhece a versão

"Até as 19h de ontem (18h em Caracas), o governo da Venezuela dizia desconhecer totalmente a versão de que os índios ianomâmis foram assassinados em seu território. "É a primeira vez que estou ouvindo essa história", disse Ramon godoi, da Direção de Fronteiras do país. A Embaixada do Brasil na capital venezuelana também não tinha conhecimento dessa versão".

À direita, na mesma página,

EUA esperam que haja punição

"O subsecretário de Estado para Assuntos dos EUA, Alexander Watson, disse ontem que, se houver impunidade no massacre dos ianomâmis, casos semelhantes poderão ocorrer. "Esperamos que os responsáveis sejam punidos", afirmou Watson, em entrevista via satélite pelo sistema Worldnet do governo norte-americano. O subsecretário elogiou a "rápida reação"do Planalto ao enviar para a região o ministro Maurício Corrêa".

A Folha apresenta uma

NOVA VERSÃO
Índios podem ter sido vítimas de 3 ataques
Equipes da Funai e da PF encontram vestígios de fogueiras e ossos próximos à fronteira com a Venezuela

Uma arte nos explica a nova versão:

[imagem]

Como foram os três ataques dos garimpeiros
1. Seis índios vão ao acampamento dos garimpeiros e pedem comida e farinha. Os garimpeiros dão farinha aos índios e dizem que não têm munição. Quando voltavam para as malocas de Haximu 1 e 2, os índios são seguidos: quatro deles morrem, um fica ferido e outro chega às malocas.
2. No dia seguinte, Antônio deixa o tapiri para caçar. Na selva, ouve tiros e resolve se esconder na maloca Simão. Pouco depois, duas índias chegam à maloca e dizem que os garimpeiros mataram todos. Cerca de 15 índios tinham sobrevivido.
3. Avisados pelo sobrevivente, os índios deixam as malocas de Haximu e montam um tapiri (acampamento provisório) depois de andarem sete horas.
4. Dois dias depois, dez deles voltam ao tapiri, encontram os corpos e começam a preparar a cremação. São cercados por três lados pelos garimpeiros. Apenas três índios sobrevivem. Próxima ao tapiri foi encontrada a ossada que a PF está examinando.

Brasília dá indícios de ceder:

Governo duvida da ocorrência da chacina

"Ninguém no governo garantia até ontem pela manhã que tenha havido um massacre de índios ianomâmis em Roraima. Os ministros militares reafirmaram suas dúvidas publicamente e o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, que na semana passada, em Boa Vista (RR), tinha certeza da chacina, ontem admitiu, no máximo, que houve vandalismo. "Houve um vandalismo, algo extremamente grave", disse Corrêa evitando as palavras chacina e massacre, usadas por ele anteriormente em entrevistas em Boa Vista e Brasília.

"Os ministros militares, que junto com Corrêa participaram da cerimônia do Dia do Soldado, afirmaram que havia necessidade de mais provas para caracterizar o massacre. O diretor-geral da Polícia Federal, Wilson Romão, foi mais radical quanto à necessidade de indícios da chacina. "Se não há corpos, não tem prova material", afirmou.

"Não dispomos de elementos que dêem garantias de que houve o massacre. Pessoalmente, tenho tendência a duvidar da existência do massacre", afirmou o ministro da Aeronáutica, Lélio Viana Lobo. "É difícil dizer se houve esse massacre, é, difícil de julgar", disse o ministro do Exército, Zenildo de Lucena. "Deve ter havido algo, mas não creio que com essa dimensão que está sendo dada", completou.

O ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Arnaldo Leite Pereira, afirmou que somente após a conclusão do inquérito pela PF pode-se afirmar que houve a chacina dos ianomâmis. "Os indícios existem, mas só confirmo depois do inquérito", insistiu o ministro".

Em box,

Ato nos EUA
critica chacina

De Washington, nos informa Carlos Eduardo Lins e Silva:

"Cerca de 250 pessoas participaram ontem em Nova York (EUA) de demonstração contra o governo brasileiro, em protesto contra as mortes de índios ianomâmis na semana passada. Muitas usavam trajes de diversas tribos indígenas americanas. Outras carregavam cartazes com dizeres como "O Brasil é Lindo: Genocídio e Assassinato Não". Panfletos foram distribuídos aos que passavam pelo local, um dos mais movimentados da Quinta Avenida.

"Depois do protesto, que ocorreu entre 12h e 14h locais (13h e 14h de Brasília), em frente ao Consulado do Brasil em Nova York, no Rockfeller Center, uma comissão de 15 representantes de entidades ecológicas e de defesa de direitos humanos foi recebida pelo cônsul-geral, embaixador Marcos César Naslausky, que lhes relatou as providências tomadas pelo governo federal para identificar e prender os responsáveis pelos crimes".

Problemas de fuso horário. Enquanto o governo brasileiro começa a duvidar da chacina, o cônsul em Nova York relata a entidades ecológicas as providências tomadas pelo governo brasileiro para identificar e prender os responsáveis pelos crimes.

No pé da nota, Claudiné Gonçalves completa da Europa:

"Em Genebra, Suíça, o Brasil está sendo alvo de duras críticas da ONU (Organização das Nações Unidas) durante a sessão anual da subcomissão dos direitos humanos sobre a proteção das minorias".

Neste mesmo 26 de agosto, o Estado dá ainda menor destaque, mas acrescenta novos números:

PF e governo
admitem morte
dos ianomâmis

"Dois relatórios divulgados ontem em Brasília confirmam o massacre dos ianomâmis. O da Polícia Federal e Funai aponta a descoberta de mais vestígios de ossos humanos. Outro, da Procuradoria-Geral da República, diz que 89 índios podem ter sido assassinados".

Em página interna, temos a

INVESTIGAÇÃO
Relatórios dão novas pistas do massacre
Documentos da Polícia
Federal e Funai e da
Procuradoria-Geral
apontam evidências

Do Planalto, nos diz Antonio Marcello:

"Brasília — Dois relatórios divulgados ontem em Brasília acrescentam novas evidências ao massacre dos índios ianomâmis, ocorrido em Roraima, nas proximidades da fronteira com a Venezuela. O primeiro, preparado por peritos da Polícia Federal e Fundação Nacional do Índio (Funai), aponta a descoberta de mais vestígios de ossos humanos. O outro, da Procuradoria-Geral da República, confirma o massacre e afirma que 89 índios habitavam a aldeia Homoxi e sofreram três ataques sucessivos de garimpeiros, com base em depoimentos de sobreviventes e indígenas que habitam a região. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) deverá ser formada para apurar o massacre".

Um intertítulo reforça os novos números:

"Descrição — O procurador-geral da República, Aristides Junqueira, recebeu ontem um relatório do procurador da República em Roraima, Franklin Rodrigues, segundo o qual, apesar de os corpos não terem sido localizados até agora, houve o massacre. (...) Os índios, segundo o procurador, fizeram uma descrição perfeita da chacina, apontando a possibilidade de terem sido mortos 89 ianomâmis, sendo três mulheres grávidas, outras 23 mulheres, 25 homens e, os demais, crianças e adolescentes".

No pé da nota:

"O relatório de Rodrigues considera que o massacre existiu e que, pela precisão dos ataques, foi efetivamente cometido por garimpeiros".

Dos Estados Unidos, nos informa Sonia Nolasco:

Nova York
faz protesto
contra chacina

"NOVA YORK — Quando o sino da matriz de Saint Patrick, na Quinta Avenida, em frente ao Rockfeller Plaza, anunciou o meio do dia, um cântico melancólico de funeral indígena começou a se levantar, devagarinho, machucando a consciência de quem ouvia. Na calçada do Rockfeller Plaza, três rapazes tocavam uma percussão indígena e repetiam o lamento monocórdio. Um grupo de homens, mulheres, adolescentes e crianças, americanos e latinos, com roupas pretas e pinturas índias, com alguns enfeites legítimos de penas e contas, seguravam cartazes e distribuíam panfletos aos passantes, informando a chacina dos ianomâmis no Brasil. Em meia hora, havia cerca de 250 pessoas na demonstração, organizada pela Amanakáa Amazon Network, entidade que luta pela floresta tropical e os direitos dos índios.

"Zezé Weiss, a diretora executiva da Amanakáa, que conta com uma rede de 65 outras organizações ambientalistas, declarou ao Estado que o motivo da demonstração era chamar a atenção do povo para o massacre dos índios, fazer com que assinassem a petição de Justiça a ser enviada ao presidente Itamar, e entregar uma carta de protesto ao cônsul-geral do Brasil em Nova York, embaixador Marcos Cesar Naslausky.

"A falta de provas não a preocupa: "Isso não é condição essencial para ignorar que houve crime. A América Latina tem uma longa história de corpos desaparecidos. Os ianomâmis mortos foram certamente cremados. É a tarefa do Judiciário encontrá-los".

Em verdade, se considerarmos as fotos e declarações do ministro da Justiça, Maurício Corrêa, datadas de sexta-feira, 20 de agosto, e publicadas na imprensa nacional no dia seguinte, o massacre já está configurado.


 

 

Uma nação ianomâmi

 

PF solicita
ajuda nas
apurações
da chacina

É o que nos conta, no dia 27 de agosto, o enviado especial da Folha a Boa Vista, Américo Martins:

"A Polícia Federal pediu oficialmente colaboração dos militares na busca de evidências do massacre ianomâmi. O Exército trabalha com a informação de o conflito entre garimpeiros e índios começou em junho na Venezuela. Os 60 soldados e oficiais do 4. Pelotão Especial de Fronteiras em Surucucus podem ser enviados para a maloca Haximu".

Uma foto em três colunas mostra

[imagem]

Ossada trazida da aldeia Homoxi, na reserva ianomâmi em Roraima, é mostrada no Instituto de Criminalística da Polícia Federal, encarregado de realizar a perícia — Págs. 1-10 e 1-11

Se o leitor for procurar alguma referência a esta ossada nas páginas mencionadas, não vai encontrar nada. Na pág. 1-10, na correspondência de Efrém Ribeiro, encontramos apenas "quatro dentes, pedaços de ossos e vestígios de cinzas". Esta página abre com um chapéu significativo:

NAÇÃO INDÍGENA
Brasil não aceita ‘independência’ de índios
Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, em estudo na ONU, pode levar à criação de territórios autonômos

Da Sucursal de Brasília, escreve Denise Madueno:

"O governo brasileiro não vai acatar a declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, em estudo na ONU (Organização das Nações Unidas), que pode levar as reservas dos índios a se declararem territórios independentes. Segundo o Itamaraty, a autodeterminação dos povos não se aplica aos índios do país.

"O governo brasileiro espera contar com o apoio de todos os países da América Latina contra a proposta de independência que poderia levar à criação de uma nação livre na reserva ianomâmi, em Roraima, de 94 mil quilômetros quadrados.

"O governo brasileiro não reconhece o direito da criação de uma nação ianomâmi por dois motivos: a Constituição garante que as terras ocupadas pelos índios são de propriedade da União e os índios são cidadãos brasileiros.

"Do jeito que está a proposta aprovada pelos peritos da subcomissão de Minorias, a Declaração diz no artigo 24 que "os povos indígenas têm o direito coletivo e individual de possuir, controlar e usar suas terras e territórios".

Na mesma nota, o embaixador Henrique Valle, chefe do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty, mostra-se preocupado com o artigo mais polêmico da Declaração, o 3.o: "Os povos indígenas têm o direito à autodeterminação. Por virtude desse direito, eles podem determinar sua condição política e, livremente, buscar seu desenvolvimento econômico, social e cultural".

O correspondente Efrém Ribeiro nos conta que repórteres da Globo entrevistaram um "suposto garimpeiro":

Surge suposta nova
testemunha em RR

"Um suposto garimpeiro, que não quis dizer seu nome ou gravar entrevistas, procurou em Boa Vista (RR) os repórteres Sérgio Amaral, do SBT, e Luiz Carlos Braga, da rede Globo, para contar que testemunhou o massacre dos índios ianomâmis na região de Haximu. O delegado da Polícia Federal, Lacerda Carlos Jr., disse desconhecer a história.

"O suposto garimpeiro disse aos jornalistas que, há dois meses, um grupo de índios atacou os garimpeiros na reserva ianomâmi e, sem controle das armas que carregava, matou de sete a dez garimpeiros. Ele afirmou que os garimpeiros teriam matado os índios em represália a esse crime.

"Depois de matar os índios, os garimpeiros teriam jogado os corpos em uma vala, derrubando terra sobre eles. Para o suposto garimpeiro, a PF pode já ter passado pelo local onde estão os corpos sem perceber".

Ainda na mesma página,

ONG acha dez
sobreviventes

"O assistente de administração da organização não-governamental que cuida da saúde dos ianomâmis, a CPPY (Comissão pela Criação do Parque Yaonomami), Vicente Divino de Oliveira, informou ontem que foram encontrados dez sobreviventes do conflito que resultou no ferimento de dois ianomâmis (entre eles uma criança de sete anos) na maloca do Makos, na região de Haximu. O relatório não explica as circunstâncias do conflito e sua relação com o massacre dos índios em Haximu".

À direita,

Antropólogo critica Brasil

De Washington, o correspondente Carlos Eduardo Lins da Silva:

"O jornal The Washington Post, o mais influente dos EUA, publicou ontem no alto de sua página de artigos texto do antropólogo Terence Turner, da Universidade de Chicago, intitulado "A culpa do Brasil no massacre na Amazônia", no qual ele sugere que o governo dos EUA faça pressão sobre o brasileiro para que a lei de demarcação das reservas indígenas seja cumprida à risca".

Na mesma nota, lemos que o encarregado de negócios da Embaixada brasileira em Washington, ministro Maurício Cortes Costa se reúne com representantes de entidades ecológicas e de direitos humanos nos EUA. "Ao final da reunião, um militante da Liga do Movimento pela Soberania dos Índios do Ocidente, Benito torres, começou a gritar com o ministro brasileiro, que cumprimentava Fernando Alegretti, do Environmental Defense Fund, e Barbara Bramble, da National Wildlife Federation: "Tire esse sorriso da cara: Isso não é assunto para risos. Há indígenas presentes nesta sala. Os ianomâmis merecem a autodeterminação".

Duas páginas adiante, temos chapéu novo:

NA FRONTEIRA
Para Exército, massacre foi na Venezuela
Polícia Federal pede ajuda aos militares, que devem assumir comando das buscas; data é ponto conflitante

Uma arte nos dá

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O LOCAL PROVÁVEL DO MASSACRE
As malocas ianomâmis são itinerantes, mudam de lugar após alguns anos. As últimas coordenadas das malocas Haximu datam de 4 de abril de 88: a aldeia Whaxim-U-Thele (pop. 143) ficava nas coordenadas 2º31'30" norte e 63º38'00" oeste e a Whaxim-U-Thele (pop. 39) tinha coordenadas 2º31'30" norte e 63º41'00" oeste. As duas (Haximu 1 e 2) ficavam perto da fronteira. Não se sabe se elas ainda estão nos mesmos locais. Do lado venezuelano existem também muitas aldeias.

 

A precisão do responsável pela arte é notável. A aldeia Whaxim-U-Thele fica nas coordenadas 2º31'30" norte e 63º38'00" oeste. Já a aldeia Whaxim-U-Thele fica nas coordenadas 2º31'30" norte e 63º41'00" oeste.

Da Venezuela, informa o enviado especial Américo Martins:

"Na avaliação do Exército, o que houve na na região foi um conflito entre a Guarda Nacional da Venezuela e garimpeiros brasileiros que trabalhavam ilegalmente no país. Todas as operações teriam acontecido em território da Venezuela. Os venezuelanos não confirmaram oficialmente aos militares brasileiros esta versão".

Há mais vestígios do massacre:

"O coordenador da Operação Ianomâmi da Funai e coordenador das buscas de provas da chacina de índios ianomâmis, Wilk Célio da Silva, disse ontem em Boa Vista que foram encontrados mais dois vestígios de fogueiras. Na véspera, haviam sido encontrados oito. Ele disse acreditar que em cada fogueira tenha sido incinerada uma família de índios. Em volta das fogueiras foram encontrados ossos de costelas, clavículas e alguns com marcas de bala".

Mais abaixo,

CNBB defende a
versão ianomâmi

Diz a sucursal de Brasília da Folha:

"A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) acredita no depoimento dos índios sobreviventes do massacre ianomâmi. Para a entidade, eles são "confiáveis". Sua narrativa, segundo os bispos, são um fato jurídico suficiente para justificar a abertura de um processo. "Encontrando ou não ossadas há um fato jurídico, que é o depoimento dos índios sobreviventes. Eles são pessoas confiáveis, que não mentem", disse o vice-presidente da CNBB, d. Serafim Fernandes Araújo".

Já no pé da página,

Corrêa e Romão
divergem de novo

"O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, e o diretor da PF (Polícia Federal), coronel Wilson Romão, deixaram claras ontem as divergências que têm sobre a chacina. Os dois prestaram depoimento na comissão de Defesa Nacional da Câmara de Deputados. Corrêa afirmou que já existem elementos que indicam que houve um crime. Romão, seu subordinado, insistiu que, até a localização dos corpos, não há pistas para a polícia.

"Corrêa disse ter "subjetivamente" a convicção de que houve crime. Sua certeza, explicou, é resultado da viagem à região, quando viu cartuchos detonados, malocas queimadas e ouviu o depoimento do índio Antônio, que teria sobrevivido à chacina. "Por que não se investiga quem deu aqueles tiros, em vez de se fixar na busca dos corpos?", questionou Corrêa, referindo-se às orientações dadas à PF por Romão".

O coronel Romão, por sua vez, se pergunta: "Para quê dar tiro em panela, se a bala fosse para acertar homens?"

O Estado de 27 de agosto alerta na capa para problemas mais graves:

SAE recomenda ao governo
evitar o termo "genocídio"

"Relatório sigiloso da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), ao qual o Estado teve acesso, recomenda ao governo evitar que a chacina dos ianomâmis seja qualificada de "genocídio", para evitar reação externa".

Mancheteia o Estado, sob chapéu

RELAÇÕES EXTERNAS
SAE adverte sobre risco de represália
Para secretário, morte de
índios pode ser tipificada
nos crimes previstos na
Convenção de Haia

Do Planalto, informa Vanda Célia:

"Brasília — "A morte de um número ainda não determinado de índios ianomâmis, embora grave e merecedor de veemente condenação, não deve ser magnificado; deve-se, sobretudo, evitar que seja qualificado como genocídio ou crime contra a humanidade, crimes tipificados na Convenção de Haia e que podem ensejar ações de represália absolutamente inaceitáveis para o Brasil". Esta é uma das advertências mais graves de um documento sigiloso recebido pelo presidente Itamar Franco sobre o massacre dos índios na Amazônia. Preparado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), o documento, ao qual o Estado teve acesso, analisa o episódio em sintonia com o pensamento dos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Embora sem citar o nome do procurador-geral da República, Aristides Junqueira, o documento o atinge diretamente: foi ele quem declarou, antes de as investigações sobre o caso terem sido concluídas, que se tratava de um genocídio. Com esta qualificação, um militar de alta patente garante que o procurador precipitou-se, levando o País a correr o risco de ser submetido à Convenção de Haia.

"O documento da Secretaria de Assuntos Estratégicos é contundente na avaliação do que vem sendo divulgado a respeito do caso nos ianomâmis no País e no Exterior. "Não se limitam a criticar a políticia indigenista do governo federal, mas chegam a colocar em dúvida a própria capacidade de o Estado brasileiro exercer a sua soberania sobre a parte da Região Amazônica abrangida pelo Território Nacional".

Na mesma página, em sub, o deputado Fábio Feldmann (PSDB-SP), integrante da comissão externa criada na Câmara para investigar a chacina, diz ter ido à região e constatado que ocorreu algo grave, mas que não viu indício de massacre. "para mim, o procurador-geral Aristides Junqueira foi leviano e precipitado ao falar em genocídio".

Este deputado é o mesmo que, no dia 21 de agosto diz ao correspondente do Washington Post: "Receio que a única maneira desses assassinatos acabarem é com a destruição total dos ianomâmis". Feldmann ainda acusava, na ocasião, militares e políticos nacionalistas por criarem um clima de impunidade.

O Estado, via um repórter da TV Globo, consegue encontrar um dos assassinos, o "suposto garimpeiro" da Folha:

Surge nova versão sobre massacre dos ianomâmis

"BOA VISTA — Um homem que se apresentou como garimpeiro, ligou anteontem à noite paras o repórter Luiz Carlos Braga. da TV Globo, e disse estar arrependido por ter participado da chacina de Haximu. Ele contou uma nova versão para o caso. Sem se identificar, ele disse que tinha fugido para Manaus. "Não consigo dormir", contou. Ele disse ao repórter que chora toda a noite e que está arrependido. Ele contou que estava trabalhando numa pista de garimpo próxima à maloca Haximu quando os índios apareceram atirando. "Alguns homens morreram na hora", lembra. Em seguida, os garimpeiros conseguiram pegar suas armas e foram até a aldeia para se vingar. "Atiramos em tudo e em todos". "Não deixamos nada em pé".

"Ele afirmou que os garimpeiros — ele não soube informar quantos — pegaram os corpos e colocaram próximo a um barranco. "Pegamos uma mangueira e com um jato d’água conseguimos derrubar um barranco de cerca de dez metros de altura." Segundo eles, os índios foram soterrados no local".

O massacre começa a ser deslocado para a Venezuela, e a TV Globo nos apresenta um anônimo assassino da chacina de Haximu.

Resumindo:

* Quase duas semanas depois da ocorrência da chacina, que mobilizou o Conselho de Defesa Nacional, governo, Itamaraty, Ministério da Justiça, Procuradoria-Geral da República, imprensa e ONGs do mundo inteiro, a Polícia Federal de Roraima pede oficialmente colaboração ao Exército para encontrar alguma evidência do massacre.

* Em título de sub, a Folha informa que uma ONG achou dez sobreviventes. Como a página é dedicada ao massacre dos ianomâmis, é de supor-se que se tratem de sobreviventes da chacina. Em um discreto segundo parágrafo, Efrém Ribeiro diz que o relatório não explica as circunstâncias do conflito e sua relação com o massacre dos índios ianomâmis em Haximu.

* Um diplomata brasileiro em Washington se deixa humilhar em público por um ativista dos direitos indígenas, ao dar recibo de um massacre que até agora ninguém sabe onde nem quando nem como ocorreu.

* A CNBB diz defender a versão ianomâmi. Em verdade, não há uma versão ianomâmi, mas uma versão da Funai. Mais precisamente, uma versão do antropólogo francês Bruce Albert.

* Enquanto a Funai cata ossos de costelas junto a fogueiras, a CNBB já antecipa que ossadas não são necessárias para caracterizar um fato jurídico: há o depoimento dos sobreviventes. Índios não mentem.

* O ministro da Justiça, "subjetivamente" convicto de que houve crime, dispensa corpos: quer saber quem atirou nas panelas.

* O ministro da Justiça, o procurador-geral da República e o presidente da Funai atestam genocídio, ONGs do mundo todo denunciam o genocídio à imprensa internacional e à ONU e só então, uma semana depois da eclosão da denúncia nos jornais, a Secretária de Assuntos Estratégicos (SAE) recomenda ao governo não falar em genocídio.

* a SAE, endossando o pensamento do Exército, Marinha e Aeronáutica, ao recomendar que se evite o termo genocídio, confirma um massacre do qual até agora não se tem evidência alguma.


 

 

Quatro dentes confirmam massacre

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O Estado traz em primeira página, no dia 28 de agosto, em foto em quatro colunas, as provas do massacre que a Funai brandia desde o dia anterior. O texto-legenda é cauteloso:

Buscas

Wilk Fernandes, da Funai, mostra dentes encontrados em restos de fogueira em Homoxi: polícia procura provas do massacre.

Em manchete, novas evidências:

Ianomâmis fugitivos
confirmam massacre

"A Funai localizou mais 14 ianomâmis sobreviventes da chacina de Roraima. Quatro deles, entre os quais duas meninas, têm ferimentos feitos por arma de fogo. O índios contam que fugiram do local do massacre levando alguns mortos, que foram cremados pelo caminho".

Em página interna, prossegue a

INVESTIGAÇÃO

Localizados mais 14 sobreviventes da chacina
Médico da Funai e
antropólogo afirmam
que os índios pertenciam
à maloca Haximu

De Roraima, informa João Domingos:

"BOA VISTA — mais 14 sobreviventes da chacina de Haximu, em Roraima, foram encontrados, totalizando agora 17 o número de índios ianomâmis que escaparam do massacre. Os 14 sobreviventes estão no posto da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Tootobi e na maloca Makos, ambos no Estado do Amazonas, na parte sul da Reserva Ianomâmi. Eles percorreram cerca de 80 quilômetros na selva, atravessaram o território venezuelano e chegaram à área de Tootobi. Os outros três — Antônio, Xapão e Lhulhu — estão em Homoxi, Roraima".

Os sobreviventes são atendidos no posto da Funai pelo médico Cláudio Esteves de Oliveira, assessorado pelo antropólogo francês Bruce Albert, "especialista em questões ianomâmis". O médico trabalha para a Comissão para a Criação do Parque Ianomâmi (CCPY).

"De acordo com o que já foi apurado pela CCPY, os índios fugiram do massacre há cerca de 20 dias. Eles relataram que, na fuga, transportaram corpos de mortos e foram queimando-os, pelo caminho. Isto coincide com as informações da Funai, de que há uma trilha de Haximu para a Venezuela, na qual foram encontradas oito fogueiras, possivelmente feitas para cremar corpos de familiares mortos. Como existem mais duas fogueiras num tapiri (barraquinho) onde teria ocorrido o massacre, as contas da Funai somam dez pontos de cremação".

O subcoordenador da Funai em Roraima, Wilk Célio Fernandes da Silva, "acha que os corpos da vítimas não serão encontrados. Para Wilk, o sumiço dos corpos já pode ser explicado pelas dez fogueiras encontradas nas proximidades de Haximu até a fronteira. Nestas fogueiras foram achadas clavículas e costelas com marcas de balas, cabelos e vestígios de ossos humanos. Segundo Wilk, são restos de corpos cremados, tradição entre os ianomâmis, que não enterram seus mortos, mas guardam suas cinzas e depois as comem, para adquirir a sabedoria dos velhos".

Começamos a nos aproximar da tese defendida em Paris pelo antropólogo Bruce Albert, Temps de sang, temps de cendres. Em uma foto de Wilson Pedrosa, em três colunas, quatro índios perfilados apontam os indicadores para um pedaço de chão:

Guerreiros mostram local da fogueira que deve ter sido usado para cremar corpo de ianomâmi

Dos Estados Unidos, Paulo Francis se mostra cauto:

Imprensa dos Estados Unidos
faz campanha contra Brasil

"NOVA YORK — O governo Clinton parece decidido a só negociar bilateralmente com o Brasil mediante garantias e segurança para os ianomâmis. É um governo moralista. Suspendeu US$ 1 bilhão de exportações à Chia, porque ela teria vendido material material nuclear ao Paquistão.

"A campanha contra o Brasil é geral na mídia dos Estados Unidos. O mais influente é o New York Times. A parte várias reportagens do correspondente James Brooke, anteontem o Times publicou na página de opinião um artigo do antropólogo Spencer Tuner, responsabilizando diretamente o governo brasileiro pelo massacre suposto de 73 ianomâmis. Suposto porque não se encontraram os cadáveres".

Sônia Nolasco, também dos Estados Unidos:

Boutros-Ghali
afirma estar
consternado

"NOVA YORK — O secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, recebeu ontem uma comitiva de representantes dos ianomâmis a quem se confessou consternado com o recente massacre dos índios. Pela primeira vez na história da ONU, um secretário-geral dirigiu suas condolências por escrito a uma nação indígena. Zeze Weis, diretora da Amanakáa Amazon Network, organização ambientalista pela defesa da floresta e dos índios, entregou a Boutros-Ghali uma carta de protesto semelhante a que enviou ao presidente Itamar Franco, expressando sua indignação pela chacina e pedindo a punição dos culpados".

Logo abaixo,

Presidente da Funai faz anúncio de
demissão a assessores mas recua

De Brasília, Antonio Marcello diz que Cláudio Romero, o presidente da Funai, "está sofrendo violentas críticas por ter anunciado, sem provas, a chacina dos ianomâmis. Além disso, teria informado, antes, organizações estrangeiras e, só depois, o governo".

Mas o Estado continua apostando no massacre:

Repórter do ‘Estado’ relata busca em Haximu

O mesmo fotógrafo Pedrosa que assina a foto de ianomâmis apontando um pedaço de chão, traveste-se de repórter:

"Na maloca de Haximu não há mais nada. A cerca de 40 minutos de caminhada, e onde foi aberta a picada para o pouso do helicóptero, fica um conjunto de oito barraquinhas conhecidas como tapiris, onde os índios dizem que ocorreu o maior ataque. O cheiro é de coisa podre. Neste local estão duas fogueiras, grandes, de cerca de um metro quadrado cada uma.

"Andando-se mais uns 40 minutos, acha-se a próxima fogueira. Depois, mais sete. Não seguimos adiante porque os índios disseram que já estávamos na fronteira com a Venezuela. Na primeira das fogueiras há uma clavícula perfurada a bala e uma costela. Também existem muitos cabelos pelo chão. Nas outras fogueiras não vi ossos, mas alguns dentes. Os índios enfiavam pedaços de pau pelo chão lamacento e apareciam cabelos.

"Pude observar que os quatro índios que nos serviram de guia fechavam a cara quando nos aproximávamos de uma fogueira. Os agentes da Funai disseram que eles se portam assim quando estão próximos dos mortos. Se os índios viam cabelos ou vestígios que, segundo a Funai, eram de ossos, ficavam agitados, fazendo gestos e falando na língua ianomâmi".

A Folha da mesma data — 28 de agosto — registra

NOVOS INDÍCIOS
Polícia encontra mais ossos na floresta
PF recolhe ossos perfurados junto a fogueiras; sinais reforçam depoimento de um dos sobreviventes

Diz o enviado especial à Floresta Amazônica, Américo Martins:

"Os indícios materiais encontrados na Floresta Amazônica indicam que os índios ianomâmis foram mesmo massacrados. A Folha esteve ontem em dois locais onde os índios construíram tapiris (acampamentos provisórios), nas proximidades da fronteira com a Venezuela.

"Nos primeiros tapiris, que teriam sido usados pelos ianomâmis quando fugiam dos garimpeiros, foram encontradas duas costelas e uma omoplata: os ossos estão perfurados, provavelmente por tiros. Eles estão juntos a duas fogueiras de cerca de um metro de diâmetro cada, que foram montadas dentro de um tapiri, sinal de que foram feitas para cremar corpos.

"A cerca de 20 minutos de caminhada desses primeiros tapiris, estão outros pedaços de ossos. Alguns têm a aparência de dentes humanos. Esses fragmentos ainda não foram analisados pelos peritos da Polícia Federal, que ainda não foram à área.

"Os sinais confirmam o depoimento que o índio Antônio, sobrevivente do massacre, deu à Polícia Federal. Segundo ele, os garimpeiros atacaram duas vezes os índios nos tapiris. Alguns dias depois, sobreviventes voltaram ao local para cremar os corpos".

No pé da reportagem, o repórter explica porque ainda não chegaram lá as autoridades que deveriam investigar a chacina: "Para fazer os acampamentos, os ianomâmis abrem pequenas clareiras na mata. No segundo local, o dos três tapiris, a clareira é muito menor. Os dois pontos são ligados por um pequeno caminho, feito pelos próprios índios. Para chegar ao ponto onde os dentes foram localizados, é necessário subir um morro, margear um igarapé e avançar por alguns lugares onde não há nenhum sinal de trilha. Tudo isso dificultou a operação de busca da PF e da Funai".

Foto com crédito de Ormuzd Alves/Folha Imagem mostra

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Restos de ossos próximos a tapiris montados pelos índios

 

Abaixo, temos foto com crédito de Luiz Carlos Murauskas / Folha Imagem, onde

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CULTO PROTESTA CONTRA MASSACRE
Atores do grupo Fábrica do Sonho encenam o massacre dos ianomâmis em frente à Catedral da Sé, em culto ecumênico que reuniu 3.000 pessoas ontem, segundo os organizadores. A PM não avaliou o número de pessoas.

 

* No relato do sertanista Bezerra de Lima, os homens haviam sido mortos com tiros, e as mulheres e crianças com facão. Temos agora duas meninas com ferimentos feitos por arma de fogo.

* O fotógrafo Pedrosa não se pergunta como cabelos — matéria bem mais combustível que carne ou ossos — possam ter sobrado após uma incineração. Tampouco se interroga como possa ter sido acesa uma fogueira em terreno lamacento.

* Jornalista algum se interrogou até este momento quanto de energia e tempo é necessário para cremar um cadáver. Tivesse algum redator a precaução de consultar uma enciclopédia, veria que nos crematórios modernos utiliza-se um forno especial alimentado por petróleo refinado ou gás. A temperatura atinge cerca de 1.360 graus centígrados e após duas horas o corpo é reduzido a fragmentos de ossos que pesam de 0,9 a 1,8 quilos. Nas cerimônias fúnebres na Índia, os corpos são queimados em piras e uma família precisa ter algum dinheiro para pagar a lenha que alimentará o fogo. Em uma fogueira rápida em uma floresta úmida, o máximo que se consegue fazer é churrasco.


 

 

Ombudsman vê mistério na aldeia

 

No dia 29 de agosto, o ombudsman da Folha, Mario Vitor Santos põe um pé atrás. Sob o título

Mistério na aldeia

superpõe uma série de manchetes e se mostra cauteloso:

"Dez dias depois de que a notícia veio a público através da Funai, o país ainda sabe ao certo o que aconteceu na aldeia Haximu, dos ianomâmis. A imprensa e o governo não conseguiram levantar evidências a respeito da extensão do massacre, de seus autores e motivações.

"Aparecem ossadas, restos de fogueiras, cinzas, mas ainda há dúvidas por todo lado. Sabe-se que alguma coisa, provavelmente grave, ocorreu, mas não se tem idéia do quê. As testemunhas, ianomâmis, dão depoimentos que soam contraditórios, quando conseguem ser entendidas pelo homem branco. O número de vítimas já foi avaliado sucessivamente em 19, 40 e 70, embora ainda haja quem duvide de que tenha havido sequer um morto".

Ao final do artigo, o ombudsman aventa uma séria razão para a ocorrência do massacre:

"Alguns dias depois da adesão inicial, o noticiário passou a se ocupar mais dos aspectos duvidosos do caso. A atitude inicial mais ousada seria a cautela, a de apresentar a confirmação das versões antes de corroborar o que o governo divulgava. Mas quem, sob o risco de ser furado pela concorrência, tem peito de ser cauteloso numa hora dessas?"


 

 

Três pseudo-sobreviventes

 

Neste dia 30 de agosto, o Estado, em primeira página, praticamente repete manchete da Folha do dia 26 anterior:

Índios podem ter sido
mortos na Venezuela

"A Polícia Federal acredita na hipótese de o massacre dos ianomâmis ter ocorrido em território venezuelano. A informação de que garimpeiros brasileiros mataram 18 índios na Venezuela foi dada pelo antropólogo Bruce Albert ao delegado Raimundo Cotrim, que preside o inquérito sobre o caso. A versão foi confirmada por índios no Amazonas. "Agora, a questão da fronteira deve ser analisada pela comissão demarcadora de limites Brasil-Venezuela".

Na reportagem, a indefectível foto de mãe e criança ianomâmi, a mãe quase desaparece, temos apenas criança sugando um mamilo. O texto-legenda endossa a nova hipótese:

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Mãe e criança ianomâmi: população da fronteira é desconhecida

 

De Boa Vista, segundo o correspondente Maurício Uchoa, o delegado Lacerda Carlos Júnior, assistente no inquérito, declara que "o fato de o antropólogo ter reafirmado no depoimento essa versão já provoca um impasse na apuração: "Agora, a questão da fronteira deverá ser analisada pela comissão demarcadora de limites Brasil-Venezuela", afirma. Se ficar provado que os tapiris onde teria ocorrido o massacre ficam na Venezuela, a Polícia Federal será obrigada a parar com as investigações no local. "Vamos continuar com o inquérito, pois temos informações de que a chacina foi cometida por brasileiros, mas não podemos trabalhar em território venezuelano".

Ou seja: 11 dias após a primeira denúncia da chacina, a PF começa a suspeitar que não ocorreu no Brasil. O próprio Uchoa nos diz que

Depoimento é contestado

"BOA VISTA — Antonio Ianomami, Xapão e Lhulhu, os três índios que relataram aos policiais federais que escaparam do ataque dos garimpeiros em Haximu, passaram agora à condição de pseudo-sobreviventes. foi com base no depoimento desses três índios que a Funai havia estimado em 73 o número de mortos. No entanto, o antropólogo Bruce Albert concluiu em seu relatório que os três ficaram sabendo da chacina por outros índios, quando ianomâmis de várias malocas se reuniram, nas imediações dos tapiris para ir a uma festa. "Se eles fossem mesmo sobreviventes, não teriam ficado em Homoxi, local muito próximo dos tapiris, onde os índios foram atacados", comenta Albert.

"Segundo o relatório do antropólogo, os índios estavam nos tapiris quando os homens guerreiros resolveram sair. Mulheres, crianças e velhos ficaram. Os garimpeiros apareceram e mataram 13 pessoas. Outros cinco índios haviam sido mortos. Os índios haviam matado um garimpeiro, acusado de ter roubado uma espingarda da maloca Haximu.

"Quando o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, visitou a região há duas semanas, Antonio se agachou no local da chacina e começou a chorar. A cena impressionou o ministro e o procurador-geral da República, Aristides Junqueira. Com a ajuda do sertanista e intérprete Francisco Bezerra de Lima ele contou aos policiais sua versão. Existe a possibilidade de o depoimento de Antonio não ter validade se realmente ficar provado que ele não presenciou o ataque".

Na Folha do mesmo dia,

Laudo de ossada comprova
assassinato na aldeia Haximu

Exame do IML de Brasília é a primeira prova concreta da PF

Da sucursal de Brasília, informa Liliana Lavoratti:

"O exame de uma ossada indígena feita pelo IML (Instituto Médico legal) de Brasília comprova que houve assassinato na aldeia Haximu, em Roraima, há 40 dias, no máximo. O laudo do exame, que será divulgado amanhã, é a primeira prova concreta que ajudará a Polícia Federal a esclarecer se houve ou não a chacina na reserva ianomâmi.

"A perícia mostra que uma índia ianomâmi, com idade entre 18 e 22 anos, foi morta com dois tiros de espingarda cano duplo — arma de caça — segundo o chefe do Departamento de Antropologia Forense do IML de Brasília, Eduardo Reis, 42. "Não há dúvidas que a morte ocorreu a menos de 40 dias e que se tratava de uma indígena, afirmou Reis à Folha". Página seguinte,

Ianomâmi quer Exército defendendo ambiente

O líder Davi Kopenawa diz, em entrevista exclusiva, que garimpeiros invadem reservas por falta de emprego

De Boa Vista, o correspondente Efrém Ribeiro entrevista Kopenawa, que pensa candidatar-se a deputado federal nas eleições de 1994 e "está escrevendo, com o antropólogo Bruce Albert, um livro contando sua biografia e os costumes e crenças religiosas de sua tribo".

O mesmo Davi Kopenawa, que na Folha do dia 24 afirmava que os garimpeiros haviam jogados os corpos no rio, tem agora uma versão mais compatível com a tese de seu biógrafo Bruce Albert, Temps de sang, temps de cendres:

"É preciso procurar mais coisas, mas temos muitas provas. Achamos muitas fogueiras, carvão, com muitos ossos. Muitos pedacinhos, porque o calor do fogo destrói, quebra os ossos. Muitas pessoas podem ter sido incineradas. Foram encontradas muitas cinzas de ossos socados (em trouxas de folhas de bananeiras)".

Os culpados são evidentemente os garimpeiros:

"Os garimpeiros estão sendo pagos para matar índios, para criar problemas, por isso são perigosos. Os garimpeiros estão sempre rindo. Os ianomâmis estão chorando".

* 11 dias após a notícia do suposto massacre, já denunciado na imprensa internacional e na ONU, a PF consegue determinar que a ossada encontrada pertence a uma indígena. Ocorre que um cadáver só não constitui chacina. Fora os indícios de que a morte ocorreu por arma de fogo, não se tem mais evidência alguma sobre as circunstâncias ou autoria do assassinato.

* Haximu continua sendo em Roraima, território brasileiro.

* Davi Kopenawa quer candidatar-se a deputado.

* O antropólogo Bruce Albert, autor de Tempo de Sangue, Tempo de Cinzas, escreve a biografia de Kopenawa.


 

 

Ministro invadiu Venezuela

 

Na primeira página, a Folha de 31 de agosto confirma:

Massacre ianomâmi
ocorreu na Venezuela

"O Exército e a PF concluíram que a chacina ianomâmi ocorreu na Venezuela, informam de Boa Vista (RR) Américo Martins e Efrém Ribeiro. No fim-de-semana, dois oficiais militares e agentes federais foram à maloca Haximu, local do massacre, e usaram aparelhos para determinar as coordenadas geográficas. Ontem, o delegado Lacerda Carlos Jr., disse que o confronto entre garimpeiros e índios aconteceu a 15 quilômetros da fronteira em território venezuelano, como a Folha antecipou quinta-feira".

Na reportagem de página interna, uma arte situa desta vez Haximu na Venezuela. O delegado Lacerda Carlos Jr., diz ainda que os tapiris ficam dentro da Venezuela: "os agente federais não podem operar na área sob pena de violar a soberania da Venezuela".

O chefe do Departamento de Demarcação da Funai, Luíz Antônio Sberze, admite a possibilidade de erro. "Segundo ele, A Funai trabalha baseada em folhas cartográficas feitas pelo IBGE. "Mas a região, de fronteira seca, é muito difícil de ser delimitada pois não há acidentes geográficos claros, como rios ou montanhas, e a selva é muito fechada". O presidente da Funai, Cláudio Romero, não quis se pronunciar oficialmente sobre a informação de que a maloca de Haximu fica na Venezuela".

O que gera um problema. Se Haximu não fica no Brasil, o ministro da Justiça Maurício Corrêa invadiu a Venezuela. Não é de espantar, portanto, o título em sub:

Itamaraty contesta localização feita pela PF

"O Itamaraty não reconhece competência na PF (Polícia Federal) e no Exército para definir a fronteira do Brasil com a Venezuela e a localização da morte dos índios ianomâmis como tendo ocorrido em território venezuelano. O Itamaraty mostrou surpresa ao receber a notícia da existência do laudo do Exército e da PF definindo a fronteira".

Ou seja, Polícia Federal e Exército só agora — 12 dias após a denúncia dos jornais — ficam sabendo onde passa a linha divisória entre Brasil e Venezuela. Linha que a diplomacia brasileira, em um desejo ardente de que o "massacre" tenha ocorrido no Brasil, não reconhece. Se reconhecer, terá de concluir que o ministro Maurício Corrêa, com seu olho de junta-cadáveres, sequer sabia em que país estava quando "achou" uma ossada numa aldeia queimada há meses, "prova" evidente do recente genocídio.

O Estado coincide com a manchete da Folha. Segundo Marcos Uchôa,

Para PF, massacre ocorreu na Venezuela
Permanece a contradição
sobre o número de
mortos entre a Polícia
Federal e a Funai

O "principal concorrente" coincide com o noticiado pela Folha. Mas João Domingos, da capital federal, começa a desenrolar o novelo:

Autoridades criam confusão

"Brasília — Foi o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, quem iniciou a confusão sobre o número de índios ianomâmis que teriam sido mortos em Haximu. Logo depois de visitar a maloca incendiada, Aristides recebeu a informação de sua assessoria em Brasília, segundo a qual 73 índios haviam sido assassinados.

"Para chegar aos 73 mortos, a Funai baseou-se no trabalho nada científico do sertanista Francisco Bezerra da Silva. Este trabalho consistiu numa entrevista de cerca de quatro horas com as testemunhas Chapão e Antônio. Bezerra indagava a eles os homens dos homens, perguntava se haviam sido mortos, se tinham mulheres, filhas e filhos, e assim foi montando uma lista. Também foi deste modo que Bezerra, um dos poucos a falar a língua ianomâmi, concluiu que três mulheres mortas eram gestantes, daí a divulgação da morte de três fetos.

"O presidente da Funai, Cláudio Romero, que é cabo eleitoral do ministro da Justiça, Maurício Corrêa, insistiu na existência de 73 mortos e chegou a insinuar para os políticos de Roraima que o Estado havia acabado. Maurício Corrêa, para não desmenti-lo, preferiu não falar em números, mas insistiu na tese da chacina e no extermínio de toda a comunidade que morava nas malocas de Haximu e Simão".


 

 

De 120 a 16 mortos

 

A Veja de 01 de setembro põe em dúvidas o número de mortos, não sem aventar as últimas cifras da semana. O título é um recuo:

POUCA LUZ NA SELVA
Os sinais da tragédia
indicam que o número de mortos
foi menor que o anunciado

"Dez dias depois das denúncia do massacre de ianomâmis por um grupo de garimpeiros, a única conclusão possível é a seguinte: houve uma chacina de índios, mas não se sabe quantos, onde, nem o que aconteceu com os corpos. Na sexta-feira retrasada, o sertanista Francisco Bezerra ouviu outros relatos e chegou a um número ainda mais assombroso — 120. É pouco provável. Na noite de sexta-feira, a maioria dos missionários, antropólogos e funcionários da Funai convencera-se de que esse número não chegava a vinte".

É curioso, para dizer o mínimo, o "relato plausível" do ianomâmi Simão ao antropólogo — segundo a Veja, francês — Bruce Albert: disse que de dois meses para cá ianomâmis e garimpeiros vinham acumulando um "passivo de confrontos sangrentos". Temos então um indígena que só sabe contar "um, dois e muitos" com a noção de passivo, conceito da área da contabilidade.

No Estado da mesma data,

Funai culpa índios por confusão nos números
Para assessor da
entidade, ianomâmis
passaram nomes de
índios vivos

Um olho nos diz

Última
versão diz
que mortos
são 16

O pé da reportagem é mais interessante que o lead:

"O engenheiro agrônomo Ari Weiduschat, administrador interido da Fundação Nacional de Saúde (SNS) — sic! —, em Boa Vista, denunciou ontem que a Funai sabia desde 10 de março que as malocas de Haximu pertenciam à Venezuela. Segundo ele, naquele dia a médica da Funai no posto Surucucu, Maria Aparecida da Silva, recebeu solicitação do chefe do posto da entidade em Homoxi, Rocildo Fidélis, para prestar um atendimento de emergência em Haximu. Um helicóptero da FAB foi acionado e levou a médica, o chefe do posto do posto da Funai e um índio da maloca de Haximu que estava em Homoxi pedindo auxílio. O piloto disse que não podia mais prosseguir, pois Haximu pertencia à Venezuela. O agente da Funai, Wilk Célio, afirma que não foi comunicado pelos dois funcionários da entidade, que estão em férias. "É estranho, pois até onde sei Haximu pertence ao Brasil".

"O delegado Raimundo Soares Cotrim, presidente do inquérito que apura a chacina não acionou a Comissão Demarcadora de Limites para fazer levantamento em Haximu. As informação (sic!) serão centralizadas em Brasília até que se comprove a localização de Haximu.

Melhor ainda, só a sub:

Itamaraty quer
verificação das
fronteiras

"BRASÍLIA — O Itamaraty esclareceu ontem que a região onde ocorreu o massacre dos índios ianomâmis, em Haximu, continuará sendo considerada área brasileira, até que seja provado o contrário".

A Folha apresenta mais uma

NOVA VERSÃO
Venezuela teve envolvimento na chacina
Segundo o líder garimpeiro José Altino, Guarda Nacional venezuelana forneceu armas para os ianomâmis

Segundo José Altino, ocorreram "dois enfrentamentos entre índios e garimpeiros, ambos na Venezuela. No primeiro, na última semana de junho, os ianomâmis teriam matado dois garimpeiros, um deles conhecido por Fininho. João Neto, que explorava garimpo, foi ferido no ombro e voltou para Boa Vista".

O crime está definitivamente transferido para a Venezuela. Mas continuam faltando cadáveres, tanto de índios como de garimpeiros. Quanto aos corpos dos primeiros, já temos indícios:

Cabaças com restos mortais vão servir de prova

Fala Efrém Ribeiro, enviado especial a Toototobi (AM):

"A Polícia Federal e a Procuradoria da República em Roraima fotografaram as 14 cabaças onde os ianomâmis sobreviventes da chacina em Haximu guardaram as cinzas dos mortos durante o massacre. As cabaças foram fotografadas por intermédio do líder dos índios, Davi Kopenawa, para servir como prova do crime.

"O presidente do inquérito que investiga chacina, delegado Raimundo Soares Cutrim, disse que as cabaças não foram retiradas da maloca do Makos, onde os índios se refugiaram após o conflito com garimpeiros porque para os ianomâmis as cinzas de seus parentes são "sagradas".

Uma arte em 30 itens detalha as circunstâncias do massacre.

Perguntas e respostas sobre o massacre, segundo os ianomâmis

* Nesta data, a Polícia Federal, a Procuradoria e o Itamaraty ainda estão tentando determinar se o massacre ocorreu no Brasil ou na Venezuela. Aristides Junqueira continua falando em genocídio, mas nega ter dito que os mortos eram 73.

* Veja ainda insiste em uma chacina, mas não sabe quantos, nem como, nem onde. Ora, sem saber quantos, nem como, nem onde, é no mínimo uma permissão literária falar em chacina.

* Mesmo desconfiando do número aventado por Bezerra — 120 — a revista atribui a nova estimativa — menos de vinte — à "maioria dos missionários, antropólogos e funcionários da Funai", baseando-se em uma espécie de plebiscito para decidir qual o número de mortos na chacina onde não se encontrou cadáver algum — fora uma ossada de data incerta — nem se sabe se ocorreu — se tivesse ocorrido — no Brasil ou na Venezuela.

* Um piloto de helicóptero sabe que Haximu pertence à Venezuela. Polícia Federal, Funai e Itamaraty ainda se perguntam onde fica.

* Há dois garimpeiros mortos. Garimpeiros não cremam corpos. Mas não temos notícia alguma destes corpos.


 

 

Genocídio de Itararé

 

A imprensa, que já vinha manifestando ceticismo quanto ao massacre, se torna mais incisiva. Em editorial intitulado "Confusão Armada", no dia 02 de setembro, o Estado se pergunta:

"Para tornar ainda mais complicada a situação, como não se podem apresentar os cadáveres — porque os índios costumam cremá-los para guardar as cinzas —, e como não se podem trazer para exame as cinzas porque são sagradas, um setor do governo brasileiro está disposto a fazer valer como prova do genocídio as fotografias de urnas em que estão guardadas as cinzas. Ora, como depois de afirmar-se que "índio não mente", reconhece-se hoje que as primeiras informações foram dadas não por sobreviventes do massacre, mas por índios que dele ouviram falar, as cinzas serão tomadas como sendo dos índios massacrados porque assim foi dito por índios".

Para o editorialista, "não há terceira opção: houve massacre ou não? Ocorreu no Brasil ou na Venezuela? (...) Se se comprovar, oficialmente, que a maloca está em território brasileiro, o descrédito atingirá quem fez os relatórios do Exército e da Polícia Federal, além do piloto da FAB que não quis descer em Haximu por saber que voava sobre a Venezuela, olhando os rios que sobrevoava. Se o massacre ocorreu em território venezuelano, o ridículo será atroz — afinal, durante algumas semanas, decidiu-se aplicar a lei a fatos criminosos ocorridos em país vizinho".

A Folha, através de um colaborador, o acadêmico Candido Mendes, já fala em

O genocídio de Itararé

Pela primeira vez alguém questiona a competência tecnológica dos indígenas para cremar corpos. O estilo de Mendes é empolado e usa palavras normalmente banidas do "estilo Folha":

"O que depararam os augustos personagens de Brasília, neste porte e nesta evidência, é tão mitológico pois quanto a Batalha de Itararé. Da dizimação tão formidanda sobraria, por certo, alguma cartilagem fresca, fio de cabelo, quem sabe unhas ou algum pedaço de carne, que a competência dos ritos fúnebres dos ianomâmis não é, afinal, a de fornos crematórios".


 

 

Itamar investiga país estrangeiro

 

Dia 03 de setembro, o noticiário sobre o massacre começa a diminuir. O Estado anuncia:

Cláudio Romero é
demitido da Funai

"BRASÍLIA — O presidente da Funai, Cláudio Romero, já está demitido pelo presidente Itamar Franco. O anúncio foi feito ontem pelo porta-voz da Presidência, Francisco Baker. A demissão de Romero estava prevista desde sexta-feira".

Mesmo demitindo o funcionário que provocou o imbroglio internacional,

Itamar quer apuração,
mesmo na Venezuela

Também da capital federal, informa Diana Fernandes:

"BRASÍLIA — O presidente Itamar Franco garantiu ao senador venezuelano, Rafael Caldera, que o governo brasileiro deverá assumir as investigações para apurar a responsabilidade criminal pela morte dos índios ianomâmis, mesmo que a matança tenha ocorrido na Venezuela. "Ele prometeu que os culpados, se for confirmado que são brasileiros, serão julgados e punidos", disse ontem o senador, o mais forte candidato às eleições presidenciais de dezembro em seu país, ao encerrar visita ao Brasil".

Ou seja: o presidente brasileiro demite quem denunciou o massacre e ao mesmo tempo assegura a um senador venezeluano que o massacre será apurado. Mais ainda, diz que apurará o massacre mesmo se tiver ocorrido na Venezuela.

O embaixador venezuelano, apesar da afirmação pessoal de que um governo estrangeiro vai investigar um crime na Venezuela, não manifesta espanto algum por esta violação de soberania. Pelo contrário, manifesta satisfação com a promessa de Itamar.


 

 

Que bom que foi na Venezuela

 

Em crônica para o Estado de 04 de setembro, a escritora Raquel de Queiroz respira aliviada:

Será que isto nunca vai acabar?

"Não é bonito a gente se vangloriar, mas parece que acertei ao duvidar da localização e da autoria da chacina dos ianomâmis. Agora já se sabe que os índios foram mortos na Venezuela — onde ficava a aldeia destruída; assim, os índios massacrados seriam venezuelanos, não brasileiros e os garimpeiros assassinos também seriam do lado de lá. Que alívio, meu Deus! Os venezuelanos que se defendam agora e castiguem os criminosos — se os apanharem, claro!"

O Estado abre a primeira página com manchete de seis colunas:

Presos cinco suspeitos da chacina

Um foto de quatro colunas já avança um ianomâmi com uma cabaça:

Luto
Waitheri (esq.) chora o genro morto: vôos rasantes de helicópteros e aviões venezuelanos assustam ianomâmis

A foto, para primeira página, é enorme e forte. Só que nada tem a ver com o título, que discretamente se refere ao massacre, este real, das favela de Vigário Geral, no Rio. Além disso, waitheri, como nos ensinava Marcelo Leite, na Folha, não é nome mas a pedra angular dos valores ianomâmis, "que designa o vigor físico, capacidade de suportar a dor e revidar ataques".


 

 

Cabaças e cinzas sagradas

 

Dia 07 de setembro, no Estado, temos novas providências da Polícia:

PF pede prisão de quatro garimpeiros
Polícia tem os nomes,
mas ainda não sabe onde
estão os acusados pela
morte dos 16 ianomâmis

No pé da notícia, diz um intertítulo:

"Fronteira — O Itamaraty informou que nos próximos dias a Comissão Mista Brasileiro-Venezuelana Demarcadora de Limites estará realizando a verificação em conjunto na região limítrofe entre os dois países".

Uma foto de vários índios com potes em punho, sem referência alguma no texto, fornece as provas definitivas do massacre:

[imagem]

Sobreviventes mostram cabaças com cinzas dos mortos: relatório não fala dos motivos do crime

 

A Polícia Federal solicita a prisão de outros quatro garimpeiros pela morte dos 16 ianomâmis cujos cadáveres ainda não foram encontrados. A foto dos índios com cabaças atesta o massacre. Dentro das cabaças estariam as cinzas. Há uma novidade: o que antes era Comissão Demarcadora de Limites, como informava o Estado do dia 01 de setembro, agora é Comissão Mista Brasileiro-Venezuelana Demarcadora de Limites.

A Folha, na coluna "Contraponto", traz uma revelação interessante. Quando o ministro Maurício Corrêa chega em Homoxi, Cláudio Romero, então presidente da Funai, aconselha o ministro a informar-se com o líder ianomâmi Davi Kopenawa:

" — Você sabe quantos índios morreram? — pergunta Corrêa.

"Sei.

"Quantos?

"— Foram 19 — respondeu Davi, com precisão e rapidez que deixaram todos impressionados.

"Como você chegou a este número? — quis saber o ministro.

"Davi foi ainda mais ágil:

"Ouvi na Rádio Nacional."


 

 

PF indicia 23 garimpeiros

 

A dança dos números desta criação coletiva, fruto da imaginação conjugada de antropólogos e jornalistas, o desencontro dos relatos, as versões cambiantes do massacre, as atitudes desconexas do governo, Funai, Polícia Federal e Procuradoria — Geral da República, poderiam ser desenroladas ad nauseam, e isto apenas nos dois jornais investigados.

Melhor não pecar pelo excesso. Mas quando tudo parecia estar resolvido, afinal o massacre — se é que ocorreu — foi na Venezuela, no dia 02 de outubro noticia o Estado:

23 garimpeiros são
indiciados por chacina

Polícia Federal
classifica como crime de
genocídio a matança dos
16 índios em agosto

"Em relatório enviado ontem à Justiça Federal em Roraima, a Polícia Federal como crime de genocídio a matança de 16 índios ianomâmis em agosto, e pede a prisão preventiva de 23 garimpeiros responsáveis pelo assassinato. De acordo com as investigações do delegado Raimundo Soares Cutrim, que presidiu o inquérito que apurou o massacre, os garimpeiros tiveram a intenção de exterminar todos os índios das malocas Haximu e Tapiris, localizadas na Venezuela.

"As investigações da PF indicam que a causa do extermínio foi a promessa não cumprida de um garimpeiro de dar uma rede a um dos índios. Pela lei, os acusados de genocídio são punidos pela soma das penas previstas por homicídio simples (artigo 121) e lesão corporal (artigo 129) e podem levar a uma punição de até 21 anos de prisão.

"Em 41 páginas, o documento relata o horror da chacina, com base nos depoimentos de índios sobreviventes. O delegado aponta 15 garimpeiros como responsáveis diretos pela tragédia, os outros sete deram cobertura aos garimpeiros. As mortes dos 16 ianomâmis não aconteceram juntas. Quatro índios foram mortos em junho, todos do sexo masculino, e em agosto, em novo conflito, foram mortos outros 12 índios, entre homens, mulheres e crianças. Ao indiciar os 23 garimpeiros por crime de genocídio, o delegado afirma que eles só não exterminaram todos os moradores das duas aldeias, porque a maior parte dos índios tinha saído em dois grupos, um para uma festa na maloca do Simão, e outro para colher ingás, uma fruta da floresta".

Ora, no dia 21 de agosto, o procurador Aurélio Rios afirmava, na Folha, que o crime de genocídio é do tipo que exige a comprovação de sua materialidade. E que o assassinato de seis ianomâmis no final de julho não resultou em abertura de inquérito porque os corpos não foram encontrados.

No dia 25 de agosto, o delegado da PF Lacerda Carlos Júnior, declarava ao Estado que não havia condições de declarar se houve um massacre. Mais ainda: se as provas materiais não aparecessem, "não temos condições de encaminhar as investigações da maneira que estamos fazendo".

Como chegou a Polícia Federal à conclusão de que 23 garimpeiros mataram 16 ianomâmis no mês de agosto? É simples. Basta voltarmos à Folha do dia 29 de agosto, pág. 1-19: "O delegado da PF (Polícia Federal) em Roraima, Raimundo Soares Cutrim, recebeu ontem da entidade de saúde não-governamental CPPY (Comissão pela Criação do Parque Yanomâmi) o nome de 23 garimpeiros brasileiros acusados pela chacina dos índios ianomâmis em Roraima. Cutrim disse que os garimpeiros são identificados por seus colegas por apelidos. Os nomes são importantes para chegar aos envolvidos no episódio. O diretor da Funai, Dinarte de Madeiro, disse que os nomes foram fornecidos pelos sobreviventes da chacina que tiveram contato com o posto de saúde da CPPY em Toototobi, onde quatro ianomâmis foram atentidos com marcas de balas. Os tiros teriam sido disparados pelos garimpeiros durante o conflito".

Mais adiante, no dia 25 de outubro, será a Procuradoria da República em Roraima — através dos procuradores Carlos Frederico Santos, Franklin Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maia — que encaminhará à Policia Federal a denúncia contra 24 acusados de um massacre que, ao que tudo indica, não ocorreu. Se ocorreu, dele não se tem prova alguma. Quando testemunhas de segunda mão, jornalistas, policiais, procuradores e antropólogos já decidiram que os ianomâmis incineraram seus mortos, os garimpeiros são denunciados desde genocídio e associação para genocídio até crimes de contrabando e ocultação de cadáver, conforme noticia o Estado do dia 26 de outubro. Entre a versão da Funai, as famosas cinzas da tese defendida em Paris por Bruce Albert, e a da Procuradoria, a ocultação de cadáveres, há uma contradição irremediável.

Não bastasse isto, na edição de 23 de novembro, o Estado noticia:

Comissão da Câmara conclui que houve genocídio

"A Comissão Externa da Câmara dos Deputados, encarregada de averiguar o massacre dos ianomâmis, concluiu que houve crime de genocídio praticado por garimpeiros brasileiros, em território venezuelano".

O documenta se baseia no denúncia do Ministério Público e reitera as acusações de genocídio, associação para genocídio, crime de lavra garimpeira, contrabando, ocultação de cadáveres, dano material e formação de quadrilha.

Sem falar que:

* A Polícia Federal brasileira está investigando um crime ocorrido na Venezuela, como o próprio relatório admite.

* Situa o crime na maloca de Tapiris. Lessem jornais seus agentes, descobririam que tapiris não é nome de maloca.

* Após negar repetidas vezes de que não havia provas da chacina e que sem provas materiais não pode se fazer inquérito, a PF agora admite a morte de 16 ianomâmis, cujos corpos jamais foram vistos ou encontrados.

* Enquadra na legislação brasileira um crime ocorrido em outro país.

* Ainda não há um único cadáver para comprovar o massacre, mas já temos 23 assassinos.

* O indiciamento dos 23 garimpeiros é feita não por investigação da Polícia Federal, mas a partir dos dados fornecidos pela Comissão pela Criação do Parque Yanomâmi (CCPY), que ouviram o relato dos sobreviventes do massacre, que por sua vez o teriam ouvido de outros sobreviventes.

* Segundo o indigenista Francisco Bezerra de Lima, que trabalha com os ianomâmis — há 20, 25 ou 33 anos, conforme a fonte — é impossível avaliar o número de garimpeiros: os índios não sabem contar e falam em um, dois e muitos.

* Segundo o delegado Lacerda Carlos Júnior, se ficar provado que o massacre ocorreu na Venezuela, a PF será obrigada a parar com as investigações no local, "sob pena de violar a soberania da Venezuela". Não só não parou, como também não investigou. Mesmo assim, indiciou.

* O índio Antônio teria ouvido falar do massacre, sem presenciá-lo pessoalmente. O antropólogo francês Bruce Albert ouve três pseudo-sobreviventes e a PF brasileira se escora em seu depoimento para declarar genocídio a suposta matança de 16 ianomâmis em território venezuelano.


 

 

A vida imita a tese

 

Dois meses depois do massacre — ou quatro ou mais, conforme as versões — sem um único cadáver em punho, recorre-se ao testemunho do antropólogo Bruce Albert, para dar um fecho de ouro à affaire:

Exclusivo
A HISTÓRIA
SECRETA DO
MASSACRE
O antropólogo Bruce Albert,
que vive há 18 anos com
os ianomâmis, conta como foi a
morte dos índios de Haximu

O caderno MAIS!, da Folha de 03 de outubro, nos promete na capa elucidar de uma vez por todas o episódio. É significativo observar uma pequena mudança no selo da matéria: as palavras "massacre ianomâmi", superpostas à efígie de um índio, desapareceram.

Antropólogo revela os detalhes
da chacina dos índios ianomâmis

Quem vai nos explicar o caso é o antropólogo Bruce Albert, "com as credenciais de conviver há 18 anos com os ianomâmis e de ter servido de intérprete e assessor antropológico da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República no inquérito sobre a chacina".

Como o faz seguidamente, a Folha explica, em box

Quem é
Bruce Albert

"Bruce Albert, 41, trabalha com os ianomâmis há 18 anos. Fala fluentemente a língua indígena. Defendeu sua tese de doutorado, "Temps du Sang, Temps des Cendres" (833 págs.) na Universidade de Paris, em Nanterre".

A afirmação de que Albert fala fluentemente a língua indígena é arriscada. Para se saber que alguém fala fluentemente uma língua indígena, é preciso conhecê-la muito bem, o que não é o caso de nenhum redator ou repórter que cobriu o caso.

O título é sugestivamente aliterativo: sang, cendres. Mais uma vez a vida imita a arte: sangue e cinzas. O olhar premonitório do antropólogo, que está elaborando a biografia de Davi Kopenawa — que quer se candidatar a deputado federal em 1994 — antecipou a chacina. "Houve muita imprudência com os números", dizia Bruce Albert, ao Estado, no dia 24 de agosto. "Não vejo a possibilidade de terem morrido mais de 70 índios na região", declarou então. Agora, desmentindo inclusive seu biografado, que ouviu falar de 19 na Rádio Nacional, reduz para 16 o número de mortos, e divide o massacre em dois anos.

Em duas longas páginas, ilustradas por fotos de ianomâmis, panelas furadas e pedaços de ossos inidentificáveis, o antropólogo narra detalhes rocambolescos da chacina que não viu. Há um grupo de seis índios que chega a um barracão de garimpeiros com um bilhete, expedido por outros garimpeiros. "Faça bom proveito desses otários". Onde está esta peça — ainda que ínfima — de convicção? Também virou cinzas: a cozinheira que recebeu os índios a jogou no fogo.

Há um índio que sai da fila para defecar e entrega sua espingarda aos companheiros, há garimpeiros que atiram à queima-roupa com espingardas de dois canos, um ianomâmi que se joga ao rio Orinoco, há corpos enterrados e desenterrados, garimpeiros mortos e feridos e, evidentemente, os corpos cremados e as cabaças com cinzas, lacradas com cera de abelha.

Bruce Albert tem então a ocasião de utilizar sua tese, defendida na universidade de Nanterre, Paris:

"Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos.

"A destruição dos pertences dos mortos, obliteração de seus nomes pessoais e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários dos ianomâmis têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos "nas costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos. Para que isto aconteça, é necessário que estes comemorem os seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias mortuárias.

"É por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos, assombrando os vivos com uma interminável melancolia pior que a própria morte.

"Os 69 sobreviventes de Haximu, refugiados na maloca do Marcos, tentam agora reconstruir a vida, com planos de abrir novas roças e construir novas casas. entretanto, nos próximos meses, e durante uma boa parte do próximo ano, sua existência estará voltada à organização dos funerais de seus parentes mortos na chacina, e de vários outros que morreram recentemente recentemente por malária contraída dos garimpeiros.

"O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças, "como espíritos comedores de gente". Os guerreiros de Haximu afirmam que desistiram de se vingar dos garimpeiros. Poderiam até fazê-lo quando ainda pensavam que esses brancos eram seres humanos com senso de honra. Agora duvidam. Os garimpeiros não são sequer dignos de ser considerados inimigos. Só esperam que os assassinos sejam "trancados" pelos outros brancos para nunca mais voltar às suas terras".

O fecho de ouro do soneto bem poderia terminar com aquele C.Q.D. — Como Queríamos Demonstrar — que dava um nó de tope nas demonstrações de teoremas na escola dos anos 60. Não há cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. As cinzas não podem ser examinadas porque serão destruídas em ritos funerários. E os assassinos — ou seja, os garimpeiros em geral — devem ser impedidos de entrar em "território ianomâmi", aquele Portugal inteiro entregue a dez mil índios por força de pressões internacionais. É o que se deduz do depoimento inconsistente — e sem um vestígio sequer de prova material — do protochanceler ianomâmi Bruce Albert.


 

 

Deus é grande; a Funai é maior

 

Comentando a "chacina" dos ianomâmis, disse o historiador brizolista Muniz Bandeira: "Esses acontecimentos nos deixam cada vez mais próximos da aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas pela ONU". Trocando em miúdos: mais alguns anos e teremos um chanceler ianomâmi e — por que não? — os "capacetes azuis" das forças de paz das Nações Unidas patrulhando um território entregue de mãos beijadas às ONGs.

Nestes dias de acordos de paz entre Israel e a OLP, ocorre lembrar que árabes ou judeus estão batendo em portas erradas quando pedem terras a Alá ou Javé. Deuses do deserto, ambos são avaros na concessão de territórios, e quando os concedem os situam em meio à areia e canícula. Pedissem terras à Funai, seriam mais generosamente servidos. Se Deus é grande, a Funai é maior.

Onde estão as pernas, braços, cabeças cortadas e fetos arrancados de ventres de mulheres grávidas, denunciados à agência Ansa por Aristides Junqueira? Por mais perversos que sejam os garimpeiros — e por que o seriam? — quem tem estômago para cortar pernas, braços, cabeças e arrancar fetos de seres humanos? Desde quando facão faz zing e zong? Onde estão os 19, 40, 73, 89, 120 e finalmente 16 cadáveres dos chacinados? Onde estão os três corpos encontrados inicialmente pela PF e Funai? Que é feito do cheiro de morte aspirado pelo repórter de Veja?

Por que 62 ashaninkas, massacrados pelo Sendero Luminoso, não comovem a imprensa nacional e internacional? Onde está a mãe ashaninka, a criança ashaninka, o ancião ashaninka? Quando será denunciado pelas ONGs, à ONU e à Corte de Haia, o massacre dos índios peruanos? Por que não se fala em massacre quando índios trucidam dezenas de brancos? Por que Raoni é recebido com honras de artista e chefe de Estado na Europa, após ter liderado um massacre de operários?

Por que foi demitido o presidente da Funai pelo presidente da República por ter denunciado o massacre, quando Itamar confirma — urbi et orbi — a ocorrência do massacre? Por que foi mantido o ministro da Justiça, que atesta genocídio a partir das declarações que custaram a cabeça do presidente da Funai? Desde quando a Polícia Federal brasileira investiga crimes na Venezuela?

Desde quando um crime cometido em país estrangeiro é tipificado pela legislação brasileira? Qual legislação julgará os 23 — ou 24 — garimpeiros denunciados pela PF brasileira por um crime que — se ocorreu — foi em território estrangeiro? Desde quando fotos de cabaças que conteriam cinzas dentro constituiram provas para qualquer tribunal?

Como é possível cremar cadáveres — que em fornos modernos exigem 1360 graus durante duas horas, deixando resíduos de dois quilos de ossos misturados com restos de carne, em fogueiras rápidas no solo úmido de uma floresta tropical?

Há algum índio na prisão pelo assassinato dos 62 funcionários da Funai? Foi algum indígena condenado pelos 30 brancos mortos nos massacres de 1980? Em que prisão está quem perfurou com flechas o peito e o fígado do sertanista Gilberto Pinto?

A "chacina ianomâmi" nos remete a Scoop — A novel about journalists, de Evelyn Waugh. A sátira se refere ao correspondente de guerra John Courteney Bout, do The Beast, importante jornal londrino, que vai cobrir acontecimentos em Laku, no obscuro país africano de Ismaélia. Laku, que consta de todos os mapas da Ismaélia, ficamos sabendo depois, não existe. Um diplomata inglês explica ao jornalista:

"Veja, dê uma olhada nisso aqui — retirou um mapa da estante e abriu-o. — Veja este lugar, Laku. Está marcado como uma cidade de uns cinco mil habitantes, a 80 km de Jacksonsburg. Pois bem, este lugar jamais existiu. Laku é uma palavra ismaelita que significa "não sei". Quando a comissão de fronteiras tentou passar, em 1898, na direção do Sudão, acamparam na área e perguntaram o nome da colina a um dos ajudantes nativos, para fazer o registro competente no diário da expedição. A resposta, "Laku", tem sido passada de um mapa para outro desde então. Como o presidente Jackson gosta que o país pareça importante no Atlas, Laku foi marcado nesta edição com um grande ponto. Os franceses nomearam um cônsul para Laku, quando seus interesses cresciam nesta região do planeta".

Waugh nos oferece outra pérola, atualíssima nestes dias de ex-Iugoslávia. Diz Corker, correspondente de uma agência internacional qualquer:

"— Escute essa: numa ocasião Jakes foi cobrir uma revolução numa das capitais dos Bálcãs. Dormiu demais em sua cabine, acordou na estação errada, não se deu conta de qualquer diferença, desceu, foi diretamente para o hotel e mandou por telégrafo cinco laudas sobre barricadas nas ruas, igrejas em chamas, metralhadoras que respondiam ao matraquear de sua máquina enquanto datilografava, uma criança que jazia morta, com uma boneca destroçada, braços e pernas abertas no meio da rua deserta, ao pé da janela, você me entende.

— Bom, na redação todos ficaram um tanto surpresos ao receber uma matéria como aquela do país errado, mas confiavam plenamente em Jakes e publicaram sua matéria com destaque em seis jornais do país. Nesse mesmo dia todos os enviados especiais na Europa foram mandados às pressas para cobrir a nova revolução. Eram bandos enormes que chegavam. Aparentemente tudo estava calmo, mas dizer isso equivalia a perder seus empregos, com Jakes enviando cinco laudas diárias de sangue e violência. De modo que preferiam fazer coro com Jakes. As letras do Tesouro caíram de preço, houve pânico no mercado financeiro, foi declarado estado de emergência e as Forças Armadas foram postas de prontidão, fome, revoltas, e assim, menos de uma semana depois, havia uma autêntica revolução em curso no país, exatamente como dissera Jakes. Ainda duvida do poder da imprensa?"

Na ficção de Waugh, Jakes, por suas pungentes descrições da carnificina, recebe o prêmio Nobel da Paz.


 

 

Ex-Brasil

 

A citação de Eça no início desta pesquisa não é mero adorno erudito. Com a premonição inerente ao gênio, mesmo sem abordar a questão indígena, o luso viu, há mais de século, um Brasil partido em cacos. Prova disto — que juristas, militares e jornalistas parecem não ter percebido — é que já existem no Brasil legislações distintas para índios e brancos. Índio pode matar, estuprar, devastar a floresta, exportar mogno. Se branco faz o mesmo, é criminoso. O caso já citado do cacique caiapó Paulinho Paiakan é exemplar.

Um juiz de Belo Horizonte condenou, em julho de 1993, um escriturário a seis anos de prisão, por crime de abuso sexual. Uma pena assim pesada parece indicar um atentado pedófilo, sedução de menores, estupro ou coisa do gênero. Nada disso. O que ocorreu foi apenas uma tentativa de bolina. O escriturário fora acusado pela vítima, uma secretária de 20 anos, de ter-lhe passado a mão nos seios e pernas.

Sem cumplicidade da bolinada, o gesto nada tem de elegante. Se feito à revelia, é profundamente ofensivo, e alguma punição há de merecer. O juiz que condenou o escriturário considerou crime hediondo sua desastrada tentativa de aproximação física. E tascou no despreocupado bolinador nada menos que seis anos de xadrez, o que sequer dá direito a sursis ao acusado. Por ter passado a mão nos glúteos de uma mulher, o escriturário foi condenado a fazer pós-grad em delinquência, nestas instituições que formam criminosos de alto nível, as prisões brasileiras. Após seis anos de universidade, o escriturário não mais cometerá este gesto idiota de passar a mão em uma mulher. Mais cauto, lhe encostará um punhal na garganta. Melhor matá-la depois do ato. Pois matar não é crime hediondo. Sendo o criminoso primário, pode responder processo em liberdade.

Considerar bolina crime hediondo é equipará-la a estupro, violência física penalizada universalmente, até mesmo no Brasil, exceto quando cometida por indígenas. Paulinho Paiakan, o cacique caiapó, saudado pela imprensa americana como o "homem que pode salvar a humanidade", estuprou uma menina com a cumplicidade de sua mulher e permanece livre como um passarinho em seu feudo. Paulinho — são simpáticos os diminutivos! — inclusive avisou: se fosse condenado, não sairia de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação. E pensávamos que limpeza étnica era estratégia de sérvios. Condenado, Paulinho continua em sua reserva, como prometeu, e pode virar herói da cinematografia nacional.

Na época do estupro, uma ordem de prisão foi emitida contra o rousseauniano guru estuprador. O comandante da Polícia Militar paraense, coronel Cleto Fonseca, recusou-se a enviar tropas à reserva caiapó, no sul do Pará, para cumprir o mandato de prisão contra o líder dos adoradores americanos do bon sauvage tupiniquim. Área indígena é território onde a PM não tem competência para atuar, disse o comandante à Folha de São Paulo. "Se ele sair de lá nós o prenderemos".

Quando o réu é um silvícola, particularmente se for estrela das ONGs, ordem judicial vira piada. Não se cumpre e estamos conversados. A desobediência à magistratura rolou por um mês e o Tribunal de Justiça do Pará acabou revogando o pedido de prisão. Paiakan não precisa comparecer a tribunal algum de brancos. Atualmente condenado a seis anos de prisão, continua livre. É índio, pode estuprar à vontade e está dispensado daquele dever elementar de qualquer cidadão brasileiro, o de comparecer a um tribunal quando convocado pela lei. O episódio merece algumas reflexões.

O grave em tudo isto não é propriamente o estupro, crime comum capitulado no Código Penal. Temos agora um cidadão brasileiro — ou a que país pertencerá Paiakan? — com carisma de salvador da humanidade, que diz com todas as letras que não aceita a lei do país em que vive. Quando gaúcho ou paranaense fala em constituir um Estado autônomo, não falta quem fale em desagregação nacional.

No entanto, autoridade alguma condenou esta rebelião civil da "nação" caiapó. Não temos notícias de que o Ministério do Exército tenha se preocupado com estes senhores que, com todas as letras, negam os sistemas legislativo e judiciário nacionais. A Polícia Militar do Pará já avisa que não tem competência para atuar em área indígena. Quem então a terá para lá entrar e cumprir uma ordem de prisão? Por onde andam as feministas, tão aguerridas em denunciar o assédio sexual e tão complacentes quando um "cidadão dos povos da selva" enfia as mãos na vagina de uma menina?

Gaúcho fala em autonomia e é logo definido como nazista. O que ninguém manifesta — ou prefere não manifestar — é que o Brasil já está separado. Collor de Mello, por um punhado de linhas na mídia internacional, entregou três Bélgicas a dez mil ianomamis, autóctones que, apesar de milênios de existência, sequer conseguiram escapar de uma cultura ágrafa. Naquele território, branco não bota mais os pés, a não ser se for para levar os suados tributos cobrados de quem trabalha. Índio não trabalha nem produz. Só devasta e posa para postal.

A "nação" caiapó, que já faturou dez milhões de dólares nos últimos dez anos exportando madeira de mogno para a Europa, não só não aceita o sistema judiciário nacional, como ainda alberga e protege o estuprador. Considera-se em Direito que acobertar criminoso também constitui crime. Exceto no país caiapó, onde as leis são outras e estupro não é crime. Para Paiakan, "a vida é um combate, que aos fracos abate, e aos fortes e bravos só pode exaltar". Paiakan não se esconde. Estupra e estamos conversados. Vive em lugar certo e sabido, consciente de que autoridade alguma jamais ousará prendê-lo.

Quando o sertanista Gilberto Pinto foi trucidado pelos waimiris-atroaris em 1974, descobriu-se que até então os índios haviam matado nada menos que 62 funcionários da Funai. Toda vez que ocorria uma chacina, a Funai oferecia novos presentes aos índios. Em declaração ao Estado de São Paulo, disse um major-engenheiro do Sexto Batalhão de Engenharia: "o índio passa a acreditar que o mal que ele praticou é um bem para os brancos. E volta a praticar novas chacinas, novos assaltos".

Em 1980 foram massacrados pelo menos trinta peões pelos índios, em duas chacinas distintas, uma delas no Parque Nacional do Xingu, liderada pelo cacique txucarramãe Raoni. Na ocasião, Raoni exibiu nos jornais a borduna que "ajudou a matar 11 peões de uma fazenda". Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indigena. Raoni se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares.

Não bastasse o sucesso do vernissage de Raoni, a empresa K-Way Internacional lançou uma linha de roupas com a grife Raoni e encomendou ao "novo artista um trabalho que ele jamais ousara: transpor para o papel as pinturas corporais de sua tribo, as pinturas geométricas que mulheres e homens ostentam, como uma imensa tatuagem, quando participam das cerimônias de purificação, quando a temporada de caça começa, ou quando precisam espantar para longe os maus espíritos".

O patrono de Raoni neste périplo pelo Ocidente foi Sting, que criou em 1989 a Rainforest Foundation e levantou 1,5 milhão de dólares para a demarcação da tribo dos caiapós, no sul do Pará. Raoni na verdade é txucarramãe, mas seus belfos e seu apelo rousseauniano serviam para comover o "colonizador" branco. Em abril de 93, em entrevista à Veja, o roqueiro inglês dá um passo atrás. Se para o ministro Maurício Corrêa índio não mente, o mesmo já não pensa Sting:

"Os índios tentam enganar você o tempo todo e podem ser muito frustantes. Eles vêem os brancos mais como uma fonte de recursos do que como amigos. Eu era muito ingênuo. Estou deixando para trás os meus dias de selva".

No caso da "chacina" dos ianomâmis, em várias versões há a morte de um ou mais garimpeiros pelos índios. Nenhum inquérito, nenhuma investigação foi feita sobre este fato que — tendo ou não ocorrido, foi aventado inclusive por Bruce Albert — em qualquer legislação de país civilizado, constituí crime. Organização alguma de direitos humanos manifesta qualquer preocupação pela sorte de pobres diabos que largando família, mulher e filhos vão cavoucar ouro na selva. Ouro que não é roubado dos índios. Os bens do subsolo pertencem — ou pertenciam — à União.

Nas comemorações do Dia do Soldado, em 25 de agosto de 1993, o ministro do Exército, general Zenildo de Lucena, destacou o papel desempenhado pelas Forças Armadas na defesa da integridade territorial do país. Disse o general que o soldado brasileiro, "desde os limites setentrionais e ocidentais da Amazônia até as pequenas localidades do interior e as grandes metrópoles, cumpre a indelegável missão de proporcionar segurança pela presença, garantindo a unidade, a coesão e a integridade territorial da nação". O general parece ter esquecido que, se o Exército zela pela integridade territorial do país, quem define suas fronteiras não é o Exército, mas a vontade política — ou falta de vontade política — do governo constituído.

Na imprensa internacional, há muito se fala em uma autoridade supranacional para proteger a Amazônia. A edição brasileira da revista Geografia, em edição de 1993, já falava na capa do "país ianomâmi". Os jornais, não só do Brasil como do mundo todo, estão publicando fotos de mães ianomâmis e crianças ianomâmis, sinais premonitórios de independência à vista. Como vimos, antes da separação da Eslovênia da ex-Iugoslávia, os jornais foram inundados de mães eslovenas, crianças eslovenas, anciões eslovenos. Com a Croácia ocorreu o mesmo, fomos fartamente servidos de mães croatas, meninos croatas, anciões croatas. Idem com a Bósnia. Talvez a Tchetcheno-Ingushétia, em sua tentativa de independência, seja poupada do lugar comum. Pois se é possível conceber uma mãe bósnia, uma menina bósnia, um ancião bósnio, já é mais complicado — até mesmo por uma questão de espaço para titulação — entender uma mãe tchetcheno-ingushétia, um menino tchecheno-ingushétio, um ancião da Tchetcheno-Ingushétia.

Comentando a criação desta entidade supranacional, tanto o general Zenildo de Lucena como o ministro do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), almirante Arnaldo Leite Pereira, rechaçaram o debate sobre o assunto. "Isto não existe", disse o Lucena. "É inaceitável", disse Leite Pereira. "Seria ferir a nossa soberania e isso nós não admitimos, da mesma forma que nenhum outro país admitiria". Quando um roqueiro inglês veio ao Brasil determinar as fronteiras da "nação" ianomâmi, nossos militares permaneceram silentes. Agora, depois do fato consumado, quando elas existem e lá branco não entra, os militares rugem em defesa da integridade do país.

O comandante interino da 1a. Brigada de Infantaria de Selva, coronel João Paulo Saboya Burnier, já citado, diz que a reserva dos ianomâmis representa uma ameaça à integridade do território nacional. "Tenho certeza absoluta. Há a possibilidade da criação de uma nação indígena, em uma área do território nacional e outra de território venezuelano. Ora, uma nação não sobrevive dentro do território de outra. Isso ameaça nossa integridade".

Ocorre que o Brasil está há muito separado. Um cidadão brasileiro pode perambular por Santiago do Chile, Buenos Aires, Paris ou Nova York, mas está proibido de entrar naquele território equivalente a um Portugal que foi entregue a dez mil ianomâmis. E ninguém sabe se são dez mil. No último censo, foi impossível recenseá-los, por uma simples razão: eles não queriam ser contados. Ou seja, o poder federal já não pode ser exercido naquela área. Numa época em que as fronteiras externas tendem a cair na Europa, no Brasil são criadas fronteiras internas.

A revista Time deu com precisão espantosa o número de indígenas que existiam no Brasil no ano de 1500, quando aqui chegou Cabral: cinco milhões. Os portugueses deveriam ter um serviço de recenseamento de uma eficácia fantástica, pois cinco séculos depois não se sabe se os ianomâmis são de fato dez mil.

Prova de que já existe uma república autônoma ianomâmi, é que nem mesmo um diplomata canadense conseguiu lá entrar, mesmo portando um passaporte diplomático que lhe permite viajar não só pelo Brasil como pelo mundo todo. Se um funcionário daquele poderoso país — que dobrou o Congresso nacional fazendo nossos representantes aprovar uma lei para libertar dois sequestradores canadenses condenados pelo Judiciário — não consegue entrar naquela nova nação, que esperança pode ter de por lá viajar um mero cidadão brasileiro, que sequer tem a garantia de punição de terroristas internacionais que sequestram seus conterrâneos ou de índios que massacram operários? Enquanto nossos militares começam a preocupar-se pela integridade nacional, há mais de século Eça de Queiroz já escrevera seu epitáfio.

As noções de distância de uma pessoa, pelo menos antes da era informática, correspondiam ao território em que habitava. Para um brasileiro, ir de Lisboa a Estocolmo não constitui exatamente uma longa viagem, afinal é como dar um pulo de Porto Alegre a Manaus. O mesmo não passa pela cabeça de um nicaragüense, por exemplo, ao qual parecerá uma aventura ir de Paris a Amsterdã. Esta amplitude mental geográfica, os brasileiros já podem começar a deixá-la de lado. Aquele mapa que a escola nos fixa na mente não mais existe.

Nestes dias de ex-URSS, ex-Iugoslávia, ex-Tchecoslováquia, o ex-Brasil é apenas uma questão de tempo. O país já está separado. Só nos resta optar por uma fórmula para dar andamento ao processo: vamos nos separar à la tchecoslovaca ou tentar o método iugoslavo?


 

 

Violência ianomâmi

 

Mesmo que cadáver algum tenha sido encontrado, resta no ar a hipótese — vaga e que não legitima ação judicial alguma, muito menos denúncia de massacre ou genocídio — de que algumas mortes tenham ocorrido. Antes de atribuí-las a garimpeiros, a Polícia Federal e a Funai fariam melhor ter lido Yanomamö, do antropólogo americano Napoleon Chagnon, que estuda o problema há 30 anos e viveu 60 meses em aldeias ianomâmis na Venezuela, precisamente o país onde teria ocorrido a "chacina".

Em seu ensaio, onde estuda grupos ianomâmis na Venezuela, Chagnon descreve um povo primitivo que faz a guerra para obter as mulheres do inimigo morto. Seu estudo em nada fecha com as imagens idílicas da fotógrafa Claudia Andujar. Falando de sua experiência junto ao grupo do ianomâmi Kaobawa, diz o antropólogo:

"Entre os mais significativos resultados de minha análise estão os seguintes fatos, que demonstram a natureza e a extensão da violência entre o povo de Kaobawa dentro de uma perspectiva regional:

"1. Aproximadamente 40% dos machos adultos participaram do assassinato de outro ianomâmi. A maioria destes (60%) matou só uma pessoa, mas alguns homens foram muitas vezes guerreiros bem-sucedidos e participaram do assassinato de mais de 16 outras pessoas.

"2. Aproximadamente 25% de todas as mortes entre machos adultos são devidas à violência.

"3. Aproximadamente dois terços das pessoas de 40 ou mais anos perdeu, devido à violência, pelo menos um dos seguintes tipos de parentes biologicamente próximos: pai, irmão ou filho. A maioria deles (57%) perdeu dois ou mais parentes próximos. Isto ajuda a explicar porque um grande número de indivíduos são motivados à vingança.

"A mais insólita e impressionante descoberta, que foi discutida e debatida na imprensa e nos jornais acadêmicos, é a relação entre o sucesso militar e o sucesso reprodutivo entre os ianomâmis. Unokais (homens que mataram) têm mais sucesso em obter esposas e, conseqüentemente, têm maior descendência que os homens de sua própria idade que não são unokais.

"A explicação mais plausível para esta relação parece ser que os unokais são socialmente recompensados e têm mais prestígio que os outros homens e, por estas razões, são geralmente mais aptos a obter esposas-extras através das quais têm número de filhos além da média".

Chagnon nos mostra um agrupamento de indivíduos no qual a violência física, o assassinato e mesmo o infanticídio fazem parte do cotidiano. A criança não desejada é morta após o parto. As mulheres são continuamente espancadas e mesmo cortadas com facões e machados e inclusive recebem flechadas em áreas não vitais, como as nádegas ou pernas. Isso quando não são assassinadas. O autor nos narra o diálogo entre duas mulheres, que discutem suas cicatrizes no couro cabeludo. Uma considera que o marido da outra deve gostar muito dela, já que a espanca tão freqüentemente.

Os ataques a aldeias vizinhas para matar um ou mais habitantes e raptar mulheres constituem práticas normais para os guerreiros. No decorrer do livro de Chagnon, temos um desfile de assassinatos e massacres de índios por índios, narrados ao autor com a naturalidade de quem faz uma crônica social da oca.

No dia 11 de dezembro de 1993, a Funai divulgou uma lista de 11 índios assassinados na aldeia Gaviãozinho, no Amazonas. Não se teve notícia de cadáver algum. De qualquer forma, não havia garimpeiros incrimináveis por perto. O massacre — se houve — teria ocorrido entre índios. Tal chacina não serve para divulgação internacional. Índio pode matar à vontade, faz parte de suas tradições. E o assunto morreu em dois ou três dias.

Nas reportagens sobre a "chacina ianomâmi" que inundaram os jornais, invariavelmente os garimpeiros foram jogados no rol dos vilões, a tal ponto que a palavra garimpeiro foi associada a criminoso, "esquartejadores de mulheres e crianças, espíritos comedores de gente". No lado do Bem permaneceram os inocentes ianomâmis, que a Igreja, a Funai e as ONGs querem preservar congelados no tempo, em uma espécie de zoológico para contemplação dos homens dos séculos vindouros.

Esta é a superfície do debate. No fundo, está a disputa pela Amazônia, território que o Brasil não soube ocupar e hoje, se não reagir às pretensões européias e americanas — e se ainda for tempo hábil para reagir — pode dá-lo como território perdido.


 

 

Existem ianomâmis no Brasil?

 

Dia 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta, de Boa Vista, Roraima, fechou com chave de ouro a ficção alimentada durante três anos pela imprensa: condenou a vinte anos de prisão cinco garimpeiros, por genocídio praticado contra ianomâmis em 93. Dois garimpeiros responderam o processo em liberdade e três à revelia.

Cadáveres, nenhum. Mas o juiz Catta Preta não tem dúvidas de que houve o massacre. Como prova do crime, aceitou laudos de antropólogos sobre os hábitos culturais dos ianomâmis — a história das cinzas, formulada por Bruce Albert —, além do depoimento de sobreviventes. “Pelos depoimentos colhidos, não tenho dúvida de que pelo menos doze índios foram mortos”.

Se morreram na Venezuela, para Catta Preta tanto faz. Segundo ele, o código penal prevê que o genocídio, quando praticado por brasileiros, fica sujeito à lei brasileira. Seria interessante sabermos o que pensam disto os venezuelanos.

Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Os garimpeiros foram condenados por um crime que não houve. Pior ainda, pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Naquele dia, em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país.

A imprensa registrou alguns sinais de violência na aldeia venezuelana onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura que jamais foi contemplada por qualquer código penal.

A ficção da fotógrafa — Se o antropólogo Napoleon Chagnon constatou a existência de uma tribo de ianomâmis na Venezuela, a extensão desta etnia a territórios brasileiros está longe de ser uma evidência. O blefe do massacre de ianomâmis em 93 repousa sobre um blefe anterior, ou seja, a existência de uma tribo ianomâmi no Brasil. Quem faz esta denúncia é o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, em “A Farsa Ianomâmi” (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D’Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome”.

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas “terras imemoriais”. Imemoriais desde quando? Desde há duas décadas?

O cerne do problema não é a preservação do índio e suas tradições. Nas últimas discussões sobre a questão no Brasil, geralmente omite-se um item, nada menos que o essencial: os protochanceleres da suposta nação ianomâmi reivindicam para seus protegidos um território de subsolo riquíssimo em ouro, diamantes, nióbio e cassiterita. Nenhuma ONG se preocuparia tão enfaticamente com as culturas dos miskitos na Nicarágua ou dos ashaninkas no Peru.

Para o coronel Menna Barreto, nada melhor que o idioma para definir a linhagem e contar a história dos grupos humanos. Em suas primeiras missões na região, encontrou os maiongongues — classificados no grupo Caribe — e os xirianás, uaicás e macus, falando línguas isoladas. Como os primeiros exploradores e cientistas estrangeiros, jamais ouviu falar de ianomâmis.

“É preciso ficar claro antes de tudo que os índios supostamente encontrados por Claudia Andujar são os mesmos de quando estive lá, em 1969, 1970 e 1971. Pode ser que, seduzidos com promessas, tenham concordado em renegar o próprio nome, deixando de ser os valentes que sempre foram, para se prestarem agora a esse triste papel. Ou, quem sabe, podem ter sido convencidos a vestir o apelido de “ianomâmis” por cima dos antigos nomes, numa forma de fantasia menos nociva aos valores e tradições indígenas... Entretanto, não é de se duvidar que, para cúmulo do desprezo pelos antropólogos nacionais, nada tenha sido feito para disfarçar a mentira e que, com exceção dos mais sabidos, eles continuem a ser os xirianás, os uaicás, os macus e os maiongongues de sempre, ficando essa história de “ianomâmis” só para brasileiros e venezuelanos”.

“Mas os índios tidos como ianomâmis são os mesmos que lá estavam de 1969 a 1971. Tenho certeza porque voltei à região em 1985, 1986, 1987 e 1988, como Secretário de Segurança, e vi as malocas nos mesmos lugares e os índios com as mesmas caras de antes. E, muito embora essa afirmação possa parecer temerária, pela dificuldade de distinguir-se um índio do outro na mesma tribo, é fácil de ver que, se nesses vinte anos não se registrou nenhuma ampliação de malocas, nem há notícia da ocorrência de epidemias ou guerras entre eles, os atuais habitantes são os mesmos visitados por mim, quando Comandante da Fronteira ou, então, são descendentes deles”.

Para este gaúcho que conheceu de perto — e de longa data — as tribos de Roraima, não é permissível enquadrar grupos tão distintos em uma única nação, “apagando-lhes as diferenças e variações culturais, quando a Antropologia tem como objetivo, ao contrário, salientá-las”. Segundo Menna Barreto, as diferentes tribos hoje designadas genericamente pelo gentílico ianomâmi, são bem definidas e distintas entre si.

Ianomamização — Prossegue Menna Barreto: “os uaicás, por exemplo, têm conseguido, ao contrário dos demais, manter-se praticamente imunes a influências estranhas, seja pelo terror que sua ferocidade infunde, seja pela precaução instintiva de se retraírem para evitar a própria degeneração e o ocaso no convívio com culturas mais avançadas. Os xirianás, no entanto, não puderam evitá-las em suas tribos do Alto Uraricaá, do Motomotó e do Matacuni, mais sujeitas à força do gregarismo humano nas condições singulares que viveram. Os primeiros mantém estreito relacionamento com seus vassalos auaqués e um rudimentar comércio com vizinhos do grupo caribe. Os do Matacuni, por sua vez, vinculam-se cultural e comercialmente aos iecuanás do Alto Auari”.

Os xirianás do Matacuni e do Uraricaá, segundo o autor, após terem exterminados os maracanãs, os purucotós e os auaqués, tornaram-se mansos e sedentários. Já seus irmãos do Motomotó, em sua limitada parceria com os macus, só alcançaram uma certa habilidade artesanal e uma relativa moderação da brutalidade primitiva. Outra parcela da tribo, das nascentes do Orenoco e do Médio Mucajaí, conservam o nomadismo e hábitos selvagens, sendo incapazes de construir malocas com troncos fazer canoas ou plantar roças. Ainda na mesma reserva ianomâmi, estariam os iecuanás-caribe, apelidados de maiongongues pelos macuxis e de maquiritares pelos venezuelanos, mais os remanescentes das tribos guinaú e iauaraná.

“Com tamanha profusão de línguas, raças e culturas, é indevido e absurdo” — escreve Menna Barreto — “classificar-se todos de ianomâmis. Fechar os olhos a esta evidente farsa para favorecer interesses escusos de outros países, em detrimento do Brasil, mais do que escândalo é traição”.

Claudia Andujar, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil.

Mesmo assim, em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso), que só passaram a ser ianomâmis a partir de 1973. Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo.

Uma Cuba para latifundiários — Os uaicás, xirianás, iecuanás, macus e maiongongues, segundo Menna Barreto — ou ianomâmis, como os rebatizou Andujar — têm hoje a posse de 9,4 milhões de hectares, uma extensão territorial que jamais conseguirão controlar. Não bastasse esta imensidão de terras entregue por Collor de Mello a um punhado de seres primitivos, incapazes de constituir ou gerir um Estado, o presidente Fernando Henrique Cardoso acaba de demarcar uma área ainda maior, de 10,6 milhões de hectares (território equivalente a Cuba) na região conhecida como Cabeça do Cachorro, no noroeste do Amazonas. A demarcação, feita com patrocínio do G-7 (grupo formado por EUA, Japão, Canadá, Alemanha, França, Grã-Bretanha e Itália) revoga e engloba 14 "ilhas" descontínuas, criadas durante o governo Sarney (1985-90). Antes da nova demarcação, as 14 "ilhas" tinham apenas 2,6 milhões de hectares. Esta Cuba será entregue a cerca de 30 mil índios, quase 10% da população indígena do Brasil, espalhados em 600 comunidades de 23 etnias, como baré, suriana, maku, baniwa e tucano, entre outras.

Detentores de 11% do território nacional, os 325 mil índios brasileiros se candidatam fortemente à condição de maiores latifundiários do planeta. Ironicamente, habitam o mesmo país em que o Movimento dos Sem-terra (grupos armados de fuzis, foices e facões, organizados pela Igreja Católica) invade e desmonta propriedades produtivas, com técnicas de guerrilha e sob as bandeiras de Mao Tse Tung e Che Guevara. Alegam os defensores dos “povos da floresta” que todo o território brasileiro lhes pertencia, antes da chegada dos portugueses. Ocorre que os nativos não pediram passaporte a Cabral, nem lhe exigiram visto de entrada. Ora, sem Estado constituído, povo algum pode pretender a posse de qualquer território.

Postos em quarentena pela antropologia militante, isolados deste século por uma política oficial de Brasília, uma merencória opção é deixada aos autóctones de Pindorama: morrer de fome ou depender da caridade pública. Integrar-se ao século XX, jamais: os antropólogos precisam preservar, congelados no tempo, seus objetos de estudo.

E assim prepara-se o Brasil para entrar no terceiro milênio. Deixando para trás, perdidos no passado, seus primeiros habitantes.


Uma Teocracia na Amazônia*

As discussões sobre a preservação do índio esquecem uma questão essencial: o rico subsolo amazônico

 

         Nas últimas discussões sobre a questão indígena no Brasil, geralmente omite-se apenas um item, nada menos que o essencial. O cerne do problema não é a preservação do índio e suas tradições. Nenhuma ONG (Organização Não-Governamental) se preocuparia com as culturas hutu ou tutsi, em Ruanda, ou com a dos miskitos na Nicarágua. Ocorre que os índios brasileiros vivem sobre um subsolo riquíssimo.
         Quando os defensores incondicionais das culturas nativas falam em waimiri-atroaari, leia-se cassiterita. E, quando se lê cassiterita, leia-se Paranapanema. Quando se fala em reserva ianomâmi leia-se cassiterita, mais ouro e fosfato. Cabe ainda lembrar que os ianomâmis não são autóctones, mas migrantes do Caribe. Perde o sentido a argumentação dos antropólogos a serviço da Funai sobre "terras imemoriais". Macuxis, podemos traduzir por diamantes. A demarcação das terras indígenas pela Funai (Fundação Nacional do Índio) é sempre precedida pela descoberta de jazidas minerais.
         Uma das raras denúncias desta estratégia na grande imprensa foi feita em janeiro passado, por Marcos Losekan, no "Jornal Nacional" da Rede Globo: "Os índios da Amazônia se tornaram os maiores latifundiários do mundo. As reservas dessa região ocupam um terço do território da Amazônia. A reserva dos Waimiri-Atroari no Amazonas, rica em cassiterita, dobrou do tamanho nos últimos anos. A reserva dos macuxis, em Roraima, recheada de diamante, aumentou duas vezes. A reserva dos ianomâmis no norte do Amazonas, rica em ouro, cassiterita e fosfato, cresceu cinco vezes. Em 1979 eram dois milhões de hectares. Em 85 passou para sete milhões e na demarcação definitiva em 1990 atingiu quase dez milhões de hectares. Hoje, a reserva ianomâmi é do tamanho de Portugal.
         No caso da cassiterita, uma rápida cronologia é elucidativa. Em 1957, chegam à região ianomâmi os missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEV). Em 1975, é descoberta a ocorrência de cassiterita em Surucucus. No ano seguinte, uma portaria da Funai fecha o garimpo. Em 1977, através de outra portaria, são criadas quatro áreas ianomâmis.
         Em 1978, nova portaria cria nove reservas ianomâmis e seis no Amazonas, uma extensão das "ilhas", segundo a proposta oficial. Em 1979, é formada a Comissão pela Criação do Parque Yanomâmi (CCPY), presidida pela fotógrafa suíça (embora o nome soe estranho para suíça, esta nacionalidade é significativa, como veremos). Em julho do mesmo ano, a CCPY apresenta proposta para a criação do Parque Yanomâmi, pedindo ao governo nada menos que 5,5 milhões de hectares, em Roraima e na Amazônia.
         Em setembro de 1979, a CCPY assume a responsabilidade de dirigir a política indígena na região. A Funai contrata para atuar na área ianomâmi Kenneth Taylor, antropólogo norte-americano que incentiva a criação de reservas. Em 1980, a mesma entidade cria um grupo de trabalho para reestudar a área ianomâmi, com a participação de Cláudia Andujar, que analisa a proposta oficial ilhas e da CCPY -área contínua. É aprovada no entanto uma terceira proposta, que implica o bloqueio de nada menos que nove milhões de hectares.
         "Para aumentar as reservas", diz Losekan, "a Funai sempre alegou a descoberta de malocas nos pontos mais distantes da Amazônia. Mas, segundo os geólogos, coincidência ou não, na última expansão nos limites da reserva ianomâmi, por exemplo, foram parar em cima de três reservas minerais: ouro, fosfato e cassiterita".
         Não bastasse missionários e antropólogos estrangeiros estarem cortando o país em pedaços, sob o olhar conivente de Brasília, o Christian Church World Council produziu um documento revelador da arrogância européia em relação à América Latina, publicado na revista "Afinal" (11/04/80). Em julho de 81, em Genebra -não por acaso Andujar tem passaporte suíço- a entidade organiza o "1º Simpósio Mundial sobre Divergências Inter-étnicas na América do Sul". O movimento é liderado pelo Comité Internacional de la Défense de l’Amazonie, Inter-American Indian Institute, International Ethnical Survival, International Cultural Survival, Workgroup for Indigenous Affairs e Berna-Geneve Ethnical Institute.
         O encontro elabora diretrizes específicas para a Venezuela, Colômbia, Peru, Brasil e demais países da América do Sul. O documento dirigido às organizações missionárias no Brasil intitulado "Diretrizes Brasil nº 4 - Ano 0", examina o conceito de Amazônia Total, "cuja maior área fica no Brasil, mas compreendendo também parte dos territórios venezuelano, colombiano e peruano".
         Os participantes do simpósio a consideram patrimônio da humanidade. "A posse dessa imensa área pelos países mencionados é meramente circunstancial, não só por decisão de todos os organismos presentes ao Simpósio como também por decisão filosófica dos mais de mil membros que compõem os Conselhos de Defesa dos Índios e do Meio Ambiente".
         Ou seja, um grupo de europeus e norte-americanos decide, na Suíça, que os seres que habitam a Amazônia são patrimônio da humanidade "e não patrimônio dos países cujos territórios, pretensamente, dizem lhes pertencer". Imbuem-se do dever de impedir em qualquer caso "a agressão contra toda a área amazônica, quando essa se caracterizar pela construção de estradas, campos de pouso, principalmente quando destinados a atividades de garimpo, barragens de qualquer tipo ou tamanho, obras de fronteira, civis ou militares, tais como quartéis, estradas, limpeza de faixas, campos de pouso militares e outros que signifiquem a tentativa de modificações ou do que a civilização chama de progresso".
         Tornam-se assim claras as motivações das ONGS na luta contra qualquer tentativa de exploração econômica da Amazônia por parte do governo brasileiro. Em 1991, oito senadores norte-americanos entre eles Al Gore, o atual vice-presidente dos EUA, enviaram carta ao presidente George Bush, pedindo que o governo americano pressione o governo brasileiro para demarcar o Parque Ianomâmi.
         Ainda no mesmo ano, ao voltar dos Estados Unidos, Fernando Collor de Mello, através de um decreto sem número, torna sem efeito a demarcação administrativa das "ilhas", vai a Surucucus e dinamita várias pistas de garimpo.
         As entidades reunidas em Genebra atribuem-se ainda o dever de "manter a floresta amazônica e os seres que nela vivem, como os índios, os animais silvestres e os elementos ecológicos, no estado em que a natureza os deixou antes da chegada dos europeus. Para tanto, é nosso dever evitar a formação de pastagens, fazendas, plantações e culturas de qualquer tipo que possam ser consideradas como agressão ao meio".
         O documento reivindica uma forma jurídica para tais áreas, incluindo a propriedade da terra, "que deverá compreender o solo, o subsolo e tudo que neles existir, tanto em forma de recursos naturais renováveis como não-renováveis. É nosso dever preservar e evitar, em caráter de urgência, até que as novas nações estejam estruturadas, ações de mineração, garimpagem, construção de estradas, formação de vilas, fazendas, plantações de qualquer natureza".
         Outro item da declaração é bastante esclarecedor: "É nosso dever conseguir o mais rápido possível emendas constitucionais no Brasil, Venezuela e Colômbia, para que os objetivos destas diretrizes sejam garantidas por preceitos constitucionais". Adiante: "É nosso dever garantir a preservação do território da Amazônia e de seus habitantes aborígenes, para o seu desfrute pelas grandes civilizações européias, cujas áreas naturais estejam reduzidas a um limite crítico".
         Para o cumprimento destas diretrizes, deve-se angariar o apoio de "pessoas ilustres, como é o caso de Gilberto Freyre no Brasil, bem como principalmente entre políticos, sociólogos, antropólogos, geólogos, autoridades governamentais, indigenistas e outros de importante influência, como é o caso de jornalistas e seus veículos de imprensa".
         Tempera-se tudo isto com uma boa dose de luta de classes. Deve-se alfabetizar os povos indígenas em suas línguas maternas, "incutindo-lhes coragem, determinação, audácia, valentia e até um pouco de espírito agressivo, para que aprendam a defender os seus direitos, é preciso levar em consideração que os indígenas desses países são apáticos, subnutridos e preguiçosos. É preciso que eles vejam o homem branco como um inimigo permanente, não somente dele, índio, mas também do sistema ecológico da Amazônia. É preciso despertar algum orgulho que o índio tenha dentro de si. É preciso que o índio veja e tenha consciência de que o missionário é a única salvação".
         Nada melhor que uma boa dose de racismo, como combustível para acelerar a luta de classes: "É preciso insistir no conceito de etnia, para que desse modo seja despertado o instinto natural de segregação, do orgulho de pertencer a uma nobreza étnica, da consciência de ser melhor que o homem branco".
         Na hora de mapear as nações dos indígenas, deve-se maximizar as áreas, "sempre pedindo três ou quatro vezes mais, sempre reivindicando a devolução da terra do índio, pois tudo pertencia a ele". E, para que não haja dúvidas sobre o objetivo maior desta "defesa" das minorias étnicas: "Dentro dos territórios dos índios deverão permanecer todos os recursos que provoquem o desmatamento, buracos, a presença de máquinas pertencentes ao homem branco. Dentre esses recursos, os mais importantes são riquezas minerais que devem ser consideradas como reservas estratégicas das nações, a serem exploradas oportunamente".
         Em 1987, este documento passou pelas mãos do presidente José Sarney e de seus ministros militares. Brasília deve tê-lo considerado como uma espécie de inocente "war game", pois nenhum dos agentes da desintegração territorial do Brasil foi expulso do país, embora autoridades civis e militares há muito venham emitindo alertas sobre este risco.
         Em 91, Jarbas Passarinho, então ministro da Justiça, denunciava no "Jornal do Brasil" a entrada de missões religiosas na Amazônia que, com o pretexto de preservar a população indígena, promoviam a internacionalização da região. "Já foi localizado um padre que, ao invés da Bíblia, carregava uma magnetômetro", disse Passarinho.
         Não bastasse esta troca de um instrumento de dominação antigo por outro mais moderno, na década de 70, chega a Roraima o bispo italiano Aldo Mongiani, da Ordem Missionária da Consolata. Adepto da sedizente Teologia da Libertação, dom Aldo vinha de Moçambique, onde trabalhava dando apoio à guerrilha de esquerda.
         Começaram então os conflitos entre índios e brancos em Roraima, onde ocorreria, em 1993, segundo a Funai, o famoso massacre que não houve, a "chacina dos ianômamis".
         Em maio de 93, o bispo italiano oferece recursos internacionais, inclusive da Itália, ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, para a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Em vez das etnias macuxi, ingaricó e lauperang, leia-se ouro e diamante. Corrêa: "Eu não aceitei a proposta de dom Aldo", disse.
         Resumo da ópera: a "Res Publica Christiana" européia planeja uma república teocrática na América do Sul, construída pelos cleros europeus e norte-americano, cortando territórios do Brasil, Peru, Colômbia e Guiana. A hipótese pode parecer literatura de antecipação. Mas o projeto está no papel há mais de década. Capital estrangeiro e militantes para tocá-lo adiante é o que não falta. Dom Aldo Mongiano, o bispo corrido de Moçambique, tem gordas contas em bancos no exterior para construir sua teocracia.
         Se Brasília não tomar uma atitude imediata, o mais rico subsolo da América Latina ficará em posse não dos indígenas, mera massa de manobra do clero cristão, e sim dos Estados Unidos e países europeus.

 

Janer Cristaldo
Especial para a Folha de São Paulo
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